Guavira14-EdicaoFinal
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Guavira14-EdicaoFinal
ISSN 1980-1858 GUAVIRA LETRAS Programa de Pós-Graduação em Letras UFMS/Campus de Três Lagoas Guavira Três Lagoas n. 14 p. jan./jul. 2012 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Reitora Célia Maria da Silva Oliveira Vice-Reitor João Ricardo Filgueiras Tognini Pró-Reitor de Pós-graduação Dercir Pedro de Oliveira Diretor do Campus de Três Lagoas José Antônio Menoni Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras Kelcilene Grácia Rodrigues Editores Rauer Ribeiro Rodrigues (Chefe) Taísa Peres de Oliveira (Adjunta) Vitória Regina Spanghero Ferreira (Secretária) Claudionor Messias da Silva (Técnico) Editoração e Diagramação Rauer Ribeiro Rodrigues Organizadores e Coordenadores deste volume Kelcilene Grácia Rodrigues (UFMS) Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ / CNPq) Os autores são responsáveis pelo texto final, quanto ao conteúdo e quanto à correção da linguagem. © Copyrigth 2012 – os autores Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (UFMS, Três Lagoas, MS, Brasil) G918 Guavira Letras: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e Pós-Graduação em Letras. – v. 14 (1.semestre, 2012), 389 p. - Três Lagoas, MS, 2012 Semestral. Descrição baseada no: v. 11 (ago./dez/ 2010) Tema especial: Literatura / Crise Organizadores: Kelcilene Grácia Rodrigues e Roberto Acízelo de Souza Editor: Rauer Ribeiro Rodrigues ISSN 1980-1858 1. Letras - Periódicos. 2. Estudos Literários I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e Pós-Graduação em Letras. II. Título. (Revista On-Line: http://www.revistaguavira.com.br) CDD (22) 805 _________________________________________________________________________________ ________________________ GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 3 GUAVIRA LETRAS 14 Conselho Editorial Eneida Maria de Souza (UFMG) João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis) José Luiz Fiorin (USP) Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD) Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara) Maria José Faria Coracini (UNICAMP) Márcia Teixeira Nogueira (UFCE) Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG) Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra – Portugal) Roberto Leiser Baronas (UNEMAT) Sheila Dias Maciel (UFMT) Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM) Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS) Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália) Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre) Conselho Consultivo Adalberto Vicente - Unesp FCL-Ar Alice Áurea Penteado Martha Álvaro Santos Simões Júnior Ana Cláudia Coutinho Viegas Ana Lúcia de Souza Henriques Ana Maria Domingues de Oliveira Andréa Sirihal Werkema Angela Maria Guida Angela Varela Brasil Pessoa Antonio Carlos Silva de Carvalho Antonio Rodrigues Belon Arnaldo Franco Junior Benedito Antunes (Unesp) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 4 Benedito José Veiga Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha (UFU) Celia Maria Rocha Reis Clara Ávila Ornellas Cláudia Amorim Claúdia Maria Pereira da Silva Danglei de Castro Pereira Daniel Abrão (UEMS) Deise Quintiliano Eunice Terezinha Piazza Gai Éwerton de Freitas (UEG) Fabiane Renata Borsato Francisco Alves Filho (UFPI) Goiandira Ortiz Günter Karl Pressler Helena Bonito Couto Pereira Igor Rossoni José Batista de Sales José Luís Jobim de Salles Fonseca Katia Aily Franco de Camargo Kelcilene Grácia Rodrigues Leila Franco – UEMG Leoné Astride Barzotto (UFGD) Luiz Carlos Santos Simon (UEL) Luiz Gonzaga Marchezan Marcelo Módolo (USP) Márcia Tavares Silva (UFRN e UFCG) Maria Célia Leonel Maria Celma Borges Maria Cristina Cardoso Ribas Maria Elizabeth Chaves de Mello Maria Eulália Ramicelli Maria Eunice Moreira Maria Zilda Ferreira Cury Marilene Weinhardt Marlí Tereza Furtado Mauro Nicola Povoas Noberto Perkoski (UNISC) Odalice de Castro e Silva Patrícia Kátia da Costa Pina GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 5 Paulo Andrade (Unesp-Assis) Pedro Brum dos Santos Rafael José dos Santos Rauer Ribeiro Rodrigues Ravel Giordano Paz Regina Baruki Regina Kohlrausch Renata Coelho Marchezan Ricardo Magalhães Bulhões Roberto Acízelo Quelha de Souza Rogério Barbosa da Silva (Cefet – MG) Rosane Gazolla Alves Feitosa Sérgio da Fonseca Amaral Socorro Fátima Pacífico Vilar Barbosa Tânia Regina Oliveira Ramos Tieko Yamaguchi Miyazaki Vânia Maria Lescano Guerra Wania Majadas Wiebke Röben de Alencar Xavier Wilma Patrícia Maas Todos os pareceristas são professores doutores. Os laudos, circunstanciados, foram — quando necessário — enviados aos autores, para que os artigos passassem por revisão, correções e ajustes. Os artigos que compõem essa edição foram recebidos em maio/2012 e aprovados em meados de junho/2012. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 6 APRESENTAÇÃO GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 7 AS MUITAS FACES DA CRISE (?) DA LITERATURA Rauer Ribeiro Rodrigues Editor da Guavira Letras Anunciar que a literatura está em crise é exercício intelectual talvez milenar. Nas últimas centúrias, a afirmação foi reiterada cada vez mais amiúde, de tal modo que nas décadas que envolvem a mudança de milênio a futurologia tornou-se decreto, quando não obituário. No mesmo passo, porventura igualmente apressado, quando não interesseiro, o renascimento da literatura é celebrado diuturnamente nos cadernos culturais, cadernos que mais se voltam para modas, efemérides e relações políticas e sociais. Discutir a crise da literatura, na proposta do Dossiê desta edição da Guavira Letras, envolve aspectos os mais diversos, nenhum deles abandonando a convicção de que o estado de crise é o modo próprio de ser da literatura, o modo que plasma o seu sentido e sua função na sociedade e para o homem, seja aquele que transita das árvores para as cavernas, seja aquele que confere no relógio atômico a hora exata em que uma nave espacial desembarca a curiosidade humana em longínquo planeta no espaço sideral, seja em sociedade tribal ágrafa, seja no Vale do Silício, em meio aos computadores mais avançados já concebidos. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 8 Falar assim em crise na literatura é um modo de reconhecer o estatuto do literário em sua plenitude: aquele momento em que a literatura rasga o real para além do horizonte do possível, do reconhecível, no instante mesmo em que retrata de modo fidedigno o seu referente histórico. Em outras palavras, a literatura flagra a intimidade das grandes linhas que configuram determinado momento, indo além dos próprios limites que a teoria imaginava ser sua possibilidade. Sendo limite para sempre em dilação, em corrupção e em maleabilidade, a literatura como que se exaure a si mesma a cada novo poema, a cada nova narrativa, a cada novo discurso. Não cumprir tal desiderato significa frustrar o próprio sentido de sua existência. Daí que o sinal de morte, de fim de percurso, sempre a acompanhe, sempre lhe seja imputado. E também daí é que sempre lhe reconhecemos o renascer, talvez expressão inadequada, essa de nomear um renascer, dado que a anunciada crise final da literatura contém, inarredável, seu eterno retorno, a semente de sua permanência inoxidável, pois a crise que parteja o seu fim é a mesma que provoca seu renascimento. A crise da literatura — aquela que está no interior de suas manifestações — é propriamente sua alma, seu ânimo, a força de sua permanência, de sua necessidade e de seu eterno vigor. A crise da literatura como representação simbólica, poderíamos dizer, é a própria angústia do humano, seja a da GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 9 perfectibilidade impossível, seja a da consciência da morte, seja a do desespero que apela à fé, seja a da certeza da pequenez diante do cosmo imensurável, seja a da razão que se torna selvagem. A Revista Guavira Letras, para este número, fez chamada com a seguinte ementa: Literatura / Crise Crise. Insegurança. Desorientação. Poesia. Ficção. Crítica Literária. A disciplina Literatura. A literatura na escola e na universidade. A literatura em tempos difíceis. A representação da crise. A mimetização da crise. A crise da representação. A literatura está em crise? Sob a orientação e responsabilidade dos Organizadores, acompanhados por este Editor, foram submetidos perto de oitenta textos, o que nos fez mobilizar quase duas centenas de revisores, com o cuidado de que nenhum parecerista fosse convocado mais de uma vez. Com tal volume de textos, entre aqueles que atendiam ao Dossiê e aqueles que se voltavam para a seção de Artigos, as tarefas se multiplicaram, mas também se multiplicou a alegria pela qualidade das reflexões que tínhamos para esta edição, reflexões que abordam, a nosso ver, a gama de questões propostas pela ementa da chamada. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 10 Abre o volume o ensaio de Britta Morisse Pimentel, a tradutora de Manoel de Barros para o alemão, cuja tese central é de que o poeta de Mato Grosso do Sul têm lições fundamentais diante da crise europeia. O outro ensaio é assinado pelo escritor Miguel Sanches Neto, que examina detidamente, e de modo arguto, a perda de centralidade da literatura no Curso de Letras, disciplina transformada utilitariamente em instrumento para diversos outros saberes. Professor universitário, Sanches Neto trata ainda da falta de familiaridade dos universitários com o texto literário, problema ampliado pela visão redutora, tecnicista e teorizante do ensino superior, diante do que defende a formação de um leitor eclético, que apreenda o poder humanizador do texto literário. No Dossiê Literatura / Crise, os artigos de Júlio França, Raquel Trentin Oliveira, Maria Heloísa Martins Dias, Germana Maria Araújo Sales e Juan Pablo Chiappara desenvolvem reflexões sobre a teoria da literatura e a assim chamada crise da literatura. Já os textos de Aparecido Donizete Rossi, Verônica Daniel Kobs, Rosana Cristina Zanelatto Santos e Alexandra Santos Pinheiro analisam aspectos pontuais, diante de corpus específicos, de recortes temporais ou do tema do ensino da literatura, sem descuidarem da reflexão geral sobre o significado do binômino Literatura / Crise. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 11 A reflexão sobre a crise da literatura também tangencia o diálogo registrado na entrevista que João A. Campato Jr. faz com a professora Karin Volobuef. Especialista no romantismo alemão, ela afirma que o homem desse período era cindido, fragmentado, fruto de um ideário estético que considerava a literatura como algo sempre inacabado, em processo contínuo de criação e destruição. A seção Artigos reúne sete estudos que — de um modo ou de outro — dialogam com o tema do Dossiê. Tânia Sarmento-Pantoja estuda a catástrofe em contos de Luiz Fernando Emediato que tratam da barbárie no período da ditadura militar. Gracia Regina Gonçalves e Juan Filipe Stacul tratam da constituição do masculino em um romance de Caio Fernando Abreu. Já a força transgressora da literatura de Saramago é o móvel do artigo de Augusto Rodrigues Silva Junior e Ana Clara Magalhães. A imposição de limites interpretativos na formação do leitor é o tema de João Luís Pereira Ourique e Patrícia Cristine Hoff, enquanto a poesia visceral de Bataille é o mote de Alexandre Rodrigues da Costa. Fecha a seção dois textos sobre poesia: em “Manoel de Barros e a busca pelo reencantamento da linguagem”, Suzel Domini dos Santos e Susanna Busato retomam a obra do poeta pantaneiro, enquanto José Fernandes, em “O Poema Visual: do Esotérico ao Cibernético”, se volta para aspectos pouco estudados do gênero lírico. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 12 Fecha o volume uma seção nova, Memórias, na qual o professor José Batista de Sales narra a criação do Mestrado em Letras da UFMS de Três Lagoas e relembra a criação da Guavira Letras. Essa seção, nos próximos números, recuperará histórias do Mestrado em Letras da UFMS. Devido ao grande número de submissões, ao processo de revisão e ao atendimento — por parte dos autores — dos laudos dos pareceristas, diversos artigos estão sendo reelaborados, de modo que o tema Literatura / Crise terá desdobramentos em nosso próximo volume. Por fim, há que consignar um enfático agradecimento público aos nossos pareceristas, cuja relação consta no Expediente, formando nesta edição nosso Conselho Editorial Consultivo. Não poderíamos também deixar de registrar — e agradecer de modo efusivo — o trabalho e o judicioso aconselhamento dos organizadores do volume, a professora Kelcilene Grácia Rodrigues e o professor Roberto Acízelo de Souza. Sem essa equipe, e esses organizadores, nossa tarefa ficaria, mais que difícil, impossível. Vamos, pois, aos textos, razão de ser da Guavira Letras, e às muitas faces da crise (?) da literatura, mote desta edição. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 13 SUMÁRIO GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 14 Guavira Letras 14 julho/2012 Orgs.: Kelcilene Grácia Rodrigues (UFMS) Roberto Acízelo de Souza (UERJ / CNPq) APRESENTAÇÃO As muitas faces da crise (?) da literatura Rauer Ribeiro Rodrigues, Editor – UFMS 8 ENSAIOS Manoel de Barros e a Crise Europeia Britta Morisse Pimentel – Alemanha 19 O Lugar da Literatura 43 Miguel Sanches Neto – UEPG DOSSIÊ – A CRISE DA LITERATURA Teoria em tempos de crise: três desafios da reflexão teórica hoje Júlio França – UERJ 57 Literatura? Pra Quê? / Literatura For What? Raquel Trentin Oliveira – UFSM 79 O texto literário: um objeto de prazer Maria Heloísa Martins Dias – UNESP 89 A literatura está em crise? Germana Maria Araújo Sales – UFPA 103 A ficção e a vida: alegações para pensar uma literatura em crise Juan Pablo Chiappara – UFV 117 GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 15 Sobre a Idade das Crises: As inter-relações sujeito-identidade-Feminismo na pós-modernidade 135 Aparecido Donizete Rossi – UNESP Asfalto selvagem: Uma narrativa em crise Verônica Daniel Kobs – UNIANDRADE 161 A falta da literatura Rosana Cristina Zanelatto Santos – UFMS / CNPq 181 A literatura infantil em crise?: Experiências na Educação do Campo Alexandra Santos Pinheiro - UFGD 194 ENTREVISTA Sobre o Romantismo: Entrevista com Karin Volobuef João A. Campato Jr. – UNIESP 217 ARTIGOS A catástrofe em “Não passarás o Jordão”, de Luiz Fernando Emediato 225 Tânia Sarmento-Pantoja – UFPA Tal pai, tal filho? Considerações sobre a constituição do sujeito masculino no romance Limite branco, de Caio Fernando Abreu 240 Gracia Regina Gonçalves – UFV Juan Filipe Stacul – UFV O que tem de ser tem de ser: a força da prosa e da poesia como transgressoras do destino no Ano da morte de Ricardo Reis 260 Augusto Rodrigues Silva Junior – UnB Ana Clara Magalhães Medeiros – UnB Obra aberta, mas nem tanto: Limites interpretativos como colaboradores na formação do sujeito-leitor João Luís Pereira Ourique – UFPel Patrícia Cristine Hoff – UFPel Corpos lacerados: o sacrifício da palavra na obra poética de Georges Bataille Alexandre Rodrigues da Costa – FHA GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 280 297 16 Manoel de Barros e a busca pelo reencantamento da linguagem Suzel Domini dos Santos – UNESP Susanna Busato – UNESP 312 O Poema Visual: do Esotérico ao Cibernético José Fernandes – UFG 333 RESENHA RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006. Wellington Costa – IFCE A passante solitária de Algum lugar Aline Menezes – PG-UnB 365 370 MEMÓRIAS Da criação do Mestrado em Letras em Três Lagoas à criação da Guavira Letras José Batista de Sales – UFMS 376 NORMAS / CHAMADA n. 15 382 GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 17 DOSSIÊ / ENSAIOS GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 18 MANOEL DE BARROS E A CRISE EUROPEIA Britta Morisse Pimentel - Alemanha 1 Notícia: A poesia de Manoel de Barros já foi traduzida, entre outras línguas, para o espanhol, o francês e recentemente para o inglês. Problema: Por que é preciso traduzi-la para a língua alemã? Proposição: A poesia de Manoel de Barros, poeta brasileiro, propicia condições para o intelectual europeu superar sua crise de insegurança e desorientação. I. A contribuição do intelectual na formação da união cultural europeia II. Uma crise complexa na Europa III. Espelho da crise nos trabalhos do intelectual mais rebelde e insurreto III.1. Aernout Mik, artista de vídeo, Holanda III.2. Kathrin Röggla, escritora, Áustria III.3. Beatrice Götz, professora de ginástica e dança, Universidade de Basel III.4. Patrick Gusset, performer, música e teatro, Suíça/ Jamaica III.5. Frank Castorf, diretor de teatro, Alemanha IV. Freedom Rebels, Jeunes de Balieus, Wutbürger e o Consultório Filosófico de Viena V. O intelectual reconhecido revela sua resposta V.1. Jean Luc Godard, cineasta francês 1 Tradutora do poeta Manoel de Barros para o alemão. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 19 V.2 .Peter Gabriel, músico inglês V.3. Hans-Peter Dürr, cientista alemão V.4. Michela Marzano, filósofa italiana V.5. Tomas Tranströmer, poeta sueco VI. Bálsamo poético de Manoel de Barros VI.1 Atenção pura e extensiva, às vezes de câmera lenta VI.2 Percepção sonora ornitorrincósa e fitosociológica VI.3 Olhadela descaroçadora com fantasias fanerozóicas VI.4 Poesia numa linguagem minuciosa em altiloquência corpórea VI.5.Zombaria de potência perfeccionista, identidade pulha no terreno poético dos Direitos Humanos I. A contribuição do intelectual na formação da união cultural europeia Este século está na beira do caos. Ele se define por imprevisibilidade e instabilidade especialmente na Europa, onde a vida normal é tradicionalmente regularizada minuciosamente. Agora precisamos aprender a viver com o incontrolável. Poder, força e energia para vencer este desafio somente podem ser buscados em uma identidade complexa, que se formou da pluralidade cultural dos 27 estados europeus e baseouse num fundamento economicamente firme e confiável. Todavia, não se encontram iniciativas suficientes que, preocupando-se com a descoberta de novos elementos, possam criar uma base cultural que una os estados membros e que indiquem novos caminhos para um futuro europeu mentalmente rico e forte. Isto leva a perguntar pelas causas desta falta, que talvez se deva ao desinteresse, à escassez de imaginação ou à falha em assumir sua responsabilidade por parte dos intelectuais, dos quais normalmente se espera certo apoio. O cumprimento da tarefa vital de construir uma Europa das Culturas só pode ser alcançado pelo nascimento de uma identidade europeia sólida e resistente, capaz de querer vencer qualquer tipo de crise. A convicção positiva e a participação construtiva dos intelectuais é conditio sine qua non para o bom êxito na missão de formar, de partes regionais litigantes, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 20 uma união intelectualmente versátil tomando posse da nova época que está para nascer na Europa. Iniciar o diálogo público, dar impulsos e orientação, sempre foi tarefa do intelectual, sendo esse papel “hoje talvez mais difícil para a geração de filósofos jovens, sendo eles os herdeiros de Jean Paul Sartre”, conforme diz Gero von Randow (1). Antigamente, o filósofo elucidava suas próprias teorias, defendendo ideologias, enquanto os jovens filósofos de hoje se preocupam principalmente com o bem estar do cidadão, levantando meramente perguntas em vez de também apresentar respostas. Marianne Kneuer (2) analisa detalhadamente o desenvolvimento histórico da participação do intelectual europeu no processo da formação da identidade europeia, distinguindo quatro fases, de 1940 até hoje. Apesar da sua conclusão triste de que os intelectuais falharam no seu importante papel, ela manifesta, no fim do seu trabalho, uma opinião encorajadora. Citando Peter Schneider (3), que declarou que “a utopia da unidade na pluralidade deve ser consolidada e elaborada pelos intelectuais, a fim de que ela esteja historicamente disponível”, Kneuer sintetiza que “os assuntos da identidade da Europa e da sua configuração futura serão resultado do esforço intelectualmente apontado, do acompanhamento mental e da avaliação construtiva à base de uma Unterfütterung visionária.” II. Uma crise complexa na Europa “Eu sempre quis mais Europa”, diz o escritor e cientista político Alfred Grosser (4). “Uma Europa unida não é uma utopia. É uma necessidade, O problema é que ninguém quer reconhecer esta necessidade”. Com a crise econômica que ocorre atualmente na Europa, deveria ficar claro para todos, incluindo os políticos, que ela é devida à falta da coordenação econômica adequada, a partir de um sistema de controle central do setor financeiro dos estados membros por uma autoridade centralizada. Grosser repete que é preciso uma Europa integrada com poderes centrais, enviando uma mensagem otimista aos jovens de hoje com respeito à solidariedade europeia: “Ela é menor do que desejamos, mas ela é maior do que esperávamos.” GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 21 Todavia, as inseguranças causadas pelos distúrbios econômicos mundiais, que estão discutidas e transmitidas mediaticamente vinte quatro horas por dia, e seguem sem oferecer menores sinais de superação, jogam a população europeia num estado emocional de desnorteamento. Observase com alta frequência que o individuo que faz parte do mercado de trabalho se sente perdido. A sensação de tristeza, de infelicidade e de incapacidade de achar caminhos satisfatórios na realização da vida profissional e social está aumentando. Infelizmente, a Europa anda como um paciente adoentado. Os sintomas são diversos. O paciente não consegue mais acalmar-se. Sofre de dor de cabeça, de dor nas costas, de desencanto geral, da agressividade latente e, principalmente, de lhe faltar competitividade. No campo universitário, por exemplo, encontra-se o assim chamado Professor Dr. Depressivo. Os jornais das faculdades mencionam que o esgotamento emocional é tão normal hoje em dia quanto um resfriado. O jornalista Martin Spiewak (5) e o sociólogo Hartmut Rosa (6) informam que estudantes e professores não cuidam do seu bem estar emocional, que o fracasso acadêmico é um tema tabu. Na realidade, o ensino superior favorece um comportamento viciado em trabalho, que acaba por provocar estresse, ameaças constantes, ansiedades, baixa autoestima, enfim, todos os aspectos de um diagnóstico de moda chamado burn-out. “Eu sou burn-out, sofro de burn-out, não devo ficar burn-out etc.” sao expressões idiomáticas e populares. A palavra do ano acaba de ser lançada: Stresstest . O burn-out espalhou-se como uma Epidemia Ressentida, sendo considerado consequência natural e aceita da acelerada vida moderna, decorrente das mudanças técnicas e sociais. Se procurarmos, nestes tempos emocionalmente agitados, uma interpretação artisticamente adequada, encontramos muitos exemplos de trabalhos de artistas jovens e consagrados que se identificam com a crise. Evidentemente, na procura de respostas, de novas receitas ou meramente tentando fazer das suas obras um reflexo do desespero. Mas há também os mais pessimistas, que demonstram uma renúncia, a desistência, o afundamento, indicações de um naufrágio cultural. Um representante extravagante dessa corrente é o cineasta Lars von Trier (7), com sua obra Melancholia, que fala com muita poesia da saudade de pessoas cuja vida está totalmente fora de controle. É obra formidável, que expressa sentimentos profundos, tristes e altamente atuais na Europa de hoje. O filme recebeu, no 24. Encontro do Filme Europeu EFA, em Berlim, o GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 22 prêmio do melhor filme do ano 2011. Tocando músicas de Tristan e Isolde, de Richard Wagner, o filme leva o espectador a constatar o fim do mundo pela colisão violenta de dois planetas, uma calamidade apresentada em cenas belíssimas, cheias de alusões sexuais. Trata-se de uma obra prima metafórica, virtuosa, fingida, patética, fascinante e, ao mesmo tempo, assombrada e assustadora: um retrato perfeito da perplexidade moderna. Mas em vão se procura nela alguma insinuação de resposta às inquietações da vida atual. III. Espelho da crise nos trabalhos do intelectual mais rebelde e insurreto Entrando no Museum Folkwang de Essen encontramos os trabalhos do artista de gravações de vídeo Aernout Mik (8). Sua obra gira em torno de guerras atuais, crises globais, depressões econômicas, racismo e tensões sociais em geral. A exposição atual contem obras dos últimos dez anos, incluindo uma vídeo-instalação chamada Communitas e uma nova instalação especialmente feita para esta exposição, cujo título é Shifting Sitting, que está exposta até dia 29.de Janeiro de 2012. Mik reflete, em sua maneira peculiar, o estado psicológico-social da nossa sociedade, mudando constantemente os ângulos, às vezes sem tom, às vezes em situações irreais como estratégia de alienação, demonstrando um vazio triste de desamparo. As coisas sempre estão levemente deslocadas, levemente torcidas, tudo é um pouco fora do jeito conhecido. Mik consegue configurar aquela escuridão que o preocupa de numa maneira impressionante e muito desestabilizadora. Outra rebelde é a escritora Kathrina Röggla (9) com os seus trabalhos em prosa, suas peças de radiofônicas e de teatro. Percebemos que as palavras medo e pânico estão empregados com alta frequência quando Röggla fala dos seus assuntos preferidos, que são a mudança do clima, a crise financeira, a dominância dos meios de comunicação, a midiatização anônima sobre o relacionamento humano psicológico individual. Röggla acha que estamos passando uma fase de extremas adaptações e alterações no estilo de vida, sendo a sensação de insegurança ubíqua, bem como o medo coletivo provocado pela situação global, da qual nenhum humano pode fugir. Sua novela Não estamos dormindo quer provar que a agitação e a desorientação estão interligadas. O triste pesadelo da abolição da vida particular foi abolido em favor do sucesso profissional GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 23 — sua obra é uma tentativa de refletir esteticamente a virtualidade crescente da vida. Não é coincidência que no Residenz Theater de Munique e no Theater Basel podemos assistir atualmente um revival do antigo escritor e poeta Ödon von Horvath (10). Sua novela Joventude sem Deus foi adaptada em Basel como peça de teatro, uma realização da equipe dirigida por Beatrice Goetz (11) e Patrick Gusset (12). Enquanto Horvath está olhando para a juventude pelos olhos de um professor, que consta a falta de espírito crítico dos jovens da época de 1930, a excelente equipe de hoje inverteu a peça dramaticamente, num espetáculo muito elogiado, com dança e música exemplificando com criatividade aspectos atuais que questionam a capacidade dos pais de dar uma orientação segura aos filhos do ponto de vista da própria juventude de hoje. A Geração Google apresenta-se perdida no gênio da época atual que oferece moção, emoção, deslocação, informação — para todos os cantos disponíveis e a qualquer hora, sem oferecer o mínimo apoio para a crise de identidade do jovem, sendo o deus ausente uma metáfora para os pais inacessíveis. Consequentemente, a juventude se perde no brejo das irresponsabilidades. Na peça Kasimir e Karoline, o diretor imponente e controvertido Frank Castorf (12) pinta um retrato fulminante de um casal transferido da época de Horvath para nossos dias, totalmente perdido no seu lifestyle caótico. Trata-se de uma balada soturna e silenciosa, amaciada humoristicamente. Kasimir é um motorista sem emprego, enquanto Karoline se joga sem a menor disciplina aos prazeres oferecidos pelo mundo consumidor, vivendo uma festa eterna na famosa Oktoberfest de Munique, que normalmente é uma festa somente no mês de outubro. Castorf diz que ele pessoalmente detesta a sociedade alemã de hoje. Ele não quer fazer parte dela, já que ela é mentirosa, tediosa, estúpida, sob tutela da mediocridade do mix mediático, e, além disso, incrivelmente burguesa. Ele considera tudo isso uma ofensa aos intelectuais e, consequentemente, sua encenação torna-se uma maldosa liquidação total de tudo e de todos. Pensando no paciente europeu, sua convalescença parece cada vez mais distante. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 24 IV. Freedom Rebels, Jeunes de Balieus, Wutbürger e o Consultório Filosófico de Viena Salta a vista que os atuais conflitos europeus são iterativamente analisados nos trabalhos dos artistas citados; todavia, não oferecem ajuda ao espectador e concidadão comum, deixando-o sozinho na confrontação dos conflitos. Uma reação natural poderia ser a de agressividade. No trem de vida, a agressividade dos mais jovens manifesta-se frequentemente com violências físicas. Como exemplos servem na Inglaterra os Freedom Rebels e na França os Jeunes de Banlieus. A pessoa mais assazonada exprime sua agressão numa revolta que levou à criação da palavra nova Wutbürger que define um cidadão que tenta lutar com muita raiva contra todas as inovações que não lhe agradam. Talvez seja isso um fenômeno típico europeu que é um continente com o apelido “velho mundo”. Pelo menos na Alemanha, parece que é um esporte dos mais antigos se intrometer em tudo, querendo provar que sabe das coisas, fazer o papel do sabichão orgulhoso de cabeça esturrada. O jornalista Dirk Kurbjuweit (13) tem o mérito de batizar este sujeito ativo, furioso, às vezes um pouco chato, normalmente de idade um pouco avançado, bem instruído, financeiramente bem de vida, nada infeliz na sua vida particular, todavia insatisfeito com as instituições políticas que eram muito melhor antigamente. A desconfiança maior baseia-se na suspeita de que nos projetos novos em geral o Wutbürger teme levar uma desvantagem pecuniária. Más línguas dizem que ele quer provocar a parada total do país com suas iniciativas de oposição comichosa e seus protestos tísicos tentando evitar que o futuro aconteça. Um novo relatório do Göttinger Institut für Demokratieforschung (14) feito por cientistas jovens analisando mais de 2000 pronunciamentos destes “Wutbürger” verificou que este grupo, que se comporta nas demonstrações de rua como “jovens velhos”, aparentemente idealiza os valores do passado. Gerhard Matzig (15), arquiteto e publicista, ataca no seu livro, Simplesmente do contra, este novo tipo de compatriota com sendo retrogrado, nostálgico, caduco, querendo fazer do país e da Europa um lugar sem perspectivas, sem ânimo para o futuro, medroso, pessimista, reprovando genericamente a sociedade atual que para eles é tecnicamente acelerada demais. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 25 Bem contrária é a opinião do filósofo Eugen Maria Schulak (16), que mantém um consultório filosófico na cidade de Viena. No seu livro recente, Do Bobão do Sistema ao Wutbürger, ele critica veemente o ser humano adaptado ao sistema, vivendo como arganaz dentro de uma roda, repetindo as coisas cegamente, contaminando-se com a doença de burnout. O Wutbürger, porém, é a seus olhos o caminho certo, um exemplo positivo, porque ele já faz parte de um movimento social de protestos. Ele já conseguiu libertar-se da vida triste de determinação alheia. Para Schulak e seu coautor, Rahim Taghizadegan (17), o comportamento humano é intimamente ligado ao seu nível filosófico. Seu ídolo é Voltaire, que lecionava no seu livro satírico Candide, de 1759, que o ser humano tem que ser atento, ativo e contundente no seu cotidiano, porque ele é o único responsável por seus atos. Schulak conclui que o bem estar da alma e a madureza filosófica do individuo pode ser aumentada através da reflexão filosófica como instrumento de fazer crescer a viabilidade e a vitalidade no domínio de vencer uma crise. Pelo estudo de uma obra literária determina-se o nível filosófico do seu autor e consequentemente o leitor pode tomar conhecimento da presença ou da ausência dos valores e convicções fundamentais do artista. Trazendo isso na mente, vamos apresentar cinco intelectuais europeus e um brasileiro. V. Intelectuais consagrados na Europa tomam posição V.1 O cineasta Jean Luc Godard Godard (18) cineasta famoso e excêntrico, que adora de utilizar aparelhos tecnicamente avançados nos seus filmes, diz que lhe parece obscena a importância ostensiva da tecnologia do capitalismo. No seu recente trabalho, que levou quatro anos, e que se chama Film Socialisme, ele postula que o dinheiro deve ser um bem público como água, sendo acessível e disponível a todos. Este filme Godard não considera uma declaração política, mas meramente uma sugestão, uma questão, uma colagem. A primeira parte do filme foi filmada num navio de cruzeiro no Mar Mediterrâneo com diálogos multilíngues e inteligíveis entre os passageiros viajando enjaulados em cabinas miúdas sem janelas. Trata-se de uma metáfora de uma Europa decadente, flutuante numa casca de noz, uma Europa que se encontra perdida na sua história. O filme sendo uma montagem, consiste de três partes e não quer ser uma história linear.mas GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 26 retratar uma Europa sofrendo a doença do consumo, afundando, sendo controlada e tiranizada pela tecnologia. Tudo está oprimido demais, cheio demais, até nas férias tudo está lotado demais. Os seres humanos estão perdendo a fala e tornam escravos compulsórios do divertimento porque não conseguem se emancipar da tecnologia. Remanesce o desejo de se retornar ao começo, que está sendo representado pela juventude, que se encontra no seu Filmessay num estágio mais puro e primitivo, como uma sociedade pequena não global, como antigamente, porque ele era bem mais feliz do que a nossa. Seu trabalho atual, que, como ele diz, vai ser seu último filme, dedica-se a linguagem universal tendo o título Adieu au Langage. Enquanto no Film Socialismo as pessoas não se entendam falando diversas línguas, neste filme os protagonistas principais, marido e mulher, não se comunicam: apesar de falarem o mesmo idioma, eles percebem que não falam mais a mesma língua. Ajuda nesta situação vem do próprio cachorro do Godard, que será a estrela do filme, resolvendo o problema interferindo e falando na linguagem canina. Godard não quer revelar detalhes do filme, mas admite que não sabe ainda como fazer o filme com o cão falante, que ele não permite que seja adestrado. Sem dúvida, a fantasia dele ou a do cachorro vai oferecer a resposta. Caso que não, e resalvando que a poesia de Manoel de Barros ainda não lhe foi apresentada, Godard poderia cogitar abrir a pagina 588 do livro La coscienza di Zeno do escritor Italo Svevo (19), que, quando escreveu este livro em 1925, já sabendo que o ser humano não seria capaz de respeitar a natureza, advertiu: ”O ser humano colocou-se no lugar das árvores e dos animais; poluindo o ar e obstruindo o espaço aberto. Isso poderia piorar ainda. A besta triste e incansável poderia descobrir outros meios e utilizálos...” Aguardaremos ansiosamente a resposta do filme de Godard querendo saber se o adeus à língua será ele também um Adieu ao foi 5 ou talvez seja um meio indispensável na conversa com o cachorro. V.2 O músico Peter Gabriel Gabriel (20) é um talento múltiplo que venceu muitos desafios da sua vida . Ele dedica-se a música, cantando e escrevendo a lírica de suas canções, a produção de vídeos, aos direitos humanos como ativista social, sendo ele ao mesmo tempo um empresário. Na opinião dele, a técnica em si não tem nada de bom nem de ruim. Importa somente se deixamos ou GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 27 não nos determinar por ela. A vida lhe ensinou a estabelecer, que ele é pai- marido-músico, nesta sequência. Além de cultivar seu lado racional, gosta de se identificar com seus instintos, vivendo seu lado animalesco, querendo perceber o cheiro do futuro. Ele sabe cheirar o que está no ar, ele diz, reafirmando que a vida se modifica constantemente e a tecnologia oferece sempre novos meios de reproduzir o velho já conhecido numa criação totalmente diferente, de maneira desconhecida, chamado por ele remix. Por este processo do remix, ele faz seus novos trabalhos, que ele considera novos originais, negando que haja uma só versão do original, válida para todos os tempos. A técnica está sendo utilizada para documentar o processo da transmutação. Em seu trabalho, novas correntes são incorporadas, novas interdependências desenvolvidas, novas maneiras de interpretação detectadas, quase sempre com ajuda da técnica que nunca atrapalha, mas ao contrário, deve fazer parte integrante do novo produto como em seu recente CD chamado New Blood. Esta transfusão musical é uma testemunha conclusiva de que para Gabriel, como ele diz, não há crise. Ele acredita no futuro, num diálogo permanente, acredita que tudo se mexe até a morte, e que nos gravamos e seguramos só uns momentos, que ficam, com o avançar da idade, cada vez mais sutis, mas sempre com o ímpeto da renovação. Vista desta maneira, a crise tem implicações positivas que podem levar a liberação da potencialidade criativa, dependendo da atitude e da coragem do indivíduo. Gabriel revela que sua estratégia intuitiva é convencer-se do uso amplificado da própria fantasia para fazer um passo na frente. A própria fantasia habilidosamente provocada e precipitada serve como garantia secreta para a saída vitoriosa da crise. Talvez Gabriel aplique seu método do remix também ao seu conceito de crise, que, sofrendo uma transfusão criativa, torna-se uma anti-crise, um dilema positivo que não tenha falha. V.3. O cientista Hans-Peter Dürr Dürr (21) é físico e, ao mesmo tempo, representante dos movimentos Ecologistas e Pacificadores. Pensando como cientista, ele reconhece a grande importância do papel da análise científica no campo da física. Mas pensando como filósofo, Dürr considera a poesia e o por ele chamado processo poético de igual importância. Enquanto o processo cientifico divide as coisas para serem mais bem analisadas, o processo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 28 poético reúne os elementos novamente, possibilitando assim uma percepção complementar da realidade viva, que é essencial para compreender o mundo. Não se trata de uma desclassificação da ciência, mas da necessidade de lhe por limites. A linguagem poética , para ele, corresponde a um olhar holográfico e por isso é do tremendo significado para nossa concepção da vida. Dürr se manifesta a favor de um contínuo do conhecimento epistemológico. Ciência e poesia não estão em contradição. Ao contrário, são dois aspectos intimamente ligados. Reconhecer e admitir este nexo exige uma mudança em nossos hábitos intelectuais, que permite, conforme Dürr, em seu novo livro, que o Vivo seja mais Vivo. Ver a realidade por dentro significa pensar em um estilo novo, que facilita a solução de nossa crise atual. As novas descobertas da física ensinam que o conjunto da realidade é tão indivisível quanto um poema, que perde sua complexidade quando subdividido em frases, em palavras ou em letras. A perceptibilidade poética da realidade ajuda entender que o todo é bem mais do que a soma das suas partes. O ser humano denunciou seu senso arcaico com sua atitude materialista, querendo controlar e dominar a vida e determinar o futuro. Abandonou seu entendimento natural e instintivo da unidade da natureza, uma unidade entre todos os seres humanos, os animais, as plantas e, como consequência, perdeu sua unidade essencial de corpo e alma. A reconquista desta perda é difícil, porque não há língua que poderia explicar esta unicidade. No seu livro Amor - Fonte do Cosmo que é mais um dicionário das mudanças necessárias na nossa maneira de pensar do que um ensaio, ele insiste que a nossa cultura de consumo é somente uma alternativa minúscula entre as múltiplas possibilidades que a vida oferece. Dürr é considerado um cientista otimista porque acredita no potencial do ser humano. Não é a economia nem a política que vai resolver a crise de hoje, mas sim uma sociedade civil de indivíduos responsáveis, vivendo uma cooperação pacífica e uma interação cultural do mundo. O Importante é, todavia, mudar o estilo de vida e reaprender dar valor a coesão do homem com a natureza para garantir a continuidade da vivacidade da vida. A palavra chave é a “descentralização”, porque onde há concentração de poder e acumulação de bens materiais não há vida viva que é sempre variação, transformação, alteração. Matéria é nada mais do que o espírito calcificado. Por engano, consideramos, na visão antiquada do mundo material, o calcificado como mais importante do que GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 29 o Noch-nicht Verkalkte (o ainda não calcificado) que é o espírito vivo. Precisamos aprender a entender que, fora das calcificações não há matéria, nada existe, o mundo é imaterial, num processo contínuo de criação, e o futuro é basicamente indeterminável. Dürr chega a ponto de dizer, que não há empatia nem altruísmo, quer dizer, sentimentos de pena em relação ao outro que sofre, porque, sendo todos ligados um ao outro, sua dor é minha dor. Não há sentimentalidade mas uma sensação ontológica de unidade, que dá força na vida. Quem abandona este ajuste inicial, se sente perdido, enfraquecido, entregue às crises, sendo destituído do equilíbrio natural. V.4. A filósofa Michela Marzano Marzano (22), professora de filosofia da Université Paris Descartes, é uma representante típica dos jovens intelectuais europeus. Ela observa no seu livro Corpo Pensare, que a filosofia de hoje esqueceu que o ser humano é um ser físico, questionando o significado de ter um corpo e, ao mesmo tempo, de ser um corpo. A contemplação filosófica, que se reduz a pensar meramente em termos técnicos, de lógica e de linguagem, não serve, necessitando incluir cuidadosamente a benquerença do corpo físico. Pensar somente tem sentido quando o corpo participa, quando o corpo faz parte do pensamento. “A alma sozinha só daria trocadilhos” já dizia o poeta Paul Valéry, contestando polemicamente a exclusividade do “cogito”. No outro lado, Marzano agride os parâmetros perfeccionistas hoje vigentes, que exigem ser jovem, magro, mentalmente perfeito. Especialmente o ideal feminino a respeito da aparência física não tolera divergências para aquele que quer vencer. Depois que Marzano pessoalmente superou a doença de anorexia nervosa, que comenta detalhadamente em seu livro Volevo essere una Farfalla, chega à conclusão de que a extrema fragilidade da condição humana é sintomática da nossa época, sendo resultado das exigências demasiadas. Em relação ao ego feminino, em se tratando de beleza hiper chique, educação e competência social, além do sucesso profissional, os parâmetros são insuportáveis. O que dificulta ainda mais a situação é uma falta geral de crença nas possibilidades do futuro. No lugar da GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 30 confiabilidade, que é a base do sucesso, a sociedade é dominada por suspeita e desconfiança. A confiança entre as pessoas, a chave para abrir-se aos outros, é resultado da auto-confiança do individuo, sendo da maior importância reconstruíla, quando for perdida. Marzano alerta que o processo da reconquista é muito demorado, porque começa na primeira infância e continua até completar-se a educação. Ela diz, em seu livro Le Contrat de Défiance, que a confiança não é somente a base indispensável para chegar a uma sociabilidade saudável, mas que é essencial para nossa sobrevivência. Sem a Urvertrauen (confiança básica) não se encontra o caminho próprio para a liberdade e para a coragem necessárias para engajar-se no mundo em que vivemos. Só quando os intelectuais dão ao corpo sano o mesmo valor que atribuem à alma, ao pensamento e a reflexão, é que podemos combater a fragilidade da condição humana, passando da uma filosofia abstrata a uma filosofia que pensa por meio do corpo humano. Isso significa uma volta à consciência da própria Lebenswelt (a vida da cotidianidade). Conversar comigo mesmo, olhar para dentro de mim, tentar de conhecer melhor meu ego, fortificar minha pessoa dentro de um Schutzraum (sala protegida), para depois poder cultivar uma confiança sólida nos outros, como poder positivo que cria uma realidade de estar em harmonia. Humanitarismo cresce da ética de confiança. V.5. O poeta Tomas Tranströmer Tranströmer (23), que se identifica com a letra T, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura do ano 2011. Ele instrumentaliza a língua de forma extremamente criativa, sendo elogiado pelos próprios colegas com comentários como os seguintes: “Tranströmer abre um acesso novo à realidade”; “ele é o maior poeta vivo do mundo”; “a poesia dele capta o momento quando a neblina some, quando o dia-a-dia faísca”. De fato, ele é o poeta do silêncio, de poucas palavras, dizendo “sobejo das pessoas que vem com palavras, palavras, mas sem vir à baila” (24). Ele publicou somente cinco livros nos últimos quarenta anos. Seu tema predileto são as áreas mais escondidas da vida, as zonas de meia-luz, as fases do intermédio, o entretempo do entardecer. Tranströmer demonstra na sua poesia sua inclinação carinhosa e sua procura cuidadosa da linguagem de serenidade daqueles seres que sabem GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 31 ouvir. O enigmático domina sua obra, as experiências vividas ao acordar da nebulosidade. Na sua vida profissional como psicólogo, dedicou-se aos jovens delinquentes ou desempregados, prestando a atenção da sua alma sensível ao labirinto da diversidade do mundo, tentando criar uma língua nova e clara, abrindo novos caminhos para salvá-los dos conflitos. Como se fosse um ponto de convergência de estradas de ferro, onde todos os trens confluem, os poemas produzem uma nova visão da realidade, sem, todavia, fornecer explicações, porque suas visões crescem a partir de seus sonhos. No mundo do barulho, só o silencioso nos toca delicadamente. Sendo ele considerado místico, versátil e triste, por um lado, ele permanece ceticamente otimista, transmitindo em sua poesia uma confiança, que sobrevive ao enigma da identidade pessoal. Em vez de tentar apresentar aspectos racionais, ele apresenta suas visões imaginadas em quadros ricos do seu mundo, às vezes surreal. Concentrase nos momentos da vida, fala deles na sua língua, que sai de uma nova maneira de ver, que reflete uma maneira mais exata de ouvir. Assim, ele sabe transformar, melhor do que qualquer outro, o corriqueiro em uma peculiaridade. Faz tudo isso com tanta diligência, que, numa outra vida, ele talvez tivesse sido um alfaiate ou um relojoeiro. A poesia do Tranströmer impressiona porque exemplifica que é preciso evitar falar na língua safada, vazia e convencional em momentos especiais, não permitindo que ela domine nosso intercambio emocional, porque ela leva à falta de compreensão e até a destruição das interligações humanas. A ausência do uso criativo da língua tira aquele cantinho de alegria, de tristeza, de surpresa e de provocação da nossa vida. Sem modificar as palavras, sem criar novas palavras, somente usando as palavras num contexto desconhecido, ele cria por analogia uma visão refrescante da realidade. A mobilidade mental, que ele adquiriu por seu desempenho poético, deixou-o preparado, quando sofreu vários derrames, depois dos anos de 1990. Apesar da afasia que ele teve que enfrentar, aprendeu a tocar piano somente com a mão esquerda. Reaprendeu a língua, sem, todavia, conseguir falar muito, mas consegue escrever, ainda hoje, poemas de poucas linhas, claras, precisas e fáceis de entender. Faz viagens, participa de congressos, tenta comunicar-se com os amigos, mas, ao mesmo tempo, prova na sua poesia que se entrega a solidão, enfrentando-a em uma aventura eterna, uma tarefa assustadora a ser cumprida na vida, que exige que não se deve fugir da escuridão. Superar obstáculos, seja de que maneira for, é parte integrante da nossa existência. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 32 VI. Bálsamo poético de Manoel de Barros Apesar dos problemas econômicos dominando a questão da unidade da Europa, observa-se certa aproximação do ponto imaginário, que seria a fusão das culturas diversas num único e coletivo espaço de arte. Um ponto positivo da globalização é que ela acelera, no campo cultural, um envelhecimento da arte não só de países e de continentes, mas do mundo inteiro. Finalmente, vamos chegar a uma situação que Hugo von Hofmannsthal (25), poeta que viveu há cem anos, caracterizava, em seu drama Tragédia Chinesa, com as seguintes palavras: o drama acontece na china, mas não trata de pessoas chinesas, não é de hoje, nem de ontem, nem daqui e nem dali. A crise, que Europa passava naquela época (26) não se compara à de nossos dias, mas a ideia de que as culturas, unindo seus conceitos opostos, criam um bálsamo artístico e saudável, já era conhecida por Hofmannsthal. Comparando a introdução, nos capítulos passados, de alguns artistas da Europa, recordando alguns aspectos das suas ideias, pode-se ver que a poesia de Manoel de Barros revela sua contraluz, iluminando conceitos filosóficos aparentes e tangíveis para quem se abre ao cosmo do Menino do Mato. VI.1 Atenção pura e extensiva, às vezes de câmera lenta Manoel de Barros (27) dedica-se num episódio continuo de 75 anos da sua vida - quer dizer, deste que sua poesia nasceu no primeiro livro, editado em 1937 – à exploração das suas redondezas e imediações intelectuais, reais, locais, sentimentais, familiares, imaginadas e, principalmente, inventadas. Sem dúvida, o fato que, nos primeiros anos da sua vida, o lugar em que o poeta morava, que estava tão perto do abandono, ofereceu boas condições de aprender a arte da fineza pura de prestar atenção. Para o poeta, foi um privilégio de crescer na região despovoada do Pantanal, permitindo que ele (e o seu avô) abastecesse a solidão. Barros diz: o que alimenta meu espírito é inventar; fui criado no mato isolado; a poesia é precisa para me completar. Cedo ele percebeu sua inaptidão para o diálogo social de fazer conversação. Considerando- GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 33 se um bom escutador e um vedor melhor, e achando, que um poeta deveria ser mais um sensual do que um intelectual, a vontade de desenvolver seus órgãos dos sentidos era para ele algo natural, procurando espontaneamente a conversa com a natureza, que era bem mais fascinante para ele e sua poesia. Com a literatura, ele se preocupou bem mais tarde. Nos primeiros anos da sua vida, ele viveu uma infância meramente amplificando suas perceptibilidades. Ganhar a habilidade de dirigir sua atenção, devotandose à sua inclinação predileta — seu olho poético —, significa adquirir uma estrutura básica da cognição humana, que consiste num controle da capacidade ativa de selecionar da abundância de dados, por um lado e, por outro, de diminuir a atenção passiva, protegendo-se contra uma ocupação não desejada. Como a vocação de Barros foi muito forte, este processo de purificar sua atenção aconteceu naturalmente. O ponto importante era que a distância e o abandono da sua vida lhe ensinaram instrumentos especiais para seu diálogo interno. Os elementos da natureza usam métodos diferentes, ensinam numa maneira leve e convincente: no amanhecer o sol põe glórias no meu olho. Pensando na pluralidade dos assuntos de aulas disponíveis à natureza virginal, lembrando a variedade do seu ritmo, do repertório da sua diversidade e da sabedoria dos seus inúmeros habitantes, o menino do mato logo aprendeu uma lição para toda a vida: não há de ser com a razão, mas com a inocência animal que se enfrenta um poema. A escola da natureza em que ele se formou, sem dúvida com a nota suma com laude, lhe deu uma base invejável para sua poesia; diz ele: o rio encosta as margens na minha voz. Uma das poucas regras, selecionadas deste conglomerado de códigos secretos do cosmo natural é, que a câmera lenta sabe reduzir a velocidade da atenção de uma maneira comovente, produzindo uma lentidão desconhecida em nossos tempos apressados, que levanta o nível da conscientização e da concentração da poesia: a natureza avançava nas minhas palavras tipo assim: o dia está frondoso de borboletas. A lentidão, que é um efeito desejado na intensificação da tentação, é tanto ligada à solidão como à apreciação da selva: quando as sombras avançam na estrada é preciso aldear. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 34 VI.2. Percepção sonora ornitorrincosa e fitosociológica Falando de ecologia, pensamos na ciência que analisa as interações entre seres vivos (seres humanos, animais, plantas) e seus ambientes. Talvez pensemos também na UNESCO que popularizou a preocupação ecológica, postulando a necessidade de proteger um meio ambiente intato, um convívio persistente com a natureza e um estilo de vida que respeita a vulnerabilidade dos sistemas bioecológicos. Declarando 2010 internacionalmente Ano da Biodiversidade e 2012 como Ano das Florestas, a UNESCO contribuiu para a conscientização da responsabilidade ecológica. Apesar do fato, que a profissão do ecólogo ainda não é legalmente previsto no Brasil, ha quatro faculdades que oferecem o bacharel nesta área com aulas de biologia, química, geologia e matemática, alem das disciplinas de poluição, impactos ambientais, legislação ecológica e manejo de áreas silvestres. A convicção, que a preservação do meio ambiente aprende-se pelos estudos científicos e pela participação de encontros como Greenmeetings é plenamente aceita. Mas a hipótese de abraçar a natureza com a própria sensação de ardor e dar as boas-vindas à ecologia vivida pelo recado da poesia é ocultada por uma cortina de surdimutismo. Fora dos dados não se sabe muito da natureza e quase nada da sua essência que não se reproduz no display. A mera imagem, mesmo sendo impressionante, não transmite vivência nem transfiguração. Tirando a cortina, todavia, ouvindo a mensagem da poesia de Barros, que diz: na beira do entardecer o canto das cigarras enferruga, advinha–se uma potência ecológica enorme contida em seus poemas. De fato, eles criam novo acesso carinhoso à natureza, que é muito pessoal para cada um sendo mais rico para quem compartilha com a atitude de Barros, que não é alheio a nada, podendo-se até comparar a uma mina de ouro que aguarda seus garimpeiros. A poesia verde de Barros permite uma aproximação erótica ao mundo ecológico, soltando novas energias emocionais num terreno, que e muito circunscrito, se definido meramente como um conjunto de ciências. Sabendo que o Brasil é aclamado o país mais verde do planeta com sua floresta Amazônica, sua Mata Atlântica, seu Cerrado, sua planície vasta de inundação do Pantanal, sua diversidade incalculável de espécies de animais e de vegetais, parece lógico que a poesia verde sai desta exuberância. O que surpreende, todavia, é que é um poeta, chegando na GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 35 pontinha dos pés, e que quase murmura no seu Livro sobre Nada: as coisas que não têm dimensões são muito importantes; é no ínfimo que vejo a exuberância. Não há provas, mas pode se desconfiar que a poesia levou Barros a adquirir sabedoria fitosociológica. Ele mesmo diz: preciso de obter sabedoria vegetal: e quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral. Provavelmente ele desenvolveu secretamente uma percepção sonora extrema, podendo interpretar as notícias que a fauna e a flora trocam entre si: quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando. Além disso, a poesia revela que Barros deve ser fluente na língua das árvores: eu queria aprender o idioma das árvores; sabedoria pode ser que seja estar uma árvore, e que ele sabe a língua das abelhas: sou capaz de entender as abelhas do que alemão. Também não se pode excluir que ele saiba escrever a língua das aves: eu queria usar palavras de ave para escrever. Resumindo estes dados ecologicamente relevantes, presume-se a eventualidade que a Ars Poética de Manoel de Barros talvez tenha alma verde, rumor que circula mais entre seus adeptos adolescentes. VI.3. Olhadela descaroçadora com fantasias fanerozóicas A descaroçadora é uma maquina, que tira o caroço da fruta, deixa a fruta sem o miolo, sem seu coração. Para fazer sobremesa ou doce de fruta, a cereja descaroçada é melhor. Mas quando a olhadela descaroça alguma coisa, a finalidade é outra. O olhar trespassa tudo com sua visão nítida até à essência, querendo localizar o centro como se fosse com radio x. A intenção não é tirar o núcleo, mas de saber mais, entender melhor, fazer visível, mesmo quando o caroço ficar intocável. Às vezes o caminho é demorado e trabalhoso, mas é uma aventura e indispensável querendo estabelecer uma nova orientação. É sempre ariscado, exige coragem, determinação. E consome não só toda energia que um individuo tenha disponível, mas também exige um engajamento incondicional. É uma estrada de solidão, que o viajante tem que pegar sozinho, o destino é determinar seu peso próprio, na palavra de Barros: o menino isolado criou sozinho seu alimento espiritual. Barros incorpora as etapas do seu caminho na sua poesia, que pode ser vista como documento da sua experiência personalíssima. Toda sua GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 36 poesia fala exclusivamente dele, mas seria um erro achar que se trata de um artista autofílico que exibe suas preferências egocêntricas. Ao contrário, cada passo que ele da é uma necessidade para o processo descaroçador da sua obra e para a formação da pessoa singular do poeta. Os poemas acentuam isto, falando quase sempre na primeira pessoa, citando outras pessoas, que, na realidade todas fazem parte da sua personalidade, como no Livro do Bernardo: já me dei ao desfrute de ser ao mesmo tempo pedra e sapo. Antes de entregar-se totalmente a este empreendimento, Barros atesta que livrou seu olho poético de preconceitos, cortando e atravessando qualquer coisa, que pretenda ser obstáculo, entregando se incondicionalmente ao jogo de bicho da natureza: para ser escravo da natureza o homem precisa ser independente. Quando for necessário, o próprio olho poético até descalcifica a água para enxergar melhor e tirar a máscara: sou beato de águas de pedras e de aves. Mesmo imaginada e inventada, a sua poesia é pura e libertada do falso: sou livre para o silêncio das formas e das cores. Para Barros o ato de livrar-se de conceitos alheios é básico, porque criar começa para ele no desconhecer, sendo o forte dele desexplicar as coisas, o que seria uma ajuda indireta até para o leitor. Enquanto os cientistas fazem análises técnicas, teóricas e valiosas, como observadores imparciais, eles evitam qualquer envolvimento pessoal. Eles trabalham em águas mornas. Nota-se o impacto da vista aguda daquele que não sentiu medo de se expor à procura dos próprios parâmetros. Quem se acostuma viver sua vida conforme os critérios estabelecidos por terceiros nunca vai ter acesso à percepção do mundo, enganando-se ao pensar que conhece o mundo, mas nem sabe ficar admirado da vida, não conhece nem si mesmo nem à natureza, como diz Bernardo no livro dele: quase vestida de sol vi a chuva em cima do morro. Ele é um rapaz que nunca vai esquecer sua espontaneidade, sua originalidade, sua primordialidade e sua primitividade, suas qualidades do ser humano, descobrindo, elaborando e sempre repetindo o que ele está sentindo. Solto e despreocupado, ele se joga nas suas fantasias fanerozóicas dos últimos 544 milhões de anos, levado pela saudade de Deus, as suas origens, pela nostalgia da selva. Barros diz: o que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de meus envolvimentos com a vida. Ele é filho e neto de bugres andarejos, de portugueses melancólicos, tendo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 37 vivido algum tempo com os índios chiquitanos, consequentemente de um lirismo rico e impenetrável. dispondo VI.4. Poesia numa linguagem minuciosa em altiloquência corpórea O mesmo cuidado que Barros aprendeu nas suas conversas com os passarinhos, ele aplica na criação da sua própria linguagem, nunca descuidando, todavia, do seu senso lúdico: eu sou apenas jogo de palavras. Felizmente, a língua brasileira oferece espaço suficiente, sendo outras línguas, como por exemplo a alemã, filologicamente bem autoritárias em se tratando de jogos de palavras ou, mais ainda, na ortografia poeticamente transformada. Barros pega as palavras a fim de arrumá-las em seus poemas para adquirirem nova virgindade, salvando-as desta maneira da morte por clichê. Evitar que o idioma adoeça de esclerose é, na opinião dele, uma das tarefas do poeta. Por outro lado, a palavra poética precisa-se desligar de informações porque causam perturbações da fantasia. As funções mágicas e manipuladoras da língua são bem vindas. Engrandecer as coisas menores, diminuir importâncias ou dar grandeza às pobres coisas são instrumentos importantes da sua poesia para ele mesmo e para todos os seres que precisam da poesia para se completar do mesmo jeito como se faz com a música ou a pintura com suas formas e cores. Pelo fato que Barros escreve sua poesia pelo corpo, ele se sente muito perto dela, sequer tendo distância suficiente para julgá-la. Se for avaliada, sua poesia não vai ser submetida à razão, porque ela tem suas fontes nos sentido. Ela não é para compreender. Ele anota que sua poesia é para incorporar, ela se absorve através de percepção da sensibilidade. Sem dúvida, é na aprendizagem que ele absorveu na escola das águas, das pedras e dos sapos que achou o caminho da intuição: melhor ser as coisas do que entendê-las. A linguagem faz o papel preferido na sua vida e com ela faz sua poesia intuitiva, desfazendo os costumes das palavras e das cabeças humanas: eu estou no mundo como um ser de linguagem. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 38 VI.5 . Zombaria de potência perfeccionista, identidade pulha no terreno poético dos Direitos Humanos O amor pelo desprivilegiado e pobre transparece na poesia de Barros. Seu conceito de pobreza, todavia, não tem nada a ver com submissão, resignação ou abdicação. Ao contrário, sua poesia de compaixão lembra São Francisco de Assis, que definiu sua pobreza amada como força inesperada de alegria de viver, que liberta o ser humano daquelas coisas que ele não possui, mas que tomarem posse dele. Para aproximar-se deste conceito, Barros prefere usar em sua linguagem palavras pobres e desprezadas em vez de palavras luxuriosas, querendo revelar sua atitude através do seu idiotismo. Sua poesia dá abrigo aos vagabundos, aos jogados fora da sociedade, aos excluídos e àqueles que moram nos fundos de uma cozinha; diz ele: conviver com inexistência é raiz da poesia. O perfeccionista não-satisfeito, querendo sempre mais, não tem voz na sua poesia, mas as coisas que não prestam mais pra nada e estão jogadas fora por inúteis são para mim objetos de estima. Muitos anos atrás houve a suspeita que a poesia de Barros seria um golpe anti-materialista, por causa de certa falta de apreciação de bens e riquezas desejadas, sendo injustificadamente diminuindo seu valor ou até negado sua importância. Idealizando uma vida no abandono era considerado tão grave, que poderia ser caracterizado como uma infração penal dolosa, ou pelo menos culposa, da ordem econômica, relativamente ao descumprimento de obrigações dos direitos reais de propriedade do Código Civil Brasileiro. Verificou-se, todavia, neste caso concreto, uma imputabilidade relativa da poesia, levando em consideração a capacidade da acusada, as circunstâncias atenuantes ou agravantes, as peculiaridades do caso e as provas existentes, que finalmente levou à sentença absolutória. Foi provado, que o autor da poesia, formado pela Faculdade Fauniana Piratininga de Campo Grande, nunca usando o traço acustomado, sempre tinha tido um instinto pacífico de criar, às vezes com o intuito sensual de causar uma excitação nas palavras, mas sem sonhar na derrubada da gestão de materiais. Estudando com os pássaros ele falou que entre eles a propriedade de imóvel é muito mal vista e a acumulação de vários ninhos ou outros bens nunca poderiam servir como prova de riqueza, mas somente de deficiência ou senilidade. Confirmando que: os heróis de nosso tempo não são ilustríssimos nem os príncipes nem os poderosos, ele testemunhou sob palavra de honra: eu queria crescer pra pássaro e ganhou a causa. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 39 Confiando no direito natural, que protege todos os seres humanos, considerando sua dignidade intocável, garantindo sua pluralidade, os poemas de Barros estão dando ressonância artística diversificada: escrevo meu avesso in.verso; por isso não sou de entendimento linear. Sou um ser difícil, contraditório, inseguro. Sou um antro de incertezas. Com efeito, estamos sendo vítimas de um sequestro querido ao reino de poesia e dos Direitos Humanos graças à poesia de Manoel de Barros. Notas: I. A contribuição do intelectual na formação da união cultural europeia (1) Gero von Randow, escritor e jornalista, „Pariser Intellektuelle: Sartres Erben“ ZEIT Magazin, 29.09.2011 ”Philosophen, was ist aus euch geworden? ZEIT, Kultur, 6.2.2009 Hans Christoph Buch, escritor e jornalista, „Deutsche und französische Intellektuelle erinnern an die “politische Utopie Europas”, Manifest gegen das Klein-Klein der Europapolitik, Gespräch, DLF, 30.11.2011 Thomas Assheuer, escritor, „Kalte Liebe“ Eines Tages wird man fragen: wo waren eigentlich die Intellektuellen, als Europa zu Bruch ging“ ZEIT, Kultur, 10.11. 2011 Stephan Möbius, professor, sociologo, Universidade Graz, Debatte, “Wo sind die Intellektuellen hin?” ZEIT, Literatur, 19.05.2011. (2) Marianne Kneuer, professora, ciencias políticas, Universidade de Hildesheim, “Intellektuelle und Europa” Geist und Macht, Publikation, Sonderausgabe, KAS, Die Politische Meinung, Jan 2002 II. Uma crise complexa na Europa (3) Alfred Grosser, escritor e professor, Paris, cientistas políticas, Universidade de Frankfurt, “Niemand Will raus aus Europa, aber alle schimpfen”, Interview, euronews.net, 2011 (4) Martin Spiewak, escritor e jornalista, ”Psychische Belastung: Prof. Dr. Depressiv“; Hartmut Rosa, professor, sociólogo, Universidade de Jena, “Burnout bei Professoren: jeden Tag schuldig ins Bett“, ZEIT, 4.11.2011; Markus Pawelzik, médico e filósofo, chefe de clinica, EOS, Münster, „Psychologie: Gefühlte Epidemie”, ZEIT, Gesundheit, 4.12.2011; Harro GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 40 Albrecht, medico, jornalista “Erschöpfungsdepression: Burn-ou die deutsche Spezialität”, ZEIT, Gesundheit, 5.12.2011 (5) Lars von Trier, Kopenhagen, diretor de cinema, considerado o mais importante da Europa. Seu filme “Melancholia” ganhou prêmios em três categorias III. Espelho da crise nos trabalhos do intelectual mais rebelde e insurreto (6) Aernout Mik, Amsterdam, artista de vídeos mais fascinante do presente, Retro Exposição Communitas, Essen de 29 de Outubro 2011até 29 de Janeiro 2012 (7) Kathrin Röggla, Salzburg, Berlin, escritora, livros: Wir schlafen nicht, 2004 (8) Ödon von Horvath (1901-1938) era na sua época extremamente crítico as estruturas sociais existentes. Aos 35 anos, escreveu o texto “Juventude sem Deus” tratando das deficiências da juventude em respeito à moralidade, à manipulabilidade e ao embrutecimento dizendo que “a mentira dança com a justiça, mas o juízo não participa da dança” (9) Beatrice Goetz, Basel, dançarina e coreógrafa, diretora de dança e teatro (10) Patrick Gusset, (30) suíço nato com raízes na Jamaica, ator e musico com banda própria; ele mesmo é a forca que sabe dar a força , a essência e o coração à performance da peça, já que ele viveu e venceu na vida particular conflitos de identidade, adaptação e integração; o projeto foi elaborado junto com jovens do projeto Vitamin T que cuida dos 30% da população suíça que tem origem estrangeiro de migração. (11) Frank Castorf, Berlin, diretor de teatro famoso da Berliner Volksbühne, que inventou seu próprio estile de fazer teatro,com contrato prolongado até 2016; ao mesmo tempo ele foi convidado de encenar Bayreuth em 2013. IV. Freedom Rebels, Jeunes de Balieus, Wutbürger e o Consultório Filosófico de Viena (12) Dirk Kurbjuweit, Berlin, escritor e jornalista, Ensaio “Der Wutbürger“ (nascimento de um tipo de ser humano que somente existe na Alemanha) Der Spiegel Oktober /2010; movimento que nos Estados Unidos é chamado Nimbywars (13) Gerhard Matzig, Munique, escritor, arquiteto e redator científico, Süddeutsche Zeitung, livro „Einfach nur dagegen“ Editiora Goldman, Oktober 2011 GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 41 (14) Eugen Maria Schulak e (15) Rahim Taghizadegan, Viena, dois filósofos chamam a luta contra o sitema, “Vom Systemtrottel zum Wutbürger”, Ecowin Verlag, Salzburg, Setembro 2011 V. Intelectuais consagrados na Europa tomam posição (16) Jean Luc Godard, diretor de cinema, Godard na France Culture, 15.09.2011, virando 80 anos, “Wie Schnee auf dem Wasser”, Frankfurter Rundschau, 3.12.2010 (17) Italo Svevo, (Hector Aron Schmitz), Trieste, escritor italiano, (1861-1928), La Consciência de Zeno, 1927 (18) Peter Gabriel, cantor inglês, 1967–1975 Genesis, fala sobre sua época do REMIX Die Zeit 6.10.2011, CD New Blood, trabalho com Amnesty International, co-fundador do Witness (19) Hans-Peter Dürr, físico e filósofo, diretor do Max-Planck, Munique até 1997; fundador do GCN- Global Challenges Network, Learning of descision making; “Das Lebendige lebendiger werden lassen”, Livro oekon Verlag, München, 2011; Ensaio de Dr. Michael Schneider , Archiv KGS Berlin, Nov. 2011 (20) Michela Marzano, (Maria Michela Marizano-Parisoli) escritora, professora e filósofa, Roma/Paris, Penser le corps, PUF 2002, Le contrat de défiance, Grasset, 2010, Volevo essere una farfalla, Mondadori, 2011 (21) Tomas Tranströmer, Stockholm, poeta de poucas palavras com uma linguagem comprimida, que publicou doze livrinhos de poesia com menos de 500 paginas no total, Prêmio Nobel Literatura, 2011, Fragmento de um poema chamado “do Mês de Marco, 79” publicado em 1983 VI. Bálsamo poético de Manoel de Barros (22) Manoel de Barros, advogado e poeta, Campo Grande, Livro: Coleção de Encontros, apresentação de Egberto Gismonti, Beco do Azouge Editorial Ltda., 2010; Livro: Poesia Completa, Editora Leya, 2010. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 42 O LUGAR DA LITERATURA Miguel Sanches Neto – UEPG 1 1. Dois leitores É notória a perda da centralidade do texto literário nos cursos de Letras. Não se trata de algo recente, e está na gênese desta modalidade de formação universitária. O texto literário tem ficado sujeito a um processo de utilitarização, sofrendo usos diferentes, mas sempre em uma posição secundária. Campo para estudos gramaticais, estilísticos, históricos, linguísticos, filosóficos, psicanalíticos etc., o texto literário padece de uma falta de autonomia dentro do que se convencionou chamar Ciências Humanas. Nega-se a ele um poder formador independente, devendo o seu estudo estar atrelado a outras questões, que lhe dariam o sentido profundo, sem o qual ele não passaria de uma peça de entretenimento. A leitura literária desarmada é, portanto, uma heresia nos meios universitários, pois geraria um amortecimento analítico, uma incapacidade de reflexões críticas, entendendo-se por reflexão crítica a filiação a alguma tendência interpretativa, das muitas que se sucedem na história do pensamento contemporâneo, do estruturalismo às questões pós-coloniais. A literatura é matéria-prima que dará origem a um produto sofisticado, a crítica, equivalente intelectual do progresso tecnológico. Não é difícil perceber que este conceito de estudo literário está enraizado numa visão científica, ou no mínimo racionalista, e tenta arrastar para este campo o texto literário, cujo domínio original se encontra no tumulto das emoções. O jogo razão versus emoção, no âmbito da crítica, tende a anular o segundo elemento. Temos, portanto, uma grande quantidade de pessoas que discorre sobre literatura nos cursos de Letras, mas poucos dispostos a reconhecer a função formadora da leitura literária em si. Aliás, ler um livro apenas como literatura, como um texto capaz de nos colocar em situações de deslocamentos de identidade, sem buscar outras coisas nele, é cada vez mais raro tanto fora quanto dentro da universidade. Num livro primoroso, de 1961, o escritor e crítico C. S. Lewis, faz uma distinção de dois tipos de leitores: os literariamente letrados e os literariamente iletrados. 1 Ficcionista, poeta, cronista, memorialista, professor, crítico literário. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 43 A principal marca dos integrantes do último grupo seria o interesse pelas notícias, pelos episódios, e isso da maneira mais rápida possível. Ele é aficcionado pelo que Lewis grafa com maiúscula: o Acontecimento. Uma literatura de informação, poderíamos dizer, que fale, por exemplo, de uma determinada síndrome, de um fato histórico, de hábitos de uma sociedade desconhecida etc. É o uso mais imediato de um texto, que não existe como potência artística, mas como instrumento de comunicação ou mero passatempo. Ele deve ser ágil, excitante, gerar curiosidades que serão satisfeitas, produzindo prazer ou felicidade. Enfim, a lógica do best-seller. No campo oposto, estariam os literariamente letrados, que se dedicam aos textos mais complexos, com um senso de construção/desconstrução elaborado, um leitor para quem os recursos de linguagem e as potencialidades teórico-filosóficas contam, e que encontra significados profundos no texto. Ele se debruça sobre o livro para confirmar leituras críticas, aplicando conceitos teóricos. Para Lewis, ainda aqui teríamos uma má leitura dos textos literários, embora estas sejam qualificadas. E a palavra que melhor definiria este posicionamento talvez fosse “Significado” – os significados em si e os da forma. Nos cursos de Letras, as estratégias didáticas de leitura estão voltadas para formar este leitor literariamente letrado, o que faz com que a palavra crítica assuma um sentido maior do que a palavra literatura. 2. Alunos sem literatura Qualquer professor atento percebe que os calouros de Letras, na sua grande maioria, chegam ao curso ainda sem intimidade com a leitura de textos literários. Na melhor das hipóteses, eles leram alguns livros obrigatórios, dominam algumas informações periféricas, lembram-se de um ou outro episódio de obras clássicas. Sinal de que o ensino médio não consegue formar, de maneira extensiva, leitores de literatura, nem mesmo nas boas escolas. Na introdução à edição brasileira deste livro essencial de Tzvetan Todorov, A literatura em perigo, Caio Meira faz um breve diagnóstico da situação nacional: O contato maior que qualquer aluno do ensino médio tem com o texto literário de fato se dá nas abonações e exemplos que auxiliam na compreensão das regras e formações da língua portuguesa, seja nas próprias aulas de literatura, que se resumem principalmente ao ensino da história e dos gêneros literários. (p.9) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 44 Esta relação indireta com o literário que se tem no ensino médio é reflexo do lugar que a literatura ocupa nos cursos de Letras. Não se prioriza o literário, mas as questões de linguagem que podem ser extraídas do texto criativo. É uma exploração extrativista da literatura, devastada por inúmeros interesses, sociais e teóricos, o que constrói – quando constrói – uma percepção errônea do valor da literatura. Tratando da realidade francesa, no ano de 2006, afirma Todorov: A obra literária é representada como um objeto de linguagem fechado, auto-suficiente, absoluto [...]. Sem qualquer surpresa, os alunos do ensino médio aprendem o dogma segundo o qual a literatura não tem relação com o restante do mundo, estudando apenas as relações dos elementos da obra entre si. (p.39) Podemos dilatar o diagnóstico de Todorov, focado na herança estruturalista, lembrando que questões político-ideológicas foram acrescentadas a este cardápio, enquanto a lógica periférica do literário continua a mesma. Assim, até um aluno secundarista bem formado neste modelo de ensino chegará ao curso universitário sem literatura, porque aprendeu a tomá-la como pretexto de estudos de linguagem ou de sociedade. Se ele se encaminhar para outras áreas, poderá nunca mais ler literatura ou, estimulado por modismos ou pela indústria do entretenimento (um filme baseado em um romance, por exemplo), fazer leituras ocasionais de textos em evidência midiática. Se ele se encaminhar para o curso de Letras, geralmente com a expectativa de se formar professor de língua (vernácula ou estrangeira), continuará aprimorando a sua má leitura dos textos literários. Ou seja, mesmo lendo os autores consagrados, ele ainda continuará afastado da literatura, porque não vai ler os livros na condição de peça literária, com as suas especificidades formadoras, mas para atender a uma mecânica crítica que precisa desse material para se sustentar. É este futuro profissional que ensinará literatura no Ensino Médio. 3. Professores sem literatura Boa parte dos alunos universitários que se dedicam de fato ao estudo da literatura acaba se encaminhando para as pós-graduações da área. Assim, a passagem da graduação, com os trabalhos de iniciação científica, para o mestrado e/ou doutorado referenda um modelo crítico. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 45 O que permite afirmações como a que testemunhei durante meu mestrado em literatura. Disse um de meus colegas: – Do que menos gosto no curso é de ler literatura. A especialização, crescente no processo hierarquizador da carreira universitária, leva a um fechamento maior. Um fechamento teórico, com a consequente miniaturização das leituras literárias. Toda a vastidão da biblioteca de obras criativas fica circunscrita a uma pequena família, a que respalda o encaminhamento crítico tomado pelo estudioso, ou a um autor ou mesmo a uma única obra. Isso decorre da visão laboratorial de pesquisa, que reduz o todo a uma pequena parcela. Tratase do famoso processo representado por procedimento próprio da pesquisa: o recorte. Concentrando os seus interesses em um determinado eixo, e dentro de uma dada linhagem literária, o futuro professor universitário acaba se desvinculando de tudo que não esteja contemplado, direta ou indiretamente, nos seus objetos de estudo. Assim, há uma fragmentação do conhecimento que garante o estudo aprofundado de um autor, de uma temática, mas que coloca a perder um dos principais papéis do ensino da literatura, que é apresentar aos alunos a variedade do fenômeno literário, para que ele possa construir a sua biblioteca pessoal. Tal pressão age de cima para baixo. Oriundos de pós-graduações, onde a alta especialização tem realmente o seu ambiente, os professores reproduzem este modelo na graduação, formatando – ou adestrando, para usar um termo mais forte – futuros professores do ensino fundamental e médio com uma visão redutora. O regime de leitura da graduação não dará conta assim das exigências de formar leitores literários no Ensino Médio. Todorov aponta para este descompasso criado pela especialização: No ensino superior é legítimo ensinar (também) as abordagens, os conceitos postos em prática e as técnicas. O ensino médio, que não se dirige aos especialistas em literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo alvo; o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários; é preciso então ensinar aquela e não estes últimos. (p.41) Ele acredita que a universidade transfere ao professor que ela forma uma das tarefas intelectuais mais difíceis: a de apresentar livros literários aos alunos com os quais ele próprio não conviveu, pois fez mais estudos críticos do que leituras literárias. Todorov fala em transformar os GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 46 conhecimentos teóricos em uma “ferramenta invisível” (p.41), para que se possa operar o passe de mágica de trabalhar diretamente com o texto literário no Ensino Médio. No caso a que ele se refere, os alunos franceses chegariam ao curso de Letras movidos pelo amor pela literatura, pelos sentidos e pelas belezas das obras que os fascinaram (p.31), e encontrariam no Ensino Superior uma priorização das teorias que redirecionariam este ímpeto. No caso brasileiro, os alunos chegam sem este impulso e muitas vezes sem sequer o contato direto com o literário. Chegam sem literatura, saem sem literatura. E terão que ensinar literatura. Sobra-lhes, na maior parte das vezes, ensinar períodos e estilos literários. E continuar assim não formando leitores de literatura. É como se as licenciaturas em Letras se vissem, neste segmento, como bacharelados, formando mais pesquisadores. 4. Leitor eclético O contrário do especialista é o leitor eclético. O argentino Alberto Manguel confessa corajosamente na abertura de Os livros e os dias: “não sou senão um leitor eclético” (p.10), fazendo com isso mais uma declaração de princípios do que denunciando uma fraqueza. A capacidade de se encantar com os mais variados tipos de texto, a recusa de uma religião literária excludente, a curiosidade permanente de ir em busca de tudo que se escreveu (pois o leitor eclético padece da loucura de tentar ler a biblioteca universal), o interesse erótico pelos livros e uma renúncia à alta seletividade apontam para uma saudável abertura para o outro, e é esta abertura que faz o grande leitor, base para a ação pedagógica do professor de literatura. Em um livro que é o elogio da figura do educador que vai além do domínio de uma disciplina, Lições dos mestres, George Steiner também contrapõe o perfil do professor ao perfil do especialista, alertando para a sua excentricidade no meio escolar e para a sua vulnerabilidade: “Nossa cultura embarcou em um processo de especialização do qual jamais sairá. Quem ficar fora desse processo, o eclético, fica absolutamente vulnerável” (p.214). Mas não há outra forma de lidar com a literatura como instância de formação humana senão para além do cercado das especializações. Steiner busca nos grandes mestres uma força para conter as correntes fragmentadoras, por ele identificadas como “cientificismo; feminismo, democracia de massa e sua mídia” (p.222), embora elas sejam em número muito maior. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 47 Anteriormente a estes dois autores, C. S. Lewis já havia culpado, de maneira provocadora, a leitura excessiva de textos críticos como uma das responsáveis pelos impasses do ensino de literatura. Suas avaliações são extremamente diretas, pois ele creditava a este regime de leitura especializada o insucesso da formação do leitor literário. Quem quer que analise as teses de estudantes com distinções acadêmicas em Inglês em uma universidade já terá observado, com certa aflição, sua tendência para ver os livros só por meio das lentes fornecidas por outros livros. (p.111). A especialidade cria uma reprise de abordagens das obras, impedindo aquilo que Lewis acredita ser o grande ato crítico: uma reação pessoal aos textos literários, na seguinte fórmula: “Leitor Encontra Texto”. Ao invés disso, o leitor revisa, reforçando ou refutando, as visões construídas sobre os textos literários. Perde-se o contato primário com o livro e a leitura passa a ser conduzida pela autoridade crítica de especialistas dedicados ou aplicáveis àquela obra literária, anulando a iniciativa analítica dos leitores ainda em formação. A recusa dessas especializações o leva a uma postura radical de profilaxia. Lewis propõe, num premeditado suicídio acadêmico, uma trégua teórica: “Sugiro que dez ou vinte anos de abstinência de leitura e de produção de crítica avaliadora poderiam fazer muito bem a todos nós” (p.112). Cinco décadas depois, a leitura e a produção crítica continuam fulgurantes no ambiente universitário, enquanto a literatura aparece como figurante. A mesma idéia move o crítico e escritor inglês A. Alvarez, para quem a crítica foi “sequestrada por preocupações extraliterárias” (p.22), perdendo a sua marca e o seu poder. Não se prega aqui a abstinência crítica, assim como também não a prega Todorov, mas um retorno a preocupações literárias sem perder a contribuição de outros setores do pensamento. Alvarez reivindica, no entanto, um restabelecimento do conceito tradicional de crítica analítica: “A verdadeira crítica, do tipo praticado por mestres como Coleridge e T. S. Eliot, nos chega sem muita bagagem teórica e tendo pouco a provar. Para descobrir o que é uma obra literária, o crítico deve abrir mão de sua própria sensibilidade e mergulhar na de outro escritor, sem teorias e sem preconceitos” (p.22). Note-se que há uma equivalência entre teoria e preconceito, uma vez que um viés teórico cria uma indisposição para todo um universo literário, escolhendo apenas uma fatia dele, que passa a ser a representação da Verdade. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 48 Como os cursos de Letras se organizaram para transmitir os conceitos teóricos, sempre a partir da adesão a um deles, ensinando mais os seus fundamentos, mata-se a disposição para entrar na produção do outro sem ideias prévias, que seria o elemento definidor do crítico dentro desta tradição que ficou superada. O aluno lê os livros literários que as suas orientações teóricas pressupõem. No capítulo “O culto da personalidade e o mito do artista”, em que Alvarez trata dos sucessos midiáticos dos escritores, que hoje dependem de procedimentos de exposição pública próprios do showbiz, num enaltecimento mais da biografia do que da obra, ele identifica como um dos fatores responsáveis por este empobrecimento cultural a ausência de uma pedagogia da leitura nos moldes a que se referia acima: “o público em geral parece mais interessado na personalidade dos autores vivos e nas biografias dos mortos porque, entre outras razões, não se ensina mais a ler” (p.145). Não está culpando aqui apenas a escola, mas principalmente o ensino superior. Não se ensina a ler nos bancos universitários. Embora facilmente presumível, valeria a pena promover pesquisas para traçar um perfil dos livros guardados nas bibliotecas dos professores de literatura. Pelas referências bibliográficas de ensaios, dissertações, teses e programas de curso, podemos ter uma amostra da biblioteca desses profissionais, onde há não apenas uma reprise de títulos, dentro de cada uma das correntes teóricas, como uma presença mínima de obras literárias. Ler literatura, numa acepção de abertura ao outro, será sempre ler prioritariamente os livros literários, nas relações, de contiguidade e de contraponto, que eles estabelecem entre si. É literatura comparada na sua concepção mais pura. Também tem um sentido programático a observação de Alberto Manguel em A biblioteca à noite, uma espécie de exploração mágica desse espaço cujo sentido vem de um histórico, da formação de seu acervo, do lugar que ele ocupa na casa, no quintal ou no local de trabalho. Em última instância, a formação literária na universidade devia permitir que o futuro professor constituísse um catálogo pessoal de obras, dando assim início a uma biblioteca que fosse a sua própria identidade, uma tradução de seu encontro com o outro, de construção de seu eu a partir dessa relação de escuta das vozes literárias mais diversas. Diz Manguel: Um observador arguto poderia dizer quem eu sou a partir de uma cópia em frangalhos dos poemas de Blas de Otero, do número de volumes do Robert Louis Stevenson, da vasta extensão dedicada a histórias detetivescas, da seção minúscula GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 49 dedicada à teoria literária, do fato de haver muito Platão e pouco Aristóteles em minhas estantes. Toda biblioteca é autobiográfica. (p.162). Entenda-se a palavra autobiográfica no sentido identitário. Construímos um eu a partir das leituras que fazemos, principalmente a partir das leituras literárias. Michel Foucault trata disso no ensaio “A escrita de si”, em que ele valoriza no mundo clássico os cadernos de nota, onde se transcreviam trechos de outros textos ou depoimentos. Tal procedimento funcionaria “como um veículo importante [da] subjetivação do discurso” (p.137). A biblioteca teria esta mesma função subjetivadora. 5. Duas posturas Voltemos à questão da utilitarização da leitura. C.S. Lewis demonstra que tanto os muitos (leitores literariamente iletrados) quanto os poucos (os literariamente letrados) se colocam diante de uma obra com a intenção de tirar algo dela – respectivamente, informações ou questões teóricas. Neste processo, o leitor/fruidor (ele trata também das artes plásticas) domina o movimento de abordagem da obra. Ele quer fazer algo com ela. Lewis diz que esse tipo de postura é de quem usa a obra de arte. Para ele, reside aí todo o equívoco do relacionamento entre leitor e livro literário. O leitor universitário, principalmente aquele que ainda não teve uma imersão prolongada na biblioteca de obras criativas, tende a chegar com segundas intenções, poderíamos dizer, aos livros. Essas intenções, por mais nobres que sejam, viciam a leitura, produzindo ou uma negação do livro ou a valorização de um aspecto pré-definido. A obra vale na medida em que ela serve para algo, em que ela esteja adequada a um pressuposto, na medida em que ela não desestabilize o leitor, confirmando pequenas certezas que colheu aqui e ali, em suas leituras críticas. Assim, os dois grupos, aparentemente tão distantes, se aproximam pelo fato de ambos usarem a arte. A afirmação de Lewis é categórica: só há crítica quando estamos dispostos a receber aquilo que os livros contêm. Para receber isso, faz-se necessária uma mudança do trânsito – é a arte, com aquilo que a potencializa, que vem a nós e nos modifica, desequilibrando-nos: “Sentamo-nos em frente ao quadro no intuito de que ele nos faça algo, e não para que façamos algo com ele” (p.23). Deve haver uma entrega; o fruidor aceita receber. Este controle – a força de conceitos prévios que nos conduzem a certos livros – é o maior atrapalho para a subjetivação pela leitura literária. E é esta a leitura GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 50 padronizadora que prepondera na fase universitária de ensino. Nesta fase, quando atendemos ao conteúdo de uma disciplina, seja ela de historiografia literária ou de teoria, nós nos posicionamos acima da obra, numa imunidade aos seus venenos. Somos pesquisadores e não leitores; fazemos um trabalho e não uma leitura; queremos uma confirmação e não um questionamento; estabelecemos uma relação funcional com o livro e não nos entregamos a ele, o que leva a um amortecimento das pulsações do literário. Não nos descontrolamos diante do contato com aquele universo, vendo com frieza ou com distanciamento aquele objeto que só pode ser plenamente experimentado enquanto tumulto. “Estamos tão ocupados atuando sobre a obra que damos a ela pouca chance de atuar sobre nós. É assim que cada vez mais encontramos apenas a nós mesmos” (p.75), diz Lewis, que entende a leitura literária como um momento de frequentar as opiniões, atitudes e sentimentos de outros homens. Assim, não somos nós que vamos constituindo uma biblioteca, mas uma biblioteca que vai nos constituindo, na dinâmica de uma literatura com um papel de construção ou de reconstrução do eu, um papel de extrema importância no Ensino Fundamental e Médio, mas também no Superior, principalmente pelo fato de que isso, pelo menos no Brasil, dificilmente consegue ser possibilitado nos estágios anteriores. Uma biblioteca tomada majoritariamente por livros teóricos tem um valor que é mais informativo. Quando os livros literários são dominantes, o seu valor é humanizador. Fazemos sim uso dos livros, e isso é inevitável, mas é preciso que saibamos também receber deles, e esta postura é central numa concepção humanística da literatura. 6. Literatura e Direitos Humanos A literatura funciona assim como uma passagem para o outro, para o outro que me permite ser múltiplo, e, portanto, mais humano. O último parágrafo de Um experimento na crítica literária resume de maneira magistral a mecânica do outro como formador do eu, de um eu tolerante: A experiência literária cura a ferida da individualidade sem arruinar o seu privilégio [...]. Lendo literatura, torno-me mil homens e ainda permaneço eu mesmo [...]. Transcendo a mim mesmo. E nunca sou mais eu mesmo do que ao fazê-lo. (p.121). Ela forma o eu como superação da individualidade. Tarefa pedagógica por excelência, porque transformadora, numa ampliação de olhares sobre o mundo, interior e exterior. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 51 Em um de seus textos sobre a educação (“Os sete saberes necessários para a educação do futuro”), o sociólogo Edgar Morin lista as estratégias necessárias para modificar o quadro de nosso ensino. Na de número três, ele trata da identidade humana, estranhando que a identidade não conte para os programas de instrução. Depois de mostrar a indissociabilidade do indivíduo, a sociedade e a espécie, e de que forma um age sobre o outro, ele localiza o ensino de literatura no centro desse processo de educação plena do ser humano. Seu texto insuspeito, vindo de uma pessoa que não é da área das Letras, faz uma defesa do poder da literatura, vista como conhecimento autônoma, independente de outros ramos da ciência, e com uma natureza transdisciplinar, necessária para fortalecimento de qualquer identidade. Diz Morin: Chegamos, então, ao ensino da literatura e da poesia, elas não devem ser consideradas como secundárias e não-essenciais. A literatura é para os adolescentes uma escola de vida e meio para se adquirir conhecimentos. As ciências sociais veem categorias e não indivíduos sujeitos a emoções, paixões e desejos. A literatura, ao contrário, como nos grandes romances de Tolstoi, aborda o meio social, o familiar, o histórico e o concreto das relações humanas com uma força extraordinária. Podemos dizer que as telenovelas também nos falam sobre problemas fundamentais do homem; o amor, a morte, a doença, o ci me, a ambição, o dinheiro [...], elementos [...] necessários para entender que a vida não é aprendida somente nas ciências formais e a literatura tem a vantagem de refletir a complexidade do ser humano e a quantidade incrível de seus sonhos. Matéria de realidade e matéria da imaginação, a literatura é o conhecimento vertido em um verbo apaixonado, propiciando uma experiência que passa tanto pelas emoções quanto pela razão, por isso mais completo do que o da ciência. Não se pensa apenas a literatura; ela é vivida, fortalecendo o que Michèle Petit chama de “intersubjetividades” (p.58). Esta pesquisadora francesa trabalha com a leitura fora do espaço da escola, com comunidades em situações de alto risco, que passam pelas mais dolorosas adversidades. Nesses locais, a leitura de textos literários adquire centralidade total, porque é por meio dela que os indivíduos podem se compreender e compreender as circunstâncias que os destroem. Quando o peso da realidade é imenso, como no caso dessa população sem voz e sem outros direitos, o mundo imaginário aberto pela leitura ganha um potencial inusitado. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 52 As leituras abrem para um novo horizonte e tempos de devaneio que permitem a construção de uma posição de sujeito. Mas o que a leitura também torna possível é uma narrativa: ler permite iniciar uma atividade de narração e que se estabeleçam vínculos entre os fragmentos de uma história. (p.32) A literatura solda vidas despedaçadas social, psicológica e territorialmente. Este seu valor é uma garantia de sobrevivência, mesmo que temporária, desses grupos: “A literatura é aqui uma reserva da qual se lança mão para criar ou preservar intervalos onde respirar, dar sentido à vida, sonhá-la, pensá-la” (p.285). Mais do que um campo de pesquisa acadêmica ou do que uma disciplina escolar, os textos literários funcionam como estratégia de salvação. Michèle Petit parte de um dos conceitos mais revolucionários de Antonio Candido, proposto em 1988, quando ele estendeu “o direito à literatura” – título do ensaio – a todos, e não apenas a estudiosos, eruditos, ou aos que frequentam escolas. A literatura agiria para garantir algum equilíbrio social: “ela é fator indispensável de humanização, e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente” (p.175). Este seu poder é de natureza perturbadora, pois não há controle sobre as forças movidas pela literatura, que podem ir contra diretrizes as mais diversas que alimentam o sistema de ensino. Por exemplo, é mais fácil ensinar algo sobre Gregório de Matos do que levar os alunos a ler os poemas desbocados do poeta. Essa natureza perigosa da literatura muitas vezes a torna proscrita mesmo entre aqueles que defendem a leitura. Claro que para o crítico paulista o que está em questão não é apenas o poder de tratar de determinados assuntos fundamentais para a formação do indivíduo, mas a competência estética, a força ordenadora que existe em todo texto literário bem realizado: “A eficácia humana é função da eficácia estética, e portanto o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas pertinentes” (p.182). Chamando-a de “alimento humanizador”, Candido vê no acesso à grande literatura uma forma de negar a estratificação social, as divisões de classe e de origem. As classes se solidarizariam pelo direito de usufruir de todos os tipos de textos, sem as distinções de cultura erudita e popular. Ele fala em uma corrente de dois sentidos, numa explícita valorização do leitor eclético. Termina seu ensaio dizendo que a literatura é um direito inalienável. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 53 7. Formar bibliotecas Não é possível dissociar a literatura de outras formas de conhecimento, tamanha tem sido a fusão entre elas. Até que ponto certos textos filosóficos ou sociológicos não são eles próprios literatura? Assim como as relações entre cultura popular e cultura erudita se contaminam reciprocamente, o texto criativo e o texto crítico também exercem pressão um sobre o outro. Não partilho, portanto, da proposta radical de Lewis de uma abstinência crítica, ficando mais com Todorov, para quem as leituras críticas, no exercício do magistério, devam funcionar como estruturas invisíveis, como meios que permitam uma melhor e maior compreensão do literário. Mas não posso deixar de me posicionar, diante do caminho percorrido por este texto, em prol de uma maior atenção à produção literária tanto na escola quanto nos vários níveis da formação universitária. Dedicar-se às obras criativas no sentido proposto por Lewis, de saber recebê-la naquilo que ela nos nega, e não apenas usá-la para que nos confirme. Esta visão funcionalista tem transformado boa parte das aulas de literatura num local em que apenas se discutem questões extraliterárias. Talvez a grande tarefa pedagógica dos cursos de letras seja ajudar o aluno a construir aquilo que Italo Calvino (em Por que ler os clássicos) chama de biblioteca ideal, que atenda às suas necessidades de subjetivação. Diante da fragmentação da biblioteca clássica, resta-nos construir uma que nos represente. Boa parte de nossos alunos vem de uma história escolar sem a posse de livros, posse afetiva e material, e é, sim, nossa função ajudá-lo a construir uma biblioteca que tenha as suas medidas. Fazê-los leitores puros, tal como propõe Ricardo Piglia, em O último leitor: “para eles a leitura não é apenas uma prática, mas uma forma de vida” (p. 21). Só assim, esses futuros professores poderão modificar as práticas de leitura na escola, modificando a própria escola, que teria como centro não as aulas, mas a biblioteca. Finalizando o ensaio A literatura em perigo, Todorov lembra que o objeto da literatura é a própria condição humana e que o impulso do leitor, dentro e fora da escola, não é o de se tornar um especialista em algo, mas de conhecer o humano, sendo portanto função do cidadão letrado, “transmitir às novas gerações essa herança frágil, essas palavras que ajudam a viver melhor” (p.94). Esta mesma preocupação de uma literatura para a vida se manifesta em Ricardo Piglia, em “Uma proposta para o novo milênio”, que termina com a ideia de que, no futuro, a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 54 literatura, anônima a intemporal, figurará como “registros em um antigo manual de estratégia usado para sobreviver em tempos difíceis”. BIBLIOGRAFIA ALVAREZ, A. A voz do escritor. Tradução de Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo / Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro Sobre Azul, 2004. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de Antônio Fernandes Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Nova Veja, 9ª. edição, 2009. LEWIS, C.S. Um experimento na crítica literária. Tradução de João Luís Ceccantini. São Paulo: Editora Unesp, 2009. MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Cia das Letras, 2006. MANGUEL, Alberto. Os livros e os dias: um ano de leituras prazerosas. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cia das Letras, 2005. MORIN, Edgar. http://www.edgarmorin.org.br/textos.php?p=6&tx=17 PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. Tradução Arthur Bueno e Camila Boldrini. São Paulo: Editora 34, 2009. PIGLIA, Ricardo. “Una propuesta para el nuevo milênio” , in Margens/Márgenes, n. 222. Havana: Casa de las Américas, janeiro-março de 2001. PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Tradução Heloisa Jahn. São Paulo: Cia das Letras, 2006. