Territorio e sociedade moderna
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Territorio e sociedade moderna
Território, Sociedade e Modernização Adordagens Interdisciplinares Governador Valadares, outubro de 2010. Mantenedora Fundação Percival Farquhar Presidente da Fundação Edvaldo Soares dos Santos Universidade Vale do Rio Doce Reitora Ana Angélica Gonçalves Leão Coelho Pró-Reitora Acadêmica Fabíola Alves dos Reis Pró-Reitor Administrativo Marle José Ferrari Júnior Responsável pela Editora Brian Lopes Honório Haruf Salmen Espindola Jean Luiz Neves Abreu Organizadores Território, Sociedade e Modernização Adordagens Interdisciplinares Governador Valadares, outubro de 2010. Todos os direitos reservados. Copyright © 2010 da Editora Univale. Território, sociedade e modernidade / organizadores: Jean Luiz Neves Abreu, Haruf Salmen Espindola. – Governador Valadares : Ed. Univale, 2010. 396 p. ISBN 978-85-89046-28-2 1. Território. 2. Geografia urbana. 3. Governador Valadares – Aspectos políticos. 4. Governador Valadares – Condições econômicas. I. Abreu, Jean Luiz Neves. II. Espindola, Haruf Salmen. CDD 307.76098151 Projeto gráfico Editora Univale Editoração eletrônica e capa Brian Lopes Honório Revisão A revisão dos textos são de responsabilidade dos autores Impressão Gráfica O Lutador Ficha catalográfica Biblioteca Dr. Geraldo Viana Cruz (Univale) 2010 EDITORA UNIVALE Rua Israel Pinheiro, 2000 - Universitário Cep.: 35020-220 Governador Valadares - MG Telefone: (33) 3279-5512 Site: www.editora.univale.br E-mail: [email protected] Esse livro é o resultado do projeto de pesquisa “Ocupação e Modernidade: Processos de Territorialização no Vale do Rio Doce” Edital: 004/07 - Grupos Emergentes de Pesquisa Sumário Apresentação.............................................................................................................11 Apropriação de Terras Devolutas e Organização Territorial no Vale do Rio Doce: 1891-1960 Haruf Salmen Espindola, Barbara Parreiras de Aquino, Júlio Cesar Pires Pereira de Morais, Wallace Ferreira dos Santos, Diego Dantas Amorim, Ana Caroline Gomes Esteves, Renata Flor Marins . ............................................................................ 19 Sociedade do tempo versus sociedade do espaço: o percurso de dois destinos - Chonim de Cima (MG) e Toledo (PR) Patrícia Falco Genovez, José Luiz Cazarotto...........................................................59 Ciência, saúde e território em Minas Gerais (1895-1930) Jean Luiz Neves Abreu..........................................................................................95 Entre práticas sanitárias e saberes tradicionais: a territorialização do saneamento no Médio Rio Doce Patrícia Falco Genovez, Maria Terezinha Bretas Vilarino.......................................119 Controle social e identidade: os casos do Clube Atlético Pastoril e o Esporte Clube Democrata Eliazar João da Silva, Julieta Soares Alemão Silva................................................. 155 Além do tombamento: a proteção do patrimônio cultural como exercício do direito à cidade Cristiana Maria de Oliveira Guimarães ...............................................................179 As redes sociais e a configuração do primeiro fluxo emigratório brasileiro: análise comparativa entre Criciúma e Governador Valadares Sueli Siqueira, Gláucia de Oliveira Assis, Emerson César de Campos.....................197 A representação do imigrante valadarense na mídia impressa local Juliana Vilela Pinto, Sueli Siqueira...........................................................................241 Impactos da emigração sobre as vivências da mulher do emigrante Agnes Rocha de Almeida, Carlos Alberto Dias, Emilliane de Oliveira Matos, Lucas Nápoli dos Santos ......................................................................... 267 Política Linguística no Brasil: para ser o que é Nádia D. F. Biavati..............................................................................................295 Ensino Superior e EaD: reflexões acerca da formação a distância contextualizada num pólo educacional emergente Leonardo Gomes de Sousa, Carlos Alberto Dias...................................................317 Considerações sobre os estudos que abordam o fenômeno da violência: reflexões a partir do caso de Governador Valadares Cristina Salles Caetano........................................................................................343 A nova questão social: uma proposta de análise Rita Cristina de Souza Santos..............................................................................371 Apresentação Múltiplos olhares sobre um território Jean Luiz Neves Abreu Haruf Salmen Espindola Este livro é resultado de um esforço conjunto de pesquisa realizado por pesquisadores da UNIVALE e de outras instituições, oriundos de várias áreas de conhecimento. De uma maneira geral, os temas abordados procuram chamar atenção para os múltiplos elementos que caracterizam o território de Governador Valadares e região, analisando sua inserção nos contextos global e regional. Os trabalhos aqui reunidos demonstram como a compreensão de Governador Valadares, em suas características políticas, econômicas e culturais, não pode ser objeto de uma área de saber. Conforme têm demonstrado os estudos territoriais, o território como campo de análise é por sua natureza epistemológica interdisciplinar. Conforme afirma Francisco Ther Rios (2006:107-108) “existe um entrecruzamento, uma imbricação de áreas disciplinares de conhecimento que interpretam o espaço habitado humanamente e construído através de distintos fluxos históricos”. Sem adentrar nas questões relacionadas ao conceito de território, importa destacar que nessa concepção refletir sobre esse objeto significa pensar sobre um espaço prenhe de ações humanas. Atentos ao aspecto multidimensional e às relações de poder que permeiam o território (RAFFESTIN, 1993), os capítulos seguintes procuram chamar atenção para o fato de que a cidade de Governador Valadares e seu entorno se constituiu como desdobramento de fenômenos mais gerais, mas que adquiriam identidades especí- 1 No original: “existe un entrecruzamiento, una imbricación de áreas disciplinares de conocimiento que interpretan el espacio habitado humanamente y construido a través de distintos flujos históricos” TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 11 ficas no decorrer do tempo, cuja compreensão não pode prescindir das abordagens históricas. Afinal, como esse território se constituiu; quais os elementos políticos, econômicos e culturais que influenciaram na sua constituição? Essas questões constituem o foco de análises significativas e que contribuem para a compreensão da história da região e seu desenvolvimento. No capítulo “Apropriação de Terras Devolutas e Organização Territorial no Vale do Rio Doce: 1891-1960” procura-se discutir a formação da estrutura fundiária no vale do rio Doce, a partir da territorialização produzida pela apropriação privada das terras devolutas. Haruf Salmen Espindola, em conjunto com um grupo de pesquisadores, investiga como a conformação agrária da região foi resultado de fenômenos externos e internos, já que os processos sociais configuradores da organização territorial resultaram dos grandes investimentos de capital por parte do Estado, empresas privadas e interesses estrangeiros e dos conflitos internos pela posse da terra e recursos naturais. Ampliando o enfoque sobre a questão do desenvolvimento territorial, Patrícia Falco Genovez e José Luiz Cazarotto, no capítulo “Sociedade do tempo versus sociedade do espaço: percurso de dois destinos – Chonim de Cima (MG) e Toledo (PR)”, a partir de um estudo comparativo discutem as razões pelas quais essas duas comunidades tiveram destinos diferentes, marcadas por distintos processos de territorialização. Partindo de conceitos das ciências sociais e de um efetivo trabalho interdisciplinar, os autores problematizam como ambos os territórios devem ser concebidos a partir de relações complexas entre os homens e o meio, intervindo fatores políticos, econômicos e culturais bem como lógicas diferenciadas de tempo e espaço. Território específico no Estado de Minas Gerais, a história de Governador Valadares foi marcada também pelas políticas desiguais de desenvolvimento. O capítulo de Jean Luiz Neves Abreu sobre o sanitarismo em Minas Gerais, “Ciência, saúde e território em Minas Gerais (1895-1930) procura abordar essa questão a partir de um estudo sobre o sanitarismo. Ao analisar os relatórios de saúde, procura-se discutir como a construção da saúde pública no estado não pode prescindir das questões territoriais. Ao estudar a organização sanitária no Estado e as estratégias de saneamento adotadas, evidencia-se a desigualdade dos recursos destinados à saúde em relação a determinadas regiões. Apesar 12 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO das autoridades reconhecerem a importância do saneamento do Rio Doce, as políticas de saúde negligenciaram as cidades da região em razão de seu baixo desenvolvimento econômico. A região Governador Valadares só foi objeto de investimentos econômicos a partir da década de 1940 em razão de interesses do capital estrangeiro. Nesse sentido, constata-se a presença de projetos para o saneamento do Vale do Rio Doce pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), mediante acordo entre os governos estadunidense e brasileiro. A partir das intervenções sanitárias, entre as décadas de 1940 e 50 as ações do SESP criaram condições propícias para o desenvolvimento territorial. No capítulo “Entre práticas sanitárias e saberes tradicionais: a territorialização do saneamento no Médio Rio Doce”, Patrícia Falco Genovez e Maria Terezinha Vilarino abordam o processo de territorialização da saúde e do saneamento nesta região. Além de demonstrarem o processo de territorialização a partir das políticas de intervenção do SESP, as autoras também se debruçam sobre as práticas da população frente às ações de saneamento, enfatizando as diversas concepções de território e territorialidades existentes naquele contexto sócio-histórico. Se por um lado, o processo de territorialização foi marcado por resistências e conflitos – expressos muitas vezes na preservação de valores tradicionais – por outro lado; é relevante situar o significado das práticas populares que se constituem no espaço urbano. Nessa perspectiva, no capítulo “Controle social e identidade: os casos do Clube Atlético Pastoril e o Esporte Clube Democrata” Eliazar João da Silva e Julieta Soares Alemão desenvolvem uma reflexão sobre os significados do futebol em Governador Valadares. Os autores apontam como a urbanização, a exemplo de outras cidades, impôs um novo ritmo de trabalho, consumo e lazer. O futebol, enquanto prática esportiva valorizada como símbolo da nacionalidade, teve significativo papel na década de 1940 acompanhando o ritmo da industrialização da cidade, como demonstra o caso do Pastoril. A reconstituição das trajetórias do Clube Atlético Pastoril e do Democrata permite identificar como o futebol assumiu significados sociais e culturais relevantes para aquela sociedade. De instrumento de controle social, a prática esportiva se tornou importante elemento de sociabilidade e identidade da região. Discussões sobre a urbanização e identidade perpassam também pela questão da preservação e do patrimônio cultural, efetiva ligação TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 13 entre passado e presente. Este é o objeto do texto “Além do tombamento: a proteção do patrimônio cultural como exercício do direito à cidade”, de Cristiana Maria de Oliveira Guimarães. Nele, a autora procura resgatar a discussão sobre a preservação do patrimônio cultural como elemento de identidade e de direito à cidade, postulando que o patrimônio é de usufruto coletivo e sua preservação de interesse de todos. Ao propor uma reflexão sobre os bens tombados na cidade pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural, Cristiana Guimarães realiza ao mesmo tempo uma crítica sobre os critérios de tombamento, que privilegiam a valorização de bens imóveis de valor excepcional, e tece observações relevantes a respeito da ausência de uma gestão do patrimônio capaz de integrar o projeto urbano. Dessa forma, enfatiza-se a falta de atenção a determinados elementos do patrimônio cultural relevantes para a preservação da memória, os quais devem estar em consonância com a cultura e a paisagem em prol de uma melhor gestão da cidade. Os estudos sobre Governador Valadares e a região não podem deixar de atentar para o fenômeno da migração para os Estados Unidos e outros países. Dessa forma, há um conjunto de pesquisadores que se detém sobre desdobramentos e significados do fenômeno. As análises vão para além da busca dos fatores que levaram centenas de pessoas a ir buscar melhores condições de vida na América do Norte, em razão do quadro de estagnação enfrentado pela região após a década de 1960. Sueli Siqueira, Gláucia de Oliveira Assis e Emerson César de Campos, especialistas nos estudos sobre a questão, interpretam dados relevantes sobre Governador Valadares (MG) e Criciúma (SC), que mantêm, desde a década de 1960, conexões com a região de Boston (EUA) – e nas cidades da grande Boston e New York, onde foram encontrados os emigrantes que não retornaram. Dessa forma, os autores no capítulo “As redes sociais e a configuração do primeiro fluxo emigratório brasileiro: análise comparativa entre criciúma e Governador Valadares”, demonstram como migração tem influenciado a vida cotidiana das cidades na origem e destino. Procuram compreender os impactos da migração, tanto entre aqueles que ficaram como as perspectivas daqueles que partiram, e as redes sociais constituídas em torno dessas pessoas. O estudo aponta como as redes sociais se configuram como práticas sociais que envolvem diferentes tipos de 14 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO auxílios de ordem material, emocional e simbólica, garantindo condições para futuros migrantes e seus possíveis retornos. Acompanhando as posições de Saquet e Mondardo (2008:122), pode-se afirmar que migrante constituiu várias redes locais e extra-locais, levando à reterritorialização “pelo movimento de apropriação e reprodução de relações sociais que podem ser produzidas por uma conexão em rede”. O fenômeno da migração internacional na região de Governador Valadares foi caracterizado também por projeções imaginárias e utopias. Juliana Vilela, com a contribuição de Sueli Siqueira, faz uma leitura da representação dos estereótipos sobre os Estados Unidos a partir da interpretação das tiras publicadas no Diário do Rio Doce, no texto “A representação do imigrante valadarense na mídia impressa local”. Nos anos 1990, o jornal lançou um personagem, o “Capitão Dólar” para homenagear os milhares de compatriotas que deixaram a terra natal rumo ao país do Tio Sam. Além de representar as concepções recorrentes dos valadarenses sobre os Estados Unidos como terra prometida e resolução para os problemas econômicos, o personagem revela a uma identidade fragmentada e desterritorializada, em sua incapacidade de se reintegrar à sociedade. Pensando igualmente a migração não apenas como o campo das análises políticas e econômicas, mas também lugar do simbólico e dos valores afetivos, o artigo de Agnes Rocha de Almeida e Carlos Alberto Dias, que conta com a colaboração de graduandos em psicologia, trata dos “Impactos da emigração sobre as vivências da mulher do emigrante”. Ao longo do capítulo, os autores descrevem os resultados da pesquisa realizada, mostrando como processo emigratório teve um efeito perverso sobre as relações conjugais e familiares, concluindo que os possíveis ganhos advindos do trabalho no exterior não são capazes de compensar os prejuízos emocionais. A migração demonstra o quanto questões de um mundo cada vez mais globalizado influem na realidade local. É o que aponta o texto “Política lingüística no Brasil: para ser o que é”, de Nádia Biavati. Ao problematizar várias questões relativas à política Lingüística do Brasil, a autora observa que a existência em Governador Valadares e região de filhos de brasileiros alfabetizados em língua inglesa é um fato que demandou a criação de disciplina de Português voltada para estrangeiros no curso de Letras da UNIVALE. A autora indica como a língua é um elemento TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 15 simbólico de constituição do território que influi no contexto local. Se os problemas relativos à diáspora são centrais para a compreensão dos fenômenos que caracterizam a constituição dos processos territoriais nessa sociedade, outros temas também não podem deixar de ser contemplados, na medida em que estão conectados com a globalização e as tecnologias de informação. Leonardo Gomes de Souza e Carlos Alberto Dias, no artigo “Ensino Superior e EaD: reflexões acerca da formação a distância contextualizada num pólo educacional emergente” propõem uma análise acerca do papel da educação à distância na microrregião de Governador Valadares. Os autores enfatizam a necessidade de elaboração de projetos contextualizados às necessidades regionais como ponto de partida para maximizar a aplicação de conhecimentos, de modo a possibilitar a reconstrução de uma nova identidade territorial. Os dois últimos textos que integram o livro trazem contribuições relevantes para se pensar sobre questões atuais que atingem a sociedade valadarense: a violência e a desigualdade social. Cristina Caetano, em “Considerações sobre os estudos que abordam o fenômeno da violência: reflexões a partir do caso de Governador Valadares”, após uma análise teórica do conceito de violência, expõe dados que comprovam que as taxas de criminalidade na microrregião na qual se insere a cidade aumentou entre a década de 1990 e da década seguinte. Apesar de reconhecer o papel dos estudos estatísticos, a autora chama atenção para o fato de que apresentam uma visão reducionista da criminalidade, pois não a contextualiza perdendo de vista aspectos específicos. Para uma análise mais contextualizada do problema seria imprescindível compreender os aspectos históricos do processo de territorialização, bem como focalizar a sociedade como um todo para a investigação da violência, apontando a metodologia qualitativa como capaz de revelar as dimensões estruturais da violência. O texto de Cristina Caetano oferece, portanto, questões relevantes e uma perspectiva de análise bastante promissora para estudos futuros. No último capítulo, “A nova questão social: uma proposta de análise”, Rita Cristina de Souza Santos traz uma reflexão sobre as relações entre pobreza, vulnerabilidades e desigualdades sociais. A partir de reflexões teóricas em torno desses conceitos, a autora mostra como são fenômenos complexos. No caso de Governador Valadares, em particular, Rita Santos observa que os dados característicos da pobreza e da vulnerabilidade so16 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO cial não se definem apenas pela renda da população, mas pelo acesso à saúde, serviços de infra-estrutura urbana, como rede de água e esgoto, e o acesso à educação. Após realizar uma ampla discussão dessas questões, seu estudo conclui que a discussão sobre o que “o município tem feito em prol da população pobre e das possibilidades de enfrentamento de suas vulnerabilidades”, é tarefa não só do poder público, mas de professores e pesquisadores, ao longo da organização de um programa de Mestrado em Gestão do Território em solo valadarense. A conclusão da professora Rita Santos é basilar para os propósitos do presente livro. Ele é um passo importante para se compreender teoricamente os aspectos definidores de um território e fornece subsídios relevantes para intervenções que contribuam para o desenvolvimento regional e a superação de seus obstáculos. Referencias bibliográficas: RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo, Ática, 1993, pp. 143-185. SAQUET, Marco Aurélio A. ; MONDARDO, Marcos L. A construção de territórios na migração por meio de redes de relações sociais.. Revista NERA (UNESP. Online), v. ANO 11, p. 118-127, 2008. THER RIOS, Francisco. Complejidad territorial y sustentabilidad: notas para una epistemológia de los estudios territoriales. Horiz. antropol. [online]. 2006, vol.12, n.25 [cited 2010-05-15], pp. 105-115. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 17 Apropriação de Terras Devolutas e Organização Territorial no Vale do Rio Doce: 1891-1960.1 Haruf Salmen Espindola2 Barbara Parreiras de Aquino Júlio Cesar Pires Pereira de Morais Wallace Ferreira dos Santos Diego Dantas Amorim Ana Caroline Gomes Esteves Renata Flor Marins N a década de 1930 se instalou no Brasil um processo de industrialização que responderá pela transição da sociedade agrária para a sociedade de base urbano-industrial. Esse processo foi marcado pela intensa concentração urbana das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. A industrialização brasileira, indutora e, ao mesmo tempo, favorecida pela integração do mercado nacional (crescentes interligações rodoviárias), produziu mudanças no padrão de acumulação capitalista e, consequentemente, isso repercutiu negativamente na posição ocupada por Minas Gerais, numa crescente secundarização frente a São Paulo. Em Minas Gerais o fenômeno da industrialização ficou restrito à expansão do setor de mineração e metalurgia. O sentido da atuação dos governos mineiros foi de reforçar a tendência já existente desde os governos de Artur Bernardes, quando presidente do Estado de Minas Gerais (1918-1922) e do Brasil (1822-1926), de aproveitar os recursos naturais de Minas, conforme afirmou Claude-Henry Gorceix (18421919), ao se referir à disseminação da metalurgia em Minas, onde havia água, minério e matas surgiam fundições de ferro (GORCEIX, 1880). 1 Este trabalho conta com financiamento do CNPq e FAPEMIG. 2 Haruf Salmen Espindola é doutor em História Econômica pela USP, Professor titular da Universidade Vale do Rio Doce; Bárbara Aquino é bacharel em Ecologia pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) e estudante de História - 3º período - pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Júlio Morais é estudante de Historia da PUC Minas; Wallace Santos é graduado em História pela Univale e ex-bolsista BIC-FAPEMIG; Diego Amorim é graduado em Agronomia pela Univale e ex-bolsista BIC-FAPEMIG; Ana Caroline e Renata Flor são estudantes de Direito da Univale e bolsistas BIC-FAPEMIG. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 19 Foi esse potencial que serviu de suporte para a expansão da siderurgia e mineração no estado de Minas Gerais. Esse desenvolvimento especializado dependeu da participação direta do Estado e da presença do capital estrangeiro, cujos investimentos de capital se concentraram na zona central, polarizada pela capital Belo Horizonte, e se estendeu na direção do “Quadrilátero Ferrífero”, no Vale do Rio Doce, onde se concentravam os recursos naturais. Assim, a Zona Metalúrgica vincula a dinâmica de sua indústria de forma complementar e dependente da dinâmica industrial do pólo (São Paulo), iniciando um processo de concentração industrial naquela microrregião, que se consolida a partir da segunda metade da década de 1950 (PAULA, 2002:16). Portanto, o crescimento da industrial de Minas Gerais se vinculou a uma posição subordinada de integração ao mercado nacional e inserção no processo de industrialização brasileiro, que muito incomodava às elites dirigentes mineiras. A posição relativa de Minas reforçou a tendência de exploração dos recursos naturais por meio de políticas de favorecimentos por parte do governo estadual e das negociações frente à União para contar com investimentos do Estado brasileiro e do capital externo. Nesse contexto, o objetivo é refletir sobre a questão da disputa pelas terras devolutas do Vale do Rio Doce, ricas dos recursos naturais mencionados: matas, água e minério de ferro. A orientação seguida fundamenta-se na distinção entre frente de expansão demográfica e frente pioneira, bem como no impacto da regulação da apropriação privada da terra, especialmente no confronto entre posse e propriedade privada. O geógrafo alemão Waibel (1955: 404) identificou a constituição de zonas pioneiras num raio de 500 a 1.000 quilômetros, a partir das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro: Oeste de Santa Catarina; Norte, Sudoeste e Oeste do Paraná; Oeste de São Paulo; Mato Grosso de Goiás; e Vale do Rio Doce (incluindo os vales dos rios São Mateus e Mucuri). O que explicaria a formação dessas zonas era a elevação dos preços dos gêneros alimentícios provocado pela conjuntura externa e pela urbanização interna. A produção de feijão, milho e, especialmente, arroz ocupavam uma posição central na estrutura produtiva das zonas pioneiras. Também apareciam as culturas comerciais do algodão, fumo e café, se as condições de solo e clima permitissem. A cultura do café deixou de ser básica para a 20 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO expansão das zonas pioneiras, exceto para o norte do Paraná. A partir da década de 1950 desapareceu a figura do imigrante estrangeiro, substituído pelo migrante nacional. As novas zonas pioneiras apresentavam um perfil socioeconômico diferenciado, pela presença marcante da pequena exploração agrícola e de uma “população tão polimorfa, que mesmo para as condições do Brasil ficavam além do normal”. A migração interna era procedente principalmente de Minas Gerais e Nordeste, além daquelas originadas das zonas cafeeiras decadentes (WAIBEL, 1955: 405). Essas observações iniciais permitem introduzir a temática proposta nesse estudo sobre o Vale do Rio Doce. Essa zona se localiza a uma distância de 600 e 1.000 quilômetros das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente. Na década de 1940, nessa zona os interesses minerais (ferro e mica) e siderúrgicos influenciaram diretamente no processo de abertura da fronteira econômica (frente pioneira). A cidade de Governador Valadares, emancipada em 1938, se tornou pólo da nova dinâmica que se estabeleceu com a entrada dos grandes investimentos de capital. O médico e ex-prefeito Ladislau Sales (1955-1959) definiu como “babel” o que encontrou, ao chegar à cidade no ano da emancipação política, tamanha as diferentes procedências nacionais e estrangeiras dos habitantes. A polimorfia a que se referiu Waibel, na zona do rio Doce era acrescida pela presença de interesses estrangeiros diretamente vinculados ao conflito internacional: Um fato que me chamou a atenção quando cheguei aqui, é que a Guerra havia começado há poucos meses e já havia uma comissão japonesa, adquirindo mica, que era um material precioso para confecção de avião. E algum tempo depois, veio uma comissão americana muito mais poderosa, com o mesmo objetivo, e trazendo uma quantidade enorme de máquinas. Eu era médico das duas. Ah! A japonesa era chefiada por um homem que se chamava Takeo Itiba3. O Vale do Rio Doce apresentava características comuns às zonas pioneiras, como apontadas por Waibel: rápido crescimento da população e da área cultivada, favorecida pela implantação de sistema de transporte, especialmente as estradas de rodagem e difusão do cami3 Entrevista com Dr. Ladislau Sales, realizada em Belo Horizonte, 14/12/2001. Acervo do NEHT/Univale. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 21 nhão. A Estrada de Ferro Vitória a Minas – EFVM - corta a região do rio Doce no sentido Leste-Oeste e a Rodovia BR 116 (Rio-Bahia) no sentido Norte-Sul, com o cruzamento dos dois eixos viários na cidade de Governador Valadares. A infra-estrutura introduzida nas quatro primeiras décadas do século XX atuou para ordenar e condicionar a localização do capital, de instituições e de pessoas. Os diversos lugares, antes isolados, foram interligados à ferrovia e rodovia por estradas vicinais; as tropas de mula foram substituídas por caminhões; e empresas de ônibus regionais colocaram os povoados em contato com as estações ferroviárias e com os centros urbanos que ofereciam as linhas de ônibus para a capital mineira ou as ligações interestaduais. A introdução do caminhão e do Jeep Willys por empresas e por pessoas com capital suficiente, nas décadas de 1940 e 1950, acelerou o controle dos agentes econômicos sobre o território, especialmente daqueles ligados à extração de carvão para as grandes siderúrgicas, de madeira para as serrarias e de mica para as indústrias de beneficiamento localizadas em Governador Valadares. Nos locais onde eram abertos postos de gasolina e mecânicas, ao longo da Rio-Bahia, surgiam povoados, que rapidamente evoluíram para vilas e cidades, como antes ocorrera onde se localizaram as estações da estrada de ferro. O sistema de transporte rudimentar por tropas de mula e canoas, até as estações ferroviárias, foi substituído por uma rede de estradas que se espraiou por todo o território, cortando áreas de floresta desabitadas. Como as estradas eram de terra, elas obrigavam os viajantes a pernoitarem. O trajeto do Rio de Janeiro à Governador Valadares, hoje feito de ônibus em nove horas, era de dois dias, com pernoite em Muriaé. As chuvas interditavam as estradas por longo tempo e obrigavam os veículos a ficarem por dias parados em postos de gasolinas ou pequenos povoados. Dessa forma, condutores e passageiros constituíam um mercado que favorecia o desenvolvimento dos núcleos urbanos. Na década de 1910, a madeira de lei era extraída e exportada bruta pela ferrovia, ficando as toras maiores, pela impossibilidade de embarcá-las. Essa extração dos recursos florestais ocorria apenas próxima as estações da EFVM, e nos lugares mais distantes permanecia intacto ou era consumido em pequena quantidade no local, com o restante consumido pelo fogo. Diferente do passado, o novo sistema de transporte permitiu explorar os recursos florestais (madeira de lei e carvão vegetal) e minerais (mica, cristais de rocha e pedras coradas). Serrarias 22 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO se multiplicaram nos povoados e vilas existentes ou, elas próprias, davam origem a novos núcleos urbanos. Os acampamentos das turmas encarregadas de produção de carvão e lenha para as siderúrgicas evoluíam para povoados e vilas, com a fixação dos comerciantes que abasteciam os trabalhadores e com as ligações vicinais que se estabeleciam. As áreas, de onde se extraia madeira de lei, e onde se produziam carvão e lenha, adquiriram valor de mercado. Desta forma, a preexistência de matas deixou de ser apenas um atrativo para o tradicional posseiro que abandonava as “terras cansadas” e ia abrir nova clareira na mata, para se tornar um valor econômico considerável, meio inicial de capitalização (madeira de lei, dormentes para ferrovia, carvão e lenha) para posseiros, grandes proprietários, especuladores e investidores dos grandes centros urbanos. Como observou Waibel (1955: 407): “Empresas madeireiras e serrarias penetram hoje na mata antes do colono e em muitos casos facilitam-lhe o árduo trabalho.” A frente pioneira é característica pela presença de pessoas com capacidade, influência e poder para constituírem grandes latifúndios. No Vale do Rio Doce, além dos particulares, também estavam presentes companhias siderúrgicas, especialmente a Belgo-Mineira e a Acesita (atuais ArcelorMittal), possuidoras de grandes extensões de áreas florestais. As terras das companhias siderúrgicas serviam, em primeiro lugar, para a produção de carvão vegetal e extração de lenha, porém elas também mantinham grandes serrarias. A Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, além de serraria, na década de 1950 também era proprietária de uma grande fábrica de compensados na cidade de Governador Valadares, por meio da sua subsidiária Companhia Agropastoril, cujo presidente era Júlio Soares, cunhado do governador mineiro e presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek. Com a abertura de estradas nas áreas florestais, presença de grandes investimentos de capital e valorização econômica dos recursos naturais, as terras sofrem intensa valorização monetária, que aumentava conforme a proximidade das rodovias, estações ferroviárias e centros de comércio. Nesse contexto o posseiro passou a enfrentar a concorrência de fazendeiros e de atores sociais que se voltam para a terra (especuladores, industriais, comerciantes, profissionais liberais, funcionários do governo estadual, agentes das grandes companhias e empresas madeireiras, entre outros), instalados nas vilas e cidades da região. A mercantilização da terra induziu o surgimento TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 23 do fenômeno da grilagem de terra, isto é, por meio de arranjos legais, influência política, títulos duvidosos ou falsos um indivíduo se apodera de grandes extensões de terras, independente de a área ser ocupada por posseiros, por vários anos. A valorização da terra como mercadoria, a compra e venda da terra ou do direito de posse e a propriedade privada como condição para obtenção e manutenção da posse da terra fecha os espaços para os posseiros e desestrutura as comunidades de vizinhança de lavradores pobres. “A terra passa (...) das mãos dos posseiros às dos que vinham ocupá-la, e destes às pessoas com capitais suficientes para comprá-la e garantir a propriedade cercando-a e fazendo-a medir por agrônomos enviados pelos departamentos competentes...” (CASTALDI, 2008: 243). A legislação de terras de Minas Gerais facilitou esse processo ao desconsiderar o preceito constitucional que colocava como condição para a legitimação da posse a obrigação da “morada habitual” nas terras. A exigência mineira era a comprovação de cultura ou criação de gado, condição a ser atestada pelo agrimensor responsável pela medição das terras requeridas. “Pior, porém, é que isso se dá, geralmente, em detrimento do verdadeiro posseiro...” (GARCIA, 1958: 65) A legislação e a prática dos chefes dos distritos de terras permitiam burlar o direito de posse, isto é, a preferência de compra dado ao ocupante de fato (posseiro). Os editais dos processos de legitimação de terras eram publicados no diário oficial, folha de maior circulação e nos locais de costume, todos esses inacessíveis para os posseiros, “na grande maioria dos casos (podemos dizer, em 95% por casos), analfabeto” (GARCIA, 1958: 65). A EFVM foi o fator inicial de colonização, mas a partir dos anos de 1930 a indústria da madeira, a siderurgia, a extração e beneficiamento da mica, a abertura de rodovias, o saneamento e o combate as endemias foram aceleradores da ocupação para além da estreita faixa próxima do rio e ao leito da ferrovia. Os investimentos de capital favoreceram o adensamento demográfico e o espraiamento da frente pioneira. As estradas vicinais foram abertas pelas serrarias, siderúrgicas, mineradoras da mica e fazendeiros, ligando as propriedades e lugarejos às rodovias e estações ferroviárias; diversos povoados surgiram em torno desses empreendimentos capitalistas. No final da década de 1950, na zona do rio Doce, compreendendo todo o trecho do curso médio do 24 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO rio, as terras ao longo das rodovias e ferrovia apresentam áreas de matas devastadas e troncos carbonizados, mas no geral foram limpas após a destruição da cobertura florestal. As terras estavam ocupadas por grandes fazendas especializadas nas “invernadas” (engorda de gado bovino), com grande importância para o abastecimento de Belo Horizonte e Rio de Janeiro (STRAUCH, 1958: 120). A extração e beneficiamento da madeira representavam a principal atividade de todo o médio Rio Doce, porém crescia a distância entre os locais de extração e de beneficiamento. A cidade de Governador Valadares concentrava 12 grandes serrarias e uma importante fábrica de compensados (subsidiária da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira); no geral as pequenas cidades possuíam mais de uma serraria. O principal problema enfrentado por essa indústria era a baixa oferta de energia, que se agravou, nos anos de 1950, por causa do crescimento da demanda dos núcleos urbanos.4 Num raio de 60 quilômetros em torno das cidades de Governador Valadares, Teófilo Otoni e Caratinga constituíram dezenas de povoados, vilas e cidades; a maioria localizada ao longo da EFVM e das rodovias. Todos esses núcleos se transformaram em importantes praças comerciais, com o movimento dependente da economia rural do entorno (agropecuária e extrativismo vegetal/mineral). O aspecto urbano era dominado por construções baixas de pequenos cômodos, porém com a especificidade de serem de alvenaria, apesar da abundância de madeira, e de usarem telhado de cerâmica; o telhado de tábuas (tabuinha) era mais comum no meio rural. O acabamento da maioria das construções era rudimentar e estavam ausentes as instalações sanitárias, até mesmo as fossas sépticas. Esse quadro perdurou por muito tempo, inclusive depois da entrada do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP e da criação dos serviços de água e Esgoto. O esforço desses serviços foi para que, pelo menos, a fossa séptica fosse instalada nas residências e estabelecimentos comerciais e industriais fora das áreas centrais das maiores cidades e nos núcleos urbanos menores.5 4 Waibel classifica de estágio “post-pioneiro” quando a terra já foi ocupada e a mata praticamente desapareceu. Nessa fase ainda os sinais da ocupação recente aparecem nos troncos carbonizados e árvores derrubadas nos pastos, além da presença de serrarias e da produção agrícola (WAIBEL, 1955: 408) 5 VILARINO, Maria Terezinha B. Entre lagoas e florestas. Atuação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) no saneamento do Médio Rio Doce: 1942-1960. Belo Horizonte, UFMG, 2008. (Dissertação de Mestrado). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 25 Para Waibel o ciclo “post-pioneiro” se completa entre 10 e 20 anos. Isso é constatado no Vale do Rio Doce, pois a década de 1960 é marcada pela mudança no aspecto urbano, caracterizado por construções de melhor qualidade, com os cômodos de tamanho normal (padrão), calçamento das ruas, construção e/ou extensão das redes de abastecimento de água e canalização do esgoto, estabilização do fornecimento de energia, ampliação do serviço de telefonia, entre outros. No Vale do Rio Doce, para as localidades ligadas diretamente a reforma da EFVM para transporte de minério de ferro em grande escala e às operações da Companhia Vale do Rio Doce, criada em 1942, a partir dos Acordos de Washington, o saneamento e infra-estrutura urbana coincidiu com a fase pioneira.6 No geral, as décadas de 1960 e 1970 marcaram a transição mencionada por Waibel. Entretanto, a superação do estágio pioneiro não foi igual para todas as localidades. Enquanto algumas cidades tiveram as tradicionais serrarias e beneficiadoras de arroz e milho substituídas por diferentes empreendimentos resultantes da maior divisão do trabalho, a grande maioria simplesmente entrou em decadência com o fim das atividades da fase pioneira, sem que encontrassem alternativas, exceto a emigração de sua população (êxodo rural e deslocamento para cidades de porte médio da região, capitais ou outras frentes pioneiras). A ideologia da “marcha para o oeste”, desencadeada em 1943 com a Expedição Roncador-Xingu, não corresponde à realidade do Vale do Rio Doce, que se encontra a Leste do centro mais desenvolvido de Minas Gerais, a uma distância média de 600 quilômetros da capital federal. Na verdade a constituição da frente pioneira no leste mineiro confirma a proposição de Waibel, de que as novas zonas pioneiras eram “áreas insuladas de mata” formadas por correntes de penetração vindas de todos os quatros pontos cardeais. A vinculação que se estabeleceu do Vale do Rio Doce com o Rio de Janeiro (Capital Federal) corrobora a tese de que o deslocamento humano se dava a partir da “esfera de influência das duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro” (WAIBEL, 1955: 412). A zona de Governador Valadares pode ser considerada como o ponto mais avançado da influência direta do Rio de Janeiro, pelo menos até o final dos anos de 6 Com financiamento dos EUA e do governo brasileiro o Serviço Especial de Saúde Pública – SESP atuou no saneamento e na criação dos Serviços Autônomos de Água e Esgoto – SAAE. 26 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO 1960, quando a ligação rodoviária com Belo Horizonte é asfaltada e o sinal de televisão deixa de ser proveniente do Rio de Janeiro. Nessa mesma época, os estudantes também mudam o seu destino, preferindo as escolas de ensino médio e superior da capital mineira. A fragilidade da frente de expansão Os dados das sinopses estatísticas de 1890 e 1900 indicam a presença de uma incipiente frente de povoamento nos vales dos rios Doce, Mucuri e São Mateus. Pela Sinopse do recenseamento de 31 de dezembro de 1890 (BRASIL, 1890) a população dos municípios, cujos territórios abrangiam a zona formada pelos referidos vales, totalizavam 147.727 habitantes, correspondendo a 4,6% da população de Minas Gerais (3.184.099 hab.). Esse número incluía antigas zonas de povoamento de Minas Gerais, formadas pelos municípios de Itabira, Guanhães, Peçanha e Ponte Nova. Se considerarmos apenas a região de Governador Valadares (Distrito de Figueira) a população era de 1.045 habitantes, inexpressiva diante da população do município (Peçanha), de 33.830 habitantes. A população de outros distritos na área de floresta eram maiores, mas ainda pouco expressiva: Filadélfia (Teófilo Otoni) com 9.952; N. S. do Patrocínio do Serro (Virginópolis), com 9.401; Manhuaçu com 19.075; e Caratinga com 12.297 habitantes. Em 1900 a situação não modificou significativamente, com a população atingindo 4,8% do total do estado (BRASIL, 1900). O Censo de 1920 apresenta uma realidade bastante diferente, indicando o impacto causado pelas ferrovias Bahia-Minas (Vale do Mucuri) e Vitória a Minas (Vale do Rio Doce), iniciadas em 1881 e 1903, respectivamente, e concluídas em 1942. A população regional cresceu de 467% em relação a 1900, passando a representar 13,87% da população total do estado. Se excluirmos os municípios antigos, teremos a população de 437.372 habitantes, em 1920, aumentada para 577.685 (1940); 835.952 (1950) e 1.070.082 habitantes (1960), (BRASIL, 1920; 1940; 1950 e 1960). Os dados do crescimento populacional indicam uma diminuição significativa da taxa de expansão populacional entre as décadas de 1920 e 1940 (32%) e um novo incremento nas duas décadas seguintes (144%). Isso indica o impacto da construção da rodovia Rio-Bahia, iniciada em 1937 e concluída em 1944, especialmente se considerarmos que os principais municípios ficaram sob a influência TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 27 direta da nova estrada. Em 1960 os municípios destacados atingiram 16,58% da população total do estado de Minas Gerais. A ocupação demográfica das terras do médio rio Doce, produzida pelas frentes de expansão do povoamento (migração interna) caracteriza-se pelo processo de apossamento de terras devolutas para uso particular. As frentes de ocupação são provenientes das antigas áreas de povoamento das Minas Gerais (Serro/Guanhães/Peçanha; Mariana/Ponte Nova/São Domigos do Prata; Caeté/Antônio Dias/Itabira); da Zona da Mata Mineira e Norte do Rio de Janeiro; do Espírito Santo; e do Vale do Jequitinhonha/Bahia, entre outros. O apossamento era individual, porém promovido por indivíduos reunidos por laços de parentesco e compadrio. A configuração natural do relevo favorecia o estabelecimento dos posseiros junto aos cursos d’água (córregos), cuja extensão da ocupação era determinada pela vertente. Figura: Comunidade do Córrego do Batata. Pelo desenho construído pelos próprios moradores da comunidade, percebe-se que a ocupação se estabeleceu nas vertentes dos cursos d’água (córregos) que compõem uma microbacia. Fonte: ESPINDOLA, H. S. et. al. Relatório do Diagnóstico socioeconômico e zoneamento ambiental do município de Governador Valadares. Projeto realizado por convênio UNIVALE/PMGV/CAT/UFV, com apoio financeiro do CNPq. 2002. 28 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO A frente de expansão abre terras para o excedente demográfico que não encontra meios de subsistência na origem. Formava-se a comunidade de vizinhança, cuja vida econômica não era estruturada a partir da produção para o mercado. Isolados na mata, a cooperação entre os vizinhos era fundamental para enfrentar as dificuldades do meio. Antes as casas eram feitas de taquara e sapé, pois não existiam telhas e materiais de alvenaria. A pobreza da comunidade antigamente era muito grande. Existiam muitos males como anemia, febre amarela, amarelão, paludismo, mazela, bico de coruja, latia, lázaro e muitos tumores. As pessoas usavam remédios alternativos como tomar cachaça para o tumor estourar. Já morreu muita gente de sarampo, catapora, cachumba, e doenças transmitidas por piolhos e percevejos. As pessoas que morriam eram enterradas no pé do cruzeiro.7 Os ocupantes apropriavam das terras e se tornavam posseiros de terras devolutas. A produção era destinada a subsistência, porém era preciso garantir um excedente para ser vendido no “comércio” mais próximo. Não era a terra que possuía valor de troca, mas esse excedente que era levado ao mercado e permitia ao posseiro completar suas necessidades. Há uns 80 anos atrás era plantado milho, feijão e outros para a própria subsistência. Já foi colhido muitos sacos de arroz, de feijão que eram vendidos para atravessadores que levavam para cidade.8 A agricultura era muito forte. Plantava de tudo na comunidade e tudo produzia muito bem. As melhores terras eram ocupadas com lavoura branca, especialmente nas baixas era plantado o arroz. Nas plantações não se usavam adubos, era tudo natural e o trabalho todo manual. Já se plantou também muita cana para fazer cachaça e rapadura. Antes a mão de obra era muito barata. Era usado o método de trocar dia... Antigamente, ao se produzir, guardavam as sementes para refazer o plantio no ano seguinte. As sementes eram todas selecionadas e não era necessário comprar, e produzia-se muito. O milho era vendido debulhado ou na palha.9 7 Depoimento de morador do Córrego de São Gabriel, no norte do município de Governador Valadares. ESPINDOLA, H. S. et. al. Relatório do Diagnóstico socioeconômico e zoneamento ambiental do município de Governador Valadares. Projeto realizado por convênio UNIVALE/ PMGV/CAT/UFV, com apoio financeiro do CNPq. 2002. 8 Depoimento de morador do Córrego São Silvestre, no leste do município de Governador Valadares. Ibdem. 9 Depoimento de morador dos córregos do Angico e da Peroba, no noroeste do município de Governador Valadares. Idem. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 29 Existe uma inter-relação entre terras de mata, técnica de exploração e sistema de cooperação de vizinhança que favorece o avanço da frente de expansão. Essa se integrava à economia de mercado ao absorver excedentes demográficos de outras zonas e ao produzir excedentes que eram comercializados. O que a caracteriza é o uso privado das terras devolutas, num contexto que essas não são regidas por valor de mercado (MARTINS, 1974: 45-46). O posseiro praticava o sistema da queimada e rotação de terras, com a roça dentro da mata, tendo como instrumento de trabalho a enxada e como cultivo o arroz, feijão, milho, abóbora, além de engordar porcos. Os aspectos técnicos da agricultura rústica dos posseiros, baseada na abertura da clareira na mata e queimada, associado à forma de ocupação das vertentes, favorecia o desperdício das propriedades geoecológicas do terreno e dos seus recursos naturais. Na época da ocupação da área para a agricultura não existia muita preocupação com o desmatamento, e o uso do fogo para limpeza das áreas era prática comum. Não eram realizados aceiros, e a maior parte da matas foi sendo destruídas por queimadas.10 Para fazerem as plantações, os agricultores cortavam as madeiras e queimavam no local mesmo. Não faziam aceiros e acabavam queimando muito mais área do que precisavam para plantar. Para plantar 10 litros de milho e feijão era queimada uma área que cabia 100 litros ou mais. Muita madeira foi queimada no chão. Hoje têm dificuldades de conseguirem madeiras para fazerem cercas.11 O plantio de arroz e feijão diminuiu muito. Esses produtos estão sendo comprados de fora, para o consumo das famílias. A produção diminuiu devido o enfraquecimento das terras.12 Esse sistema de agricultura rústica, que obrigava o posseiro a abrir outra clareira depois de três anos de cultivo, longe de ser transitório era uma situação permanente que se sustentava com novas derrubadas na floresta. A ocupação dos posseiros era sempre precária e itinerante, ocorrendo em locais isolados ou de acessos difíceis. Essa ocupação era viabilizada porque era feita pelo conjunto de famílias vinculadas entre si e num sistema de dependência mútua (CASTALDI, 2008: 333). 10 Depoimento de morador dos córregos do Angico e da Peroba, no noroeste do município de Governador Valadares. Ibidem. 11 Depoimento de morador do Córrego do Bernardo, no noroeste do município de Governador Valadares. Ibdem. 12 Depoimento de morador do Córrego do Sabiá, no noroeste do município de Governador Valadares. Ibdem. 30 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Essa precariedade estrutural se intensificava com a penetração da frente pioneira, isto é, a entrada do interesse econômico capitalista no mercado de terras, por meio de empresas imobiliárias, ferroviárias, comerciais, industriais, bancárias etc. (MARTINS, 1975: 47). A valorização da terra como mercadoria, a compra e venda e a propriedade privada como condição para obtenção e manutenção da posse da terra fecha os espaços para os posseiros e desestrutura suas comunidades de vizinhança. A publicação, em 1957, de um estudo de Castaldi (2008) tem a vantagem de trazer para o primeiro plano o caso concreto de um grupo de posseiros estabelecido no local conhecido como Catulé, no vale o rio Urupuca, ao norte de Governador Valadares. O que levou ao estudo de caso foi o fato que se tornou destaque na imprensa: assassinato de quatro crianças, supostamente possuídas pelo demônio, ocorrido em 1955. Ao dar voz aos envolvidos na tragédia, revela-se a situação de precariedade e itinerância dos posseiros, até que, sem mais poder se estabelecer, se vêem obrigados a se vincular a um fazendeiro. O primeiro indício de que a propriedade privada atingira o grupo estudado por Castaldi (2008) remontava à década de 1940, quando Abrão, um dos entrevistados, foi obrigado a “vender” a terra, cedendo à prepotência do fazendeiro. Como lhe disse um dos habitantes: “Quando eu era menino só havia duas fazendas, o resto do terreno era mata e cada um tinha uma posse. Agora é tudo fazenda grande” (CASTALDI, 2008: 341). A fase mais violenta desse processo concluiu-se, pelo menos para o nosso grupo, por volta de 1948, época em que Manuel S., depois de ter em vão e por duas vezes tentado ‘tirar uma posse’ (em vão porque não conseguiu defendê-la do ataque dos vizinhos) chegou à conclusão de que “lugar para mim é bestagem” e começou a “morar de favor” na qualidade de agregado nas terras que J. A. de Q. possuía à beira do rio Urupuca. (CASTALDI, 2008: 344) A expressão “morar de favor” é comum no meio rural para se referir a condição de agregado a uma propriedade de fazendeiro (terra alheia) e, principalmente, para indicar que alguém foi reduzido a uma relação de subordinação, pois era o proprietário que determinava as condições do “favor”. A expressão descreve com agudeza a nova situação dos ex-posseiros, no momento em que a terra passou a ter dono (proprietário privado). Na nova condição o ex-posseiro ficava privado da realização do excedente econômico, o que Martins TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 31 (1975: 45) denomina de economia de excedente, “cujos participantes dedicam à própria subsistência”, porém levam para o mercado os produtos que excedem suas necessidades e, desta forma, podiam estabelecer trocas que lhes permitiam o acesso a diversos itens de consumo obtidos nos núcleos urbanos. A denominação pela população rural de “comércio” para esses núcleos urbanos é indicativa da função que eles exercem nesse tipo de economia. “A comercialização dos produtos era difícil, sendo transportados em lombo de animais e demorava-se três dias para chegar a Valadares (numa distância de 60 quilômetros)13. A nova realidade colocada pela propriedade privada e o “morar de favor” deixavam os posseiros sem alguns dos recursos que anteriormente possuíam, apesar de na nova situação aumentar sua dependência para com o mercado: “a gente precisa de dinheiro para comprar no comércio café, banha, sal, os trens pra trabalhar, fazenda etc.” (CASTALDI, 2008:344). Assim, a relação que o posseiro mantinha com o mercado, ainda que limitada, deixa de existir, porque desaparece a produção de excedente ou esse é apropriado pelo fazendeiro. A economia rústica do posseiro encontrou seu limite na valorização monetária da terra, isto é, na mercantilização das terras devolutas. A formação da propriedade privada promove uma dissolução das comunidades e do sistema de vizinhança (troca de trabalho, mutirão, compadrio, solidariedade nas dificuldades e cooperação nos eventos especiais, como nascimento e casamento). Isso inviabiliza a permanência no local e empurra as famílias para terras afastadas, que ainda permaneciam devolutas e longe dos interesses mercantis. No contexto da frente pioneira, no entanto, essa solução é passageira, pois dura até que uma estrada coloque a nova localidade em contado com as rodovias ou ferrovia. Sem excedente, os lavradores entram num processo de empobrecimento contínuo, que os leva a abandonar a terra ou se empregar como trabalhadores assalariados ou temporários. A facilidade da rodovia e transporte por linhas de ônibus interestaduais, por um determinado tempo, propicia condição para o lavrador adotar uma modalidade de trabalho sazonal, empregando-se como temporários em grandes lavouras do interior 13 Depoimento de morador do Córrego do Bernardo, no sudoeste do município de Governador Valadares. Ibidem. 32 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO de São Paulo, como ocorreu com alguns dos envolvidos no episódio de 1955, estudado por Castaldi (2008:330, 331, 348, 349, 354). Os fazendeiros empregam uma parte dos ex-posseiros como assalariados permanentes ou temporários e uma parte menor é incorporada como agregados no sistema de parceria. O excedente demográfico toma a direção das cidades médias, com uma parcela significativa se direcionando para os centros industriais ou para outras fronteiras agrícolas. Para não caracterizar direito de posse, os fazendeiros proíbem culturas permanentes ou de árvores frutíferas e apenas permitem construir moradias precárias. A limitação do mercado de trabalho local e a pobreza crescente forçam grande parte da população das pequenas cidades e vilas a tomarem a mesma direção dos contingentes de lavradores pobres: migrarem para os centros urbanos intermediários, para a capital, para os pólos industriais ou para novas fronteiras agrícolas, em outros estados. Os que conseguem se estabelecer como pequenos proprietários vêem o excedente diminuir na proporção que as matas e capoeiras desaparecem e as terras se tornam “cansadas”, i.e., apresentam queda significativa de produtividade e, assim, as culturas agrícolas deixam de ser viáveis. “O tempo foi passando e as pessoas que moravam nos córregos foram embora, devido às terras terem ficando fracas.”14 Em 1965 podemos identificar a fase final do que Waibel chamou de estágio “post-pioneiro”, nas zonas do Mucuri e médio Rio Doce, com o predomínio generalizado da pecuária de corte extensiva, excetos pontos localizados de agricultura de subsistência. A pecuária de corte era caracterizada pela cria e engorda de gado bovino, sendo a cria e o leite atividades secundárias. O rebanho era dos maiores de Minas Gerais, perfazendo cerca de dois milhões de cabeças. A criação bovina era feita em latifúndios e propriedades médias e a agricultura era típica de minifúndios. O regime de exploração era marcado pelo número insignificante de arrendatários frente ao de assalariados permanentes e temporários (75,7%) e parceiros (20,3). Existiam 13 núcleos urbanos de importância, com um total de 435 mil habitantes. A cidade de Governador Valadares ocupava a posição de pólo regional, tendo as cidades de Caratinga, Teófilo Otoni e Nanuque pólos secundários. As cidades 14 Depoimento de morador do Córrego São Silvestre, no leste do município de Governador Valadares. Ibdem. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 33 de Ipatinga, Timóteo e Coronel Fabriciano, onde se localizaram as atividades siderúrgicas da Acesita e da Usiminas, apresentavam expressivo crescimento urbano. (MINAS GERAIS, 1970/1973). O ano de 1942 foi decisivo para a entrada da frente pioneira. Nesse ano a região foi elevada à posição de destaque para os interesses nacionais e internacionais, em função do minério de ferro e da mica. Pouco antes, no mesmo ano que Getúlio Vargas deu o golpe e implantou o Estado Novo (1937), teve início a abertura da rodovia Rio-Bahia (antiga BR-4, atual BR 116). No ano do ataque japonês a Pearl Harbor foram assinados os Acordos de Washington. O Governo Vargas criou a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD e lhe atribuiu a responsabilidade de promover o desenvolvimento da região, apesar de somente em 1955 terem sido destinados recursos para esse fim (MEDEIROS, 1969). A CVRD iniciou a reforma da EFVM para transporte de minério em grande escala. Pelos acordos o governo brasileiro recebeu recursos dos EUA para o saneamento da região, por meio do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP. A rodovia Rio-Bahia (eixo norte-sul), concluída em 1944, quando ficou pronta a ponte sobre o Rio Doce, em Governador Valadares, cortou a Estrada de Ferro Vitória a Minas – EFVM (eixo leste-oeste), inaugurando um novo ciclo de expansão econômica (STRAUCH, 1958: 120). A cidade se destacou rapidamente pelas funções que passou a assumir de centro de beneficiamento de produtos regionais: mica, pedras semipreciosas, madeiras, couros, cereais etc., bem como pelo papel de mercado consumidor e distribuidor dos produtos da região e, ao mesmo tempo, de fornecedor de produtos manufaturados nacionais e importados, por meio de diversificadas casas comerciais. A cidade cumpriu também uma terceira função, determinada pela sua localização, ao se tornar ponto intermediário e de apoio aos movimentos migratórios. O traçado da rodovia favoreceu a incorporação de vasta zona de floresta dos vales dos rios Doce e Mucuri ao grande mercado do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, colocou-os em contato direto com regiões densamente povoadas (Zona da Mata mineira e Nordeste brasileiro). Essa imensa reserva florestal próxima ao Rio de Janeiro, tinha as terras, na sua maior parte, como devolutas. Segundo Strauch (1958:109.), a instalação da indústria madeireira abriu caminho para uma mudança do perfil da ocupação agrícola, inclusive permitindo uma capitalização inicial para a formação das fazendas para invernada. 34 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Para Borges (1988: 209), nas primeiras décadas do século XX a fronteira tinha se mostrado interessante basicamente para os agentes da economia “camponesa”, porém o quadro modificou-se em meados da década de 1930, quando os vales dos rios Doce e Mucuri foram abertos para a penetração capitalista. A ferrovia Vitória a Minas e a rodovia Rio-Bahia favoreceram diretamente os novos interesses que se fizeram presentes; ao longo da ferrovia se estabeleceram interesses madeireiros e siderúrgicos e no eixo rodoviário se expandiu a indústria da madeira e a pecuária. Nas décadas de 1940 e 1950 o traço comum era o caráter de pioneirismo da ocupação, acompanhado do fenômeno do crescimento acelerado da população e aparecimento de povoados, vilas e cidades. Na primeira década, para um crescimento de 22,8% da população da parte mineira da bacia hidrográfica do rio Doce, os novos municípios compreendidos na área pioneira representaram 90% deste aumento. As zonas de moderado crescimento demográfico tiveram um média de aproximadamente 80%, mas alguns municípios ultrapassaram 200%. Esse processo foi marcado pela aceleração da ocupação de terras devolutas e pela instabilidade social (STRAUCH, 1958:110; BORGES, 1988: 212). O índice de crescimento da população para o período 1950/60 foi mais intenso na região de Governador Valadares (17 municípios), com taxa a.a de 5,7% a.a., para uma média do estado de 3%. A área de ocupação mais antiga, formada por 29 municípios polarizados por Guanhães e por 18 municípios do vale do rio Manhuaçu, apresentou taxas inexpressivas, abaixo da média estadual (1,5% e 1,3%, respectivamente). Discriminar os índices de crescimento da população urbana e rural é ainda mais significativo para mostrar o esvaziamento em curso nas áreas de ocupação antiga e a constituição da zona pioneira. O município de Valadares apresentou um índice do crescimento da população urbana de área 12,5% a.a e de crescimento da população rural superiores ao do estado (3,2% a.a). Em contrapartida as zonas do vale do rio Manhuaçu e de Guanhães apresentavam taxas de crescimento da população rural de apenas 0,5% e 0,9% a.a, respectivamente. (MINAS GERAIS, 1970/1973). Esses índices indicam vigor da zona pioneira, marcada pela intensificação da urbanização que acompanham a entrada dos interesses capitalistas, em contraste com as zonas antigas em processo de esvaziamento. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 35 Apropriação privada e regulação Os aspectos técnicos da agricultura rústica dos posseiros, fundada na derrubada da mata e rodízio de terra, associados às mudanças econômicas produzidas pela entrada da frente pioneira, tiveram no arcabouço legal o corolário para consagrar a propriedade privada e, deste modo, determinar o fim da economia rústica assentada na comunidade de posseiros. No Vale do Rio Doce o processo de territorialização do capital e constituição da propriedade privada da terra foi marcado por fortes tensões sociais. O conflito produzido pelo choque entre a frente de ocupação e a frente pioneira ocorreu num contexto determinado pela atuação do Estado de Minas Gerais na regulação da apropriação privada das terras devolutas, a partir da Constituição de 1891. As tensões chegaram ao auge no início da década de 1960, como se constata na Proposta de Resolução PRC-39/1964, de 02 de março de 1964, do Deputado Federal do PSD, Cunha Bueno, que cria uma Comissão Parlamentar de Inquérito. A iniciativa arquiva pela mesa da Câmara dos Deputados, pretendia investigar ‘in loco’ as origens, natureza e profundidade da agitação reinante no meio rural, especificando nominalmente a região de Governador Valadares, em Minas Gerais.15 Conforme Martins (1975:46-47), diferente da frente de expansão, na qual as condições de vida são reguladas pelo grau de fartura e não pelo grau de riqueza, a frente pioneira tem as relações sociais determinadas pela produção de mercadorias, num quadro em que a apropriação da terra (condição de trabalho) passa a ser regulada pela compra e venda. Sem as normas jurídicas adequadas não seria possível ocorrer essa passagem. Portanto, o “ponto-chave da implantação da frente pioneira é a propriedade privada da terra. Na frente pioneira a terra não é ocupada, é comprada.” (MARTINS, 1975: 47). Na década 1930 a produção de carvão para as companhias siderúrgicas instaladas na zona da EFVM tornou-se outro fator de capitalização para a formação das fazendas e expansão da pecuária. Em 1925 começou a funcionar a primeira usina siderúrgica integrada da América do Sul - Belgo-Mineira, em Sabará. Em 1926 foi inaugurada a Companhia 15 A informação encontra-se no site da Câmara dos Deputados. Projetos de Lei e Outras Proposições. Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=235391. Acessado em 18 de junho de 2009. 36 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Brasileira de Usinas Metalúrgicas (Barão de Cocais). Em 1927 Euvaldo Lodi e José da Silva Brandão construíram a Usina Gorceix, em Caeté. Na mesma cidade, a siderúrgica Ferro Brasileiro foi instalada em 1931. Em 1931 começa a funcionar a Metalúrgica Santo Antônio, em Rio Acima. Em 1937 a Belgo-Mineira, em Monlevade, inaugurou a sua segunda usina: a maior a carvão vegetal do mundo, introduzindo também o reflorestamento à base de eucaliptos. Em 1944 é fundada a Companhia Aços Especiais Itabira – Acesita, pelos sócios Amyntas Jacques de Moraes, Percival Farqhuar e Athos de Lemos Rache. A indústria do carvão vegetal teve um importante papel na ocupação e devastação da zona florestada. (STRAUCH, 1955 e 1958; ROCHA, 1957; PAULA, 1983; GOMES, 1983; GUERRA, 1993; SILVA, 1997). O volume de madeira destinado às serrarias representou uma parte pequena (3% da madeira extraída), comparado com o que era utilizado para produzir carvão e lenha (ROCHE, s/d, p.80). No Espírito Santo, a parte da madeira para fins industriais, construção e marcenaria, correspondia a apenas 9,74% do volume total em metros cúbicos (STRAUCH, 1955, p. 98). A intensificação do povoamento e da dinâmica econômica também está ligada à indústria da mica muscovita. Este mineral, popularmente denominado de malacacheta, foi importante até o final da década de cinqüenta na economia regional e, particularmente contribuiu para Governador Valadares transformar-se no pólo regional, superando a função exercida por Teófilo Otoni. A produção era exportada quase que exclusivamente para os Estados Unidos, atendendo aos seus interesses estratégicos durante e depois da II Guerra Mundial. Ao lado do minério de ferro, a extração e beneficiamento da mica foi o motivo do financiamento americano para o saneamento e erradicação da malária – Projeto Rio Doce e Projeto Mica.16 Diante de um contexto de expansão mercantil provocado pela frente pioneira, durante as décadas de 1930 e 1950, houve uma enorme demanda pela aquisição de terras no Vale do Rio Doce. Concomitantemente, cresceu a prática de irregularidades envolvendo requerentes e funcionários do próprio governo estadual, a fim de se obter o direito de preferência sobre a compra de terras devolutas e, em seguida, obten16 A instalação e manutenção de serviços urbanos básicos ficaram a cargo de um órgão federal, fugindo à soberania dos governos locais. (FONTENELLE, 1959; SIMAN, 1988; VILARINO, 2008). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 37 ção do título legítimo da mesma. As disputas pelos recursos da floresta, pelos minérios (mica e pedras preciosas), pelo comércio (contrabando) de madeira e pela posse das terras “devolutas” se tornaram intensos em toda a região, desencadeando fortes conflitos sociais até 1964 (MARCÍLIO, 1961; BORGES, 1988; SIMAN, 1988, MARTINS, 1981). A questão da legitimação da posse de terras devolutas nos reporta a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que ficou conhecida como Lei de Terras. Essa foi a primeira legislação agrária brasileira, substitutiva da legislação sesmarial, abolida em 1822.17 Ao caracterizar terra devoluta em seu artigo terceiro, promoveu-se uma distinção clara entre o domínio particular e o público18. Do ponto de vista jurídico a Lei de Terras é vista como marco definidor da propriedade privada e instrumento para promover o mercado de terras. Para historiadores, como SMITH (1990) e COSTA (2007), essa lei foi fundamental para o avanço do capitalismo no Brasil, principalmente a partir do fim da escravidão. A Lei nº 601 buscava impedir o acesso às terras devolutas por outros meios que não fosse a compra. Também determinava a regularização da posse ou ocupação não legitimada por título, até aquela data. O Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, ao regulamentar a Lei de Terras determinou os procedimentos de medição e demarcação das terras públicas e de domínio privado; a identificação das terras possuídas19; e a proteção e venda das terras devolutas. José Murilo de Carvalho (2003) fez uma descrição dos principais problemas de execução da lei, indicando que na prática ela não promoveu a venda de terras devolutas nem foi capaz de impedir a continuidade das ocupações, apesar 17 Para uma análise da legislação sesmarial e da Lei de Terras, consultar: (LIMA, 1935; GARCIA, 1958) 18 Art. 3º - São terras devolutas: § 1° - As que não se acharem aplicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal. § 2° - As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3° - As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4° - As que não se acharem ocupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei. (Lei de Terras de 1850 apud GARCIA, 1958. p.209-210). 19 Os registros das terras possuídas ou Registros Paroquiais de terras como também eram conhecidos serviam como mecanismo de identificação das terras devolutas. Pela lógica da lei, ao identificar as terras ocupadas ter-se-ia em contra partida, identificado as terras devolutas. 38 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO dessas terem caído na ilegalidade. A centralização na Repartição Geral das Terras Públicas, subordinada ao Ministro e Secretário dos Negócios do Império, a falta de informação e funcionários e a precariedade das repartições especiais de terras públicas das províncias impediram que a Lei de Terra atingisse o objetivo pretendido. A isso se somava o desinteresse dos particulares em legitimarem suas posses, favorecidos que se sentiam pela facilidade de se apropriarem das terras devolutas. As informações ministeriais sobre terras devolutas eram imprecisas e, até 1865, várias províncias (quase todo o Nordeste) não tinham pareceres sobre a aplicação da lei. O Ministro e Secretário da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, inicia o relatório de 1870 afirmando que a Lei de Terra de 1850 foi “mal executada e deve ser revista”. O relatório afirma que a lei não conseguiu “impedir, como pretendeu, o abuso da invasão das terras públicas, as quais continuam não só a ser assoladas, extraindo-se madeiras de lei de suas matas para ser vendidas, como também a ser possuídas ilegalmente e sem estorvo”. Reconhecese a dificuldade para executar a lei, particularmente porque isso exigia a “completa separação dos domínios particular e público”, bem como o registro das terras, porém isso não ocorreu. As iniciativas para estabelecer colônias de imigrantes também não avançaram, apesar das despesas realizadas para medições de terras, como “no fertilíssimo Vale do Rio Doce, província do Espírito Santo, nas províncias da Bahia, Paraná e outras, onde pretenderam estabelecer imigrantes americanos”20. Em seguida o relatório demonstrava em números o fracasso da venda de terras, uma receita de 412.933$000 para uma despesa em medição de 5.503:610$000.21 Sete anos mais tarde “reconhecia-se que a lei era ‘le20 Dez mil sulistas deixaram os EUA. Da parte que se estabeleceu no Brasil, quatrocentos foram para o rio Doce. Judith Jones transcreve a carta do coronel Gunter para um amigo nos EUA, na qual fala das terras do rio Doce: “Venha para cá e compre terras (...) que custarão 22 cents o acre e você poderá pagar em quatro anos, melhor que qualquer uma nos Estados Unidos, mesmo nas zonas mais férteis do Alabama.” A maioria dos americanos deixou o rio Doce, dirigindo-se para São Paulo, onde a colonização prosperou. A terra que havia despertado tanta esperança acabou expulsando-os: nuvens de pernilongos e outras pragas, o isolamento, a irregularidade das chuvas, as secas prolongadas e a malária, que não deixava sobrar ninguém. O coronel Gunter faleceu em 1883, mas deixou o filho Basil Manley, que foi nomeado representante consular em Vitória, em 1889, tornou-se acionista de ferrovia e fez fortuna, vivendo no Brasil até morte. JONES, Judith. Soldado descansa! São Paulo, Jarde, 1967. 21 Relatório do Ministro e Secretório da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, apresentado a Assembléia Geral Legislativa, 1870, p. 16-18. Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/ u1956/000023.html. Acessado em 18 de junho de 2009. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 39 tra morta’ em vários dispositivos”. As terras públicas continuavam a ser invadidas e um projeto de reforma da lei foi elaborado ainda na década de 1870, mas, só se concretizaria na República.22 Com a Constituição de 1891 as terras devolutas passaram ao domínio dos estados, de acordo com o artigo 64, cujo caput afirma “Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”23. Desde então cada estado passou a adotar leis próprias sobre as terras públicas. Em Minas Gerais a primeira legislação sobre a matéria foi a Lei nº 27, de junho de 1892. Os estados, no entanto, seguiram as definições de terra devoluta do artigo 3º da Lei de Terras de 1850, além de copiarlhe os mesmos fundamentos jurídicos. A lei mineira busca corrigir um problema não resolvido pela legislação imperial, apesar de ser apontado em relatório ministerial: Se em lugar do sistema absoluto da venda de terras, fosse a lei mais flexível e liberal, facultando em certos casos sua concessão gratuita, embora em regra mantivesse o princípio da venda, acredito que não se fariam esperar as vantagens dessa medida, em bem da agricultura e do estado. Por falta de meios para a aquisição de terras contíguas às estradas, ao litoral ou aos grandes mercados, muitos indivíduos estabelecem-se em lugares longínquos. Ali plantam somente o que lhes é estritamente preciso para viver; porque a produção excedente ficaria nos paióis ou nas roças, sem possibilidade de ser transportada para os mercados, tão caro seria o frete... Enquanto oscilamos em experiências sobre colonização, não seriamos desavisados, se também tentássemos a colonização nacional em pontos mais acessíveis ao comércio milhares de braços, presentemente quase ociosos. Essa tentativa depende, porém, da revisão da lei de 1850...24 22 Para uma maior apreciação dos resultados da Lei de Terras durante o Império ver: A política de terras: o veto dos barões. In: CARVALHO, 2003. 23 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, Artigo 64. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm. Acessado em 17 de setembro de 2009. 24 Relatório do Ministro e Secretório da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Op. Cit., p. 18. 40 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO A legislação mineira condenou o ato de ocupar terras devolutas, mas passou a incorporar elementos novos. O legislador reconheceu que as ocupações e posses de terras devolutas fatalmente ocorriam e continuariam a ocorrer, mesmo sendo ilegais. Assim, aceitou o posseiro25 como o motivo para a venda das terras devolutas. O novo lugar ocupado pelo posseiro na legislação mineira é reforçado pelo artigo 24, em seu 4º parágrafo, da Lei nº 27 de 1892, quando reconhece as posses anteriores a 1850 desde que tivessem o Registro Paroquial previsto pelo Decreto nº 1.318 de 1854. A Lei nº 27 normatiza o processo de venda de terra devoluta da seguinte forma: publicação de editais com dados sobre a situação das terras, as áreas medidas e menção à quantidade, qualidade e preço. Os lotes que não encontrassem licitantes na hasta pública podiam ser vendidos diretamente a quem os requeresse. O ato de ocupar terras devolutas foi considerado como gerador de direito, como demonstra o artigo 19 da referida lei: os ocupantes de terras devolutas sem posse legítima, com cultura e moradia habitual, terão direito à compra das mesmas pelo preço mínimo legal, logo que sejam medidas, demarcadas e expostas à venda. Desta forma a legislação instituiu o “direito de compra preferencial” pelo posseiro (GARCIA, 1958:174). A Lei n° 263, de 21 de agosto de 1899, reforçou o direito do posseiro ao definir que bastava aos ocupantes de terras devolutas, desde que comprovasse moradia habitual e cultivo, apresentarem seus requerimentos de medição durante o primeiro ano de ocupação (GARCIA, 1958: 176). O legislador mineiro, desde o início, buscou enquadrar a apropriação privada de terras devolutas pelo posseiro em determinados parâmetros legais. O marco nesse processo de regulação da posse e propriedade de terra ocorreu com a Lei n° 1.144, de 05 de setembro de 1930, ao ser criada a taxa de ocupação. Até então, apesar do reconhecimento da posse de terras devolutas como geradora de direito, permanecia a proibição legal do apossamento de terras. Entretanto, ao criar a taxa de ocupação o governo reconheceu que de nada valia a proibição legal contra o fato e, assim, legitimou a ocupação e posse de terras devolutas, mesmo que de forma implícita. Esse era o reconhecimento 25 Entendido aqui como quem desbrava e ocupa terras devolutas com o intuito de habitá-las e cultivá-las. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 41 de que a posse encerrava o “poder direto ou imediato sobre a coisa e também absoluto ou erga omnes”, ou seja, se reconhecia que a “posse prolongada e qualificada com os requisitos próprios pode se transformar em domínio ou outro direito real”. (COSTA, 1998: 110) O “direito preferencial de compra” e a “taxa de ocupação” ofereceram facilidades para transformar a posse de terras devolutas em propriedade privada, por meio da venda. Essa orientação foi consagrada pela Lei n. 550, de 20 de dezembro de 1949. A Constituição Brasileira de 1946, no primeiro parágrafo do Artigo 156, impõe para a “preferência para aquisição” a condição da “morada habitual”, além de limitar a 25 hectares.26 A Lei n. 550/1949, no art. 26, não menciona a morada habitual, como condição, coloca a necessidade de comprovar a cultura efetiva de pelo menos da quinta parte dos terrenos para agricultura ou de “três cabeças de gado vacum por alqueire geométrico, nos terrenos de criação”. Para Garcia (1958: 64-65) o referido artigo “encerra um verdadeiro absurdo, que tem servido de fonte a escândalos”. Isso porque os particulares que comprovarem pelo laudo do agrimensor responsável pela medição do terreno que possuem cultura ou criação de gado, podem obter o direito preferencial de compra, independente de ter moradia habitual nas terras. Estava aberto assim o mecanismo legal para excluir o posseiro lavrador e permitir que “gente que nunca viu um pé de milho” se torne proprietária de “grandes tratos de terras devolutas”. O artigo 29 afastava ainda mais as chances de prevalecer o direito constitucional do posseiro. Isso ao suprimir o direito preferencial de compra do terreno devoluto pelo posseiro, caso esse não o requeresse conforme edital de venda fixado pelo prazo de 60 dias. O princípio legal está correto, pois não se pode recriminar a venda de terras a terceiros se o posseiro não manifestou interesse de comprá-la, mesmo tendo preferência. A questão diz respeito à possibilidade real de o posseiro tomar conhecimento de que suas terras foram postas a venda, na medida em que não existia a obrigava da notificação direta ao interessado. Os editais eram publicados no jornal de maior circulação local (se existissem) e no escritório do Distrito de Terras da localidade, por um prazo de 60 dias. Como o lavrador pobre, analfabeto, isolado na sua posse pela falta 26 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, Artigo 156. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm. Acessado em 19 de novembro de 2009. 42 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO de estradas ou pelas chuvas, sem acesso a informação, poderia tomar conhecimento da publicação do edital? A questão se coloca na medida em que a posse no Direito Brasileiro, apesar de se reconhecer sua eficácia erga omnes, “não constitui um direito real típico”. O portador de título de propriedade pode “opor o seu título ao possuidor e recuperar a posse”. O contrário também seria possível, isto é, o possuidor teria hipoteticamente condição de opor eficazmente a comprovação de sua efetiva posse ao proprietário. (COSTA, 1998:110). Entretanto, a segunda hipótese encontra-se prejudicada pela distinção que se pode fazer entre “a forma e a produção da forma, entre forma e poder”, que é um aspecto dos processos de regulação, de modo que as “exigências normativas que no direito se voltam contra o próprio direito de forma paradoxal”, afastam-no do que é justo, pela ausência objetiva de pré-condições para fruir do direito, em função da esfera da racionalidade estar dissociada da realidade. (FISCHIER-LESCANO, 2010:172-175). O alargamento da categoria de posseiro, pelo legislador mineiro, possibilitou incluir junto ao lavrador podre os fazendeiros, comerciantes, industriais, funcionários do governo estadual, profissionais liberais, agentes de grandes companhias, empresas madeireiras e grandes companhias siderúrgicas, que passaram a disputar a posse da terra. No contexto marcado por enfrentamentos de poderes com base na violência, a possibilidade garantida constitucionalmente do fruir do direito pelo lavrador pobre ficou prejudicada pela realidade vivenciada num quadro de desequilíbrio de forças entre os agentes da ordem social objetiva. Como observa Thompson (1997:351), ao questionar as interpretações simplistas sobre a lei, na sua conclusão de Senhores e Caçadores, a ação regulatória do Estado, oposta a uma tradição assentada na prática decorrente da longa duração, não contrapõe propriedade e nãopropriedade, no sentido da propriedade privada. Na verdade, é um momento de transição no qual concepções distintas de propriedade são contrapostas socialmente. O direito de propriedade privada se constituiu em detrimento de outras formas de apropriação da terra. Para o desenvolvimento da economia capitalista foi decisivo a constituição de um mercado de terra, porém esse mercado não se constituiu sem que se eliminassem dois grandes obstáculos, segundo Hobsbawm (2006), “os proprietários de terra pré-capitalista e o campesinato tradicional”. Isso se dá pela combinação da ação política e econômica, na qual a TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 43 instituição da propriedade privada da terra joga peso significativo para o processo de transição. A norma jurídica (Lei) se apresenta como principal componente para implantação e sustentação do processo de mercantilização da terra. No Brasil, a lei institucionaliza a frente pioneira ao promover o fim da fase dominada pela posse, característica das frentes de expansão. Isso se dá porque a “frente pioneira formula o seu antagonismo com a frente de expansão, em torno de um valor: a propriedade privada da terra...” (MARTINS, 1975:47) O Estado, ao determinar a aplicação da norma jurídica e ao criar os mecanismos burocráticos e coercitivos para sua execução, promove a alteração do significado da terra e, deste modo, altera a dinâmica territorial. Estudos de casos Em nosso estudo de caso selecionamos cinco processos referentes à legitimação de terras nas regiões do Rio Doce e Mucuri, conduzido pelo Departamento de Terras, Matas e Colonização de Minas Gerais, por meio de distritos de terras localizados nos municípios dessas regiões. O governo mineiro, nas duas primeiras décadas do século XX, tratou de ampliar o número de distritos de terras para a medição e regularização das terras devolutas, sendo que a maior parte dos distritos de terras localiza-se na região do Vale do Rio Doce. Nesse período iniciaram-se as obras de infra-estrutura (principalmente estradas e pontes) e a atenção do governo voltou-se para as terras devolutas. O primeiro caso27 exemplifica a formação de um mercado paralelo de venda de posses, entendido pelos compradores como garantia de legitimação de domínio. Em 1925 o 4° Distrito de Terras de Caratinga fez a medição de um lote de terras localizado a nove quilômetros da cidade, em um lugar denominado “Ribeirão do Lage”. O pedido da medição não havia sido requerido pelos posseiros, mas mesmo assim a medição e avaliação do lote foram aprovadas pelo Chefe do Distrito. Como os ocupantes28 não se manifestaram para a compra, as terras foram postas a venda. Entretanto passaram três hastas públicas sem que ninguém aparecesse, 27 Processo N°. 2276. Requerente: Manoel Rocha e Antonio Avelino Rocha. Arquivo Geral do Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais – ITER. 28 De acordo com o memorial do agrimensor as terras eram ocupadas por Manoel Rocha e Antonio Avelino Rocha. 44 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO até que em 1928 uma proposta de compra foi aceita. O comprador assim que recebeu o título do governo remeteu-o ao Registro Torrens29. As terras que estavam ocupadas passaram a pertencer ao particular cuja proposta de compra foi aceita fora da hasta pública.30 Entretanto, depois da venda, os posseiros encaminharam por meio de advogado procurador uma carta ao Secretario da Agricultura, protestando contra a venda das referidas terras. Eles alegaram serem os verdadeiros ocupantes e pediram a anulação do Registro Torrens, além de se comprometerem a pagar pela terra o mesmo valor da venda. O fundamento para a solicitação são duas escrituras públicas de compra e venda dessas mesmas terras, apresentadas com o intuito de provar o direito dos reclamantes. As duas escrituras deixam claro que se tratava de terra devoluta e dependiam de título. Entretanto, para os requerentes o fato de estarem munidos de um documento público que comprovava a compra da terra (na verdade houve a compra do direito de posse) teria garantido o seu direito, mas perante o Direito Brasileiro a posse não é um direito em si mesmo nem era possível comprar esse direito. “A posse é um estado de fato. Se a lei protege, é visando à propriedade de que ela é manifestação.” Nesse sentido, seria um “direito especial cujo fundamento dos interditos assenta-se na aparência da propriedade”. (BOLONHINI JR., 2004:37). O parecer jurídico foi pelo indeferimento da reclamação e afirmação da legalidade da venda, com base no fato da hasta pública permitir a venda a quem quer que seja. E mais, o reclamante não havia exercido o direito preferencial, mesmo o edital tendo sido expedido e publicado por três vezes. A venda do direito de posse era uma prática comum e motivo de conflitos, se o comprador não estivesse ciente de que apenas adquiria o direito preferencial de compra. Para um “comprador do direito” valia as mesmas regras impostas pela legislação ao antigo posseiro, nos mesmos termos, sem que o documento apresentasse validade. Como a defesa possessória não esta garantida por lei e a legislação mineira abria brecha no direito constitucional, mesmo o ocupante tendo morada habitual, ficava desamparado pelo Estado, se não manifestasse a vontade de exercer o direito preferencial à compra. Dessa forma o posseiro ocupante 29 O Registro Torrens é uma matrícula de imóvel incontestável após sua efetivação e depende de se verificar antes inexistência de contestação. 30 Durval Alexandre dos Santos comprou as terras mesmo não sendo o posseiro ocupante. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 45 não tinha mecanismos de se proteger contra terceiros, o que propiciava situações de reais conflitos. O segundo caso31 permite discutir os processos de legitimação de terras devolutas nas décadas de 1940 e 1950, nos quais se encontra o choque entre a racionalidade da lei e a realidade social marcada pelo favorecimento político. O exemplo é de uma requerente que pretende adquirir o título de uma enorme área, vizinha a outra já titulada em nome de seu marido. O processo transcorre ao longo de uma década, entre os anos de 1941 e 1951. O lote objeto da legitimação é uma área de 435 hectares localizada no distrito de Brejaubinha, município de Governador Valadares, no lugar denominado Ribeirão da Chuva. O Distrito de Terras, Matas e Colonização encaminhou o processo para o Arquivo Central, para aguardar resolução legislativa, por se tratar de área superior a 250 ha. A solicitante era casada e em nome de seu marido encontra-se registrado um título de propriedade de uma área adjunta à sua, com 493 ha. O total de 928 ha era muito superior ao definido pela Lei nº 171, de 14 de novembro de 1936. Diante do exposto o Secretário da Agricultura emite um despacho de indeferimento da proposta de compra formulada pela requerente e alega que as terras devem ir a hasta pública. A requerente então, com o intuito de que o Secretário revogue o referido despacho, reúne um dossiê a fim de comprovar que seu marido “exerce as profissões de agricultor e pecuarista”, ou seja, a terra pretendida era cultivada. O dossiê conta com declarações de coletores do estado e da União, do presidente da Câmara de Vereadores e do gerente do Banco do Brasil. O Prefeito de Governador Valadares na época, genro da requerente, encaminha uma carta ao Secretário da Agricultura solicitando reconsideração do despacho de indeferimento à proposta de compra realizada por sua sogra. “Esse apelo faço-o particularmente a V. Excia. por se tratar de terras pertencentes aos meus sogros que ali labutam há mais de 20 anos, tirando da referida propriedade os recursos necessários para criarem uma família numerosa de 15 filhos.” Argumenta que é dever do Estado proteger os filhos da Nação que desbravaram as matas e lavraram a gleba. Sugere ao governador mandar fazer uma sindicância in loco para comprovar o direito dos sogros. 31 Processo Nº 14376. Requerente: Helena Coelho Cipriano. Arquivo Geral do Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais – ITER. 46 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO O governador revoga o indeferimento e concede o direito preferencial de compra das terras, condicionada a comprovação de que a taxa de ocupação foi paga de 1938 até o exercício de 194832. A influência de parentes com alguma autoridade na região se sobrepõe às condições previstas na lei. A carta do prefeito foi decisiva para a concessão da terra, independente do fato dos requerentes não residirem no lote, mas em Governador Valadares, e de não manterem prepostos ou colonos e, assim, não poderem fazer uso do direito preferencial de compra. O fato do marido da requerente já possuir grande propriedade seria um grave impedimento para aquisição do terreno, porém isso também não foi levado em conta. A alternativa “legal” foi a exigência da comprovação do pagamento da taxa de ocupação, instituída pela Lei nº 1.144, de 05 de setembro de 1930. Essa comprovação foi a maneira encontrada pelo governador de Minas Gerais para legitimar a condição de posseiro e, dessa forma, possibilitar o exercício do direito de compra preferencial. A taxa de ocupação, para além de garantir legitimidade para a efetiva posse, possibilitava que determinada pessoa a pagasse por dez anos, sem necessidade de comprovar essa efetiva ocupação (apto para exercer o direito possessório). Como a coletoria não fazia questionamentos ou investigava a veracidade da ocupação, o funcionário arrecadador não tinha como saber se realmente o pagador era o posseiro ocupante da área declarada. Também não havia controle para verificar se alguém já pagara taxa sobre a mesma área, ou até mesmo se o terreno em questão era ou não devoluto. Essa falha abria brechas para se ludibriar a lei e obter grandes extensões de terra a custa de posseiros que efetivamente tinham morada habitual, nos termos garantidos pela Constituição de 1946. O terceiro caso33 assemelha-se ao anterior, pelo fato de não existir a posse efetiva do requerente, porém traz novos elementos relacionados a situações conflituosas que envolvem grilagem de terra. O processo de legitimação transcorreu ao longo de treze anos, entre 32 Art. 1º da Lei n. 1.144 de 5 de setembro de 1930 (lei que institui a taxa de ocupação) – Os ocupantes de terras públicas que houverem pago durante dez anos o imposto de ocupação, legitimarão as suas posses mediante o pagamento do custo da medição, desde que sejam titulares de direitos preferenciais, nos termos do regulamento atual. 33 Processo N° 5390. Requerente: Amadeu Meloto Neto. Arquivo Geral do Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais – ITER. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 47 1948 e 1961. O lote em questão abrange uma área de 228 ha, localizado no distrito de Frei Serafim, município de Itambacuri, no lugar denominado “Urupuca”. O lauto técnico classificou o terreno como de muito boa qualidade, todo coberta por matas e com aptidão para cultura de diversos cereais. O requerente residia na cidade de São Paulo e o que alegava para adquirir a terra era o fato de ser agrônomo e, portanto, estar preparado para aproveitá-la. Como não residia no terreno nem mantinha colonos ou prepostos; como o terreno não possuía benfeitorias ou culturas, a forma encontrada para obter a terra foi alegar o direito concedido pelo artigo 97 da Lei nº 550, de 20 de dezembro de 194934. A leitura do processo permite constatar que houve um conluio que envolveu o requerente agrônomo, um grileiro e, provavelmente, o agrimensor que mediu o lote. Segundo informações contidas no ofício do engenheiro chefe do Escritório Especial de Terras de Governador Valadares, um suposto posseiro pediu que a medição do lote fosse feita em nome do agrônomo (o requerente do lote), mas depois protestou contra o ato, alegando manter morada habitual e cultura efetiva no terreno; também declarou ter pagado pela medição do mesmo. Conforme o processo, esse fato se assemelha ao ocorrido em outros quatro processos de legitimação de terrenos situados na mesma área (Urupuca) e medidos pelo mesmo agrimensor. Cerca de um ano depois, supostos posseiros que questionaram a medição do terreno e o direito do agrônomo, desistem da reclamação alegando que, ante a impossibilidade de provas concretas sobre os seus direitos, não desejam trazer embaraços à legitimação em nome do interessado. Essa renúncia pode ser conseqüência de possíveis ameaças sofridas pelos posseiros, como consta no aludido ofício: ali operava de maneira desumana o Sr. (x), portador de uma carteira a título precário e a mando do 3º Distrito de Terras, sediado em Teófilo Otoni. Esse Dr. (y) mulato que via o mundo através de um par de óculos escuros cumpria ali religiosamente as ordens do Sr. (x) que está pronunciado por crime de morte praticado naquela época na pessoa de um pobre posseiro naquelas imediações. 34 Art. 97 – Aos diplomados por escolas de agricultura ou de veterinária, mantidas ou subvencionadas pelo Estado, que tenham requerido medição e cujos trabalhos geodésicos tenham sido iniciados até a data desta lei, fica autorizado o Governo a lhes deferir a concessão e expedir o respectivo título definitivo de propriedade, uma vez efetuados os pagamentos devidos. 48 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO No final o requerente (agrônomo) foi privilegiado em detrimento dos posseiros, obtendo o título de propriedade do terreno. Passados cerca de cinco meses da titulação, o requerente solicitou cópias da planta e do memorial de medição da terra, para fins de Registro Torrens, facultativo desde a Lei n. 1.171, de 7 de outubro de 1930. A pressa em solicitar esse registro, pouquíssimo utilizado, demonstra uma aspiração de prova incontestável de domínio sobre o terreno, numa situação de suspeitas acerca da legitimidade do direito sobre a área. Desta forma afastava-se legalmente a mancha de grilagem que pesava sobre a obtenção da terra. O último caso35 se refere a um terreno localizado no distrito de Frei Serafim, município de Itambacuri, no lugar denominado “Lagoa Boa Vista”, e ilustra o confronto entre as frentes de expansão e pioneira numa zona banhada pelo rio Urupuca.36 O início do processo se deu em setembro de 1950, quando Thiago Luz requereu, em nome do filho Friedrich Luz de oito anos de idade, a medição de um lote de 250 ha, alegando cultivar mais de um quinto da área37. Meses antes de requerer a medição, nomeou o advogado Washington Walfrido do Nascimento para seu procurador, da sua esposa e de seus sete filhos menores. O advogado havia exercido os cargos de agrimensor e chefe do Distrito de Terras de Teófilo Otoni, logo estava numa posição vantajosa para prestar os serviços de orientação, intermediação junto ao referido distrito e de defesa dos interesses do cliente. A medição do lote e a avaliação dos terrenos foram aprovadas em janeiro de 1953, porém no processo consta uma carta de 1951, na qual Thiago Luz requer a compra preferencial fora do edital de convocação (hasta pública) pelo preço da avaliação do lote, agora com área medida de 216 ha. Anexou como prova comprovante de pagamentos da medição, do custo total do lote e selos para títulos. Como o requerente pode ter quitado o lote dois anos antes da aprovação da medição e do preço das terras? Tudo indica que o pai do requerente desconhecia o lote 35 Processo Nº. 159, em nome de Friedrich Luz. Arquivo Geral do Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais – ITER 36 Esta zona foi onde ocorreu o episódio conhecido como “Demônio de Catulé”, em 1955,estudado por Castaldi. 37 250 ha era o limite permitido para a compra de terras devolutas sem autorização da Assembléia Legislativa. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 49 reivindicado para compra, pois mencionou na solicitação inicial a área correspondente ao limite legal do direito à compra preferencial. Antes da efetivação da venda e emissão do título era necessário verificar se o comprador estava apto: não adquiriu outras terras, não era estrangeiro, o cônjuge não possui propriedade, não era menor de idade etc. Como o requerente era “menor absolutamente incapaz” a Seção de Concessões da Secretaria de Agricultura sustou a venda e mandou arquivar o processo até 02 de dezembro de 1958, quando esse se tornaria capaz, ao completar 16 anos. A falta de aptidão determinava a perda do direito de preferência de compra e a realização de hasta pública, mas a decisão foi suspender o andamento do processo. O pagamento das terras antecipadamente pelo pai de Friedrich Luz foi uma manobra bem sucedida, pois impediu as terras de irem para hasta pública. Isso não teria sido possível sem a devida orientação do experiente advogado. Com o processo paralisado bastava o requerente pagar a taxa de ocupação a fim de garantir a defesa da posse38. No processo consta parecer do Departamento de Terras, Matas e Colonização informando que o andamento de todos os processos de concessões de terras que se acham paralisados por motivos da menoridade do requerente exigiam a apresentação da prova do pagamento da taxa de ocupação relativa ao exercício corrente ou a exercícios anteriores.39 A taxa de ocupação servia para forjar ocupações e requerer o direito de compra preferencial, constitucionalmente um direito do posseiro com morada habitual. Entretanto, como veremos a seguir, o comprovante do pagamento da taxa podia ser ineficaz para assegurar o direito à posse, uma vez que outro agente interessado na mesma terra podia pagar a referida taxa e pleitear a preferência, em detrimento do ocupante efetivo. Com o processo paralisado ocorreu a primeira contestação à medição do terreno pelo agrimensor e pedido de direito de compra preferencial, interposta por Joaquim de Souza e seu filho Assis de Souza Simões, em 27 de agosto de 1954, visando defender o direito sobre terreno de 24,20 há que supostamente possuíam na área medida. Segundo os reclamantes, Friedrich Luz não teria direito sobre 38 Ao longo de todo o processo o interessado através de seu procurador requer a continuação alegando já ter pagado as terras e apresenta o pagamento da taxa de ocupação. 39 Parecer do Departamento de Terras e Matas, de 28 de junho de 1954. Processo 159, em nome de Friedrich Luz. 50 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO todo o lote porque eles estavam na posse dos 24,20 ha, desde o ano de 1946, e pagavam regularmente a taxa de ocupação sobre a área. No mês seguinte à contestação, o procurador de Friedrich Luz pede a reabertura do processo de venda do terreno, alegando que as terras já estavam quitadas. O pleito dos reclamantes foi encaminhado para o Departamento de Terras, Matas e Colonização, que solicitou parecer jurídico. Esse foi contrário aos reclamantes, pois eles “têm contra si a palavra do Sr. Chefe do 3º Distrito de Terras e do agrimensor que procedeu a medição do lote”, que confirmavam ser Friedrich Luz o único “ocupante” do lote. Para o inspetor Abeilard de Carvalho Costa, encarregado de verificar in loco a veracidade da reclamação, essa não procedia já que o serviço do agrimensor Carlos Pantel estava correto. Segundo ele, a área reclamada estava situada fora do terreno de Friedrich: “está encravada no lote já legítimo do Sr. Geraldo Landi” (Deputado Estadual), que era confrontante de Friedrich Luz. O inspetor afirma, ainda, que os reclamantes haviam abandonado a área e as benfeitorias há muito tempo. No transcorrer da contestação, Friedrich Luz atinge a idade de 16 anos e seu procurador novamente solicita a reabertura do processo. A Seção de Concessões verificou que em nome do requerente não havia outras concessões e, em seguida, a Consultoria Jurídica emite o parecer favorável à venda. Entretanto, um telegrama emitido pelo Engenheiro Chefe do 7º Distrito de Terras faz com que o processo seja novamente paralisado, em função da medição feita em nome do posseiro Sebastião Gonçalves da Silva. Nessa medição se constatou a existência de benfeitorias, cercamentos e construção de estradas “localizadas em uma sobra de terras ou em área medida para Frederico de tal”. O posseiro apresentava justificativa fundada em depoimentos de testemunhas que confirmavam a posse, julgada por sentença favorável. Os testemunhos foram prestados em 1956, em função da justificação e reclamação de posse por parte de Sebastião Silva e Onofre Batista contra com Horácio Luz, irmão de Tiago Luz e tio de Friedrich. A fim de garantir o andamento do processo, o pai de Friedrich recorre às instituições e pessoas influentes que poderiam ajudá-lo. Em setembro de 1958 o Secretário de Estado da Agricultura Álvaro Marcílio recebe uma carta do Sr. João Mendes de Souza, então Diretor da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil S/A: TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 51 Venho encarecer a você a gentileza de examinar com toda a sua peculiar boa vontade a possibilidade de despachar os requerimentos de Friedrich Paul Ferreira Luz e Varolquides Pinheiro da Costa, sobre a concessão de terras localizadas, no Distrito de Frei Serafim, Município de Itambacuri, nesse Estado. Tendo o máximo de interesse em servir a esses amigos, conto com sua interveniência para a solução do assunto.40 Após essa carta o processo volta a ter andamento, mas foi exigida nova medição e avaliação do lote, por parte da Secretaria de Estado da Agricultura. Em 1956, Álvaro Marcílio solicita relatório sobre a veracidade das reclamações acerca de invasões e medições de terras devolutas, situadas na região de Itambacuri. Apesar de não haver referência a Friedrich Luz, consta no aludido relatório conflito envolvendo Horácio Luz. Assim, o Chefe do 2º Distrito de Terras opinou pela localização precisa do lote de Friedrich Luz, para que se pudesse ter um conhecimento exato se de fato as terras pleiteadas pelos reclamantes estavam ou não incluídas nessa área. Entendemos que no processo de Friedrich Luz a garantia de compra preferencial foi utilizada contra a presença de posseiros, tais como Sebastião Gonçalves, Onofre Batista, entre outros. Sebastião Gonçalves não era posseiro primitivo, mas teria comprado o direito de posse de Joaquim Assis. Essas terras foram englobadas na medição solicitada pelo pai do requerente Friedrich Luz, irmão de Honório Luz. Esse fato gerou disputa judicial pela defesa do direito de posses. O término da disputa foi favorável ao filho de Tiago Luz, porque os juízes consideraram “que seus atos possessórios não foram interrompidos”, que as taxas de ocupação haviam sido pagas regularmente e, portanto, lhe cabia o direito a compra preferencial. Independente de terem moradia habitual no lote, o juiz aceitou como prova da ocupação a existência de benfeitorias e os testemunhos favoráveis arrolados pela defesa. Esses testemunhos nos permitem verificar a valorização monetária da terra e sua mercantilização. Segundo Sebastião de Almeida Fonseca: Qualquer pessoa que venha dizer que tivesse posse ou que tenha posse neste lugar não é verdadeiro, pois foi a primeira pessoa que entrou na zona e lá comprou 105 posses e fez toda estrada e caminhos nos terrenos e Joaquim de Souza apenas quis tentar entrar numa posse que estava ocupada pelos réus ... 40 Processo Nº. 159. Requerente: Friedrich Luz. 52 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Os processos, envolvendo Tiago e Horácio Luz, foram incluídos no pronunciamento do Secretário de Estado da Agricultura Álvaro Marcilio, deo dia 2 de dezembro de 1957, quando esteve perante a Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa de Minas Gerais (MARCÍLIO, 1961: 43-45). A quase totalidade dos protestos contra as pretensões dos dois irmãos “se referiam a terrenos de há muito medidos e demarcados”. Os peritos encarregados da investigação encontraram um total de 32 escrituras públicas de compra e venda de terras, nas quais Tiago Luz era o comprador, além da existência de seis processos em tramitação referentes à solicitação de direito de compra preferencial de terrenos em nome dos filhos de Tiago Luz, exceto Friedrich. (MARCÍLIO, 1961:44). Na sua exposição à CPI, o secretário afirma que Tiago Luz havia comprado 105 posses e 32 propriedades na região do Urupuca. Pelo testemunho de Agenor Querubim da Silva no referido processo judicial verifica-se que a família Luz conseguiu criar condições para a compra preferencial ao contratar mão-de-obra para derrubar a mata, construir benfeitorias e dar início ao cultivo41. Que os empreiteiros dos réus abriram a posse e ele depoente plantou capim nos terrenos a mando dos réus; que esta área até hoje está em poder dos réus; que plantou o capim na posse em questão em 1949; que quem fez a derrubada da posse foi o finado Manoel Crioulo; que após a derrubada os empregados dos réus plantaram o capim e construíram barracas. De forma conclusiva este processo ilustra a dinâmica dos conflitos existentes nessa região em virtude do choque direto que sofre a frente de expansão, na medida em que a terra adquire valor monetário com o avanço da frente pioneira. Pode-se responder negativamente ao questionamento de Martins (1975:45) sobre o suposto caráter evolutivo da frente pioneira: “Cabe, pois, indagar se sociologicamente é válido o pressuposto de que a zona pioneira é adequadamente estudada quando entendida como resultado da evolução de um tipo a outro (da frente de expansão para a frente pioneira). Ou, em outros termos, cabe perguntar se há alguma evolução”. No caso da região do Vale do Rio Doce não houve essa evolução, pois a rodovia Rio-Bahia, a CVRD, a indústria si41 O depoimento Agenor Querubim da Silva também comprova que a frente pioneira derrubava a mata para formar pastos para a pecuária bovina, saltando o estágio da ocupação agrícola. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 53 derúrgica e o saneamento conduzido pelo SESP exerceram um papel indutor para o surgimento da frente pioneira. Saneado, porém, o que antes se considerava o ‘inferno verde’, sequiosos latifundiários, mesmo quando impossibilitados de preencher as exigências da lei, apressaram-se em requerer concessões imensas para transformá-las em pastagens ou em negócios fartamente compensador (MARCÍLIO, 1961, p. 15). Acreditamos que os estudos de situações particulares fornecem luz para a compreensão dos conflitos existentes em locais de constituição da frente pioneira. Os estudos dos processos de legitimação de terras devolutas refletem o momento critico pelo qual passava a região do rio Doce nas décadas de 1940, 1950 e 1960. As palavras do Juiz de Direito Plínio Dias de Andrade são emblemáticas: Esta questão possessória constitui um dos grandes problemas em nossa Comarca e quando aqui chegamos encontramos diversos casos e hoje, felizmente existem apenas uns seis casos em andamento caminhando para uma rápida solução. A “fome de terras” em nosso município é grande, mas, talvez, com as novas descobertas, de outras áreas habitáveis, o problema será facilmente solucionado, por precaução seria ate mesmo prudente que enviássemos pedidos aos arrojados “Gagarim”e a “Chepard” para que pudéssemos ceder mais terras a esses invasores inconformados que nos amolentam constantemente.42 Os estudos de caso permitem contextualizar a questão da disputa pelas terras devolutas do Rio Doce, a partir das grandes transformações iniciadas com a industrialização brasileira, na década de 1930. Também permitem entender as diferenciações territoriais produzidas pelos confrontos entre a frente de expansão e a frente pioneira, assim como o papel da propriedade privada, do mercado de terra e do Estado na formação da estrutura agrária assentada no latifúndio. O posseiro que é o sujeito da frente de expansão necessitava da floresta e de uma estratégia de ocupação fundada na cooperação vicinal e na solidariedade orgânica, porém a devastação das matas e a propriedade privada da terra afeta diretamente as duas condições anteriores. A técnica utilizada pelo lavrador pobre, para manter-se necessitava de área compatível como numero de famílias existentes e a possibilidade 42 Processo 159, em nome de Friedrich Luz. 54 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO de avançar para novas zonas de floresta. Os grandes investimentos de capital, a abertura das vias de comunicação e transporte, a ligação com os grandes centros industriais e a formação do mercado de terras tornam inviável a sobrevivência dessa economia rústica. Bibliografia BANDECCHI, Brasil. Origem do Latifúndio no Brasil. São Paulo: Editora Fulgor Limitada, 1963. BOLONHINI JR., Roberto. A posse e alguns aspectos, na legislação pátria: Conceito, desdobramento, detenção, natureza e fundamento. 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Tanto a vila de Toledo como a de Chonim de Cima foram estudadas pelo antropólogo Kalervo Oberg (1901-1973) na primeira metade dos anos 1950; ambas eram então vilas no sertão e se apresentavam mais ou menos nas mesmas condições. Os seus estudos que temos em mente aqui, para o presente ensaio, referem-se à vila de Toledo nas matas do oeste do Paraná e ao patrimônio de Chonim de Cima, um vilarejo com seus arredores no sertão mineiro do rio Doce, hoje distrito de Governador Valadares. (OBERG, 1958. OBERG; JABINE, 1960) 3 1 Doutora em História Moderna e Contemporânea (Cultura e Poder), UFF. Professora da PósGraduação Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território da UNIVALE. Pesquisadora do Programa de Memória Social do Vale do Rio Doce. 2 Doutor em Psicologia Cultural UPS – Roma, USP, professor de Psicologia da UNISAL, membro ativo da The Royal Anthropological Institute (London), membro ativo do Anthropos International Institute (Bonn). 3 A produção literária de Kalervo Oberg é ampla mas lidamos aqui principalmente com duas de suas obras, que nos interessam diretamente. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 59 Ainda que Chonim de Cima tenha iniciado sua existência, e seu processo de territorialização, em 1895 e Toledo em 1946,4 os seus inícios foram praticamente os mesmos: a abertura de uma clareira na mata por um grupo de pessoas com um misto de pioneiros e de aventureiros e empreendedores. Muitas vezes, em termos meio míticos, dizse que da natureza da primeira obra ou da direção do primeiro gesto, traça-se o destino de todo um empreendimento. Pode ser, afinal, se pisamos no primeiro degrau de uma escada, a intenção é clara. Mas talvez, melhor, possamos dizer com Châtelet, que mais que de um gesto mítico inicial, é o caos que é fascinante. E tanto mais fascinante porque, segundo Bergson (1984), ele vai permitir a construção de uma Ordem Desejada e não mais a ordem mecânica da simples relação de causa e efeito, uma ordem mecânica explicável. Em sua reflexão, Bergson ainda contrapõe a inteligência e o instinto: a inteligência não admite o imprevisível e vive de um construir e reconstruir um passado e rejeita toda criação nova. Já é da natureza do instinto fazer brotar e mais que tudo, inventar e inovar (CHÂTELET, 1998, p. 169-207; BERGSON, 1984, p. 193). Tem isto lá algum sentido no caso do primeiro gesto das vilas em questão? É possível delimitar, afinal, qual foi o primeiro gesto? Estaria claro para os instauradores do primeiro lugar qual seria a sua intenção e planos? Poderíamos atrelar esse primeiro gesto a um dado padrão nos processos de territorialização que se seguem em Chonim de Cima e Toledo? Se não vejamos, enquanto Chonim de Cima teve como sua primeira obra uma igrejinha, Toledo teve uma serraria (OBERG; JABINE, 1960a, p. 105);5 enquanto que no caso de Chonim de Cima o primeiro 4 Entretanto, Toledo já fora elevado à categoria de município em 1951; Chonim de Cima é ainda hoje Distrito de Governador Valadares. Segundo o site Portaltoledo, não se deve desconsiderar que Toledo estava imerso num programa federal de ocupação das áreas de fronteira, das décadas de 1940 e 1950. Apesar da passagem de europeus desde 1554, a região de Toledo passa a constar no mapa somente com a compra daquelas terras por ingleses radicados em Buenos Aires, em 1905, para fins de exploração de madeira. 5 Reconheça-se aqui a presença de certa retórica de contraste da parte dos autores. Na realidade já em 1946, em Toledo, esteve o padre italiano Antônio Patui junto com os primeiros trabalhadores. Este membro da Congregação do Verbo Divino, entidade da Igreja Católica, que derrubou ele mesmo com um trator, parte da floresta para a construção da igreja do Imaculado Coração de Maria, fundou a sede da atual imponente Catedral de Cristo Rei. Este padre, por sinal, tem uma estátua em sua homenagem numa das principais praças cidade e uma rua com o seu nome em frente ao Estádio de Futebol. 60 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO gesto simbólico-ativo fundador foi o de um destemido, descrito como Moisés, ter decidido embrenhar-se nas matas com a sua família, no caso de Toledo o gesto simbólico-ativo foi um gerente arrumar uns aventureiros em Farroupilha e colocá-los num caminhão e rumar pelo sertão do Paraná; um devoto em Chonim separa um pedaço de terra para a igreja de Nossa Senhora da Piedade e no caso de Toledo um empresário, bem longe dali, em Porto Alegre, na forma prosaica e bem pouco religiosa, assina a compra de uma fazenda (OBERG; JABINE, 1960a, p. 23; OBERG, 1958, p. 19). Apesar de se poder lidar com um material mais amplo, dado os objetivos deste ensaio, temos em mente, dois discursos em especial: o resumo da história das origens de Chonim feita por um dos descendentes do fundador e um discurso-proposta de instalação de um frigorífico em Toledo, proferido por um dos administradores do empreendimento agrário que resultou na cidade de Toledo. Dentro destes discursos temos as idéias centrais que além de divergirem entre si, trazem o leitmotiv que poderão decidir os destinos dos dois lugares. Ora, os dois discursos em questão fornecem pistas preciosas sobre o processo de territorialização das duas vilas e marcam, fundamentalmente, as intenções e pretensões de cada grupo no momento fundante desse processo. Do ponto de vista daquilo que Haesbaert (2006) classifica como território percebe-se que o autor compreende que cada grupo social “pode territorializar-se através de processos de caráter mais funcional (econômico-político) ou mais simbólico (político-cultural) na relação que desenvolvem com os seus espaços, dependendo da dinâmica de poder e das estratégias que estão em jogo” (HAESBAERT, 2004, p. 96). Na perspectiva de um processo de territorialização simbólico, podemos vislumbrar a configuração de uma cosmogonia bastante singular que subjaz em cada uma das vilas. Forjam-se, nesse primeiro gesto os elementos que, muito provavelmente, constituirão os alicerces mais profundos da sociedade de Chonin e de Toledo. E, se quisermos, através deles poderemos encontrar uma chave de leitura que contempla no aspecto simbólico do ato fundador o sentido e a motivação para a escolha de estratégias tão distintas na transformação de um dado espaço em território. Em ambos os casos podemos vislumbrar a configuração de uma tradição inventada, nos moldes propostos por Hobsbawm (1984, p. 9). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 61 De acordo com esse autor, a tradição inventada teria como característica um conjunto de regras e práticas de natureza simbólica ou ritual com o objetivo de inculcar certos valores e normas de comportamento mediante a repetição e uma continuidade em relação ao passado. De um modo geral, esse tipo de tradição se refere às “reações a situações novas ou que assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória” (idem. p. 10). Esta referência a situações anteriores seria fundamental na formação de um “sentido coletivo de superioridade das elites – especialmente quando estas precisavam ser recrutadas entre aqueles que não possuíam este sentido por nascimento ou atribuição – ao invés de inculcarem um sentido de obediência nos inferiores” (idem. p. 18). Mas estes gestos, além de requererem uma tradição, mesmo que inventada, trazem em si uma carga simbólica e são reveladores de uma utopia na topia, porque nada se faz sem algum sonho, sem uma visão de futuro ou mesmo de uma idéia-força, nos termos de Aguiar, e são muitas vezes quimeras que impulsionam lunáticos e subversivos. Quando morrem as utopias elimina-se no mesmo momento o futuro, seja ele qual for (AGUIAR, 2000, p. 203). Toledo fazia parte da terra dos arados, talvez possamos chamar de uma terra das topias, uma terra que enraizava os seus proprietários num chão, configurando o território de cada um. Já Chonim de Cima era terra da enxada ou da foice que por definição lidava com uma relação com a terra que levava num curto espaço de tempo, à mudança, ao abandono da terra; era uma terra de buscas utópicas e do peregrinar. Essa dinâmica distinta da relação dos homens para com seus territórios tem implicações pragmáticas. Em 1920, a metade dos arados do Brasil estava no Rio Grande do Sul; em 1960, 86% dos arados estavam nos estados da então Região Sul (RS, SC, PR e SP). Em toda a área de Chonim de Cima havia 5 arados, em 1952, e não mostravam sinais de terem sido usados por anos. Em termos de técnicas agrícolas, este fator, para Oberg, seria decisivo. Com a coivara, sem arado, a terra tinha um uso muito limitado, passando depois de apenas uns três anos de uso, a ter apenas a serventia para pastagens ou tigüera, no caso de Chonim de Cima. A recuperação das mesmas para ser de novo área agricultável, implicava num trabalho insano, se feito com a força humana, sem considerar o dispêndio ulterior em corretivos do solo (OBERG, 1965, p. 1419; OBERG, 1958, p. 50). Portanto, os 62 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO gestos simbólicos fundadores e as intenções e pretensões que subjazem o início de um processo de territorialização podem ser vistos como fios condutores que articularão o homem, o tempo, o território e a técnica. A relação de Chonin com a constituição de um território remete às percepções da sociedade ibérica, fundada metageograficamente no espaço, tornando-se uma variante civilizacional. Dentro deste perfil, de acordo com Barbosa Filho, os ibéricos se movimentaram por quase dois séculos, em busca de espaço, “de novos territórios, consolidando o territorialismo como determinação intrínseca de suas forma de vida” (BARBOSA FILHO, 2000, p. 14). Por outro lado, o esforço empreendido por Toledo, caberia naquilo que o Barbosa Filho denomina como uma característica marcante das sociedades do tempo, num contraponto com as sociedades do espaço. Dentro desta perspectiva, as sociedades do tempo, incorporam “o liberalismo como instrumento cognitivo do mundo dominado pelo capitalismo, reduzindo-o simultaneamente a universo axiológico disponível para o saque, para a incorporação submetida ao cálculo realista da vontade política” (Idem, p. 15). Estariam aqui as matrizes que levariam Toledo e Chonim a diferentes destinos? Ou ainda, estariam os futuros demarcados, no dizer de Oberg, pelo tipo de uso da terra: o modelo de fazenda agropastoril do tipo mineiro versus o modelo de pequena propriedade familiar dos imigrantes? Ou o determinante seria o modelo de produtor-proprietário comum entre os imigrantes japoneses, alemães, italianos etc. com capacidade de decisão e possibilidades de opções versus o arrendatário ou o agregado limitado aos cultivos de sobrevivência e sujeito aos ditames dos desejos dos proprietários das terras? (OBERG, 1965, p. 1417)6 Ou, numa perspectiva mais ampla, estariam aqui presentes percepções temporais que subjazem às duas matrizes já postuladas por Morse (1988): a iberista e a americanista?7 Estaríamos, portanto, frente a processos tão 6 Reconheça-se aqui a presença de certa retórica de contraste da parte dos autores. Na realidade já em 1946, em Toledo, esteve o padre italiano Antônio Patui junto com os primeiros trabalhadores. Este membro da Congregação do Verbo Divino, entidade da Igreja Católica, que derrubou ele mesmo com um trator, parte da floresta para a construção da igreja do Imaculado Coração de Maria, fundou a sede da atual imponente Catedral de Cristo Rei. Este padre, por sinal, tem uma estátua em sua homenagem numa das principais praças cidade e uma rua com o seu nome em frente ao Estádio de Futebol. 7 Em sua obra Morse chama atenção para as matrizes ideológicas européias que influenciaram a formação do pensamento e da cultura nas Américas. Neste esforço o autor busca as origens medievais sobre cultura, homem e sociedade das formulações ideológicas anglo-saxã e ibérica TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 63 distintos de uso do espaço e de configurações territoriais animados por duas lentes genitoras de sociedades com percepções diversas do mundo e, por conseguinte, com percepções diversas da natureza, do Estado, do indivíduo, da sociedade, da família e da própria hierarquização social onde todos os elementos simbólicos e culturais encontram sua rede de sentidos? (GEERTZ, 1978) Muito mais do que a disposição em responder às questões propostas importa perceber os percursos informados a partir de um exercício de descrição antropológica típico dos estudos de comunidades dos anos 50. Essas questões nos servirão como uma espécie de provocação para a busca de chaves de leitura de natureza interdisciplinar, congregando Antropologia, Psicologia Cultural, História, Filosofia e Geografia. Kalervo, como discípulo dos estudos de comunidade, estudando as duas vilas fez então uma espécie de radiografia da situação de ambas naquele momento e provavelmente, não tinha em mente fazer disto uma explicação de tudo o que ocorria. Devido ao seu emprego ou ofício junto às agências de cooperação internacional, ele tinha em mente mais a questão do uso da terra, os melhores procedimentos, os limites etc. em vista de um dado desenvolvimento. Por isso, apesar de seus relatos poderem ser inseridos na vertente dos estudos etnológicos de comunidades, estas descrições são ainda incipientes para dar conta de uma explicação mais sólida e exaustiva dos destinos das vilas. Para isto, dever-se-ia lançar mão de muitas outras dimensões que não foram totalmente esgotadas em seus estudos, ainda que venham aqui e ali assinaladas (FONTENELLE, 1971, p.13).8 Oberg em seus estudos dos anos 1950 encontrou as duas vilas com mais ou menos as mesmas proporções, ainda que uma já tivesse meio século de existência. Mas depois de 60 anos a diferença é simplesmente e analisa tanto seu comportamento nas pátrias de origem como sua posterior atuação em solo americano. A matriz ideológica inglesa (americanista) tem sua origem nas quatros revoluções que anunciaram o mundo moderno (religiosa, comercial, científica e política), por outro lado, a vertente ibérica origina-se de forma mais conservadora e interpretaria os valores da modernidade a partir do seu apego às tradições medievais, onde o tomismo se projetaria acima das formulações renascentistas. Com a expansão ultramarina, Morse diria que: “no momento crítico da expansão ultramarina as sociedades progenitoras adotaram, deixaram-se levar ou foram arrastadas por dois conjuntos de premissas políticas que seguem orientando a lógica da ação e do pensamento político até hoje” (p.56) 8 Quanto aos limites e possibilidades dos estudos de comunidades, foram feitas várias críticas que não vem ao caso comentar aqui. Quanto ao próprio conceito de comunidade, Raposo Fontanelle concorda que nem sempre ele dá conta da complexidade e da variedade dos grupos humanos. 64 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO colossal. Enquanto Chonim de Cima acabou ficando quase que fossilizada no tempo e no espaço, de acordo com o Plano de Desenvolvimento Rural Sustentável realizado pela Prefeitura Municipal de Governador Valadares (2009), Toledo apesar de ter iniciado mais de meio século mais tarde, seis anos depois já era município e se desenvolveu sendo hoje uma cidade marcadamente moderna e pujante. Chonim de Cima continua sendo uma vila perdida no sertão, com algumas casas a mais que 1952, com a mesma escola, alguns carros a mais e a mesma estrada de terra, e provavelmente os mesmos problemas de saúde, educação etc. Toledo, por sua vez, hoje conta com a presença de campi de cinco universidades, um PIB anual de 1,5 bilhões de Reais, mais de 180 mil habitantes, é o entroncamento de 5 rodovias asfaltadas, 3º. IDH do Paraná, tem um automóvel para cada 2,5 pessoas e já tinha um aeroporto em 1956, 10 anos após a derrubada da primeira árvore, com vôos diários. A que se deveu tamanha disparidade nos processo de territorialização empreendidos? As sugestões acima dão conta? Certamente a resposta não é única e talvez não se tenha mesmo uma resposta plena se considerarmos apenas uma única abordagem. Mas se levarmos em conta as informações que temos a partir do raio x de Oberg, talvez possamos intuir que para além destes ditames, tenhamos outros elementos que podem iluminar os percursos dos destinos das duas vilas e de seus habitantes. Percursos em campos complexos Kalervo Oberg foi um antropólogo canadense, de antepassados finlandeses, com cidadania norteamericana, que esteve no Brasil desenvolvendo atividades relacionadas à cooperação norteamericana para os países da América Latina no Pós-Guerra (OBERG, 1958, p. 137). O governo dos Estados Unidos, através do Instituto de Assuntos Interamericanos, desde 1942 desenvolvia programas de assistência especialmente nos campos da saúde, da educação e da agricultura em diversos países da América Latina. Graças à sua formação antropológica e econômica, especialmente no que tange à questão agrícola, é que Oberg passa a trabalhar com esta missão intergovernamental no Peru, Equador, Suriname e Brasil (MELLATI, 1983). Oberg é conhecido também nos meios antropológicos pela sua reflexão sobre o choque cultural que ainda hoje merece atenção e pelos seus estudos especialmente relacionados com as técnicas agríTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 65 colas e seus efeitos econômicos e sociais. Na realidade, a síntese dele sobre este assunto, tratar-se-ia de uma palestra que ele deu no Clube das Mulheres no Rio de Janeiro em 3 de agosto de 1954. A conferência foi publicada ao que parece, várias vezes, e tem como pano de fundo os estudos mais amplos da antropóloga Cora DuBois (OBERG, 1954, p. 177-182). Dentre os seus diversos trabalhos acadêmicos, relacionados com o Brasil, temos, dentre outros, especialmente estes dois que podem ser colocados dentro daquela onda dos estudos de antropologia ou da etnologia, dos anos 1940 e 1950, a que se convencionou chamar de estudos de comunidades como mencionamos acima (MELLATI, 1983, p. 19-20). Dos estudos de Oberg, conforme já referimos anteriormente, os que se referem à vila de Toledo nas matas do oeste do Paraná e o patrimônio de Chonim de Cima no sertão de Minas Gerais, ambos iniciados a partir da abertura de uma clareira na mata. E nos primeiros anos de 1950, eles se apresentavam mais ou menos nas mesmas dimensões. Da leitura do material de Oberg, podemos ver que Chonim de Cima e Toledo têm algo em comum e algo na forma de contraste. Vamos chamar a isto de binários antitéticos e sintéticos. Binários antitéticos As antíteses, ainda que possam ser constatadas com clareza, não deveriam ser lidas isoladamente. De modo mais específico, de um lado temos a Família Cunha em busca da sobrevivência no sertão de Minas Gerais em 1895 e, de outro lado, a Industrial Madeireira e Colonizadora Rio Paraná S.A. em 1946, em Porto Alegre, que compra uma fazenda como uma forma de investimento. Os motivos que a Família Cunha alega para sair de Guanhães em 1895, são a falta de terras e de horizontes, entretanto, não podemos dizer que tenha sido algo deste gênero que motivara o investimento da Maripá S.A. em Toledo, mas certamente, ela irá aproveitar-se de uma situação bem semelhante à de Guanhães, nas colônias do Sul: famílias numerosas com pouca terra. Deixamos de lado, neste ensaio, os aspectos das duas realidades que têm suas raízes no passado mais remoto. No caso de Toledo, partimos da história do Oeste do Paraná, especialmente, desde a chegada dos espanhóis e a fundação de Ontiveros na foz do rio São Francisco, em 1554. Mais tarde esta vila será transferida para Ciudad Real del Guairá na 66 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO foz do rio Piquiri. As reduções jesuíticas em 1610 em Guairá, com poucos efeitos sobre as terras da atual Toledo não redundaram em grande influência, a não ser a concentração de índios mais tarde escravizados pelos bandeirantes. Os investimentos dos ingleses em 1905, a partir de Buenos Aires, vão ter pouca influência no contexto como um todo. Do mesmo modo, no que diz respeito à Chonim de Cima, deixamos de lado a circunstância direta do Porto da Figueira, que depois veio a ser Governador Valadares, que no final do Século XIX passa de simples sertão com seus miasmas, a um campo de exploração comercial da madeira, da mineração e implementação da pecuária. A passagem da estrada de ferro em Valadares não deve ter significado grande coisa para Chonim de Cima, ou pelo menos seja ainda algo a ser estudado. O que nos interessa aqui, é que de um lado temos uma família sobrevivente (!) e de outro lado, uma empresa investindo. De um lado temos um grupo de pessoas cujos membros são de uma mesma família e de um outro lado temos uma empresa que busca reunir um grupo de pessoas de família diversas; de um lado uma família que busca sobreviver no imediato e de outro uma empresa que investe e lucra e reinveste no longo prazo; de um lado temos uma família que chega a um lugar ermo construindo sua própria estrada para chegar a um lugar para morar e de outro temos uma empresa que constrói as estradas para que as pessoas possam chegar a um lugar ermo e assim com elas investir. Depreende-se dos estudos de Oberg que as atividades em Chonim de Cima inicialmente, eram antes de tudo, de sobrevivência pura e simples com alguma preocupação com a produção de um excedente para trocas comerciais (estradas, café, gado etc.). A fazenda teria 154 km2 com 2 km2 reservados para o patrimônio, isto é, para a vila de Chonim de Cima. As perspectivas de futuro não iriam muito mais que a divisão das propriedades esgotadas para os herdeiros e uma futura migração para outras florestas de loucuras, dentro daquele esquema que os antropólogos chamam de brotamento (OBERG, 1958, p. 23-24). Já a Maripá S.A. pensou de modo empresarial e por etapas dentro do processo de transplante (transplantation). Após a aquisição dos 290 mil hectares da Fazenda Britânia, o primeiro empreendimento foi a exploração comercial da madeira (pinho, cedro etc.) com serrarias e estradas que já anteviam as futuras vilas. Neste mesmo processo, foram feitas as demarTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 67 cações das colônias e das vilas (Toledo e Rondon) seguindo as estradas e trilhas da exploração da floresta. Num segundo momento, foram feitas as vendas destas terras para colonos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. E, 10 anos mais tarde, a mesma empresa, ainda que não somente ela, já estava lidando com a terceira etapa, isto é, a industrialização da produção agrícola que de um certo modo é até hoje o ponto mais forte da economia toledana (OBERG; JABINE, 1960a, p. 23-42). Os motivos claros da saída dos Cunha de Guanhães não estão explicitados no estudo de Oberg, uma vez que muitas pessoas do local achavam uma loucura embrenhar-se pelas matas. Por outro lado, a necessidade de seleção dos futuros colonos de Toledo fazia parte da política da empresa: deveriam ser imigrantes alemães e italianos e de boa índole (OBERG, 1958, p. 18; OBERG; JABINE, 1960a, p. 28). Para nos dedicarmos a compreensão da loucura da família Cunha devemos, em primeiro lugar, captar o sentido desta retirada para as matas do sertão (FREUND, 1980, p. 73). Talvez, nesse ponto, possamos sugerir uma chave de leitura. Assim, temos a família Cunha se retirando de Guanhães, onde segundo o ditado local, “quem não era Coelho, era couve” (HORTA, 1986, p. 40). A retirada dos Cunha rumo ao caos e à floresta cercada de perigos e índios bravios, mostra um comportamento que pode ser compreendido num paralelo com a lógica territorialista, caracterítico do Antigo Regime português, onde as especificidades do sistema constituído permaneciam, praticamente, impermeabilizadas no local de origem, no caso Guanhães (BARBOSA FILHO, 2000, p. 103, 221, 240-247). A lógica territorialista sempre joga, para as áreas de fronteira, os elementos desestabilizadores e, tanto no Antigo Regime português quanto nas Minas, do século XIX, as áreas de fronteira tiveram um papel importante: impediram mudanças sociais profundas em momentos de crise. No processo histórico que caracteriza Minas Gerais, mediante a falta de perspectiva razoável para as elites constituídas ao redor das lavras de ouro a solução, ao velho estilo, encontrava-se na realocação desta elite em áreas diferentes, ainda pouco habitadas. Em outras palavras, uma vez que os grupos são relocalizados, permanece a morfologia social preexistente, reproduzindo o mesmo quadro de valores. Ou seja, os grupos que antes estavam concentrados na região central, de extração aurífera, passam a ser redistribuídos, gerando sucessivos 68 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO desmembramentos municipais com espaço suficiente para buscar riquezas e honrarias. Este padrão era bem aceito numa sociedade que não podia correr riscos em função da forte base escravocrata que possuía. Além disso, os esforços de alguns grupos familiares sempre eram traduzidos em títulos de nobreza, comendas e cargos, trunfos importantes no exercício do poder local e regional (GENOVEZ, 2003). Verifica-se, grosso modo, a existência de múltiplas estratégias de domínio territorial (territorialidades) que se complementam e/ou se confrontam levando grupos em desvantagem política, social ou econômica a se lançarem às áreas de fronteira, reproduzindo alguns traços da lógica territorialista do Antigo Regime Português. Assim, como em vários momentos da história de grupos e famílias mineiras do século XVIII e XIX, sem força suficiente para mudar o cenário do mando local, restou a Marcelino Cunha se lançar rumo a uma área de fronteira desabitada. Neste novo espaço seria possível reproduzir os mesmos quadros de valores de sua sociedade de origem com a diferença que Marcelino se tornaria a referência da nova vila que se formava, fundando uma nova tradição com bases que remontavam aos séculos de colonização e da sociedade monárquica oitocentista. Contudo, além da noção de territorialismo oriunda dos quadros mentais do Antigo Regime permanecer nos subterrâneos da mentalidade daqueles que fundaram Chonin, a figura de Moisés, já referida acima, também tem seus fundamentos na perspectiva cosmogônica que caracterizou a sociedade ibérica e sua ressonante na América Portuguesa. Marcelino Cunha, era o responsável por seu povo numa travessia quase intransponível rumo a uma terra de promessas e, caberia a ele, hierarquizar socialmente e distribuir as graças tal como o Rei na sociedade ibérica, nos mesmos moldes da sociedade patriarcal que caracterizou todo o século XIX e mantém alguns de seus elementos ainda vigorosos no interior do Brasil em plena metade do século XX. Ainda no que se refere à mentalidade, outro elemento importante na inculcação da modernidade era a educação. Nesse aspecto Oberg deixa entrever que em Chonim de Cima há uma certa preocupação com a educação formal, mas ela não é nem central e nem parte da mentalidade das pessoas, talvez porque o mais importante para essa comunidade fosse de fato a manutenção do conservadorismo. Em Chonim de Cima alguns grupos de pessoas, apresentavam um percentual TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 69 de analfabetismo que chegava até a 90%, enquanto que em Toledo alguns grupos chegavam a ter 100% de pessoas alfabetizadas. No geral, o analfabetismo em Toledo era bastante baixo tendo-se em mente que a média do Brasil de então era de 49% (em Toledo os analfabetos não chegavam a 12%), em Chonim de Cima, mesmo entre as pessoas abastadas, passava de 50%. Oberg sinaliza com clareza a existência de jornais, revistas e mesmo de uma biblioteca em Toledo, ainda que a leitura não fosse uma prática consistentemente disseminada. Não se pode dizer o mesmo de Chonim de Cima. Entretanto, as dificuldades de frequência às aulas eram as mesmas nas duas localidades: a quase totalidade das crianças urbanas estavam matriculadas e freqüentavam a escola, entretanto, as rurais, muitas vezes estavam apenas matriculadas por força de Lei, mas não freqüentavam regularmente. Em Chonim de Cima a maioria dos habitantes não era proprietária da terra, era de arrendatários ou marginal peasant nos termos de Oberg, já em Toledo praticamente todos moradores eram proprietários das terras em que trabalhavam. Por sinal, uma das reclamações dos colonos era exatamente a ausência de trabalhadores volantes, isto é, que pudessem ser contratados nos momentos de maior necessidade. Apenas alguns paraguaios de vez em quando passavam por lá. Em Chonim de Cima o ciclo do uso da terra – enquanto agrícola – estava em seu ponto final em 1952, e em Toledo estava exatamente iniciando o processo de produtividade agrícola. Devemos ter em mente que Chonim de Cima já tinha 50 anos de exploração do solo. Oberg chama a atenção que do ponto de vista de produtividade agrícola, o ciclo se encerrara, restando uma pequena produção de subsistência e parcos recursos para a pecuária. Já em Toledo, hoje, quase 60 depois, não temos mais nenhum espaço arbóreo a que possamos chamar de floresta, mas as terras continuam muito produtivas e isto se deve a diversos fatores e não somente ao sistema de coivara, provavelmente ao uso do arado e ao tipo de relação com a propriedade agrícola. O ponto sociocultural que une o grupo de Chonim de Cima é um símbolo que podemos chamar de transcendente – Nossa Senhora da Piedade (devoção, festas etc.) – e o ponto que une o grupo de Toledo é mais, digamos, bem imanente, isto é, a MARIPÁ S.A. e seus empreendimentos (escritórios, serrarias, estradas, gerentes, diretores etc.) (OBERG, 1958, p. 5; OBERG; JABINE, 1960a, p. 23). Provavelmente, a resposta 70 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO à pergunta sobre quem seria a pessoa mais importante em Chonim de Cima seria mesmo alguém da Família Cunha, o dono da fazenda, ou algo nesta mesma linha argumentativa, já em Toledo, o hors concours é o Sr. Willy Barth, o diretor dinâmico, enérgico e entusiasmado da Maripá S.A. Willy Barth era um dos diretores da MARIPA S.A. e recebe homenagem em vários monumentos em Toledo como o Museu da cidade e uma das principais praças, já Maripá é o nome da maior avenida da cidade (OBERG; JABINE, 1960a, p. 24 e 112). Podemos dizer que a fazenda Bom Retiro de Chonim começou com a abertura de uma clareira para a construção de uma igrejinha para Nossa Senhora da Piedade e que Toledo começou com uma clareira para a construção de uma serraria. Nesse sentido, Oberg chama a atenção que, num assentamento de fronteira, depois da construção das casas de moradia, as prioridades variam de acordo com a cultura. No Canadá e nos Estados Unidos, o médico já aparece quando o assentamento tem apenas umas 200 ou 300 pessoas. Em Toledo, três construções extras apareceram imediatamente após a serraria e as casas: as escolas, as igrejas e o hospital. Em termos de comparação com Chonim de Cima, escola e igreja certamente estavam presentes de algum modo, mas algo parecido com hospital demorou pelo menos meio século, isto para não dizer que depois de 115 anos ainda não há nada digno deste nome, somente um posto de saúde em condições precárias de funcionamento (OBERG, 1958, p. 22). As publicações de Oberg, apesar de sintéticas e até um tanto pobres em termos de estilo, são ricas em informações e estes binários contrastantes poderiam ser estendidos para a estrutura familiar, as relações com a vida política, a vida religiosa, os costumes populares ligados à saúde, a natureza da migração, o estilo de vida e a vida social na fronteira etc. Mesmo assim os seus ensaios fornecem elementos que sinalizam para pensarmos sobre a invenção de novas tradições, sobre o processo de territorialização e a configuração de estratégias de domínio sobre o novo território em questão, seja ele Chonin ou Toledo. Binários sintéticos Numa leitura atenta da obra de Oberg, podemos constatar também binários comuns ou aos quais podemos denominar de sintéticos: uso da técnica da coivara no preparo do solo, desbravamento da floresTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 71 ta como ponto de partida para sobrevivência agrícola; construção das casas usando-se o material disponível; um certo abandono dos poderes públicos; a criação de porcos; início de tudo em meio a floresta virgem; a manutenção de um certo vínculo com os familiares deixados nos lugares de origem; subdivisão da terra em herança gerando a ulterior migração; extração da madeira e queima da floresta, etc. Entretanto, estes elementos comuns, acabam por ter uma ressonância bem diversa quando imersos nos traços antitéticos que vimos acima: a coivara não degenerou a terra em Toledo em parte devido à formação singular do solo e do uso de modernas tecnologias; o desbravamento da floresta gerou em Toledo de um lado, uma renda considerável para a Maripá S.A. que investiu em mais estradas e melhorias sociais (escolas, clubes etc.) e possibilitou além do mais, a presença de grandes plantações de soja, milho e algo de café e indiretamente a criação de bovinos, suínos e galináceos.9 Já em Chonim de Cima, a derrubada da floresta deve ter gerado algo em termos financeiros, mas que não redundou em melhorias significativas para a população em geral e gerou apenas a possibilidade de pastagens e a criação de gado que por sua vez, impossibilitou o uso agrícola da terra. Tenha-se em mente que o solo em Toledo é praticamente todo ele plano – no máximo a presença de colinas suaves – fazendo parte de um amplo platô de rocha diabásica de origem vulcânica muito antiga. Com isto, o solo de origem destas rochas é de um marrom-achocolatado de grande profundidade havendo redução da erosão por declive e manutenção da natural fecundidade. Já em Chonim de Cima temos uma formação colinosa e um solo com formação diversa, tendendo para o arenoso nas encostas e lateritos e solos de aluvião, nas várzeas. Com isto podemos prever os efeitos bem diversos de uma mesma prática agrícola (OBERG; JABINE, 1960a, p. 29; OBERG, 1958, p. 14). A construção das moradias seguiu num primeiro momento, padrões muito semelhantes (uso de material disponível e técnicas próprias), mas enquanto que em Chonim de Cima as casas mudaram muito pouco em termos de seu estilo depois de meio século, em Toledo elas já se apre9 Graças à formação geológica da Fazenda Britânia, a Maripá S.A. pensara em usar a parte norte da mesma para a produção de café, chegando-se a um plantio de mais de um milhão de pés do mesmo. Não se tem informações do futuro destas plantações devido às condições climáticas. Em 1975, as plantações de café de Londrina foram praticamente dizimadas pela geada. 