Januária Oliveira Ramos
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Januária Oliveira Ramos
REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 Januária Oliveira Ramos: VITRINES DA PERIFERIA: UM BREVE OLHAR SOBRE O HÍBRIDO E O KITSH EXPOSTOS NA FEIRA DA CIDADE OPERÁRIA Graduada em Comunicação Social e Especialista em Jornalismo Cultural pela Universidade Federal do Maranhão. RESUMO: Este trabalho tem a intenção de mapear, dentro da periferia da cidade de São Luís, alguns aspectos do hibridismo cultural do kitsch que podem ser visualizados em pequenos produtos vendidos em mercados populares. Para esta pesquisa, o corpus escolhido é a feira da Cidade Operária, que é um dos bairros mais populosos da capital maranhense. Notamos que o hibridismo está presente neste ambiente por meio de objetos - muitos importados de outros países como mercadoria pirateada, e das criações que simulam realidades, recriam contextos e promovem encontros inusitados na concepção visual dos produtos expostos. Vamos examinar esses aspectos inusitados e verificar o kitsch em diferentes pontos de extravagância. PALAVRAS-CHAVE: Feira. Hibridismo. Kitsch. ABSTRACT: This paper aims at mapping out within the periphery of the city of São Luis, some aspects of cultural hybridism of kitsch that can be viewed in small products sold in popular markets. For this search, the body chosen is a Cidade Operária’s fair, one of the most populous neighborhoods of the Maranhão’s capital. We note that the hybridism is present in this environment through objects, many imported from other countries such pirated goods, and the creations that simulate reality, recreate contexts and promote unusual meetings the visual design of products exhibited. We will examine these unusual aspects and check the kitsch in different points of extravagance. KEYWORDS: Fair. Hybridism. Kitsch. 208 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 1 INTRODUÇÃO Observar a feira é um exercício interessante. Situado no espaço do negócio, dos tipos humanos variados e dos encontros informais, é lá que diferentes relações se estabelecem – tacitamente, ou não – e delineiam os contornos de uma microesfera de poder. Nesse microcosmo, não é apenas a relação socioeconômica que subjaz o processo de troca entre feirante e consumidor. Veremos que o elemento estético é também um fator importante e, às vezes, decisivo para a escolha de um produto exposto nas “vitrines” da feira. A escolha da feira da Cidade Operária para ser o objeto do presente artigo não foi aleatória. Inaugurada no fim da década de 80, como Hortomercado da Cidade Operária, a feira abastece o bairro, que é um dos mais populosos da periferia de São Luís, além de também inúmeras habitações que existem no entorno do bairro. Como espaço simbólico das relações econômicas, sociais e culturais dessa periferia, a feira da Cidade Operária apresenta nos seus aspectos visuais as suas próprias estratégias que dão identidade ao ambiente e que ajudam a visibilizar as mercadorias. Os produtos, em si, já trazem uma espécie de “alternatividade” para chamar a atenção e caírem no gosto de quem os leva para casa. No estudo a seguir, abordaremos o hibridismo cultural existente em acessórios expostos para a venda na feira citada e os aspectos do kitsch encontrados nesses produtos. Com base nos teóricos Peter Burke e Néstor García Canclini, vamos analisar os entrelaçamentos culturais que constituem os fenômenos híbridos e buscaremos, também, em Abraham Moles sua compreensão teórica sobre o kitsch, fazendo uma descrição e análise sucinta das categorias de kitsch descritas por ele e suas relações com os objetos pesquisados. Esses produtos são, na maioria, imitações baratas e trazem consigo as cores, a ousadia e uma espontaneidade relegadas à categoria brega e de “mau gosto”. Na pesquisa em que Fernando Fontanella (2000) trata da estética do brega, cuja análise são “as manifestações de uma sensibilidade subalterna mediatizada, 209 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 presente nas diversas maneiras como as pessoas experimentam o brega”, mais especificamente a música brega produzida no Norte e Nordeste do Brasil, encontramos alguns pontos de interseção com nossa pesquisa, sobretudo no que tange à percepção dos fruidores dessa “arte de baixo gosto”. O consumidor, seja do produto musical da pesquisa de Fontanela ou de outras mercadorias vendidas em outras praças, não é um ser passivo. Ao contrário, faz parte de um movimento vivo que busca seu próprio espaço de expressão. Ele não se coloca contrário à plástica aceitável pelos padrões hegemônicos, mas desenvolve formas de também participar dos sistemas alternativos de consumo que – com características periféricas – revela semelhanças com o sistema das classes dirigentes. Para aqueles que não podem freqüentar e aproveitar o comércio dos shoppings surgem os grandes ‘camelódromos’ e feiras de periferia, que vendem imitações mais baratas dos bens de consumo da elite: CD’s, roupas e brinquedos piratas. (FONTANELLA, 2000, p.11). Nesse contexto, em que direcionamos o hibridismo, veremos que o estético dentro de uma esfera mix cria os seus próprios padrões e estratégias de expressão. Isso poderá ser percebido não apenas em pequenos objetos, como intenciona este artigo, mas nos espaços de venda em que os feirantes demonstram as mercadorias e também no ambiente da feira que não mantém a “assepsia” artificial dos shoppingscenters e supermercados, embora esses locais também sejam pontos de comercialização de produtos encontrados em feiras. Devido à grande variedade existente na feira e, por uma questão de organização da análise, selecionamos alguns objetos expostos em quatro estabelecimentos comerciais (boxes) e uma barraca ambulante, que funciona em uma das ruas transversais da feira. Nesta observação empírica, realizada durante o mês de maio de 2008, traçamos uma breve etnografia do campo estudado. Sobre essa experiência, lembramos Laplantine (2004) para quem o trabalho etnográfico necessita de uma imersão do olhar, buscando nos sujeitos as significações que eles mesmos atribuem a seus espaços de ação e a seus comportamentos. 