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 55 DOSSIÊ / ARTIGOS GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 56 TEORIA EM TEMPOS DE CRISE: TRÊS DESAFIOS DA REFLEXÃO TEÓRICA HOJE Júlio FRANÇA1 Resumo: Partindo da análise da enquete “Literary theory in the University: a survey”, publicada pela revista acadêmica New Literary History, o presente ensaio projeta as condições necessárias para o desenvolvimento da reflexão teórica sobre a literatura na contemporaneidade. Nossa principal hipótese de trabalho é a de que a disciplina Teoria da Literatura encontra-se em um estado de crise, que só poderá ser superado com o enfrentamento de três obstáculos: (i) a má compreensão de seus próprios limites, condição explicitada pelas compreensões muito diversificadas sobre o que é a teoria; (ii) a ausência de um sistema conceitual, perceptível na falta de poder de referência dos termos e noções de nosso campo de estudo, e (iii) o relativismo do conhecimento dominante nas ciências humanas, que cria enormes dificuldades para uma disciplina que, em sua origem, aspirava ser capaz de propor discursos mais objetivos sobre a Literatura do que aqueles produzidos pela impressionista Crítica e pela relativista História. Palavras-Chave: Teoria da Literatura. Relativismo. Estudos Literários. Se pelo termo “Teoria da Literatura” compreendemos, em sentido estrito, a proposta de estudo do fenômeno literário que emergiu com a publicação do livro homônimo de René Wellek e Austin Warren, em 1949, estamos diante de um projeto disciplinar que está completando seis décadas de existência. Surgida da confluência entre as idéias do Formalismo eslavo e do New Criticism norte-americano, a Teoria – naquele momento a “nova tendência” dos Estudos Literários – não se realizou de forma única, espraiando-se em diretrizes diversas que, a despeito de divergências profundas, apresentaram, a princípio, uma afinidade de pressupostos, tais como a recusa ao historicismo e ao positivismo, a busca de rigor metodológico, o interesse por uma abordagem intrínseca da obra literária e a compreensão da Literatura como sendo, essencialmente, um trabalho de linguagem. Uma tentativa de súmula dos sessenta anos de Teoria da Literatura talvez revele que a extensão, a complexidade e a especialização por ela alcançadas não permitam mais pensá-la como disciplina, mas como um caótico conjunto de discursos sobre a literatura. Contudo, 1 UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras – Departamento CULT. Rio de Janeiro, RJ. 200559-900. [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 57 gostaria de propor neste artigo uma reflexão que relacione a crise da teoria com o fato de não se saber exatamente do que trata a Teoria da Literatura e de quais são seus limites dentro dos Estudos Literários. Há cerca de vinte anos atrás, a revista New Literary History realizou uma enquete com um grupo de acadêmicos europeus e norteamericanos. Três foram as questões formuladas: (i) Quais os objetivos e funções da Teoria Literária no presente? (ii) Quais conseqüências práticas teve a Teoria Literária em sua atividade de ensino da Literatura e em seu trabalho de produção crítica? (iii) Quais seriam as deficiências, se existentes, da Teoria Literária no ensino da pós-graduação? As perguntas foram respondidas por mais de trinta scholars, entre eles alguns grandes nomes dos Estudos Literários contemporâneos, tais como Eagleton, Gumbrecht, Iser e Jauss. Uma das primeiras impressões que se pode ter com a leitura das respostas ao questionário é a amplitude de compreensão que o termo Literary Theory suscitava em cada um dos professores entrevistados. Essa imprecisão semântica – fruto, por um lado, de uma série de usos históricos do termo “teoria”, e, por outro lado, da própria negligência com que os conceitos são geralmente tratados no caótico ambiente terminológico do campo dos Estudos Literários – revela-se na multiplicidade de objetivos e de funções aventadas como pertinentes ao trabalho teórico, bem como no caráter muitas vezes contraditório dos problemas e das qualidades da disciplina identificados pelos acadêmicos. As três questões formuladas pela revista funcionam, em conjunto, como um teste da condição de existência de uma suposta disciplina chamada Literary Theory. As duas primeiras perguntas tinham um caráter pragmático e claramente perguntavam “para que serve a Teoria Literária?”, embora a primeira delas – a interrogação pelos objetivos e funções – tenha obrigado os entrevistados a refletirem sobre a ontologia da disciplina, a fim de responder ao questionamento implícito “o que é a Teoria Literária?”. Já a terceira questão era explicitamente de cunho didático e institucional, interrogando pelo desempenho efetivo da teoria como disciplina acadêmica institucionalizada e que, como tal, precisa ser “ensinada” e “aprendida”: “como funciona, nas universidades, a Teoria Literária?”. Tomando a enquete de modo heurístico, procurei então sistematizar as respostas dadas pelos entrevistados a cada um desses núcleos temáticos. Embora a enquete tenha sido realizada há vinte anos, as dificuldades, os embaraços, as aporias e, principalmente, a falta de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 58 clareza do estatuto disciplinar da Teoria Literária revelados pelas questões formuladas permanecem, em sua quase totalidade, atuais. “O que é Teoria Literária?” As respostas à pergunta acerca dos objetivos e funções da teoria literária revelam o quanto se está longe de unanimidade conceitual em torno do que vem a ser Literay Theory. Uma primeira classificação possível para as respostas seria dividi-las entre aquelas que tomam o termo como designação dos Estudos Literários em geral –englobando além de abordagens propriamente teóricas, também trabalhos de natureza interpretativa, histórica, analítica e crítica – e aquelas que a entendem como um procedimento específico dentro do campo da investigação sobre Literatura. No primeiro caso, a compreensão ampla de teoria literária promove um desafio a seus defensores: ter de conjugar sistematicamente um conjunto de práticas tão diversificadas como a busca de significados da obra, a análise formal de seus elementos de composição, a contextualização histórica, o julgamento de valor etc., numa amplitude que abarcasse todos os modos já empreendidos de consideração de uma obra literária. Nas atuais condições dos Estudos Literários, um sistema conceitual desta monta – embora fosse certamente muito bem vindo... – é utópico, pois exigiria a resolução de impasses diversos hoje tidos como insuperáveis: a importância do autor para o sentido da obra, a relação das obras literárias com o mundo, os limites da interpretação, a legitimidade do cânone, para ficar apenas com alguns das questões mais pujantes. Há, contudo, variantes desse entendimento lato: Michel Glowinski, Jerome McGann e Adrian Marino2 estão entre aqueles que compreendem a teoria como tendo uma função sistematizadora e disciplinadora, cabendo a ela fornecer as bases e as premissas do trabalho acadêmico, integrar as descobertas dispersas em análises particulares e demonstrar que o estudo da Literatura não precisa ser uma desorganizada coleção de pequenas informações sobre vários temas. Sendo da competência da teoria a análise, a classificação e a definição de conceitos literários básicos, ela poderia, ao unificar interesses particulares em um contexto mais amplo, criar um espaço de comunicação e entendimento entre os estudiosos. 2 As referências às opiniões dos autores citados são todas relativas ao artigo da New Literary History “Literary theory in the University: a survey” (Charlottesville: The John Hopkins University Press, XIV, (2):409-451, winter/1983). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 59 Wolfgang Iser (LITERARY..., 1983, p. 425) pensa nessa função sistematizadora como a garantia de que a experiência da Literatura possa ser intersubjetivamente verificável. Embora os teóricos possam falar em diferentes linguagens, os fundamentos de cada um poderiam ser conhecidos graças a um sistema conceitual teórico comum. Mesmo que não se concordasse em como se lidar com os problemas, ao menos os acadêmicos poderiam compreender-se mutuamente. Tal função seria de extrema necessidade, tendo em vista que o número de sentidos e definições de uso quase individual continua crescendo, tornando urgente uma crítica da terminologia da área. Sem uma sistematização coerente e bem engendrada a ser realizada pela Teoria, a Crítica e a História Literária estariam completamente desorientadas. Mas que tipo de teoria poderia dar conta da complexidade não do objeto literário, mas dos Estudos Literários, a ponto de se posicionar, hierarquicamente, acima das demais abordagens? Iser imagina que essa suposta força estruturadora, para pretender ser uma teoria, teria que ser algo mais do que um conjunto de premissas. Seria necessário um constante esforço de revelação e de teste de seus fundamentos, exatamente o que distinguiria o trabalho teórico dos tipos predominantes de Crítica Literária. Tal teoria deveria ser estruturada de modo que, tão logo passasse a falhar em seus objetivos, fosse retificada, o que normalmente não acontece com outros procedimentos dos Estudos Literários, muito tendentes ao dogmatismo. O ponto de vista de Iser aproxima-o daqueles que vêem na teoria a instância de auto-reflexão do campo de Estudos Literários. Para Hans Ulrich Gumbrecht (IBID., p. 422-423) e Murray Krieger (IBID., p. 432433), a pergunta primordial a ser feita é se há, de fato, um objeto consistente chamado “literatura” sobre o qual teorias (compreendidas como um conjunto de conceitos) podem ser construídas. Em outras palavras, a principal questão teórica deveria ser não o estabelecimento de “teorias”, mas a definição do objeto de nossa disciplina. Krieger afirma que somente após a decisão sobre o status disciplinar seria possível determinar as funções da teoria em relação à interpretação, à Crítica e à História Literárias. Em uma posição aproximada situam-se os que entendem, como Jan Kowenhoven (IBID., p. 431-432), que a Teoria Literária deva ser uma instância autônoma, concernente apenas a si própria e aos problemas que ela mesmo se propõe, a despeito de modas, utilidades ou apelos do senso comum. Evan Watkins (IBID., p. 448-450) acredita que a principal questão é justamente tentar entender como a Literatura e seu estudo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 60 ocupam uma posição específica no conjunto de relações culturais. De modo similar, Eugene Vance (IBID., p. 448) defende a função da teoria como sendo a de definir a especificidade do texto literário como um elemento constitutivo da cultura ocidental. Entre as concepções de Teoria Literária como uma prática reflexiva estão também as de John Ellis e de Lionel Gossman, que identificam sua função e seus objetivos com os da teoria em qualquer campo: a investigação técnica de um objeto, de sua natureza e de sua relação com outras formas culturais, além do esclarecimento relativo a questões mais gerais de uma área de estudos (os objetivos, a natureza de seus resultados, a conveniência das metodologias, a natureza e prática da crítica, dos tratados e da interpretação). Como as questões centrais de uma teoria são já bastante conhecidas, o progresso teórico é sempre lento e deve ser feito de modo paciente, através da análise cuidadosa de conceitos, de acurados processos de distinção, sistematização e reavaliação das linhas de argumentos mais conhecidas na busca de incoerências lógicas. A força de uma teoria está em sua exatidão e em suas formulações precisas – e não no seu caráter atraente ou excitante – que funcionarão como hipóteses lógicas e filosóficas nas quais se basearão a análise e o juízo, de modo o mais “científico” e descritivo possível, a fim de evitar ao máximo qualquer tipo de julgamento ideológico. Conceber a Teoria Literária como a realização, no campo dos Estudos Literários, de ideais teóricos comuns à produção do conhecimento científico dá margem à geração de uma instância metateórica que teria por objetivo questionar diretamente as condições de existência daquele ramo da saber: “Theoretical work ought to show how and why no one class of scholars, and no one subject (including theory) is self-justifying, self-explanatory, and self-sustaining”3, alerta David Bleich (IBID., p. 411), indicando que não se pode naturalizar a existência da disciplina. A teoria deveria ter de pensar sua própria condição acadêmica, seus problemas de identidade, suas funções e seus objetivos no conjunto da sociedade, principalmente neste momento, em que a função social do teórico/estudioso de Literatura não é clara e a própria coerência interna do corpo teórico e de análise é problemática. É neste contexto de questionamentos que a teoria deve encontrar seu modo de 3 “O trabalho teórico deveria mostrar como e porquê nenhum grupo de acadêmicos e nenhuma disciplina (inclusive a teoria) é autojustificável, autoexplicativa e auto-sustentável” [tradução minha]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 61 redirecionar sua atividade crítica e social, ao mesmo tempo que administra as pressões por maior efetividade prática (cf. Neil Larsen, IBID., p. 433-435). Não são poucos os que defendem que a Teoria Literária deva ter um compromisso político. E muitos também são os sentidos possíveis para “atividade política”. Raymond Federman, Vida Markovic e David Punter, por exemplo, entendem que a teoria deve reafirmar o valor da Literatura, legitimar sua presença e sua existência em nossa cultura como uma das mais importantes atividades humanas. Procedendo assim, ela ofereceria um ponto de partida para o combate contra a crise de valores, manteria viva a herança dos Estudos Literários, ofereceria diretrizes para o estudo da Literatura e ajudaria a entender qual o papel da Literatura no mundo contemporâneo. O comprometimento político da teoria implica, em muitos casos, modificar as condições de existência cultural de seu objeto, propagar valores e julgamentos, estabelecer legitimidades e ilegitimidades, realizar exclusões, reafirmar o papel político do intelectual. Para Watkins e para Gossman, não haveria maiores problemas com esse aspecto normatizador, uma vez que é uma ilusão positivista acreditar que se possam produzir discursos teóricos imaculados que transcendam à ideologia. Os discursos humanos seriam sempre embebidos em desejo e história. Teorias que se julgam puras agiriam de modo repressivo, enquanto os melhores discursos teóricos reconheceriam que sua materialidade, longe de ser uma falha, é o que lhes dá sentido, interesse e importância. O engajamento tem, contudo, seus riscos. Teorias fortemente politizadas acabam tendo pouco interesse na própria Literatura, comenta Alastair Fowler (IBID., p. 418-419). É o que parece acontecer com as iniciativas que visam a aproximar a Teoria Literária do campo dos Estudos Culturais. Muitos trabalhos nessa linha colocam-se como se houvesse chegado a hora de os teóricos finalmente assumirem a responsabilidade pelas conseqüências sociais de suas hipóteses e procedimentos (cf. Annette Kolodny, IBID., p. 429-431), na aspiração de que assim são capazes de contribuir para a transformação das instituições (cf. Bleich, IBID., p. 411-413). No juízo de Larsen (IBID., p. 433-435), a Teoria Literária deveria se transformar definitivamente em teoria da ideologia, o que só não ocorre porque ela teme abrir mão da exclusividade do campo do literário, sem perceber que, enquanto isso, a Literatura vai-se esvaindo e, com ela, a própria relevância da teoria. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 62 Ainda sob a perspectiva de uma Teoria Literária que extrapole os domínios do estudo da Literatura, há um tipo de visão – Eagleton, Gumbrecht e Watkins – que atribui a ela a função de promover o intercâmbio dos Estudos Literários com os interesses oriundos de pesquisas ou de disciplinas afins, como a Filosofia, a História, a Sociologia etc., integrando-a ao campo mais vasto dos estudos das relações culturais em geral. Além dessa via interdisciplinar, fala-se também em se abrir novos campos de investigação ou em sua substituição por campos mais abrangentes, como no caso do projeto de Iser (IBID., p. 425-426), por uma antropologia cultural da Literatura, e no de Jauss (IBID., p. 428-429), por uma teoria interdisciplinar do conhecimento. Tendo apresentado, em linhas gerais, as respostas à primeira pergunta da enquete, passo à segunda questão, mas não sem antes fazer menção a George Steiner (IBID., p. 444-445), que defendeu uma posição isolada, mas não insólita. Para ele, em outros contextos que não o dos Estudos Literários, o termo teoria vincula categorias de verificação e de falsificação potencial, experimentos mais ou menos controlados e formalizações. No entanto, aplicada à Literatura e às artes, a teoria seria apenas um empréstimo metafórico ou, pior, um caso de pretensão obscurantista. Nossos melhores argumentos e metodologias seriam “mitologias racionais” ou “cenários discursivos” – por exemplo, uma leitura marxista ou psicanalítica de textos literários, construtos ontológicos como os de Heidegger, mitos de sujeitos ausentes, como em Mallarmé e seus epígonos desconstrutivistas. Tais mitologias programáticas, ainda que possuam grande força de persuasão, não seriam teorias, em qualquer sentido confiável. “Para que serve a Teoria Literária?” Num esforço de sistematizar as concepções descritas no item anterior, sobre o que seja (ou o que deveria ser) a Teoria Literária, creio que seria possível agrupá-las, de modo generalizador, em torno de quatro linhas4 fundamentais, a saber: (i) uma designação genérica para Estudos Literários; (ii) uma instância sistematizadora encarregada de estabelecer um sistema de fundamentos, conceitos e métodos que possam ser partilhados pelos estudiosos de Literatura; 4 Abstraio aqui a posição de George Steiner, mas sua negativa da possibilidade de existir uma Teoria Literária permanecerá como uma hipótese a ser considerada ao longo deste artigo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 63 (iii) uma instância filosófica, auto-reflexiva, voltada para a ontologia de seu objeto; (iv) uma instância empenhada em articular e relacionar o conhecimento sobre a Literatura com um conjunto mais amplo de questionamentos políticos, sociais e culturais. Neste item, procuro articular esses quatro pontos de vista básicos com as funções da Teoria Literária apontadas nas respostas à segunda pergunta da enquete. A posição (i) ajusta-se com a concepção lata de Teoria Literária que defende não ser possível se falar de um texto literário sem a presença, consciente ou não, implícita ou explícita, de um modelo de entendimento daquilo que venha a ser a Literatura – posição comum a Ellis, Glowinski, Gossman, Gumbrecht, Krieger e Carol Jacobs –, pois, nas palavras de Stanley Fish (IBID., p. 418), qualquer leitura de um texto literário é uma tematização da posição teórica do leitor. Raymond Federman (IBID., p. 417-418) vai ainda mais além, entendendo que o próprio autor precisa de uma teoria implícita para escrever. A teoria é, portanto, um elemento constitutivo da própria Literatura, o que leva Jacobs (IBID., 428) a identificar o ensino desta com o daquela. Harmoniza-se com a posição (ii) uma compreensão da função da teoria como reguladora dos Estudos Literários. Bons exemplos encontram-se em Jim Springer Borck (ibid.414), que fala do “rigor” que a teoria imprimiu à sua atividade, Markiewicz (IBID., p. 436-437), que se refere à sistematização, precisão e consciência que ela trouxe a seu trabalho, Glowinski (IBID., p. 419-420), defensor de que, sem teoria, os Estudos Literários seriam vítimas da ingenuidade, e McGann (IBID., p. 438), que acha impensável a prática do trabalho acadêmico sem a aquisição de uma autoconsciência sobre as premissas críticas e conceituais dadas pela reflexão teórica. Esta visão trata a teoria como uma espécie de instância autocontroladora dos Estudos Literários, que forçaria o estudioso a responder pelas conseqüências de sua prática e a procurar entender o que se faz e por que se faz o que se faz, o que, em linhas gerais, é também a opinião de Watkins, Punter e Fish. Ela criaria uma ordem de valores nos Estudos Literários e os capacitaria a promover uma constante autocrítica (cf. Ihab Hassan, IBID., p. 423). A teoria seria assim, comenta Iser (IBID., p. 425-426), um lembrete constante para que não se perca de vista o que se pretende saber quando se começa a estudar Literatura. Responsável por fornecer os parâmetros dos discursos sobre a Literatura, a teoria teria desse modo a função de dizer o que deve ser GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 64 levado em conta e o que deve ser descartado na abordagem das obras, pensa Robert Schwartz (IBID., p. 444), além de precisar oferecer uma reflexão metodológica sobre modos de argumentação na Crítica Literária e interpretações válidas, chegando mesmo ao extremo de dever propor um cânone de descrição das obras literárias (cf. Markiewicz, IBID., p. 436-437). Schwartz e McGann conferem à teoria a função de exercer a consciência histórica necessária para se perspectivar ao máximo afirmações a respeito do significado de um texto. É também nesse sentido que Vance (IBID., p. 448) entende a Teoria Literária como responsável por encorajar o estudante a repensar a História de Literatura e procurar depreender os modelos históricos nela inerentes. Concordantes com a posição (iii) estão os que defendem as funções da teoria literária para além de sua aplicabilidade imediata na leitura de textos, dada sua condição disciplinar de instância de reflexão pura. Gossman, Gumbrecht e Ronald Paulson admitem que a Teoria Literária é a filosofia dos Estudos Literários, opinião que parece ser compartilhada por Watkins (IBID., p. 448-450), que viu nela a possibilidade de conciliar sua formação de filósofo com a de estudioso da Literatura. Como plano de reflexão filosófica, a teoria estaria relacionada com a busca de generalizações, não lhe cabendo, diz Kowenhoven (IBID., p. 431-432), tratar de obras particulares, mas promover uma reflexão sobre as regularidades observáveis nos processos literários, com o que concordam Markiewicz e Schwartz. Por fim, a posição (iv), dos defensores da necessidade “expansionista” da Teoria Literária, acolheria as concepções a respeito das funções da teoria de Bleich, Bloomfield, Braudy, Hermeren e Iser, que seriam, de modo geral, as de ampliar nossos modos de estudo, de revitalizar a atividade acadêmica e de permitir que se atente para aspectos da Literatura aos quais jamais se deu atenção. Dentro dessa perspectiva, haveria concepções de teoria que privilegiariam as possibilidades analíticas: a reflexão teórica teria então por objetivo capacitar a leitura da mais ampla gama de textos, atentando sempre para a multiplicidade e a complexidade dos processos de escrita e de leitura em relação a seus contextos, opinião de Kolodny, David Lodge e Wallace Jackson. A teoria seria um caminho para o livre pensamento, uma alternativa à rigidez, ao dogmatismo e à ortodoxia de linhas de investigação estritamente literárias (cf. Marino, IBID., p. 435). “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?” GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 65 A terceira questão da enquete indagava dos professores sobre os efeitos da Teoria Literária no ensino universitário. Grande parte das respostas apontava para as dificuldades enfrentadas pelo ensino da teoria. Os problemas relacionados eram vastos e iam desde a denúncia da falta de envergadura intelectual dos alunos para tratar de temas filosóficos ou para aplicar seus conhecimentos teóricos em seu trabalho crítico – Iser, Markiewicz, McGann e Sullivan – até a obscuridade de certas correntes – Eagleton e Markiewicz. Outros, como Kolodny (IBID., p. 430), replicavam que o problema não era a teoria em si, mas seu lugar no ensino de pós-graduação. Haveria poucos cursos que reservassem espaço para uma introdução sistemática e abrangente da multiplicidade de correntes, escolas, teorias e debates. Marino (IBID., p. 436) acrescentava ainda que faltariam cursos de história das idéias sobre Literatura, de Retórica, de Poética etc. Através das respostas, pode-se também observar como cada uma das quatro concepções da disciplina anteriormente descritas – e as funções a elas atribuídas – é criticada sob a perspectiva de um posicionamento diverso, o que parece revelar que tais noções de teoria não são complementares, mas mutuamente excludentes. Da posição (i), muito genérica, depreende-se o seguinte problema: seus defensores acreditam que o professor de Literatura pratica teoria, mesmo que não seja ou não se considere um teórico – pois haveria, segundo Kolodny (IBID., p. 430), uma teoria que subjaz a todo discurso sobre a Literatura –, o que implica, em tais casos, a ausência de um ensino sistemático e coerente (cf. Lodge, IBID., p. 435). A posição teórica que não se percebe como tal é naturalizada e acaba não sendo ensinada como “uma” teoria. É a partir desta crítica que se aponta para a necessidade de se organizar a disciplina, o que poderia ser feito começando-se por um estudo histórico da mesma (cf. Krieger, IBID., p. 433), pela exploração das estruturas conceituais que resultaram na multiplicidade concreta de práticas historicamente desenvolvidas e pelo conseqüente questionamento dos interesses ideológicos que fundam suas práticas (cf. Watkins, IBID., p. 449). Marino (IBID., p. 436) lembra, contudo, que, como rareiam os trabalhos de grande fôlego, como os de René Wellek, há uma falta de obras de referências, o que tornaria o ensino da teoria fragmentado e incompleto, razão por que certamente não seria mais possível se falar em um curso completo de Teoria Literária. Neste contexto, Leo Braudy (IBID., p. 415) defende a necessidade de se avaliar, efetivamente, que GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 66 teorias têm alguma utilidade. Assim, como acontece em outras áreas, poder-se-iam estabelecer as teorias sobre quais todos deveriam ter algum tipo de conhecimento, ficando as demais restritas aos especialistas naquele tópico específico. Apesar da grande quantidade de conhecimentos e da crescente multiplicidade de práticas críticas, a Teoria Literária raramente se pergunta pelos fatores sociais e culturais que a conduziram a esse estado. Com uma bibliografia muito compartimentada e em constante expansão, o estudante costuma se sentir perdido, sem saber como os temas e as abordagens chegaram a se tornar pontos relevantes. As idéias são descartadas tão logo começam a ser disseminadas e não é possível coordenar ou redirecionar o que sequer foi compreendido num primeiro momento. A teoria deveria então encarar a hipótese de que a multiplicidade de práticas críticas não resulta da ausência de modelos metodológicos organizados – aliás existentes em um número suficiente para incrementar a confusão –, mas do desenvolvimento histórico dos Estudos Literários na universidade e da posição anômala dos seus cultores na sociedade contemporânea, incapazes de criticar tais modelos. Nenhuma teoria pode seguir adiante sem ser também histórica, completa Watkins (IBID., p. 450). A posição (ii) dá margem à censura de que se exige constantemente do aluno, no ensino de correntes de teoria literária, a aplicação de modelos, rebaixando os textos a meras ilustrações das premissas teóricas, opinião partilhada por Bleich e Iser. Embora seja essencial para o ensino da pós-graduação, a teoria, pensa Gumbrecht (IBID., p. 422-423), deve ser dada a partir de uma discussão efetiva que possibilite aos futuros profissionais e colegas a capacidade de pensar por conta própria. A essa dificuldade soma-se a resistência em se permitir aos alunos a experiência com outras correntes, que não as do professor, problema anotado por Bloomfield, Borck, Krieger e Iser. Uma das causas deste embaraço, entende Kolodny (IBID., p. 429-431), reside no fato de os departamentos tenderem a se fechar em torno de apenas um escola ou método. Ainda sob a perspectiva da crítica a uma concepção de teoria como instância sistematizadora dos Estudos Literários, Bloomfield, Markiewicz e Glowinski identificam os problemas do trabalho teórico com a tendência para minimizar o particular, superestimar o geral, enveredar por raciocínios filosóficos e sucumbir a abstrações, especulações e esquematismos. Sob o mesmo ponto de vista, Gossman GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 67 (IBID., p. 420-422) chega a lamentar que a teoria faça com que os estudantes rejeitem idéias e percepções interessantes e sugestivas que não podem ser formuladas com suficiente rigor, ou não podem ser justificadas e validadas em termos de uma teoria abrangente. Para ele, não se pode trabalhar apenas no escopo de uma teoria, mas se deve trabalhar também no “escuro”, onde muitas das questões mais interessantes ocorrem. A posição (iii) é atacada pelos que entendem que o grande problema da Teoria Literária é, exatamente, a sua pretensão de ser um fim em si mesma e não uma ferramenta de pesquisa que permita descobrir coisas – opinião de Bleich, Gossman, Vance, Iser, Lodge e Markovic. A disciplina não seria um campo auto-suficiente de especulação e de raciocínio dedutivo, estando por isso obrigada a se justificar em termos de seu uso. O desprezo pela aplicabilidade, diz Bleich (IBID., p. 411-413), apenas reforçaria o estereótipo do trabalho intelectual como sem objetivo e inútil, o que ocorre quando muitas correntes teóricas, ao encorajarem os aprendizes a questionar, negar ou resistir às afirmativas empreendidas por outros, acabam sugerindo que pensar é superior e diferente de fazer. Bleich entende que qualquer idéia que surja e termine como estritamente teórica apenas reduz o valor e a importância da teoria. Göran Hermeren (IBID., p. 424) entende que a teoria é discutida isoladamente com muita freqüência, porque a relação entre as atividades literária, teórica e acadêmica não é explícita. Isso torna a relevância do trabalho teórico difícil de ser compreendida pelos alunos. A grande dificuldade deles é exatamente entender as transições entre a teoria e a interpretação, as poéticas e as descrições de obras concretas, as descrições e a hermenêutica (cf. Glowinski, IBID., p. 419-420). Dissociado das outras práticas dos Estudos Literários, o trabalho teórico arrisca-se a degenerar em meras palavras e criar uma teia de abstrações que dizem respeito apenas ao próprio teórico, o que afasta o estudo da Literatura de outras dimensões da cultura. E o que é pior, diz Norman Holland (IBID., 424-425), torna a teoria insensível ao desprezo que lhe vota o senso comum. Um grande número de acadêmicos – Bloomfield, Borck, Paulson e Federman – ressalta que os cursos de Teoria Literária, ainda que importantes, não podem substituir o estudo de obras e o da História Literária, tampouco se transformar no centro da formação de um estudante de Literatura. O conhecimento estrito de obras teóricas, obviamente, não forma bons professores e muito do mau uso que se faz da teoria se explicaria justamente pela falta de conhecimento que os GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 68 alunos têm dos textos literários. A solução estaria no melhor equilíbrio entre a leitura de teoria e a de Literatura. Outros, porém, como Fowler (IBID., p. 418-419) tratam o problema de modo mais radical, entendendo que aquilo que se deve incentivar na pós-graduação é a familiaridade com a Literatura, com o contexto histórico, com a periodização, não se devendo assim dissipar tempo com a teoria, nociva porque incentivaria o abandono do estudo diacrônico. A dicotomia entre texto teórico e texto literário é ironizada por Jacobs (IBID., p. 427-428), para quem a suposição de que se possa optar entre Literatura e teoria, como se fosse uma opção política e polêmica, é absurda. Escolher Literatura em detrimento da teoria revelaria uma grande ignorância em relação ao seu objeto e ao próprio empreendimento crítico, tanto quanto estudar Teoria Literária sem considerar a Literatura seria, digo eu, no mínimo um nonsense. Os Estudos Literários, assim pensa Ronald Paulson (IBID., p. 439), deveriam conduzir o estudante à reflexão teórica, mas depois levá-lo de volta aos textos literários, então iluminados pela teoria. Uma crítica comum à posição (iv) pode ser resumida na postura de Vance (IBID., p. 448), que entende ser o problema da Teoria Literária sua natureza híbrida: não é pura história, nem pura filosofia, nem pura antropologia, nem puro estudo de Literatura, razão pela qual ela é freqüentemente superficial e assistemática. Krieger (IBID., p. 432-433) também concorda que o grande problema da teoria seja exatamente seu fracasso em determinar seus próprios limites. Entre as principais causas apontadas como responsáveis pela fluidez das fronteiras da Teoria Literária está a aceitação franqueada dos modismos, que faz com que qualquer novidade receba prioridade em relação aos métodos clássicos. Ignora-se, deste modo, que muitas novidades são repetições ou redescobertas, opinião de Marino e Morton Bloomfield. Esse tipo de teoria, que desconhece as reflexões sobre as linguagens anteriores a de, por exemplo, Derrida, bem como sobre a própria história da disciplina, incentiva tendências narcisistas de crítica e oferece meios de se evitar os desafios apresentados pela tradição e pela necessidade da prática da confirmação e da refutação, ponto de vista com que concordam Fowler e Ellis. Em muitos casos, a aceitação de uma perspectiva teórica se dá pelo fascínio produzido pelo esplendor da imprecisão grandiosa, ao invés da clareza exigida de qualquer pesquisa teórica autêntica, referindo-se Ellis (ibid.) à pretensão de algumas correntes de que o comentário do texto seja tão importante quanto o próprio, a ponto de poder substituí-lo, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 69 ponto de vista também de Alvin Sullivan (IBID., p. 446). A dependência existencial-temporal do último em relação ao primeiro – isto é, do comentário em relação ao texto – não é apenas uma questão de lógica elementar, enfatiza Steiner (IBID., p. 445), mas também de percepção moral. Sistematizando o problema Uma análise preliminar das respostas à enquete da New Literary History pode conduzir a uma primeira hipótese: “Teoria da Literatura” não é uma noção auto-evidente e muitas das discussões em torno do tema são prejudicadas pela ausência de um acordo conceitual prévio. As compreensões muito diversificadas a respeito da natureza, dos objetivos e das funções do trabalho teórico produzem diferenciados procedimentos de produção, de divulgação e de ensino da Teoria Literária. Se, por um lado, a multiplicidade de caminhos de abordagem da Literatura aponta, supostamente, para a pujança e complexidade da obra literária, por outro lado, essa pletora de possibilidades aparentemente equivalentes em suas irredutíveis especificidades conduz os Estudos Literários a uma situação incômoda para uma disciplina institucionalizada. Seria efetivamente uma qualidade poder se responder a uma pergunta como o que é ser um estudioso de Literatura? de infinita maneiras, ou isso apenas revelaria o quão pouco especializada vem se tornando essa área de estudos? Em que um estudioso da Literatura se diferenciaria do leitor comum? Nossa condição de especialistas – legitimados que somos por nossa posição institucional – deve implicar, suponho, o domínio de um discurso sobre a obra literária qualitativamente diverso daquele dos demais leitores não-especializados. Em outras palavras, nossa prática profissional pressupõe, implicitamente, que é possível um discurso e um saber sobre a Literatura diferenciados, em qualidade, da infinidade de discursos e de saberes – digamos de modo bastante simples – nãoteóricos. Onde estaria o cerne desta diferença? Entre as respostas possíveis, creio que poderia situar-se no esforço de observar a obra: (i) não apenas naquilo que significa para mim, leitor, mas naquilo que significa e pode significar para o conjunto dos homens; (ii) como um documento histórico, um retrato privilegiado de uma época; GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 70 (iii) em suas similaridades com outras obras, chegando-se assim a algum tipo de visão sistemática de fenômenos aparentemente sempre tão singulares; (iv) em suas relações, diacrônicas ou sincrônicas, com o conjunto das demais atividades humanas; (v) como singularidade irredutível e absoluta, como algo cuja existência é sempre um “existir para alguém”; (vi) como artesanato textual, fruto de técnicas de produção que podem ser catalogadas e reutilizadas para a produção de outras obras. Estas são respostas justas e possíveis, como ainda seriam possíveis e justas muitas outras. Correspondem, efetivamente, a realizações dos Estudos Literários ao longo da história. Cada uma delas se funda em algum tipo de pressuposto sobre a Literatura: a obra como documento, como linguagem, como pensamento, como objeto que se oferece aos sentidos etc. Cada uma dessas tentativas recorta, de um mesmo campo de observação, a linguagem verbal, objetos formais bastante diversos que vêm sendo denominados, há pelo menos duzentos anos, com maior ou menor imprecisão, Literatura. Chegar-se-ia assim, aparentemente, a uma solução para a questão inicial proposta: o papel do especialista seria o de construir um discurso sobre obras literárias fundamentado em algum pressuposto do que vem a ser a Literatura. Entretanto, uma visada empírica poderia nos mostrar que em certos momentos históricos, como o nosso, discursos supostamente fundamentados sobre a Literatura parecem se propagar em progressão geométrica. Não acabaríamos, pois, obrigados a sustentar que qualquer discurso fundamentando em qualquer premissa é igualmente legítimo? E tal concepção não deveria também aceitar discursos geralmente tomados como não-especializados, como o do diletante que fundamenta seu discurso e seu saber sobre a obra literária em, por exemplo, seu gosto individual? Para não acabar por se reconhecer que o resultado do estudo profissional da Literatura é idêntico ao das muito mais agradáveis horas de leitura e de conversa opiniática, deve-se admitir que a exigência simples de um discurso sobre a obra literária fundamentado em qualquer pressuposto não é suficiente para que possamos entender o que diferencia o saber do especialista do saber do não-especialista. Uma possível saída estaria em admitir que devemos ser capazes de empreender uma crítica desses fundamentos (e pseudofundamentos) dos discursos GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 71 sobre a obra literária. Mas tal empreendimento é possível na condições de pensamento do mundo atual? Em um contexto como o nosso, de profundo relativismo cultural, quais modelos de Estudos Literários legitimamente fundamentados são possíveis? A resposta a essa pergunta parece passar, necessariamente, pelo esforço de se reelaborar um estudo metódico e sistemático da Literatura. Para tanto, antes de mais nada, seria necessário repensar nosso entendimento do trabalho teórico, por vezes compreendido como tentativas fracassadas de transformar o estudo da Literatura em uma ciência nos moldes positivistas. O que normalmente chamamos Teoria da Literatura, com T e L maiúsculos, é, de fato, uma realização histórica no âmbito dos Estudos Literários no século XX, que se concretizou numa pletora de correntes cujos pressupostos são tão variados, concorrentes e contraditórios entre si que somente com um supremo esforço de generalização podem ser reunidas em um mesmo rótulo. Seu alastramento como “abordagem” hegemônica trouxe, aos Estudos Literários, muito mais confusão e contradições do que conhecimento e soluções para os problemas da área. Contudo, o que teria morrido no século passado foi um determinado projeto de teoria, não a necessidade e a pertinência do estudo metódico e sistemático da obra literária. A reflexão teórica seria uma faceta do movimento de compreensão da Literatura, juntamente com as abordagens interpretativas, analíticas, históricas, judicativas e prescritivas, que constituem o conjunto das atitudes possíveis diante de objetos literários. Se tomarmos a Literatura em seu processo mínimo – um fenômeno que envolve um ato de escrita, um texto e um ato de leitura (e seus respectivos contextos) – perceberemos que há uma multiplicidade de relações entre esses elementos que podem ser exploradas por propósitos de pesquisa diversificados. Sem nenhuma pretensão de exauri-las, enumero algumas, com suas respectivas possíveis linhas de estudo entre parênteses: (i) Se atento para a escrita, posso me concentrar nas relações entre o escritor e sua época (biografismos), o escritor e outros artistas (estudos sociológicos do autor, estudos de influência), o escritor e o texto (estudos do processo de criação), a escrita e o inconsciente (estudos psicanalíticos) etc. (ii) Se considero o texto, posso me deixar atrair pelas ligações entre o texto e a língua (estilística), o texto e o mundo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 72 político, social e cultural (estudos sociológicos, antropológicos e históricos da Literatura, estudos de ideologia, estudos culturais), o texto e outros textos (estudos de intertextualidade) etc. (iii) Se me dirijo à leitura, posso me dedicar às ligações entre leitura e texto (estudos interpretativos), a leitura e seus contextos (estudos de recepção) etc. De que se ocuparia exatamente a Teoria da Literatura? Da escrita, do texto, da leitura ou dos contextos, isoladamente? Creio que não, pois não faria sentido se supor que a reflexão teórica se ocupasse única e exclusivamente de um elemento específico da Literatura. De todos esses elementos em conjunto? Também acredito que não, pois então ela se confundiria com a totalidade dos Estudos Literários e sucumbiria diante da impossibilidade de sistematizar aparatos conceituais e metodologias provindas de inúmeros campos do saber. Da crítica a todas as linhas de estudo que se ocupam de cada um dos aspectos da Literatura? Não seria apropriado, pois, para tanto, ela precisaria ser uma epistemologia das Ciências Humanas, capaz de avaliar os pressupostos de disciplinas como História, Sociologia, Antropologia, Lingüística, Filosofia, Psicanálise etc., e já não teria nenhuma ligação específica com a Literatura em si. De que, então, se ocuparia ela? Em conjunto, as abordagens aos diversos aspectos da Literatura constituiriam os Estudos Literários. Dada a grande variedade de enfoques justos e possíveis, é fácil perceber o porquê de nosso campo de estudos ser tão diversificado e suscetível à influência de outras áreas do saber. Afinal, é perfeitamente razoável que nos sintamos desorientados toda vez que somos convocados a falar de uma obra literária, tendo em vista os inúmeros aspectos interessantes e pertinentes que disputam nossa atenção. Além disso, nos sendo possível relacionar a Literatura com virtualmente qualquer coisa e nos sendo permitindo através dela falar sobre o mundo, é compreensível que, muitas vezes, nos esqueçamos justamente daquilo que nos possibilitou a pensar a realidade desse modo diferenciado. Conseqüentemente, é compreensível que os Estudos Literários tenham se tornado tão amplos e pouco específicos – ou caóticos, numa descrição mais veemente. A Teoria da Literatura pode ser a resposta a essa crise. Talvez tudo o que se possa esperar da reflexão teórica é que ela ofereça as condições para que a Literatura possa ser estudada. Uma Teoria Literária precisaria então ser responsável por descrever de modo generalista o objeto de estudo “Literatura” e seus elementos constitutivos. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 73 Essas descrições devem ser abertas a constantes reavaliações e aperfeiçoamentos, mas também precisam ser metodicamente resistentes a propostas precipitadas que pretendam transformá-las ao sabor dos modismos que, em geral, consistem tão-somente em “velhas novidades”. Deverão também se relacionar de forma sistemática e constituir um modelo teórico que possa servir de fundamentação para os Estudos Literários como um todo. Por fim, serão capazes de fornecer os elementos a partir dos quais será possível se desqualificar discursos que, por não respeitarem o regime constitutivo de seu objeto, não falariam da obra literária, mas a usariam para falar de outros assuntos – e, dessa forma, não deveriam ser entendidos como pertencentes ao campo de estudos sobre a Literatura. A implementação dessa proposta é uma utopia, pois três obstáculos se interpõem entre esse horizonte da reflexão teórica e o estado de crise atual da Teoria da Literatura: (i) a má compreensão de seus próprios limites, (ii) a ausência de um sistema conceitual e (iii) o relativismo do conhecimento dominante nos Estudos Literários. Sobre o primeiro obstáculo, creio ter ficado claro que a “Teoria da Literatura” não é uma noção auto-evidente e que as compreensões muito diversificadas a respeito de sua natureza, de seus objetivos e de suas funções deram e ainda dão origem a diferenciados procedimentos de produção, de divulgação e de ensino do trabalho teórico. A reflexão teórica não deveria se confundir com a totalidade dos Estudos Literários, isto é, não deveria se ocupar das particularidades das obras literárias, nem se interessar pelas múltiplas interpretações particulares suscitadas pelos textos literários, nem deveria se identificar com as relações históricas, psicológicas, sociológicas, culturais ou políticas de obras específicas. A reflexão teórica deve se propor pensar a obra literária exatamente pela perspectiva que escapa a essas abordagens, isto é, como Literatura – nica razão de existência de uma disciplina que não se chama “teoria dos textos” ou “teoria dos discursos” ou “teoria dos objetos culturais produzidos com linguagem verbal”, mas Teoria da Literatura. Muitas das dificuldades enfrentadas pelos Estudos Literários são causadas por uma terminologia vasta, imprecisa e repleta de empréstimos a modelos teóricos das mais diversificadas áreas do conhecimento – eis o segundo obstáculo. Por essa razão, as diversas correntes que surgiram ao longo do século XX experimentaram uma ininteligibilidade recíproca, gerada pela miríade de termos e proposições incompatíveis e mutuamente excludentes. A ausência de uma nomenclatura tem dificultado enormemente o entendimento mútuo entre pesquisadores – e, por GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 74 conseguinte, tem prejudicado a produção de conhecimento sobre a Literatura. Termos às vezes usados originalmente dentro de um contexto específico de pensamento atravessam os séculos absorvendo sentidos, agregando novas conotações e adquirem, por vezes, um sentido radicalmente distinto de seu uso inicial. Como resultado, muitos dos termos empregados atualmente nos Estudos Literários têm uma amplitude que exige um tratado e não um verbete enciclopédico para dar conta da vasta rede de significados a eles associados. Diante dessa falta de poder de referência dos termos e noções de nosso campo de estudo, alguns teóricos resolvem o problema do modo mais radical e contraproducente, isto é, desprezando a importância de se conceituar e taxando os conceitos de redutores, normativos, ideológicos etc. Um estudo especializado deve possuir uma linguagem técnica que seja de domínio comum entre seus praticantes. Não é pelo fato de não se poder abarcar todos os sentidos históricos que são carregados, por exemplo, pela palavra “literatura” que o conceito de Literatura seja inviável. É certo que a transformação histórica dos significados é inexorável. Também é verdadeiro que os termos podem ter diferentes significados em sistemas conceituais diferentes. Mas o problema dos Estudos Literários não são os sentidos dos termos em “edifícios teóricos” distintos, mas um uso abusivo e leviano de conceitos como palavras, e vice-versa, gerando profundas dificuldades de compreensão – ou mesmo falsos problemas –, causadas pela imprecisão e obscuridade inerente aos enunciados da área. Num campo onde o conhecimento produzido não está sujeito a experimentações, aspirar cientificidade nos postulados da Teoria da Literatura, ao menos nos sentidos tradicionais de ciência, é pouco mais do que uma aspiração temerária. No entanto, desde que se abandone qualquer ilusão de positivismo lógico que suponha uma linguagem ideal baseada no modelo da lógica formal, pode-se ter num sistema conceitual um poderoso instrumento de produção de conhecimento. O sucesso de um sistema conceitual está, entretanto, condicionado à superação do terceiro obstáculo à reflexão teórica: os pressupostos relativistas que orientam grande parte das abordagens à Literatura na atualidade. Trata-se de uma questão de resolução mais complexa por ser sua origem externa ao âmbito da Teoria da Literatura e dos Estudos Literários, fato que não chega a ser excepcional, dada a enorme permeabilidade das fronteiras de nosso campo de estudos. As idéias relativísticas estão longe de ser uma novidade nas Ciências Humanas. No campo da Antropologia, a noção de relativismo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 75 cultural foi formulada pelo antropólogo alemão Franz Boas e está ligada a uma postura metodológica em que o pesquisador deve suspender ou pôr de lado seus preconceitos culturais para tentar entender crenças e comportamentos em contextos específicos. Representou, portanto, uma contrapartida ao pensamento etnocêntrico que dominou a disciplina no século XIX. No campo dos estudos filosóficos, as idéias relativísticas remontam pelo menos aos sofistas e constituem um tema de grande força no campo da Ética – o relativismo dos valores morais – e no campo da Epistemologia – o relativismo do conhecimento humano. De modo geral, a defesa da relatividade está ligada a uma atitude de negação da possibilidade de haver algum tipo de verdade cuja validade seja universal. Um relativista assume, portanto, que os sentidos e os valores das crenças e comportamentos humanos não possuem uma referência absoluta e são sempre relacionadas a contextos históricos e culturais específicos. Em conseqüência, não seria possível se falar de características intrínsecas aos seres ou aos objetos e qualquer proposição sobre o mundo constitui apenas um entre inúmeros modos possíveis de se interpretá-lo. O relativismo que grassa em nosso campo de estudo sugere que a limitação de nossos sentidos e nossos preconceitos culturais nos impediriam de observar objetivamente o mundo e aparenta ser uma combinação das idéias advindas da Antropologia e da Filosofia que teria dado nova vida às tendências relativistas já presentes na História da Literatura – contra as quais Wellek & Warren se insurgiram. Identificar todas as portas de entrada dessas teses nos Estudos Literários exigiria um trabalho alheio ao que se propõe aqui. Creio, porém, não ser temerário apontar ao menos duas: (i) via Lingüística, através da já mencionada má compreensão das teorias saussurianas sobre o valor relacional dos elementos da língua e da hipótese de Sapir-Whorf, de que a língua “enformaria” o modo como os indivíduos vêem o mundo. (ii) via práticas interpretativas, em especial o desconstrucionismo, os trabalhos de Stanley Fish e Richard Rorty, que em comum defenderiam não haver leituras melhores ou piores porque não haveria qualidades intrínsecas aos textos – sequer existiriam textos fora dos contextos de leitura. Por se tratar de um tema de longa tradição filosófica, a bibliografia sobre o assunto é extensa e são diversos tanto os modelos de pensamento que endossam quanto os que contestam as teses relativistas. Entre as contestações ao relativismo, duas são especialmente difundidas: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 76 a primeira sugere que a defesa da relatividade se auto-refutaria, pois uma assertiva do tipo “tudo é relativo” só pode ser compreendida de modo absoluto e seria, pois, uma comprovação de que, afinal, nem tudo é relativo. A outra objeção sustenta que dizer que todas as opiniões diferentes estão igualmente corretas é o mesmo que dizer que nenhuma está, uma vez que se todas as convicções são igualmente válidas, então todas são igualmente sem valor. Não é necessário se entrar no mérito das tréplicas dos relativistas e das contra-tréplicas de seus adversários para se entender que o relativismo está longe de ser um truísmo. No entanto, como a fascinação de nossa disciplina pelos temas das outras Ciências Humanas se dá apenas em um nível superficial, desprezamos a argumentação envolvida na discussão das teses relativistas e tomamos proposições por axiomas. Aos que se atrevem a contestar, as denominações são variadas, mas todas de sentido infame – absolutistas, dogmáticos, essencialistas, autoritários, fundamentalistas. Basear-se em uma epistemologia radicalmente relativista, por si só, já criaria enormes dificuldades para uma disciplina que, em sua origem, aspirava ser capaz de propor discursos sobre a Literatura mais objetivos do que aqueles produzidos pela impressionista Crítica e pela relativista História. A situação só se agrava quando essas teses relativísticas surgem apartadas de seu contexto de discussão e produzem uma desconfiança generalizada diante de qualquer proposição de modelos metódicos e rigorosos. Quando tomado de modo dogmático, o relativismo produz posturas céticas ou dá ensejo a projetos pragmáticos que instrumentalizam as obras literárias e que conduzem a discussão sobre elas para um âmbito externo aos dos estudos de Literatura. A condição de existência de uma disciplina que possa produzir reflexão teórica sobre a Literatura depende, pois, de nossa capacidade de produzir modelos teóricos fundados em pressupostos não-relativistas. Voltamos assim ao ponto de partida da Teoria da Literatura e ao projeto não-continuado de Perspectivismo, de Wellek e Warren. Há sessenta anos, eles já consideravam, com acerto premonitório, que o relativismo era a grande ameaça aos Estudos Literários, uma vez que já assumia uma feição “equivalente à anarquia de valores (...) [e] à ren ncia da tarefa crítica” (WELLEK & WARREN, 2003, p. 43). Sem defender um absolutismo doutrinário baseado em uma natureza humana imutável ou na universalidade da arte, eles propunham que se devesse entender a obra simultaneamente como algo histórico e universal: “‘Perspectivismo’ significa que reconhecemos a existência de uma poesia, uma literatura GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 77 comparável em todas as épocas, desenvolvendo-se, mudando, cheia de possibilidades” (IBID., p. 43). A busca por uma Teoria da Literatura perspectivista pode ser nossa opção contra um relativismo tão disseminado quanto o são as aporias que origina e que nos faz quedar perplexos, como se tivéssemos alcançado o limite extremo do nosso pensamento: para além dessas fronteiras, haveria apenas a irracionalidade e a barbárie. Duas possibilidades nos restam: acatarmos essa supostamente irremediável insuficiência de nossa razão e nos tornarmos espectadores de nosso próprio fracasso, ou exigirmos da reflexão teórica, justamente aquela que nos colocou nesse impasse, que nos indique as saídas. Theory in Times of Crisis: Three Challenges for Theoretical Thought in Literary Studies Abstract: The present paper analyses “Literary theory in the University: a survey”, published in the academic journal New Literary History, in an attempt to project the conditions to the development of a theoretical thinking concerning Literature in a historical moment that is marked by a deep relativism in Humanities. Key-words: Literary Theory. Relativism. Literary Studies. REFERÊNCIAS LITERARY theory in the University: a survey. New Literary History. Charlottesville: The John Hopkins University Press, XIV, (2):409-451, winter/1983. SOUZA, Roberto Acízelo de. Formação da teoria da literatura. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico; Niterói: EdUFF, 1987. WELLEK, René, WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 78 LITERATURA? PRA QUÊ? / LITERATURA FOR WHAT? Raquel Trentin Oliveira1 Resumo: Reconhecidamente, o espaço da literatura nas escolas tem diminuído. Poucos são os alunos que dizem gostar de ler textos literários, e a sociedade em geral não reconhece o valor da literatura. Como combater essa realidade e valorizar a leitura do texto literário? Qual é mesmo o papel da literatura na nossa existência e na sociedade? Como contribui para a formação de uma consciência histórica, ética e moral? Essas são as questões que atravessam o presente artigo. Para respondêlas, dialogo principalmente com os textos A Literatura em perigo (2010), de Tzevetan Todorov, e Literatura para quê? (2009), de Antoine Compagnon. O problema talvez esteja no enfoque que é dado aos estudos literários na escola, esquecendo-se da relação da literatura com o mundo e não se investindo na relação íntima do leitor com a obra: nos sentidos que o texto ganha ao olhar do leitor, nos sentidos que o texto dá a sua vida. Palavras-chave: ensino de literatura, funções da literatura, relação da literatura com o mundo e com o leitor. “Literatura? Pra quê?”, título deste artigo, faz referência ao título em português de uma publicação de Antoigne Compagnon, Literatura para quê?, na qual o reconhecido crítico reflete sobre as seguintes questões: “quais valores a literatura pode criar e transmitir ao mundo atual? Que lugar deve ser o seu no espaço público? Ela é útil para a vida? Por que defender sua presença na escola?” (2009, p.20). Como se observa, as modificações imprimidas ao título de Compagnon ressaltam uma indagação corrente na boca de muitas pessoas comuns, pronunciada com uma entonação bastante expressiva: “Literatura? Pra quê?” Tal pergunta geralmente aparece desdobrada em outras: “Por que ler literatura, hoje, se temos tantas outras formas de comunicação mais atrativas?”; “Por que perder tempo lendo textos literários, se temos tantas coisas mais urgentes para resolver?”; “Por que desperdiçar carga horária ensinando literatura nas escolas e nas faculdades de Letras se ela não tem 1 Professora Doutora do Departamento de Letras Vernáculas, da Universidade Federal de Santa Maria-RS. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 79 uma utilidade prática em nossa sociedade, não intervém imediatamente na realidade?”, etc. Sem d vida, essas são questões que permeiam o senso comum e aumentam a angústia do professor de Letras em relação ao sentido do seu trabalho e à importância do seu objeto de estudo. Talvez nunca tenha sido tão necessário refletir sobre as funções de literatura quanto o é nos dias atuais, isso porque é fácil constatar o reduzido espaço e o pouco valor atribuído a ela em nossa sociedade, especialmente em um dos mais importantes lugares de sua legitimação: a escola. É dessa reflexão que trata o presente artigo, ao dialogar com o texto A Literatura em perigo (2010), de Tzevetan Todorov, e Literatura para quê? (2009), de Antoine Compagnon. Como professora de Ensino Superior, constato a desvalorização do texto literário na escola quando começo a discutir, com meus alunos que acabaram de ingressar na graduação em Letras, o problema “o que é literatura?” Deparo-me, então, com respostas do tipo: “literatura é um conjunto de títulos antigos, que reproduz características de períodos históricos determinados”; “literatura é um tipo de texto com uma linguagem difícil, carregada de metáforas, antíteses, onomatopéias, etc.” Minha surpresa não é menor quando os indago sobre as obras que leram no Ensino Médio: grande parte da turma costuma ficar calada; outra parte se refere às obras indicadas para o vestibular; uns poucos, mais sinceros, acrescentam, que nem todas as obras do vestibular foram lidas porque tal exame pode ser resolvido também com resumos disponíveis na internet. Assim concluo que, mesmo entre alunos que escolheram Letras, é pouco o interesse genuíno pela literatura. Ou, pelo menos, que a leitura da maioria dos jovens não contempla o que a escola e o ensino superior valorizam mais. Por outro lado, na internet e especialmente nas redes sociais, constato uma reprodução cada vez mais extensa de fragmentos de textos literários, que se multiplicam infinitamente. Os recortes dos textos em geral são motivados por uma identificação pessoal, por dizerem algo sobre determinado momento da vida de quem os selecionou, ou mesmo por conterem imagens surpreendentes aos sentidos e assim impactantes aos olhos da rede de amigos. Tais situações estimulam a pensar sobre a maneira como os textos literários são estudados na escola. Para Todorov, o desinteresse dos alunos pela literatura tem a ver justamente com esse ponto. “Na escola não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos” (2010, p. 27), diz ele. O autor assinala isso em relação ao ensino da literatura na França. Todavia, facilmente podemos constatar o mesmo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 80 em relação ao ensino da literatura no Brasil: não privilegiamos a abordagem do nosso objeto de estudo – o texto literário –, mas a abordagem da disciplina em si, dos seus conceitos, das suas correntes, da sua história. Apesar de todos os avanços na discussão da metodologia de ensino, na prática, não discutimos em profundidade acerca do que falam as obras, acerca do mundo evocado nos textos de Machado de Assis, Clarice Lispector e Cecília Meireles. Passamos os olhos, isto sim, pelas características do Realismo e do Modernismo e por traços formais – geralmente os mais clássicos – do romance, do conto e do poema. Por outro lado, quando a análise do conteúdo do texto literário é privilegiada, é comum desconsiderar-se a sua forma: ou são descritos os recursos formais do texto literário, ou são discutidos os temas tratados nesses textos. Apesar de muito repetida, a ligação necessária entre forma e conteúdo ainda não é uma realidade no ensino de literatura. Quando os temas entram em causa, geralmente são abordados por si mesmos, desconsiderando-se a forma como são expressos, que tanto contribui para o aprofundamento do sentido. A análise do texto literário não consiste em fazer, separadamente, uma paráfrase do seu conteúdo ou uma listagem dos seus recursos formais. A avaliação do conteúdo deve estar baseada numa análise dos elementos formais constitutivos do texto literário, assim como o estudo desses elementos deve visar a entender o sentido que assumem na estrutura global da obra. A análise minuciosa do material verbal pode nos levar à compreensão da fórmula que rege o funcionamento do texto e, então, à visão do mundo que lhe é própria e aos efeitos emotivos que é capaz de suscitar. Enquanto a forma e o conteúdo não forem trabalhados em sintonia, continuará desvalorizada a especificidade do texto literário e, assim, continuará difícil convencer o aluno de que a forma como o texto literário fala do mundo contribuiu, decisivamente, para a compreensão desse mundo. Segundo Todorov, abusamos de nosso poder ao privilegiarmos os conceitos que a disciplina e a teoria da literatura nos ensinaram, esquecendo que nós – especialistas, críticos, professores – na maior parte do tempo não somos mais do que “anões sentados em ombros de gigantes” (2010, p. 31). Conclui o autor: é verdade que o sentido da obra não se resume ao juízo puramente subjetivo do aluno, mas diz respeito a um trabalho de conhecimento. Portanto, para trilhar esse caminho, pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em nenhum caso, o estudo desses GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 81 meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim (2010, p.31). Em verdade, “o conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um” (TODOROV, 2010, p. 33). Lemos as obras literárias não para melhor dominar um método de ensino, tampouco para retirar delas informações sobre as sociedades a partir das quais foram criadas, mas para nelas encontrar um sentido que nos permita compreender melhor o homem e o mundo, para nelas descobrirmos uma beleza que enriqueça nossa existência. Nas palavras de Todorov: o caminho tomado atualmente pelo ensino literário, que dá as costas a esse horizonte (‘nesta semana estudamos metonímia, semana que vem passaremos à personificação’), arrisca-se a nos conduzir a um impasse – sem falar que dificilmente poderá ter como consequência o amor pela literatura (2010, p.33). Como se pode deduzir, para Todorov, valorizar a leitura do texto literário em sala de aula é valorizar a percepção do leitor frente à obra e a relação que o discurso da arte literária estabelece com os discursos da vida. Se considerarmos a premissa de que a literatura mantém uma ligação efetiva com o mundo e de que sua apreciação deve levar em conta o que ela nos diz do mundo, fica mais fácil reconhecer e defender suas funções na sociedade atual. A obra de ficção, sem pretender dar a verdade, está em contato com ela pelo verossímil. Luiz Costa Lima, em Vida e mimesis, afirma que a arte ficcional, a partir de seu meio próprio, o meio das imagens e não dos conceitos, põe em perspectiva a verdade, ou melhor, é capaz de questioná-la, sendo crítica sem ser didática, ensinando sem ensinar. Conforme o autor, “a ficção não representa a verdade, mas tem por ponto de partida o que criadores e receptores têm por verdade [...] Empreendida com balizas no que o criador e o receptor tomam como verdadeiro [...] a experiência do ficcional supõe a experimentação do que não se conhece” (1995, p. 306), ao mesmo tempo em que permite a participação do leitor no inconsciente de sua época. Pela diferença – pois a literatura integra, sobretudo, a imaginação, a fantasia, o sonho – a ficção literária pode desvendar o que não é perceptível no real, aos olhos do homem comum, entregue à vida ativa. Considerando essa relação da literatura com o mundo, qual seria sua pertinência para a vida? Qual é sua força, não somente para o prazer, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 82 mas também para o conhecimento, não somente para a evasão, mas também para a transformação? Ora, no curso da história, foram dadas várias definições notáveis do valor da literatura, de sua utilidade e pertinência. Compagnon (2009) lembra de algumas delas, que aqui resumo. A tradição clássica, consagrada por Aristóteles e Horácio e retomada no período renascentista, sustenta-se na ideia de que a literatura deleita e instrui. A leitura do texto literário, ao mesmo tempo que agrada, educa moralmente. Através de exemplos e casos concretos, ainda que fictícios, a literatura pode nos educar moralmente tanto quanto, ou até mais, que regras de conteúdo abstrato que nos são impostas. Assim, a tragédia clássica, por seu efeito catártico, servia para purgar as emoções dos expectadores e ensiná-los, através do exemplo do trágico destino de homens superiores, a moderação e o equilíbrio das emoções. No século das luzes, o XVIII, passa-se a valorizar a ideia de beleza, a harmonia, a coerência interna da arte, não se cortando, porém, as suas relações com o mundo: a beleza tem relação com o que é harmonioso e proporcional. O que é proporcional e harmonioso é verdadeiro; e o que é ao mesmo tempo belo e verdadeiro é, por conseguinte, agradável e bom. No Romantismo, tornou-se frequente pensar que a literatura liberta o indivíduo de sua sujeição às autoridades; que o texto literário, “instrumento de justiça e de tolerância, e a leitura, experiência de autonomia, contribuem para a liberdade e para a responsabilidade do indivíduo” (COMPAGNON, 2009, p. 34), valores caros a uma época de formação das rep blicas nacionais. “Antídoto para a fragmentação da experiência subjetiva que se seguiu à Revolução Industrial e à divisão do trabalho, a obra romântica pretendeu instaurar a unidade das comunidades, das identidades e dos saberes, e assim redimir a vida” (COMPAGNON, 2009, p.35). Segundo uma outra perspectiva, mais moderna, a linguagem literária ultrapassa os limites da linguagem comum. Fala a todo mundo, recorre ao sistema linguístico ordinário para transformá-lo em particular, especial. Segundo essa filosofia, o poeta divulga o que estava em nós, mas que ignorávamos porque nos faltavam as palavras. Bergson assim se expressa sobre os poetas: “À medida que nos falam, aparecem-nos matizes de emoção que podiam estar representados em nós há muito tempo, mas que permaneciam invisíveis: assim como a imagem fotográfica que ainda não foi mergulhada no banho no qual irá ser revelada” (2006, apud COMPAGNON, 2009, p.38). Compagnon, seguindo essa linha de raciocínio, dirá ainda: “A literatura busca exprimir GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 83 o inexprimível, brinca com a língua, ultrapassa suas submissões, visita suas margens, atualiza suas nuances e enriquece-a, violentando-a” (2009, p.38). É claro que hoje outras representações estéticas, como o cinema, rivalizam com a literatura e têm uma capacidade semelhante a ela; que, como diz Compagnon (2009, p.46), “a literatura não é mais um modo de aquisição privilegiado de uma consciência histórica, estética e moral”. Diante dessa constatação, o autor indaga: “isso significa que seus antigos poderes não devam ser mantidos, que não mais precisamos dela?”. E responde: “seria risível que os literatos renunciassem à defesa da literatura” no momento, inclusive, que outras disciplinas passam a reconhecer mais o seu papel. A professora de filosofia Nadja Hermann tem estudado e defendido o resgate da relação entre ética e estética literária na educação, considerando o valor das forças da imaginação, da sensibilidade e das emoções para o agir; talvez mais eficazes do que a formulação de princípios abstratos e de uma fundamentação teórica da moral. Para ela, “o estético, ao trazer a interpretação da vida, gera novos modos de integração ética” (2005, p.15). Compagnon, por sua vez, lembra que a filosofia moral analítica e a teoria das emoções investem cada vez mais nos textos literários, crentes na ideia de que eles permitem acessar “uma experiência sensível e um conhecimento moral que seria difícil, até mesmo impossível, de se adquirir nos tratados dos filósofos. Ela [a literatura] contribui, portanto, de maneira insubstituível, tanto para a ética prática como para a ética especulativa” (2009, p. 47). A História, ao mesmo tempo que reconhece a proximidade da sua escrita com a da estrutura narrativa ficcional, tem valorizado o papel da literatura como construtora de historicidade, como uma forma de fazer memória dos fatos passados. Por sua vez, a produção literária tem assumido cada vez mais essa função. Muitas obras da literatura contemporânea revisitam o passado, em geral de uma perspectiva irônica e paródica, acentuando a sua diferença em relação à história oficial e elevando a presença de vozes que nesta permaneciam à margem ou silenciadas. Desse modo, problematizam o sentido único e soberano do discurso historiográfico tradicional, disseminando outras histórias que, através do confronto dialógico, buscam a alteridade da verdade e iluminam sentidos soterrados nas versões dominantes. Todorov, tradutor dos textos dos formalistas russos para o francês e teórico divulgador do formalismo – para cuja doutrina o texto só fala de si mesmo e só interessa estudar a técnica literária –, hoje defende uma GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 84 visão mais ampla que aborde de maneira integral e, em relação, a forma e o conteúdo, o texto e o que ele diz do mundo, as intenções críticas codificadas no tecido textual, assim como as lacunas, os silêncios, que permitem ao leitor exercitar sua liberdade de interpretação e, assim, mantêm com a vida uma relação estreita. A mesma compreensão demonstra Compagnon na obra aqui referida. Esses autores defendem, pois, a literatura pelo que ela traz de contribuição ao mundo, pelo vetor ético que também a constitui, e negam que a arte valha simplesmente por si mesma, como mundo totalmente autônomo e unicamente objeto de contemplação. Retomemos, especificamente, algumas das funções da literatura defendidas por Todorov e Compagnon. Para o último, A literatura deve ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns dirão até mesmo único – de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distante de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que outros são muito diversos e que seus valores se distanciam de nós. (2009, p.47). No mesmo sentido, defende Todorov: “A leitura da literatura tem a ver com o encontro com outros indivíduos [...] Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo” (2010, p. 81) É comum lermos romances, contos e poemas, e nos identificarmos com os homens representados; sermos afetados por seus destinos e assumirmos momentaneamente como nossos os seus sofrimentos e alegrias. Assim, a literatura faz com que tomemos consciência da diversidade humana e histórica e aprendamos a respeitar o outro na sua diferença. O que nos dá não é um novo conhecimento abstrato, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós, pois somos levados a pensar e sentir adotando o ponto de vista dos outros. O horizonte último dessa experiência não é a verdade científica, mas o amor, forma suprema de ligação humana. Compagnon defende também: a literatura nos liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida – a nossa e a dos outros – [...] Constitutivamente oposicional ou paradoxal – protestante, reacionária no bom sentido, ela resiste à tolice não violentamente, mas de modo sutil e obstinado. Seu poder emancipador continua intacto, o que nos conduzirá por vezes a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 85 querer derrubar os ídolos e mudar o mundo, mas quase sempre nos tornará simplesmente mais sensíveis e mais sábios, em uma palavra, melhores (2009, p.50). Todorov (2010), por sua vez, lembra que a literatura nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela jamais conclui, mas fica aberta. Visa menos enunciar verdades que a introduzir em nossas certezas a dúvida, a ambiguidade e a interrogação. Enquanto a informação é perecível e momentânea, o discurso ficcional pode “criar tempo” sobre os acontecimentos a partir da projeção de imagens sobre eles, alargando os seus sentidos e intensificando os seus efeitos. O mundo literário é, por excelência, o mundo da imaginação, fundamentado, principalmente, num discurso oblíquo, que fala por metonímias e metáforas, e ativa o complexo intelectual e emocional do leitor. Desse modo, o estabelecimento dos sentidos do texto literário exige uma participação ativa do leitor, que não a simples decodificação, um envolvimento mais profundo e prolongado com o processo de leitura. Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é simplesmente a experiência humana. No entanto, enquanto a filosofia maneja conceitos, a literatura se alimenta de experiências singulares. A primeira favorece a abstração, o que lhe permite formular leis gerais; a segunda preserva a riqueza e a variedade do vivido. Os propósitos dos filósofos têm a vantagem de apresentar proposições inequívocas, ao passo que as metáforas do poeta e as peripécias vividas pelas personagens do romance ensejam múltiplas interpretações. Quer dizer, a literatura é uma forma de conhecimento que privilegia em seu exercício a liberdade, o lúdico, o múltiplo. Ao dar forma a um objeto, um acontecimento ou um caráter, o escritor não faz a imposição de uma tese, mas incita o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe, deixando, portanto, seu leitor livre, ao mesmo tempo que o incita a se tornar mais ativo diante do texto. Lançando mão do uso evocativo das palavras, do recurso a histórias extraordinárias, aos exemplos e aos casos singulares, a obra é capaz de gerar um tremor de sentimentos, abalar nosso aparelho de interpretação simbólica, despertar nossa capacidade de associação e provocar um movimento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempo depois do contato inicial (TODOROV, 2010, p. 78). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 86 É essa relação estreita e íntima do leitor com o texto literário e seus efeitos que Todorov e Compagnon estão valorizando, senão vejamos esta confissão de Todorov: Não posso dispensar as palavras as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas me permitem dar forma aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo de pequenos eventos que constituem minha vida. Elas me fazem sonhar, tremer de inquietude, ou me desesperar. Através dela, descubro uma dimensão da vida somente pressentida antes porém a reconheço imediatamente como verdadeira (2010, p. 75-76). Tanto Todorov quanto o leitor comum, inclusive aquele que recorta e posta passagens literárias na internet, estão buscando nas obras aquilo que pode dar sentido às suas vidas. Afinal, quem, estando totalmente mergulhado no mundo ficcional de determinada obra, temporal e espacialmente delimitado nas fronteiras da ficção, nunca se deparou com um fragmento que fala diretamente à sua experiência? Quem nunca se surpreendeu diante de um arranjo de palavras e imagens que parece lhe tocar de maneira especial, transcender o mundo criado e atingir diretamente o seu mundo? Quando falamos que as obras de Guimarães Rosa e Machado de Assis assumem uma dimensão universal é justamente por essa ligação que a linguagem de suas obras permite estabelecer com as verdades humanas mais essenciais. Quem nunca percebeu, num poema, explicados, de maneira tão reveladora, seus sentimentos mais íntimos? Em “Amor é fogo que arde sem se ver”, por exemplo, Camões tenta definir, através do jogo de imagens contraditórias, um dos nossos sentimentos mais complexos, cujo poder todos sentimos, mas cuja explicação definitiva ninguém tem. Manejando engenhosamente os recursos que a língua oferece, Camões cria uma explicação convincente desse sentimento intraduzível, uma explicação que não é como a da Psicologia, nem como a da Filosofia ou da Medicina, mas cuja verdade ninguém ousa negar, porque tem a ver com nossa experiência mais íntima e mais profunda. Isto tudo aqui dito, que pode parecer óbvio, nem sempre é salvaguardado na prática. Tanto é assim que teóricos do nível de Compagnon e Todorov precisam insistir no assunto. A literatura tem uma função social específica na sociedade, na medida em que complementa a verdade da ciência em busca de uma melhor compreensão do homem e do mundo e contribui para uma sabedoria mais ampla. Valorizar esse potencial da literatura é o modo mais fácil de conquistar leitores. O papel GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 87 do professor de Letras é, sobretudo, o de ler extensiva e qualitativamente o texto literário com o aluno, ativando sua imaginação e sensibilidade. Quando o aluno entender que a literatura – pela forma como explora os temas – aprofunda a sua visão do mundo, direciona o seu olhar para outros horizontes e explica alguns dos seus sentimentos mais íntimos, certamente as duas horas semanais dirigidas ao contato com a literatura na escola transformar-se-ão em muitas mais, dependentes apenas do desejo e da curiosidade dele. LITERATURA? PRA QUÊ? / LITERATURA FOR WHAT? Abstract: Admittedly, the space of literature in schools has decreased. Few students say they like literature, and society at large does not recognize the value of literature. How to combat this reality and enhance the reading of literary texts? What is even the role of literature in our lives and in society? How can it contribute to the formation of a historical consciousness, ethics and morals? These are the questions of this paper. To answer them, I dialogue with the texts A literatura em perigo (2010), by Tzevetan Todorov, and Literatura para quê? (2009), by Antoine Compagnon. The problem may be in the focus that is given to literary studies at school, forgetting of the intimate relationship between literature and world, between literature and the reader. Keywords: teaching literature, literature functions, relationship between literature and world, between literature and the reader. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009. COSTA LIMA, Luiz. Vida e mimesis. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. HERMANN, Nadja. Ética e estética. A relação quase esquecida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. TODOROV, Tzevetan. A literatura em perigo. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 88 O TEXTO LITERÁRIO: UM OBJETO DE PRAZER Maria Heloísa Martins Dias – UNESP 1 Resumo: Uma das preocupações centrais do ensino de literatura é, sem dúvida, seu objeto. Defini-lo e explicitar a metodologia crítica a ser colocada em prática são tarefas fundamentais do professor, o que significa ter em mente conceitoschave como as noções de texto, contexto, história literária, recepção, gêneros, entre tantas outras. O mapeamento destas e outras questões a serem abordadas nos estudos literários é o que norteará nossa discussão, para a qual selecionamos três poemas (“Tecendo a manhã”, “Mais dia menos dia” e “Corte e dobra”), de João Cabral, Nelson Ascher e Amílcar de Castro, respectivamente. A partir de considerações sobre esses textos e levantando alguns aspectos teóricos a servirem como motivação ao aluno, buscamos tornar claro o que entendemos pela abordagem do texto literário e a importância que ele assume no ensino de literatura. Roland Barthes, Chklóvski e Adorno, entre outros autores, constituem o apoio crítico-teórico com que contamos em nosso percurso. Conforme iremos demonstrar, é preciso desmitificar a ideia de que o texto (ou melhor, a textualidade) é um espaço fechado ou desligado de referentes externos; ao contrário, sua estrutura composicional ressalta-se como universo para tornar mais densas e ricas suas relações com outros espaços e linguagens. Palavras-Chave: Texto literário. Ensino. Abordagem metodológica. (Con)textos. Ao falarmos em texto literário estamos priorizando algo específico, ou seja, não estamos pensando na literatura como ciência ou sistema e sim em um objeto ou produto desse sistema. A esfera mais ampla, a da ciência literária, é um horizonte que não se pode perder de vista, claro, mas justamente por sua natureza ser genérica e de longo alcance é que se torna necessário recortar essa amplitude. Portanto, podemos pensar no texto literário como um espaço a ser ocupado pelo nosso olhar crítico, conscientes de que estamos tomando apenas parte de uma produção e não esta inteira. Além disso, estamos considerando algo concreto, a realização de uma linguagem e não conceitos abstratos ou idéias genéricas, nem categorias; enfim, o texto literário tem uma dimensão material – a concretude de sua linguagem – bem como uma localização espácio-temporal. Essas reflexões se 1 UNESP - Universidade Estadual Paulista – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Depto de Estudos Linguísticos e Literários, São José do Rio Preto/SP, Brasil. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 89 justificam para tornarem claro o campo de nosso interesse, mais ainda necessário se nosso propósito tiver uma natureza didática. Lidar com literatura é um gesto fascinante, desde que situemos bem esse fascínio e os objetos postos em relação, pois literatura constitui um universo múltiplo e diversificado de elementos. Para um curso, por exemplo, principalmente em nível de graduação, é fundamental definirmos o objeto que tomaremos para discussão e o diferenciemos de outros que poderiam ser também objeto de reflexões. Assim, por exemplo, há profundas diferenças entre história literária, gêneros literários, a literatura portuguesa ou a brasileira, os documentos literários, a bio(biblio)grafia literária, a recepção da literatura, as edições críticas, a literatura e o mercado, a fortuna crítica da literatura, a literatura e outras artes ou midia etc. Se o curso se intitular, por exemplo, Poesia Brasileira, é evidente já o destaque para algo específico e será preciso definir que propósitos serão buscados e por meio de que estratégias/caminhos se poderá chegar até eles. Será o curso em torno da poesia, enquanto linguagem específica, ou de uma história literária em que ela estaria inserida? As produções poéticas serão examinadas em relação a movimentos estéticos determinados ou esse diálogo entre texto e estética se fará de outra forma? O critério cronológico será abolido em favor de uma liberdade total no trato com a poesia brasileira? Haverá estudos comparativos ou interartísticos? O contato com a poesia se abrirá também à atividade de criação por meio de oficinas literárias? Enfim, as possibilidades de abordagem são muitas. Cabe selecionar a que melhor se ajusta aos propósitos do curso a ser ministrado. Outro ponto a ser discutido é o preconceito que envolve a expressão “texto literário”, levando este a ocupar uma incômoda posição nos programas pedagógicos. Ou melhor, a não ocupar posição nenhuma, como muitas vezes se observa. O incômodo vem da dificuldade que professores e alunos têm para encarar essa coisa que parece um monstro e, para eles, jamais será como o obscuro objeto do desejo tal qual o cultuado pelo cineasta Buñuel. Ao contrário, ninguém quer aceitar o desafio de penetrar na obscuridade, por mais sedutores que sejam os mistérios (revelações?) dessa aventura. Parece sempre mais fácil (e cômodo) partir de posições conhecidas e seguras, já convencionadas pela tradição, do que ficar atônito, com o texto nas mãos, corpo que nos fita esfíngico... Estou defendendo aqui a necessidade de nos colocarmos diante do texto com aquela espantosa (mas não ingênua) sensação de quem se GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 90 dispõe a ver o objeto e não a reconhecê-lo2. Com ou sem a postura rigorosa do formalismo russo, o que nos interessa é a possibilidade que este nos legou para lidarmos com o objeto artístico, de modo que nossa abertura seja fundamental para captarmos a singularidade (e densidade) dessa linguagem. Quando falo em singularidade, não estou querendo apontar para a autonomia da escrita literária, com a qual aquela noção é geralmente confundida. Pelo contrário, penso que o singular está justamente nas soluções criativas (construtivas) postas na linguagem para poder fazer figurar suas relações com o real. Portanto: não a autonomia do objeto (texto) mas a simulação desse corte ou de sua emancipação do real histórico graças às estratégias de construção engendradas pela linguagem. A velha e superada discussão sobre o vínculo entre texto x contexto não tem mais razão de ser. O texto é por natureza contextual, na medida em que a rede de relações tramadas em sua estrutura3 é por demais complexa para ser considerada um em-si auto-suficiente a falar para si mesmo. Daí ser descabida a preocupação em estabelecer a relação texto/contexto, pois a própria forma com que o texto se oferece como linguagem é a de um corpo dinâmico, cuja fala se entretece de propósitos e funções colocando em relevo a sua densa, intrigante materialidade. Eis o que nos cabe decifrar, por meio do gesto crítico-analítico. Dizendo de outro modo e sintetizando, é preciso considerar que o (con)texto está lá, diante de nós, ambos (o real da linguagem e aquilo para o qual ela aponta) corporificando-se e produzindo sentidos no espaço que os coloca em tensão. Não há um fora e um dentro, mas esse lugar utópico (atópico), uma “impossibilidade topológica” de que a literatura não quer abrir mão, conforme Roland Barthes pontua em sua Aula. Se, como admite o crítico francês, “a literatura é categoricamente realista, na medida em que ela tem o real por objeto de desejo”, “ela é também obstinadamente irrealista; ela acredita sensato o desejo do 2 Nunca é demais lembrarmos o clássico alerta de Chkolvski: “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento (...) o procedimento da arte é o da singularização dos objetos e consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção.” (1973, p. 45). 3 É imprescindível considerarmos a etimologia de texto, recuperando, assim, o que tantos já fizeram em seus estudos sobre literatura: tecido, entrelaçamento de fios, textura, enfim, uma trama a exigir atenção de quem dela se aproxima a fim de desentrançar essa rede (e também não ter medo de ser enredado por ela). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 91 impossível.” (BARTHES, s.d.,p.22). Desejar o impossível é existir nessa margem periclitante e desafiadora do deslize permanente. Mas não porque a linguagem foge ou recusa o real e sim porque o vai construindo a partir da própria imprevisibilidade (e impossibilidade) com que o busca. Para tentarmos ganhar um pouco mais de objetividade (se é que tal categoria se presta à literatura...), podemos ilustrar esse espaço do dizer em que não nos cabe delimitar o dentro e o fora, o histórico-social e o textual; eles já vêm entretecidos na teia do discurso poético. Todos conhecemos o antológico “Tecendo a manhã”, poema de João Cabral de Melo Neto, contido em seu livro A Educação pela pedra (1966). Recuperemos o texto, mas sem a preocupação de analisá-lo, pois ele já foi objeto de numerosas abordagens. Tecendo a Manhã Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. 2. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. (MELO NETO, 1979, p.17). Ao lermos os dois primeiros versos do poema de Cabral, imediatamente nos damos conta de que estamos diante de uma afirmação conhecida, um dizer proverbial, portador de um sentido arqui-sabido e pertencente à tradição oral: o trabalho coletivo é mais frutuoso e produtivo do que o individual. Acontece que essa verdade, que faz parte de um saber comum e existe como um estereótipo a reger o comportamento social, é tão-somente o ponto de partida ou o pré-texto para um outro “texto” ir-se impondo e construindo novos sentidos. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 92 Assim, aquilo que a ética estabelece como convenção ou lógica habitual (a realidade se faz por meio de uma ação solidária) a estética irá transformar num trabalho poético que penetra profundamente em seu próprio tecido para revirar ou mobilizar aquela convenção. Se a fala do poeta tem em mira o tecido social, este só desponta como realidade para o leitor porque construído por uma consciência de linguagem que vai tecendo suas formas próprias de intervenção criadora. E uma intervenção extremamente singular, inusitada, personalíssima. É só observarmos a estranha sintaxe elíptica criada entre os versos 3 e 4 e entre os versos 4 e 5; a teia de signos resultante da repetição dos vocábulos “galo”(s) e “grito”(s); ou então, o jogo paronomástico que enlaça os signos (“entre todos”, “entrem todos”, “entretendendo”, “tenda”, “erguendo”, “toldo”, “em tela”...); ou ainda, a colocação suspensa da manhã, figurando entre parênteses como ícone do toldo ou balão que se ergue. Enfim: parece que a realidade da manhã ou aquele campo de referência social aludido no início do poema se dissipa ou se torna etéreo, leve, para que outro corpo ganhe densidade e possa se erguer diante do olhar do leitor: o “balão”-poema tecido pelo poeta para entregá-lo à fruição da leitura. E é então que o paradoxo se instala e nos convida a refletir: se a fala poética de Cabral enuncia a consciência (ou ideal) de solidariedade na fabricação do mundo, o modo como a escrita vai operando esse projeto em sua arquitetura mais íntima – a da linguagem – acaba por revelar o oposto daquele projeto, desmentindo-o. Isto porque o texto, tecido com tanta argúcia e atenção à sua costura de fios, resulta mais dessa singularidade e criatividade individual que de um operar coletivo. Afinal, a sintaxe peculiar do discurso do poeta, o ritmo encadeado e ao mesmo tempo elíptico dos versos, a materialidade corpórea dos signos que nos vão enredando na leitura, tudo isso jamais corresponde a um “tecido tão aéreo” “que (...) se eleva por si”, como dizem os versos finais. Nada mais enganoso do que essa leveza ou soltura de um corpo verbal, como se ele planasse livre de armação, quando, na verdade, a sua montagem vem se dando desde o início do poema, por meio da escolha cuidadosa de elementos e de uma postura exigente do sujeito ao montá-lo. Entendamos o sentido fabricado pelo poema: todos entram na feitura que dará corpo ao real e o transformará em ação social. Entretanto, e eis o mais curioso, é graças à solução engenhada pela subjetividade lírica, no silêncio de seu canto poético tramado com tanta astúcia e GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 93 solidão, que a luz se eleva, o texto se faz, o fato se dá. Aí, sim, cabe ao leitor assoprá-lo mais ou impulsioná-lo com sua força sensível, crítica. Trinta anos mais tarde, em sua obra de 1996 (Algo de sol), Nelson Ascher parece ter dado outra forma a esse mesmo motivo lírico em seu poema “A outra voz”: Não há voz que intricada / possa existir sem outra / capaz de se imiscuir / nas circunvoluções // do cérebro que as cordas / vocais enredam – cãibra / de cobra enrodilhada – / no abstruso travalínguas; // torna-se a voz, até / para si mesma, audível / se, articuladamente, / mais que um eco inócuo, // revém distinta em outra / que, ao decifrá-la, estreite / seus nós, emaranhando- / -se as duas num diálogo.” (ASCHER, 1996, p.14). Seria interessante que o poema acima transcrito servisse como mais um objeto a ser analisado, atendendo a uma abordagem que considerasse o jogo intertextual propiciado pelo próprio texto poético de Ascher. Entretanto, não nos cabe aqui realizá-la, apenas fica o convite para quem o desejar. Como se pode ver, tudo dependerá dos objetivos a serem atingidos pelo estudo da literatura: se a intertextualidade for o propósito, então o poema “A outra voz” é uma sugestão que poderá interessar a um estudo comparativo. Voltando àquela voz individual-coletiva tecida no poema de Cabral, valeria a pena lembrarmos também mais uma voz, a de Adorno quando discute como se dão as representações sociais no modo lírico, em sua famosa conferência sobre as relações entre lírica e sociedade: A expressão do individual na lírica deve transcender duplamente o individual: pelo mergulho nele, descobrindo o subjacente, o ainda não captado nem realizado no social; e pela expressão, encontrando através da forma uma participação no universal. O paradoxo básico da lírica – ser subjetividade objetivada – corresponde ao duplo caráter da linguagem que a objetiva: expressão do individual subjetivo e meio (mediação) dos conceitos (necessariamente genéricos). (KOTHE, 1978, p.166). Já que tocamos na noção de sociedade, não dá para deixarmos outra de lado, a da globalização, afinal, característica de nossa cultura contemporânea, em que o social é apenas uma de suas faces. Não cabe aqui ficarmos discutindo aspectos específicos da globalização, interessanos examinar em que sentido certos mitos presentes nessa configuração cultural podem se articular com o estudo da literatura. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 94 Como disse no início, o recorte sempre se faz necessário, desde que tenhamos consciência de sua inserção em um âmbito mais amplo. A questão fundamental, porém, é não comprometer a percepção do singular em nome de categorias abrangentes, o que se pode evitar, a meu ver, por meio do trato cuidadoso dado a essas categorias, examinando-as não como dados em si mesmos ou presos à sua natureza generalizante, mas sim em sua funcionalidade relativa a outros sistemas. Desse modo, as esferas política, histórica, social, cultural etc, embora façam parte de um grande corpo ou tecido globalizado, não podem ser consideradas por uma perspectiva única, por mais que o espírito de totalidade e a consciência do múltiplo tentem se vincar como direção. Mas, onde se insere a literatura nesse questionamento? Por que tocar nessas questões? Porque a abordagem do texto literário não oculta nosso posicionamento frente a um cenário mais amplo de que fazemos parte, queira a literatura ou não. Isso significa dizer que o trato com esse objeto específico – o texto ficcional ou poético – não nos afasta da dimensão global, característica do mundo contemporâneo. Porém, o modo como se dá essa relação é que torna complexa tal proximidade. Acredito, conforme venho refletindo e ilustrando em diversos momentos, como nos artigos “A literatura portuguesa e o renascer da fênix” (2002) e “Antenas e plugs na captação da linguagem literária” (2007), que a leitura atenta da literatura, sobretudo quando o que está em foco são suas produções concretas (narrativas, poemas, peças teatrais e outras produções textuais como propagandas, banda desenhada, roteiros cinematográficos), não precisa partir de pressupostos teóricos e posições ideológicas pré-determinadas para a compreensão desses objetos. Ou dizendo de outro modo: por mais que estejamos de posse de toda uma aparelhagem conceitual e antenados às demandas da cultura tecnológica, não precisamos mostrar serviço por meio da aplicação desse instrumental ou dessa conscientização histórica; esse universo irá aparecer, certamente, sem ser necessário colocá-lo como pré-determinante ou part pris. Não há urgência maior que a do próprio texto que, com o imprevisível de suas imagens e o inusitado de sua organização discursiva, mantém um diálogo vivo e inacabado com o leitor, tragando-o como uma ressaca para o seu próprio corpo, móvel e traiçoeiro. Exemplifiquemos. Outro texto do poeta brasileiro Nelson Ascher, “Mais dia menos dia”, contido em sua obra Algo de sol, mencionada anteriormente, pode nos ajudar nessa discussão. Eis o poema: Coágulos de perda GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 95 de tempo, adiamento, atraso e espera, ou seja, minúsculas metástases de caos se interpõem entre - irrelevante qual dos dois corre na frente – a tartaruga e Aquiles (o débito na conta; no trânsito, a demora; um ácido no estômago; frente ao correio, a fila; o mofo no tecido; nos músculos, a inércia; cupins na biblioteca; sob o tapete, o lixo; um óxido no ferro; nas pálpebras, o sono) e, como que aderindo, à guisa de entropia, ao âmago dos nervos, embotam mais um pouco o ritmo do arraigado relógio biológico. (ASCHER, 2001, p. 15). Convenhamos, não é difícil perceber que na poesia de Nelson Ascher desponta um “retrato” do tempo atual em que estamos inseridos, com as consequências ou implicações dessa inserção em nossas ações e sentimentos. Difícil, porém, é percebermos tal realidade focalizada pelo poeta como se descolada dessa coisa densa, corpórea e intrigante em que ela se materializa – a textura verbal. Quando topamos com a expressão inicial alusiva à temporalidade, “coágulos de perda / de tempo”, por exemplo, de saída enfrentamos o desafio dessa metáfora a nos cobrar decifração: o concreto e o abstrato tramam suas forças simbólicas para que não passemos imunes pelo efeito de sentido que delas advém. Qual sentido? O de que GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 96 obsessão doentia pelo tempo em nossa sociedade pode até nos paralisar, coagulando nossa própria percepção e sensibilidade. Acontece que esse enunciado, construído por nossa leitura, aparece no poema sob a forma de uma enunciação totalmente outra, em que não há como ignorar ou passar de imediato pelas “min sculas metástases // de caos”, habilmente colocadas pelo sujeito poético para figurativizar a proliferação concreta e deformante desse mal em que vivemos. Ou seja: perceber os efeitos danosos do tempo sobre nós ocorre simultaneamente à percepção de outros efeitos que a eles se sobrepõem: os da própria funcionalidade da linguagem para torná-los visíveis. Outro exemplo: para falar sobre a inutilidade de buscarmos posições absolutas, já que antes e depois se tornam relativos na corrida desordenada do tempo, o poeta não só utiliza as metáforas cristalizadas de Aquiles e da tartaruga como também cria concretamente, em seu discurso, um obstáculo (os versos entre travessões) que distanciam os elementos e interrompem a fluência da leitura. É como se tal estratégia de construção nos obrigasse a parar para a captação desse ritmo descontínuo que nos sobressalta – o do texto e o do mundo. E as táticas envolventes criadas pela poesia continuam no texto de Ascher: agora, por meio dos parênteses que recortam dez versos, são enumerados os efeitos corrosivos da temporalidade em nosso cotidiano, mas de maneira sintética, enxuta e seca, pontuada, onde os segmentos verbais atuam como verdadeiros golpes diretos em nossa sensibilidade. Desponta o disfórico em diversos elementos: falta de dinheiro, mal-estar físico, trânsito, espera, deterioração, desgaste, cansaço, porém, o que interessa à leitura é a maneira como se dá a recolha do múltiplo nesse espaço gráfico que os parênteses condensam. Já nos últimos seis versos, fora dos parênteses, o conceito de entropia aparece, sugerindo a imagem de internalização caótica que afeta até mesmo nosso íntimo, corpo e mente guiados pelo “relógio biológico” em compasso com a desordem exterior. Note-se como esse ritmo entrópico se materializa no texto, graças ao encadeamento (enjambement) entre os versos, complementando-se sintaticamente como uma só engrenagem. Conclusão: mesmo que o texto poético nos fale sobre um cenário em que imperam valores de um mundo massificado e reificador, tal cenário ganha visibilidade graças à arquitetura da linguagem que o projeta. Se a pressa e a impaciência são as armas com que enfrentamos a realidade globalizada, o texto literário exige de nós outro tratamento; não podemos passar por ele com pressa, nem ficarmos impacientes para GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 97 encontrar logo respostas, muito menos desprezarmos a trama cuidadosa de sua construção. Se assim o fizermos, estaremos compactuando com o sistema tecnológico, insensível para com as sutilezas da arte. Para esse ser perverso, o trânsito permanente e rápido, as trocas, o imediatismo de lucros, a mais-valia, a produtividade desenfreada e jogo de interesses é o que conta. Mas isso pouco interessa à literatura: neste espaço, o recorte atento e demorado para a fruição de algo saboroso e fascinante é o que nos interessa. Outro ponto deve ser considerado nestas reflexões sobre o texto literário. Já falamos anteriormente sobre a noção de texto extraída das concepções barthesianas, em especial as que apontam para a natureza gerativa e/ou produtiva da linguagem e os efeitos dinâmicos dessa produção. Caberia agora assinalarmos também as contribuições que as teorias da comunicação e informação, inseridas num processo semiológico amplo, trouxeram à noção de texto, tornando este uma realidade muito mais abrangente, rica de implicações. Melhor seria falarmos de textualidade, termo que vem sendo empregado em diversos contextos, a partir da possibilidade de se esgarçar seu atrelamento à natureza estritamente verbal da linguagem. Assim, a textualidade corresponderia a uma prática ou performance de linguagem cujo fazer se dá essencialmente como interação objeto/observador, o que significa uma construção em processo na qual se conjugam os gestos de escrita, leitura e releituras. Por outras palavras, a textualidade implica necessariamente os mecanismos epistemológico e estésico (artístico) na captação do objeto pelo sujeito, acentuando-se o caráter crítico-criativo da recepção, numa espécie de cumplicidade constitutiva entre sujeito e objeto, ambos corporificando-se ou ganhando uma textura nessa dinâmica relacional. Digamos, enfim, que a textualidade não é o objeto/texto em si mesmo, mas o modo como ele se oferece ao olhar que o re-configura. Mais um dar-se-a-ver do que o visto. Pensando nessa dimensão de textualidade, teríamos de considerar os diversos objetos textuais, de natureza verbal ou não, em cujo corpo se trama uma funcionalidade ou operar artístico com efeitos de sentidos a serem captados pelo receptor. Poesias, narrativas, cartazes publicitários, cenas cinematográficas, vitrais, pregões públicos, fotos, desfiles, esculturas, quadros... cada um desses (e inúmeros outros) objetos expostos ao nosso olhar oferece-se como textualidade, a ser analisada conforme a sua própria trama constitutiva de elementos em consonância com a aparelhagem sensível e crítica de quem a captura. Nosso objetivo, aqui, não é mostrar esses diversos textos/objetos artísticos por meio da GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 98 análise, pois nosso foco é o texto literário, ou seja, estamos considerando uma textualidade verbal e, mais especificamente, uma de suas modalidades – a linguagem poética. Acontece que, conforme já observamos, nesse imenso e heterogêneo tecido cultural em que vivemos, a poesia é uma das faces a interagir com inúmeras outras, o que implica dizer que sua textualidade não se encerra em si mesma, ou melhor, pode reclamar outras com as quais dialoga, enriquecendo, desse modo, o processo semiológico. Para exemplificar, podemos pensar num poema como “Corte e dobra”, de Amílcar de Castro, mais conhecido como escultor, autor de volumosas peças de alumínio e ferro, colocadas em diversos locais em especial em Belo Horizonte, sua cidade de origem. Leiamos o texto: Corte e Dobra Toda superfície cria mistério. O muro divide, proíbe, estanca, não passa, ou bloqueia: é tumba, é campa, é tampa – não desce e não sobe. Esse não permanente aguça e lança: e além? e embaixo? e em cima? e dentro? e fora? Cria o prazer de romper, atravessar, conquistar o outro lado o ar, o ver e amanhecer no mesmo horizonte. Quando corto e dobro uma chapa de ferro ou somente corto pretendo abrir um espaço ao amanhecer na matéria bruta luz que vela e revela a comunhão do opaco com o espaço dos astros GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 99 espaço que descobre o renascer redimindo a matéria pesada na intenção de voar O poema de Amílcar tem nítido propósito programático, pois define e conceitua a sua arte, ou melhor, a sua poética: a poesia, nesse caso, serve como suporte para o artista se posicionar e relação ao material com que opera. Tanto as palavras, portanto, a linguagem verbal, quanto a matéria concreta – chapa de ferro – portanto, a linguagem plástica, coabitam no espaço do texto poético onde vão se traçando os caminhos e reflexões sobre o fazer. A preocupação central do artista é a de poder “abrir um espaço” (v.19), rompendo as interdições e o mistério, a fim de “conquistar o outro lado” (v.12), o que só se torna possível a partir de sua ousadia em dobrar, literalmente, o material difícil de manusear. Corte e dobra, título do poema, é uma expressão ao mesmo tempo literal e metafórica: abrir fendas e fazer dobras nas chapas metálicas é um gesto construtivo do escultor, seu procedimento usual, mas é também indício de atitudes tansgressoras, por meio das quais o real é burlado e ulrapassado em seus limites lógicos. Impor a presença de formas e volumes imensos que desafiem o esperado e desacomodem a percepção, obrigando-a a participar ativa e criativamente da feitura dos objetos – eis o que a arte de Amílcar nos oferece. Mas e o poema? Como as palavras dialogam com a escultura? Não é difícil percebermos, por exemplo, que corte e dobra acontecem figurativamente no texto, já que a primeira estrofe (ou chapa?) se projeta no espaço à esquerda da página, enquanto a segunda estrofe (outra chapa?) parece se dobrar, projetando-se à direita. Também os versos vão se deslocando, ocupando espaços ora à direita, ora à esquerda, o que funciona como iconização do movimento realizado no material pelo poeta-escultor. Outros recursos estéticos concretizam o diálogo entre a poesia e a escultura, como as interrogações dos versos 8 e 9 ( e além? e embaixo? // e em cima? e dentro? e fora?), as quais atuam como instigações à leitura e interpretação do objeto artístico; é como se representassem o movimento do observador ao redor das peças-esculturas de Amílcar, tentando descobrir o que há no e para além do espaço criado por elas. Assim, o poema parece pulsar não apenas como linguagem verbal mas também GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 100 como uma peça concreta, aberta à visitação pelo olhar crítico que o vai remodelando. Como vemos, a noção de texto literário, ao contrário do que muitos pensam, não se limita a uma escrita emoldurada pelas palavras e fixo nesse suporte que o encerra nos limites do discurso verbal. Conforme procurei mostrar, as possibilidades criadas pelo texto são inúmeras, justamente pela polivalência do signo artístico em seu funcionamento; esse “tecido” (lembremos a célebre definição de Barthes4) não só é feito de muitos fios entrelaçados como também esgarça sua textura para solicitar outros tecidos que o completem. É essa (in)completude que torna o texto literário um objeto de prazer, levandonos a constantes descobertas. THE LITERARY TEXT: A PLEASURE OBJECT ABSTRACT: One of the central concerns of the teaching of literature is undoubtedly its object. Set it and clarify critical methodology to be put into practice are fundamental tasks of the teacher, which means keep in mind keyconcepts such as about of text, context, literary history, reception, genres, among others. The mapping of these and other issues to be discussed in literary studies is what will guide our discussion, for which we selected poems by João Cabral (“Tecendo a manhã”), by Nelson Ascher (“Mais dia menos dia”) and Amilcar de Castro (“Corte e dobra”). From these considerations and underscoring some theoretical aspects to serve as student motivation, we seek to make clear what we mean by approach of literary text and the importance that it assumes in the teaching of literature. Barthes, Chklóvski and Adorno, among others, are the critical support in our journey. As we will show, we need to demystify the idea that the text (or rather, textuality) is an enclosed space or disconnected from external reference; on the contrary, his compositional structure emerges as the universe to make more dense and rich its relations with other spaces and languages. Key-words: Literary text. Teaching. Methodological Analysis. (Con)texts. Referências Bibliográficas: 4 “Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo (...)”