72 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO sentavam, em 1956, com muitos dos confortos modernos. De um certo modo, a presença dos políticos ou do Estado foi muito semelhante: enquanto que em Toledo quem fez o papel do Estado foi a empresa Maripá S.A., em Chonim de Cima foi a Família Cunha. Neste aspecto, valeria a pena comparar a descrição que Oberg faz da Família Cunha e da Maripá S.A. em suas relações com a comunidade e colocá-las lado a lado: ambas têm uma preocupação pela vida social de seus clientes. Em Chonim de Cima temos mais vínculos familiares, de início, que faz com que o fazendeiro de algum modo se preocupe com a vida social (saúde, educação, transporte, trabalho, comercialização etc.) de seus parentes e empregados (assalariados ou arrendatários). Podemos dizer que aqui temos vínculos um tanto quanto qualitativos: é a natureza do parentesco que estabelece a necessidade deste cuidado, seguindo um padrão patrimonial. Já na Maripá S.A. ainda que tenhamos, pelo menos na descrição de Oberg, alguns traços de um interesse humano legítimo (pelas qualidades humanas dos diretores como Barth e Bercht) pela vida social dos clientes da empresa, não de pode negar que é uma Empresa e que o modo como os imigrantes são tratados, tem a ver com o retorno financeiro que eles podem trazer. Assim, para que possam vir do Sul para Toledo, eles contatam as famílias, selecionam, transportam, constroem estradas, escolas, igrejas, clubes etc. Em resumo, eles gastam para ganhar. E num passo ulterior, como vimos acima, criam condições para que a indústria se instale e mais uma vez, a vida social dos clientes, seja viável. Mas não fazem isto isoladamente, mas na forma de cooperação. Os vínculos de parentesco – especialmente o compadrio – na sociedade tradicional, faz com que o processo que os antropólogos chamam de budding sofra algumas alterações, como podemos ver no caso da visita às antigas redes sociais. A migração é um modo de ampliar a família, ou pelo menos, o seu espaço, sem estar no mesmo espaço, mas não necessariamente de se isolar da mesma. A visita, nestes casos, não é apenas um processo de cumprimento de convenções sociais, mas são processos de manutenção de presenças afetivas; o compadrio é um processo de manutenção de vínculos familiares. Isto está claro em Chonim de Cima. Em Toledo temos um processo semelhante nas constantes viagens que os colonos fazem às cidades ou vilas de origem mas especialmente nos nomes das vilas da região. Novo Sarandi, Nova Três Passos, TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 73 Nova Santa Maria etc. são nomes que de algum modo buscam trazer os lugares de origem para mais perto (OBERG, 1958, p. 24).10 Apesar de Oberg chamar de fazendas as 10.000 subdivisões da Fazenda Britânia, na realidade tratam-se de pequenos recortes de terras – em torno de 25 hectares – que servem bem para a sobrevivência de uma família. No momento em que a família cresce com os filhos, a subdivisão destas colônias torna a sobrevivência impraticável. Que fazer? Em Chonim de Cima provavelmente a solução foi ir em busca de novas terras de seus sonhos, mantendo a lógica territorialista. Em Toledo ocorreu algo parecido mas com uma dinâmica diversa. Uma parte dos colonos otimizou o uso da terra com a criação de porcos, galináceos etc. Outra parte foi para a cidade, para a indústria e comércio. E uma parte, mais tarde, migrou para o Mato Grosso, Goiás, Maranhão etc.11 A floresta foi a busca inicial e o problema inicial; busca porque estava devoluta ou porque fora adquirida. Qual foi o destino da mesma? Podemos dizer que do uso da mesma dependeu o futuro da região? Ou do uso da riqueza da floreta original é que depende o futuro da região? Em outras palavras, as estratégias e as práticas utilizadas pelos grupos envolvidos no processo inicial de territorialização de um dado espaço, estabelece alguns direcionamentos decisivos na configuração do futuro da região. Em Toledo, a Maripá S.A. usou a exploração da floresta para o processo de gastar para ganhar e depois investir e com isto pôde dar o passo seguinte que foi o da industrialização da produção agrícola usando a técnica ou prática da fixação do trabalhador no campo. Em Chonim de Cima a floresta foi vista, ao que parece, como simples empecilho; certamente houve algum ganho com a madeira. Mas como isto não redundou num capital com ulterior investimento rentável no local; a floresta acabou sendo mesmo um simples atravancamento da coivara e não redundou em outra coisa que tigüera ou pastos. 10 Budding ou brotamento, seria um modo característico de certos grupos indígenas do BrasilCentral, de ampliar número dos grupos ou desdobrar-se tendo-se em vista a sobrevivência ou a praticidade da convivência social. A tendência, neste caso, é do isolamento, uma vez que o chefe é tanto o guerreiro e o pajé (poder militar e simbólico) e com isto não depende mais da gens de origem. 11 Aqui novamente valeria a pena ver o destino destas novas ondas migratórias. Os migrantes do Paraná e do Rio Grande do Sul dos anos 1980 e 1990 em diante, não foram para as novas fronteiras como simples mão-de-obra mas foram como empresas. Veja-se o caso de Goiás, Mato Grosso, Barreiras, Tocantins, Maranhão etc; de um certo modo repetiram Maripá S.A. Qual foi o destino dos migrantes de Chonim de Cima? Repetiram Marcelino Cunha? É um campo em aberto. 74 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Esta leitura é um tanto fria e não capta outras dimensões humanas que eventualmente Oberg não tenha tido instrumentos para observar. Dá a impressão de uma espécie de escravidão light onde com uma espécie de fumaça de progresso as pessoas são realmente envolvidas num empreendimento financeiro cujas metas são o lucro, a capitalização com as vestes de progresso ou de modernidade. Por incrível que pareça, a criação de porcos, ainda que não tenha sido a única atividade econômica, é comum às duas realidades, mas em Toledo ela se tornou uma verdadeira indústria chegando aos dias de hoje à exportação para diversos países, e em Chonim de Cima nunca ultrapassou à lida artesanal. Talvez nesses indícios possamos indicar nos subterrâneos das mentalidades em tela os resquícios da sociedade do espaço, no caso de Chonim e da sociedade do tempo, no caso de Toledo, já referidas acima. A chegada de meia dúzia de Farroupilhas – grupo de trabalhadores descendentes de italianos, contratados pela Maripá S.A., na cidade de Farroupilha – em abril de 1946 ao riacho Toledo, donde o nome da cidade, é considerado um momento épico. Então tratava-se de um acampamento e hoje é um milagre. Não deixa de ser interessante do ponto de vista antropológico, que no discurso da proposta de um frigorífico S.A. este momento fundador seja retomado (OBERG; JABINE, 1960a, p. 37). Eles chegam abrindo picada para instalar uma serraria. São empregados da empresa e não são da mesma família. Sua primeira tarefa, abrir uma clareira para a serraria. Por que estavam ali? Para sobreviver do seu trabalho – e por que não? – para realizar um milagre. Em 1895, Marcelino Cunha, saiu em busca de sua terra dos sonhos. Após uma caminhada de três dias e de passar pela serra da Escadinha, por caminhos ínvios, chega a um lugar de florestas densas, cheias de animais, com boa aguada. Ali, no meio da mata, abre uma clareira para construir uma igrejinha para Nossa Senhora da Piedade. Quem estava ali? Um grupo bem pequeno de familiares. Por que estavam ali? Para sobreviver de seu trabalho e – por que não? – para realizar um sonho, com a chegada de outros membros da família. Ainda que o mais diverso seja a igrejinha versus serraria, não se pode desconsiderar que tanto para uma empresa como para a outra, foi necessária uma boa dose de coragem e de espírito de aventura que os discursos um tanto lineares e economicistas não contemplam. Para o leitor urbano certamente é um tanto romântico ver um grupo de pessoas instalarem-se num espaço e TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 75 ter que começar do nada e sonhar com o tudo que existiria muito além dos montes que ainda azulam no horizonte. Contudo, para Marcelino e certamente também para os anônimos Farroupilhas, a ação empreendida não era em sua essência romântica. Mas, é preciso levar em conta, sem um quê de romantismo Marcelino não teria deixado a sua Guanhães conhecida e nem os destemidos trabalhos italianos deixariam sua Farroupilha cotidiana rumo ao incerto. De certo modo, é isto que faz daquele momento no funil de luz da floresta, um momento único, eventual e divisor do tempo e das experiências. Será que Toledo seria algo sem isto? E Chonim de Cima seria? Claro que podemos também dizer: Toledo e Chonim de Cima são o que são só por isso? Não consideramos aqui aspectos que Oberg não teve em mente num primeiro momento. Um deles é o fato de que em Toledo termos somente descendentes de italianos e alemães, onde alguns ainda não falavam português. Não consideramos devidamente o aspecto, certamente importante, da educação formal. O peso do valor e do tipo de comunidade, isto é, do grupo humano participativo em termos mais igualitários ou mais hierarquizados. Não vimos também os aspectos de interesse, ou seja, o que se quer com o que se faz, com o estilo de vida e de sociedade que se constrói. Claro que subjaz a tudo isto uma tendência de compreensão em termos de uma pendularidade que vai desde o antigo e o contemporâneo, entre o Ancién Régime e a modernidade, entre o urbano e o rural, entre uma lógica do pragmático e uma lógica do estético etc. O tempo e o espaço em dois discursos: circular versus projetual? A temática do tempo e seus mistérios acompanham a humanidade e talvez possamos dizer que a relação do ser humano com ele constrói o humano que há em nós. De um modo simples, o tempo se apresenta como presente, passado e futuro. Traz em si uma dimensão de mistério, ou seja, de quase inexistência: o passado não existe, o futuro ainda não é e o presente só se apresenta para nós já na forma de passado. O ser humano, na consciência do tempo, vive como se estivesse num fio de navalha. De um modo meio intuitivo podemos dizer que é do modo como o futuro é considerado que resulta a possibilidade de se compreender o que faremos. Se o futuro está em aberto, então entramos no reino de uma possível liberdade, ou pelo menos, um espaço com margem de manobra. Agora, se o futuro está fechado, só nos resta 76 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO projetar nele uma reprodução do passado, com alguma variação, mas de qualquer modo é uma tradição. A literatura sobre este tema é enciclopédica, mas vamos tomar como guia do que pensamos aqui, a síntese de Galimberti (GALIMBERTI, 2008, p. 902-903). Levantaremos alguns aspectos e depois buscaremos ver se eles estão presentes nos discursos. A tese, de fundo é que, além das dimensões, digamos, pragmáticas que apresentamos acima, podemos certamente, ver esta dimensão do tempo colaborando ou não para os destinos de Toledo e de Chonim de Cima. Em linhas gerais, o tempo, a percepção do mesmo ou a concepção do que vamos chamar aqui de tempo, vem das experiências cíclicas da Natureza: dia e noite, estações, crescimento dos animais e plantas. Tudo, segundo Galimberti, não se encaminha para uma finalidade, mas para um final. O tempo neste sentido é perfeito, ou seja, se realiza. Ao fim do tempo, chega-se ao que seria a sua meta. “No tempo cíclico não há futuro que não seja a pura e simples retomada do passado que o presente reforça” (GALIMBERTI, 2008, p. 902). O que se espera não é outra coisa que o retornar. Os procedimentos culturais, sociais e mesmo políticos buscam através dos mais diversos meios este retorno. O novo tempo é o originário em sua plenitude. Idéia comum nas culturas antigas, especialmente a Greco-romana. Já uma segunda modalidade de tempo, na linguagem de Galimberti, é o tempo projetual cujo centro de referência é o futuro: sonhado, desejado (nos termos de Bergson), planejado e habitante de utopias. É só com a concepção de tempo deste gênero que se pode fazer a hora, se não, ela simplesmente acontece. Ao conceito de tempo projetual subjaz a idéia do projeto, do lançamento, do plano, da antecipação racional de passos a serem dados, do controle do que vai acontecer. Neste sentido, não se está lidando com um futuro dos deuses, mas dos seres humanos; não se trata do futuro de um eschaton ou de uma utopia, mas de algo imediato, que mantém de algum modo vínculo com as experiências de passado, especialmente o recente e ainda mantido de algum modo em memórias (GALIMBERTI, 2008, p. 586 a 591). É aqui que surge um conceito interessante: a idéia de kairos, ou seja, o momento ou o tempo oportuno. Os gregos distinguiam estes tempos (Aion e Kairos). Em termos nossos talvez possamos dizer que temos dois tempos, o do calendário e o momento. Um é do Cronos e o outro é mítico. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 77 Este tempo cairológico de certo modo é um recorte da visão escatológica de tempo; um tempo compreendido entre uma origem que remete a um fim e é essencial para se superar a idéia de tempo cíclico e se chegar ao tempo linear ou histórico. Em resumo, a história é tempo dotado de sentido; dotado de fim e não de simples resultado ou de retorno. Neste tempo de eschaton o futuro é o grande campo de atenção. É até muito comum ver-se o passado como um campo do mal, e o futuro sonhado como a plena e total felicidade. Aqui a ciência se contrapõe às crendices, a utopia ao marasmo, a revolução à tradição; o progresso é a salvação em oposição à perdição que está na manutenção pura e simples do passado. Daqui redundam discursos ou relatos que, segundo Galimberti, vêm da medicina hipocrática: a anamnese – retomada do passado para compreender o que está acontecendo no presente – e a prognose – que partindo destas informações do presente questiona que se pode esperar num tempo futuro. Temos diante de nós dois discursos: o de Marcelino e o do Ondy, propositor do frigorífico em Toledo. Se é verdade que subjazem a estes discursos concepções de tempo diversas, então, podemos esperar que elas de algum modo deixem isto transparecer. Então vamos aos discursos: Dois discursos da coragem? Moisés e o Diretor Dos relatos de Oberg temos aqui e ali um pouco de sua compreensão destas duas comunidades, isto é, uma mais do tipo tradicional e a outra mais do tipo moderna; uma de estilo mais Brasil Colônia e outra do tipo Brasil Segunda República; uma presa à noção de tempo circular e, portanto, afeita a contínuas conquistas de espaço e outra do tempo histórico/projetual que reconfigura o espaço no qual se encontra. A leitura que faz, por ser um tanto focada na questão do desenvolvimento agrário ou social, deixa fora do foco alguns temas que podem ser centrais se quisermos compreender um pouco da história dos dois grupos em maior densidade. Assim, os dois discursos que remetem ao ato fundador, podem ser ao mesmo tempo lidos de vários modos. Aqui olharemos quanto à questão da temporalidade. Oberg, através da sua pesquisa nos deixa uma espécie de fotografia daquele momento de Toledo e de Chonim de Cima, mas que tem atrás de si elementos que deixam entrever tanto os passos anteriores de cada uma das povoações como os possíveis passos ulteriores. Será que 78 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO podemos pensar num pano de fundo mais parametral que de algum modo seria a alma dos passos dados pelas pessoas e pelas comunidades nos dois lugares? Depois de tudo isto, por que não tomar como ponto de partida com dois discursos que Oberg relata em suas obras? Um é proferido por um dos netos do fundador de Chonim de Cima que conta a história dos Cunha e Chonim de Cima dos Porcos ou Chonim dos Cunha numa forma clara de narrativa. O outro é mais elaborado, num estilo de proposta, feito pelo gerente da Industrial Madeireira Colonizadora Rio Paraná S.A., Ondy H. Niederauer que propõe a construção de um frigorífico. Os dois discursos foram recolhidos com a diferença de poucos anos. Em Chonim de Cima a coleta de informações ocorreu em 1951 e 1952 e em Toledo foi em 1956 (OBERG; JABINE, 1960a, p. 9-10).12 Estamos numa mesma data, mas estamos num mesmo tempo? a) Mas nada atemorizou Marcelino: Uma breve história de Chonim de Cima13 Marcelino José da Cunha, talentoso e ainda jovem com os seus 49 anos, corajoso mas pobre, vivia em Guanhães com a sua esposa e 13 filhos (6 rapazes e 7 moças). Durante algum tempo ele esteve pensando num lugar onde ele pudesse estabelecer uma fazenda sólida que mais tarde pudesse dar alguma segurança para os seus filhos. Mas como? Em Guanhães isto não era mais possível. Somente no mato os seus desejos poderiam se realizar; o seu ideal poderia ali ser realizado. Mas a floresta? A malária? Só de falar isto já causava um horror. As pessoas em Guanhães diziam que ele estava meio louco para querer ir morar no mato. Mas nada atemorizou Marcelino. Cheio de energia e fé em Deus, ele tomou a decisão de ir. Isto foi no ano de 1895, ele saiu em busca da sua terra dos sonhos apesar de todas as dificuldades que ele já esperava encontrar. Depois de reunir os suprimentos e carregar os animais ele tomou o caminho de Peçanha e de Coroaci, viajando por três longos dias pelas piores estradas, morro acima e abaixo, até encontrar as famosas montanhas da Escadinha, que foram seguidas ao longo de 15 km, uma distância onde não se encontrou mais água. As longas estradas sem uso estavam cobertas por bambus espinhentos até ao ponto de em alguns lugares 12 Oberg estava vinculado à Escola de Sociologia e Política da USP. Com isto, os estudos de Chonim de Cima foram levados adiante com a colaboração de estudantes desta universidade em 1951 e 1952; já em Toledo, entre agosto e outubro de 1956, ele contou com a ajuda entrevistadores fornecidos pelo Departamento de Fronteiras do Estado do Paraná e da Divisão de Desenvolvimento de Comunidades. 13 Tradução dos autores. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 79 se terem tornado impenetráveis. Mas nada assustou Marcelino que foi adiante corajosamente até que finalmente chegou a um desacampado cercado por uma densa floresta virgem. Um grande número de animais foi encontrado ali, tais como o tapir, a capivara, o veado, os porcos do mato, a paca, a cotia, vários tipos de macacos, onças, tamanduá e muitos outros. Entre os pássaros foram encontrados o mutum, a arara, o jacu, a jacutinga, o macuco, o jaó e outros. Existiam ainda alguns índios selvagens vivendo na área. O solo fértil estava coberto por uma valiosa madeira de lei em pé, e esta árvores eram as mais comuns: peroba, ipês, sapucaieiras, baraúnas, bálsamos, cedros, itapicurus e um grande número de outras. Foi ali então que Marcelino encontrou o lugar dos seus sonhos. Existiam já umas poucas casas na área, ocupadas por moradores que cultivavam pequenas áreas de terra. Estes tinham vindo de Governador Valadares (!).14 Uma pequena área foi deixada de lado para a igreja de Nossa Senhora da Piedade. Marcelino comprou as pequenas propriedades dos roceiros e garantiu a sua cooperação no estabelecimento de sua grande fazenda. Foi dado o nome à fazenda de Bom Retiro de Chonim. Um dos chefes indígenas, que anteriormente ocupara este vale, se chamava Choni, e a partir disto a fazenda e depois a vila receberam o seu nome. Pouco mais tarde, irmãos e primos de Marcelino vieram e assumiram as terras próximas da fazenda. Entre estes estavam Zeferino José da Cunha, Antônio Gonçalves da Cunha, Domingos Fernandes da Cunha, Cesário e Eduardo da Cunha. Apesar de Marcelino ter comprado as pequenas propriedades dos camponeses, ele permitiu que eles continuassem a viver e a trabalhar em suas antigas propriedades. Por isso, Marcelino se tornou meio Moisés, que sabia conduzir o seu povo com toda a humildade. Como estas pessoas e os seus filhos eram analfabetos ele até mesmo fundou uma pequena escola primária para eles. A população cresceu mas não havia progresso, e para se conseguir suprimentos de Peçanha, uns 90 km de distância, era coisa muito difícil naquelas trilhas miseráveis. Lá eles compravam sal, tecidos, pólvora, instrumentos para o trabalho na roça e medicamentos a preços muito altos. Existia uma outra possibilidade, especialmente, descendo o rio Doce com canoas até o Espírito Santo, mas neste caso tratava-se de uma longa jornada. Seguindo as trilhas ao longo do rio, tropas de mulas e o gado eram levados 14 O nome e município de Governador Valadares são de 1938, entretanto a vila ou a presença humana nesta região é bem anterior e o autor apenas queria referir-se àquele região, hoje denominada com este nome [NT]. 80 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO a Vitória, no Espírito Santo, mas esta era uma empresa perigosa uma vez que os assaltantes atacavam as tropas quando elas voltavam. Marcelino ouviu falar de Teófilo Otoni, 150 km adiante, onde os suprimentos seriam mais baratos. Ele decidiu ir para lá,15 sendo que 90 km eram através da mata virgem. Ele recebeu alguma ajuda de alguns homens de Itambacuri e arcando com os custos, ele equipou uma tropa e iniciou a aventura em outubro de 1898. Depois de 21 km eles chegaram ao rio Suaçui Grande. Ali eles acamparam a primeira noite ouvindo os sons da floresta. No dia seguinte eles fizeram uma balsa de embaúba, e atravessaram o rio. Ali eles acamparam durante um longo tempo enquanto eles abriam o caminho. Outros acampamentos foram feitos e finalmente eles encontram um outro grupo que vinha trabalhando na abertura da estrada no sentido contrário, vindos de Itambacuri. Uma festa celebrou o encontro. Desde aquele tempo, as pessoas passaram a comprar os seus suprimentos em Teófino Otoni. Marcelino separara um pedaço de terra para uma capela e pediu aos padres uma imagem de Nossa Senhora. Esta capela foi mais tarde construída onde a igreja está hoje. Marcelino, devido às dificuldades na construção de caminhos e trilhas e por outros trabalhos, pegou a malária. Sabendo que chegara a sua hora e pensando em seu povo como se fosse um rebanho de Deus, ele tinha que decidir quem seria o seu sucessor, um que pudesse levar adiante a missão de desbravar a terra. Esta tarefa foi dada ao seu genro e discípulo, Marcial Cyriaco da Silva. Esta foi, como se pôde ver, uma escolha abençoada. Ele deu conselhos a Marcial e pediu aos seus filhos (de Marcelino) que seguissem as ordens de Marcial e que ficassem unidos. Após isto, Marcelino, no dia 28 de novembro de 1899 restituiu a sua alma ao Criador com a idade de 54 anos. Marcial [sic] Cyriaco da Silva estava agora no cargo sob a guia do exército de Nossa Senhora da Piedade (ele parece que sempre ouvia a voz de seu sogro). Os campos eram cultivados em comum bem como as pastagens para o gado. Certas áreas foram separadas para o plantio do milho, do arroz, da mandioca para se fazer farinha e amido; uma parte dos produtos era usada para alimentar os porcos. Plantou-se o algodão do qual se faziam as roupas usadas no trabalho. A terra era fértil e as colheitas muito boas. Marcial, obedecendo os desejos de seu padrinho, ordenou que se construísse uma capela no lugar escolhido pelo seu sogro, e onde uma cruz fora erguida em honra de Marcelino. Ele ainda 15 Ao que parece ele mesmo construiu a estrada, como se depreende do texto mais adiante [NT]. Mas, é possível que Marcelino tenha aproveitado antigas trilhas indígenas. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 81 se lembrou da intenção de formar o patrimônio de Nossa Senhora da Piedade de Chonim. Ao longo dos anos, Marcelino da Cunha e os seus irmãos e primos se multiplicaram e formaram outras fazendas, mas nenhum se separou do rebanho. Marcial ampliou a capela e como o número das crianças aumentou ele estabeleceu uma escola estadual em outubro de 1922. Como agradecimento por ele ter conseguido a escola, o povo o elegeu para vereador para a câmara municipal de Figueira (agora conhecida como Governador Valadares).16 Já em 1912, Marcial formou uma banda através da compra de 12 instrumentos e pela contratação de um professor. Mas tarde esta banda trouxe alegria para a vila tocando tanto músicas populares como religiosas. A capela foi ampliada e ornamentada. Marcial mais tarde foi indicado como o terceiro juiz de paz em Peçanha. Então Marcial começou as tratativas no sentido de que Chonim viesse a ser separado como um distrito. Com grande alegria, ele conseguiu isto em 1924 (OBERG, 1958, p. 18 a 20). No mito fundante de Chonin, referente à chegada de Marcelino, as categorias espaço e tempo encontram-se entrelaçadas. A descoberta de um novo espaço, no meio do mato, seria a única forma de reforçar a segurança da família e manter os valores sócio-culturais do grupo, no velho molde territorialista. Na impossibilidade de enfrentamento com a família Coelho, já plenamente estabelecida em Guanhães, tornou-se primordial a busca por um espaço a ser dominado, significado e territorializado onde a percepção de tempo circular pudesse refazer a ordem vivenciada na sociedade de origem mas que o colocasse numa posição privilegiada, refundando uma nova tradição. A partir de uma percepção circular de tempo a hierarquia original se conservou e a terra dos sonhos, alcançada após três dias de viagem, é descrita de forma edênica na qual prevalecem os encantos naturais e a pródiga fauna, tal como uma terra prometida, nos moldes bíblicos. O lugar dos sonhos já tinha alguns moradores esparsos que foram absorvidos por Marcelino que conduziu a todos como uma espécie de Moisés, todos em cooperação com os demais parentes da família Cunha. De acordo com o próprio discurso fundador a população cresceu mas não havia progresso, já que a perspectiva de tempo estava basi16 Seria mais razoável pensar-se na Câmara de Peçanha, que era vila desde 1881 e não de Governador Valadares que seria município somente 16 anos mais tarde [NT]. 82 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO camente atrelada à natureza e chega-se à meta desejada, a territorizalização de um espaço onde os Cunha vivenciassem sua segurança e se tornassem figuras centrais na localidade e nos arredores, o que não ocorrera em Guanhães. Nesse caso, o progresso representa um elemento perigoso que poderia romper com a busca de estabilidade e conservadorismo dos valores e costumes cotidianos. Os únicos movimentos que quebram o cotidiano se reduzem à busca da própria sobrevivência do grupo, a busca por produtos em cidades vizinhas que exigem a abertura de picadas e caminhos em direção a Teófilo Otoni. Esses esforços levaram Marcelino a contrair malária e, novamente, na perspectiva cíclica, ele faz seu sucessor, reafirmando um novo Moises e mantendo o mesmo estilo de vida. O novo eleito, Marcial, obedece aos desejos do sogro Marcelino e constrói a Capela, multiplica as fazendas sem separar o rebanho e alcança importância local ao participar da política e em outras instâncias sociais e culturais. Retomando Galimberti (2008, p. 902), conforme exposto acima, “no tempo cíclico não há futuro que não seja a pura e simples retomada do passado que o presente reforça”. b) Nada os intimidou: Proposta de construção de um frigorífico Em 11 de outubro de 1956, Niederauer, através do rádio fez este discurso: ‘Quero aproveitar esta oportunidade para falar aos moradores deste município, a todos os que vieram com a sincera intenção de fazer algo pelo bem comum, a todos os que amam o Paraná, como uma pequena parte de nosso imenso Brasil, aos que fizeram e estão fazendo algo pelo progresso de Toledo, enfim, aos homens de boa vontade que aqui vivem. Levamos 10 anos para alcançar este momento, em que, pela primeira vez, podemos trazer a público uma proposta concreta para a construção de um frigorífico em Toledo. Foram 10 anos de intensa labuta, cheios de dificuldades e esforços cansativos, pois foi em 1946, com a formação de Maripá e seus planos para a colonização de toda a Fazenda Britânia, atualmente o município de Toledo, que apareceu, entre muitos outros, o problema do escoamento dos produtos desta região. Este problema ainda permanece conosco, embora de forma menos aguda. Hoje vemos as folhas de fumo serem embarcadas para S. Paulo, via Guaíra, Porto Epitácio e a Estrada de Ferro Sorocabana. Teremos outros meios de transporte desde que os produtos apareçam. Mas, naqueles dias longínquos, quanto os primeiros homens desembarcaram dos caminhões junto ao rio Toledo, em abril de 1946, nada havia a não ser floresta, floresta e mais floresta. Hoje temos este milagre TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 83 que é Toledo, em vez de um acampamento de meia dúzia de homens, vindos de Farroupilha, do Rio Grande do Sul. Nada os intimidou, nem aos que os seguiram. A custa de seus eforços, em 1946, 1947 e 1948, foi-nos possível a construção de algumas estradas, serrarias e as primeiras casas. Depois seguiu-se a exportação de madeira, que trouxe algum dinheiro. Apareceram novas despesas, com a necessidade de se comprar máquinas e tratores, a construção de mais estradas e o levantamento topográfico das terras. Em 1949 e 1950, vieram os primeiros compradores de terras. Alguns indivíduos fracos logo desistiram, mas os mais ousados resolveram tentar a sorte, comprando uma ou duas colônias.17 Em 1951, os colonos apareceram em avalancha [sic]. Nos escritórios da Companhia trabalhamos muitas vezes até às 3 horas da manhã. Toledo começava a viver. Os anos de 1952 e 1953 deslizaram. Fez-se novas derrubadas e novos campos começaram a surgir aqui e ali. A produção de feijão ultrapassou as necessidades locais e as sobras foram exportadas para o Rio de Janeiro. Em 1954 e 1955, iniciou-se a produção de porcos, e os colonos tiveram que vendê-los. Surge então o Empório, em socorro aos colonos, comprando os porcos e remetendo-os para Ponta Grossa. Em 1956, houve um aumento inesperado no número de porcos, além de se iniciar a criação de gado, tudo isto exigindo mercado para a venda. E aí, o que aconteceu? Três navios americanos, com seus porões carregados de banha, apareceram no Rio de Janeiro. Esta banha, adquirida nos Estados Unidos pela COFAP, foi posta no mercado brasileiro a Cr$ 30,00 o quilo. Mais banha veio da Argentina, para ser descarregada em Porto Alegre. O resultado imediato do baixo preço da banha foi a queda do preço do porco no Brasil, de tal modo que os frigoríficos locais não podiam competir com o produto estrangeiro de baixo preço. Além disto, os frigoríficos começaram a limitar o número de porcos que compravam, alguns restringindo-se a, apenas, mil cabeças mensais. Esta situação trouxe dificuldades para o município, tanto para os produtores como para os comerciantes. Cada vez que mandávamos um caminhão carregado para Ponta Grossa, o preço do porco era baixado. O Empório então, resolveu mandar os porcos para São Paulo, a fim de serem vendidos aos açougueiros e aos matadouros. Mas isto resultou em maiores gastos em fretes. 17 As terras em Toledo foram divididas em lotes nas cidades com quadras de 100 metros de lado; ao redor das vilas ou projetos de cidades, pequenas chácaras de até 2,5 hectares e as colônias eram espaços maiores com até 25 hectares. Na obra referente a Toledo, Oberg chama de fazendas a estas subdivisões, provavelmente a partir do termo inglês farm, mas o mais correto seria mesmo sítios, quintas, pequenas propriedades rurais. 84 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Enquanto o Sr. Egon Bercht estudava as possibilidades técnicas da construção de um frigorífico aqui em Toledo, o Sr. Willy Barth provava que a única solução para o problema do porco era um frigorífico que nos permitisse a exportação de produtos já industrializados, em vez de vendermos os porcos vivos. Uma vez enlatados os produtos do porco, não importaria o tempo que demorasse para atingir os mercados consumidores ou de que tipo eram as estradas. O que interessava era que nossos colonos pudessem vender quantos porcos criassem que o município progredisse economicamente. O frigorífico projetado deverá ser grande, mas não demais. Considerando a atual e a futura produção de porcos, deve ter a capacidade para 200 a 250 porcos por dia, além de 10 a 15 cabeças de gado. O frigorífico deve ser construído de forma a permitir a expansão futura. Outra consideração de grande importância na formação da nova Companhia é a contínua solidariedade do povo, nesta área. Se cada um de nós procurasse se tornar independente e trabalhar só para si, estaríamos caminhando para trás. Devemos nos unir e trabalhar juntos, pois só unidos venceremos. Por esta razão é que o frigorífico deve ser construído pela conjugação de nossos esforços, pois de outra forma não seremos capazes de fazê-lo. Todos nós devemos participar da industrialização da matéria prima que nós mesmos produzimos. Dessa forma, os lucros do empreendimento não irão para os frigoríficos de Ponta Grossa, Curitiba e São Paulo, mas para o colono que derrubou as florestas, plantou o campo e criou os porcos. Quem mais que eles têm o direito aos lucros da industrialização? Esperamos ter de 300 a 500 acionistas,valendo cada ação mil cruzeiros ao par. Uma sociedade limitada é uma associação de pessoa e, como tal, exige, no caso de qualquer mudança contratual, que todos os seus sócios assinem o instrumento que determina tal mudança. A morte de um deles, por exemplo, poderá determinar um balanço geral de débitos e créditos. Imaginem um matadouro-frigorífico com 500 quotistas fazendo balanço cada vez que faleça um deles. Além disto, a responsabilidades dos quotistas é limitada ao capital total da companhia. Isto quer dizer que cada sócio é passível de responder pelas obrigações da companhia com o seu capital privado até o total do capital da companhia, no caso de outros sócios não contribuírem com as sua quotas. Esse tipo de companhia só é recomendado quando o número de associados é muito pequeno. O frigorífico pode ser também criado sob a forma de cooperativa. Mas quem, atualmente, quer este tipo de organização? E, além disso, como poderíamos arranjar entre os criadores de porcos desta região, 20 mil contos, porque um frigorífico moderTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 85 no de acordo com as estimativas do Sr. Egon Bercht, custará esta soma! Uma cooperativa, neste caso, não é aconselhável. Estudamos isto com cuidado e atenção, atendendo sempre em primeiro lugar os interesses do município. Chegamos assim à conclusão que o que queremos é uma Sociedade Anônima: cada pessoa será responsável somente pelas ações que venha a subscrever, podendo um acionista comprar quantas ações deseje, em seu próprio nome ou no de outra pessoa. E mais importante ainda, o acionista estará sempre protegido pelas leis que regulam as atividades da Companhia. Uma vez decidido ser a Sociedade Anônima o que queremos, surge a questão de como estabelecer esta companhia que instalará o frigorífico, nosso frigorífico, o frigorífico de Toledo. Logo que o Sr. Egon Bercht iniciou seus estudos no Rio Grande do Sul, várias entidades industriais e comerciais manifestaram o seu interesse em participar desta empresa. Ele, no entanto, não assumiu nenhum compromisso, apesar de as ofertas haverem excedido ao capital necessário. Queremos saber, em primeiro lugar, até que ponto o povo deste município está preparado para fazer investimentos. Somente depois que nosso povo tenha se comprometido, é que o restante das ações será posto a venda em Porto Alegre. É por esta razão que queremos fazer um inquérito, que mostrará quanto cada habitante está disposto a investir. Obtida esta informação, as ações da companhia serão postas a venda, logo que sejam publicados os seus estatutos. O pagamento das ações subscritas por cada acionista pode ser feito em 4 prestações. Diz a Lei que 10% do capital subscrito deve ser pago no ato da subscrição e depositado no banco. Um mês depois, mais 15% deve ser depositado. Novo pagamento deve ser feito 6 meses mais tarde. O pagamento final vencerá em 18 meses depois da fundação da companhia. Concluindo esta palestra, coloco-me à disposição de qualquer pessoa que deseje maiores detalhes. Também pode-se obter informações com os Srs. Egon Bercht e Willy Barth, nos escritórios da Maripá (OBERG; JABINE, 1960a, p. 36 a 39). Os termos do discurso de Niederauer denotam uma perspectiva em que estão presentes pelo menos quatro dimensões importantes, que buscaremos sinalizar aqui, ainda que rapidamente. Primeiro, uma perspectiva de um relacionamento territorial simbólico que vai bem além das cercas de Toledo, isto é, de um município perdido nos sertões. Ele menciona o fato de se querer fazer algo para o bem do Paraná, para o Brasil. No caso de Toledo, pelo que se deduz da obra de Oberg, 86 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO a comunidade não esperava muito das autoridades, mas também não ficavam esperando delas aquilo que eles poderiam fazer.18 Um segundo aspecto, é a necessidade de ampliar os horizontes dos territórios comerciais com as relações ou vínculos empresariais com Ponta Grossa e até com São Paulo, a centenas de quilômetros de distância. Este horizonte que se alarga que de início tem em vista um espaço para se colocar as mercadorias, por outro lado, deixa entrever certa admissão de contaminação pelo progresso; era uma estrada de duas mãos. O passado não é esquecido, mas ao contrário, é retomado na forma da memória de um tempo de empenhos, de lutas e mesmo de sofrimentos que não devem ser considerados como tendo um sentido em si mesmos, mas que devem remeter a um horizonte de futuro que possa de algum modo dar sentido ao esforço despendido. São vistos como passos ou atividades feitos em termos de um projeto sonhado e mesmo desejado. Um quarto aspecto que não se deve deixar de lado, é a clara determinação de se depositar tanto a responsabilidade quanto a oportunidade nos ombros dos próprios moradores. Não se propõe que um capitalista venha fazer para eles aquilo que deve ser feito por eles. De um certo modo, com isto, o futuro permanece em suas mãos. O tempo projetado desdobra-se num espaço ocupado (território) e Niederauer convoca então a que se mantenha a autonomia pela assunção desta nova empresa. No discurso do Diretor apresenta-se uma perspectiva de tempo projetual, nos termos de Galimberti, visto acima, onde são convocados os homens dispostos ao progresso de Toledo. A proposta clara é a da construção de um frigorífico, solução pensada após se vivenciar o período das serrarias, da exportação da madeira, cujo lucro fora investido em novas despesas com máquinas e tratores usados para preparar a terra aos novos compradores. Os fatos expostos no discurso proferido na rádio, remontava ao milagre de Toledo, numa demonstração clara de reconhecimento ao pequeno grupo de homens que abriu uma picada floresta a dentro. O processo de territorialização que permeou o surgimento de Toledo relaciona-se, desde o início, com a idéia de progresso numa perspectiva de tempo futuro. A proposta do frigorífico surge como 18 As estradas foram construídas e mantidas pela MARIPÁ S.A., a educação, em grande parte, estava nas mãos de entidades privadas, etc. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 87 mais um projeto, dentre outros tantos anteriores, que buscaram uma expansão futura. O surgimento da Maripá não visava rememorar um tempo/espaço anterior mas um novo tempo/espaço. Considerações finais Nesta proposta temos a oportunidade de trabalhar o percurso de duas situações sociais a partir daquilo que Weber chama de ciência da realidade. Dada a complexidade e a processualidade da realidade humana, a mesma requer que se admita a possibilidade de inúmeros percursos ou abordagens. Isso é necessário para que a mesma seja respeitada enquanto objeto de conhecimento. Com todos os limites naturais de uma empresa deste tipo, o presente ensaio, lançando mão de conceitos da história, da geografia, da antropologia, da psicologia cultural e da filosofia, busca compreender – e não explicar – este objeto, respeitando a sua natureza complexa e processual; no primeiro caso, uma vez que não é possível reduzi-lo a uma única dimensão, e no segundo, por ser histórico. Nos termos de Weber, importa compreender, “a conexão e a significação cultural de suas diversas manifestações em sua configuração atual, de um lado, e as razões que fizeram com que historicamente elas se desenvolvessem sob esta forma e não sob outra, de outro lado” (WEBER, 1968, p. 170-171 apud COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 26). Esse esforço de compreensão das duas realidades, tanto a de Chonim quanto a de Toledo, nos apresenta pontos comuns e divergentes que nos levam a intuir, a partir de duas matrizes de perspectiva de mundo, o delineamento de percursos distintos tendo em mente os apontamentos levantados por Oberg. As matrizes americanista e iberista, de acordo com Morse (1988), poderiam ser complementadas com o territorialismo marcante das sociedades do espaço em contraponto às sociedades do tempo, nos dizeres de Barbosa Filho (2000). Desse enfoque desdobramse um emaranhado específico de relações entre o homem, o tempo e espaço, o processo de territorialização e a técnica. Essas matrizes e conceitos se fundem e se reconfiguram no gesto fundante inicial como os fios condutores que emprestarão sentido às representações das ações seguintes; e, se quisermos, moldarão uma percepção de tempo e espaço específica, conforme vislumbramos em Chonim e Toledo, exigindo de qualquer pesquisador uma perspectiva holística. 88 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO A análise dos discursos fundadores é desafiadora, especialmente quando requer uma perspectiva interdisciplinar e, por isso, consideramos a nossa incompleta se comparada àquela exigida pelo melhor estilo das análises realizadas pelos Annales, especialmente as de Braudel (1987). Dentro desse estilo, “as relações homem-meio, o reconhecimento da mudança e da permanência dos aspectos que compunham a paisagem de um determinado lugar, identificando a constituição física da mesma aliada ao comportamento social e cultural dos habitantes” se constituíram na principal ênfase dada pelos Annales em suas explorações (RIBEIRO, 2007, p. 92). Em conjunto com as obras de Bloch (2001) e Febvre (1991), Braudel destaca não só a dimensão temporal mas vincula a sociedade a um determinado espaço. Mas, não podemos deixar de reconhecer o esforço de tantos outros autores que, a partir de suas áreas de conhecimento, tentam há décadas trabalhar com o desafio de compreender a articulação do homem com o meio em que vive e com o tempo que lhe é perceptível. Na trilha aberta por Braudel, Paul Claval (1999) reanimou os estudos culturais na geografia francesa e se tornou a referência às atuais tendências da chamada new cultural geography (HENRIQUES, 1997, p. 135). Fundada por Carl Sauer, na década de 30, a Geografia Cultural que vincula o espaço à cultura busca em sua vertente mais radical tomar “a paisagem como um texto que deve ser lida, analisada, interpretada e explicada como documento social (...) como configuração de símbolos e signos leva a metodologias mais interpretativas do que morfológicas (...) específica para a leitura de imagens – representações do espaço (...)” (MIRANDA, 2007, p. 96). Complementando a complexidade da aproximação entre as categorias tempo e espaço, a proposta de Saquet (2006, p. 81) de uma abordagem (i)materal do território nos parece a mais válida no momento para a reflexão acerca de Chonim e de Toledo. De acordo com o autor, Espaço, tempo e território são conceitos e processos do real intimamente articulados. Não estão separados, mas são diferentes. O homem, em sociedades distintas, está (no), produz (o), é (o) e percebe o território, arranjando-se em tramas e relações sociais, que são (i)materiais, ou seja, econômicas, políticas, culturais e naturais ao mesmo tempo. No homem reside a síntese do social e do natural, como ser genérico, biológico e socialmente, e a síntese da objetividade e da subjetividade, do (i)material. Somos objetivos e subjetivos concomitantemente, ou seja, não somos TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 89 e nem vivemos somente a matéria ou a idéia em movimento (SAQUET, 2006, p. 82). Em outras palavras, cabe ao agente individual o papel de única entidade onde as diferentes esferas de ação estão simultaneamente presentes e em contato. Estas esferas podem correr paralelas e movidas por aquilo que Weber chama de “legalidades próprias”, sem a determinação efetiva de uma sobre as demais. Assim, a “análise das relações entre elas (ou melhor, entre seus sentidos) só é possível com referência a essa entidade que as sustenta pela sua ação e é a portadora simultânea de múltiplas delas: o agente individual” (COHN, 1991, p. 29). É, portanto, somente através do sentido “que podemos apreender os nexos entre os diversos elos significativos de um processo particular de ação e reconstruir esse processo como uma unidade que não se desfaz numa poeira de atos isolados. Realizar isso é precisamente compreender o sentido da ação” (idem, p. 28). As pistas de Morse quanto às matrizes ibérica e americanista, de Barbosa Filho quanto à sociedades do tempo e do espaço e, as de Galimberti, sobre a percepções de tempo, nos levam a pensar essas duas categorias – tempo e espaço – a partir do sentido que os agentes lhe emprestam e das relações que estabelecem. Chonim e Toledo relacionam-se com o espaço. Mas qual é o sentido e a motivação dessa relação para ambos? O primeiro relaciona-se com o espaço tendo como dimensão o passado; o segundo, a dimensão do futuro. Há nos dois casos, a fixação dos homens no espaço, que logo ganha um significado e se transforma em territórios mas essa fixação não se dá com a mesma dimensão de tempo. O que as tornou diferentes? O que estaria subjacente a estas duas matrizes e dimensões temporais? Muito provavelmente estamos lidando com percepções distintas do tempo: o circular e o projetual. Isto posto, retornemos ao início de nossa reflexão onde imaginativamente, pensáramos nos atuais habitantes de Toledo e de Chonim de Cima e em hipotéticas relações de desconhecimento mútuo. Lancemos mão, mais uma vez, de um recurso fantástico para tentarmos nos aproximar dos sentidos das ações aqui descritas: vamos tomar dois moradores um de Toledo e outro de Chonim de Cima e congelá-los no tempo lá na década de 1950. Digamos que estes moradores despertassem depois 90 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO de 60 anos. Certamente o morador de Chonim de Cima, ao despertar, estaria quase em casa mesmo nos dias de hoje no ainda Distrito de Governador Valadares. O que realmente seria muito diverso para ele, hoje em dia, em relação aos primeiros anos da década de 1950? Talvez carros mais modernos, a televisão, o computador etc. Mas o estilo de vida num todo, as estradas, os moradores, a educação e os seus costumes não sofreram mudanças tais que ele em pouco tempo não pudesse de novo levar a vida de antes. Já o morador de Toledo, certamente, não deixaria de se espantar com o que veria, mas graças à sua perspectiva das coisas, talvez este susto não fosse assim tão grande. Tudo o que houvesse de novo, de certo modo, já estava morando em sua imaginação do futuro de Toledo desde a sua juventude. Mas invertamos a situação, vamos descongelar o choninense em Toledo: como será que ele se sentiria? Talvez até dissesse: onde foi que erramos? Rodovias, indústrias, comércio, universidades, aviões, escolas, jornais, hospitais etc. Que pensaria o congelado toledano se ele despertasse nos dias de hoje em Chonim de Cima? Talvez dissesse também: onde foi que erramos! Ainda estradas de terra, educação e saúde precárias, falta de emprego etc. A territorialização que redundou da clareira inicial certamente não faria parte de das concepções de mundo destes descongelados invertidos. Pensemos, ainda, na frase hipotética ao despertar. Atrás de errar está num primeiro momento uma questão que se contrapõe ao acertar. Mas, talvez o mais correto seja pensar-se que eles tenham em mente mesmo algo relacionado ao caminhar, ao percurso. Onde foi que nos desviamos do caminho e projeto iniciais! Tanto para Chonim de Cima como para Toledo havia uma proposta de um caminho e mesmo de um caminhar inicial que, bem ou mal, os levaria a algum lugar – uma topia na utopia – que de algum modo seria a terra dos sonhos. Mas para um a terra dos sonhos era espacial e quanto menos mudasse tanto melhor, dentro de uma percepção de tempo circular; para o outro, a terra dos sonhos incluía a idéia de quando mais mudasse tanto melhor, dentro de uma percepção de tempo projetual. Uma vez o tempo remete a um passado que permanece, noutra vez, remete a um futuro que acontece. Para um o novo é ameaçador, para o outro, o novo é buscado e até inventado (Bergson, 1984). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 91 Fonte PREFEITURA MUNICIPAL DE GOVERNADOR VALADARES. Plano de Desenvolvimento Rural Sustentável de Governador Valadares. Governador Valadares, 2002. OBERG, K. Chonim de Cima: A Rural Community in Minas Gerais, Brazil. Rio de Janeiro: USOM/Brazil, 1958. OBERG, K.;T. JABINE, Toledo: Um município da fronteira oeste do Paraná. Rio de Janeiro: SSR, 1960. Bibliografia AGUIAR, R. A. R. de. Os filhos da flecha do tempo: Pertinência e ruptura. Brasília: Letraviva, 2000. BARBOSA FILHO, R. 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Em reação à insuficiência da estrutura sanitária herdada do Império, capaz de fazer frente às enfermidades, políticos, médicos e higienistas enfatizavam a necessidade de reformas e maior presença do Estado nessa área. Além da unificação e ampliação dos serviços de higiene federais, com a criação do Departamento Nacional de Saúde (1920) as discussões pelo aprofundamento das ações nesse campo tomaram corpo com o movimento pelo saneamento dos sertões (FARIA e CASTRO SANTOS, 2003:21-29, HOCMAN, 1998). O movimento pelo saneamento no Brasil procurou reunir esforços de médicos e intelectuais em uma cruzada contra as doenças que atingiam o país, visto como um “imenso hospital”. De acordo com as diretrizes nacionais de saúde pública, em vários estados ocorreram reformas com o intuito de combater endemias, que pelo seu impacto econômico e social eram consideradas responsáveis pelo atraso do país, como o impaludismo e ancilostomíase (LIMA e HOCHMAN: 1996). Conforme se pretende mostrar neste trabalho, em Minas Gerais houve significativos esforços para a constituição de uma organização sanitária com o objetivo de combater as enfermidades e problemas de saneamento em vários municípios mineiros. A partir dos relatórios de saúde produzidos por médicos sanitaristas, procura-se discutir como a construção da saúde pública foi inseparável da questão territorial e, ao 1 Este texto é produto das pesquisas realizadas no Arquivo Público Mineiro e faz parte do projeto: Saúde, higiene e sociedade: o sanitarismo em Minas Gerais (1889-1930) e do projeto “Ocupação e Modernidade: Processos de Territorialização no Vale do Rio Doce”, financiados pela FAPEMIG. 2 Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Universidade Federal de Uberlândia/MG. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 95 mesmo tempo, identificar os principais aspectos do sanitarismo no Estado e seus pressupostos. A organização sanitária e a questão territorial Em fins do século XIX, Minas Gerais enfrentava vários problemas médicos-sanitários. Tais problemas resultavam, em grande parte, da ausência de uma estrutura e políticas de saúde capazes de enfrentar os desafios colocados pelas epidemias e pela extensão territorial do Estado. De maneira geral, a organização dos serviços de saúde era incipiente. O Serviço Sanitário havia sido regulamentado desde 1895 e compunha-se de um Conselho de Saúde Pública e Diretoria de Higiene - encarregada da execução do regulamento sanitário -, delegacias de higiene e vacinação instaladas nos municípios. Desativado em 1898, o Serviço só foi reestruturado em 1910. A Diretoria de Higiene possuía várias atribuições, tais como inspeção sanitária em habitações e estabelecimentos, como fábricas e escolas, e outros serviços a exemplo do de estatística demógrafo-sanitária e desinfecção. Na década de 1910, Belo Horizonte contava com apenas duas instituições na área médica: a Faculdade de Medicina e a Fundação Ezequiel Dias, filial do Instituto de Manguinhos que desempenhou importante papel nas questões sanitárias (TORRES, 2007:124-134). Outra parceria foi com o Instituto Pasteur, de Juiz de Fora, para onde eram encaminhados os “indivíduos pobres” atacados por animais acometidos de raiva. Os relatórios dos primeiros anos de funcionamento da Diretoria de Higiene após sua reestruturação oferecem um retrato das dificuldades de trabalho enfrentadas pelo então diretor Zoroastro Rodrigues. No relatório referente a 1910, ele reclamava do “excesso de trabalho, num departamento de administração pública que só agora começa a ser instalado.” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1911:3) Nesse período, o conhecimento das condições endêmicas do estado dependia de notificações das Câmaras Municipais. Na maior parte das vezes, as providências se resumiam em enviar médicos para municípios e regiões assolados pelas doenças. Um Exemplo é a notificação que o presidente da Câmara de Curvelo fez para a Diretoria de Higiene sobre casos de febre amarela e varíola em Curvelo. Em resposta, Zoroastro Rodrigues enviou o Dr. Samuel Libânio, médico auxiliar da Diretoria de Higiene, para medicar os doentes 96 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO da região em penosa viagem nas margens do rio Picão (Relatório da Diretoria de Higiene, 1911:26-27). Entretanto, diante da precariedade dos recursos, os médicos pouco podiam fazer. Havia também carência de mão-de-obra para a realização dos serviços da Diretoria, como o de estatística sanitária, realizado pelo próprio Zoroastro com a publicação de um boletim mensal e um anuário. O diretor afirmava não dispor de um só auxiliar, sendo impossível realizar a estatística de outras cidades (Relatório da Diretoria de Higiene, 1913:17). Apesar da existência de um serviço de estatística da Diretoria de Higiene, com a criação da Diretoria de Saúde Pública, em 1927, que se constituiu uma Inspetoria de Demografia e Educação Sanitária. O serviço de estatística se destinava à apuração de dados relativos à nupcialidade, natalidade e mortalidade e abrangia 28 cidades, além de Belo Horizonte, conforme é possível verificar nos relatórios produzidos entre 1928 e 1935. Outro entrave residia no impacto das finanças públicas sobre a saúde. No relatório de 1915, Zoroastro Rodrigues afirmava que se acaso fossem “outras as condições econômicas e financeiras, deveria o Estado volver desde já suas vistas para a solução de problemas vitais de saúde pública”. O médico se reportava na ocasião à necessidade do combate sistemático de moléstias como o impaludismo, a doença de chagas e a ancilostomose (Relatório da Diretoria de Higiene, 1916: 20). A situação calamitosa da saúde em Minas Gerais mereceu atenção especial do sanitarista Belisário Penna. Em viagem ao norte de Minas, em 1907, requisitada pela Estrada de Ferro Central do Brasil para a profilaxia da malária, o sanitarista pôde verificar a existência de famílias de trabalhadores que viviam à margem da estrada que eram acometidas pela tripanossomíase provocada pelo “barbeiro”. Em suas observações sobre Minas Gerais, visto como “o Estado da doença”, salientou: “É impressionante e doloroso o contraste entre a privilegiada natureza do território mineiro, e o aspecto da miséria orgânica, de doença, e da tristeza da maioria de seus habitantes”. Observava que, ao lado de uma natureza privilegiada, “com o clima invejável” e com a pujança fauna e da flora havia uma população “degenerada de papudos, de cretinos, de aleijados, vítimas do ‘barbeiro’, ou de cacheiticos e estafados, vítimas do impaludismo e ancilostomíase”, legiões de doentes que viviam “miseravelmente sem nada proTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 97 duzir”. Esse diagnóstico era atribuído ao descaso dos governos estadual e municipal mineiro no tocante aos assuntos de saúde pública. Ainda segundo apontava o sanitarista, pouca verba era destinada à higiene em comparação com outros estados (PENNA, 1918: 9-10). As considerações de Belisário Penna eram compartilhadas pelos médicos que atuaram em Minas Gerais e que reconheciam as dificuldades para resolver os problemas sanitários no Estado. Além da reclamada falta de verba, para as autoridades médicas a extensão territorial de Minas se colocava como um dos principais obstáculos do saneamento. Nesse sentido, o diretor da Diretoria de Higiene, Samuel Libânio, chamava atenção para o problema das grandes distâncias e difíceis vias de comunicação: “nessa enorme extensão variam imenso as condições topográficas, e surgem a cada passo, problemas higiênicos regionais, de feição complexa e que urge resolvidas científica e eficientemente” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1920:11). Em 1918, foi dado um passo importante para o enfrentamento dos obstáculos de saneamento e resolução dos problemas sanitários de Minas, quando o Governo firmou convênio com a Fundação Rockefeller a fim de determinar-se a extensão e intensidade da ancilostomíase e seus efeitos na população do campo. A criação do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural para o combate às endemias nas zonas rurais do Estado resultou desse acordo. No Brasil acordos de apoio técnico e científico foram assinados em alguns estados como São Paulo, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Minas Gerais. As áreas de atuação da Fundação refletiam e reforçavam diferenças regionais na medida em que favoreciam estados em situação econômica e política favorável (FARIA, 2002). Minas Gerais foi um dos estados que mais recebeu investimentos em razão de sua situação política e econômica e das condições de trabalho oferecidas. Os médicos da Comissão deram apoio técnico no combate às verminoses em vários municípios mineiros. Imbuídos de uma missão científica, realizavam exames de fezes, diagnósticos e distribuição de medicamentos aos infectados (MARQUES, 2004:9-10). Em 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, o Governo Federal passou a organizar e financiar metade dos serviços de profilaxia rural e dos programas de educação nos estados brasileiros, o que significou maior ampliação da esfera do poder do Governo 98 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Federal em matéria de intervenção sanitária (SANTOS e FARIA, 2003:3135). Conforme o acordo assinado entre o Departamento Nacional de Saúde Pública e o representante do estado, firmado em 29 de outubro de 1920, Minas Gerais “aceitava promover a aceitação pelos municípios de todas as leis sanitárias e disposições do Departamento de Saúde Pública em relação aos serviços de saneamento e profilaxia rural” (Arquivo Público Mineiro (APM). Série 10: Saúde e Assistência Pública). Samuel Libânio, Diretor de Higiene de Minas Gerais na época, foi um dos defensores da reforma sanitária dos anos 1920, que tinha como um dos seus principais propósitos a campanha contra as endemias das áreas rurais. Segundo ponderava o médico, todos os progressos realizados em Minas “em matéria de administração sanitária podem ser aferidos pelo seu grau de centralização” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923:9). O Serviço de saneamento rural adotou em Minas a organização de postos e subpostos, sendo criado pelo decreto 6.051 de 1922 o Serviço Permanente de Higiene Municipal. Para Samuel Libânio esse serviço representava o esforço em “prol de uma organização sanitária que difunda seus benefícios de maneira mais efetiva e duradoura” por todo o território mineiro (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923:9). Os postos de higiene possuíam várias atribuições, como o combate às endemias locais e a surtos epidêmicos, inspeção médico-sanitária nas escolas, fiscalização de gêneros alimentícios, higiene urbana e rural, entre outros. Tais estabelecimentos contariam com todas as instalações indispensáveis, além de um laboratório local para pesquisas (Mensagem do Presidente Arthur da Silva Bernardes 1922:49). Os postos de higiene contavam com a cooperação técnica da Comissão Rockefeller. O Diretor de Higiene era responsável pela nomeação de todo o pessoal administrativo, enquanto a Comissão ficava responsável pela indicação de um subchefe com função técnica. A contribuição financeira realizar-se-ia no prazo de cinco anos, terminado o prazo duas outras partes contratantes (o município e o estado) assumiriam a responsabilidade do custeio do serviço (Relatório da Diretoria de Higiene, 1922:9). De forma geral, o papel exercido pelos médicos ligados à Fundação Rockefeller teve receptividade positiva por parte dos responsáveis pelos postos de higiene. Em relatório enviado a Samuel Libânio em maio de 1924, E. Jansen de Mello, médico responsável pelo posto de Barbacena, salientava a contribuição da Campanha da “beneTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 99 mérita Fundação Rockefeller” na campanha contra as verminoses (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924:116). Buscando otimizar os serviços de saúde, a Diretoria de Higiene passou a ser denominada Diretoria de Saúde Pública, pelo decreto n. 8.116, de 31 de dezembro de 1927. Dessa maneira, eram confiadas aos municípios as “providências que se tornarem necessárias à saúde pública”. A reorganização dos serviços de saúde pública subordinava-se ao “princípio de descentralização técnica e administrativa”, tendo em vista a extensão territorial do estado e as difíceis comunicações com o interior. Nesse contexto, os centros de saúde desempenharam relevante papel em vários municípios. Em 1928, além de Belo Horizonte, havia essas unidades em Barbacena, Juiz de Fora, Três Corações, Teófilo Otoni e Uberaba. (Mensagem do Presidente do Estado Antonio Carlos Ribeira de Andrada, 1927: 80-84). A organização sanitária de Minas Gerais adotou modelo semelhante aos de outros estados, como São Paulo, que tinha como um de seus pilares os centros de saúde. Na verdade, esse modelo de assistência à saúde refletia a influência norte-americana. Conforme chama atenção Lina Faria, o termo centro de saúde (health Center) foi utilizado inicialmente para denominar postos de assistência à infância e posteriormente passou a designar agrupamento de serviços médicos e de assistência sanitária. Os centros comunitários de saúde atingiam várias cidades norteamericanas nas décadas de 1920 e 1930. A vinda da Comissão Rockefeller para o Brasil a partir de 1916 imprimiu uma mudança nos trabalhos sanitários nas áreas rurais de São Paulo, principalmente no que diz respeito à concepção e instalação dos postos municipais e centros de saúde no estado (FARIA, 2007:113-134). Conforme enfatiza igualmente Carlos Eduardo Aguilera Campos “as bases científicas e filosóficas a nortear o trabalho nesses estabelecimentos sanitários baseavam-se na epidemiologia, na educação sanitária e na administração sanitária”. As unidades de saúde envolviam uma nova metodologia, fundamentada na subdivisão das cidades em distritos sanitários, visando um maior conhecimento, controle e profilaxia das doenças (CAMPOS, 2007:888). Em 1930, Ernani Agrícola, então Inspetor dos Centros de Saúde de Minas Gerais, via de forma otimista a adoção desse sistema de organização sanitária: “Os centros de saúde e postos de higiene são unidades 100 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO sanitárias que correspondem satisfatoriamente às necessidades modernas para o desenvolvimento e aperfeiçoamento dos trabalhos de saúde pública” (Apud FARIA, 2002:583). Os vários serviços executados por esses estabelecimentos podem ser exemplificados pelo Centro de Saúde de Belo Horizonte. Este contava com serviço de propaganda e educação sanitária, saneamento (visitas nas casas, melhoramentos), exames laboratoriais, higiene pré-natal e infantil, serviço de nariz, vigilância sobre os que vendem ou manipulam gêneros alimentícios, amas, barbeiros, serviço antivenéreo, entre outros (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1920:26-30). Em 1932, Minas Gerais contava com a seguinte estrutura sanitária: um centro de saúde na capital, oito centros no interior, quatorze postos de higiene, dez sub-postos, um dispensário antivenéreo anexo ao centro de saúde da capital, um instituto Pasteur em Juiz de Fora, um serviço anti-rábico na capital, um laboratório bromatológico e de pesquisas clínicas, quatro hospitais regionais, serviço de malária, Centro de Estudos e Profilaxia da lepra, o qual compreendia um dispensário central, o hospital de Lázaros de Sabará e Colônia Santa Isabel (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1932:5). Estratégias de saneamento do território mineiro Para compreendermos as ações de saneamento em Minas Gerais nas primeiras décadas do século XX é relevante considerar o papel das observações realizadas in loco pelos médicos sobre as condições de vida das populações. O lugar de destaque conferido nos relatórios médicos às descrições acerca das condições sociais, ambientais e geográficas como fatores indissociáveis das enfermidades sugerem a conciliação do desenvolvimento da microbiologia no Brasil com a tradição científica dos estudos de campo. Ao analisar os relatórios produzidos a partir das viagens de sanitaristas, Nísia Trindade Lima afirma que a busca de conhecimentos advindos da geografia, da cultura e da história, fundamentais para a compreensão da incidência de determinadas doenças e sua distribuição no tempo e no espaço, favoreceram perspectiva mais ampla sobre as populações com que os médicos estabeleceram contato, muitas vezes como efeito não antecipado de suas atividades (LIMA, 2009:234) Tais considerações podem ser aplicadas ao caso de Minas Gerais. Nesse sentido, os relatórios de saúde elaborados pelos médicos procuTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 101 ravam evidenciar que as enfermidades eram resultantes das condições geográficas, sociais e econômicas das populações. Na década de 1920, sob ordem da Diretoria de Higiene, médicos realizaram viagens e inspeções sanitárias em diversas regiões do Estado, com o objetivo de conhecer melhor as condições nosológicas do território mineiro e elaborar planos de saneamento. Foi com esse propósito que, em 1920, uma comissão foi designada pelo médico inspetor Dr. Mello Teixeira, em companhia do médico chefe do oeste, Dr. Antonio Viegas, realizou viagem nas linhas Estrada de Ferro Oeste de Minas. Para o mesmo fim, o Dr. Ernani Agrícola foi enviado a percorrer a Estrada de Ferro Vitória Minas, na zona do Rio Doce. No relatório da inspeção médica realizada na Estrada de Ferro do Oeste de Minas, sobressai a percepção de uma população sem assistência vivendo em precárias condições de habitações e acometida pelo impaludismo e mal de chagas. O plano de saneamento a ser aplicado nas regiões cortadas pela ferrovia incluía construção de casas com a obrigação da construção de fossas segundo determinação do médico, obras de engenharia sanitária e quininização dos funcionários. Já na região do Rio Doce, Ernani Agrícola recomendava a criação de um Posto central em Figueiras, subposto de medicamentos em Aimorés e Cachoeira Escura e a utilização de vagão posto para atendimento aos funcionários e população da região (Relatório da Diretoria de Higiene, 1921:224-229). Em 1921, o Dr. Eder Jansen de Mello foi igualmente designado para proceder ao estudo das condições sanitárias e da organização de um combate as endemias na Estrada de Ferro Central do Brasil (Ramal de Montes Claros). Em seu relatório salientava a necessidade de utilização de carros-postos, construção de fossas sanitárias, trabalhos de hidrografia a serem realizados pela Estrada e quininização preventiva de funcionários. (Relatório da Diretoria de Higiene, 1922: 142). A utilização de vagões e postos fluviais em lanchas permitia que a assistência médica chegasse a pontos isolados, que margeavam as ferrovias e os rios: Percorrendo, constantemente, as pequenas localidades onde a permanência custosa de um posto não se justificaria, vão eles socorrendo em medicamentos e conselhos higiênicos, os mais necessitados do Estado, estabelecendo relações entre a Comissão e 102 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO os mais obscuros obreiros do solo mineiro, párias em matéria de saúde e vigor físico (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923: 21) Os médicos assumiam uma perspectiva missionária, levando a ciência e a civilização aos sertões. Conforme salientava Samuel Libânio “a ambulância sanitária, o posto móvel, o hospital permanente representam as etapas sucessivas da obra de conquista que se consolida através da redenção da saúde do nativo (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924:3). As autoridades governamentais e médicas acreditavam que não bastava a aplicação de medicamentos se não fossem modificadas as condições do meio. Nesse sentido, o governador Fernando de Mello Vianna, no relatório de 1925, considerava que a campanha contra o paludismo só obteria sucesso caso fossem melhoradas as condições econômicas das regiões atacadas pela morbidade (Mensagem do Presidente de Estado Fernando de Mello Vianna, 1925: 171). Nesse contexto, as obras de saneamento eram consideradas formas de intervir nas condições do meio relacionadas à propagação das doenças. A esse respeito, Samuel Libânio observa que eram largos os tratos de nossa terra que têm seu progresso retardado, a sua prosperidade econômica entibiada por causas desconhecidas, por males removíveis, para cuja erradicação se tem consertado planos de saneamento (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924:5). A profilaxia da malária e de outras enfermidades era realizada mediante a construção de casas de alvenaria e obras de hidrografia. As colônias de trabalhadores agrícolas, concebidas desde fins do século XIX para viabilizar a fixação do imigrante, serviam como modelo para as medidas de saneamento a serem adotadas. Nesse sentido, é visível a preocupação dos médicos com a aclimatação do estrangeiro e com as condições de saúde dos trabalhadores agrícolas que residiam nos núcleos. Em 1920, foi nomeada uma comissão constituída por Ernani Agrícola e dois auxiliares para realizar a inspeção sanitária na “fazenda modelo” Álvaro da Silveira, em Martinho Campos. O plano a ser adotado previa medidas para impedir a propagação da malária, como execução de obras de hidrografia e profilaxia individual dos colonos, com quininização e defesa da habitação contra o mosquito transmissor (Relatório da Diretoria de Higiene, 1921:208-210). Várias fotografias foram reproduzidas nos relatórios pelos sanitaristas com o intuito de demonstrar a eficácia das obras realizadas no TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 103 entorno das ferrovias e nas colônias bem como os tipos de construções que deveriam ser adotadas como modelo. Uma das fotografias trazia em primeiro plano a “habitação primitiva” feita de pau-a-pique e, ao fundo, a casa de alvenaria, simbolizando o contraste entre o atraso e a modernidade. Além das obras realizadas pelo governo estadual, alguns municípios possuíam leis que regiam os serviços permanentes de higiene e saneamento. Em dois de dezembro 1919, por exemplo, foi sancionada uma lei na Câmara de Santa Rita de Sapucaí que tornava obrigatória a construção de “latrinas higiênicas de acordo com os tipos fornecidos pela autoridade competente, devidamente instalada a rede geral”. A lei previa ainda que a Câmara poderia construir fossas e instalações sanitárias “que seriam pagas pelos proprietários mediantes prestações mensais”. Reforçando tais diretrizes, em correspondência encaminhada à Secretaria do Interior pelo subprocurador Geral do Estado, Fernando de Mello Vianna, expedida em vinte e sete de setembro de 1920, declarava: compete às “municipalidades regular a higiene e salubridade públicas locais, nos seus estatutos e posturas (...) e pode ser o proprietário compelido a construir fossas, na zona suburbana, ou pagá-las no perímetro urbano, sob as penas da lei” (APM. Série 10: Saúde e Assistência Pública). A inexistência de uma estrutura sanitária foi objeto da preocupação de vários médicos. O Dr. Eder Jansen de Mello, chefe do posto de higiene municipal de Barbacena, via na necessidade de instalação de fossas, o mais “importante problema sanitário de Barbacena” em razão da ausência de rede de esgotos naquela cidade (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924:166) Outros serviços de saúde de relevância eram realizados em vários municípios mineiros. Os médicos ligados ao Serviço de Profilaxia e Saneamento Rural, em parceria com a Fundação Rockefeller, realizavam exames e medicação das pessoas. No relatório referente aos anos 1930 e 1931, há menção aos trabalhos dos médicos da Comissão no combate de febre amarela, que havia realizado um trabalho de vigilância de focos em vinte e três localidades no norte do Estado. Segundo o relatório, a notificação de casos em Corinto só se tornou possível depois que a comissão instalou postos de viscerotomia e enviou um médico “a fim de colher sangue das crianças de diversas idades, em várias localidades do norte” (Relatório da Diretoria de Saúde, 1932: 49). 