210 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 2 A FEIRA E O QUE DIZEM SOBRE ELA Luiz Mott (2000) conta que, diferente de países andinos e de algumas sociedades africanas, onde ela era integrada à economia tradicional, no Brasil, a feira é introduzida pelo colonizador português, o qual já estava habituado a freqüentá-las em seu país desde a Idade Média. Para o historiador e folclorista Câmara Cascudo (apud SOUSA, 2000), a feira pode ter alguns significados, entre eles, aquele que estaria próximo da noção da periodicidade. Já segundo uma definição sociológica, Luiz Mott afirma que a feira é uma instituição que faz parte do sistema econômico. Levando em consideração as relações trançadas dentro do seu universo, esse sistema econômico se basearia na produção, distribuição e consumo de bens e mercadorias. Desse modo, diz ele, a feira seria uma instituição do sistema econômico pertencente à subárea da distribuição dos bens e mercadorias Mas é preciso também considerar outros aspectos inerentes à dinâmica dessa instituição, como as marcas simbólicas que existem tanto sob os fatores econômicos, quanto os que se relacionam ao caráter social, cultural e etnográfico que reproduzem essas marcas. Interessante notar que, no Brasil, o sentido da palavra feira também é usado para se referir a uma atividade doméstica. É o “fazer a feira”, cujo significado trata das compras para o consumo da casa e confere, segundo Sousa (2000, p.72), o “caráter de instituição cultural à feira”. Como se houvesse uma ligação tão forte com a cultura do país, a ponto da expressão designar, e ser facilmente compreendida, como ato de adquirir produtos de primeira necessidade. Pensando no âmbito mais amplo, há feiras que extrapolaram a seta da distribuição e consumo e se transformaram em pontos turísticos, a exemplo das Feiras de Caruaru, em Pernambuco, e a de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Nelas, a forte presença da cultura nordestina é vista por meio do artesanato, literatura de cordel, frutas e comidas típicas. 2.1 EM RELAÇÃO AOS MERCADOS, HÁ DIFERENÇAS? 211 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 No estudo que fez sobre feiras nordestinas, Mundicarmo Ferretti (1979) adverte que, apesar das feiras e mercados terem semelhanças na estrutura e função, sendo ambas instituições locais de venda de gêneros alimentícios e de outras mercadorias, elas têm diferenças. Segundo a pesquisadora, as variações existentes nas feiras e mercados das regiões brasileiras dificultam a configuração de características gerais. Contudo, buscando uma descrição que possa explicar o diferencial no modus operandi, por meio de uma breve observação na dinâmica da rotina, Mundicarmo distingue o funcionamento dos dois espaços: Feiras são reuniões comerciais periodicamente realizadas em local descoberto (rua, praça, etc.), frequentemente próximo ao mercado. Tendem a ser realizadas durante um dia da semana (especialmente sábado, domingo ou segunda-feira) e a oferecer maior variedade e quantidade de produtos do que os mercados. (FERRETTI, 2000a, p. 41). Lançando mão de uma definição contida no dicionário Aurélio Buarque de Holanda, ela escreve que: Nas cidades nordestinas o mercado funciona em local coberto, frequentemente em prédio construído ou administrado pela municipalidade, abrigando todos os feirantes ou parte deles. Tende a funcionar diariamente, ficando às vezes aberto durante o dia. São encontrados nos núcleos urbanos mais populosos tendo como função principal o abastecimento da população local. (FERRETTI, 2000a, p.40). Em orientação semelhante, Mott (2000) diz que a feira, para os portugueses, representaria uma reunião comercial regional de grande porte, realizada geralmente entre longos intervalos de tempo. Já, o mercado seria destinado ao abastecimento local e, portanto, feito de maneira mais freqüente. Ele explica que essa noção de feira não se estende ao Brasil, pois tanto as grandes como pequenas reuniões comerciais ao ar livre são entendidas como feira pelos brasileiros, sendo que as mesmas teriam área de dominância pequena, relacionada ao abastecimento local. No caso da feira da Cidade Operária, o tempo de trabalho assemelha-se ao mercado, visto que o funcionamento é diurno, com abertura às 6h e fechamento às 18h, de segunda-feira a sábado, e de 6h às 13h, aos domingos, de acordo com informação de Hamílton Firmo Pereira, gerente administrativo da Cooperativa dos Feirantes da Cidade Operária (COOFECO). 212 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 Há, porém, vendedores que fecham os boxes um pouco mais tarde, às 19h ou mesmo às 20h, conforme o movimento, e muitas bancas não funcionam no período vespertino. Alguns donos de banca vão trabalhar à tarde em feiras livres. Próximo à feira da Cidade Operária existe uma feira livre, onde são vendidos apenas alimentos. Mas embora tenha uma rotina que se assemelha à descrição dos mercados, os moradores do bairro e freqüentadores do Hortomercado sempre se referem a ele como a feira da Cidade Operária. Podemos apresentar esse universo, ainda que de forma breve, por meio do histórico e de uma descrição física resumida que indica a sua localização, organização e os tipos de mercadorias comercializadas naquela feira. 