. In: O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.82-83. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 101 ASCHER, N. et alli. Poetas na biblioteca. São Paulo: Fundação Memorial da América latina, 2001. BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, s.d. ________ O prazer do texto. SãoPaulo: Perspectiva, 1977. CASTRO, A. www.amilcardecastro.com.br CHKLOSVKI, V. A arte como procedimento. In: Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973. DIAS, M.H.M. A literatura portuguesa e o renascer da fênix. In: Voz Lusíada. São Paulo: Vida & Consciência/Fundação Calouste Gulbenkian, no 18, 2002, pp.57-61. ________. Antenas e plugs na captação da linguagem literária. Simpósio de Estudos em Letras: congregando linguagens. Cassilândia: UMS, I SIEL, 2008, pp.226-231. KOTHE, F. Benjamin & Adorno: confrontos. São Paulo: Ática, 1978, p.166. MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. 5 ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1979, p.17. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 102 A LITERATURA ESTÁ EM CRISE? Germana Maria Araújo Sales – UFPA 1 RESUMO: Neste ensaio, pretendo discutir uma questão polêmica sobre a crise na e da Literatura, a partir das reflexões de Mário Vargas Llosa e Antonio Candido, bem como revisitar o conceito do que é Literatura, ao tomar como referencial as ponderações de João Alexandre Barbosa, que fundamenta sua argumentação nas postulações de Northrop Frye, Fernando Pessoa e T. S. Eliot. A partir desse referencial teórico, pretendo debater acerca da tensão existente entre o literário e o comércio livreiro atual no Brasil, a partir de pesquisas realizadas em três livrarias que disponibilizam seus catálogos online – Livraria Saraiva, Livraria Cultura e Livraria da Travessa – e, com base nos dados obtidos por meio das listas dos livros mais vendidos, ou mais populares, conjecturar sobre a questão proposta inicialmente: há uma crise na Literatura? Tal indagação percorrerá toda a discussão, com base também na querela do fim do livro, hipótese cogitada, no século XIX, por Machado de Assis, diante do advento do jornal e, atualmente por Bill Gattes, dono da Microsoft, que pretende, antes de morrer, ver o fim do livro. Palavras-Chave: Literatura. Livros. Leitores. Crítica literária. Comércio livreiro. A crise na/da Literatura A literatura é uma atividade sem sossego, afirma Antonio Candido, em seu texto “Timidez do romance”, quando disserta sobre os questionamentos e a validade desta matéria, sobre a qual avaliam desde a corrupção dos costumes ao afastamento das tarefas sérias, o que faz com que a literatura nunca esteja tranquila e necessite justificar-se, já que foi considerada o “disfarce estratégico da verdade”. A preocupação em torno da validade da literatura ou se há uma crise na literatura tem sido motivo de preocupação e apreensão de diversos escritores e estudiosos do assunto, além de Antonio Candido. Mario 1 UFPA – Universidade Federal do Pará. Faculdade de Letras/Instituto de Letras e comunicação. Belém – Pará – Brasil. 66816-830 – [email protected]; [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 103 Vargas Llosa ocupa-se do assunto, quando reflete que a literatura, de acordo com um entendimento comumente difundido, constitui uma atividade reportada ao entretenimento, com reconhecida utilidade, mas um “ornamento que se podem permitir os que dispõem de muito tempo livre para a recreação”, contudo que pode ser sacrificado sem maiores escrúpulos, pois não se institui como uma obrigação imprescindível à sobrevivência (LLOSA, 2009, p. 19). Por esse motivo, Vargas Llosa, que também é romancista, disserta em favor da ideia de que a literatura é “uma das ocupações mais estimulantes e fecundas da alma humana, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres” (LLOSA, 2009). Llosa se posiciona, portanto, contra a ideia de que a literatura seja um “passatempo de luxo”. (LLOSA. p. 20). A opinião de Mário Vargas Llosa é somada à apreciação de Antonio Candido quando realça a necessidade da ficção na sociedade e distancia a literatura do que pode ser avaliado como um passatempo ou distração elitizada. Entretanto, a preocupação com o fim da Literatura ou sobre a crise na Literatura faz parte, também, da preocupação dos intelectuais, principalmente quando se atrela a permanência da literatura à existência do livro, formato já considerado obsoleto por alguns. Tal inquietação é referida, igualmente por Vargas Llosa, quando relata a declaração de Bill Gates sobre o fim do livro. O empresário afirmou que espera realizar seu projeto mais importante que é “acabar com o papel, e, pois, com os livros, mercadoria que, a seu entender, já é de um anacronismo contumaz” (LLOSA, 2009. p. 25). Embora a argumentação de Bill Gates busque se alicerçar na preservação do meio ambiente, causa estranheza àqueles que vivem dos e para os livros, como os escritores, que teriam aposentadoria forçada, de acordo com Llosa. Embora Gates afirme que tal medida não põe fim à literatura nem à leitura, Llosa não recebe com tranquilidade a ideia de que todo o devaneio e fruição da palavra possam coexistir na tela de um computador, como também não concebe a permanência da leitura com a ausência da intimidade e “isolamento espiritual”, que só o livro, como material, é capaz de promover. O raciocínio acerca do fim do livro é um consequente sepultamento da literatura e todo o arcabouço que a acompanha – escritores, leitores e, inclusive, professores da disciplina –, ocupa a mente das mentes pensantes, desde o século XIX, quando Machado de Assis se perguntou, no ensaio O jornal e o livro, publicado originalmente nos dias 10 e 12/01/1859, no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, se o jornal mataria o GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 104 livro ou se o livro absorveria o jornal. Nem uma coisa nem outra aconteceram. O jornal adquiriu seu perfil e forma com a passagem do tempo, e o livro e a literatura permaneceram sem nenhuma perda de status. Contudo, naquela ocasião, Machado de Assis entendia o jornal como uma “locomotiva intelectual”, uma revolução no mundo social e econômico. Além disso, o temor do romancista estava diante da periodicidade do veículo de comunicação, pois era cotidiano, “reprodução diária do espírito do povo, o espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete, não a ideia de, um homem, mas a ideia popular, esta fração da ideia humana”. E, portanto, diante dos fatos, o livro não teria como competir e muito menos como resistir e sobreviver. Felizmente, dois séculos se passaram e é possível respirar diante das expectativas negativas de Machado de Assis, que felizmente foram falhas, e o livro, bem como a literatura, sobreviveu. Entretanto, as preocupações do romancista não decorriam somente desse aspecto material, mas das questões qualificativas. Em 1865, onze anos após o prognóstico do fim do livro, o escritor fluminense vociferava, em seu ensaio “Ideal do Crítico”, sobre a situação da produção literária brasileira. Machado afirmava, àquela altura, que as boas obras eram escassas e “raras as publicações seladas por um talento verdadeiro” (ASSIS, 1962. p. 11). O lamento do romancista destinava-se a dois aspectos duvidosos de avaliação, como a crítica quase sempre voltada à camaradagem e à ausência de publicações de valor inquestionável. Machado assegurava que as mudanças nessa situação poderiam ocorrer e eram de responsabilidade do crítico: Quereis mudar esta situação aflitiva? Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade, estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, - será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença, - essas três chagas da critica de hoje, ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça, - é só assim que teremos uma grande literatura. (ASSIS, 1962, p. 12) Machado de Assis queixava-se da qualidade das obras literárias, mas reconhecia que tal situação emergia em decorrência da crítica que não era independente, nem imparcial, nem tolerante, nem justa, mas sim parcial e sem condições de urbanidade. Obras literárias em oferta? GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 105 A situação analisada por Machado de Assis não difere muito da circunstância atual, quando os críticos se veem perante uma modalidade de escrita que ameaça a literatura: os livros de autoajuda ou os Bestsellers. O fenômeno de vendas, Paulo Coelho, por exemplo, é um reflexo dessa situação2, pois, enquanto é aclamado pelo público, é rejeitado pela crítica, que afirma não se tratar de literatura, pois seus textos são de uma pobreza franciscana. Além desta conjuntura particular, outra se torna conflitante, pois, além de Paulo Coelho, outros autores vivenciam a mesma experiência e ocupam os primeiros patamares entre os mais vendidos, e as livrarias, local de contato dos leitores com os livros, confundem o meio de campo ao classificar os gêneros, quando expõem quase tudo com a categorização de Literatura. Em meio às ofertas de artigos, como CDs de música ou DVDs de filmes, estão as sugestões de leituras, acompanhadas de algumas referências bibliográficas, constituídas em diferentes categorias, que nem sempre são as mesmas nas distintas lojas. Em 2010, ao realizar uma pesquisa sobre os livros mais vendidos nas livrarias3, verifiquei o catálogo online de três livrarias importantes – Livraria Cultura, Livraria Saraiva e Livraria da Travessa –, e recomendadas aos leitores, sejam iniciantes ou iniciados, a adquirir seus livros. A Livraria Cultura, por exemplo, para ilustrar o catálogo dos livros mais vendidos, nomeia seis especificações, repartidas em dois grupos, nacional e importado: ficção, não ficção, informática, administração, 2 Paulo Coelho se tornou o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Vendeu mais de 140 milhões livros até outubro de 2011, foi lançado em 160 países, é considerado o autor mais traduzido, contabilizando um total de 73 línguas, e o mais celebrado nas redes sociais, com 10,5 milhões de seguidores no Facebook e no Twitter. In: http://www1.folha.uol.com.br. Consultado em 24 de junho de 2012, às 22:32h. Paulo Coelho também foi agraciado com variados prêmios, contabilizando 26 condecorações entre nacionais e internacionais. In: http://www.livrospaulocoelho.com.br/. Consultado em 24 de junho de 2012, às 22:34h. 3 Dados desta pesquisa foram publicados no capítulo: SALES, Germana. ; MENDONÇA, Simone Cristina. “Antonio Candido, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes: considerações teóricas sobre o gênero romance”. In: Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, Silvio Holanda e Valéria Augusti. (Org.). Crítica e Literatura. 1. ed. Rio de Janeiro: De Letras, 2011, v. 1, p. 167-183. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 106 esotérico/autoajuda e infanto-juvenil. No grupo ficção nacional, o site4, curiosamente, exibe traduções de títulos estrangeiros: A breve segunda vida de Bree Tanner, de Stephenie Meyer; Querido John, de Nicholas Sparks; A última música, também de Nicholas Sparks; Diários do vampiro, V.4 - Reunião sombria, de L. J. Smith; Lua azul, de Alyson Noel; Os homens que não amavam as mulheres, de Stieg Larsson; A cabana, de William P. Young; Amanhecer, de Stephenie Meyer; Alice Aventuras de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll; e Kick Ass Quebrando tudo, de Mark Millar e John Romita Jr. O internauta desavisado só descobrirá que esses títulos não são de ficção nacional ao clicar no link referente ao título, quando, então, verificará que se trata de literatura estrangeira5. Já a Livraria Saraiva, por sua vez, expõe duas listas dos livros mais vendidos: livros e livros importados. Na primeira divisão, encontram-se listadas as seguintes obras6: A breve segunda vida de Bree Tanner, de Stephenie Meyer; A cabana, de William P. Young; Querido John, de Nicholas Sparks; A última música, de Nicolas Sparks; e Vade Mecum Saraiva 2010. Na última livraria consultada, a Livraria da Travessa, as listas dos mais comerciados aparecem distribuídas entre os seguintes grupos: artes, ciências, humanidades, saúde, esporte e lazer, literatura e ficção, guias e turismo, infanto-juvenil, línguas e referência. No que tange ao nosso interesse, o rol dos mais vendidos está em destaque na classificação de “Literatura e Ficção”, que considera obras biográficas, livros de ficção, livros de poemas, literatura brasileira e estrangeira, como parte da classe literatura e ficção. Na listagem constam: Múltipla escolha, de Lya Luft; Juventude: cenas da vida na província 2, de J. M. Coetzee; Bussunda: a 4 Este acesso foi em 20 julho de 2010 na Livraria Cultura, na página: < http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/maisv/maisv.asp?nassunto=1& nveiculomv=4&sid=98214522812720656023864832&k5=186D9E67&uid= >. 5 A Livraria Cultura indica alguns dos tradutores das obras, como: Patrícia de Cia, tradutora de Querido John; Ryta Vinagre, tradutora de Diários do Vampiro, V. 4 – Reunião Sombria e Amanhecer; Flávia Souto Maior, tradutora de Lua azul; Paulo Neves, tradutor de Os Homens que não amavam as mulheres; Maria Luiza Borges, tradutora de Alice – Aventuras de Alice no país das maravilhas; Fernando Lopes, tradutor de Kick ass – Quebrando tudo. 6 Site: <http://www.livrariasaraiva.com.br/>. Acesso em: 20 jul. 2010. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 107 vida do casseta, de Guilherme Fiúza; A cabana, de William P. Young; Lua azul, de Alyson Noel; A última música, de Nicholas Sparks; A breve segunda vida de Bree Tanner, de Stephenie Meyer; e Mil dias em Veneza, de Marlena de Blasi. Pela classificação das livrarias, observamos que os livros de ficção realmente estão entre os mais vendidos e, diante dos títulos arrolados como os mais solicitados pelo público, aparecem algumas evidências, como o livro recorrente nas três livrarias: A cabana, de William P. Young, um best-seller, publicado pela editora Sextante, que já alcançou quase dois milhões de exemplares vendidos, de acordo com informações no site7 da própria editora. Um autor recorrente nas três livrarias é Nicholas Sparks, com as obras A última música e Querido John, títulos que se repetem entre as referências dos livreiros. Em terceiro lugar, citamos Stephenie Meyer, a autora da série Crepúsculo, que aparece com os títulos A breve segunda vida de Bree Tanner e Amanhecer8. Entre os títulos mais vendidos nas livrarias, destacamos, então, uma coincidência: os três autores mais comercializados são norte-americanos e neófitos no mundo das letras, fatores que não impedem o estrondoso sucesso editorial no mundo. Retomando a listagem das livrarias, cabe a ponderação sobre o número excessivo de traduções que afoga até mesmo os romancistas brasileiros mais bem-sucedidos.9 Essa ocorrência suscita as perguntas: por que há um número ínfimo de autores nacionais expostos em livrarias de ampla representatividade no país? O que esse processo revela? Seriam 7 Site: < http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm? infoid=4212&sid=2 >. Acesso em: 20 jul. 2010. 8 Este livro faz parte da saga crepúsculo também, formada pelos livros: Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse e Amanhecer. 9 Entre os brasileiros mais comercializados, está Luís Fernando Veríssimo, que contabiliza mais de 50 livros publicados e já vendeu cinco milhões de exemplares, o que constitui um verdadeiro fenômeno de vendas. Ao lado de Veríssimo, figura seu conterrâneo Moacyr Scliar, com 63 obras editadas – entre romances, contos, novelas e coletâneas (REBINSKI, 2010). O próprio Scliar, em entrevista, afirmou que vendeu dez milhões de livros (REVISTA PRESS, 2010). Outro brasileiro que faz frente aos dois gaúchos é o baiano João Ubaldo Ribeiro, cuja venda anual emplaca a média de 100 mil livros. (ROSALEM, 1999). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 108 táticas de comércio? Haveria dificuldades com distribuição e propaganda? Ou seria dificuldades de assentimento do público leitor? A partir das evidências, as informações também admitem outras reflexões, que vão ao encontro da nossa apreensão, acerca da categorização desses volumes. Quantos deles podem, de fato, ser classificados como romance? É sabido que esses livros têm encantado e comovido os leitores, como de acordo com a história, os romances têm feito, mas podemos nos perguntar, ao ter conhecimento que nem toda ficção é romance (ABREU, 2006), se é possível denominar essas séries de livros com um mesmo título, ou com títulos diferentes que podem continuar uma mesma história, como literatura? Ao refletir sobre o conceito de literatura, João Alexandre Barbosa, no ensaio “Literatura nunca é apenas Literatura”, fala apresentada no Seminário Linguagem e Linguagens: a fala, a escrita, a imagem10, ajuíza a partir de três posicionamentos, o de Northrop Frye, Fernando Pessoa e T. S. Eliot. Conforme pondera Alexandre Barbosa, acerca do valor da obra literária, em acordo com o crítico canadense, Northrop Frye, para a compreensão do que seja literário, há a necessidade de conhecimento de duas linguagens, como assegura Frye: “Na leitura de qualquer poema é preciso conhecer duas linguagens: a língua em que o poeta está escrevendo e a linguagem da própria poesia”. A assertiva do crítico sintetiza que um leitor só pode reconhecer se tal texto é ou não literário se tiver um conhecimento prévio para tal, isto é, como o leitor poderá reconhecer uma boa obra da literatura brasileira, se por acaso só tiver tido contato com os exemplares ofertados entre os mais vendidos das três livrarias aqui referidas? Torna-se complexa qualquer leitura que não faça parte da intimidade do leitor e, portanto, apreciar um livro de Machado de Assis ou Graciliano Ramos, por exemplo, torna-se um verdadeiro estorvo se não se reconhece um pouco do que seja boa leitura ou se as informações de leitura armazenadas são precárias sobre o que se insere na tradição literária. “É preciso ter um estoque mínimo, um repertório mínimo, para que seja possível identificar a importância de uma obra ou de um texto literário”, como assevera Alexandre Barbosa. Para tanto, reconhecer que a literatura está condenada à história e à tradição, afirmação que encontra eco nas palavras de Fernando Pessoa, que garante: 10 A reprodução da íntegra desse texto consta no site: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_17_p021-026_c.pdf. Consultado em 17 de maio de 2006, às 18:49h. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 109 “No mais pequeno poema de um poeta deve haver sempre alguma coisa por onde se note que existiu Homero. O que é possível depreender dessa afirmativa? Que as obras literárias devem permanecer, constar entre os séculos e não só figurar por um período e depois ser esquecida, apagada da memória, pois fez parte de uma moda, de um instante de sucesso momentâneo. Somada às declarações de Northrop Frye e Fernando Pessoa, T. S. Eliot sinaliza com a confirmação de que “o escritor não é escritor, se depois de 25 anos não sentir em seus ossos o peso de uma tradição”. A citação ratifica que o conceito de obra literária está vinculado, principalmente, à memória, à tradição e à conservação do texto com o passar dos anos, indiferente ao modismo ou ao sucesso breve e instantâneo. Se Machado de Assis, em 1865, queixava-se da circulação de boas obras que estavam submetidas a uma crítica camarada e corporativa, o que dizer da oferta das obras que chegam às mãos dos leitores, abalizadas pelo comércio lucrativo, longe de uma avaliação distinta que referende e sagre ao público uma leitura de valor reconhecido? As publicações expostas ao público, no ano de 2010, apontam a fugacidade das obras e a submissão destas mesmas ao instante da fama e do entusiasmo, como a obra A Cabana, de William P. Young, publicada originalmente nos Estados Unidos, transformou-se num arrebatamento entre os leitores e se constituiu um feito de vendas com mais de dois milhões de exemplares vendidos em dois anos, a partir da estreia, no ano de 200711. O livro se manteve entre os mais vendidos durante o ano de 2009 e encabeçou o primeiro lugar durante todo o ano, conforme noticiou a Folha online, em 21/11/200912. Entretanto, apesar do sucesso explosivo, da participação do autor na Bienal do livro em 2011, em São Paulo, o volume não encabeça mais a lista dos mais vendidos, nem a dos mais populares, conforme classifica a Livraria Saraiva, que elenca entre os seus “populares”, no ano de 2012, os 11 Dados obtidos na livraria Submarino: http://www.submarino.com.br/produto/6719447/livros/literaturaestrangeira/gera l/livro-cabana-a. Consultado em 25 de junho de 2012, às 21:35h 12 http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u655672.shtml. Consultado em 25 de junho de 2012, às 21:51h GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 110 seguintes títulos13: A Dança dos Dragões - As Crônicas de Gelo e Fogo – vol. 5, de George R. R Martin, que puxa a lista entre os cinco mais procurados, seguido pelos títulos, Para Sempre, de Kim Carpenter; A Escolha - até onde devemos ir em nome do amor? e O melhor de mim - o primeiro amor deixa marcas para a vida inteira, ambos de Nicholas Sparks; O Filho de Netuno - os heróis do Olimpo - livro dois, de Rick Riordan. Já a Livraria Cultura expõe na composição da sua lista14, em primeira chamada, Agapinho, de autoria de Padre Marcelo Rossi; seguido por Getúlio, de Lira Neto; Guia Prático da Nova Ortografia, de Elenice Alves; Jamie Oliver - 30 minutos e pronto, de Jamie Oliver e O Prisioneiro do Céu, de Carlos Ruiz Zafon. Prontamente na Livraria da Travessa, há outra listagem15, com dois primeiros volumes listados com Amsterdam, do escritor britânico Ian Mcewan e Ulisses, do romancista irlandês James Joyce. A disposição da lista segue com a obra Tudo ou nada, assinada pelo brasileiro Luiz Eduardo Soares e O Prisioneiro do Céu, do premiado autor espanhol Carlos Ruiz Zafon16. Para finalizar a listagem dos cinco primeiros mais vendidos, a livraria oferece a obra Morte dos reis, do escritor britânico Bernard Cornwell. Não muito oposta às classificações de 2010, as três livrarias apresentam uma abundância de autores estrangeiros, em detrimento a produção nacional. Nos três estabelecimentos comerciais, somente é 13 http://www.livrariasaraiva.com.br/. Consultado em 25 de junho de 2012, às 22:22h 14 http://www.livrariacultura.com.br/scripts/index.asp?&caminho=1. Consultado em 25 de junho de 2012, às 22:31h 15 Site http://www.travessa.com.br/wpgMaisVendidos.aspx?TipoArtigo=1&Cod MacroSegmento=3808A616-20B5-48C2-B6F6-CE8E937F3280, Consultado em 25 de junho de 2012, às 22:46h. 16 No site oficial do autor, http://www.carlosruizzafon.com/, constam as premiaçãos, na Espanha, o Prêmio da Fundação José Manuel Lara ao livro mais vendido. Nos Estados Unidos, a premiação Borders Original Voices Award e New York Public Library Book to Remember. Na França, o Prêmio de melhor livro estrangeiro. Na Holanda, o Prêmio dos Leitores. No Canadá, o Prêmio dos livreiros de Canadá/Quebec. Na Bélgica, o Prêmio de melhor livro do ano (2006) e em Portugal, o Prêmio Varzim de Povoa. Consultado em 25 de junho de 2012, às 23:00h. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 111 notada a presença de um autor brasileiro, na Livraria da Travessa, com Luiz Alfredo Garcia-Roza, que aparece na sexta posição dos mais vendidos. Surpreendentemente, a mesma livraria traz entre os seus cinco primeiros a obra Ulisses, de James Joyce, autor pouco apreciado pela face popular dos leitores comuns e que, seguramente, podemos classificar como Grande Literatura, pois, além de carregar a tradição, modifica-a e imprime ao texto escrito uma nova versão. Para a maior parte das obras, o que se pode afirmar é que refletem o molde do livro A Cabana, sucesso imediato, milhões de vendas e o encantamento profundo dos leitores, que mudará de apreciação de acordo com a preferência do momento. É o caso da obra de Pe. Marcelo Rossi e os títulos A Escolha - Até onde devemos ir em nome do amor? e O Melhor de mim – o Primeiro amor deixa marcas para a vida inteira, do celebrado autor americano Nicholas Sparks. O que triunfou? Diante do quadro exibido até aqui, o que podemos rastrear a partir das listagens, para compor o raciocínio sobre uma possível crise na/da literatura? Uma primeira observação consiste na comprovação do significativo número de traduções, como já observado anteriormente, mas também é possível contabilizar um grande interesse despertado por textos em prosa, uma vez que não há, em nenhuma das três livrarias, evidências de poemas, entre os gêneros mais vendidos. Do ponto de vista do conceito de literatura admitido por João Alexandre Barbosa, são aceitáveis as obras de James Joyce, Ian Mcewan e do brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza17. As demais obras versam acerca 17 Conforme sentencia Márcia Abreu, o conceito de literatura está ajustado em fatores externos à obra literária e não baliza a literatura apenas aos elementos componentes do sistema literário postulado por Antonio Candido. A autora afirma que uma obra não surge literária. Para chegar à consagração, ela necessita passar por um processo: “Para que uma obra seja considerada Grande Literatura ela precisa ser declarada literária pelas chamadas ‘instâncias de legitimação’. Essas instâncias são várias: a universidade, os suplementos culturais dos grandes jornais, as revistas especializadas, os livros didáticos, as histórias literárias etc. Uma obra fará parte do grupo seleto da Literatura quando for declarada literária por uma (ou, de preferência, várias) dessas instâncias de legitimação. Assim, o que torna um texto literário não são suas características GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 112 de necessidades urgentes, como a atualização da nova ortografia e os anseios sentimentais satisfeitos com os Best-selles ou volumes de autoajuda. A maior incidência de ofertas em obras “vendáveis” aponta a preferência dos leitores, pois a regra parece clara: se estão dispostos à venda, é porque são mais fáceis de comercializar e, se a distribuição é facilitada, o lucro é imediato. De olho na benesse que pode advir das vendas, pouco importa ao dono do mercado se as obras em relevância são os livros traduzidos em detrimento da produção nacional. O interesse converge, nesse caso, para que o ganho esteja distante do prejuízo. Do ponto de vista das ideias contempladas no ensaio O direito à literatura, quando Antonio Candido afere acerca da leitura literária como uma ocupação estimulante e imperativa para a alma humana e uma atividade mandatória à formação do indivíduo, posso ser tolerante com os milhões de livros vendidos, ao cogitar que o leitor estará tendo o direito à fabulação, independente da qualidade do texto que lhe caia às mãos, pois, para o crítico, a necessidade da ficção impera independente de estar ou não diante de um texto. A leitura só amplia este espaço e satisfaz com maior propriedade à necessidade universal à ficção: [A] literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação. Assim, como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. [...] se ninguém é capaz de passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que poderia ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. [...] Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. [...] A literatura confirma e nega, propõe a denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. (CANDIDO, 1995, p. 174-175) O acesso à literatura, pensada por Candido de uma maneira mais abrangente, constitui uma necessidade e um direito de todos, nas mais internas, e sim o espaço que lhe é destinado pela crítica e, sobretudo, pela escola no conjunto dos bens culturais”. (ABREU, 2006, p. 40) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 113 diversas manifestações impressas ou orais. Contudo, mesmo com o leque aberto para as diversas manifestações que satisfazem a alma humana, não há como deixar de questionar sobre o lugar da literatura no mundo cotidiano? Como não deixar de refletir acerca da omissão da nossa Alta Literatura nos catálogos de apresentação das livrarias mais famosas e conceituadas do país? Tais questionamentos sopesam num único caminho: o exercício do magistério. Resta, pois, aos docentes incumbidos da disciplina de Literatura de manter vivas as Grandes obras que ilustram a Literatura universal. É responsabilidade do professor conservar a tradição entre seus alunos e, portanto, preservar a humanidade de uma destruição catastrófica, pois, como confirma Vargas Llosa, só o texto pode salvar os homens da sua insubordinação e da submissão aos impulsos: Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo, o mundo sem romances, esse pesadelo que procuro delinear, teria como traço principal o conformismo, a submissão generalizada dos seres humanos ao estabelecido. Também nesse sentido seria um mundo animal. Os instintos básicos decidiriam a rotina cotidiana de uma vida oprimida pela luta pela sobrevivência, pelo medo do desconhecido, pela satisfação das necessidade físicas, em que não haveria espaço para o espírito e a que, à monotonia sufocante da vida, acompanharia, como uma sombra sinistra, o pessimismo, a sensação de que a vida humana é aquilo que deveria ser e que sempre será assim, e que nada poderá mudar o estado das coisas. (LLOSA, 2009, p. 31) A relevância para a qual Mário Vargas Llosa chama atenção diz respeito, também, à necessidade do público em manter a leitura no livro e não nas telas do computador, conforme propõe o empresário Bill Gates, mas Llosa adverte para o mal a que estaria exposto o ser humano, se por acaso a ficção desaparecesse do mundo . A sintonia de Vargas Llosa e Antonio Candido converge para o mesmo núcleo, ao que seria inconcebível um mundo sem literatura. Dessa forma, interessa-nos estender o olhar não apenas nas prateleiras da frente das livrarias, mas escarafunchar as estantes escondidas, esticar as mãos para os volumes ocultos e assim promover o encontro com as Grandes obras, as que ficam, permanecem, são lidas e relidas mediante os séculos. Ao analisar as obras dispostas à venda como as mais procuradas, no ano de 2010 e no ano de 2012, arrisco a afirmar que o triunfo ainda se GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 114 deve à literatura, que, embora permaneça escondida entre os sucessos que mais agradam o público, é neste rótulo que se enquadram os títulos que recomendaríamos aos filhos e netos e, certamente, aos alunos dos cursos de letras, responsáveis também pela manutenção dessa tradição e da perpetuação de nomes que enaltecem nossa história cultural, como Machado de Assis, José de Alencar, Aluisio de Azevedo, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queirós, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, entre tantos que notabilizaram as letras brasileiras e conferiram, perante sua pena, a formação da identidade de um povo e, somado a isso, contribuem para sejam perpetuadas as paixões advindas de uma única fonte: o texto literário. Finalmente, embora estejamos diante de uma reflexão semelhante a que Machado de Assis vivenciou em meados do século XIX, é possível assegurar que, além dos anos de produção literária que afiançam uma tradição, o movimento literário é incessante e não raro os leitores se deparam com novos talentos que se responsabilizam pelo triunfo da Literatura. IS THE LITERATURE IN CRISIS? Abstract: In this essay I intend to discuss a controversial issue about the crisis in and of Literature, from the reflections of Mario Vargas Llosa and Antonio Candido, and revisit the concept of what Literature is, to be guided by the points of view of João Alexandre Barbosa, who based their arguments on postulates of Northrop Frye, Fernando Pessoa and T. S. Eliot. From this theoretical reference, I intend to debate about the tension between the literary and book trade today in Brazil, based on research carried out in three bookstores that offer their catalogs online - Saraiva, Culture and Library Bookstore Lane and, based on data obtained through the bestseller lists, or more popular books, to conjecture about the question first proposed: Is there a crisis in Literature? This quest will cover the whole discussion, based also on the squabble of the end of the book, the hypothesis thought in the nineteenth century, by Machado de Assis, before the advent of the newspaper and now by Bill Gattes, owner of Microsoft, who intends, before his death, to see the end of the book. KEY-WORDS: Literature, books, readers, book review, book trade. REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: UNESP, 2006. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 115 ASSIS, Machado. Obra Completa.. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. BARBOSA, João Alexandre. Literatura Nunca é Apenas Literatura. Disponível em: <www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_17_p021-026_c.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2012. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. ______. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004. LLOSA, Mario Vargas. “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. In: MORETTI, Franco (Org.). A Cultura do Romance. São Paulo: Cosac Naif, 2009. p. 17-32. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 116 A FICÇÃO E A VIDA: ALEGAÇÕES PARA PENSAR UMA LITERATURA EM CRISE Juan Pablo Chiappara – UFV 1 RESUMO: Nosso objetivo é reflexionar sobre o momento de crise da literatura e dos estudos literários para propor pensar em uma forma de escrita e leitura literárias que, ao mesmo tempo em que corroboram o esgotamento de um paradigma, supõem a emergência de outro. Se Tzvetan Todorov se refere à Literatura em perigo e Dominique Maingueneau se detém na análise das causas do que chama de fim da Literatura, sugerimos deslocar o foco da discussão propondo o valor intrínseco da ficção em relação à vida humana. Nesse sentido, remetemos a um debate secular, o da oposição aristotélico-platônica sobre a função da imitação estética como forma de conhecimento do mundo e da construção da verdade. Nossa contribuição ao debate gira em torno da discussão de uma literatura de testimonio, na linha do que propõe Márcio Seligmann-Silva, a partir de uma concepção de sujeito fraturado que permite entender uma mudança na forma de representar, resumida na ideia de representação-efeito. Para concluir, levantamos o problema da relação entre ficção e vida e sugerimos que a crise pode ser superada se reconhecemos que a elaboração ficcional da realidade é o que nos tornou e nos torna mais humanos. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Crise. Ficção. Vida. O que motiva este artigo é o desejo de cercar uma sensação de mal-estar em relação ao que já há algum tempo é apontado como uma crise da literatura. Isto significa refletir sobre aquilo que é a nossa realidade quotidiana, pois a dita crise atinge também os estudos literários e sua legitimidade e reconhecimento por parte da sociedade e das esferas do poder em particular. Segundo Tzvetan Todorov, a literatura está em perigo (TODOROV, 2007) e, para Dominique Maingueneau, ela atingiu seu fim (MAINGUENEAU, 2006). Seus argumentos para justificar a crise e o fim da literatura atingem diferentes aspectos, mas, basicamente, os dois pesquisadores chegam a uma conclusão semelhante: o poder do texto literário de intervir na formação do espírito e de colocar os temas que mobilizam a sociedade como um todo não existe mais como existiu entre o final do século XVIII e o final dos anos 1970, aproximadamente, embora a crise em si talvez tenha sido mais visível a partir dos anos 1990. 1 UFV – Universidade Federal de Viçosa. Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. Departamento de Letras. Viçosa – Minas Gerais – Brasil – 36.570-000; e-mail: [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 117 Por outro lado, segundo eles, a crise atinge os estudos literários, tanto na universidade como no ensino médio, por conta de uma mudança de paradigma que cria um fosso entre os preceitos teóricos difundidos na academia, a prática de ensino e a expectativa de um novo tipo de aluno (e sociedade), cuja sensibilidade, interesses e modos de entender o contrato de leitura mudaram. Para Maingueneau, em particular, chega-se ao fim da literatura pela dissolução do campo literário, isto é, de um sistema fechado no qual as obras dialogavam e concorriam entre si para saber qual delas propunha no seu âmago a quinta-essência da literariedade, redefinindo assim o papel daquilo que devia ser considerado como o rumo a ser seguido a partir de sua aparição. Para ele, a nova realidade da literatura a faz funcionar dentro da lógica do que propõe chamar de arquivo e através de uma prática interdiscursiva que privilegia, cada vez mais, a paródia das obras do passado ou sua “re-escrita”. Embora Maingueneau e Todorov façam referência basicamente à realidade francesa, em vários aspectos sua análise é pertinente para compreender uma mudança na relação de forças da literatura com as outras áreas do saber que é útil para se pensar o que acontece no Brasil e na América Latina. De fato, sempre fizemos parte das margens ocidentais influenciadas pela estrutura e pelo debate surgido na Europa, ainda que eles tenham sido atualizados em função de uma realidade local. Prova irrefutável disso é que o novo regime do literário, sob o qual nos encontramos, foi, por assim dizer, compreendido e, ao mesmo tempo, efetivado na prática por um latino-americano, através de uma obra magistral e de repercussão internacional, que transgrediu a lógica de influências culturais leste/oeste invertendo-a; referimo-nos à obra de Jorge Luis Borges, de quem é possível citar como peça-chave e emblemática dessa mudança de signo na compreensão do fato literário o texto “Pierre Menard, autor del ‘Quijote’”2, de 1941, que três anos depois formaria parte do volume Ficciones.3 2 Publicado pela primeira vez na revista “Sur”, em Buenos Aires, em maio de 1939 (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1997). 3 A influência de Borges na França se deu através da leitura feita, primeiro, por Maurice Blanchot, depois por Michel Foucault e Gérard Genette. A partir de 1964, quando foi dedicado à sua obra um n mero da revista de “L´Herne”, Borges passou a influenciar o pensamento francês e europeu e conseguiu sair do âmbito do Rio da Prata, onde era conhecido e respeitado desde o início de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 118 O fato é que, como diagnosticam Maingueneau e Todorov, a literatura não convoca hoje os temas que mobilizam a sociedade para a construção dos assuntos que mais lhe interessam; no caso de nossa América, a latina, cabe dizer que a literatura não mobiliza mais, como o fizera desde o século XIX de forma contundente, o interesse em tratar da construção do imaginário nacional e os leitores também não esperam que ela o faça e não procuram nela o debate daquilo que lhes diz respeito como sujeitos de uma associação política organizada em torno do Estado. De forma concreta, pode-se dizer que o que aconteceu no Brasil com o Modernismo de 1922 e na América de língua espanhola com o boom, ou ainda, o fenômeno da relação entre literatura e crise político-socialeconômica do último período revolucionário no continente, não pode ser mais esperado hoje em dia. A literatura não é mais o lugar, ou um dos lugares, pelo menos, onde se cristaliza o diálogo com os temas que interessam à maioria. De forma diferente, o escritor e ensaísta mexicano Jorge Luis Volpi aborda a questão levantada no livro Mentiras contagiosas (2008), no qual mistura reflexão e ficção para pensar na condição atual da literatura latino-americana. As primeiras palavras deste livro, irônicas – portanto afirmando duas coisas simultaneamente –, assumem a crise e zombam dela: “Certifico la muerte de la novela. Según los cronistas, el último ejemplar de esta especie apareció hace cien años: un pobre remedo de Las aventuras del ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha, perpetrado por un tal Menard (…)” (VOLPI, 2008, p. 11). O autor situa o texto em 2605, mas esse artifício não esconde que é o nosso presente que está em jogo neste livro inteligente e raro pela lucidez com que analisa o contexto atual das letras hispano-americanas e das letras em geral. Mas é a partir de outro livro deste mesmo autor que pretendemos desenvolver algumas ideias sobre a relação da ficção e da vida no contexto do que chamamos de crise da literatura. No livro Leer la mente. El cerebro y el arte de la ficción (2011), Joge Volpi começa discutindo se a única função da ficção seria o prazer estético ou se, no final das contas, ela não serve para nada que seja prático, que modifique nossas vidas sua carreira, nos anos 1920, mas não necessariamente aceito como uma unanimidade. Aliás, a revista de “L´Herne’ era dedicada a autores marginais que causavam controvérsia na sua época. É interessante ressaltar que a “chegada” da obra de Borges à França é contemporânea à chegada da obra de Mikhail Bakhtin, que seria traduzido por Julia Kristeva e divulgado por Tzvetan Todorov, dentre outros. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 119 concretamente. A pergunta aponta para uma relação diferente entre vida e literatura daquela que vigorava no passado recente; nem supõe a defesa de uma literatura como regime autotélico de comunicação (tradição romântica), nem como uma prática de representação meramente imitativa do mundo (tradição historicista e filológica). Também não supõe o uso do termo literatura com maiúsculo, como o fazem Todorov e Maingueneau. Volpi defende a forma ficcional como algo inerente ao desenvolvimento da condição humana. A partir de suas reflexões, cabe perguntar-se se, de fato, as ficções não teriam um valor civilizatório, independentemente do momento histórico e dos paradigmas culturais vigentes. Com o termo civilizatório buscamos enfatizar um sentido para a ficção que seja o de forjar civilizações e, ao mesmo tempo, buscamos nos demarcar do termo civilizador, que traz embutido um critério moral de superioridade cultural e pode remeter à oposição civilização e barbárie. Ao propor um caráter civilizatório, propomos entender a ficção como geradora de cultura no sentido antropológico e etnográfico da palavra, não somente no seu sentido de instrução ou de um tipo de instrução ao qual ainda damos tanto valor na nossa sociedade modernocontemporânea, que alguns chamam de pós-moderna, embora não nos identifiquemos com o epíteto, tantas vezes invocado de forma vazia e superficial. Nosso objetivo principal é, assim, pensar na importância da ficção nas sociedades humanas, para além do momento de crise de paradigma pelo qual passa a instituição literária, mas também em relação a ele. Volpi, ao colocar no centro da discussão a ficção, não a literatura (embora seja a expressão literária ficcional a que mais lhe interessa), desloca o problema colocado por Maingueneau e Todorov e nos remete inequivocamente, ainda que sem fazer menção explícita, à discussão secular entre Aristóteles e Platão, que ecoa até hoje em nosso universo cultural e em nossa organização do saber. Como o apontara Jorge Luis Borges em Otras inquisiciones, de 1952, ainda é possível se dizer que: “(...) todos los hombres nacen aristotélicos o platónicos.” (BORGES, 2005, p. 143). Esta apreciação tem um alcance amplo, mas vamos tentar compreendê-la na relação que queremos estabelecer entre a ficção e a vida. Segundo Luiz Costa Lima (2000, p. 36), para Aristóteles a imagem que contém a obra de ficção não é verdadeira, mas sim semelhante ao mundo imitado. Dita imagem ficcional, no entanto, não GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 120 supõe uma falsidade, mas inaugura no mundo, através da obra de arte, um estado intermediário entre o verdadeiro e o falso, entre o ser e o não ser. Como escrevera Aristóteles na Poética: “Queda claro por lo dicho anteriormente que no es oficio del poeta contar las cosas como sucedieron, sino como deberían o podrían haber sucedido (…).” (ARISTÓTELES, 2004, p. 55). Por isso, para o grego, a literatura tende a representar o universal, enquanto a história, que conta os fatos em si, representa o particular: “Dar una idea de lo universal de las cosas significa que cierto tipo de personas dirán o harán determinadas cosas, conforme las circunstancias o a la urgencia de la situación dada; en lo cual pone su mirada la poesía.” (ARISTÓTELES, 2004, p. 55-56) O poeta, o fazedor de ficções, pode imitar coisas conhecidas do mundo, mas também pode inventar; o que o poeta faz, no final das contas, é criar imitando. Por outro lado, para Aristóteles a arte supõe também um elemento fundamental que contribuiu à formação do cidadão; a aprendizagem da vida não se limita, segundo ele, a uma habilidade técnica ou a um conhecimento conceitual, mas se precisa vivenciar a experiência da arte para entender algo que só esta forma de expressão humana oferece. A ideia é que a trama da vida somente pode ser entendida se se convive com o “engano” ou com as “mentiras” que contam as histórias de ficção; dito com outras palavras, esse “engano” e essas “mentiras” são a representação do universal, daquilo que deveria ou poderia ter sido ou ser e não daquilo que necessariamente é. Essa ampliação do espectro de possibilidades dá a quem convive com as ficções a possibilidade de ampliar seu repertório do possível para poder entender o concreto da vida cotidiana, o particular. Na tradição socrático-platónica, ao contrário, se considera que o exercício da arte e da representação é perigoso porque poderia levar o cidadão a se inclinar diante da mentira, do engano e do fingimento, características dadas como inerentes à linguagem ficcional. Isto distanciaria o homem daquilo que realmente importa para a construção da sociedade política. Em A República (1997), Platão abomina a imitação e a narração que não sejam “simples”, como ele diz, isto é, que não reportem apenas o conteúdo e encenem no seu cerne o discurso reportado; em suma, Platão se opõe ao “como se” aristotélico. O embate entre esses dois pilares da nossa tradição filosófica nos conduz a outro problema que, atualmente, alimenta a crise da literatura. Trata-se de uma questão de ordem totalmente diferente do problema GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 121 teórico que tenta dirimir sobre a passagem de um regime literário que não estaria mais sob o funcionamento de um campo, mas sim sob a influência de um arquivo, noção que visa dar conta de uma superação dos limites disciplinares da literatura fixados a partir da estética romântica. O problema ao qual fazemos menção agora tem um ponto de contato com essa questão, mas vem, por assim dizer, de fora do âmbito da literatura em si: ele vem de uma área discursiva cujo locus de enunciação é a sociedade industrial e as instituições que sustentam a máquina do que se conhece como o progresso econômico e tecnológico. Este problema permite entender, pelo menos parcialmente, o que Todorov e Maingueneau apontam, a saber, por que a sociedade não adere mais como o fez no passado à forma literária de elaborar os problemas que mais lhe interessam. O que Platão levanta como argumento filosófico, mas também prático, parece estar presente hoje como argumento político de uma sociedade demasiado pautada pela obsessão dos rendimentos e dos lucros, inclusive em termos de conhecimento humanístico. Parodiando Borges, podemos dizer que, com efeito, todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Por outro lado, a crise atual de uma literatura que vigorou até relativamente há pouco tempo também está ligada à segregação e à discriminação que sofre atualmente a área das Letras na organização do saber, em particular dentro das universidades. Se bem é necessário entender que o mercado editorial é cada vez maior e que se vendem cada vez mais livros, outro problema, ao se falar de crise, é que o establishment que organiza o que vale a pena saber ou não vê a literatura cada vez como menos necessária para compor a verdade que interessa a nossa sociedade (obcecada pelo saber tecnológico) e, em decorrência disso, vê aqueles que dedicam sua vida à leitura profissional (os professores dos departamentos de Letras das universidades, por exemplo) como figuras cada vez mais desnecessárias e cada vez mais pitorescas, num contexto onde o que interessa à grande maioria é o progresso da física, da química, da biologia, da medicina e, curiosamente, da administração e do direito, que organizam o capital e o crime. Volpi é aristotélico e zomba desta visão quando, ironicamente, arremete contra as ficções literárias e a teimosia do ser humano antes do século XXVII da nossa era: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 122 ¿Cuánto hubiese avanzado la humanidad si, en vez de malgastar sus energías con estos delirios, las hubiesen invertido en tareas más provechosas? (...) ¿De qué manera se hubiese acelerado nuestro desarrollo económico, nuestra civilidad política, nuestra andadura tecnológica? Pero nuestros ancestros padecían una predisposición natural hacia la mentira. (VOLPI, 2008, p. 12). Por mais que se façam discursos, ocos, a ideia de progresso que se tem desde as esferas governamentais e do mundo empresarial (cada vez mais identificados um com o outro) é a que Volpi ironiza no fragmento citado. O que conta para nossas autoridades, que representam à sociedade, é aquilo que parece concreto: a quantidade de parafusos que se fabricaram no final do dia para que a nação possa se sentir cada vez maior (uma obsessão, entre nós), deixando para algum futuro cada vez menos credível o sonho (se é que ainda se sonha sinceramente com isso) de ser cada vez um pouquinho melhor. A ironia de Volpi denuncia um cenário possível no futuro, no século XXVII ou bem antes, no século XXI. Pois bem, na contramão dessa atitude, queremos defender que o fictício e o ilusório são mecanismos fundamentais para a constituição do ser humano, como um ser produtivo, racional, lógico e são, mental e socialmente falando. Como dizia Aristóteles, a imitação que se produz na arte contribui com a construção da verdade. E é possível acrescentar que aquilo que é verdadeiro não é necessariamente demonstrável, como Guillermo Martínez faz dizer a um de seus personagens no romance Crímenes Imperceptibles (MARTÍNEZ, 2011), mecanismo básico, aliás, da ciência matemática e da física mais ousada. O saber sempre funcionou a partir de modelos que são revistos ad-infinitum, já que sua comprovação é, muitas vezes, impossível. A dizer verdade, a ciência é, e seguirá sendo, uma longa lista de erros corrigidos e é esse seu ponto de contato com o saber literário; não porque este busque corrigir erros (é totalmente outra a lógica de sua existência), mas sim porque como forma de saber busca o conhecimento a partir de uma tradição acumulada, como o pensou Borges no conto “La biblioteca de Babel” (BORGES, 1999). Com efeito, a verdade não pode ser (e nunca será) erguida apenas com material colhido da reflexão positivista à qual a doxa dominante quer nos obrigar a aderir, seja através da oferta de trabalho, seja através da lógica da distribuição de fundos para a pesquisa, seja através de qualquer outro mecanismo de exclusão social que atinge o saber literário na atualidade. Assim como o sono é fundamental para estarmos vivos e GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 123 ativos na vigília, a ficção colabora com a construção da verdade e daquilo que chamamos de nossa realidade. Ela nos ajuda a pensar a sociedade que queremos, distanciando-nos de uma obsessão pelo mercado da oferta e da demanda e do meramente quantitativo. Volpi é aristotélico porque para ele a ficção nos faz autenticamente humanos. Mas seu argumento não consiste em afirmar que somente aqueles que lêem ficções são humanos ou mais humanos, e sim que nós e eles também, somos seres de razão, como nos autodenominamos, e somos também, inerentemente, seres de ficção. Para Volpi, a arte e a ficção são ferramentas evolutivas que desde o início dos tempos tem nos ajudado a sobreviver e nos converteram nisso que demos em chamar homens. Dito com suas palavras: “El arte no es solo una prueba de nuestra humanidad: somos humanos gracias al arte”. (VOLPI, 2011, p. 15) Poderíamos acrescentar que as sociedades que excluem de suas práticas o contato com a ficção podem se tornar cada vez menos sensíveis ao aniquilamento do outro. *** A crise da literatura tem como causa também uma mudança conceitual do sujeito e por consequência uma mudança conceitual da representação. No que diz respeito à compreensão do texto literário, nosso tempo superou tanto a tradição realista quanto a subjetivista e, como bem o diz Luiz Costa Lima, hoje nos perguntamos sobre a existência de um sujeito fraturado e de uma representação-efeito. Muito tem se falado de um caráter de indecidibilidade (da impossibilidade de decidir definitivamente sobre o significado de um macroenunciado, uma obra literária), ainda que Costa Lima prefira falar de interminabilidade do sentido (COSTA LIMA, 2000, p. 398). Esta se dá pela certeza de que a consciência do sujeito fraturado é um efeito da leitura do mundo, não o mundo. O real não se apresenta na nossa frente como algo óbvio e dado, mas o real é isto e aquilo, algo que é construído, algo frágil e inacabado, como o próprio sujeito. A obra literária se apresenta como um fragmento do real e como tal ela não é a representação de um estado de coisas anterior a ela, nem é uma realidade paralela ou imanente. Ela é o resultado de uma atividade de discurso na qual a performatividade do ato criativo lhe confere a força que qualquer ato enunciativo tem para transformar o contexto e o ethos do seu enunciador, o qual se forja em cada uma das obras que um escritor GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 124 produz. O sujeito escritor inscreve um sujeito enunciador e ambos se coconstroem ao passo que constroem uma peça possível do quebra cabeça do mundo, a obra, cujos contornos vão variar de leitor para leitor e seu encaixe no todo será absolutamente relativo. É evidente que isto supõe uma concepção de sujeito que nos torna capazes de compreender que a ficção não é um artigo suntuoso, mas também não é um produto apenas mercantil no mercado de bens culturais, tão descartável como uma lata de alumínio ou uma garrafa pet, embora tão reciclável quanto estas. A noção de sujeito fraturado nos permite pensar em uma forma de escrita literária que propõe um novo rumo dentro da tradição (sem excluir outros), cavando assim a possibilidade de construir uma nova realidade tanto para a literatura em tanto que prática, como para os estudos literários em tanto que disciplina. Gostaríamos, assim, de fazer referência a todo um corpus que coloca a dupla vocação do texto ficcional e contribui para abrir novos espaços de produção ficto/literária: a literatura de testemunho. Ela narra fatos históricos traumáticos através de um relato elaborado a partir da memória e da invenção do sujeito, que lembra e escreve para tentar achar a verdade, embora saiba que provavelmente não a encontrará. No entanto, dito sujeito se recusa a desistir diante da possibilidade de armar um relato plausível daquilo que viveu e não o deixa descansar por estar profundamente vinculado a um passado traumático. No tipo de literatura de testemunho ao qual fazemos referência a trama da obra (da ficção) ajuda o autor e o leitor a enfrentar a vida, o choque que encripta a realidade e dificulta o trabalho de luto (SELIGMANN-SILVA, 2005, p 72). Este gênero ao qual fazemos referência é híbrido e nossa forma de entendê-lo segue a linha do que Márcio Seligmann-Silva propõe com a noção de testimonio em O local da diferença (2005). Não devemos confundi-lo com a literatura de denúncia nem com a autobiografia. Tratase da construção do passado a partir de uma memória que se sabe fragmentada, mas que preenche com a criação os vazios deixados pelo relato histórico, assim como preenche os interstícios da memória fragmentada com a imaginação, de um ponto de vista em que o sujeito, longe de se considerar uno e todo-poderoso na sua capacidade de captar a realidade, sabe-se, ao contrário, também fraturado. Ao mesmo tempo em que este sujeito se reconhece a si mesmo a capacidade parcial de conhecer a realidade (um sujeito anticartesiano, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 125 portanto, que ainda não influenciou a forma de entender e de organizar a realidade e o saber nas esferas que tem o poder de decidir, tanto no âmbito da universidade, quanto no âmbito estadual e federal), também sabe que o objeto observado, a história da qual ele foi protagonista, é o objeto de sua narração e também se dá a conhecer, inclusive para ele, de forma parcial e subjetiva, conforme o novelo da escrita vai desenredando os fios da memória. Portanto, estamos diante de um tipo de mímesis que mais do que uma forma de representação clássica, deve ser entendida como uma representação-efeito, a expressão (não a impressão) de uma cena anterior e impossivelmente objetiva4. Obras literárias que exemplificam este tipo de escrita, que tematiza a tensão clássica entre ficção e realidade, são comuns na tradição europeia posterior à ascensão do extermínio massivo e sistemático não só de seis milhões de judeus, mas também de mais de quinhentos mil ciganos húngaros, de crianças alemãs que não pertenceriam ao que se definiu como a raça ariana, de doentes mentais, ou da prática de esterilização de pessoas consideradas como peças de uma raça imperfeita e inferior. A obra prima deste gênero provavelmente seja É isto um homem?, de Primo Levi (1988), onde “descreve” sua experiência dos Campos de Concentração nazistas, mas onde, sobretudo, desenvolve um texto sobre a ética dessa microssociedade, tomada como paradigma e parâmetro de julgamento da sociedade nazi-nacionalcapitalista como um todo. Uma obra mais popular (muito lida até os anos 1970), ainda que menos contundente, é o clássico Diário de Anne Frank (2010), belo exemplo de como a literatura e a ficção cumprem a função salvadora de vidas, assim como cumprem a função de humanizar pessoas cuja condição humana está seriamente ameaçada. Ambos os livros, dentre muitos que compõem um vasto corpus, fundam um limiar (não uma fronteira), que funde ficção e vida. E é nesse sentido que este tipo de escrita ficto-literária empurra uma forma canônica de ler literatura para um novo território onde a condição estética do texto literário não pode se furtar aos apelos éticos não apenas deste tipo de literatura, mas também o que pode ser detectado nos textos consagrados pela tradição. Quando Márcio Seligamann-Silva defende o conceito de teor testemunhal como chave de releitura da literatura do século XX, fala, em outras palavras, da necessidade de uma mudança 4 Pensamos na oposição do expressionismo alemão e do impressionismo francês. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 126 epistemológica que decorre das necessidades impostas pelas catástrofes humanitárias que marcaram de forma iniludível as sociedades no século XX e que não parecem estar prestes a atingir seu fim (SELIGMANNSILVA, 2005, p. 78). Do mesmo modo, há todo um corpus na literatura latinoamericana que surge da experiência de violência de Estado perpetrada por nossos compatriotas uma ou duas gerações anteriores à nossa. Dentro do trabalho de pesquisa que desenvolvemos, podemos citar como uma nova forma de inscrição no horizonte da escrita literária pós-crise, uma obra que explora os limites entre realidade e ficção. Referimo-nos à obra do escritor uruguaio Carlos Liscano, que esteve preso no cárcere da ditadura militar uruguaia, de 1972 a 1985, entre seus 23 e 36 anos de idade, tornando-se escritor no presídio. Liscano se torna escritor como forma de resistência a um processo sistemático de aniquilação perpetrado pela ditadura. A ficção, não a realidade, salva este homem do extermínio e da loucura. Liscano, consciente ou inconscientemente, pôs em funcionamento um mecanismo tão antigo como a humanidade, mecanismo que Volpi descreve da seguinte forma: “(...) reconocer el mundo e inventarlo son mecanismos paralelos que apenas se distinguen entre sí.” (VOLPI, 2011, p. 16). O que faz Liscano, numa situação de absoluta falta (o preso não tem que ascender a luz, esquentar água, fazer o nó da gravata, telefonar, abrir a geladeira, ligar o rádio, trancar a porta, dar um abraço, etc.), é se projetar nas ficções que leu no presídio, onde havia uma biblioteca feita com livros doados por familiares dos presos. O resultado é uma obra na qual palpita uma tensão constante entre uma vontade de ficção e um testemunho involuntário. Vamos colocá-lo de forma simples e direta: Liscano sobreviveu porque viveu como um ser de ficção. No final de 1980, quando numa época de castigo (que durou meses) começou a escrever seu primeiro romance na solitária, sem papel e sem lápis, Liscano não estava fazendo uma obra literária que pudesse deslocar a situação do campo literário, mas realizava uma inscrição (mental, que depois transcreveria na sua cela, às escondidas) que vários anos depois, veria a luz sob a forma de um livro intitulado La mansión del tirano (1992). Este romance intempestivo se infiltra no domínio da ficção e corrói as fronteiras clássicas da divisão de gêneros testemunhal e ficcional. Da experiência do choque e do trauma surge um desencontro com o real e, por este viés, um encontro com a ficção, tanto no sentido lato da palavra, isto é no sentido de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 127 fingimento, quanto no sentido restrito da mesma, isto é no sentido de inventar/criar. Obras como as de Carlos Liscano conseguem perfurar a divisória que por vezes ainda teima em defender uma Literatura com maiúsculo de uma literatura sem pedigree e conseguem afastar a noção de crise e fim para debruçar-se no trabalho propositivo de construir as bases de uma nova ordem literária. Que não se espere, no entanto, que ditas obras consigam estabelecer o vínculo com a sociedade que antigamente caracterizava ao regime literário. Nesse sentido, a crise e o fim são, é preciso reconhecê-lo, um fato consumado no nosso presente e não se voltará ao regime anterior tentando se adaptar ao suporte virtual, por exemplo. Não é disso que se trata.5 E, no entanto, La mansión del tirano, assim como a obra de Liscano em geral, é indubitavelmente da maior significância para entender não só uma forma nova de se fazer literatura no Uruguai e no continente, mas também uma forma de compreender o que aconteceu nas nossas sociedades nos últimos cinquenta anos. Apesar disso, é possível afirmar, não sem certa tristeza (porque vemos aquilo que se perde), que dita obra não tem tido nenhuma influência na sociedade uruguaia contemporânea como um todo. Esse isolamento é real também em relação à capacidade de incidir em outros escritores e influenciar suas obras, o que prova cabalmente a desaparição daquilo que foi chamado de campo literário; mas o isolamento também é real em relação ao debate social que se desenvolve em torno da questão da ditadura e dos esforços que têm sido feitos por parte da sociedade e por parte dos governantes para elaborar o passado do período ditatorial e pós-ditatorial, momentos-chave na história da segunda metade do século XX uruguaio, que tanto influenciam hoje a realidade social e econômica, assim como influencia de forma determinante a forma de imaginar a nação. 5 Experiências dessa ordem, como a que fez Paul Auster com seu último livro – Diario de Invierno – (por sinal, uma obra talvez classificável como de testimonio), lançado primeiro na internet, depois em espanhol na Espanha e ainda não lançado em inglês nos Estados Unidos de América, são interessantes, mas não mexem com a estrutura do regime atual do literário, por enquanto ainda ligado fortemente ao salto tecnológico que significou, há alguns séculos, a invenção da imprensa e a reprodução em série do livro. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 128 É curioso observar ainda que a obra de Liscano tem despertado o interesse de especialistas no mundo todo e inclusive no mercado do livro francês, língua para a qual foram traduzidas todas suas obras, sendo a última delas publicada apenas na França até o presente momento6. Apesar desse sucesso comercial num grande centro de confluência e disseminação cultural como a França, a obra de Liscano não tem suscitado o debate que uma obra com essa repercussão suscitaria no Uruguai algumas décadas atrás quando a literatura ainda era o lugar onde se diziam coisas que importavam ao debate social. Evidentemente, a falta de penetração da obra de Liscano na sociedade uruguaia não supõe uma má qualidade literária da mesma, mas fala claramente da situação da literatura no cenário atual. O que mobiliza e comove à sociedade, o que suscita o debate não é o discurso literário, mas outras áreas do discurso como ser o jornalístico, o publicitário e o mediático, em geral. Prova disso pode ser o fato de um livro como Milicos e tupas, do jornalista uruguaio Leonardo Haberkorn (2011), ter suscitado cinco re-edições entre maio e julho de 2011. As pessoas se interessam em ler sobre o assunto da ditadura militar, tema que os uruguaios ainda estão por compreender e digerir para poder seguir enfrente. Mas não é o modo literário de tratamento desse assunto (por mais direta ou indireta que seja sua aparição em obras literárias como as de Carlos Liscano) o que concita a cidadania, tal como acontecera no passado. A literatura torna-se cada vez mais uma questão de especialistas e entre o grande público suscita cada vez mais desconfiança aquele escritor que não visa (ou não alcança) o grande mercado editorial e aquele leitor que cultua uma escrita sofisticada, que relacione discursos literários ou não, mas que, em última instância, requeira, para sua exegese, de um conhecimento que não tem status na sociedade capitalista contemporânea. *** Mesmo reconhecendo que a relação de forças entre a instituição literária e a sociedade tem mudado de forma contundente, acreditamos que o modo ficcional e a vida são indissociáveis e que há margem na literatura e nos vários modos da ficção de lançar pontes com a existência 6 LISCANO, Carlos. Le lecteur inconstant suivi de Vie du corbeau blanc. Tradução de Martine Breuer e Jean-Marie Saint-Lu. Paris: Belfond, 2011. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 129 em sociedade para contribuir com o sucesso das relações humanas, para estimular a tolerância e aceitar, gostando ou não, a diferença que nos separa do outro. A ficção cumpre papel preponderante nesta tarefa porque sempre transforma a vida e abre possibilidades de converter-nos em outros, menos chatos e menos donos da verdade do mundo. Vale a pena se deter na seguinte pergunta: o que é a ficção, no final das contas, e como ela se dá na condição humana? No livro El concepto de ficción, Juan José Saer (2004) afirma que a ficção não é o contrário da verdade, não é a mentira, nem o falso. Ela é, e nesse matiz cabe toda a diferença, uma forma de tratamento da realidade. Saer também é aristotélico. E, segundo ele, dita forma de tratamento reconhece, de antemão, a fragilidade de qualquer relato que, desde o vamos, se pretende objetivo e soberano no que se refere à possibilidade de dar conta da realidade. Como diz Volpi (2011, p 60), é o como se do universo imaginário de uma obra de ficção o que nos permite entender o como se que nos leva a assumir que a realidade é também uma construção de linguagem. Estes dois como se não diferem tanto e suas águas nunca mansas costumam se misturar em nosso emaranhado de ideias e ainda mais no sonho. Se a ficção se parece com a vida cotidiana é porque a vida cotidiana também se parece com a ficção. Ficção etimologicamente é fingir, que é próprio tanto da literatura como da vida. Ademais, em última instância, o mecanismo cerebral por meio do qual somos capazes de conceber alguém inexistente (um personagem, um cenário, um tempo, um lugar imaginários) é paralelo e essencialmente igual ao que nos permite ter uma ideia do outro em sociedade. Ambos, o personagem e você, estão feitos da mesma matéria: de ideias, de linguagem, de imagens. (VOLPI, 2011, p. 19). É necessário que fique bem claro: a mente humana aborrece a mentira; ela é adicta à ficção. Por isso, enquanto estamos diante de um relato ficcional (filme, romance, conto, ópera, etc.) suspendemos nosso juízo de realidade e o relato se torna real. Isto é verdade e quiçá valha um argumento banal como é o de constatar que os relatos de ficção são tão antigos quanto o é a humanidade, assim como os relatos míticos e os religiosos. Em resumo, não lemos ficções apenas para nos divertirmos; a ficção não é um luxo; sua função na cultura humana está ligada à necessidade de nos identificarmos com outros e de nos inventarmos a nós mesmos. Por último, ela também cumpre uma função vital para tratar a realidade cotidiana e para lidar com a doença, com a morte, com a inveja, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 130 com o ciúme, com o medo do dentista, com a tortura física dos cárceres políticos ou não, com a câmara de gás, com o forno crematório, com o desengano com o outro, com a angústia que arremete sem avisar e, assim o esperamos, como multiplicador da felicidade. O modo ficcional, na verdade, pertence à constituição do ser humano e faz parte de sua formação paulatina como pessoa. Quem viu crescer uma criança pode dar fé desse mecanismo. As crianças crescem num mundo de ficção onde os objetos e as pessoas cumprem uma função real que lhes permitem se constituir em sujeitos, conforme vão se identificando com personagens e com objetos que possuem propriedades mágicas e fantásticas, mas que permitem à criança construir um sentido de realidade para se inserirem com sucesso na sociedade adulta. Aliás, a criança que é privada deste tipo de atividade não se desenvolve intelectualmente tão bem quanto aquela que passa por esta etapa de forma ótima. A criança vive num limiar, espaço e tempo de um ritual de passagem, onde se entrelaçam realidade e ficção. Nesse limiar se torna uma pessoa – cria sua máscara – e esse processo emana da confluência de práticas cotidianas de brincadeiras e relacionamentos com o entorno, ambas filtradas por uma prática ficcional que seria difícil não qualificar de inata, isto é, própria do funcionamento do cérebro humano, independentemente da cultura da criança, ainda que esta seja fundamental para acolher esse funcionamento ficcional inato e guiá-lo segundo suas pautas e tradições. Nesse sentido a capacidade de ficção não difere da aptidão à linguagem, que sendo também inata deve ser acolhida por uma cultura para se desenvolver. Na infância, a ficção se manifesta em absolutamente tudo, seja ao brincar, ao comer, ao passear, ao se mexer cotidianamente no universo familiar, ao tomar banho, etc. Na idade adulta, a ficção se dá dentro de certos modelos culturais, que na nossa sociedade ainda são a leitura de obras ficcionais, o cinema, o teatro, dentre outros. Ademais, o papel da ficção é fundamental na construção do eu. Se observarmos a criança, veremos que a formação de sua identidade está intimamente ligada a ela. Ser eu, ser você, significa se imaginar, se construir. O eu é, assim, a construção de uma ficção. Como bem o lembra Volpi, o eu não corresponde a nenhuma estrutura anatômica e não se encontra em nenhuma parte do cérebro (VOLPI, 2011, p. 61). A consciência e o eu se dão no âmbito das ideias e não no âmbito dos neurônios e suas conexões. Assim, pode-se dizer que estamos feitos da GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 131 mesma matéria que estão feitos os personagens de ficção: estamos feitos de ideias. E, de fato, quem viu como se produz o crescimento de um ser humano, percebe que o eu é algo que se constrói numa relação social e que não é algo inato. O mesmo acontece com a consciência, que evolui à medida que o cérebro se desenvolve fisicamente, mas também à medida que o indivíduo vai aumentando suas experiências sociais. Dessa maneira, é possível concluir, junto com Volpi, que o eu é um romance que escrevemos lentamente com a colaboração dos outros (VOLPI, 2011, p. 73). Pouco importa se a literatura perdeu o poder social de impactar vidas. O que devemos entender e fazer entender pelo menos a nossas autoridades políticas, tão marcadas pelo nosso tempo – marcado pelo quantitativo, pelo tecnológico e pelo capital –, é que existe um arquivo literário milenar que é acrescido dia a dia e deve ser considerado como um patrimônio da humanidade onde leitores profissionais se debruçam ao longo de uma vida acadêmica voltada ao ensino e à pesquisa contribuindo com o desenvolvimento humano, tão necessário, inclusive, para fabricar parafusos, formar administradores, engenheiros e advogados. A crise da literatura não é a crise da ficção porque esta é tão humana quanto é a linguagem, a qual não saberia representar o mundo sem o artifício do fingimento e a invenção da realidade e da verdade. FICTION AND LIFE: ALLEGATIONS TO REFLECT UPON A LITERATURE IN CRISIS Abstract: Our objective is to reflect upon the present crisis undergone by Literature and Literary Studies to propose rethinking a new form of literary writing and reading encompassing both the exhaustion of a paradigm and the emergence of another. While Tzvetan Todorov refers to Literature in danger of extinction, and Dominique Maingueneau focusses on the analysis of the causes of the so-called end of Literature, Jorge Volpi changes the focus of discussion by emphasizing the intrinsic value of fiction to human life. Thus, he engages in a secular debate, previously signaled by Jorge Luis Borges, that of the AristotelicPlatonic opposition on the function of the aesthetic imitation as a form of knowledge of the world and construction of Truth. Our contribution to this debate is the discussion of a Testimonial Literature, following the line proposed by Márcio Seligmann-Silva, based on the concept of a fractured subject that allows understanding change in the form of representation, summarized in the idea of ‘representation of recriation’, as proposed by Luiz Costa Lima. In conclusion, we dialogue with Juan José Saer and Jorge Volpi on the relation GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 132 between fiction and life, and suggest that the crisis can be overcome as we become more and more human. Keywords: Literature. Crisis. Fiction. Life . REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Buenos Aires: Ediciones Libertador, 2004. BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Madrid: Alianza editorial, 1999. BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones. Buenos Aires: Alianza Emecé, 1993. COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000. FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2010. 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GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 134 SOBRE A IDADE DAS CRISES: AS INTER-RELAÇÕES SUJEITOIDENTIDADE-FEMINISMO NA PÓS-MODERNIDADE Aparecido Donizete Rossi – UNESP 1 Resumo: O presente ensaio pretende refletir crítica e teoricamente sobre as interrelações entre sujeito, identidade e Feminismo no contexto da Pós-modernidade, contexto esse aqui denominado, para o que se pretende, “Idade das Crises”. Esses três aspectos serão abordados sob uma perspectiva histórica e problematizados a partir de um olhar filosófico marcadamente pós-estruturalista, na linha da Desconstrução derridiana. No conjunto, o que se objetiva especificamente é chegar a uma discussão da inter-relação indecidível entre pensamento feminista e Pós-modernidade, uma das configurações das diversas crises da contemporaneidade. Para tanto, não é possível refletir sobre um e outro sem uma prévia discussão sobre o sujeito pós-moderno e sua identidade. É essa discussão que permitirá contextualizar e discutir o Feminismo dentro do objetivo proposto. Tal discussão será estruturada em torno da palavra “crise” que, em composição com a palavra “idade”, será tomada como sinônimo de “pósmodernidade” e de “contemporaneidade”. “Idade das Crises”, “pósmodernidade”, “contemporaneidade” e “Feminismo” serão lexemas assombrados pelo fenômeno do phármakon, um dos aspectos-chave do pensamento desconstrucionista derridiano, o qual será a força gravitacional que aproxima e distancia, em uma relação indecidível, os quatro lexemas. Palavras-Chave: Pós-modernidade. Feminismo. Desconstrução. Identidade. Sujeito. INTRODUÇÃO Vivemos em uma época em que filmes como Blade Runner, o caçador de andróides (1982), de Ridley Scott; O exterminador do futuro (1984), de James Cameron, e A.I. – Inteligência artificial (2001), de Steven Spielberg, parecem proféticos, pois a cada instante nos aproximamos mais de seus contextos. Filmes como Matrix (1999), dos irmãos Wachowski; Dogville (2003), de Lars von Trier, e Babel (2006), de Alejandro González Iñárritu, nos colocam diante de nossa própria condição humana hoje, século XXI, e ficamos impressionados, estarrecidos ou horrorizados com a desagradável semelhança dessas obras 1 UNESP – FCL-Ar – Departamento de Letras Modernas. Araraquara/SP, Brasil, CEP: 14800-901. E-mail: [email protected] GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 135 à “realidade” (ou seria a “realidade” que é semelhante a essas obras?). No final do século XIX e início do século XX, um austríaco chamava essa “desagradável semelhança” de estranho (umheimliche) e dizia que “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (FREUD, 1969, p. 238). Atualmente, a literatura dita “séria” permanece no Realismo do século XIX, mesmo depois de James Joyce, Virginia Woolf, Jorge Luis Borges e Guimarães Rosa; ou se volta para o hiper-realismo e para o simulacro, já que talvez nem haja mais possibilidade de literatura pós Joyce, Woolf, Borges e Rosa. A literatura dita de “diversão”, ou literatura de massa, ora se volta para os mitos, para o épico, para o gótico ou para a ficção científica; ora se volta para a autoajuda. E nessa contenda entre literatura “séria” e literatura de “diversão” os dois lados se esquecem do velho Horácio, que no século I d.C. já afirmava que qualquer forma de expressão literária deve servir para docere et delectare. A exceção a esse esquecimento coletivo parece ser a literatura chamada pós-moderna, uma espécie de hymen ou fenda entre a literatura “séria” e a literatura de massa, mas muitos nem mesmo acreditam que algo desse tipo possa existir haja vista a resistência e polêmica que permanecem ainda hoje em torno do próprio termo “pós-moderno”. Em uma era em que “Fonte” (1917), de Marcel Duchamp, está em exposição no Louvre; Madonna e Michael Jackson já são clássicos da música pop; Lady Gaga é um fenômeno que impressiona o mundo; os filmes de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez são cult e Paulo Coelho é um imortal da Academia Brasileira de Letras, o presente texto — menos um artigo que um ensaio — tenta desenhar um panorama, fazer uma breve arqueologia, de três aspectos que marcam e contribuem para esse multiverso de contradições, fragmentos, caminhos cruzados e distanciados, conexões desconexas e aproximações improváveis que é chamado pós-modernidade2, os tempos atuais (segunda metade do século 2 Costuma-se fazer uma distinção entre Pós-modernidade (histórica/ideológica) e Pós-modernismo (estético). Contudo, tal distinção é reconhecidamente arbitrária e sua discussão em termos teóricos não é objeto deste ensaio. Por essa razão, as palavras “Pós-modernidade” e sua correlata “pós-moderno(a)” serão aqui empregadas com uma sobreposição de sentidos: significarão ao mesmo tempo o tempo histórico atual, marcadamente pós 1950, e o desvio que a teoria, a crítica, a literatura e as artes dessa mesma época apresenta ante as GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 136 XX até o presente), que aqui denominamos Idade das Crises, dado “crise” ser um signo que parece urdir de modo intangível e imaterial esse emaranhado disforme e caótico. Os três aspectos dessas breves considerações — o sujeito, a identidade e o Feminismo — serão abordados sob uma perspectiva histórica e problematizados a partir de um olhar filosófico marcadamente pós-estruturalista, na linha da Desconstrução derridiana. No conjunto, o que se objetiva especificamente é chegar a uma discussão da inter-relação indecidível entre pensamento feminista e pós-modernidade, uma das configurações das diversas crises da contemporaneidade. Para tanto, não é possível refletir sobre um e outro sem uma prévia discussão sobre o sujeito pós-moderno e sua identidade. É essa discussão que permitirá contextualizar e discutir o Feminismo dentro do objetivo proposto. A IDADE das Crises Hoje A História, em sua sina didática de ciência dependente das pseudo-grandezas físicas do Tempo e do Espaço, identifica várias idades, épocas ou eras na cronologia da existência do Mundo e dos seres humanos no Mundo. Há, por exemplo, uma Idade da Pedra, anterior à escrita e, por isso mesmo, anterior a tudo, inclusive à própria História (paradoxo interessante: a História historiciza algo anterior a ela mesma). Há ainda a Idade Antiga, que abarca o surgimento da escrita e das primeiras ideologias humanas (a própria História, sociedade, política, economia, religião etc.). Há também a Idade Média que, ironicamente, tem seu primeiro momento — um breve período de cerca de dez séculos — conhecido como Idade das Trevas, época em que são gestadas e desenvolvidas as culturas e línguas europeias. Posteriormente, tem-se a era das grandes navegações, que resultaram na “descoberta” do Novo Mundo (América e Oceania), e consequentemente na colonização e exploração desses lugares. Houve ainda a Idade das Luzes, o Iluminismo, a era dos grandes desenvolvimentos científicos, do domínio da razão e da lógica, da solidificação dos grandes sistemas filosóficos. Mais recentemente tem-se a Idade Moderna, era das revoluções sócio-políticoculturais, do refinamento científico-tecnológico, das várias guerras propostas do Modernismo das duas primeiras décadas do século XX sem, no entanto, deixar de pertencer a esse mesmo Modernismo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 137 mundiais e da conquista espacial. Mas e hoje, século XXI, caberia ainda perguntar em que “idade” histórica se vive? A resposta está longe de ser simples, já que não dispomos do distanciamento (pseudo)temporal que permitiu aos historiadores nomear as idades do Mundo. Paralelamente a essa consideração, não é nosso objetivo aqui traçar todo um panorama exclusivamente historicista que, por ventura, resulte em uma possibilidade de resposta à pergunta, pois questões de ordem metodológica se instaurariam, a começar pelo próprio conceito de cronologia relacionado à História: a História não é cronológica, mas sim helicoidal. Logo, há momentos de progresso, estabilidade, retrocesso e repetição situacional em todas as idades do Mundo, o que deita por terra a noção positivista e maniqueísta de progresso implícita a toda concepção teórica de ordem cronológico-linear e, consequentemente, coloca em cheque o próprio conceito de “idade” ou “época” histórica. Tampouco é nosso objetivo atermo-nos exclusivamente a quaisquer possibilidades dialéticas de resposta à pergunta formulada, pois desde finais da década de 1960, com os assim denominados pós-estruturalismos, não é mais possível falar ou utilizar como método exegético qualquer sistema dialético sem questionamentos prévios. Antes, porém, para refletir sobre a questão parece-nos necessário cercá-la em sua pluralidade de respostas possíveis, visto que estamos vivenciando o turbilhão da contemporaneidade e, como tal, não é possível identificar uma linha argumentativa que permita um vislumbre do que Hegel chamaria “espírito absoluto” dessa era, mesmo porque essa era parece não ter um “espírito absoluto”. Ainda que tenhamos nos valido da História para propor a pergunta, a resposta é uma colcha de retalhos, uma miríade de fragmentos que não compõe um todo, mas sim um emaranhado de linhas de pensamento que apontam para diversas direções, as quais levam a todos os lugares e a nenhum lugar ao mesmo tempo. Dentro desse escopo, a reflexão sobre “em que idade histórica se vive?” só poderia se iniciar, como ensina Hans Ulrich Gumbrecht (1988, p. 107), de maneira indutiva, já que não é possível deduzir algo de um caos de fragmentos que se entrecruzam, mas não necessariamente se relacionam: vivemos na Idade das Crises. A palavra “crises” é aqui usada no plural como uma espécie de metáfora para uma infinidade de nomenclaturas que tentam abarcar conceitualmente, e por isso mesmo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 138 falham, os diversos fenômenos e pensamentos sócio-histórico-artísticosculturais de um período da História do Mundo e da humanidade que se inicia por volta de 1950 e estende-se até o presente momento. A título de ilustração, eis algumas dessas nomenclaturas: sociedade de consumo; sociedade do espetáculo; capitalismo tardio; simulacro; sociedade transparente; pensamento fraco; anti-humanismo; cultura de massa; hiperrealismo; Desconstrução; microfísica do poder; razão cínica; pósestruturalismo; pastiche; esquizofrenia; contemporaneidade; modernidade líquida; modernidade tardia; pós-modernidade. É claro que ao denominarmos, ainda que metaforicamente, “Idade das Crises” o momento histórico atual estamos tentando tornar logos algo que desarticula o logos — entendido logos como método de instauração da Metafísica ocidental —, pois indutiva ou dedutivamente as diversas nomenclaturas elencadas acima, que de uma forma ou de outra também tentam racionalizar o que desarticula o próprio conceito de Razão, apresentam um ponto em comum, qual seja a crise de algo, e aqui reside a impossibilidade de identificar o “espírito absoluto” do nosso tempo, visto que esse “espírito” está em crise. Ele é “só-crise”. Tornar logos algo que desarticula o logos é uma aporia, uma antítese que permanece insolúvel, já que o pensamento desconstrucionista bem ensina que não é possível destruir e nem sair do logos. Isso pode ser bastante produtivo e resultar em reflexões interessantes sobre a questão ora proposta se acolhermos a aporia como uma marca do nosso tempo, ou seja, se partirmos do princípio teórico de que a crise é uma característica do agora, podendo ser historicamente passageira ou perene, como a própria hélice da História. Sendo assim, teremos “uma consciência intensa da historicidade, contingência, limitação, de todos estes sistemas [as nomenclaturas anteriormente listadas], a começar pelo [nosso, por quem somos]” (VATTIMO, 1992, p. 15). “Mapeando” as principais crises da Idade das Crises Ao acolhermos a aporia como marca do nosso tempo e, consequentemente, termos uma “consciência intensa” da época em que vivemos instaura-se um problema filosófico de ordem existencial que levará à emergência do phármakon como fenômeno epocal, visto estar ele “compreendido na estrutura do lógos” (DERRIDA, 2005, p. 62, grifo do autor) à medida que “suplemento perigoso que entra por arrombamento exatamente naquilo que gostaria de não precisar dele e que, ao mesmo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 139 tempo, se deixa romper, violentar, preencher e substituir, completar pelo próprio rastro que no presente aumenta a si próprio e nisso desaparece” (id., p. 57, grifo do autor). Assim, ter consciência, especialmente intensa como quer Vattimo, da época em que se vive, além de pressupor um distanciamento crítico em relação ao próprio momento histórico, implica, necessariamente e na mesma medida, ser responsável por essa época. Sendo conscientes e, portanto, responsáveis por nossa época; e sendo tal época caracterizada por “conceituações” como “colcha de retalhos”, “miríade de fragmentos” e “emaranhado de direções que levam a todos os lugares e a lugar nenhum”; somos então conscientes e responsáveis pelo nosso próprio sentimento de deslocamento e de descentramento que resultam dessa consciência/responsabilidade. A questão que se impõe é: nós, seres humanos do século XXI, queremos ter essa consciência e essa consequente responsabilidade? Pode-se argumentar se se trata de uma questão de escolha querer ou não ter tal consciência/responsabilidade, ou se se trata de uma questão de ser lançados inelutavelmente na contingência do momento. É sabido, contudo, que em termos existencialistas a escolha é sempre uma contingência, logo escolher é querer, e “querer” ou “não querer” são prerrogativas do sujeito histórico, que só pode ser no optar por uma coisa ou outra na contingência do existir. Esses pontos desembocam na questão do phármakon, ou seja, ao que tange às consequências da escolha, já que “não querer” é também uma escolha. Assim, escolher ter consciência/responsabilidade em relação ao momento histórico presente equivale a ter essa mesma consciência/responsabilidade frente os próprios sentimentos de deslocamento e descentramento que “definem”, por assim dizer, o sujeito atual. Deter a consciência/responsabilidade desses sentimentos implica um eterno viver na angústia e no desespero de perceber-se e saber-se preso a um presente que é pastiche ou simulacro do passado, em um presente que é um eterno recontextualizar e reconfigurar do passado, estático e perpétuo, sem possibilidade de futuro, incorrendo no que Jameson (1985, p. 18), resgatando Lacan, justapôs ao pastiche como uma das principais características da Idade das Crises: a esquizofrenia. Sob essa perspectiva, o sujeito histórico torna-se então um esquizofrênico, um psicótico que tem a terrível consciência de ter, nas palavras do mesmo Jameson, “uma visão indiferenciada do mundo no presente, uma experiência que não é de modo algum agradável” (id., p. 23). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 140 Há, no entanto, outra possibilidade de ler essa escolha, uma possibilidade talvez mais positiva. Se re-inscrevermos as palavras de Gianni Vattimo anteriormente citadas — “uma consciência intensa da historicidade, contingência, limitação, de todos estes sistemas [as nomenclaturas anteriormente listadas], a começar pelo [nosso, por quem somos]” (1992, p. 15) — em seu próprio texto, podemos acolher essa “consciência intensa da historicidade” como um sentimento de igualdade na diferença. Assim, justamente por serem características de toda a nossa época a contingência, a limitação e a fragmentação, não estamos sós em nosso sentimento de deslocamento e descentramento, o que acarretaria, em um primeiro momento, num falso sentimento de pertença (pertença ao grupo dos que fizeram essa escolha, ao grupo dos diferentes). Isso, evidentemente, constitui uma “nostalgia dos horizontes fechados, ameaçadores e tranquilizadores ao mesmo tempo” que “continua ainda radicada em nós, como indivíduos e como sociedade” (id., p. 16 – 17). Todavia se, a partir de uma mudança de paradigma da compreensão do mundo como algo fechado e acabado para algo aberto e em permanente mutação, o ser humana aceitar que “viver neste mundo múltiplo significa fazer experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento”, então será possível nos tornarmos “capazes de alcançar esta experiência de oscilação do mundo pósmoderno como chance de um novo modo de ser (talvez: finalmente) humanos” (id., ibid.). A proposta positiva de Vattimo constitui-se, dessa forma, em acolher a “experiência de oscilação do mundo pós-moderno” como um constituinte desse Mundo, e não lutar contra tal experiência — luta essa que parece ser pressuposta na pessimista visão existencialista acima apontada, da qual também participa Fredric Jameson. Trata-se de acolher a crise, a aporia, marca do momento histórico atual, em uma atitude anti-humanista, anti-metafísica e, portanto, antilogocêntrica: uma atitude fraca, em concordância com a teoria do pensamento fraco cunhada pelo próprio Vattimo. O pensamento fraco assim o é, na acepção pejorativa da palavra “fraco”, se colocado em relação de oposição hierárquica frente à Metafísica ocidental, linha de força e sustentação da existência do Ocidente. Contudo, o alento desse pensamento reside em sua própria fraqueza: ele corrói aos poucos e subrepticiamente as bases de sustentação da metafísica e expõe a arbitrariedade dessas bases, disseminando contaminações no sistema e GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 141 desarticulando centro e margem como um vírus incontrolável, incontrolável porque produto do próprio sistema. O outro lado da questão sobre a consciência/responsabilidade ante o momento histórico atual é escolher não querer ter essa consciência/responsabilidade, o que, por si só, resultam em alienação. Em termos existencialistas, mesmo a alienação é uma escolha, logo o sujeito não pode ser julgado ou criticado por isso. No entanto, os sentimentos de deslocamento e descentramento permanecem presentes, mas com um agravante: são sentidos pelo sujeito, porém estrangeiros a ele próprio e, “estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia” (KRISTEVA, 1994, p. 9). Escolher não querer, portanto, resulta no sujeito tornar-se, para glosarmos o texto de Kristeva, estrangeiro para si mesmo, o que o levará à mesma esquizofrenia apontada anteriormente por Jameson, mas uma esquizofrenia de ordem estranha, quiçá aberrante, pois lhe falta a consciência espaço-temporal: ele sabe-se psicótico, mas não sabe por que ou, de modo mais adverso, não quer saber por quê. Veja-se que a visão positiva de Vattimo não se aplica a essa possibilidade de escolha, já que há um negar em se ter “uma consciência intensa da historicidade”, mesmo estando o sujeito na contingência da existência histórica. Nos termos da manifestação do phármakon, escolher querer ter consciência/responsabilidade ante o momento histórico ou não são posturas indiferentes, pois a crise — os sentimentos de deslocamento e de descentramento — permanece fato angustiante, sempre no limiar da psicose, havendo apenas uma possibilidade de salvação e perdição e apenas para um dos aspectos da escolha: o acolhimento da aporia, a “experiência de oscilação do mundo pós-moderno”. Configura-se assim a crise do sujeito pós-moderno, talvez o fulcro da Idade das Crises. Mas a crise do sujeito frente ao seu tempo histórico tem um reflexo em e é refletida por outra crise: a crise da identidade. A questão “nós, seres humanos do século XXI, queremos ter essa consciência e essa consequente responsabilidade?” suscita outra questão: quem somos nós agora? A agregação do advérbio de tempo “agora” à pergunta é propositalmente sintomática: pressupõe que há uma diferença epistemológica entre quem somos hoje, quem fomos ontem e quem seremos amanhã, o que implica reconhecer que não há uma resposta unívoca e nem mesmo dialética para “quem somos nós?”