104 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Compulsando os relatórios, observa-se que apesar dos serviços de profilaxia voltados para o combate da febre amarela, doenças venéreas e assistência aos leprosos, na maior parte dos relatórios há uma ênfase nas enfermidades causadas pelas infestações de vermes, principalmente a ancilostomíase. Se considerarmos que a construção de latrinas também objetivava combater as parasitoses, pode-se considerar que houve um grande investimento na profilaxia das doenças causadas pelos helmintos. É significativo ressaltar que a própria atuação da Fundação Rockefeller no Brasil, entre 1918 e 1923, concentrou-se na campanha contra a ancilostomíase, “doença vista acima de tudo como um problema econômico” por minar a capacidade de mão-de-obra nas plantações (LÖWY, 2006:139). A questão do trabalho consistiu em um dos aspectos centrais do discurso sanitarista no Brasil. No primeiro Congresso Nacional dos Práticos Brasileiros, realizado em 1922 no Rio de Janeiro, o sanitarista Miguel Osório de Almeida propugnava que o “saneamento da sociedade deveria tornar o trabalhador capaz de trabalhar. Isso levará à redução da pobreza e à melhoria das condições de vida de todos” (Apud LÖWY, 2006: 141). Compartilhando da opinião de seus pares em outros estados, os médicos mineiros viam as enfermidades como resultantes do atraso econômico e ignorância da população. Samuel Libânio corroborava essa ideia ao afirmar ser pródigo em “conselhos higiênicos ofensivos e defensivos” em relação “ao impaludismo que com tanta facilidade assalta os pobres ignorantes roceiros que plantam suas moradas à beira dos brejais, pântanos, das lagoas e das águas baixas” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1921:201). Não se pode desconsiderar dentre os propósitos dos serviços de profilaxia rural estava a ideia de que era necessário fazer chegar ao homem do campo e às populações abandonadas do interior a assistência médica e, ao mesmo tempo, garantir mão-de-obra sadia à lavoura: Aquilatando devidamente a relevância e urgência dessa obra de defesa da saúde das populações rurais, flageladas por várias endemias, cônscio da situação angustiosa e desesperadora de milhares de patrícios contaminados e reduzidos à mais profunda miséria fisiológica pelo ‘mal de Chagas’ e outras moléstias igualmente aniquiladoras que roubam às lides sadias e nobilitantes da lavoura tantas energias úteis, - pôs o governo o maior empenho em promover o saneamento rural e criar postos profiláticos em diversos TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 105 pontos do Estado, onde se lhe afigurou mais premente a adoção dessa medida de grande alcance humanitário e patriótico (Mensagem do Presidente de Arthur da Silva Bernardes, 1920: 53) O Dr. Mario Augusto de Figueiredo, chefe do Posto Municipal de Higiene de Raul Soares, incorporava essa perspectiva ao comentar as enfermidades que acometiam os sertanejos. O mesmo observava que “corroídos pela sífilis, sugados pelos vermes, cachexiados pela malária, aniquilados pela lepra, escurentados pela ignorância, vivem os nossos irmãos como tristes párias dentro da nossa pátria que eles, anonimamente, tanto procuram engrandecer”. Daí a importância de se difundir a higiene pelo interior de Minas, por aí residir a “maior fonte de riqueza do país” (Relatório da Diretoria Saúde Pública de Minas Gerais, 1929:15-22). Atrelada a essa questão estava a ideia de que as condições endêmicas poderiam ser modificadas pela ação da ciência, crença amplamente difundida no pensamento social da época (HOCHMAN e LIMA, 2000). A redenção pela higiene Além dos avanços da ciência no combate às enfermidades, com o desenvolvimento de exames, vacinas e medicamentos, a higiene passou a ser vislumbrada como disciplina com estatuto científico e elemento imprescindível para a conservação da saúde dos indivíduos e da coletividade. Segundo Vera Regina Beltrão Marques, o “fato de a higiene ser considerada uma disciplina científica de base biológica, porém dotada de atributos morais, munia-a de grande poder de intervenção social” (MARQUES, 1994:112). Por meio da higiene, os médicos procuravam difundir não só hábitos saudáveis entre a população como normatizar comportamentos considerados prejudiciais à saúde. Nesse contexto, a educação para a saúde ganhou grande destaque. Incorporando os métodos norte-americanos, os médicos brasileiros partiam do princípio de que para combater a ignorância e o desconhecimento dos preceitos higiênicos fazia-se necessário promover a consciência sanitária da população, a partir de recursos modernos, como projeção de filmes e utilização de transparências (LÖWY, 2006:140149). Assim, a educação sanitária representou uma das diretrizes das políticas de saúde implantadas em alguns estados brasileiros. Em São Paulo, o Instituto de Higiene se constituiu em espaço para o desenvolvi106 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO mento de estratégias para incutir hábitos de higiene entre a população e, principalmente, as crianças, por meio de propaganda e formação de educadoras sanitárias (ROCHA, 2003). Demonstrando a relevância que o tema assumiu em Minas, Belo Horizonte foi escolhida para sediar o segundo Congresso Brasileiro de Higiene, onde foram discutidos “assuntos de atualidade científica e de interesse imediato nacional” (Mensagem do Presidente Fernando de Mello Vianna, 1925:160). O discurso dos médicos e as medidas tomadas demonstram a relevância da educação no processo de difusão dos princípios sanitaristas. Nesse sentido, Samuel Libânio defendia o papel da escola afeiçoando “o homem a novas formas de viver e pensar, na idade em que se constroem hábitos definitivos”. A instrução médicosanitária com noções de higiene individual e coletiva significava um passo definitivo em prol do levantamento da energia do povo mineiro (Relatório da Diretoria de Higiene, 1921: 5). A higiene representava ainda o meio pelo qual o desenvolvimento da criança, tanto físico quanto psíquico, se processaria nas condições “mais favoráveis à eugenia da raça”. Salientava a importância da inspeção médico-sanitária nas escolas, onde a atividade do médico tinha por objetivo a “aplicação e adaptação à vida escolar dos ensinamentos de patologia e higiene”. Uma inspeção cuidadosa proporcionaria descobrir “desvios funcionais” e garantiria que o desenvolvimento da criança se processasse nas “condições mais favoráveis à eugenia da raça” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923: 6-7). O Dr. Mário Augusto de Figueiredo compartilhava de ideias similares. Em artigo intitulado Problemas sociais que não podem ser descurados no Brasil novo, reproduzido no relatório de 1930, afirmava que a “raça brasileira” estava se degenerando e para seu melhoramento aí estava a puericultura “sugerindo os meios de combate, ditando as passagens profiláticas, as medicações eficientes". Para o médico, a cura dos males que se perpetuavam por séculos dependia do socorro da ciência e nisto consistia “a grande parte da higiene na sua parte mais bela, a eugenia“ (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1930:12-30). Ao associarem eugenia, raça e higiene, as concepções desses médicos estavam em acordo com a perspectiva do pensamento eugênico predominante no Brasil da década de 1920. Conforme observa Nancy Stepan, nesse período houve uma identificação entre eugenia e saneaTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 107 mento por parte dos sanitaristas brasileiros, que imaginavam vários tipos de reformas sanitárias capazes de melhorar as condições hereditárias da população, bem como combater certas enfermidades que podiam levar à degeneração, como o alcoolismo. A despeito de projetos eugênicos “negativos” – destinados a impedir a procriação daqueles que não tinham saúde – predominou a eugenia “preventiva”, perspectiva segundo a qual eram possíveis as possibilidades de regeneração por meio da educação e saneamento (STEPAN, 2004:331-361). Ao longo da década de 1930 e da seguinte, os médicos sanitaristas mineiros elaboraram várias propostas de implantação da educação higiênica nas escolas por meio de palestras, distribuição de folhetos e do acompanhamento pelos professores e médico escolar dos hábitos higiênicos dos alunos. Segundo Keila Carvalho, de um modo geral essa educação despertaria a conscientização dos indivíduos, proporcionando a correção de anomalias – como problemas posturais, gagueira, etc - e a conservação da saúde pela fixação dos hábitos saudáveis. A educação sanitária ganhava contornos normatizadores das condutas, tendo por base argumentos como a saúde pelo progresso e da regeneração do povo (CARVALHO, 2008: 106-114). A educação sanitária não se restringiu às crianças. Os médicos propugnavam a difusão ampla dos princípios higiênicos entre a população. Desde 1920, os relatórios oficiais indicam ações dos governos estaduais na divulgação dos preceitos higiênicos a partir de palestras, distribuição de folhetos, artigos, notas de imprensa e filmes. Em relatório encaminhado à Diretoria de Higiene em maio de 1924, o Dr. Eder Jansen de Mello notificou a realização de seis conferências e quatorze preleções em teatros e escolas, além de 2 filmes, um sobre ancilostomíase e outro sobre doenças venéreas. A respeito da eficácia dos métodos de propaganda, o médico comentava que o povo pouco se interessava pelas conferências, ocorrendo o contrário quando da exibição de filmes. O Dr. Ernani Agrícola notificou a realização de conferências públicas na sede da Liga Protetora Operária de Lafaiete, aproveitando da grande aglomeração das festas religiosas e contando com o apoio das autoridades eclesiásticas. Em Congonhas do Campo, além das conferências, organizou-se uma “pequena exposição de vermes intestinais” e foram exibidos filmes sobre verminoses e doenças venéreas (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924: 166-192). 108 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Os hospitais também eram considerados importantes pólos irradiadores da higiene. Samuel Libânio observava a respeito que muito mais que simples casas de socorro e higienização, os hospitais tornavam-se antes “escolas de higiene, centro de instrução e educação sanitárias, ponto de gravitação e de irradiação de todo um pequeno núcleo de progresso e civilização”. Os dispensários de doenças venéreas exerciam papéis equivalentes, espaços onde eram realizadas conferências públicas, “ilustradas e em linguagem ao alcance de todos” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1922: 20-23). A transformação da Diretoria de Higiene em Diretoria de Saúde Pública trouxe um incremento nos serviços de propaganda. Estes passaram a ser ligados à Inspetoria de Demografia e Educação Sanitária “com o encargo de orientar o programa educativo do povo nas regras elementares de higiene e na defesa de sua saúde”. A inspetoria realizou Campanha contra a tuberculose, difteria, mortalidade infantil, febre tifóide, sarampo, alimentação infantil, varíola e febre amarela. Em 1928, o centro de saúde da capital contabilizou várias conferências públicas e centenas de palestras particulares por médicos, enfermeiras e guardas, além da distribuição de quatorze mil novecentos e cinqüenta e um 14.951 folhetos de propaganda e educação sanitárias (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1929:23-27). Para atingir a população os médicos sanitaristas procuraram também criar material didático que tivesse ampla aceitação. Neste sentido, o Inspetor Odilon Santos contratou, em 1930, o desenhista Domingos Xavier para a feitura artística de desenhos. Foram impressos setenta mil setenta mil exemplares sobre vários temas, tais como O perigo das mãos sujas, Combates à tuberculose, O valor do leite materno, dentre outros. Entre 1930 e 1931, os serviços de educação sanitária foram ampliados com a publicação regular no Minas Gerais, órgão oficial da imprensa do estado, de mais de duzentos 200 trabalhos na sessão “Pela Saúde Pública”. Por intermédio da Sociedade Rádio Mineira, houve a realização de várias palestras e distribuição de impressos com preceitos de higiene destinados às crianças. A imprensa escrita e a rádio passaram a ser relevantes veículos de divulgação sanitária. Além dos veículos de comunicação da Capital, em 1935, a Inspetoria procurou incorporar a imprensa do interior, dirigindo-se aos jornais de quase todos os municípios mineiTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 109 ros solicitando “a preciosa cooperação nesta tarefa educativa” (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1935:90-91). A partir da leitura dos relatórios médicos, fica evidente o lugar de destaque dado à educação sanitária em Minas Gerais e seus significados na difusão dos princípios norteadores dos princípios sanitaristas no estado. Embora fuja ao escopo de nossa análise, é significativo observar que o trabalho de propaganda e educação sanitária seria aprofundado nos anos seguintes. Com o decreto n. 69, de 20 de janeiro 1938, procurava estabelecer uma nova organização sanitária, logo a Inspetoria de Demografia e Educação Sanitária da Diretoria de Saúde Pública passou a se denominar Inspetoria de Propaganda e Educação Sanitária. A partir de 1940, vários trabalhos de divulgação sanitária foram publicados no Minas Gerais e várias palestras proferidas na Rádio Inconfidência, em Belo Horizonte, e em outras rádios do interior (Divulgação Sanitária-palestras na rádio Inconfidência, 1952). O saneamento como ideal e prática O ideal sanitarista da Primeira República foi incorporado por médicos e autoridades em Minas Gerais. A situação econômica do Estado possibilitou acordos com a Fundação Rockefeller, garantindo a aplicação de recursos e métodos modernos no combate às endemias. Os serviços de saúde – como o Serviço de Profilaxia Rural e o Serviço Permanente de Higiene Municipal – traduzem os esforços dos médicos sanitaristas em promover reformas e promover a higiene do povo mineiro. Entretanto, é preciso atentar que o ideal de saneamento em Minas esbarrou em alguns obstáculos. Um dos problemas dizia respeito à ausência de leis eficazes direcionadas a obras de saneamento e construção de fossas em alguns municípios. Sobre a questão, Ladário de Faria, chefe do distrito sanitário da Zona da Mata, comentava que a construção de fossas continuava morosa em razão da falta de material e de transporte (Relatório da Diretoria de Higiene, 1921: 109 e 182). Ernani Agrícola, na época chefe do posto de Bom Despacho, comentava a grande dificuldade para execução dos serviços de profilaxia na zona rural devido a distância dos povoados e da dispersão da população. Em Uberabinha, no Triângulo Mineiro, o Dr. Elpenor de Oliveira, em relatório remetido em janeiro de 1923, notificava a falta de profissionais para inspecio110 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO nar todo o serviço de fossas, o que o obrigava a fazê-lo pessoalmente (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923:98 e 166). Nem mesmo os serviços de saúde Belo Horizonte ficaram ilesos às críticas. De acordo com Samuel Libânio, a legislação vigente, em 1924, mostrava-se obsoleta para a complexidade dos serviços de higiene da capital. No relatório, o médico solicitava que deveria haver uma ação conjunta da prefeitura e do Estado para obrigar os moradores a construírem latrinas, fazendo figurar essa obrigação para a concessão de terrenos e lotes (Relatório da Diretoria de Higiene, 1924: 19). Outro motivo de reclamações dos médicos consistia na resistência da população. Ao comentar os serviços do posto de Itajubá no relatório de 1920, o Dr. Alfredo da Cunha chamava atenção para a aversão aos exames e medicações, culpando a hostilidade e ignorância da população (Relatório da Diretoria de Higiene, 1920:160-162). A oposição às medidas profiláticas partiu não só da população urbana e rural desprovida de recursos como das classes dirigentes. Em correspondência enviada ao Secretário do Interior, em setembro de 1920, Samuel Libânio reportava denúncia feita pelo vice-presidente da Câmara de Santa Rita de Sapucaí sobre “pessoa de destaque na magistratura mineira que se recusa a cumprir a lei referente à construção de fossas” e cujo exemplo muito prejudicava “os trabalhos de saneamento”. Em vista disso, ele solicitava a submissão do caso à apreciação do subprocurador do Estado a fim de que a Diretoria pudesse agir firmemente, multando e executando o infrator (Correspondência da Diretoria de Higiene do Estado de Minas Gerais, 29/09/1920. APM, Série 10: Saúde e Assistência Pública). De forma semelhante, o Dr. Irineu Lisboa dizia que a campanha sanitária de profilaxia das verminoses era de difícil execução. Por um lado, a “classe indigente” não dispunha de recursos; de outro “a rebeldia dos proprietários”, de “espíritos malévolos e maldizentes” que faziam propaganda contra o serviço. Citava em particular o caso de um vigário que se insurgiu contra a construção de fossas dizendo ser uma “ameaça a saúde do povo” (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923: 162). As questões de ordem financeira são várias vezes mencionadas como entraves para uma eficaz organização sanitária. No relatório do Governo de 1925, reclamava-se da redução de recursos destinados pelo Governo Federal ao serviço de saneamento rural e do fim do custeio de TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 111 outros serviços, como o destinado à sífilis e doenças venéreas, que teve sua dotação orçamentária reduzida em 1924. (Mensagem do Presidente de Estado Fernando de Mello Vianna, 173:160). Nesse mesmo sentido iam as queixas referentes à falta de pessoal técnico capacitado para os serviços, propalada em vários relatórios. Ernani Agrícola expunha o problema às autoridades governamentais em 1932. No relatório das suas atividades, dizia ser de grande alcance se o governo de Minas entrasse em entendimento com a Universidade de Minas Gerais para o funcionamento de cursos destinados aos atuais médicos de saúde pública. Segundo salientava Sem médicos, enfermeiras visitadoras e guardas sanitários perfeitamente instruídos na prática dos trabalhos de saúde pública e sem o entusiasmo pela profissão não progredirá a obra sanitária, mesmo que a Diretoria disponha de grandes dotações orçamentárias (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1932: 15) Aspecto importante a ser comentado é a distribuição desigual dos recursos de saúde no território mineiro. Embora algumas cidades contassem com postos de saúde em funcionamento, a assistência à saúde não chegava de maneira semelhante em todas as regiões. Considerando os critérios adotados, índice endêmico, a densidade populacional e importância econômica, as regiões da Zona da Mata e do Sul de Minas eram as mais beneficiadas. No relatório referente ao Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural de 1923, Samuel Libânio observava que o serviço guardava “proporções modestas em relação ao imenso território sobre que deve agir”. Chamava atenção, em particular, para a inexistência de hospitais regionais no Triângulo Mineiro e no Vale do Rio Doce. Considerava central a questão do saneamento do Rio Doce, “cuja vasta bacia, em grande parte alagada”, possuía uma “numerosa população de impaludados a exigir pronta ação” do serviço, como a construção de habitações apropriadas, obras de hidrografia sanitária e quininização contínua. Sobre o oeste de Minas afirmava que havia “inúmeros casos hospitalizáveis”, mas os doentes mal tinham assegurado uma “humilde esteira” para estenderem seus corpos (Relatório da Diretoria de Higiene, 1923: 30-31). Tais aspectos eram reforçados no relatório do governo relativo à saúde em 1925. Segundo este, o conjunto de medidas profiláticas aplicados em alguns municípios, “deveria tornar-se extensivo deveria 112 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO tornar-se extensivo a outras zonas do Estado, de terras mais ferazes e que assoladas pelo mal, não têm podido fixar o colono, como se verifica nas bacias dos rios Doce e Jequitinhonha” (Mensagem do Presidente do Estado Fernando de Mello Vianna, 1925: 171). Apesar do otimismo sanitário vislumbrado na época, cabe ressaltar que a assistência médica ainda não correspondia às necessidades e demandas do amplo território mineiro. Um exemplo é que a região do Vale do Rio Doce, mencionada nos relatórios como desprovida de recursos na área da saúde, sofreu grande carência da assistência médica até a década de 1940. Tal quadro só mudou quando a região passou a ser objeto de programas de saúde empreendidos pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) a cargo de uma comissão mista de sanitaristas brasileiros e norte-americanos para a extinção da malária e outras endemias. O programa de saneamento vinha em grande parte atender às demandas de uma região que naquele contexto estava em crescimento em razão da exploração de recursos minerais (Vilarino, 2008). A crise de 1929 trouxe conseqüências aos serviços de saúde executados em Minas Gerais. Em 1932, Ernani Agrícola chamava atenção para a redução de verbas destinadas à saúde pública, o que prejudicava a execução de vários séricos. Ao assumir a direção da saúde publica, Ernani Agrícola encontrou os serviços desarticulados por força do orçamento em vigor. Comentava sobre a necessidade das obras complementares na Colônia Santa Isabel, que embora tivesse capacidade para mil leprosos não tinha dotação orçamentária apropriada. Além disso, ressaltava a precariedade do funcionamento dos centros de saúde e postos de higiene, com a redução de recursos e consequente diminuição de funcionários. Isso afetava alguns serviços, como o de estatística, pois desde 1929 não era publicado o boletim trimestral de estatística demógrafo-sanitária, sendo decidido que em razão de diminuição de verba e de pessoal não mais se publicaria o boletim, o que seria feito de forma mais completa no “Anuário de Estatística Demógrafo-Sanitária” (Relatório da Diretoria de Saúde Pública, 1932:13-21). Esse conjunto de fatores mencionados acima indica o descompasso entre os ideais do projeto sanitarista e sua execução em Minas Gerais TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 113 nas primeiras décadas do século XX. Questões de ordem cultural, como a resistência da população; e de ordem técnica e financeira impediam o bom andamento dos projetos. Além disso, as políticas de saúde reforçavam a desigualdade social e econômica ao privilegiaram as mais rentáveis regiões do Estado. Considerações finais Ao longo desse estudo, procurou-se abordar alguns elementos do sanitarismo em Minas Gerais nas primeiras décadas do século XX. Consultando os relatórios elaborados pelos médicos sanitaristas, pode-se constatar constata-se que as políticas de saúde no Estado seguiam, em grande medida, as diretrizes da saúde pública adotadas no Brasil. Procurava-se implantar em Minas uma estrutura sanitária capaz de vencer os obstáculos da extensão territorial e voltada para endemias consideradas responsáveis pelo atraso econômico. Os discursos dos médicos sanitaristas em Minas Gerais incorporavam, por sua vez, as ideias vigentes na época ao defenderem o papel da ciência – representada pela higiene e pelas técnicas médicas – como meio não só de enfrentar as enfermidades, mas também de suplantar os obstáculos mesológicos e sociais que impediam a modernização do Estado. Dessa maneira, os médicos insistiam no papel das obras de saneamento para mudar as condições do meio e da educação sanitária como forma profilática de diminuir as doenças que minavam as energias dos trabalhadores do campo. Mas como se viu, grande parte dos projetos de saneamento esbarravam em problemas diversos, dentre os quais estavam a resistência da população, a própria imensidão do território e, mais grave ao olhar das autoridades, a inexistência de recursos suficientes. Além disso, o projeto de saneamento era excludente ao garantir mais recursos para as regiões mais ricas e populosas. Reforçava-se assim uma distribuição dos recursos de saúde pelo território que não partia da pobreza como critério e sim da riqueza que algumas regiões tinham a oferecer, e por essa razão, deviam ser merecedoras de projetos de saneamento. A nosso ver, esse fato revela um paradoxo do sanitarismo em Minas Gerais, já que um dos propósitos das políticas de saúde era por fim ao círculo vicioso entre pobreza, atraso econômico e doença. 114 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Referências documentais e bibliográficas 3 Relatórios da Diretoria de Higiene Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Delfim Moreira da Costa Ribeiro Secretario de Estado dos Negócios do Interior pelo Dr. Zoroastro Rodrigues de Alvarenga, ano de 1910. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1911. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Delfim Moreira da Costa Ribeiro, secretario de Estado dos Negócios do Interior pelo Dr. Zoroastro R. Alvarenga, Diretor Geral de Higiene, referente ao ano de 1912. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1913 Diretoria de Higiene. Relatório apresentado ao Exmo Sr Dr. Américo Ferreira Lopes Secretário de Estado dos Negócios do Interior pelo Dr. Zoroastro R Alvarenta Diretor Geral de Higiene, ano de 1915. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1916. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Affonso Penna Júnior, Secretário de Estados dos Negócios do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1921. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Fernando de Mello Vianna, Secretário de Estados dos Negócios do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1923. Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Fernando de Mello Vianna, M. D. Secretario do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1924 Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Affonso Penna Júnior, Secretário de Estados dos Negócios do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1922. Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Fernando de Mello Vianna, M. D. Secretario do Interior do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1924. 3 A grafia dos documentos foi atualizada. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 115 Relatórios da Diretoria de Saúde Pública Relatório apresentado ao Exmo Snr. Secretário da Segurança e Assistência pública, relativo ao ano de 1928 pelo Dr. Raul d’Almeida Magalhães. Diretor de Saúde Pública. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1929. Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Diretor de Saúde Pública do Estado de Minas (Raul de Almeida Magalhães) pelo Dr. Mario Augusto Figueiredo, chefe do posto permanente de hygiene Municipal Raul Soares, referente ao anno de 1929. Diretoria de Saúde pública de Minas Gerais. Ponte Nova: Est. Graph Gutenberg, 1929. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Noraldino Lima, Secretário da Educação e Saúde pública, relativo aos anos de 1930 e 1931. Dr. Ernani Agrícola. Diretor de Saúde pública. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1932. Relatório apresentado ao Snr. Secretario da Educação e Saúde Pública pelo Dr. Mario Álvares da Silva Campos, Diretor de Saúde Pública. Belo Horizonte: Papelaria Brasil, 1935 Relatórios de Presidentes do Estado Mensagem do Presidente de Estado Delfim Moreira da Costa Ribeiro ao Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1916. Mensagem do Presidente de Estado Fernando de Mello Viana ao Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1925. Mensagem do Presidente de Estado Antonio Carlos Ribeiro de Andrada ao Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais 1928. Mensagem do Presidente de Estado Antonio Carlos Ribeiro de Andrada ao Congresso Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1929. Outros documentos PENNA, Belisário. Minas e Rio Grande do Sul: estado da doença e estado de saúde. Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais; 1918. Divulgação Sanitária (palestras na Rádio Inconfidência). Secretaria de Saúde e Assistência do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1952 (série de divulgação). 116 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Cópia do acordo entre o Departamento Nacional de Saúde Pública e o representante do Estado firmada em 29 de outubro entre Carlos Chagas e Samuel Libânio. Arquivo Público Mineiro (APM). Série 10: Saúde e Assistência Pública. Correspondência da Diretoria de Higiene do Estado de Minas Gerais, 29/09/1920. APM, Série 10: Saúde e Assistência Pública. Referências bibliográficas: CAMPOS, Carlos Eduardo. Aguilera. As origens da rede de serviços de atenção básica no Brasil: o Sistema Distrital de Administração Sanitária. História, ciências, saúde – Manguinhos, v. 14, n.3, pp. 877-906, jul-set. 2007. CARVALHO, Keila Auxiliadora. A Saúde pelo Progresso: Medicina e Saúde Pública em Minas Gerais. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2008 (Dissertação de Mestrado), p. 106-114. FARIA, Lina Rodrigues de. A Fundação Rockefeller e os serviços de saúde em São Paulo (1920-30): perspectivas históricas. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, v.9, n. 3, pp. 561-90, set.-dez. 2002; FARIA, Lina. Saúde e política: a Fundação Rockefeller e seus parceiros em São Paulo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007 LIMA, Nísia Trindade; HOCHMAN, G.. Condenado pela Raça, Absolvido Pela Medicina: O Brasil Descoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo V.. (Org.). Raça, ciência e sociedade 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ/CCBB, 1996, p. 23-40. LIMA, Nísia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são. Discurso higienista e interpretação do país. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 313-332, 2002. LÖWY, Ilana. Vírus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre ciência e política. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006, p. 140-149. MARQUES, Rita de Cássia. A filantropia científica nos tempos da romanização: a Fundação Rockefeller em Minas Gerais (1916-1928). Horizontes, Bragança Paulista, v. 22, n.2, p. 175-189, jul-dez, 2004. MARQUES, Vera Regina Beltrão. A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 117 ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. A higienização dos costumes: educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (1918-1925). Campinas, São Paulo, Mercado das Letras. 2003. SANTOS, Luiz Antonio de Castro; FARIA, Lina Rodrigues de. A reforma sanitária no Brasil: ecos da Primeira República. Bragança Paulista, EDUSF, 2003 STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940 In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2004, p. 331-361. TORRES, Anny Jackeline. A influenza espanhola e a cidade planejada. Belo Horizonte, 1918. Belo Horizonte: Argumentum, 2007. VILARINO, Maria Terezinha B. Entre lagoas e florestas: atuação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) no saneamento do Médio Rio Doce (1942 e 1960). Belo Horizonte, UFMG, 2008 (Dissertação de Mestrado). 118 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Entre práticas sanitárias e saberes tradicionais: a territorialização do saneamento no Médio Rio Doce Patrícia Falco Genovez1 Maria Terezinha Bretas Vilarino2 Introdução D e uma zona de floresta e vazio demográfico, no início do século XX, a região do Médio Vale do Rio Doce se torna a mais populosa de Minas Gerais, em 1960. Esse processo de territorialização foi o resultado da construção de uma ferrovia, da abertura de estradas de rodagem, da introdução da extração e exportação do minério de ferro, da expansão da indústria da madeira, da mica e da siderurgia a carvão vegetal. A aceleração do processo de ocupação e modernização da região do Rio Doce está associada à atuação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) no Programa de Saneamento do Vale do Rio Doce, com os Projetos Rio Doce e Mica, na década de 40, e o Programa Minas Gerais, na década de 1950, que resultaram dos Acordos de Washington entre o Brasil e os Estados Unidos (1942). A ação de promoção preventiva da saúde visava a melhoria da habitabilidade humana naquelas condições e a manutenção da saúde. Neste sentido, foi essencial para a permanência e mesmo a sobrevivência das pessoas na região ensejando a indústria e as demais atividades que requeriam a urbanização e a sedentarização de grandes grupos humanos. Este ensaio propõe abordar esse processo de territorialização da saúde e do saneamento, ocorrido no Médio Rio Doce, a partir da memória. Neste sentido, lançamos mão do pensamento de Saquet (2006, p. 81) que, a partir das discussões de Raffestin, Dematteis e Turri, entende “o território e a territorialização como resultado e condição de um pro1 Doutora em História Moderna e Contemporânea (Cultura e Poder), UFF. Professora da PósGraduação Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território da UNIVALE. Pesquisadora do Programa de Memória Social do Vale do Rio Doce. 2 Mestre em História (Ciência e Cultura), UFMG. Professora do Curso de História/UNIVALE. Pesquisadora do Programa de Memória Social do Vale do Rio Doce. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 119 cesso histórico, em que há relações socioespaciais em diferentes níveis escalares”. Enquanto processo histórico a sociedade está num território, o produz e o percebe como articulado a tramas e relações sociais cuja síntese se dá no indivíduo social. Enfim, ainda nos termos de Saquet: O território é natureza e sociedade: não há separação; é economia, política e cultura; edificações e relações sociais; des-continuidades; conexão e redes; domínio e subordinação; degradação e proteção ambiental, etc. Em outras palavras, o território significa heterogeneidade e traços comuns; apropriação e dominação historicamente condicionada; é produto e condição histórica e trans-escalar; com múltiplas variáveis, determinações, relações e unidade. É espaço de moradia, de produção, de serviços, de mobilidade, de des-organização, de arte, de sonho, enfim, de vida (objetiva e subjetivamente). O território é processual e relacional, (i)material, com diversidade e unidade, concomitantemente (SAQUET, 2006, p. 83). Precisamente pela natureza complexa do território, compreender o processo histórico que o transforma demanda um foco especial em seus atores, que de fato são aqueles que lhe emprestam sentido e significado. Acessar, pois, o território a partir de seus atores exige um esforço no sentido de se alcançar, por meio da memória dos mesmos e perscrutando através de suas narrativas, as suas sensações, percepções e intenções. É importante ressaltar, no presente ensaio, que a memória não será apenas uma estratégia, mas também uma forte aliada enquanto fonte de informação, seja em seus formato documental seja nas lembranças verbais daqueles que vivenciaram o processo de saneamento no Médio Rio Doce, na primeira metade do século XX, mais especificamente, entre as décadas de 40 e 60, em seu auge. Isso é possível tendo em mente que, dentre as operações maravilhosas da memória, descritas por Ricoeur, podemos perceber sua amplitude – visto que não se encontra limitada às imagens das impressões sensíveis e dispersas – e, sendo assim, “a memória das coisas e memória de mim mesmo coincidem: aí, encontro também a mim mesmo, lembro-me de mim, do que fiz, quando e onde fiz e da impressão que tive ao fazê-lo” (RICOEUR, 2007, p. 110). Entrelaçar o tempo histórico com a memória individual e mais, entrelaçar essa memória pessoal com a coletiva é tentar conciliar dois tempos: o tempo da alma e o tempo do mundo (Idem, p. 112). É, porque não dizer, emprestar maior dinamicidade ao mapeamento dos processos territoriais ancorando-os nestes dois fluxos temporais. 120 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO O desafio de lembrar já não é por nada desprezível. Entretanto, a memória é também ameaçada pelo esquecimento. Aliás, a memória humana é esquecer e lembrar e com isto, é constituir e eliminar territórios e territorialidades dentro de um processo dinâmico e infindo. Mesmo com o recurso à documentação congelada, ainda assim estamos dentro desta dinâmica. Neste sentido, vêm a calhar o pensamento de Ricoeur. Para ele a história do tempo presente seria, “um âmbito propício a essa provação, na medida em que ela própria está numa outra fronteira, aquela onde esbarram uma na outra a palavra das testemunhas ainda vivas e a escrita em que já se recolhem os rastros documentários dos acontecimentos considerados” (Idem, p. 456). Neste ponto percebe-se o papel da História, nos termos de Ricoeur, justificando o duplo emprego da palavra: (...) como conjunto dos acontecimentos (dos fatos) decorridos, presentes e futuros, e como conjunto dos discursos sobre esses acontecimentos (esses fatos) no testemunho, na narrativa, na explicação e, finalmente, na representação historiadora do passado. Fazemos a história e fazemos história porque somos históricos. Este ‘porque’ é o da condicionalidade existenciária (RICOEUR, 2007, p. 362). Ao historiador é reservada uma tarefa espinhosa de lidar ao mesmo tempo com a memória e com o esquecimento. E neste mister, saber que a memória é apenas uma das lembranças processadas de algum modo; assim como o esquecer também é um processo de outro modo significativo em sua negatividade. Neste sentido a tarefa primordial aqui é lidar com uma representação historiadora do passado que traz em si estas duas dimensões e além do mais, relacioná-la a uma territorialidade. O campo de ancoragem, pois, desta reflexão são rastros documentários referidos a uma experiência vivida por inúmeras pessoas ao desenvolverem suas funções num determinado tempo, ao longo do Médio Rio Doce. O principal desafio não está simplesmente na compulsão da documentação, mas nos vazios e criações que testemunhas ainda viva ensejam ao elaborar um discurso de memória. Na esteira de Ricoeur, o lembrar – que é sempre um processo de criação – remete não somente a um evento exterior mas também a uma experiência vivida pela própria pessoa ao recorrer à sua memória. Nisto compreende-se que a memória não só institui uma presença de passado narrado mas é em si mesma a própria possibilidade de a pessoa perceber-se como existente ao longo do tempo. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 121 De acordo com Ricoeur (2007, p. 108), “é principalmente na narrativa que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a diferenciação e a continuidade”. Se for na narrativa que as lembranças se articulam é importante ter em mente que será através dela que obteremos toda uma teia de significados que marcarão os territórios do cotidiano, do saneamento e da saúde. De acordo com Rapport e Overing (2000, p. 283 a 290), as narrativas podem ser encontradas em toda parte e convergem por meio da linguagem, imagens e gestos. Exatamente por essa característica, elas podem ser encontradas em diferentes formatos e estilos e se manifestam nos mitos, nas lendas, nas fábulas, nos contos, nas novelas, nos romances épicos, nas histórias, tragédias, comédias, dramas, nas imitações, nas pinturas, filmes, fotografias, vitrais, desenhos animados, jornais e conversas. “Pode-se dizer que os seres humanos sonham, divagam, crêem, duvidam, planejam, fofocam, revêem o passado, lembram, antecipam, aprendem, esperam, desesperam, constroem, criticam, odeiam e amam através das narrativas” (HARDY, 1968, p. 5 a 14 apud RAPPORT; OVERING, 2000, p. 283, tradução livre). Nesse aspecto, “a narrativa pode ser concebida como o contar (através de qualquer que seja o meio, ainda que especialmente através da linguagem) uma série de eventos temporais de tal modo que se possa esquematizar uma seqüência significativa” (RAPPORT; OVERING, 2000, p. 283, tradução livre). Por isso, a narrativa faz com que o tempo se torne um aspecto da realidade sócio-cultural e humano quando articulado no âmbito de uma seqüência narrativa. Ele, o tempo, passa a ter certa textura e a ser humanamente experenciado devido ao fato dele ser pontuado por certo fluxo de eventos. Para as autoras, nós, seres humanos, somos temporais, em síntese, com nossas percepções, compreensões e identidades embasadas numa história em processo de narração. Tenhase com isto em mente que a narrativa não tem em primeira instância o objetivo de verificar algo, mas de significar algo; é um fio condutor de eventos. Talvez a principal característica da narrativa seja a de trazer os eventos ou as experiências de algum modo na forma de um discurso e não na forma de uma argumentação. Em síntese, as construções do sentido pessoal nas narrativas individuais exibem uma originalidade e um trabalho artesanal que as colocam para além da sobredeterminação da linguagem na qual elas 122 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO são escritas, das formas coletivas ou públicas que elas empregam (RAPPORT, 1998). Assim, através das performances narrativas, as pessoas que viveram o processo de saneamento no Médio Rio Doce escrevem e re-escrevem a história de suas vidas e de seus mundos, e, apesar de o modo de fazê-lo seja uma espécie de bricolage de formas culturais em grande parte herdadas – palavras, imagens, comportamentos – não é tanto a sociedade e a cultura que elas incorporam, mas a consciência individual, no momento em que se lembram de si mesmas, como destaca Ricoeur. A forma narrativa torna-se personalizada em seu uso, e os indivíduos continuam a escrever histórias que descrevem seu próprio ponto de vista do mundo. A narrativa termina por exprimir através dela, com bastante clareza, a natureza da vida vivida de maneira única e indeterminada (RAPPORT; OVERING, 2000, p. 290, tradução livre). . Dado que o fenômeno narrativo está aí na vida humana em miríades de formas e com conteúdo praticamente infinito, a sua mensagem precisa ser de algum modo desvelada. Muitos estudiosos já se debruçaram sobre isto com as mais diversas teorias. Aqui retomamos um destes, Labov, para o qual existem várias técnicas de interpretação de uma narrativa, mas nenhuma delas leva a resultados claros e definitivos. O esforço está no sentido de que uma análise mais cuidadosa possa iluminar o processo pelos quais as narrativas são criadas, transmitidas e compreendidas (LABOV, 2001). Não poucos estudiosos buscaram, através dos mais diversos artifícios, descobrir uma espécie de estrutura subjacente a todas as formas de narrativas e que estivesse presente de um modo universal. Isto ao que parece, acabou mais por obscurecer o valor da narrativa que elucidar a sua contribuição. Como síntese, a narrativa reúne acontecimentos dispersos e vários tipos de ações, planejadas e inesperadas, dando a eles significados precisos. O ato de narrar é, portanto, uma prática discursiva com papel fundamental na produção e reconhecimento dos códigos sociais, e este aspecto podemos constatar impressos nos registros de memórias dos diversos grupos que estiveram envolvidos no processo de saneamento do Médio Rio Doce. Em conjunto com os rastros documentais de diversas naturezas, sobretudo registros da imprensa, documentos oficiais e a própria documentação produzida pelo SESP, as narrativas podem tangenciar, ou promover ‘esbarrões’ como propõe Ricoeur, entre a performance deste serviço, descrita oficialmente, e as impressões e tensões TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 123 vividas pelos indivíduos. Nesse sentido, pode nos servir como flashes a iluminar práticas e culturas inscritas no processo de saneamento do Médio Rio Doce e de como esse mesmo processo repercutiu no território. Através delas, podemos nos aproximar do cotidiano e do imaginário e obter, a partir de diversos prismas, as relações entre os variados grupos, acessando, mesmo que forma indiciária, algumas de suas estratégias individuais e coletivas. Conforme o dito acima, as narrativas – documentais ou verbais – remetem a uma realidade que em resumo é inacessível diretamente, mas que através de certas quebras ou rupturas deixam entrever frestas reveladoras de mundos em tensão. Rastros documentários do saneamento no Médio Rio Doce: os desafios de uma memória escrita a) Contexto histórico e econômico: caminhos e possibilidades A caracterização do vale do Rio Doce, que acompanhará a contextualização espaço-temporal desta investigação dá uma medida de como ali se articulavam questões políticas, socioeconômicas e culturais, que afetaram a incorporação da região ao projeto de desenvolvimento nacional. A presente reflexão dá voz a diversos locutores, que por sua vez falam de cenários variados e para platéias as mais diversas. Seria ingênuo esperar que todos tivessem as mesmas memórias e produzissem os mesmos esquecimentos, como vimos nos termos de Ricoeur acima. A experiência humana expressa nesta variada documentação remete não à necessidade de um discurso único e hegemônico, mas à possibilidade de que as diversas fontes falem e a resultante será a memória destas experiências que constituíram tanto a realidade social do território como as identidades das próprias pessoas. As fontes utilizadas para essa contextualização sócio-histórica colocam em diálogo memórias e relatos de técnicos envolvidos com o trabalho na Estrada de Ferro Vitória-Minas (ALMEIDA, 1949), impressões de observadores locais (FONSECA, s.d.; PAULA, 1993; TEIXEIRA, 1974;) lembranças de antigos moradores da cidade de Governador Valadares (SOARES, 1983; SIMAN, 1988), relatório da Companhia Vale do Rio Doce (1963) e estudo recomendado pela empresa a pesquisadores do IBGE na década de 1950 (STRAUCH, 1955; 1958), relatórios dos Presidentes dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo para as primeiras 124 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO décadas do século XX e um estudo realizado sob os auspícios do SESP em áreas por ele atendidas (FONTENELE, 1959). Essas fontes, considerados seus limites subjetivos e/ou ideológicos, mais se completaram do que divergiram no tocante às condições naturais ou históricas da região do Rio Doce. Os discursos presentes nas obras em questão também se combinam com os debates mais amplos que se divulgavam acerca da constituição da identidade nacional até a década de 1930 ou com a proposta modernizante mediada por um Estado forte, entre 1930 e 1950. O processo histórico, do qual o vale do Rio Doce é o centro, tem características que fazem dele um objeto privilegiado para o estudo da relação entre o homem e o ambiente, no contexto de intensa mobilidade humana (migração interna, imigração/ emigração) e no enfrentamento de doenças endêmicas. Nesse processo está presente uma temporalidade delimitada, definida pelo período de 1903-1960, e uma espacialidade demarcada pela presença do Rio Doce, da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) e da floresta tropical. O ano de 1903 marca o início da construção da ferrovia, e o de 1960, além de marcar o fim do convênio entre os governos brasileiro e norte-americano, que sustentava a atuação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), assinala o último Censo do IBGE, no qual os indicadores sociais e econômicos apresentavam elevação em relação ao decênio anterior. A década de 1960 apresentou os primeiros sinais de inflexão da curva dos indicadores, especialmente os demográficos (ESPINDOLA, 2000, p. 67-75). Em 1908, com o anúncio durante o IX Congresso Geológico Internacional de Estocolmo, sobre a existência de grandes reservas de hematita no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais, delinearam-se os rumos que tomaria o processo de ocupação desta região. A estrada de ferro, que em 1906 chegou à cidade de Colatina3 (ES) e em 1907 penetra em Minas com destino a Diamantina. Mas o projeto acabou sendo alterado mudando o seu destino em função das jazidas de minério de ferro na área de Itabira/MG. Um consórcio inglês comprou as terras onde se localizavam as jazidas assumindo também o controle da ferrovia. Em 1910 é inaugurada a estação ferroviária de Figueira (atual Governador Valadares/MG) e em 1912 e ferrovia chega até Mesquita (a 300 km de Colatina) (COMPANHIA VALE DO RIO DOCE. 1963: 56). 3 Colatina torna-se pólo regional do Baixo rio Doce, posição antes ocupada por Linhares. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 125 A construção de uma ferrovia é um acontecimento que interfere profundamente no meio por onde passa. Almeida (1959, p. 97), neste sentido, deixa claro que: “a construção da ferrovia favoreceu a ocupação, ao abrir clareiras na floresta: ao longo dos trilhos surgiram pequenos povoados e atividades agropastoris, além da extração da madeira”. Para Ceciliano Abel de Almeida (1959), engenheiro responsável por grande parte do trajeto da linha férrea, a ferrovia, ao modificar os meios de transporte, estimularia o desenvolvimento cultural e abriria para as aldeias apáticas o progresso. O engenheiro enaltece a obra realizada como meritória e promotora do desbravamento, da colonização, do desenvolvimento cultural e da facilidade de circulação das riquezas. Anuncia a abertura da região do Médio Rio Doce à exploração econômica, não apenas como conseqüência imediata da inauguração do tráfego da EFVM, também pelo saneamento de sítios como Lajão (atual Conselheiro Pena), Barra do Cuieté, Baguari, Pedra Corrida, Naque, Cachoeira Escura, entre outros. Além destes aspectos mais diretamente econômicos, a ferrovia – com suas peculiaridades – enseja também alterações culturais mais amplas, uma vez que por mais vazio que fosse o território, havia ali um mundo existente que de algum modo vai sofrer e influenciar a presença da ferrovia e de suas contribuições. Estes aspectos serão significativos na detecção de resistências aos processos de saneamento e mesmo de modernização mais ampla nos anos posteriores, afinal, a ferrovia não adentrou simplesmente uma floresta mas encontrou seres humanos ali presentes ou transplantados para a sua própria confecção. Durante a I Guerra Mundial a construção da ferrovia foi interrompida, em função das dificuldades financeiras enfrentadas pela Companhia. Ao ser reiniciada a construção, esta seguiu lentamente, chegando a Ipatinga em 1922, a Nova Era, 10 anos mais tarde, e a Itabira, em 1943 (COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, 1963: 56). Isso porque “o impaludismo atacava as turmas de trabalhadores, dizimando-as impiedosamente, afugentando-as dos locais de trabalho, e o pior, dando uma imagem aterradora das condições sanitárias” (ROSA, 1976: 157). Na década de 1920 a política siderúrgica mineira definiu o interesse oficial em relação à região do Rio Doce, impulsionando o povoamento e a exploração das riquezas naturais. A combinação minério de ferro-reserva florestal foi estratégica para a definição da política si126 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO derúrgica do governo de Minas Gerais e, ao mesmo tempo, atenderia as necessidades da economia brasileira (BRITO; OLIVEIRA, 1997, p. 50).4 A opção mineira de exploração econômica abriu para o capital estrangeiro as ricas reservas de minério, se aproximando das tendências internacionais de divisão do trabalho, pela qual Minas Gerais e o Brasil se colocavam como produtores e fornecedores de matérias-primas e importadores de produtos acabados. Entretanto, os mineiros também buscaram caminhos próprios, incentivando a instalação de companhias siderúrgicas e fábricas de ferro gusa que utilizassem o carvão vegetal. Segundo Strauch a estrada de ferro favoreceu a penetração nas terras do vale propriamente dito e abriu um novo tempo para o Médio Rio Doce (STRAUCH, 1958: 107). Essa opinião é confirmada pelo testemunho de Raimundo Fonseca, que cresceu na vila de Figueira, atual Governador Valadares: “Deveu-se, pois, à construção primitiva da ferrovia, a eclosão do núcleo populacional da Figueira, como de resto, àquela se creditavam a sua colonização em massa e o progresso do vale.” (FONSECA, s.d.: 39)5 Ao ser inaugurada a estação da EFVM, a localidade hospedeira aumentava sua área de influência, tornava-se entreposto comercial, atraia atividades econômicas diversas e via sua população aumentar rapidamente. Na parte capixaba destacam-se Colatina (município criado em 1921) e Baixo Guandu (antigo distrito de Colatina, emancipado em 1935); ao penetrar em Minas Gerais, a primeira estação inaugurada foi a de Aimorés (elevada à categoria de cidade em 1925). Na medida em que a construção avançou, de 1906 a 1910, foram inauguradas as estações de Resplendor, Conselheiro Pena (Estação de Lajão) e Figueira, municípios emancipados em 1938. Nestas localidades, a chegada da indústria madeireira, atraída pela estrada de ferro, deu impulso à fixação humana, na medida em que abriu estradas vicinais para o escoamento das toras de madeira. As mudanças refletidas nos desmembramentos municipais e na dinâmica econômica também ensejavam 4 A definição desta política demandou décadas de debates e controvérsias quanto ao papel do Estado e do capital privado e sobre tecnologias mais adequadas, revelando diferentes interesses e concepções republicanas. 5 Na década de 1930 Raymundo Fonseca foi funcionário do Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais na vila de Figueira, onde começou a carreira em 1931, como contínuo, sendo que no ano seguinte foi transferido para Aimorés. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 127 transformações no modo como as pessoas passaram a compreender-se, assim como, marcou a resistência às mudanças ocorridas na esteira dos acontecimentos, como mostram as narrativas reveladas pelos atores que vivenciaram esse processo. Na década de 1930 essa região se abre como fronteira agrícola subsidiária ao processo de industrialização e urbanização do Brasil que demandava por produção de alimentos a preços baixos e matéria prima: minérios e madeira. Para essa condição de fronteira concorrem três fatores: a política siderúrgica do governo de Minas Gerais (GUERRA, 2007)6; a decisão do Governo Federal de incrementar a exploração do minério de ferro de Itabira para exportação e a abertura da rodovia Rio-Bahia (1943/1944. Conforme relatório da Companhia Vale do Rio Doce, de 1963. As novas atividades econômicas potencializaram o desenvolvimento urbano-regional, com destaque para Governador Valadares, João Monlevade e Itabira em Minas Gerais e Colatina no Espírito Santo.7 Nas décadas de 1930 e 1940, ao longo do Médio Rio Doce, não foram incomuns os fenômenos de crescimento acelerado da população, o aparecimento repentino de núcleos urbanos, a ocupação de terras devolutas e a instabilidade social características das zonas de fronteira agrícola. b) As condições da saúde: desafios e soluções A história da saúde, enquanto campo destinado à investigação das práticas e dos saberes, estende-se para a intervenção no campo da saúde e propõe uma reflexão sobre as interseções entre os saberes populares e as práticas profissionais. Certamente, um dos principais trabalhos a serem levados adiante no Médio Rio Doce, imerso no processo de territorialização descrito acima, não foi a medicação oriunda das práticas profissionais, mas as resistências encontradas na população aos modelos terapêuticos utilizados, como veremos adiante. Isto é compre6 A siderurgia a carvão vegetal é uma atividade muito importante para a economia mineira e brasileira, gerando um faturamento anual da ordem de US$ 4 bilhões. A história do carvão vegetal no Brasil teve início em meados do Século XIX, no leste de Minas Gerais, quando as primeiras sementes da Revolução Industrial influenciaram o surgimento da indústria siderúrgica naquela região. Nela encontravam-se dois ingredientes fundamentais para o desenvolvimento da tecnologia de produção de ferro-gusa a carvão vegetal: a presença da Mata Atlântica e de grandes jazidas de minério de ferro. 7 As zonas de povoamento mais antigo como Ponte Nova e Guanhães, não sendo atendidas pela EFVM nem pela Rio-Bahia e não dispondo de riquezas minerais economicamente exploráveis, não progrediram ou tenderam a um processo de regressão. Cf. Companhia Vale do Rio Doce, 1963. 128 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO ensível, uma vez que a doença não existe, mas sim o doente; e este se compreende enquanto tal a partir de suas referência de significado. Assim, de um lado, a população se defrontava com patologias novas que eram para ela estranhas e, por outro lado, tinha ainda que lidar com sistemas médicos diversos daqueles tradicionais e familiares a seus hábitos de lida cotidiana com as doenças. As condições sanitárias do Médio Rio Doce, que acompanharam o surgimento e o crescimento dos vilarejos e das cidades estão presentes no relato deixado por Ceciliano Abel de Almeida, referente às primeiras décadas do século XX, relacionadas à construção da EFVM. Também encontramos menção nos cronistas locais e no estudo elaborado por Ney Strauch em 1955, sob encomenda da Companhia Vale do Rio Doce, que apresenta avaliação referente às décadas de 1940 e 1950. O relato deixado pelo engenheiro é rico em descrições sobre a região alcançada pela ferrovia. Recorremos às suas impressões para delinear circunstâncias marcantes relacionadas a aspectos sociais e sanitários dessa fase de ocupação do Médio Rio Doce. Ele revela a peleja para execução da obra sob sua responsabilidade, destacando entre as dificuldades enfrentadas a insalubridade do ambiente e a presença da malária que atingia os trabalhadores. Muitas referências são feitas sobre a enfermidade, pois é um dos motivos de pedidos de contas e retirada de trabalhadores ‘atormentados pelo padecimento’. Para atenuar a situação, recorria-se ao médico da ferrovia, que aconselhava “vinte e cinco centigramas de sulfato de quinina, pela manhã, e aumentasse a dose fosse necessário; que se almoçasse antes de encetar o serviço; e, finalmente, que se usasse mosquiteiro” (ALMEIDA, 1959, p. 237).8 A advertência do médico nem sempre era observada, e “dia a dia se multiplicavam os acessos de sezões que avassalam aqueles infelizes da turma renovada” (ALMEIDA, 1959, p. 236-237). Muitos trabalhadores não tomavam o quinina, e quando questionados desculpavam-se com saídas engenhosas como a de um deles que admitia escondê-lo debaixo da língua e atirar fora, para longe “por mode eu não ficar surdo”, e outro que dizia que, por sentir muito calor, “tirava o mosquiteiro e deixava as muruçocas picarem meus pés”. Muitos admitiam a transmis8 Cf. Recomendação citada pelo engenheiro é do clínico da estrada Dr. João dos Santos Neves. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 129 são pelo mosquito somente em atenção ao doutor e outras explicações eram dadas pelos trabalhadores para explicar a causa da infecção: “o banho no rio, a água do brejo ou da lagoa, a fruta silvestre comida sem estar sazonada” (ALMEIDA, 1959, p. 236-237). Sobre a presença de serviços médicos e farmacêuticos na região, nas três primeiras décadas do século XX, as informações do engenheiro são reafirmadas por outros textos de expressão local. Com base neles é possível traçar um perfil sanitário adverso: a ocorrência de enfermidades variadas atingia a população dos povoados e das cidades mais prósperas: “verminose de toda espécie, tuberculose, febre tifóide, sarampo, leishmaniose; [...] o saneamento era o maior problema” (PAULA, 1993, p. 558); da saúde em geral tratavam os farmacêuticos práticos que se fixavam na região promissora, em vista da ferrovia; dentistas, também práticos, e médicos formados chegavam aos poucos e as dificuldades de assistência em relação à medicina científica eram grandes (SOARES, 1983; PAULA, 1993; FONSECA, s.d.). Carentes de tudo, os povoados eram poucos e espalhados desordenadamente na imensidão da mata e a beira-rio. O serviço médico da ferrovia atendia os trabalhadores acometidos pelas febres e outras enfermidades, assim como, a população que a ele recorria quando da sua passagem itinerante pelas localidades em que se levantavam os acampamentos (ALMEIDA, 1959). No início da década de 1930 a presença de médicos na cidade de Colatina, beneficiada pela cafeicultura e pela ferrovia, se destacava em comparação à vila de Figueira, no centro do Médio Rio Doce, pois contava com nove médicos contra um único consultório na segunda. Entretanto nenhuma das duas localidades possuía hospital (ROQUE, 1933, apud TEIXEIRA, 1974, p. 68). Em Aimorés foi inaugurado o primeiro hospital no ano de 1936 (PAULA, 1993), mas as práticas populares de cura que se valiam de ervas medicinais e/ou elementos sobrenaturais permaneceram dominantes (FONTENELE, 1959). Os cronistas locais também indicam para essas décadas a existência de uma gama de problemas relacionados às condições de atendimento à saúde e à urbanização desordenada: em geral, os povoados, as vilas e as cidades não possuíam tratamento de água e esgoto satisfatório ou eram incipientes; as ruas não eram calçadas e a poeira ou a lama na época das chuvas eram transtornos para os moradores e para o co130 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO mércio; a falta de estradas radiais dificultava a comunicação e isolava as zonas periféricas; a gente pobre se ressentia da falta de condições de acesso a medicamentos e assistência e contava somente com a caridade de particulares ou de obras religiosas, pois os serviços médicos e farmacêuticos eram poucos ou particulares e caros; a incidência de endemias era constante (SOARES, 1983; PAULA, 1993). As dificuldades de abastecimento interno e a demanda dos países aliados durante a II Guerra Mundial impulsionaram a economia regional. A produção de carvão para a siderurgia de aço e derivados cresceu — para compensar as dificuldades de importação; a exploração da mica ou malacacheta9 ampliou-se e passou a representar um mercado lucrativo e, principalmente, foi preciso reformar a ferrovia para transportar o minério de ferro explorado em grande escala pela recém-criada Companhia Vale do Rio Doce (ESPINDOLA, 1998). O interesse dos Estados Unidos se fez presente diretamente na região, motivado pela presença destes dois minérios estratégicos. Em 1943, para executar o saneamento do Vale do Rio Doce e resolver os problemas das endemias, foi estendido à região o Serviço Especial de Saúde Pública – SESP, criado um ano antes, para atuar nas regiões Norte e Nordeste. Neste ano tiveram início o Programa do Rio Doce e Programa da Mica, com o objetivo de criar as condições sanitárias necessárias para a exploração do minério de ferro e da mica (CAMPOS, 2006, p. 173-189). O SESP foi uma agência de saúde pública criada por meio de um acordo bilateral entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos em 1942, a partir dos chamados “Acordos de Washington” (CAMPOS, 2006, p. 35).10 O objetivo de “implementar políticas sanitárias em áreas econômica e militarmente estratégicas” atenderia, de um lado, interesses americanos imediatos, relacionados às necessidades de guerra, e de aproximação econômica com o Brasil, e de outro, respondia aos interesses do governo Vargas de expandir no território brasileiro a presença e autoridade do Estado” (CAMPOS, 2006, 173-185). 9 Minério bastante utilizado na indústria elétrica e eletrônica dos países desenvolvidos, a mica ou malacacheta é a designação comum dos minerais do grupo dos silicatos de alumínio e de metais alcalinos aos quais freqüentemente se associam magnésio e ferro. 10 Os “Acordos de Washington” selaram a aproximação entre os governos do Brasil e dos EUA, bem como a adesão brasileira ao “esforço de guerra” dos Aliados contra os países do Eixo, durante a II Guerra Mundial. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 131 A fim de situar a atuação do SESP no Médio Rio Doce nas décadas de 1940 e 1950, vale considerar que o estado sanitário desse território não se diferenciava da situação sanitária nacional e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, especialmente considerando as localidades do interior. Como apresentado, no Médio Rio Doce a condição médico-sanitária demandava atenção: epidemias, ausência de serviços médicos, quadro lastimável de saneamento, dieta alimentar deficitária, população sem recursos para adequados suprimentos médicos e farmacêuticos, entre outras dificuldades. Tal desalento torna-se ainda mais instigante se tomarmos os relatórios dos governadores dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo para as primeiras décadas do século XX: o panorama sanitário é oficialmente avaliado como satisfatório em quase todo o período compreendido entre os anos 1910 e 1930; são identificados alguns momentos de intranquilidade, como o ano de 1918, quando se alastra a gripe espanhola nos dois estados. No Espírito Santo o reaparecimento da febre amarela na capital e do paludismo no interior foi apresentado como anormalidade no estado sanitário para o ano de 1917.11 O relatório de 1922 destaca efeitos positivos no combate a verminoses com a continuidade da cooperação com a Fundação Rockefeller. Percebe-se o anúncio de abertura de Postos de Higiene e Profilaxia Rural a partir de 1919, coincidindo com a determinação federal para instituição dessa medida. As referências à capital, Vitória, são muito mais frequentes do que ao interior, contemplando-se as regiões de maior densidade populacional ou dinamismo econômico; nesse caso a área capixaba do vale do Rio Doce merece poucas menções, excetuando a cidade de Colatina, centro irradiador de atividade comercial e de produção agrícola. Entretanto, tais referências indicam a presença de doenças como varíola (alastrim), tuberculose, verminoses em geral com o “ankilostomiase em caráter mais ou menos generalizado”, malária (paludismo), refletindo um quadro sanitário diferente daquele pretensamente considerado satisfatório em muitas ocasiões pelos relatórios oficiais. Em relação a Minas Gerais a situação não é diferente: as referências oficiais a saúde pública, saneamento, assistência hospitalar, assistência a alienados, distinguem em sua maior parte a capital Belo Horizonte 11 Idem. 132 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO e cidades e regiões mais em evidência, por motivos econômicos, políticos ou históricos, a exemplo de Juiz de Fora, Barbacena, S. João d’ElRey, ou Zona da Mata Mineira e Sul de Minas. São indicados problemas sanitários, de abastecimento de água, de endemias, especialmente verminoses variadas, em diversas localidades do interior do estado. Essas considerações são importantes para se compreender como e por que o vale do Rio Doce ganha visibilidade nas novas conjunturas mineira e nacional. Concomitantemente a instalação do SESP em localidades do Médio Rio Doce e sua consolidação perpassa por essas questões levantadas. Embora guardasse riquezas virtuais, esse território foi de tardio povoamento e recebeu pouca atenção do poder público nas três primeiras décadas do século XX; todavia, a demanda pelas riquezas e as possibilidades produtivas ali identificadas aceleraram sistematicamente o processo de sua exploração. Assim, em 1943 foi definida pelo governo federal, a atuação no Médio Rio Doce do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). As condições sanitárias e de saúde encontradas pelo SESP na região não eram das melhores como se viu. Na área Linha Acima12, onde havia dezoito pequenas cidades e quatro campos de trabalhadores a malária era endêmica e parasitoses variadas acometiam a população (FSESP, cx 48, doc 42); na área de Linha Abaixo, com 12 cidades e aproximadamente 32 acampamentos a situação não era diferente (FSESP, cx 21, doc 29); a malária também foi diagnosticada em Colatina e identificados seus vetores (FSESP, cx 21, pasta 146); em Governador Valadares, um surto da doença se alastrava (FSESP, cx 48, doc. 42). Em todas as localidades inspecionadas as condições de higiene e saúde pública eram deficitárias. Nos acampamentos de trabalhadores da ferrovia a situação se agravava. O levantamento feito pelo médico americano James Knott (apud CAMPOS, 2006: 175-176), diretor da primeira etapa do Programa, revelava a precariedade: em cada acampamento, organizados de forma temporária, viviam entre 100 e 300 pessoas, em geral analfabetas; construíam-se barracões para solteiros (de 12 a 20) ou em compartimentos em outros barracões para aqueles que estavam com a família; a água 12 A região estipulada foi dividida em duas áreas: Linha Acima, entre Governador Valadares e Nova Era (antiga São José da Lagoa) e Linha Abaixo, entre Governador Valadares e Colatina (no estado do Espírito Santo). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 133 era obtida em riachos ou pântanos próximos, inclusive neles as mulheres lavavam as roupas; não havia banheiros; não se cultivavam hortas e o alimento básico era comprado na venda do empreiteiro; os barracões de sapê (paredes de barro e teto de folhas de palmeira) mal divididos facilitavam a presença de insetos. A propagação de doenças (disenterias, infecções intestinais, malária) seria inevitável nesta situação. Medidas profiláticas de combate à malária e outras doenças, bem como a organização dos serviços de abastecimento de água e de rede de esgotos em algumas cidades ao longo da EFVM e outras medidas afins, como cursos para formação de pessoal e educação sanitária, foram implementadas pelo Serviço especial de Saúde Pública. O SESP atuou na assistência médica, na educação sanitária, no saneamento e no controle de doenças transmissíveis, bem como cuidou de formar profissionais da saúde, implantando e desenvolvendo, em vários estados, escolas técnicas e de graduação em enfermagem. No vale do Rio Doce os municípios existentes ao longo da EFVM foram assistidos pela implantação de serviço de água e esgoto, ações de saneamento, como a construção de latrinas, identificação dos vetores e combate à malária e a outras endemias, cursos para parteiras e cuidados infantis, treinamento para atendentes de centros de saúde e para guardas sanitários, treinamento para visitadoras que faziam trabalho de educação sanitária, entre outras atividades. A continuidade da expansão econômica e demográfica da região depois de encerrada a Segunda Guerra até o final da década de 1950, em certa medida, foi favorecida pela decisão governamental de manter os programas de saneamento. A atuação do SESP na criação dos serviços de água e esgoto, na erradicação das endemias e na modificação das práticas de saúde, alterando costumes, valores culturais e organização do espaço tiveram influência decisiva na configuração territorial da região (BASTOS, 1993, p. 329).13 Pesquisadores sobre a emigração de moradores da cidade de Governador Valadares e da circunvizinhança para os Estados Unidos, desde a década de 1960, consideram a presença de americanos na região, nesse período como um dos fatores 13 “Em 1942, a lado e um pouco à margem dos serviços federais de saúde de rotina, iniciou-se um profundo trabalho de modificação da mentalidade brasileira que iria refletir-se nas atividades de Educação para a Saúde. Esse processo começou com a criação do SESP”. 134 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO determinantes (SOARES, 2002, p. 110).14 É significativa a opinião de Siva Monteiro de Castro, advogado que vivia em Governador Valadares na década de 1950, referindo-se ao trabalho do SESP: Graças ao admirável programa de Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), o saneamento desta região ora se processa a luz de recentes preceitos de medicina e engenharia sanitária, o que vai garantindo a fixação do homem em zonas onde outrora a malária estiolava a força construtiva do braço humano (CASTRO, 1951, p. 36). O geógrafo Ney Strauch em estudo encomendado pela Companhia Vale do Rio Doce em 1951 e publicado em 1955 (STRAUCH, 1955, p. IX) pelo serviço gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conclui que entre os aportes econômicos advindos da presença da EFVM, recém-reformada para atender a exportação de minérios, a questão sanitária ficou resolvida: Fator importante, coroando os incalculáveis benefícios prodigalizados pelo vale do rio Doce no setor da economia, foi o saneamento da região, empreendido pelo Serviço Especial de Saúde Pública - SESP, a cargo de uma comissão mista de sanitaristas brasileiros e norte-americanos, com a extinção da malária e outras endemias, instalação de água potável, esgotos, assistência médica e distribuição de medicamentos às populações da vasta zona do vale do rio Doce (STRAUCH, 1955, p. 188). Ao contrário do que a informação sugere, longe de resolução, o problema sanitário ainda se constituía à época do estudo (1951) um entrave à ocupação de certas áreas da bacia, como o vale do Rio Suaçuí, não atingido diretamente pela EFVM nem atendido pelo SESP, onde a falta de saneamento e os altos índices de malária, esquistossomose e amebiana eram dominantes (STRAUCH, 1955, p. 39). O relatório da Companhia Vale do Rio Doce de 1963 reconhece que o rápido crescimento das ci14 “A absoluta liderança exercida pelos Estados Unidos da América na preferência dos emigrantes valadarenses remete a intensas ligações mantidas pelo município de Governador Valadares com esse país: durante a II Grande Guerra, a economia valadarense foi impulsionada pelo comércio da mica, que, sendo importante para a indústria bélica, trouxe firmas americanas para a cidade [...]. Nesse mesmo período, as modificações no traçado da Estrada de Ferro VitóriaMinas [...] eram realizadas também por intermédio de uma companhia americana. A presença dos Estados Unidos em Valadares manifesta-se ainda na construção do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP [...]. Esses três fatos colocaram os valadarenses em contato com os americanos e sua cultura. Portanto, foram os vínculos estabelecidos historicamente com os EUA que permitiram a construção, em Valadares, de laços sociais norteadores da opção migratória”. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 135 dades não foi acompanhado pela oferta de serviços públicos aos particulares nem para as indústrias, prevalecendo “enormes atrasos em relação às necessidades atuais” (COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, 1963, p. 12). Na verdade, o processo de crescimento das cidades era muito mais acelerado do que as políticas públicas podiam dar conta. Desenha-se, portanto, um território que, como visto nos rastros documentais acima, em suas dimensões econômica e política, trilhava um caminho de acelerado crescimento com a abertura da EFVM sem, contudo, ter políticas sociais que acompanhassem tal processo. Nesse território econômico fervilhavam as oportunidades para os interessados nas riquezas do Médio Rio Doce e o tempo da tecnologia e da modernidade passava rápido. Num outro compasso temporal, estavam os territórios social e cultural desta população que se aglomerava às margens da ferrovia e da rodovia, que logo se estabeleceria. Sem assistência social e sanitária de espécie alguma, os territórios do cotidiano e das mentalidades (simbólico) encontravam-se preso às rezas, benzedeiras, raizeiros e crendices, levando a população a desprezar o pouco recurso sanitário e médico que lhes era ofertado. Falamos, portanto, de um território entrecortado, palmilhado pelas doenças e pelas promessas de futuro, imerso numa mesma cronologia, sem dúvida, mas num mesmo tempo? Talvez esse tenha sido o grande papel do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), efetuar através de suas políticas sanitárias o compasso entre os tempos dos territórios da modernidade e do cotidiano. O saneamento, o desenvolvimento e o cotidiano através da memória: os desafios do tempo da alma Dado que as práticas culturais relacionadas à doença e suas profilaxias e terapias têm uma longa história e profundo vínculo com as práticas tradicionais era de se esperar, no mínimo, resistências às propostas ditas modernas. Assim, ao longo das memórias temos sempre práticas de negação, boicote e mesmo oposições explícitas. Por ser um objeto complexo, tanto as memórias do saneamento, quanto os esquecimento vinculados ao processo e a polifonia que se estabelece entre antigos funcionários e indivíduos que vivenciaram o processo nos remetem a um exercício de contraponto com as transformações ocorridas que remarcaram e reordenaram um dado território que passa a se apresentar de uma forma multifacetada. Isto posto, faz-se necessário um aparato 136 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO que, em respeito ao objeto ora proposto, seja em sua essência interdisciplinar englobando não apenas uma perspectiva meramente histórica mas, fundamentalmente, humanista no sentido de ancorar as narrativas e o processo de saneamento ocorrido em suas múltiplas perspectivas. Ora, partindo desse pressuposto, estamos diante de um fenômeno multifacetado, compreendendo o saneamento, o território e a memória que, nesta estratégia de pesquisa, pode ser mais bem compreendido a partir de diversas narrativas que remetem a práticas e a efetivação dessas em um território que também se apresenta de forma múltipla e dinâmica uma vez que sofre reordenamentos. Esta reordenação territorial, por sua vez, desencadeia ações por parte dos agentes envolvidos, sejam eles de saúde ou da sociedade civil. Por essa razão, acreditamos que a contribuição de Max Weber possa ser positiva, em sua proposta de uma sociologia compreensiva englobando as várias esferas da sociedade. A sociologia compreensiva de Weber é a proposta de uma ciência da realidade, através da qual o pesquisador busca o significado cultural de suas diversas manifestações assim como as razões históricas de seu desenvolvimento (WEBER, 1968, p. 170-171 apud COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 26). A par dos rastros documentários que discursam sobre os projetos executados pelo SESP é importante ponderar as impressões daqueles que viveram, re(viveram) e experienciaram tal processo de saneamento. Para tanto, utilizaremos algumas narrativas de informantes, dentre os quais se encontram quatro funcionários do SESP e quatro indivíduos que viveram nas décadas de 40 a 60, no auge da atuação do serviço. Dentre os funcionários, o primeiro, é um agente sanitário que trabalhou por décadas no Serviço em Governador Valadares; a segunda e a terceira funcionárias, foram serventes treinadas em Colatina, posteriormente, para atuarem como auxiliares de atendimento; o quarto, dentista e um dos nomes mais significativos na implementação dos projetos de saneamento do SESP em Governador Valadares. O trabalho do agente sanitário, segundo o Informante 1, era fazer inquérito de higiene nas moradias e ao mesmo tempo fazer divulgação de hábitos de higiene e saneamento, como utilização das fossas, limpeza das áreas ocupadas, tratamento do lixo. Segundo seu depoimento, alguns moradores ficavam receosos ou mesmo não gostavam de receber os agentes sanitários, por vergonha ou desconforto da presença dos mesmos nas moradias. Nestes casos eram instruídos para falar com TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 137 autoridade a fim de convencer o morador, o que dava resultado na maioria das vezes. Configurava-se uma situação muito incômoda a falta de higiene com os alimentos. Na narrativa do Informante 1, é comum a lembrança de ver muita gente lavar as verduras na mesma bacia do banho ou regar a horta com a água já utilizada para higiene. Nosso depoente chama a atenção para o que ele considera uma situação vexatória. Ela ocorria quando alguma pessoa atendia o apelo do guarda para procurar o Centro de saúde e não era atendido conforme o esperado seja no horário ou na forma de tratamento. Frequentemente essa situação acarretava reclamações com o guarda que havia insistido na busca pelos serviços do SESP, e este era tido como culpado pela perda de tempo ou confiança nos serviços sespianos. Para este agente sanitário um trabalho muito importante era acompanhar as enfermeiras ou atendentes nas escolas para atividades de educação sanitária, porque as crianças aceitavam muito mais facilmente os ensinamentos e novos hábitos divulgados, inclusive reforçando-os em suas casas. Segundo nosso informante, cada agente possuía um roteiro, e um mapa da cidade para facilitar o serviço; ao fazer as visitas os agentes faziam um itinerário que continha o endereço completo das casas que estavam sendo atendidas. Algumas pessoas tinham resistências a esse serviço, por não aceitarem o acesso de desconhecidos em suas casas; quando esse era permitido, os agentes iam verificar se na casa havia banheiro, rede de esgoto, caso contrário, eles providenciavam e dava-se baixa naquele serviço. O ex-guarda sanitário também pontuou que mesmo com as melhorias higiênicas, a população da zona rural, da periferia e até mesmo da cidade, utilizavam as privadas para guardar arreio dos cavalos, colocarem galinhas para chocar; as pessoas mesmo não utilizavam. Ele explicou que mesmo as pessoas possuindo latrinas em suas casas, não tinham o costume de usá-la, pois permanecia o costume de ir “ao mato”, o que “contaminava o solo com vermes, micróbios, e as pessoas que andavam descalço naquele lugar e também tudo que está ao redor”. Segundo nosso informante muitas dessas pessoas, oriundas da zona rural, mantinham aqueles costumes e resistiam aos novos equipamentos sanitários. Não compreendiam ou desconfiavam dos divulgados ‘milagres’ do saneamento. Curioso é que o mesmo informante afirmou que ele mesmo “não sabia nada de saneamento” antes de entrar no Serviço, ele mesmo sendo convencido das novas idéias e tornando-se seu divulgador. 138 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO As informantes 2 e 3 que atuaram em uma unidade de atendimento do SESP em Colatina também refletem a mesma realidade descrita pelo informante 1. E, assim como ele, ao relatarem suas impressões sobre a processo de saneamento promovido pelo SESP, relembram um pouco do que viveram e do sentiram. Em suas narrativas, ficaram registradas a situação precária da população e o esforço enquanto simples zeladoras, que se tornam auxiliares de atendimento mediante treinamento interno no serviço. Elas retratam situações cotidianas em que era necessário comprarem marmitas para mães cercadas de crianças famintas. O destaque dado ao trabalho incessante de limpeza do posto de atendimento acaba contrastando com os inúmeros casos em que elas cumpriam ordens médicas para banhar os pacientes antes da consulta, fato que evidencia a falta de higiene pessoal da população. Tal como o informante 1, preferem silenciar os enfrentamentos entre a nova perspectiva de higiene promovida pelo SESP e os atendidos pelo serviço. Mas, deixam escapar nas entrelinhas de suas narrativas a dificuldade enfrentada para vacinar pacientes mordidos ou picados por animais. Talvez esse estranhamento entre as práticas sanitárias orientadas pelo Serviço e aquelas praticadas cotidianamente não tenham saltado em suas memórias porque fosse comum, algo com o qual elas acabaram lidando no dia-a-dia. Nesta rotina conturbada, de limpeza das instalações e da promoção da higiene nos pacientes, da recusa aos medicamentos receitados – por vezes, alternados com ‘água de fubá’ conhecido de todos – da desnutrição infantil e da fome generalizada elas relatam acabam por vislumbrar o SESP como uma ilha imersa no caos, onde muitos recebiam mais do que assistência médica, o trabalho era também de atenção social. Percebe-se nessas informações a dificuldade de territorializar o saneamento. Mesmo com as interferências físicas nos territórios domésticos e públicos, os territórios simbólicos e mentais permaneciam à margem da modernidade, num outro tempo. Em contraste com os informantes anteriores, recrutados em meio à população do Médio Rio Doce e imersos num mesmo universo mental, o informante 4, conta que ao chegar do Rio de Janeiro, no início da década de 1940, possuía uma mentalidade mais evoluída que a da região [sic]. Sua fala remonta frequentemente às origens dos eventos relacionados a Governador Valadares, levando-o a conectá-los tanto à História do Brasil quanto a História Contemporânea mundial, numa busca de TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 139 argumentos que possam justificar a ação do SESP, inclusive sua criação. Remonta à questão da História do Brasil, “tumultuada pela Revolução de 30, o Estado Novo de Getúlio Vargas”, em seguida chega à II Guerra Mundial, que “fez florescer toda a região do Médio Rio Doce”, pois precisavam [os Aliados] da mica de Governador Valadares, do minério de ferro de Itabira, e da borracha da Amazônia. Na perspectiva desse informante, Getúlio assina um acordo com os Estados Unidos, e para garantir a legitimidade do serviço de saúde pública financiado pelos americanos, dá ao mesmo uma característica “especial”, com autonomia em relação ao Ministério de Educação e Saúde, então existente. O Brasil se transformou em função da imposição da guerra o que, segundo nosso depoente, explica o porquê do Serviço Especial de Saúde Pública. Para ele, o Brasil não podia ter um órgão público criado para suprir os interesses americanos relativos ao saneamento das regiões acima referidas, sem ferir a soberania nacional. Então, uma das aplicações de recursos ao Brasil, pelo acordo de Washington, foi a criação do SESP. Após a chegada do SESP, de acordo com nosso informante, foi dada ênfase à medicina preventiva que o mundo já conhecia, diferentemente do Brasil, que conhecia somente a medicina curativa. De acordo com a opinião do informante 4 o Serviço conduziu à revolução na saúde no Brasil e que, hoje, estão tentando reavivar o que fizeram há cinqüenta anos para a área da medicina doméstica e dietética. Essas informações nos levam a questionar a validade da ação sespiana e o sucesso de sua política de saneamento e atendimento. Ao falar da situação sanitária de Governador Valadares, o informante 4 a descreve como sendo muito precária e com muitas endemias. Ele considera que o SESP foi muito importante para todos os moradores de Governador Valadares e lamenta por ele não existir mais, por não ter sido adequado a estrutura jurídica e aos interesses da saúde brasileira. Em outras palavras, para esse depoente as mudanças ocorridas – em 1960, a transformação do SESP em Fundação SESP, ligada ao Ministério da Saúde, e finalmente sua incorporação pela FUNASA (no Governo Collor) atendeu a novos propósitos políticos/jurídicos e de diferentes interesses e políticas públicas. A dimensão do trabalho efetuado pelos funcionários do SESP só pode ser aferida se pensarmos a partir dos hábitos locais nas décadas de 40 a 60. Os informantes que vivenciaram essas décadas e que não 140 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO tiveram uma ligação direta com o serviço nos confirmam algumas indicações já coletadas nos rastros documentários expostos no item anterior e nos ajudam a formar uma pálida idéia do que era a cidade de Governador Valadares, considerada pólo da região e como eram percebidos os aspectos sanitários. O informante 5 fala de uma cidade de pouco mais de sete mil habitantes, no início da década de 40, sem água encanada e tratada. Essa água turva chegava numa carroça, dentro de uma cartola (tambor) e era consumida sem ferver. As primeiras noções de higiene e saneamento vieram com os filmes do SESP, projetados em praça pública. Nosso informante chegou a ser atendido no posto do SESP, fez exames para averiguar as causas do mal que sofria, mas, de acordo com seu próprio relato, após pegar o resultado do exame, colocou na carteira, por desconhecer que o processo de tratamento. Esse fato nos permite raciocinar de forma indiciária no sentido de que o Serviço podia em alguns casos a falta de informação dos procedimentos normais dos tratamentos. Sem ter nenhuma orientação, nosso informante não retornou ao médico, o que veio a fazer um ano depois, num consultório particular. Morador do centro da cidade, ele se recorda que nos anos seguintes iniciou-se um processo de tratamento de água e de construção de fossas secas nas casas. Mas, esses procedimentos ocorreram para um pequeno número de casas e estabelecimentos comerciais do centro, diferindo bastante do restante da população. Mas, esse acesso ao SESP, a médicos e aos novos hábitos sanitários não perdurou na lembrança de todos. Outras informantes (6 e 7), relatam a cidade de Governador Valadares em fins da década de 30 e nas seguintes, como uma cidade sem calçamento, sem luz e nem água, com incidência de muitas doenças. Elas não falam do SESP, nem dos médicos que atendiam lá, embora morassem na área central da cidade. Lembraram-se que muitas vezes o purgante era melhor que o médico e que outros preferiam procurar as benzedeiras a esperar um médico aparecer na cidade. Essa mesma impressão nos é passada pela informante 8, residente numa área um pouco afastada do centro. A falta de luz, água e saneamento também é relatada apesar de sua condição financeira satisfatória, se comparada a outros moradores na mesma época. Essas melhorias só aparecem na memória da informante em fins da década de 60. Nesse sentido, essas lembranças se aproximam dos relatos de Ceciliano Abel de Almeida, de Strauch e dos cronistas locais – vistos TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 141 na primeira parte deste ensaio – e acabam por questionar tanto os relatórios presidenciais de Minas e, posteriormente, o próprio discurso do SESP que projetava para toda a população tanto as melhorias quanto as transformações oriundas da modernidade pretendida. Os relatos dos funcionários acima mencionados coincidem na avaliação sobre o controle exercido pelo Serviço, que segundo eles era muito organizado. O trabalho dos guardas ou agentes sanitários era supervisionado e cada um tinha um itinerário determinado, fichas próprias para preenchimento; andavam a pé ou de bicicleta e cobriam toda a cidade, indo também à zona rural. Havia muito rigor por parte dos diretores e qualquer desvio era punido com a suspensão do serviço, conhecida entre os agentes como “balão”. O mesmo rigor se manifesta nas narrativas das auxiliares de atendimento. Talvez esse rigor se deva ao fato de que havia investimento externo e era direcionado especificamente para a constituição de um cenário propício para a extração de minérios. Algumas observações podem ser realçadas a partir das informações coletadas. Em primeiro lugar, são comuns entre os informantes as demonstrações de carinho relativo aos anos de trabalho na agência. De modo geral, eles não relatam problemas, erros ou desmandos e nem mesmo conflitos entre o SESP, a sociedade e o governo. Toda a ação tende a ser descrita pelos depoentes como muito bem organizada e eles revelam um sentimento de lealdade ao SESP. Há um destaque freqüente em relação aos bons salários pagos em comparação àqueles pagos na cidade de Governador Valadares e região e a isso agregam a posição social distinta que os funcionários conquistaram. Para além de questões financeiras e sociais, percebe-se na fala dos funcionários, uma apropriação do discurso técnico-científico incutido a partir dos cursos oferecidos pelo SESP. Uma análise mais cuidadosa desses depoimentos mostra como pessoas comuns se transformavam em agentes de mudança, propondo melhorias sanitárias que até bem pouco tempo era novidades até para eles. Em parte, evidentemente, isso pode ser explicado por questões financeiras e salariais. Por outro lado, fazia parte da política do Serviço treinamentos sistemáticos e com constante supervisão do trabalho. Todos falam do investimento dos norte-americanos como se somente estes estivessem à frente do processo de saneamento básico. Nesse sentido, tem-se a impressão perder-se a perspectiva de que havia 142 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO um acordo bilateral entre os Estados Unidos e o Brasil. Outra fala que é comum entre os depoentes é o reconhecimento da atuação do SESP trazendo melhorias para a região, apesar dos limites que o empreendimento dessa natureza e naquelas circunstâncias estão presentes. A partir dessa perspectiva a ação social dos funcionários do SESP pode ser compreendida a partir dos delineamentos weberianos que a pondera enquanto uma modalidade específica de conduta à qual o próprio agente associa um sentido, objetivamente visado pelo agente e que se manifesta em ações concretas, fundamentadas por um motivo. O vínculo motivacional que envolvia todo o corpo de funcionários sespianos forneceu-lhes uma dimensão processual à ação social executada e nos impede de analisá-la como ato isolado. Toda a ação destes funcionários se encaixa numa seqüência definida de elos significativos, formando o que o autor identifica como uma ‘cadeia motivacional’. Para além do conceito de ação social, Weber propõe um desdobramento no intuito de avançar para além do individual; o conceito de relação social. Este último conceito se refere “à conduta de múltiplos agentes que se orientam reciprocamente em conformidade com um conteúdo específico do próprio sentido das suas ações” (COHN, 1991, p. 26 a 30). A diferença básica entre eles está no fato de que no primeiro a conduta é orientada significativamente pela conduta de outro(s) enquanto no segundo, a conduta de cada agente é orientada por um sentido reciprocamente partilhado. Nesse ponto, compreende-se o delineamento de um discurso sespiano, com elementos de continuidade onde as narrativas se cruzam e ganham força mesmo quando se referem a um contexto caótico, permeado de confrontos culturais que tentam redefinir as práticas cotidianas de uma população inteira. Além disso, as narrativas mostram um território múltiplo, ou seja, aquele definido nos documentos do SESP, aquele visitado pelos agentes de saúde e o vivenciado pelos indivíduos (HAESBAERT, 2006, p. 93). Partindo desse enfoque, o território encontra-se inserido dentro de um contexto sócio-histórico imerso em relações de poder e a territorialidade exercida por cada um dos grupos é compreendida como o controle de pessoas e/ou recursos a partir de uma estratégia espacial para atingir, influenciar ou controlar outros recursos e pessoas, podendo ser ativada ou desativada. “Assim, podemos afirmar que o território, relacionalmente falando, ou seja, enquanto mediação espacial do poder resulta da interaTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 143 ção diferenciada entre as múltiplas dimensões desse poder, desde sua natureza mais estritamente política até seu caráter mais propriamente simbólico, passando pelas relações dentro do chamado poder econômico, indissociáveis da esfera jurídico-política” (Idem, Ibidem). Essas relações de poder, recortando territórios, podem ser vislumbradas nas narrativas dos informantes e nos rastros documentais expostos anteriormente. Territorialmente, as cidades do Médio Rio Doce apresentavam espaços de atuação sespiana com uma dinâmica de saneamento e de interferência direta sobre as práticas cotidianas dos indivíduos, mas não alcançava todos os recantos, onde prevaleciam as territorialidades ainda mantidas enraizadas às práticas da medicina popular, cujos hábitos de higiene tinham regras próprias e uma valorização cultural inerente à mentalidade local. Na proposta prática das atividades do SESP havia um mapeamento que fundamentalmente era externo a essas relações simbólicas já presentes. Não estaria na desconsideração dessas dimensões simbólicas presentes na territorialidade um dos motivos pelos quais os objetivos do Serviço foram alcançados de modo limitados e, no geral, não foram duradouros? Tanto isso é verdade que o informante 4 julgaria de bom proveito o retorno do Serviço. Não estaríamos, portanto, lidando com um fenômeno que, por sua natureza, envolve processos complexos e de longa duração; e, que requerem, para ser compreendidos, lançar-se mão de uma simbólica e de uma ritualística para as relações? Contudo, não há como não reconhecer que a força do discurso sespiano ganhou adeptos para além do corpo de funcionários. O discurso dos memorialistas, difundido na década de 1970, se desenvolve no sentido de distinguir um grupo seleto de famílias que teriam vindo para Governador Valadares, e outras cidades do Médio Rio Doce, na década de 1930 e, especialmente, na de 1940, na mesma época de implantação e estabelecimento do SESP. Essas famílias teriam atuado de maneira a promover o desenvolvimento local a partir de seus múltiplos empreendimentos. Os chamados ‘pioneiros’, responsáveis pelo progresso e modernidade da cidade, estabeleceram moradia nas áreas centrais de Governador Valadares. Vozes privilegiadas para relatar sobre o passado local, eles acabam por fundir ao próprio relato a responsabilidade pelo progresso e da civilização às suas próprias famílias. Por esse motivo, ao relatarem sobre a história, o fazem numa perspectiva linear e evolutiva, ressaltando os feitos de famílias ilustres, prestigiadas e que coadunavam 144 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO com os esforços de civilização e modernização empreendidas pelo SESP. Como esse discurso foi o único a ser divulgado sobre a formação da cidade e seu desenvolvimento até as últimas décadas, ele de certa forma acentua e potencializa a ação do Serviço. Mesmo porque, o grupo de pioneiros, residentes em sua grande maioria no centro da cidade, foram os que de fato receberam de forma mais intensa a atuação do SESP e vivenciaram cotidianamente os projetos de saneamento então executados, como a abertura de redes de esgoto e tratamento de água. Num contraponto com os memorialistas e funcionários sespianos, a memória produzida pela mídia, especialmente a do Jornal Diário do Rio Doce, circulante em Governador Valadares, reflete mesmo nas entrelinhas de um discurso jornalístico filtrado pelos interesses em voga, um alerta para situações cotidianas que ocorriam num território que estava além daquele habitado pelos ‘pioneiros’ e no qual o SESP encontrava as condições necessárias para implementação de seus projetos. Uma breve varredura sobre as manchetes mais significativas chama à atenção para várias matérias relativas à periferia de Governador Valadares, cujos problemas de saneamento e saúde pública revelam outra realidade, bem distante daquela descrita pelos memorialistas ao falarem das décadas de progresso e civilização ao se referirem aos ‘pioneiros’ (JORNAL DIÁRIO DO RIO DOCE, 1958 a 1970). Frequentemente o jornal noticiava a falta de abastecimento de água tratada, o lixo espalhado pelas ruas da cidade, inclusive aquelas da área central, as demandas da população no aspecto sanitário e de saneamento básico (Idem). Aliás, essas notícias, curiosamente, não aparecem apenas no final da década seguinte à implantação do SESP e à consolidação do desenvolvimento e modernidade empreendidos pelos ‘pioneiros’, elas se estendem por toda a década seguinte e avança à década de 1970, mostrando que a ação do SESP embora tenha de fato produzido mudanças significativas não avançou no sentido da transformação propagada pelo discurso de saneamento implementado pelo Serviço e pelos memorialistas. Ambos elaboram um discurso que, baseado numa espécie de ponto inicial, na década de 1940, forjam uma tradição que funde a ação saneadora e modernizadora do SESP com a atuação empreendedora dos ‘pioneiros’ no que poderíamos chamar de um novo marco de surgimento de Governador Valadares, distanciando-se de sua matriz secular de atraso frente às demais regiões mineiras (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 9 a 24). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 145 Considerações finais O levantamento prévio da situação sanitária da região nos rastros documentais da primeira parte desse ensaio nos mostra uma determinada dinâmica sociocultural e econômica, em que atuavam diversos atores sociais, agregada aos processos de ocupação e exploração do território do Médio Rio Doce na primeira metade do século XX. Nesse sentido, as descrições dos memorialistas locais da década de 70, os documentos oficiais e relatórios presidenciais, convergiam para uma situação comum, em que o domínio da floresta tropical e a presença do Rio Doce definiriam as condições de povoamento e de desenvolvimento socioeconômico, além de se relacionar com as condições sanitárias da região. Neste processo de territorialização, o povoamento ocorrido de forma mais contundente nas quatro primeiras décadas do século XX nos leva a um panorama onde é possível a distinção entre dois grupos de ‘povoadores do vale do Rio Doce’: (a) um grupo que se assenhora das terras e da riqueza, inclusive com amparo legal, os autodenominados “pioneiros”; e (b) outro grupo maior, de trabalhadores de várias especialidades — agricultores, oleiros, canoeiros, carpinteiros, braçais, cortadores de madeira, etc., e suas famílias, que ao fim seriam os brasileiros que careciam da assistência médica, do provimento de equipamentos e de educação sanitária. Foi em meio a essa população que o SESP atuou e é com base nesses registros, daquilo que o Serviço diz ter feito e do que a população diz ter recebido e internalizado que ponderaremos sobre o processo em tela. As referências ao SESP nos textos de memorialistas locais e no depoimento dos antigos funcionários tratam-no com a deferência dirigida à autoridade ou benfeitor, e são comuns os elogios à sua atuação e à proposta ‘moderna’ para a saúde e o saneamento de áreas urbanas e rurais. Tais menções são afirmativas da capacidade e da competência do Serviço e de seus técnicos, dos benefícios realizados para as cidades e as populações atendidas, tais como a erradicação da malária, tratamento de outras enfermidades e implantação de serviços para o tratamento de água e esgoto. Nesses discursos a ação de SESP é digna dos melhores louvores, e são raros os questionamentos críticos como o publicado no jornal valadarense Voz Rio Doce, em 1947, dizendo que o SESP era pura fachada de “macaquitos” metidos a “yankee”. Em trabalhos acadêmicos mais recentes sobre o Médio Rio Doce, a 146 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO ação do SESP é reconhecida como um dos fatores que impulsionaram o desenvolvimento regional entre as décadas de 1940/1950 e relacionada a ele, porém de forma pontual, sem aprofundamentos sobre as atividades realizadas ou métodos utilizados. Nesse sentido, verificar o contexto de constituição do SESP e a concepção de saúde e de desenvolvimento subjacentes às suas práticas, bem como as condições de sua manutenção, através do acordo bilateral até 1960 tornou-se fundamental para avaliar sua atuação no Médio Rio Doce. As metodologias de intervenção que acompanharam a execução dos projetos de saneamento e de assistência médica se relacionaram com a concepção do “círculo vicioso da doença e da pobreza” e com uma pedagogia sanitária em que a responsabilidade individual sobrepuja a responsabilidade política. As duas tendências observadas nos relatórios e nas publicações do SESP — o tripé ignorância-pobreza-apatia — como causas do agravamento do quadro nosológico, e o entendimento da saúde como fator de desenvolvimento econômico, anunciam, mas não esclarecem as interferências das condições sociais sobre a propagação de doenças. Essa concepção parte da suposição de que certos hábitos, costumes e sistemas de crenças populares, bem como processos de cura a partir da medicina rústica, são manifestações de ignorância e superstição. Os relatos e imagens que os sanitaristas Belizário Penna e Arthur Neiva divulgaram sobre as populações do interior do Brasil (de isolamento, doença, uso da terapêutica popular, apatia e ignorância) em seu Relatório da viagem científica realizada em 1912 ao Norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e Goiás de Norte a Sul (promovida pelo Instituto Oswaldo Cruz, por requisição da Inspetoria de Obras Contra as Secas) e publicado em 1916, na Revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, foram reapropriadas por diversos intelectuais em suas interpretações do Brasil e reforçaram essa tese (LIMA, 2008). Para o Médio Rio Doce, as ações do SESP entre as décadas de 1940 e 1950 propiciaram o ordenamento dos territórios urbanos, o saneamento rural, a erradicação da malária, a contenção de outras endemias e a imposição das práticas médicas científicas. Dessa forma, foram criadas as condições territoriais para a região receber e expandir os grandes investimentos de capital (mineração, siderurgia, indústria madeireira) e, ao mesmo tempo, confirmar como fronteira agrícola (expansão da pecuária de corte e produção agrícola), confirmando-se o TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 147 papel do Serviço, na consolidação e no fortalecimento da presença do Estado (state building) nessa região. Para a população atendida tais ações provocaram alterações nas práticas de saúde, nos costumes e nos valores culturais e uma (re)organização do espaço. O discurso de ciência em que o SESP se apoiava procurava sistematizar uma pedagogia sanitária de intervenção na comunidade e tal pedagogia se opunha às estratégias que a comunidade utilizava para lidar com as doenças. Portanto, a atuação deixa claro o objetivo de preparar as gerações mais novas segundo os padrões científicos e simultaneamente combater as práticas da medicina popular. Nessa dinâmica, as visitadoras, as auxiliares de atendimento e os guardas sanitários se apropriaram do discurso técnico-científico e eles mesmos se percebem como agentes de mudança “por dentro”, pois eram membros das comunidades atendidas ou que tinham o mesmo perfil, como em geral ficou implícito nos depoimentos apresentados ao longo deste ensaio. Para nossos informantes, antigos funcionários, o SESP foi uma benesse do poder público, confirmando a tese de que a disponibilização de bens públicos de saúde não foi usufruída como conquista social. A população atendida pelo SESP ainda está por ser ouvida, auscultada. De mais a mais, ainda não se cumpriu no Médio Rio Doce, tampouco no Brasil, a meta estampada no selo comemorativo de 1960, por ocasião da transformação do SESP em Fundação SESP, de responsabilidade de Dom Basílio Penido, médico e monge beneditino: Salubritas ubique curanda, isto é, “seja a saúde promovida por toda a parte”. O nosso outro grupo de informantes nos dá um panorama bem diferente, no qual a benesse, quando é usufruída nem sempre apresenta o mesmo caráter transformador, como ficou revelado no caso em que o paciente fez o exame, mas por falta de orientação sequer o levou ao médico para ser devidamente medicado. Em outros, o Serviço sequer foi referido e quando as narrativas sobre o cotidiano tocam na questão das endemias e das dificuldades sanitárias, os informantes não se referem diretamente ao SESP como um agente transformador. O curioso é que o esquecimento tanto esteve presente nas narrativas daqueles que se encontravam mais afastados das áreas onde a atuação sespiana ocorreu com mais intensidade quanto nas áreas mais próximas. É nesse sentido que podemos falar de um objeto transversal. A questão sanitária perpassa os meandros do território físico, demarcado 148 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO na região do Médio Rio Doce de acordo com os documentos oficiais, mas também remete a outra concepção de território imerso em um contexto sócio-histórico, cercado por inúmeras relações de poder que vão desde as estabelecidas entre os habitantes autóctones e os ‘pioneiros’ àquelas que vinculavam os interesses americanos à região. Esta segunda concepção de território, de cunho relacional, nos dá uma dimensão mais apurada das territorialidades que ora se chocavam, ora se complementavam no processo de saneamento que se desenrolava principalmente nas áreas centrais em direção à periferia da cidade de Governador Valadares como também dos outros centros atendidos. Simbolicamente, o território atendido pelo SESP era visto de forma global e incluía a cidade, mas em função das múltiplas territorialidades, a realidade fornecia novos contornos aos projetos executados. As informações e a educação sanitária pretendida pelo SESP não desconfiguravam as práticas cotidianas da população da periferia que mesmo assistida mantinha seus costumes. A territorialidade dominante dos ‘pioneiros’ de Governador Valadares – que podemos tomar como um centro exemplar em relação às demais cidades do Médio Rio Doce – revestida de modernidade se sobrepunha a da população menos abastada que em muitos aspectos não contestou o discurso civilizador, mas apenas internalizou o que sinalizava seus atores mais significativos, oriundos das famílias ilustres e bem sucedidas. Ao elevar os ‘pioneiros’ à categoria de heróis locais, os memorialistas cumpriram seu papel na seleção do que deveria ser lembrado e do que teria que ser esquecido, como realça Paul Ricoeur (2007). Daí a importância de se trabalhar a partir da interação entre a memória coletiva e a individual, abrindo espaço para a compreensão da sociedade e buscando, ao estilo Weberiano, as conexões e a significação cultural da realidade da vida que nos rodeia. A ação social de cada agente envolvido no processo apresenta um sentido manifestado na concretude da cadeia motivacional que se forma, conforme visto acima (COHN, 1991). Nesta ‘teia de significados’ (GEERTZ, 1978), cabe interpretar os motivos do SESP realçados nas palavras dos seus antigos funcionários e o sentido cotidiano desta mesma ação. Cabe, mesmo de forma indiciária, ponderar sobre as negociações destas narrativas amarradas nos vários discursos, dentre os quais o dos documentos oficiais e aqueles revelados pelo Jornal Diário do Rio Doce. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 149 Por isso, o território mutifacetado que se apresenta exige da análise histórica um esforço contínuo de contraponto entre suas várias escalas espaciais e temporais. Numa perspectiva mais ampla a ação sespiana não pode ser enquadrada numa estrutura uma vez que não se pode falar de uma ação homogênea. Estamos, portanto, lidando com um agenciamento, cujo conjunto de partes interage negociando sentidos e configurando ações e intenções (HAESBAERT, 2006, p. 112 a 117). Nessa multiterritorialidade a modernidade dos ‘pioneiros’ não tem o mesmo sentido para os demais habitantes e nem mesmo o desenvolvimento e urbanização empreendidos a partir dos projetos implementados pelo SESP serão incorporados ao cotidiano da mesma forma. O SESP tinha como modelo de saneamento o padrão internacional, a grande maioria da população tinha como modelo o próprio vizinho que muitas vezes podia ridicularizar o uso da fossa sanitária. O reordenamento do espaço urbano, citado acima, embora alterasse visivelmente o território não desagregava as práticas de manter o lixo nas ruas, de usar o mato para as necessidades fisiológicas e as fossas para guardar arreios e galinhas; ou, até mesmo de achar a água do Rio Doce mais confiável que aquela que chegava através de um sistema de abastecimento. A partir do que foi exposto, a ação do SESP deve ser analisada levando-se em consideração os vários discursos e as múltiplas territorialidades constituídas. Partindo desses pressupostos, nos posicionamos diante de um território que ganha dinâmica e sentido a partir da apreensão da conduta dos múltiplos agentes e dos significados que a ação destes venha a ganhar. É necessário para tanto, estender a análise para a antropologia interpretativa de Geertz (1978), cuja cultura é compreendida como uma ‘teia de significados’. Nas palavras do próprio autor, “acreditando como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 1978, p. 15). Todo esse processo ocorre mediante uma negociação dos significados por intermédio da interpretação narrativa, armazenada por uma comunidade (BRUNER, 1997, p. 65). Recuperando as palavras de Saquet (2006, p. 83), “o território é processual e relacional, (i)material, com diversidade e unidade, concomitantemente”. Nele se estabelecem as mais variadas escalas geográfi150 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO cas e até mesmo temporalidades diferentes. Neste exercício, ao abordar o processo de territoralização da saúde e do saneamento a partir da memória, podemos sugerir, de forma complementar, que em meio a estas operações espaciais e temporais, o território também comporta diversas narrativas, lembranças e esquecimentos, apreensões, sentidos, intenções e representações numa busca incessante de conciliar, assim como no desafio posto ao historiador, os tempos da alma e do mundo. Fontes Fontes orais - INFORMANTE 1 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 14/12/2007, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. - INFORMANTE 2 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 16/02/2008, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. - INFORMANTE 2 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 16/02/2008, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. - INFORMANTE 4 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 29/05/2008, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. - INFORMANTE 5 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 09/12/2008, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. - INFORMANTE 6 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 01/04/2009, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. - INFORMANTE 7 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 01/04/2009, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. - INFORMANTE 8 - Entrevista concedida à Professora Maria Terezinha Bretas Vilarino, em 24/08/2009, arquivada no Programa de Memória do Vale do Rio Doce – PMVRD/Univale. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 151 Fontes documentais Centro de Documentação e Arquivo de Custódia – CEDAC. Fundo: Prefeitura Municipal de Governador Valadares (PMGV) 1/1. Série 1 – Infra-estrutura urbana – INEU. Subséries 1 a 9. Arquivo da Casa de Osvaldo Cruz/Fiocruz. Fundo SESP. Seção Divisão de Engenharia, caixas 21, 33, 48 e 52. Relatórios COMPANHIAVALE DO RIO DOCE. Perspectivas de desenvolvimento industrial da Região do Rio Doce. São Paulo: SERETE, 1963, 3 v. MENSAGEM DOS PRESIDENTES DO ESTADO DE MINAS GERAIS. 1910 a 1930. In: Provincial Presidential Reports - Minas Gerais. Brazilian Government Document Digitization Project. Center for Research Libraries (CRL). Disponível em http://www.crl.edu/content/brazil/mina. htm. Acessado em 12 de abril de 2008. MENSAGEM DOS PRESIDENTES DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. 1910 a 1930. In: Provincial Presidential Reports - Minas Gerais. Brazilian Government Document Digitization Project. Center for Research Libraries (CRL). 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Nesse sentido, tais processos além de reorganizar o espaço físico ocupado pela população, compreenderam uma reordenação em termos de valores e costumes que contribuíram para que surgissem novas relações sociais. As cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo configuraram-se como dois exemplos de centros urbanos que incorporaram a perspectiva de mudanças em suas ruas e bairros. Certamente a condição de migração das áreas rurais para as áreas urbanas, se explica pela instalação e expansão de fábricas e indústrias localizadas nessas cidades. Houve também outros surtos de urbanização - mesmo que em escala menor - nas diversas regiões do país, e a cidade de Governador Valadares acompanhou este processo. Na primeira metade do século XX, houve um significativo aumento do contingente populacional nessa cidade. Segundo dados do IBGE, no ano de 1930 a população que era de 2.130 habitantes, passou para 5.374 em 1940, e para 20.357 em 1950. Desta forma, pessoas vinham de diferentes regiões, incluindo trabalhadores rurais, em busca de trabalho nas empresas existentes na urbe em questão. 1 Este texto é resultado da pesquisa desenvolvida na Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE entre 2006 e 2007, e contou com o apoio financeiro da FAPEMIG. 2 Professor dos Cursos de Graduação e do Programa de Mestrado em História da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. 3 Aluna do Programa de Mestrado em História pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 155 A população que se deslocava das áreas rurais com seus costumes e tradições, ao chegar nas cidades encontrava um estilo de vida caracterizado por diferentes práticas sociais, culturais e econômicas. O cotidiano das cidades impunha um novo ritmo para as relações de trabalho, consumo e lazer. Tais comportamentos relacionados à sociabilidade dos habitantes foram transformados também pelas idéias de modernidade, ainda que houvesse a permanência de elementos circunscritos às áreas rurais. Sobretudo nas décadas iniciais do século XX, as manifestações culturais do meio rural começaram a ser entendidas como arcaicas e ultrapassadas pelas elites urbanas, e, sobretudo, por integrantes do poder público das cidades que compunham, a partir do período mencionado, o cenário urbano-industrial. Introduzido na cidade de São Paulo na última década do século XIX, a prática futebolística apresentou-se como um esporte que simbolizava o estilo de vida moderna que se almejava. Antes de ser implantado no Brasil, o futebol já era amplamente praticado em alguns países da Europa como, por exemplo, na Inglaterra e na França. A prática de esportes em geral (sobretudo o futebol), inicialmente praticados pelas famílias mais abastadas, tivera sua origem na Europa (CALDASa, 1990) As transformações pelas quais passaram algumas cidades do Brasil (especialmente a do Rio de Janeiro e de São Paulo), decorrentes do processo de industrialização e urbanização, estavam relacionadas às idéias de modernidade. Nesse sentido, a introdução da prática do futebol, e as reformas dos grandes centros urbanos, faziam parte do “projeto modernizador” empreendido pelas camadas sociais mais abastadas e incentivadas pelo poder público. Tal projeto estava fundamentado na perspectiva de absorver tudo que dissesse respeito à Inglaterra e à França, e que era entendido como “moderno”. A prática do futebol acompanhou esta concepção. O Fluminense Futebol Clube, da cidade do Rio de Janeiro (fundado em 21 de julho de 1902), foi uma das equipes que melhor representou as tendências do período, uma vez que o clube mencionado se caracterizava pelo seu “requinte” no qual as “melhores famílias” se encontravam a fim de se confraternizarem e discutir as novidades da Europa (Paris e Londres, principalmente). Com seus salões de festa, e os espaços destinados a assistência e/ou prática dos esportes considerados saudáveis e civilizados, a “boa sociedade” podia desfrutar de tudo aquilo que era também oferecido aos europeus. (SILVAa, 2006). 156 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO O fenômeno das reformas urbanas no início do século XX visava, entre outras coisas, um modelo de modernização inspirados nas cidades de Londres e Paris. A remodelação das regiões centrais do Rio de Janeiro e de São Paulo, promovidas a partir da iniciativa de representantes do poder público, demonstram de forma emblemática algumas contradições e tensões presentes no período denominado de “República Oligárquica” (1889-1930). As elites urbanas empreenderam várias medidas no sentido de transformar tanto o espaço físico, quanto os hábitos e costumes da sociedade. Tais reformas tiveram como pressuposto o embelezamento das cidades, com a finalidade de que as mesmas adquirissem uma paisagem moderna. (MORAISa, 1994). Estas reformas contribuíram para o surgimento de novos desenhos na paisagem urbana. Nesse sentido, na impossibilidade de arcar com os custos das reformas empreendidas principalmente por integrantes do setor público, as pessoas menos privilegiadas economicamente foram obrigadas a ocupar as regiões marginais dos centros urbanos. No limiar do século XX, esses locais se caracterizavam por apresentar uma infra-estrutura bastante precária, tal como ocorre neste início do século XXI. (CARVALHOa, 1987) Da mesma forma que as cidades de Londres e Paris serviram de referência para as reformas dos centros urbanos de São Paulo e do Rio de Janeiro, também a partir delas havia repercussão nos demais centros que iam se formando no país. Nessa perspectiva, o fenômeno das reformas urbanas objetivava desenvolver uma melhoria no centro das cidades, o que deixava de lado as regiões marginais, contribuindo, inclusive, para o surgimento de favelas. A prática de esportes, sobretudo do futebol, deve ser pensada como parte constitutiva destes espaços urbanos em formação. Nos anos que correspondem ao período denominado de República Oligárquica, o aparecimento embrionário da sociedade urbanoindustrial e o seu desenvolvimento no Brasil emergiu fundado em uma sociedade rural, recém saída da escravidão e cujos traços culturais ainda eram perceptíveis. Desta forma, a República proclamada não garantiu a igualdade de direitos para o conjunto da população. De acordo com Carvalho, o direito civil, dentre outros direitos, não obteve representatividade. A perspectiva de garantia da liberdade, por exemplo, aos negros (os quais compreendiam expressiva parcela da população), não TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 157 significou a sua inclusão social. As oportunidades de emprego formal, de saúde e moradia de qualidade permaneciam restritas a uma minoria da sociedade. (CARVALHOa, 2001). Nesta perspectiva, as cidades em expansão localizadas nas várias regiões do país, não dispunham de infra-estrutura básica para atender a população negra e de brancos pobres, além do grande contingente de pessoas oriundas das áreas rurais, e mesmo de outros países. O rápido crescimento da população urbana, e, simultaneamente, o fato das atividades econômicas não absorverem a mão-de-obra crescente, constituíram-se como elementos propulsores da pobreza, e para o surgimento de inúmeras outras mazelas sociais. De acordo com Moraes: Apesar de toda expansão e evolução, o crescimento urbano foi repleto de contradições, apresentando um lado perverso e caótico. O incessante processo de crescimento urbano gerou uma série interminável de graves problemas, sofridos, geralmente, pelas populações mais pobres. O incontrolável crescimento das populações, a falta de moradia, os problemas com abastecimento de alimentos e de água, a insalubridade geradora de doenças e epidemias, o subemprego ou desemprego, a violência e a mendicância também foram partes constitutivas do quadro urbano. (MORAISb, 1994: 14-15) Neste cenário, a prática de esportes em geral, sobretudo o futebol, passaram a constituir um novo significado. As mudanças na trajetória desse esporte, principalmente no que se refere à sua divulgação na sociedade, contribuíram para que ele fosse interpretado como uma manifestação da cultura popular urbana. Nessa perspectiva, o futebol pôde ser concebido como tal a partir da idéia de que ele inverteu sua lógica inicial de implantação, ou seja, de esporte praticado apenas pelas elites para uma atividade esportiva de grande alcance popular. Ao ser introduzido no país, no final do século XIX, a prática futebolística restringia-se a grupos sociais específicos, a saber, as camadas sociais mais abastadas. Esse aspecto elitista constitui uma característica que marcou a fase inicial do futebol no Brasil. De acordo com Caldas, (...) boa parte da trajetória inicial do futebol no Brasil possui um caráter elitista e, dificilmente poderia ser de outra forma. Os ingleses, precursores desse esporte em nosso país, faziam parte da elite da sociedade paulista e carioca; além deles, somente os brasileiros ricos tinham acesso à prática do futebol. É preciso ainda 158 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO levar em conta que quase todo o material necessário para o jogo era importado e muito caro.(...) Mandar buscar material na Inglaterra não era uma coisa acessível a qualquer pessoa aficionada do futebol. Com efeito, a trajetória desse esporte mudaria até com rapidez. (CALDASb, 1990:24). Entendemos que os próprios uniformes (entre outros elementos) necessários para a prática do futebol oficial, inicialmente constituía um fator de distinção social. Nesse sentido, a prática futebolística foi inicialmente compreendida como o esporte ideal e moderno, que deveria ser restrito às pessoas “melhores posicionadas” economicamente. Conforme já apontado anteriormente, o próprio Fluminense Futebol Clube é um exemplo emblemático dessa fase elitista do esporte. A prática das atividades esportivas (especialmente o futebol), no momento de sua implantação no Brasil fez parte do que as elites concebiam como “bons princípios e hábitos que deveriam ser adquiridos e incorporados”. Além disso, os jovens estudantes pertencentes às famílias mais abastadas verificavam na atividade futebolística, a possibilidade de garantir uma boa saúde. A partir das décadas iniciais do século XX, o jogo de futebol contribuiu para que emergisse uma nova concepção em relação ao corpo. Além de promover uma transformação nos padrões de beleza, que estava relacionada ao alcance de um “físico forte”, o futebol concorreria para o aumento da produtividade. Nesse caso, o preparo do corpo compreendia pressupostos que estavam diretamente ligados às técnicas de produção. Isto significa que da mesma forma que havia uma preocupação com o aperfeiçoamento das máquinas, o corpo deveria ser disciplinado e treinado por meio dos esportes. A prática do futebol poderia, então, contribuir para motivar a disposição dos operários em suas atividades cotidianas. Além do aspecto da manutenção de uma desejável boa saúde, o esporte apresentou-se também como um agente importante para a competição. Tal idéia foi bastante difundida em meio aos trabalhadores das fábricas. (ANTUNESa, 1992) Ao longo das décadas iniciais do século XX, o futebol passou a ser divulgado e popularizado na sociedade por meio das práticas cotidianas presentes nas vilas operárias. Nos clubes ligados às empresas, foi possível a inserção de pessoas de origem humilde no futebol, fazendo com que gradativamente o esporte deixasse de ser praticado apenas TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 159 pelas elites. Os operários e altos funcionários das empresas nacionais e estrangeiras, os imigrantes, os comerciantes, os estudantes dos colégios mais tradicionais, padres educadores dos considerados melhores colégios, todos fizeram parte da trajetória do futebol. (SILVAb, 2006). Criado em 1904, o The Bangu Athletic Club pertencia aos “altos funcionários” da Companhia Progresso Indústria Ltda. Este clube marcou o início do processo que poderíamos chamar de “democratização do futebol no país”. Primeiramente formado pelos funcionários de origem inglesa, gradativamente o clube se viu obrigado a incorporar atletas de outras origens étnicas e sociais, em função da impossibilidade numérica de formar duas equipes contando-se apenas com os “ingleses”. Desde então, houve a “necessidade” de se permitir a participação de operários de precárias condições sócio-econômicas. O que se viu a partir do ingresso de vários operários da própria empresa, foi o surgimento de uma equipe de futebol bastante talentosa e temida pelos times adversários. A equipe acabou sendo mais conhecida do que a própria empresa, razão pela qual o “operário-jogador” passou a ter mais privilégios. A citação a seguir é elucidativa nesse sentido. Quase sempre o jogador-operário era mais rapidamente promovido. Os considerados craques, então, eram nitidamente protegidos pela diretoria. Além disso, o contato mais informal no campo de futebol com os altos funcionários ingleses teria função determinante nas vantagens aferidas pelos jogadores-operários. A partir desse instante, o operário (embora a coisa não fosse oficializada) não representava para a Cia. Progresso Industrial um trabalhador a mais. Ele era, entre outras coisas, um veículo de divulgação da própria empresa, uma vez que o Bangu sistematicamente viajava para jogar em outras cidades. (CALDASc, 1990:29). O fenômeno da popularização do esporte foi objeto de acompanhamento dos meios de comunicação como periódicos e transmissões radiofônicas, o que levou ao processo de exploração e de (re) significação do futebol em vários níveis, inclusive no político. A década de 1930 constituiu um período marcado por várias discussões, dentre elas a profissionalização oficial da prática do futebol e sua construção como um dos símbolos de identidade nacional. Em meio a esses novos significados a ele atribuídos, foi fundado na cidade de Governador Valadares, em 1932, o Esporte Clube Democrata. Sua fundação ocorreu em momento anterior à própria emancipação político160 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO administrativa da cidade em questão. A então Figueira do Rio Doce era ainda distrito da cidade de Peçanha. Somente em 1932, a cidade que abriga o Esporte Clube Democrata foi emancipada.4 Tal como ocorreu em Governador Valadares, a incorporação da prática futebolística foi perceptível nas cidades das diferentes regiões do país. De acordo com Toledo, a popularização da prática futebolística acompanhou o crescimento das cidades e foram várias as vias de apropriação desse esporte. Nesse sentido, tal apropriação não se dava somente participando ou assistindo as partidas, mas também por meio das conversas sobre os resultados dos jogos em bares, casas e ruas, pelas transmissões radiofônicas, pela utilização de gírias do futebol em situações vividas fora dos campos. Sobre essa questão vale apontar o que disse o autor: (...) As construções dos estádios e praças esportivas estiveram em consonância com o crescimento da popularização do futebol. Simbolicamente o futebol contaminou o imaginário urbano, recriando comportamentos, inaugurando linguagens, gírias que, como se sabe, vieram transcender os limites das praças esportivas, enriquecendo uma linguagem popular e urbana, aproximando segmentos sociais até então separados por uma segregação espacial e étnica. (TOLEDOa, 1996:15). Certamente o grande contingente populacional oriundo das áreas rurais e de outros países, foi atraído por esse esporte devido às razões que não se referiam exclusivamente à busca de um físico saudável, mas também a partir da perspectiva de encontrar nos jogos de futebol momentos de sociabilidade. A idéia de que o futebol fazia parte dos hábitos de uma significativa parcela da sociedade foi constatada por representantes do poder público, os quais não hesitaram em disto buscar tirar proveito. Nesse sentido, sobretudo a partir da década de 1930, é perceptível uma orientação político ideológica do governo federal quanto à exploração, nos meios de comunicação (como rádios e alguns periódicos), da idéia de concepção do futebol como um símbolo do sentimento de identificação nacional. O primeiro campeonato mundial de futebol foi realizado em 1930 no Uruguai e a atuação da equipe brasileira não foi das melho4 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio Doce, 1312-1992. Segundo nos informa o jornal, inicialmente o time se chamou São Domingos da Figueira. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 161 res. Um dos motivos está relacionado às divergências envolvendo à APEA (Associação Paulista de Esportes Atléticos), e a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos), localizadas, respectivamente, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Embora a equipe brasileira não tenha apresentado uma boa performance, três atletas se destacaram pelo seu refinado jeito de jogar: Fausto, Domingos da Guia e Leônidas da Silva. O bom desempenho desses jogadores contribuiu para que houvesse ainda mais um maior interesse do governo pelo esporte, o que motivou a sua profissionalização. Na perspectiva do poder público, os jogos da Copa do Mundo poderiam trazer um reconhecimento mundial dos atletas brasileiros, ao mesmo tempo em que divulgaria o nome do país. Certamente o primeiro aspecto que evidencia o interesse do governo federal na prática futebolística caracterizou-se pelo seu empenho em tornar o esporte profissional. Além disso, a Confederação Brasileira de Desportos – então CBD - chamava a atenção para a idéia de que não deveria mais haver divergências entre as associações APEA e AMEA. O objetivo do governo era fazer com que essas associações disponibilizassem seus melhores atletas para os campeonatos mundiais a fim de que aumentassem as possibilidades de êxito da equipe brasileira. Nessa perspectiva, a vitória no mais importante evento futebolístico do mundo tinha como premissa a divulgação do país que estava sob o governo de Getúlio Vargas. Na década de 1930, o cenário mundial foi marcado pela emergência de regimes totalitários. A Itália é um exemplo de país que explorou a vitória nos campeonatos mundiais de 1934 e 1938, como uma forma de enaltecer o seu regime político. A aproximação entre questões políticas e o futebol também pôde ser verificada na Alemanha por ocasião dos jogos olímpicos realizados em Berlim, no ano de 1936. Desta forma, a aproximação entre poder público e futebol no Brasil, durante o regime autoritário de 1937 a 1945, de alguma maneira pode ter sido influenciada pelo que estava acontecendo naqueles países da Europa. Este cenário contribuiu para que representantes do governo federal passassem a se interessar diretamente pelo sucesso da seleção brasileira de futebol, com a finalidade de explorar seu eventual êxito para legitimar ideais de patriotismo e civismo. Nesse sentido, nos jogos do 162 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO campeonato sul-americano em 1937, cronistas esportivos por meio de veículos de comunicação, e que eram subordinados ao Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP (órgão de comunicação vinculado aos interesses do governo federal) - também tiveram um papel fundamental para a divulgação do “sentimento nacional”. Antecedendo ao jogo final, as publicações de cronistas esportivos davam conta de que o Brasil seria campeão. Para tanto, a idéia de “civismo” foi amplamente difundida, a fim de que os atletas se “entregassem” em campo por “amor ao Brasil”. Mas não somente jogadores foram “convocados” a defenderem a “pátria”. Na perspectiva de cronistas esportivos, a torcida também assim deveria se comportar. (...) Terminado o torneio sul-americano de 1937, e envolto num espírito de nacionalismo via imprensa, os jogadores foram recebidos na capital da República como “soldados da pátria”, embora não tivessem vencido a partida final contra a Argentina. Houve uma grande “festa cívica” na chegada dos atletas ao Rio de Janeiro: eles foram recepcionados como heróis da nação. Vários periódicos enalteceram a disposição e o “espírito guerreiro” dos atletas brasileiros. (SILVAc, 2006). Nos anos compreendidos entre 1937 a 1945 (período denominado Estado Novo) o governo de Getúlio Vargas difundiu a idéia de construção do “Homem Novo”. Dentre as perspectivas da construção deste “homem” que o Estado desejava criar, residiam as que diziam respeito ao civismo, à disciplina, ao sentimento patriótico, e ao bom preparo físico. O incentivo das autoridades políticas, no que tange à prática de atividades físicas, serviu como um caminho para que incutisse também na sociedade o sentimento de pertencimento à nação, sobretudo nos jogos dos campeonatos mundiais, evento no qual são reunidos países de diferentes continentes, e que tinham como objetivo principal a conquista de um título internacional. Tal como ocorreu nos jogos sul-americanos realizados em 1937, na Copa do Mundo de 1938 permaneceu a estratégia dos veículos de comunicação em “convocar as pessoas”, fossem elas adeptas ou não ao futebol, a torcerem pela seleção brasileira. Supomos que esse aspecto contribuiu para incutir na sociedade a compreensão de que o fato de se envolver nos jogos da seleção brasileira, resultaria na idéia de também torcer pelo Brasil enquanto nação, independentemente do futebol. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 163 Desde a implantação do futebol no Brasil, o número de adeptos desse esporte aumentou significativamente. Desta forma, homens, mulheres e crianças das mais diferentes origens étnicas e sociais demonstravam seu apreço pela prática futebolística, comparecendo em massa aos centros esportivos espalhados pelo país. Em meio a essas circunstâncias, a década de 1940 foi marcada por um fenômeno que contribuiu para a constatação do empenho do governo federal no que diz respeito às atividades esportivas, principalmente o futebol. Trata-se do fato de que foi nesse período que ocorreu a construção de grandes centros esportivos como o Pacaembu e o Maracanã, erguidos, respectivamente, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, e contando com financiamento de dinheiro público para ambas as construções. As medidas de incentivo à prática do futebol, seja por parte de representantes do poder público, sejam por parte de órgãos da imprensa, seja, enfim, por parte de empresários dos mais diferentes segmentos, tiveram repercussão também no interior do país, o que motivou novos significados atribuídos ao futebol na cidade de Governador Valadares, o que aqui nos interessar destacar. As vilas operárias desempenharam um papel fundamental na popularização da prática do futebol. Na década de 1940, a cidade Governador Valadares presenciou a construção de uma vila operária, na qual a prática futebolística obteve maior destaque, se comparada às demais atividades de lazer. Nesse período, as atividades econômicas presentes na urbe em questão, giravam em torno da extração e comercialização da mica, de pedras preciosas e de madeira. Além disso, a pecuária também tinha significativa participação na economia local. (SILVAa, 1997). A Companhia Agropastoril Rio Doce iniciou suas atividades no ano de 1943, e constituiu-se como uma das mais modernas fábricas de compensado do Estado de Minas Gerais. Ao lado da empresa foi construída uma vila operária - tal como ocorreu com empresas de outras regiões do país – que tinham também por objetivo estabelecer um controle social dos funcionários. Nesse sentido, no interior da vila existia uma estrutura que tinha como pressuposto fazer com que os moradores permanecessem no ambiente da empresa, viabilizando dessa forma, o controle dos hábitos e comportamentos dos emprega164 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO dos com vistas a garantir uma boa produtividade. Sobre esse aspecto vale ressaltar o que disse De Decca: Quando as fábricas ou empresas dispunham de vilas operárias ou casas para moradia dos trabalhadores em suas cercanias, havia também regulamentos para controle da vila proletária fora dos muros das fábricas. Havia normas para movimentação de pessoas, com horários fixos de entrada e saída, horário de silêncio, horário para dormir, etc. A vida operária era controlada também nas vilas operárias através da creche, da escola, da igreja, dos equipamentos de lazer existentes, sendo os costumes policiados para um bom desempenho e produtividade no trabalho. (DECCA, 1991:51) Na vila construída ao redor da empresa Agropastoril Rio Doce havia mercados onde podiam ser encontrados produtos de higiene pessoal e para o vestuário, além de armazéns. Existia também cinema, clube social, espaços para a prática de esportes (em especial, o futebol), escolas, área de lazer para as crianças e templos religiosos. Quanto às formas de lazer, os investimentos se destinavam na maioria das vezes, para a construção de campos de futebol. Tal como ocorreu em outras cidades do país, em Governador Valadares o futebol também esteve associado aos mecanismos de controle social. (SILVAb, 1997). Entendemos que a atividade futebolística também atraiu a atenção dos dirigentes da Companhia Agropastoril Rio Doce, de tal forma que resultou na criação do CAP- Clube Atlético Pastoril, cuja estrutura assemelhava-se à de time profissional, já que contava com atletas de reconhecida habilidade técnica, e recebendo alguns benefícios econômicos. Construído na década de 1940, o campo localizava-se nas proximidades da serraria e possuía uma estrutura que o capacitava para receber alguns dos considerados “grandes clubes nacionais”. Dentre eles, podemos mencionar o São Paulo Futebol Clube, Clube de Regatas Flamengo, Clube de Regatas Vasco da Gama, Clube Atlético Mineiro e Cruzeiro Esporte Clube. O campo da serraria era bastante frequentado pelas pessoas da cidade e também de outras regiões. De acordo com Chaves da Silva “ O time era famoso em toda região e em dias de jogos chegava a atrair pessoas até da Bahia”. (SILVAc, 1997:19). Desta forma, entendemos que o interesse dos dirigentes da empresa pela prática futebolística também se deve ao fato do CAP contribuir para uma maior divulgação da comTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 165 panhia. Além disso, o sucesso do time nas partidas poderia fazer com que o operário/atleta sentisse orgulho de pertencer à empresa, fato que contribuiria para uma melhor produtividade da mesma.5 Certamente os benefícios da prática futebolística também eram sentidos por parte dos operários. Como já mencionamos, a modernização das cidades impunha um novo ritmo para as relações de trabalho. A repressão e outros mecanismos de controle social eram uma constante no relacionamento entre patrão e empregado. Para o operário, fazer parte do time de futebol da empresa era uma maneira de ficar distante do mundo do trabalho. Entretanto, não podemos deixar de ressaltar que para além desse fato, o futebol já fazia parte do cotidiano da maior parte da população não apenas de Governador Valadares, mas também de outras cidades do Brasil. O Clube Atlético Pastoril mobilizava um significativo número de pessoas para assistirem às partidas. De acordo com Chaves da Silva, quando o CAP ia disputar uma partida com algum clube de reconhecimento nacional, como, por exemplo, o Clube Atlético Mineiro ou o Cruzeiro Esporte Clube, a Companhia divulgava o jogo distribuindo panfletos pelos locais em que fazia entrega de compensado. Desta forma, vinham pessoas de outras regiões, mas principalmente da cidade. (SILVAd, 1997). O fato é que o CAP atraiu a atenção das pessoas não somente pela fama de seus adversários, mas também pelo seu bom desempenho em campeonatos regionais. Dentre os títulos conquistados, podemos citar o de campeão amador nos anos de 1955 e 1956. Um importante adversário do CAP era o Esporte Clube Democrata. Nos jogos em que esses dois clubes se enfrentavam, a expectativa era de que seria um grande jogo, com a torcida comparecendo em massa. Como é possível constatar nos depoimentos a seguir, os jogos entre Pastoril X Democrata eram considerados “clássicos”6. Guardadas as devidas 5 Este aspecto pode ser verificado em vários clubes espalhados pelo país como o “The Bangu Athletic Clube”, da cidade do Rio de Janeiro. Muitas vezes, a partir dos bons resultados do time de futebol residia a justificativa de que a fábrica teria ficado mais conhecida justamente em função do time do futebol, o que conferia a este esporte um importante instrumento de propaganda da própria fábrica. (ANTUNESb, 1992) 6 A expressão “clássicos no futebol”, diz respeito aos jogos entre duas equipes, nos quais o resultado é sempre imprevisível, além de contar com presença de muitos torcedores e com bastante equilíbrio no histórico dos confrontos. Em nível internacional, podemos dar o exemplo dos confrontos entre a seleção brasileira de futebol e a seleção argentina de futebol. 166 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO proporções era como assistir a uma partida entre Atlético e Cruzeiro. De acordo com o radialista Luiz Alberto Coelho Teixeira: As cores do Pastoril era verde e branca e o símbolo era o leão, e o Democrata era a pantera. (...) Então era assim, em um ano o Democrata era campeão e no outro ano era o Pastoril. Existia muita rivalidade. (...) A história que eu sei é que o Pastoril era muito querido. E até hoje [ em 2008] existem ex-pastorilenses que choram quando lembram do CAP. Seria muito bom para o Democrata se o Pastoril fosse reativado, (...) é bom ter rivalidade.7 Sobre essa rivalidade entre Democrata e Pastoril, o músico e autor do Hino do Democrata Rosenberg Petersen afirma que: O Pastoril é um time que até hoje tem uma enorme torcida aqui em Governador Valadares, e pra cidade seria melhor fazer voltar o Pastoril. Isto porque toda cidade tem que ter no mínimo um time para fazer rivalidade, da mesma forma que tem o Atlético e Cruzeiro, e também o Internacional e Grêmio (...) Se Governador Valadares conseguisse que o Pastoril voltasse, isso aqui seria “um trem de doido”. Seria melhor e a torcida iria dobrar em campo, principalmente na época de um clássico. Nos jogos Pastoril X Democrata era um clássico como Cruzeiro X Atlético. Seria muito bom pra cidade.8 O Sr. Jorge Carvalho, ex-atleta de futebol do Esporte Clube Democrata, atuou por essa agremiação esportiva nos anos de 1956 a 1964. Carvalho afirma que nesse período o clube ainda não tinha as arquibancadas – que foram construídas entre 1962 e 1963 – e que “o campo não comportava o número de torcedores. A população considerava os jogos do Pastoril X Democrata um clássico. E a torcida era empolgada mesmo”.9 Entendemos que o Clube Atlético Pastoril, inicialmente partícipe de um sistema de controle social no que diz respeito à vila operária, configurou-se também como um instrumento de sociabilidade de significativa importância, tal como ocorreu em outras situações que envolviam a relação entre cidades/clubes/empresas do país. O CAP encerrou suas atividades no início da década de 1970, e ainda neste início do século XXI, é mais lembrado do que a própria empresa à qual pertencia, 7 Depoimento do radialista Sr. Luiz Alberto Coelho Teixeira, colhido no dia 10/12/2007. 8 Depoimento do Sr. Rosenberg Petersen colhido em 14/08/2007. O músico nos informa que o Hino do Democrata foi escrito no ano de 1978 e gravado em 1980. 9 Depoimento do Sr. Jorge Carvalho (ex atleta do Esporte Clube Democrata), colhido 15/08/2007. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 167 conforme nos informam alguns dos entrevistados que contribuíram para nossa pesquisa. Em Governador Valadares, o futebol praticado pelo CAP dentro da vila operária, e a rivalidade deste clube com o Esporte Clube Democrata, concorreram para uma maior influência e presença dessa atividade esportiva no cotidiano da cidade. Nos centros urbanos em crescimento nas diversas regiões do país, o fenômeno da massificação do futebol se manifestou, e é algo que está ligado ao interesse dos meios de comunicação. Eles passaram a dedicar gradativamente um espaço mais amplo para notícias referentes ao futebol. O ano de 1950 foi caracterizado pela chegada das imagens televisivas no país, bem como pela difusão dos diferentes meios de comunicação de massa. Com a ampliação de recursos para a divulgação da prática futebolística, esse esporte atingia maiores proporções levando-o à sua condição de manifestação da cultura popular urbana. O projeto de construção da nacionalidade, explorando também o futebol, e empreendido pelo governo federal (que teve início na década de 1930), contava com programas de rádios, publicação de jornais e revistas para esta construção, tornando-se mais consistente com o advento da televisão. Um aspecto relevante e associado a esta questão, é que no ano de 1950, o Brasil foi pela primeira vez, sede do Campeonato Mundial de Futebol. Na medida em que os anos avançavam, destinava-se um espaço cada vez maior às notícias relacionadas ao esporte. Esta condição foi sendo gradativamente ampliada, sobretudo durante a realização da Copa do Mundo no país. Além de jornais e revistas que abordavam assuntos relacionados também aos esportes, foram criados vários periódicos, cuja preocupação restringia-se exclusivamente à prática esportiva. De fato, a década de 1950 significou um dos marcos mais importantes da trajetória do futebol brasileiro (SILVAd, 2006), incluindo-se aí a conquista do primeiro campeonato mundial de futebol em 1958, na Suécia. O futebol foi efetivamente compreendido como uma manifestação popular, e que fazia parte dos hábitos de diferentes camadas sociais. Ele simbolizava a fusão entre elas, o que também lhe conferia um significado de nacionalidade. Os debates relacionados aos símbolos de unidade nacional, iniciados na década de 1930, atingiram maiores dimensões justamente na década de 1950, período em que a idéia de civismo atingia proporções ainda mais amplas no Brasil. 168 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Tal como ocorreu nas diversas cidades do país, em Governador Valadares a imprensa escrita também cobria as notícias relacionadas ao futebol, como, por exemplo, o desempenho da seleção brasileira, e dos demais clubes de reconhecimento nacional. Além disso, havia um espaço destinado às atuações do Clube Atlético Pastoril e do Esporte Clube Democrata. Esses dois clubes tiveram um papel fundamental para que houvesse a incorporação da prática futebolística ao cotidiano da cidade. A partir de 1958, ano em que foi fundado o Diário do Rio Doce, as colunas esportivas divulgavam notas sobre o Pastoril e o Democrata, conferindo-lhes a importância que ambos ocupavam no imaginário futebolístico da cidade. Nas décadas de 1940 a 1960, o Esporte Clube Democrata disputou campeonatos amadores confrontando-se com clubes de Minas Gerais, da Bahia e do Espírito Santo. A boa performance nesses jogos fez com que o clube recebesse denominações como “Expresso do Vale” e “Time do Olé”. 1962 e 1963 o Time do Olé e o grande ataque atômico Este time conseguiu grandes vitórias, chegando a ficar 22 jogos invictos perdendo a invencibilidade para o Bahia , que fora neste ano campeão da Taça Brasil; o Democrata perdeu de 1 a 0. O famoso time do Olé conseguiu estes principais resultados: Democrata 4 X Americano de Campos 1; Democrata 3 X Democrata de Sete Lagoas 1; Democrata 3 X Democrata de Sete Lagoas 2; Democrata 3 X Atlético Mineiro 1; Democrata 8 X América de Caratinga 1; Democrata 8 X América de Teófilo Otoni 2 ; Democrata 5 X Comercial de Aimorés 2. O time do Olé foi denominado com esse apelido porque vencia fácil seus adversários e depois dos 30 minutos do segundo tempo dava um verdadeiro Olé nos seus adversários.(...)10 Até o ano de 1963 o espaço no qual o Esporte Clube Democrata treinava e fazia seus jogos em Governador Valadares, era conhecido apenas como “o campo do democrata”. De 1932 a 1940 o campo localizava-se na Rua São Paulo, depois passou para a Praça João Paulo Pinheiro (nas proximidades da Estação Ferroviária) e no ano de 1949 foi transferido para a Rua Osvaldo Cruz, onde permanece até o início deste século. A mudança do campo para a Rua Osvaldo Cruz ocorreu 10 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio Doce. 12-02-1992. p.5. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 169 devido a uma permuta feita com a Prefeitura Municipal de Governador Valadares. De acordo com Carvalho, “a Prefeitura precisou do terreno localizado na Praça João Paulo Pinheiro, e então foi feita uma substituição pela área localizada na Rua Osvaldo Cruz.”11 Nesse último local em que foi instalado o agora estádio do Democrata, as pessoas já praticavam esportes (principalmente o futebol), antes mesmo de serem construídas as arquibancadas. Sobre esse aspecto vale ressaltar o que disse Petersen: O campo do Democrata era rodeado apenas por eucalipto. Não tinha essa arquibancada e não tinha nada. Eu vivia ali, antes mesmo de participar daquelas escolinhas[ de futebol]. Então no local era apenas o campo, uma parte de Valadares onde já se praticava esportes brincando.12 No ano de 1964 ocorreu a estréia do Esporte Clube Democrata como time profissional no campeonato mineiro. O clube estava sob a presidência do Sr. José Mamoud Abbas, que o assumiu no ano de 1960. Nesse período, o presidente do clube substituiu toda a iluminação do estádio, bem como deu início à construção das arquibancadas de concreto. Em 1963 houve a inauguração do Estádio do Democrata, recebendo o nome de “José de Magalhães Pinto”, então Governador do Estado de Minas Gerais. Em 1977 o Estádio passou a se chamar José Mamoud Abbas, em homenagem ao ex-presidente que ocupava tal cargo no momento da inauguração do Estádio.13 Em 1981, o Democrata conquistou o título de campeão da Taça Minas Gerais. No decorrer dessa década conseguiu significativas vitórias contra o Clube Atlético Mineiro e o Cruzeiro Esporte Clube, principais agremiações de futebol de Minas Gerais. Em 1981 - No Mineirão- Democrata 1 X Atlético 0. Em 1994 Democrata 1 X Atlético 0, em BH. No campeonato mineiro de 1984, pela 6a rodada do 1o turno, o Democrata venceu o Cruzeiro, aqui em Valadares, de 3 a 0 com gols de Paulo Roberto (2) e Jairo no dia 8 de julho de 1984.14 11 Depoimento do Sr. Jorge Carvalho colhido em 15/08/2007. 12 Depoimento do Sr. Rosenberg Petersen colhido em 14/08/2007. 13 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio Doce, 13-12-1992. 14 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. Jornal Diário do Rio Doce. 13-02-95. P-6. 170 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO O fenômeno de formação das Torcidas Organizadas, ocorrido especialmente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo no limiar da década de 1970, também pôde ser constatado em Governador Valadares na década seguinte. Foram várias as torcidas criadas como a Pantera Cor de Raça (essa é a única torcida que tem sede, a qual está localizada nas dependências do próprio estádio do Esporte Clube Democrata), Pandemônio, Panterões da Fiel, GV Panter, Panter Gole, dentre outras.15 A partir da profissionalização oficial do futebol (na década de 1930), ocorre uma mudança na postura dos torcedores que passaram a “exigir” melhores resultados dos seus clubes. De acordo com Toledo, “Por volta da metade da década de 70 as Torcidas Organizadas já assumiam um papel de pressão política diante dos times”. (TOEDOb, 1996:27) Antes mesmo de ser formada a primeira torcida organizada, já se notava um grande interesse de torcedores pelos jogos do Democrata. De acordo com Rosenberg Petersen, “a paixão dos torcedores pelo clube foi sempre com a mesma intensidade, o que ocorreu foi que na medida em que os anos avançavam a torcida aumentava cada vez mais em quantidade de pessoas”.16 Nessa perspectiva, uma característica importante do Esporte Clube Democrata, e que torna legítima a sua influência no cotidiano da cidade de Governador Valadares, diz respeito ao fato de que este clube possui uma das torcidas mais vibrantes e empolgantes do interior mineiro. O desempenho da torcida em dias de jogos, com seus “gritos de guerra”, os cantos, e as batucadas, é considerado como “um espetáculo à parte” durante as partidas, o que pode inclusive interferir nos seus resultados. O ex-atleta Darcy Menezes, que disputou alguns campeonatos jogando pelo Democrata na década de 1980, afirma que a força da torcida era tão grande que “quando o clube jogava em casa, dificilmente perdia o jogo”.17 No entanto, da mesma forma que a torcida empolga o time, ela também “exige” bons resultados nas partidas. Sobre esse aspecto, o Sr. Almyr Vargas, ex-presidente do Esporte Clube Democrata ressalta que: A torcida do Democrata não é diferente de nenhuma torcida, o que ela quer é vitória, é conquista. A torcida quer o ego dela sem15 Cf. Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube democrata. Jornal Diário do Rio Doce. 13-02-95.p-3. 16 Depoimento do Sr. Rosenberg Petersen colhido em 14/08/2007. 17 Depoimento do Sr. Darcy Menezes colhido em 11/12/2007. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 171 pre satisfeito, sempre num crescente. Se o ego dela vai para o buraco, ela também faz um papel de como se estivesse indo também pro buraco. Nesse caso ela reage, briga e agride. E isso acontece com qualquer torcida, não tem nenhuma que é pior ou melhor. Agora é bom que se diga, a torcida do Democrata é altamente positiva quando ela está na posição de apoio ao Democrata. A torcida sempre deu prazer ao Democrata, sempre participou ativamente, e nunca nos deu trabalho, ela sempre nos ajudou.18 Além das questões de cunho político e social que estiveram intrínsecas na trajetória da prática futebolística no Brasil (inclusive considerando-se o momento de sua implantação até os períodos mais recentes), a questão econômica também deve ser ressaltada. A atividade futebolística no interior das vilas operárias, no início do século XX, possibilitou a inserção de atletas de origem humilde em vários times, motivando a própria profissionalização oficial do esporte. Supomos que este fenômeno exerceu um papel fundamental na divulgação do futebol em diferentes regiões do país. Neste sentido, vários atletas buscavam/buscam no futebol profissional uma perspectiva de ascensão econômica/social. Além disso, ser um jogador de futebol passa, muitas vezes, a idéia de poder proporcionar uma maior visibilidade ao atleta em diferentes círculos sociais. Darcy Menezes, que jogou pelo Cruzeiro Esporte Clube na década de 1970, e pelo Esporte Clube Democrata no início da década de 1980, afirma que: Eu joguei no Cruzeiro que é um grande clube, e joguei também no Democrata que é um time que dá para você aparecer. Dependendo daquilo que você mostra jogando, você continua mantendo a aparência na mídia, e então eu tive isso. Então eu me orgulho porque mesmo depois de ter parado, e já com 58 anos, qualquer lugar que eu passo sempre tem alguém que me conhece e me cumprimenta, e então isso pra mim é muito gratificante. E aqui em Governador Valadares e região, quando eu chego em qualquer lugar eu sou bem vindo e tenho as portas abertas. E eu acho muito gratificante porque o pessoal sempre vem me perguntar, principalmente sobre a época do Cruzeiro (...)19 Quanto à perspectiva de se obter uma ascensão social e reconhecimento popular por meio do futebol, o ex-atleta Gilmar Estevão afirma que: 18 Depoimento do Sr. Almyr Vargas colhido no dia 11/12/2007. 19 Depoimento do Sr. Darcy Menezes, colhido em 11/12/2007. 172 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Desde criança eu já pensava em ser um jogador de futebol. Eu tinha ídolos e sempre fui torcedor do Clube Atlético Mineiro. Então isso veio desde cedo, sempre pensando em conseguir ser um jogador. (...) Apesar de não ter passado nenhuma dificuldade em termos de alimentação, eu vim de uma família muito humilde lá de Belo Horizonte. Então quando eu tive a oportunidade de ser um jogador profissional, eu percebi que por esse caminho eu podia conseguir uma vida melhor pra mim e pra minha família. Porque eu não consegui me formar e ainda faltava um ano para eu terminar o 2o grau ainda. (...) E não dava pra conciliar o futebol com os estudos. (...) Então quando eu vi essa oportunidade única de conseguir alguma coisa na minha vida, foi bom demais. E também socialmente foi muito bom.(...)20 No ano de 1991, o Esporte Clube Democrata conquistou o título de vice-campeão mineiro, o que possibilitou a classificação do clube para a Copa do Brasil no ano seguinte. Além disso, o artilheiro do campeonato mineiro foi Gilmar Estevão, que jogava pela equipe do Democrata. Após atuar na agremiação esportiva de Governador Valadares, nos anos de 1989, 1990 e 1991, Estevão teve a oportunidade de ir para o Cruzeiro Esporte Clube, depois para o São Paulo Futebol Clube. Disputou o Campeonato Brasileiro de Futebol, a Taça Libertadores da América, e, posteriormente, foi jogar na Arábia Saudita e em Portugal. Sobre a sua relação com o Democrata, ele nos diz que A minha relação com o Democrata é muito forte e vai continuar sempre assim, porque esse clube abriu as portas pra mim. Me ajudou na vida profissional e também social, e até mesmo em termos de bens materiais.(...) Porque com a minha trajetória aqui eu consegui vôos maiores(...) 21 Certamente o título de vice-campeão mineiro de futebol conquistado pelo Democrata trouxe uma maior visibilidade para a cidade de Governador Valadares e região. Para além dessa questão, o ex-presidente do clube, Sr. Almyr Vargas, afirma que a influência da agremiação esportiva no cotidiano da cidade contribui para uma melhoria na sociabilidade dos habitantes. (...) Todo e qualquer governante que se preze, e que tenha um pouquinho de visão , deve ter em mente que uma das primeiras coisas 20 Depoimento do Sr. Gilmar Estevão, colhido em 27/08/2007. 21 Depoimento do Sr. Gilmar Estevão, colhido em 27/08/2007. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 173 a se investir é no esporte. A coisa mais barata que existe para a comoção de uma comunidade, de uma cidade, de um país, é o futebol. Na época em que o Democrata foi vice-campeão mineiro, em todos os lugares que chegávamos, eu e amigos particulares, sempre paravam a gente para perguntar sobre o Democrata. (...) Então é o veículo de publicidade mais barato e que mais dá prazer. E nós temos um outro dado muito importante. Nós pedimos ao delegado de polícia que fizesse uma pesquisa sobre a violência na cidade. E o resultado foi que , quando o Democrata jogava na cidade, o índice de criminalidade e de bagunça diminuía. Então o esporte envolve essa parte da segurança e do bem estar da família, e isso é um dado muito importante. Principalmente no nosso país, que deixa muito a desejar em termos de educação, se o cidadão não tem o que fazer, ele vai sair com um instinto bestial, que é a agressão, que é a farra. E se tiver um esporte para ele passar o tempo dele, ele se considera também no direito de assistir o futebol e participar dele. (...)22 A importância e a influência do Esporte Clube Democrata para a cidade de Governador Valadares nos parece ser algo inequívoco. Supomos não ser um exagero ou uma precipitação sugerir que esta agremiação configura-se como um dos mais marcantes instrumentos de divulgação da cidade, razão pela qual se verifica uma evidente identificação entre o clube e a cidade. A afirmativa do ex-atleta (e bastante reconhecido no universo do futebol) Darcy Menezes, ilustra, com propriedade, uma das muitas interpretações que poderia ser conferida ao Esporte Clube Democrata e sua relação com a cidade de Governador Valadares. O próprio Darcy Menezes, oriundo do interior do Rio Grande do Sul, optou por construir sua vida na cidade. Para o ex-atleta, o futebol cumpre, inclusive, um papel social. Segundo ele, Eu acho o democrata importantíssimo porque ele é um digno representante da cidade, ao mesmo tempo em que o clube faz um elo entre a sociedade, o esporte e a cultura. Na cidade de Governador Valadares e região, como também em vários outros lugares, o Democrata é conhecido como um time de futebol, um time formador de craques e de homens. O clube tem uma categoria de base que serve de exemplo para que os meninos, futuramente, possam seguir a carreira profissional, e, com isso, evitar as ruas, as drogas e o fumo. (...) Em qualquer modalidade a pessoa 22 Depoimento do Sr. Almyr Vargas, colhido em 28/11/2007. 174 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO tem que ser 100% atleta. Se ele quiser ser um vencedor, ele tem que ser 100% atleta. Então o atleta que consegue essa conscientização, não vai para as drogas, não vai para o fumo e não vai para a noite. Então se não se tornar um grande atleta, ele torna-se um grande homem. 23 Conforme exposto ao longo deste texto, o processo de construção e reformas dos grandes centros urbanos esteve associado à idéia de modernização do país. Concomitantemente a estes dois fenômenos, houve a difusão da prática de esportes como um dos símbolos da urbanização. Neste cenário, o futebol configurou-se como esporte inicialmente praticado preponderantemente pelas camadas sociais mais abastadas, porém transformou-se, de maneira relativamente súbita, numa manifestação também de grande alcance popular. A partir daí, a prática futebolística do início do século XX, passou a movimentar e atrair diferentes segmentos e camadas sociais. A inserção do futebol no cotidiano de significativa parcela da população circunscrita aos grandes centros urbanos como as cidades do Rio de Janeiro e/ou São Paulo, mas também às cidades do interior do Brasil, concorreu para que o esporte adquirisse um novo significado, a saber, o de manifestação da cultura urbana local e regional. Fundado em 1932, o Esporte Clube Democrata iniciou sua trajetória antes da própria emancipação político-administrativa da cidade de Governador Valadares. A influência dessa agremiação esportiva no cotidiano da cidade é algo inequívoco, o que nos leva ao entendimento de que o Esporte Clube Democrata ocupa um dos espaços dentre os símbolos da identificação de Governador Valadares. Depoimentos orais 1 - Sr. Almyr Vargas, Presidente do Esporte Clube Democrata entre os anos de 1980 e 1991. 2 - Sr. Darcy Menezes, ex-atleta de vários clubes profissionais de futebol, dentre eles o Cruzeiro Esporte Clube e o Esporte Clube Democrata 3 - Sr. Gilmar Estevão, ex-atleta de vários clubes profissionais de futebol, dentre eles o São Paulo Futebol Clube e o Esporte Clube Democrata. 23 Depoimento do Sr. Darcy Menezes colhido em 11/12/2007. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 175 4 - Sr. Jorge de Carvalho, ex-atleta do Esporte Clube Democrata, atuando entre os anos de 1956 e 1964. 5 - Sr. Luiz Alberto Coelho Teixeira, um dos profissionais da impressa de Governador Valadares que mais acompanhou a trajetória do Esporte Clube Democrata 6- Sr. Rosenberg Petersen, autor do Hino do Esporte Clube Democrata, escrito em 1978, e gravado em 1980. Fontes impressas 1 - Edição Comemorativa dos 60 anos do Esporte Clube Democrata. 12/02/1992. 2 - Jornal Diário do Rio Doce, 1958 a 2006. 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TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 177 178 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Além do tombamento: a proteção do patrimônio cultural como exercício do direito à cidade Cristiana Maria de Oliveira Guimarães1 G overnador Valadares é uma cidade de Minas Gerais, localizada na porção leste do estado, especificamente no Vale do Rio Doce. Margeada pelo rio Doce, sua história e desenvolvimento é devedora desta condição (Figura 1). Como, em menor grau, de sua posição geográfica no entroncamento triplo conformado pelas Rodovias Rio-Bahia , BR 116 e a BR 381 com a Ferrovia Vitória-Minas. Figura 1: Vista aérea de Governador Valadares (Distrito-sede) Fonte: Google Earth, Digital Globe, Image, 2008. A bacia do Rio Doce foi uma das últimas regiões ocupadas em Minas Gerais. No auge da mineração, em Minas Gerais, a Coroa Por1 Doutora em Ciências Humanas: sociologia e política, pela FAFICH/UFMG, Mestre em Arquitetura e graduação em Arquitetura e Urbanismo, os dois últimos pela Escola de Arquitetura da UFMG. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 179 tuguesa temerosa do contrabando através das águas do rio Doce, até o mar, no Espírito Santo proibiu a ocupação dessa área, conhecida como Sertões do Rio Doce. Entretanto, quando os veios auríferos se esgotaram, a proibição da ocupação perdeu seu sentido, tornando-se, ao contrário, interessante ao Estado. Inicia-se o processo inverso, o de incentivo à ocupação dos Sertões do Rio Doce, do qual fazem parte a Guerra Ofensiva aos Botocudos e os incentivos financeiros e fiscais aos interessados em se fixar na região (BORGES, 1988; ESPÍNDOLA, 1999; 2005). Entretanto, essas iniciativas não alcançaram os resultados pretendidos. Apenas na segunda metade do século XIX, Figueira, posteriormente Governador Valadares, transforma-se em entreposto comercial de envergadura considerável. O rio Doce, navegável do povoado até a foz, possibilitou sua consolidação como porto de canoas e troca de mercadorias (SIMAN, 1988). Nos primeiros anos da República, a região recebe um grande contingente de migrantes em função da construção da ferrovia VitóriaMinas, então chamada, Vitória-Diamantina. Entre 1904 e 1907, a movimentação de seus trilhos encontrava-se próxima de Figueira do Rio Doce, então distrito do município de Peçanha. A instalação da ferrovia e a inauguração, em 1910, da estação ferroviária de Figueira trouxeram efeitos significativos, como a consolidação da sua posição de entreposto comercial; a vinda de migrantes da própria região do rio Doce, do Espírito Santo, da Bahia e de alguns estrangeiros de nacionalidade italiana, espanhola e siríaca2 e o aumento da importância econômica da cultura do café e da extração de madeira para a região (SIMAN, 1988). Governador Valadares cresceu rapidamente na década de 40 e se destacou, nos anos 50, como um dinâmico centro regional. Entre 1940 e 1950 a população passou de 5734 para 20357 habitantes, e na década seguinte saltou para a espetacular cifra de 70494 habitantes. A cidade se beneficiou do crescimento da economia regional, passando a exercer diversas funções: primeiro tornou-se pólo de beneficiamento 2 A construção da estrada de ferro é um dos fatores relacionados à “tradição migratória”. Em um primeiro momento, a região recebia imigrantes; a partir da década de 60 a região passou a exportar mão-de-obra. Hoje essa é uma das suas características distintivas; seus aspectos positivos e negativos estão sendo recentemente estudados. Cf. SIQUEIRA, Sueli. Migrantes e empreendorismo na microregião de Governador Valadares: sonhos e frustrações no retorno. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Humanas: sociologia e política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Belo Horizonte. 180 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO e distribuição de produtos regionais (mica, pedras semipreciosas, madeira, couro, cereais e outros); segundo, passou a ser um importante centro de pecuária,com um dos maiores rebanhos do estado; terceiro, como centro comercial importante (ESPÍNDOLA, 1999). Nas décadas de 60 e 70, um quadro de estagnação econômica substitui o boom anterior. Evidencia-se a fragilidade da economia baseada no extrativismo - a mica perde sua importância no mercado mundial e o esgotamento das reservas florestais provocou o fechamento de diversas serrarias. O desmatamento favoreceu o surgimento de grandes extensões de capim colonião, contribuindo para que a pecuária assumisse o protagonismo nas atividades econômicas municipais. Essas mudanças repercutem na oferta de emprego, ao gerar uma perda na absorção de mão-de-obra. Isso se agrava com o processo de absorção das pequenas propriedades pelos grandes proprietários que utilizam principalmente, formas de exploração extensivas, absorvendo pouca mão-de-obra. Na década seguinte, a situação de estagnação econômica recrudesce, acompanhando os acontecimentos nacionais e internacionais. À recessão somaram-se algumas especificidades locais, como o contato precoce com a comunidade americana e a constituição de uma intensa rede de migração, consolidando uma das características valadarenses mais marcantes no contexto atual – o grande número de migrantes que vão tentar a sorte no exterior, principalmente nos Estados Unidos. O mencionado quadro de estagnação econômica permanece na década de 90 e início dos anos 2000 (ESPÍNDOLA, 1999; SIQUEIRA, 2006). Em nossos dias, a cidade3 busca outras opções de desenvolvimento e atividades econômicas. Nesse sentido, tem destaque o empenho em sua constituição como pólo de serviços médicos e educacionais. As atividades ligadas ao turismo completam o quadro dos novos interesses e potencialidades fomentados na construção de uma nova vocação para a cidade. Nesse contexto, aparecem localmente, o interesse e a preocupação em preservar seu patrimônio cultural. *** 3 Este texto trata apenas do Distrito-sede do município de Governador Valadares. Além deste, compõem o município os distritos de Alto de Santa Helena, Baguari, Brejaubinha, Chonim, Chonim de Baixo, Derribadinha, Floresta, Goiabal, Penha do Cassiano, Santo Antônio do Pontal, São José do Itapinoa, São Vítor, Vila Nova. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 181 Atualmente, vimos utilizando o termo patrimônio cultural, de modo corriqueiro como se seu significado só possibilitasse uma interpretação, de compreensão natural, livre de conotações políticas e culturais. Como o termo e seu significado são exatamente o contrário disso, começamos pela explanação de nossa posição sobre ele. Esta está relacionada à compreensão do patrimônio como uma construção simbólica, um constructo. A assunção deste conceito tem reverberações. Se o patrimônio cultural é uma construção simbólica, alguém ou um grupo é responsável por isso. Há um momento de escolha e decisão sobre o que será ou não considerado patrimônio. Ele não é dado a priori. Essa escolha tem motivos e intenções – a construção do patrimônio é um processo histórico, localizado no tempo e espaço, logo um processo político e cultural. Propomos, agora, uma reflexão sobre essa escolha. Nosso argumento é que os bens identificados como patrimônio não deveriam ser apenas os excepcionais, mas aqueles capazes de representar, de modo mais amplo o possível, no nosso caso, para a cidade, sua identidade. Muitas vezes, o que estamos, aqui, sugerindo que fosse identificado como patrimônio são hábitos que de tão costumeiros são despercebidos como fundamentais. Em Governador Valadares, temos um exemplo bem característico: o andar de bicicleta (Figura 2). Sua proteção, logicamente, não deve passar por medidas como o tombamento, mas pelo seu incentivo e manutenção, o que poderia ser feito, a partir, da melhoria e aumento das redes de ciclovias. Chegamos, com essa ilustração, a outro ponto de nossa argumentação. Acreditamos que políticas e medidas de proteção do patrimônio para serem legítimas e eficazes precisam estar baseadas no uso e na sua apropriação pela população. Uma analogia aos nossos patrimônios privados é útil para explicar, de modo bastante simplificado, essa posição. Nossos patrimônios privados, embora cuidados e preservados, às vezes até melhorados, são utilizados de modo cotidiano. De um modo ou de outro, estão na dinâmica da nossa vida. Pensemos em nossa casa. É um imóvel com um determinado valor de mercado; é nosso lar, com vários aspectos simbólicos e afetivos. No entanto, não cogitamos deixá-la guardada, sem uso, para que seja protegida. Diferente disso é o uso que agrega, diariamente, outros valores, sempre ressignificados ao longo tempo, invalidando a decisão sobre qual deles é o mais importante ou original. Está sempre atual, vivida e imprescindível ao cotidiano, e por isso, cuidada e preservada. 182 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Figura 2: Fotografia da I Corrida Oficial Medalha de Ouro. Fonte: Arquivos CEDAC/UNIVALE. Evidentemente, uma casa é do âmbito do privado, do patrimônio particular e familiar. O patrimônio da cidade tem outro âmbito - o coletivo. Mesmo com as ressalvas necessárias, a caricatura é válida para dizer que o patrimônio de todos deve ser cuidado e preservado, mas isso não significa a sua retirada da vida cotidiana. Propomos que ele seja inserido na complexa equação urbana, como mais uma de suas variáveis, tal como o são o trânsito, a moradia, a segurança pública. Trata-se de compreender o patrimônio cultural como um dos direitos urbanos; e assim, como parte fundamental do exercício do direito à cidade. Antes de aprofundarmos esta proposta - pensar o patrimônio cultural como parte do direito à cidade -, precisamos esclarecer as posições teóricas que sustentam essa idéia, ainda que sob o risco de cometermos, pela exigüidade das colocações, abreviações não desejadas. Reconhecemos na esteira de autores como SANTOS (1996, 2005), SOJA (1993), LEFEBVRE (2001) que a espacialidade é socialmente produzida, e como a própria sociedade, existe em formas substanciais – espacialidades concretas - e como um conjunto de relações entre TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 183 indivíduos e grupos. O espaço socialmente produzido deve, então, ser distinguido do espaço físico da natureza material e do espaço mental da cognição e representação. O espaço é formado e moldado a partir de elementos históricos e naturais, sendo esse um processo político. Logo, o espaço é político e ideológico. É nesse espaço político e ideológico que a vida se realiza em sua concretude. Em outras palavras, a reprodução da vida é materializada no espaço, sendo ele interventor nessa mesma reprodução. Assim sendo, é necessário que determinadas situações e características advindas da materialidade espacial estejam disponíveis e acessíveis a todos, para que desse modo, esteja também disponível a todos, as condições necessárias para realizar a produção e reprodução da vida. Essas, como aqui colocado, ultrapassam a idéia da simples subsistência. Está incluída, no grupo do necessário à vida, a possibilidade de intervir e modificar a própria construção do espaço, no qual a vida se materializa. Garantir de modo ampliado, o uso da cidade, a possibilidade futura de novas apropriações ou ainda a modificação dessas faz parte do exercício do direito à cidade, tal como proposto por Lefebvre (2001), uma forma superior de direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra [à atividade participante] e o direito à apropriação [bem distinto do direito à propriedade] estão implicados no direito à cidade (LEFEBVRE, 2001, p. 135). Voltando ao conceito do patrimônio cultural, tal como aqui apresentado, temos que esse é o resultado das diferentes formas de apropriação da cidade pelas pessoas, ao longo de suas trajetórias. Pode-se dizer, então, que a proteção do patrimônio cultural é – ou deveria ser – a proteção dessas formas de apropriação. Concluímos, então, que garantir o amplo acesso ao patrimônio cultural é parte do exercício do direito à cidade, e - esta é a nossa defesa – como tal, ele deveria ser compreendido. *** Pensemos, agora, no conjunto de bens protegidos em Governador Valadares. São eles: o Antigo Templo Presbiteriano, a Companhia Açucareira do Rio Doce, a Fachada da Antiga Cadeia Pública, as Fachadas da Antiga Sede Dos Correios e Telégrafos, a Venda do Seu Margarido, a Argola de Amarrar Solípedes, o Cadeiral do Júri, Maria 184 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Fumaça e Painel Cubista do Edifício Helena Soares, e por fim, o Complexo da Santa e o Pico da Ibituruna. Os cinco primeiros integram o rol dos bens imóveis. São bens de uso público, alguns de propriedade pública, outros de ordem privada, mas não familiar, como aqueles pertencentes às Igrejas. A exceção que confirma a regra acontece em dois planos: o único bem familiar, a Venda do Seu Margarido, é também o único exemplo de resistência às restrições impostas pela política preservacionista local. Além de vários protestos, o tombamento e suas reações a esse incorporam um complexo processo judicial.4 O resultado mais visível das polêmicas é o péssimo estado de conservação em que se encontra (Figura 3). Figura 3: Fotografia da Venda do Seu Margarido. Fonte: Acervo da autora, 2007. Em todos os casos acima, os motivos para o tombamento são explicados por aquilo que representam para a história da cidade. É im4 Sobre a polêmica em torno do tombamento da Venda do Seu Margarido confira: GUIMARÃES, C. M. O. O Patrimônio Cultural de Governador Valadares (MG): algumas reflexões. In: Revista CPC USP, nº 05, novembro 2007. Disponível em <http://www.usp.br/cpc/v1/php/wf07_revista_interna.php?id_revista=9&id_conteudo=29&tipo=5> Acesso em abril de 2008. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 185 portante fazermos a ressalva, que a história da cidade é, assim como o patrimônio cultural, uma construção simbólica, localizada no tempo e no espaço, com intenções e motivações políticas e ideológicas. Assim sendo, o patrimônio cultural e a história da cidade se complementam, legitimam um ao outro, e ainda, tornam concreto o discurso que anteriormente os construiu desta ou daquela maneira. Já os bens móveis são representados pela Argola de Amarrar Solípedes, o Cadeiral do Júri, a Maria Fumaça e o Painel Cubista do Edifício Helena Soares. Também nesses casos, a justificativa para o tombamento está localizada no papel desempenhado na trajetória da vida citadina, tal como essa é contada. A descrição referente ao Cadeiral do Júri nos mostra isso: (...) merece ser conservado como símbolo de uma época. Este mobiliário teve um papel coadjuvante na história jurídica valadarense, compondo cenários de históricos e memoráveis julgamentos, sendo ainda hoje, o palco de importantes decisões judiciais (SEBRAE, 2004) Vale pontuar, mesmo que brevemente, a inexistência entre os bens tombados, tanto móveis como imóveis, daqueles que representam a permanência indígena na região, ou ainda, dos diversos conflitos relacionados à posse de terra que marcaram o local nas décadas de 50 e 60 do século passado. O Complexo da Santa e o Pico da Ibituruna compõem a categoria dos conjuntos paisagísticos. É importante observar que o Complexo da Santa, conjunto composto pela imagem monumental de Nossa Senhora e sua capela, encontra-se no ponto mais alto do Pico da Ibituruna, um importante acidente geográfico situado à margem do rio Doce. Os dois juntos – rio Doce e Pico da Ibituruna - conformam um forte símbolo identitário e marco da paisagem local. O tombamento municipal do Pico da Ibituruna é, na realidade, a reafirmação do tombamento anterior realizado em nível estadual, pela Constituição Estadual de 1989, como conjunto paisagístico. Em outro âmbito, a questão ambiental, a área do Pico da Ibituruna é contemplada com outras medidas protecionistas: em nível estadual é classificada como uma APEE – Área de Proteção Especial Estadual e em nível municipal foi determinada como APA – Área de Proteção Ambiental, em uma ação decorrente da política de meio ambiente municipal, através da Lei Complementar nº 55 de 27 de maio de 2004. 186 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO A compreensão do patrimônio cultural como algo excepcional à dinâmica urbana justifica a escolha do tombamento como único instrumento de proteção desses bens, apesar de suas diferenças essenciais. Muito se tem discutido e debatido sobre esse instrumento (CASTRO, 1991; FONSECA, 1997; LERNER, 1987), que no Brasil, passou a ser identificado como a preservação do patrimônio em si, configurando um daqueles casos nos quais a parte incorpora o todo. Não cabe aqui retratar todo esse debate, apenas aproveitamos para esclarecer nossa posição de que o instituto do tombamento tem características e atributos muito precisos, entre os quais altos graus de excepcionalidade e imutabilidade. Apesar de sua indiscutível validade, é urgente a contextualização desse instrumento, pois por sua própria definição, ele não deveria ser aplicado única e universalmente. Contrariamente, esse é o traço principal da política de preservação do patrimônio realizada em Governador Valadares. Cabe aqui, comentar outro aspecto. A política de preservação valadarense foi motivada pela existência em Minas Gerais da, já famosa, Lei Robin Hood5. Essa lei inclui ações referentes à educação, saúde, agricultura, preservação do patrimônio cultural, nos critérios de cálculo do repasse da parcela do ICMS devida aos municípios. Essas ações são avaliadas dentro de critérios previamente definidos e fiscalizados pelos órgãos competentes. No caso do patrimônio cultural, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/ MG – cumpre esse papel. Entre as exigências colocadas pelo IEPHA/MG estão a existência de uma política municipal de preservação do patrimônio cultural e a criação e atuação efetiva de um conselho municipal de patrimônio cultural. Seguindo essa cartilha, em 2001, foi constituído, o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural6, como pedra inaugural da política preservacionista local. A partir daí, seguiram-se outras iniciativas das quais, destacam-se os já mencionados tombamentos. É importante ressalvar que de acordo com os critérios estipulados pela Lei Robin Hood, uma das ações com maior pontuação (e facilidade de execução) é justamente, o tombamento dos bens. 5 Em Minas Gerais, tornou-se revolucionária a criação e implementação da Lei Estadual 12.040 de 28/12/1995, conhecida como Lei Robin Hood. 6 O Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural – CDPC - foi instituído pelo Decreto Municipal nº 6927 de 19/03/2001 e referendado pela Lei Municipal 4646/1999. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 187 Lembramos aqui, mais uma vez, que o patrimônio cultural não é um dado natural, mas uma construção simbólica e cultural, um constructo. Rudemente falando, ele será aquilo que as políticas responsáveis por sua proteção decidirem que ele seja. Logo, a concretude do patrimônio cultural, seja de um país, cidade ou comunidade é decorrência do modo como teoricamente ele é compreendido. No caso de Governador Valadares, a opção nos parece ter sido pelo viés do excepcional: tanto no que se refere à constituição do patrimônio oficial, como nos instrumentos e mecanismos estabelecidos para sua proteção. Nesse conjunto de situações, conceitos e valores o patrimônio cultural fica restrito a uma visão que o transforma em “coisas de artista e gente letrada”, tal como anunciava o discurso popular ainda nas décadas de 20 e 30 do século passado, momento em que a política de preservação foi sistematizada no Brasil, como já mencionado. Como bem expressa o dito popular, grande parte da população não se sente identificada nem com aquilo que é estipulado como patrimônio cultural, nem tampouco, com as medidas que visam sua proteção. Não há a compreensão desse patrimônio cultural como seu, e conseqüentemente, não há a assunção das restrições que seriam realizadas em seu nome, como nos ensina os fatos seguintes ao tombamento da Venda do Seu Margarido. Outro exemplo da realidade valadarense reforça nossa hipótese que deixamos muito de lado, ao priorizar como ações de proteção ao patrimônio, medidas específicas e excepcionais. O mesmo exemplo mostra o outro lado dessa moeda: o que se poderia preservar como identidade e tradições da cidade, caso o patrimônio e sua proteção estivessem alargados à questão urbana como um todo. Falamos do Bairro Esplanada. O bairro é tradicionalmente local de moradia das elites, muito valorizado tanto para o mercado, como simbolicamente. Apresenta ótimas condições de infra-estrutura, asfalto, abastecimento de energia elétrica, redes de telefonia, cabo e similares, redes de drenagem e abastecimento de água. O início de sua ocupação pode ser localizado na década de 50, estando, atualmente, totalmente consolidado ou até, além disso. 188 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Algumas alterações na Lei de Uso e Ocupação do Solo de 1993 determinaram um aumento no potencial construtivo para cinco bairros7, entre os quais, o Bairro Esplanada. Nesses passou a ser permitida a construção de até 18 pavimentos por lote, desde que seguidos alguns parâmetros específicos, enquanto o padrão do número de pavimentos permitidos para o conjunto urbano fica entre quatro e cinco pavimentos. Há, inegavelmente, um ganho significativo na possibilidade construtiva na região. As leituras de autores como Santos (1994), Singer (1979), Villaça (1998), entre tantos outros, nos ensinam que o valor do solo urbano vai além do valor do solo em si. Como invariavelmente, a infra-estrutura e os equipamentos urbanos são distribuídos de modo desigual nas cidades, os pontos que detêm melhor infra-estrutura e melhores equipamentos são mais valorizados pelo mercado. Soma-se a isso, a proximidade de outros pontos importantes na cidade, que também, infelizmente, seguem a regra já estabelecida de locais melhores e outros piores. Completam o quadro, duas outras variáveis relacionadas às possibilidades construtivas. A primeira diz respeito ao potencial construtivo de cada terreno, ou seja, a quantidade em metros quadrados que se pode construir. A outra variável corresponde aquilo – ao tipo de “coisas” - que pode ser construído em cada parte. Vejamos um exemplo, mesmo que hipotético. Suponhamos que temos em mão dois terrenos de igual metragem e condições de topografia e localização. No primeiro, Lote A, é permitida apenas a construção de residências unifamiliares, ou seja, casas, de no máximo dois pavimentos. No segundo, Lote B, é possível a construção de residências multifamiliares, com até 18 pavimentos, o que resulta em uma torre de apartamentos, com pelo menos 18 unidades. Não é preciso matemática elaborada para percebermos que o segundo caso 7 Os outros bairros afetados pela citada determinação da Lei de Uso e Ocupação do Solo são: Vila Bretas, Lourdes, Vila Mariana, Morada do Acampamento. São bairros (com exceção para o Morada do Acampamento ou Acampamento da Vale) de ocupação também tradicional, assim como o Esplanada, mas diferente desse, caracterizada por classes mais populares, classes média baixa e baixa. As determinações trazem também para essas áreas, um aumento da possibilidade construtiva. Sabe-se que além da localização, como anteriormente exposto, o potencial construtivo é um dos fatores mais influentes na conta do valor de cada porção do solo urbano. Em sentido oposto ao nosso alerta anterior, aumentar o potencial construtivo de áreas menos valorizadas aparece como um caminho para a melhoria da distribuição dos preços dos terrenos no mapa citadino. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 189 é mais atraente ao mercado construtivo/imobiliário. Do mesmo modo, não precisamos nos alongar muito para entendermos que, nessa lógica, a substituição de casas tradicionais por torres de apartamentos é apenas uma questão de tempo e ativação da economia. Esse processo é ainda mais rápido quando o local em questão é desejado por todos, como é o caso do bairro Esplanada. Algumas abordagens teóricas são possíveis a partir do nosso exemplo hipotético. Entre essas está o debate sobre a valorização desigual de terrenos particulares, motivada por políticas públicas, ponto crucial, para o urbano. Contudo, por uma questão de ordem, vamos deixá-lo para outra ocasião, priorizando aqui, a reflexão ligada ao tema patrimônio cultural. No bairro Esplanada, pelo menos em parte desse, ainda predominam as antigas relações de vizinhança, motivadas pela também tradicional relação rua/morador baseada na tipologia das residências unifamiliares. Nessas, o morador ao sair de sua varanda, já está na rua, o que não acontece nas torres dos apartamentos. No primeiro caso a rua é extensão de sua varanda ou dos jardins. Não há a intermediação do elevador, ou ainda, das áreas comuns dos prédios e dos famosos playgrounds, substitutos modernos das calçadas como local de brincadeiras e encontros infantis. Outros costumes, como colocar as cadeiras à rua, ao fim de tarde, comum há alguns anos, mas já se tornando raridade, não são exeqüíveis quando se habita as torres de apartamentos. A distância morador/rua aumenta ainda mais, quando os edifícios, para darem conta das exigências, tanto comerciais, quanto normativas, precisam dispor de um número suficiente de vagas de garagem, o que é feito pela incorporação para essa finalidade dos primeiros pavimentos. O resultado é a substituição de ruas vivas, movimentadas, extensão dos jardins, por ruas esvaziadas, as quais, pela sensação de insegurança que provocam, giram a roda e tornam-se cada vez mais esvaziadas, e assim, de fato inseguras. Outro ponto é a perda de uma ambiência caracterizada pela pouca densidade e pela significativa existência de quintais e jardins. Trata-se da substituição de áreas permeáveis por outras impermeáveis, e ainda, áreas verdes por falta de vegetação. Em uma cidade com altas temperaturas e sérios problemas de drenagem e enchentes essa troca acarreta conseqüências além da diminuição da qualidade estética do 190 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO lugar. Conseqüências essas que ultrapassam os limites do bairro e atingem a cidade como um todo. O leitor desavisado poderia supor estar diante de um quadro de saudosismo, ou nostalgia exagerada, que desconhece fazer parte das melhores tradições suas transformações internas. Não se trata disso, mas de uma tentativa de desnaturalizar o que muitas vezes assumimos em nosso cotidiano como uma situação sobre a qual não temos ação ou decisão. É justamente o oposto disso: a cidade é feita e refeita a cada instante por decisões aqui e ali, cada uma com várias conseqüências, que por sua vez, determinam outras. O que acontece é que não nos damos conta disso, às vezes pelo imediatismo imposto pelas urgências do dia-a-dia, outras vezes, por que esse jogo não é explicitado como deveria ser. No caso em questão, o bairro Esplanada, não podemos afirmar que as transformações – em curso e futuras – são fundadas apenas nas mudanças próprias à passagem do tempo e novos hábitos. O aumento da possibilidade construtiva para até 18 pavimentos funciona como um propulsor para a substituição das residências unifamiliares pelas torres de apartamentos ou de salas comerciais; modificação que, como vimos, traz uma série de outras. Como anunciado, essa problemática não alcançou a política de patrimônio, mostrando a não amarração de suas ações e propostas ao planejamento urbano como um todo. Há uma certa indiferença em relação às possibilidades de somar-se a legislação urbanística, ou pela reafirmação de suas determinações, ou pela limitação dessas. Do modo como está colocada em Governador Valadares, a proteção do patrimônio é rígida para muito poucos e específicos bens, aqueles tombados, enquanto vários outros, materiais e imaterais, são deixados a sua própria sorte. Entre esses, está a Catedral de Santo Antônio. Essa não está incluída entres os bens tombados, e a primeira vista, nem seria mesmo o caso. Não se trata disso, mas da necessidade de se alargar os mecanismos de proteção, não daquele patrimônio singular e excepcional, mas de um outro, constituído pelos os marcos, hábitos e cotidiano vivido, que fazem da cidade a cidade de Governador Valadares. Recentemente, foi construída uma torre de apartamentos ao lado da Catedral – literalmente ao lado, em lote vizinho (Figura 4). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 191 Contrariando orientações assumidas desde a Constituição Federal de 1988 e reafirmadas pelo Estatuto da Cidade8, a política de patrimônio local está restrita a um âmbito muito específico. As citadas leis determinam que a vivência do patrimônio cultural é parte do direito à cidade e como tal deve ser tratado e compreendido. Nos dois exemplos vistos até agora foram deixados de lado instrumentos que poderiam auxiliar na proteção do patrimônio como a limitação de gabaritos, restrições na escala construída e até diminuição do potencial construtivo de determinados locais. Isso poderia ser feito a partir da definição de locais específicos que precisam de maior restrição e limites construtivos para viabilizar a proteção de características ou hábitos, considerados patrimônio cultural. No nosso caso, a justificativa seria a proteção do patrimônio cultural. Neste ponto, é preciso esclarecer que reconhecemos que ao abarcar regras do ordenamento urbanístico, a política do patrimônio entra em uma seara marcada por grandes conflitos e disputas de poder. Contudo, defendemos que esse é um jogo que não pode ser evitado, caso o resultado almejado seja uma cidade melhor e legítima a proteção do patrimônio cultural. Do modo como tem sido a sua prática em Governador Valadares, isso não tem acontecido. Vejamos um último exemplo. Figura 4: Vista da Catedral de Santo Antônio em dois momentos: à esquerda, na década de 50/60; à direita, em 2010. Fonte: Arquivos CEDAC/UNIVALE/Acervo da autora. Governador Valadares é margeada pelo rio Doce, sendo sua ocupação e desenvolvimento devedores desta condição. Na outra margem do rio, como já visto, está o Pico da Ibituruna. Não é preciso explicar 8 Esse é o nome pelo qual ficou conhecida a lei federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001. 192 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO aos valadarenses como o rio Doce e o Pico da Ibituruna fazem parte da cidade – não é possível pensá-la sem a existência dos primeiros. Contudo, a singularidade da paisagem composta pela tríade cidade - rio Doce - Ibituruna não recebe atenção especial, nem pelas políticas de patrimônio, nem tampouco, na legislação urbanística9. A dinâmica urbana, incluídas aí suas normas, não está suficientemente embebida da importância de se manter essa paisagem ao alcance de todos, para que possa ser vivenciada plenamente. As normas permitem e a sociedade avaliza, através de sua participação no mercado imobiliário – seja como empreendedor ou comprador dos empreendimentos – a construção de edificações com gabaritos altos, à margem do rio, impossibilitando a sua visibilidade e vivência. Esses mesmos edifícios altos “levantam” a linha do horizonte diminuindo, em termos da percepção, o impacto e a presença do Pico da Ibituruna (Figura 5). Figura 5: Vista parcial da cidade com a Ibituruna ao fundo, em dois momentos. À esquerda, década de 50/60; à direita, em 2007. Fonte: Arquivos CEDAC/UNIVALE/ Acervo da autora. Trata-se da conformação de uma barreira, à semelhança do que ocorre em várias orlas marítimas brasileiras. Ali, o mar, aqui o rio Doce, torna-se privilégio de uns poucos – daqueles que podem pagar por ele. Falamos da privatização do patrimônio de todos. 9 Sabemos da existência de medidas de proteção isoladas tanto para o Pico da Ibituruna como para o rio Doce, às vezes, de modo até duplicado. Essas estão relacionadas principalmente a proteção ambiental. Interessa aqui apontarmos como o conjunto cidade- rio Doce – Ibituruna não recebe o mesmo tratamento. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 193 Reencontramos o interesse principal deste texto: pensar o patrimônio cultural como um dos direitos urbanos. Afinal, para nós, preservá-lo é antes de tudo garantir o usufruto do que é coletivo – a cidade, suas características, significado e história. Referências Bibliográficas BORGES, M.E.L. Utopias e contra-utopias: movimentos sociais rurais em Minas Gerais. 1988. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em <http://www.senado.gov.br/legislação > Acesso em março /abril de 2007. CASTRO, Sonia Rabello. 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Conforme demonstraram vários estudos Sales (1998), Bógus e Bassanezi (1998), Reis e Sales (1999), Martes (2000), Siqueira (2009), este fluxo de brasileiros para o exterior tornou-se uma questão relevante quando, o que era um movimento esporádico para o estrangeiro nos anos 1960, transformou-se num fluxo migratório demograficamente significativo. N As pesquisas começaram seguindo o percurso dos próprios fluxos migratórios. Quando as notícias de brasileiros barrados no exterior começaram a aparecer na imprensa, algumas questões instigavam os pesquisadores: quem são os brasileiros emigrantes? Por que deixaram o país? Por que alguns lugares se tornam ponto de partida e chegada para os migrantes? Assim as primeiras pesquisas (MARGOLIS, 1994; SALES, 1999; ASSIS, 1999) traçaram um perfil dessa população e apontaram para a cidade de Governador Valadares (MG) como ponto de partida de emigrantes para os EUA indicando que entre essa cidade e algumas cidades nos EUA, havia uma conexão, uma rede de relações que ligava os dois lugares. 1 Doutora em Sociologia e Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora titular da Universidade Vale do Rio Doce. 2 Doutora em Antropologia pela Universidade de Campinas. Professora titular da Universidade do Estado de Santa Catarina. 3 Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor titular da Universidade do Estado de Santa Catarina. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 197 Ao longo dos anos de 1990, conforme demonstram os trabalhos de Martes (2000), Sales (1999), Reis e Sales (1999), o fluxo de brasileiros para os EUA manteve-se continuo ao mesmo tempo em que se diversificava a população, complexificando as características da população migrante, bem como revelando outros pontos de partida para a emigração, como a cidades de Criciúma, na região sul do país, ou de Maringá no estado do Paraná. Os estudos revelaram também uma importante mudança na expectativa temporal (SALES,1999; ASSIS, 2004, SIQUEIRA, 2008a). Os migrantes que inicialmente se auto-definiam como temporários, deparam-se ao longo da década com a ampliação do tempo de permanência o que coloca em questão a idéia de retorno (ASSIS, 2003, SIQUEIRA, 2009). Assim homens e mulheres migrantes vivenciam o crescimento da comunidade brasileira, tornando-se mais visível, nas regiões de destino, através de suas lojas de produtos étnicos, suas igrejas, suas famílias, no surgimento de uma segunda geração de migrantes. É neste contexto que podemos falar da primeira geração de filhos de brasileiros nascidos nos EUA. Assim a questão que se coloca para os migrantes é como manter as relações com o Brasil, os laços familiares e afetivos, os investimentos e ao mesmo tempo participar das redes sociais nos EUA. A emigração internacional de brasileiros passou a fazer parte do cenário nacional em um período muito recente da nossa história. A partir da secunda metade da década de 1960 é que inicia a ida dos primeiros emigrantes que na década de 1980 se configura como um fluxo migratório relevante. Estes emigrantes deram novos contornos tanto as suas cidades de origem através do envio de moeda estrangeira como, também, as localidades de destino, pois recriam os espaços sociais e formatam o mercado de trabalho (mercado de trabalho secundário) dessas regiões. Governador Valadares foi o cenário central desse novo movimento populacional que ao longo dos anos 1990 manteve-se contínuo, ao mesmo tempo em que se diversificava o perfil da população (classe, sexo, gênero) e emergiram novos pontos de partida. As pesquisas demonstraram que embora no imaginário construído sobre a emigração de brasileiros Governador Valadares permaneça como o lugar de onde saem todos os emigrantes, há um espraiamento desse fenômeno por todo o território nacional. No entanto, a despeito dessa diversificação dos locais de origem dos emigrantes, há apenas algumas cidades do Bra198 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO sil de onde partem a maioria dos emigrantes e nesse contexto além da Região de Governador Valadares, cidades da região de Criciúma (SC), e outras cidades da região sul do país (FUSCO, 2006; SIQUEIRA e JASSEN, 2008) passaram a fazer parte desse novo movimento populacional. Alguns estudos foram realizados buscando compreender por que estas cidades estavam se tornando ponto de partida de emigração, quais as características dos fluxos nesses locais e os efeitos desse fenômeno para as cidades de origem (SIQUEIRA, 2009) Os migrantes da cidade de Governador assim como de Criciúma tem como principal local de destino à região da grande Boston, nos Estados Unidos. Por isso foram selecionadas para analisarmos como se configuram os fluxos nesses dois locais de origem no Brasil. Este estudo revela-se significativo para ampliar a compreensão do fenômeno da migração internacional de brasileiros para os EUA, pois além de permitir desvendar a formação das redes sociais nos dois lugares, possibilitará compreender e explicar, através de uma análise comparativa, os diferentes elementos que compõem a formação dos fluxos migratórios. Governador Valadares, emergiu como ponto de partida de emigração, desde nos anos de 1960, esse fluxo se consolidou na segunda metade dos anos de 1980 e modificou a vida cotidiana na cidade envolvendo aqueles que partiram e aqueles que ficaram numa intrincada rede de relações. Na década de 1990 a cidade de Criciúma (SC) emerge como ponto de partida de emigrantes para a região de Boston (EUA). Dessa forma, a partir dessas cidades procuraremos traçar as redes que articulam e sustentam este fluxo - há uma ampla rede migratória que envolve agências de turismo, intermediários, entidades religiosas, redes de parentesco, amizade, solidariedade étnica que incentivam e sustentam a migração, fazendo com que esse processo migratório faça parte da dinâmica dessas cidades. Como já foi demonstrado, através dos estudos de Massey (1987) e Boyd (1986) sobre migrantes mexicanos nos EUA e as pesquisas de Sales (1999), Martes (2000), Assis (2004), Fusco (2000, 2006), SIQUEIRA (2008b) as redes sociais se constituem num significativo capital social tanto nas cidades de origem como nas de destino dos emigrantes brasileiros. A pesquisa analisou como se formaram, articularam, mantiveram e se modificaram as redes sociais no processo migratório. Para compreender a influência das redes sociais, torna-se fundamental delinear TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 199 como elas se constituem quais as suas dinâmicas e estratégias na sociedade de origem. Portanto a pesquisa foi realizada nas duas cidades no Brasil que tem as conexões com a região de Boston (EUA) – Governador Valadares e Criciúma e nos Estados Unidos nas cidades de Boston, Lowell, Framingham, New York, Bridgeport. A pesquisa é de cunho qualitativo, cujos dados foram coletados através de relatos orais de emigrantes que iniciaram o fluxo migratório. Através da técnica de bola-de-neve foram localizados os primeiros emigrantes e ou seus familiares que participaram dessa rede. Utilizando-se também de entrevista semi-estruturada buscou-se delinear os pontos iniciais, as conexões e o perfil dos primeiros emigrantes. Foram realizadas 47 entrevistas com os primeiros emigrantes e ou seus familiares que residem atualmente no Brasil ou estavam a passeio em suas cidades de origem e 28 com emigrantes residentes nos Estados Unidos. O Campo no Brasil foi realizado no período de março de 2007 a dezembro de 2008 e nos Estados Unidos no mês de março de 2008. Para atender alguns objetivos do projeto de pesquisa, como descrever o impacto da emigração internacional na cidade de Governador Valadares e região foram utilizados dados secundários coletados e analisados pelo Núcleo de Estudos sobre Desenvolvimento Regional – NEDER da Universidade Vale do Rio Doce que desenvolve pesquisa sobre o tema da emigração desde 1998 e o núcleo de Estudos Migratórios da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. 2 - A configuração das redes sociais tecidas pelos migrantes brasileiros Tal como outros fluxos migratórios internacionais, os migrantes brasileiros utilizam-se das redes sociais para minimizarem os riscos presentes na migração de longa distância. Conforme demonstraram os trabalhos de Margolis (1994), Sales (1999), Assis (1999, 2003) e Fusco (2000, 2006), uma análise da configuração das redes sociais ajuda a compreender por que motivo algumas cidades brasileiras tornaram-se ponto de partida para os Estados Unidos e como essas redes contribuem para a consolidação do fluxo. Para Sales (1999), a redefinição da expectativa temporal é reveladora das mudanças nos projetos de permanência dos emigrantes brasileiros, indicando o amadurecimento das redes sociais. No caso da conexão Governador Valadares – Esta200 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO dos Unidos, por exemplo, Assis (1999) e Fusco (2000) demonstraram como se construiu uma rede de relações entre os imigrantes e aqueles que permaneceram na cidade que consolidaram ao longo dos anos 80 um fluxo entre a região de Boston, Massachusetts e Governador Valadares, na medida em que os emigrantes, uma vez estabelecidos, disponibilizaram recursos que facilitaram o projeto migratório daqueles que os sucederam. Essas questões apresentadas para análise de imigrantes nos Estados Unidos podem ser pertinentes para pensarmos sobre como se articulam as redes sociais nos fluxos dos imigrantes brasileiros, pois, como veremos nos dados que emergiram na pesquisa de campo, homens e mulheres também se utilizam de maneira diferenciada das redes sociais. No caso dos imigrantes de Criciúma, tal como Bott (1976) observou na análise das famílias inglesas, podemos perceber uma interessante configuração: os homens apóiam-se mais nas redes de amigos, ao passo que as mulheres contam mais com os parentes. No Brasil, os estudos de redes sociais têm sua tradição ligada aos estudos de migração interna, descrevendo o longo percurso do Nordeste para São Paulo e a rede de relações que envolviam. Os estudos analisam a formação e a consolidação das redes no caminho do campo para a cidade, como no estudo de Durham (1984). Nos anos de 1980, quando os brasileiros partem para o exterior, embora a migração envolva riscos e custos bem mais expressivos, as redes sociais e algumas características do trabalho e inserção do migrante são semelhantes. Portanto, o que se pretende aqui é demonstrar que, na migração internacional essas redes sociais são igualmente importantes. Como em outros fluxos migratórios, os emigrantes brasileiros utilizam-se das redes sociais para minimizar os riscos presentes na migração de longa distância. No caso da emigração de brasileiros para os Estados Unidos e o Japão4, destacam-se, nesse cenário, algumas cidades brasileiras que se tornaram pontos de partida para os emigrantes. Nessas cidades – Governador Valadares (MG)5, Criciúma (SC) – há uma ampla rede migratória que envolve agências de turismo, intermediários, insti4 Mais detalhes sobre a emigração para o Japão ver Sasaki (1999) e Oliveira (1999). 5 Sobre Conexão Governador Valadares – Estados Unidos, ver Assis (1999), Soares (1995) e Scudeler (1999), Sales (1999). Além desses estudos, Goza (2003) analisa as redes estabelecidas entre Valadares e outras cidades no Canadá. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 201 tuições religiosas, redes de parentesco, amizade, solidariedade étnica que incentivam e sustentam a migração, fazendo com que o processo migratório integre a dinâmica dessas cidades. Nos locais de destino, os migrantes brasileiros concentram-se em determinadas cidades onde já haviam redes estabelecidas pelos conterrâneos. Nos Estados Unidos é interessante destacar que a concentração de brasileiros ocorre em cidades que tiveram um fluxo migratório de portugueses. No caso da recente emigração de brasileiros para os Estados Unidos, as primeiras pesquisas sobre esses fluxos – Margolis (1994), Sales (1999), Assis (1999) –, embora não tivessem como foco central a análise das redes sociais, apontaram para a importância das redes sociais no processo migratório. Nesse contexto, inicialmente emergiu a cidade de Governador Valadares (MG) como ponto de partida dos primeiros emigrantes para os Estados Unidos. Pesquisas6 têm destacado que, se inicialmente a cidade de Governador Valadares (MG) pôde ser identificada como ponto de partida dos fluxos na década de 1960. Ao longo dos anos 90 esse movimento migratório se diversifica, partido de diversos pontos do país. Sales (1999) demonstrou a importância das redes sociais na constituição da comunidade brasileira que se articula através dos comércios étnicos e da Igreja. Discutiu ainda como a redefinição da expectativa temporal é reveladora das mudanças nos projetos de permanência dos emigrantes, indicando o amadurecimento das redes sociais. Sales ainda demonstrou como os imigrantes brasileiros construíram um significado de legitimidade para a sua situação de clandestinidade. Pois, apesar de não terem os documentos necessários, conseguiam fazer tudo nos Estados Unidos, trabalhar usando documentos falsos, colocar os filhos na escola pública, ir ao hospital, abrir contas em banco, etc., por isso não sentiam falta, no seu dia-a-dia, da legalização (dos papéis). A autora ainda destaca que os brasileiros, mesmo indocumentados, comparavam os direitos que usufruíam nos Estados Unidos com a ausência desses direitos no Brasil e que essa comparação reforçava a legitimidade da condição clandestina. Mesmo com o discurso da legitimidade da condição clandestina, a autora observou que, com o 6 Martes (2000) demonstrou, em survey realizado com imigrantes brasileiros em Massachusetts, a diversificação da composição demográfica do movimento migratório para essa região. 202 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO aumento da expectativa temporal, os imigrantes começavam a preocupar-se com a legalização. No entanto, é importante ressaltar que esse discurso, muito presente entre os imigrantes, sofreu uma mudança profunda após os atentados de 11 de setembro de 2001 e as políticas cada vez mais restritivas aos imigrantes. Embora os imigrantes continuem trabalhando com documentos falsos e matriculando seus filhos na escola, desde 2001, os papéis passaram a ocupar um outro lugar na vida e nas preocupações dos brasileiros imigrantes. A pesquisa de Martes (2000) sobre os imigrantes brasileiros em Massachusetts (Estados Unidos) centrou o foco na análise das redes sociais enfatizando a importância das mesmas. Segundo Martes, as redes sociais, geralmente de parentesco, de amizade e religiosa, são fundamentais para explicar por que os brasileiros chegam aos Estados Unidos, sobretudo por que as redes sociais ajudam a diminuir os custos psicológicos e econômicos da migração. No entanto, ao analisar a configuração da comunidade brasileira nos Estados Unidos, Martes questiona as análises que salientam apenas os aspectos de solidariedade nas redes sociais, criticando o pressuposto da solidariedade étnica predominante nos estudos de migração. Para a autora, o caso da emigração de brasileiros para os Estados Unidos permite questionar tal perspectiva de análise das redes sociais, apontando para os conflitos que ocorrem no interior das mesmas. Para demonstrar seu argumento, Martes analisa o caso das redes religiosas e o comércio de postos de trabalho na faxina doméstica entre os imigrantes, demonstrando a ambigüidade e o conflito no interior das mesmas. Ao longo deste estudo discutimos com os argumentos de Martes (2000), demonstrando através da pesquisa realizada em Governador Valadares e Criciúma com migrantes retornados, que o conflito e a ambigüidade, antes de colocarem em questão as redes sociais que constituem o processo migratório, são constitutivos da mesma. Se partirmos da idéia que solidariedade e conflito não são antagônicos, mas complementares, constatamos que as redes sociais compreendem solidariedade e conflito. Fusco (2006) discute as redes sociais partindo da cidade de origem dos fluxos – Governador Valadares – cidade conhecida como ponto de partida de emigrantes internacionais. A pesquisa demonsTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 203 trou a relevância das redes para explicar por que a cidade tornou-se nacionalmente conhecida como ponto de partida de emigrantes. Em Criciúma, Fusco (2006) localizou as redes sociais e demonstrou a sua importância para a configuração da conexão Criciúma-Boston, no entanto, não tinha por objetivo analisar como essas redes eram configuradas/marcadas por gênero e geração. Siqueira (2009) na pesquisa realizada em Governador Valadares e na Região da Nova Inglaterra demonstra a importância das redes sociais para a efetivação do projeto de migração. Desde o financiamento da viagem, o recebimento no aeroporto dos EUA, as primeiras informações sobre o cotidiano nas cidades de destino e a inserção no mercado de trabalho secundário nos EUA só é possível através do uso destas redes. Para um habitante de uma cidadezinha do interior da Microrregião de Governador Valadares que não conhece a capital de seu estado chegar a um dos maiores aeroporto do mundo (New York) e dois dias depois estar trabalhando na construção civil nos EUA só é possível se ele recebe o apoio das redes sociais. Scudeler (1999) analisou a inserção do migrante valadarense no mercado de trabalho americano. A autora discute as teorias econômicas sobre a inserção de trabalhadores imigrantes no mercado de trabalho americano e demonstra, no caso dos imigrantes valadarenses, que tal inserção ocorre articulada às redes que os migrantes dispõem tanto na cidade de origem quanto na região de destino. Goza (2003) demonstra a importância das redes estabelecidas entre Governador Valadares (MG) cidades dos EUA e em Toronto (Canadá). Goza descreve as redes sociais construídas nos dois lugares e ressalta que nos Estados Unidos tais redes migratórias parecem mais consolidadas, enquanto que no Canadá a presença das redes é menos evidente. Segundo o autor, o fato de tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá os imigrantes relatarem que possuem parentes residindo na mesma região evidencia a rapidez com que as redes crescem e sustentam o argumento de Massey (1987) sobre a “causação cumulativa7“ 7 “Isto quer dizer que à medida que as redes se constituem e estabelecem elos entre a sociedade de emigração e a sociedade de destino, a migração torna-se uma atividade de menor risco. Assim, mais pessoas se conectam ao fluxo migratório, pois há um conjunto de informações e estratégias disponíveis que facilitam o empreendimento migratório e, portanto, estimula novas migrações”. (MASSEY, 1987 p.17). 204 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO que a consolidação das redes trazem para o movimento migratório. Goza (2003) ainda destaca que o acesso às redes sociais é diferenciado segundo as relações de gênero, sugerindo que as mulheres brasileiras começaram a formar suas próprias redes em resposta ao “machismo” (grifos do autor) percebido no homem brasileiro. Segundo Goza devido aos novos papéis que as mulheres tem assumido na América do Norte, muitos conflitos tem ocorrido. Goza, no entanto, analisa mais os papéis estabelecidos entre homens e mulheres do que as relações nas quais essas masculinidades e feminilidades estão circulando, quais os outros atributos de gênero que emergem e revelam mais do que papéis outras posições de gênero nessas relações. Esses estudos revelaram a importância das redes sociais na recente migração de brasileiros para o exterior. As pesquisas realizadas preocuparam-se em responder a questões como: quem são os imigrantes, de onde vêm, para onde vão como vivem a experiência de migratória, como se constituem como grupo étnico, descrevendo as várias faces desse movimento migratório. As redes sociais emergem em decorrência do próprio desenvolvimento do processo migratório e das conexões que passam a ser estabelecidas entre os locais de destino e origem dos migrantes. Nos primeiros trabalhos, conforme já observamos embora a trama estivesse presente, as redes apareciam como “pano de fundo” ou contexto no qual se desenvolviam as relações. Portanto, os trabalhos referem-se às redes, mas estas não eram objeto central de análise. Os trabalhos mais recentes incorporaram a perspectiva teórica das redes sociais na análise dos fluxos de brasileiros para o exterior e procuram analisar a configuração, as ambigüidades, bem como as mudanças nas redes sociais tecidas ao longo do tempo. A cidade de Criciúma, assim como Governador Valadares, desenvolveu uma complexa rede de relações que conecta algumas cidades da região de Boston à vida cotidiana dos criciumenses. Assim, são importantes para podermos desenhar o fluxo e compreender como se articula para a Itália ou para os Estados Unidos. As relações estabelecidas entre os dois lugares evidenciam-se através dos telefonemas, das cartas, da internet, das várias idas e vindas ao Brasil, dos presentes enviados aos pais e familiares mais próximos ou ainda do financiamento da viagem dos pais para os Estados Unidos com a finalidade TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 205 de dar uma força (expressão muito recorrente nas cartas e entrevistas dos emigrantes jovens) ou assistir ao casamento dos filhos ou ao nascimento dos netos (através da web), envolvendo pessoas que nunca pensaram em ir para os Estados Unidos nesta experiência de cruzar fronteiras. Portanto, as redes sociais também revelam que a migração é um projeto econômico, familiar e afetivo, o qual envolve aqueles que partiram e aqueles ficaram no processo. Por fim, ao centrar a análise na construção e na consolidação das redes sociais dos emigrantes valadarenses e criciumenses, não se pretendeu desconsiderar os fatores estruturais que motivam a migração, mas ressaltar as múltiplas relações construídas entre a origem e o destino, nos dois lugares ao longo do processo. A discussão da configuração dessas redes e suas mudanças ao longo do tempo permitem compreender esse movimento relativamente autônomo ao Estado e às forças macroestruturais. Ao compararmos as trajetórias dos migrantes brasileiros com a de outros emigrantes nos Estados Unidos, percebemos que também nesse caso a consolidação de um fluxo contínuo para os Estados Unidos está diretamente relacionada à construção e à consolidação de redes sociais. A emigração de valadarenses e criciumenses no contexto das redes 3 - 0 Emigrações internacionais em Governador Valadares 3.1 - Fatores que configuraram o fluxo migratório de Governador Valadares para os EUA A cidade de Governador destaca-se como o local geográfico, onde, no Brasil, teve início o fluxo de migração internacional. Quais os fatores que definiram o surgimento desse fluxo? Os pesquisadores que se dedicaram a estudar o fenômeno na região identificaram fatores históricos que possibilitaram a aproximação dos nativos com os estrangeiros, principalmente americanos, na década de 1940, no período da exploração da mica e posteriormente da ampliação da estrada de ferro Vitória a Minas (SALES, 1999; ASSIS, 1999, ESPÍNDOLA, 2005). Contudo, outras cidades e regiões receberam imigrantes que chegaram com objetivo de explorar as riquezas minerais e, no entanto, o fluxo migratório não se configurou. 