3 FEIRA DA CIDADE OPERARIA: VAMOS CONHECÊ-LA O Hortomercado da Cidade Operária foi fundado em julho de 1989, na gestão do governador Epitácio Cafeteira. Era administrado pela CEASA (atual COHORTIFRUT), passando, a partir de 19 de maio de 1996 para o comando da COOFECO. O governo estadual fez o contrato de concessão gratuita de uso por dez anos, sendo que a cada quatro anos é realizada eleição para escolher os novos diretores da Cooperativa. O contrato de concessão terminou em 2006. O gerente administrativo da COOFECO, Hamilton Firmo Pereira, disse que Estado não renovou o documento e que a feira está funcionando normalmente. Há, contudo, um projeto de gestão integrada entre o governo, a prefeitura e a COOFECO. A feira da Cidade Operária está situada entre as Avenidas Este e Oeste (anexo 1) e tem 508 boxes e 204 bancas – sem contar as dezenas de barracas ambulantes que a administração disse não ter controle, a não ser algumas em que é cobrada taxa de R$ 10 reais mensais para uso do espaço. Esse valor é o mesmo para as bancas, enquanto para os que ocupam os Boxes, a cobrança mensal é de R$ 15 reais. De um modo geral, as mercadorias comercializadas nas bancas são hortaliças, frutas, verduras, legumes, CD’s e DVD’s pirateados, pequenos artigos eletrônicos portáteis, peças do vestuário adulto e infantil (como calcinhas, sutiãs e cuecas) e acessórios femininos variados (prendedores de cabelos, pulseiras, brincos, colares, óculos, relógios), etc. 213 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 Há, ainda, os produtos vendidos como remédios da medicina popular. Melo (2000) destaca alguns deles e as suas respectivas promessas de cura: [...] casca de chapada, considerada boa para gastrite e prisão de ventre; muxúria e cabacinha, para inflamações em geral; leite de janaúba, para inflamação no ovário e hemorróidas; banha de cobras (como jibóia), para inflamações e muitas outras ervas que são compradas para fazer chá, sendo cada uma delas indicada pelo próprio vendedor para certas enfermidades. (MELO, 2000, p. 103) Com uma freqüência diferente das ervas usadas pela medicina do povo, Melo afirma que os brinquedos populares e o artesanato são raros na feira, sendo a maioria importada de países como o Paraguai. Mas não só os brinquedos são importados, pois percorrendo os estabelecimentos e coletando o depoimento dos feirantes, verificamos que boa parte dos produtos, sobretudo os que foram analisados para este artigo, vêm do exterior ou de outros Estados. Quase todos, imitações de marcas nacionais ou importadas. Existem, contudo, algumas mercadorias produzidas no Maranhão. 4 HIBRIDISMO Na constatação de muitas mercadorias que são repassadas e, diga-se, infiltradas na realidade do consumidor, tendo seu processo de idealização, planejamento e concepção em um lugar distante daquele ao qual o objeto será destinado, vamos anotar o que algumas correntes acadêmicas falam sobre o hibridismo, já que entendemos que o termo apresenta conexões com esta pesquisa realizada na feira. Muitos teóricos têm direcionado a atenção para estudos sobre o “processo de encontro, interação, troca e hibridização cultural” (BURKE, 2003, p. 6). Entre esses estudiosos do hibridismo estão Homi Bhabha, Stuart Hall, Edward Said e Néstor García Canclini. Em seu ensaio sobre a hibridização, Peter Burke (2003) aborda o referido processo sob o aspecto das tendências culturais, definindo “cultura” como algo que inclui mentalidades, atitudes, valores e os símbolos representados em artefatos e práticas. Burke fala que o comércio a longa distância, no início do período moderno, apresenta exemplos de interação e de hibridização cultural. Analisando sob a óptica da 214 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 atualidade, os produtos vendidos na feira, que são imitações de marcas estrangeiras, trazem marcas do hibridismo na medida em que promovem um encontro e adaptam, ao gosto do consumidor que, neste caso, pertence à classe popular, o modelo externo inserido localmente como resposta a uma demanda criada. Ao constatarmos a presença cada vez mais intensa de produtos de outras culturas nos locais que fazem partem da nossa rotina, verificamos a lógica do argumento de Canclini de que a distribuição acelerada e global dos produtos materiais, assim como da informação, torna o tipo de consumo dos países centrais e periféricos muito próximos. Na obra Consumidores e Cidadãos, o autor busca compreender como as mudanças no modo de consumir alteram as possibilidade de se realizar a cidadania. Para ele, ao selecionarmos determinados bens, estamos definindo aquilo que consideramos valioso e que nos distingue e nos integra socialmente, da forma que combinamos o prático e o aprazível. Nesse âmbito, a cidadania é um indicativo do “estado de luta pelo reconhecimento dos outros como sujeitos de interesses válidos, valores pertinentes e demandas legítimas”. (CANCLINI, 1997, p.23) Com o encontro de culturas e as possibilidades de multiplicidade, falemos das mudanças que ocorrem para o novo cenário sociocultural. Canclini divide em cinco processos, sendo eles: - o ganho de força pelos conglomerados empresariais de alcance transnacional, em detrimento dos órgãos locais e nacionais; - reformulação dos padrões de convivência urbana. O tempo para exercer atividades básicas para o cidadão passa a exigir que se fique mais longe de casa, ou longe da sua cidade; - é feita uma reelaboração do sentido de próprio, já que há o predomínio de produtos e mensagens vindos de outros pontos globalizados sobre aqueles bens que são produzidos no local ao qual se pertence; - a constante redefinição da identidade e da idéia de pertencimento, visto que as organizações estão se dando mais por interesses comuns em 215 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 comunidades desterritorializadas do que por lealdades com as raízes locais ou nacionais; - por fim, a mudança de postura do cidadão como participante crítico dos problemas para a de espectador dos acontecimentos, que ganham a forma de espetáculo que o diverte e não o faz analisar a estrutura das questões postas; Néstor Canclini alerta para o fato de que é preciso, no encontro de culturas, notar a apropriação dos elementos de diferentes sociedades, de modo a combiná-los e a transformá-los. Esse contato deve ser pensado a partir não somente da diferença, mas do fator resultante, do movimento de hibridização que passa a ser operado com os elementos que foram apropriados. Nesse sentido, ele reitera que as nações se convertem em espaços multi, em que muitos sistemas culturais se cruzam, se inter-relacionam e criam vários códigos simbólicos. “Hoje, a identidade, mesmo em amplos setores populares, é poliglota, multi-étnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas” (CANCLINI, 1997, p.142). 