. Só há, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 142 então, possibilidades múltiplas de resposta à questão, e essa multiplicidade de respostas está, de alguma forma, vinculada às grandezas físicas relativas do Tempo e do Espaço, condições sine qua non da História, o que leva a uma (in)conclusão primeira de que a cada época histórica o sujeito assume ou tem uma identidade diferente, logo a identidade é infixa, móvel, impossibilitando tratá-la em termos de unidade ou de todo. Essa constatação compõe propriamente o cerne da crise da identidade, pois desarticula a primeira concepção pós-Idade Média de sujeito, qual seja a do sujeito Iluminista: “um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia” (HALL, 2006, p. 10 – 11). Sob essa perspectiva — que permaneceu corrente durante todo o século XVIII e pelo menos durante a primeira metade do século XIX —, a identidade do sujeito é una e imutável. Em termos históricos, tal concepção explica-se principalmente pela ascensão da burguesia, que privilegiou a individualidade frente à visão feudal de coletividade até então dominante. Observe-se que, nesse período, o Mundo e a sociedade também eram entendidos como unos e imutáveis. Note-se também que essa concepção só começará a se esfacelar com a ascensão e desenvolvimento do romance enquanto gênero literário. A partir da segunda metade do século XIX, especialmente após a publicação das teorias sócio-políticas de Karl Marx e Friedrich Engels, outra concepção de sujeito, e consequentemente outra concepção de identidade, entrou em cena: a de que o sujeito e sua identidade são formados na interatividade com o meio sócio-histórico-políticoeconômico. Assim, “de acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade” (HALL, 2006, p. 11). Essa perspectiva dialética do sujeito-identidade está inserida no contexto histórico das grandes descobertas científicas e transformações tecnológicas ocorridas no século XIX, que tornaram a vida cotidiana mais dinâmica e, por conseguinte, mais instável e imprevisível, a ponto de influenciar o próprio universo psíquico do ser humano. Descobertas como a teoria darwiniana da seleção natural, o telégrafo, o telefone, o raio-X e, no início do século XX, o inconsciente revelaram aspectos e possibilidades da existência até então ignorados pelo sujeito, que passou a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 143 vislumbrar seu mundo como algo eivado de coisas desconhecidas, e não mais como algo pronto e acabado. A percepção de mundo passa então a ser infixa, logo as interações do sujeito com esse mundo também o são, bem como a relação do sujeito para consigo mesmo e com o outro. Entretanto, essa relação sujeito/mundo ainda é concebida por pares conceituais: eu/outro, dentro/fora, individual/social etc. Não se pode negar que é mérito dessa visão dialética ter lançado a semente da infixidez da identidade do sujeito, algo que esteve em voga pelo menos até o início da década de 1960. Todavia, no final dessa mesma década tem-se o marco inicial da crise da dialética, que passou a ser duramente contestada pela essência maniqueísta de oposição e hierarquia que é inerente a todo par conceitual. É nesse momento crítico que desponta uma terceira concepção de identidade, decorrente justamente da crise da dialética e da crise de uma miríade de aspectos sócio-político-econômicos, históricos, científicos e ideológicos: a concepção de que a identidade é provisória e variável. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado [sic] como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...] À medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13). Explica-se dessa forma a condição de deslocamento e de descentramento do sujeito pós-moderno, dois aspectos que são, na verdade, as crises de identidade propriamente ditas: identidade deslocada porque a cada instante e a cada situação o sujeito precisa recorrer a uma máscara de si que se ajuste ao dado instante e à dada situação. Essa infinita troca de máscaras mina, descentra a própria concepção de eu, eu GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 144 esse que, em seu perpétuo deslocamento identitário e entrecruzar com outras identidades, perde-se em si mesmo e desdobra-se em múltiplos “eus”, em fragmentos que, assustadoramente, não são partes de um todo originário: são fragmentos que são origem e fim em si mesmos. A identidade do sujeito pós-moderno é, dessa forma, só-máscaras, não existindo um rosto original encoberto ou disfarçado: o rosto/identidade original do sujeito é a própria máscara por ele usada no dado instante e situação em que vive. A identidade pós-moderna, a resposta para “quem somos nós hoje?”, é, talvez, simulacro, “efeito de imaginário escondendo que não há mais realidade além como aquém dos limites do perímetro artificial” (BAUDRILLARD, 1991, p. 23). A implicação mais imediata desse simulacro que é a identidade pós-moderna resvala no fato de que “a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada [sic] ou perdida” (HALL, 2006, p. 21). Isso ocorre porque a infixidez identitária do sujeito pós-moderno se dá em uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que há uma fragmentação do eu em razão do deslocamento e do descentramento, há também uma fragmentação, em várias possibilidades de identificação, do universo social habitado por esse eu: sexual, racial, cultural, de classe, de ideologias etc. Mais do que simulacro per se, a identidade do sujeito pósmoderno é um jogo de simulacros, um jogo de identidades e de identificações pautado pela política da diferença. Essas constatações nos levam a questionar quais fatores teriam contribuído para o surgimento dessa identidade pós-moderna, uma identidade só e em crise. A crise da dialética, conforme evocada, é talvez a síntese desses fatores, e por isso mesmo muito genérica para os desdobramentos da questão. É necessário então investigar alguns desses aspectos específicos que resultaram nessa identidade-crise pós-moderna. As bases da Idade das Crises Stuart Hall, em seu estudo bastante programático e lúcido sobre a identidade cultural na pós-modernidade, aponta cinco fatores que resultaram na identidade do sujeito pós-moderno, fatores esses que, segundo o autor, descrevem o deslocamento e o consequente descentramento desse sujeito “através de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno” (2006, p. 34): o Marxismo, a Psicanálise freudiana, a Linguística saussureana, o pensamento de Michel GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 145 Foucault e, finalmente, o Feminismo. As atenções do presente ensaio recairão sobre o Feminismo. Contudo, não é possível abordar esse movimento social e pensamento ideológico como (re)agente no contexto da Idade das Crises sem problematizar os outros quatro fatores apontados por Hall, visto que parece haver uma confluência desses na própria emergência do Feminismo. Dessa forma, faz-se antes premente um breve panorama de tais elementos de confluência. No que tange ao Marxismo, conforme anteriormente dito, sua contribuição mais premente para a composição das multifaces fragmentadas do sujeito pós-moderno foi o pensamento dialético aplicado à relação sujeito-sociedade. Esse pensamento rejeita a unicidade do sujeito cartesiano — o “cogito, ergo sum” —, ou seja, rejeita tomar o ser humano como centro e essência da existência. No pensamento marxista, o sujeito está em permanente interação com o seu meio sócio-políticoeconômico, portanto esse sujeito é resultante e determinado por tal meio, e aqui jaz o calcanhar de Aquiles do pensamento dialético: privilegiar apenas um dos lados dos pares conceituais. Por outro lado, o pensamento marxista também rejeita a “coletividade” do sujeito medieval — coletividade essa que se fazia unívoca em torno do senhor feudal — em prol da emergência da burguesia e da consequente socialização da economia e da política. Dessa forma o Marxismo, segundo Hall, desloca “qualquer noção de agência individual” (2006, p. 35), desmanchando no ar a solidez de uma essência humana. Na mesma linha do pensamento dialético marxista encontra-se, de maneira geral, a Psicanálise, que atribui a formação da personalidade do sujeito à inter-relação eu-outro, ou ego-superego. Entretanto, os estudos psicanalíticos de Sigmund Freud acrescentaram um terceiro item a esse par conceitual, uma terceira e incômoda margem ao rio do logos: o inconsciente. O inconsciente é e está no sujeito enquanto face desconhecida do eu, o que em si contribui ainda mais para o deslocamento da unicidade essencial do sujeito cartesiano. Ao mesmo tempo, pelo seu funcionamento irracional e ilógico, o inconsciente coloca em xeque os parâmetros logocêntricos da sociedade em que o sujeito está inserido, o superego. Jacques Lacan, discípulo de Freud, é quem desdobra as implicações conceituais do inconsciente em sua teorização sobre o estádio do espelho. Lacan demonstra que a identidade é um processo aberto de formação ao longo do tempo, processo esse que é paradoxalmente vivenciado pelo sujeito como algo uno. Portanto, a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 146 unidade identitária do sujeito é uma (auto)ilusão de ordem inconsciente vivenciada por esse sujeito a partir de sua formação pelo outro, ou seja, a imago da identidade una é apenas um dos sistemas de representação simbólica que compõem a existência humana. Como tal, a identidade surge sempre de “uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (HALL, 2006, p. 39, grifos do autor). Dessa forma, o inconsciente desarticula a noção unitária e também a noção dual de sujeito, cindindo assim o par conceitual eu-outro, ou indivíduo-sociedade, e abrindo talvez o primeiro precedente do que mais tarde seria a multiplicidade de fragmentos hoje chamada de sujeito/identidade pósmoderno. Na mesma corrente lacaniana dos sistemas de representação simbólica que compõem a existência humana está a língua. A língua, na visão da Linguística saussureana, é um sistema vivo e de cunho social no qual o sujeito é e está lançado. Portanto, falar uma língua não é apenas a expressão de um sujeito uno, mas também a ativação da “imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais” (id., p. 40). Falar uma língua significa, nesses termos, colocar em jogo as inter-relações individuais e sociais do sentido, visto que os significados das palavras são infixos e se dão por uma relação de similaridade/diferença. Assim, o sentido é sempre instável e mutante, permanentemente aberto e impossível de ser determinado ou controlado pelos usuários da língua. Como a existência, tanto individual (personalidade) quanto social (cultura), é feita de signos linguísticos, a identidade do sujeito é igualmente instável e em perpétua mutação, incontrolável e imprevisível. Da mesma forma que não há unicidade semântica do signo, pois ele sempre comporta ecos das infinitas relações de similaridade/diferença com outros signos, não há unicidade essencial do sujeito falante da língua. Justamente pelo caráter permanentemente mutável de sua identidade, ou seja, pela multiplicidade dessa identidade, que a torna infinitamente aberta e inacabada e, como tal, incontrolável e imprevisível — indecidível, para resumir a problemática em um termo chave da Desconstrução derridiana —, o sujeito é manipulável por relações de poder político-sociais que objetivam controlar, disciplinar a sua indecidibilidade identitária a fim de colher benefícios para as instituições que formam e/ou integram a sociedade, residindo aqui o caráter político, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 147 por exemplo, da propaganda, da moda e da cultura de massa como um todo. Como se sabe, o formulador desse pensamento sobre o sujeito/identidade pós-moderno é Michel Foucault, que o denominou “poder disciplinar”. O objetivo do “poder disciplinar” consiste em manter “as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres do indivíduo”, assim como sua saúde física e moral, suas práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento fornecido pelas “disciplinas” das Ciências Sociais. Seu objetivo básico consiste em produzir “um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil” (HALL, 2006, p. 42). Sob essa perspectiva Hall acrescenta que, paradoxalmente, “quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual” (2006, p. 43). Em suma, quanto maior a organização social, quanto maior a institucionalização da sociedade, maior o autoisolamento do sujeito pós-moderno, consequentemente maior o seu drama existencial e maior o seu deslocamento e descentramento de si mesmo, de sua própria sociedade e de seu tempo histórico. Frente a essas implicações da concepção foucaultiana de poder disciplinar desponta, tangencial ou marginalmente, outro aspecto da questão: é esse mesmo poder que sustenta a existência das instituições ocidentais, ou seja, da própria sociedade ocidental e mesmo das interrelações pessoais, que são também institucionalizadas. Dentro desse escopo, o poder disciplinar, bem como todas as formas de poder, é patriarcal, já que na tradição do Ocidente, inteiramente calcada e resultante das religiões judaico-cristãs, é o pai quem — à maneira do seu arquétipo, o Deus-Pai — impõe a disciplina no exercício de seu “pátrio poder”. O poder, portanto, esteve (e, no geral, ainda está) sempre nica e exclusivamente na mão do homem. A reação a essa ditadura falocêntrica só se deu abertamente e em escala mundial a partir de finais da década de 1960, com o último dos cinco fatores apontados por Stuart Hall como determinantes do aparecimento do sujeito/identidade pós-moderno: o Feminismo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 148 RELAÇÕES e tensões entre a Idade das Crises e o Feminismo De certa maneira, tudo que foi dito até o momento conflui ou reflui para o Feminismo, pois, na sua condição de movimento social de reação ao status quo Falogocêntrico e, ao mesmo tempo, enquanto pensamento crítico e teórico, esse movimento contribuiu sobremaneira para o deslocamento e descentramento característicos do sujeito pósmoderno em razão do grande impacto causado pela contestação das categorias de gênero e sexo, fundamentais na manutenção do poder disciplinar e ao mesmo tempo índices linguísticos, aspectos sóciohistórico-biológicos, fatores psicológicos e pares conceituais. Em termos sócio-históricos, o Feminismo passou por três momentos distintos e complementares. O primeiro desses momentos — segunda metade do século XIX até a década de 1930 — foi o das lutas pelo direito ao voto e por melhores condições de trabalho. Alguns acontecimentos importantes marcaram esse primeiro período. Um deles é a convenção de Seneca Falls, nos Estados Unidos, ocorrida em 1848. Organizada por Elizabeth Cady Stanton e contando com a presença de mulheres e homens de várias cidades do estado de New York e de outros estados, essa convenção chamou a atenção mundial à época por ter sido a primeira a discutir abertamente os direitos da mulher tomando por base as garantias igualitárias previstas a todo cidadão norte-americano na Declaração de Independência dos Estados Unidos. A proposta de Stanton e dos demais participantes era relembrar a toda sociedade estadunidense que as mulheres tinham os mesmos direitos civis, jurídicos, éticos e morais dos homens. O resultado da convenção foi um documento, The Declaration of Rights and Sentiments (1848), talvez o primeiro manifesto formal pelos direitos da mulheres no Ocidente. As lutas pelo direito ao voto ocorreram em vários locais e países no decorrer de todo esse primeiro momento, ora conjuntamente às lutas por melhores condições de trabalho, ora isoladamente. As lutas por melhores condições de trabalho, no entanto, foram mais marcantes por duas razões: primeiramente por serem manifestações públicas que, em várias ocasiões, resultaram em revezes violentos por parte das instituições da sociedade patriarcal, como o que ocorreu em 8 de março de 1857, na cidade de New York, em que a polícia prendeu 140 mulheres manifestantes em uma fábrica e ateou fogo ao lugar em seguida, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 149 resultando na morte de todas3. Uma segunda razão seria o vínculo dessas lutas feministas com o ascendente Comunismo (de linhagem marxista), que eivou o Ocidente com as lutas de classe. Duas das principais militantes feministas pelo direito ao voto e, principalmente, por melhores condições de trabalho foram a alemã Clara Zetkin (1857 – 1933) e a russa Alexandra Kollontai (1872 – 1952), ambas membros da intelligenzia do então nascente Partido Comunista nos seus respectivos países. Por razões políticas, o vínculo com o pensamento e a práxis marxista se tornou de ordem fantasmática a todo o Feminismo enquanto movimento social até os dias atuais, ainda que os escritos de Marx excluam abertamente a mulher das inter-relações sócio-político-econômicas. O segundo momento sócio-histórico do Feminismo é também o momento mais marcante do movimento. Gestado no período pós Segunda Guerra Mundial, o atualmente chamado Movimento Feminista veio à tona em finais da década de 1960, juntamente com todas as demais revoluções sócio-culturais preconizadas em maio de 1968 e com a eclosão do pós-estruturalismo e da consequente crise da dialética. Tratase de uma intrigante coincidência histórica (ou não) que o Movimento Feminista tenha surgido em momento tão peculiar: o momento da emergência da Desconstrução derridiana, da Psicanálise lacaniana, do “segundo” Roland Barthes, do pensamento de Michel Foucault e das demais teorias que passaram em revista o Estruturalismo então corrente em todas as áreas do saber; o momento das revoltas sociais, da consolidação das ditaduras na América Latina, do movimento hippie, de Woodstock, da esotérica “Era de Aquário”, do mundo bi-polarizado, da Guerra Fria e da Guerra do Vietnã. Catapultadas por interpretações diversas das ideias plantadas por Simone de Beauvoir em O segundo sexo (1949); tendo à frente militantes elevadas ao posto de ícones, como a norte-americana Betty Friedan — autora de A mística feminina (1963), o polêmico livro considerado o marco inicial do segundo momento feminista, e dona de uma das afirmações mais contundentes da época: “Que espécie de criatura seria 3 Em uma convenção mundial de mulheres militantes socialistas ocorrida na Dinamarca em 1910, a ativista alemã Clara Zetkin propôs a criação de uma data internacional de comemoração dedicada à mulher (8 de março, em homenagem às operárias mortas em New York), que se tornaria então o Dia Internacional da Mulher. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 150 ela que não sentia essa misteriosa realização [o orgasmo] ao encerar o chão da cozinha?” (FRIEDAN, 1971, p. 20) —; brandindo slogans como “O pessoal era o político, o literário era o pessoal, o sexual era o textual, a feminista era a redentora” (GILBERT; GUBAR, 2000, p. XX), esse segundo momento do Feminismo enquanto movimento social é caracterizado pelo extremo radicalismo de posições: fogueiras públicas de sutiã, reivindicações exacerbadas de ocupação do lugar do homem em todas as esferas sociais, igualdade absoluta e inconteste. Nos termos de tamanha radicalização, com o tempo o Feminismo assumiu contornos da própria ditadura falocêntrica por ele contestada e logo se revelou díspar: ocupar o lugar do homem em todas as esferas sociais, por exemplo, equivaleria unicamente a mudar o foco hierárquico do par conceitual homem/mulher, desta vez privilegiando a mulher. A oposição entre ambos permaneceria inalterada e, mais cedo ou mais tarde, resultaria em um novo arroubou radical: um possível “Movimento Machista” que reivindicaria os direitos do homem, nos mesmos termos das reivindicações feministas. Ficou claro então, mesmo para as feministas mais aguerridas, que o Movimento Feminista tinha uma falha conceitual que o mantinha inevitavelmente ligado aos preceitos da dialética patriarcal, contradizendo assim suas intenções políticas. A percepção de tal lapso levou ao surgimento do terceiro momento do Feminismo, que começou em finais da década de 1970 e desenvolve-se até o momento: o Feminismo acadêmico, ou teoria feminista. Durante a década de 1970 o Feminismo, seguindo os passos do pós-estruturalismo, invadiu o universo acadêmico e tornou-se um novo paradigma de análise ao problematizar as relações de gênero: “como as relações de gênero são construídas e experimentadas e como nós pensamos ou, igualmente importante, não pensamos sobre elas” (FLAX, 1992, p. 218 – 219). Nessa perspectiva, a primeira conceituação proposta pelo Feminismo acadêmico é a diferença entre gênero e sexo. O gênero é uma categoria cultural, portanto ideologicamente construída, que pressupõe uma sociedade dividida entre homens e mulheres, entre gênero masculino e gênero feminino; diferentemente do sexo, uma categoria natural, imposta pelas leis biológicas e que separa a raça humana em sexo masculino e sexo feminino. O maniqueísmo patriarcal fez com que, na sociedade ocidental, o sexo também determinasse o gênero, criando assim o par conceitual arquetípico homem oposto e superior à mulher que resultaria também em outros pares conceituais da mesma ordem, como GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 151 homem/homossexual e homem/transexual. No pensamento feminista, a sociedade patriarcal é organizada em torno das questões de gênero/sexo, que constituem então relações de poder. Portanto, a identidade do sujeito está também condicionada por essas questões. O sistema gênero-sexo, enquanto constituição simbólica sóciohistórica, [é um] modo essencial, através do qual uma realidade social se organiza, divide-se e é vivenciada simbolicamente, a partir da interpretação das diferenças entre os sexos, prisma através do qual se lê uma identidade incorporada, modo de ser no e de vivenciar o corpo (CAMPOS, 1992, p. 111, grifos da autora). O sistema gênero/sexo, enquanto construto ideológico sobreposto ao biológico e enquanto sistema de relações de poder, é a base sobre a qual se assenta a submissão e o silenciamento da mulher pelo universo patriarcal que, tendo a dialética como premissa fundamental, opôs a mulher ao homem e, ao mesmo tempo, hierarquizou essa relação a partir de essencializações: é da essência da mulher ser mãe, portanto esposa e, por extensão, dona-de-casa; também é da essência da mulher ser fisicamente mais fraca que o homem. Dentro desse escopo, a mulher deve ocupar o espaço privado, longe das batalhas do espaço público, longe das decisões que guiam a sociedade. As críticas e contestações desse terceiro momento do Feminismo residem justamente sobre tais essencializações impostas à mulher pelo patriarcado. As essencializações são, como se sabe desde Platão, ideológicas, logo devem ser discutidas no campo das ideias. É por essa razão que o terceiro momento do Feminismo, além de continuar com as características fundamentais de movimento social, ativista e revolucionário, passa a contar também com um pensamento teórico impactante e inovador, resultando então em duas linhas de frente que atuam sob uma mesma perspectiva política: a contestação do patriarcado. Isso, como se verá, constitui o phármakon atuando no Feminismo. Da mesma forma que a identidade do sujeito pós-moderno, e sendo também um componente dessa identidade, o sistema gênero/sexo é infixo, contribuindo, dessa forma e como ponto-chave, para o deslocamento e descentramento característicos desse sujeito, uma vez que coloca em xeque as noções iluministas de unidade do eu, universalidade da identidade e essência dos seres e das coisas. Como tal, o Feminismo insere-se como um dos elementos fundamentais que compõem a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 152 (des)estrutura da Idade das Crises, sendo então uma perspectiva sociopolítica e teórico-crítica da pós-modernidade. “Como um tipo de filosofia pós-moderna, a teoria feminista revela e contribui para a crescente incerteza nos círculos intelectuais ocidentais sobre fundamentação e métodos apropriados para explicar e/ou interpretar a experiência humana” (FLAX, 1992, p. 221). A afirmação de que o Feminismo é uma filosofia pós-moderna traz em si o delinear de uma problemática de ordem epistemológica, uma arqui-tensão que permanece indecidível: apesar de pertencer a tal filosofia, o Feminismo está em permanente tensão com essa mesma filosofia. Como demonstramos no capítulo anterior, a identidade do sujeito pós-moderno é fragmentária, infixa, deslocada e descentrada em razão de todas as crises do atual momento histórico da humanidade, sendo esse próprio sujeito em crise o que define e caracteriza o tempo presente. Sendo assim, é possível falar em gênero/sexo quando tanto o gênero quanto o sexo foram implodidos na identidade pós-moderna? É possível falar em um lugar da mulher na sociedade, visto que as posições sociais de homens e mulheres desmancharam-se no ar? É possível pensar em um sujeito feminino quando a própria noção de sujeito se desmantelou? É possível uma “contestação do patriarcado”, uma contestação do Falogocentrismo, quando o próprio Falogocentrismo está abalado? Contestar a Metafísica ocidental, como fez o pós-estruturalismo, já não seria necessariamente contestas as relações de gênero/sexo? É fato que o cerne da teoria feminista parte de pares conceituais, ou seja, da dialética, para propor seus questionamentos. A dialética, no entanto, foi desarticulada pelo pós-estruturalismo a ponto de, atualmente, não ser mais possível desenvolver uma linha de pensamento em termos unicamente dialéticos sob pena de se incorrer em simplismos, falhas conceituais e anacronismos. Ante esse panorama, cabe colocar em discussão as contestações/reivindicações feministas. Pensadoras como Jane Flax e Patricia Waugh refletem sobre essa relação regida pelo phármakon entre Feminismo e pós-modernismo, cada uma abordando a questão de maneira ligeiramente diferente, já que é impossível resolvê-la dada a indecidibilidade de seus termos e pressupostos. Para Jane Flax, “a relação da teorização feminista com o projeto pós-moderno de desconstrução é necessariamente ambivalente”, pois não deixa de ser razoável para pessoas que foram definidas como incapazes de auto-emancipação [as mulheres] insistir que conceitos GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 153 tais como autonomia da razão, verdade objetiva e progresso benéfico através da descoberta científica devam incluir e ser aplicados a capacidades e experiências tanto de mulheres quanto de homens. É também atraente, para os excluídos, acreditar que a razão triunfará — que aqueles que proclamam idéias com objetividade responderão a argumentos racionais. Se não há base objetiva para se distinguir entre verdadeiras e falsas crenças, então parece que só o poder determinará o resultado da competição entre diferentes afirmações das verdades. Essa é uma perspectiva apavorante para aqueles que não têm poder sobre outros ou são oprimidos pelos dos outros (1992, p. 223). Fica premente, no pensamento de Flax, que frente à pósmodernidade o pensamento feminista ainda está atrelado a categorias iluministas universalisantes como razão, verdade e progresso, o que em si caracteriza um anacronismo e uma espécie de retorno ao cerne do que foi implodido pela pós-modernidade (o Iluminismo). No entanto, para que uma teoria se sedimente é necessária uma fase de estruturação, um momento em que os pressupostos sejam “racionalizados” para que possam se tornar categorias de análise (logos). Talvez seja isso que a autora queira dizer com “base objetiva”. Todavia, sendo o Feminismo uma teoria pós-moderna, é contraditório que ele precise de uma sedimentação teórica desse tipo, pois tal estruturação é fatalmente Falogocêntrica. É por isso que Jane Flax faz uma advertência de grande importância: “O caminho para o futuro feminista não pode se basear em reviver ou se apropriar de conceitos do Iluminismo sobre a pessoa ou o conhecimento” (1992, p. 223), haja vista que “O discurso feminista está cheio de concepções contraditórias e irreconciliáveis sobre a natureza de nossas relações sociais, sobre homens e mulheres e sobre a validade e a caracterização de atividades estereotipadamente masculinas e femininas” (id., p. 242). Assim, as próprias “concepções contraditórias e irreconciliáveis” da teoria feminista autocontradizem sua ligação com o Iluminismo. O Feminismo passa então, em si próprio, por um deslocamento e descentramento de seus valores e perspectivas teóricas e práticas. O Feminismo vive nesse momento, enquanto pensamento e práxis política, um momento pós-moderno de incertezas, um momento de crises — como tudo no mundo atual. Já Patricia Waugh, apesar de se aproximar da opinião de Jane Flax sobre a relação do Feminismo com os ideais iluministas no contexto GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 154 atual da pós-modernidade, tem uma posição mais conservadora no que diz respeito à permanência e necessidade dessa inter-relação, “For, to accept the arguments of strong postmodernism is to raise uncertainty even about the existence of a specifically female subject and inevitably, therefore, about the very possibility of political agency for women” (2001, p. 347). Para Waugh, portanto, aceitar as premissas fundamentais do pensamento pós-moderno — que se resumem à crise generalizada do sujeito e da sociedade, à aporia como marca histórica do tempo presente — é colocar em xeque a própria existência da teoria feminista, o que é algo temeroso, já que pode invalidar a essência do Feminismo (herança direta e contraditória do Marxismo): a necessidade e a validade de uma práxis política feminina. The crucial question in the relations between feminism and postmodernism would seem to be whether it is possible to preserve the emancipatory ideals of modernity which seem necessary to the very endeavour of feminism, whilst dispensing with those absolute epistemological foundations which have been so thoroughly and variously challenged. Alternatively, how far is it possible to modify those foundations rather than urging their total abandonment? As a political practice, surely feminism must continue to posit some belief in the notion of effective human agency, the necessity for historical continuity in formulating identity and a belief in some kind of historical progress. All along it would seem that feminism has been engaged in an effort to reconcile context-specific difference or situatedness with universal political aims: to modify the Enlightenment in the context of late modernity and according to the specific needs and perspectives of women, but not to capitulate to the nihilistic and ultra-relativist positions of postmodernism as a celebration of the disembodied ‘view from everywhere’ (WAUGH, 2001, p. 347 – 348). Todavia, tanto para Flax quanto para Waugh o Feminismo e os pensadores feministas permanecem profundamente divididos no que tange à relação do movimento com o pensamento pós-moderno, em razão justamente das implicações do phármakon na contestação do patriarcado, uma vez que aquele está compreendido na estrutura deste: ao mesmo tempo em que o Feminismo contesta o patriarcado, esse mesmo Feminismo também se utiliza e precisa do patriarcado para existir. Em meio a essa problemática surge, no final do século XX e início do século GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 155 XXI, um terceiro fator, uma terceira implicação que lança o programa pós-moderno diretamente no âmago do programa feminista: o fato de que o Feminismo já não é a voz unânime representativa de todas as mulheres. Atualmente, há mulheres que rejeitam a teoria e a práxis feminista simplesmente para vivenciarem sua diferença ou para aceitarem o patriarcado. Em outras palavras, dada a fragmentação da identidade do sujeito pós-moderno — inevitável e irreversível —, que necessita ser admitida para se compreender o hoje, tornou-se “crucial admitir a diferença irredutível entre o sujeito (mulher) [...] e o sujeito (feminista)” (SPIVAK, 1997, p. 282). É certo que essa diferença crucial entre ser mulher e ser feminista sempre existiu, visto que nem todas as mulheres aceitaram ou aceitam os questionamentos feministas. Contudo, o Feminismo não partiu desse pressuposto, nem o levou em consideração, esquecendo-se das implicações mais profundas e complexas das afirmações de duas matriarcas do movimento: “a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu” (1985, p. 8), disse Virginia Woolf em 1928, o que não implica necessariamente excluir o homem desse “teto todo seu”, mas sim ter consciência das diferenças homem-mulher, que não estão no espaço físico, mas sim no ideológico, logo as palavras de Woolf, sendo ela uma artista da palavra, são eminentemente metafóricas: independência não significa exclusão. “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (1975, p. 9), escreveu Simone de Beauvoir em 1949. Tornar-se mulher não implica, necessariamente, tornar-se feminista; da mesma forma que tornar-se feminista não implica necessariamente tornar-se ou ser mulher. Desponta dessa argumentação uma palavra que só muito recentemente o Feminismo começou a levar em consideração: diferença. O Feminismo, como todo e qualquer movimento emancipatório — seja essa emancipação no nível das ideias, seja no contexto da práxis —, precisa pautar-se, antes de mais nada, no respeito às diferenças, que é o que as mulheres e outros grupos sociais hoje desejam. Pautar-se pela diferença, no entanto, implica afrouxar posições rígidas; aceitar o diferente; aceitar que, “estranhamente, o estrangeiro habita em nós” (KRISTEVA, 1994, p. 9) e não apenas fora de nós; descentrar o centro e deslocar a margem; acolher a aporia, o indecidível, como marcas do hoje e do agora. Implica, portanto, fazer concessões a si e aos outros em benefício de uma abertura e acolhimento das múltiplas significações da existência. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 156 É por essa linha que transita o pensamento de Camille Paglia, a feminista odiada pelas feministas. Acusada de iconoclastia, polêmica desde sempre, incômoda para homens e para mulheres, o pensamento de Paglia pode ser comparado ao de Fredric Jameson em sua variedade de referências e análises e em sua correção epistemológica e teórica: a diferença é que Jameson é um homem, e Camille Paglia é uma mulher, e isso muda tudo na forma como ambos são lidos e no valor atribuído às suas teorias e críticas. Enquanto Jameson é abertamente cultuado por todos, inclusive pelas feministas, Paglia é veladamente cultuada por todos, menos pelas feministas. Capaz de discutir, analisar e criticar John Donne, William Blake, Madonna e Britney Spears com a mesma desenvoltura, Paglia é considerada, juntamente com Tania Modleski e Rita Felski, uma das principais teóricas do pós-feminismo, a nova onda do pensamento feminista que começa a levar em consideração o respeito às diferenças. Em uma visita ao Brasil no ano de 2007, em que concedeu uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo (21/10/2007), Paglia avaliou o Feminismo tradicional da seguinte forma: Eu tenho dito que, por causa do capitalismo, aparece a mulher moderna emancipada. É por causa da Revolução Industrial e do trabalho fora de casa que as mulheres puderam ser livres do controle do marido, do pai, do irmão. Mas temos que ser realistas e reconhecer que isso é um produto da cultura capitalista ocidental, de um momento particular. Feministas têm freqüentemente valorizado ou venerado a “mulher de carreira” e a posto num lugar mais alto que a mãe e a esposa. Isso, porém, vai contra a maneira como a maior parte das mulheres no mundo se sente verdadeiramente. O movimento feminista tende a denegrir ou marginalizar a mulher que quer ficar em casa, amar seu marido e ter filhos, que valoriza dar à luz e criar um filho como missão central na vida. Está mais do que na hora de o feminismo ocidental conseguir lidar com a centralidade da maternidade para a maioria das mulheres no mundo. Não quero as feministas ocidentais destruindo valores e tradições de culturas locais. Feminismo deveria ser sobre mulheres terem a oportunidade de avançar, não serem abusadas, e terem o direito de auto-subsistência econômica para não depender de um parente homem (FOLHA..., 2007, p. A26). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 157 Apesar da polêmica sempre inerente às suas palavras, a pensadora e teórica traz à tona o cerne da questão do respeito à diferença em relação ao Feminismo, questão essa que, de alguma forma, pode constituir uma terceira via para a indecidível relação entre Feminismo e Pós-modernismo, ou a relação entre duas formas de crise, sem excluir uma ou outra posição. CONCLUSÃO O que foi discutido aqui constitui apenas breves considerações sobre essa Idade das Crises, uma espécie de exercício arqueológico que procura escavar as ruínas do hoje, exercício esse que não intenta uma arqueologia do saber aos moldes de Michel Foucault, mesmo porque o saber se tornou tão difuso e caótico na Pós-modernidade que talvez não seja mais possível pensá-lo, mas apenas escavá-lo. Temos, portanto, plena consciência de que os assuntos ora tratados nessas breves considerações estão ainda em aberto, inconclusos em termos históricos ou artísticos. Nessas considerações sobre aspectos só-crise não era possível abordar o Feminismo sem antes pensar sobre o sujeito e sobre a identidade, pois o Feminismo lida diretamente com esses dois “conceitos” (que são, na verdade, dois lados de uma mesma questão) para tratar do sistema gênero/sexo, o paradigma de análise central da teoria feminista. Lidos em conjunto, sujeito, identidade e Feminismo parecem constituir as principais crises que caracterizam a Idade das Crises, a Pósmodernidade. Possivelmente, um quarto fator, uma quarta crise, se acrescentaria a essa discussão: a sociedade do espetáculo, reino do simulacro. É difícil prever a quais caminhos o acréscimo desse quarto aspecto levariam o jogo sujeito-identidade-Feminismo. No entanto, algo parece certo: a sociedade do espetáculo mercantilizou o simulacro, tornando mercadoria a própria identidade fragmentada do sujeito. Uma vez mercadoria, a identidade do sujeito é objeto de venda: as identidades são compradas. Nessa ótica o Feminismo seria também uma identidade ou um conjunto de identidades à venda, da mesma forma que quaisquer identidades no contexto contemporâneo. Quais seriam as implicações de pensá-lo dessa GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 158 forma? Ou ainda, é possível pensá-lo nesses termos? As questões permanecem em aberto. ON THE AGE OF CRISES: THE INTER-RELATIONS AMONG SUBJECT, IDENTITY, AND FEMINISM IN POSTMODERNITY Abstract: This essay intends to think critically and theoretically on the interrelations among subject, identity, and Feminism in the context of Postmodernity, a context which will be herein denominated “Age of Crises”. These three aspects will be approached under a Historical perspective and put into question in a philosophical sight guided by Post-structuralistic theories, especially Derridian Deconstruction. In general, the main objective is to reach into a discussion about the undecidable inter-relation between Feminist thinking and Postmodernity, which is one of the configurations of the many contemporary crises. In order to do so, it will be necessary a previous discussion on the postmodern subject and its identity. This discussion will open up the possibility of contextualizing and discussing Feminism inside the intended objective. This discussion will be structured around the word “crises” which, in a compositional relation to the word “age”, will be taken as a synonym for “Postmodernity” and “contemporary”. “Age of Crises”, “Postmodernity”, “contemporary”, and “Feminism” will be words haunted by the phármakon phenomenon, a key aspect for Derridian Deconstruction, which will be the gravitational force that approximates and separates, in an undecidable relation, those signs. Key-Words: Postmodernity. Feminism. Deconstruction. Identity. Subject. REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, Jean. A precessão dos simulacros. In: _____. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 3. ed. São Paulo: DIFEL, 1975, v. 2: A experiência vivida. CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Gênero. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992 (Biblioteca Pierre Menard). DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005. FLAX, Jane. 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Com base no texto literário, na adaptação fílmica Engraçadinha, dirigida por Haroldo Barbosa, e em textos de Sigmund Freud e de críticos que analisam a função do desagradável nos textos do escritor brasileiro, este trabalho coloca em evidência as crises provocadas pela dualidade do sujeito e pela exposição da família. Assim como o erotismo e a sexualidade contrariam a tradição social e potencializam a crise, a religiosidade surge para restaurar a ordem e a moralidade perdidas. A partir das demonstrações aqui apresentadas, a crítica social e uma literatura incômoda, ambas avessas ao entretenimento, caracterizam a obra de Nelson Rodrigues como uma crônica de costumes da sociedade brasileira dos anos de 1940 e 1950. Além disso, ao autor cabe justo destaque pelo projeto audacioso de confrontar a hipocrisia social com a representação de uma família desmascarada, para a relativização da moral e dos bons costumes, por uma sociedade imperfeita, mas mais real. Palavras-Chave: Literatura. Cinema. Família. Erotismo. Sociedade. Introdução No romance Asfalto selvagem, de Nelson Rodrigues, entram em conflito o que é obsceno e o que é religioso. A luta é social e individual e põe em cena Deus e o Diabo. O romance Asfalto selvagem, de Nelson Rodrigues, divide-se em duas partes. Fases distintas (a primeira dos doze aos dezoito anos e a segunda depois dos trinta) da vida da protagonista, Engraçadinha, compreendem núcleos de personagens e cenários igualmente distintos. O fato de o romance ser dividido em duas partes é de extrema relevância, pois a dualidade se instala na história, a partir da protagonista. Engraçadinha, na segunda fase, é fervorosamente religiosa, casada com Zózimo há muitos anos e respeitada mãe de família, o que representa o avesso do que fora na sua juventude, em Vitória. Porém, em 1 UNIANDRADE – Centro Universitário Campos de Andrade. Departamento de Letras, Curso de Mestrado em Teoria Literária. Curitiba, Paraná, Brasil, CEP: 81220-090. E-mail: <[email protected]>. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 161 dado momento, ela redescobre o prazer do sexo, momento em que a Engraçadinha do passado aflora e, junto com ela, ressurge Letícia, uma prima, que não só acompanhou toda a relação incestuosa entre Engraçadinha e Sílvio, mas também se declarou apaixonada por ela. Tal divisão evidencia a ambivalência de Engraçadinha, que servirá para demonstrar a dualidade de qualquer pessoa, afinal, todos são vítimas da sociedade, que cria regras para reprimir os instintos, em nome da ordem e da harmonia coletiva. Nelson Rodrigues parte de uma microcélula social, a família, para analisar, por amostragem, a macroestrutura social. A partir da escolha da família como objeto de análise, a próxima providência a ser tomada é o desvencilhamento da representação dessa célula social como modelo a ser seguido, dispensando a imagem ideal, em prol de um aprofundamento, permitindo, assim, a exposição e a exploração dos problemas normalmente escondidos e mascarados pelos membros da família: A família, núcleo da maioria dos textos de Nelson Rodrigues, é, na verdade, uma construção em ruína, que deixa entrever um processo histórico recheado de contradições e recalques, escamoteados por uma “moralidade de fachada”. Famílias de classe média, participantes de um mundo no qual se congregam os valores capitalistas e a tradição patriarcal, são a alegoria de um passado que apodrece de pé, resistindo ao presente. (FRANÇA, 2008, p. 17) Essa importância dada à família, sobretudo a partir de outra ótica, que reage à idealização, além de ser responsável pelo tom desagradabilíssimo da obra rodrigueana, permite a Décio de Almeida Prado traçar um paralelo entre os textos do autor e as tragédias gregas, a partir da “forma” e do “conte do”: Enquanto forma, por exemplo, a divisão nítida entre os protagonistas, portadores dos conflitos, e o coro que emoldura a ação, formada por vizinhos, parentes, circunstantes; e enquanto conteúdo, as famílias marcadas pelo sofrimento, designadas para o dilaceramento interior, com a maldição que as obriga ao crime e ao castigo passando de pais a filhos. (PRADO, 1996, p. 52) Somando-se à universalidade das tragédias, as oposições, que acentuam o conflito e a duplicidade dos personagens principais, são, na opinião do crítico, outro traço comum entre a obra de Nelson e o teatro grego: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 162 As antinomias em que se debatem são sempre extremas — pureza ou impureza, puritanismo ou luxúria, virgindade ou devassidão, religiosidade ou blasfêmia —, em consonância com os sentimentos individuais que se definem (ou se indefinem) pela ambivalência, indo e vindo constantemente do pólo da atração para o da repulsão, em reviravoltas bruscas que proporcionam as surpresas do enredo. (PRADO, 1996, p. 52) As duas fases de Asfalto selvagem marcam exatamente essas diferenças, reforçadas pela mudança de cenário e de status, afinal, depois que se casa com Zózimo, Engraçadinha enfrenta uma realidade bem diferente da condição que tinha, quando morava com seu pai, em Vitória. A moça de família tradicional e abastada acaba indo morar em Vaz Lobo, subúrbio carioca. É por suprimir essa segunda parte que a adaptação cinematográfica da obra de Nelson, intitulada Engraçadinha e dirigida por Haroldo Marinho Barbosa, não dá conta de todo o processo de transformação da protagonista, apesar de ressaltar, acertadamente, as características mais comentadas dos textos do escritor. Pelo tamanho do romance, pode-se entender o corte, mas o fato é que isso contribui para uma redução do texto rodrigueano apenas ao aspecto erótico e devasso que permeia narrativa e personagens, enfatizando, sim, as “marcas registradas” do universo ficcional do autor, mas abrindo mão da ambivalência que detona a maioria dos conflitos e que traz à tona a hipocrisia, já que essência e aparência opõem, respectivamente, as esferas privada e pública, a individualidade e a alteridade. Mesmo com a ausência da segunda fase, o filme, bem como o romance, aposta no erotismo como tema-chave para a representação da brasilidade. Essa ideia aparece no final de Asfalto selvagem, em um diálogo entre Luís Cláudio e Abdias, que diz: — O Brasil vive uma fase ginecológica! Explicou: — “O desenvolvimento traz um medonho estímulo erótico. Nunca o brasileiro foi tão obsceno”. E insistia: — “É uma obscenidade histórica!” [...]. Parecia-lhe nítida e taxativa a relação entre o sexo e a epopéia industrial. Abdias pergunta: — Você não acha que o meu raciocínio é batata? Luís Cláudio exulta: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 163 — Batata! E o que faz o romance brasileiro que não vê isso? A nossa ficção é cega para o cio nacional! (RODRIGUES, 1994, p. 552). Retomando a informação da época em que a obra foi escrita, entre 1959 e 1960, torna-se fácil perceber, nas falas de ambos os personagens, o reflexo da ideologia que predominava, no período de 1956 a 1961, durante o governo de Juscelino Kubitschek, cuja prioridade era a rapidez, que alicerçava o slogan “50 anos em 5”, para a superação e o progresso. Apesar do aumento da inflação e da dívida externa, Juscelino promoveu o desenvolvimento em diversos segmentos, com destaque para o industrial, fez acordos que permitiram a vinda das primeiras montadoras automobilísticas para o país e criou a Operação Panamericana, que visava combater o subdesenvolvimento. Levando-se em conta apenas esses exemplos da imensa mudança que o governo de JK instaurou, as quais colocaram a população em uma onda de otimismo, pode-se entender a relação do erotismo com a euforia que dominava o país. O público: espectador e personagem O erotismo, na obra de Nelson Rodrigues, funcionava como principal agente da quebra de tabus, necessária para a transgressão das normas sociais, instalando, assim, o conflito que essas travam com o instinto: As opções de Nelson Rodrigues não foram as que então se esperavam. Crítica e público desapontavam-se com o clima crescentemente mórbido de sua dramaturgia, com o acúmulo de situações anômalas e de pormenores desagradáveis, com as quebras cada vez mais freqüentes da lógica e da verossimilhança. Ele parecia ferir de propósito, pelo prazer de quebrar barreiras morais e estéticas, tanto o bom senso quanto o bom gosto. (PRADO, 1996, p. 53). No fragmento transcrito, o crítico refere-se à dramaturgia, o que não impede que sua observação seja aplicada ao universo romanesco de Nelson, que se aproxima muito das suas peças teatrais. O mais importante, porém, é a associação que Décio de Almeida Prado GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 164 estabelece entre o desagradável e a ruptura da “lógica e da verossimilhança”, do que se pode depreender que o lógico e o verossímil eram qualidades apenas das coisas que obedeciam ao “bom senso” e aos bons costumes. Dessa forma, a posição do público e da crítica retratada pelo autor encerrava em si mesma a hipocrisia, já que qualquer desvio de comportamento não era encarado como realidade, parecendo que a sociedade era formada apenas por pessoas de bom caráter, sem o antagonismo entre o bem e o mal. Em vários textos, do próprio dramaturgo e de Sábato Magaldi, um dos principais estudiosos da obra de Nelson Rodrigues, há referência ao tenaz julgamento do público e da crítica, alertando para o fato de a repulsa ser motivada não por questões estéticas, mas éticas, ou seja, a sociedade, sentindo-se afrontada pelo erotismo e pela profundidade dos temas propostos pelo autor, não conseguia ver no texto qualidades, porque já estava predisposta pelo incômodo que a violência dos textos lhe impunha. Em A cabra vadia, há uma passagem que comprova essa postura do público, em relação aos textos rodrigueanos: “As senhoras me diziam: ‘Eu queria que seus personagens fossem como todo mundo’. E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são como todo mundo: e daí a repulsa que provocam. Todo mundo não gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções.” (RODRIGUES, 1995, p. 155). Tal comportamento prova que um dos intentos do autor, a promoção da identificação entre público e texto, foi alcançado. Entretanto, o cumprimento dessa meta custou caro ao autor. Interferindo psicologicamente junto ao leitor/espectador, Nelson Rodrigues representa a sociedade brasileira cruamente, sem adornos, de modo exemplar, mas, paradoxalmente, é taxado de obsceno, amoral, algo facilmente explicado a partir do processo de projeção. O público reconhecia-se nos personagens rodrigueanos, mas, em vez de julgar a si próprio, assumindo seus erros, julgava o autor, isentando-se de qualquer falta e também da punição que essa implicava. Com a aproximação entre palco e público, Nelson pretendia descobrir a máscara social que moldava uma sociedade preocupada em se adequar aos rótulos impostos pelo modelo burguês. Essa aproximação fez com que o público se visse representado no palco, ou seja, o texto rodrigueano funcionava como um espelho, refletindo o caráter humano encoberto por máscaras impostas pela GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 165 sociedade e condenada pela religião, revelando, dessa maneira, o inconsciente primitivo do homem. (BURLIM, 2008, p. 2) O ato de revelar “a vida como ela é” e a consequência disso, que era a criação de um mundo incômodo para o leitor/espectador, embora reconhecidos, inconscientemente, pelos espectadores, como válidos e presentes em suas vidas, passavam a ser conscientemente recusados, através de um processo de autodefesa, pois não é fácil reconhecer e assumir os erros, ainda mais quando esses fazem parte das emoções e fantasias mais íntimas e, portanto, inconfessáveis. Claro que a reação do público não poderia ser prevista pelo autor com exatidão, mas podia-se aventar a hipótese da recusa, já que o desagradável fazia parte do projeto estético e ideológico de Nelson Rodrigues, evidência percebida pela insistência do escritor, que não mudou seu estilo, mesmo com as críticas negativas e constantes que recebia, e, de modo mais direto, pelos seus depoimentos em relação à sua obra e aos seus objetivos. Em 1974, Nelson declarava que “teatro não tem que ser bombom com licor. Teatro tem que humilhar, ofender o espectador.” (BURLIM, 2008, p. 1). A partir dessa afirmação, fica fácil relacionar o autor ao ideal dos modernistas, tanto na literatura como no cinema, pois o foco é a desalienação, alcançada através do “choque do real”, afinal, nos textos de Nelson, “o mundo aparece como pura degradação, e as personagens, os heróis, enfim, representam um mundo corroído, subvertido e corrompido, se percebido sob uma perspectiva da ‘normalidade’, do ‘aceitável’ [grifo nosso]” (FRANÇA, 2008, p. 14). Nesse trecho, a ressalva do autor, colocada em destaque, na citação, ajuda a entender a posição de Décio de Almeida Prado, transcrita anteriormente, no tocante à ruptura da “lógica” e da “verossimilhança”, operada pelos textos rodrigueanos, nos quais é indissolúvel a relação entre o desagradável e o erotismo, que serve de instrumento para a desestabilização do leitor/espectador, além de se revelar uma característica muito associada à brasilidade. Dessa forma, o erótico propicia o cumprimento de duas funções: ao mesmo tempo em que instala o confronto necessário para o desmascaramento social, o erotismo simboliza o brasileiro, mesmo que metonimicamente (importa ressaltar que o recorte, necessário, opta por um traço extremamente marcante na construção e na repercussão de uma “imagem nacional”). Associando essas duas funções, chega-se à desmedida ou ao excesso, característica que, aos poucos, foi sendo aceita GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 166 e mesmo entendida como parte da realidade brasileira. Ismail Xavier refere-se a essa postura mencionando o principal resultado dela: [...] um debate que criou um novo ambiente para a recepção da obra de Nelson Rodrigues. A discussão em torno da desmedida como forma de colocar em discussão certos traços da vida nacional ganha espaço, e a paródia do kitsch torna-se ingrediente legítimo na reflexão sobre a experiência nacional, inclusive em sua dimensão política. (XAVIER, 2003, p. 183-4) Erotismo: tabu e libertação O erotismo, principal instrumento de Nelson Rodrigues para o descomedimento de sua obra, também é analisado por Christian Dunker, em artigo publicado na revista Interações. O crítico considera o elemento erótico como um dos estereótipos criados (e perpetuados, a posteriori) para representar a brasilidade2. Considerando o impacto dos estereótipos na repercussão do país junto aos estrangeiros, Dunker associa erotismo e exotismo, já que o processo de estereotipia surge, comumente, com a tentativa de ressaltar os diferenciais de um país em relação aos demais. Sendo assim, essas características, que são vistas como típicas ou peculiares, passam a ser vistas como elemento exótico e, segundo o crítico, provocam o “gozo estrangeiro”, metáfora que traz à tona o erotismo: O erotismo é uma das esferas mais fortes de representação do Brasil. Ele se manifesta nos principais estereótipos que temos sobre nós mesmos, e também na forma como nos imaginamos sendo imaginados pelo outro. O samba, o futebol e as nossas paisagens paradisíacas distinguem-se justamente por esse toque de erotismo deslocado. Mais recentemente, na música, na moda e até mesmo no turismo, encontramos sinais claros de como nosso erotismo pode se conjugar com a lógica cultural do capitalismo tardio. Ao que tudo indica, a idéia de que erotismo faz parte do “nome da marca”, e que a partir disso devemos, com o cinismo que for necessário, explorar tal produto, foi plenamente incorporada ao projeto político nacional. (DUNKER, 2008, p. 2) 2 No caso específico da obra de Nelson Rodrigues, cabe destacar que também o futebol tem esse propósito, embora desencadeie efeitos diversos. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 167 Considerando o tempo que separa a publicação do livro Asfalto selvagem, no formato de folhetim, da adaptação cinematográfica do romance, dirigida por Haroldo Barbosa, chega-se a uma distinção interessante, perceptível na produção cinematográfica nacional. Com base nos estudos de Ismail Xavier, Dunker afirma: “[...] há duas tendências dominantes no cinema brasileiro a partir dos anos 60. Uma voltada para a dramaturgia familiar, situações de classe e vida política. Outra centrada nas paixões, no desejo e na sexualidade. A partir dos anos 70, e definitivamente nos anos 90, a segunda vertente torna-se hegemônica.” (DUNKER, 2008, p. 4). De fato, Ismail Xavier refere-se às décadas de 70 e 80 como mais voltadas “para tipos eróticos de femme fatale, às vezes com toques de decadentismo, que veremos veiculando uma idéia do feminismo” (XAVIER, 2003, p. 174). O crítico vai além, mencionando que, “nos anos 70, quase não haverá espaço para [...] resíduos de normalidade que retêm as personagens num terreno de ‘vida comum’” (XAVIER, 2003, p. 174), diferenciando, portanto, esse contexto e essa estética do “projeto de formação para a domesticidade”, típico dos anos 60. Sendo assim, como o lançamento do filme de Haroldo Barbosa foi em 1981, tem-se outra razão para a direção ter optado apenas pela adaptação da primeira parte da obra de Nelson, que corresponde à fase da juventude de Engraçadinha, período permeado pela devassidão e pelo erotismo. Justamente porque o filme se encaixa perfeitamente na tendência cinematográfica da época, abriu-se mão da continuidade da obra, que, se retratada, daria o contraponto da personagem madura ao que ela tinha sido e feito, em sua juventude. Entre a fidelidade a essa característica essencial ao romance rodrigueano e a obediência à nova tendência do cinema nacional, optou-se pela segunda. Fora isso, não se pode esquecer uma das razões mais óbvias e práticas para o corte: a impossibilidade de representar, adequadamente, em duas horas ou menos, quase 600 páginas de história. Até mesmo J. B. Tanko, que, na década de 60, fez a adaptação fílmica do romance Asfalto selvagem, não escapou à divisão. A diferença é que, ao contrário de Haroldo Barbosa, para evitar a escolha de uma única fase da história de Engraçadinha, em detrimento da outra, Tanko seguiu a divisão do romance, publicado em dois volumes, e fez dois filmes: Asfalto selvagem, em 1964, e Engraçadinha depois dos trinta, em 1966, os quais Ismail GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 168 Xavier considera “versões convencionais do folhetim” rodrigueano. A adaptação correspondente ao primeiro volume da história teve sua exibição proibida logo depois do lançamento, por intervenção de um grupo de esposas de militares do alto escalão. No entanto, a censura não demoveu o diretor da continuidade do projeto, que previa a adaptação do segundo volume, de modo a apresentar o texto rodrigueano em sua totalidade. Embora o filme de Haroldo Barbosa faça a adaptação de apenas uma parte do texto literário, tenta recuperar até mesmo o modo de apresentação da história, que privilegia a alternância de episódios e dos personagens que os protagonizam, além de dar grande ênfase ao uso dos flashbacks. Some-se a isso o fato de a família, importante nas duas fases de Engraçadinha, continuar representando, na adaptação fílmica, tal qual no romance, um instrumento para expor a hipocrisia que domina toda a sociedade. Já no início, Haroldo Barbosa investe na duplicidade, quando, no enterro de Dr. Arnaldo, pai de Engraçadinha, um amigo discursa, em tom de apologia exagerada, enquanto, à parte, várias pessoas comentam detalhes escabrosos que souberam sobre a vida do morto ou de outro membro da família. Lado a lado, são mostradas a imagem da família perfeita, com uma boa camada de verniz, como se fosse uma versão passada a limpo, e a imagem de uma família em crise constante, desmascarada pelos exemplos de falta de conduta que se avolumam a cada novo comentário. O golpe de misericórdia é dado com o boato de que Arnaldo era amante da filha, informação que causa impacto em todos os presentes, ao mesmo tempo em que dá o tom da profundidade da análise do comportamento humano e da sociedade como um todo, pois o mais importante era expor a podridão que se escondia debaixo da maquiagem carregada usada pela sociedade. A desmistificação da família Aproveitando a intimidade que une as pessoas de uma mesma família, Nelson Rodrigues trata de redimensionar os laços, estreitando-os a ponto de as relações familiares darem espaço às perversões sexuais. Nesse ponto, o filme recupera vários temas do texto rodrigueano. O principal deles é o incesto (tanto aquele insinuado entre pai e filha, quanto o que acontece, de fato, entre Sílvio e Engraçadinha, que se GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 169 julgam primos, mas se descobrem irmãos), seguido pelo adultério (Sílvio é filho de Arnaldo com a cunhada), pelo lesbianismo de Letícia (que se declara apaixonada pela prima), pelo voyeurismo (na parte em que Engraçadinha observa Sílvio possuindo Letícia, como se fosse ela) e pelo comportamento oscilante, tanto de Sílvio como de Engraçadinha. Exemplos disso aparecem quando Engraçadinha vai procurar o primo no trabalho, insinua-se para ele, que a repele, e, como resposta ao convite que ela lhe faz, dizendo que o esperará, no quarto, à noite, ele a esbofeteia, ao que ela reage positivamente, como se tivesse realizado um grande anseio e mesmo esperando que ele a esbofeteie ainda outras vezes. Sílvio mostra-se também oscilante, porque, depois da bofetada, acaba indo ao quatro da prima. Entre o desejo e o ódio que sente por Engraçadinha, Sílvio vive em constante indecisão. Em outra ocasião, quando transa com Letícia, achando que se tratava de Engraçadinha, ele a chama de “querida” e diz que a ama, mas, segundos depois, ele a deixa, chamando-a de “vaca”. Como se não bastassem todos esses pontos que desconstroem a imagem de família feliz, a virgindade da filha também serve de mote para denunciar a necessidade social de sobrepor a aparência à essência. Depois de Engraçadinha inventar que está grávida, Arnaldo a leva para uma consulta ginecológica, buscando ter certeza sobre o que a filha afirmava. Porém, para tomar tal atitude, o pai cerca-se de cuidados, buscando pretextos para se informar sobre um médico de confiança e optando, inclusive, por um horário fora do expediente normal, para assegurar o segredo, afinal, era uma pessoa conhecida e não podia meter-se em escândalos. Também o médico dá sua colaboração para ressaltar a importância de se manter a aparência a qualquer custo, quando diz ser possível reconstituir a virgindade da moça, saída aceita pelo pai, mas não por Engraçadinha. Em outros momentos, há mais referências ao radicalismo de Arnaldo, que não mede esforços para evitar que ele e a filha caiam “na boca do povo”. O aborto e o casamento arranjado com Zózimo já tinham sido cogitados, caso a gravidez, naquele momento, fosse real. No caso do “arranjo”, insistir no plano ainda representava certas vantagens, na opinião do pai: manter a filha longe de Sílvio e assegurar que ninguém soubesse do passo em falso da filha, pois, quando ela teve o caso com Sílvio, ainda estava noiva de Zózimo. Interessante é perceber o n mero de “podres” que aparecem, à medida que se revolve a vida familiar, como se um erro desencadeasse GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 170 outro. Sobre isso, é extremamente relevante a vida que Arnaldo constrói, para servir de fachada, apenas, e encobrir suas faltas. Habituado a “esconder a sujeira debaixo do tapete”, ele nãos se dá conta de que, sem saber, colabora para que outro erro seja cometido, como se mentira gerasse mentira, afinal, se o parentesco verdadeiro ente Sílvio e Engraçadinha fosse revelado desde o começo, o caso entre os dois poderia ter sido evitado. O problema é que, se assim fosse, a tragédia não aconteceria e o texto, que daí teria como objeto uma família feliz e ideal, soaria bastante artificial, não se detendo sobre um dos piores defeitos da sociedade: a hipocrisia. Dessa forma, seguindo os passos do pai, os filhos não só repetem o erro, mas também sofrem com o castigo e a culpa, passados de geração a geração, assim como ocorria nas tragédias gregas, que primavam pela força atávica do destino. Freud, que, aliás, também estudou as tragédias e os mitos gregos, para formular sua teoria psicanalítica, discute essa “herança”, quando discorre sobre tabus, considerados por ele “proibições de antiguidade primeva”, porque “devem ter persistido de geração para geração. Possivelmente, contudo, em gerações posteriores devem tornar-se ‘organizadas’ como um dom psíquico herdado” (FREUD, 1996, p. 48). As maiores provas disso são as repetições das situações. Assim como Arnaldo traiu o irmão, tendo um filho com a cunhada, Engraçadinha, mesmo noiva de Zózimo, começa um caso de amor com o primo (acrescente-se, aqui, o fato de ambas as traições terem acontecido no mesmo lugar: no divã da biblioteca da casa de Arnaldo). Tais “coincidências” são mais enfatizadas pelo romance, que, na segunda fase da protagonista, também menciona a fixação de Durval na irmã caçula, Silene, o que faz Engraçadinha lembrar-se de si própria e de Sílvio, ainda mais levando-se em conta a semelhança que havia entre os personagens, tanto no aspecto físico como no comportamental. Na família de Zózimo e Engraçadinha havia, sim, desvios de conduta, sobretudo envolvendo Silene, mas é a parte referente à adolescência de Engraçadinha, justamente a que é focada no filme de Haroldo Barbosa, que guarda inúmeras transgressões, como exemplificado acima. Sendo assim, a opção pela primeira parte justificase pelo intento de reforçar as características que mais bem definem o estilo rodrigueano. Porém, dessa postura surge um problema: elegendo apenas a primeira parte da história, o diretor perpetua o estilo de Nelson como aquele desagradável e de ruptura, o que resulta em um reducionismo, afinal, as obras de Nelson são mais do que isso. O GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 171 erotismo e a violência de seus textos não são gratuitos, apesar de serem as marcas da arte rodrigueana. De qualquer modo, o fato é que a seleção era necessária, pelo tempo restrito do filme e pela extensão da trama. Cabia, então, ao diretor, escolher entre o mais e o menos comentado e a primeira opção garantiria duas coisas ao mesmo tempo. Primeiramente, explicações através de flashbacks não se faziam necessárias, já que a primeira parte, ao contrário da segunda, não obrigava o diretor a fazer relações frequentes com a primeira fase da protagonista, de modo a levar o espectador a entender melhor a história. Em segundo lugar, as expectativas do público seriam atendidas, já que esse reconheceria, imediatamente, no filme, os principais traços estilísticos das obras de Nelson Rodrigues, pois a primeira parte do texto é responsável por dissociar a imagem da família real daquela imagem que todos, sobretudo Arnaldo, tentavam passar e que era propagada nos eventos sociais. Nada do que aconteceu na biblioteca, entre Sílvio e Engraçadinha, foi conhecido pelas pessoas que estavam na festa. Apenas a família (e, mesmo assim, nem toda ela) soube do ocorrido. A tensão entre as esferas pública e privada é que divide os personagens, obrigando-os a transitar entre dois mundos diferentes. Sem poder ter certeza de nada, as pessoas que mantêm relações sociais com a família ficam sabendo apenas dos detalhes que lhes são contados por alguém que “ouviu dizer” ou “soube por alto”, o que abala, mas sem destruir por completo, a imagem que a família construiu para servir aos outros. Quando Nelson escolhe a família como núcleo de suas histórias, obriga o espectador/leitor a penetrar em um universo íntimo, no qual os detalhes mais sórdidos passam a ser conhecidos, razão pela qual o desvendamento é termo-chave para a compreensão do desagradável nos textos rodrigueanos. A análise da família pode, então, ser encarada como algo que estabelece um laço indissolúvel entre o aspecto psicológico e a onisciência e a onipresença do narrador, já que esse, ao entrar em contato com o espaço privado, acaba conhecendo segredos relacionados aos personagens, que, por sua vez, carecem de uma análise mais profunda. Dessa forma, o desvendamento do plano psicológico serve, simultaneamente, para aprofundar a ambiguidade do caráter humano, em se tratando do aspecto individual, bem como sustenta a crítica que estabelece a hipocrisia como principal qualidade social. Defeito ou virtude? Sem dúvida, para Nelson Rodrigues, um defeito a ser GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 172 exterminado, mas, para a sociedade da época, uma qualidade, afinal, a hipocrisia permitia fechar os olhos para os problemas, propiciando a criação de um universo confortável. A abertura ao plano psicológico permite que o narrador avance ainda mais no abismo pessoal de cada indivíduo, o que o torna capaz de revelar ao leitor o que de fato se esconde por trás da máscara social. Levado por esse narrador, o leitor/espectador descobre o outro lado da família, que pode, muito bem, em maior ou menor grau, corresponder à dele, afinal, como afirma Renato Gomes da França: A família, que no espaço público deve brilhar, perde o seu verniz quando vista dentro das paredes da casa. Como um organismo vivo, a casa e a família guardam em seu interior a doença, que espera o momento preciso para se manifestar, como um câncer: Toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo. (FRANÇA, 2008, p. 19) Além da oposição entre público e privado, o crítico ressalta a universalidade resultante do recorte familiar, o que justifica o uso da família como metonímia da sociedade em geral. A família do texto rodrigueano pode ser todas as famílias ou qualquer família, razão pela qual, na citação, percebe-se um diagnóstico não só de todas as famílias, mas também de todos os tempos, sem que a família, tal qual é apresentada por Nelson Rodrigues, represente apenas o tempo da escrita da narrativa ou da ação. Ressalte-se ainda a função da família para delinear a dualidade que Nelson concretizou com a divisão de sua obra em duas fases. Concorrem para o confronto entre realidade e idealização a “moralidade de fachada” e a “tradição”, pois são elas que obrigam os personagens a perpetuarem a história de seus antepassados (também falsa), cercada da mesma hipocrisia que revelam os epitáfios ou homenagens póstumas, que tendem a enfatizar as boas ações e esconder as faltas. A mulher é a chave Outro ponto fundamental, na obra de Nelson Rodrigues, é a função da mulher frente à “moralidade” e à “tradição patriarcal”. Exatamente pelo patriarcalismo, o desejo feminino rompe padrões. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 173 Considerando a cultura patriarcal um dos pilares da sociedade em geral, a ênfase na mulher opera verdadeira inversão, já que se desfaz a imagem da mulher como subserviente e passiva na relação a dois. Engraçadinha demonstra isso em ambas as fases de sua história, embora, aos trinta, já tendo passado por tudo que deixara em Vitória, quando se casou com Zózimo, a culpa e a religião servissem de baliza a seus atos, limitando-os. É a mulher quem determina o desenrolar da história, afinal, é Engraçadinha quem provoca a relação incestuosa com Sílvio, o que resulta na morte do primo/irmão, assim como é ela quem cede às artimanhas de Luís Cláudio, levando o caso ao extremo, até que a traição, descoberta por Letícia, passa a ser um trunfo que essa usa contra a própria prima. Em uma perspectiva mais ampla, é como se, questionando o patriarcalismo, que orienta a sociedade, o autor promovesse o embate entre o sujeito individual e as Instituições, que representam a esfera pública, que, por sua vez, confrontam a essência da esfera privada, em toda a sua crueza, e a aparência simbolizada pelo sistema. A partir dessas considerações, conclui-se que a tensão que se estabelece entre a família, o sistema patriarcal e “a moral e os bons costumes” acaba comandando as fases distintas de Asfalto selvagem e a escolha do diretor da adaptação fílmica pela primeira parte da história. É inegável que a família de Arnaldo, até pelo status que tinha, serve melhor para causar o impacto que sempre caracterizou as obras de Nelson. É apenas nessa fase que se avolumam as transgressões que acabam por detonar a tragédia. Além disso, a escolha do diretor pela adaptação da primeira fase, apenas, deve-se ao naturalismo, traço que caracterizou o que Ismail Xavier denomina “a segunda onda de adaptações” das obras de Nelson Rodrigues, realizadas no período de 1978 a 1983. A similaridade com as pornochanchadas é clara, pelo tom vulgar que os filmes dessa época privilegiam e pela tentativa de “fazer da promiscuidade — dentro e fora de casa — um traço nacional” (XAVIER, 2003, p. 191) e, para isso, as obras de Nelson servem bem, pois “tematizam a aparente oposição — mas identidade notória — entre casa e bordel” (XAVIER, 2003, p. 191). Tal afirmação reforça a relação entre espaço público e privado, afinal, é nessa transição que a história de Engraçadinha ganha força e parte do individual à crítica social. Sendo assim, não resta dúvida de que a escolha da primeira fase foi adequada à tendência cinematográfica da década de 80. O problema é que, comparando o filme de Haroldo Barbosa ao romance Asfalto selvagem, o naturalismo aparece como prejuízo, uma espécie de alavanca para o GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 174 reducionismo, já que essa característica não pode servir para qualificar a obra como um todo, tendo em vista a segunda fase da protagonista, que surpreende o leitor, ao agir de modo oposto ao que seu perfil indicara, até o suicídio do pai. Anos depois da tragédia, a família que Engraçadinha e Zózimo construíram parece viver em harmonia, com problemas esporádicos, que não atingem, portanto, o nível de degradação das situações que compõem a fase inicial do romance, retratada no filme. A razão dessa relativa paz é a culpa que assola a protagonista, afinal, é notória a tentativa de mudança completa de vida, marcada pela mudança de cidade e pela conversão religiosa. A culpa faz Engraçadinha construir uma nova vida, o que estabelece a dualidade do personagem, divisão que, transposta para a sociedade, tenta afirmar um sistema também dual, porque essa característica é inerente ao ser humano. Ao mesmo tempo, ao investir nessa duplicidade, o naturalismo cai por terra e reacende-se um debate ético, já que os padrões sociais vigentes passam a ser relativizados. A discussão que é promovida, sobretudo pelo fato de ser sublinhada a ambivalência da protagonista, nos remete, mais uma vez, ao conceito freudiano de “tabu”, termo ambivalente, porque se relaciona tanto ao “sagrado” como ao “impuro”. Freud menciona que “as proibições do tabu devem ser compreendidas como conseqüências de uma ambivalência emocional” (FREUD, 1996, p. 79). A mudança é, então, apenas aparente. O instinto faz parte do ser humano e é apenas reprimido pelas normas sociais estabelecidas. Esse confronto é referido por Freud da seguinte maneira: “Tanto a proibição como o instinto persistem: o instinto porque foi apenas reprimido e não abolido, e a proibição porque, se ela cessasse, o instinto forçaria o seu ingresso na consciência e na operação real.” (FREUD, 1996, p. 46-7). Isso posto, é natural que Engraçadinha continue a ser testada. Letícia e Odorico ressurgem, levando-lhe lembranças do passado, Luís Cláudio aparece em sua vida, também fazendo-a retomar sentimentos e sensações há muito esquecidos, como que trazendo de volta à vida a Engraçadinha impulsiva e inconsequente do passado, mas ela resiste, mesmo entregando-se momentaneamente, e retoma sua vida. Em consonância com o perfil de sua família, na segunda fase da obra, a protagonista goza de maior equilíbrio, o que a faz evitar ou abafar os arroubos ou excessos, evitando, assim, nova tragédia. Em outras palavras, em ambas as partes, o erotismo está ligado ao trágico (desencadeando-o, na primeira, e tentando desencadeá-lo, na GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 175 segunda). A diferença reside no grau de um elemento e de outro, gerando uma espécie de proporcionalidade. O erotismo da adolescência, maior e cercado por inúmeras transgressões, provoca uma tragédia no sentido estrito do termo, já que não só Sílvio morre, mas também Arnaldo, fatos que mudam completamente a vida de Engraçadinha. Já na segunda parte, o trágico não se estabelece da mesma forma, pois a morte de Letícia serve para preservar um segredo, impedindo embates e sofrimentos e ainda garantindo uma vida melhor à família da prima que ela sempre amou. A presença do trágico, na primeira parte da obra, deve-se à sobreposição do instinto à convenção social. Engraçadinha é consciente das proibições e, mesmo assim, entrega-se ao erro, dominada pela irracionalidade. Nessa fase, a protagonista é una e o jogo de oposições surge para contrapor a realidade à idealização, de modo a romper a casca que encobria a sociedade. Esse primeiro momento é, portanto, de caos, quando se revolvem e se expõem os problemas de todos aqueles que compõem aquela sociedade “inventada”. A segunda parte da história é a tentativa de organizar o caos, através do equilíbrio. Por essa razão, Engraçadinha, neste momento, não é apenas a santa mãe de família. A oposição vai, aos poucos, passando para o domínio da pseudorrealidade da ficção e se instala na personagem, revelando sua identidade verdadeira e dual. Dessa maneira, com Asfalto selvagem, é como se Nelson Rodrigues teorizasse sobre a natureza do ser humano e a difícil relação entre liberdade e convenção social, concluindo que apenas as leis podem garantir um controle razoável dos instintos. Apenas esse procedimento é capaz de evitar grandes tragédias. Outra conclusão que se pode tirar do romance é a de que a hipocrisia pode ser interpretada como um mecanismo de sobrevivência do homem, diante da divisão inerente à sua própria natureza e da existência de um padrão moral instituído. O destaque ao erotismo e à tragédia, na primeira fase, adaptada por Haroldo Barbosa, explica a opção do diretor, sobretudo levando-se em conta as características dos textos de Nelson Rodrigues. Na parte privilegiada pelo filme, as transgressões, por se avolumarem, cumprem a função de “aniquilar a aparência e dar curso à vida” (FRANÇA, 2008, p. 12). É justamente a intensidade dessa “aniquilação” que provoca a ruína da família de Arnaldo e a mudança radical na vida de Engraçadinha, que reconstrói sua história sobre a culpa, para a qual busca alívio através da religião. O que motiva a transformação do personagem é a necessidade de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 176 equilíbrio, estado alcançado por Engraçadinha apenas no final do romance, justificando a ausência da tragédia. Quanto à bipolaridade da protagonista, sublinhe-se a importância de entender essa característica como representação real do caráter humano, pois a aniquilação de uma parte ou de outra levaria ao reducionismo e à irrealidade, consequentemente. A partir da justaposição do bem e do mal e da conjunção do público e do privado, chega-se à investigação do caráter humano e da sociedade como um todo, na tentativa de se chegar a uma anatomia social, a partir do estudo da psicologia individual. O objetivo é o desvelamento de uma realidade até então oculta. O que importa é conseguir uma maior aproximação da verdade, sem preocupações sobre o impacto que isso vai causar ou quem irá atingir. Esse processo de elucidação só é alcançado a partir de uma análise mais profunda da família, “submetida à concepção do pecado como via possível de realização dos prazeres, entretanto submetida também à condenação social caso ultrapasse a medida da normalidade e ouse realizar-se” (FRANÇA, 2008, p. 20). O flagrante é necessário, para que a verdade se estabeleça. Por isso, as relações familiares servem para pôr o indivíduo constantemente à prova. Nesse espaço íntimo, a sexualidade levará ao excesso, como em um processo de tentativa de libertação de repressões e censuras, gerando antagonismos que Renato Gomes da França denomina “conflitos entre pulsão e recalque” (FRANÇA, 2008, p. 27). Sendo assim, perpetuando e aprofundando a dualidade que se insinua já na divisão do romance em duas fases, o erotismo e a sexualidade, ligados ao instinto, estão para a verdade, assim como a convenção social, desafiada e minada pelo erotismo, está para a mentira. Renato Gomes da França equaciona esses elementos, fazendo referência a Nietzsche, para quem “a moral é a grande mentira, ‘vontade de negação da vida’, instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, de apequenamento do homem, [...] um começo do fim” (FRANÇA, 2008, p. 55). De fato, o objetivo das regras socialmente estabelecidas é negar a vida em estado bruto, abafar o instinto, que não pode ser refreado completamente e torna-se visível na esfera privada. Décio de Almeida Prado, em suas análises da obra de Nelson Rodrigues, compartilha essa ideia: “O sexo [...] atrai pelo que tem de escuso, menos por ser fruto do que por ser proibido, causando volúpias ignominiosas na consciência. O prazer [...] nunca é carnal, sempre é GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 177 psicológico, envolto em culpa — aquilo que D. H. Lawrence denunciava como sex in head.” (PRADO, 1996, p. 111). Com esse comentário, reforça-se o caráter transgressor do sexo, ingrediente indispensável nos textos rodrigueanos, porque é capaz de revelar a essência do ser humano em seu lado mais primitivo, sem os limites que cerceiam o comportamento, antevendo os excessos que podem ser cometidos e precavendo-se contra eles, afinal, como afirmava o próprio Nelson Rodrigues: “Só não estamos de quatro urrando no bosque porque o sentimento de culpa nos salva.” (QUARTIN, 2008, p. 5). Conclusão A partir do estilo de Nelson Rodrigues, este artigo demonstrou a crise focalizada sob perspectivas variadas. No aspecto individual, analisou-se a mudança na vida da protagonista Engraçadinha, depois de um momento de crise excessiva, envolvendo família, sexo, moralidade e até mesmo religião. No aspecto social, foi enfatizado o desmascaramento do ambiente familiar e das relações interpessoais. Entretanto, o resultado provocado pelas narrativas do autor não se limitou ao campo subjetivo do leitor, depois de qualquer leitura, seguindo o processo normal de qualquer atividade interpretativa. Os textos rodrigueanos causaram verdadeira ebulição na sociedade brasileira, especificamente na sociedade carioca, nas décadas de 1940 e 1950. A problematização das relações familiares sob a ótica psicanalítica contrariaram a tradição desvelando comportamentos de homens e mulheres, que passaram a ser representados como pessoas comuns, e não mais como pais e mães de família, já que esse tipo de recorte ofuscava e até mesmo impedia reflexões mais profundas acerca dos conflitos morais e da sexualidade. Essa postura do autor funda um novo tipo de literatura, nascido durante esse processo de impacto e de crise moral. E a implicância disso não é apenas estética, mas também social. A partir da literatura, a sociedade se descobre, se analisa e se modifica. Evidentemente, a transformação veio apenas depois de um período lento e conturbado. Contos, romances e peças de Nelson Rodrigues passaram por momentos variados de recepção. Depois de serem considerados “irreais” e amorais hoje são celebrados pela crítica GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 178 especializada e por um público restrito e seleto como crônicas de costumes da sociedade brasileira, em uma época de imbricamento de diversos tipos de crise (política, econômica, social e moral). Desafiar a tradição foi o legado que Nelson Rodrigues deixou à Literatura com “L” maiúsculo, que valoriza o função social do texto, em detrimento ao sucesso comercial. ASFALTO SELVAGEM: A NARRATIVE IN CRISIS Abstract: This article aims to analyze the path of Engraçadinha, protagonist of Asfalto Selvagem, novel written by Nelson Rodrigues. With base in the literary text, in the filmic adaptation Engraçadinha, directed by Haroldo Barbosa, and in texts by Sigmund Freud and critics that analyze the function of the unpleasant in the Brazilian writer's texts, this work puts in evidence the crises provoked by subject's duality and for the family's exposition. As well as the eroticism and the sexuality contradict the social tradition and potentiate the crisis, the religiosity appears to restore the order and the morality lost. Starting from the demonstrations here presented, the social critic and an uncomfortable literature, both against the entertainment, characterize Nelson Rodrigues' work as a chronicle of habits of the Brazilian society of the years 1940 and 1950. Besides, to the author fair fits highlights for the daring project of confronting the social hypocrisy with the representation of an unmasked family, for the relativization of the morals and of the good habits, for an imperfect, but more real society. Keywords: Literature. Cinema. Family. Eroticism. Society. REFERÊNCIAS BURLIM, L. A. O teatro desagradável de Nelson Rodrigues. Disponível em: http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/23/1575.pdf. Acesso em: 08 mai. 2008. DUNKER, C. I. L. O declínio do erotismo no cinema nacional. Disponível em: http://64.233.169.104/search?q=cache:Xn— qYk5KvEJ:pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php%3FscRipt%3Dsci_arttext%26pid%3 DS1413-29072003000200006%26Ing%3Dpt%26nrm%3Diso+Erotism o%2Bidentidade+nacional%hl=ptBR&ct=clnk&cd=2&gl=BR. Acesso em: 03 mai. 2008. FRANÇA, R. G. da. Nelson Rodrigues: uma poética da aniquilação. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/FrancaRG.pdf. Acesso em: 03 mai. 2008. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 179 FREUD, S. Obras psicológicas completas. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, v. 13, 1996. PRADO, D. de A. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1996. QUARTIN, C. B. Teatro do desagradável: Imagens arquetípicas na obra de Nelson Rodrigues. Disponível em: http://www.rubedo.psc.br/artigosc/tearodri.htm. Acesso em: 08 mai. 2008. RODRIGUES, N. A cabra vadia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _____. Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. XAVIER, I. O olhar e a cena — Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 . GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 180 A FALTA DA LITERATURA Rosana Cristina Zanelatto Santos – UFMS 1 Resumo: Neste ensaio demonstramos que planejar significa, também, transformar formas de pensar e de agir em sociedade, neste caso, tendo por objetivo refletir sobre a importância da disciplina teoria da literatura nas Letras. Para tanto, fazemos uso de algumas categorias emprestadas à obra de Freud – mal estar –, à de Walter Benjamin – história, experiência e empobrecimento - e também à de Giorgio Agamben e sua visada benjaminiana do que seja o contemporâneo. A seu tempo, argumentamos em favor de uma certa posição analítica, baseada nas proposições de Wolfgang Kayser, sem, no entanto, optar por uma postura de incontestabilidade para com aquilo que está fora do eixo exclusivamente literário, tendo em vista que outros saberes podem e devem contribuir para a formação analítico-crítica de nós mesmos e dos leitores que pretendemos formar. Escolhemos, a título de exemplo de nossa hipótese, realizar um exercício de análise literária, trazendo à baila um poema de Mia Couto. Nessa análise, de base retórico-estruturalista, contribuem sobremaneira as miradas de Jean Cohen e de Heinrich Lausberg. Palavras-Chave: Teoria Estruturalismo; Retórica. da literatura; Experiência; Contemporâneo; INTRODUÇÃO Algumas questões passaram, de algum tempo para cá, a nos inquietar e, por isso, orientaram a construção deste texto: por que a teoria da literatura faz falta? Por que a situação atual e as perspectivas presentes e futuras para os estudos literários não nos parecem benfazejas? É preciso mudar conceitos ou adequá-los às necessidades da(s) hora(s)? A literatura basta a si mesma ou compõe um sistema maior? Planejar é preciso? Sabemos que não basta denunciar um estado de coisas; é preciso atuar para que ocorram mudanças. Neste caso, nossa atuação se dá, timidamente, por via deste ensaio. Em tempo: não respondemos às perguntas como a um questionário; elas são o norte para o encadeamento de um processo crítico-compreensivo. 1 UFMS/CCHS/PPGEL. PQ/CNPq. Campo Grande – MS – Brasil – 79.022-911. [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 181 PLANEJAR É PRECISO Antes de iniciarmos a ministração de uma disciplina em qualquer nível de ensino, deparamo-nos com o planejamento das aulas. Muitos de nós nos indagamos: para que planejamento se já sei o que lecionar? Uma primeira resposta, em nível lato, é que ele serve como instrumento de transformação social e como forma de lapidar os riscos da improvisação e da fórmula “sempre mais do mesmo”. O planejamento não é uma tarefa específica de planejadores ou de pedagogos; não é tão somente uma teoria ou um método; ou, ainda, uma declaração de intenções. Ele é uma intervenção ideológica na realidade; é a possibilidade do enfrentamento de problemas reais; é um instrumento de gestão para o desenvolvimento com qualidade do ensino. Ele precede e preside as nossas ações em sala de aula e fora dela. A expressão planejamento deriva de plano, que vem do latim pl nus –a –um, “liso, sem dificuldade” (CUNHA, 2000, p. 612). Cunha também faz referência à plaina, também derivada do vocábulo latina supracitado: “instrumento usado pelos carpinteiros para alisar madeiras” (2000, p. 612). Apesar dessa base etimológica e do percurso metafórico indicado, sabemos que o planejamento não evita as arestas, porém oferece ferramentas para aplainá-las, contorná-las ou mesmo fazer perceber que algumas delas sempre estarão lá, cabendo ao planejador saber aproveitá-las em seu favor. Considerando que o conceito de planejamento está bastante ligado à área das Ciências Contábeis, procuramos no Dicionário de Contabilidade o verbete “Planejamento Contábil”. Eis sua definição: Previsão do funcionamento de uma Contadoria; previsão de fatos patrimoniais; previsão para a organização de trabalhos contábeis. O planejamento contábil abrange as fases de: 1 – Coleta de dados para o Plano / 2 – Elaboração do Plano / 3 – Execução ou Implantação do Plano / 4 – Observação sistemática do Plano / 5 – Ajustes do Plano. Para que sejam preenchidos todos os requisitos necessários a um bom planejamento, é imprescindível pleno conhecimento da ciência e da técnica contábil, e especialmente das ciências correlatas: Organização, Administração e Direito. (SÁ, 1994, p. 333). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 182 Ao plasmarmos a definição de Antonio Lopes de Sá para o ensino, vislumbramos as condições para um bom planejamento: um trabalho de coleta de dados, de informações para aquilo que desejamos “aplainar”; a clareza de que quem planeja deve saber sobre o que e como deverá agir; a definição sobre / de quem deve planejar; o marco históricotemporal-cultural daquilo que se planeja; e as condições do tempo presente para como se deve proceder ao planejamento. Assim, o planejamento tem que enfrentar problemas relativos: ao delineamento da realidade envolvente; à concepção de um plano capaz de delinear propostas objetivas e factíveis; a quem são os atores envolvidos; à adequação de seus métodos; e à avaliação constante. Falamos aqui como se o planejamento existisse por si só. Pode parecer óbvio, porém por detrás dele há seres humanos, marcados pela realidade histórica e pelas circunstâncias presentes. REALIDADE HISTÓRICA E CONTEMPORANEIDADE A realidade histórica é delineada por via de uma análise situacional, que inclui o tempo, o lugar e a cultura, e como isso se abate sobre os sujeitos. Não basta apresentar um diagnóstico da realidade como aquele do médico que, diante dos sintomas, prescreve medicamentos. Se pensarmos acuradamente, mesmo o diagnóstico médico padece com erros: por vezes, uma disritmia cardíaca não é um problema do coração, porém um sintoma ligado ao estado psíquico do sujeito. Nesse sentido, não há uma explicação verdadeira e unívoca para os fenômenos; há, sim, hipóteses que precisam ser provadas ou não. Aqui se faz uma critica ao positivismo e ao empirismo, heranças do século XIX, e que reverberam em nossas mentes e em nossas ações: há que se positivar tudo o que está em nosso entorno e rechaçar (e, por vezes, até demonizar) aquilo que o passado nos legou. Na tese 6 do ensaio Sobre o conceito de história, escrito em 1940, Walter Benjamin (1986a, p. 224-225) já anunciava: Articular historicamente o passado não significa conhecê-los ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. [...] O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 183 como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E o inimigo não tem cessado de vencer. (Os destaques são nossos). A expressão “perigo” é utilizada três vezes. E exatamente onde reside esse perigo? Em que pese a sedução exercida pelo materialismo histórico nas teses tecidas por Benjamin, o caráter messiânico subjaz a ele: o Messias, quando vier, não deverá ser somente o apaziguador; ele deverá ser também um lutador contra as forças que intentam aniquilar o ser humano. E essas forças estavam em ação quando Benjamin escreveu seus textos: elas não eram somente os estados totalitários em ascensão ou já no poder, como era o caso da Alemanha; era o esquecimento do passado, condicionando os sujeitos, nós seres humanos, a pensar que a felicidade era / é [...] totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. (BENJAMIN, 1986a, p. 222-223). Dito de outro modo, a felicidade está também no passado, naquilo de que nos esquecemos ou do que nos fizeram esquecer. Não nos cabe aqui discutir o conceito de felicidade. Pensemos nela, então, como uma situação de bem estar e que para assim o ser não deixa de lado o mal estar. Na busca da felicidade aclamada por Benjamin e pensada como nós a propomos – como uma relação dialética entre bem estar e mal estar –, há que se detectar os problemas dos atores contemporâneos, em face de contradições histórico-sociais presentes. Nesse ponto, precisamos pensar o que é o contemporâneo, em uníssono com Giorgio Agamben. A pergunta feita por Agamben (2009, p. 57): “o que significa ser contemporâneo?” já era uma preocupação, no século XIX, de Nietzsche. Ele detectara que o estado de contemporaneidade tem uma ligação GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 184 intrínseca com o tempo, sendo essa também uma das proposições do filósofo italiano: Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 58-59). Por paradoxal que possa parecer, o sujeito contemporâneo, em seu estado de contemporaneidade, é uma imagem do não conformismo, da crítica, da polêmica e da inquietude, por não aderir inteiramente ao seu tempo e às suas exigências, mantendo, ao que nos parece, um olhar de soslaio para os escombros do passado, como o Angelus Novus de Paul Klee, eternizado por Benjamin em sua tese 9 sobre o conceito de história. Dizemos de soslaio, pois o olhar contemporâneo também está no presente, porém muito mais alerta para enxergar as sombras / o escuro do que as luzes. O escuro, segundo Agamben (2009, p. 63), [...] não é uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que [...] equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes. Perceber, a um só tempo, a luz e a sombra é um estado inquietante e muitas vezes desalentador. Por isso, anteriormente, nos referimos à felicidade como a relação dialética entre bem estar e mal estar. Aqui, nossa leitura toma um rumo baseado nos estudos de cultura empreendidos por Freud em O mal-estar na civilização. Diante do progresso aferido pela humanidade nos séculos XIX e início do XX, Freud (1997, p. 39) percebeu que os homens passaram não somente a se orgulhar de seus feitos, mas também [...] parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 185 aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Isso não significa que estejamos — nem Freud estava — contra o progresso de qualquer ordem. O que queremos é perguntar, atualizando as indagações do psicanalista austríaco: poder contactar via skype o orientando que está longe; poder utilizar um projetor multimídia para mostrar obras expostas no Museu do Prado para nossos alunos brasileiros; poder ler obras inteiras em e-books; poder armazenar informações e mais informações e dispor delas quando for necessário em pequenos artefatos (os pendrivers), “Enfim, de que nos vale uma vida longa [e repleta de facilidades] se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças [e de sem sabor] que só a morte é por nós recebida como uma libertação?” (FREUD, 1997, p. 40). Enxergamos e expomos, portanto, o lado sombrio daquilo que se chama progresso e que, no mais das vezes, quer esquecer o passado. Isso é ser contemporâneo e essa percepção é a que nos interessa. Queremos ser um sujeito contemporâneo, que prioriza os problemas do presente, a fim de possibilitar-se o seu enfrentamento, porém sem apagar os rastros do passado, procurando não incorrer no empobrecimento das experiências2. Voltando à questão do planejamento, planejar significa, então e também, a transformação das formas de pensar e de agir em sociedade, mas sempre olhando de soslaio, como o Angelus Novus. NÃO EMPOBRECER A LITERATURA Neste ponto, ingressamos com o tema “teoria da literatura”. Optamos por essa expressão em lugar de “teoria literária”, tendo por base as discussões empreendidas por Wolfgang Kayser na introdução de sua obra Análise e interpretação da obra literária (introdução à ciência da literatura) (1985). 2 Neste ponto, fazemos uma alusão-homenagem ao ensaio Experiência e pobreza, de Walter Benjamin (1986b), uma chamada ao homem de como empobrecemos a cada dia quando abandonamos os bens do patrimônio cultural da humanidade em prol do esquecimento e, aqui, acrescentamos, do uso e da crença exacerbada na tecnologia. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 186 Quando ingressamos em um curso de graduação ou de bacharelado em Letras, alguns de nós pensamos que nos aprofundaremos em temas caros às “emoções estéticas” (KAYSER, 1985, p. 3) e, quem sabe, teremos despertado o escritor / o poeta adormecido em nós. Começa aí uma das várias decepções que nos assolarão ao longo não somente do curso, mas também de toda uma carreira que abraça(re)mos. Logo no primeiro ano do curso de Letras, deparamo-nos com disciplinas básicas para a compreensão, grosso modo, do que será nosso objeto de estudo: a linguagem. Teoria da Literatura, Linguística, Língua Portuguesa, Latim, Filologia Românica e Literatura Portuguesa passarão a ser ferramentas para o reconhecimento do que seja, no caso específico deste ensaio, um texto literário, uma vez que, como profissionais da área, nosso interesse não deve ser tão somente contemplativo ou de fruição. Temos, pois, um compromisso que nos solicita o conhecimento aprofundado daquilo que pretendemos ensinar. Porém, antes de tudo, está a leitura: Todo o estudo teórico acerca da obra poética está inicialmente ao serviço da grande e difícil arte de saber ler. Só quem sabe ler bem uma obra está em condições de a fazer entender aos outros, isto é, de a interpretar acertadamente. E só quem é capaz de ler bem uma obra pode satisfazer as exigências inerentes à ciência da obra poética (KAYSER, 1985, p. 4). Assim, para procedermos à leitura literária, não nos basta o entusiasmo ou o conhecimento da realidade empírica. É preciso considerar que o texto literário é “um conjunto estruturado de frases [...] portador dum conjunto estruturado de significados” (KAYSER, 1985, p. 6), tudo isso assente no uso da própria língua. Essa proposição pode parecer, à primeira vista, por demais estruturalizante, porém, nem tanto ao céu, nem tanto à terra: se o estruturalismo foi rechaçado por seus sucessores, dentre eles, os estudos culturais, em face do abuso de fórmulas que acabaram tornando-se verdadeiras panaceias, por outro lado, como interpretar um poema, um conto sem nos (a)pegarmos, inicialmente, às palavras e às construções erigidas por suas (des)uniões? Diante dessa indagação, podemos, com Kayser (1985, p. 7), afirmar que GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 187 a literatura apresenta “[...] a capacidade especial que a língua literária tem de provocar uma objectualidade sui generis, e o carácter estruturado do conjunto pelo qual o efeito ‘provocado’ se torna uma unidade”. Utilizamos acima duas expressões das quais não podemos descuidar: “realidade empírica” e “estudos culturais”. Se Kayser não as cita, ao menos, não nos deixa esquecer de que “[...] existem certos problemas histórico-literários que levam necessariamente à inclusão de outros objectos ainda [nos estudos de literatura]” (1985, p. 9). O objeto central desses estudos é a obra literária, porém, há outras questões que orbitam no campo de atração da literatura. Pensemos, por exemplo, nas outras áreas do saber humano que são tematizadas pelo literário: a política, a filosofia, a história, a psicanálise, a geografia, para ficarmos somente nas ciências humanas. Basta lembrarmos que até hoje grandes poetas e críticos literários de valor são homens dedicados também a outras ciências: direito, política, filosofia, sociologia. Assim, a interseção da teoria da literatura a essas e a outras ciências é útil e produtiva, no entanto, há na ciência da literatura (expressão utilizada por Kayser) “[...] uma zona nuclear como objecto próprio, cuja investigação acurada constitui a sua principal tarefa” (KAYSER, 1985, p. 17). Esse objeto é o texto literário. Em 2007, Todorov lançou A literatura em perigo, publicado no Brasil em 2009. É, a um só tempo, uma história de amor aos livros e ao ensino e um alerta para o grande sentido da literatura, que é dar voz às experiências humanas. Em nossa prática docente, percebemos que é preciso, sim, fazer referências ao material humano contido no texto literário. E como fazer isso? Todorov (2009, p. 78) responde que: Lançando mão do uso evocativo das palavras, do recurso às histórias, aos exemplos e aos casos singulares, [assim] a obra literária produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de associação e provoca um movimento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempo depois do contato inicial. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 188 Voltemos à carga com um acréscimo: e como fazer isso se nós, professores, não soubermos ou não atribuirmos a devida importância aos preceitos da teoria da literatura e, mais profundamente, da linguagem? UM BREVE EXERCÍCIO ANALÍTICO Propomos a seguir um exercício analítico, tendo como objeto um poema de Mia Couto e por opções teóricas vertentes específicas da crítica da literatura do século XX. Em tempo: no Brasil, o escritor moçambicano é mais conhecido por sua obra em prosa, porém em África e também em Portugal seus poemas começam a circular. POEMA DIDÁCTICO Já tive um país pequeno, tão pequeno que andava descalço dentro de mim. Um país tão magro que no seu firmamento não cabia senão uma estrela menina, tão tímida e delicada que só por dentro brilhava. Eu tive um país escrito sem maiúscula. Não tinha fundos para pagar a um herói. Não tinha panos para costurar bandeira. Nem solenidade para entoar um hino. Mas tinha pão e esperança para os viventes e sonhos para os nascentes. Eu tive um país pequeno, tão pequeno que não cabia no mundo (COUTO, 2011, p. 52-53). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 189 Anunciamos, agora, que nossa análise tem como base as proposições de Jean Cohen em sua Estrutura da linguagem poética (1974) e os ensinamentos retóricos de Heinrich Lausberg em Elementos de retórica literária. Destacamos no poema de Mia Couto os níveis sugeridos por Cohen: fônico, semântico e de significado, tomando-os de modo relacional e retórico. Vejamos: os versos, livres, estão distribuídos em 4 estrofes. A musicalidade é garantida pelo uso das rimas finais e internas e pela repetição de palavras. Na primeira estrofe, temos a apresentação do tema do poema, com a sugestiva repetição de “país” e de “pequeno”, palavras que voltarão na última estrofe. Se por um lado, ambas dão a dimensão da aparente pobreza do lugar, que também “andava descalço” e era “magro”, por outro, esse país era uma “estrela menina”, “tímida e delicada” – perceba-se a rima interna – isto é, uma criança-mulher que dentro de si sabia que não era apenas o que parecia e que se era uma menina um dia poderia crescer. E tudo isso é claro para o poeta, tão caro e claro que na ltima estrofe o “país pequeno / tão pequeno” podia não caber no mundo, mas cabia (implicitamente) no seu coração. O poema abre-se e fecha-se com a obstinação infantil de saber-se pequeno, porém saber-se capaz de crescer, de brilhar, de sonhar. Ainda na primeira estrofe, há a metáfora do “firmamento” que encobre esse país ainda noturno, mas não numa noite fechada e escura, porém iluminada pela “estrela menina” que brilha por dentro, ainda que timidamente, como que aguardando a intensidade de um céu repleto de outras estrelas. Na segunda estrofe, o país decai / cai do “firmamento” e desce à sua condição mais terrena, numa premissa que, à primeira vista, poderia ser a maior, mas é lida por nós como a menor: “sem mai scula” no nome, sem “fundos”, sem “panos” ou “solenidade” para enaltecer a si e a seus heróis. É a terra no rés do chão, no pauperismo da condição humana de imaginar que o ter é o poder; que heróis, bandeiras ou hinos constroem uma nação e trazem a ela um lugar ao sol, o sol da prosperidade do ter e não do ser. A repetição cíclica da expressão “Não tinha” para “fundos” e “panos” serve para deter o fluxo “[...] da informação e [dar] tempo para que se ‘saboreie’ afectivamente a informação apresentada como GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 190 importante” (LAUSBERG, 1993, p. 166). A afetividade “saboreada” na segunda estrofe o será com maior intensidade na última estrofe nos versos: “Eu tive um país pequeno / tão pequeno”. A terceira estrofe abre-se com uma conjunção adversativa, “mas”. Inicia-se, pois, a premissa maior do poema: o lugar é pequeno, magro, com uma estrela menina, porém nele não faltava “pão”, “esperança” e “sonhos” para os “viventes” e os “nascentes”, esse ltimo par em estado de rima final. É a prova de que o país do poeta não está inserido tão somente em um espaço físico, mas sobretudo em um lugar afetivo, o que amplifica sua importância. Seguindo a lição de Lausberg (1993, p. 219-221) e baseados nos elementos materiais do texto, podemos dizer que o poema de Mia Couto configura-se, retoricamente, como um entimema, ou seja, a redução de um silogismo. O entimema em questão refere-se ao conceito de pátria, expressão ocultada no poema, porém, que parece o tempo todo perseguir o leitor mais avisado. Por ser um poema, as provas foram reduzidas àquelas que aparecem materialmente em um continente espoliado (magreza, falta de recursos financeiros e opacidade diante do mundo) e àquelas que são sentidas, mas não aparecem (a beleza da natureza / do firmamento e a pequena grandiosidade da generosidade humana no compartilhar do pouco que se tem). Essa redução amplifica o pensamento principal, qual seja, que a pátria está em nós e não nós nela. É um “poema didático”, como explicitado pelo título, que nos ensina o que é a pertença a um lugar, numa conexão íntima e que ninguém, nenhum algoz, pode nos retirar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda que sob o risco de sermos chamados de antiquados, tendo em vista especialmente nossas opções teóricas para a análise do texto literário, há disciplinas que não podem ser destratadas ou maltratadas no ensino das Letras. Entre elas, está a teoria da literatura. Cremos que há em torno dela insegurança, desorientação e desconhecimento por parte tanto de professores quanto de alunos. Sabemos que esta é uma observação perigosa no sentido usado por Benjamin em sua tese 6 sobre o conceito de história e já referido neste ensaio. Porém, é também um GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 191 alerta para que pensemos: que espécie de leitores literários queremos formar em nossos cursos e em nossas vidas para além da academia? Precisamos compreender que o curso de Letras é um construto relacional, capacitado a oferecer instrumental teórico suficiente para a produção de sentidos não somente para textos literários, mas também para o próprio processo ensino-aprendizageem. Muitos dos problemas que afligem a leitura literária residem nos conteúdos aplicados (ou não) nas salas de aula dos cursos de graduação e na ausência de correlação entre esses conteúdos. Se queremos produzir saberes e sabores, é necessário que haja reflexão, problematização e investigação, isso sob a condução de um planejamento ao modo como exposto neste ensaio. Chamamos a atenção para que em nenhum momento de nossa breve análise literária aludimos a Moçambique, ao processo de descolonização, às guerras fraticidas ou à ação política do intelectual Mia Couto. Tudo isso pode ser encontrado por um leitor médio, com um mínimo de conhecimentos sobre o processo de independência, na década de 1970, dos países africanos sob o domínio português, sem que um professor de Letras, versado em teoria da literatura, precise guiá-lo. Porém, não nos esqueçamos de que se trata de um texto literário, especificamente, de um poema. Portanto, ainda é preciso a intervenção de um professor de Letras, versado em teoria da literatura, para apresentar os sentidos poéticos e humanos possíveis do que vai no texto. THE LACK OF LITERATURE Abstract: In this essay, we demonstrate that ‘planning’ also means ‘transforming ways of thinking and acting in society’, in this case aiming to consider the importance of literary theory for studies of Languages and Literature. Therefore, we will use some categories arising from Freud – the bad feeling –, Walter Benjamin – history, experience and impoverishment – and also from Giorgio Agamben (and his benjaminian view of what is contemporary). Furthermore, we defend an analytical view, based on the propositions of Wolfgang Kayser, without opting to an attitude of ‘unquestionability’ with what is away from the literary axis – since it is possible to state that other sciences can (and must) help us to develop our analytical-critical characteristics. We have also opted, in GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 192 order to exemplify our hipotesis, to elaborate an exercise of literary analysis, presenting a poem written by Mia Couto. In this analysis, based on rhetorical concepts and on structuralism, the observations of Jean Cohen and Heinrich Lausberg are extremely contributory. Keywords: Literary theory; Experience; Contemporary; Structuralism; Rhetoric. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? In: _______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: _______. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986a. p. 114-119. (V. 1). _______. Sobre o conceito de história. In: _______. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986b. p. 222-232. (V. 1). COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. Tradução Álvaro Lorencini e Anne Arnichand. São Paulo: Cultrix; Editora da USP, 1974. COUTO, Mia. Tradutor de chuvas. Alfragide: Editorial Caminho, 2011. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2. ed. revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997. KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária (introdução à ciência da literatura). 7. ed. portuguesa traduzida e revista por Paulo Quintela. Coimbra: Arménio Amado, 1985. LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. Tradução R. M. Rosado Fernandes. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. SÁ, Antonio Lopes de. Dicionário de Contabilidade. 8. ed. revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 1994. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 193 A LITERATURA INFANTIL EM CRISE?: EXPERIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO DO CAMPO Alexandra Santos Pinheiro – UFGD 1 Resumo: A Literatura Infantil seria um dos recursos para propiciar às crianças o mergulho em mundos imaginários, dando-lhes a possibilidade de vivenciar, a partir dos personagens das histórias, experiências subjetivas e, a partir dos enredos, resolverem questões que abalam o seu psicológico, como propõe a análise psicanalítica de Bruno Bettelheim (1980). A partir desse pressuposto, o presente texto analisa o espaço dado à Literatura Infantil, mais especificamente, aos contos de fadas, na prática de docentes formados em um curso de Pedagogia para Educadores do Campo. Palavras-chave: Literatura Infantil, Educação do Campo, Leitura “O ser humano de pouca idade constrói seu próprio universo, capaz de incluir lances de pureza e ingenuidade, sem eliminar todavia a agressividade, resistência, perversidade, humor, vontade de domínio e mando” (Uilcon Pereira2) Introdução: metodologia e motivações A preocupação com o imaginário infantil é tema de pesquisa de teóricos como Vigotsky e Walter Benjamin, para citar dois dos principais referenciais do presente texto. Vigotsky, na obra Imaginación y creación em la edad infantil, discute a importância da fantasia3 para a formação do cidadão e destaca a necessidade do adulto valorizar esse processo 1 Professora adjunta da Universida [email protected]. 2 In.: BENJAMIN, 1984, p. 11. Federal da Grande Dourados. 3 Adotaremos a definição de Jacqueline Held: “O termo fantástico [...] significa aquilo que só existe na imaginação ou na fantasia; e, não, a acepção que costumamos lhe dar de extraordinário, extravagante, prodigioso, incrível”. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 194 imaginativo, partindo, não do ponto de vista adulto, e sim dos interesses demonstrados pelas crianças, uma vez que, de acordo com o pesquisador, “la imaginación en el niño funciona de uma manera diferente que en el adulto” (VIGOTSKY, 1999, p. 27). A Literatura Infantil seria um dos recursos para propiciar às crianças o mergulho em mundos imaginários, dando-lhes a possibilidade de vivenciar, a partir dos personagens das histórias, experiências subjetivas e, a partir dos enredos, resolverem questões que abalam o seu psicológico, como propõe a análise psicanalítica de Bruno Bettelheim (1980). A partir desses pressupostos, o presente texto analisa o espaço dado à Literatura Infantil, mais especificamente, aos contos de fadas 4, na prática docente dos acadêmicos do curso de Pedagogia para Educadores do Campo. Tratava-se de um Curso presencial de graduação/licenciatura, desenvolvido em parceria entre a Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, a Fundação de Apoio ao Ensino, Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação-FUNDEP e o Incra/Pronera – Programa Nacional De Educação Da Reforma Agrária. Os educandos eram integrantes dos movimentos sociais e as aulas eram concentradas nos meses de julho, janeiro e fevereiro. A maior parte desses acadêmicos já atuava como professor e demonstrava, em seu discurso, não reconhecer a importância da leitura de textos com elementos fantásticos, como fadas, bruxas, duendes, espelhos mágicos etc, para a formação da criança. O pouco reconhecimento por essa literatura causou certo estranhamento, pois, quando aceitamos ministrar a disciplina de “Literatura Infantojuvenil” no referido curso, imaginamos que seria significativo trabalhar, com pessoas marcadas por histórias de lutas, um ramo da arte literária que nasceu da tradição oral, a partir da necessidade de mostrar os perigos da vida às crianças e de lhes incutir os valores ideológicos dos adultos. Ao retomarmos a trajetória histórica dessa arte, também lembramos que ela, muitas vezes, serviu para dar às crianças a esperança de dias melhores, numa idade média marcada pela fome, como lembra Nelly Coelho (1991). 4 Regina Zilberman propõe uma identificação entre Literatura Infantil e Contos de Fadas. Para a autora, a Literatura Infantil só pode ser considerada como tal, quando incorpora os auxiliares fantásticos dos contos de fadas (ZILBERMAN, 1987, p. 48). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 195 A leitura do referencial teórico sobre a Literatura infantojuvenil 5 mostra como esse gênero colaborou para a consolidação da família burguesa, caracterizada pela figura feminina voltada para as preocupações domésticas e a masculina responsável pelo sustento da família. Nesse sentido, também teríamos, nas histórias infantis, a valorização da criança como um ser em desenvolvimento e o papel de destaque da mulher (mãe) nesse processo. Já a inserção do gênero nas instituições escolares oferece outro elemento de análise, qual seja, a distinção entre as “escolas para ricos” e a “escolas para proletários”, questão analisada no Estatuto da Literatura Infantojuvenil: A criança burguesa encontra-se plenamente integrada no contexto familiar, uma vez que este foi solidificado para resguardá-la. O agente desta proteção é a personagem materna, o que dá um fundamento histórico e social ao complexo de Édipo, como pretendem Stone e Poster. [...] A situação do setor proletário não é idêntica. A preservação da criança visa a formação e manutenção de um contingente obreiro disponível; e é à família, dentro da qual a responsabilidade maior cabe às mães, que se legam esta tarefa (ZILBERMAN, 1987, p. 0910). Mas a expectativa de que conhecer a história e a função desse ramo da Literatura possibilitaria aos futuros e já atuantes educadores do campo e líderes de diferentes movimentos sociais a oportunidade de compreender histórica e antropologicamente a história social da família foi confrontada pela reação de alguns acadêmicos, que se expressaram aproximadamente nestes termos: “Professora, para que serve esse mundo de imaginação? Nossas crianças têm que crescer conscientes do mundo real”. Num primeiro momento, indicamos a análise de Bruno Bettelheim, Psicanálise dos contos de fadas, e a leitura de autores que defendem a fantasia para a formação do sujeito, como é o caso de Walter Benjamin. De qualquer forma, essa indagação, feita no primeiro dia de aula, fez com que repensássemos o programa e buscássemos, na teoria, respostas 5 Quando usamos a terminologia Infantojuvenil fazemos referência a dois tipos de livros: aos destinados às crianças até a terceira série, e aos livros utilizados a partir da quarta série. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 196 que levassem a 1ª turma de Pedagogia para Educadores do Campo a perceber a importância de conhecer, na teoria e na prática, os elementos constituintes dessa área de conhecimento. Assim, o leitor e a leitora deste artigo encontrarão, nas páginas seguintes, uma discussão sobre as possíveis causas da rejeição aos contos de fadas, ou seja, a rejeição que parte dos educandos da primeira turma do curso de Pedagogia para Educadores do Campo demonstrou em relação à fantasia. Quais os motivos dessa rejeição? Baseada nas pesquisas de Bruno Bettelheim, Regina Zilberman, Marisa Lajolo, Nelly Coelho Novaes, Maria da Glória Bordini, Walter Benjamin e Vigotsky, interpretamos o discurso dos acadêmicos e das acadêmicas e indicamos a importância de se repensar o espaço da fantasia, a partir dos contos fantásticos, em seus trabalhos docentes. Vale ressaltar que esses acadêmicos lecionam nas séries iniciais do Ensino Fundamental, para crianças na faixa-etária de 5 a 9 anos, uma fase em que o público leitor, conforme Bordini, “vai buscar, nos contos de fadas, lendas, mitos e fábulas, a simbologia necessária à elaboração de suas vivências. Através da fantasia, resolve seus conflitos e adapta-se melhor no mundo” (BORDINI, 1988, p. 19). Por outro lado, nas leituras das obras de Ademar Bogo, encontramos respaldo no próprio movimento social para defender o espaço à fantasia no processo escolar dos estudantes do campo. O olhar descrente que alguns educandos mantiveram durante os encontros fez-nos lembrar do discurso de Pedro Bandeira. Em entrevista publicada no jornal Proleitura, mantido, na época, em parceria entre UNESP-Assis, UEL e UEM, o autor falou com paixão sobre a importância dos contos de fadas na tradição oral, quando crianças, na Idade Média, dormiam famintas, acalentadas apenas pelas histórias de suas avós e mães, que ofereciam, juntamente com as narrativas, a esperança de que a situação poderia ser revertida. Dessa entrevista, apresentamos um trecho que servirá, neste artigo, como motivador do debate proposto: A criança morre de medo do lobo da história da Chapeuzinho Vermelho, mas no dia seguinte fala: “mamãe, conta de novo!” Isso porque ela quer de novo ser protegida no colo da mamãe, passar de novo pelo medo e resolver isso internamente, dá um salto emocional, e é assim que se traz segurança ao ser humano, que não vai precisar de um psicanalista mais tarde (BANDEIRA, 1998, p. 2). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 197 A questão do crescimento psicológico, apontada pelo autor, representa, inclusive, uma das funções da Literatura destinada ao público leitor infantil e adolescente. Como afirma Zilberman, a Literatura Infantil preenche as lacunas deixadas pelos ensinamentos escolares e propicia a compreensão do mundo real: Assim, se a criança – devido não só a sua circunstância social, mas também por razões existenciais - se vê privada ainda de um meio interior para a experimentação do mundo, ela necessitará de um suporte fora de si que lhe sirva de auxiliar. É este o lugar que a literatura infantil preenche de modo particular, porque, ao contrário da pedagogia ou dos ensinamentos escolares, ela lida com dois elementos que são especialmente adequados para a conquista desta compreensão do real (ZILBERMAN, 1987, p. 11-13). Realizada a apresentação dos elementos motivadores para a composição deste texto, resta, cabe, a seguir, discorrer sobre a metodologia utilizada para chegarmos aos resultados aqui apresentados. O discurso dos referidos acadêmicos fez-nos investigar, no decorrer dos encontros, qual era o limite dos questionamentos apresentados. Percebemos, então, que não havia uma fala contrária à presença da disciplina na grade curricular do curso, mas, sim, uma preocupação com os textos infantis marcados pela presença de elementos fantásticos, como os contos de fadas. Obras como a coleção o “Pinto”, composta por obras como Pivete (Henry Corrêa de Araújo), O dia de ver meu pai (Vivina de Assis Viana), O menino e o pinto do menino (Wander Pirolli); e narrativas como “O bife e a pipoca” (Lygia Bojunga Nunes) despertaram o interesse e fomentaram calorosos debates. Em comum, os livros mencionados apresentam enredos voltados a questões sociais, emocionais e de violência urbana. Os problemas citados são contextualizados em situações do mundo real e não do fantástico. Não há a interferência de um personagem fantástico, como fada, por exemplo, para resolver as dificuldades das personagens. Nessa perspectiva, os pais separados não voltam a morar juntos (O dia de ver meu pai), e os meninos de ruas morrem vítimas da agressão policial e da fome (Pivete). Teoricamente, há a distinção entre esses dois universos, o real e o fantástico. Como explica Regina Zilberman, depois da década de 50, do século XX, passou a existir “a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 198 adoção de um programa, cuja perspectiva é realista na criação dos textos, ao mostrar a vida “tal qual é” ao leitor mirim” (ZILBERMAN, 1985, p. 88). É também a autora quem sintetiza a proposta do programa de uma literatura realista: 1. o escritor parte da constatação de que o recebedor virtual do livro infantil, a criança, não é o mesmo de antigamente, o que o motiva à criação de obras diferentes; 2. não apenas se modificou o destinatário, mas igualmente as intenções do emissor: ao escrever seu livro, ele quer “manter esta criança com os pés na terra, na realidade”; 3. o objetivo parece ser o de demonstrar que a criança não pode ser murada, resulta daí a presença nos textos da violência; o que, todavia, não é novidade para a criança de hoje (a violência sempre esteve presente na Literatura Infantil) (ZILBERMAN, 1985, p. 88-89) O discurso dos/as acadêmicos/as do curso de Pedagogia para Educadores do Campo vai ao encontro do ds tópicos apresentados. O principal argumento apresentado foi o de que as crianças e os jovens dos movimentos sociais precisam crescer conscientes da realidade de exclusão que os cerca. Talvez os textos mais voltados para o verídico tenham sido melhor aceitos devido à história de luta vivenciada por aqueles acadêmicos. Trata-se da preferência de adultos marcados por experiências duras, agressivas, como a registrada por Ademar Bogo: Nossos pais não tiveram que nos enterrar. Por sorte, escapamos da morte. Mas, em nosso nordeste, em Pernambuco, onde moro, a fome e a miséria têm obrigado os pais a enterrarem os filhos ainda pequenos. Aí, sim, dá para ver que a guerra não é feita apenas com armas de fogo. É mais perversa quando feita com armas da concentração da riqueza, que gera a violência e a morte (BOGO, 2003, p. 22). Por outro lado, uma das normas do MST é a de “respeitar e entender os diferentes níveis de consciência entre as pessoas que compõem a massa” (BOGO, 2003, p. 50). Pensando, então, nos diferentes níveis de maturidade, não seria interessante que as crianças das séries iniciais conhecessem a injusta realidade de inclusão e exclusão, a partir de textos marcados por elementos fantásticos, mas que, nem por GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 199 isso, deixam de fomentar debates sobre as desigualdades social, étnica e econômica? Ciente desse fato, elaboramos um questionário com as seguintes perguntas: 1. Você leu literatura infantil em sua infância? 2. Em sua infância, alguém lhe contava histórias? Como eram essas histórias? 3. Que tipo de livro você costuma ler? 4. Qual o último livro de Literatura Infantojuvenil que você leu? O que motivou a leitura? 5. O que é imaginário para você? 6. Como você avalia a importância ou não do imaginário na infância? 7. Em suas aulas, em quais momentos você trabalha com a Literatura Infantojuvenil? Como você faz a seleção das obras? Para que não houvesse constrangimento, não solicitamos que se identificassem e pedimos a outra professora para aplicar as perguntas. O questionário foi respondido por 33 alunos, divididos em dois grupos: os entusiasmados pelo assunto, que afirmaram manter uma forte relação com o mundo fantástico; e os que reforçaram o não interesse pelo assunto. A análise do questionário foi enriquecida com as afirmações feitas na avaliação que fizeram do curso. Na ocasião, foi retomada a questão dos contos de fadas, a partir de uma visão negativa. Cada educando tinha a tarefa de escolher uma obra literária e trabalhá-la em sala de aula. Depois, deveriam fazer um relato da receptividade do texto por parte dos alunos. Dois pareceres, feitos a partir da visão do educador, denotaram claramente o valor dado às narrativas realistas e a pouca atenção aos contos com elementos fantásticos: “Penso que por se tratar do mundo real me agradou bastante”6 “A história não agradou muito um lado, pois esta tem um cunho ideológico no passa uma mensagem que num mundo em que a violência predomina basta todos terem os sentimentos de criança que o mundo melhora. Isto para mim é 6 Não identificamos os acadêmicos e mantivemos o texto conforme original. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 200 uma forma de fazer com que as crianças desde cedo tenham uma falsa visão da realidade”. O que os discursos apresentados denunciam, em primeiro lugar, é a forma de analisar a realidade, vista como estática e única. Concepção que pode ser atribuída às experiências duras vividas, que não permitiram a esses sujeitos conviver com o fantástico. De qualquer forma, sabemos que cada indivíduo olha para um objeto de forma diferenciada. São olhares subjetivos, marcados por experiências individuais. Provavelmente, quando crianças, esses acadêmicos também se depararam com adultos que exigiram deles uma postura adulta frente à realidade. Nesse sentido, cabe lembrar o que Vigotsky destacou sobre as diferenças que marcam os interesses da criança e do adulto. Para o pesquisador, “son también diferentes los intereses del niño que funciona de uma manera diferente que en el adulto” (VIGOTSKY, 1999, p. 27). O que o pesquisador propõe é que seja respeitada a maturidade da criança, independentemente da proposta ideológica do grupo a que ela pertence. Uma segunda questão que se apresenta remete à forma de conceber a aprendizagem infantil. A “realidade”, considerada por um determinado grupo, seria, nesse sentido, “ensinada” à criança desde a tenra idade, negando, de certa forma, o seu direito e a sua capacidade de observar, vivenciar e formar a sua noção de real. A preocupação em formar a consciência política de seus militantes faz parte da filosofia do M.S.T., como registra Bogo: “O MST desenvolve a filosofia da formação política de seus militantes”. Páginas depois, o autor aprofunda a questão: O sem-terra[...] deve saber o porquê das coisas na vida da sociedade. Quem tem poder e quem não tem. Por que se pagam impostos. Quem estabelece os preços dos produtos. Por que existe fome... Isto quer dizer que se devem acrescentar à consciência social, já desenvolvida pela própria experiência, aspectos políticos e científicos, para que a consciência se eleve ao nível superior, atingindo o estágio de consciência política (BOGO, 2003, p. 166). Na realidade, a proposta do movimento, sintetizada acima por Bogo, deveria ser norteadora do processo de formação de todo cidadão, independentemente de estar ou não inserido no movimento. Se os brasileiros, de forma geral, aprendessem a pensar a realidade que os cerca a partir de um olhar crítico, pautado em conhecimentos científicos e GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 201 políticos, teríamos mais chances de construir um país com menos desigualdades. Mas, quando se trata de crianças, essa preocupação em ensinar a “realidade” deveria, a nosso ver, ser pautada no respeito à capacidade de abstração desses indivíduos. Essa questão foi, inclusive, abordada por Bettelheim: Ao contrário do que se diz no mito antigo, a sabedoria não irrompe integralmente desenvolvida como Atenas saindo da cabeça de Zeus; é construída por pequenos passos a partir do começo mais irracional. Apenas na idade adulta podemos obter uma compreensão inteligente do significado da própria existência neste mundo a partir da própria experiência nele vivida. Infelizmente, muitos pais querem que as mentes dos filhos funcionem como as suas – como se uma compreensão madura sobre nós mesmos e o mundo, e nossas idéias sobre o significado da vida não tivessem que se desenvolver tão lentamente quanto nossos corpos e mentes (BETTELHEIM, 1980, p. 31, grifo nosso). Para Bruno Bettelheim, o conto de fadas serviria para apresentar o mundo real à criança e, ao mesmo tempo, confortá-la a partir de um final feliz. A proposta do autor, desta forma, seria a de mostrar a realidade a partir de elementos que façam parte do universo infantil e que, ao mesmo tempo, apresentem soluções para os problemas vivenciados. Tanto que o autor exclui do rol de conto de fadas as histórias que não são marcadas por um desfecho reconfortante: [...] O conto de fadas nunca nos confronta diretamente, ou diz-nos francamente como devemos escolher. Em vez disso, ajuda as crianças a desenvolverem o desejo de uma consciência mais elevada, apelando à nossa imaginação e ao resultado atraente dos acontecimentos, que nos seduz. [...] Por esta razão, algumas das estórias mais conhecidas, encontradas nas coleções de contos de fadas, não pertencem realmente a esta categoria. Por exemplo, “A menina dos fósforos” e “O soldadinho de chumbo”, de Hans Christian Andersen, são lindos mas extremamente tristes: eles não transmitem o sentimento de consolo final característicos dos contos de fadas (BETTELHEIM, 1980, p. 43 e 47). A importância das histórias infantis para a formação da criança também pode ser percebida pelo desejo apresentado por ela de ouvir GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 202 várias vezes a mesma narrativa. De acordo com Walter Benjamin, para a criança, Não basta duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para tornar-se senhor de terríveis experiências primordiais, mediante o embotamento, juramentos maliciosos ou paródia, mas também de saborear, sempre com renovada intensidade, os triunfos e vitórias. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza novamente uma felicidade. A criança volta a criar para si o fato vivido, começa mais uma vez do início (BENJAMIN, 1984, p. 75). Assim como Bettelheim, Walter Benjamin destaca a importância de a criança vivenciar as vitórias dos personagens, ou seja, a superação dos problemas. Compara o sentimento infantil ao do adulto, lembrando que a necessidade de vivenciar várias vezes a mesma emoção dá à criança o alívio que o adulto sente ao desabafar suas angústias. Em que sentido essas afirmações podem contribuir para se fazer acreditar na importância da Literatura Infantil, especialmente dos contos de fadas, na prática docente dos acadêmicos do curso de Pedagogia para Educadores do Campo? O posicionamento dos pesquisadores Bruno Bettelheim e de Walter Benjamin sugere que as histórias infantis sejam utilizadas pelos acadêmicos para a formação emocional de seus educandos e não que sejam vistas como meio de alienação. Diferentemente do que sugerem as respostas de alguns acadêmicos do curso de Pedagogia para Educadores do Campo, trata-se de um recurso pedagógico que contribui para a formação de cidadãos conscientes, desde que não seja usada apenas como forma de manipular o comportamento infantil ou como mero material didático. O trabalho com a literatura infantil possibilita, ainda, a formação do sujeito, que recria seus significados no confronto de seu universo de referência com a narrativa lida e com os diversos outros que ela insere. No texto “Estatuto da Literatura Infantil”, a pesquisadora Regina Zilberman questiona a inserção da disciplina nos cursos de formação de professores apenas como direcionamento de um autoritarismo pedagógico, no sentido de formar a conduta da criança, conforme o padrão do comportamento estipulado pelos adultos, ou como mero material didático, que implica utilizar os livros infantis para deles retirar o conteúdo de português, matemática, ciências etc. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 203 Pelo que observamos nos projetos de formação de professores e no questionário respondido pelos acadêmicos do curso de Pedagogia para Educadores do Campo, a Literatura Infantil é utilizada a partir dos contextos mencionados por Regina Zilberman. A obra como arte literária que requer estilo, metáforas, trabalho com a linguagem, coerência na constituição dos personagens não é contemplada. Da mesma forma, essa arte não é considerada enquanto aliada na formação de cidadãos seguros e confiantes diante “das realidades” que o cercam. Esses aspectos foram, provavelmente por pouco conhecimento no assunto, desconsiderados no discurso dos acadêmicos. E isso é tão relevante porque alguns, inclusive, já são docentes do Ensino Fundamental. Por isso, reforçamos a necessidade de manter a disciplina no curso de Pedagogia para Educadores do Campo e em outros cursos de formação de professores. Reflexões acerca do discurso dos acadêmicos: As respostas dadas mostraram que os acadêmicos do curso tiveram pouco contato com a leitura de livros, resultado, principalmente, de uma vida de privações econômicas. Por outro lado, a maioria vivenciou o ouvir histórias e, mesmo assim, grande parte rejeitou a inserção de histórias infantis, como os contos de fadas, na formação das crianças. Para a apresentação da análise, adotamos a ordem das perguntas. Com a primeira pergunta, desejávamos identificar se os acadêmicos haviam lido Literatura Infantil durante a infância. As respostas giraram em torno de “sim”, “sim, mas só na escola”, “não” e “poucas vezes”. Dos 33 entrevistados, 11 responderam “sim” e, destes, 3 lembraram que as leituras eram feitas somente na escola. 9 alunos responderam que “não” leram Literatura Infantil na infância. Dos que responderam não, um explicou: “pois não tinha acesso. Na escola não tinha livros de literatura infantil”. O restante, 13 entrevistados, respondeu que “poucas vezes” leu livros infantis. Percebe-se, no discurso dos educandos, que a leitura da Literatura Infantil estava diretamente relacionada ao ambiente escolar, fato que pode ser atribuído tanto à falta de recursos financeiros das famílias quanto à falta do hábito de se comprar livros, embora um fator esteja, na maioria das vezes, atrelado ao outro. É fato que, no Brasil, a má distribuição de renda não possibilita um amplo acesso a esse bem de consumo, destinado apenas às classes mais abastadas. No entanto, as GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 204 classes menos privilegiadas economicamente contam, geralmente, com o acervo da biblioteca da escola. É possível, porém, que, mais importante do que os limitados acervos, seja a ausência de ações produtoras de leitura. Por outro lado, as respostas dadas à segunda questão, “Em sua infância, alguém lhe contava histórias? Como eram essas histórias?”, mostraram que os entrevistados faziam parte de um universo familiar que cultivava a tradição oral de contar histórias. As narrativas, provavelmente inspiradas pelo ambiente rural, tinham como temas recorrentes o folclore brasileiro e as histórias de assombração. Dos 23 entrevistados, apenas 4 não tiveram, na infância, quem lhes contasse história. Desses 4, um justificou: “meus pais eram analfabetos”. O que implica pensar que, para esse entrevistado, somente conta história quem sabe ler. A capacidade de narrar fatos, de inventar personagens e de emocionar seriam, de acordo com tal discurso, atributos apenas de pessoas alfabetizadas. Se olharmos por outra perspectiva, identificamos no discurso desse acadêmico, “meus pais eram analfabetos”, uma justificativa para a ausência dessa experiência em sua infância. Trata-se de uma visão positiva dos contos infantis, já que, ao desculpar os pais, ele mostra que o contar histórias deveria fazer parte do universo de todas as crianças, inclusive da sua própria infância. Interessante foi observar, também nas respostas dadas a essa segunda questão, a aproximação entre as histórias narradas com os objetivo de ensinar formas de comportamento: “sim, meu avô e minha mãe costumavam contar histórias de quando eles eram pequenos e causos, mitos antigos de/para me ensinar algo” e “apenas alguns mitos, causos, no sentido de por medo em alguma situações para não fazer”. O discurso dialoga com a utilização da Literatura Infantil em sala de aula, em que o recurso didático é utilizado, geralmente, com objetivos pedagógicos. Em outras respostas, é possível identificar a presença de um tema clássico da literatura, a luta entre o bem e o mal: “Sim, meus pais. Histórias essas referente a animais da floresta, a herois que sempre venciam o mal. E com isso gostava muito de ouvir”. Dentre as respostas, a que mais chamou a atenção foi a que excluiu os contos de fadas das histórias que ouvia: “Sim, não história ligadas aos contos de fadas, mas sim contos do povo como: Pedro Malazardi, de assombração, conto sobre animais... etc”. Esse entrevistado, provavelmente, tenha sido um dos que mais contestou esse gênero narrativo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 205 Ao oferecer textos teóricos sobre a Literatura Infantil, pretendíamos oferecer aos educandos a possibilidade de repensar a forma negativa de ver esse gênero literário que, em sua origem, também nasceu de uma tradição criada pelo povo, definido por Thomé Saliba como uma “entidade coletiva orgânica, além e acima dos antagonismos, escoimados de todos os seus conflitos” (SALIBA, 1991, p. 63). Como descreveu Nelly Coelho: As primeiras formas de literatura para crianças confundiam-se com as destinadas aos adultos e, no Brasil, chegaram com os primeiros colonizadores portugueses. Tais formas seriam, evidentemente, as narrativas orais que circulavam entre os povos e cortes européias e cujas origens se perdiam no tempo. Narrativas que, transformadas ou fragmentadas, podem ser rastreadas, hoje, tanto no folclore brasileiro (principalmente do nordeste). Portanto, no Brasil, como nos demais países, a literatura em forma de livro (para crianças ou adultos) foi precedida pela forma oral (COELHO, 1995, p. 20). A experiência da maioria dos acadêmicos seguiu, também, a ordem apresentada por Nelly Coelho, ou seja, primeiro houve o contato com a narrativa oral e, depois, com os livros. O mesmo entrevistado que apresentou a distinção entre os contos de fadas e as histórias do povo “Sim, não história ligadas aos contos de fadas, mas sim contos do povo” - quando respondeu a terceira questão, “Que tipo de livro você costuma ler”, dividiu a sua trajetória de leitura em antes e depois: “Hoje mais livros ligados à educação e política, mais li alguns romances, livros de aventuras”. A ficção, então, faz parte de seu passado, demarcada, inclusive, pelo tempo verbal adotado, o pretérito perfeito do indicativo. A resposta do educando faz lembrar a importância que Charles Dickens atribuiu à literatura dos contos de fadas para a sua formação intelectual. Na avaliação de Bettelheim: “Dickens reconheceu o profundo impacto formativo que as figuras e os eventos maravilhosos dos contos de fadas tinham tido sobre ele e seu gênio criativo. Repetidamente expressava escárnio por aqueles que, motivados por uma racionalidade desinformada e mesquinha, insistiam em racionalizar, expurgar ou incriminar estas estórias, e assim roubavam às crianças as importantes contribuições que os contos de fadas podiam dar a suas vidas” (BETTELHEIM, 1980, p. 31). Os demais entrevistados demonstraram também uma preferência menor pelas leituras de ficção, pois apenas três, dos 33 acadêmicos, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 206 inseriram ficção no rol de livros que costumam ler. A Filosofia, por sua vez, esteve presente na resposta de 30 entrevistados, dos quais alguns, inclusive, demarcaram a importância de ler livros que tratem de questões sociais: “já fui muito de ler romance, mas agora é mais livros de estudo e da luta”. Esse acadêmico, em seu discurso, parece demarcar preconceito com relação ao romance, certamente por ignorar que esse gênero foi o meio através do qual muitos autores questionaram as lutas e as injustiças sociais de sua época. Com Victor Hugo, por exemplo, conhecemos uma Paris marcada por desigualdades e injustiças. No Brasil, Castro Alves, Graciliano Ramos e Monteiro Lobato, para citar apenas alguns, usaram a ficção em defesa da população negra, e do progresso brasileiro e contra as injustiças sociais. Na literatura infantil, os autores também tratam de desigualdades sociais e de outros problemas que perpassam a sociedade. Mas, nesse gênero, a criança encontra amparo em personagens do mundo fantástico para pensar os seus medos e as suas lutas internas. São formas subjetivas de vivenciar sentimentos e contribuir à compreensão da complexidade do real. Bettelheim (1980, p. 63) destaca a importância de se compreender a capacidade cognitiva da criança e de se trabalhar a realidade social e seus medos internos em concordância com a maturidade infantil. Ainda sobre a terceira pergunta, “Que tipo de livro você costuma ler”, outro educando, talvez pela falta de conhecimento teórico, fez a distinção entre romances e literaturas dos gêneros fábulas, contos e histórias infantis: “Livros para preparar as aulas, contos, fábulas, histórias infantis, mas gosto muito de romances e literaturas”. Essa resposta repete, mesmo que de forma inconsciente, um dos juízos de valor sobre a Literatura Infantil, a opinião de ela ser algo menor, são “historinhas” e não Literatura. Pensar que o gênero necessita de menos empenho do artista implica, a nosso ver, desconsiderar, também, a capacidade do leitor infantil. Felizmente, alguns dos entrevistados responderam a partir de uma visão positiva da leitura desse gênero, demonstrando que nem todos o encaram como algo “menor”. Um dos entrevistados afirmou: “tenho necessidade de fazer leituras voltadas a filosofia, em decorrência do meu TCC, mas sempre dou um jeitinho de ler um livro infantil, pois sempre compro e tenho muitos em casa”. A leitura das obras filosóficas, ao que parece, seria decorrente da necessidade de escrever a monografia de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 207 TCC, ou seja, uma leitura por obrigação, enquanto a do livro infantil representa uma atividade prazerosa, uma escolha do acadêmico. Em outra resposta, o acadêmico revelou que sua experiência de leitor iniciou-se na fase adulta: “Filosofia, pois quando comecei a ler foi quando entrei no seminário cursar o curso de filosofia até então não lia”. A afirmação do entrevistado reflete, na verdade, a realidade brasileira: somos um país de poucos leitores. O que talvez seja decorrente do elevado valor dos livros ou mesmo da falta de incentivo para a atividade da leitura. A quarta pergunta - “Qual o ltimo livro de Literatura Infantojuvenil que você leu? O que motivou a leitura?” – deixa mais claro o pouco contato com a leitura. Já era esperado que eles citassem obras trabalhadas durante os encontros da disciplina de Literatura Infantojuvenil, mas, para nossa surpresa, três responderam que não se lembravam. Ao afirmar que não se lembravam do último livro lido, os acadêmicos fazem-nos pensar que o rol de títulos de narrativas infantis passado durante os encontros não farão parte de sua prática docente. Esses três entrevistados foram os mesmos que separaram o romance das leituras de “luta”, para usar a palavra adotada por eles. Sobre a segunda parte da pergunta, “o que motivou a leitura?”, as respostas variaram entre atração pelo título e necessidade de preparar suas aulas, com ênfase na segunda. A quinta pergunta, “o que é imaginário para você?”, mostra o maior questionamento dos acadêmicos em relação ao trabalho com a Literatura Infantil marcada por elementos fantásticos, conforme apresentamos na introdução desse texto. Ao elaborar essa questão e a seguinte - “Como você avalia a importância ou não do imaginário na infância?” - objetivamos que a resposta viesse deles, pois assim a questão do imaginário tornar-se-ia mais significativa na prática educativa dos acadêmicos. Diversas foram as maneiras discursivas de colocar a questão, mas na resposta dos 33 entrevistados permaneceram os aspectos positivo dos conceitos. A seguir, apresentamos quatro respostas, consideradas mais significativas para a análise: “é projetar para outro mundo, um mundo bom, maravilhoso”; “é a capacidade de viajar no mundo que gostaria que fosse realidade”; GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 208 “é tudo que está ligado ao sonho que tanto pode vir a ser real ou continuar ligado ao mundo da fantasia, é imaginar coisas que às vezes não se vêem, ou até se vêem mas não com um resultado esperado”; “o imaginário é um mundo que se cria para poder viver além do que se vive”. Os discursos acima apresentam o imaginário como algo positivo, uma atividade que permite viver em um mundo melhor. Expressa, ainda, a dor de quem vive num tempo em que já não se pode mais viver. Em outras palavras, os acadêmicos lembraram que a imaginação permite ir além do mundo real. Os pareceres em destaque vão ao encontro da afirmação de Vigotsky, para quem [...], la imaginación adquiere uma función muy importante en el desarrollo del hombre, se hace medio de ampliacién de su experiencia, porque le permite imaginarse aquello que no há visto y representáselo mediante el relato de outra persona y la descripción de lo que en su experiencia personal directa no há tenido lugar (VIGOTSKY(1999, p. 13) Todavia, apesar das definições sobre o imaginário terem sido, em sua maioria, positivas, na sexta pergunta - “Como você avalia a importância ou não do imaginário na infância?” -, três acadêmicos mostraram-se incrédulos quanto a sua importância na infância e tomaram como maior argumento a questão da realidade: “Necessita ter sim o imaginário, mas a criança deve começar a entender também a diferença entre o imaginário e o que é real. Ela poderá estar entre uma e outra, o que não pode é ficar só no imaginário”; “Penso que seje importante a criança se portar para o mundo imaginário, mas que tenha condições (com a ajuda de alguém) de conciliar com o mundo real. Ex. Poderia ser assim, mas não é porque?”; GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 209 “Acredito que ajuda a desenvolver os sentidos da criança, trabalha os sentimentos, porém devemos cuidar para que a criança não viva de imaginação”. Outro foi ainda mais taxativo, quando escreveu: “não acho importante, porque na infancia a imaginação da criança é bem mais para o mundo verdadeiro que para a fantasia”. Ponderações como essas formaram, no Brasil, a literatura infantil da década de 1930, escrita por autores preocupados em oferecer leituras que mostrassem às crianças temas da realidade, como a questão do menor abandonado, a violência doméstica, a violência urbana etc. Porém, mesmo nesse período, houve vozes críticas a essa tendência: Formou-se no Brasil de hoje uma corrente de pedagogia contra os contos de fadas, e é para admirar que, entre os que condenam a vulgarização de Perrault, Grimm, Gozzi, Mme d’Aulnoy etc, haja espíritos mais ou menos brilhantes e de sofrível cultura. Falta de visão intelectual? Falta de sentimento? Não sei. O que sei é que dão tratados de mecânica e de eletricidade a meninos e meninas, e aconselham como infalíveis geradores de virtudes uns certos “apólogos morais”, que são tudo o que há de mais soberanamente enfadonho para leitores grandes ou pequenos! Servem apenas, esses tratados e esses apólogos, para tirar a jovens e crianças o gosto da leitura e para lhes ir a pouco e pouco embotando a mais nobre de todas as faculdades da alma que é, sem dúvida, a faculdade de sonhar (Gondim Fonseca. Apud COELHO, 1995, p. 59). Quando trata da mística no MST, Ademar Bogo insere o sonhar como um dos elementos de constituição humana: “é de fazer pensar, sentir e sonhar que é feita a vida humana e, por isso, este ‘h mus’, em forma de homem se diferencia dos demais seres vivos” (BOGO, 2002, p. 21). Os estudos que nos fundamentam – Vigotsky, Nelly Coelho e Ademar Bogo – legitimam a idéia defendida nesse texto: a importância da Literatura Infantil, com personagens do mundo imaginário como fadas, Bruxas, duendes, etc, na formação da criança. Ao afirmar que a criança deve estar em contato com a realidade, “com os pés no chão”, o acadêmico desconsidera a aprendizagem e a maturidade infantil. Apresenta uma visão de realidade muito restrita, reduzida ao materialmente sensível. Despreza o potencial do imaginário como constituinte do indivíduo e de seu desenvolvimento; como capacidade humana de relacionar-se com o mundo a partir de outras perspectivas. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 210 Portanto, uma visão restrita do próprio ser humano e de suas capacidades intelectuais. Pela ltima pergunta, “Em suas aulas, em quais momentos você trabalha com a Literatura Infantojuvenil? Como você faz a seleção das obras?”, foi possível perceber que, mesmo os que avaliaram positivamente o trabalho com Literatura infantojuvenil, utilizavam o gênero literário apenas como recurso didático para as suas aulas, e os que atuam na educação de jovens e adultos não recorriam a ela: “trabalho com jovens e adultos e ainda não li nada de literatura”. Em outras respostas temos: “não trabalho, considerando que trabalho com adolecentes”; “trabalho nos momentos inicial, para ilustrar algum tema”; “período semanal, procuro vincular com os acontecimentos do contexto real”; “Na introdução de novos conte dos. Leio o material para ver se é possível utilizá-lo para este momento”; “trabalho com cursos formais e não formais no MST. Selecionamos obras a partir da intencionalidade do curso, disciplina ou atividade”; “não trabalho com obras”; “procurando livros que “ajude” a desenvolver o pensar/raciocínio das crianças digo ligada a coisas que eles conhecem para então falarem, discutirem o texto”; “a Literatura infantojuvenil é usada dentro de uma temática ou para a partir desta desenvolver outras atividades se ela contemplar o objetivo que se quer trabalhar”; “No início da aula eu tento trabalhar historinhas que tenha conteúdos da aula”. E a leitura individual? E a experiência estética? E a Literatura Infantil como arte literária, criada a partir de um estilo lingüístico e enriquecida pelas metáforas da língua? Por que a criança sempre tem que discutir o que leu? Por que ela sempre precisa verbalizar o que entendeu? GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 211 Na verdade, uma arte nem sempre é compreendida, às vezes desperta sentimentos que não conseguimos nomear. Talvez por estar em sala de aula apenas para servir de material didático é que esse gênero literário ainda seja visto por muitos como sinônimo de “historinhas”: Quando os contos de fadas estão sendo lidos para crianças em salas de aula ou em bibliotecas durante a hora da estória, as crianças parecem fascinadas. Mas com freqüência elas não recebem nenhuma oportunidade de meditar sobre os contos ou reagir de outra forma; ou eles são amontoados imediatamente com outra atividade, ou outra estória de um tipo diferente lhes é contada, o que dilui ou destrói a impressão que a estória poderia não lhes ter sido contada, apesar do bem que possa lhes ter feito. Mas quando o contador dá tempo às crianças de refletir sobre as histórias, para que mergulhem na atmosfera que a audição cria, e quando são encorajadas a falar sobre o assunto, então a conversação posterior revela que a estória tem muito a oferecer emocional e intelectualmente, pelo menos para as crianças (BETTELHEIM, 1980, p. 75). Por outro lado, devemos considerar que as representações que os acadêmicos manifestam são produto também da formação recebida e não diferem muito das apresentadas por acadêmicos do curso de Pedagogia comum, por exemplo. A defesa de uma leitura que vá além da transmissão de conceitos teóricos vai ao encontro da própria visão de alguns membros do MST, para quem a maturidade “se adquire através da construção consciente da própria personalidade. Para isso, não basta acumular um elevado nível de conhecimentos, é preciso saber utilizá-los e adquirir equilíbrio moral e psicológico” (BOGO, 2003, p. 349). De qualquer forma, o que se tem aqui é a possibilidade de vislumbrar as lacunas do trabalho com a Literatura Infantil nas salas de aulas. A falta de conhecimento sobre a importância da fantasia na infância e sobre a forma com que ela atua no intelecto e no subjetivo dos educandos das séries iniciais é, a nosso ver, a principal responsável pela rejeição apresentada por alguns acadêmicos e pela forma com que a maioria utiliza essas leituras em sua prática docente. Entretanto, lembramos mais uma vez que não pretendemos atribuir culpas, mesmo porque, ninguém ensina o que não aprendeu. Esses acadêmicos, a maioria deles, como ressaltamos inicialmente, docentes em suas comunidades de origem, não tiveram a oportunidade de refletir sobre essas questões e, nesse ponto, a disciplina de Literatura Infantojuvenil GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 212 contribui para um repensar sobre a infância, sobre o imaginário e sobre a leitura. Movimentando-se entre a luta e o sonho Pelo que se percebe, os movimentos sociais necessitam de indivíduos preparados para lutar por uma sociedade mais justa, por isso, a importância de incentivar a formação de suas crianças com a leitura dos contos de fadas, que oferecem, a partir da fantasia, a possibilidade de vencer lutas internas e, por ela, compreender as lutas de seu grupo de origem, uma vez que “colocar a preservação e o desenvolvimento da vida no centro do projeto” (BOGO, 2003, p. 262) faz parte dos fundamentos filosóficos do próprio movimento. Esse texto, “A prática docente da Pedagogia para Educadores do Campo: a Literatura Infantil nas séries iniciais”, procurou dialogar com o projeto citado por Bogo, para quem a prática docente de nossos acadêmicos/as deveria ser marcada, nas séries iniciais, pelo respeito ao mundo de sonhos da criança. Além disso, é importante lembrar, mais uma vez, que a partir da fantasia, as crianças pensam a realidade, resolvem problemas internos e externos, são confortadas e preparadas para a vida adulta. Uma disciplina não muda a trajetória de um educando, nem tínhamos a pretensão de atingir tal objetivo. Ao refletir sobre o discurso dos acadêmicos da primeira turma do curso de Pedagogia para Educadores do Campo e trazer à luz teóricos que pensaram a literatura infantil, pretendíamos refletir sobre a importância do fantástico no desenvolvimento da criança, independentemente do meio em que ela está inserida. A criança que tem a oportunidade de vencer seus medos ainda na infância tem mais chances de se tornar um adulto seguro, consciente de seus direitos. Embora a análise tenha se restringido ao discurso de educandos pertencentes aos movimentos sociais, gostaríamos que esse debate abrangesse outros espaços e cursos de formação de professores. Em outras palavras, a discussão do espaço dado à Literatura Infantil na prática docente dos professores que atuam junto aos movimentos sociais apresenta-se, também, como uma oportunidade de demonstrar o quanto a disciplina se faz importante nos cursos de licenciatura, como Pedagogia e Letras. CHILDREN'S LITERATURE IN CRISIS?: EXPERIENCES IN THE FIELD OF EDUCATION GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 213 Abstract: Children's Literature would be a resource to give children the plunge into imaginary worlds, giving them the opportunity to experience, from the characters in the stories, subjective experiences and from the plots, resolve issues that upset his psychological as proposed by the psychoanalytic analysis of Bruno Bettelheim (1980). From this assumption, this paper analyzes the space given to Children's Literature, more specifically, to tales fadas in practice teaching trained in a pedagogy course for Educators Field. Keywords: Children's Literature, Education Field, Reading Referências: AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971. BANDEIRA, Pedro. 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Campato Jr.1 Não há estudioso das artes em geral e da literatura em particular que ignore a destacada importância do Romantismo para o Ocidente. Trata-se, com efeito, de uma estética, de uma filosofia, de uma maneira de encarar e interpretar a realidade que marcou vivamente o século XIX e cujas manifestações sentimos até os dias de hoje. Importante e complexo, diga-se em respeito ao rigor. Prova disso é que o poeta francês Paul Valéry (1871-1945), em célebre manifestação, afirmou que seria necessário perder todo o espírito de rigor crítico para querer definir tal movimento 2. Se definir o romantismo é tarefa que não se cumpre, é possível, ao menos, refletir sobre ele. Mesmo nesse campo, impera a dificuldade, uma vez que é preciso se precaver de alguns escolhos que prejudicam a fluência das ideias, como o são o senso comum, a tendência à simplificação, as atitudes extremas, e o perigo superlativo de abordar o romantismo com base na sensibilidade geral realista na qual estamos imersos de uns tempos a esta parte. Dessa última ótica, ser romântico constitui quase defeito, e a palavra, termo pejorativo. Com vistas, portanto, a refletir sobre variadas questões que dizem respeito, direta ou indiretamente, ao Romantismo, entrevistamos Karin Volobuef. A professora Karin Volobuef possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (1984), mestrado em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo (1991) e doutorado em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo (1996), com estágio pós-doutoral, em andamento, na Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é docente do Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Araraquara, onde leciona para os cursos de graduação e de pós-graduação em Letras. É, sem dúvidas, uma das maiores especialistas brasileiras sobre Romantismo, investigando tanto o Romantismo alemão quanto o brasileiro. 1 João A. Campato Jr. é professor universitário, com pós-doutorado pela UNICAMP e pela UERJ. Atualmente, é Pesquisador Associado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 2 Cf. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43.ed. São Paulo: Cultrix, 2006. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 217 Nesse sentido, reveste-se de forte interesse a leitura de seu livro Frestas e arestas: A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil, publicado em 1989, pela Editora da UNESP. Ao longo da entrevista, foram discutidas questões como a natureza e a filosofia do Romantismo, a necessidade de rever seu cânone de autores e obras, a permanência de traços românticos em nossa sensibilidade e cultura atuais, bem como foram redimensionados tópicos que têm sido entendidos de forma inadequada ou simplificada, como é o caso da noção do mal do século. Pergunta: Se, num exercício de imaginação de historiografia da literatura ocidental, devêssemos manter apenas duas escolas literárias para representar a essência do movimento dialético artístico, o Romantismo seria uma delas? Resposta: Com certeza, pois o Romantismo é mais do que uma escola literária. Ele pode ser entendido como uma tendência cultural de essência. Nesse sentido, ele estaria presente em todas as épocas sempre que elementos subjetivos (que de alguma maneira podem estar ligados ao intuitivo, ao que é transcendente, ao que não se conforma) ganham supremacia. Visto desse modo, o teatro de Shakespeare, a poesia barroca, o “Sturm und Drang”, a escola do Romantismo, etc. são diferentes manifestações desse espírito geral, que pode ser vislumbrado inclusive hoje (veja-se o fascínio pelos temas de magia e fantasia na literatura e cinema de nossos dias). P: Tendo em conta que a senhora mencionou um meio de comunicação de massa, faço a seguinte pergunta: é mais acertado afirmar que a telenovela brasileira é, em linhas gerais e em termos de mimese, de teor mais romântico ou mais realista? Pergunto isso porque há pessoas que censuram o caráter fantasioso da telenovela nacional, ao passo que outros lhe louvam o teor realista, segundo o qual ela faria um retrato fiel das relações sociais do país. R: As novelas brasileiras são, até onde vejo, as duas coisas. Elas são realistas do ponto de vista da atuação (p.ex., se um personagem chora, o ator ou atriz tem que chorar mesmo e não apenas esconder-se atrás de um lenço e fazer um pouco convincente barulho de choro, como se vê, entre outros, nos filmes hollywoodianos dos anos 40) e também por abdicarem do exagero melodramático ou açucarado. Por outro lado, no entanto, a representação de aspectos sociais, políticos, econômicos deixa GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 218 a desejar, enveredando por caminhos que suavizam ou mascaram ao invés de retratar com objetividade e realismo. É na construção do enredo e do perfil dos personagens que entram traços mais comumente associados ao Romantismo: história de amor (que termina em casamento ou em tragédia), polarização de bons x maus e, pela própria exigência do gênero “novela” (fragmentado em capítulos), um ritmo que alterna momentos de repouso e tensão/suspense, os quais acompanham o corte dos capítulos – conforme o molde dos romances de folhetim (ritmo esse que também encontramos em Victor Hugo, José de Alencar, etc.). P: Ignorando deliberadamente Paul Valéry, qual seria, em seu entender, o elemento que, excetuados todos os demais, poderia definir, em essência, a estética romântica? R: Eu diria que o Romantismo tem como coluna vertebral o inacabado, incompleto, fragmentado. Mesmo aspectos como o duplo (que parecem à primeira vista ser o oposto da incompletude) nada mais são do que formas de expressar a cisão do indivíduo e sua busca por uma compreensão mais plena de si mesmo. P: O crítico literário e professor universitário Alcir Pécora3 identificou duas tendências na literatura brasileira atual, quais sejam: uma prosa realista, com narrativa verossímil, e uma poesia oriunda de um misto de subjetivismo e um construtivismo cabralinoconcretista ou pós-concreto. Nesse contexto, o que permanece de mais tipicamente romântico na literatura brasileira atual? R: Não tenho acompanhado mais de perto as produções mais recentes da literatura brasileira. No entanto, um aspecto que me chama a atenção é o interesse pelo fantástico, conforme vemos em publicações como de Breno Acioly, Bráulio Tavares, Heloísa Seixas. P: Há algum aspecto da estética romântica que a crítica literária descurou em demasia e cuja importância é relevante o bastante para ser recuperada ou reavaliada? Existe algum escritor romântico brasileiro ou europeu cuja má avaliação ou cujo mau entendimento decorre justamente desse descuido? 3 Entrevista concedida a João Adalberto Campato Jr., publicada na Revista Tema, número 55, janeiro/junho de 2010. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 219 R: Aqui no Brasil acho que causa um grande dano menosprezar certos autores. Alencar, na minha opinião, é um dos que mais sofrem com isso. Enquanto leitura canônica nas escolas, seus romances são lidos em tenra idade por obrigação e, ao que tudo indica, trabalhados pelos próprios professores como literatura sem beleza ou profundidade. Uma vez ministrei uma disciplina de Pós-Graduação e discuti detalhadamente trechos de “O Guarani”. Todos os alunos tinham, é óbvio, lido o romance. Quando pedi que relessem, vários apenas torceram o nariz. Mas quando fiz a discussão em sala de aula, foi como se eles nunca tivessem realmente lido Alencar. A poesia de sua prosa, a elaborada construção de seus textos, a força com que sua linguagem cria imagens, seu poder de representação pictórica, etc. foram percebidos pela primeira vez por vários alunos. Outros que eu incluo na lista de injustamente relegados a plano inferior: Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Martins Pena, Álvares de Azevedo (este último vem sendo resgatado há alguns anos, de modo que já temos um novo olhar sobre sua obra). Enfim, aqui no Brasil, o Romantismo é visto pela maioria dos estudiosos como algo “menor”, como se a literatura brasileira só começasse realmente com o Modernismo, abrindo-se uma pequena exceção para Machado de Assis. Isso é o que precisaria ser revertido! P: Apesar de algumas tentativas de resgate, como a de Álvares de Azevedo, a senhora julga que a sensibilidade realista que se apoderou dos críticos literários brasileiros pode vir a alterar o cânone da literatura nacional a ponto de condenar ao ostracismo clássicos como as narrativas de José de Alencar, do qual talvez apenas permaneça Senhora ou Lucíola? R: Eu sempre torço para que o cânone se alargue para incluir cada vez mais obras românticas dentre as que receberam pouca atenção ou mesmo foram esquecidas. Trata-se, na minha opinião, de uma missão para muitos estudiosos e para gerações sucessivas. Mas essa revisão do cânone só vai poder ganhar corpo se, progressivamente, a produção romântica for sendo reeditada, lida, analisada. Um exemplo que sempre me vem à mente é o de Franklin Távora, que insistentemente é lembrado por causa de “O cabeleira” – romance que mais corporifica um ideário político de seu autor (preocupado com diferenças entre o Norte e o Sul do país) do que sua verve literária. Se quisermos efetivamente ver essa verve GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 220 ou habilidade artístico-literária de Távora, ela deve ser buscada em outras obras, tais como “Um casamento no arrabalde”, na verdade uma produção de juventude, mas que tem uma prosa muito mais bemelaborada e potente. Se essa alteração do cânone fosse empreendida, tirando-se dos holofotes uma obra fraca e substituindo-a por um texto deliciosamente bem-escrito, nossa apreciação do Romantismo ganharia em substância. Mais do que isso: nossa própria visão da literatura brasileira se fortaleceria. P: É possível erigir um paralelo temático, ideológico e estilístico entre um romantismo clichê – que faz parte do imaginário dos professores de literatura menos preparados, de seus alunos e dos livros que ambos leem – e de um romantismo não pasteurizado, que ainda está por ser mais bem compreendido em seu projeto estético e ideológico? R: Esses dois romantismos são o mesmo. Tudo depende de como se lê o texto. O Romantismo, em seu cerne, é um movimento de renovação e libertação e, conforme o contexto específico, vai seguir um programa próprio. Isso não quer dizer que não haja uma linguagem e uma certa postura comum à época. P: Sabemos que os escritores românticos foram tradutores de muitos poetas ocidentais. Com efeito, foram, no fundamental, os românticos brasileiros bons tradutores? Já havia neles a consciência da tradução como processo de criação literária importante? R: Os românticos, tanto brasileiros quanto europeus, foram tradutores de fôlego. A tradução atraiu-os por dois aspectos: a) A tradução era, em muitos casos, a única maneira de ter acesso a obras e autores de difícil acesso: alemães traduziram avidamente ingleses, espanhóis, italianos; brasileiros traduziram avidamente franceses, ingleses, alemães. A tradução permitiu lançar uma ponte até línguas que poucos dominavam, culturas que fascinavam pelo caráter “exótico” ou pela riqueza de suas tradições, autores com uma proposta audaciosa e incomum. Enfim, a tradução como meio de chegar ao conhecimento do outro. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 221 b) A tradução, enquanto processo não apenas de recriação, mas de efetiva criação, é uma ferramenta de produção, discussão e divulgação de projetos literários. No caso dos românticos alemães, vejo o conceito de poesia progressiva – segundo o qual a poesia (= literatura) romântica nunca está acabada, encontrando-se em contínuo processo de criação e destruição – como intimamente interligado ao pensamento estético e à atividade tradutória. P: As figuras do gênio e do poeta consumido pelo mal do século são duas das imagens que o Romantismo legou com mais força para a posteridade. A visão do mal do século está de tal forma corrompida que muitas pessoas consideram-no sinônimo, por exemplo, de tuberculose. Em sua interpretação, o mal do século, na origem, foi fenômeno decorrente de um sentimento particular do mundo, em que se evidencia a oposição finito versus infinito do homem romântico, que procura em vão o absoluto? R: Sim, essa é uma interpretação filosófica do fenômeno. Há, porém, estudiosos que associam o mal do século a questões sócioeconômicas: na França, aristocratas desiludidos com a Revolução Francesa; na Alemanha, burgueses sem perspectiva de atuação no espaço político; no Brasil, insatisfação decorrente da condição de colônia, etc. Já do ponto de vista psicológico ou emocional, também há que aponte para a juventude dos românticos: o mal do século estaria então ligado à fase de transição para a vida madura e as dificuldades de conciliar a inclinação artística com as exigências sociais (casamento, rotina de trabalho, etc.). Pessoalmente, acho que todas as interpretações são válidas, pois cada uma ilumina uma faceta de um fenômeno que não se deixa reduzir a alguma fórmula simples e unívoca. P: Qualquer que seja a origem desse fenômeno e onde quer que ele tenha ocorrido, a senhora acha possível dizer que, como manifestação de escritores, foi apenas em poucos casos expressão direta desses conflitos filosóficos, sociais, econômicos, pois, ao fim e ao cabo, tudo se encaminhava para a pose artística? Não seria um imperativo de "escola"? É possível, por outra, que o mal do século, no Brasil, seja um mal do eu lírico e não do poeta empírico? GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 222 R: Sim, sem dúvida. Por mais inspirados e emotivos que os românticos tenham sido, sempre precisamos considerar que eram pessoas dentro de um contexto (que impõe modas e dita o que é "cool" no momento). Assim, eu acho, sim, que para muitos é uma postura (ou fachada) que se adotou conscientemente - e que subjaz à poesia enquanto manifestação literária (ou seja, em vez de algo que a pessoa empírica necessariamente sente). P: Nessa ordem de considerações, gostaria de saber o seguinte: os românticos brasileiros chegaram, de fato, a conhecer a filosofia elaborada na Alemanha? R: Sim, claro. Há os que estudaram na Europa (p.ex., Gonçalves Dias), há os que liam muito e tinham enorme cultura (como Álvares de Azevedo), há os que receberam as ideias mediante terceiros, em geral franceses (Castro Alves) - e tiveram contato direto e profundo com o pensamento alemão. Fora isso, a produção de Mme de Staël (em especial o livro "Da Alemanha") teve papel fundamental nessa divulgação da literatura e do pensamento filosófico dos alemães P: A senhora julga, por exemplo, que eles conseguiam captar os fundamentos, a essência da filosofia que foi esteio do Romantismo, a qual, para muitos, em certos casos, é quase impenetrável? Falo da filosofia do Eu, por exemplo. R: Penso que nem os próprios autores alemães não atingiram esse conhecimento profundo. Acho fundamental considerar que os poetas e escritores em geral sempre costumam ser pessoas sagazes, sensíveis, críticas. As ideias filosóficas, as correntes culturais de modo geral, os acontecimentos históricos, as percepções do dia a dia, etc., tudo interessa a eles (conforme a inclinação pessoal, certos estímulos ganham mais peso do que outros, é claro). Assim, a filosofia provê um material importante de reflexão para esses autores, mas nem por isso eles se transformam em estudiosos, capazes ou interessados em fazer estudos pormenorizados. Assim, como hoje muitos conhecem assuntos apenas por uma palestra, naquela época havia grupos de discussão (às vezes na mesa da taverna) em que ideias eram divulgadas e discutidas. Alguns, então, liam mais sobre aquilo; outros ficavam só com aquela primeira impressão geral. Enfim, para resumir: não podemos exigir do poeta a profundidade de um pesquisador de filosofia: o poeta pode em alguns casos até alcançá-la, mas essa não é a prioridade dele (que é sempre a literatura). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 223 ARTIGOS GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 224 A CATÁSTROFE EM “NÃO PASSARÁS O JORDÃO”, DE LUIZ FERNANDO EMEDIATO Tânia Sarmento-Pantoja – UFPA 1 Resumo: Pretendo apresentar algumas reflexões acerca das características do testemunho, em particular, as noções de colapso e irrepresentabilidade nele implicados, que costumam estar presentes na chamada narrativa da catástrofe, considerando alguns efeitos estéticos muito presentes nessa forma narrativa, como o insólito, o abjeto, o grotesco e o sublime. A análise contempla mais especialmente as manifestações do insólito associado ao abjeto em “Não passarás o Jordão” de Luiz Fernando Emediato. Palavras-Chave: Testemunho. Catástrofe. Luiz Fernando Emediato. I Não passarás o Jordão O livro Verdes Anos de Luiz Fernando Emediato é uma obra que quebra regras no que concerne às formas literárias, uma vez que enquanto narrativa se funda no intervalo entre o romance e a antologia de contos. Trata-se de uma produção constituída em duas partes: Parte I - O LADO DE DENTRO, consiste em ser formado pelos seguintes contos – que também podem ser tranquilamente entendidos como capítulos de um romance: O outro lado do paraíso, Cândida, Also Sprach Zarathustro, O Deserto da Primavera e Verdes Anos. E compondo a parte II, O LADO DE FORA, estão respectivamente A data Magna do Nosso Calendário Cívico e Não Passarás o Jordão. Cada uma dessas sequências pode ser lida individualmente, sem provocar nenhuma perturbação ao todo romanesco, mas também se lermos o conjunto delas como romance, podemos vislumbrar as correlações entre as duas partes. Assim, em primeiro contato com o livro, o leitor irá se deparar com uma sensação de 1 UFPA – Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-Graduação em Letras/Instituto de Letras e Comunicação. Belém, Pará, Brasil, CEP 66075110. [email protected] GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 225 estranhamento, devido às oscilações entre conto e romance ou a mistura de ambos. Para os limites da análise que aqui proponho foi escolhido o capítulo-conto (opto por tratar as sequências como capítulos-contos) Não passarás o Jordão, cuja narrativa contém o relato das torturas sofridas em cativeiro pela personagem Claudia, uma jovem estudante de vinte e dois anos, que ao final da narrativa sabemos ter sido sequestrada, interrogada, humilhada, torturada e violentada (não exatamente nesta ordem). A narração alterna entre o discurso de Claudia (a vítima), o dos sequestradores, na verdade policiais a serviço do governo, e mais o de um narrador em terceira pessoa. Todos assumindo a função de narradores, em distintos trechos da narrativa. Assim, podemos acompanhar o nojo, o desespero e o sofrimento de Claudia a partir da perspectiva contada por ela e também o deleite dos policiais, a partir da perspectiva deles, na medida em que a torturam e a violentam sexualmente. Bem como os comentários do narrador em terceira pessoa. O diálogo entre ficção e historia é bem urdido e não deixa dúvidas quanto ao fato de que o sequestro de Claudia se dá no contexto da repressão imposta pela ditadura civil-militar instaurada no Brasil, em 1964. Na narrativa, Claudia é sequestrada e os policiais esperam extrair dela informações. E como forma de conseguirem respostas, aplicam variadas torturas físicas na jovem, entremeadas por ações que envolvem abuso sexual. Em termos de composição estética é possível observar nesse conto a fruição de vários efeitos que podem ser reconhecidos como sendo próprios do insólito, do abjeto, do sublime etc, cujas evoluções e mediações se constituem no relato com vistas não apenas à tematização da violência, mas para igualmente estabelecer uma série de problematizações voltadas às estratégias de estruturação do testemunho. Como se trata de um conto cabe ressaltar que nesse processo a reelaboração ficcional já é por si mesma uma estratégia vibrante no que concerne à provocação especulativa acerca desse assunto. II A catástrofe em cena GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 226 Ao pensarmos nos traços etimológicos apontados por SeligmannSilva (2008, p.8) para o termo catástrofe, observamos a ligação que o mesmo apresenta com as noções de trauma, choque e violentação. Vejamos: “A palavra “catástrofe” vem do grego e significa, literalmente, “virada para baixo” (kata + strophé). Outra tradução possível é o “desabamento”, ou “desastre”; ou mesmo o hebraico Shoah, especialmente apto no contexto. A catástrofe é, por definição, um evento que provoca um trauma, outra palavra grega que quer dizer “ferimento”. “Trauma” deriva de uma raiz indo-européia com dois sentidos: “friccionar, triturar, perfurar”; mas também “suplantar”, “passar através”. Nesta contradição – uma coisa que tritura, que perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o que nos faz suplantá-la, já se revela, mais uma vez, o paradoxo da experiência catastrófica, que por isso mesmo não se deixa apanhar por formas mais simples de narrativa”. Catástrofe é ainda “o que separa um estado de necessidade ou emergência de uma condição normal (...) o não-lugar da indeterminação entre anomia e direito” (TELES, 2007, p. 103). Trata-se de uma narrativa que se caracteriza ainda pelo “caráter indecidível do lugar da exceção, expresso pela indistinção entre a exceção e a norma” que “coloca-nos a questão sobre o momento em que a exceção torna-se a própria norma” (TELES, 2007, p. 103). De acordo com Oliveira (2008, p.14) o percurso etimológico do termo catástrofe sinaliza positivamente para a reflexão acerca do horror e sua representabilidade, pois consegue capturar a ambiguidade que por essência habita a arte pós-traumática, na medida em que “perfura e, simultaneamente, suplanta, mostrando as duas vertentes presentes em qualquer esforço de articulação daquilo que, sem cessar, produz furos na malha simbólica”. Essa representabilidade, por sua vez, resiste às soluções formais fáceis ou convencionais – lineares e totalizantes. No ensaio “Vozes de crianças”, Netrosvski (2008), estabelece que após os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial eclodiu uma nova abordagem da produção literária artística na Europa, em especial na Alemanha, a chamada literatura de testemunho. Essa produção apreendeu GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 227 os horrores da Shoah e aponta enfaticamente, entre outros aspectos, para os problemas inerentes à representação da catástrofe. A partir dessas posições é possível observar que o processo de apreensão do testemunho ou do teor testemunhal pela ficção se dá nessa relação entre testemunho e catástrofe. E muito particularmente se faz pontual naquilo que chamaremos aqui de cena dolorosa, ou seja, os movimentos narrativos traçados em direção à construção do relato – ou pelo menos a tentativa de – em que o narrador intenta capturar os momentos cruciais do estabelecimento da ferida traumática. Essa tentativa, porém, tem como efeito o estabelecimento de um conjunto de apreensões voltadas à demanda por mostrar a dor sofrida, tentativa sempre parcial, porque não consegue dar representabilidade plena a essa dor, a partir da ferida traumática, aspecto que converge mesmo para as soluções formais percebidas em narrativas que se voltam a tais problemáticas. Essas configurações são passíveis de nota no capítuloconto de Verdes Anos selecionado para estudo, em que destaco a narração-focalização fragmentada e distribuída por diferentes narradores, a estranha inserção no interior da forma romanesca, a apreensão da articulação fragmentária da linguagem testemunhal em alguns momentos do relato da protagonista, como nesse que destaco a seguir: “A porta. Luz. Dormir. Mesa. Estou sobre a mesa. Comer. Náuseas, vômito. Carne. Minha carne. Quente, carne, dormir. Comer. Sede. Água, rio. Chuva.” (Emediato, 1994, p.202). Sendo uma das categorias estéticas mais presentes no relato o abjeto entra na fabulação de Não Passarás o Jordão justamente para dar conta do esmagamento a que o corpo está sujeito. As ações movidas contra o corpo são em plenitude abjetas. Pois, como se as dores físicas não fossem suficientes, a vítima é obrigada a experimentar o horror e o nojo de si mesma – especialmente pelo contato com excrementos e outras substâncias que causam algum tipo de repulsa. Alguns fragmentos do capítulo-conto demonstram bem essa configuração: “Dentre as beberagens que me obrigavam a ingerir, espontaneamente ou à força - o que conseguiam entornando-me o caldo pela boca enquanto me impediam de respirar -, lembrar-me de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 228 misturas de algo parecido com óleo diesel ou gasolina, fezes urina, água de esgoto, sangue coagulado, esperma e carne deteriorada. [...] o qual faziam sorrindo toda vez que eu gritava [...] [...] como eram eles capazes de sentir desejo quando me violentavam, agarrando-me o corpo magro e nele penetrando com toda a brutalidade animal de um desejo nojento e imundo” (EMEDIATO, 1984, p.128.) De qualquer maneira a entrada da cena dolorosa na cadeia narrativa, marcada pelo agônico e pelo abjeto, impõe ao relato outros efeitos determinantes da reelaboração do testemunho pela ficção, dentre os quais destacamos os efeitos de insólito. Segundo Nogueira (2007, p.69): “O termo “insólito”, numa classificação bem ampla, expressa tudo o que é desusado, incomum, infrequente, sobrenatural, incerto, raro, extraordinário, terrível, excepcional, inusitado, extravagante, excêntrico, não-habitual, esdrúxulo, etc., enfim, o que rompe com ou frustra as expectativas do senso comum vigente”. Ora, se a base do insólito é o inesperado, é o surgimento de um estado de esgarçamento entre a norma e o tabu. Entre o esperado e um universo em que todas essas condições são rompidas, suspensas, invertidas e, portanto, torna-se o território do inesperado. Se o insólito se faz, enfim, na fronteira entre o sólito e o in-sólito, nesse limite, o que move esta análise é o papel do insólito quando manifesto em narrativas ficcionais em que o teor testemunhal está duramente associado à construção daquilo que chamamos de cena dolorosa em narrativas da catástrofe, pois em geral, a cena dolorosa, pela presença do abjeto, pelo rompimento do tabu, pela quebra da norma, pela violentação sofrida pelo cotidiano e pelo corpo, geram efeitos de insólito. Se do ponto de vista linguístico essa emergência se dá a partir da inserção dos signos demarcadores da experiência, como pode ser visto mais adiante, esteticamente é possível afirmar que a assunção da destruição física e psíquica, se realiza no plano de movimentos estéticos a partir da presença do abjeto, do insólito e do sublime. É o que pretendo demonstrar, a partir de uma análise que envolve considerações a respeito GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 229 dessas categorias e o estudo da narrativa Não Passarás o Jordão, que avalio como paradigmática em relação às hipóteses aqui apresentadas. III A narrativa da catástrofe no intervalo entre testemunho e ficção Narrativas de testemunho ou com teor testemunhal pautadas no relato da dor e do sofrimento, ao fazerem isso, constituem a cena dolorosa como esse território em que a ferida traumática tenta se mostrar em toda sua reverberação, em toda sua náusea, ainda que mesmo alcançada pelas reverberações do sublime – prementes na ferida exposta, nos dejetos mostrados, no sangue derramado, na laceração da carne em ato na palavra escrita – mas a exatidão das palavras é sempre alcançada pela falta, por uma espécie de censura, pois por mais objetivo que seja o relato há sempre algo que escapa à nominação, há sempre uma dor para a qual nenhuma apalavração é suficiente ou são palavras envergonhadas, prenhes de gagueira, de curto-circuitos, de desarticulações. É nisso que reside o inominável do trauma, a sua irrepresentabilidade. Agamben (2008, p. 43) realça essa falta que há no testemunho, pois avalia ser a falta a sua marca mais essencial. Há ainda nessas narrativas a presença de um assombro diante do horror, do ato inaceitável, da violência desmedida, da dor imensurável, da sobrevivência julgada injusta. Enfim, de uma série de tabus rompidos. Assombro que se identifica como uma paralisia – e temos aqui o signo da suspensão que, palpitante, se faz notar. Elaborar a cena traumática, inscrita no testemunho, implica trazer para a narrativa, metarreflexivamente, as indecibilidades sobre como dizer o trauma. Ginzburg (2001, p.140) assevera que a representação da cena traumática se faz marcada por processos históricos, na medida em que recusa a “possibilidade de volta, a resistência ao reencontro com a cena traumática”. Tem-se aí a recusa ao reencontro com o momento de instauração da ferida, mas não a negação das consequências do trauma. Porém, ainda que essa característica seja premente no testemunho, quando se trata da ficção ela pode ser configurada no interior de um intenso jogo de rememoração-reelaboração. Nesse processo, envolto pelo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 230 território da ficção o testemunho tende a confrontar a natureza dessa forma de lidar com a ferida traumática, apostando justamente nesse reencontro entre a vítima e seu corpo no momento da vitimização. E os manuseios escriturais podem, contrariamente ou suplementar à constituição do trauma, tornar narrável de maneira radical e exasperada a ferida traumática, que comparece parasitária da memória daquele que a experimentou. Dessa forma, narrativas como Não Passarás o Jordão, insistem em elaborar o trauma justamente trazendo a lume essa não-negação implicada na recusa. Por isso a cena dolorosa. Por isso, o relato que tenta se constituir como uma rememoração do momento crucial e excruciante de imposição da ferida traumática à vítima. Mais ainda: por se tratar de uma narrativa que segue a estrutura do conto, a nucleação da cena dolorosa torna-se ainda mais favorecida: é o momento de construção do ferimento físico e psíquico imposto à vítima, é a imolação do corpo e a trituração da integridade do Ser, experimentadas por Claudia em Não Passarás o Jordão, que são realmente os grandes protagonistas aqui. Desse modo, mais do que a dor é o delito dos algozes, prefigurado nas torturas que machucam e humilham a vítima, o que se coloca em evidência. Adiante, um fragmento da narrativa ilustra essa percepção: (...) depositaram-me nua sobre a mesa, fui espancada a socos e pontapés, chicoteada com uma espécie de chibata de cordas com glóbulos de meta nas pontas, espezinhada com uma espécie de urtiga ardente, que me introduziram na boca, no ânus, e na vagina, atormentada com choques elétricos em todas as partes do corpo, inclusive as sexuais e excretoras, e ainda estuprada, embora quase inconsciente, por três homens consecutivamente (Emediato, 1994, p.228) Em ensaio sobre a função reparadora e transmissora da narrativa de testemunho, particularmente as do Leger, Fransiska Louwagie (2006) observa a reunião de características linguísticas provenientes ora de espaços públicos, ora dos campos de concentração e essa comunhão entre diferentes comunidades linguísticas formaria um idioleto próprio. Segundo Louwagie, além dessa característica outro aspecto que chama bastante a atenção é a presença de signos de detonação do sofrimento, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 231 estratégia discursiva que consiste em empregar figuras de substituição tais como o eufemismo ou a metáfora animalizante, ambos implicados nos processos de desumanização dos prisioneiros. Segundo Louwagie (2006, p.57) a emergência desses signos “revela a existência de uma concepção de realidade própria dos campos”. Os termos que vão compor esse idioleto surgem “por crença em usos e menções” (BIKIALO Apud LOUWAGIE, 2006, p. 60). De um lado os prisioneiros utilizam “termos concentracionistas” para descrever os sofrimentos e o lastro agônico deixados pela estadia no campo de concentração. Por outro lado, “marcam” tais termos a fim de denunciar como a ideologia nazista está subjacente, o que inclui no uso destes termos um eco crítico. Nesse sentido, diz Louwagie que a linguagem testemunhal se aproxima da ironia, pois assim como esta combina o uso à menção crítica. Nisso reside a instauração de uma estratégia de resistência ou do “poder” da experiência, no espaço da linguagem. Sobre essa condição, diz ainda Louwagie: “La revendication de sa propre langue par le témoin correspond bien à la doublemission du témoignage, la réaffirmation du « je » et la défense de la mémoire”2. Nesse caso, a recomposição de si serve para constituir os efeitos da destruição física e psíquica sofridos pelo prisioneiro, possíveis, como já observei em outro momento do presente trabalho, a partir de uma formulação estética baseada em sólidos diálogos entre efeitos, dentre os quais destaco os do insólito e os do abjeto. Particularmente em relação ao insólito ressalto que, convencionalmente, sempre esteve associado à definição de alguns gêneros bastante conhecidos da teoria e da crítica de textos literários. Cito Flávio Garcia (2008, p.13): “o Maravilhoso – clássico ou medieval –, o Fantástico – e seus coetâneos, o Sobrenatural e o Estranho –, o Realismo Maravilhoso – nomenclatura mais apropriada para o Realismo Mágico ou Realismo Fantástico – e, mesmo, o Absurdo”. Nesse sentido, a primeira fronteira a ser atravessada em direção ao entendimento do insólito 2 Em tradução livre: “A reivindicação de uma linguagem própria por parte do testemunho corresponde a sua dupla missão: reafirmar um eu e a defesa da memória”. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 232 perpassa pelo problema da representação objetiva. De acordo ainda com Batista (2007, p.45): “Percebem-se na História da Literatura duas orientações narratológicas bem nítidas: as comumente chamadas narrativas realista-naturalistas e as não realista-naturalistas. Grosso modo, as narrativas realista-naturalistas teriam maior comprometimento com a realidade cotidiana exterior, rejeitando tudo o que possa ferir a expectativa do leitor. Seria uma “representação objetiva” do já conhecido. Já as não realistanaturalistas teriam em sua estrutura elementos cuja função seria romper com o que se acredita ser a realidade cotidiana exterior, estremecendo as leis do universo vivenciável pelos leitores reais”. Ou por outro lado: “O insólito representar-se-ia por um conjunto de elementos da construção da narrativa que marcariam os textos com sua presença enquanto representação de uma concepção diversa do sólido, formando um mundo em que as verdades do universo familiar e previsível dos leitores reais, seres do cotidiano, estariam alteradas” (BATISTA, 2007, p.45-46). A ausência ou omissão do sólido se faz nessa perda das referências das coisas – elementos identitários, limites do real, substancialidades, demarcações da experiência, valores.... Estar diante do insólito pode significar que a existência natural foi invadida por algo extranatural, por algo que, enfim, transcende, esgarça, desacomoda de algum modo o universo conhecido, a realidade conhecida, para inserir aquilo que é objeto do insólito no limite de uma zona de fronteira, que nem sempre se restringe ao real-irreal. Por isso, o insólito sempre carrega consigo “o levantamento de uma questão, de uma premissa nova até então proibida ou ao menos não considerada, que a toma como hipótese de trabalho e a desenvolve até as últimas consequências, sejam estas quais forem, e que fez a fama da obra de Kafka ou Döblin” (CORAL, 2008, p. 72). Ao pensar em Não Passarás o Jordão observo que mesmo se tratando de uma ficção, a elaboração da cena dolorosa se vale seguramente de alguns dos artifícios verificados por Louwagie, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 233 especialmente no que concerne ao manuseio dos signos demarcadores do sofrimento e aqui ressaltamos, como primeiro aspecto observado, que há um paralelo entre o uso da metáfora animalizante, muito encontrada nos testemunhos analisados por Louwagie, e a deflagração de termos e expressões que recuperam o locus da tortura, tal como ocorre em Não Passarás o Jordão. Nessa narrativa as inscrições do sofrimento estão fadadas a envolverem apreensões que se expressam na virulência do próprio uso da língua. Essa deflagração se realiza fundamentalmente pela palavra abjeta. E aqui cabe dizer que um segundo aspecto que observo é justamente essa associação entre o abjeto e o insólito. Conforme Júlia Kristeva (1982, Apud MORAES, 2011) o abjeto é o que se conhece como o rejeitado, aquilo que traz repulsa, que produz asco, que se manifesta de forma ameaçadora, inquietante, que desperta fascínio e desejo. É o que fragiliza nossas fronteiras, problematizando tanto a individualização dos seres quanto os significados estabelecidos por sua cultura, por isso, não é estranho que os artistas sintam certo deleite em representar em sua arte o mau desempenho e desequilíbrio dos sujeitos e da sociedade, a partir do abjeto. Outro aspecto que destaco é a ausência de eufemismo, ligada tanto a presença da palavra abjeta quanto a assunção dos efeitos de insólito. Ainda no território do abjeto, a deseufemização se evidencia pelo tom de linguagem crua, das coisas ditas a nu, como se não houvesse preocupação em refinar e selecionar termos que fossem menos chocantes e que provocassem menos asco a quem lê o relato, mesmo porque na demanda por dizer cruamente subjaz a tentativa de dizer a crueldade. Observa-se consequentemente um léxico carregado de teor obsceno e abjetal e bastante calcado no hiperbolismo, como modo de impregnar a experiência da tortura com as ideias de exagero e de extenuação. Além de fazer a narrativa apontar também para o território do sublime essa linguagem faz irromper uma erotização que se mostra bastante eficaz não somente ao mostrar o corpo sob processo de tortura, mas, sobretudo, por estabelecer a modo de problematizar a perversão. Essa linguagem abjeta também me parece apresentar outra função, essa ligada de maneira singular ao laboratório escritural realizado GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 234 na fronteira testemunho-ficção: suspeito que ela de certo modo atenua a gagueira, a falta, tão peculiares do testemunho. No anseio de recuperar a cena dolorosa a vítima rememora – mas também reelabora o que experimentou e ao realizar a rememoração ganha a possibilidade de avaliar o vivido e colocar para fora, mais do que a dor, a revolta, cujos contornos se fazem a partir da vibração da língua em favor de um vocabulário bruto, que explode a partir de um léxico que se ocupa de partes do corpo consideradas tabus. Ressalto a propósito que a etimologia do termo “abjeto” – abjicìo,is,abjéci,abjectum,abjicère: “atirar para longe de si, lançar, atirar, despedir; derribar, deitar abaixo, matar; recusar, rejeitar, desprezar, enjeitar' (donde abjectus,a,um 'derribado, atirado por terra; abjeto, vil, desprezível; rasteiro, baixo, sem elevação; abatido, prostrado, desanimado, desesperado'), abjectìo,ónis 'abjeção, baixeza; diminuição, supressão; abatimento, prostração, desespero', adjicìo,is 'atirar, lançar, arremessar para”3 – está calcado em diversas ideias que favorecem a movimentação de uma linguagem que busca nas palavras consideradas vulgares um mecanismo para dizer do modo mais direto a brutalidade sofrida. No limite do insólito essa condição perdura como possibilidade de expressar o inominável diante da perda de referências em relação ao que é humano, aos deslimites que sempre configura o Mal, à crise dos valores éticos implicados no gesto de quem levanta o braço armado para espancar, violentar e deleitar-se com a dor do outro. E nesse sentido o inominável torna-se nominável e por isso mesmo se configura como insólito. O insólito está nessa permanência do colapso que, por um lado se manifesta no cotidiano usurpado da vítima, por outro está no desmascaramento do colapso que envolve sempre a quebra radical de determinado conjunto de valores humanos no interior de um regime autoritário. Nesse processo, o sofrimento da vítima e o gozo dos torturadores funcionam como um dispositivo de infantilização, se pensarmos com George Bataille (1989, p.19-20), que a infância pode ser a metáfora da suspensão primeva entre os limites do Bem e do Mal, a diluição dos interditos vinculados ao mundo racional e nessas condições 3 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 235 podem representar também a supressão do humano4. Desse modo, deleite e vivissecção, destruição e gozo, caminham juntos na constituição do comportamento dos torturadores. Para concluir, a etimologia da palavra crise – do grego krisis – ato ou faculdade de distinguir, escolher, dividir ou resolver é marcada pela noção de ruptura. A crise é assim um espaço de desajuste. No caso das narrativas como a que aqui é objeto de reflexão, a crise comparece como signo da dessimetria entre dois sistemas de valores: o de uma determinada comunidade social e aquele que rege o comportamento dos torturadores e por simbiose o regime autoritário por eles representado. Envolvido na teia do insólito, a cena dolorosa de Não Passarás o Jordão repercute um estado de crise, e como tal repercute o choque tão próprio da catástrofe, e essa condição evoca o rompimento com as coisas (supostamente) sólidas, fazendo com que o sólido se desvaneça, com que o previsível seja rompido ao ponto de detonar um desencantamento e uma paralisia que parece incessante: duas marcas essenciais da crise. Para a protagonista do conto, contra os efeitos destruidores da experiência do encarceramento e tortura, resta a elaboração da memória. E a partir dessa elaboração ocorre a possibilidade da resiliência, o confronto e enfrentamento do trauma, ainda que isso signifique voltar atrás no passado extraindo dele o momento crucial da cena dolorosa. A resiliência permite não apenas o reencontro com o trauma, mas sua reelaboração, com possibilidade de, a partir de então, elaborar uma identidade nova (CYRULNIK, 2005, p. 46), identidade de sobrevivente, não denegadora da cena dolorosa, mas capaz de permitir o retorno do momento da crise, aqui muito marcada pelo rebaixamento do humano. Estabelecer o nexo com a crise é uma forma de inscrever a busca pela integridade perdida no decorrer da experiência-limite vivenciada. É em todo caso uma busca pela reparação. Cabe ainda observar que o Jordão, sempre grande signo da passagem para a felicidade, para a utopia, comparece aqui invertido, denegando a demanda, a busca por outro lugar em que o Mal esteja pelo menos restrito ao lícito dos tabus que o acompanha. Quanto a esse 4 Ver aqui todo o capítulo que Bataille dedica a Emily Brontë. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 236 aspecto, vale lembrar que o Jordão está intimamente associado à travessia, condição suspensa no conto. Não há passagem possível, aqui interposta como possibilidade de transcendência, para a jovem. Isso significa que mesmo perante a resiliência a reelaboração não a livra da convivência com a dor. Essa condição por sua vez realça o desencantamento e a paralisia anteriormente referidos. Vale lembrar que os efeitos de insólito também se fazem presentes na narrativa da catástrofe pelo que é provocativo em relação ao desencanto. Em um belo trecho de um ensaio escrito por Batista (2007, p.63) lê-se que ao fluir o insólito as instâncias de normalidade e anormalidade deixam de existir, e o extranatural se revela naquilo em que é mais avassalador: é maior que o indivíduo, derrotado frente a essas forças usurpadoras da humanidade. Nesse sentido, para concluir, avalio que o cruzamento entre efeitos de insólito e abjeto são esteticamente muito interessantes para a constituição da narrativa da catástrofe, pois é certo que esta se fundamenta no choque, na tentativa de revelar o desastre, o aviltamento ou, para recuperar um termo utilizado por Seligmann-Silva, o desabamento – da história, do real, do cotidiano, da norma, dos valores, da mesma forma que expressa a dimensão da crise que alcança a experiência humana nesses termos. Justamente em função de haver no interior da catástrofe os signos da suspensão e do horror em ritmos diferentes de oscilação, é que o insólito se torna possível. THE CATASTROPHE IN “NÃO PASSARÁS O JORDÃO” BY LUÍS FERNANDO EMEDIATO Abstract: I want to present some reflections on the characteristics of the testimony, in particular, the notions of collapse and it unrepresentability involved, which are usually present in the call narrative of the catastrophe , considering some very aesthetic effects present in this narrative form, like the unusual, the abject , the grotesque and the sublime. The analysis covers more particularly the unusual manifestations associated with the abject in "Não passarás o Jordão" by Luiz Fernando Emediato. Key-words: Testimony. Catastrophe. Luiz Fernando Emediato. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 237 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Georgio.A testemunha. In: ______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvio J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. BATISTA, Angélica Maria Santana. 