4.1 A QUESTÃO DO REGIONAL Diante da aceleração dos processos de hibridização, torna-se imprescindível a valorização do local. Se as tendências de eliminar os aspectos nacionais e regionais, como o fez o cinema-mudo, ao criar um clima de espetáculo democrático, como as grandes narrativas em que todos podem assistir da poltrona do cinema, é preciso dizer que as culturas regionais também se mostram presentes por meio da reterritorialização que engrendra e reafirma formas locais de enraizamento. A globalização empresarial tem necessidades homogeneizantes para aumentar os lucros. No entanto, as demandas práticas exigem adaptações, concessões, em que a homogeneização às vezes não vai ao encontro das necessidades locais. Renato Ortiz (apud CANCLINI, 1997, p.147) fala que não se trata de ser “homogêneo ou heterogêneo”. Para ele, é importante compreender os segmentos mundializados e, assim, promover o consumo desses grupos segmentados, entendendo 216 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 como eles partilham costumes e gostos convergentes. Para isso, Ortiz recomenda a expressão “nivelamento cultural” (apud CANCLINI, 1997, p.148), para apreender essa convergência de hábitos culturais, porém, mantendo as diferenças entre os níveis de vida. Sobre a reação à “importação, ou invasão cultural” Burke (2003) escreve que haveria quatro estratégias possíveis. Ela pode ser aceita, rejeitada, segregada ou adaptada. Na contemporaneidade, vemos que as sociedades têm uma postura mais aberta para receber o que vem de fora e, mesmo não aceitando alguns elementos externos, isso não significa a sua total exclusão. Os produtos importados da Ásia ou do Paraguai que são vendidos nas feiras ou mercados de preço popular, como as Casas de 1 Real, são rejeitados pela classe hegemônica por alguns motivos que consideram, desde a qualidade do produto, até mesmo a distinção social que não relaciona o uso desses artigos com o status de classe do poder. Por outro lado, podemos verificar que os produtos populares são encontrados em shopppings centers e nas lojas classe A. Os mesmos objetos, porém, são ‘valorizados’ por meio de ‘valores’ mais altos. Na estratégia de adaptação como reação, Burke afirma que, no encontro com itens de outra cultura, há um empréstimo que incorpora partes dessa cultura em uma estrutura tradicional. A adaptação pode ser verificada, segundo ele, como duplo movimento que opera a des-contextualização e a re-contextualização. Como a ação que retira algo de seu local de origem e o altere de modo que ele seja encaixado em seu novo ambiente. Existe, atualmente, no centro comercial de São Luís uma “invasão” de lojas e de vendas ambulantes de orientais, a maioria chineses, que emigraram de seus países e encontraram na cidade um terreno fértil para desenvolver o comércio de produtos de baixa qualidade e de preços acessíveis que vêm como importação da Ásia. É dessa fonte que feirantes e vendedores do comércio popular extraem algumas de suas mercadorias. Os feirantes da Cidade Operária que foram entrevistados dizem que compram e as revendem a preço mais alto. Nos boxes visitados, vimos que a maioria dos objetos tem caráter funcional ou, então, são dispositivos capazes de mexer com a emotividade 217 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 dos consumidores. Um dado notável é que os artigos do mesmo gênero vendidos nos boxes e bancas não diferem do modelo, cor ou design. São iguais e a homogeneidade na oferta ocorre devido à busca na mesma fonte distribuidora que, ao “criar a necessidade” da época, oferece um vasto mercado de poucas opções, tornando, assim, os consumidores os divulgadores daquilo que parece virar moda, devido à repercussão e repetição entre os usuários. Os produtos externos postos à recepção abrangem não apenas as mercadorias que chegam de outros países, mas também as que são trazidas de outros Estados. Nas lojas de variedades pesquisadas na feira da Cidade Operária fomos informados de que as mercadorias são compradas, sobretudo, dos Estados do Ceará e de São Paulo. Contudo, não somente os bens duráveis chegam de outros centros. O gerente administrativo da COOFECO, Hamilton Firmo Pereira, diz que a maioria dos gêneros alimentícios (frutas, verduras, cereais e carnes) vem de fora, sobretudo dos estados Bahia, Pará e Rio Grande do Sul. Nesse movimento, em que os bens dos grandes centros chegam à periferia, ocorre um processo que aglutina as marcas simbólicas do local da origem produtora como, por exemplo, o tipo de corte, os detalhes de estilo, material aplicado e cores usadas na modelagem. Notemos o caso das confecções exportadas do Ceará para o Maranhão. Nas mercadorias importadas de outros países, as marcas simbólicas podem ser sutis, mas nem por isso imperceptíveis, podendo apresentar desde motivos de personagens famosos, como boneca japonesa Hello Kitty que estampa variados produtos, até o formato de máquinas portáteis que imitam aparelhos eletrônicos, mas com uma função diferente do aparelho copiado. Recordemos as estratégias alternativas criadas. Quem não pode ter um mp3114, tocador digital que pode armazenar mais 200 músicas, pode comprar uma lembrança do aparelho que tem sua forma imitada em minirádios com freqüência apenas em FM. 114 MP3 é a abreviação MPEG 1 Audio Layer (camadas) 3. É um tipo de arquivo de áudio compacto que possui alta capacidade de armazenamento. Ao diminuir o tamanho dos dados do arquivo, o áudio passa a consumir 10% do espaço que ocuparia em um CD. O formato MP3 é responsável pelo surgimento de aparelhos portáteis de música, como o iPod. 218 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 Sobre a hibridização e os contatos que tornam cada vez mais distante a idéia de isolamento cultural, Peter Burke fala que, no mundo, nenhuma cultura pode ser vista como ilha. “Na verdade, já há muito que a maioria das culturas deixaram de ser ilhas. Com o passar dos séculos, tem ficado cada vez mais difícil se manter o que poderia ser chamado de ‘insulação’ de culturas com o objetivo de defender essa insularidade” (BURKE, 2003, p 101) 5 HÁ KITSCH NOS BENS DA FEIRA? Poderíamos dizer que, na visualidade híbrida e multicolorida da feira, existe um kitsch que emoldura os produtos disponíveis? Abraham Moles diz que o kitsch está ligado à arte de modo inseparável. Seu sentido moderno surge por volta de 1860, na cidade de Munique, kitschen, significa atravancar, fazer móveis novos com velhos; verkitschen = trapacear, vender algo em lugar do que havia sido combinado. Neste sentido, há uma negação do autêntico, um pensamento ético pejorativo. Interpretado como sendo mais do que um fenômeno denotativo, configurado-se como um fator estético latente, um estado de espírito, o kitsch revela sua pujança durante a ascensão da burguesia, no século XIX, no momento em que adota o caráter de classe afluente. Moles lembra que o período de prosperidade do kitsch está ligado a um período social de opulência e que, neste caso, o mau gosto é a etapa que antecede o bom gosto que se faz por uma tentativa de parecer igual aos modelos bem-sucedidos e, ainda, por uma realização estética que não se completa realmente. Seria, segundo ele, uma “imitação das celebridades em meio a um desejo de promoção estética que fica pela metade” (MOLES, 1975, p.10). Dessa forma, o kitsch é usado para categorizar objetos de valor estético duvidoso, distorcidos ou exagerados, considerado inferiores à sua cópia. São freqüentemente associados à predileção do gosto mediano, sendo também chamados de brega, no Brasil. O fenômeno do kitsch se baseia em uma civilização em que a noção fundamental é a da aceleração, visto que esta é uma civilização consumidora que produz para consumir e que cria pra produzir. É o homem ligado aos elementos materiais de seu 219 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 ambiente e o valor das coisas que se alteram em função desta sujeição. Ao contrário do belo platônico ou do feio, o kitsch traz o aspecto dominante da vida estética cotidiana. Entre suas características, estão os princípios que traduzem a sua dinâmica. “É a aceitação social do prazer pela comunhão secreta com um ‘mau gosto’ repousante e moderado” (MOLES, 1975, p. 28). Dentro do kitsch, o autor diz que há o Princípio de Inadequação, isto é, um desvio em relação à finalidade, em que as funções secundárias acabam suplantando a função principal, com funções múltiplas em um único objeto. Ocorre um desvio em relação ao tamanho dos objetos (exemplo, abridores de garrafas gigantes); falsificação de materiais (flores ou frutas de plástico); estilos contextos (arranjos barrocos de gesso pra estantes); e figurações em objetos utilitários (pêra de cristal como porta bombons). No Princípio de Acumulação, objetos diversos, com valor emocional de baixo custo, são empilhados sem uma unidade. Citamos como exemplo os enfeites de geladeiras, cerâmicas e bibelôs. Com o Princípio do Conforto, há uma tentativa de levar à vida sensações, emoções e pequenos prazeres em objetos cotidianos. Já no Princípio da Mediocridade, o autor diz que a inadequação, a acumulação e outros artifícios aproximam o kitsch do vulgar. Essa mediocridade, porém, facilitaria a absorção dos produtos pelo consumidor. Não haveria extremos, nem no que tange à beleza e nem à feiúra. No uso da Percepção Sinestésica, os objetos kitsches fazem uso dos sentidos para impressionar o espectador. São imagens, sons e aromas, como os cartões perfumados vendidos para tornar ainda mais marcante a emoção dos apaixonados. O kitsch opera no sentido de oferecer prazer aos membros da sociedade de massa, permitindo-lhes o acesso às exigências suplementares e a passagem da sentimentalidade para a sensação. Proporciona ainda, segundo Abraham Moles, uma função de “espontaneidade no prazer” (1975, p.76) e permanece essencialmente “um sistema estético de comunicação de massa” (p.77). Nesse processo de prazer 220 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 espontâneo, o indivíduo tem a oportunidade de participação limitada, num acesso à extravagância em que fica sempre no meio, no conforto do Gemütlichkeit115. Haveria nas imitações dos bens vendidos na feira da Cidade Operária a kitschnização de uma extravagância que opera em direção ao prazer espontâneo da massa, com o sentido também de oferecer estratégias para a participação popular nos sistemas que se assemelham ao sistema de atuação hegemônica? Nos produtos copiados, as vendas apontam para as possibilidades de imitação das celebridades, com o uso dos bens que chegam de fora do país com a promessa de status e glamour, ou com a reprodução no corpo e nos artigos do cotidiano que referenciam os modismos e emoções propagadas pelos meios de comunicação de massa? Na divisão que busca definir os tipos de objetos da ordem do kitsch, colocam-se os primeiros como sendo aqueles concebidos conscientemente como tais, incluindo-se neles todos os tipos de souvenirs, objetos de devoção, assim como outros talismãs e os artigos para presentes. Os de segundo tipo não seriam exatamente de caráter kitsch, mas ostentaria um sintoma, podendo ser encontrado pricipalmente nos gadgets – pequenos objetos ou acessórios de um objeto maior que têm uma concepção técnica e funcional