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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO MASCULINO NO ROMANCE LIMITE BRANCO, DE CAIO FERNANDO ABREU Gracia Regina Gonçalves – UFV 1 Juan Filipe Stacul – UFV 2 Resumo: No presente trabalho, pretendemos discutir a construção da subjetividade e sua relação com as categorias de gênero, em especial, o caso do masculino no romance Limite branco (1970), de Caio Fernando Abreu. Nesse texto, Abreu empreende uma crítica sutil dos modelos normativos vigentes em sua época, a serem passo a passo desmantelados ao longo das últimas décadas. Dessa forma, o processo de amadurecimento da personagem nos leva a uma fluidez que coloca em xeque as noções do que se concebe, tradicionalmente, enquanto próprias do indivíduo. Acreditamos que a aprendizagem, ou “des-aprendizagem”, conforme propomos, se estrutura a partir da interação/estranhamento do indivíduo para com o ambiente em que vive, o qual se revela ora como refúgio, ora como uma das armadilhas do poder. Enquanto referencial teórico, reflexões sobre os estudos de gênero e, dentre esses, as levantadas pelos men’s studies, amparam as discussões aqui levantadas. Palavras-Chave: Subjetividade. Gênero. Crise da masculinidade. Caio Fernando Abreu tem sido visto como um escritor paradigmático de uma geração que viveu turbulentas transformações, sobretudo no que diz respeito à transição do ditatorialismo para a democracia. Do mesmo modo, está ligado à revolução cultural advinda de movimentos representativos na década de 1970, associados à conquista de liberdades individuais. Nesse contexto, vem à tona uma literatura marcada por um caráter transgressivo, que atravessa ao meio o tradicionalismo burguês, propondo uma ruptura nas construções ideológicas vigentes. De uma maneira geral, torna-se evidente, na criação literária de Abreu, a impossibilidade de adequação do indivíduo aos parâmetros que, outrora, lhe foram socialmente estabelecidos. A partir disso, as barreiras 1 Doutora em Literatura. Professora Associada do Departamento de Letras (DLA) da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Av. PH Rolfs, Campus Universitário, Viçosa – Minas Gerais, Brasil. CEP.: 35670-000. E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Literatura. Professor Substituto do Departamento de Letras (DLA) da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Av. PH Rolfs, Campus Universitário, Viçosa – Minas Gerais, Brasil. CEP.: 35670-000. E-mail: [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 240 que o envolviam se desmoronam em face da fluidez de novas construções identitárias, ratificando a ideia de indefinição contida no título do romance Limite branco (1970), escolhido como corpus da nossa pesquisa. Quanto à obra em questão, cabe ressaltar que se trata de um texto inaugural, mas que já traz em si o germe de uma estética inovadora e singular. Sobre o limite, suscitado no título do romance, acreditamos que, em vez deste dar uma aparência de ordem, atribuição ou estabilidade, sugere, paradoxalmente, múltiplas formas de se conceber o sujeito, ultrapassando uma noção essencialista de valores. Em consonância com essa visão, relembra-se que o próprio branco é, antes de tudo, espectral: atravessado pela luz, este cede lugar a outras cores, gerando profusão, mistura, dinamicidade. De maneira análoga, o sujeito, a partir de sua instabilidade e riqueza, se mostra um tanto mais especial por aquilo que, ou não é visto, ou não pode, a princípio, ser percebido. Nosso objetivo central é realizar uma leitura que alie a constituição da subjetividade com as relações de gênero na narrativa, enquanto formas interdependentes e também sujeitas a armadilhas ideológicas. Alertas a posicionamentos estanques sobre o assunto, preferimos conceber o indivíduo como passando por um processo de aprendizagem, correspondente ao olhar crítico do protagonista na narrativa. Surge, então, um texto subversivo e irônico, como uma nova proposta de caráter estético, literário e social. A respeito de uma contextualização da produção literária de Abreu com o momento social e político no qual se insere, entre as décadas de 1970 e 1990, surgem algumas considerações relevantes. Flora Sussekind (1985), Fernando Arenas (2003) e Jaime Ginzburg (2007), dentre outros, observaram a criação do autor a partir de debates sobre o governo ditatorial e a literatura pós-64, assim como o surgimento da cultura gay e a luta contra o vírus HIV - temáticas recorrentes nos períodos históricos aqui referenciados. Para discutir, especificamente, a relevância da obra de Abreu, Sussekind toma como exemplo o conto Garopaba mon amour, presente no livro Pedras de Calcutá (1977)3. No texto, tornam-se evidentes os traços de uma escrita responsável por trazer à tona a realidade ditatorial, a partir de um registro cru, com traços jornalísticos. Nas palavras de Sussekind, 3 ABREU, Caio Fernando. Pedras de Calcutá. Rio de Janeiro: Agir, 2007. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 241 no conto de Caio Fernando Abreu, tortura e delírio se misturam, forçando a própria narrativa a modificar-se para dar conta deles. E, parágrafos curtos, descrições dolorosas e entremeadas de lembranças agradáveis, se fazem acompanhar deste súbito diálogo em que se misturam as falas de torturador e torturado, revolta e relato quase cinematográfico. (SUSSEKIND, 1985, p. 47). Nesse aspecto, a literatura de Abreu seria responsável por uma crítica social que ultrapassa a descrição dos fatos para se constituir enquanto uma abordagem literária sensorial, que revela aquilo que está por trás da tortura (sentimentos, digressões e experiências pessoais do torturado), de forma realista e delirante. Assim, a diferença entre a obra de Abreu e as demais composições literárias não estaria apenas na tipicidade dos fatos que são narrados, mas na forma como o são. O autor atinge uma escrita que se constrói na possibilidade de descrever uma experiência pessoal que não é baseada no senso comum, mas num mergulho sensorial. Há, nesse caso, a nosso ver, a aproximação com a proposta clariceana de se transformar na vítima: como Lispector o faz com Mineirinho4, Abreu coloca-se no lugar daquele que é atingido pelo horror, como se vivesse a experiência da tortura pessoalmente. Para Sussekind, essa forma de narrativa aproxima a escrita daquele que escreve. É como se determinadas barreiras fossem rompidas para que se estabelecesse uma literatura mais intensa, visceral, com um eu que narra muito próximo de um eu que é narrado. Já para Albuquerque, “do início aos meados dos anos 90, a encenação das peças de Caio Fernando Abreu [...] e outros facilitou a representação de estilos de vida e casos sexuais não ortodoxos das mais diversas formas” (ALBUQUERQUE, 2004, p. 35, tradução nossa5). Sobre a importância dessas peças teatrais para as mudanças advindas a partir dos movimentos sociais e políticos da época, o autor ainda disserta: 4 LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In:____. Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1979. p. 101-102. A crônica Mineirinho retrata uma incursão sensorial no episódio da morte do bandido Mineirinho, assassinado com treze tiros pela polícia, na década de 1970. No texto, o cronista/narrador se insere de tal forma no fato narrado que se transfigura aos poucos na personagem protagonista, sendo atingido pelo ultimo tiro. 5 By the early to mid-1990s, the staging of plays by Caio Fernando Abreu (19481996) and others facilitated the presentation of unorthodox lifestyles and sexual liaisons in more matter-of-fact ways. (ALBUQUERQUE, 2004, p. 35). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 242 Com o aparecimento da AIDS no Brasil em meados dos anos 1980, o jogo [das representações homoeróticas no teatro] mudou totalmente; no resto da década e em grande parte dos anos 1990, a crise no cerne do estilo de vida gay também se tornou o principal foco do teatro com temática gay no Brasil. O teatro de Caio Fernando Abreu e outros autores ajudou a iluminar uma esfera social periférica dominada pela iniquidade e pela violência representadas nos confrontos com a diferença. (ALBUQUERQUE, 2004, p. xi, tradução nossa6). Se a literatura e o teatro de Caio Fernando Abreu são vistos pela crítica como essenciais aos movimentos sociais ligados à defesa dos direitos gays e à luta contra o falocentrismo, a homofobia, e tantos outros aspectos discutidos pela política e pela crítica queer, essa importância se tornou ainda mais evidente em meados do primeiro semestre de 2011, quando o conto Sargento Garcia ganhou sua versão em língua inglesa na edição de junho da renomada revista eletrônica Words Without Borders7. Já nos é possível verificar nesse primeiro romance, Limite branco (1970), uma escrita em amadurecimento, com a presença de um teor imagéticosensorial que traz à construção literária uma forte carga expressiva. No que diz respeito à estruturação do romance, verificamos que, muito oportunamente, Abreu lança mão do Bildungsroman. Do alemão Bildung=formação e Roman=romance, esse gênero narrativo nasce com a obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796), de Goethe, tendo sido apropriado nas mais diversas literaturas ao longo dos últimos séculos. (MAAS, 2000, p. 12-13) A característica principal desse tipo de obra, conforme o próprio nome sugere, é o processo formativo de um adolescente, podendo, dentro de determinados moldes pedagógicos específicos, se constituir sob a orientação de um educador (mentor) mais velho. (SCHWANTES, 2007, p. 55) A caracterização da produção inicial de Caio Fernando Abreu é marcada por um caráter subversivo detectado no processo de formação da personagem central. Este se constrói em torno do estranhamento do jovem Maurício no ambiente familiar, encaminhando-se para além das 6 7 With the onset of AIDS in Brazil in the mid-1980s the game changed entirely; for the rest of the decade and through most of the 1990s the crisis at the center of gay life also became the main focus of gay-accented theater in Brazil. The theater of Caio Fernando Abreu and others has helped to cast light on how a peripheral society dominated by inequity and violence represents its confrontations with difference. (ALBUQUERQUE, 2004, p. xi). Edição disponível em: http://wordswithoutborders.org/issue/june-2011. Acesso: 11/7/2011. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 243 paredes da residência. Nesse aspecto, verificamos que a subjetividade está intimamente ligada aos espaços apresentados. Compreendemos, assim, que o processo de aprendizagem e construção do gênero é perpassado por instabilidades, lançando-se numa descoberta de possibilidades transgressivas das bases institucionais. Se nos focarmos nas leituras feministas acerca do gênero enquanto construção social permeada pelas relações de poder, chegamos às teorizações de Janet Wolff que, em sua obra Feminine Sentences (1990), faz uma leitura sobre as relações entre as esferas do público e do privado, tendo como base a posição da mulher na arte que, ao apresentar considerações sobre o espaço doméstico, nos ajuda a lançar alguns dos olhares que propomos. Para a autora, “o processo contínuo de ‘separação de esferas’ do masculino e feminino, p blico e privado, foi em geral reforçado e mantido por ideologias culturais, práticas e instituições.” (WOLFF, 1990, p.12, tradução nossa8) Nesse aspecto, surge a compreensão de posições espaciais e temporais que garantiram, ao longo da história, o posicionamento da mulher na vida doméstica, enquanto que o universo das relações públicas estaria “destinado, por natureza” ao sexo masculino. A análise de Wolff chama a atenção para a constante reiteração de práticas discursivas e construções culturais que instauram o enclausuramento da mulher nas práticas do cotidiano. A imagem do anjo do lar vitoriano, nesse aspecto, surge como forte representativa das práticas situadas no controle dos corpos femininos a partir de seu engendramento em espaços limitados à esfera doméstica. O corpo feminino deve ser dócil e submisso, marcado pelo crivo da ingenuidade angelical e beleza sutil. A mulher, na era vitoriana, deve se comportar segundo rígidos padrões de etiqueta e moral, silenciada, recôndita em espaços específicos. Dessa forma, “esta separação foi constante e multiplamente produzida (e contrariada) em uma variedade de locais, incluindo a cultura e as artes.” (WOLFF, 1990, p. 13, tradução nossa9) A respeito dessa noção acerca das categorias de gênero enquanto constructos de determinado tempo e espaço, Wolff aponta, ainda, as 8 the continuing process of the “separation of spheres” of male and female, public and private, was on the whole reinforced and maintained by cultural ideologies, practices, and institutions. (WOLFF, 1990, p.12) 9 Indeed this separation was constantly and multiply produced (and counteracted) in a variety of sites, including culture and the arts. (WOLFF, 1990, p. 13) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 244 possíveis origens econômico-sociais da assimetria nas construções "gendradas". A autora afirma: Leonore Davidoff e Catherine Hall documentaram a "separação de esferas" em o mundo público do trabalho e da política e o mundo privado do lar, bem como o desenvolvimento concomitante da ideologia doméstica que relegou mulheres de classe média para a esfera privada. A separação de material de trabalho e de casa, que foi o resultado tanto da Revolução Industrial quanto do crescimento dos subúrbios, foi claramente a pré-condição do processo geral, embora, como Catherine Hall apontou, para muitas famílias e muitas ocupações esta separação nem sempre ocorreu (por exemplo, no caso de consultórios médicos). (WOLFF, 1990, p. 13, tradução nossa10) Essa tentativa de uma rigidez nas construções de gênero, por parte do imperativo dominante, pode ser articulada com outro aparato conceitual levantado pela crítica feminista: a tecnologia do gênero, de Teresa de Lauretis (1994). Para a autora, os sujeitos são, desde que são biologicamente reconhecidos enquanto pertencentes a determinado sexo, "gendrados" pelas estruturas sociais e familiares. Ou seja, são “marcados por especificidades de gênero” (LAURETIS, 1994, p. 206) que tentam determinar quais características são inerentes a cada categoria de classificação e quais espaços são destinados aos homens e as mulheres. A tecnologia, nesse caso, abarca tanto questões de gênero quanto de sexualidade: As proibições e as regulamentações dos comportamentos sexuais, ditados por autoridades religiosas, legais ou científicas, longe de constranger ou reprimir a sexualidade, produziram-na e continuam a produzi-la, da mesma forma que a máquina industrial produz bens e 10 Leonore Davidoff and Catherine Hall have documented the “separation of spheres” into the public world of work and politics and the private world of the home, as well as the concomitant development of the domestic ideology that relegated middle-class women to the private sphere. The material separation of work and home, wich was the result of both the Industrial Revolution and the growth of suburbs, was clearly the precondition of the general process , though, as Catherine Hall has pointed out, for many families and many occupations this separation did not always occur (for example, in the case of doctors’ practices). (WOLFF, 1990, p. 13) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 245 artigos, e, ao fazê-lo, produz relações sociais. (LAURETIS, 1994, p. 220). Ao desenvolver essa noção de uma tecnologia do gênero, Lauretis complementa a noção de que categorizações de gênero são constructos sociais, intimamente ligados a movimentos performativos e práticas de controle. Segundo a autora, “o gênero não é uma propriedade de corpos nem algo existente a priori nos seres humanos”. Nesse aspecto, portanto, entende-se que o gênero “é produto de diferentes tecnologias sociais como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana”. (LAURETIS, 1994, p. 208). Essa problemática dos mecanismos de uma tecnologia na representação/construção do sujeito "gendrado" nos é cara, quando se traz à tona a contrariedade de tais relações, já que “paradoxalmente, portanto, a construção do gênero também se faz por meio de sua desconstrução”. Ou seja, quando seu transbordamento “pode romper ou desestabilizar qualquer representação” (LAURETIS, 1994, p. 209). Caminhamos, nesse momento, para uma postura crítica que vai ao encontro, também, da noção de liquidez da matéria dos limites, com a verificação de um “movimento de cruzar e recruzar os limites da diferença sexual” (LAURETIS, 1994, p. 237), ou seja, de transcendência das bases normativas e desestabilização das definições espaciais. É interessante notar que tais teorizações se articulam ao promoverem uma crítica das estruturas de poder. Esse ponto de articulação se dá, de uma forma simplificada, no que diz respeito à impossibilidade de uma norma dominante unívoca, uma vez que as próprias bases sobre as quais essas estruturas dominantes pretendem promover a categorização dos indivíduos tornam-se problemáticas ante a dinamicidade e a complexidade dos sujeitos e das relações sociais. A discussão acerca da categorização do sexo enquanto algo intimamente ligado à regulamentação de estruturas de poder, espacial e temporalmente construídas, articula-se, também, com as posteriores teorizações de Judith Butler. Em seu livro Bodies that Matter (1993), a autora se apropria desse pensamento para desenvolver o conceito de matéria, enquanto um fenômeno intimamente ligado ao ideal regulatório apontado nas teorias de Foucault. Segundo a autora, a “categoria do ‘sexo’ é, desde o início, normativa”. Nesse sentido, relações de poder entram em cena com o objetivo de instaurar “uma prática regulatória que produz os corpos que governa”, ou seja, cuja força regulamentar é feita GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 246 claramente como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir demarcar, circular, diferenciar – os corpos que ele controla.” (BUTLER, 1993, p.1) O conceito de matéria entra em cena, nesse aspecto, conforme mencionamos anteriormente, como instaurador de um questionamento sobre a pretensa noção de estabilidade, outrora atribuída à subjetividade humana. Nesse contexto, lança novos olhares aos questionamentos sobre os interesses que permeiam uma construção de gênero embasado nos moldes assimétricos e biologizantes caracterizadores do senso comum. Matéria é compreendida, nessa noção de Butler, enquanto um processo de materialização que se estabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito de rigidez, limite e superfície que chamamos matéria. Essa matéria é sempre materializada, penso eu, em relação aos efeitos produtivos e, certamente, age materializando efeitos do poder regulamentar no sentido foucaultiano. (BUTLER, 1993, p. 9-10, tradução nossa11) Esse processo de classificação, diferenciação e controle vai evidenciar o que Butler denomina materialização. A materialização se trata de procedimentos que ocorrem através do tempo, nos quais a reiteração forçada de certas normas é utilizada para que se construam determinações totalizantes do que diz respeito às categorizações do sexo. Interessante notar, no entanto, que conforme a própria autora aponta, o processo de materialização torna-se insuficiente, uma vez que a própria dinamicidade das constituições identitárias do sujeito não se sujeitam aos limites que lhes são impostos. Nesse sentido, Butler afirma que a própria necessidade de reiteração das normas já evidencia a fragilidade do movimento que objetiva a materialidade dos corpos: Que esta reiteração é necessária é um sinal de que a materialização nunca é completa, que os corpos nunca se sujeitam às normas pelas quais sua materialização é impelida. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização abertas por este processo, que marcam um domínio em que a força da lei regulatória pode se voltar contra si mesma para 11 a process of materialization that stabilizes over time to produce the effect of boundary, fixity, and surface we call matter. That matter is always materialized has, I think, to be thought in relation to the productive and, indeed, materializing effects of regulatory power in the Foucaultian sense. (BUTLER, 1993, p. 9-10, grifo da autora) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 247 desovar rearticulações que ponham em questão a força hegemônica dessa lei intensamente regulamentar. (BUTLER, 1993, p.2, tradução nossa12) É a partir dessa pretensão de materialidade dos corpos objetivada pela estrutura dominante e a consequente impossibilidade desta de caracterizar a dinamicidade da construção identitária do sujeito que a concepção de materialidade se articularia com a noção de "performatividade", apresentada por Butler em Gender Trouble (1990). Segundo a autora, a "performatividade", compreendida enquanto “prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (BUTLER, 1993, p. 2), torna-se uma forma pela qual o imperativo heterossexual pretende promover a materialização dos corpos. Ou seja, a materialização (não só dos corpos, mas da própria diferença sexual), se constitui a partir de “normas reguladoras do ‘sexo’ [que] trabalham de forma performativa”. (BUTLER, 1993, p. 2). No campo específico dos estudos voltados para o estudo do gênero masculino, nos são profícuas as propostas do men’s studies. Um exemplo desses estudos são as teorizações de Badinter. Em sua obra Xy: sobre a identidade masculina (1993), a autora aponta que identidade masculina estaria associada a três momentos de identificação a partir do olhar opositivo sobre o outro sexo: o primeiro, quando se desvincula da imagem materna, ao concluir que não é mais bebê; o segundo, quando se coloca em frente a uma criança do sexo oposto, chegando à conclusão “eu não sou menina”; e, o terceiro, associado à sexualidade, quando se insere no universo de dominação masculina e verifica que não é homossexual. Ser dominado, portanto, seja pela figura maternal, seja por uma mulher que não a mãe, ou por outro homem, representaria uma quebra da “verdadeira masculinidade”. Badinter conclui: A identidade masculina está associada ao fato de possuir, tomar, penetrar, dominar e se afirmar, se necessário pela força. A identidade feminina, ao ato de ser possuída, dócil, passiva, submissa. 12 That this reiteration is necessary is a sign that materialization is never quite complete, that bodies never quite comply with the norms by which their materialization is impelled. Indeed, it is the instabilities, the possibilities for rematerialization, opened up by this process that mark one domain in which the force of the regulatory law can be turned against itself to spawn rearticulations that call into question the hegemonic force of that very regulatory law. (BUTLER, 1993, p.2) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 248 “Normalidade” e identidade sexuais estão inscritos no contexto da dominação da mulher pelo homem. Dentro desta óptica, a homossexualidade, que implica a dominação do homem pelo homem, é considerada, senão uma doença mental, pelo menos uma perturbação da identidade de gênero. (BADINTER, 1993, p. 99) O que verificamos, atualmente, é que o maior dos limites a serem relativizados pelos debates acerca da masculinidade é a relação binária que se difunde não apenas no universo literário, mas nas próprias construções midiáticas e nas mais diversas formações discursivas presentes no senso comum. Afinal, se os sujeitos são constituídos na linguagem, é nesta que se instaura a possibilidade tanto de manutenção quanto de subversão de tais concepções ideológicas/culturais. Essa noção que Badinter propõe chama a atenção não apenas para os perigos ideológicos referentes ao modelo dominador masculino, mas para as próprias políticas públicas que estabelecem as práticas sociais nas relações "gendradas". Ao propor a ruptura dos binarismos ligados à tecnologia do gênero, Badinter chama a atenção para outra questão constantemente problematizada pelos estudos relacionados ao universo do masculino: A noção de novas concepções de masculino enquanto marco conceitual e prática política para a definição de novos rumos nas relações que envolvem os atores sociais. A problemática trazida por Badinter (1993) é discutida também por Nolasco (1995). O autor apresenta que essa desestabilização do universo masculino ante as “exigências” da inserção das mulheres na esfera pública, assim como o peso das construções do senso comum sobre os homens, evidenciariam a concepção de um novo homem; ou, como preferem os teóricos dos men’s studies, múltiplas formas de ser homem. A noção de uma gama de possibilidades de construção e representação das masculinidades é que nos permite compreender as formas de subversão das estruturas normativas e a "performatividade" dos papéis masculinos. Sócrates Nolasco, no que se refere a tal noção, argumenta que “atualmente, é possível ser homem sem ser ‘macho’ e opressor”, uma vez que “o sujeito revela-se perpetuamente deslocado em relação ao seu corpo sexuado”. (NOLASCO, 1995, p.7) Dessa forma, retomamos uma noção de gênero que se desvincula da de sexo, estabelecendo um panorama ainda mais amplo das masculinidades. Enquanto operador de análise, as múltiplas masculinidades abrem as portas para a percepção de relações que a noção estanque de gênero não nos permitia, evidenciando GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 249 que o masculino, assim como se percebeu anteriormente com o feminino, se permite a representações literárias que vão muito além da descrição de atributos físicos e psicológicos para uma própria problemática do “tornarse” muito maior do que a do “ser” homem. No processo de construção das masculinidades, conforme nos aponta Nolasco, uma rede múltipla de vigilância se instaura. O conceito de um controle espacial e temporal dos corpos, já trazido à tona em nossas discussões, também entra em ação no que concerne às masculinidades. Ao deixar de ser visto como o centro natural dos discursos, ao se deslocar da confortável posição de líder, o homem percebe que o poder não lhe é inerente enquanto atributo, mas construído desde a infância. Dessa forma, ocorre a percepção de um enquadramento em crise: Tornar-se “homem” é um processo mais complexo do que se imagina. No caso da orientação sexual, aponta-nos Nolasco, a questão ainda é mais problemática. Nesse caso, “um menino vive sob vigilância contínua, para que saiba quão determinado é com relação à sua escolha”. (NOLASCO, 1995, p. 18) A esse respeito, Vanderlei Machado, em As várias dimensões do masculino: traçando itinerários possíveis (2005), aponta algumas considerações que são bastante relevantes para a compreensão do processo histórico que trouxe à tona discussões a respeito do universo masculino, além de traçar um breve panorama geral dos estudos atualmente discutidos acerca das temáticas referentes à desestabilização do modelo masculino tradicional e a compreensão de múltiplas masculinidades. No que diz respeito à historicidade do conceito de masculinidade o autor aponta que esta foi descrita, durante muito tempo, “como possuindo características universalizantes e a-históricas em que se sobressaía o modelo de homem empreendedor, guerreiro, provedor, entre outros”. (MACHADO, 2005, p. 19) Essa concepção, no entanto, teria passado por diversas transformações, trazendo à tona que “o olhar das/dos pesquisadores, neste limiar do século XXI, tem se voltado para outras formas de ver e analisar a masculinidade”. (MACHADO, 2005, p. 196) A partir dessas considerações é possível observar, portanto, que a visão outrora atribuída aos papéis de gênero vai ganhar um novo delineamento nas leituras contemporâneas, evidenciando a desestabilização de bases normativas atribuídas ao longo de toda a constituição das sociedades de base patriarcal. Para Machado, a teoria e a política feminista, assim como suas consequências ao contexto social no GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 250 qual se inserem, são importantes para a crítica do “ser homem” na contemporaneidade. O diálogo interdisciplinar é, portanto, uma resposta ao panorama crítico atual: Diante das transformações operadas em nossa sociedade, principalmente com a conquista das mulheres por uma maior participação na esfera pública, a partir das décadas de 1960 e 1970, e com os questionamentos elaborados pela crítica feminista, ocorreu uma desestabilização nas representações do gênero masculino e emerge a questão: “O que é ser homem?”. (MACHADO, 2005, p. 196) A desestabilização da identidade masculina traz a tona, portanto, mais do que uma perda de valores estáticos outrora atribuídos a esta categoria de gênero, para se situar enquanto ponto de articulação de relações que se instauram nos meandros do público e do privado, dos espaços que pressupõem determinadas representações e daqueles que as oprime. Ser homem, assim como ser mulher ou gay, parte do crivo da ciência positivista, do natural, para ser discutido enquanto construção engendrada por normas específicas, controlada por articulações que se enquadram em uma noção que é espacial. Nesse aspecto, feminismo e men’s studies devem se complementar para uma crítica dos sujeitos que vai além de interesses específicos. Afinal, hoje os limites entre as esferas públicas e privadas parecem se abrir para um espaço transicional das relações entre os indivíduos. A respeito das noções de gênero enquanto espacialmente situadas e também relacionadas a um movimento de transição, nos é marcante a cena em que Maurício, na narrativa de Abreu, vivencia rituais de um universo vinculado à visão tradicional de masculinidade, discutida nas teorizações de Badinter (1993) e Nolasco (1995). Trata-se de uma passagem do capítulo X, A viagem, na qual o jovem se coloca de frente com um grupo de homens, formado pelo seu pai e alguns amigos deste. Nesse aspecto, o capítulo em si já evidencia constantemente o movimento de transição, marcado pela partida da família para a cidade grande e apresentando, com isso, um novo processo de descobertas para o protagonista. A primeira imagem que observamos é a de Maurício sentado no banco do trem, ao lado da mãe, contemplando monotonamente a paisagem que transcorre pela janela. Nesse momento, observa a passagem do tempo com um caráter contemplativo, sem se preocupar, a início, com o significado de determinadas relações que se constroem dentro do vagão. No entanto, ao observar com maior clareza ao seu redor, percebe que não GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 251 existem homens naquele espaço, o que o deixa bastante confuso. A curiosidade do jovem, despertada por essa verificação, transforma-se em pergunta: _Mãe, cadê os homens, ein? Aqui só tem mulher. A mãe levantou os olhos do tricô. _Estão no carro-restaurante – informou. Carro-restaurante – de novo a palavra mágica. Que fariam os homens lá? Beberiam cerveja, jogariam cartas, usariam aquele vocabulário com termos que ele não entendia – governo, presidente, eleição, patifaria. Havia também outras palavras, mais misteriosas, pronunciadas baixinho, sublinhadas por risadas esquisitas.(ABREU, 2007, p. 96) Percebemos que a noção que ora se apresenta é a de alguém que, a partir de um olhar delineado sobre o seu redor, percebe pela primeira vez a divisão dos papéis de gênero em espaços específicos, fora do ambiente familiar. Isso vai evidenciar uma múltipla rede de significações que se descortinam ao jovem quanto aquele mundo de rituais, marcado por palavras específicas, pelo segredo que só os homens parecem conhecer. As atividades inerentes ao modelo masculino, da mesma forma, tornam-se evidentes: em um vagão as mulheres tricotam e cuidam das crianças, é um local silencioso, quase um confinamento. No outro, apresenta-se o bar, o espaço público, onde os homens conversam e bebem. É lá que, para Maurício, reside o mistério do desconhecido. Interessante notar que, ao resolver ir para o vagão dos homens, Maurício mente para a sua mãe, dizendo que precisa ir ao banheiro. É como se já percebesse o caráter transgressivo desse ato, a impossibilidade de transitar entre os dois ambientes a qualquer momento. Os espaços destinados a cada gênero tornam-se cada vez mais marcados pela oposição entre as descrições de onde ficam as mulheres e onde ficam os homens. No caminho, as expectativas de Maurício desenham imagens daquele espaço desconhecido, com códigos específicos. Para Cortés, autor de Políticas do espaço (2008), o domínio masculino é constantemente reafirmado pela própria construção dos locais de convivência entre os indivíduos. O masculino, nesse caso, é verificado como o neutro e o natural e institui relações sociais que partem do falocentrismo arquitetônico à instauração de práticas corporais, tanto subjetivas quanto coletivas. Nesse aspecto, a reiteração das divisões esféricas é mais do que uma prática social, mas parte de um processo de poder que se infiltra na arquitetura das cidades, escorrendo pelas ruas e prédios, até penetrar nas frestas das portas e encerrar-se no lar: o panóptico é urbano, mas é também constructo doméstico. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 252 É a partir dessa noção de arquitetura enquanto lugar de construção social das relações de gênero que Cortés vai desenvolver a ideia de corpo como arquitetura. Ou seja, a relação dinâmica entre os espaços que constituem o sujeito relacionam-se intimamente com uma construção do corpo enquanto movimento de materialização. Nesse sentido, o corpo é um significante arquitetônico, um prédio – a possibilidade de um lugar onde mora o gênero. Ou seja, “o corpo é o lugar onde se localiza o indivíduo, onde se estabelece uma fronteira entre o eu e o outro, tanto no sentido pessoal quanto no sentido físico, algo fundamental para a construção do espaço social.” (CORTÉS, 2008, p. 126) As relações entre gênero e espaço, apresentada por Cortés, são evidentes no romance de Abreu. Nesta cena, em especial, a abertura da porta do vagão se apresenta como uma entrada em novas terras a serem desbravadas. A ideia do modelo masculino ao qual Maurício deveria pertencer se apresenta de forma bastante caricatural: Então abriu outra porta e viu o grande balcão, com o vidro cheio de delícias desconhecidas, os banquinhos redondos, as mesas e, principalmente, os homens fumando cigarros de palha com suas unhas compridas no mindinho, seus dentes de ouro, seu vocabulário estranho, cochichos roucos. Por um momento, sentiu-se perdido em meio àqueles cheiros e formas diferentes do carro-restaurante. (ABREU, 2007, p. 98) A descrição do espaço masculino é marcada pela representação sensorial. As formas que se projetam na narrativa são responsáveis por constituir um ambiente no qual ser homem é compreendido como um estandarte a ser erguido com seus símbolos e significações, não como uma construção subjetiva, mas como uma representação de exigências sociais. A presença do jovem ali, portanto, remonta a um ideal social no qual o pai o faz o filho “beber e fumar (símbolos de virilidade), até sentirse mal. Constantemente reprova-lhe a ausência de virilidade: ele é muito filho de sua mãe e pouco de seu pai. (BADINTER, 1993, p. 79)” E é nesse aspecto que Maurício percebe seu maior estranhamento, ou seja, na não compreensão de tais rituais que constroem aquela masculinidade e no distanciamento destes com relação a sua própria forma de constituição da identidade. No momento em que se percebe perdido em meio a uma série de rituais responsáveis pela representação de um ethos masculino, Maurício se aproxima mais das descobertas sobre aquele universo de mistérios que entrevira na cena do lago. Ethos, nesse sentido, é compreendido como GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 253 aquilo que determina a criação de laços e o pertencimento ou não do jovem naquele ambiente. Ou seja, “um conjunto culturalmente padronizado de produção e organização de emoções compartilhadas por um determinado grupo, suas particularidades e características.” (BATISTA, 2005, p. 11) O direcionamento heteronormativo é bastante evidente, já apontando para uma construção "gendrada", que pretende delimitar o papel social específico do aprendiz naquele mundo dos homens adultos. A respeito desse processo, Badinter disserta que “o objetivo comum desses ritos é mudar o estatuto de identidade do menino para que ele renasça homem. [...] Bem ou mal, vencidas as provas, eis a transmutação operada: os meninos sentem-se homens.” (BADINTER, 1993, p. 71) Desconcertante e problemático, no entanto, o contato de Maurício com os outros homens só evidencia ainda mais o caráter de deslocamento das construções arquetípicas de uma masculinidade normativa: Cutucou o pai, e ambos ficaram a observá-lo de um jeito que o fazia sentir-se ainda mais atrapalhado. — Teu guri é macanudo, mas tá meio flaquito. —A mão calosa descia pelas pernas. — E meio envaretado, também. Olha aí, não falou água. — É a idade — disse o pai. — Ele é muito quieto mesmo. — Que idade, que nada. Sabe que do tamanho dele eu já tinha barranqueado todas as éguas da invernada? Toma cuidado, hein, senão é capaz de virar maricão. — Que nada, Barbosa, é que ele gosta de andar solito e de ler.(ABREU, 2007, p. 99) O primeiro ritual de iniciação de Maurício no universo masculino ao qual deveria constituir-se enquanto sujeito, portanto, soa problemático. O garoto se sente um estranho em meio às palavras que remetem a vivências que não se encaixam no olhar sob o qual vislumbra sua própria existência. Esse estranhamento do personagem, além de apontar para as formas m ltiplas de “masculinidades” (MACHADO, 2005, p. 196), remete também à inserção de Maurício em um mundo adulto que destoa dos padrões exigidos pela estrutura familiar. O gênero masculino construído na narrativa, destoante de um modelo heteronormativo, desde a inserção de Maurício em espaços destinados tradicionalmente ao microcosmo feminino, evidenciada no início do romance, até o estranhamento do garoto ante as exigências do grupo de homens, na viagem de trem, suscita uma problemática acerca das masculinidades, associada à noção do aprendiz que se vê no que seria, ou não, o momento final do s eu processo de “des-aprendizagem”. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 254 O que podemos verificar a partir do estranhamento de Maurício com relação ao ritual de construção de uma subjetividade masculina padrão, portanto, é o borramento das fronteiras que norteiam essa acepção de enquadramento do indivíduo. Quando se vê diante daqueles amigos do pais, indefeso, servindo como objeto de olhares normativos, Maurício percebe que há uma distância muito grande entre a forma exigida de um modelo masculino e aquela como vê a si mesmo nessas construções hegemônicas. Nesse aspecto, embora preceda as teorizações acerca das múltiplas masculinidades, evidenciadas no capítulo anterior, o romance de Abreu já lança nuances dessa problemática, a partir de um deslocamento de Maurício diante do que se compreendia naquele momento enquanto masculino. O ritual de passagem para o universo masculino, dentro dos moldes patriarcais, soa contraditório quando tenta engendrar constituições indenitárias de certa forma destoantes do padrão. Representa, com isso, a falha de um modelo de materialização do gênero em uma constituição única – e isso é percebido de forma bastante clara no trecho em questão. A partir desse momento, Maurício conclui que o universo infantil não mais existe e que a vida adulta já se descortina com suas descobertas e agonias: “Mamãe, eu não vou voltar nunca mais!”, quis gritar. Mas ela apenas sacudia a cabeça, com um ar tão resignado que era como se já soubesse de tudo, de tudo que ele sabia que ela sempre soubera, antes mesmo de ele contar, antes mesmo de ela própria saber que ele já sabia. Qualquer coisa, naquilo tudo, vinha antes. Ele não compreendia o que pensava, então quis gritar de novo: “Mamãe, eu não vou voltar nunca mais!” E não voltou nunca mais. (ABREU, 2007, p. 88) Os conflitos inerentes à descoberta e à construção do gênero e da sexualidade são acentuados, também, no capítulo O sonho. Como o próprio título sugere, nesse momento é apresentado um sonho no qual Maurício visualiza, de forma bastante profusa, as cenas da sua infância e aquela à beira do lago. Delirante, inicia-se com o jovem perdido em um labirinto no qual surgem e se desfazem no ar personagens que cercaram seu universo infantil, tais como Edu, Zeca, Laurinda, Tia Violeta, Luciana e tantas outras. A seguir, assume uma conotação sexual, também de forma bastante confusa. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 255 A referência sexual se trata de uma reconstrução da cena de Zeca e Laurinda, vislumbrada às escondidas por Maurício em determinado momento da narrativa, agora com uma inserção do jovem dentro do ato sexual. Nesse momento, dissolvem-se os limites corporais que definem biologicamente quem é o homem e quem é a mulher, para se projetar uma figura costurada de partes de ambos os sexos, misteriosa, como uma esfinge. O jovem inicia um contato sexual com essa criatura difusa, trazendo à tona uma vivência dos prazeres e uma noção de gênero que desconstrói a noção corporal: A criatura recuou outra vez, e tornou a sacudir a cabeça. Os seios fartos, Maurício pensou, os seios grandes e o jeito triste de inclinar a cabeça eram os mesmos de Luciana. Mas os cabelos cor de fogo pertenciam a Zeca, e a rosa que brilhava no meio das coxas era de Laurinda. E havia ainda as unhas longas nos dedos mindinhos, o bigode acentuando a boca, a boca aberta para mostrar a fileira de dentes brancos. Aquele jeito de passar a mão na cabeça da gente era o de mamãe, mas o corpo todo estava entrelaçado de morangos vermelhos, pontilhados de grãos mais pálidos, subindo até o pescoço com seus pés de folhas. (ABREU, 2007, p. 112) O que vemos nascer nesse sonho de Maurício, portanto, é um ser construído a partir de pedaços de parte marcantes de cada personagem que com Maurício conviveu. Podemos ver sua infância representada pelas partes da mãe e da Tia Violeta, depois as descobertas do corpo e da sexualidade representados por Zeca e Laurinda, o mundo fantasioso e ao mesmo tempo trágico dos sentimentos representados por Luciana. Esse ser de múltiplas formas seduz Maurício medonhamente, convida-o a deitar-se consigo, e a cena que se desenrola é ainda mais conflituosa. Maurício descreve a travessia do labirinto de sentimentos e o ato sexual com a criatura enquanto “sensações que circulavam ao seu redor, de mãos dadas numa ciranda”. Essas sensações, conflitantes, forçavam-no a gritar “para agarrar-se em alguma coisa, para não afundar em si mesmo”. (ABREU, 2007, p. 113) De forma análoga ao que vai acontecer em outros textos de Abreu, esse é o momento de confusão que vai preceder uma transformação epifânica, uma transição da personagem para uma nova descoberta de si mesmo. No caso, temos a experiência sexual e sua correlação com um modelo de masculinidade enquanto elementos que marcam uma etapa a ser alcançada após epifania. Podemos perceber, nesse momento, uma intensificação sensorial que lança imagens cada vez mais confusas e conflitantes, como que criando uma esquizofrenia de sensações, objetivando uma reflexão que GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 256 ocorre a partir do caos. Esse tipo de experimentação de sensações, corrente na literatura de Abreu, faz com que a própria narrativa assuma a forma daquilo que descreve. O texto não está narrando um ato sexual em um sonho, mas está mergulhando nesse ato para trazer as sensações ao leitor. As cenas que vão se sucedendo compassadamente lembram um rito, uma imersão em um universo alucinógeno; a sensação de paz, o orgasmo, é atingido no final do capítulo, encerrando este momento epifânico de Maurício e marcando o início de um novo processo. Quando acorda, o jovem se vê deitado na própria cama, suado, úmido pela polução noturna. Esse orgasmo ocorrido durante o sono, entremeado por uma confusão sensorial e psicológica, é constatado enquanto epílogo da transição de Maurício para a vida adulta e, concomitantemente, para a vida de homem. A personagem constata sua própria masculinidade e maturidade sexual a partir da possibilidade de ejacular e, consequentemente, de ser um homem sexualmente ativo. O momento em que isso ocorre pode ser evidenciado no trecho abaixo: “Fiquei homem”, disse no escuro. As vagas advertências, e todas as suspeitas, tudo tomava forma. Ele admitia, ele agora compreendia. “Fiquei homem”, repetiu. Sentou na guarda de ferro da cama e ficou olhando os reflexos que a lua cheia colocava nos trilhos dos bondes. (ABREU, 2007, p. 115) A respeito da constatação de Maurício, vemos uma aproximação com a ideia, apresentada anteriormente, de que, em um modelo tradicionalista, “a representação social dos homens é constituída a partir do sexo” (NOLASCO, 1995, p. 18). Nesse aspecto, verificamos o enraizamento de determinada concepção de masculinidade na forma em que o jovem visualiza o próprio corpo e a percepção de si enquanto homem. De caráter fluido, essa noção de masculinidade será descontruída posteriormente, evidenciando sempre a metáfora da transição na obra de Abreu. O que percebemos, em todos os casos, é que o romance se pauta no princípio da indefinição. Maurício, mesmo adulto, ainda não descobriu a totalidade de sua subjetividade, tampouco o que é ser homem para si mesmo – uma vez que sua forma de viver a masculinidade apresenta-se destoante daquela que lhe fora apresentada institucionalmente. A narrativa não se fecha porque a subjetividade também não se encerra em momentos específicos. Não há um ritual de passagem, uma transição para se transformar em um homem completo, conforme queria o modelo tradicional heteronormativo. Existem possibilidades, vivências, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 257 incompletudes. Esse caráter fragmentário e aberto da construção do sujeito e da masculinidade é evidenciado com clareza no último capítulo do romance, Tempo de silêncio; que se trata, na verdade, de uma continuação do primeiro capítulo, no exato momento em que este terminara, marcando um retorno cíclico ao início. Com esse retorno, Abreu aponta para possibilidades que estão sempre se esboçando, se descortinando diante do sujeito. Em um dos momentos, Maurício conclui que “é preciso organizar a ideia: tirá-la dos limites do pensamento, arrancá-la apenas do papel e torná-la um pedaço de mim, decisão cravada no corpo.” (ABREU, 2007, p. 167). Assim, o final do romance não aponta para o término da aprendizagem, mas para uma abertura de pensamento, de vivência do corpo, enfim, de uma aprendizagem marcada pelo que está em constante mudança. LIKE FATHER, LIKE SON? A DISCUSSION ABOUT THE MALE SUBJECT IN THE NOVEL LIMITE BRANCO, BY CAIO FERNANDO ABREU Abstract: In the present work we intend to discuss the construction of subjectivity in relation to gender categories, in especial the male case, in Caio Fernando Abreu’s first novel Limite branco (1970). In this text, Abreu undertakes a critique of normative models of his time through the young protagonist’s point-of-view to be gradually dismantled along the last decades. Thus, the process of maturation of the protagonist of the narrative, takes us to face a fluidity that puts at stake the notions of what is traditionally taken into account as appropriate to the individual. We believe that the learning or “un-learning” process as proposed here structures itself based upon the interaction/estrangement between man and its social environment, taken either as refuge, or a possible trap in the hands of power. As theoretical guidance, studies on the displacement of the gender studies and the men's studies in particular sustain the discussions here raised. Keywords: Subjectivity. Gender. Male crisis. REFERÊNCIAS ABREU, Caio Fernando. Limite Branco. Rio de Janeiro: Agir, 2007. ALBUQUERQUE, Severino João Medeiros. Tentative transgressions: homosexuality, AIDS, and the theater in Brazil. Londres: University of Wisconsin Press, 2004. ARENAS, Fernando. Utopias of otherness: Nationhood and subjectivity in Portugal and Brazil. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003. BADINTER, Elisabeth. XY: Sobre a identidade masculina. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 258 BALDERSTON, Daniel; GONZALEZ, Mike. Encyclopedia of Latin American and Caribbean Literature. New York: Routledge, 2004. BARBOSA, Nelson Luis. “Infinitivamente pessoal”: A autoficção de Caio Fernando Abreu, o “biógrafo da emoção”. São Paulo: USP, 2008. (Tese de doutorado) BATISTA, Alexandro Borges. Caserna – Lugar de “homens”: Um olhar de gênero na formação do jovem militar. Viçosa: UFV, 2005. (Dissertação de Mestrado) BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York: RoutLedge, 1993. CORTÉS , Jose Miguel. Políticas do espaço: Arquitetura, gênero e controle social. São Paulo: Senac, 2008. Escritas da tortura. Diálogos Latinoamericanos: n. 3, 2001. p. 131-146. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/pdf/162/16200306.pdf>. Acesso: 15/04/2011. GINZBURG, Jaime. Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo. O eixo e a roda: v. 15, 2007. p. 43-54. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit>. Acesso: 13/03/2011. LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. 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Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1990. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 259 O QUE TEM DE SER TEM DE SER: A FORÇA DA PROSA E DA POESIA COMO TRANSGRESSORAS DO DESTINO NO ANO DA MORTE DE RICARDO REIS Augusto Rodrigues Silva Junior – UnB Ana Clara Magalhães Medeiros – UnB 1 Resumo: O ano da morte de Ricardo Reis (1984) é romance de José Saramago que efetiva a polifonia narrativa mesmo passando-se no ano de 1936 – período de destacado autoritarismo. Objetiva-se mostrar como o hibridismo de gêneros, que congrega prosa e poesia, aponta para uma saída, a um só tempo, literária e histórica. Discute-se como a condição humana, que vive a ameaça da crise, é transposta para esse romance labirinto. Mikhail Bakhtin é o principal referencial teórico a respeito do equacionamento plural de tantas vozes. Gyorgy Lukács, Erich Auerbach e Hermenegildo Bastos norteiam o pensamento sobre a intrincada rede de casualidade que esconde a causalidade profunda alcançada pelos grandes romances. Dessa rigorosa pesquisa a respeito do romance enquanto gênero e da poesia pessoana multifacetada, resulta a elevação desta obra ao conjunto de romances que conseguem, com muita fluidez e zelo artístico, discutir, desde seu cerne, graves questões humanas. Finalmente, busca-se mostrar que a poesia da vida teima em resistir à crise instaurada e representada pela prosa. PALAVRAS-CHAVE: Romance. Polifonia. Poesia. Pessoa. Crise Ao poeta Hermenegildo Bastos A literatura das últimas décadas assume a necessidade definitiva de mimetizar as fraturas da condição humana. O romance emerge como gênero que mais eficazmente dialoga, experimenta e transpõe a crise da prosificação da vida para a composição literária. Se um Dom Quixote (1606-1615) já prenunciava o desgaste das formas artísticas e das formas sociais, no século XIX As ilusões perdidas (1843) e Esplendores e misérias das cortesãs (1847), de Balzac, são exemplos de prosseguimento dessa discussão a respeito dos rumos da arte e da experiência humana em um mundo consumido pela ascensão do individualismo. Efetuando salto até os nossos dias, vê-se que a intuição da literatura precedente é levada 1 UnB – Universidade de Brasília –Instituto de Letras – Departamento de Teoria Literárias e Literaturas. Brasília – DF – Brasil. CEP: 70910-900 – [email protected] e [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 260 aos limites e origina romances que extrapolam os contornos do próprio gênero para dar conta da crise que é da arte, mas, sobretudo do homem. A narrativa em Língua Portuguesa, de fins do século passado, encontra em José Saramago nome decisivo. Equacionando problemáticas históricas, lusitanas e, sobretudo, humanas, o autor compõe romances dilacerados que apontam para a crise desde o modo de narrar ou desde a construção cuidadosa dos personagens. Aqui, elege-se tratar de O ano da morte de Ricardo Reis (1984) por ser romance em que se podem delinear pelo menos dois níveis de crise: a de gênero, com o predomínio da poesia e a ascensão do romance; a da situação portuguesa, com acirramento do salazarismo e esfacelamento da história lusitana. Os dois níveis entrelaçam-se de maneira velada, mas necessária: o livro labiríntico narra uma história sem saída. No entanto, procurar a saída parece ser mesmo o elemento que move os grandes romances. Afinal, eles indicam a direção e reconstroem mundo em nomes: “pela primeira vez aqui passaram, estas crianças que repetem Lisboa, por sua própria conta transformando o nome noutro nome” (SARAMAGO, 2010, p.8). O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, é romance usualmente enquadrado pela crítica no conjunto de obras saramagueanas que ficaram conhecidas como romances históricos. Uma breve incursão pela teoria de Seymour Menton leva a cogitar uma nova classificação destas obras que apareciam atreladas a um conjunto de novelas latinoamericanas. Tais novelas, surgidas a partir de 1979, e espalhadas por toda Ibéria e América espanhola, destacam-se pelo exercício de revisitação histórica que efetivam e, por isso, recebem a alcunha de “novas novelas históricas” (MENTON, 1993). Aqui, contudo, a classificação realizada por teóricos como Seymour Menton e Angel Rama é apontada apenas com o intuito de mostrar que O ano da morte encontra-se em meio a uma tipologia de romances que merece ser estudada por todos os interessados na construção de um vasto sistema literário ibero-americano. Importa-nos mais, neste momento, perscrutar a vinculação entre o modo muito específico de contar de um narrador nada despretensioso e a apresentação dos fatos históricos que tecem o fio narrativo e o fio da história lusobrasileira. Fator decisivo neste romance é o ano: 1936. Ano posterior ao de falecimento do poeta Fernando Pessoa – que aqui é personagem –, ano em que o livro de Saramago apresenta a morte do heterônimo pessoano Ricardo Reis – que não havia sido, até então, enterrado pelo seu criador. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 261 O leitor não pode deixar de atentar, contudo, para a relevância histórica pragmática dessa data: acirramento do salazarismo e das ditaduras fascistas pela Europa, vitória dos republicanos comunistas nas eleições espanholas, eclosão, meses depois, da Guerra Civil na Espanha. Isso para listar apenas os eventos mais marcantes de um instante conturbado na história ocidental. Ora, o nosso narrador investe pesadamente na composição de uma postura alheia aos fatos. Mais precisamente, procura maquiar a sua percepção profunda da realidade apontando dados extremos como se fossem corriqueiros, mostrando-se ingênuo diante do desenrolar dos acontecimentos ou indiciando pistas para logo depois dissimular: há pessoas que têm uma coragem gelatinosa, não têm culpa disso, nasceram assim (...) a senhora que aqui morava, coitada, o que ela chorou no dia em que saiu, ninguém a podia consolar, mas a vida às vezes obriga, a doença, a viuvez, o que tem de ser tem de ser e tem muita força. (SARAMAGO, 2010, p. 206-207). Esse narrador que mescla a “safadice” (Idem, p. 370) de Ricardo Reis e a visão arguta de Fernando Pessoa quer, a todo tempo, mostrar eventos que, para usar terminologia de Lukács (2010), parecem acidentais. No jogo narrativo, o leitor assiste a um conjunto de cenas supostamente casuais, em que ninguém é responsável por movimentar a engrenagem do romance e muito menos da vida: “nasceram assim”. Existe um tom melancólico banalizado na obra, a senhora é uma “coitada”, suas lágrimas são relembradas pela gente portuguesa que contempla o mundo das janelas coloridas, sem ter nada que fazer contra a “doença, a viuvez”, pois a certeza máxima é o destino: “o que tem de ser tem de ser e tem muita força”. No esteio do pensamento lukatiano, Hermenegildo Bastos (2012) salienta: Dada a ausência de sentido para a vida e para o mundo, tudo se mostra cruelmente gratuito, sem razão de ser. A gratuidade, entretanto, parece ao mesmo tempo obedecer a um sentido predeterminado a que não se pode escapar, como uma maldição. (BASTOS, 2012, p. 91). Pode-se dizer que percorre toda a narrativa uma espécie de fluido casual que vincula os fatos de maneira pictórica, uma sucessão de quadros aparentemente ligados de modo frágil. Como se um fato ocorrido a um personagem pouco tivesse a ver com o que se passa com outra GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 262 persona. Como se tudo o que é narrado fosse “cruelmente gratuito”, o que imprime – tanto na história narrada como na história vivida – um caráter absolutamente acidental. A crítica literária já elevou o romance à condição de principal gênero da modernidade. Mikhail Bakhtin, Erich Auerbach e Ian Watt acentuam a presentificação da matéria romanesca: “o romance é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora. (...) [o romance] tem por função primordial dar a impressão de fidelidade à experiência humana” (WATT, 2010, p. 13-14). O cotidiano e a experiência ordinária invadem a narrativa – e em obras como a de Saramago, também o modo de narrar – que dá a ver uma sequência de eventos particularizados de personagens cada vez mais ensimesmados: Deus o ouça, que dessa gente, pelo que tenho ouvido, não se pode esperar nada de bom, às coisas que o meu irmão me tem contado, Não sabia que tinhas um irmão, Não calhou dizer-lhe, nem sempre dá para falar das vidas, Da tua nunca me disseste nada, Só se me perguntasse, e não perguntou, Tens razão, não sei nada de ti, apenas que vives aqui no hotel e sais nos teus dias de folga, que és solteira e sem compromisso que se veja, Para o caso, chegou, respondeu Lídia com estas quatro palavras, quatro palavras mínimas, discretas, que apertaram o coração de Ricardo Reis. (SARAMAGO, 2010, p. 172). No trecho, tem-se um momento de diálogo corriqueiro e enigmático entre a criada Lídia e o médico-poeta Reis. Neste ponto, o narrador silencia sua contação para deixar que falem os personagens, delineando apenas um comentário final: “quatro palavras mínimas, discretas, que apertaram o coração de Ricardo Reis”. Ora, o romance – enquanto gênero – reproduz as narrativas particularizadas da vida, em que um personagem é incapaz de conhecer o outro: “não sei nada de ti”. Como na vida, ninguém consegue conhecer uma vida e/ou a própria vida em sua totalidade. Ao passo que o gênero oferece a visão de uma vida, em determinado tempo e espaço, predomine o realismo cru, predomine a construção formal-autoconsciente. Saramago, em uma tradição que une grandes linhagens do romance, articula as duas coisas: linguagem e realismo – no homem humano. Esse desconhecimento (estilizado) acentua-se à proporção que são mais significativas as distâncias de classe. Se Ricardo Reis pouco sabe de Lídia, menos ainda conhece de Daniel, irmão da criada. Assim como pouco sabe o leitor sobre este personagem simbólico, pois sequer o narrador abre-lhe muito espaço: “Meu irmão está na marinha, Qual GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 263 marinha, A marinha de guerra, é marinheiro do Afonso de Albuquerque, É mais velho ou mais novo do que tu, Fez vinte e três anos, chama-se Daniel” (Idem, ibidem). O leitor conhece Daniel pela voz de Lídia. Disso, sabe-se que o marinheiro conta muitas coisas e é dotado de opiniões incomuns. Esse personagem, apresentado pouco antes da metade do livro será apontado significativamente outra vez apenas ao final da trama, quando os navios Dão e Afonso de Albuquerque são atacados. O leitor, contudo, não se preocupa com essa falta de dados, com a falta de coesão aparente entre esse personagem e o resto da história, pois está muito acostumado à tônica da existência humana “nem sempre dá para falar das vidas”. Mas em arte isto ganha contornos simbólicos. Tudo, pela palavra, mesmo na mais absoluta falta de sentido, isso que a que poetas e fingidores (narradores) chamam vida, articula-se em um mundo organizado e ordenado. O romance mimetiza esse alheamento dos viventes em relação à vida intuindo que “Para o caso, chegou”. É suficiente que Reis saiba de Lídia, com quem se deita na solidão de um quarto de hotel, apenas a sua profissão e seu estado civil. Basta que conheçamos de Daniel o seu envolvimento com gente que o levou ao naufrágio. Chega saber que a aristocracia espanhola repentinamente está passando férias no hotel Bragança. Para o caso, Ricardo Reis não necessita apreender mais que o que lhe informam os jornais salazaristas. Esses acontecimentos erigem propositadamente, na obra, como se mantivessem uma ligação muito frouxa entre si. Segundo alerta, Bastos (2012), entretanto, “a casualidade, ou gratuidade, esconde uma rigorosa causalidade” (p. 94). Pode-se equiparar esta “rigorosa causalidade” ao que, para Auerbach, atinge o “cerne da estrutura social” (2011, p. 453) e, segundo Lukács, constitui a “poesia das relações inter-humanas” (2010, p. 164). Perscrutemos a sua presença n’O Ano da Morte. Este jogo entre causa e casualidade, e nunca entre causa e consequência, abriga, ainda, um princípio pessoano. Uma vez que a ciência não basta, deus não basta para explicar a engrenagem de funcionamento da vida, resta ao homem de palavra a criação de mundos e de seres. Para esta solidão de nunca completar o outro, para o eterno retorno do silêncio, ainda vale a pena este tudo que é palavra, se a alma resiste. Um desabafo do narrador durante esta história nublada serve – de maneira metonímica – para que se depreendam as relações de casualidade e causalidade saltadas do romance: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 264 Quem disser que a natureza é indiferente às dores e preocupações dos homens, não sabe de homens nem de natureza. Um desgosto, passageiro que seja, uma enxaqueca, ainda que das suportáveis, transtornam imediatamente o curso dos astros, perturbam a regularidade das marés, atrasam o nascimento da lua, e, sobretudo, põem em desalinho as correntes de ar, o sobe-e-desce das nuvens, basta que falte um só tostão aos escudos ajuntados para pagamento da letra em último dia, e logo os ventos se levantam, o céu abre-se em cataratas, é a natureza que toda se está compadecendo do aflito devedor. (SARAMAGO, 2010, p. 187). Fato que não pode passar despercebido é a intermitência das chuvas na narrativa. Justamente por isso, embora o mau tempo seja frequentemente mencionado, o narrador faz questão de frisar a situação climática da Lisboa de 1936. Mesmo o leitor mais descuidado é obrigado a notar a chuva a partir da afirmação convicta que abre o capítulo: “Quem disser que a natureza é indiferente às dores e preocupações dos homens, não sabe nada de homens nem de natureza”. Ocorre que o trecho transcrito esforça-se por vincular os fenômenos meteorológicos às mazelas humanas, sem explicitar, contudo, a profundidade dessa vinculação: “um desgosto”, “uma enxaqueca” são capazes de transtornar “imediatamente o curso dos astros”, dentre outras alterações na “regularidade das marés”, no “nascimento da lua” ou nas “correntes de ar”. O narrador encerra esse excerto declarando que “a natureza toda se está compadecendo do aflito devedor”. Não se esclarece, contudo, o motivo que une os fenômenos humanos aos naturais. Tudo parece um pouco “acidental” e o leitor aceita a premissa de que natureza e homem tem algo que ver, sem compreender exatamente em que se baseia tal entrelaçamento. Para o leitor de Pessoa, esta relação entre ser e natureza é perceptível poética e filosoficamente. No âmbito de cada heterônimo e nas produções ortônimas, no todo deste mundo poético criado com múltiplos personagens, tudo que entretém a razão é, também, universo palavrado. Ficou dito que o narrador d’O ano da morte é um condutor do fio narrativo por vezes omisso, desdenhoso, por vezes tagarela, comentador. Este narrador, uma espécie de alterônimo saramagueano, é personagem da trama forjada pelo Pessoa de carne e osso. Mas é também a força estilizadora deste romance em que figuras pessoanas passam a ser apenas personagens de um universo prosaico. Reis e Pessoa, uma vez romanceados, ficam no mesmo patamar criativo. O narrador GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 265 saramagueano é um fingidor. E finge tão completamente, por sua vez, na luta de vozes, que pretende fazer parte das calhas da roda chamada vida. O narrador funde as dores de Pessoa, os fingimentos de Reis com a sua alterpsicografia e conta os últimos momentos da história que iria cumprirse em 1936. E o narrador nestas vidas lidas (em poesia) tem a vantagem de conhecer os desdobramentos desta memória do futuro (prevista e sentida na narrativa).2 No trecho seguinte, o narrador fala como poucas vezes. Dá a ver, de forma autoconsciente, a “rigorosa causalidade” (BASTOS, 2012, p. 94) que perfila a obra: já se falou o suficiente da gente desta nação para reconhecermos nas penas dela a explicação da irregularidade dos meteoros, somente recordemos aos olvidadiços a raiva daqueles alentejanos, as bexigas de Lebução e Fatela, o tifo de Valbom, e, para que nem tudo sejam doenças, as duzentas pessoas que vivem em três andares de um prédio de Miragaia, que é no Porto, sem luz para se alumiarem, dormindo a esmo, acordando aos gritos, as mulheres em bicha para despejarem as tigelas da casa, o resto componha-o a imaginação (...) Ora, sendo assim, como irrefutavelmente fica demonstrado, percebese que esteja o tempo neste desaforo de árvores arrancadas, de telhados que voam pelos ventos fora, de postes telegráficos derrubados. (SARAMAGO, 2010, p. 188). Não se exige do leitor que tenha um conhecimento aprofundado sobre a geografia e a história portuguesa. A maneira como o narrador desenrola o tecer da trama deixa ver, com obviedade, a causa agrícola alentejana, as pestes que atacam as regiões mais carentes, as condições inumanas de vida em algumas cidades lusitanas. Aqui, o “cerne da estrutura social” (AUERBACH, 2011, p. 453) é escancarado: “já se falou o suficiente da gente desta nação para reconhecermos nas penas dela a explicação da irregularidade dos meteoros”. Outra vez, vinculam-se elementos tidos como casuais – a irregularidade dos meteoros – a fatos que, necessariamente, escondem uma causa – como o sofrimento dos portugueses marginalizados. 2 Este é um princípio muito bem utilizado por Machado de Assis a partir de narradores, tais como os defuntos Brás Cubas e o Conselheiro Aires. Princípio ainda mais complexo quando pensamos em uma escrita da morte: narradores que convivem com o tempo do narrado, co-participam deste tempo, mas sempre com o domínio suficiente da história para recontá-la romanceadamente. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 266 A causa do mau tempo português é, nitidamente, o sofrimento, a miséria, o descaso, “as penas” todas que se alastram pela península. Isso fica “irrefutavelmente demonstrado”, como frisa o narrador, e, para o leitor cuidadoso, resta recompor todas as cenas meteorológicas catastróficas para concluir que “as penas” são tão diversas (fait divers?) quanto urgentes e têm também suas causas sociopolíticas, ainda que veladas. Os destinos, no entanto, cruzam-se, duplicam-se nas horas alheadas de leitura de jornal, estilizadas por longas páginas. São os irmãos aprendendo no cotidiano o pensamento do mundo. São os criadores, pela palavra de mundos, no mundo: o narrador, o Pessoa escritor, o Reis nestas fronteiras humanas e escritas. São estes personagens escritores – Pessoa e Reis pensando estar no mundo sentindo o que causa o acaso de ser quem escreve e está no mundo. Acontece que o motivo desencadeador das chuvas funciona como um fluxo causal para todo o livro. De maneira muito sutil, a apatia de Ricardo Reis, a sabedoria de Fernando Pessoa, o ousadia de Lídia, a leitura fofoqueira dos velhinhos do Adamastor, a pompa dos espanhóis fugidos, a empreitada marítima de Daniel, a mão paralisada de Marcenda, interligam-se pelo tempo fechado de uma Lisboa nebulosa. Atente-se para a hipertrofia que o próprio narrador impõe às cenas episódicas, aparentemente, desconexas. O narrador labiríntico, muitas vezes, aponta caminhos a serem percorridos pelo leitor. Aqui, temos um deles: a análise pormenorizada dos “segundos compridos” e dos “minutos longos” contidos nos “episódios de mais extensa significação”. De acordo com a voz que narra, o tempo constitui-se como a “mais subtil das três unidades dramáticas”. O é porque cabe à impressão leitora a efetivação de juízo sobre os eventos que, embora ocupem pouco do tempo da narrativa, expandem-se em importância e duração. Vamos a um desses eventos que serve metonimicamente para aclarar como o romance consolida-se a partir de um tecido de pormenores que, congregados, apontam para a causalidade do romance e da própria história lusitana: Está Ricardo Reis nesta contemplação, alheado, desprendeu-se do motivo que o levou ali, só está olhando, nada mais, de repente uma voz disse ao lado, Então o senhor doutor veio ver os barcos, reconheceu-a, é o Victor (...) O coração de Ricardo Reis agitou-se, desconfiará o Victor de alguma coisa, será já conhecida a revolta dos marinheiros, Os barcos e o rio, respondeu (...) afastou-se bruscamente, consigo mesmo dizendo que fora um erro proceder GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 267 assim, devia era ter mantido uma conversa natural, Se ele sabe de alguma coisa do que está para acontecer, com certeza achou duvidoso ver-me ali. (SARAMAGO, 2010, p. 420). Victor é um capataz do governo de Salazar que permanece, por razões pouco explícitas, no encalço de Reis. O médico teme, ingenuamente, que o agente desconfie da investida comunista – de que participava o já mencionado Daniel – que ficou conhecida na história como a “revolta naval de setembro” (MENESES, 2011, p. 239). A ingenuidade de Ricardo Reis está em cogitar que Victor não teria conhecimento da revolta, e mais, que seria talvez sua, enquanto amante de Lídia, a responsabilidade pela descoberta do outro. Aqui, desnuda-se veementemente a crise tensionada pelas relações de causalidade e casualidade: “se ele sabe de alguma coisa que está para acontecer, com certeza achou duvidoso ver-me ali”. O personagem central desta obra, leitor assíduo de jornais, pensa ser improvável que o governo – na figura de Victor – saiba da revolta. O detalhe pessoano neste conjunto é o poeta impossibilitado de olhar indiferentemente o rio. Se nas suas ficções, o interlúdio é alcançado pela palavra, na vida romanceada esta contemplação nunca é interlúdica, mas há de ser sempre intermitente. Uma breve incursão histórica nos mostra a impossibilidade disso: Diz-se mesmo que Salazar, estando muito informado por agentes sobre o estado de espírito da tripulação do navio Afonso de Albuquerque no regresso de um porto da Espanha vermelha, e podendo ter impedido o desencadear do motim com medidas preventivas, provocou o dramático desenlace, ou pelo menos deixou intencionalmente correr as coisas neste sentido (...) Não obstante, o motim foi explorado pelo Governo como um aviso salutar sobre os perigos que ameaçavam Portugal e uma demonstração de força por parte das autoridades. (MENESES, 2011, p. 239-240). Afonso de Albuquerque é o navio onde estava o despretensioso personagem Daniel que morre na revolta. Cabe salientar, contudo, que para Lídia, Reis, ou para qualquer um dos passantes que viram o navio sendo bombardeado, o fato parecia inusitado, como que uma fatalidade. Nenhum dos personagens dá conta da gravidade deste acidente: tudo premeditado pela força salazarista emergente. Somente Victor sabia – e Ricardo Reis cria poder esconder-lhe tal segredo. O episódio mostra como um evento aparentemente tão acidental tem profunda vinculação com o mau tempo do ano em Portugal, com a gentil acolhida da GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 268 aristocracia conservadora espanhola no hotel Bragança e com o desolamento de Reis que, assistindo à apatia não mais sua, e sim generalizada, depois de tal cena, opta pela morte. Recorre-se uma vez mais à crítica de Bastos: “o mundo, embora vivido como real pelos homens, é uma aparência que oculta a essência” (2012, p. 90). Nem sempre é possível captar a totalidade, a essência. Resta a narradores e criadores de mundos, como Pessoa, esta possibilidade, mesmo que numa página de livro. A essência ocultada dos homens implica na impossibilidade da poesia. Importa lembrar que tal romance é biográfico de um poeta inventado, Ricardo Reis. Além disso, dá voz a um poeta morto, Fernando Pessoa, ele mesmo, que viu, pressentiu e resistiu a esta ascensão e consolidação do salazarismo: Se os segundos e minutos fossem todos iguais, como os vemos traçados nos relógios, nem sempre teríamos tempo para explicar o que dentro deles se passa, o miolo que contêm, o que nos vale é que os episódios de mais extensa significação calham a dar-se nos segundos compridos e nos minutos longos, por isso é possível debater com demora e pormenor certos casos, sem infracção escandalosa da mais subtil das três unidades dramáticas, que é, precisamente, o tempo. (SARAMAGO, 2010, p. 213). O ano da morte, assim, parte de uma poesia de mundos e estilos criados para a prosa. Esta se impõe por ser o gênero da crise, ainda carrega vestígios das unidades dramáticas, mas um narrador autoconsciente discutindo o gênero no interior do romance. A partir dos tempos subtis da narrativa tanatográfica, da ação do personagem no ano de sua morte e do espaço histórico, constrói o espaço que ele habita, as possibilidades e impossibilidades de ação – nas causas, nas casualidades e nas calhas de roda da atualidade viva escrita por Fernando Pessoa de carne e osso: A atualidade viva, inclusive o dia a dia, é objeto ou, o que é ainda mais importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade. Pela primeira vez, (...) o objeto da representação séria (e simultaneamente cômica) é dado sem qualquer distância épica ou trágica no nível da atualidade (...) [esses gêneros] caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico. (BAKHTIN, 2010, p. 122-123). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 269 No trecho destacado de Problemas da Poética de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin traça um percurso de análise em que da sátira menipéia e de outros gêneros sério-cômicos, desembocaria o romance polifônico do autor dos Irmãos Karamazóv. Ao longo do Século XX, a forma romanesca se firma a partir da superação do realismo (russo). Também a supera, por ser um minucioso trabalhador da palavra, da quebra da imagem lógica, com seu estilo e sua escrita que vai além da simples palavra pela palavra. Pense-se em Jorge L. Borges, Guimarães Rosa e no próprio Saramago. Não é forçoso inferir que a representação do “dia a dia”, a “fusão do sublime e do vulgar” aparecem de maneira muito prodigiosa na produção saramagueana e de outros autores lusoamericanos do nosso tempo. Por congregar a banalidade da vida e, apesar disso, aspirar à utopia polifônica, mesmo em contextos como o do bombardeamento do Afonso de Albuquerque, o romance é tido como o gênero que acolhe a crise e a leva ao cerne da estrutura romanesca – superando-a e superando até mesmo a ideia: [...] a modernidade do pensamento de Bakhtin em sua visão do romance, ao trazer à tona seu plurilinguismo, transforma-o em um gênero permeável que se deixa penetrar por outras linguagens de modo dissimulado, estilizado e geralmente paródico. Tal multiplicidade de vozes que ressoam nessa construção híbrida é o que marca seu traço de inferioridade, de rebaixamento com relação ao gênero épico. Isso é, no entanto, o que permite, no campo da representação, a atualização do objeto. (ESTEVES, 2010, p. 29-30). Ocorre que a poesia não emudece – ela é dialógica, embora Bakhtin discordasse disso. Pode-se delinear a presença poética muito claramente nas aparições do defunto Fernando Pessoa. Em Ricardo Reis, por mais prosaico que seja o personagem, ainda há uma insinuação poética, que o narrador tenta esconder, posto que é criador também. A criação de personagens, biografias, modos de ser e de escrever advém de um compreensão prosificada da vida (Silva Junior, 2010). Esta percepção prosificada é o cerne da palavra e do realismo. Desta polifonia prosificada, surgem perguntas latentes ao longo do livro: ainda é possível fazer poesia depois da morte do “supra-Camões”? Como fazer arte perante um regime totalitarista? Como um poeta, criado da condição poética de um ser de carne e osso, pode habitar, pela palavra, o mundo? Neste mundo que Reis conhecia tão bem a ponto de criar seu próprio universo fugaz e aparentemente tão alheado, a sombra de Camões, possivelmente, surge como uma das imagens mais decisivas GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 270 deste labirinto saramagueano. Arrisca-se dizer que, por isso, o narrador investe em um tom poetizante, delineando-se como um outro heterônimo pessoano, um alterônimo, sem biografia, mas que se intromete na narrativa para imbuí-la de poesia. Vamos a cada um desses, agora, três poetas, para que se perceba a insistência da poesia em meio à crise romanesca: Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará agora pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, quantos inúmeros que em mim vivem, eu sol qual, quem... (SARAMAGO, 2010, p. 20). O narrador, para contar biografias de tão importantes poetas, na história literária do futuro (que narra), também pleiteia ser poeta. Utilizase de princípios do romance, inserindo inclusive o leitor na narrativa, para tornar-se, ele também, poeta. Poeta autor de ficções – como James Joyce e Guimarães Rosa, o esteta heterônimo, pela sua poesia, e/ou nos pequenos prólogos biográficos, evitava os sentimentos arrebatadores e os prazeres intensos em um exercício cínico-filosófico de desapego, para que não lhe fosse pesado assistir à despedida dos outros: “Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti”, bem como esperaria tranquilo a chegada das Parcas que o levassem: “E aguardando a morte/como quem a conhece” (SARAMAGO, p. 31-32). O Reis prosaico não precisa de qualquer exercício cínico para se desapegar: é já um ser despregado do mundo. Sem guardar lembranças ou saudades do Brasil, embarca para Portugal em busca do Pessoa defunto. Em Lisboa, filia-se a uma Lídia que lhe confere existência carnal – impossível de ser vista e/ou realizada em sua poesia heterônima. Ricardo Reis assenta-se sobre um tripé em que ele mesmo é pouco significante. Perceba-se como esse personagem, a um só tempo, participa da banalidade da vida comum e verga-se a um ensimesmar-se quase apático: Como igualmente se tem visto em outros tempos e lugares, são muitas as contrariedades da vida. Quando Ricardo Reis acordou, manhã alta, sentiu na casa uma presença, talvez não fosse ainda a solidão, era o silêncio, meio-irmão dela. Durante alguns minutos viu fugir-lhe o ânimo como se assistisse ao correr da areia numa GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 271 ampulheta (...) hoje não, que a vida, curta sendo, não dá para contemplações. Mas era de contrariedades que falávamos. Quando Ricardo Reis se levantou e foi à cozinha para acender o esquentador e o bico do gás, descobriu que estava sem fósforos, esquecera-se de os comprar. E como um esquecimento nunca vem só, viu que lhe faltava também o saco de fazer o café, é bem verdade que um homem sozinho não vale nada. (SARAMAGO, 2010, p. 231). Em uma casa solitária, o poeta vê passar os dias como se escorregassem – “como se assistisse ao correr da areia numa ampulheta”. Nisto, lembra a tradição contemplativa estoica que buscava seguir o esteta inventado por Fernando Pessoa. Acontece que esta postura da inação é absolutamente estranha a um ano tão efervescente como o de 1936 e, mais que isso, a apatia soa desconcertante em um romance tão verborrágico e inquieto como O ano da morte, o que justifica a ressalva do narrador: “hoje, não, que a vida, curta sendo, não dá para contemplações”. Ricardo Reis é um poeta da solidão. Nem mesmo a Lídia poetizada, nem mesmo o rio que desejava observar, a natureza que o abrigava como em um quadro idílico soariam tão distantes. Mas, da antiga condição, surge este Reis prosificado: evanescente, vivendo o ano de sua morte. Nesta existência, agora duplicada, é necessário comer, tomar café, amar, estar na multidão – como no episódio em que procura Marcenda na multidão católico-festiva de Fátima. A multidão está alheia à memória do futuro e Reis experimenta a vida – sem alhear-se, sem desejar o que sente e deixar que o que sente pense nele. Reis aparece como o poeta impossível porque seu modo de poetizar é incoerente com o modo de vida de seu tempo. Saramago mata o último heterônimo vivo justamente porque a história o enterra. No jogo com uma criação que, no conjunto de seu tempo e de sua época coaduna com a prática poética de Pessoa ortônimo, qual seja, a criação de mundo pela palavra, já que a vida, ela mesma, em sua realidade já não basta, o narrador continua o que Pessoa começara ao rebelar-se contra qualquer tipo de poder totalitário. O poeta mais apático politicamente é o contraponto para um narrador que guarda toda a memória do futuro. Reis, por sua vez, tão convicto de que “acima da verdade estão os deuses”, em poema escrito – em 16-10-1914 – dois meses do início da primeira guerra, bastava-se a si mesmo no horizonte de sua poética. Mas sua poética é dialógica: há um conjunto de poetas ecoando (Caeiro, Campos, dentre outros) que cruzam suas vozes com a dele. Na forma e estilo de cada um estão percorridos os supercamões, o Império que poderia ter GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 272 sido e que não foi e o século humilhantemente governado por um salazarismo falido. O mesmo século que gerou Pessoa e Saramago. Como ficou demonstrado, no livro saramagueano, há uma convergência de poéticas. O romance nasce de um pequeno dado biográfico do heterônimo, o fato de ter ficado vivo. Nasce também do ano da morte de Fernando Pessoa (1935). E deste retirar-se da história e entrar para a história pela palavra poética – mal lida em sua época – o narrador torna-se também um poeta que habita aquele tempo, mas que percorre o humilhante século XX. Nesta retomada de um personagem de outro, neste defunto personagem que volta e da construção de um narrador poeta, estas mortes, que estavam alheias ao futuro, permitem o diálogo (romanceado) dos mortos Reis e Pessoa: meu caro Reis, as suas odes sejam, por assim dizer uma poetização da ordem. Nunca as vi dessa maneira, Pois é o que elas são, a agitação dos homens é sempre vã, os deuses são sábios e indiferentes, vivem e extinguem-se na própria ordem que criaram, e o resto é talhado no mesmo pano, Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram, E os homens, que papel [tirar a pergunta] vem a ser dos homens, Perturbar a ordem, corrigir o destino, Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino. (SARAMAGO, 2011, p. 340). Poder-se-ia pensar neste trecho como uma poesia que mescla as identidades poéticas de Pessoa e seu heterônimo. Enquanto um busca, pela ordem, alcançar o que está acima dos deuses – o destino – o outro, aponta para a necessidade de superá-lo, de impedir que o que tem de ser tenha mesmo muita força. A imbricada relação entre esses dois poetas é que gera a poesia equacionadora da mesma problemática da narrativa: a causalidade que precisa superar o acidental, a literatura que anseia fortemente desvelar a crise e uma poeticidade devedora de Reis e Pessoa que sintetiza o romance – que amplia Portugal justamente pelos seus escritores e não pelas causas políticas conduzidas de modo sempre alheio e injusto – modos denunciados por Camões e por Saramago. Fernando Pessoa é o eixo de sabedoria que guia a obra – uma sabedoria de um criador de eternidade e de multiplanaridades dramáticopoéticas. Seus momentos de aparição proporcionam sempre diálogos arrebatadores que desnudam para os vivos – Reis e o leitor – o mundo de desassossego e tanatografias, ou seja diálogos (romanceados) dos mortos (SILVA JUNIOR, 2008) em que todos estão imersos. Neste jogo, Ricardo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 273 Reis funde-se, na prosificação, por ser um homem comum3. Fernando Pessoa escapa à prosificação por sua condição de morto. Se na empreitada pessoana um estava vivo e o outro era criação, nesta invenção saramagueana um é morto e o outro sabe que morre: (...) é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não era menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Pra filosofia, parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve saber que as coisas, desse lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pensa, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu caro Fernando, cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias. (SARAMAGO, 2010, p. 278-279). Morte e vida “é tudo um”, ainda segundo Pessoa-personagem, porque os vivos não conseguem tirar proveito da coisa mais fundamental da vida, “que se morre”. No universo tanatográfico, em que os mortos voltam para conversar, esse “tudo é um” se dá sempre pela palavra: Que serão os meus sonhos/ Mais que a obra dos deuses?/ Deixai-me a Realidade do momento... (REIS, Ficções do interlúdio, 1960, p. 209). Dando-se conta, ainda que falhamente, da grande contradição de estar vivo sem saber para quê, Reis insinua, no diálogo transcrito com Pessoa, que “a morte, afinal, deve ser um alívio”. O outro o repreende 3 Pode-se delinear, dentro da obra de Saramago, uma tendência de construção de personagens centrais que esboçam uma humildade frágil que de certa forma embota a sua grandeza. São exemplos disso, o auxiliar de escrita José, de Todos os nomes (1997) e o músico solitário de Intermitências da morte (2006). Ambos personagens de variantes tanatográficas romanceadas. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 274 dizendo que, em oposição, a morte é um “juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida”. Julga porque o distanciamento do morto lhe permite ver a inacabada condição humana que repercute em narrativa inacabada. É por isso que o autor biográfico – como é aqui Saramago, que reconta criativamente a biografia de Pessoa e de seu alterônimo – “lida com vozes de vivos e vozes de defuntos, tendo como objetivo dar (uma nova) chance àquele que já morreu de discursar” (SILVA JUNIOR, 2010, p. 59). Pessoa é o personagem que se arrisca, que tem o anseio vigoroso de dizer as palavras todas, portando, porém, a insuperável dor de estar já morto. Dor suscitada não pela perda de si mesmo, mas pela extinção do direito à voz, do direito maior de usar das palavras. Este Pessoa personificado, além de ser uma imagem que volta, também, sabe o narrador, foi criador de mundos com sua lógica interna. A ang stia de Fernando Pessoa dá continuidade à “contrariedade” antes apontada, conjugando o viver e o morrer, a fala e o silêncio, a possibilidade e a impossibilidade: É esse o drama, meu caro Reis, ter de viver em algum lugar, compreender que não existe lugar que não seja lugar, que a vida não pode ser não vida (...) O pior mal é não poder o homem estar no horizonte que vê, embora, se lá estivesse, desejasse estar no horizonte que é. (SARAMAGO, 2010, p. 151). Fernando Pessoa, que já está fora do tempo, do espaço e da vida, é o personagem mais inquietado com a existência humana. Está já em um lugar que não é lugar, entre a vida comum na Lisboa chuvosa e a morte definitiva no Cemitério dos Prazeres. E o narrador se vê contaminado pelos poetas – o fim da citação aponta para os torneios pessoanos e fingidores: O pior mal é não poder o homem estar no horizonte que vê, embora, se lá estivesse, desejasse estar no horizonte que é. (SARAMAGO, 2010, p. 151). Ocorre que o estado nebuloso deste ano e desta geração é um estado de não vida. Quem percebe isso, quem vislumbra o horizonte a que não se chega, contudo, é somente Pessoa. Reis, possivelmente, o intui apenas quando opta pela morte – então já não há mais tempo. Partes do mesmo dialogam e o poeta-personagem de romance tenta chamar a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 275 atenção do colega para a iminência do viver em vida: “a vida não pode ser não vida”. O narrador, finalmente, lança-se também como grande fazedor de poesia que com discussões graves problematiza as questões históricas urgentes por meio de uma forma narrativa desmantelada que aponta para uma saudade velada da poesia, que é sempre caminho para a liberdade em meio ao labirinto da vida: talvez isto é que seja o destino, sabemos o que vai acontecer, sabemos que não há nada que o possa evitar, e ficamos quietos, olhando, como puros observadores do espetáculo do mundo, ao tempo que imaginamos que este será também o nosso último olhar, porque com o mesmo mundo acabaremos. (Idem, p. 416). O nosso último olhar para o destino mostra que ele nos reserva apenas a morte, como reservou a Ricardo Reis que decide partir com Fernando Pessoa para o Cemitério dos Prazeres. Por isso, o romance traduz-se como a contestação do “acidental” (LUKÁCS, 2010, p. 151) como algo inevitável. Romance que questiona o triunfo do próprio gênero – é o gênero da crise, mas que conserva a liberdade da poesia. Saramago dissemina a poética e opta por uma tradição dúplice na qual é importante discutir o homem na história e, ao mesmo tempo, perceber que uma das formas de livrar-se do alheamento é justamente pela palavra – capaz de esconder as causalidades profundas. O narrador poeta estiliza em sua narrativa algo que lhe é próprio. Podemos falar assim de uma poesia narrativa: talvez isto é que seja o destino, sabemos o que vai acontecer, sabemos que não há nada que o possa evitar, e ficamos quietos, olhando, como puros observadores do espetáculo do mundo, ao tempo que imaginamos que este será também o nosso último olhar, porque com o mesmo mundo acabaremos. (SARAMAGO, 2010, p. 416). O mesmo narrador, por sua vez, consegue imbricar, fundir os dois temas poéticos de Reis e de Pessoa no mesmo poema: a agitação dos homens é sempre vã, os deuses são sábios e indiferentes, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 276 vivem e extinguem-se na própria ordem que criaram, e o resto é talhado no mesmo pano, Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram, Perturbar a ordem, corrigir o destino, Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino. (SARAMAGO, 2010, p. 340). Enfim, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) é o romance de José Saramago em que se cumpre Portugal pela palavra. E o que mais a história falhou em cumprir resta à poesia contar. Destes personagens intrigantes, imersos em uma narrativa inquieta e, aparentemente insolúvel, o saldo é o da discussão da condição humana, sujeita ao tempo, ao espaço, à vida e à morte. O trunfo parece ser mesmo o poder dizer: “Nós não somos nada, porventura nascerá para nós o dia em que todos seremos alguma coisa, quem isto agora disse não se sabe, é um pressentimento” (Idem, p. 385). Resta aos homens ser alguma coisa, ser pela palavra, sempre ação que teima em “Perturbar a ordem, corrigir o destino” (Idem, p. 340) e efetivar, na vida, a utopia polifônica do romance. WHAT MUST BE MUST BE: THE POWER OF POETRY AND PROSE AS TRANSGRESSORS OF DESTINY IN O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS Abstract: O ano da morte de Ricardo Reis (1984) is a novel by Jose Saramago that effects a narrative polyphony despite taking place in 1936 - the period leading authoritarianism. It aims to show how the hybrid of genres, which combines prose and poetry, points to an literary and historical exit. It discusses how the human condition, which lives the threat of crisis, is transposed in this labyrinthine novel. Mikhail Bakhtin is the main theoretical reference point concerning the plural arrangement of many voices. Gyorgy Lukacs, Erich Auerbach and Hermenegildo Bastos guide the thinking about the intricate web of causality that hides deep causality achieved by the great novels. Through rigorous research on the novel as a genre and on the multifaceted poetry of Pessoa, this book is elevated to stand among those that, with great fluidity and artistic zeal, discuss, from their core, serious human issues. Finally, we seek to GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 277 show that the poetry of life stubbornly resists the crisis brought on and represented by prose. Keywords: Novel. Polyphony. Poetry. Pessoa. Crisis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. BASTOS, Hermenegildo. O que tem de ser tem muita força – determinismo e gratuidade em Angústia. 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Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 279 OBRA ABERTA, MAS NEM TANTO: LIMITES INTERPRETATIVOS COMO COLABORADORES NA FORMAÇÃO DO SUJEITO-LEITOR João Luis Pereira OURIQUE1 Patrícia Cristine HOFF2 Resumo: Ao identificar pressupostos teóricos que sustentam os limites de interpretação do texto literário – tido como “aberto” dada a sua ambiguidade e plurissignificação –, esse trabalho preocupa-se em tecer considerações sobre como tais aspectos levantados pela teoria podem contribuir para a formação de sujeitosleitores. Para isso, ampara-se, sobretudo, nos estudos de Umberto Eco, percorrendo algumas obras desse que é um dos grandes pensadores sobre a significação artística. Além de Eco, percorre-se nomes como Hans Robert Jauss e Hans-Georg Gadamer, figuras emblemáticas da teoria da recepção e da hermenêutica as quais promovem a valorização do leitor em detrimento da autoria empírica, aspecto que vai de encontro à tradição do ensino de literatura pautado por abordagens histórico-biográficas remanescente do século XIX. Ao final, conclui-se que cada texto literário ao mesmo tempo potencializa e inviabiliza certas leituras, ao passo que os limites da interpretação são impostos pelo próprio texto. Este, por sua vez, é senão o objeto do leitor, sujeito da prática interpretativa, para quem os limites de sentido devem ser tão caros quanto os próprios sentidos resultantes da leitura. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de literatura. Estética da recepção. Hermenêutica. Obra aberta. Sujeitos-leitores. Introdução Em 13 de abril de 1967, Hans Robert Jauss proferiu em conferência ministrada da Universidade de Constança, sob o título O que é e com que fim se estuda história da literatura?, posteriormente modificado para A história da literatura como provocação à teoria literária, alguns dos pressupostos fundadores da teoria da recepção, a qual se coloca contra a tradição da história da literatura. O local para a conferência não fora escolhido por coincidência, uma vez que da Universidade de Constança sobreveio o principal fruto da reforma educacional na Alemanha durante a segunda metade da década. De forte caráter provocativo, o discurso de Jauss busca romper com a natureza dos estudos literários vigentes que, segundo ele, atuavam em serviço da 1 2 UFPel/CLC. Pelotas-RS-Brasil. 96010-610. [email protected]. UFPel/CLC. Pelotas-RS-Brasil. 96010-610. [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 280 “burguesia instruída”. Jauss critica, assim, a permanência dos ideais burgueses do século XIX, período no qual emergiram o conceito positivista de história e a consolidação do capitalismo. (ZILBERMAN, 2009, p. 9) Ao ironizar e desconsiderar a postura do historiador que se apoia “no ideal da objetividade da historiografia, à qual cabe apenas descrever como as coisas efetivamente aconteceram” (JAUSS, 1994, p. 7, grifos do autor), o teórico recusa os métodos de ensino da história da literatura praticados por historiadores presos à ideia de passado acabado, que ignoram a produção artística do presente e apegam-se ao cânone seguro das “obras primas”. Indo de encontro a esses estudiosos, chamando-os de parasitas da crítica tradicional, Jauss advoga pelo reconhecimento da historicidade da arte, elemento decisivo para a compreensão do seu significado no conjunto da vida social. Nesse sentido, afirma: [a] qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão somente de seu posicionamento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios estes de mais difícil apreensão. (JAUSS, 1994, pp. 8-9) Adjacente à crítica ao positivismo histórico e literário, tem-se, portanto, que as noções de efeito e recepção são centrais dentro dessa nova estética, pois recaem na formulação dialógica principal: a relação entre obra e leitor. Uma vez privilegiada essa relação, o texto deixa de ser imutável, de estrutura autossuficiente, e passa para o leitor, quem dá vida à literatura. Disso emerge não apenas a função social do leitor, mas também o desenvolvimento da sua capacidade hermenêutica frente ao texto artístico. Ainda no calor dos debates das teorias da recepção, Roland Barthes, no ensaio “A morte do autor”, de 1968, causou certa polêmica ao retirar o autor de sua posição sacra de “Autor-Deus” quando destitui da autoria a detenção da palavra, ao ter que “[a] escritura é a destruição de toda voz, de toda origem.” (BARTHES, 2004, p. 65) Ao atribuir à escritura – ou seja, à linguagem (literária) – a responsabilidade pela existência da obra, Barthes vê no leitor o lugar onde a texto adquire sentidos, o que é possível apenas em detrimento à figura históricopsicológica do autor. Assim, ao pôr em crise a até então predominância dos estudos da intencionalidade autoral, Barthes desconstrói o mito do GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 281 autor, ao mesmo tempo em que, de certa forma, propõe a criação de um outro mito, o do leitor: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. (BARTHES, 2004, p. 69) Mesmo sendo esse leitor um modelo idealizado (“sem história, sem biografia, sem psicologia”) – como também idealizado era o autor, porém de forma inversa –, mostra-se importante a defesa de Barthes em prol do leitor, ou seja, para aquilo que a estética da recepção se propôs e defender, incluída aí toda a ideologia de contestação social e luta pela autonomia do sujeito. A posição privilegiada do receptor no sistema literário, por outro lado, não é destacada apenas pela teoria da recepção. Regina Zilberman aponta que das tendências críticas que lidam com o leitor/destinatário enquanto peça importante da teoria pode-se aludir à retórica, à semiologia e ao estruturalismo, na medida em que se preocupam com o processo de decodificação do texto pelos destinatários; à psicanálise e à hermenêutica, por lidarem com a questão da interpretação; e à sociologia da literatura que [...] analisa a interação da obra com o p blico.” (ZILBERMAN, 2009, p. 15) Para fins desse trabalho, no entanto, não serão discutidas todas as teorias mencionadas, muito embora haja pressupostos comuns entre as mesmas. Com efeito, as reflexões aqui apresentadas procuram dar conta de aspectos relacionados tanto ao texto literário como objeto de estudo, quanto à função hermenêutica na atuação do sujeito-leitor para com esse objeto, recuperando-se o processo dialógico entre texto e leitor na perspectiva do ensino. Problemática da obra aberta e seus limites GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 282 É com base na observância do caráter ambíguo e polissêmico da linguagem estética que Umberto Eco (1962) formula seu conceito de “obra aberta”, cabível à obra artística como um todo e, portanto, também à literatura. Tal conceito, todavia, não pode ser visto como uma categoria crítica, mas como um modelo hipotético, uma abstração, “uma categoria explicativa, elaborada para exemplificar uma tendência das várias poéticas.” (ECO, 2007, p. 26) De acordo com Eco, A poética da obra “aberta” tende [...] a promover no intérprete “atos de liberdade consciente”, pô-lo como centro ativo de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos de organização da obra fruída. (ECO, 2007, p. 41) A partir dessa ideia, tema fundamental da longa produção teórica de Eco, estabelece-se uma tensão entre a “fidelidade” e a “liberdade interpretativa” frente ao objeto lido, tensão essa que só se resolve no próprio texto, como veremos mais adiante. No que tange à defesa do papel ativo do intérprete diante dos textos de valor estético, abertos por excelência, Eco sofreu críticas as quais viam a abertura do texto como espécie de terra sem lei, onde toda e qualquer interpretação seria válida e aceita. Tais críticas fizeram Eco escrever a Introdução à segunda edição do livro Obra aberta, na qual justifica o conceito polemizado. Levado, nos anos seguintes, a pesquisar os fenômenos da significação, a fim de encontrar possíveis limites da interpretação na sempre presente ideia de “obra aberta”, Eco amparou-se num profundo estudo semiótico, pensando a leitura a partir do viés da sua construção enquanto cadeia de signos. Não compete à teoria de Eco analisar, por exemplo, os aspectos sociológicos da leitura, mas tomar o texto literário a partir de um viés estrutural (e não estruturalista), debruçando-se sobre o signo linguístico. Este, por sua vez, é visto não como “alguma coisa que está no lugar de alguma outra coisa”, mas considerado “indissoluvelmente ligado ao processo de interpretação.” (ECO, 1991, p. 3) Para isso, Eco ampara-se em Pierce na defesa da natureza interpretativa do signo. Tem-se então que Por interpretação (ou critério de interpretância) deve-se entender o que entendia Peirce ao reconhecer que cada interpretante (signo, ou seja, expressão ou sequência de expressões que traduz uma expressão anterior) não só retraduz o “objeto imediato” ou conte do GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 283 do signo, mas amplia sua compreensão. O critério de interpretância permite partir de um signo para percorrer, etapa por etapa, toda a esfera da semiose. Peirce dizia que um termo é uma proposição rudimentar e que uma proposição é uma argumentação rudimentar. (ECO, 1991, p. 60) O caráter rudimentar que circunda signo e significante leva, pela necessidade da construção mais aperfeiçoada dos sentidos, à formulação da semiose ilimitada, apontada por Peirce e utilizada por Eco. Esse processo é, de forma simples, explicado por Eco no sentido de que para estabelecer o significado de um significante (...) é necessário nomear o primeiro significante por meio de outro significante que pode ser interpretado por outro significante, e assim sucessivamente. Temos, destarte, um processo de SEMIOSE ILIMITADA. (ECO, 2003, p. 58, destaques do autor) No livro Os limites da interpretação (1990), ciente da visão generalizante dessa definição, Eco admite que a semiose ilimitada não é um modelo teórico unificado, ou “científico”, mas uma prática social, com o estatuto de um discurso filosófico (ECO, 2010, p. 3). Assim, Eco procura ser fiel ao modelo também hipotético da “obra aberta”, afirmando que Uma vez que o texto tenha sido privado da intenção subjetiva que estaria por trás dele, seus leitores não mais têm o dever, ou a possibilidade, de permanecerem fiéis a essa intenção ausente. É, destarte, possível concluir que a linguagem está presa num jogo de significantes múltiplos, que um texto não pode incorporar nenhum significado unívoco e absoluto, que não existe um significado transcendental, que o significante jamais pode estar em relação de co-presença com um significado continuamente diferido e adiado, e que todo significante se correlaciona com outro significante de modo tal que nada fique fora da cadeia significante que prossegue ad infinitum. (ECO, 2010, p. 283) Diante da cadeia infinita de possibilidades semióticas, torna-se unicamente possível (mais do que meramente confortável) assumir a posição de que não existem interpretações certas ou erradas, e que em nenhum momento uma única leitura finaliza todas as possibilidades de um texto. Não sendo razoável apontar para a boa interpretação, Eco afirma que, “mais fácil, ao contrário, é reconhecermos as más.” (ECO, 2010, p. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 284 291) Mais profundamente sobre as más interpretações Eco trata em Interpretação e superinterpretação (1993), em que tenta manter um elo dialético entre a intentio operis e a intentio lectoris, utilizando sempre o texto como fornecedor e ao mesmo tempo contestador ou afirmador de uma dada interpretação. Nesse processo, ambas as intenções são codependentes, mas a segunda se coloca à frente, uma vez que A intenção do texto não é revelada pela superfície textual. [...] É preciso querer “vê-la”. Assim é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência de uma leitura por parte do leitor. A iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma conjetura sobre a intenção do texto. (ECO, 1993, p. 75) Daí surge a noção de que o texto é um dispositivo concebido para produzir um leitor-modelo, o qual não é um leitor idealizado, que saberá interpretar o texto facilmente, mas nele – no leitor – surgem hipóteses acionadas pelo texto, ao passo que o leitor também se configura como uma estratégia interpretativa diante do objeto lido, gerando um modelo de leitura. Ainda nesse âmbito, o texto faz-se como uma espécie de artefato que potencializa algumas leituras em detrimento de outras. Tais leituras são levadas a cabo pelo receptor, o qual se torna modelo por ter que conjecturar sobre as intenções do autor-modelo (que não é igual ao autor empírico, uma vez que também se coloca como uma estratégia discursiva) de um texto específico, as quais se confundem com as intenções do texto. Trata-se, portanto, de um círculo hermenêutico, no qual mais do que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar a interpretação, o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular de validar-se com base no que acaba sendo o seu resultado. (ECO, 1993, p. 75-6) Para Eco, reconhecer a intenção da obra é reconhecer uma estratégia semiótica, e a única forma de provar as hipóteses resultantes da intenção do leitor-modelo é checá-las com o texto enquanto um todo coerente. (ECO, 1993, p. 76) A intentio operis econiana poderia, todavia, colocá-lo junto aos estruturalistas, tendo o texto como uma estrutura passível de ser fielmente interpretada. Para tentar dissolver essa associação e valorizar o processo hermenêutico da obra de arte, Eco resguarda a ideia de que o texto tem sua verdade, ou melhor, suas verdades. Assim, no bojo dessas discussões, ele aponta para a diferenciação entre “interpretação” e GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 285 “superinterpretação”, ao ter que superinterpretar um texto é atribuir-lhe conjecturas passíveis de serem rejeitadas pela coerência interna do texto. Esta coerência estrutural, por seu turno, domina os impulsos do leitor, de outro modo possivelmente incontroláveis. Contribuições para o ensino de literatura Em Educação e emancipação (1969), Theodor Adorno afirma que educação deve projetar-se tão somente para a emancipação (ou autonomia) do sujeito, a qual é prejudicada não pela “falta de entendimento, mas a falta de decisão e de coragem de servir-se do entendimento sem a orientação de outrem”. (ADORNO, 1995, p. 169) Adorno, contemporâneo a Jauss, foi um dos pensadores que, como afirma Regina Zilberman, influenciou as reflexões da estética da recepção no momento em que pensava a educação como uma forma de ruptura e inovação frente às normas vigentes (ZILBERMAN, 2008, p. 93). Ao apresentar-se como um pressuposto estético aplicado às vanguardas do século XX, o modelo hipotético da “obra aberta”, tão caro a Eco, além de apontar para a objetividade provocadora da obra de arte, vai de encontro ao empobrecimento das relações entre arte e visão do mundo de intérprete causado pela cultura de massa (BRITTO JR., 2008, p. 6), preocupação que encontra em Adorno um dos grandes representantes. Na Obra aberta (1962), livro interessado nas formas de indeterminação das poéticas contemporâneas, Eco apresenta a dicotomia entre obra de massa e obra de vanguarda: As mensagens de massa são mensagens inspiradas numa ampla redundância: repetem para o público aquilo que deseja saber. Mesmo quando utiliza soluções estilísticas difundidas pela vanguarda, a cultura de massa o faz quando estes modos comunicativos já foram assimilados pelo grande público. Daí que ela difunde, por assim dizer, sobre o universo uma confortável cortina de obviedade. A tarefa da literatura de vanguarda é precisamente a de romper essa barreira de obviedade. Diante do já conhecido (“noto”) a vanguarda propõe o desconhecido (“l’ignoto”). Neste sentido se enquadra no discurso informativo e aberto. Já se disse que a tarefa da literatura é a de manter eficiente a linguagem. Se por “manter eficiente a linguagem” se entende “renovar continuamente as modalidades de uso do código lingüístico comum”, esse é exatamente o objetivo da vanguarda. Com uma particularidade: desde que um modo de falar reflete um modo de ver a realidade e de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 286 afrontar o mundo, renovar a linguagem significa renovar nossa relação com o mundo. (ECO, 2007, pp. 282-3 apud BRITTO JR., 2008, p. 8) Britto Jr. aponta para o paradigma do termo vanguarda que, em Eco, perde a definição tradicional e passa a ser uma postura que visa a ambiguidade como finalidade última do processo criativo. De grosso modo, a vanguarda tradicional configura-se num conceito aplicável a um grupo de pessoas orientadas artística e politicamente por um programa pré-estabelecido de produção. Para Eco, no entanto, as obras consideradas vanguardistas são aquelas feitas plurissignificativas, revitalizando no intérprete efeitos de estranhamento que produzem, por um lado, uma fruição menos complacente e mais intelectualmente ativa e, por outro lado, um questionamento das possibilidades interpretativas que, por sua vez, redundam numa nova concepção do código que serve de base à comunicação artística e, mais importante, às nossas concepções de mundo. (BRITTO JR., 2008, p. 8) Fica claro que, para Eco, as obras reducionistas em sentido, apontando para as que se encaixam nos moldes da cultura de massas (ou seja, as quais trazem mensagens redundantes e óbvias que petrificam a percepção), não têm o mesmo valor estético das obras de vanguarda. O valor, portanto, ficaria condicionado à linguagem empregada e seus modos, muito antes de levar-se em consideração qualquer informação extratextual. Isso não significa que o leitor atribui valor ao texto, mas, retomando a ideia de leitor-modelo, a qualidade da leitura é “imposta” pelas próprias intenções textuais, projetadas no leitor-modelo e refletidas na (e pela) leitura do mesmo. Logo, o aspecto criativo da obra de vanguarda não é atribuído apenas ao texto. O texto vanguardista (a partir da proposição econiana de vanguarda) se atualiza no leitor, no momento em que cabe a ele produzir inferências múltiplas num processo infinito de manutenção da consciência produtiva. Dado o caráter provocativo da literatura, comentado anteriormente, sendo uma condição da “obra aberta”, é trabalho do sujeito-leitor (aqui uma visão ampliada do leitor-modelo, a qual quer atentar ainda para a capacidade crítica do receptor) atuar na decodificação dos textos artísticos. É o que também aponta Regina Zilberman: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 287 o signo estético [em oposição ao signo empregado na linguagem prática do cotidiano] assim se revela se o espectador o perceber enquanto objeto estético, o que determina, agora por outra via de raciocínio, o reconhecimento da importância de sua atividade perceptiva. É o recebedor que transforma a obra, até então mero artefato, em objeto estético, ao decodificar os significados transmitidos por ela. Em outras palavras, a obra de arte é um signo, porque a significação é um aspecto fundamental de sua natureza, mas ela só se concretiza quando percebida por uma consciência, a do sujeito estético. (ZILBERMAN, 2009, p. 21) É evidente que, a essa altura, não se pode falar em formação de sujeitos-leitores senão a partir da leitura do texto literário – o que, infelizmente, não é um procedimento óbvio se for levado em consideração o quadro crítico em que se encontra o ensino de literatura atualmente, ainda fortemente apoiado em únicas contextualizações sóciohistóricas das obras e seus autores. Resulta daí uma visão totalmente extrínseca da literatura, sendo o tratamento do texto literário um mero pretexto para conteúdos outros que não a(s) leitura(s) do texto em si. Marisa Lajolo, em O texto não é pretexto, aponta para a gravidade de se trabalhar o texto literário dessa forma, quando maus leitores podem transformar bons textos em maus textos na medida em que propuserem exercícios “que reduzem ou anulem a carga de ambiguidade e plurissignificação do texto poético.” (LAJOLO in ZILBERMAN, 1991, pp. 55-6) Tal consideração de leituras que “geram maus textos” retoma a ideia de superinterpretação de Eco, quando a interpretação não se sustenta textualmente, indo em direção à má leitura. A questão da hermenêutica – entendida como um processo de leitura consistente e coerente com a historicidade apontada por Jauss e base para a teoria da Estética da Recepção –, aqui recuperada, parte, sobretudo, da formulação de Hans-Georg Gadamer acerca dessa relação com a obra de arte, ou seja, como o leitor se posiciona frente ao elemento estético. O resgate da concepção gadameriana evita que a crítica contra a Estética da Recepção (no sentido de que esta opera a partir da concepção de um sujeito-leitor ideal, negligenciando o horizonte de expectativa real, das suas inconstâncias e incongruências) se fundamente de maneira a comprometer a compreensão – tida como objetivo central do pensamento hermenêutico. A Apresentação à edição brasileira, elaborada por Marco Antonio Casanova, situa como deve ser entendida essa abordagem teórica: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 288 De modo algo sintético, podemos afirmar que a hermenêutica gadameriana procura ultrapassar desde o início a suposição de que os processos interpretativos são marcados pelo intuito primordial de alcançar uma verdade previamente dada e constituída. Tradicionalmente, a filosofia assumiu a posição de que verdade é algo que precisa ser conquistado por meio de uma aproximação de estruturas universais. (...) Normalmente orientados pelo projeto iluminista de suspensão de todos os pressupostos e de autonomia radical da razão, pensamos que um conhecimento só encontra seu ponto de legitimidade quando zeramos por assim dizer nossas crenças. O problema de tal pressuposto, contudo, é que ele passa completamente ao largo do que propriamente acontece em todo e qualquer processo hermenêutico. Na verdade, não é apenas impossível produzir tal suspensão de nossos pressupostos; se realmente conseguíssemos alcançar algo assim, o que teríamos seria por fim ao mesmo tempo indesejável. A suspensão de nossos pressupostos significariam propriamente uma dissolução de toda a orientação prévia e de toda a expectativa de sentido em relação ao que se deveria interpretar. Sem tal orientação e tal expectativa, porém, não teríamos nem mesmo como nos aproximar do que deveria ser interpretado, uma vez que é essa orientação e essa expectativa que conduzem a aproximação. (CASANOVA, In: GADAMER, 2010, p. X - XI). Drummond e o exemplo literário Escrito em fins de 1924 e publicado em 1928 na Revista de Antropofagia, fundada por Mário de Andrade e representando a vanguarda modernista no Brasil, o poema No meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade, pode ser considerado um poema vanguardista por excelência, seja no aspecto do sentido primeiro da palavra, vinculado a um movimento de ruptura cultural, seja na qualidade de texto de valor estético, tal qual a vanguarda entendida por Eco. O poema de Drummond, republicado dois anos depois em seu livro de estreia de poesia, o Alguma poesia (1930), causou reações divergentes no público, em grande parte ainda resistente à novidade modernista. Tal repercussão deixou o poeta subitamente conhecido, uma vez que fora ao mesmo tempo admirado e ridicularizado por causa desse poema-escândalo. Quase quatro décadas depois da primeira publicação, Drummond chegou, inclusive, a organizar, em 1967, a antologia Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 289 Poema reunindo várias paródias, paráfrases e comentários positivos e negativos acerca do poema. Nesse sentido, é possível refletir a problemática da poesia nos termos apresentados por Gadamer, nos quais o diálogo existente entre os seres culturais evidencia uma tentativa de compreensão de si nos outros – mesmo que esses outros sejam as obras de arte advindas dos mais diversos contextos sócio-históricos. Como é que a poesia pode levar a termo o fato de precisarmos compreender mesmo quando nos opomos? Com certeza, podemos denominar hermenêutica a reflexão sobre isso. Hermenêutica significa a teoria da compreensão. No fundo, porém, uma tal teoria não é outra coisa senão autoconscientização daquilo que propriamente acontece quando se dá algo a compreender a alguém e quando se compreende. (GADAMER, 2010, p. 380). Pensado dessa forma, o poema de Drummond, tão controverso na sua recepção, serve de exemplo para o “problema hermenêutico” do confronto entre texto e leitor. Para fins desse trabalho, no entanto, este poema se coloca como objeto de consideração acerca do processo de interpretação que dele resulta, ou melhor, que pode resultar. Assim, salvaguarda a sua repercussão, a aproximação ao poema se dará pelas considerações sobre o mesmo, de modo a produzir sentidos. Sendo um texto já largamente interpretado, No meio do caminho, por isso mesmo, surge como um enunciado poético riquíssimo, inclusive do ponto de vista da fruição literária. Segue, então, o poema de Carlos Drummond de Andrade, cuja análise e interpretação apontarão para a necessidade da convergência dos vários elementos mencionados até o momento: No meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 290 tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. Talvez o aspecto a prender a atenção do leitor, quando da primeira leitura, sejam a estrutura e a forma do poema, uma vez que aquele se sente, inevitavelmente, provocado e incomodado pelo texto. São a repetição e a circularidade a causarem o efeito de estranhamento, que inicialmente pode levar a redundâncias. Se for lido cuidadosamente, todavia, percebe-se que este não é redundante – a repetição desnecessária –, pois as ideias trazidas nos versos repetidos ora reforçam as imagens, ora as atualizam. Assim, primeiramente, a partir de uma leitura atenta apenas à disposição dos versos, pode-se perceber que a repetição gera a informação causadora da novidade, do sentido inesperado. Um segundo ponto de estranhamento da obra dá-se na sintaxe utilizada, a qual subverte a norma culta que elege como correta a forma “havia uma pedra”, ao invés do “tinha uma pedra”. O importante para a leitura do poema a partir desse aspecto puramente linguístico pode recair na ideia de que a “pedra” é algo pertencente ao “caminho”, indissociável desse – interpretação que não seria sustentada se o verbo “haver”, semanticamente carregado de mobilidade e sobreposição, estivesse relacionado à “pedra”. Outro aspecto formal a ser observado recai no quiasmo existente entre os segundo e quarto versos (“tinha uma pedra no meio do caminho” e “no meio do caminho tinha uma pedra”, respectivamente), nos quais dáse o quiasmo pelo cruzamento de grupos sintáticos paralelos e, no meio destes, há o verso nico “tinha uma pedra”, que inclui-se ao quiasmo tomando a posição central. Disso pode-se interpretar que a imagem da pedra no meio do caminho é reforçada ao isolar-se (destacar-se) a pedra entre o caminho – ou os caminhos – cruzado pela disposição dos versos anterior e posterior. Partindo-se para a segunda estrofe, percebe-se que esta propõe ao mesmo tempo uma quebra no poema e a retomada da estrofe anterior. A quebra, na ordem da expectativa frustrada do leitor, acostumado com a repetição dos versos precedentes, se dá pelos versos “Nunca me esquecerei desse acontecimento /na vida de minhas retinas tão fatigadas”. A partir desses versos, o tom de rememoração e subjetividade do eupoético surge em oposição à imagem realista da pedra no caminho GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 291 apresentada até então. Na sequência do poema, contudo, tanto a subjetividade quanto a objetividade unem-se quando há a repetição dessas duas ideias do poema em um bloco nico: “Nunca me esquecerei que no meio do caminho /tinha uma pedra /tinha uma pedra no meio do caminho /no meio do caminho tinha uma pedra.” Mais uma vez, a imagem da pedra do caminho é reforçada, porém agora atualiza-se na observação subjetiva do narrador. Até esse momento, nota-se que as considerações não saíram, por assim dizer, do texto enquanto estrutura fechada em si, de modo que a relevância dada aos aspectos linguísticos, estruturais e formais foi capaz de gerar interpretações plausíveis do poema, no sentido de serem verificáveis no mesmo. Tais interpretações, por outro lado, não sustentam toda a obra, mas podem sustentar, ou seja, servir de base, para uma análise mais completa e satisfatória. A partir desses elementos considerados, portanto, pode-se questionar os sentidos empregados pelas imagens principais – senão únicas – da pedra e do caminho. Uma leitura mais imediata poderia acusar a pedra como símbolo das dificuldades que o ser humano encontra no caminho, este, por sua vez, analogia para a vida. Tal leitura simples (e não pejorativamente simplista) parece ser mesmo uma própria intentio operis, para citar Eco, visto que nesse poema se mostram talvez mais interessantes as peculiaridades da composição, gerando o seu efeito estético. Acrescido a isso, se recuperado um dos intertextos desse poema, a interpretação até então praticamente reduzida das alegorias logra em importância. O intertexto, ou seja, o texto com o qual é possível relacionar o texto primeiro – o poema No meio do caminho de Drummond –, é A divina comédia, de Dante Alighieri, ou, no caso, os primeiros versos da obra: Nel mezzo del camin de nostra vita mi retrovai por una selva oscura: ché la viritta via era smarrita. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 292 (A meio caminho de nossa vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta a minha via perdida.)3 Dessa associação intertextual não se evidencia outra leitura senão a ênfase na pedra drummondiana, agora fortemente considerada em oposição à “selva” dantesca, a qual é possível transpor, inclusive com a ajuda de um guia, Virgílio. A pedra, ao contrário, é intransponível, ela pertence ao caminho (ideia, como já mencionado, dada pelo ver ter em contraste com o verbo haver, que dá mais mobilidade ao seu objeto sintático). Assim, pode-se dizer que a leitura alegórica feita somente em relação ao poema de Drummond, se antes desprivilegiada, adquire maior significado para o leitor ao ser complementada pela ideia dantesca. Feitas tais considerações acerca do exemplo literário de Drummond, faz-se mister apontar para o exercício hermenêutico aqui apresentado, pensado ciclicamente de modo às conjecturas apontadas serem verificadas na própria obra, tendo-se que assim pode ser representada a ideia de limites interpretativos. Tais limites, contudo, não restringem-se à obra, uma vez que esta é, ao mesmo tempo, “fechada” como um produto estrutural estético e “aberta” quanto aos seus sentidos, sentidos esses textuais e/ou intertextuais, todos válidos desde que ampliem o alcance da obra em questão. Conclusão No âmbito do ensino da literatura, a posição do leitor, já destacada pelas teorias literárias modernas, assume a dimensão do sujeito-leitor. Com efeito, o presente trabalho vê o sujeito-leitor como aquele que exerce a leitura com “liberdade consciente”, para citar Eco. Tal liberdade associa-se diretamente com a autonomia adorniana, o que consiste basicamente em considerar esse sujeito em formação um portador de habilidades e capacidade crítica para preocupar-se com a potencialidade da linguagem, com a coerência dos sentidos produzidos e ainda com as dimensões sócio-histórico-filosóficas trazidas pelos textos literários, entendidos também como construtos culturais. 3 Tradução de Ítalo Eugênio Mauro (em A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 1998. 3 volumes). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 293 Destacado isso, salienta-se que os aspectos teóricos econianos aqui brevemente apresentados têm por intuito menos pôr em crise os complexos critérios interpretativos que propor hipóteses conceituais a serviço do ensino de literatura e da problematização dos contrapontos que o circundam. Assim, esse trabalho quer assegurar que muito dos estudos de Eco podem ser empregados pelos professores em benefício da formação de sujeitos-leitores autônomos e competentes, cuja atuação deve ser pensada, portanto, a partir da relação com o texto, privilegiando as “boas” leituras do mesmo. Acrescido a isso, admite-se que, de um modo geral, ao lidar com o texto enquanto construção linguística e ao debruçar-se sobre os signos o sujeito-leitor desenvolverá a “alfabetização literária”, apoderando-se da linguagem artística, tornando-se um usuário competente, “mesmo que nunca vá escrever um livro: mas porque precisa ler muitos.” (LAJOLO 1993, p. 106) Por fim, ainda que toda teoria apresente impasses e limitações, as poucas proposições de Eco discorridas nesse texto procuram dar conta de aspectos que possam ser de alguma forma relevantes ao se pensar o ensino de literatura de forma crítica e analítica. Certamente, outras teorias também devem ser consideradas, uma vez que a atuação docente qualificada requer o conhecimento de inúmeros aspectos caros ao ensino. OPEN WORK, BUT NOT THAT MUCH: INTERPRETATIVE LIMITS AS COLLABORATORS OF THE EDUCATION OF READERS Abstract: By identifying the theoretical assumptions that support the limits of interpretation of the literary text - considered "open" due to its ambiguity and plural signification -, this work is concerned with some considerations on how such issues raised by the theory can contribute to the formation of readers. To do so, this work is supported especially by studies of Umberto Eco, through covering some works by him who is one of the great thinkers about the artistic significance. Besides Eco, this work runs over names as Hans Robert Jauss and Hans-Georg Gadamer, emblematic figures of reception theory and hermeneutics which promote the appreciation of the reader at the expense of empirical authorship, aspect which goes against the tradition of teaching literature guided by historical and biographical approaches remainder of the 19th century. Finally, it is concluded each all literary text at the same time enhances and limits certain readings, whereas the limits of interpretation are imposed by inner text. The text, in its turn, is but the object of the reader, who is the subject of interpretive practice, for whom the limits of meaning should be as important as the meanings themselves resulting from reading. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 294 Keywords: Literature teaching. Aesthetics of reception. Hermeneutics. Open work. Readers. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ANDRADE, Carlos Drummond de. 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Dessa forma, o sujeito que escreve o poema não apenas destrói o sentido funcional das palavras, mas também se assassina, no instante em que sua ação leva-o à exclusão, a um não lugar na coletividade. A escrita de Bataille forma, assim, uma espécie de texto canceroso, cujas palavras se multiplicam, ao se dispersarem nas suas próprias feridas, nos cortes que abrem sobre a página. Este artigo objetiva analisar de que forma os poemas de Georges Bataille criam uma desordem que aponta para um lugar inominável, onde os sentidos se perdem, já que o poema é levado à condição de objeto sagrado, no instante em que aquele que o sacrifica nos conduz ao desconhecido, à angústia de uma nudez a partir da qual a morte se abre soberana, imune a qualquer projeto ou plano moral. Palavras-Chave: Sacrifício. Morte. Informe. Nonsense. Bataille. Ler os poemas de Georges Bataille é o mesmo que estar diante de uma ferida que não pode ser fechada. Aberta, ela nos obriga a olhar para a escuridão que nela se esconde, sol negro que lacera a medida, fazendo da página o espaço do desvio, da transgressão. Cada palavra, aí, mostra seus interstícios, a noite que a rodeia, a imensidade de sua própria sombra. Os poemas de Bataille, nesse sentido, nos cegam, não com uma suposta beleza idealizada, concebida pelos jogos da razão. Não, seus poemas nos cegam com o desequilíbrio do verso, a insuficiência e a desfiguração de suas palavras. Rasgadas, elas não se prendem a um sentido claro e definido, mas se oferecem, ambivalentes, como naturezas informes. Como Bataille nos diz em uma das edições de Documents: Um dicionário começa quando ele não mais fornece o significado das palavras, mas suas funções. Assim, o informe não é apenas um adjetivo que dá um significado, mas um termo que serve para 1 Fundação Helena Antipoff. Faculdade de Letras. Ibirité. Minas Gerais. Brasil. CEP: 32400-000. E-mail: [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 297 desclassificar todas as coisas, exigindo que cada uma delas tenha a sua forma. O que o informe designa é o incerto que se espalha por todos os lugares, como uma aranha ou um verme. De fato, para os acadêmicos serem felizes, o universo precisaria ganhar forma. Todos os filósofos não têm outro objetivo: a matéria deve servir como um terno, um terno matemático. Por outro lado, ao se afirmar que o universo se assemelha a nada, somente o informe é relevante para se dizer que o universo é algo como uma aranha ou catarro. (BATAILLE, 1970, p. 217) Aquele que se atreve a ler os poemas de Bataille depara-se, portanto, com essa zona incerta, onde a lógica e a racionalidade não têm mais espaço, onde a gargalhada, o delírio e a sujeira imperam como um processo de contra-operação: “a prática de uma atitude de pensamento fadada ao fracasso, descontentamento e imperfeição. Nada mais do que uma resistência contra os tediosos e formativos efeitos do pensamento racional” (BILLES, 2007, p. 28). Nesse sentido, a contra-operação é uma atitude que busca propositalmente a imperfeição, o fracasso, como forma de tornar indistinguíveis o sagrado e o profano. Ela é o próprio informe colocado em ação, uma vez que a distinção não tem mais vez e o que prevalece é o que podemos chamar de orgia da forma. O ataque que Bataille dirige aos acadêmicos consiste exatamente em criticar os moldes, os limites impostos pelos vários campos do conhecimento, o “terno matemático” de que ele nos fala. O informe assinala, portanto, a desistência de dominar a matéria. Mas para que se vá ao encontro dessa matéria informe, é necessário abraçar os caminhos da transgressão. E para que a transgressão ocorra, a contradição deve ser percebida como a afirmação daquilo que é profano, ou seja, a nossa própria existência. No instante em que o pensamento se volta para o dualismo, não há espaço para conciliação ou redenção, mas para o fracasso. Por isso, pensar e conceber o poema sob os desígnios do informe deixa, na página, como se fosse ferida, uma palavra sempre aberta, fundada no descontínuo, no fragmentário. O desconhecido, aquilo que não tem resposta, passa a dominar a linguagem e o que se estabelece é uma tensão não resolvida entre nascimento e morte, entre o transitório e o permanente. Longe de uma síntese, o informe abraça simultaneamente os dois termos, sem que haja uma conclusão, um fim. O informe, portanto, não pode ser fechado em uma definição precisa, pois fazer isso seria ir contra a proposta de Bataille, que é a de romper com os significados dicionarizados, catalogados. Ao se encarar o GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 298 informe como uma operação, os significados das palavras se tornam deslizantes, escorregadios, à imagem da aranha ou do catarro. Os limites, aí, são rompidos, em favor da contestação da ordem, daquilo que é dado como certo. Não há mais um centro, no qual a razão se estabeleça, ao contrário, é o incerto que passa a ser o fundamento da existência, no momento em que as linhas que delimitam o contorno desabam e interno e externo se confundem. O informe representa, assim, o colapso da identidade pensada em termos cartesianos, pois permite a imbricação entre sujeito e objeto, um golpe no discurso lógico e na razão. Ao dizermos que somente o informe é relevante para se entender que o universo se assemelha a nada, estamos muito próximos de outro termo caro a Bataille: o impossível. O impossível (L’Impossible) é o nome dado à segunda edição do texto originalmente intitulado Ódio da poesia (Haine de la poésie). O livro é constituído de três partes: “Uma história de ratos”, “Dianus” e “A Oresteia”. A ltima parte, na primeira edição de 1947, abria o livro. Ela se constitui basicamente de poemas e de textos voltados para a reflexão poética. A mudança da ordem do livro assim como a de seu título são significativas e, em sua explicação do porquê de tê-las efetuado, Bataille nos dá pistas para o entendimento de qual a relação entre o impossível e o ódio da poesia: A primeira vez que publiquei este livro quinze anos atrás, dei-lhe um título obscuro: Ódio da poesia. Pareceu-me que a verdadeira poesia só poderia ser alcançada pelo ódio. A poesia não possui nenhum significado poderoso a não ser pela violência da revolta. Mas a poesia apenas alcança essa violência pela evocação do impossível. Quase ninguém entendeu o significado do primeiro título, é por isso que eu preferi finalmente chamá-lo de O Impossível. (BATAILLE, 1971, p. 101) Ao ligar o ódio da poesia à violência da revolta, Bataille articula uma poesia baseada na subversão, naquilo que escapa do reinado da ciência, do útil, do real. Para entender a relação do ódio da poesia com o impossível, devemos ter em mente que o impossível concebido por Bataille é o que se impõe acima de todos os direitos, “uma convulsão que envolve todo o movimento dos seres, [...] que vai do desaparecimento da morte à fúria voluptuosa que, talvez, seja o significado do desaparecimento” (BATAILLE, 1971, p. 102). Essa f ria voluptuosa se baseia em um contínuo movimento de resistência à satisfação. Seu alvo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 299 nada mais é do que a própria forma, entendida em termos de perfeição humana. O impossível, nesse sentido, é o ilimitado, aquilo que se oferece acima de todas as restrições. Quando Bataille escreve, no prefácio de A literatura e o mal, que a literatura é uma forma penetrante do mal e que para nós ela tem o valor soberano (BATAILLE, 1989, p. 9-10), podemos concluir que para alcançar essa soberania, a literatura deve se utilizar da violência como uma maneira de quebrar a integridade dos corpos e das coisas, permitindo que a poesia se cumpra em contradição permanente, levada ao limite do impossível. Por isso, a literatura, pensada em termos de soberania, começa quando a possibilidade da vida abre-se sem limite; de acordo com Maria Christine Lala, “Bataille, através da prática do comportamento soberano, remove a barreira do limite que é imposto, no sentido de resgatar o sentido autêntico do sagrado, e o sentido verdadeiro da poesia retornado como o seu oposto” (LALA, 1995, p. 113). Esse sentido autêntico do sagrado está na coexistência dos contrários, na integração e desintegração das formas, naquilo que é o próprio objeto de horror: O que é sagrado, sem dúvida, corresponde ao objeto de horror do qual eu falei, um fétido, pegajoso objeto sem limites, que está repleto de vida e ainda é o signo da morte. É a natureza a ponto onde sua efervescência reúne intimamente a vida e a morte, onde está a morte devorando a vida com substância descomposta. (BATAILLE, 1976, p. 83) A poesia vista como uma das formas do sagrado não é apenas uma mera representação da reunião de forças contrárias, mas a própria presença delas, no instante em que se torna resto, “pegajoso objeto sem limites”. Mas como conceber a poesia como resto, nutrir seu discurso com um ódio capaz de lhe dissolver as formas a ponto de os seus significados se tornarem monstruosos, irreconhecíveis? Em A noção de despesa, livro que constitui a primeira parte de A parte maldita, Georges Bataille relaciona o sagrado a um estado de perda: “O sacrifício não é outra coisa, no sentido etimológico da palavra, que não a produção de coisas sagradas (...) antes de tudo, fica claro que as coisas sagradas são constituídas por uma operação de perda” (BATAILLE, 1975, p. 31). Mas como se dá essa operação de perda no objeto sagrado? Na Teoria da religião, um dos livros que compõem a Suma ateológica, Bataille nos explica de que maneira um ser, na condição de coisa, torna-se sagrado: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 300 O princípio do sacrifício é a destruição, mas, ainda que algumas vezes ele chegue a destruir inteiramente (como no holocausto), a destruição que o sacrifício quer operar não é o aniquilamento. O que o sacrifício quer destruir na vítima é a coisa – somente a coisa. O sacrifício destrói os laços de subordinação reais de um objeto, arranca a vítima ao mundo da utilidade e a entrega ao do capricho ininteligível. (BATAILLE, 1993, p. 37) Talvez, por isso, não seja estranho que Bataille aborde a questão da identidade em um texto ao qual dá o título de “Sacrifícios”. Ao longo da leitura desse texto, não encontramos qualquer referência explícita aos rituais de sacrifício. O tema do texto perpassa pela noção de identidade, de um eu que se debruça sobre o vazio ante a iminência da morte. Na verdade, o que Bataille faz, ao abordar a experiência do eu e de sua improbabilidade, é discutir de que forma a morte não se opõe à existência, já que “a aproximação da podridão liga o eu-que-morre à nudez da ausência” (BATAILLE, 1973, p. 87). Se o eu se projeta para fora de si, criando, assim, o objeto de sua paixão, em oposição a esse objeto está a catástrofe, pois “o pensamento vive a aniquilação que o constitui como uma vertiginosa e infinita queda, e assim não tem somente a catástrofe como seu objeto, sua estrutura é a catástrofe, ela se absorve no nada que a suporta e ao mesmo tempo deixa escapar” (BATAILE, 1970, p. 94). O sacrifício seria, portanto, o momento em que, para o euque-morre, é revelada a existência ilusória do eu, a inutilidade dos objetos que o rodeiam, como se tivesse diante dele “os preparativos de uma execução, já que a existência das coisas não pode fechar a morte que ela traz, mas que ela mesma se projetou nessa morte que a encerra” (BATAILE, 1970, p. 96). A destruição do eu é o sacrifício que o liberta. Nesse sentido, a irrealidade do mundo deve ser corroída, para que a natureza da existência esteja em concordância com a natureza extática do eu-que-morre. A forma como Bataille articula esse tipo de sacrifício em sua obra se faz a partir da unificação entre aquele que sacrifica, o sacrificador, e o que é sacrificado, a vítima. A aspiração de Bataille por “inventar uma nova forma de crucificar a si mesmo” (BATAILLE, 1973, p. 257) se dá como resposta a duas opções frente ao sacrifício: “a tragédia propõe ao homem identificar-se com o criminoso que mata o rei; o cristianismo propõe identificar-se com a vítima, com o rei destinado a morrer” (BATAILLE, 1995, p. 196). A saída para essa antinomia, Bataille a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 301 encontra no mito de Dianus, nome que utilizou como pseudônimo na primeira edição de O culpado e personagem-narrador em O Impossível. A escolha por Dianus reúne tanto a figura dionisíaca do acéfalo quanto a de Cristo, não a figura institucionalizada pela Igreja Católica, mas a vítima sacrificial cujo renascimento advém do corpo sujo, excremental, mutilado. Dessa forma, o mito de Dianus dá a Bataille tanto a chance de unificar esses opostos quanto de questionar a ambivalente natureza do eu. De acordo com Sir James George Frazer, em O Ramo de ouro, Orestes teria sido o primeiro Dianus, pois, ao chegar ao bosque de Nemi, assassinou o sacerdote que lá reinava e estabeleceu o culto à deusa Diana. Esse ato deu início a um estranho ritual: aquele que assassinasse o sacerdote seria também assassinado por seu sucessor. Dessa forma, o indivíduo se tornava ao mesmo tempo assassino e sacerdote, sacrificador e vítima. Bataille concebe o sacrifício como uma forma de apagar as fronteiras existentes entre o eu-que-mata e o eu-que-morre. É o que podemos constatar em um pequeno poema chamado “O livro”: Eu bebo em tua ferida e estendo tuas pernas nuas eu as abro como um livro onde leio o que me mata. (BATAILLE, 2008, p. 149) O encontro amoroso se dá através dessa ferida, na qual o sujeito faz do ler não uma forma de domínio sobre o outro, mas de perda, de tal forma que o assassino e sua vítima tornam-se indiscerníveis. O dilaceramento (déchirure) rompe com a homogeneidade pessoal, projeta para o exterior um eu que nega a sua própria existência a partir da relação que mantém com o outro. Bataille deixa isso bem claro quando se nomeia Dianus, em O culpado: “aquele que se chamava Dianus escreveu estas notas e morreu” (BATAILLE, 1973, p. 239). Como bem observa Alexander Irwin, Bataille, “ao escrever sua experiência interior, é tanto soberano e assassino, renegado matador de deuses e salvador autoaniquilante” (IRWIN, 2002, p. 31). Nesse sentido, esse poema, assim como outros de Bataille, pode ser lido como um sacrifício, no qual os papéis de sacrificador e vítima são unificados a partir de um gesto em que vida e morte não se opõem, se complementam: “o sacrifício é a vida com a morte confundida” (BATAILLE, 1980, p. 79). A ang stia da vítima e a do assassino se tornam a mesma, pois, para que haja sacrifício, é necessário antes de tudo que ocorra uma identificação entre eles. Pois se a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 302 vítima é o objeto e o sacrificador, o indivíduo, a destruição do objeto acarreta a desintegração da identidade dos envolvidos. Já que o matar e o morrer são solidários, não há destruição do objeto, se não houver objeto e aquele que exerce o trabalho de destruí-lo: “A morte desorganiza a ordem das coisas e a ordem das coisas nos mantém. O homem tem medo da ordem íntima que não é conciliável com a das coisas” (BATAILLE, 1993, p. 43). A arte, tudo aquilo que é engendrado tendo em vista a poeisis, é a própria materialização da angústia, no sentido de que compactua com morte, ao destruir todo e qualquer aspecto de utilidade de sua formação. O eu que participa desse processo é ao mesmo tempo o sacrificador e a vítima, já que o que está em jogo é a dissolução de sua identidade, que se realiza como estado de perda: O termo poesia, que se aplica às formas menos degradadas, menos intelectualizadas da expressão de um estado de perda, pode ser considerado como sinônimo de despesa: significa, com efeito, do modo mais preciso, criação por meio da perda. Seu sentido, portanto, é vizinho do de sacrifício. (BATAILLE, 1975, p. 32) Para aquele que faz o poema não há qualquer retorno material, uma vez que o risco aí assumido exige que empenhe sua própria existência na representação de seus escritos. Isso não quer dizer que o poema seja uma cópia ou reflexo de seu criador, mas um resíduo, matéria destruída, palavras sagradas “limitadas ao nível de beleza impotente, que retiveram o poder de manifestar toda soberania” (BATAILLE, 1988, p. 342). O furor de escrever coloca-se assim a serviço do desespero, no sentido de que a palavra só pode ser utilizada em função de sua própria perda, do abismo que cava. Dessa forma, o sujeito que escreve o poema não apenas destrói o sentido funcional das palavras, mas também se assassina, no instante em que sua ação leva-o à exclusão, a um não-lugar na coletividade. Poderíamos arriscar a dizer, invertendo o postulado de Keats de que o poema é a máscara do poeta, que, na verdade, o poema é onde ele se sacrifica, onde sua identidade não desaparece, mas é despedaçada, para que, a partir de suas carnes, seus ossos, suas vísceras, o poema surja. O resultado disso tudo é que os textos de Bataille podem ser vistos como orgânicos. Conforme bem observa Denis Hollier, o próprio dicionário crítico de Bataille se ampara em um discurso anatômicoanalítico: “cada artigo, de fato, desloca o corpo, isola o órgão que trata e GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 303 desconecta-o de seus suportes orgânicos, transformando-o no lugar de uma concentração semântica através da qual a parte ganha o valor que está amarrado ao todo” (HOLLIER, 1989, p. 78). Cada artigo, assim, desarticula o todo, criando insubordinação, ao fazer com que as relações hierárquicas desabem frente à parte isolada. Em vez de se apagar no todo, a parte se torna aquilo que Hollier chama de “obscenidade fragmentária”. Verbetes tais como o dedão do pé, o olho, a boca, que Bataille cunhou para o dicionário, são exatamente onde o discurso anatômico ganha forma, já que a parte, agora isolada do corpo, não tem mais o propósito de servi-lo como fundamento de uma imagem nica, integral: “O dicionário crítico, em Documents, através de concentrações semânticas, produz um tipo de ereção simbólica do órgão descrito, uma ereção da qual, no fim, o órgão, como que se por cissiparidade, se desprende de seu suporte orgânico” (HOLLIER, 1989, p. 79). Mas é possível perceber que essa visão fragmentada do corpo não se restringe ao dicionário crítico. Em alguns poemas que compõem O Arcangêlico, Bataille isola partes do corpo, de tal forma que elas se tornam seres autônomos: Um longo pé nu sobre minha boca um longo pé contra o coração pé de whisky pé de vinho pé louco para esmagar ó meu chicote ó minha dor calcanhar suspenso me pisando choro por não morrer ó sede insaciável sede deserto sem saída (BATAILLE, 2008, p. 34) Liberto do corpo, o pé não se sustenta como uma metáfora, uma imagem em substituição a outra, mas como aquilo que oblitera o sentido, rompe com a ordem do discurso. Dessa forma, o pé deve ser apenas o pé; desprendido do corpo, ele se torna bêbado, sem direção, esmagando todo e qualquer sentido, abrindo caminho para o nonsense. Ora, o nonsense é o que possibilita nutrir o discurso poético com um ódio capaz de lhe dissolver as formas, de maneira que suas imagens se tornem desfiguradas, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 304 quase inapreensíveis. Para entender melhor como essa desfiguração se dá, talvez seja interessante nos determos em uma passagem de O Impossível, no qual Bataille escreve: “a poesia que não se eleva ao nonsense da poesia é apenas o vazio da poesia, é apenas poesia bonita” (BATAILLE, 1971, p. 220). Para evitar essa poesia bonita, o poeta deve escapar do mundo do discurso e aceitar o excesso como “o plano onde cada elemento se converte em seu contrário incessantemente” (BATAILLE, 1971, p. 219). O que se tem, portanto, é uma desordem a partir da qual a linguagem encontra o nonsense, aquilo que excede o mundo das consequências felizes. É o nonsense, na concepção de Bataille, que possibilita que o sentido se quebre e fique suspenso, que o poema não se torne apenas uma coisa bonita, em conformidade com o vazio do que é útil. O nonsense seria, assim, uma forma de quebrar, internamente, as engrenagens do discurso. É o que podemos ler em A oréstia: “eu me aproximo da poesia: mas perdê-la” (BATAILLE, 1971, p. 218). Aqui, a tradução não dá conta da violência contida no verbo manquer, uma vez que ele pode ser traduzido não só como perder, mas também como desfigurar, desrespeitar, estragar, falhar, faltar, ofender. A aproximação da poesia resulta, portanto, no ódio a ela. A partir desse ódio, o discurso é reduzido a restos, de tal maneira que a linguagem fracassa, desmorona. Estamos, assim, no extremo do possível, onde a necessidade de dilacerar o discurso nos remete a um lugar de extravio, de não saber. Em vez de comunicar algo, o poema se afirma naquilo que escapa ao entendimento. Seu fim é a imperfeição: “o sentimento que tenho do desconhecido do qual falei é sombriamente hostil à ideia de perfeição (a servidão mesma, o ‘deve ser’)” (BATAILLE, 1972, p. 16). Se o poema é imperfeito e foge à utilidade, o desconhecido é tanto aquilo que o ampara quanto o que se projeta dele como horizonte do impossível. No entanto, o desconhecido que o poema nos oferece não surge do nada: “o poético é o familiar dissolvendo-se no estranho, e nós mesmos com ele. Ele nunca nos desapossa totalmente, pois as palavras, as imagens dissolvidas, estão carregadas de emoções já sentidas, fixadas a objetos que as ligam ao conhecido” (BATAILLE, 1972, p. 17). Para que o poema se torne desfigurado, maldito, é necessário que suas palavras tenham o sentido obliterado, se tornem inacessíveis, de maneira que jamais constituam um caminho a ser trilhado a fim de se alcançarem determinados objetivos, o que seria a total rendição do poema ao discurso lógico, utilitário do dia a dia: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 305 Dente de ódio tu és maldita quem é maldita pagará tu pagarás tua parte de ódio o horrível sol tu morderás quem é maldito morde o céu comigo tu rasgarás teu coração amado de pavor teu ser estrangulado de tédio tu és amiga do sol não há nenhum repouso para ti teu cansaço é minha loucura (BATAILLE, 2008, p. 49) A angústia, que o poema gera a partir do desconhecido, não ocorre de repente, ela se faz na gradual desfiguração do mundo ao nosso redor. A perda de sentido do poema, o nonsense, é a entrada ao desconhecido, mas isso não quer dizer que o conhecido seja esquecido: “a imagem poética, mesmo se ela leva o conhecido ao desconhecido, prende-se, no entanto, ao conhecido que lhe dá corpo, e ainda que ela o dilacere e dilacere a vida nessa dilaceração, se fixa a ele” (BATAILLE, 1971, p. 170). Dilacerar o conhecido não é negar-lhe a existência, mas deslocá-lo, deformá-lo, de tal maneira que o discurso lógico que o cerca desabe. Nesse sentido, de acordo com Bataille, “a poesia é um termo mediador, ela esconde o conhecido no desconhecido” (BATAILLE, 1971, p. 222), ou seja, a angústia que o poema nos oferece surge da tensão entre aquilo que nos é familiar e o que nos foge à compreensão. Como um “entre” a poesia conjuga duas realidades, o conhecido e o desconhecido, sem chegar a uma síntese. À continuidade de uma palavra interrupta, esférica, surge a necessidade de uma linguagem de ruptura, descontínua, fundada na fragmentação. O desconhecido, a questão sempre aberta, se estabelece nessa tensão não resolvida entre a continuidade e a descontinuidade. A poesia, articulada como forma de transgressão, seria, assim, o movimento sem fim, no qual o texto se torna, pelo excesso, fracasso. O discurso poético, nesse sentido, não é só a possibilidade de conjugar o ser pela subtração, determinado por “um poder, que tudo pode, pode GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 306 inclusive isso, suprimir-se como poder” (BLANCHOT, 2007, p. 192), mas a afirmação da obra que se constrói por suas ruínas, por sua incompletude, pela proposital incapacidade de se sustentar em seu dizer. O poema, dessa forma, se concretiza a partir de um errar que o mantém no limite de um não saber, pergunta aberta pelo infinito da questão: “poder enfim não saber nada, ou antes, se eu não sei nada, é que nenhuma questão pode ser feita” (BATAILLE, 1988, p. 530). O ódio à poesia torna-se então esse tempo sempre presente, no qual os limites da forma desmoronam, para nos lançar nessa afirmação que não se afirma, que é a morte. A escrita de Bataille forma assim uma espécie de texto canceroso, cujas palavras se multiplicam, ao se dispersarem nas suas próprias feridas, nos cortes que abrem sobre a página. Daí a proliferação de sentido, já que nesse texto orgânico, o câncer não só ameaça a continuidade como causa rupturas ao longo do discurso. O texto se torna um mergulho no desconhecido, o que é possível apenas quando se tem em mente que o nonsense é uma forma de levar a palavra a se afirmar além de si mesma. O que temos, então, são palavras cegas que dilaceram o discurso lógico, à medida que o entendimento é levado à exaustão de seus sentidos. Mas para que se chegue a essa palavra cega, é necessário alcançar o limite onde o não saber é ainda saber: Há no entendimento um ponto cego (tache aveugle): que lembra a estrutura do olho. No entendimento, como no olho, só se pode percebê-lo com dificuldade. Mas, enquanto o ponto cego do olho é sem consequência, a natureza do entendimento quer que o ponto cego tenha, em si mesmo, mais sentido do que o próprio entendimento. Na medida em que o entendimento é auxiliar da ação, o ponto é aí tão negligenciável quanto ele o é no olho. Mas, na medida em que o homem considere a si mesmo, no conhecimento, eu diria uma exploração do possível do ser, o ponto absorve a atenção: não é mais o ponto que se perde no conhecimento, mas o conhecimento nele. A existência dessa forma fecha o círculo; mas ela não pôde fazê-lo, sem incluir a noite, de onde ela só sai para retornar a ela. Como ia do desconhecimento ao conhecido, lhe é necessário se inverter no topo e retornar ao desconhecido. (BATAILLE, 1973, p. 129) Nesse ponto cego, que o conhecimento negligencia, a palavra mergulha na escuridão, ultrapassa a medida de si mesma, para chegar ao outro lado do discurso, de forma a se exceder naquilo que a mantém viva: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 307 o sentido. É o que nos diz Bataille em O Impossível: “Quando aceitar a poesia troque-a pelo seu contrário (ela se torna mediadora de uma aceitação)” (BATAILLE, 1971, p. 218). Esse contrário da poesia, sua contraparte mediadora, se estabelece, quando a palavra se torna cega, ou seja, a partir da multiplicidade e do esgotamento de seus sentidos. Se a poesia torna-se mediadora, no sentido de que se abre à heterogenia, a metáfora já não tem obrigatoriamente a função de estabelecer identidade entre os seres, pois o que se quer é a indistinção das coisas, o entre-lugar onde a reversibilidade rompe com a integralidade da palavra, comprometendo os seus significados. Apaga-se a identidade, impede-se a transposição. Cega, a palavra abraça o excesso, o equívoco, até se tornar perda. Mas isso não quer dizer que a transposição desapareça, pois, na verdade, ela se abre múltipla, emaranhada em si mesma. Os poemas de Bataille nos levam para esse lugar de perda, onde o desconhecido se afirma a partir dos destroços do discurso lógico. O que se revela, assim, é uma desordem amparada na morte, na desintegração que esta proporciona, no instante em que a palavra desorienta, rompe com a medida dos significados. O nonsense passa a ser o questionamento de todas as coisas indiferentes ao fracasso, ao desejo de se dilacerar naquilo que nos olha e buscamos ver, já que o desconhecido mantém a estranheza mesmo quando algo nos é familiar. A angústia gerada por esse movimento articulado pelo desconhecido se fundamenta, portanto, em uma palavra inacabada, aberta àquilo que a questiona, sendo ela questão que não se formula, que se perde na morte que nomeia, ao evocar o que está além. É a ang stia do enigma, do “eu” transformado em esfinge. A palavra, nessa perspectiva, não é salvadora, mas, antes, desnorteadora, pois o enigma se funde a ela, de tal forma que a escrita se realiza pela impossibilidade de assinalar qualquer resposta e pela própria falta que a mantém. Finita e ilimitada, a palavra poética oferece em sacrifício as coisas que nos traz, sob a condição de colocá-las sob nossas sombras, de fazer de nossos questionamentos os labirintos nos quais as perderemos: INSIGNIFICÂNCIA Adormeço a agulha de meu coração choro uma palavra GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 308 que perdi abro o contorno de uma lágrima onde a madrugada morta se cala. (BATAILLE, 2008, p. 129) No poema acima, retirado dos Poemas eróticos, o espaço das palavras passa a ser o da perda, no qual todas as representações se ajustam a partir da noite, da morte. As palavras que compõem os versos “a agulha/de meu coração” só podem existir como imagens precárias, solicitadas apenas para morrer. Por isso, na palavra perdida, o que se quer é o ilimitado, aquilo que soberanamente não se restringe a nenhuma forma. A morte, assim, desempenha um papel crucial no poema, pois é ela que permite não só que as identidades sejam apagadas, mas que o impossível, o contorno rompido de uma lágrima, possa existir. Em A parte do fogo, Blanchot diz: “somente a morte me permite agarrar o que quero alcançar; nas palavras, ela é a nica possibilidade de seus sentidos” (BLANCHOT, 1997, p. 312). Assim, as palavras apontam para a morte, a partir do momento em que não somos mais capazes de nos apoiar sobre o significado do poema. A escrita nos oferece um entendimento da morte não como algo similar à palavra, mas como parte integrante dela, de tal forma que morte e palavra nos levam a questionar o próprio saber, tendo o ser como lacuna de si mesmo. Mas, para isso, é necessário esclarecer que essa escrita só pode se articular a partir de sua própria incompletude. Esse sentido de incompletude torna-se evidente na escrita de Bataille, no instante em que, inapreensível, a morte torna-se representação que excede a própria representação, questão que ultrapassa a possibilidade de questionar. A morte seria, assim, uma forma de evitar que o poema se torne um mero discurso amparado em um jogo de semelhanças, uma vez que ela desarma todo arcabouço teórico e nos oferece apenas um campo de impossibilidades, de experiências desfeitas. Dessa forma, os poemas de Bataille geram uma angústia que é, antes de tudo, o não saber. O não saber, segundo Bataille, desnuda, revela o que até então o saber escondia. Ver através do não saber é deixar que o nonsense impere. Daí a angústia da falta de explicação, de o porquê de as coisas se apresentarem como são. Ao contrário do célebre aforismo de Nietzsche, “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 309 tornar também um monstro”, os poemas de Bataille parecem afirmar que “o ódio à poesia” é aquilo que nos incita a correr o risco de olhar para o abismo, sabendo que podemos nos transformar em monstros. O poema é a materialização desse abismo, e sua monstruosidade, sua desfiguração, em vez de nos assustar, é o que nos leva a aceitá-lo como espaço de perda, onde as palavras têm o seu sentido contestado e onde nos perdermos, dilacerados, tão incompletos quanto podemos ser. LACERATED BODIES: THE SACRIFICE OF THE WORD IN THE POETIC WORK OF GEORGES BATAILLE Abstract: The poems of the french thinker Georges Bataille affirm a place of indistinction, where words are dispersed, when they obliterate the sense, to become parodies of themselves. Think the poetry in these terms is not articulate it more as a dialogue between man and the world, but as the work in the service of despair, in the sense that the word can only be used according his own loss. Thus, the subject who writes the poem not only destroys the functional sense of the words, but also it suicides at the instant that its action leads to exclusion, a non-place in the community. The writing of Bataille thus forms a kind of cancerous text, which words are multiplied, when they disperse themselves in their wounds, in the cuts which are opened on the page. Therefore, this paper aims to examine how Georges Bataille's poems create a disorder that points to an unnamed place where the senses are lost, since the poem is brought to a condition of sacred object, at the instant who sacrifices it leads us to the unknown, the anguish of a naked, from which death opens itself sovereign, immune to any project or moral scheme. Keywords: Sacrifice. Death. Formless. Nonsense. Bataille. BIBLIOGRAFIA BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes I. Paris: Gallimard, 1970. _______________. Oeuvres complètes III. Paris: Gallimard, 1971. _______________. Oeuvres complètes V. Paris: Gallimard, 1973. _______________. Oeuvres complètes VIII. Paris: Gallimard, 1976. _______________. A parte maldita. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1975. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 310 _______________. O erotismo. Tradução de João Bénard da Costa. Lisboa: Antígona, 1980. _______________. Oeuvres complètes XII. Paris, Gallimard, 1988. _______________. A literatura e o mal. Tradução de Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. _______________. A experiência interior. São Paulo: Editora Ática, 1992. _______________. Teoria da religião. Tradução de Sergio Góes de Paulo e Viviane de Lamare. São Paulo: Editora Ática, 1993. _______________. Le pouvoir. In: Le Collège de Sociologie: 1937-1939. Organizado e apresentado por Denis Hollier. 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The hatred of poetry in Georges Bataille’s writing and thought. In: Bataille: writing the sacred. Edited by Carolyn Bailey Gill. New York: Routledge, 1995. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 311 MANOEL DE BARROS E A BUSCA PELO REENCANTAMENTO DA LINGUAGEM Suzel Domini dos Santos – UNESP 1 Susanna Busato – UNESP 2 Resumo: O presente artigo analisa, com base nas ideias filosóficas de Walter Benjamin acerca da linguagem, alguns poemas de Manoel de Barros que trazem a reflexão sobre a poesia enquanto possibilidade de restabelecimento da linguagem do homem que ocupa o tempo mítico que precede a história, linguagem caracterizada pela capacidade mágica de nomeação. Palavras-Chave: Manoel de Barros. Linguagem Adâmica. Metalinguagem. A partir do século XIX, o modo de vida capitalista e burguês estende-se pelo ocidente de forma definitiva e dominante, passando a determinar com vigor, num movimento de expansão desenfreada ao longo do tempo e do espaço, o pensamento, a cultura, a economia, a organização social, a política ocidental. Os mecanismos do interesse pelo lucro e pela produtividade, por extensão, engolem também “as almas e os objetos”, como afirma Bosi (2010, p. 164) do interior de sua posição nostálgica. Dentro desse universo que fertilizou o individualismo e a abstração e colocou em perspectiva de utilidade e valor de troca também o que é da ordem do humano, a poesia sofre um processo de marginalização e desponta como resistência. Assumindo uma postura de reação ao mundo, a poesia recolhe os resíduos da vida moderna e passa a atuar como instrumento de luta pelo restabelecimento da comunidade, da vida em comunhão do homem com o homem, consigo mesmo e com a natureza. 1 UNESP – Universidade Estadual Paulista “J lio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Mestranda em Teoria da Literatura. São José do Rio Preto – SP – Brasil – 15054-000 – [email protected]. 2 UNESP – Universidade Estadual Paulista “J lio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. São José do Rio Preto – SP – Brasil – 15054-000 – [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 312 Como não se configura como produto vendável e não se presta à publicidade, a poesia tornou-se, nesse contexto, a “outra voz” (PAZ, 1976, p. 228): a voz que, à margem, flagra as moléstias da modernização. Acuada, a poesia lança foco sobre si mesma, parecendo “condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a ind stria cultural ainda não conseguiu manipular para vender”, defende Bosi (2010, p. 165). Ainda de acordo com o autor, a poesia moderna foi induzida à estranheza e ao silêncio pelas pressões do meio históricocultural: as “formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em um meio hostil ou surdo não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista.” (p. 165). Diante de um mundo configurado pela modernização material (BERMAN, 1986), mundo que os poetas modernos enquanto pensadores de seu próprio tempo consideram em derrocada, a poesia, exercendo o papel de instrumento de resistência, assume muitas faces: Ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de Rousseau); ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia). (BOSI, 2010, p. 167; grifos no original) Manoel de Barros, poeta brasileiro contemporâneo, constrói em sua obra uma preocupação especial com relação ao fazer poético, característica que insere sua poesia em uma perspectiva auto-reflexiva. A poesia barrosiana é repleta de experimentalismos, a palavra é o foco da criação e a exploração de suas potencialidades ocorre o tempo todo. A reflexão acerca da própria linguagem é expressa, principalmente, pelo uso marcado da metalinguagem e, assim, o trabalho de elaboração do significante fica exposto nas malhas do próprio tecido poético. Nesse sentido, destacamos a metalinguagem como o elemento que move o discurso poético barrosiano; esse é um dos veios que demarcam a contemporaneidade de sua poesia e apontam para o modo como ela se coloca numa postura de reflexão crítica acerca dos aspectos formais da linguagem poética. A poesia barrosiana coloca-se na esteira da modernidade lírica, haja vista que incorpora toda a problemática referente à criação consciente da poesia e à fé no poder demiúrgico da linguagem poética. Manoel de Barros herdou da poesia moderna a consciência da GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 313 linguagem funcional como elemento que oblitera o verdadeiro ser das coisas, bem como a busca pelo reencantamento da linguagem, a tentativa de recuperação de um estado anterior, perdido e mágico, da linguagem: o efeito nomeador da palavra adâmica, cuja qualidade está em expressar a essência verdadeira das coisas pelo nome. Essa característica insere a poesia de Barros na categoria de poesia mítica formulada por Bosi (2010) que destacamos mais acima. Tendo em vista os aspectos destacados, tencionamos analisar alguns poemas de Manoel de Barros a fim de observar o modo como o poeta problematiza a questão da poesia enquanto perseguição pela recuperação do efeito mágico da palavra, o que faremos com base nas concepções de Walter Benjamin (1992) acerca da linguagem desenvolvidas no ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana, escrito em 1916. Começamos com o poema “VII” da primeira parte d’O livro das ignorãças (2010), parte intitulada “Uma didática da invenção”. O poema em questão segue transcrito: No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio. (BARROS, 2010, p. 301; grifo no original) Nos dois primeiros versos do poema, flagramos a presença de uma intertextualidade: a referência paródica ao primeiro capítulo do Evangelho segundo São João, que remete ao mito bíblico da criação do mundo pela palavra de Deus: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez.” (BÍBLIA SAGRADA, 1998, p. 134). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 314 Segundo o Gênesis, Deus criou o mundo e tudo o que nele há em seis dias pelo poder evocatório do verbo. Na conceituação de Benjamin (1992), o verbo evocatório, que tem impressa em si a vontade criadora de Deus, concebe-se como medium da criação e caracteriza-se como revelação, no sentido religioso do termo, visto que manifesta em totalidade o “puro espiritual” (p. 184), o domínio mais elevado do ser das coisas: pelo poder do verbo evocatório, essência espiritual e essência linguística fundem-se em comunhão absoluta constituindo uma unidade plena. Sendo assim, o verbo evocatório surge ainda como medium do reconhecimento: “Só em Deus existe a relação absoluta do nome com o reconhecimento, só aí o nome constitui o puro medium do reconhecimento, porque no mais íntimo é idêntico à palavra criadora” (p. 185), ou seja, constitui o próprio desígnio de Deus. Vale dizer: o nome é a essência mais entranhável da linguagem e, por ele, a essência espiritual se transporta a Deus. Após criar o mundo, Deus criou o homem. Entretanto, não o fez pelo poder evocador do verbo divino, não o subjugou ao poder da palavra, antes, criou-o a partir da matéria, do barro, e moldou-o segundo sua própria imagem e semelhança, fazendo-o senhor da natureza. Para conferir vida ao homem, Deus insuflou-lhe uma lufada de ar nas narinas, doando-lhe ao mesmo tempo “a vida, o espírito e a língua” (p. 185); diante disso, a relação de comunicação entre o homem e a natureza configura-se pela imaterialidade e pelo aspecto puramente espiritual, uma comunhão mágica: “o som é disso símbolo.” (p. 185). Da onipotência criadora da palavra de Deus, a linguagem humana assimilou o traço criador, porém, o homem nomeia as coisas a partir do reconhecimento, pois Deus fez das coisas reconhecíveis por intermédio do nome. Desse modo, o fundamento da linguagem do homem pré-queda está no reconhecimento das coisas e no exercício de conferir a elas a sua própria natureza pelo ato de nomeação. Nas palavras de Benjamin, Deus quis: libertar de si no homem a língua que lhe tinha servido como medium de criação; Deus descansou quando abandonou a si mesma no homem a sua força criadora. Essa força criadora, despojada da sua actualidade divina, tornou-se conhecimento. O homem é reconhecedor da mesma língua em que Deus é criador. [...] A infinitude de toda a linguagem humana sempre será a de essência limitada e analítica, em comparação com a infinitude da palavra de Deus, criadora e absolutamente ilimitada. (p. 187; grifos no original) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 315 Antes da queda, ou, em outras palavras, antes do homem ser expulso por Deus do paraíso por conta do pecado original, a linguagem humana era perfeita, o homem pré-queda era capaz de expressar o conhecimento absoluto das coisas pela nomeação, capaz de reconhecer as coisas e expressar sua verdade absoluta pelo nome dado a elas. Com a queda do homem, uma parte da linguagem humana foi perdida: rompeuse a comunhão harmônica e absoluta entre o homem e a natureza, entre o homem e as coisas: o reconhecimento pleno das coisas fez-se impossível e, portanto, fez-se também impossível o ato de nomeá-las a partir do reconhecimento integral de sua essência espiritual. Após a queda, o conhecimento pleno da essência espiritual das coisas não é mais comunicado na linguagem humana: só é comunicado das coisas na linguagem humana o conhecimento sobre elas que o homem transpõe em linguagem partindo de si mesmo. A capacidade de reconhecimento integral das coisas foi substituída pelo pensar e pelo experimentar, ações a partir das quais o conhecimento das coisas é gerado e transposto em linguagem. Ou seja, depois da expulsão do paraíso, o homem precisa empreender um esforço de pensamento acerca do ser das coisas para formular o conhecimento sobre elas. A definição do conhecimento, por sua vez, leva então ao reconhecimento por intermédio do signo convencionado: a linguagem representa, pela ausência, o objeto nomeado. Por esta razão, no período pós-queda pulsa em imanência o absoluto do ser das coisas. A realização do feito de se chegar à pura essência espiritual das coisas e de se conseguir transpô-la em linguagem humana levaria à revelação, ao restabelecimento da qualidade da linguagem pré-queda. O homem, porém, não pode mais recuperar tal característica por conta do pecado original: para Benjamin (1992), o pecado original consiste no conhecimento do bem e do mal, na qualidade de julgamento das coisas e do mundo que acabou por impregnar a própria linguagem. O conhecimento do bem e do mal calcou na linguagem humana três características: a sentença, por conta do julgamento; o mediatismo (a linguagem passou a ter caráter de mediação, de signo, e, portanto configura-se enquanto ausência da coisa sobre a qual se fala: não há mais o imediatismo entre a coisa e o nome, o amalgamento integral e perfeito entre coisa e nome); e, por fim, a abstração. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 316 O julgamento que impregnou a linguagem, trazendo consigo a sentença, não expressa o conhecimento da coisa nomeada em si, mas sim, um conhecimento externo à coisa: é o nascimento da palavra humana, afirma Benjamin (1992), que comunica algo que está além de si mesma. Diante do pecado original, a natureza, que não poderia mais ser, então, reconhecida e nomeada pelo homem como no tempo pré-queda, entra em um estado de tristeza: “o ser triste sente-se plenamente reconhecido pelo irreconhecível.” (p. 195). O homem pós-queda não nomeia mais as coisas pelo reconhecimento de sua essência espiritual e sim pelo julgamento, pelo conhecimento que está fora da coisa: o nome não é mais, após o paraíso, sinônimo da própria coisa que nomeia, antes, caracteriza-se como ausência da coisa nomeada. Por ocasião do julgamento como qualidade da palavra humana após o pecado original, instalou-se, de acordo com Benjamin, a diversidade. Voltando ao poema “VII”, observamos um tom rememorativo na referência à criação do mundo por Deus pelo uso do verbo enquanto medium da criação. Esse tom de rememoração percorre todo o poema, destacando-se como o elemento que motiva e justifica a busca pela recuperação do efeito mágico da linguagem adâmica que o poema coloca em foco. Pelo emprego do prefixo des- na palavra começo, logo no primeiro verso do poema, há a criação de um neologismo que distorce o termo presente na bíblia, provocando o desvio. O sentido de reversão que dado prefixo atribui à palavra começo, antes de qualquer coisa, aponta para a atemporalidade do tempo mítico do homem pré-queda. O vocábulo “verbo”, presente no primeiro verso, refere-se à palavra dotada do poder evocador. Nos versos segundo e terceiro, há a referência a um tempo outro, um “depois”, o tempo histórico do homem pós-queda, o “começo”, e a menção ao “delírio do verbo”. Depois que Deus expulsou o homem do paraíso, a propriedade mágica do verbo foi perdida e seu encanto só se faz presente no “delírio”, não mais no verbo em si: o encanto não é mais possível, apenas o reencanto pelo delírio. No quarto verso, o sujeito lírico aponta onde o delírio do verbo acontece depois da queda: na fala da criança. Com tom explicativo nos versos quinto, sexto, sétimo e oitavo, o sujeito lírico indica que a criança não sabe empregar os verbos de forma correta (nesse momento o termo “verbo” já se refere ao da categoria gramatical) e, assim, acaba por produzir construções que escapam às GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 317 convenções da língua, como em “escutar a cor dos passarinhos”, construção que apresenta um desencaixe semântico por conta da composição sinestésica. Enfocamos o verbo “funcionar” no quinto verso e do substantivo “função” no sétimo verso, visto que ambos os termos fazem menção ao aspecto instrumental da linguagem: a criança subverte o funcionamento da língua e pelo erro gramatical ocorre o delírio, o deslocamento do funcionamento comum que provoca redirecionamentos nos sentidos convencionalmente estabelecidos e esperados. No décimo, décimo primeiro e décimo segundo versos, o sujeito lírico menciona a poesia, declarando que, do mesmo modo como ocorre na fala da criança, a poesia tem que promover o “delírio do verbo”. Entretanto, existe uma diferença substancial entre a poesia e a fala da criança que se evidencia pela afirmação do sujeito lírico de que “poesia, que é voz de poeta, é a voz de fazer nascimentos”. Destacamos daí o verbo “fazer”, que se liga a ideias como construção, criação, fabricação, prática, trabalho, arranjo, produção, execução, entre muitas outras que se encaixam neste paradigma; pelo aspecto semântico, tal verbo aponta para a consciência criativa do poeta: a criança faz o verbo delirar espontaneamente, o poeta não. A criança não sabe usar os verbos de modo adequado e acaba cometendo erros. O poeta promove “erros” sintáticos, morfológicos, semânticos e pragmáticos intencionalmente por via da elaboração. O poder encantatório da palavra na linguagem adâmica não dependia do raciocínio, acontecia de modo imediato no ato de nomeação a partir do reconhecimento. Já no trabalho do poeta, que promove o “delírio do verbo”, não há o traço da simultaneidade e o raciocínio é imperativo. Como a criança faz o “verbo delirar” de forma não premeditada, o sujeito aponta a fala infantil como uma maneira natural de promoção do encanto linguístico que se equipara, em termos, à linguagem do homem pré-queda e que serve de modelo à poesia. Dentro desta perspectiva, destacamos a asserção de que “na voz do poeta, o verbo tem que pegar delírio”. Salientamos daí o “ter que pegar delírio”, pois o verbo “pegar”, de acordo com o uso corrente da língua, não é usado em conjunto com “delírio”: delírio não se pega. Delírio é um fenômeno que se tem, isto é, o termo exige o verbo “ter”, não o verbo “pegar”. Ao mesmo tempo em que tece um raciocínio sobre o poético por intermédio da função metalinguística, o de promoção do “delírio do verbo” para se chegar à poesia, o poema traz efetivamente o “delírio do verbo” ao fazer uma molecagem com o idioma: há o GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 318 apontamento da fala da criança como modelo a ser seguido e a execução de uma traquinagem com a língua que, seguramente, se espelha na fala da criança: “o verbo tem que pegar delírio”. Todavia, na voz do sujeito lírico o “erro” é deliberado e traz toda uma carga de reflexão sobre o poético. Ainda em relação a “delírio”, enfatizamos que se trata de um fenômeno psíquico que ocorre com o homem, um fenômeno estritamente humano. No poema aqui em estudo, há a atribuição desse fenômeno a algo inanimado, imaterial: o verbo, a palavra. Essa atribuição imprópria configura-se como outra traquinice com a língua. A respeito da comparação entre a criança e o artista, Baudelaire (1988) coloca que: A criança vê tudo como novidade; ela sempre está inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor. [...] O homem de gênio tem nervos sólidos; na criança, eles são fracos. Naquele, a razão ganhou um lugar considerável; nesta, a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a infância agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. (p. 168-169; grifos no original) Em face da concepção de Baudelaire, consideramos que a curiosidade no artista vem sempre acompanhada do raciocínio. O enlevo da criança diante do novo acontece no plano da sensibilidade, a criança absorve as coisas e o mundo com aguçada curiosidade: tudo é novidade. Na criança, o processo é espontâneo, pois ela está recebendo o mundo pela primeira vez. O artista, na qualidade de adulto, já conhece o mundo e as coisas que o compõem, mas, também dotado de curiosidade, procura nas coisas habituais, nas coisas vistas todos os dias, o que elas possam ter de novidade, o que elas apresentam em potencial que não está dito na linguagem comum do dia-a-dia. O “delirar do verbo” promovido pela voz do poeta consiste, então, numa ação deliberada de dissociar o verbo de seus lugares comuns, num trabalho de linguagem que visa cortar as ligações que prendem a palavra à sintaxe, morfologia, semântica e pragmática convencional e normativa. O vocábulo “delírio” traz, dentro de seu bojo semântico atrelado à psicologia, a ideia de confusão psíquica, desnorteamento, interpretação disparatada da realidade, desordem na capacidade de GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 319 julgamento da realidade por conta de alterações na consciência do real. Assim sendo, se a voz do poeta faz “o verbo delirar”, promove uma quebra, uma distorção na ordem convencional que determina o uso do verbo. O deslocamento da palavra de seu lugar habitual, por sua vez, leva o receptor do texto ao redirecionamento de sua interpretação da realidade: atingido pela força do “verbo que delirou”, o receptor também passa a ter uma visão delirante da realidade no sentido de que a palavra poética leva a interpretações outras, interpretações que fogem do convencional. Lembrando as ideias que o formalista russo Chklovski (1973) desenvolve no ensaio A arte como procedimento, o trabalho do poeta seria exatamente este, o de singularizar a linguagem, de talhar a linguagem verbal de modo a cortar fora todas as arestas comunicativas convencionais, as amarras que prendem a palavra ao uso gasto, ao reconhecimento, ao automatismo. O estado automático equipara-se à anulação de vida, já que acontece na esfera do inconsciente. Provocando o estranhamento no receptor, a arte pode resgatar o homem do automatismo e devolver-lhe a sensação de vida na medida em que o desperta para a consciência das coisas. Olhando agora para os significantes “delírio” e “delirar”, notamos algo que merece relevo: os significantes “lírio” e “lira” estão dentro deles. A palavra “lira” é intimamente atrelada ao universo da poesia: lira, lirismo, lírico, lírica, liricar, lirista são termos diretamente relacionados ao poético e à história da poesia. A lira, instrumento musical de cordas, era usada na antiguidade clássica para acompanhar o cantar de versos. De seu nome derivaram os termos como lírico, lírica e lirismo, que passaram a designar e compor o paradigma lexical de um gênero poético. Por esta ligação, reforçamos a ideia mais acima desenvolvida acerca da promoção do “delirar do verbo” como a ação do fazer poético: o delírio sugere desvario, despropósito, desconexão de sentido lógico, o que vai ao encontro do ofício do poeta, que é justamente o de criar despropósitos, de quebrar a lógica convencional em favor de novos empreendimentos lógicos embasados na analogia: fazer o verbo delirar = poetar. Diante disso, voltamos a Chklovski, para quem, reforçamos, o fazer artístico acontece como trabalho voluntário e consciente com a linguagem. Já o termo “lírio” faz menção às plantas herbáceas, da família das liliáceas, de exuberantes flores, predominantemente alvas, e folhas GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 320 esparsas. O lírio, de forma geral por conta do aspecto cromático de sua flor, é símbolo de pureza, o que nos leva a pensar na poesia como forma de devolver a pureza às palavras. O uso desgasta a língua e as palavras vão sendo consumidas pelo atrito que se estabelece entre seus corpos e o peso dos sentidos e usos que vão sendo sobrepostos a elas ao longo do tempo. Do atrito, nascem nódoas, estigmas que o poeta precisa tratar. O tratamento opera-se pela arrancada das palavras do jugo do uso corrente da língua e do arranjo delas num novo ambiente, isto é, o tratamento que o poeta dispensa às palavras promove o renascimento delas, o que as torna puras novamente: sem nódoas, sem estigmas. Nos versos décimo, décimo primeiro e décimo segundo, o sujeito lírico traz justamente esta ideia do trabalho do poeta como modo de fabricação de “nascimentos”: renascimento da palavra. A voz do poeta é apontada como responsável pelos nascimentos. O vocábulo “voz” marca a identidade, a manifestação íntima do poeta, a sua intencionalidade: a criação, a promoção do nascimento por intermédio da ação verbal. Por meio da demarcação da voz do poeta com o artigo definido a, “a voz do poeta é a voz de fazer nascimentos”, a ideia da poesia como o lugar legítimo do renascimento da palavra é colocada em foco, e, assim, o fundamento da poesia acaba por equiparar-se ao da linguagem adâmica: o de nomear para dar às coisas sua natureza pelo nome. O vocábulo “delírio” ainda traz outra acepção além da já destacada e trabalhada anteriormente: a de êxtase, arrebatamento, exaltação. O que nos faz pensar, na esteira do raciocínio aqui em desenvolvimento do “delirar do verbo” equiparado ao fazer poético, na poesia como o lugar do êxtase do verbo. Na psicologia, êxtase denomina o estado de espírito em que os sentidos desprendem-se do plano material, desencadeando, pelo enlevamento, uma sensação aprazível. Diante da carga do termo em questão, lemos o êxtase do verbo como o desprendimento da palavra de seu lugar habitual pelo estímulo a ela dado pelo poeta, o que leva ao arrebatamento, ao encanto. Regressando agora ao termo “descomeço”, que aparece no primeiro verso do poema, notamos que faz referência ao tempo mítico e atemporal do homem pré-queda e, portanto, instaura a ideia de origem. Pelo acréscimo do prefixo des- à palavra começo, um prefixo que atribui à palavra à que é acoplado o sentido de negação, de inversão, flagramos a consciência da impossibilidade de se chegar à origem. O poema traz a rememoração de um passado em que a linguagem caracterizava-se por GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 321 um poder encantatório de nomeação e ao mesmo tempo aponta para o fato de que a volta a esse passado, a recuperação plena da magia da linguagem pré-queda é irrealizável, o que fica evidente pelo emprego do prefixo des- em começo. Entretanto, mesmo demarcando a impossibilidade de se alcançar a origem, o sujeito lírico aponta a recuperação do encanto da linguagem pelo “delírio do verbo”, que está naturalmente na fala da criança, fala impregnada de resquícios de uma magia ancestral da linguagem, e também no ato poético. Gagnebin (2007), esquadrinhando a noção de origem em Walter Benjamin, noção que se mostra um ideal, afirma que, para o autor, o movimento da origem só pode ser reconhecido ‘por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado [não fechado]’. O tema da restauração [...] indica, certamente, a vontade de um regresso, mas também, e inseparavelmente, a precariedade deste regresso: só é restaurado o que foi destruído, quer se trate do Paraíso, de uma forma de governo, de um quadro ou da saúde. A restauração indica, portanto, de maneira inelutável, o reconhecimento da perda, a recordação de uma ordem anterior e a fragilidade desta ordem. Por isso, diz Benjamin, se o movimento da origem se define pela restauração, ele também é ‘e por isso mesmo, [algo] incompleto e não fechado’. A origem benjaminiana visa, portanto, mais que um projeto restaurativo ingênuo, ela é, sim, uma retomada do passado, mas ao mesmo tempo – e porque o passado enquanto passado só pode voltar numa nãoidentidade consigo mesmo – abertura sobre o futuro, inacabamento constitutivo. (p. 14) Diante desta característica de movimentação dupla, isto é, de tentativa de se chegar à origem mesmo com a consciência da impossibilidade de realização de tal feito, trazemos a noção de spleen (melancolia) de Charles Baudelaire, noção também pensada por Walter Benjamin. No melancólico, ou spleen, convivem o fascínio e a frustração, a busca por algo perdido e a consciência da impossibilidade de recuperação plena daquilo que foi perdido. Gagnebin, refletindo acerca das ideias de Walter Benjamin acerca da poesia de Baudelaire, afirma que: Baudelaire não é nem um poeta kitsch romântico que ficaria preso à nostalgia de um passado encantado, nem um esnobe triunfalista que GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 322 se limitaria a celebrar cada novidade. Sua verdadeira modernidade consiste, segundo Benjamin, em ousar afirmar, com a mesma intensidade, o desejo e a impossibilidade da volta a uma origem perdida desde sempre. Como estes anjos hieráticos nos túmulos dos grandes cemitérios burgueses do século XIX, as alegorias baudelairianas velam por uma lembrança já morta. (2007, p. 53) Apesar da consciência da impossibilidade, a luta do melancólico está fundamentada pela ideia de que o perdido, em algum nível, pode ser de restabelecido: a rememoração traz consigo a reatualização. O poeta, enquanto spleen, ao rememorar um passado em que a linguagem tinha características mágicas, sabe da impossibilidade de recuperação de tal qualidade, mas logra o restabelecimento do encanto perdido em outro nível, restabelecimento que se faz possível pelo poder demiúrgico da linguagem poética. Assim, ao fazer poético é atribuído o papel ativo de tentativa constante de recuperação. O forjar do “delírio do verbo” denota a artificialidade da característica nomeadora da linguagem poética. Pela poesia, há a possibilidade de recuperação do efeito mágico de nomeação, mas se dá em outro nível: antes de qualquer coisa, de modo artificial. Pelo entrelaçamento de forma e conteúdo num todo enleado, num todo que não se destrincha, a poesia mostra-se como o lugar da possibilidade de recuperação do encanto da linguagem, da promoção do gesto inaugural. Porém, na poesia, o efeito nomeador é logrado pelo esforço, pelo trabalho consciente, pela briga com a linguagem. No poema aqui em análise, por exemplo, o sujeito lírico indica a fala e a lógica do pensamento infantil como modelo a ser seguido na criação poética; na realidade textual elaborada pelo poeta, porém, não será espontâneo como na fala da criança, será uma recriação totalmente consciente e proposital. Aqui, trazemos ainda a metáfora do esgrimista formulada pelo mesmo Baudelaire, que alude à luta exercida pelo artista no ato da criação. Benjamin (2010) indica que, além de Baudelaire, outros artistas retrataram a multidão e se dirigiram a ela, como Victor Hugo, por exemplo, em obras como Os Miseráveis e Os Trabalhadores do Mar. De acordo com o autor, “nenhum tema se impôs com maior autoridade aos literatos do século XIX do que a multidão, que começava a se articular como p blico em amplas camadas sociais.” (BENJAMIN, 2010, p. 114). Entretanto, a diferença que Benjamin aponta entre Baudelaire e outros escritores é a de que o poeta francês não descreve o experimento da vida moderna: “Baudelaire não descreve nem a população, nem a cidade. Ao GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 323 abrir mão de tais descrições colocou-se em condições de evocar uma na imagem da outra. Sua multidão é sempre a da cidade grande; a sua Paris é invariavelmente superpovoada.” (2010, p. 116). Ou seja, Baudelaire fala, com um olhar crítico, de dentro do próprio experimentar da vida moderna e busca forjar no plano textual a sensação que o experimento da vida moderna provoca nele mesmo. A reconstrução da vivência, de uma lembrança, um pensamento em linguagem poética acarreta uma luta, um duelo com a linguagem. Para enlear forma e conteúdo, o poeta tem que se valer de artifícios, mecanismos, procedimentos, técnicas, tem que manusear a linguagem de modo a moldá-la ao conteúdo e vice-versa. Baudelaire deixou a consciência do duelo que o artista trava com a linguagem como legado à literatura e Manoel de Barros, poeta herdeiro da modernidade lírica, assimila este traço. Esse é um tema bastante trabalhado por Manoel de Barros em sua obra, o do árduo trabalho do poeta por transpor em linguagem poética o pensamento, a vivência, ou a linguagem das coisas. Pela metalinguagem, Barros tece sua posição acerca do tema no próprio plano linguístico. O poema que segue logo abaixo, o poema “5” da terceira parte do livro O guardador de águas (2010), parte intitulada “Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho”, é um dos que se inserem nesta perspectiva: A água passa por uma frase e por mim. Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos. A boca desarruma os vocábulos na hora de falar E os deixa em lanhos à beira da voz. (BARROS, 2010, p. 259) Em dado poema, observamos a problematização do trabalho do poeta enquanto luta por transpor o pensamento em linguagem poética; mais especificamente, o pensamento acerca do poético. A questão do pensar sobre o poético é muito forte em Manoel de Barros, bem como o processo de transporte do pensamento para a linguagem poética. A “água”, presente no primeiro verso do poema, permite ser lida como o próprio pensamento, que percorre, atravessa o sujeito lírico e a língua. Para ser comunicado, o pensamento precisa ser transposto em linguagem e, para tanto, há a necessidade da “maceração do idioma”. Observamos de início que “a água passa pela frase”, pela língua, e pelo sujeito lírico. Contudo, as macerações atingem apenas o linguístico, não atingem o sujeito, o que leva a pensar que as macerações são executadas por esse “eu (mim)” que fala no poema. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 324 Uma das definições empregadas à maceração na língua portuguesa a demarcam como processo de amolecimento de uma substância sólida pela ação de um líquido ou por meio de golpes, de pancadas. No plano do poema, a “água”, ou o pensamento, aparece como a substância líquida responsável pela maceração de “sílabas, inflexões, elipses, refegos”. Diante de tal relação, formulamos a ideia de que o pensamento que se pretende comunicar em linguagem poética deve amolecer o material linguístico, torná-lo flexível. Ampliando a relação, o poeta, promotor da maceração do idioma, precisa transformar a língua pela ação de seu pensamento, precisa moldar a linguagem no formato do conteúdo de seu pensamento e, para tanto, deve macerar a língua pela ação do pensar: em sentido duplo: macerar a língua pela ação do pensar sobre os modos de transposição e macerar a língua pelo pensamento que se quer transmitir. O maceramento, em sentido figurado, alude ainda à tortura. Nesse sentido, dentro do poema, instala-se a noção de violência sobre a língua por parte do poeta no ato da criação, o que nos remete a Paz (1972): A criação poética começa como violência sobre a linguagem. O primeiro ato desta operação consiste no desenraizamento das palavras. O poeta as arranca de suas conexões e funções habituais: separados do mundo informe da fala, os vocábulos tornam-se únicos, como se acabassem de nascer. (p. 38; tradução nossa) 3 O ato poético, que começa como ação violenta sobre a linguagem, promove a recriação, o ressurgimento da palavra, pois a coloca em um novo contexto, ligada a novos aspectos. Enfatizamos, todavia, que o ressurgimento da palavra no plano poético com novas características e novas amarras não é natural; o poder nomeador, a potência que a palavra poética tem de promover novos nascimentos não é uma característica inata: demanda uma operação intencional e interventiva que envolve um ato violento de arranque do verbo de seu lugar de natureza: o uso corrente da língua. 3 “La creación poética se inicia como violencia sobre el lenguaje. El primer acto de esta operación consiste en el desarraigo de las palabras. El poeta las arranca de sus conexiones y menesteres habituales: separados del mundo informe del habla, los vocablos se vuelven nicos, como si acabasen de nacer.” GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 325 Nos dois últimos versos do poema, o sujeito lírico assinala que o ato da fala, pela “boca”, coloca os vocábulos em desalinho, os “desarruma” e os deixa “em lanhos à beira da voz”. Tal asserção nos leva a pensar, metaforicamente, na “boca” como o lugar da promoção das macerações, visto que é na boca que começa o processo de digestão dos alimentos: na cavidade bucal acontece a mastigação, a trituração, o esmagamento dos alimentos. Essa ideia liga-se à da violência que o poeta realiza sobre a linguagem para chegar à poesia, liga-se à ideia da maceração. Sendo o idioma, metaforicamente, o alimento do poeta, ele precisa mastigá-lo para que fique em lanhos, em cortes, em pedaços à beira da voz. Só na voz, isto é, só na manifestação verbal efetiva, o que seria o plano do poema, aconteceria, então, a reconstrução, o ato de conceder às palavras o renascimento. Interessante notar que os termos “inflexões”, “elipses” e “refegos”, presentes no segundo verso do poema, ligam-se à ideia de poesia, pois demarcam as noções de, respectivamente, desvios, omissões e dobras. É, justamente, por caminhos como esses que a poesia opera, pelo deslocamento, pela omissão deliberada, pelas dobras que formula na linguagem. O maceramento e o rearranjo dos vocábulos promovido pela operação da escrita poética apontam para os artifícios da criação, para a engenhosidade da tecitura poética. A preocupação constante em enfatizar o trabalho do poeta como consciência criativa, demonstrando o esforço criador que a construção poética demanda, reforça a ideia de que a linguagem poética é artificial em relação ao modelo a que tenta equiparar-se: a linguagem primordial. E denota também a consciência do poeta em relação a isso. Contudo, mesmo que de forma artificial, a poesia desponta como criação original: a linguagem poética promove renascimentos. Por fim, passamos ao poema “VIII” de “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, presente no livro O guardador de águas (2010). O poema em questão segue transcrito: Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas, Ovídio mostra seres humanos transformados em pedras, vegetais, bichos, coisas. Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural – Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 326 crianças que foram Às rãs que foram Às pedras que foram. Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua. Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos? Seria uma demência peregrina. (BARROS, 2010, p. 265-266). Nos três primeiros versos do poema, notamos a presença de uma referência à obra de Ovídio, Metamorfoses, em que o poeta latino narra em versos transformações de homens em coisas: objetos, animais, vegetais. As transformações são realizadas por deuses motivados, geralmente, por sentimentos negativos, tais como inveja, ciúme e vingança. Um exemplo está na narração da “Morte de Orfeu”: Baco, extremamente descontente com a morte de Orfeu, castigou as mulheres que o assassinaram transformando-as em carvalho (OVÍDIO, 2003, p. 221-223). O trecho inicial da obra de Ovídio, em que acontece a apresentação do intento de Metamorfoses e a invocação da ajuda dos deuses no ato da escrita, evidencia a referência trazida no poema de Manoel de Barros. O trecho em questão segue transcrito abaixo: Minha intenção é contar histórias sobre corpos que Assumem diferentes formas; os deuses, Que promovem essas transformações Me ajudarão - pelo menos, assim espero, - com um longo poema Que discorre sobre o início do mundo e se estende até os nossos dias. (OVÍDIO, 2003, p. 09) A partir do quarto verso do poema de Manoel de Barros, o sujeito lírico desdobra a referência que traz para desenvolver o raciocínio de um ideal de criação poética: a possibilidade de se falar diretamente na linguagem das coisas: uma etapa seguinte à transformação do corpo humano em coisa seria a aquisição da fala da coisa em que o corpo se transformou. Tal ideal é apontado pelo sujeito lírico como possibilidade de nascimento de “uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural”, e aí temos a rememoração expressa do tempo mítico do homem pré-queda e de sua linguagem que acaba aparecendo como modelo para o fazer poético. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 327 Os termos “adâmica”, “edênica” e “inaugural” remetem de forma direta à linguagem do homem pré-queda. Salientamos a presença do artigo uma no sexto verso determinando o tipo de linguagem que nasceria a partir da possibilidade de se falar na linguagem das coisas, pois tal artigo, sendo indefinido, indica que não aconteceria o ressurgimento da linguagem adâmica original, mas sim, de “uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural” que não a do princípio, outra: a poética. O vocábulo “madruguenta”, construído a partir da junção do sufixo –enta ao radical madrug-, radical do substantivo madrugada, aponta para uma situação de novidade, de nascimento, já que “madrugada” vem dos étimos latinos madurare e maturicare, que significam “amadurecer”, “apressar, acelerar”, “levantar-se cedo”, campo semântico que traz a noção de algo novo, recém-nascido, o que permite a associação com a linguagem poética, que prima por trazer as palavras sob novas roupagens, por torná-las novas outra vez, como no momento em que foram criadas. No oitavo verso, o sujeito lírico afirma que os poetas “aprenderiam” tal linguagem. O termo “aprender” atrela-se à ideia de estudo, sendo assim, destacamos mais uma vez a forte presença da preocupação em demarcar o fazer poético enquanto esforço crítico na obra de Manoel de Barros. O ato de aprender o “dialeto coisal, larval, pedral” demanda estudo e seu aprendizado depende de uma condição, a de que os poetas voltem “às crianças, às rãs, às pedras que foram”. O retorno à infância demanda ainda outra condição, a de que os poetas “precisariam reaprender a errar a língua”. Salientamos daí os verbos “precisariam” e “reaprender”, que, novamente, fixam a noção de criação lúcida por parte do poeta, diante do que destacamos os versos décimo quarto, décimo quinto e décimo sexto, nos quais o sujeito lírico aponta, em tom interrogativo, a condição de, então, o fazer poético estar ligado à “ignorância”, ao ato de “enfiar o idioma nos mosquitos”. A palavra “ignorância” traz a ideia de ausência de conhecimento, de não-saber, ideia que surge como ideal para a poesia, que tem que trazer um conhecimento diferente do preestabelecido, um saber ignorante em relação ao que já está definido pela convenção: um outro saber. Assim como acontece com a linguagem instrumental, na poesia o saber, o conhecimento transmitido também é exterior às coisas, é proveniente de um esforço de pensamento, de um experimentar do mundo e da transposição desse pensar e/ou desse experimentar em linguagem poética. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 328 Entretanto, a diferença está no fato de que o saber transmitido pela linguagem poética é novidade, não está definido, não está dito na linguagem convencional: trata-se de um saber outro que busca a estupefação e o redirecionamento, a ampliação dos horizontes do receptor. Barros promove isso, especialmente, a partir do redirecionamento do olhar para o ínfimo, para o desimportante. Recolhendo o que não tem valor, o poeta, pelo trabalho de elaboração do significante, concede nova vida às inutilidades conferindo-lhes valor e, assim, o inútil passa a engendrar novos conhecimentos, novos saberes, o que modifica o olhar do leitor para o mundo, para as coisas. Já o termo “enfiar” traz um dado de violência, o que nos leva novamente a Paz (1972) quando afirma que o ato poético é um ato de violência sobre a linguagem. O “enfiar o idioma nos mosquitos” aponta, portanto, para um ato que não é natural, um ato que, para ser efetivado, precisa do emprego da violência. Nesse sentido, trazemos novamente a ideia de Benjamin (1992) de que a linguagem das coisas emudeceu por conta do pecado original cometido pelo homem: o sujeito lírico indica um ideal de criação, o de se falar num “dialeto coisal, larval, pedral”, entretanto, ao desenvolver mais a ideia, o sujeito lírico traz em questionamento o modo como tal feito poderia ser alcançado: pelo ato de “enfiar o idioma nos mosquitos?”, o que demarca a consciência desse sujeito em relação ao fato de que o falar na linguagem das coisas é impossível e o ato de enfiar o idioma nos mosquitos indica que, mesmo havendo a transformação do corpo humano em coisa a consciência humana continuaria dominante, o que caracterizaria um habitar o outro mantendo a própria consciência humana. Desse modo, a voz que falaria de dentro da coisa habitada o faria por um idioma enfiado a força nessa coisa, não no dialeto natural dessa coisa. O que aponta para a consciência do sujeito que fala no poema acerca da impossibilidade de se chegar ao real metafísico das coisas: o que se conhece das coisas após a queda do homem são pontos de vista, conhecimentos aos quais o homem chega por via da experimentação e do pensamento e que, traduzidos em definições, possibilitam o reconhecimento pelo signo convencionado. Há no poema um grande número de ocorrências de verbos conjugados no futuro do pretérito do indicativo (“seria”, “nasceria”, “aprenderiam” e “precisariam”) e no pretérito imperfeito do subjuntivo (“falassem” e “voltassem”). Essas ocorrências apontam para uma situação de possibilidade e não de ação efetiva, de realização certa, o que reforça a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 329 ideia de impossibilidade da realização de se chegar ao restabelecimento da linguagem do homem pré-queda e demarca também a consciência do sujeito lírico em relação à impossibilidade: esse sujeito vai elencando as formas pelas quais a linguagem adâmica poderia ser recuperada, mas, pela predominância de tempos verbais que demarcam possibilidade e não realização concreta, o saber da irrealização se faz presente. Os poetas podem até voltar, regressar às crianças que foram, às rãs, às pedras pelo habitar o outro, entretanto, será com a consciência que têm. O habitar o outro com a própria consciência não é natural, mas sim um ato de “enfiar o idioma nos mosquitos”: pelo hábil manuseio da palavra o poeta pode reconstruir a fala da criança, pode dar voz às coisas, pode errar a língua para produzir assombros poéticos, todavia, tudo isso será feito sempre pela reconstrução, que não se caracteriza pela coisa em si, é sempre um re-. Tratar-se-á sempre do habitar o outro mantendo a própria consciência. É impossível recuperar a magia da linguagem, o poeta é totalmente cônscio desta condição e continua numa busca constante pelo reencanto da linguagem por meio do trabalho poético, que, afinal, é um lugar de possibilidade de reconstrução do encanto da linguagem, mesmo que o encanto na linguagem poética ocorra em outro nível: o da materialidade poética. E aqui citamos Gagnebin (2007): “a dinâmica da origem não se esgota na restauração de um estádio primeiro, quer que tenha realmente existido ou que seja somente uma projeção mítica no passado; porque também é inacabamento.” (p.18). Ou seja, não se trata de uma “simples restauração do idêntico esquecido, mas igualmente, e de maneira inseparável, emergência do diferente.” (Ibid., p. 18, grifo nosso). O poetar configura-se, assim, como uma “demência peregrina”, uma incessante e insana busca: uma tentativa desejosa de recuperação do que se perdeu, mas cônscia da impossibilidade de reparação. Como nomeação que é dentro de suas próprias características e possibilidades, a poesia, num caráter ritualístico, refere-se ao tempo mítico do homem préqueda para, simbolicamente, equiparar-se em contemporaneidade àquele tempo, para impregnar-se da energia da linguagem original: “Sendo a criação do Mundo a criação por excelência, a cosmogonia transforma-se no modelo exemplar para toda a espécie de ‘criação’.” (ELIADE, 1989, p. 25). MANOEL DE BARROS AND THE PURSUIT FOR GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 330 THE REECHANTMENT OF LANGUAGE Abstract: This article analyses, based on Walter Benjamin’s philosophical ideas about language, some poems of Manoel de Barros that bring the reflection about the poetry as a possility of restoring the language of the man that occupies the mythical time that precedes the history, language characterized by the magical capacity of nomination. Keywords: Manoel de Barros. Adamic Language. Metalanguage. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BARBOSA, J. A. 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GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 332 O POEMA VISUAL: DO ESOTÉRICO AO CIBERNÉTICO José Fernandes – UFG 1 Resumo: A poesia visual, sem dúvida, acompanha a evolução das formas artísticas resultantes das transformações por que tem passado o homem ao longo da história. Nas três últimas décadas, os poetas interconectaram a técnica do poema impresso com as possibilidades tecnológicas proporcionadas pela cibernética, criando um estilo que, grosso modo, se pode chamar de ciberpoesia ou animaverbivocovisual. A ciberpoesia, além de imprimir movimento ao poema, criado segundo os princípios que nortearam a construturação do poema visual, ainda permitiu a união do poético com o cinemático, elevando o tônus estético do discurso e, sobretudo, a carga semântica, típica do texto poético, como se demonstrará ao longo desse estudo. Palavras-chave: poesia visual; ciberpoesia; aniverbivisualização; vídeo-poema. O poema visual figura na evolução das formas e das fôrmas literárias, no ocidente, desde a antiguidade. Isso significa que ele, como arte simbiótica, perpassou toda a história e se valeu de todos os recursos utilizados pelos artistas para se adequar aos princípios estéticos de cada época, como ocorreu com as demais fôrmas literárias. Consoante com essa ótica, a conformação visual impressa ao poema Un coup des dés, por Mallarmé, ao final do século XIX, as criações visuais feitas pelos futuristas e as recriações surgidas na segunda metade do século XX, não provieram do nada; mas resultaram de um processo poético que nunca deixou de acontecer na literatura. O que ocorreu, na verdade, é que em determinados momentos da evolução das formas e das fôrmas artísticas, o poema visual sofreu uma espécie de depressão, em que se incluiu também a baixa exploração dos componentes simbólicos, que conferiram às produções menor teor estético. Assim consideradas, as recriações de poemas visuais a partir de Mallarmé imprimirão ao poema visual uma nova dinâmica composicional que culminará, hoje, na ciberpoesia e nas poéticas de contexto digital, ou poesia de multimídia, como veremos a seguir. 1 José Fernandes é professor aposentado da UFG e membro da Academia Goiana de Letras. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 333 1 – O esotérico As primeiras criações de poemas visuais são impregnadas, simultaneamente, por alto grau de misticismo e por preocupações estéticas, ao ponto de haver poemas inteiramente metalingüísticos, como o demonstra o poema Ovo, de Símias de Rodes. Essa interação da fôrma poética com a finalidade do discurso atravessou séculos, a ponto de Porfyrius Optatianus (324 d. C.), em seu poema Altar, repeti-la mais de seis séculos depois. A partir do Renascimento, porém, essa fôrma poética começou a apresentar outras direções semiosféricas. Surgiram poemas com inteiro teor ontológico, voltados para a condição humana, ressaltando sua dimensão metafísica e outros, apenas de cunho louvaminheiro, destinados a angariar a simpatia de algum governante. A interação da arte poética com a religião, no entanto, prepondera nos primeiros séculos de exploração das interações construturais da palavra com sinais, signos e símbolos não verbais. Assim, se analisarmos o poema de Porfyrius Optatianus, perceberemos, já pela sua conformação verbivisual, as relações que ele mantém com a religião, uma vez que se denomina Altar.2 O sacrifício ali ofertado, porque inerente ao simbolismo 2 Veja como eu ergo um altar consagrado ao deus Pítio, polido pelo ofício da arte musical do poeta. Tão honrado sou, realizando a mais sagrada oferenda, que convém a Febo e amolda-se àquele templo em que os coros dos poetas produzem suas aceitáveis dádivas, adornadas com tantas mulheres floridas de musas, de cada espécie como devem ser colocados nos bosques sonoros do Helicon. Não artifício polido com afiada ferramenta; eu não era talhado fora de uma branca rocha da montanha da Luna, nem desde o brilhante pico de Paros. Não era porque eu era talhado ou forjado com duro cinzel que eu seja trabalhosamente confinado e carregue às costas minhas armas como eles tentavam cultivar naquele tempo, em sucessiva porção, deixe-o expandir-se em sentido mais amplo. Cautelosamente eu forço cada borda para se traçar, linha por linha, por minúsculos degraus, em linhas viradas para dentro, desta forma contínua, regulado por toda parte pela medida, de maneira que minha borda, dentro do limite que lhe determina, o de um quadrado. Nesse tempo de novo, continuando para a base, minha linha, estendendo mais cheia, é engenhosamente desenvolvida de acordo com o plano. Sou feito pelo metro de dez pés. Estipulado que o número de pés nunca é trocado, e a douta medida, obedece a seus modelos, as linhas de tais poemas acrescidos e decrescidos. Febo, pode o suplicante que oferece esta pintura, faz o metro, toma seu lugar alegremente em seus templos e seus sagrados coros. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 334 de altar, assume uma dimensão maior, à medida que o ritual e o rito compreendem não somente a oferta, mas sua transubstanciação operada na essência da linguagem, à proporção que ela se transforma em arte, em objeto poético. Não sem razão, o poeta fala em arte musical, arte musica, porque o trabalho transformador da linguagem implica a utilização de métodos inerentes à música, impresso ao vocábulo polido, polita. Do mesmo modo que o altar constitui o microcosmo do sagrado, sacratissima, o poema em forma de altar se converte no microcosmo da linguagem, na medida em que todos os ritos se integram a um ritual mágico, que tem como objetivo a produção de um discurso que assume as proporções do ato primeiro da criação: Neste sentido, o ritual e o rito se revestem, antes de tudo, como artesania, polivit artifex, uma vez que o altar é o local do sacrifício, da transformação da matéria lingüística em objeto dos deuses. Se o altar é o GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 335 local em que o sagrado se condensa com maior intensidade, o poema seria o espaço sagrado do discurso por excelência, à proporção que ele condensa na linguagem a liturgia do sacrifício — o coro e as litanias — e a liturgia do poético, que compreende o trabalho duro com o cinzel. Para consecução destes efeitos semióticos — palavras e signos —, é imprescindível que o objeto do sacrifício, o altar em que se opera a transformação, seja trabalhado segundo normas atinentes ao sagrado, pois é dedicado a Apolo Pítio. Assim, a conformação do poema em altar requer que todas as arestas sejam aparadas, consoante uma simetria e uma métrica rígidas, memetra pangunt decamenarum modis, que representam bem a estética da época, proposta por Aristóteles (1973, 1065), quando sugeria que as artes devem aproximar-se das matemáticas: Com efeito, as formas mais estimadas do belo são a ordem, a simetria e a limitação, coisas que dão a conhecer, em alto grau, as ciências matemáticas. Não é sem motivo que o poeta insiste que seu altar se erige mediante versos de dez pés métricos, numero dum taxat pedum, porque seguindo as normas que regem a simetria e a harmonia, pautadas pelo metro e pela medida, o poema tem de ser composto segundo modelos matemáticos, que têm o número como razão e essência. Ademais, como se trata de um poema dedicado a Pítio ou Febo, epítetos de Apolo, deve ele ser a própria expressão da harmonia e da beleza, encarnadas por esse deus, que é luz e personificação do belo. Ora, a luz, na conjunção das formas que compõem o poema-altar, representa bem a instalação do sagrado que, no caso, é a própria poesia. A semelhança do ato poético com a construção de um altar de sacrifícios e libações materializa a própria arte poética, à medida que o discurso deve se colocar nas mesmas dimensões que o altar: no alto. A ação de aparar as arestas revela o tônus divino do discurso, que deve trazer em si correlações com o sagrado, porque apresenta mistério e magia, ritual e rito próprios da dimensão sagrada do sacrifício e da dimensão mágica da poesia. O discurso, assim entendido, se revestiria de caracteres divinos e humanos, á medida que o poeta se torna um elemento de intermediação entre criador e criatura. Neste sentido, o altar-discurso seria o lugar das libações, porque compreende o fazer humano, que necessita purificar a linguagem e os signos, para poder chegar à essência da palavra, ao interior do signo, e à matéria da consagração ao deus, transformando a contemplação do sublime na dupla possibilidade de ascensão do humano através da arte. Por isso ele obedece às regras, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 336 regula, e cresce e decresce segundo o louvor e a importância que se atribui ao deus e à poesia. As formas do poema visual se multiplicaram ainda na antiguidade, mas alcançaram seu apogeu na renascença, em que se vêem inúmeros poemas sob a forma de altares, cálices e labirintos, de que destacamos Labirinto dificultoso, do português José da Assunção, e Altar e Cálice dos ingleses Goerge Herbert e Puttenhan. O caráter religioso permanece; mas, na maioria das produções, aquela dedicação aos deuses, próprias da antiguidade, vista em Teócrito, Dosíadas, Julio Vestino e Optatianus, transforma-se em louvação aos reis e rainhas. Em termos estéticos, no entanto, os poemas de cunho religioso são superiores, à medida que ideológico sobressai, como constatamos, por exemplo, no poema Labirinto em louvor de Maria Santíssima, do português Luís Tinoco, que destaca o nome Sacnta, ao colocá-lo no centro do quadrado que assume configurações altamente polissêmicas, decorrentes da semiosfera do discurso verbivisual. No momento em que o nome se coloca no centro, põe-se sob a proteção das letras que o circundam. Por outro lado, o labirinto materializa o sacrifício a que o devoto deve se impor, a fim de se aproximar da Santa. Se o nome pelo menos tangenciasse as laterais do poema, a aproximação entre devoto e Santa seria facilitada; ele teria certeza de que seus rogos chegaram a ela mais rapidamente. Ao se colocar no centro, permite que só os ecos do nome cheguem ao implorante, já que o poema se compõe de um único período: Sancta Mater istud agas! Faça isso, Santa Mãe!: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 337 Ao colocar o nome Sancta no centro, considerando a importância da Mãe na doutrina da Igreja, podemos inferir duas interpretações. Se GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 338 atentarmos para o simbolismo do centro como o princípio de onde emanam todas as coisas, podemos dizer que Ela se confunde com ele, à medida que o gerou na pessoa do Cristo. Mas, não nos esquecendo de que a frase toda é um rogo à Sancta Mater, somos levados a crer que o simbolismo do centro se volta para a figura da Santa como o princípio para se chegar a Cristo, através da oração. Sendo o centro a imagem dos opostos, o poeta, através dele, elabora uma construtura semiótico- semântica que visa a evidenciar as relações entre o suplicante e a Santa. Enquanto a Santa, pelo fato de haver gerado o Cristo, tornou-se a Mãe universal, o súplice representa aquele que se encontra longe do Cristo, porque marcado pelo estigma da condição humana, ou, como rezam os cânones eclesiásticos, nodoado pelo pecado original. Trata-se de um poema maneirista e, por isso, marcado por oposições: enquanto a Sancta Mater é o centro, aquele que lhe dirige a prece recebe suas dádivas por intermédio de sua sombra. Este processo de oposições se clarifica ao observarmos que as letras em vermelho, que compõem o nome Sancta, acrescidas do fonema M, de Mater, formam dois triângulos opostos. O primeiro, voltado para o alto, visualiza a Sancta;o que se direciona para baixo se conforma à terra e às coisas que a habitam. Por outro lado, se considerarmos que o triangulo invertido é o reflexo daquele que se coloca com o vértice para cima, representando o lado humano do Cristo e da Sancta, podemos dizer que o suplicante se encontra no centro. É verdade que mediante delegação. Mais do que a Sancta e a humanidade de Cristo, entretanto, constatamos que os triângulos visualizam a totalidade do sagrado: a Trindade e a Mãe. Ora, se eles abrangem a integridade do sagrado, o nome deixa de ser apenas a nomeação de uma divindade e passa a ser uma palavra-objeto, capaz de albergar todas as potencias da Divindade. Quem invoca à Sancta, sob esta ótica, dirige sua prece a toda a Trindade. Os dois triângulos, assim interpretados, substantivam a proximidade entre Sancta, Cristo, o Pai e o Espírito Santo, sem deixarem, não obstante no centro, o lado humano, pois eles se encontram em cima e embaixo. Esta interção do sagrado com o humano proporciona ao implorante, mesmo sendo sombra e sob a sombra do sagrado, perceber as graças solicitadas. Sob esse aspecto, o nome Sancta funciona como uma espécie de palavra mágica, encantatória, como o era, na concepção hebraica, ABRACADABRA, )rkrk)rk),, se considerarmos, com Matila C. Ghyka (1959, 146), que o termo encantação deveria ser, em princípio, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 339 reservado à ação pela repetição de uma palavra, de uma fórmula, de uma assonância, de uma periodicidade prosaica ou musical, quer dizer, de uma ação, de um ritmo; nós constatamos que o ritmo e sua ação encantatória estão, às vezes, em uma palavra. Ao destacar o nome Sancta, o poeta súplice evidencia a magia da palavra, a fim de que ela, com o poder que encerra e com a representação que se lhe recai, possa atender ao pedido. O caráter mágico, conforme postula Matila Ghyka, consiste na operação imediata: a concessão do benefício. É a palavra, lida a partir do centro, que estabelecerá a distância entre o suplicante e a Sancta. A recepção da graça solicitada causará no implorante uma espécie de êxtase, como o que descreve Ghyka, quando se refere às palavras mágicas. Esse aspecto mágico inerente à palavra se torna mais claro quando observamos que a letra inicial do nome, S, avulta-se entre as demais. Ora, o relevo impresso ao fonema confere-lhe o caráter de palavra, uma vez que ele se reflete sobre as demais letras, como se, utilizando a comparação feita por Ghyka (cf. 1959, 146), estivéssemos diante de uma bobina em que se processasse um sistema de condução de eletricidade. Essa imagem se quadra inteiramente ao simbolismo da letra S, em sua concepção hieroglífica: reserva de energias prestes a explodir. Não se trata de uma explosão qualquer, mais de uma explosão cósmica, porquanto a efervescência das graças concedidas pela Sancta conjuga-se à detonação do transcendente, sobretudo se sobrepesarmos que ela é o princípio, o apoio inerente também à letra S, para se chegar à Trindade, notadamente o Filho. Sob este prisma, a letra S deixa de ser um mero fonema e assume a categoria de palavra, porque o poema se erige mediante uma linguagem cifrada, condensada, que caracteriza o fenômeno mágico. Como linguagem cifrada, a palavra também executa uma explosão cósmica de significados, confirmando-nos as palavras de Matila Ghyka (1959, 146), ao demonstrar-nos as dimensões do mágico, dizendo-nos tratar-se de condensação, de liberação, de utilização, aplicação em uma direção determinante, de energias de essência espiritual, física, desprendendo do centro ou de reservatórios vivos. A imagem de explosão de significados e de bênçãos se nos torna clara, ao verificarmos que o S central se encontra também nas extremidades do poema, compondo um quadrilátero ou dois, consoante a visão bipartida que o próprio poema oferece e que representa a oposição dos dois mundos: o espiritual e o material, o sagrado e o profano, o físico GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 340 e metafísico. É nesse sentido que os S são sombras do maior e que o suplicante recebe as dádivas através da sombra, porque, mesmo situandose simbolicamente dentro do labirinto, lá não se encontra fisicamente, porque humano e sob o estigma do pecado. Seguindo esta visão, somente as lavas da explosão chegam ao suplicante. Os S dos extremos, segundo este princípio, não assinalam apenas o final do vocábulo agas, mas passam a compor uma entidade significativa, ou seja, as energias liberadas pelo S do centro. Para aclararmos o estado de sombra do implorante, temos que voltar aos triângulos e verificar que, na verdade, seus vértices apontam para cima e para baixo, dando a impressão de que existe um equilíbrio entre o humano e o divino, sobretudo porque o Cristo se insere no triangulo descendente. Se atentarmos para os triângulos formados pelas letras A e M, verificamos uma predominância esmagadora de vértices para cima, cinqüenta e nove, contrapondo-se a apenas quatro voltados para baixo, formados pelo fonema N. É sob este sentido que aquele que roga se encontra à sombra do sagrado, porque insignificante, como se fosse os S das pontas do labirinto. As lavas que chegam a ele, a despeito da atenção da Mãe, fazem-no de forma dissoluta. Não obstante a letra M apontar para o alto, e até mesmo o mem, m, hebraico configurar um quadrado com algumas pontas ascendentes, é ela, levando adiante o simbolismo que lhe é impresso pela conformação primeira do hieróglifo, a letra da separação das águas do alto, mayin, ym, das águas de baixo, chamadas ma, m, ou dos limites entre os mundos de mi, ym, e de ma,hm. Observamos, deste modo, que a trindade, juntamente com a Sancta Mater, encontra-se nos dois extremos, pois o criador inexiste sem o criado. A presença de ma, hm, nos dois mundos, o do alto e o do baixo, se torna evidente, à medida que os visualizamos nas pontas dos dois triângulos, o ascendente e o descendente. Patenteando esta afirmação, ainda o lemos nas direções descendente e horizontal, em todas as extremidades dos triângulos, como a dizer-nos que a Mater, como ocorre à Trindade, também se encontra em todas as partes, ouvindo os pedidos de todos os implorantes. A estada da Mater no alto e no baixo é materializada pela própria letra M, à medida que ela conforma os triângulos ascendente e descendente. Além disso, é ela a letra da Mãe, à proporção que no alto, representado por Eloim, myhl), Deus, e no baixo, Adão, Md), podemos visualizar, ao final, a letra M ou mem, que forma a palavra em, M), a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 341 Mãe3. Assim entendido, a Sancta Maternão é apenas uma configuração fonêmica, mas uma palavra transcendente, que corporaliza o poder celestial e o poder maternal, porque Mãe em duplo sentido: no espiritual e no terreno. Se o triangulo e a letra M passam a ser , como símbolos e como signos-palavras a Mãe sendo, em seu mais integral e concreto significado, sentido idêntico podemos inferir do losango, que também pode ser visualizado na conformação semiosférica do poema. A mãe, sendo a parte feminina da divindade, confirmada pelo triangulo, em que encerra toda uma simbologia ligada à mulher, é ainda mais caracterizada pelo lozango, que é o feminino sendo. Ao simbolizar a matriz da vida, afina-se à ação que os filhos imploram: que ela exercite a pratique a sua maternidade, não somente gerando vida espiritual, mas, de modo especial, que olhe e proteja os filhos que passam por algum perigo. Para patentear esta interpretação, o losango, tal como se nos apresenta, composto de dois triângulos isósceles adjacentes na base, significaria, segundo Chevalier e Gheerbrant (1988, 558) os contatos e os intercâmbios entre o céu e a terra, entre o mundo superior e o inferior. Como estamos diante de um poema maneirista, em que os mundos se opõem em termos de entronização e de rebaixamento, a figura do losango se torna um símbolo lapidar nas relações possíveis entre o filho e a Sancta Mater, à medida que um se situa nos limites do humano e o outro, no da transcendência. Sob este prisma, também a letra M, neste poema, deixa de ser apenas o fonema inicial da palavra Mater, para ser uma palavra in se,porque impregnada de semias que lhe fazem a construtura semântica. É segundo esta concepção que a Sancta é, exercita e pratica a maternidade universal, porque palavra e mãe transcendentes. Mãe que, juntamente com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, zela pelos filhos súplices. É por estes motivos que a letra M multiplica o triangulo quarenta e oito vezes, pois a multiplicidade do triangulo visualiza a explosão da maternidade e das graças da Sancta Mater até atingir o fonema S do 3 É sob esta perspectiva que se explica a androgenia adâmica, porquanto ele figura simultaneamente como pai e como mãe, porque Adão, estando inserto na palavra Eloim, Deus e Mãe, também carrega em si a imagem do duplo: pai e mãe. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 342 vocábulo agas, posicionado nas extremidades do labirinto. Considerando que a letra M, como repetição, incorpora os simbolismos inerentes ao número, passando a simbolizar a humanidade divina, a multiplicação dos triângulos corporifica a multiplicação desta humanidade, à proporção que ela atinge todos os filhos suplicantes. Vemos, deste modo, que o labirinto, além de materializar o estado de ser do humano, ainda conforma um poema que encerra singular conformação semiosférica que servirá de modelo às vanguardas provocadas do século XX, como se verá a seguir. No século XX, a despeito de pairar uma atmosfera de materialismo, não desaparece totalmente a utilização de símbolos religiosos, mesmo que, muitas vezes, sejam usados como alegoria, mas sem perder suas ligações com as raízes, como ocorre com cálices criados por Dylan Thomas, Vicente Huidobro, César Leal e Paulo Galvão, ou com os labirintos de Wladimir Dias-Pino, Clemente Padin ou Fernando Aguiar. Mas um exemplo de criação do presente sobre o passado é Memórias de Sefarad, de Leonor Scliar Cabral, que, além de recriar as canções sefarditas, obedece, em seu plano construtural, à presença dos judeus na Península Ibérica e à presença de Iavé, subjacente nos atos religiosos, a sustentar-lhes os passos. É por isso que na primeira parte, momento de estar e de ser do povo, é também o momento da tradição, daí o reflexo, quase sempre, do simbólico no imaginário poético. Assim, o primeiro texto, intitulado Kidushin4, constrói-se sobre o ritual do casamento, como o próprio vocábulo o certifica, ao significar consagração. Na página א anterior, par, temos apenas álefe, , primeira letra do alfabeto hebraico, dominando a página de cima a abaixo e projetando-se pelo espaço em branco e sobre o poema, como se a imagem saísse do espelho, na letra K, sua correspondente visual, não gráfica, uma vez que a poetisa preferiu, para representá-la com a letra H, de Himeneu. Quem desconhece o simbolismo e o significado inerentes a cada um dos signos, não compreenderá o porquê da letra, seguida do espaço em branco. Ora, o álefe pertence à mesma raiz de alleph, Pl), que significa ensinar, de onde provém o substantivo alluph, príncipe, mestre, esposo. O que vemos no poema, senão a fala da virgem, em sua entrega ao esposo? Himeneu ao festim de nossa aliança/eu te aguardava na sala reservada./Tímida e ansiosa sob o véu sagrado,/eu não 4 Cerimônia de casamento. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 343 ousava levantar as pálpebras./O momento do desvelo é chegado/e nas mãos teu tremor ao revelar-me/é transferido ao talit franjado. Ao encerrar as semias de esposo, outras interpretações se nos tornam possíveis, como a própria relação do álefe, em sua configuração ideogrâmica, com o esposo, no sentido de homem-esposo do Gênese, representado pela cabeça. Sob esta ótica, a esposa passa a ser, alegoricamente, o povo israelita, em sua relação direta com o Criador. Reforça este enfoque o fato de o álefe conjugar-se aos simbolismos de fecundação, clara, também, na simbologia do pé direito rompendo a taça que, outra coisa não é, senão a conjunção do masculino com o feminino. Neste sentido, ainda, a esposa se revela como configuração da humanidade, ou do criado, em sua relação de interdependência com o Criador, também encerrada nas profundezas dos símbolos de álefe, sobretudo se atentarmos que ele se liga à semia de calor vital, bem clara no contato das mãos do esposo com o corpo da virgem. O poema, assim interpretado, constitui-se de duas partes distintas: uma, visível e inteligível, percebida na interação verbal, e outra, invisível, que percorre o espaço em branco da folha e se acopla ao texto que se lhe adere: ) GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 344 Kidushin Himeneu ao festim de nossa aliança, eu te aguardava na sala reservada. Tímida e ansiosa sob o véu sagrado, eu não ousava levantar as pálpebras. O momento do desvelo é chegado e nas mãos teu tremor ao revelar-me é transferido ao talit franjado. Rumo ao dossel, na tenda já me aguardas, por cedros e ciprestes sustentado. Salmos nupciais em bênçãos nos embalam e o vinho do desejo nos embriaga. Com o despojado anel tu me consagras pela lei de Israel e a fé mosaica e com a memória inscrita na palavra. As bênçãos sete vezes recebemos e que teu pé direito rompa a taça lembrando a dor do Templo destroçado. O invisível, não significa ausência de discurso, mas uma mensagem que se desprende da tradição e da língua hebraicas na evolução de cada letra a partir dos hieróglifos egípcios. Assim, a relação da letra do início do verso, H, de Himeneu, com o álefe, não constitui apenas uma seqüência, como ocorre nos abecês, mas um jogo profundo, à medida que os significados e os simbolismos de álefe se imbricam à forma e ao conteúdo de Himeneu, uma vez que esposa, álefe, e casamento, Himeneu, se completam, porquanto letra e palavra, antes de significarem, materializam e substantivam o Kidushin. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 345 Nossa postura hermenêutica se torna mais clara, quando verificamos que o procedimento perpassa, com maior ou menor intensidade, quase todos os poemas. Assim, o segundo poema, Meu avô, tem como correspondente a letra beth, p. Todo o discurso se converte numa espécie de condensação semiosférica da letra, à medida que abrange o lingüístico, o semântico e o simbólico . Todavia, ao lermos o poema, temos a impressão de que a letra beth nada tem a ver com seu conteúdo. Entanto, veremos, ao final, que a referência à casa constitui a reificação sêmica da letra, ou o seu reflexo, como se o conceito se desprendesse do signo, porquanto ela se origina da palavra bayit, hyp, que significa casa ─ Que o profeta à mesa sente/e abram as portas desta casa, agora transformada em templo! Estabelecendo correlações com o poema anterior, à medida que ele representa a relação do povo sefardita com Deus, este texto, ao colocarse sob o signo de beth, consubstancia esta correspondência, pois representa, também, criação. Não é sem motivo que a fala do profeta ─ com pão ázimo, do jugo vos libertarei, o primogênito será poupado, então vos libertarei, meu braço mostrará o caminho, da dor vos redimirei ─ se torna a palavra do Criador. Esta interação se robustece, quando verificamos que a esposa do poema anterior se confunde com a criação, à proporção que, na tradição hebraica, é ela chamada de a Virgem de Israel. Cristalizando a trajetória cultural e religiosa do povo judeu, o terceiro poema, correspondente à letra gimel, g, centra-se sobre um dos mais significativos acontecimentos da tradição judia: o ano novo. O poema, Tu Bishevat, ano novo dos frutos, não se prende à poética do festejo; antes, explora as semias de renovação e de retorno. Mais; constitui uma alegoria da peregrinação, como se o povo sempre estivesse em viagem e, em decorrência, em travessia. Estes elementos, expressos, em parte, por signos verbais, como o comprova o verbo, colocado na primeira pessoa do plural, do futuro do presente, voltaremos, permitem-nos ler a peregrinatio em toda a sua extensão mítica, como se o ser lírico estivesse sempre em rito e ritual de nasa’, CMN, viajar. Entanto, esta semia se materializa, não pela palavra, mas pelo símbolo, uma vez que, na cultura hebraica, é ele mais forte que o logos, o hp,, no sentido de verbo divino. Deste modo, quando lemos gimel, lmg,, como inicial de gamel, camelo, a significação de reservas para uma longa viagem, travessia, instala-se, como se houvesse se desprendido do ideograma primitivo, camelo, que dera origem à letra: Grãos granados de trigo e de cevada fumegam nas travessas abençoadas. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 346 Figos e uvas, azeitonas, tâmaras, romãs recém-colhidas das ramagens que na areia lavada vicejam formam guirlandas ao longo da toalha. Fiquem de pé, plantadas as figueiras e dos platôs, descendo, as parreiras que em provisória paz as mãos guerreiras teimaram em renascê-las dos incêndios. Mesmo curvados sob o cativeiro para colher teus frutos, voltaremos. Assim compreendido, todos os componentes alimentícios que perfazem o ritual se inserem na preparação para a longa viagem que será efetuada, sem se passar fome nem sede. Daí o acoplamento de gimel, g, voltado para um lado, com o G, voltado para o outro, como que conformando uma caixa em que se guardam água e grãos. Esta interpretação se torna evidente, ao verificarmos que a letra gimel, em sua conformação hieroglífica, assume a configuração de pilão, que, como um cadinho, contem alimentos modificados quanto à forma, sem, no entanto, perderem a substância, porque ainda inseridos em um ritual, tornando-se altamente simbólicos. Constatamos, por esse e por outros poemas a serem submetidos à análise que, nas três últimas décadas do século XX, a arte do poema visual apresenta nuances semiosféricas que instauram uma nova estética, fincada, entretanto, em princípios estéticos do passado. A mais radical, iniciada na década de 50, com o Poema de processo, suprimiu a palavra de alguns poemas e criou polêmica em torno do poético, á medida que surgem críticos que as não admitem no reino da poesia, feita eminentemente de palavras. Parece-nos, porém, que, a partir do momento em que se instaura o estético, gerado na ambigüidade do discurso eminentemente simbólico, o poético se instala, e, com ele, a literariedade, conjugada com técnicas inerentes ao discurso pictórico. Assim, se olharmos para o texto de Hugo Pontes, intitulado Nós, verificamos que não se trata simplesmente de uma pintura, ou apenas de um simples objeto visual; mas de um signo impregnado de sugestões semânticas. O título, pela homonímia verbal, já nos coloca em uma encruzilhada. Interpretando-o como plural de nó, somos levados, em princípio, a ver nos nós as dificuldades por que somos acossados ao longo da existência, mesmo quando o nó se liga ao poder, visualizado pela gravata: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 347 Por outro lado, se o nó da corda se liga a um princípio, o da gravata que, neste caso, não se liga ao pescoço, mas à corda, transformase também em princípio e em dificuldades, talvez impostas pelo cargo, pela própria sociedade e, sobretudo, pelo sistema político dominante à época em que o poema foi composto. Considerando a ligação do nó com a vida primordial, o lado da condição humana fica mais evidente, uma vez que se volta para as origens, provando que o homem, mesmo usando gravata, carrega consigo os limites humanos inerentes á existência. Desfazer os nós seria uma forma de o homem superar-se e libertar-se das misérias humanas. Ocorre que, nas circunstâncias impostas GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 348 pelos códigos visuais, seccioná-los ou trespassá-los é praticamente impossível. Deste modo, materializam eles um status quo intransponível, à medida que, quanto mais se quer livrar-se deles, mais amarrado se torna, uma vez que os nós mais se unem e apertam-se ao princípio, à origem dos limites humanos. Se o desenlace representa a passagem para o outro estágio existencial, a gravata, ao se entrelaçar com a corda e seus nós, objetiva um estado de ser irresoluto, incapaz de superar os seus limites e ascender a camadas mais elevadas, tanto em nível social quanto, principalmente, em nível ontológico. Não bastassem estas semias negativas, relativas ao signo nó, verificamos que ele se acopla também à imagem de forca que, em sua ambivalência, além de apontar para dificuldades intransponíveis, correlaciona também a uma espécie de roda da fortuna, ao acaso. Sob o signo de forca, tanto a vitória quanto a derrota podem ser detectadas. Entretanto, como predomina nesta forca a presença dos nós, seu simbolismo reforça a semântica de dificuldade e, sobretudo, do aspecto vil que perfaz a existência ou o sistema político por ela simbolizado. Importa verificar, sob esta ótica, que a gravata, símbolo de poder, ao interligar-se aos nós da corda e à forca, exerce uma semântica às avessas. Aponta para as amarras que a sociedade e os hábitos mantêm para aprisionar as pessoas, convertendo um símbolo de poder e de status social e econômico em signo de prisão e de vileza. Sob esse aspecto, o poema conforma uma ironia impiedosa à ditadura vigente. Esta interpretação se confirma, quando verificamos a outra face semântica de nós: pronome pessoal. É nessa acepção que nós todos estávamos prisioneiros dos nós da corda e da gravata. Ou seríamos os próprios nós, à medida que o homem, em sua condição existenciária, revela-se um mal incurável. Mas, o pronome pessoal nós também pode simbolizar todos os brasileiros que foram vítimas do poder desmedido do sistema ditatorial que mandava e desmandava no país à época. O fato é que o poema, em sua riqueza simbólica proporciona essa duplicidade interpretativa, a ponto de converter-se em verdadeiro cadinho de símbolos, que, certamente, propiciam outras interpretações. Depende apenas da acuidade do leitor descobri-las. O poema visual, deste modo, passa, como a toda a literatura, a interrogar o homem, desde a essência ou a sociedade e o mundo que necessita de transformações, a fim de que o homem possa se descobrir e conquistar o humano. Para proceder a este trabalho de perscrutação da essência e do fundamento do homem, todos as semiologias se interagem, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 349 como a semiologia oftalmológica nos poemas de Paulo Galvão, ou a cardiológica, no Soneto de coração dilacerado, de Rubervan du Nascimento. O poeta usa, na composição do texto, os gráficos de um eletrocardiograma. Todavia, a leitura do poema se inicia pelo vocábulo dilacerado, adjetivo demasiado forte relacionado ao coração, entendido como símbolo do amor. Sua semântica de aflito, despedaçado, lacerado, machucado, atormentado, leva-nos a correlacioná-lo a momentos diversos e contraditórios próprios da dinâmica do lírico e do trágico inerentes ao amor. A partir, portanto, do titulo, observamos que o lado semasiológico do poema se prende à leitura dos gráficos que se apresentam em cada estrofe e nos levam várias leituras. Em uma primeira interpretação, as ondas P — correspondentes à contração dos átrios5 —, que compõem os gráficos das três primeiras estrofes, deixam entrever, ao início, pouca distância entre as formas sinuosas e planas, que interpretamos como a existência de interrelacionamento coeso entre dois seres amantes. Inter-relacionamento que passa por momentos de tensão, tanto na final da primeira quanto da segunda estrofe, quando diminuem os picos, e as curvas ficam quase planas. Consoante com essa leitura, as ondas materializam momentos em que o relacionamento passa por dificuldades, tanto que, no segundo terceto, teríamos o total rompimento entre as duas pessoas, resultando no dilaceramento do coração, materializado pelo gráfico correspondente à taquicardia. Neste momento, não há oscilação, praticamente, a ponto de no segundo terceto, mormente no último verso-gráfico consubstanciar uma arritmia grave, advinda da impossibilidade de o coração voltar ao estado de repouso, ou de tranqüilidade, ocasionando a morte do amante. Entretanto, observando os detalhes todos das quatro estrofes, em que as ondas P e T se alternam com mais veemência, como na segunda estrofe, constatamos a matéria visual do inter-relacionamento entre dois seres que, mesmo se amando, são atores de momentos conflitantes. Essa interpretação se torna evidente, quando, no primeiro quarteto se tem o retorno à tranqüilidade, como o demonstra principalmente o terceiro verso, em que as ondas P e T estão em perfeita consonância. Mas, como à bonança segue-se a tempestade, no segundo terceto, o processo arrítmico chega ao máximo, e a relação se torna insuportável, resultando em inteira 5 Câmaras superiores do coração encontradas abaixo dos ventrículos direito e esquerdo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 350 desagregação dos seres, como se eles reproduzissem a bipolaridade dos membros materializada pela alternância entre ritmo e arritmia e, sobretudo, pela alternância entre as ondas6 e o QRS até seu integral desfazimento. Essas ondas, ao funcionarem como espécies de correntes elétricas, medem a intensidade com que se operam os movimentos de sístole e de diástole, ou de energia despendida pelo ser humano em sua correlação com o outro. Assim, podem empreender momentos de alternância compreendidos como amor, se o ser estiver realmente para o outro, naquela concepção defendida pelos existencialistas, ou contra o outro, como ocorre em instantes de desavença entre os amantes. Esse processo é substantivado no poema pelas ondas P, que opera a despolarização e a contração dos ventrículos, e T, que empreende a repolarização. No caso do poema, o gráfico ascendente, que corresponde ao fechamento da válvula, final da diástole, não ocorre, visualizando o processo de dilaceramento do coração. As freqüências das desavenças entre os dois amantes assemelham-se, deste modo, às freqüências cardíaca medida pelas ondas que verificam a condução sanguínea entre os ventrículos. Se não houver a correção do relacionamento entre os seres, ocorre algum bloqueio de ramos esquerdo ou direito. Quando o relacionamento não for mais possível, o bloqueio é integral, nos dois ventrículos, ocasionando a separação, que corresponde à morte do relacionamento, como o materializam os gráficos do segundo terceto: 6 As chamadas ondas revelam as voltagens elétricas geradas pelo coração, registradas pelo eletrocardiógrafo na superfície do corpo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 351 Outra leitura, também possível, seria exatamente o contrário, à medida que as ondas eletrocardiográficas representam contrações auriculares e ventriculares mediante oscilações planas, ascendentes que revelam um coração comprometido, enfermo. Essa enfermidade, entretanto, seria transposta para o nível do amor e revelaria o estado de amar do ser lírico, mormente considerando-o, em princípio, como sentimento unidirecional. Na primeira estrofe, todavia, em decorrência das oscilações materializadas pelas ondas, ter-se-ia um relacionamento em que o afeto não demanda, ainda, uma posição definida. Assim, se na primeira leitura houve rompimento das relações entre os seres amantes; GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 352 nesta, haverá a plena união, resultando, inclusive, em um processo erótico que passa por fases em crescendo e diminuendo, como se os amantes executassem movimentos musicais distintos. Consoante esta ótica, nos dois primeiros versos, as ondas conformariam um indivíduo em uma situação pré-lírica, ou pré-amorosa. Porém, nos dois últimos versos do primeiro quarteto, elas já denunciam aquele insite inicial, provindo de uma piscadela de olhos, de um sorriso, matérias de sintonia que se estabelece entre um ser e outro. No segundo quarteto, as oscilações, mormente nos dois últimos versos, diminuem a freqüência, objetivando a aceleração das contrações das cavidades cardíacas, mostrando que o coração se encontra em ação, e o desejo, naquela acepção do ser-um-para-o-outro, segundo uma concepção metafísica, intensifica-se. Na escala erótica que se vai instalando no poema, substantivada pelo jogo processado entre as ondas auriculares e ventriculares, verifica-se o início de uma atividade libidinosa, que se poderia definir como preliminares. No primeiro terceto, observamos o aumento da freqüência e, conseqüentemente, das contrações das aurículas, causadas pelo contato direto dos corpos. O último verso do terceto constituir-se-ia a matéria visual do coito, à medida que o coração já se coloca em movimentos plenos que culminam na passagem para o segundo terceto, momento de extrema taquicardia, visualização do orgasmo a que George Bataille chama de pequena morte ou, na percepção do poeta, instante em que o coração se dilacera, em perfeita imagem do amor pleno, ou de uma perfeita escatologia do amar. O poético, como vemos, pode se encontrar na letra, na palavra e, muitas vezes, nos símbolos. Basta que alguém saiba aplicar aquele sentido do fazer empregado pelos gregos e inseri-lo na construtura semiosférica do discurso, e o leitor seja capaz de sorvê-lo como objeto do prazer de ler e, sobretudo, do prazer de caminhar entre signos e poder admirá-los. 2 – O cibernético A exploração de recursos visuais para se obterem efeitos estéticos e semânticos passará por verdadeiro salto crítico chardeniano com o advento do computador, pois, em decorrência de suas múltiplas funções, em que a cibernética, kubernvtixo¿, exercita realmente o seu significado de condutor, de piloto, possibilita ao poeta, notadamente GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 353 aquele que se dedica ao poema visual, à ciberpoesia, transformar-se em kubernh¯tv», piloto, e em kubeuth¯», em jogador de dados, como o queria e como o fez Mallarmé. O poeta, assim entendido, será o kubeutixo¯», hábil nos jogos de dados, hábil nos jogos de palavras e de sinais que multiplicam os signos e seus semas no tabuleiro do poema. Este poeta cibernético e kibêutico pode ser percebido no poema a que Antonio Miranda, sob o pseudônimo de Da Nirhan Eros, intitula Basta7, composto pela palavra-título, aposta a uma parede formada pelo vocábulo muro, configurando um paralelogramo. Se o vocábulo muro, em si e por si, carrega a simbologia de proteção, a fim de que o superior não se contamine pelo inferior, a partir do momento em que ele assume a semântica de prisão, de cerceamento da liberdade, entendida como uma das mais profundas formas de manifestação do humano, o poema se transforma em um cadinho de símbolos conformados pelo humor e pela ironia. A visualização perfeita de seis colunas de palavras poderia apontar para o significado pitagórico deste número, poder; mas, como na sétima coluna a letra [o] foi suprimida, ironiza-se este tipo de poder, notadamente político, dominado por tiranas ideologias. Ironia que se avulta, à medida que o número, sete, mesmo tendo o vocábulo incompleto, simboliza a perfeição, e o muro, tal como é retratado no poema, revela a máxima insensatez do poder: 7 Versão animaverbivisual no link http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/poesia_visual.html. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 354 A ironia como que se materializa, se torna palpável, como que com o dedo, ao verificarmos que a letra [o] em sua conformação hieroglífica significa olho, visão. Ora, nada mais cego que construir um muro para separar pessoas, para impedir a liberdade do ir-e-vir. Além disso, a letra [o] se correlaciona diretamente com o círculo e, portanto, incorpora significados de perfeição e, de movimento, ao significar fonte, que pressupõem a existência, a prática e a práxis da liberdade. Não sem motivo, as palavras se repetem sete vezes na vertical e na horizontal, tornando a perfeição digna de riso, de mofa, como o comprova a palavra móbile basta dissolvendo-se sobre o concreto do muro. A dissolução do móbile basta revela a amplidão simbólica do vocábulo-poema muro, que perde o conhecido referencial histórico e se insere na dimensão metafísica, à medida que encerra todo tipo de opressão, de cerceamento da liberdade. A dissolução dos fonemas ante a dureza do concreto evidencia esta interpretação e mostra, ao mesmo tempo, uma espécie de imponderabilidade do mal. Por outro lado, o fato de aparecerem apenas as sombras da palavra na linha inferior do poema, aliada à supressão do fonema [o] reitera um dos aspectos simbólicos de muro, enquanto representação de sistemas e de ideologias políticas: o inevitável desmoronamento, uma vez que, como diz o provérbio, não há mal que sempre ature. Importa ressaltar que o móbile basta, ao empreender os movimentos reais de dissolução, converte a fôrma semiótica do poema em matéria significante densa de significados, dificilmente conseguidos por intermédio da palavra estática colocada sobre as outras. Assim entendida, a dissolução do móbile, aliada à fragmentação parcial do muro, substantiva as dificuldades de se destruírem todas as barreiras ideológicas existentes entre povos, pessoas e sistemas políticos. Mas, ao verificarmos que todo o poema se encontra dentro do paralelogramo, temos a confirmação e a materialização da ironia, uma vez que ele, como o quadrado, revela-se antítese do transcendente, ou seja, de uma ideologia que se não sustenta por si mesma. Todavia, ao visualizarmos a versão impressa, em que o vocábulo basta se encontra estático frente ao muro, constatamos que a ironia vai além da dissolução da palavra, uma vez que a ideologia impressa ao poder ultrapassa à metafísica da liberdade. Isso quer dizer que, a despeito de a maioria manifestar desejo de que os muros se acabem, elas estão sempre presentes na história da humanidade, uma vez que o possível esfacelamento do muro não implica a destruição da ideologia. O resultado GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 355 é a dissolução da palavra basta, como se ela fosse inútil diante das potências do poder ou a posição estática que materializa a própria impotência diante dos muros insanos das inúmeras formas de tiranias. Assim interpretado, o conflito entre basta e muro assume uma dimensão em que a linguagem visual incorpora uma semântica possível de ser percebida apenas em sua face metafísica. É desse modo que vemos a linguagem em toda a sua extensão poética e, em decorrência, em toda a condensação do estético. A arte, qualquer que seja, visa a cristalizar e a revelar o ser do homem no mundo de forma estética. Por isso, a história das artes entendida como evolução das formas e das fôrmas artísticas, percebidas segundo uma dimensão semiosférica, encerra também a história da humanidade, com suas interfaces de grandeza e de pequeneza, de sublime e de miséria, de inteligência e de estupidez. Os avanços tecnológicos, ao colocarem-se a serviço das artes, não eliminam o lado pequeno, ínfimo e estulto da humanidade. Antes, são utilizados para materializar e para ironizar os limites do homem, consoante a polissemia inerente à linguagem, compreendida em sua composição de signos, de sinais e de símbolos, como se lê no ciberpoema, ou vídeo-poema, Não é Black x White – nós é mestiço,8 em que ela assume uma dimensão ontologicamente diferenciada. A oposição Black/White – branco/preto – oriunda de um preconceito, infelizmente criado pela mente de alguns pobres de espírito, porquanto essa desgraça não existisse nestes brasis, é materializada no poema mediante procedimentos semiosféricos inúmeros, que instauram a ironia e o humor e mediante a negação dos contrários e, sobretudo, do contraditório. A ironia, antes de se inserir nas palavras, em inglês, a fim de imprimir um tom universal à nefanda acepção de racismo, inscreve-se no signo, no sinal e no símbolo [X] que, em vez de materializar a semântica de oposição, de rivalidade, de antagonismo, substantiva a noção de mistério inerente à essência da letra em sua concepção hieroglífica, como a interrogar: a quem interessa a disseminação desse perverso e abominável preconceito? Ademais, a correlação da letra [X] com as cores preta e branca evidencia exatamente o mistério da insensatez, fulcralmente marcada pela 8 Ver o vídeo-poema no link http://www.antoniomiranda.com.br/livros/poesia_e_ciberpoesia_imagens_em_ movimento.html GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 356 má-fé, por intenções escusas, à medida que a interação entre elas, em substância, depende de prismas propagados pela luz, como já o demonstraram cientificamente Newton e Goethe e praticaram Kandinsky e Paul Klee na arte pictórica. Consoante essa perspectiva, as diferenças entre elas constituem apenas ilusão de ótica e, em decorrência, cegueira, uma vez que a oposição só existe nos olhos de quem não tem luz, como se o cérebro do racista fosse incapaz de processar os matizes inerentes a cada cor. Essa interpretação longe de ser uma ilação sofística, consubstancia-se pela visualização da matéria poemática animaverbivisualizada, em que as pessoas em movimento perdem o contorno e, em decorrência, se tornam massa indiferenciada e, portanto, sem referencial cromático próprio de cada raça. A ironia se adensa, à medida que os passantes são identificados, se é que assim se pode afirmar, unicamente pelas cores das roupas. Trata-se, entretanto, de uma identidade que é multiplicidade, uma vez que elas se perdem no burburinho e, sobretudo, na rapidez com que se movimentam sem se poder determinar nenhum ser em especial. Por isso, se vêem diferenças apenas pela metade, uma vez que o racismo configura uma visão estreita, pequena e, portanto, execrável do ser do homem, que se percebe apenas em humanidade e, não, em humano, porque inteiramente destituído do sublime, do superlativo de ser. Mais impiedosa a ironia, ao constatar-se que as cores só aparecem nas partes baixas dos membros, a mostrar que ver os seres em um contexto racial assemelha-se a verificá-los apenas no sentido terra-a-terra, como se fossem vistos sem os matizes que a luz confere ao olhar em profundidade. O racismo, assim compreendido, configura uma espécie de doença, o astigmatismo, pois o racista é incapaz enxerga as cores de forma homogênea, à medida que tem a luz e o cérebro refratados. O texto verbal, extraído do filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, recitado em sussurro, com voz cavernosa, traduz bem a percepção obscura de quem se revela racista, porquanto fechado, sem que se possa ferir nem matar e nem o sangue do corpo derramar. A ironia se torna cruel, à proporção que se observa que a frase, mais que intertextualizaçao, é repetição pura e simples de uma oração afroubandista usada para fechar o corpo. No contexto do poema, ela se torna ainda mais irônica, à medida que se cognomina Oração do justo juiz. Justo juiz, ou juízo, que se carrega de humor ferino, no momento em que se fecha o corpo exatamente contra o racismo, uma vez que os brasileiros são mestiços. Não o fosse, e estudiosos da estirpe de Darcy GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 357 Ribeiro e Gilberto Freyre não perderiam seu tempo, a fim de comprovar o óbvio, mas necessário aos olhos míopes e hipermetrópicos dos demagogos, para quem o Brasil não tinha história e, portanto, não existia até o início do século XXI. Mas, esse enclausuramento e, mormente, esse embotamento antroposófico, patenteiam-se, notadamente, em nível mental, na segunda parte do título do poema – nós é mestiço, pois ser racista, em um país como o Brasil, é ignorar a conformação antropológica do povo, visto que a maioria absoluta da população provém de algum tipo de cruzamento que compreende todas as raças. Portanto, ser racista é realmente ter a cabeça fechada, é não se enxergar no concerto antropológico, antroposófico e sociológico da nação. Para mais se materializar o absurdo da ideologia, as cores das roupas se aglutinam e se amalgamam em matizes indefinidos do mesmo modo que as pessoas, no corre-corre das imagens e na indefinição de contornos operados exatamente na parte superior do tronco a constituir-se objeto e matéria de miscigenação típica do brasileiro. Além disso, mais se ironiza, à proporção que as cores predominantes, verde, amarelo e azul, tanto em movimento, quanto em imagem congelada, substantivam as cores da bandeira que é signo, sinal e símbolo do povo e da nação. A mensagem do poema, entretanto, vai mais longe, ao empregar, em sua conformação verbal, a distonia sintática e semântica entre o pronome pessoal e a pessoa do verbo ser, no indicativo presente, porquanto indica um ser plural singular ou singular plural, que é o mestiço, e a linguagem, permitida e aconselhada pelo órgão máximo – ou mínimo? – da educação do país. A adoção de uma variante popular de linguagem, verdadeiro idioleto, para justificar a chamada inclusão social, além de demagógica, é altamente preconceituosa: tão ou mais que a racista, pois, ao se empregar a língua, instrumento de identificação ôntica e ontológica, social e metafísica do povo e da nação, é necessário que se observem os momentos em que ela é utilizada e, não, simplesmente declarar uma forma admissível indiscriminadamente, ao confundir educação e cultura com política no mais abjeto dos sentidos, uma vez que é prática e exercício de sofismas. O preconceito lingüístico criado pelos ideólogos de plantão é tão deplorável e detestável quanto o racista. É por isso que esse ciberpoema, aparentemente destituído de fundamento estético, é perfeito e, em decorrência, é sublime, porque superlativo de arte poética em linguagens múltiplas, semiosfericamente elaboradas. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 358 Já o poema Hombre caminante,9 do poeta uruguaio, Clemente Padim, em sua configuração congelada, representa um ser conformado por signos que mostram a inter-relação perfeita entre homem e linguagem. Inter-relação que se adensa, à medida que os signos espatifados não formam nenhuma palavra, levando-se a interpretar o poema como um homem que perdeu a linguagem verbal e incorporou uma série de signos e de sinais em decorrência de seu estado de objeto, perante o excesso de informações típicas da modernidade. Por outro lado, a imagem em movimento, ou animaverbivisual, mostra um ser também composto de signos, mas em uma dimensão mais profunda da linguagem, porquanto materializa realmente um ser simbiótico, a caminhar sempre para frente, naquele sentido de homo viator, em que se é compelido a empreender uma travessia existencial. Ter-se-ia, assim interpretado, um homem de linguagem semiosférica, à medida que ele incorpora todos os signos necessários para ser e revelarse, não dispensando os signos cibernéticos próprios da modernidade. Porém, trata-se de um homem destituído de interioridade, à medida que caminha sempre para frente, e a perspectiva metafísica do homo viator requer que ele caminhe, antes de tudo, para a essência, pois caminhar sempre para frente, sob a ótica da ontologia, não leva a lugar algum. Todavia, se se observar bem a figura em movimento, verifica-se que os signos se movimentam também para o interior do ser, substantivando o verdadeiro sentido do caminhar, entendido como mergulho dentro de si mesmo. De qualquer modo, o fato de os signos não comporem nenhuma palavra, especificamente, leva à interpretação de que esse Caminante é a matéria e a substância do homem moderno, marcado por aquela angústia metafísica revelada, segundo Heidegger, por uma linguagem espatifada. Esse espatifar-se, ao ser contraposto à figura que caminha não se ligar a uma perspectiva metafísica, porquanto o Caminante apenas caminha. Não apresenta aquele aspecto de figura pensante, como se vê na estátua de Rodin. Ele está mais para um ente autômato que para um ser que se pensa: 9 Veja o poema animado no site http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/poedigital/poedig001.htm GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 359 Outra interpretação possível, considerando o fato de a cabeça da figura humana, formar-se pelo número um, repetido três vezes, e por zeros colocados à esquerda, também três vezes, e o cifrão, objetiva o homem voltado apenas para a matéria, para o lucro e o consumo, tal como se observa na atualidade. O número, ao apontar para a unidade, constituiria uma atitude louvável, não fosse ele repetido três vezes. O ternário, símbolo, por excelência, da ação, materializa, nessa interpretação, um homem sem interioridade, porque conformado à ação e, não, à busca da essência. Essa ação se confirma pela presença do vocábulo ON a significar que ele está sempre ligado aos números, aos cifrões de forma mecânica, apenas como matéria e, não, como busca do humano. Assim entendido, a linguagem se espatifa exatamente porque não lhe interessa a sua dimensão metafísica, mas a sua transformação em instrumento de lucro, materializado pelo cifrão e pela seqüência numérica. Essa leitura se reforça, ao verificarmos que, além da cabeça, a parte que corresponde ao pescoço, sustentáculo da cabeça e ligação entre ela e o corpo, se compõe de pontos, vírgulas e outros signos matemáticos, que substantivam nossa interpretação de ser esse homem apenas um caminhante destituído de dimensão metafísica. Não o fosse, e esses GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 360 signos não se sobreporiam às letras responsáveis pela formação das palavras, entendidas como forma e matéria do humano. Ainda corroborando com nossa interpretação, observamos que a maioria dos signos que conformam o Caminante são símbolos utilizados nas operações matemáticas. Em decorrência, o indivíduo que caminha seria muito mais números e cifras que letras conformadoras de palavras. Assim entendido, esse ente caminhante realmente está caminhando sempre para frente, uma vez que não revela nenhum sentido essencial do humano, mas a dimensão da matéria, de que os números, atualmente, são a mais perfeita representação. Essa simbologia se torna ainda mais evidente, ao observarmos que os dois únicos ponto e vírgula existentes nesse discurso, encontram-se nas costas exatamente porque, a cada passo que ele empreende, está mais longe de si mesmo, naquele sentido de substância humana. A dimensão da matéria, representada por sinais matemáticos, torna-se ainda mais evidente, quando observamos que os sinais de = criam uma ambigüidade imensa, à medida que nunca anunciam um resultado perfeito, porquanto o um ou está antecedido pelo sinal de – ou por sinais que não representam positividade em relação à essência do indivíduo, considerando que se trata de um ente incógnito. Mas, esse estado de matéria do Caminante se torna perceptível, como que com o dedo, ao constatarmos que não vê em sua composição matemática o sinal de +, a mostrar que se trata de uma pessoa que acumula números, mas nada soma à sua essência. Mesmo porque o centro de seu ser é formado por cifrão e arrobas, símbolos essencialmente relacionados aos bens materiais. A circunvolução dos signos nos movimentos empreendidos pelo caminhante não se revestiria dos mesmos efeitos semânticos se a figura não fosse animada, porque não se observaria o vai-e-vem das cifras na cabeça e no corpo. Esse ir-e-vir dos signos, mormente aqueles típicos da matemática, materializa um estado de perda e ganho, de ser e não-ser, à medida que a matéria tende a ser imatéria, não porque a persona atingiu um estado de ser; mas exatamente por caminhar entre o número e o número, entre o igual e o negativo, entre a arroba e o cifrão. Não sem razão, o ente criado por Padim caminha no vazio, a materializar a viagem para o nada, visto ser essa persona inteiramente destituída de interioridade, de valores permanentes, que o faça caminhar, também, para a verticalidade do sublime, entendido como o encontro do homem com o humano. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 361 Verificamos, por essas análises, que o poema visual passou pelas mesmas transformações construturais verificadas no discurso poético verbal, a fim de acompanhar as diversas circunstâncias existenciais sofridas pelo homem e pela sociedade ao longo do tempo, uma vez que elas implicam, também, transformações nos padrões estéticos de todas as artes. Assim, o advento da multimídia exigiu, não apenas que o poema seja visto em sua conformação estática; mas, sobretudo, em movimentos, que imprimem ao discurso novas dimensões semânticas, tornando-o mais expressivo, visto que a imagem em movimento incorpora a polissemia inerente ao poético. 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Entretanto, conforme Viviane de Melo Resende e Viviane Ramalho, professoras do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), apesar do interesse cada vez maior de pesquisadores pela ADC, há uma defasagem de obras introdutórias na área. Por isso, com o objetivo de contemplar os interesses de iniciantes nesse campo de conhecimento, as pesquisadoras referidas apresentam uma revisão da obra de Norman Fairclough. Em seu livro, Análise de Discurso Crítica, as autoras revisam os princípios básicos das obras do linguista britânico e fazem reflexões sobre aspectos das Ciências Sociais. A obra é dividida em quatro capítulos, iniciando com questões teóricas e finalizando com exemplos de análises realizadas pelas próprias autoras. No primeiro capítulo – Noções Preliminares – elas localizam a ADC e apresentam as diferenças entre formalismo e funcionalismo; asseguram que esta é a concepção de linguagem válida para os analistas do discurso, porque associa forma e significado. As autoras se referem também à orientação social e linguística da ADC, ressaltando as contribuições de Bakhtin (relação da língua com o usuário, substituição do enunciado pela enunciação e visão polifônica e dialógica da linguagem) e de Foucault (língua como constitutiva do sujeito, relação entre discurso e poder e mudança na prática discursiva em decorrência da mudança social). Para finalizar o capítulo, as professoras descrevem a origem e o desenvolvimento da ADC, destacando a proposta de Fairclough para a análise de discurso linguisticamente orientada e as bases para se atingir este objetivo: visão científica de crítica social, enquadramento no campo 1 Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e Mestre em Educação. Email: [email protected] GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 365 da pesquisa social crítica sobre a modernidade tardia e teoria e análise linguística e semiótica. No capítulo dois – Ciência Social Crítica e Análise de Discurso Crítica – são destacados cinco itens, como se apresenta a seguir. i) Discurso como prática social: Aqui as autoras afirmam que o uso da linguagem como prática social é constituído socialmente e constitutivo de identidades e sistemas de conhecimento e crença, portanto o discurso é construído pela estrutura social e constitutivo dela. Elas enfatizam, ainda, a concepção tridimensional do discurso, proposta por Fairclough (2001). Embora não esteja referido no livro ora resenhado, é oportuno observar o pensamento de Costa (2007, pág. 76-77): “Esta sequência [texto, prática discursiva e prática social] é útil porque permite ordenar a inserção de um sujeito em uma amostra discursiva particular antes de apresentá-la na forma escrita. Cria-se, portanto, uma progressão analítica da interpretação à descrição e de volta à interpretação: da interpretação da prática discursiva (produção e consumo do texto) à descrição do texto e à interpretação de ambas, conforme a prática social em que o discurso se situa.” ii) Discurso na modernidade tardia: A modernidade tardia é descrita como as descontinuidades institucionais em relação à cultura e aos modos de vida pré-modernos. Para Guidens, criador dessa teoria, as pessoas escolhem estilos de vida (construção reflexiva) ao contrário do passado, quando as escolhas eram determinadas pela tradição. No entanto, é preciso admitir a existência de sujeitos a quem a condição social é imposta, e eles não têm o direito a escolhas. iii) Discurso como um momento de práticas sociais: Neste item, as autoras apresentam as três razões de Chouliaraki e Fairclough (1999) para esse enquadramento do discurso: maior abertura nas análises, interesse na análise de práticas decorrentes de relações exploratórias e articulação entre discurso e outros elementos sociais na formação das práticas. iv) Discurso e luta hegemônica: É retomado o conceito de Gramsci para hegemonia: domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado mais no consenso do que no uso da força. Assim o poder jamais é atingido senão GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 366 parcial e temporariamente na luta hegemônica; e isso está em conformidade com a dialética do discurso proposta por Fairclough. São destacadas também as relações entre discurso e hegemonia: 1. Hegemonia e luta hegemônica assumem a forma de prática discursiva em interações verbais (é a dialética entre discurso e sociedade). 2. O discurso é uma esfera da hegemonia, a partir de práticas e ordens discursivas que a sustentam. A hegemonia é quem ressalta a importância da ideologia. v. Discurso e ideologia: Para as autoras, uma representação é ideológica quando contribui para a sustentação ou para a transformação de relações de dominação. Daí a importância de a análise do discurso ser orientada linguística e socialmente. O conceito de ideologia adotado pela ADC é baseado nos estudos de Thompson (2007), para quem ela é, por natureza, hegemônica, pois estabelece e sustenta relações de dominação e, portanto, reproduz a ordem social. Baseadas em Thompson, as autoras apresentam os modos gerais da ideologia: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação. No capítulo três – Linguística Sistêmica Funcional e Análise de Discurso Crítica – as autoras apresentam os aspectos linguísticos da análise do discurso. Elas afirmam que a teoria social do discurso se orienta linguisticamente pela Linguística Sistêmica Funcional, de Halliday. Apresentam também as macrofunções da linguagem (ideacional, interpessoal e textual), conforme Halliday, e a perspectiva do desenvolvimento multifuncional da linguagem, segundo as funções identificadas por Halliday (1991), Fairclough (2001) e Fairclough (2003). Quanto a significado acional, as autoras destacam que a prática social produz e utiliza gêneros discursivos particulares, que mobilizam discursos de forma relativamente estável em contextos históricos, sociais e culturais específicos. No que se refere a significado representacional, elas afirmam que diferentes discursos representam diferentes perspectivas de mundo, conforme as diferentes relações que as pessoas têm com o mundo e com as outras pessoas. Para o significado identificacional, elas lembram que estilos se relacionam à identificação de atores sociais em textos e que as GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 367 identidades e diferenças, por serem construções simbólicas, tornam-se instáveis, portanto sujeitas às relações de poder e às lutas hegemônicas. Para a ADC, no embate discursivo a estabilização é sempre relativa, porque os sujeitos são agentes sociais criativos e capazes de criar e de mudar identidades discursivas. O capítulo quatro – Exemplos de práticas de análises – mostra alguns exemplos de aplicação do referencial teórico-metodológico da ADC em análises conduzidas pelas autoras. Na primeira parte, é apresentado um recorte do trabalho “O discurso da imprensa brasileira sobre a invasão anglo-saxônica ao Iraque”. A análise focalizou três categorias: intertextualidade, representação de atores sociais e metáforas, de modo a evidenciar a relação entre o evento concreto da invasão ao Iraque como um conjunto de práticas sociais da instauração e sustentação de uma “nova ordem mundial”, liderada pelos Estados Unidos. Na segunda parte do capítulo, são analisados os significados acional, representacional e identificacional de um folheto de cordel intitulado Meninos de rua, parte de uma pesquisa feita por Resende (2005). A análise linguística revela a postura crítica do autor do cordel em relação à falta do Estado para com suas funções sociais. Embora a leitura seja bastante didática, especialmente para pesquisadores iniciantes na ADC, ela é bastante limitada nos seguintes aspectos: contextualização com obras de autores brasileiros e estrangeiros, especialmente os pioneiros em ADC; críticas à ADC; e referências a novas tendências e objetos para a ADC, como a análise de imagens. REFERÊNCIAS CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. COSTA, E. W. C. Análise crítica do discurso no gênero introdutório: o conceito de professor reflexivo em monografias de especialização na UECE. [Dissertação de Mestrado]. Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2007. FAIRCLOUGH, Norman. El análisis crítico Del discurso como método para la investigación en ciencias sociales. In: WODAK, R.; MEYER, M. Métodos de análisis crítico del discurso. Barcelona: Gedisa, 2003. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 368 --------------------- Discurso e mudança social. Izabel Magalhães, coordenadora da tradução, revisão técnica e prefácio. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, 2008 (reimpressão). HALLIDAY, M. A. K. Context of Situation. In: HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. (org.) Language, Context and Text: aspects of language in a socialsemiotic perspective. 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A narradora protagonista, sob o pretexto de escrever a sua tese de doutorado, muda-se para um apartamento nos Estados Unidos, acompanhada do marido cujo nome é identificado apenas pela letra M. Ela, filha de uma argentina expatriada, e M formam o casal recém-chegado que tenta pertencer a algum lugar, enquanto luta para escapar da sensação de deslocamento. Além dessa obra de 2009, a autora também publicou os livros de contos A duas mãos (7Letras, 2003) e Mais ao sul (Língua Geral, 2008) e integra o volume 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record, 2004), entre outras antologias. O romance está dividido em três partes: 1) Los Angeles, 2) Rio de Janeiro e 3) Los Angeles. A própria separação do livro dá indícios das estratégias narrativas da autora, que faz alusão a uma rota, percurso ou trajeto de viagem. A narração em primeira pessoa predomina, mas desaparece em determinados momentos quando a história é contada em terceira pessoa ou, até mesmo, segunda. Logo nas primeiras linhas de Algum lugar, para utilizar o conceito do antropólogo francês Marc Augé, o cenário apresentado é um “não-lugar”, é um espaço transitório: o saguão do aeroporto de Los Angeles, por onde circulam indivíduos de diferentes nacionalidades, culturas, sotaques, idiomas, entre outras marcas identitárias. Na definição de Augé, os não-lugares não possuem características pessoais, seriam espaços de anonimato no dia a dia, descaracterizados, impessoais. Em Algum lugar, portanto, é possível que o saguão do aeroporto seja o ambiente metonímico de como a narradora, que é a figura central do romance, sente-se ao longo da história: sem pertencer a nenhum lugar em meio a tantas aparentes possibilidades de pertencimento. É lá que a narradora desembarca e permanece à espera de M, e é a partir desse momento que tem início toda a narrativa de Paloma Vidal, que reúne os conflitos de adaptação de quem se muda de um lugar para outro, a sensação de deslocamento, desamparo, entre outros sentimentos e aflições comuns não apenas à experiência de mudança, mas especialmente à ausência de pertencimento no mundo “globalizado”. 1 Mestre em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 370 Além do casal, outros personagens configuram o espaço de diversas identidades culturais no romance: há a vizinha colombiana; o aluno americano, Jay, que tem aulas de espanhol com a narradora; a amiga coreana, Luci, cujo comportamento descrito sugere, em alguns momentos, um estado de quase apatia em relação aos sentimentos da narradora; o porteiro do prédio, que é do Tennessee e namora uma equatoriana; o colega espanhol Pablo, que surge mais adiante, entre outros. Personagens com quem a narradora mantém algum tipo de contato, mas não estabelece relação de intimidade (no sentido mais abrangente da expressão). A inserção de personagens de diferentes nacionalidades ou regiões, que se encontram numa mesma cidade dos Estados Unidos, evidencia que a distância entre os países se torna cada vez mais curta, principalmente considerando a nova ordem social global, segundo a qual as noções de tempo e espaço se alteram significativamente, as fronteiras regionais e nacionais se transformam, a expressão “identidade cultural” se torna controversa. Se assim é possível dizer, Algum lugar condensa aspectos da realidade social contemporânea quando traz para uma estrutura literária questões relacionadas a essa nova ordem. Não por acaso, o leitor nunca saberá o nome da protagonista, uma vez que nem ela mesma sabe quem ela é na cidade de Los Angeles. Em Novas geografias narrativas (2007), a professora Maria Zilda Ferreira Cury reconhece não ser tão simples caracterizar e classificar as narrativas da literatura brasileira contemporânea. Isso porque os autores ainda estão escrevendo e publicando as suas obras, além de haver a nossa proximidade temporal e espacial com essa escrita. No entanto, na avaliação da professora, isto já é possível observar: a ficção brasileira contemporânea tem suas raízes no espaço urbano. No caso de Algum lugar, as cidades não aparecem necessariamente como sinônimo de agitação e violência, características de grandes metrópoles, mas dá lugar a inquietações particulares e à reflexão sobre nossa própria condição de existência, “a vontade de ser parte de alguma coisa”, conforme diz a narradora. Ainda sob a perspectiva das novas geografias narrativas, no artigo O nômade e a geografia (2004), o professor Renato Cordeiro Gomes fala sobre o lugar e não-lugar na narrativa urbana contemporânea. Segundo ele, ao desterritorializar a experiência do indivíduo, esse não-lugar “institui a possibilidade e a necessidade do voltar-se sobre si próprio, abrindo possibilidades para a configuração da subjetividade”. Desse modo, verifica-se que a sensação de deslocamento vivida pela narradora do romance, na condição de sujeito contemporâneo, abre espaço para novos questionamentos (“Nunca tinha parado para pensar nessa ind stria do enterro”). Na segunda parte do livro, a narradora – após abandonar o doutorado (“O que me fez pensar que eu conseguiria escrever uma tese?”) – está de volta ao Rio de Janeiro. O retorno de M ocorreu pouco antes (“Decidiu partir GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 371 abruptamente”). Ela descobre que está grávida, mas não demonstra a ansiedade considerada própria da maternidade (“não estou com pressa de que ele chegue”). A narradora vive agora o estranhamento dessa experiência (“Quando finalmente o segurei nos braços, não chorei. Só entendi que era mãe quando o vi sugando de olhos fechados o meu peito”). Assim como o pai, a criança é identificada apenas pela letra C. A escritora portenha Paloma Vidal – que também é professora, tradutora e pesquisadora – não nominou os principais personagens de Algum lugar. Ela preserva o anonimato da narradora e identifica dois personagens pelas letras M e C, como já foi dito. Tal estratégia narrativa se assemelha a outras obras da literatura, cujas figuras ficcionais também não têm nomes, marca tão própria das civilizações. Em Algum lugar, o anonimato é parte da solidão, do deslocamento, da impossibilidade de se reconhecer neste mundo, deste sentimento de não ser de nenhum lugar, de não poder pertencer nem mesmo aos outros, nem a si mesmo. A falta de intimidade entre os personagens, incluindo o conflito entre a narradora e Luci, também denuncia certa incapacidade nossa de tratar o estranho de modo mais humano, numa época “pós-moderna”, para lembrar o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em Amor líquido (2004). No artigo Quando a esperança é subversiva (2004), o professor e crítico cultural dos Estados Unidos, Henry A. Giroux, questiona se é possível imaginar a esperança por justiça e humanidade depois da tortura de iraquianos detidos por soldados americanos na prisão de Abu Ghraib, complexo penitenciário localizado na cidade do Iraque, que ganhou as manchetes dos jornais de todo o mundo no início de 2004. No texto, Giroux afirma que a esperança é a precondição para a luta individual e social. Em Algum lugar, a narradora é contemporânea desse episódio, inclusive, do início ao fim do romance, há pelo menos quatro menções diretas ao assunto. A suspeita aqui é a de que Abu Ghraib também constitui um não-lugar ou um lugar fora do mundo, onde as pessoas não tinham nomes, nacionalidades, cidadania, direitos ou mesmo humanidades, eram como objetos ou animais criados pelos torturadores. No mundo globalizado, termo cujas raízes históricas exigem mais reflexão, de acordo com o pensamento de Bauman, o espaço e o tempo se comprimem, os acontecimentos geram impacto imediato sobre as pessoas e alcançam cada vez mais lugares distantes. Abu Ghraib e Los Angeles, por exemplo, integram a mesma narrativa, parecem lugares tão próximos, mas ao mesmo tempo tão desconexos. Na prisão iraquiana, o terror foi exposto para o mundo; em Los Angeles, há uma aparente naturalidade, que esconde pessoas como “a mendiga vestida com várias camadas de roupas”, pessoas que, de alguma forma, também estão aquarteladas (“Não há terreno neutro [...] entre liberdade e escravidão”). A terceira parte do romance é curta e ocupa apenas as últimas 14 páginas do livro, do total de 176, como se o que restou de toda a experiência da GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 372 narradora pudesse se resumir em poucas palavras. Nelas, a protagonista comenta sua separação com M, que houve um ano antes, e descreve como ambos fazem para se revezar nos cuidados de C. Ela tenta entender o que acontecera com a relação dos dois, mas não consegue. O sentimento é de que, desde Los Angeles, algo se diluía à medida que ela – com sua própria experiência de deslocamento – buscava se aproximar de M. As diversas tentativas de se integrar à cidade norteamericana produziam o efeito contrário: o impedimento de ser parte daquele lugar. Da mesma forma que em Los Angeles a narradora e M vivenciaram os conflitos de adaptação, a sensação de deslocamento, o estranhamento, a inquietação de estarem confinados e isolados, o retorno à capital fluminense também insinua ou revela que tais sentimentos permanecem, mesmo os personagens estando num lugar que “se reconheceria deles”. Talvez aqui estejam as tensões do lugar e não-lugar desta contemporaneidade; a indefinição da identidade cultural, do tempo ou do espaço, na sociedade pós-moderna, para lembrar Stuart Hall. Independentemente do lugar para onde as personagens se deslocam, a impressão de desamparo, de inquietude e de exclusão permanece. Em Literatura e sociedade (2006), Antonio Candido discute no primeiro capítulo questões que envolveram, em determinada época do Brasil, o debate sobre a obra literária e o seu condicionamento social. Evidentemente, em se tratando de literatura, por exemplo, seria equivocado acreditar que o valor estético de Algum lugar se deve a certo aspecto da realidade que o livro exprime. Contudo, ainda considerando as observações de Candido, pode-se compreender a obra “fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra”, sob a perspectiva de uma análise do “todo indissol vel”. Quanto a isso, fica difícil não compreendermos que esse romance assimila a dimensão social de nossa época, as relações entre globalização e o sujeito contemporâneo. Algum lugar não é um típico livro sobre o relacionamento de um casal que decide morar numa outra cidade e que depois se separa, nem muito menos um romance que propõe um final surpreendente. A narradora nos atrai para o seu universo particular e solitário, no qual o mundo interior é tão importante para a compreensão da obra quanto o exterior. Seus dilemas, sua incapacidade para escrever a tese de doutorado, sua convivência com M, sua dificuldade de se relacionar em Los Angeles, suas impressões sobre os lugares e as pessoas, por exemplo, ganham dimensões proporcionais à necessidade de pertencer a algum lugar, seja um país, uma cidade, uma universidade, uma rua. A impressão é que a narradora de Algum lugar é e sempre será uma “passante solitária”, que vive “na cidade sem estar nela”, buscando ao menos inventar um tipo de pertencimento. Referências GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 373 AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do Século) BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Editora Zahar: Rio de Janeiro, 2004. ______. Globalização: as consequências humanas. Editora Zahar: Rio de Janeiro, 1999. CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Ouro sobre Azul: Rio de Janeiro, 2006. CURY, M. Z. 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GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 374 MEMÓRIA GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 375 DA CRIAÇÃO DO MESTRADO EM LETRAS EM TRÊS LAGOAS À CRIAÇÃO DA GUAVIRA LETRAS José Batista de Sales – UFMS O MESTRADO EM LETRAS Há quinze anos, no campus universitário da UFMS, em Três Lagoas, entrou em funcionamento o primeiro Programa de Mestrado acadêmico em Letras do Estado de Mato Grosso do Sul. De lá para cá, surgiram mais três semelhantes, todos rebentos desta iniciativa dos professores do curso de Letras deste Campus. A primeira versão do Programa submetida à avaliação da CAPES em 1997 não foi aprovada, mas o Reitor da UFMS, João Jorge Chacha, após consultas e análises de conjuntura, implantou o mestrado em Letras em Três Lagoas, a partir do primeiro semestre de 1998 e devido à aposentadoria de vários professores, foi escolhido como coordenador José Batista de Sales. É preciso mencionar que a atitude do professor Chacha foi bastante corajosa, pois se não conseguíssemos aprovação na segunda GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 376 tentativa, os diplomas não teriam nenhuma validade e certamente haveria problemas sérios com a justiça. Foi um período muito interessante, apesar da enorme dor de cabeça, porque os responsáveis pela primeira versão do projeto cometeram um pequeno descuido: incluíram no corpo docente os professores de outros campi, mas não os avisaram. E alguns, ofendidos em seus brios, brandiram suas teses, indagando aos céus, como ousam propor um mestrado em Três Lagoas (logo em Três Lagoas!) e não me convidam?! Apesar desse incidente, o período muito fértil para cada um daqueles professores, pois superado o estágio de desconfiança, todos se engajaram no projeto de forma admirável. Na tentativa de agregar os professores de outros campi, a coordenação do Programa de Mestrado destacava que o mestrado não era exclusividade do campus de Três Lagoas, mas da UFMS e que sem a contribuição de todos os professores não seria possível a existência de um mestrado em letras. A solução inicial para o impasse foi a de que o Colegiado de Curso do Programa, uma espécie de “Comitê Central”, seria composto por professores de outros campi e, mais importante, as reuniões mensais deste colegiado seriam realizadas nos campi de Três Lagoas, Campo Grande e Dourados, em forma de rodízio. Igualmente, os Exames de Qualificação e de defesa/apresentação de dissertação poderiam ocorrer nos campi de residência do orientador, Dourados ou Campo Grande. E assim funcionou até o final de 2001. Em 15 de março de 1998, foi ministrada a Aula Inaugural do Programa, pelo professor José Luiz Fiorin, da Universidade de São Paulo, profissional amplamente reconhecido no meio universitário nacional por seus vastos conhecimentos sobre a área de estudos de Letras e de Linguística. Em junho de 2001, a CAPES recomendou o segundo projeto a ela enviado e o Programa ganhou mais consistência e desenvoltura, passando a contar com recursos financeiros especificamente originários do sistema de pós-graduação nacional, o que permitiu, entre outras ações GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 377 fundamentais, o oferecimento de bolsas de estudos aos alunos mais bem classificados nos exames admissionais. A partir de 2002, o Colegiado do Programa passou a ser composto exclusivamente por docentes lotados no curso de Letras de Três Lagoas e da mesma forma todas as atividades do Programa, como reuniões de colegiado, seleção de candidatos, aulas, exames de qualificação e defesas de dissertação passam a ser desenvolvidas no campus de Três Lagoas. E assim permanece e a cada ano incrementa e se enriquece como instituição de ensino e de pesquisa em nível superior. Durante esses quinze anos, o Programa de Mestrado em Letras de Três Lagoas cumpriu dignamente o seu papel. Concedeu o título de Mestre em Letras a mais de duzentos profissionais, a maioria dividida entre professores da rede de ensino público dos estados de Mato Grosso do Sul e de São Paulo e docentes do ensino superior dessas duas regiões e mais a de Mato Grosso. Durante a formação desses profissionais, foram promovidos encontros e seminários, para os quais houve a inscrição de centenas de mestres, alunos, palestrantes e conferencistas de renome nacional, além de inúmeros convidados de outros países, como França, Portugal, Espanha, Alemanha, Holanda e Estados Unidos. Alcançados todos os objetivos de um Programa em nível de Mestrado, os docentes, a Coordenação e a Pró-Reitoria de pesquisa estão empenhados na implantação do doutorado. Já para 2013, entrarão em funcionamento um “DINTER” (programa de doutorado interinstitucional) por meio de convênio com a Universidade Mackenzie, de São Paulo, e um Programa de Mestrado Profissionalizante. Tal up grade do Programa de Pós-Graduação em Letras de Três Lagoas, além da relevância para a área de Letras em si, cumpre parte relevante das exigências do Ministério da Educação (MEC) para criar/transformar um campus universitário em Universidade. Além disso, são iniciativas da maior relevância, pois significam a ampliação de oportunidade de aperfeiçoamento profissional e cultural de diferentes áreas profissionais do ensino. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 378 A FLOR DA GUAVIRA Entre as inúmeras obrigações, a Coordenação do mestrado devia providenciar um órgão de divulgação da produção intelectual de seu corpo docente ou, pelo menos, que permitisse a permuta e o intercâmbio de produções intelectuais entre os inúmeros programas de pós-graduação nacionais e estrangeiros. À época, toda iniciativa deste gênero se realizava sob a supervisão da Editora da UFMS e, assim, vimos que havia uma publicação da área de Letras, com apenas dois números publicados. Logo, decidimos, em reunião do Colegiado do Programa que esta publicação, Papeis, seria o veículo de divulgação do Mestrado em Letras de Três Lagoas e como tal foram publicados dois números, 3 e 4, durante o ano de 1998. Entretanto, durante a preparação de implantação do Programa de Mestrado em Letras em Campo Grande, nossos colegas da capital argumentaram que a mesma Papeis fora criada por eles, no Departamento de Letras do CCHS, e que por direito e outros motivos a revista pertenceria àquele Programa. Argumentamos que transformar tal publicação em órgão divulgador do Mestrado em Três Lagoas, fora decisão de colegiado do qual muitos deles fizeram parte e que já haveria uma identificação entre a revista e o Programa de Três Lagoas. Mas não chegamos a um consenso e ficamos temporariamente sem nenhuma revista. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 379 Mas não é recomendável que um Programa de Pós-Graduação não possua um órgão de intercambio e de divulgação de conhecimento e de resultado de pesquisa. Assim, a Coordenação e um grupo de professores começam a matutar numa revista que cumprisse tal função e que, ao mesmo tempo, manifestasse um componente identificador do perfil, das convicções literárias, linguísticas e principalmente do labor científico e cultural de um conjunto de pesquisadores e professores desta região do país. Iniciamos com uma pequena consulta entre alunos e professores para a escolha do nome ou título da revista e assim chegamos ao de guavira, também conhecida como gabiroba. Trata-se de uma palavra de origem guarani, com o significado de árvore de casca amarga. Por ser (ou ter sido) muito comum no cerrado do centro-oeste poderia ser vista como um símbolo da região de Mato Grosso do Sul e, além disso, sua folha é de rara e delicada beleza. O primeiro número veio a público (online) em agosto de 2005. Possivelmente pareça demasiado o lapso temporal em que o Programa ficou sem seu veículo de divulgação, mas nesse período estava sob acirrada discussão no âmbito da pós-graduação nacional o que deveria se constituir como publicação universitária e de pós-graduação, qual o perfil, qual o suporte (impresso ou online), periodicidade, critérios de avaliação e outros fatores que, por si só, demandou mais tempo para a constituição da nossa própria publicação. Mas o tempo não foi consumido em vão. O primeiro número, além de artigos elaborados por professores e alunos do Programa, abriuse com a oportuna e instigante Apresentação, escrita por José Luiz Fiorin, notável professor da Universidade de São Paulo (USP) e nosso incansável colaborador. Parece-me oportuno transcrever a epígrafe deste texto de apresentação, pela sua clarividência e pertinência, pois se tratava do lançamento de uma nova revista científica da área de letras: A ciência é a procura da verdade; não é um jogo no qual uma pessoa tenta bater seus oponentes, prejudicar outras pessoas. O autor dessas palavras é Linus C. Pauling (1901-1994), cientista americano ganhador de dois prêmios Nobel (1954, de Química; 1962, da Paz) que se revelou mais preocupado com as ideias dos homens do que com fórmulas. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 380 Desde então, foram publicados quatorze (14) números, nos quais as duas áreas de concentração do Programa foram alternadamente contempladas, com larga e ampla abertura para as linhas de pesquisa, para as correntes críticas e as mais diversas formas de pensamento. Neste percurso editorial, seus responsáveis estiveram sempre conectados com as diretrizes das melhores publicações do gênero e igualmente atentos às orientações dos órgãos supervisores da pós-graduação brasileira, como a CAPES. É neste sentido, por exemplo, que a composição de autores de artigos e resenhas veio paulatinamente se transformando. Assim, se no primeiro número contamos apenas com autores oriundos do próprio Programa, no número quatorze, a presença de autores externos aproximase de oitenta e cinco por cento (85%), o que é algo altamente salutar para um órgão de divulgação do conhecimento voltado para a pluralidade de ideias e de correntes críticas. O que, evidentemente, será reconhecido por seus pares. Ao finalizar este texto de cunho memorialístico, julgo necessário lembrar que se a construção e a manutenção de um veículo desta natureza demandam persistência, firme convicção sobre valores e relevância do trabalho educacional e científico; igualmente é preciso destacar que, sem solidariedade, sem a disposição de inúmeros profissionais que, em boa parte, sacrificam finais de semana ou outros momentos de descanso para a redação de seus textos, segundo as mais exigentes normas científicas, nada, absolutamente nada dessas publicações seria realidade. De tal forma que idealizadores, editores e autores da revista merecem todo o reconhecimento. Vida longa à GUAVIRA LETRAS! GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 381 CHAMADA – nº 15 Editores Responsáveis: Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP) Tema: O CONTO Prazo: 15 de outubro de 2012 E-mails: [email protected] [email protected] GUAVIRA LETRAS, revista do Programa de Mestrado em Letras da UFMS, Câmpus de Três Lagoas, faz chamada para seu número do segundo semestre de 2012. O volume trará dossiê com a seguinte ementa: Poéticas do conto Os contistas paradigmáticos da literatura universal. Teoria e prática do conto: o estado da arte no século XXI. Revisão bibliográfica do gênero conto. O conto brasileiro na interface com a história do conto. Aspectos teóricos do conto, da fábula ao microconto. O conto como instrumento pedagógico no ensino fundamental. Os contos precursores em língua portuguesa. O conto brasileiro pela análise de seus maiores contistas. O conto como gênero e a história da literatura. A contribuição latino-americana para a teoria do conto. A forma literária do conto e as novas mídias GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 382 Os editores responsáveis pelo número 15 são os professores Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) e Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP). As contribuições devem ser enviadas para o e-mail [email protected], com cópia para o e-mail [email protected], até o dia 15 de outubro de 2012, conforme as normas abaixo. A GUAVIRA também publica entrevistas, resenhas e uma sessão com artigos que não se enquadrem na temática geral. Aguardamos sua colaboração. Agradecemos por divulgar esta chamada entre professores, posgraduandos, imprensa e demais interessados. NORMAS PARA PUBLICAÇÃO — GUAVIRA LETRAS 1 – Arquivo apenas em extensão DOC. 2 – Os artigos deverão ter no mínimo 10 (dez) e no máximo 20 (vinte) páginas e as resenhas no mínimo de 03 (três) e no máximo de 08 (oito) páginas, respeitando-se a seguinte configuração, em papel A4: 1,25cm de margem para parágrafo, com margens esquerda e superior de 3,0cm e direita e inferior de 2,0cm, sem numeração de páginas. 3 – Os trabalhos de pós-graduandos, assim como os de Mestres e Doutores sem vínculo com instituições de ensino e pesquisa, só serão aceitos se apresentados em co-autoria com o Prof. Orientador. 4 – Os artigos, entrevistas ou resenhas devem ser enviados para o e-mail [email protected], com cópia para o e-mail [email protected], até o dia 15 de outubro de 2012, em programa Word for Windows 6.0 ou compatível, em um arquivo com o título do trabalho e com identificação do proponente e um arquivo com o título do trabalho e sem identificação do proponente. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 383 5 – O Conselho Consultivo, ao qual serão submetidos os textos, poderá sugerir ao autor modificações de estrutura e de conteúdo. Serão devolvidos para correção os trabalhos para as modificações. Nenhuma modificação de conteúdo ou estilo será feita sem o prévio consentimento do autor. É do autor a inteira responsabilidade pelo conteúdo do material enviado. 6 – Os artigos deverão ter a seguinte estrutura: 6.1 – Elementos pré-textuais: Título e subtítulo: na primeira linha, centralizados, negrito. Fonte: Times New Roman, corpo 13, somente a primeira letra em maiúscula em ambos. Nome do(s) autor(es): duas linhas abaixo do título, alinhado à direita, com o último sobrenome em maiúscula. Chamar para nota de rodapé, onde deve informar: Sigla – Universidade. Faculdade/Instituto – Departamento. Cidade – Estado – País. CEP – e-mail. RESUMO: três linhas abaixo do nome do autor; em português. Colocar a palavra RESUMO em caixa alta, alinhado à esquerda, sem adentramento e seguida de dois pontos. Redigir o texto em parágrafo único, espaço simples, justificado, de, no mínimo, 150 palavras e, no máximo, 200. Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo o resumo. O resumo do artigo deve indicar objetivos, referencial teórico utilizado, resultados obtidos e conclusão. PALAVRAS-CHAVE: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do resumo, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada palavra-chave somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto. Para maior facilidade de localização do trabalho em consultas bibliográficas, o Conselho Editorial sugere que as palavraschave correspondam a conceitos mais gerais da área do trabalho. 6.2 – Elementos textuais: GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 384 Texto: O corpo do texto inicia-se duas linhas abaixo das palavras-chave. Fonte: Times New Roman, corpo 12, alinhamento justificado ao longo de todo o texto. Espaçamento: simples entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do texto (tabelas, ilustrações, citações em destaque, etc.). Citações: no corpo do texto, serão de até 3 (três) linhas, entre aspas duplas. Fonte: Times New Roman, corpo 12. Quando maiores do que 3 (três) linhas, devem ser destacadas fora do corpo do texto. Fonte: Times New Roman, corpo 10, em espaço simples, com recuo de 4cm à esquerda. Todas as referências das citações ou menções a outros textos deverão ser indicadas, após a citação, com as seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor em caixa alta, vírgula, ano da publicação, abreviatura de página e o número desta. Exemplo: (CANDIDO, 1976, p. 73-88) (NBR 10520/03). Evitar a utilização de idem ou ibidem e Cf. Quando utilizar apud, colocar as mesmas informações solicitadas para o autor do texto da qual a citação foi retirada. Exemplo: (BOSI, 2003, p. 1-10 apud SILVA, 1998, p. 23). Informar em rodapé os dados da obra citada de segunda mão e colocar somente as obras consultadas diretamente nas Referências. Notas explicativas: se necessárias, devem ser colocadas no rodapé da página de ocorrência, numeradas sequencialmente, com algarismos arábicos, fonte Times New Roman, corpo 10, justificadas, mantendo espaço simples dentro da nota e entre as notas, no decorrer do texto. Títulos e subtítulos das seções: Referenciados a critério do autor, devem estar alinhados à esquerda, sem adentramento, em negrito, sem numeração, inclusive Introdução, Conclusão, Referências e elementos pós- GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 385 textuais, com maiúscula somente para a primeira palavra da seção, fonte: Times New Roman, corpo 12. Elementos ilustrativos: tabelas, figuras, fotos, etc., devem ser inseridas no texto, logo após serem citadas, contendo a devida explicação na parte inferior da mesma, numeradas sequencialmente. Serão referidas, no corpo do texto, de forma abreviada. Exemplo: Fig. 1. Fig. 2, etc. 6.3 – Elementos pós-textuais: Colocados logo após o término do artigo. Título: em inglês, centralizado, em itálico e caixa alta. Inserido duas linhas abaixo do final do texto. Recomendase procurar revisão por um especialista em língua inglesa. ABSTRACT: Duas linhas abaixo do título. Colocar a palavra ABSTRACT, alinhada à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta, fonte Times New Roman, corpo 10 para todo o texto, seguida de dois pontos. Texto em parágrafo único, espaço simples e justificado. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. KEYWORDS: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do abstract, em inglês, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Colocar o termo Keywords em caixa baixa. Fonte: Times New Roman, corpo 10, somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. Referências: seguir as normas da ABNT em uso (NBR6023/02). Duas linhas abaixo das palavras-chave em inglês, alinhada à esquerda, sem adentramento, em negrito e caixa alta, corpo 11. Usar espaçamento 1 entre as linhas da referência e uma linha em branco entre uma referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento à esquerda, indicando-se as obras de autores citados no corpo do texto. Bibliografia: se considerada imprescindível, deve vir duas linhas abaixo das referências, alinhada à esquerda, sem GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 386 adentramento, em negrito e caixa alta, corpo 11. Podem ser indicadas obras consultadas ou recomendadas, não referenciadas no texto. Usar espaçamento 1 entre as linhas da referência e uma linha em branco entre uma referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento justificado. 7 – Exemplos de referências (NBR-6023/02): AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Tradução de Cláudia Pfeiffer et al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1998. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1986. CORACINI, M. J.; BERTOLDO, E. S. (Orgs.). O desejo da teoria e a contingência da prática. Campinas: Mercado das Letras, 2003. Capítulo de livros: PECHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: Orlandi, E. P. (Org). Gestos de leitura: da história no discurso. Tradução de Maria das Graças Lopes Morin do Amaral. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1994. p.1550. Artigo em periódico: SCLIAR-CABRAL, L.; RODRIGUES, B. B. Discrepâncias entre a pontuação e as pausas. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n.26, p.63-77, 1994. Artigo em periódicos on-line: SOUZA, F. C. Formação de bibliotecários para uma sociedade livre. Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 387 Florianópolis, n.11, p.1-13, jun. 2001. Disponível em: ... . Acesso em: 30 jun. 2001. Dissertações e teses: BITENCOURT, C. M. F. Pátria, civilização e trabalho: o ensino nas escolas paulista (1917-1939). 1988. 256 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. Artigo em jornal: BURKE, Peter. Misturando os idiomas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 2003. Mais!, p.3. Documento eletrônico: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Coordenadoria Geral de Bibliotecas. Grupo de Trabalho Normalização Documentária da UNESP. Normalização Documentária para a produção científica da UNESP: normas para apresentação de referências. São Paulo, 2003. Disponível em: ... . Acesso em: 15 jul. 2004. Trabalho de congresso ou similar (publicado): MARIN, A. J. Educação continuada. In: CONGRESSO ESTADUAL PAULISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1., 1990. Anais ... . São Paulo: UNESP, 1990. p.114-118. CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1997, Recife. Anais ... . Receife: UFPe, 1997. Disponível em: ... . Acesso em: 21 jan. 1997. CD-ROM: KOOGAN, A.; HOUAISS, A. (Ed.) Enciclopédia e dicionário digital 98. Direção geral de André Koogan Breikman. São Paulo: Delta; GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 388 Estadão, 1998. 5 CD-ROM. Produzida por Videolar Multimídia. MESTRADO EM LETRAS DA UFMS Av. Capitão Olinto Mancini, 1662 Campus Universitário 1 - Colinos 79603-011 – Três Lagoas/MS – Brasil Fone: (67) 3509-3425 E-mail do Mestrado: [email protected] E-mail da GUAVIRA: [email protected]; [email protected] GUAVIRA LETRAS: http://www.pgletras.ufms.br/revistaguavira/ Editor Geral da Revista Guavira Letras: Prof. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) E-mail do Editor Geral: [email protected] GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 389