que o separa do objeto decorativo, embora muitas vezes o gadget seja também usado para decoração. A maioria dos objetos que estão ao nosso redor pertence ao segundo tipo de objeto kitsch. Tomemos, pois, a afirmação de Moles de que o kitsch envolveria, ao mesmo tempo, atitudes funcionais, aquisitivas e estéticas. Os produtos comercializados nos boxes e barracas da feira da Cidade Operária estariam, então, enquadrados na condição de gadgets kitsches constituintes de um hibridismo visual específico das feiras e mercados populares? O gosto que influencia o tipo de mercadoria, ou a mercadoria que inclina o gosto da massa consumidora desse microcosmo que absorve produtos nacionais e transnacionais? Com base na descrição e análise dos produtos pesquisados 115 Gemütlichkeit, palavra composta que envolve os sentidos de comodidade, conforto, abastança e pachorra. É considerado um dos valores do Kitsch, aquilo que está ligado à alma e ao coração, intimidade agradável e afetuosa, virtude de sentir-se à vontade 221 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 vamos abordar, a seguir, os aspectos híbridos verificados e tentar apontar as respostas para esses e outros questionamentos que possam surgir. 6 A ANÁLISE Para a realização desta pesquisa foi necessário conversar com os feirantes e tirar fotos das mercadorias e dos locais onde elas são comercializadas. O trabalho de observação em campo foi desenvolvido em maio de 2008. Os vendedores foram bem receptivos e, apesar do rapaz da banca ambulante mostrar um pouco de introspecção e desconfiança no início, ele ficou à vontade e bastante solícito depois que lhe expliquei que o propósito das perguntas que fazia era para um trabalho acadêmico. O tratamento que recebi foi amigável e acolhedor. Todos os entrevistados disseram que eu poderia voltar se precisasse de mais informações. Essa forma de tratamento acolhedora é uma extensão do modo dispensado aos consumidores, o qual gera um pacto tácito de relacionamento que aproxima feirantes e fregueses. Jacyara Melo (2000) indica alguns dos fatores que subjazem as trocas operadas nesse meio: As relações que permeiam esta feira são marcadas por aspectos que refletem as macro-instituições de nossa socedade; suas representações simbólicas; seus valores; suas crenças; suas regras – por exemplo, a pessoalidade, a informalidade, que caracteriza as nossas relações com os outros. A experiência social do feirante, a sua percepção de mundo é, portanto, ordenada pela apropriação dos símbolos da sociedade a qual está inserido. (MELO, 2000, p. 98). 6.1 OS PRODUTOS Quando entramos na parte interna da feira, logo encontramos o colorido dos produtos que são expostos nas áreas de cada banca ou ponto comercial. Na primeira banca visitada, o improviso dá o toque à organização e à estética do local. Embaixo de uma lona que cobre uma estrutura armada, são dispostos CD’s e DVD’S pirateados, além de bonés, bolsas, cintos e óculos esportivos. Os CD’s são gravações de músicas de muitos gêneros (romântico, pagode, trilhas sonoras de novelas, religioso, brega, technobrega, entre outros). Nessa mistura, percebemos que a profusão influencia e é influenciada pelo gosto do consumidor. O som internacional disputa a atenção com a 222 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 música regional sem choque de culturas ou obstáculos de recepção. Na banca ambulante soubemos que o hip-hop norte-americano compartilha espaço com o forró eletrônico produzido no Nordeste e com o Calipso do Norte do Brasil e que esses estilos têm vendido bastante. Contudo, os mais procurados, segundo o vendedor, são os CD’s de forró e de reggae. O público que compra é formado principalmente por jovens, sendo que as mulheres levam mais os discos compactos de forró de grupos que estão com algum hit, cuja temática aborda, geralmente, os relacionamentos amorosos e a postura masculina e feminina diante do amor e do sexo. Os CD’s de reggae são comprados, sobretudo, por homens que apreciam as canções antigas e as novas gravações que são lançadas em programas de reggae no rádio ou por DJ’s que comandam as radiolas em clubes próprios para o gênero. A Cidade Operária tem um dos clubes de reggae mais tradicionais de São Luís, a Barraca de Pau, que fica localizada na entrada do bairro. Os DVD’s vendidos na barraca que pesquisamos na feira são reproduções de filmes nacionais e, principalmente, de filmes estrangeiros, blockbusters116, que fazem sucesso no cinema comercial. Os gêneros são variados e oferecem, desde filmes de ação e comédias românticas, a animações, dramas e produções eróticas – estes com cenas explícitas de nudez e do ato sexual na capa dos DVD’s. Nesse suporte também tem os shows musicais que fazem sucesso entre os diferentes segmentos. No entanto, os DVD’s que têm melhor vendagem são os de artistas populares, sobretudo, nos gêneros brega, calipso e, mais uma vez, o forró eletrônico. Nos demais produtos, outros sinais da presença estrangeira, como os bonés e bolsas estampados com a marca alemã de produtos esportivos Puma. Embora falsificados, os produtos aglutinam o valor da marca, representando e concretizando as 116 A palavra Blockbuster teve origem na Segunda Guerra, quando deu nome a uma bomba de grande poder, que em português significa "arrasa quarteirão". Nos Estados Unidos a expressão é usada pra dizer que um filme foi sucesso de bilheteria e rendeu lucro ao estúdio. Ou seja, uma produção de grande sucesso que “consegue arrastar quarteirões", batendo recorde de público e de venda. Os filmes Blockbusters têm grande apelo popular e, devido, ao sucesso que fazem é comum que eles tenham continuações. 223 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 alternativas de aproximação com a valorização social que o simbolismo da marca traz implicitamente. No caso dos acessórios vistos, tanto lá como nos demais pontos de venda, a informação é de que alguns são comprados na cidade de São Paulo e são revendidos nas feiras – e também em grandes lojas – de São Luís. A barraca visitada expõe exemplares de bolsas, cintos e óculos que apresentam texturas e cores chamativas, como é o caso dos cintos prateados e dourados. Esses tons e outras cores se repetem nas grandes bolsas, em estilo saco, que trazem no tamanho, forma e coloração a tendência da moda feminina adotada em muitos centros do País. No box de variedades, encontramos produtos para públicos diversos. Tem antenas artesanais para televisão, potes e jarros de cerâmica, arranjos florais de plástico, cofres de gesso, carteiras de couro, cintos, bjuterias, bichos e bolsas de pelúcia, além de material escolar e artigos para presente. A vendedora Marta Betânia Sousa informa que algumas mercadorias, sobretudo aquelas para o público feminino, são trazidas de São Paulo e outras são produzidas no Estado do Maranhão. Ela diz que, apesar das vendas dependerem da época do ano, sendo mais lucrativos os períodos de festas, como as de fim de ano, Carnaval e as datas comemorativas, como o Dia das Mães e o Dia dos Pais, os fregueses apreciam e não questionam a origem ou o padrão dos artigos vendidos. Produzidos no Estado ou carregando a estampa de marcas internacionais, a recepção dos usuários é boa. Segundo a vendedora, o que mais vende são os bonés de lã da marca Puma (comprados em São Paulo) e as antenas para televisão, feitas de cano de PVC e de arame. A feirante diz que “faz qualquer negócio” e que pode oferecer bons descontos só para satisfazer o seu prazer em vender. Os bonés falsificados da marca internacional Puma custam R$ 12 reais e podem ser negociados até por R$ 10 reais, bolsas Karga (que falsificadas viram Carga) custam R$ 13 reais, mas podem ser vendidas por R$ 12 reais e 50 centavos. “Feira é povão!”, diz a vendedora, que mantém, espontaneamente, uma relação amistosa com os clientes. No convívio com os demais feirantes há integração e espírito de comunidade. A família de Marta é dona do box em que ela trabalha. A religião evangélica, dela e da família, não traz choque de relacionamento com o comerciante da frente da sua loja, que vende artigos da religião umbanda. 224 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 Na pequena loja de bijuterias e artigos femininos que visitamos o que chama a atenção é a quantidade de objetos que se concentram em todas as paredes. Há brincos, colares, pulseiras e anéis para muitos gostos. O vendedor José Luís Bastos diz que os produtos vêm de São Paulo. Dessa cidade as mercadorias chegam talhadas com uma inspiração que ultrapassa o continente. Vimos que um dos pares de brinco expostos tinha o design semelhante a uma grande moeda, cujo desenho em alto relevo traz a cabeça laureada de um homem que, pelo momento histórico pode ser o imperador francês Napoleão I, já que a data mostrada na peça (1808) trata do período em que as moedas de franco eram cunhadas com a imagem do imperador de um lado e com a inscrição República Francesa no verso. Havia também um outro acessório, uma corrente cujo detalhe apresentava reproduções, em miniatura, de uma moeda com o rosto da rainha da Inglaterra, Elizabeth II. A inspiração nos elementos estrangeiros demonstra a desterritorialização do consumo e a formação multcriativa dos produtos ofertados. Além do design, os diferentes materiais apontam uma das estratégias para atingir os diferentes tipos de fregueses. Há jóias banhadas a ouro e a prata. A imitação dos metais nobres trazidos de São Paulo se junta à reprodução do bronze e da prata das peças com motivo na realidade internacional, as quais dividem espaço também com os acessórios artesanais produzidos localmente. Na feira podemos afirmar que o território é democrático e que o comércio em múltiplos setores confere uma estrutura social própria. Onde poderia estar, então, o kitsch dentro desse microcosmo distribuído entre a sua rica etnografia e as cores vivas de seus produtos? Na barraca e nos boxes visitados podemos notar, levando em consideração as classificações vistas no capítulo anterior, que existem elementos e situações que se configuram como aspectos do kitsch. Nas duas últimas lojas pesquisadas, destacamos peças íntimas do vestuário feminino e pequenos artigos para presentes. As calcinhas, na maioria, são estampadas com inscrições românticas, frases de cunho sexual ou, ainda, motivos de novelas. Exemplos dessa inspiração, as quais buscam acompanhar as atualizações veiculadas pela TV, estão nas inscrições “O Profeta”, “Duas Caras” e ”Sete Pecados”, todas com títulos de novelas brasileiras. 225 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 O uso das produções de sucesso na televisão para nomear as peças íntimas e a estampa de frases maliciosas são combinações de um kitsch que pode ser verificado na própria modelagem das calcinhas. Inspirada na raça de cachorro Dálmata, que se tornou bastante conhecida com o desenho animado “101 Dálmatas”, uma das calcinhas é feita com a cara e as orelhas do animal, em tecido pelúcia, na parte da frente e uma estreita faixa transparente na parte de trás. A visualização da peça pode despertar afetividade por meio de um sentido infantil e de brincadeira – a partir dos detalhes da textura do tecido e das orelhas costuradas no desenho da face, que remontam à lembrança dos Dálmatas – mas pode trazer também um “Gemütlichkeit” fetichizado. Essa expressão da sensualidade de um fetiche kitsch é favorecida pelo uso do tecido de pelúcia (conotando implicitamente o sentido de toque macio) e da transparência (tornando explícita uma região do corpo que, segundo os padrões sociais, deveria estar coberta). No tocante às inscrições, tomamos nota de frases como “Pode vir quente que eu estou fervendo”, “Exigente – Duvido que encontre melhor” e “Convencida – prepare-se para momentos de muito prazer”, todas inscritas na parte do tecido que veste a região pubiana das mulheres. Além da ousadia afetiva, que não distingue o público do privado, e da referência em produtos reconhecidos e de consumo massivo, como é o caso das novelas, encontramos características do kitsch nos gadgets que, a propósito, têm grande oferta na feira. Dos chaveiros vermelhos em formato de coração com a frase “I love you”, aos ursos e corações de pelúcia com braços abertos, vimos que a sentimentalidade contida nas mercadorias deixa o comércio do Gemütlichkeit sempre vigoroso. Porém, outros objetos de classificação kitsch podem ser localizados no universo da Feira da Cidade Operária. No Box de Marta Betânia, o sortimento dá lugar a muitos gadgets. Entre os pequenos utilitários kitschinizados estão cofres em formato de porco, urso e botijão de gás. Os objetos feitos em tamanho reduzido – comparando-se aos modelos reais – têm a função de porta-dinheiro, mas são também decorativos. Estão classificados dentro do Princípio de Inadequação do kitsch. Os porta-CD’s, vistos na mesma loja, são revestidos com o símbolo e a bandeira de times de futebol brasileiros. Mais uma vez, o apelo à afetividade, cujo alvo, neste caso, são os apaixonados ou simpatizantes de futebol, 226 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 potencialmente atraídos pela insígnia dos times. Na loja de bijuterias e acessórios femininos e também na barraca de CD’s e DVD’s a kitschinização pode ser caracterizada pelo Princípio de Acumulação. Usando todo o espaço disponível dos estabelecimentos, os vendedores dispõem os objetos nas paredes, transformando-as em cortinas divertidas e coloridas. Na primeira loja, as mercadorias são diversificadas e os exemplares expostos quase não se reptem. Embora organizados aleatoriamente e de modo acumulado, não sobrando espaço livre na parede, percebemos em alguns objetos outros aspectos do kitsch, como os prendedores de cabelos feitos com fio sintético, nas cores preta, amarela e marrom. Para eles identificamos o Princípio de Inadequação, pelo uso de materiais falsificados, já que os fios produzidos artificialmente são comercializados com a aparência de naturais, na tentativa de se parecer com o cabelo humano. O desvio em relação à finalidade pode ser pontuado, ainda, nos objetos semelhantes a moedas e que tiveram suas criações inspiradas nos símbolos francês e inglês, mas cujo verdadeiro valor comercial não é o de serem moedas, mas sim adornos corporais femininos. Desse modo, a estética observada nos pequenos objetos e gadgets, bem como o ambiente que ficam expostos na feira da feira da Cidade Operária, leva-nos a interpretar que a assimilação e o comércio perene dos artigos visualmente extravagantes em relação aos padrões enquadrados socialmente como gosto sofisticado, relacionam-se, entre outros fatores, com a busca por uma manifestação própria dentro de um conjunto de possibilidades. Uma espécie de paralelismo em relação aos cânones que nos remete a Fontanella que, embora, aborde especificamente a estética do corpo e a sensibilidade grotesca da população subalterna teorizada por Bakhtin, coloca a questão do destaque que modelos realizados no âmbito da periferia passam a adquirir. “Essa estética, embora fruto de uma exclusão, é a expressão de um tipo de criatividade popular que se permitiu desenvolver apesar de todo o esforço para sua repressão” (FONTANELLA, 2005, p.10). Alguns dos objetos e acessórios aqui pesquisados estão no anexo 2. 227 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS Em toda a extensão da feira da Cidade Operária há demonstrações da variedade e de combinações que podem ser categorizadas como kitsch. Essa classificação, no entanto, parece não ter grande relevância para os feirantes e seus fregueses. Afinal, o sentimentalismo sintético e a estética confusa dos pequenos objetos analisados não intimidam o consumo. Na rotina desse microcosmo tão multifacetado quanto interessante, as relações sociais e econômicas têm uma dinâmica própria. Muitos feirantes já têm uma freguesia cativa. O tom amistoso e de coletividade são percebidos no tratamento dispensado aos fregueses e na própria relação estabelecida entre os feirantes que, ali, ocupam o mesmo território e disputam, em muitos casos, os mesmo clientes. Nas mercadorias, as marcas das diferentes influências culturais são verificadas como a representação simbólica da liberdade criativa que agrega inspirações locais a elementos estrangeiros e consegue adaptar produtos e marcas de realidades externas ao contexto local. A mescla de inspirações demonstra que as vitrines populares expõem ao consumidor mercadorias extravagantes e de gosto controverso, que podem ser classificadas em categorias do kitsch, mas que têm no apelo visual ou afetivo um ponto importante capaz de despertar o interesse, ou mesmo a emoção dos potenciais compradores. A oferta de tais produtos no comércio popular se organiza de modo paralelo ao sistema dominante. Por esse circuito da alternatividade barata e criativamente diversificada, os bens são produzidos, divulgados e negociados com estratégias próprias que se destacam não pela possibilidade de negação, mas por poderem se assumir como produtos kitschinizados e serem, ainda, um contraponto aos modelos do organograma social hegemônico. 228 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 ANEXOS Anexo 1 – Mapa da Feira da Cidade Operária Anexo 2 – Alguns objetos e acessórios analisados 229 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 230 REVISTA CAMBIASSU Publicação Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853 São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008 REFERÊNCIAS BURKE, Peter. 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UFMA-PROIN-CS, 2000. ANEXO 1 – Mapa da Feira da Cidade Operária ANEXO 2 – Alguns objetos e acessórios analisados 232
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