206 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Consideramos que esse fluxo é resultado de um conjunto de fatores e a presença dos americanos na cidade, é apenas um dos fatores, tendo em vista que possibilitou a criação no imaginário popular da idéia sobre os EUA como um lugar de grandes possibilidades e riquezas. Destacamos quatro outros fatores igualmente decisivos na configuração desse movimento migratório que nos anos de 1980 atinge seu ápice. O primeiro deles é a existência de um mercado de trabalho secundário no país de destino, desprezado pelos trabalhadores americanos devido ao baixo status e baixa remuneração, mas atrativo para o emigrante devido à possibilidade de ganhar mais do que em seu país de origem (PIORE, 1979). O segundo é a crise de emprego e a queda no poder aquisitivo da classe média no Brasil, nos anos de 1980, resultado da reestruturação econômica que eliminou vários postos de trabalho no Brasil. O fluxo de emigração de valadarenses para os EUA aumenta, exatamente, no período de 1985 a 1990 (SOARES, 1995), quando ocorre uma redução dos postos de trabalho devido a reestruturação produtiva que tem lugar na economia brasileira. Temos, portanto, fatores de expulsão na origem e atração no destino (PIORE, 1979) que constituem um quadro promissor, para a implementação do fluxo migratório de Governador Valadares para os EUA. Porém esses fatores ainda são insuficientes para explicar o fluxo, pois nenhum deles foi exclusivo da cidade e região. O terceiro fator a ser considerado é o surgimento, na origem, de mecanismos facilitadores para emigrar. Esses mecanismos são agências de turismo que colocavam à disposição da população serviços, para conseguir o visto de turista para entrar nos EUA. Oferecem serviços como: agendar entrevista no consulado, organizar a documentação necessária, informar como deve se vestir e proceder na hora da entrevista e providenciar transporte até o consulado, Além desses mecanismos, existem os agenciadores, denominados cônsul , que organizam grupos de pessoas e providenciam todos os meios necessários para a travessia pela fronteira do México e outras formas de entrada ilegal nos EUA. O Quarto fator é o que consideramos o definidor que, juntamente com os outros, configurou esse fluxo migratório – a constituição das redes sociais. Com a ida dos primeiros valadarenses, na década de 1960, deu início ao que é denominado na literatura de TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 207 rede, ou seja, um grupo de pessoas que possuem os mesmos objetivos e são da mesma região e por isso se apóiam. Na década de 1980 as redes estão bem consolidadas em determinadas regiões dos EUA. Conforme afirmam Massey (1997), Boyd (1986) os migrantes vão para lugares específicos e para setores específicos do mercado de trabalho do país de destino, para isso acessam os recursos das redes sociais. São as redes que, quando configuradas, direcionam esses fluxos para determinados espaços geográficos e para certos setores específicos do mercado secundário. Assim, os emigrantes do sexo masculino da região de Governador Valadares, geralmente, se direcionam para a construção civil e as mulheres para as faxinas na região da Nova Inglaterra, nos EUA (SIQUEIRA, 2009). Graças a essas redes, é possível para uma pessoa que não sabe inglês, nunca viajou para além de 500 km de sua cidade natal, não conhece as grandes cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, desembarcar no aeroporto de New York, chegar a Summerville e dois dias depois estar trabalhando como housecleaner ou na construção civil. Esta rede começou nos anos de 1960 e nos anos de 1980 possibilitou o boom imigratório da região para os EUA. Quem eram os primeiros emigrantes? O que motivou os primeiros emigrantes a empreenderem a aventura de emigrar? Como as redes se consolidaram? Essas são questões importantes que foram respondidas a partir dos dados levantados e que veremos no item a seguir. 3.2 - A origem das redes sociais: os primeiros emigrantes Os primeiros dezessete jovens que emigraram na década de 1960 para os Estados Unidos da América com o objetivo de trabalhar eram de classe média alta, possuíam o segundo grau completo e estavam na faixa etária de 18 a 27 anos. Emigraram não por razões econômicas e sim pela aventura e pela curiosidade de conhecer um país que consideravam rico, desenvolvido e cheio de grandes oportunidades. Como esta idéia sobre os EUA foi construída? Através dos relatos ficou evidenciado que no imaginário da juventude dos anos de 1960, na cidade de Governador Valadares, estava presente a idéia de que lá aconteciam as coisas mais importantes do mundo, a música, os filmes e a guerra do Vietnam. 208 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO “Nós rapazes daquela época gostávamos muito de músicas, acompanhamos a fase de muitos cantores como: Elvis, Beatles e outros, então a gente vibrava com isto e eu tinha um sonho de conhecer a Broadway e quando eu cheguei perguntei onde era a Broadway e disseram que eu estava nela, fiquei muito emocionado e também tive sorte de morar na Rua 42 bem no centro de New York”. (Enrevistado 1, emigrou em 1964) “Toda vida a situação financeira da minha família foi boa, quando resolvi emigrar a família me chamou de doido, falou que eu era aventureiro. Ninguém sabia, mas eu queria ir para lutar na guerra do Viatnan. Todas as notícias que chegavam mostravam a aventura que era aquela guerra”. (Entrevistado 05, emigrou em 1967). Um elemento importante neste processo, presente nos relatos, foi a escola de inglês IBEU e os intercâmbios dos primeiros estudantes valadarenses para os EUA que trouxeram notícias mais concretas da sociedade americana. A imprensa local noticiava as viagens e as maravilhas vividas por esses intercambista, que eram amigos dos primeiros emigrantes. Foto 1: Noticiando viagem de um intercambista valadarense para os EUA Fonte: Diário do Rio Doce, 1962 TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 209 Foto 2: Noticiando o retorno do Intercambista Fonte: Diário do Rio Doce, 1962. Foto 3: O casal Simpson Fonte: Arquivo da família Simpson 210 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Esta escola foi fundada em 1960 pela esposa do Mister Simpson, Dona Geraldina Simpson. Mister Simpson era um dos engenheiros americanos que vieram para Governador Valadares em 1942 para trabalhar na ampliação da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Finda as obras todos os trabalhadores americanos deixaram a cidade, contudo a família Simpson aqui permaneceu. Mister Simpson viveu em Governador Valadares até sua morte em 1969. A foto abaixo é do ano de chegado do casal Simpson à cidade de Governador Valadares8. Ao retornar, o primeiro intercambista relatou as grandes possibilidades de trabalhar e estudar nos EUA Quando cheguei fazia fila na minha casa para ver o álbum de fotografia e para eu contar como era a vida lá. Durante muitos meses eu não consegui falar de outra coisa, meus amigos só queriam ouvir sobre a vida lá. (primeiro intercambista, 1963). No mesmo ano, de posse das informações concretas os dois primeiros emigrantes partiram para os EUA com visto de trabalho. Tinha um programa da Dona Geraldina Simpson que era de intercâmbio. O Coelho foi o primeiro e quando ele retornou me deu informações sobre os EUA, que se eu conseguisse o visto de trabalho para lá que não teria problema nenhum, trabalharia vinte horas e estudaria numa escola normalmente e o que eu ganhava dava para me sustentar o mês todo sem problema. Aqui em Governador Valadares tinha eu, e outros três [...] que queriam emigrar para os EUA. [...] conseguimos o visto de trabalho e partimos. (Entrevistado 01, emigrou em 1964) [...] com intercâmbio de estudantes que vinham para o Brasil e iam para os EUA. A idéia de ir para os EUA ficou mais atraente, assim [...] que fez o intercâmbio estudantil nos EUA me passou as informações que eu precisava que era a de que lá conseguia sobreviver e que era possível emigrar para lá com o visto de trabalho e não ter problemas e assim o sinal ficou verde para nós. [...] não decidimos emigrar por questões financeiras mais pelo desejo de conhecer e estar em mais contato com a música americana que era nossa paixão. (Entrevistado 02 - emigrou em 1964). Os quatro primeiros emigrantes foram os pontos iniciais da rede, partiram em 1964. As cartas acompanhadas de fotos eram enviadas com 8 Foto cedida pela família, na ocasião da realização da entrevista, com consentimento de publicação. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 211 freqüência relatando as oportunidades e maravilhas da terra, difundindo assim a grande aventura que era emigrar. Esses primeiros emigrantes davam o suporte necessário para os que desejavam emigrar. Além das informações emprestavam dinheiro para o depósito, buscavam no aeroporto, ofereciam estadia ou moradia, arrumavam o primeiro emprego, compravam roupas adequadas ao clima dos EUA, etc. “Sempre ajudei a quem chegava lá, comprando remédio, levando no médico, buscando no aeroporto, minha casa vivia cheia de pessoas que chegavam lá, arrumando emprego. Também fui muito ajudado no tempo em que vivi lá”. (Entrevistado 03, emigrou em 1965) “Ajudei muitas pessoas, em especial, minha família, levei mãe, irmã, irmão, cunhada (o) sobrinha (o) primos e amigos, mais ou menos umas 20 pessoas da família e com amigos umas 30 pessoas e por intermédio de mim imagino que foi umas 50 pessoas. Nos dois primeiros anos levei mais ou menos 15 pessoas e cada uma delas levou pelo menos uma pessoa [...] eu organizava toda a ida deles buscando no aeroporto, com moradias já arrumadas e na maioria das vezes até com serviço no jeito. Emprestei dinheiro para os que queriam ir”. (Entrevistado 09, emigrou em 1968). As redes sociais emergem em decorrência do próprio desenvolvimento do processo migratório e das conexões que passam a ser estabelecidas entre os locais de destino e origem dos imigrantes. As redes formadas nos países que recebem emigrantes são um dos principais fatores da permanência destes por lá, pois tornam a migração mais segura na perspectiva do emigrante. Ao encontrarem um grupo de amigos receptivos, estes imigrantes sentem-se menos sozinhos e desprotegidos. As redes são formadas por interesses em comum e laços de amizade ou parentesco de seus participantes. Neste sentido podemos considerar que o fluxo migratório para os EUA definiu-se a partir de um contexto histórico que criou, no imaginário popular, a idéia da existência de um lugar onde era fácil ganhar dinheiro e teve como fator determinante a formação das redes sociais. Nos relatos acima podemos destacar como as redes se constituíram e sua importância para explicar e entender como os brasileiros chegam aos EUA, pois elas ajudam, sobretudo, a diminuir os custos psicológicos, sociais e econômicos da migração. Esses dezessete primeiros emigrantes foram os pontos iniciais da 212 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO rede migratória de Governador Valadares para os EUA. Segundo os depoimentos a maioria deles auxiliou mais de 30 pessoas, entre parentes e amigos a emigrarem, estes por sua vez foram pontos de apoio para outros tantos. A partir dos quatro primeiros emigrantes que chegaram a New York em 1964 com visto de trabalho a rede foi se formando no decorrer dos anos de 1960 e 1979 dando origem ao boom emigratório da segunda metade dos anos de 1980. 4 - A comunicação entre a origem e o destino. As novas tecnologias de comunicação e a consolidação das redes O primeiro intercambista que trouxe as informações para seus amigos de como emigrar afirma que só quando chegou pode relatar em detalhes para os amigos sua estadia e as grandes possibilidades da emigração. Escrevia cartas e enviava fotos para a família e os amigos que demorava mais de um mês para chegar. Relata que no dia do seu aniversário ganhou de presente da família americana uma ligação telefônica para a família em Governador Valadares. O Jornal de Governador Valadares colocou a seguinte manchete na primeira página: “Intercambista fala com seus pais dos Estados Unidos da América”. “Fiquei o dia todo esperando a ligação que era péssima se comparada com as de hoje, mas para mim foi uma emoção enorme ouvir a voz de meus familiares [...] tão distante [...]”. (primeiro intercambista, 1963). As poucas notícias enviadas por carta para os amigos sobre a vida nos Estados Unidos só puderam ser explicadas quando retornou para Governador Valadares e trouxe as fotos e todas as informações. Relata que durante meses foi interrogado pelos amigos sobre detalhes da vida nos Estados Unidos e como era possível trabalhar e ganhar dinheiro em New York. Maria Emigrou em 1969, relata que recebia informações de seus amigos que haviam emigrado para os Estados Unidos através de comunicação por rádio amador. “Eu tinha um amigo que sempre me dizia sobre como era o trabalho e que se eu fosse ele me ajudaria. A gente conversava por radio amador”. (Maria, emigrou em 1969 e vive até hoje nos EUA). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 213 Foto 4: Primeiro intercambista falando dos EUA com a família em Governador Valadares Fonte: arquivo pessoal (cedida para publicação). Nesses relatos dos emigrantes da década de 1960 fica evidenciado que as dificuldades de comunicação delimitavam, um pouco, a circulação mais rápida das informações, contudo ao longo dos anos de 1960 e 1970 as redes sociais de emigração foram se formando e se consolidando. As informações enviadas, inicialmente, exclusivamente por cartas, já na década de 1980, com a melhoria do serviço de telefonia, os emigrantes começam a utilizar com mais freqüência este meio de comunicação. “Tinha sempre o horário marcado para ligar uma vez por mês, mandava a carta dizendo que ia ligar dia tal em tal horário [...] a família toda ia para casa de meu tio e ficava esperando [...] tinha que falar um pouquinho com todo mundo.” (Mario emigrou em 1980). 214 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Com o surgimento da internet e a popularização de seu uso a comunicação entre os dois lugares começa a acontecer em tempo real. O emigrante que recebia um jornal de sua cidade de origem com duas semanas de atraso passa a ter acesso on line ao jornal no dia e hora de sua edição. “Quando alguém recebia o Diário do Rio Doce, com duas ou três semanas de atraso, ele lia e passava para frente, o jornal circulava vários dias entre os amigos. Agora toda manhã é só abrir na internet e eu posso ler no mesmo horário que lá”. (Joana, emigrou em 1982). “Eu falo e vejo minha família e amigos todo dia, às vezes mais de uma vez por dia”. (Elisa, emigrou em 1998). “Já tem 4 anos que estou aqui, mas converso com minha esposa e meus filhos todos os dias [...] ensino o mais velho a fazer os deveres de matemática, ele tem dificuldades em matemática. No Domingo eu fico o dia todo com ele na net”. (Carlos, emigrou em 2003). A partir desses depoimentos podemos considerar que as novas tecnologias de comunicação, possibilitaram a comunicação entre os dois lugares com muito mais freqüência e rapidez. Sendo assim, as informações passam a circular mais rapidamente, tornando as redes mais sólidas entre a origem e o destino, pois permitem a circulação das informações, sensações mais rapidamente. Segundo Harvey (1993) essas novas tecnologias possibilitam a compressão do tempo e do espaço. Pessoas distantes geograficamente, se junta através de vídeo conferências, MSN, etc. e assim, casamento, nascimento e aniversários são comemorados conjuntamente, em tempo real, mas em pontos geográficos diferentes, unindo a origem e o destino. 4.3 - Impactos da emigração na origem O projeto de emigrar passa geralmente pelo desejo de ir, fazer poupança, adquirir bens na cidade de origem e retornar em situação socioeconômica melhor, contudo vale lembrar que a definição tanto do projeto como da direção do fluxo migratório tem fortes componentes sociais, culturais e históricos. A região de Governador Valadares é marcada socialmente, culturalmente e economicamente pelo fenômeno da emigração internacional. Aqueles que retornaram vieram com o projeto de investir em TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 215 imóveis para aluguel ou tornarem-se pequeno empresário nas suas cidades de origem. O principal motivo declarado para emigrar (53,7%) foi a possibilidade de ganhar dinheiro, retornar e investir no Brasil. É interessante ressaltar que 46,3% afirmaram que emigraram porque foi uma possibilidade que surgiu para conseguir atingir seus objetivos mais facilmente e em menor tempo (SIQUEIRA, 2008a). A emigração possibilitou um aumento da renda mensal, uma vez que antes de emigrar a maioria (69,4%) tinha uma renda mensal de até três salários mínimos e depois de se estabelecerem como empresários 38,2% passa a ter uma renda em torno de seis salários mínimos, e outros 20,8% de mais de dez salários mínimos. A maioria dos emigrantes que se tornaram empresários (82,7%) emigrou exatamente no período de aumento do fluxo, ou seja, na década de 1980. Permaneceram de 3 a 10 anos (75,7%). Conforme assinala Fusco (2006), as redes sociais ajudam os seus componentes a conseguir acesso aos recursos financeiros e sociais que possibilitam seu ingresso numa sociedade sobre a qual não têm ou têm poucas informações. Esses emigrantes empreendedores configuram o mercado de trabalho local, pois além de abrir novos empreendimentos contratam mão de obra. A maioria deles (48%), com seus investimentos criaram de 1 a 4 postos de trabalho e 23% de 5 a 10. Destaca-se que 48% contratam seus empregados com base na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). O fenômeno da emigração internacional reconfigura o espaço urbano, principalmente, no que se refere à arquitetura dos bairros onde residem. Reformam ou constroem casas maiores e com acabamento melhor do que o padrão das casas do bairro e ampliam o seu consumo de bens duráveis. Nas cidades da Microrregião de Governador Valadares é fácil, em alguns bairros, distinguir as casas reformadas ou construídas pelos emigrantes. Segundo Soares (1995) a partir da segunda metade dos anos de 1980 o setor imobiliária da cidade de Governador Valadares apresentou um crescimento vertiginoso. Novos bairros surgiram com o investimento dos emigrantes. Uma conseqüência desse investimento imobiliário dos emigrantes é a supervalorização do preço do imóvel em toda a região. Uma casa é vendida por três vezes o seu valor real, porque o emigrante que está nos EUA paga este valor; o mesmo acontece com as propriedades rurais. Para o emigrante, além do valor de mercado existe um valor simbólico 216 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO que é comprar a casa na rua onde morava de aluguel, a fazenda onde era vaqueiro. É a possibilidade de mostrar para si e para os outros que seu projeto de emigrar foi bem sucedido. Entretanto, o valor monetário, por ser irreal na perspectiva do mercado, não se mantém por muito tempo. “[...] comprei o lote, a casa que tinha era velha [...] joguei no chão e construí essa, do jeito que eu queria [...] no mesmo bairro que eu nasci e vivi [...]” (Jorge, emigrou em 1976) Os investimentos em imóveis para alugar é outro efeito da emigração, porém, este setor já sente os efeitos da oferta maior que a procura. Na cidade de Governador Valadares já é sentida pelos proprietários de imóveis para aluguel, a queda no preço dos aluguéis. “[...] o preço dos alugues estão caindo, isto é resultado da oferta maior que a procura. Tantos investimentos em imóveis para alugar provocou isso [...]” (proprietário de imobiliária na Região de Governador Valadares). As remessas de moeda estrangeira enviadas para as cidades de origem se constituem em outro elemento que reconfiguram as cidades de origem dos emigrantes. Segundo dados do Inter-American Development Bank (2006) as remessas enviadas para o Brasil, vindas principalmente dos EUA, Europa e Japão, superam US$ 6,4 bilhões. Deste valor US$ 2,7 bilhões são provenientes dos EUA. Este valor representa 1,1% do PIB brasileiro. Ressaltamos que parte desse valor não é contabilizada pelo Banco Central porque entra no país por vias ilegais (as agências de turismo9). Só para a cidade de Governador Valadares a remessa representa 60% da arrecadação do município prevista R$ 274 milhões em 200610. O principal meio de envio desse dinheiro declarado pelos entrevistados é através das agências de turismo (59,9%). O volume dessas remessas atraiu o sistema bancário nacional. Em 2000 o Banco do Brasil, em parceria com a Western Union e posteriormente, em 2003 e 2004 o Banco Itaú em parceria com a Money Grant e o Bradesco em parceria com o Bank of America e mais recentemente em 2005 a Caixa em parceria com o Banco Português BCP inauguraram serviços de remessas de dólares para o Brasil. 9 Lojas de brasileiros, cuja principal atividade é o envio de remessas para o Brasil, mas também vendem outras coisas como jornais, revistas brasileiras. 10 Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 2005, Caderno B p.7. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 217 As instituições da região também começaram a operar com recebimento de remessas. A SICOOB (Cooperativa de Crédito do Vale do Rio Doce Ltda.) fez convênio em julho de 2005 com o Banco Rendimento11 com aval do Banco Central e passou a receber remessas de dinheiro do estrangeiro. Segundo o diretor administrativo e financeiro12, no período de julho a dezembro de 2005 a cooperativa recebeu, só para as 16 cidades da Microrregião de Governador Valadares que possuem agencias, o total de R$4.684.548,00 de remessas do exterior. Deste montante, 90% provêm do EUA. Destaca que em torno de 60% das remessas são para a cidade de Governador Valadares. Outra instituição local que trabalha com o recebimento de remessas é a cooperativa de crédito AC Credi, ligada à Associação Comercial de Governador Valadares. Segundo seu presidente13, a instituição recebe depósitos do Banco Rendimento, desde 2004 e trabalha somente com ordens de pagamento para seus cooperados. Só começou a fazer propaganda deste produto em novembro de 2005. Recebe em média duzentos mil reais por mês, de ordens de pagamento para as 10 agências que possui na região. Afirma que depois da queda do dólar os valores diminuíram, contudo o número de ordens continua o mesmo. “As remessas são fundamentais para a região, elas dinamizam o comércio. A queda do dólar afeta diretamente o comércio da cidade. Diferente do Vale do Aço, onde o dinheiro que circula é todo formalizado porque as grandes empresas como Cenibra, Usiminas, exigem a formalização dos contratos, em Valadares o dinheiro que circula é informal, vindo principalmente do envio de remessas, grande parte vem informalmente. Só em fevereiro de 2006 o dinheiro em depósito à vista, prazo e poupança nos 18 bancos da cidade somava um total de duzentos e oitenta milhões de reais, segundo o Banco Central. São poucas as cidades que atingem este montante, a não ser as que têm grandes indústrias como Ipatinga. Todo este dinheiro foi gerado informalmente, mas está nos bancos. Por isso é que eu considero que os dados oficiais não representam a realidade da cidade e região. Nosso IDH é baixo, mas a qualidade de vida é bem melhor do que a indicada pelos índices oficiais, isto porque a circulação de 11 É o segundo Banco em volume de remessas de moeda estrangeira para o Brasil. 12 Entrevista realizada em 28/04/2006. 13 Entrevista realizada em 02/05/2006. 218 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO dinheiro é informal. Veja só a frota de veículos da cidade, é uma das melhores de Minas para cidades do porte da nossa. Nossa cooperativa é a maior do interior de Minas. Tudo isso mostra que as remessas oficiais e as não oficiais dão sustentação à nossa economia”. (Diretor Financeiro da AC Credi). Outra face desse fenômeno que também configura as cidades de origem é o fato dos emigrantes que retornam e investem serem mal sucedidos e retornam a condição de emigrantes. Na pesquisa realizada em 2005 na Região da Nova Inglaterra nos EUA foram entrevistamos 35 emigrantes nesta categoria. Os resultados demonstraram que investiram, predominantemente, no comércio, agronegócio e serviços. Não fizeram nenhuma pesquisa de mercado, não buscaram informações em órgãos competentes e não fizeram nenhum tipo de treinamento na área administrativa (SIQUEIRA, 2009). Definiram em que investir, a partir de informações dadas por parentes e amigos, ou porque consideraram que era um bom negócio, ou uma ótima oportunidade. Não possuíam experiência no ramo em que investiram e nunca tinham sido proprietários de algum negócio, não tendo, portanto, nenhuma experiência em como administrar uma empresa. Muitos foram à falência ou fecharam, por causa da baixa lucratividade, que impossibilitava a manutenção de um bom padrão de vida no Brasil. O retorno à condição de emigrante foi a solução encontrada. Hoje, vivem nos EUA e reconhecem os erros cometidos. A maioria continua com o projeto de novamente retornar para a cidade de origem. Um dado que chama a atenção nesse grupo que investiu e retornou à condição de emigrante nos EUA, é que 31,4% consideravam que seus investimentos tinham um ótimo retorno financeiro e davam uma renda suficiente para viverem no Brasil, mas não conseguiram permanecer no Brasil por não se readaptarem. Aqueles que se tornam documentados nos EUA passam a viver nos dois lugares, trabalham nos EUA e passam um ou dois meses no Brasil. Mantêm casa e carro no Brasil, para aqui desfrutarem o descanso. Tornam-se moradores de dois lugares. Dividem suas vidas, investimentos e trabalho nesses dois espaços. Como a perspectiva teórica baseada na transnacionalização preconiza, passam a viver em dois mundos diferentes, estabelecendo conexões entre as duas sociedades, entre o local e o global. Tornam-se transmigrantes num mundo globalizado (SIQUEIRA, 2009). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 219 4.4 - Redes acionadas para o retorno Se para emigrar, as redes sociais no destino amenizam os custos sociais, psicológicos e econômicos, além de possibilitar a difusão das informações necessárias para empreender o projeto migratório, as redes sociais tanto no destino como na origem, são, também, fundamentais para concretizar o projeto de retorno. O desejo e a insegurança quanto aos aspectos econômicos tornam o retorno, muitas vezes dramático. Os amigos e familiares, ou seja, a rede social se constitui elemento fundamental para concretização do projeto de retorno, seja informando sobre investimento, situação econômica do país ou das vantagens de viver em sua própria pátria. “[...] planejamos o retorno juntos. Minha mulher conseguiu montar a loja e deixar tudo no ponto prá quando eu chegasse já começasse a trabalhar”. (Armando - emigrou em 1992). Aqueles que ficam na origem, são pontos fundamentais para a manutenção dos laços afetivos e dão sustentação ao projeto de retorno. Os familiares são os principais pontos dessa rede (esposa, pai mãe, irmãos), contudo vizinhos e amigos também são pontos importantes. Atualmente a maioria dos emigrantes possui internet e fazem uso de e-mails, MSN, Orkut como forma de estarem contato contínuo a origem. Assim o projeto de retorno é acalentado com as informações que chegam através dessa redê. Que imóvel comprar? Em que região? Qual a melhor forma de pagamento? O preço está de acordo com o mercado? O imóvel é bom? Vale o preço? Estas são algumas questões que o emigrante procura responder através das redes que mantém na origem. “ [...] tudo que fiz aqui antes de voltar eu primeiro conversava com amigos, parentes que estavam aqui. Lá a gente fica muito fora da realidade, é só trabalho e casa. [...] meu irmão viu os preços do caminhão, escolheu a melhor máquina e o melhor preço [...]”. (Jorge – emigrou em 1979). A rede social de emigração no local de origem não só mantém o migrante informado sobre os aspectos econômico, mas também dão apoio e suporte na chegada. 220 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO SIQUEIRA (2008b) demonstra que o retorno é marcado pelo estranhamento. O emigrante espera encontrar o mesmo local e pessoas que deixou, contudo, quando retorna seus filhos cresceram, seus amigos, vizinhos e parentes mudaram e a turma da cerveja, do futebol, da igreja já não são os mesmos. Os entrevistados relatam a dificuldade não só de organizar a vida econômica, mas também social e afetiva. “Quando cheguei fiquei desnorteado, achei tudo estranho [...] as crianças olhavam para mim com receio e eu não sabia o que fazer [...] até com minha mulher eu achei estranho[...]. Os amigos tinham casado, tinham interesses diferentes e o papo não rolava mais como antes [...]”. (Inácio - emigrou em 1992). Neste sentido as redes no local de origem são importantes para que o emigrante possa sentir-se bem em sua cidade de origem. “É muito difícil acostumar novamente na cidade da gente, ta tudo diferente, a gente fica zonzo e não sabe o que fazer e para onde ir [...] a ajuda do meu irmão e toda a minha família foi muito importante para eu conseguir me adaptar novamente”. (retornado em 2000) “[...] a ajuda que recebi foi em todos os sentidos, uma amigo que é corretor ajudou milha mulher na hora de comprar a casa; minha mãe ajudou demais cuidando dos meus filhos e quando cheguei foram os amigos e os parentes que me deram força para eu me sentir em casa novamente [...]”. (retornado em 2005) O retorno tem implicações de ordem econômica e emocional. As redes familiares e sociais amenizam o estranhamento e auxiliam na organização da vida social e afetiva, contudo muitos não conseguem e acabam por reemigrar. Todos os emigrantes entrevistados, da década de 60, 70 e 80 relatam seu retorno e as dificuldades de se estabelecer novamente em seu local de origem. Dentre os que permaneceram, as dificuldades relatadas são as mesmas, contudo, por diferentes razões conseguiram superá-las e permanecer em suas cidades. O projeto de emigração e retorno é familiar e social, o resultado positivo ou negativo é compartilhado por todos. As redes possibilitam maximizar os benefícios e minimizar seus custos tanto social, afetivo como econômicos. Vale ressaltar que as condições e contradições de emigração traduzem os intricados aspectos desse fenômeno. O retorno é uma dessas dimensões que se concretiza dependendo das várias formas como as relações se estabelecem entre o emigrante e seu local de origem. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 221 5 - Emigração internacional em Criciúma 5.1 - Fatores que configuram o fluxo migratório para os EUA Criciúma, assim como Governador Valadares (MG), é uma cidade de importância na econômica para a região. Está localizada ao sul do Estado de Santa Catarina e distante de Florianópolis 190 Km (via BR 101). Criciúma foi fundada em 1880, por um contingente de 22 famílias de imigrantes que vieram, sobretudo, da região norte da Itália, especialmente de Treviso, Beluno e Cremona. A partir de 1890 chegaram a Criciúma, em torno de 12 a 15 famílias de imigrantes poloneses e algumas famílias de imigrantes alemães. Estes imigrantes se dirigiram para a zona leste/nordeste da vila de Criciúma, que corresponde às comunidades da Linha Batista, Linha Anta e Linha Cabral. Mais tarde, por volta de 1912, os imigrantes alemães dirigiram-se para a região de Forquilhinha (Fundação Educacional de Criciúma, 1976). Nos relatos sobre a fundação da cidade foram se construindo narrativas onde a imagem do imigrante pioneiro era valorizada e destacada, pois são representados como aqueles que vieram colonizar a região e trazer a civilização. É importante observar que os relatos sobre a história da cidade enfatizam a imagem heróica do pioneiro. A partir do desenvolvimento da mineração, no início do século XX, a narrativa étnica de formação da cidade aparentemente foi deixada de lado e a cidade passou a ser representada como a cidade do carvão. Nos anos que se seguiram à colonização, segundo Volpato (1989, p.56), Aos imigrantes italianos, poloneses e alemães, juntaram-se novos grupos étnicos: os lusos e negros vindos de Imbituba, Laguna e Tubarão, que vieram como operários na estrada de ferro e depois foram os primeiros trabalhadores nas minas de carvão. As famílias mais pobres de agricultores, aquelas que não tiveram sucesso no comércio, também trocaram a agricultura pela mineração. A partir da década de 1920, o carvão está definitivamente associado à história da cidade e, a partir dos anos 30, é a principal base de desenvolvimento de Criciúma e da região. Ao analisarem o processo de desenvolvimento da cidade, a partir da mineração, Volpato (1989) e Teixeira (1996) criticam a historiografia local. Destacam o contingente populacional que imigrou para a cidade, 222 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO isso significou não apenas a urbanização e o crescimento, mas também o surgimento de uma classe operária que, juntamente com os pequenos agricultores que não conseguiam manter-se no campo, tornaram-se a marca de um desenvolvimento que ocorreu de maneira desigual, privilegiando as elites econômicas locais. O crescimento da cidade atraiu imigrantes que, em função da proliferação das minas, chegavam à cidade em busca do “eldorado do ouro negro”. Eram famílias de pequenos agricultores ou pescadores originários de pequenos vilarejos da região sul do estado, homens e mulheres que constituíram a classe operária mineira. Tais imigrantes eram, em grande parte, provenientes de outras regiões do estado e ampliaram o contingente da população negra e açoriana que havia na região. Devido à forte mobilização dos mineiros e da constituição de um movimento sindical consolidado, a região foi considerada por alguns autores o ABC14 de Santa Catarina. Com isso, o panorama econômico e social da cidade, que mais tarde seria conhecida como a “Capital Nacional do Carvão”, tornouse bastante diversificado. A economia pôde contar com o apoio do Estado, que se comprometia com a compra de grande parte do carvão extraído; a cidade, por sua vez, recebeu um considerável fluxo migratório de trabalhadores vindos de toda a região sul do estado para o trabalho de extração nas minas. Em meados da década de 1980, o setor carbonífero deu os primeiros sinais de uma crise, a qual se agravaria na década de 1990 com o governo de Fernando Collor (1990-1992). Segundo Teixeira (1996) a crise ocorreu por um conjunto de fatores, como a queda da produção, a retirada dos subsídios por parte do governo e o fim do protecionismo estatal e a concorrência internacional, o que teria reduzido o mercado em mais de 30 %, causando, assim, uma alta taxa de desemprego na região. A crise econômica enfrentada pela cidade, iniciada no final da década 1980 e agravada na década de 1990, aponta para uma das razões que tornaram a cidade ponto de partida de inúmeros emigrantes em busca de trabalho nos Estados Unidos ou na Itália, embora não possamos reduzir a migração às motivações econômicas. A emigração para a Itália 14 Teixeira (1996) refere-se à comparação com a região siderúrgica do ABC, no estado de São Paulo, que se caracterizou no final da década de 1970 e início da década de 1980 por um forte movimento sindical. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 223 e para os Estados Unidos também está associada ao imaginário presente na cidade, o qual constrói uma conexão entre os imigrantes do passado e os emigrantes do presente, mas principalmente ao desenvolvimento e ao amadurecimento de redes sociais ao longo do processo migratório. A cidade de Criciúma, ao longo destes 120 anos, foi reconstruindo os significados para os imigrantes e a migração. No entanto, é a partir de meados dos anos 1980 que se intensifica o movimento de revalorização das várias etnias que formam a cidade, particularmente da etnia italiana. Nas décadas de 1980 e 1990, através de convênios com algumas regiões da Itália, os descendentes dos imigrantes realizam um movimento de busca pela cidadania européia e, por isso, vários deles partem para a Itália a fim de reencontrar seus parentes, tal como os italianos vêm conhecer “um pedacinho” da Itália no Brasil. A dupla cidadania abre o mercado de trabalho para os descendentes dos imigrantes na comunidade européia. Esse “retorno” à terra dos nonos e nonas pode ser considerado o início do movimento migratório de Criciúma (ASSIS, 2004) A partir dos anos 1990, o fluxo diversifica-se, e os criciumenses passaram a utilizar a dupla cidadania para emigrar para os Estados Unidos. O passaporte europeu dispensa a solicitação de visto para a entrada no país, entretanto, diferentemente da migração para a Itália, os migrantes não partem para os Estados Unidos com uma documentação que lhes permita trabalhar, tornando-se, assim, imigrantes indocumentados no país de destino. Criciúma tornou-se um ponto de partida de emigrantes para a Europa e para os Estados Unidos. Embora grande parte desses emigrantes informe que tem ascendência italiana, o movimento de criciumenses, assim como os migrantes valadarenses, dirige-se majoritariamente para os EUA nas regiões da grande Boston (MA), concentrando-se nas cidades de Lowell, Somerville e Everett e para algumas cidades da Itália. Como demonstram os relatos dos emigrantes, a emigração para a Itália e para os Estados Unidos também está associada ao imaginário presente na cidade, o qual constrói uma conexão entre os imigrantes do passado e os emigrantes do presente, mas principalmente ao desenvolvimento e ao amadurecimento de redes sociais ao longo do processo migratório. É interessante observar que Governador Valadares também construiu desde final da década de 1960 uma cultura migratória relacionada aos primeiros valadarenses que foram para os EUA para estudar 224 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO inglês, trabalhar, ganhar uns dólares e voltar falando inglês e com algum dinheiro – era quase uma aventura. (MARGOLIS, 1994; SALES, 1999; ASSIS, 2004; SIQUEIRA, 2009). Essas narrativas em torno dos primeiros emigrantes e de suas conexões entre os EUA e o Brasil configuram esse campo de relações entre os dois lugares como veremos a seguir. 5.2 - A origem das redes sociais de emigração Criciúma-EUA No período pós-guerra (1945), um novo modelo produtivo agropecuário foi implantado no Brasil, sob o comando do capital, com forte influência norte-americana, visando superar o “atraso” na agricultura. Para “educar” os agricultores a utilizar novas técnicas produtivas e aumentar a produção, foi implantado aqui em Santa Catarina um projeto chamado Clubes 4-S. A sigla significa “Saber, Sentir, Servir e Saúde”, e os clubes foram implantados no estado a partir de 1957, através da ACARESC, órgão responsável pela implantação e desenvolvimento das atividades extensionistas da agricultura no Estado de Santa Catarina. Estes clubes que atingiram seu auge em 1970 eram voltados à educação de jovens agricultores, e promovia o intercâmbio desses com outros jovens agricultores americanos, assim os brasileiros podiam aprender novas técnicas nos Estados Unidos, e os jovens americanos que vinham aqui morar podiam passar as técnicas conhecidas às pessoas que os estavam recebendo. No sul de Santa Catarina o Clube 4-S trouxe os americanos e seu estilo de vida ainda mais perto dos criciumenses, criando vínculos, além de servir como um painel de divulgação da modernidade americana, como é possível observar no jornal Tribuna Criciumense, de 21 a 28 de agosto de 1965, que conta a história de Bob Harter, um americano que antes de ir embora disse que nunca esquecerá Criciúma e seu povo. No mesmo jornal, na edição de 11 a 18 de setembro de 1965, encontramos a história de Ilma Arns, uma criciumense que foi estudar técnicas agrícolas nos EUA. Além dessas viagens promovidas pelos 4-S, havia ainda os intercâmbios estudantis promovidos pelo Rotary Club, que tornaram-se comuns a partir de 1960 (SANTOS, 2007). Na década de 1960 houve ainda uma difusão da cultura norteamericana no Brasil, que foi cuidadosamente elaborada pelo governo estadunidense com o objetivo de aproximar e fazer a classe média braTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 225 sileira consumir os produtos da cultura norte-americana (Santos, 2007). O american way of life passou a ser difundido para as massas logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ainda na década de 1960 a economia da cidade se torna mais dinâmica, graças à implantação da indústria cerâmica, gerando algo em torno de 15.000 empregos na época (AMREC, 1999 apud SANTOS, 2007). Percebe-se aí também um incremento das viagens aos Estados Unidos, mas é claro que apesar do fascínio pelo avião, nem todos tinham as condições financeiras para fazer tais viagens. Mas na cidade existia uma nova elite carvoeira e cerâmica, além de uma classe média urbana, que podia adquirir os bens da modernidade e viajar como turistas aos EUA e esse estilo de vida de classes mais abastadas era difundido pela mídia às demais classes. Para se ter uma idéia de como foi se formando um imaginário na cidade sobre os Estados Unidos, uma “proximidade”, uma falta de estranhamento em relação àquele país, num desfile de 7 de setembro em 1976 um menino foi fantasiado de Mickey Mouse (CAMPOS, 2003). Jaci Carminati, é considerado como o pioneiro nessa emigração para os EUA. Jaci estudou em um seminário em Minas Gerais e lá ficou amigo de um rapaz que posteriormente migrou para os EUA. Jaci, então, foi para os EUA em 1966, buscando a ajuda desse amigo para encontrar trabalho. Já estabelecido naquele país, Jaci encontrou emprego para seu irmão, Dino Carminati, que foi em 196915. Dino relata na época era muito fácil conseguir um Green Card e ficar em situação legal no país, bastava comprovar que tinha um emprego nos EUA para ganhar o visto. Dino conta na entrevista que na época que ele chegou nos EUA, ele já tinha conhecimento de 5 brasileiros morando só naquela cidade, Manchester, no Estado de New Hampshire, vizinho de Massachussetts, próxima a Boston (80 km), sendo que um deles havia sido levado por Jaci. Dino também dá detalhes de uma viagem que ele e seu irmão fizeram de carro dos EUA até Criciúma em 1970. [...] eu tinha um Mustang zero [...] meu irmão o Jaci, e me disse: “Dino: vamos pro Brasil de carro [...] nós saímos no dia 5 de dezembro de 1970, chegamos, tinha um mês [...] era começo de janeiro [...] mas também, foi assim mil milhas por dia. [...] Nossa, é pra matar! [...]. Nos saímos do México, pra Honduras, nos andava duas, três milhas, dois três quilômetros aí tinha que parar pra 15 Relato de Dino Carminati em entrevistarealizada na cidade de Lowel em junho de 2008 226 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO escovar a borboleta do radiador [...] era época da borboleta ali, a coisa mais linda do mundo[...]. Passamos lá no centro de Chile, pegamos os Andes [...]. Atravessamos a Argentina toda, depois chegamos na Capital, Buenos Aires. Em Buenos Aires botamos o carro no barco, fomos pra Montevidéu, aí entramos no Brasil pelo Chuí, aí chegamos na alfândega, cadê o fiscal lá da alfândega, não tava. Tivemos que ir lá na praia buscar o cara, pra ele carimbar o passaporte pra entrar no Brasil. Aí chegamos em Porto Alegre domingo de manhã morto de cansado [...]. (Entrevista realizada com Dino Carminati nos EUA em Lowell, julho de 2008). A chegada em Criciúma com o carro importado foi noticiada nos jornal e rádio local, causando grande interesse entre os jovens que viram as grandes possibilidades de sucesso no projeto de emigrar para os Estados Unidos. Ao longo dos anos de 1970 e 1980 outros criciumenses emigraram formando assim pontos iniciais da rede que no início dos anos de 1990 dará suporte ao boom da emigração para os EUA. Com o passaporte italiano na bagagem o caminho que grande parte dos emigrantes criciumenses, portanto, não é de “retornar” à terra dos seus nonos, mas “fazer a América”, mobilizando, muitas vezes, as lembranças e memórias dos imigrantes que vieram para o Brasil na virada do século XIX. Como relata Anita Baily16 A maioria dos imigrantes que estão aqui tem alguma coisa disso com eles [nonos] [...] Hoje nós estamos aqui [Estados Unidos] como imigrantes da mesma forma quando eles estavam lá [Brasil]. É diferente, porque aqui é um país de Primeiro Mundo, nós viemos para a cidade, eles foram para o mato, para a colônia. Nós deixamos o Terceiro Mundo para vir para o Primeiro. Mas isso não muda o fato de sermos emigrantes. (47 anos, descendente de imigrantes italianos, quatro anos nos Estados Unidos. Entrevista realizada nos EUA, 2008), O relato de Anita e de outros descendentes nos Estados Unidos revelam como o passado migratório é acionado pelos migrantes, o que demonstra uma conexão com o presente. Embora atribuam um significado ao fato de migrarem para o chamado “Primeiro Mundo”, fica evidente no relato a percepção da condição de trabalhador migrante. 16 Como se trata de uma migração indocumentada, para preservar a identidade das entrevistadas, todos os nomes que aparecem nas entrevistas são fictícios. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 227 A dupla cidadania torna-se uma estratégia de migração para os criciumenses e ressalta a ligação com os imigrantes do passado, valorizando a migração no presente como um recurso, uma possibilidade de batalhar por uma vida melhor. É assim que Anita, depois da separação de um casamento de mais de 20 anos, decidiu migrar para mudar de vida e se encontrar com a filha nos Estados Unidos. Anita decidiu emigrar no final da década de 1990, momento em que há um crescimento significativo da migração de criciumenses para a região de Boston, construindo em Criciúma, assim como em Governador Valadares na década de 1980, uma nova conexão. Os primeiros criciumenses partiram rumo aos Estados Unidos em meados da década de 1960, mas é no início dos anos 1990 que esse fluxo torna-se significativo tanto para aqueles que partiram quanto para aqueles que ficaram na cidade, criando-se, assim, um campo de relações transnacionais que começa a ser observado no cotidiano da cidade. O período que compreende de 1970 até 1989 corresponde a apenas 5% do total das viagens dos criciumenses em direção aos Estados Unidos ou à Europa. Foi na virada dos anos de 1990 que eles começaram a voar em direção ao exterior, ocorrendo um crescimento contínuo do número de primeira viagem nos anos de 1993 (com 4,9%) e 1994 (com 6,0%) do total das viagens17. Esses dados foram os primeiros indicativos de que a migração esporádica estava tornando-se um movimento contínuo de migrantes. Esse período corresponde exatamente da “crise do setor carbonífero”, período em que o setor perdeu os subsídios governamentais e enfrentou a concorrência com o carvão mais barato e de melhor qualidade vindo do exterior. Ao analisarmos o período de 1998 a 2000, percebe-se que 48,4% do total realizaram sua primeira viagem nesse período, assim distribuído: 12,5% em 1998, 17,2% em 1999 e 18,7% em 2000 (ASSIS, 2004) Assim, diferentemente dos emigrantes de Governador Valadares, que realizaram 40,8% das primeiras viagens nos períodos de 1987 a 1989 (FUSCO, 2000), poderíamos dizer que o “triênio da desilusão”18, na região de Criciúma, ocorreu 10 anos depois. Como os dados de 17 Dados coletados nas agências de viagem da cidade de Criciúma. 18 Sales (1999a) denominou “triênio da desilusão” o período - entre os anos de 1987 a 1989 quando milhares de brasileiros deixaram o país decepcionados tanto com a política econômica, quanto com a situação política. 228 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO 2001 referem-se apenas ao primeiro semestre, não representam o ano, mas indicam a tendência ascendente da emigração na cidade, pois são computados apenas o período de janeiro a julho encontramse 13,4% do total das viagens. Na década de 1980 a cidade de Governador Valadares, já desenvolvia uma complexa rede de relações que a conectava a algumas cidades da região de Boston. Em Criciúma, também observamos a configuração desses laços que conectam a origem e o destino - as redes sociais – sendo utilizadas nos anos de 1990. Essas redes foram formadas na década anterior e são elementos essências na direção do fluxo, pois, constroem vínculos emocionais e as trocas de informações e ajuda entre as pessoas que já estão no local de destino e aquelas que estão partindo. Os emigrantes são apoiados por algum parente ou amigo. Desde os preparativos para a viagem até a chegada ao país de destino. No depoimento de Dino Carminati a ajuda aos conterrâneos é explicitada da seguinte forma: “[...] depois o meu irmão trouxe várias pessoas e você sabe como é o negócio, um vai trazendo o outro” Nas teorias migratórias discute-se que no mundo globalizado não se torna mais possível explicar esses fluxos de pessoas simplesmente como um resultado de uma crise econômica, sendo que a decisão de migrar deixou de ser “solitária” para se tornar uma decisão tomada em conjunto com amigos e familiares, tanto daqueles que já partiram quando daqueles que aqui já ficaram (ASSIS, 2004). Essa migração em rede é uma maneira de minimizar os riscos dessa empreitada, que muitas vezes acaba em tráfico de pessoas, violências, estupros, caminhadas, e mortes no deserto da fronteira. 5.3 - A consolidação das redes, redes de retorno e os impactos da emigração na origem Ao longo das duas últimas décadas do século XX, os valadarenses e criciumenses residentes no exterior foram construindo múltiplas relações econômicas, culturais e familiares, o que sugere que os imigrantes, mesmo ausentes no exterior, continuam em contato com as suas cidades de origem (ASSIS, 1999; SALES, 1999, SIQUEIRA 2009). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 229 O que se pode observar pela ampliação da presença nos dados abaixo sobre a presença de emigrantes nos domicílios criciumenses. Tal contato é traduzido em investimentos nas cidades de origem que movimentam o comércio local - notadamente a construção civil, que movimenta o mercado imobiliário - e também fazem surgir microempresas movimentadas pelos dólares que os familiares recebem. Tais investimentos têm movimentado a vida de cidades que se tornaram ponto de partida de emigração, como Governador Valadares. As cidades que ao longo das últimas décadas construíram múltiplas relações entre a sociedade de origem e a de destino. Os investimentos demonstram que os migrantes têm projeto de retornar ao país e que se mantêm em contato com ele. Somados às remessas enviadas para manter os familiares que permaneceram no país, os investimentos representaram, em 2002, a entrada de US$ 2,6 bilhões de dólares no país19. “[...] agora estamos investindo nesse negócio [...], acreditamos que em dois anos podemos voltar para Criciúma [...] é o nosso sonho [...]” (Primo, 32 anos entrevista realizada em julho de 2008). Também é visível o impacto da emigração dos brasileiros no cotidiano das cidades de destino. O surgimento de lojas que vendem exclusivamente produtos brasileiros, além de jornais, rádios, canais de televisão brasileiros voltados aos brasileiros e até um CTG (Centro de tradições gaúchas) foi criado em Somerville, cidade da grande Boston com muitos brasileiros, que inclusive faz apresentações e dá aulas de danças típicas rio-grandenses. Para se ter uma idéia, em 2007 o Consulado Geral Brasileiro em Boston estimava um número de 300.000 mil brasileiros morando no estado de Massachusetts, para efeito de comparação, a população de Boston em 2007 era de 599.351 mil pessoas (BUREAU, 2006). A história de Ronaldo é muito semelhante aos retornados estudado por Siqueira (2009) na Região de Governador Valadares. Após retornar e montar seu negócio no Brasil tive que retornar aos EUA devido ao insucesso no investimento. Criciúma ainda não conta como em Governador Valadares de associações de migrantes que procuram atuar no destino e nem com interesse da Associação comercial ou do SEBRAE em montar cursos para capacitarem migrantes retornados sobre como 19 Folha de São Paulo, 18/08/2002. 230 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO investir seus recursos, o que faz com que histórias como essas sejam recorrentes (SIQUEIRA, 2008a). Outro impacto da migração na cidade é o investimento na construção civil. Em torno de 20% de todo o faturamento da Construtora Fontana era proveniente de dinheiro ganho por emigrantes20. Na cidade de Criciúma, algumas imobiliárias abriram filais na região de Boston, na cidade de Somerville, para vender casas e apartamentos para os emigrantes brasileiros. Proprietária de uma imobiliária em Somerville relatou que grande parte de suas vendas são de imóveis em Criciúma. [...] os emigrantes olham o projeto de apartamento ou casa pronto ou na planta, mas é o parente que ficou no Brasil, em geral os pais, que acompanha as obras e manda os retratos ou filmagens mostrando o andamento da obra. Assim, muitos migrantes quando retornam para o Brasil já encontram a casa ou o apartamento pronto. (Entrevista realizada com proprietária de imobiliária em Criciúma, setembro de 2008) Embora os dados sobre os investimentos em Criciúma sejam estimativos as informações ressaltam a importância das remessas para o local de origem e revelam a constituição de uma rede de agências de turismo e imobiliárias que se inserem nessa rede migratória. Nesse ponto, as redes de parentes se cruzam com as redes de agências de turismo e imobiliárias na realização do projeto migratório, num negócio bastante lucrativo para as empresas.Como disse uma migrante retornada ao mostrar sua casa construída em Criciúma “[...] se nossos patrões vissem o que fazemos com cada US$ 50,00 dólares”. (Entrevista realizada com retornado em Criciúma, agosto 2008) Estes dados demonstram que se para emigrar as redes sociais no destino são fundamentais, para retornar as redes na origem, também são fundamentais, pois além de orientar e efetivamente realizar o investimento também amenizar as incertezas do retorno. “[...] lá tem minha família [...] sei que não é fácil voltar [...] mas tenho eles que posso contar. [...], vai ser bem melhor criar meu filho lá, pois sei que posso contar com eles. [...] estão contando os dias para a nossa volta”. (Renata, 27 anos, emigrou em 2004) 20 Jornal a Gazeta Mercantil, 2 de agosto de 2001, p.1 TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 231 Alguns dados apresentados por (ASSIS, 2004) em relação às remessas, demonstram como as redes sociais na origem são importantes. O homens emigrantes que mandam dinheiro dos EUA para Criciúma, 40% deles envia o dinheiro para as esposas administrarem e/ou aplicarem em algum bem na cidade. Os dados também revelam que os chefes de domicílios, seguidos dos cônjuges, são os que têm maiores obrigações com aqueles que permaneceram no Brasil, motivo pelo qual, enviam mais remessas para aqueles que ficaram, principalmente seus parentes. Somadas as remessas enviadas para manter os familiares que permaneceram no país, os investimentos vindos do exterior representaram, em 2002, uma entrada de US$ 2,6 bilhões de dólares no país21. Os migrantes criciumenses, assim como outros migrantes internacionais, partem com o projeto inicial de trabalhar e juntar dinheiro a fim de melhorar o padrão de vida no Brasil. Nesse sentido, as remessas são um importante indicativo da realização desse projeto (ASSIS, 2004). O novo caráter desses movimentos migratórios está intrinsecamente ligado ao fato de que tais fluxos ocorrem num mundo cada vez menor, com compressão do espaço pelo tempo como conseqüência do desenvolvimento dos meios de comunicação, transporte e informática. Desta forma, as relações entre aqueles que partiram e aqueles que permaneceram, os investimentos na terra natal, os movimentos de mão-de-obra se processam de maneira mais intensificada e complexa apontando para o contexto transnacional destes novos fluxos. Portanto, as migrações contemporâneas são uma expressão contundente da rearticulação entre o global e o local criando um campo social entre os dois lugares-transnacionais. Nos relatos, tanto dos primeiros emigrantes, como dos emigrantes depois da década de 1990 estão evidentes que o principal motivo da emigração é a motivação econômica. O desejo de uma vida melhor revela a tentativa de inserir-se no mundo de consumo e no tipo de cidadania que esse mundo oferece a cidadania do consumo. Para realizar o projeto de “fazer a América” e participar do sonho americano, homens e mulheres imigrantes submetem-se ao trabalho no mercado secundário em serviços que não realizavam no Brasil, trabalham longas horas por dia e são em sua grande maioria indocumentados. 21 Folha de São Paulo de 18/08/2002 232 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Como os emigrantes valadarenses, os emigrantes criciumenses também emigram com o projeto de retornar. Ao longo do tempo de permanência nos EUA, muitos adiam indefinidamente o retorno, outros retornam definitivamente ou periodicamente. Para o retorno é acionado as redes familiares e sociais que deixaram na cidade de origem. Dino Carminati relata sobre uma agência de viagens próxima de Boston que segundo ele, somente no ano passado (2007) esta agência vendeu 27.000 passagens só de ida para o Brasil. Entre os motivos apontados pelo entrevistado para esse retorno em massa estão a maior vigilância americana em relação aos imigrantes ilegais, a queda do dólar, o aumento do desemprego nos EUA e a própria crise da economia americana. Sobre a emigração para os EUA hoje ele relata: Já aconselhei muita gente a vim, hoje, se a pessoa não tem um trabalho garantido e uma boa base aqui [EUA] eu acho que não é uma boa coisa. (Entrevista realizada nos EUA em julho de 2008). Os relatos dos emigrantes criciumenses nos permitem considerar que como os valadarenses eles reconfiguram o espaço socioeconômico de sua cidade. Contam com as redes sociais de emigração para empreender o projeto de emigrar e ao retornar também contam com a rede social na origem para amenizar as incertezas e possibilitar a readaptação. 6 - Conclusão O objetivo central dessa pesquisa foi verificar como se formam, articulam, e mantém as redes sociais no processo migratório nas cidades de Governador Valadares e Criciúma. Com base nos relatos orais dos primeiros emigrantes que formaram os pontos iniciais das redes sociais de emigração concluímos que nas duas cidades (Governador Valadares - MG e Criciúma – SC) o início da conexão se dá, primeiramente, com a difusão da idéia do estilo de vida americano como o mais desejado pela elite da cidade, na década de 1960. Governador Valadares apresenta um dado diferente, que é a presença de trabalhadores norte americanos na cidade, na década de 1940 até o final dos anos de 1950, que chegaram para ampliação da estrada de ferro e exploração e beneficiamento da mica. Este foi um período de grande desenvolvimento econômico que criou no imaginário popular a TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 233 idéia de que os EUA era um lugar de grandes possibilidades e reforçou a admiração pelo estilo de vida daquele povo. O intercâmbio de jovens da elite para estudar inglês, patrocinado pelo Rotary, está presente nos relatos dos primeiros emigrantes valadarenses e criciumenses, que informam as notícias trazidas por eles. Os primeiros emigrantes valadarenses partiram em 1964 com visto de trabalho e os criciumenses em 1966 com passaporte italiano. Nas décadas seguintes as redes vão se formando. Governador Valadares tem o boom emigratório na segunda metade do ano de 1980 e Criciúma nos anos de 1990. Assim como os mineiros de Governador Valadares, os catarinenses partiram em direção à “América” com um projeto migratório comum: comprar uma casa, um carro, montar um negócio. Esse fato revela um aspecto interessante das redes sociais que atuam na migração, pois uma parcela dos novos migrantes criciumenses é descendente de italianos e, portanto, têm a cidadania italiana o que abre o mercado de trabalho na Europa. No entanto, em vez de fazerem o caminho inverso dos nonos, migrando para a Itália, a maioria segue o caminho aberto pelos mineiros partindo rumo à região da grande Boston. Assim, um século depois, os criciumenses repetem a trajetória de seus nonos e nonas, continuando num certo sentido o projeto de “fazer a América”, partindo em direção aos Estados Unidos. Os criciumenses, assim como os migrantes valadarenses, partem para onde há melhores oportunidades de trabalho, mas fundamentalmente para onde possam encontrar uma rede de apoio para recebê-los tecendo as redes sociais na migração. Esse movimento, relativamente autônomo ao Estado e às forças estruturais, é caracterizado por ser de difícil apreensão, pois é fundamentalmente baseado em laços informais, construídos entre parentes, amigos e conterrâneos, muitas vezes distantes, mas que em terras estrangeiras tornam-se uma referência fundamental. Desse modo, as redes sociais acionadas no contexto da migração foram analisadas como práticas sociais que envolvem tipos diferentes de ajuda material, logística, emocional e simbólica que possibilitam aos futuros migrantes partirem com referências de onde ir, qual o trabalho que irão fazer e com quem vão morar. Enquanto seus filhos/as e netos/as trabalham pelo mundo, seus/ suas “nonos/as” e mães/pais (quando não são eles próprios migrantes) tocam sua vida, preparam a casa para recebê-los, muitas vezes adminis234 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO trando o dinheiro que é enviado. Tais questões sugerem vários arranjos familiares em que as mulheres assumem um status peculiar. O contato com o Brasil entre os que emigram e os que ficam é mantido por meio das cartas, fotos, telefonemas, remessas e, mais recentemente, por meio da internet, atualizando e reforçando a idéia do projeto familiar, econômico e afetivo que é a imigração. Assim, as redes sociais no destino e origem são elementos fundantes do projeto emigratório. No destino ela direciona o fluxo e ameniza os custos psicossociais, afetivos e econômicos e na origem, para concretização do projeto de retorno essas redes possibilitam a realização dos investimentos e a diminuição do impacto do reencontro com o seu local de origem. As novas tecnologias de comunicação são peças importantes no projeto emigratório, pois possibilitam a participação diária do emigrante no cotidiano de suas cidades e famílias e dos que ficam na origem da vida e trabalho do familiar que emigrou. Através do MSN, Orkut, Skype mantêm contato diário e as decisões relacionadas ao cotidiano são compartilhadas entre os dois lugares em tempo real. Isso possibilita a difusão das informações, uma presença marcada pela distância física, mas amenizada pela voz e imagem que aproximam esses pontos distantes no mapa, mas próximo virtualmente. O imigrante pode acompanhar em tempo real a construção de seu imóvel, o crescimento dos filhos, enfim o cotidiano da família, amigos e lugar. O fenômeno da emigração redimensionou o cotidiano das duas cidades. No setor imobiliário, os investimentos dos emigrantes aqueceram o mercado de venda de imóveis e a grande procura inflacionou o mercado. Além disso, a abertura de novos empreendimentos deu novo dinamismo à economia. Contudo, este se apresenta como um aspecto perverso da emigração22. Muitos emigrantes fazem investimentos inadequados, sem avaliar as leis do mercado e acabem perdendo todo seu investimento. Na cidade de Governador Valadares esta questão preocupou a sociedade civil que criou, a partir da organização dos familiares dos emigrantes ONGs e associações que buscam esclarecer ajudar o emigrante tanto no retorno quanto no investimento. Além disso, procuram, também, esclarecer sobre os riscos de emigrar. 22 Discussão mais detalhada sobre esta questão ver Siqueira (2006). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 235 As conexões possíveis entre os imigrantes e os emigrantes do presente evidenciam-se através dessas redes familiares que demonstram que este projeto individual, em geral está sustentado nas relações familiares, que são muito importantes para todo o projeto desde o momento de preparar para a partida, o apoio emocional e financeiro, até as viagens que os pais fazem para os EUA para matar as saudades, ou as ajudas para arranjar emprego nos locais de destino. Nessas redes as mães, esposas, namoradas, irmãs são muito importantes, pois fazem circular as informações entre os demais membros das famílias. O que se constata tanto daquele que partiram quanto daqueles que ficam é uma tentativa de manter seus laços com o Brasil, com os familiares o que aponta pra uma transnacionalização das relações familiares que se constroem entre os dois lugares. Portanto, em Criciúma, assim como em Governador Valadares, construíram-se diversos laços que conectam a cidade nos Estados Unidos. É a partir dessa perspectiva que podemos compreender como essas cidades da região sul e do leste Mineiro se tornaram pontos de partida. Nesse sentido podemos considerar que valadarenses e criciumenses constroem conexões transnacionais criando um singular campo social envolvendo os que partiram e os que ficaram numa complexa rede de relações. Essas redes auxiliam tanto no momento da partida, quanto na chegada no destino, bem como na administração dos investimentos na cidade de origem. Bibliografia ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: rearranjos familiares e de gênero nas vivências dos novos migrantes brasileiros. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. 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Desta forma, se comporta como um elemento potencial da memória, que pode ser recuperada como traço distintivo de identidades coletivas e individuais acerca do passado instituído. Em uma realidade midiatizada, a comunicação é cada dia mais relevante no eterno jogo entre memória e esquecimento, que marca a existência humana. Os últimos séculos acompanharam uma evolução tecnológica desenfreada com a criação dos telégrafos, do cinema, do rádio, da televisão e, mais recentemente, da internet, capaz de conectar, em tempo real, pessoas espalhadas nos mais diversos rincões do mundo. Haesbaert (2004) destaca a fragilização das fronteiras e a mobilidade constante, seja ela concreta ou simbólica, em que se transformou a nossa vida. Neste contexto, a comunicação de massa emerge como um território simbólico, ou seja, produto da apropriação simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. 1 Jornalista, graduada pela Universidade Vale do Rio Doce, mestranda do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território da UNIVALE. 2 Doutora em Sociologia e Ciência Política, professora do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território da UNIVALE. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 241 No caso da cidade de Governador Valadares, o tema da migração foi abordado pela mídia impressa das mais diversas formas, principalmente a partir da segunda metade dos anos de 1980, fase em que é registrado um verdadeiro boom migratório. Este artigo surge com base em uma pesquisa realizada no arquivo do jornal Diário do Rio Doce, o principal e mais antigo periódico da cidade. A partir da observação e leitura de todo o conteúdo sobre o tema publicado entre 1960 e 2009 foi possível encontrar reportagens, crônicas, charges e até mesmo suplementos especiais com circulação no Brasil e Estados Unidos, cujo conteúdo traz reportagens para manter os imigrantes informados sobre a terra natal e também mostrava aos moradores de Governador Valadares como era a vida dos conterrâneos na terra do Tio Sam. Dentre todo o conteúdo analisado, uma seqüência de histórias em quadrinho sobre o tema da imigração chamou a atenção. No dia 11 de julho de 1990 foi lançado o personagem “Capitão Dólar”, criado pelos publicitários Clóvis Moreira Costa e Marcondes Tedesco. Em reportagem publicada pelo jornal no dia 31 de janeiro de 1991 os criadores definem o “herói” como um valadarense que volta dos Estados Unidos cheio de si. A proposta deste artigo é fazer uma análise de conteúdo destas “tirinhas” que circularam diariamente no jornal entre julho de 1990 e setembro de 1991. Em um ano e três meses foram publicadas 375 tiras, cujo conteúdo trabalha de forma irônica a relação existente entre a comunidade valadarense e o fenômeno migratório na era global. 2 - O novo contexto migratório no cenário da globalização Para que possamos compreender o conteúdo das tirinhas e a relação existente entre Governador Valadares e a Terra do Tio Sam é preciso voltar no tempo e analisar o processo de territorialização e o histórico da cidade, fortemente marcada pelo fenômeno da migração internacional. No caso do Brasil, o cenário recente contraria a história, pois acontecia, até o início do século XX, o inverso do processo migratório registrado nos dias de hoje. O Brasil era um país marcado pela imigração e caracterizado pela aptidão acolhedora e a chegada destes imigrantes provocou mudanças consideráveis na formação do território brasileiro. 242 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Quando abordamos o conceito de território é importante fazer uma distinção no que se refere ao espaço. Estes não são termos equivalentes. Raffestin (1993) define que um território é formado a partir do espaço3 e compreende o resultado de uma ação conduzida por ator sintagmático4 – quando o espaço é apropriado, seja de forma concreta ou abstrata (por uma representação, por exemplo), ocorre o processo de territorialização. O território é entendido como o espaço socialmente apropriado, produzido, dotado de significado. Neste território são firmadas as relações de poder estabelecidas pelos homens e o espaço é constantemente modificado. O território (...) [é] um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a “prisão original’’, o território é a prisão que os homens constroem para si. (RAFFESTIN, 1993: 2)”. Deleuze e Guattari (apud HAESBAERT, 2004) propõem uma noção mais ampla de território, como um dos conceitos chave da filosofia, em dimensões que vão do físico ao mental, do social ao psicológico e de escalas que vão desde um galho de árvore desterritorializando até as reterritorializações absolutas do pensamento. É necessário ver como cada um, em qualquer idade, nas menores coisas, como nas maiores provações, procura um território para si, suporta ou carrega desterritorializações e se reterritorializa. Já Santos (2002) compreende que o território é formado no desenrolar da história, a partir da apropriação humana de um conjunto natural pré-existente, sendo configurado pelas técnicas, meios de produção, objetos e coisas: pelo conjunto territorial e a dialética do próprio espaço. O autor destaca a importância dos aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais que se entrelaçam de acordo com o movimento na sociedade no decorrer da história No Brasil, por exemplo, a chegada dos imigrantes trouxe modificações profundas na estrutura social, econômica e demográfica e também teve papel importante na formação da composição da população brasileira, marcando um processo constante de territorialização e reter3 O espaço é anterior ao território. O território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço. 4 Ator que a realiza um programa. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 243 ritorialização do espaço. Ao chegarem os indivíduos ocupam pontos no espaço e são distribuídos a partir de modelos que podem ser aleatórios, regulares ou concentrados. Nos dias de hoje a chegada de brasileiros também provoca alterações consideráveis na estrutura territorial dos países de destino, nesse sentido podemos citar a cidade de Framingham na Região de Boston, essa localidade depois da reestruturação da economia perdeu sua vitalidade econômica. As empresas fecharam suas portas e a região ficou abandonada. As cidades próximas possuíam mercado de trabalho secundário atrativo o que levou muitos brasileiros a viverem nessa localidade. Downtown de Framingham foi ocupado por um mercado de produtos brasileiros (SIQUEIRA, 2008) Os novos fluxos migratórios apresentam características muito diferentes do processo que trouxe milhares de estrangeiros para o Brasil O mundo global, contexto em que estão inseridos os novos fluxos, exige a reavaliação de paradigmas e teorias. Ianni (1996) destaca que com o advento da globalização o mapa do mundo se embaralha e a história entra em movimento. As forças produtivas ultrapassam as fronteiras geográficas, históricas e culturais, em um processo “[...] que desafia, rompe, subordina, mutila, destrói ou recria outras formas sociais de vida e de trabalho, compreendendo modos de ser, pensar, agir, sentir e imaginar” (IANNI, 1996, p.2) De acordo com Giddens (1999) a globalização, promoveu a compressão do tempo e espaço, derrubou as fronteiras geográficas ligando economias, mercados e sociedades, contudo essas barreiras permanecem para as pessoas. Graças às novas formas de interação social, lançadas com o advento das novas tecnologias de comunicação, mesmo à distância, um agente social de um determinado país pode influenciar na política, economia ou até mesmo nos costumes em escala planetária. Neste contexto, estão inseridos os novos fluxos migratórios. Como destaca Assis (1995), eles se dão em um mundo cada vez menor e mais conectado, graças ao desenvolvimento dos meios de comunicação, dos transportes e da informática. Desta forma, evidencia-se um contexto de migrações transnacionais, que amplia possibilidade de relações sociais entre a origem e a sociedade de destino, entre o local e o global. O surgimento das chamadas cidades globais, provoca a “dispersão das atividades econômicas pelo mundo” (IANNI, 1996: 3), as fron244 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO teiras nacionais são rompidas em um processo de desterritorialização e reterritorialização de pessoas, coisas e idéias. Há uma disjunção espaçotemporal e o conseqüente surgimento de espaços transnacionais, que transformam certas cidades e regiões em um “empório de mercadorias do mundo” (SASSEN, 1998). Mas é importante destacar, como ressaltam as pesquisadoras Assis e Siqueira (2009), que esta globalização, apesar de conectar o mundo em tempo real, também tem sua face excludente. Ao passo em que o dinheiro, as mercadorias têm a possibilidade de circular livremente entre os países os imigrantes já não encontram a mesma facilidade na hora de cruzar a fronteira, fato demonstrado pelos moradores da Região de Governador Valadares que buscam a emigração indocumentada, sem nunca ter tentado a documentação por acreditarem que não conseguiram o visto, principalmente na embaixada americana. Patarra (2006: 8) destaca que neste contexto global os movimentos migratórios devem ser compreendidos como uma denúncia. [...] os movimentos migratórios internacionais representam a contradição entre os interesses de grupos dominantes na globalização e os Estados nacionais, com a tradicional óptica de sua soberania; há que tomar em conta as tensões entre os níveis de ação internacional, nacional e local. Enfim, há que considerar que os movimentos migratórios internacionais constituem a contrapartida da reestruturação territorial planetária intrinsecamente relacionada à reestruturação econômicoprodutiva em escala global. Nesse sentido, a globalização traz diferenciação e fragmentação sendo atravessada por um desenvolvimento desigual e contraditório, pois as mesmas forças que promovem integração desagregam, gerando tensões tanto no destino como na origem como afirma Ianni (1996). Na origem, os trabalhadores buscam encurtar o tempo de concretização de seus projetos e desejos socialmente impostos por essa nova ordem através do projeto de emigrar. Nas cidades globais, eles irão ocupar os ninhos de trabalho no mercado secundário e assim suprir a demanda de trabalho em diferentes setores do sistema. A cidade de Governador Valadares é palco desse movimento migratório desde a década de 1960. Esse fluxo deixa marcas no território reconfigurando relações, espaço e cultura. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 245 3 - O território valadarense e o fenômeno migratório A globalização e a reestruturação produtiva apresentam uma nova dinâmica nesses fluxos migratórios internacionais e promovem uma reconfiguração da estrutura territorial mundial. Entre estes novos fluxos migratórios destacam-se os pioneiros valadarenses, que começaram a migrar para os Estados Unidos ainda na década de 1960. Amorim (2008) aponta que, dadas as características assumidas pela migração na cidade, é possível dizer que ela faz parte do imaginário coletivo não apenas uma saída para a crise financeira, mas também, como um projeto simbólico com o quais muitos cidadãos se identificam. Como destaca Almeida (2003) a cidade de Valadares revela uma longa história de ocupação e exploração que remonta o século XVII com a descoberta de ouro na região. Localizada em um ponto estratégico em relação às fontes produtoras de minérios e pedras semipreciosas, a cidade atraiu muita gente para executar atividades de apoio à mineração, conferindo à cidade papel de entreposto comercial. E esta característica é um dos fatores que ajudou a formar na cidade um quadro propicio à imigração. Assis (1995) divide a conexão entre Governador Valadares e os Estados Unidos em três etapas. O interesse dos valadarenses pela terra do Tio Sam começou ainda na década de 1940, mesmo antes dos primeiros imigrantes desembarcarem em território americano. Na época da II Guerra Mundial, a mica era um produto essencial para a indústria bélica5 e a abundância deste mineral na região chamou a atenção de empresas americanas, interessadas da extração e comercialização da substância. Trabalhadores estrangeiros, de maioria americana, chegaram à cidade para trabalhar com a exploração do minério e posteriormente na ampliação da estrada de ferro Vitória - Minas6. Também a partir de uma parceria entre os dois países foi criado o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) para o tratamento de água e combate a doenças como 5 O mineral era utilizado como material de isolamento pelas indústrias bélicas. 6 Na década de 50, os americanos que trabalhavam para a Morrison-Knudsen (um consorcio de empresas entre EUA e Canadá) estiveram em Governador Valadares para trabalhar e prestar consultoria na modernização da estrada de ferro Vitoria Minas, que pertence a Vale. Data deste período a construção de um acampamento com um conjunto de casas de padrão americano, que hoje é um bairro residencial da cidade e já não apresenta mais as características de construção americanas. 246 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO a malária. Espíndola e Oosterbeek (2008) destacam que nesta época, nos anos de 1940 e 1950, a abertura de estradas e o saneamento favoreceram a ocupação da floresta tropical e a expansão das atividades extrativista, transformando a cidade em um pólo regional. A partir das diversas formas de contato entre os valadarenses e os norte-americanos foi criada no imaginário local a idéia dos Estados Unidos como uma terra promissora, com vasta oportunidade de emprego e ascensão social. Os Estados Unidos da América passam a ser, do "mundo estrangeiro", a referência mais concreta; tornam-se parte da vida e reduto de esperança, cujas raízes assentam-se nesses contatos que têm início na década de 40. Com mais propriedade, pode dizerse que esse espaço específico (Estados Unidos da América) incorpora-se à extensão do conhecimento geográfico da sociedade valadarense, torna-se "conhecido", facilitado, mais presente; já não faz parte de um mundo qualquer, ganha contornos definidos nas relações que se estreitam comercialmente. (SOARES, 1995:95). Siqueira (2009) destaca que a presença americana na cidade pode ser considerada como fator contribuinte para fixar na memória popular a idéia dos Estados Unidos como um país de grandes oportunidades. Nos anos 1960, a cidade constituída, basicamente de imigrantes, a idéia de emigrar não era algo estranho, pois já fazia parte das alternativas de ganhar dinheiro e melhorar de vida dessas pessoas. A partir da década de 1960, a cidade enfrentou um período de estagnação econômica. O desmatamento contínuo levou à introdução da prática da pecuária extensiva, mas a inserção da nova atividade não foi suficiente para absorver o excedente de mão-de-obra. (ALMEIDA, 2003). A região é historicamente marcada por ciclos econômicos baseados no extrativismo predatório. Essas atividades apresentam no decurso do seu desenvolvimento sinais de esgotamento dado a sua incapacidade de manter um curso auto-sustentável. A substituição de uma atividade predatória por outra, acabou por gerar o declínio dessas atividades e a impossibilidade de as mesmas continuarem existindo como base econômica da cidade e região. (AMORIM, 2008:08). Neste contexto de estagnação que os primeiros valadarenses emigram. A migração começou de forma discreta ainda na década de 1960, mais precisamente no ano de 1964. Dezessete jovens, com idade entre 18 e 27 anos, todos com visto de trabalho e com boa condição financeiTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 247 ra, foram para os Estados Unidos ganhar dinheiro e retornar. Estes pioneiros valadarenses, oriundos da classe média não migravam por razões puramente econômicas, mas também motivados pela curiosidade de conhecer a terra das grandes oportunidades. (SIQUEIRA, 2008). A escola valadarense de inglês IBEU (Instituto Brasil Estados Unidos) levava brasileiros para participar de programas de intercâmbio nos Estados Unidos. Os relatos dos intercambistas encantados com o estilo de vida norte americano impulsionaram os primeiros imigrantes, que partiram com visto de trabalho, constituindo os primeiros pontos da rede social, que impulsionou e facilitou a chegada de outros valadarenses aos Estados Unidos. As cartas acompanhadas de fotos eram enviadas com freqüência relatando as oportunidades e maravilhas da terra, difundindo assim a grande aventura que era emigrar. Esses primeiros emigrantes davam o suporte necessário para os que desejavam emigrar, além das informações emprestavam dinheiro para o depósito7, buscavam no aeroporto, ofereciam estadia ou moradia, arrumavam o primeiro emprego, compravam roupas adequadas ao clima dos EUA. (SIQUEIRA, 2008:12) Como já foi descrito anteriormente, a migração interna já é comum em terras brasileiras, também por esta tradição a migração internacional era entendida como “um projeto possível e relativamente fácil de concretizar (SIQUEIRA, 2006, p. 62). Estas supostas facilidades ajudam a compreender a saída dos primeiros migrantes. Na década de 60, com uma população constituída basicamente de imigrantes, a idéia de ‘fazer América’ era uma ‘aventura’, assim como a vinda dos imigrantes para Valadares na boléia de caminhão, ou diretamente de um porto no Rio ou São Paula para esta cidade (ASSIS, 2002: 46). Os anos de 1980 também ficaram conhecidos no Brasil como a década perdida, em decorrência do fracasso dos planos de estabilização econômica. Neste período, hiperinflação dificultava a manutenção do padrão de vida da classe média brasileira Com a crise, a emigração ganha característica de fluxo e altera tanto o país de origem quanto o de destino. Margolis (1994) destaca alguns números desta crise: Nos anos de 1990, a inflação chegou a atingir média anual de 1.795%. No 7 Neste período era necessário fazer um depósito de mil dólares no consulado americano para receber o visto de trabalho. 248 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO primeiro ano do mandato do então presidente Collor, em 1990, a economia sofreu retração de 4,6%, maior queda desde 1947. Os países mais pobres, como o Brasil, viveram na década de 80 tentativas malsucedidas de ajuste econômico e financeiro, visando à nova realidade do capitalismo internacional e à necessidade de saldarem os compromissos com os pagamentos das dívidas externas. O resultado foi uma década de crise econômica com uma profunda dimensão social, em que as taxas de desemprego se aproximaram dos 15% e a miséria se generalizou para 20% da população (BRITO, 1996:11) A partir da segunda metade dos anos de 1980 é registrado um verdadeiro boom migratório8. A crise, que derrubou o otimismo econômico e empobreceu a classe média, associada ao ideal dos Estados Unidos como nação próspera e a existência de uma rede que funciona como elo entre origem e destino deram origem a um fluxo intenso de valadarenses para os Estados unidos. O número de migrantes internacionais passou de 75 milhões em 1965 para 120 milhões em 1990, o que representa, neste ano 2,3% da população mundial. (SORES, 1995:1). Ao analisarmos a relação entre os valadarenses e a migração também não podemos deixar de lado a existência das redes sociais, formadas por parentes e amigos que vivem nos Estados Unidos e de uma forma ou de outra contribuem para a chegada de novos imigrantes. De acordo Siqueira (2008) estas redes representam um poderoso capital social que ajuda as pessoas com baixa escolaridade e recursos na experiência migratória de longa distância. As cartas, as fotos, os telefonemas, os investimentos e a ascensão social daqueles que retornam marcam significativamente o território. A mídia impressa registra o significado e as representações desse movimento migratório. O jornal impresso local de maior circulação é o Diário do Rio Doce que no período de julho de 1990 a setembro de 1991 a publicou tiras humorística que tratavam exatamente desse fenômeno. No item seguinte iremos apresentar essas tiras e discutir sobre o a sua representação em relação ao fenômeno migratório. 8 De acordo com os dados apresentados por SALES (1999, p.18), 49% dos brasileiros que chegaram à região de Boston entre 1967 e 1995, desembarcam entre 1985 e 1989; entre 1990 e 1995 foram 28,6%. Já entre 1967 e 1984, um período de 17 anos, chegaram 22,4%, uma quantidade bem menor dada a proporção de tempo. Estes dados evidenciam o boom migratório compreendido entre 1985 e 1995. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 249 4 - Capitão Dólar - A representação irônica de um imigrante “cheio de si” O personagem “Capitão Dólar” foi criado em julho de 1990 pelos publicitários Marcondes Tedesco e Clóvis Moreira Costa. As tirinhas circularam diariamente, durante um ano e três meses, deixando de circular em setembro de 1991. Ao todo, foram veiculadas 375 histórias, que retratam com humor e um pouco de ironia o imigrante valadarense retornado e o fenômeno migratório em suas diversas facetas. Para a realização da análise o material foi fotografado com câmera digital e descarregado no computador. Além das tirinhas todo o conteúdo relacionado ao fenômeno migratório publicado entre 1960e 2009 foi pesquisado. O material coletado foi divido segundo três categorias: Conteúdo Jornalístico (reportagens, artigos, crônicas e matérias sobre o assunto); State News, suplemento especial encartado no jornal que circulava no Brasil e nos Estados Unidos nos anos de 1980 e 1990; Conteúdo Humorístico, charges e tirinhas que retratam o imigrante valadarense; Publicidade, material publicitário (anúncios) relacionados à questão. No entanto, para a realização deste artigo específico foi utilizada a parte do banco de dados referente às tirinhas, que trazem as histórias do personagem “Capitão Dólar” e seu amigo engraxate, o valadarense Johnny. Neste item vamos analisar estas histórias e ver de que forma o fenômeno da migração internacional de Valadarenses para os Estados Unidos aparece representado sob a perspectiva do humor. Um estrangeiro em seu próprio país. Assim pode ser definido o personagem “Capitão Dólar”. Apesar de ser um personagem fictício e do humor contido nas histórias, a verdadeira mensagem transmitida por esta seqüência de quadrinhos é uma denúncia com relação à situação dos brasileiros que vivem nos Estados Unidos e do sentimento de não pertencimento quando retornam à terra natal. Foram selecionados os dois primeiros meses, pois apresentam um conteúdo cujas mensagens realçam bem a postura do imigrante retornado, o deslumbre dos valadarenses com a possibilidade de conseguir um visto de entrada e algumas situações típicas que mostram a forte relação existente entre a cidade e os Estados Unidos. Nem todas estão reproduzidas, mas o conteúdo de todas foi avaliado e está representado neste item do artigo. Foi utilizada a análise do conteúdo para compreensão do significado e representação dos conteúdos presentes no impresso. 250 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Para a análise das tiras nos atentamos à importância que a imagem exerce no universo opinativo da comunicação. Como destaca Cavalcante (2002) este é um recurso fundamental capaz de influenciar um público amplo, que muitas vezes não se interessa pelos gêneros opinativos clássicos, como o editorial e a crônica. “Ela tem o mérito de produzir um impacto muito maior na cabeça do leitor, pois se utiliza da evidência e do humor, na apreensão do dia-a-dia” (CAVALCANTE, 2002:130). Nicolau (2007) classifica as tiras publicadas nos jornais como um gênero opinativo do mesmo nível que um editorial. O autor destaca ainda a importância social que as tiras adquiriram a partir dos anos de 1970, pois, apesar do humor, trazem um conteúdo quente e crítico capaz de retratar com aguçada ironia os paradoxos da nossa sociedade. Este gênero surgiu nos Estados Unidos, a partir da necessidade de os jornais diversificarem o seu conteúdo. De forma sucinta, as tirinhas trabalham com a pluralidade de sentidos e trazem um desfecho inesperado. As histórias têm como base uma piada curta e envolvem, na maioria das vezes, personagens fixos e estereotipados, como o Capitão Dólar e seu amigo engraxate. As tiras jornalísticas configuram-se como pequenas narrativas estruturadas por intermédio dos códigos verbais e icônicos, cujos elos são os balões.Elas propiciam análises em diferentes perspectivas, aproveitando a combinação entre falas, expressões e gestos das personagens, e privilegiando a situação contextual das tiras pelo seu aspecto interacional. São textos encontrados na vida diária que operam em determinados contextos (MELO, 2008:63) Figura 01 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 11/07/1990 TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 251 A tira acima (Tira 01) foi a primeira da saga “Capitão Dólar”. O recém retornado imigrante chega à redação do jornal e se apresenta ao diretor da publicação como sobrinho do Tio Sam, fazendo uma alusão aos Estados Unidos. Essa afinidade, sobrinho, se deve ao fato de ter vivido nos Estados Unidos, mesmo que como trabalhador no mercado de trabalho secundário9, destino dos emigrantes, sente-se próximo, não como filho daquela terra, mas reivindica o direito de ser parente. Esse é um diferencial dele para com seus compatriotas, que nunca pisaram no solo da terra prometida. Tenta firmar sua identidade a partir dessa experiência migratória10. Com a intenção de mostra seu diferencial, o “Capitão” se veste ao melhor estilo norte-americano, com calça rasgada, colete e vários cordões pendurados. Após uma temporada longe da terra natal, o imigrante volta com a necessidade de reconstruir sua auto-imagem. Não tem nenhum interesse de realçar as dificuldades, o sofrimento vivido no estrangeiro, precisa demonstrar seus ganhos com essa aventura. É muito comum encontrar na cidade e região as casas construídas pelos emigrantes pintadas de cores vivas e chamativas, exatamente para distinguir e demonstrar que seu projeto migratório de ir para o exterior, trabalhar, ganhar muito dinheiro e retornar foi bem sucedido. (SIQUEIRA, 2009). Ao desembarcar no Brasil, com a mala repleta de dólares, o protagonista destas histórias faz amizade com Johnny, um rapaz negro, morador do morro do Carapina11, que trabalha como engraxate e tem um sonho: conseguir o visto de entrada para os Estados Unidos. O valadarense, com nome de americano, então, se alia ao Capitão Dólar, pois acredita que ele pode ajudá-lo a conseguir seu objetivo e, enfim, melhorar de vida. Na cabeça do jovem engraxate, o Capitão é o exemplo que um valadarense que, com a imigração, conseguiu dar a volta por cima, fortalecendo a imagem dos Estados Unidos como uma nação prospera marcada pelo progresso e o desenvolvimento. A representação da emigração como herói está presente na percepção popular e nos órgãos públicos. Um exemplo é a placa na Praça dos Ferroviários em home9 Sua atividade profissional e condições de trabalho será revelada nas tira número 2. 10 A mesma reivindicação de status de emigrante o personagem reafirmará na tira número 7 e 9. 11 Favela mais central da cidade de Governador Valadares. 252 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO nagem ao emigrante com dizeres que se refere ao mesmo como herói (SIQUEIRA, 2009). A emigração é uma possibilidade para os aventureiros e heróis que buscam uma forma de conseguir a ascensão social em curto espaço de tempo ou mesmo realizar um projeto que jamais poderia ser executado sem a aventura de emigrar. As tirinhas foram publicadas no início dos anos de 1990, época em que o Brasil vivia uma forte crise econômica, com índices inflacionários que ultrapassavam 1.000%12. De acordo com informações publicadas no próprio jornal “Diário do Rio Doce” no dia 31 de janeiro de 1991, estimava-se que cerca de 12% da população residia em terras norte-americanas. Se cada um destes imigrantes enviasse para o Brasil a quantia de 200 dólares por mês, a cidade receberia uma remessa de aproximadamente 6 milhões de dólares ou 1,308 bilhões de cruzeiros13. As cifras altas impressionam e fazem com que o capitão se torne uma verdadeira celebridade. Mas, na verdade, a história revela um homem de pouca instrução que executava trabalhos desqualificados como lavar defuntos e pratos. Desta forma, os cartunistas revelam a realidade da vida dos valadarenses nos Estados Unidos, trabalhos desqualificados no mercado secundário. As tiras 2 e 3 ilustram bem o tipo de trabalho dos valadarenses nesse país, condição que muitos procuram esconder dos seus amigos e parentes. Ao enviarem fotos, jamais revelam essas condições de trabalho, moradia e a qualidade da vida que levam. Enviar fotos em frente a carros de marcas, casas bonitas e fotos da neve, sem revelar que a neve machuca e dificulta seu trabalho. Nessa tira, o personagem se arrepende de dizer a verdade “Acho que fiz mal em contar aventuras fortes para ele”. Na visão de Margolis (1994), o grande poder de atração, que faz com que os imigrantes troquem o Brasil pelos Estados Unidos, está na oferta de empregos de baixo nível, que requerem pouca fluência de inglês, mas oferecem ao imigrante uma remuneração muito maior do que a recebida no país de origem. 12 De acordo com dados disponíveis no Almanaque Virtual do Jornal Folha de São Paulo, a inflação acumulada do ano de 1990 foi de 1.476,56% 13 Valor da cotação do Dólar referente ao dia 25 de janeiro de 1991, em matéria publicada no jornal no dia 31 de janeiro do mesmo ano. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 253 Como destaca Brito (1996) quando o brasileiro deixou de optar pela migração interna e escolheu o exterior como alternativa, ele deparou com condições adversas, pois no estrangeiro a inserção do migrante, mesmo aquele que tem escolaridade, se dá em um espaço secundário em que muitas vezes é preciso competir com os moradores locais. No entanto, a possibilidade de uma melhor condição financeira, acaba compensando a perda de status e a submissão a trabalhos que no país de origem seriam vistos como degradantes. Figura 02 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em13 de julho de 1990. Figura 03 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 18 de agosto de 1990 Contudo, Johnny quer ir de qualquer forma para os Estados Unidos, pois na perspectiva daqueles que ficam o sucesso dos que retornaram é aparente e marcante. O rapaz usa uma camiseta com o símbolo “U$” que representa a moeda americana e ensaia algumas palavras em inglês para que, com a ajuda do amigo recém retornado consiga o visto, chave para entrar na terra do Tio Sam. 254 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Figura 04 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 14 de julho de 1990. O idioma americano, o inglês também é explorado pelos autores. O Capitão tenta ensinar algumas palavras para o seu amigo, pois acredita que o inglês é mais sofisticado e assim vai atrair mais clientes para Johnny, por isso ele propõe que ele substitua o termo engraxate por shoe cleaner. Impressionado eira do capitão, Johnny aceita, mas a novidade não é bem recebida pelos moradores do morro. Independente dos constrangimentos, Johnny segue admirado com o inglês do seu herói e acalentando o sonho de ir para “América”. Figura 05 Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 19 de julho de 1990. Devido à ascensão social que vive no momento, concretizado pelos dólares que trouxe e pelo status de emigrante, o Capitão Dólar acredita que o dinheiro, ou melhor, o dólar é capaz de comprar tudo, inclusive a boa forma física, como destacado jocosamente na tira 06. Essa tira revela o poder mágico de ter estado na terra prometida, ter vivido num país de primeiro mundo e conseguido ganhar dinheiro, mas revela também a falta de conhecimento que anos num TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 255 país de primeiro mundo não lhe proporcionou. Conseguiu “Fazer a America” o que na linguagem do emigrante significa ganhar dinheiro e retornar numa condição econômica superior, mas não conseguiu adquirir conhecimento, nesse sentido o dinheiro que ganhou é sua única fonte de identidade, de diferenciação, que justifica os anos de trabalho e luta na América. Essa tira representa exatamente a situação de muitos emigrantes que ao retornar distribuem presentes, fazem churrasco e festas para os amigos e parentes para demonstrar a sua nova condição financeira e com isso acabam perdendo boa parte e muitas vezes toda a poupança que levou anos para juntar. Figura 06 Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 22 de julho de 1990. O passaporte autêntico com visto carimbado, a partir dos anos de 198014, raridade, entre os Valadarenses, também é motivo de orgulho para o Capitão Dólar. As crônicas e notícias dos exemplares dessa década15 mostram como ainda nos dias de hoje, eram raros os nascidos em Governador Valadares que conseguiam voltar do consulado com uma resposta positiva, também cresciam, a cada dias, as denúncias de esquemas ilícitos envolvendo valadarenses para conseguir entrar nos Estados Unidos. 14 Margolis (1994) comenta sobre a dificuldade encontrada pelos brasileiros na hora de conseguir um visto. De acordo com a pesquisadora, os brasileiros não tinham problemas na hora de conseguir visto, pois eram considerados autênticos turistas, mas ao longo dos anos 1980 a situação começa a mudar. Devido ao crescente número de brasileiros overstayers (pessoas que excedem o tempo de permanência do visto de turismo) eles são vistos como qualquer outro imigrante transgressor. 15 Esse artigo utiliza o banco de dados referente as tirinhas, contudo a pesquisa possui um banco de dados com todas as crônicas, notícias e reportagens sobre a emigração no período de 1960 a 2007. 256 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Como destaca Silva Filho (2008), os jornalistas, ao explorar estas denúncias, criam uma imagem deturpada dos valadarenses, quase sempre associada a ida ilegal para os Estados Unidos e a falsificação de passaportes. A dura realidade dos imigrantes é deixada em segundo plano. Neste contexto, o Capitão se sente um verdadeiro herói, privilegiado pelo seu visto: possibilidade restrita a uma minoria, como ilustram as tiras 07, 08, 09 e 10. Essas tiras revelam também o estranhamento e a incapacidade do emigrante de compreender as normas formais e informais do seu país de origem. Tem sempre a necessidade de comparar e supervalorizar o que é estrangeiro. O passaporte com visto é um diferencial em relação aos nativos que considera que pode abrir todas as portas. Figura 07 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada no dia 24 de julho de 1990. Figura 08 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada no dia 26 de julho de 1990. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 257 Figura 09 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada no dia 05 de agosto de 1990. Figura 10 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 22 de agosto de 1990. Siqueira (2009) também destaca que o Brasil é o segundo maior receptor de remessas da América Latina, sendo que grande parte delas é destina à microrregião de Governador Valadares, valeu o apelido de “Valadólares”. Antes, as remessas chegavam pelas agências de turismo, mas a partir do ano 2000, o sistema bancário nacional em parceria com bancos americanos criou um sistema legal para o envio do dinheiro. Antes da regulamentação do envio das remessas era comum o cambio ilegal da moeda norte-americana, que ganhava espaço nos jornais. O personagem criado pelos publicitários do Diário do Rio Doce também se arrisca nesta empreitada ilícita, como mostra a tira 11. 258 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Figura 11 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 20 de julho de 1990. Os imigrantes retornados, ao voltar, conseguiam comprar alguns bens de consumo que antes não tinham acesso e faziam questão de reverenciar a terra do Tio Sam como uma espécie de Eldorado. Não apenas os imigrantes, mas também os meios de comunicação de massa. Como destaca a pesquisadora Margolis (1994), a mídia ajudou a reforçar a imagem dos Estados Unidos como uma espécie terra prometida. A salvação para a espécie humana, como uma nação não divida pelo estresse social e econômico provocado pelo que se tem ou não tem, como um lugar em que o governo se preocupa com as pessoas e não é corrupto. Figura 12 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 1 de agosto de 1990. Além do mais os brasileiros são bombardeados pela música e pelo cinema americano, fato que gera uma admiração e curiosidade pelo que vem dos Estados Unidos. Essa fixação país norte-americano e o desejo de emigrar a qualquer custo também são evidenciados nas histórias do Capitão Dólar. No caso da “tirinha” 12 Johnny se aproveita do desejo de emigrar dos Valadarenses para conseguir mais fregueses. Assim, os cartunistas acabam ajudando a firmar a imagem do valadarense como um povo desenraizado e obcecado pela idéia de migrar como única alternativa para melhorar de vida. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 259 A supervalorização do que é estrangeiro em relação ao nacional é uma Tonica das falas do Capitão Dólar, para ele, o povo brasileiro pensa pequeno e precisa ampliar suas perspectivas. Nesta tira (12) o protagonista não se contenta com a simplicidade do protesto pela duplicação de uma rodovia e busca uma alternativa à altura da sua condição americanizada: uma estrada com cinco vias, sendo que uma delas tem como destino os Estados Unidos. Essa estrada é a solução de todos os Governador Valadares. Figura 13 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 17 de agosto de 2010. A tira 13 mostra o Capitão Dólar como um homem alienado, que só consegue ver o lado negativo do Brasil e o lado positivo dos Estados Unidos. Vale a pena destacar também nesta tira a barraquinha de troca de dólar, as bandeiras com cifrão, a utilização de termos em inglês na faixa de protesto do Capitão e as múltiplas possibilidades de acesso ao país de destino que contempla, até mesmo, objetos não identificados. E nem mesmo a paixão nacional escapou de sua americanização, o futebol, escolhe o time para torcer pelo nome que é o mesmo de seu país adotivo – América, ou melhor, a forma como denomina esse país. Na hora de escolher o time de futebol preferido o Capitão deixou o Democrata, principal equipe de Governador Valadares de lado, e preferiu equipes que levassem América no nome, como uma forma de homenagear os Estados Unidos, conhecido pelos Valadarenses simplesmente como “América16”. 16 Como destaca Almeida (2003) Os primeiros imigrantes que saíram de Governador Valadares tinham como o objetivo de “fazer a América” – expressão usada para identificar todos os que buscam nos EUA a oportunidade de ganhar dinheiro, fazer um capital em pouco tempo e voltar para o Brasil, onde o dinheiro será investido. 260 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Figura 14 Fonte: Diário do Rio Doce, publicada em 24 de agosto de 1990. E por falar em futebol, no Brasil este é um dos principais motivos que despertam o sentimento de patriotismo na população. De quatro em quatro anos, com a realização do principal torneio futebolístico mundial, a Copa do Mundo, é comum ver o verde e o amarelo estampado pelas ruas. Em outras ocasiões, são raras as demonstrações de amor à pátria. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde os americanos ostentam com orgulho e das mais variadas formas a bandeira nacional. E parece que este sentimento tomou conta do nosso herói dos quadrinhos. Mas, ao invés de despertar o amor pela pátria mãe, ele voltou completamente fissurado pela terra do Tio Sam, estando disposto, inclusive a arriscar sua vida na Guerra em favor dos norte-americanos. Figura 15 Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 08 de agosto de 1990. Como foi dito anteriormente o Capitão Dólar não se sente pertencente à cidade de Governador Valadares depois que volta dos Estados Unidos. Siqueira (2007) compreende que para o emigrante a empreitada do retorno é ainda mais complicada do que a decisão de migrar para um país estrangeiro. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 261 (...) quando emigram estão cheios de esperança e quando retornam são acometidos pelo estranhamento de seus lugares de origem e das pessoas que habitavam seu universo social. Isto ocorre porque, durante o tempo de afastamento,idealizaram as relações sociais e o espaço onde viviam e quando retornam não reconhecem. (SIQUEIRA, 2007:10) Na tira abaixo (Tira 16) a placa indicando a direção de algumas cidades brasileiras e confunde o Capitão Dólar, que sente falta da indicação de cidades americanas. Como destaca Hall (2003) não se sente em casa na sua cidade natal, pois após a experiência migratória é como se ele pertencesse a dois lugares, estando lá e cá simultaneamente. Figura 16 Fonte: Diário do Rio Doce, publicado em 27 de julho de 1990. 5 - Considerações finais A cidade de Governador Valadares é conhecida como o primeiro e, até os dias atuais, o principal ponto de partida de emigrantes para o exterior. Esse movimento populacional impacta a cidade em diferentes aspectos. Assim como afirma Sayad (2000), a imigração não acontece sem deixar marcas, que afetam o país de origem, o de destino e, principalmente, os seres humanos envolvidos na empreitada migratória, tanto aqueles que vão quanto aqueles que ficam. Essas marcas estão representadas em diferentes setores da sociedade valadarense como no comércio, construção civil e mesmo no cotidiano das pessoas, das famílias e da sociedade de modo geral. A mídia local apresenta um registro desse fenômeno através dos editoriais, reportagens, crônicas, charges, e as tiras de humor, que retrataram a questão em suas várias dimensões e significados. 262 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO O presente artigo tem a proposta de fazer uma análise de conteúdo de uma das modalidades de informação sobre a emigração, as “tirinhas” que circularam diariamente no jornal entre julho de 1990 e setembro de 1991, demonstrando as representações sobre a emigração presentes nesse gênero jornalístico. As tiras retratam o migrante retornado valadarense com humor e certa dose de ironia e sarcasmo. O personagem Capitão Dólar sugere um homem deslumbrado, de pouca instrução que retorna cheio de si e acredita que seus preciosos dólares são capazes de comprar qualquer coisa, mesmo aquelas cujo preço não é possível calcular. Nas tiras estão presentes as representações do emigrante na cidade de origem, ou seja, é um sujeito que “fez a América”, pois, consegui fazer uma poupança e retornar em condição econômica melhor. Passa a valorizar tudo que é americano em detrimento ao que é nacional e vê na sua condição de emigrante um diferencial em relação àqueles que não empreenderam a aventura de emigrar. O fato de possuir o visto americano, que possibilita a entrada pela porta de frente nos Estados Unidos e é desejo de todos, se transforma em uma grande conquista para o Capitão Dólar, pois ele acredita que esse trunfo também pode abrir portas no Brasil. Nesse sentindo, anuncia, em situações inesperadas, sua condição de ex-emigrante, pretendendo assim, receber um tratamento diferenciado. Apesar de os quadrinhos serem uma obra de ficção e da imagem estereotipada, retratam uma realidade dos anos de 1990: o interesse dos valadarenses pela terra do Tio Sam. No entanto, o personagem, com sua paixão pelos Estados Unidos é apresentado como um sujeito que, no decorrer do processo migratório vivenciado, adquiriu dólares, mas não conseguiu mudar sua condição de desinformado e pouco instruído. Ele é apresentado como um homem alienado e com baixa escolaridade. Desta forma, a mídia, nesses quadrinhos em particular, apresenta uma imagem negativa da migração e dos migrantes valadarenses, que estão sempre associados ao cambio ilegal da moeda americana, à falsificação de passaportes e uma série de outros esquemas ilícitos. Além disso, a cidade acaba fadada com uma terra sem oportunidades, cuja melhor saída para uma vida melhor é o aeroporto. A imagem passada é de uma identidade fragmentada e, sobretudo, desterritorializada. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 263 Referências Bibliográficas ALMANAQUE DA FOLHA. DINHEIRO/CRONOLOGIA. Banco de dados da Folha de São Paulo/ Acervo On line. 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Depois que ele sair de casa e você ficar, não vai existir mais casamento. (M., 41 anos). Introdução cidade de Governador Valadares tem como traço marcante em sua cultura a emigração internacional que a torna conhecida nacional e internacionalmente. As famílias residentes na cidade frequentemente possuem um parente no exterior na condição de emigrado. Essa curiosa cultura inspirou o estudo sobre emigração na região envolvendo todo tipo de informação. Informações estas que nos ajudam a entender melhor o que fez e ainda faz com que tantos valadarenses migrem em grande quantidade para o exterior. A Este fenômeno faz parte da história de Governador Valadares, iniciado desde a década de 1960, tendo seu ápice na década de 1980. Segundo Assis (1999), a cidade foi ampliando suas redes envolvendo 1 Trabalho apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG 2 Psicóloga, Pós-graduada em Dependência Química e Outros Transtornos Compulsivos e em Gestão de Território e do Patrimônio Cultural pela Universidade Vale do Rio Doce. 3 Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de Picardie Jules Verne/França, professor adjunto da Universidade Vale do Rio Doce. 4 Graduanda em Psicologia pela Universidade Vale do Rio Doce, bolsista de Iniciação Científica da FAPEMIG. 5 Psicólogo, Mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista da Capes. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 267 outras cidades da região. Este fenômeno veio marcando sua identidade, sua história, a história daqueles que partiram e daqueles que esperaram o retorno do parente. Segundo Siqueira (2006), os países com maior fluxo de valadarenses são Estados Unidos, Canadá e Portugal respectivamente, sendo sua maior concentração no primeiro. Sendo assim, o Brasil deixou de ser receptor de mão de obra estrangeira e passou a exportar o trabalho migrante. O fator determinante, que impulsiona e faz com que muitas pessoas migrem para o exterior, é o desejo de melhorar suas condições financeiras obtendo salários superiores àqueles recebidos em seu próprio país. Num estudo realizado por Siqueira (2007), emigrantes relataram que seria impossível conseguir salários e melhores condições financeiras no Brasil, trabalhando nos mesmos empregos que no exterior em um período consideravelmente reduzido. Um facilitador deste processo, visando o cumprimento dos objetivos, isto é, ganhar dinheiro e melhorar as condições financeiras – embora nem todos consigam – são as redes sociais. Essas redes foram identificadas a partir de estudos que averiguaram de que forma o valadarense se inseria no exterior e de que forma iniciava sua vida na América. A existência da conexão entre emigrados, parentes e amigos forma um tipo de rede social denominada por Soares e Fazito (2008) como rede migratória. “Essa rede migratória é um tipo específico de rede social que agrega redes sociais existentes e enseja a criação de outras redes, consiste, portanto, em rede de redes sociais” (SOARES e FAZITO, 2008: 32). Nesse misto de relações entre emigrado e as outras pessoas envolvidas, existe uma participação direta da família no que tange a manutenção do processo emigratório. Essa participação é percebida em dois momentos. Primeiramente na construção do projeto de emigrar e no planejamento do período necessário para que os objetivos financeiros sejam atendidos, e, em seguida, no gerenciamento dos recursos enviados pelo emigrante. Por isso, no dizer de Assis (1999), “Aqueles que ficaram auxiliam os filhos(as), namorados(as), amigos(as) a realizar este projeto evidenciando que a migração transformou-se num projeto econômico, afetivo e familiar de grande impacto na cidade” (p. 3). O fluxo emigratório é constituído, em grande parte, de trabalhadores jovens do sexo masculino entre 20 e 34 anos. Essa informação nos remete a uma situação em que acredita-se que haja um grande número 268 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO de filhos e esposas que passem a aguardar o retorno do pai e do parceiro. A promessa inicial é a de que com o passar do tempo o parceiro emigrado adquira, por meio de trabalhos realizados no exterior, recursos financeiros suficientes para que a esposa e filhos se juntem a ele no país de destino. Mas, na realidade, essa meta vai ficando cada vez mais distante. Muitos emigrantes acabam por permanecer no exterior por vários anos e as parceiras e filhos lentamente são forçados, pelas circunstâncias, a conviverem com a distância do parceiro ou pai resignando-se à solidão (ALMEIDA, 2008; SCUDELER, 1999). Fusco (1997:4) retrata que “muitos elaboram seus planos segundo uma estratégia familiar, e partem com a clara expectativa de voltar para aqueles que deles dependem e esperam”. Essa é a vontade da maioria daqueles que partem para o exterior. O desejo de fazer a América6 (SIQUEIRA, 2006:5) indica que muitos vão com o desejo de um dia retornar para suas casas, suas famílias. A pessoa que agora se encontra na condição de emigrado é portadora de uma história construída até então na cidade de origem. A partir da emigração, existe uma necessidade de adaptação ao ambiente para que ele melhor se integre ao novo contexto cultural. Seu repertório de comportamento e cotidiano sofre mudanças significativas envolvendo desde a linguagem até o modo de manifestar suas emoções. A família, por sua vez, também passa por adaptações, sobretudo pela ausência de uma das partes. Em muitos casos, a ausência é a da figura masculina, do pai e provedor da casa que parte em busca de descobrir novos caminhos que facilitem seu conforto financeiro e de sua família. Alguns autores, como Wall e Lobo (1999) nomeiam a nova situação familiar, onde um dos cônjuges está ausente, como família monoparental. O termo tem sido definido por muitos sociólogos em seus estudos, em que o foco são famílias cujo núcleo familiar onde vive um pai ou uma mãe só (sem o cônjuge) e com um ou vários filhos solteiros. Esses autores explicam que a expressão “família monoparental” surgiu na França no início dos anos 70. Esse pai e parceiro bem como sua família dependerão agora do seu progresso financeiro no exterior para, então, retornar a sua terra de 6 Terminologia usada pelos imigrantes, que significa trabalhar muito, economizar o máximo, para depois voltar. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 269 origem e se juntar novamente a sua família. Até o retorno, a família busca meios de manter uma comunicação na tentativa de não permitir o enfraquecimento das relações. São vários os mecanismos utilizados pela família, dentre eles o telefone, a internet e outros meios de comunicação. O uso de modernos instrumentos de comunicação se transforma num ato quase compulsivo como necessidade de se manter a unidade familiar. Além da comunicação como recurso de manutenção das relações familiares, a própria remessa de dinheiro sinaliza que o parceiro está comprometido com sua família, como salienta Machado (2007). Em resposta, a qualidade da administração desses recursos pela mulher certifica ou não seu comprometimento. Ainda no intuito de manter uma relação familiar positiva, essas mulheres que dividem uma vida conjugal com seu parceiro comportam-se de maneira peculiar evitando o surgimento de motivos para que o parceiro dê fim ao relacionamento conjugal. Machado (2007) relata ainda que muitas delas adotam a estratégia de morar nas casas ou no terreno dos sogros, para manterem-se conscientemente vigiadas, ou ainda trazem para morar consigo suas próprias mães, sinalizando que a casa não está vazia. Uma justificativa para tal comportamento é a vigilância da mulher e da casa onde vive, pelos vizinhos, amigos e parentes do emigrado. Um fato significativo e que causa medo e repulsa nessas mulheres diz respeito à fofoca. A necessidade de mudarem seus comportamentos diante da sociedade se faz necessária de modo a evitar constrangimentos e discussões entre os parceiros. Segundo a pesquisa realizada por Machado (2007), foram relatados casos em que as esposas que ficaram mudaram suas rotinas por completo, das mais variadas formas, com o intuito de evitar que a fofoca acabasse com o casamento. Tais medidas fazem com que esposas de emigrantes vivam sob condições de isolamento afetivo, sexual e social, significativamente elevados e rotineiros. Isolamentos estes que se tornam cada vez mais perniciosos às mulheres, considerando que os contatos com os parceiros se limitam aos meios de comunicação como telefone e internet. Embora esses mecanismos possibilitem uma forma de contato íntimo entre os cônjuges, essas mulheres deixam de usufruir da presença e dos benefícios gerados pela vida a dois, garantidos pelo matrimônio. Tais benefícios são as relações nas quais ela possa sentir prazer junto ao parceiro e a presença, através da qual tem no parceiro o suporte para os momentos difíceis e a educação dos filhos. 270 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Inúmeras são as consequências do distanciamento entre os parceiros, dentre elas a redefinição dos papéis. Aquelas que antes contavam com o parceiro na tomada de decisões, passam a tomar para si mesmas essa tarefa. Aquelas que se viam dedicadas a atividades profissionais percebem-se diante da necessidade de voltar sua atenção preferencialmente para questões domésticas e cuidados dos filhos. Outro fator relevante faz menção ao fato de que, apesar de se encontrar atualmente novos padrões de relacionamento amoroso e novos formatos de relacionamento conjugal influenciados pela contemporaneidade (CECCARELLI, 2002), o perfil da maioria das mulheres de emigrantes da microrregião de Governador Valadares é de uma mulher que se apresenta como dependente emocional e financeiramente do parceiro. Mesmo exercendo uma nova posição na família devido à ausência do parceiro – liderança, administração da casa, das finanças e investimento do dinheiro enviado – elas ainda permanecem numa posição de submissão. Em decorrência das decisões tomadas para a manutenção da união do casal, do bem-estar dos filhos e para que se cumpra o projeto de obter o sucesso financeiro, as parceiras dos emigrados se desdobram para que de alguma forma o objetivo seja consolidado o mais rápido possível e o parceiro volte para a família. Mas nem sempre as decisões e os comportamentos adotados por elas são satisfatórios para sua saúde física e emocional. Estudos realizados por Almeida e Dias (2008) revelam que os impactos do isolamento social e afetivo na vida da esposa do emigrante são significativos. Essa questão aborda um fato negativo decorrente do “provisório” período de distanciamento: em função da ausência do parceiro, à mulher não é permitida uma efetiva vivência de sua sexualidade. Almeida e Dias (2008:2) afirmam que “ainda em função do consequente isolamento sexual, não se sabe por quanto tempo é possível à mulher continuar adormecida, quando tudo o que se constrói no mundo chama a atenção para o fato de que homens e mulheres dificilmente se acomodam à castidade”. Os autores colocam ainda em questão o primeiro sentimento vivenciado por elas após a partida do parceiro: a solidão. A consciência de que este sentimento não se extinguirá e irá acompanhá-las até o dia em que seu parceiro retorne se torna presença constante no cotidiano dessas mulheres. A mulher, por sua vez, procura de formas diversas, TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 271 encontrar alternativas para suavizar tal sentimento, principalmente nos momentos em que se torna mais acentuado. Em tais momentos a parceira sente falta da voz de seu parceiro, de momentos que passaram juntos, bem como situações que os uniram afetiva e sexualmente. Os sentimentos se constroem e se misturam no decorrer do tempo em que a mulher do emigrado permanece só, apenas com os filhos, caso os tenha, e com as lembranças e a esperança do retorno do parceiro. Sentimentos como angústia, tristeza, saudade e ansiedade são presença constante em suas vidas, afetando diretamente seus pensamentos, seu desempenho diário como mãe e como mulher. Uma consequência a ser ressaltada diz respeito aos filhos, que são atingidos de certa forma por esse turbilhão de sentimentos que assolam a vida dessas mulheres. A esse respeito, Dantas e Jablonski (2004:352) fazem o seguinte comentário: “[...] mães infelizes e insatisfeitas podem transmitir esses sentimentos aos seus filhos”. As consequências na vida cotidiana para a parceira do emigrado são incontáveis. Sentimentos adversos são experimentados por essas mulheres que vivem na condição de “viúvas de maridos vivos”. Além da vigilância de parentes e amigos de emigrados, os prejuízos na saúde psicológica da mulher também devem ser considerados. Essas mulheres, uma vez longe de seus parceiros, não vivem a sexualidade em sua plenitude como vivem os casais que estão juntos fisicamente. A união que por ora é apenas sentimental, sendo afetada pela distância, impede a vivência do relacionamento diário entre os parceiros, colaborando para um possível rompimento conjugal. Almeida e Dias (2008) ainda nos trazem uma importante informação acerca dos mecanismos de compensação para os desejos sexuais de tais mulheres. Muitas se refugiam na religião, de maneira a buscar consolo, força e, de certa, forma alívio para desejos não realizados devido à ausência do parceiro. A utilização de tal subterfúgio é improdutiva, visto que constantes insatisfações nesse campo produzem como consequências efeitos colaterais, muitas vezes, graves. Os sentimentos de desvalia, autopercepção e autoestima empobrecidos assolam a vida dessas mulheres. De uma maneira ou outra, ao fugirem de seus sentimentos e desejos sexuais, acabam por fazer emergir sentimentos negativos, como frustração, angústia e, algumas vezes, sentimento de culpa por terem participado da decisão do parceiro de emigrar. 272 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO O segundo ponto negativo na vida dessas mulheres aponta para o recolhimento e isolamento da vida social. Seja por desejo próprio ou por consequências do ambiente onde vivem sem o parceiro, mulheres de emigrantes tendem a sentir necessidade de dar satisfação à sociedade. As saídas que antes possivelmente eram constantes, agora não são mais. O parceiro não estando presente facilita a reclusão de sua mulher no lar, limitando seus espaços de lazer à igreja e casa de parentes. Machado (2004) mostra que isso é culturalmente comum entre as famílias cujos parceiros se encontram no exterior como emigrantes e que não é uma novidade para aqueles que optam por este caminho. A exposição de sua família se torna mais pública, pois, ao saírem de casa, a mulher permanece só, o que já chama a atenção para um aspecto diferente: na casa existe agora mulher e crianças, sem presença de um homem, do chefe da família. Essa exposição sensibiliza toda a família de forma que os pais, tanto do emigrado como da parceira, querem resguardar a família de qualquer comentário e conversas que atentem contra a moral do grupo familiar. As esperanças e sacrifícios vivenciados por essas mulheres possibilitaram a realização de um estudo que procura conhecer em profundidade suas vidas cotidianas. Sacrificar o relacionamento conjugal em função de um futuro melhor faz com que essas mulheres tenham que experimentar situações desconhecidas e inimagináveis. O grande número de mulheres residentes na região que vivenciam essa realidade indica a pertinência de se averiguar de que forma elas lidam no dia a dia com a ausência do parceiro, com os desejos a serem reprimidos e com os sentimentos gerados pelo desfecho familiar a partir da participação no processo emigratório. Metodologia Este estudo tem por objetivo conduzir uma reflexão sobre a vivência de mulheres que possuem ou possuíram parceiros residentes no exterior como emigrantes enfocando suas expectativas e impactos do isolamento conjugal e social em seu cotidiano. Os dados aqui apresentados foram coletados através da realização da pesquisa intitulada “Impactos do processo emigratório sobre a TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 273 sexualidade da esposa do emigrante”. Esta pesquisa, realizada em duas fases (Fase I e Fase II) teve início em 01 de março de 2006 e foi concluída em 28 de fevereiro de 2010. Trata-se de um estudo descritivo do tipo exploratório, no qual utilizou-se tanto uma abordagem quantitativa quanto qualitativa. A combinação das duas abordagens pode produzir resultados de melhor qualidade, sem esforços excessivos adicionais e ser um meio eficiente de aumentar a compreensão do objeto de estudo (SANTOS, 1999). População do estudo e critérios de inclusão e exclusão O universo do estudo é constituído por mulheres casadas ou que possuíam algum vínculo conjugal e residiam na cidade de Governador Valadares, tendo seus parceiros resididos no exterior como emigrantes ou estando residindo há pelo menos três meses. Foram incluídas na amostra mulheres que tinham no período de realização da pesquisa ou que já tiveram o marido ou parceiro fixo residindo no exterior por um período mínimo de três meses; bem como aquelas que tinham marido ou parceiro fixo com sucessivos períodos de permanência no exterior com durabilidade média de um ano. Foram excluídas mulheres com algum déficit cognitivo ou que se sentiram profundamente angustiadas diante da questão em estudo, bem como aquelas que se recusaram a participar. Coleta de dados Visando testar o método de trabalho, os processos técnicos envolvidos na execução do projeto e os instrumentos utilizados pela coleta de dados, foi realizado um estudo piloto com 20 mulheres na primeira fase da investigação e com quatro na segunda fase utilizando-se os critérios de inclusão e exclusão. Porém estas não foram consideradas pelo estudo principal. O Estudo piloto permitiu avaliar a clareza e objetividade da entrevista. Para a coleta dos dados, na primeira fase, as seguintes etapas foram realizadas: 1. Inicialmente foram mantidos contatos com as diretoras de es274 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO colas da rede pública e privada de Governador Valadares e discutida a possibilidade de realização da palestra “Dicas para a educação dos filhos que possuem o pai no exterior” para as mães de alunos cujo parceiro fosse emigrante. 2. Após a autorização da direção da escola, foi agendado o dia do encontro por meio de um convite formal às mães em questão, para participarem do evento. 3. Ao final da palestra, cuja duração foi em torno de 60 minutos, fez-se uma apresentação da pesquisa e convite para participação. De acordo com o interesse das mulheres, foi possível a criação de um cadastro com identificação e telefone de mães que estivessem dispostas a fazer parte da pesquisa. 4. A partir do cadastro, foi realizado o contato telefônico e agendamento do dia e horário para a entrevista domiciliar. 5. No domicílio das mulheres cadastradas, fez-se inicialmente uma reapresentação dos objetivos da pesquisa, do instrumento de coleta de dados e orientação para a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A entrevista foi realizada em um local da residência que apresentasse boa iluminação, tranquilidade e silêncio, procurando assegurar a privacidade da participante. As respostas foram anotadas em formulário próprio para posterior alimentação do banco de dados. Cada entrevista teve duração média de 60 minutos. Na segunda fase da pesquisa, foram realizadas entrevistas domiciliares com 32 mulheres residentes na cidade de Governador Valadares. Para a composição desse grupo de mulheres, utilizou-se do método Bola de neve, tomando-se como referência inicial as participantes da Fase I da pesquisa. O método consistiu em identificar alguns sujeitos com as características exigidas para compor a amostra. Esses primeiros indicaram outros, que por sua vez, também fizeram outras indicações, até chegar a um número em que as informações e indicações começaram a se repetir. “Segundo Becker (1993) a indicação feita pelos próprios indivíduos que compõem o universo pesquisado é um elemento importante para assegurar uma seleção mais impessoal e aumentar a relação de confiança do entrevistado para com o pesquisador” (SIQUEIRA b, 2006:19). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 275 Instrumentos de coleta Para a coleta de dados ocorrida na primeira fase da pesquisa, cujo objetivo central foi de conhecer a realidade vivida por mulheres que possuem os parceiros no exterior, enfocando o modo como vivem suas sexualidades, bem como identificar as diversas mudanças físicas, psíquicas e sociais influenciadas pelo isolamento sexual, realizou-se uma entrevista baseada num roteiro específico desenvolvido para este estudo. Tal roteiro buscou, na primeira fase, identificar as mudanças na vida diária, afetiva e sexual ocorridas a partir da ausência do parceiro. O roteiro norteador da entrevista continha vinte e seis questões para as quais não eram indicadas alternativas, deixando as entrevistadas livres para expressarem-se de acordo com suas vivências e expressões. As variáveis consideradas foram as seguintes: 1) idade, 2) escolaridade, 3) estado civil, 4) tempo de relacionamento, 5) tempo de isolamento conjugal, 6) motivação para emigrar, 7) reação da mulher diante da decisão da partida do parceiro, 8) providências tomadas pelo parceiro a partir da chegada no exterior, 9) o sentimento diante das providências tomadas pelo parceiro, 10) atitudes tomadas pela mulher a partir do envio de remessas de dinheiro, 11) as atitudes tomadas pela mulher diante da falta do parceiro, 12) opções de lazer na ausência deste, 13) sentimentos diante de outros casais, 14) frequência anual de visitas médicas, 15) medicação utilizada pela entrevistada, 16) existência de prescrição médica, 17) sintomas apresentados, 18) tempo de uso do medicamento, 19) auto-estima a partir da ida do parceiro, 20) sua avaliação sobre o distanciamento; 21) representação individual de casamento 22) com quem a entrevistada reside, 23) religião, 24) situação quanto a libido, 25) atitudes frente ao desejo sexual, 26) percepção quanto à traição feminina. Na segunda fase, os dados foram coletados através de uma entrevista semi-estruturada realizada em domicílio, com o objetivo de conhecer os sentimentos das entrevistadas gerados pelos múltiplos desfechos da vida conjugal, motivados pela participação do parceiro no processo emigratório. Por desfecho entende-se aqui a continuidade ou não do relacionamento conjugal, associado ao fato de o parceiro ter retornado ou não e ter atingido ou não o objetivo de melhorar a condição financeira da família. 276 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Análise dos dados A apuração dos dados qualitativos foi realizada segundo a técnica de Análise de Conteúdo (BARDIN, 2009). Nesta foram avaliados fragmentos do discurso das entrevistadas, enfocando suas percepções relativas às expectativas experienciadas por ocasião da partida e permanência do parceiro no exterior, os impactos da distância sobre o cotidiano da família, as dificuldades na educação dos filhos, e as expectativas e desfechos decorrentes da experiência emigratória. Já os dados quantitativos foram analisados com o auxílio do programa SPHINX, facilitando a elaboração das tabelas e estudo descritivo das variáveis observadas neste estudo. Aspectos éticos Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade à qual o projeto está vinculado. Todas as participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O TCLE assegurava-lhes o caráter confidencial de suas respostas e seu direito de não-identificação, reforçando que a pesquisa possui caráter voluntário. Resultados Na primeira fase da pesquisa, o estudo contou com a participação de 247 mulheres cujos parceiros residiam no exterior como emigrantes. As entrevistadas possuíam em média 34 anos, sobressaindo-se as que se situam na faixa de 30-39 anos (40,1%) e 20-29 anos (32,0%). Quanto à escolaridade, lideram aquelas que possuem o primeiro grau (47,4%) seguidas das que cursam ou cursaram o segundo grau (39,3%). Entre as entrevistadas, o tempo de relacionamento com o parceiro emigrado varia consideravelmente (mínimo 01 e máximo 38 anos). Apesar disso, sobressaem-se aquelas cujo relacionamento dura há pelo menos entre 5 e 10 anos (30,4%), seguidas pelas de 10 a 15 anos (24,7%). O estudo mostrou ainda que entre elas prevalecem as que possuem pouco tempo de distanciamento conjugal, uma vez que as com menos de três anos (44,5%) são seguidas pelas que possuem entre três a cinco anos (40,2%). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 277 Fato importante a ser mencionado e que chama a atenção diz respeito ao tempo de permanência do parceiro no exterior, que aponta diretamente para o distanciamento conjugal e a não vivência sexual da mulher durante a ausência do parceiro. Essa não vivência afeta uma das funções do casamento contemporâneo, que é a satisfação sexual do casal. Ceccarelli (2002) nos aponta que a união entre um homem e uma mulher é reconhecida, sob o ponto de vista da cultura, como um fato natural que ocorre a partir da escolha e para a satisfação de necessidades mútuas. Ainda sob o ponto de vista cultural, tal união deve cumprir a função de perpetuação da espécie humana e criar condições para o desenvolvimento da sociedade. Nota-se que a segunda função foi cumprida por algumas das entrevistadas, isto é, contribuir para com a perpetuação da espécie uma vez que do relacionamento conjugal houve o nascimento de filhos. Contudo, a primeira função passa e passou a ser negligenciada a partir da participação do parceiro no processo emigratório. Isoladas afetiva e sexualmente, na maioria das vezes por tempo indeterminado, esposas de emigrados aguardam que inúmeras circunstâncias se alinhem, criando possibilidades para o retorno do parceiro ao país de origem. A busca pela melhoria da situação financeira da família (71,7%) constitui-se no maior motivo que levou a entrevistada e seu parceiro a se envolverem no processo emigratório. O esforço para ganhar dinheiro com o objetivo de adquirir a própria moradia (17,0%), também caminha nesse mesmo sentido. Tais motivos estão em conformidade com as providências tomadas pelo parceiro ao iniciar o trabalho no exterior. Efetivamente, a maior parte deles (66,0%), rapidamente começou a enviar dinheiro para cobrir despesas da mulher e filhos, bem como para auxiliar os parentes necessitados. Em segundo lugar, sobressaem-se os emigrados que iniciaram um processo de poupança com o objetivo de adquirir a casa própria (17,8%). Residindo o parceiro no exterior, a mulher passa a viver uma situação particular no tocante ao apoio afetivo e social de que necessita. Sem querer considerar aqui a adequação ou não da realidade vivenciada, os dados indicam que a maioria das entrevistadas, na ausência do parceiro, reside só ou com os filhos (71,7%), o que lhe permite, na intimidade, manter algum nível de privacidade. As demais (28,4%) são compulsoriamente forçadas a dividir suas vivências com os pais ou família do parceiro. 278 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Tabela 1 Características gerais das entrevistadas participantes da primeira fase, motivação e providências do parceiro emigrado – 2007 (n=247) Nos momentos de solidão, três atitudes positivas são tomadas por grande parte dessas mulheres, a saber: sair para se distrair e visitar parentes e amigos (49,8%), apoiar-se na religião (48,6%) e manter contato telefônico com o cônjuge (42,9%). Embora não sejam tão evidentes, as atitudes negativas, redutoras da qualidade de vida e da saúde, acometem um grande número de entrevistadas, aspecto que não deve ser TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 279 negligenciado. São mulheres que se deprimem, choram, tomam medicamentos e buscam compensação na alimentação. Embora não seja esse o objetivo, a igreja é reconhecida pelas entrevistadas como local privilegiado de lazer (56,7%), seguida por atividades de leitura, assistir TV e ir ao cinema (44,1%), fazer compras e passear no shopping (38,9%). Tabela 2 Rede de apoio das entrevistadas – 2007 Homens e mulheres se unem no desejo de ficarem juntos e de serem suportes ou suportados um pelo outro. Neste caso, a presença é elemento significativo para a continuidade do relacionamento. A maior presença e a soma de ações compartilhadas contribuem diretamente para a melhoria da qualidade e continuidade do relacionamento conjugal. No contexto emigratório, as parceiras dos emigrados tendem a ser acometidas por sentimentos diversos, sobretudo ao manterem contatos ou verem casais que vivem sob o mesmo teto, enquanto elas convivem diariamente com a ausência. Dentre tais sentimentos, os mais vivenciados são a inveja, saudades e desejo de que o parceiro volte (64,4%). Depois destes sentimentos, o conformismo gerado pela ideia de que o parceiro certamente retornará (26,3%) é vivido por significativo número dessas mulheres. 280 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Na medida em que aumenta o distanciamento, ocorrem mudanças na autopercepção de tais mulheres. Perceberam-se mais ansiosas, impacientes e irritadas (45,7%) foi relatado pela maior parte das entrevistadas. Embora existam aquelas que se sintam mais bonitas, magras, livres, felizes e inteligentes (19,1%), dominam as percepções negativas, sobretudo ao se somarem aquelas que se perceberam mais tristes e sozinhas (17,8%). Tabela 3 Sentimentos diante de outros casais e autopercepção atual – 2007 Embora distantes de seus parceiros, não há como desconhecer o fato de que antes da partida elas tinham uma vida sexual ativa. Assim, mesmo na impossibilidade de vivenciarem a sexualidade junto dos parceiros, o desejo apresenta-se como um companheiro, sobretudo nos momentos de maior solidão. Excluindo-se aquelas que raramente ou nunca sentem desejo sexual (16,6%), sobrará a grande maioria que às vezes (45,3%) ou sempre (38,1%), é acometida por ele. Nessas circunstâncias, várias atitudes são assumidas. Apesar do desejo, algo deve ser feito para que tais mulheres possam encontrar um equilíbrio para sentirem-se bem em seu dia-a-dia. Para isso, grande número procura desqualificar seus próprios sentimentos ao tentar ignorar a vontade (40,1%), fazem orações (14,5%) ou tomam medicamentos (3,3%). Efetivamente, através dessas ações passam a desenvolver comportamentos neuróticos, com o único objetivo de aplacar sentimentos que deveriam ser atendidos de alguma forma. Aquelas que não conseguem desqualificar seus próprios sentimentos procuram fazer amor com seus parceiros ao telefone (24,0%) ou assistem a filmes eróticos e se masturbam (11,5%). Essas mulheres buscam TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 281 formas de resguardar a todo custo o relacionamento conjugal. Poucas, diferente disso, colocam em risco a vida conjugal ao se relacionarem sexualmente com outro homem (2,0%). Embora pareça justificável devido ao longo período de inatividade sexual, o relacionamento extraconjugal não encontra eco favorável na sociedade, sobretudo quando praticado pela mulher. Mesmo sujeitas à inatividade sexual, aquelas que pretendem dar continuidade ao relacionamento e acreditam no retorno do parceiro ao seio familiar tendem a discriminar as mulheres que não conseguem se manter fiéis, relacionando-se com outro homem. A ampla condenação da traição feminina justifica o fato de que poucas se envolvam em tais relacionamentos, durante a ausência do parceiro. Relacionar-se com outro homem é percebido como uma fraqueza daquelas que o fazem e como uma mancha que se instala na vida conjugal. Em outros termos, pode-se dizer que no momento em que a mulher busca o prazer com outro que não seja seu parceiro, rompe, com este, o compromisso anteriormente firmado. Aos olhos da sociedade, o parceiro está trabalhando para sustentar a família que deixou no Brasil e está vivendo única e exclusivamente essa prática diária no exterior, com o intuito de dar melhores condições de vida para a esposa e filhos. Seguindo este raciocínio, para a sociedade, cabe a esposa do emigrante, exclusivamente, a função de cuidar dos filhos e da casa e aguardar o retorno do marido, do contrário ela des-substancializa as relações do relacionamento conjugal. A esse respeito, vale citar Machado (2007) quando diz: [...] parece que a desonra que ela implica também des-substancializa violenta e rapidamente aquelas relações do casamento: é como se o sêmen alheio fosse uma substância que contaminasse definitivamente um conjunto de relações, desonrando o marido e levando ao fim imediato daquelas relações (MACHADO, 2007:18). Os resultados apresentados nos últimos parágrafos incitam a uma reflexão sobre a condição da mulher no que diz respeito ao que comumente se denomina “sexualidade feminina” ou “feminilidade”. Tal ponderação se faz necessária com vistas a compreender, por exemplo, para-além da representação social da traição feminina, por que apenas 2% das mulheres recorrem, como saída para a solidão, ao início de um novo relacionamento. Para tanto, faremos uso das ferramentas conceituais freudianas. 282 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Em sua conferência de 1932 sobre “Feminilidade”, Freud (1933/1996) afirma que existem três destinos possíveis para o desenvolvimento da mulher a partir do momento em que se estabelece o reconhecimento da diferença entre os sexos, isto é, que o menino possui o pênis e a menina não. A primeira vicissitude é a inibição sexual ou a neurose. A menina, ao dar-se conta de sua “castração” (para usar o termo freudiano) renuncia à atividade sexual e à sexualidade como um todo, adotando uma posição passiva em relação ao ato sexual. Ela passa a conceber a atividade sexual como um atributo exclusivamente masculino – daí a idéia bastante comum há décadas atrás, segundo a qual a mulher não deveria sentir prazer no intercurso sexual. Com a passividade, advém a substituição do desejo de ter um pênis (como os homens) e, por conseguinte, de ter sexualidade, pelo desejo de ter um filho. Nesse sentido, o filho é esperado como uma compensação pela ausência do pênis. Esse é um dos perfis pelos quais uma mulher pode se apresentar, segundo Freud (1933/1996). O segundo perfil é o da mulher que, como reação à castração, desenvolve o que Freud chama de “complexo de masculinidade”. A menina não “aceita” a realidade da castração e recusa-se a adotar uma atitude passiva, aferrando-se na satisfação sexual via clitóris, primeira zona erógena feminina e com função análoga à do pênis. Isso não significa que todas as meninas que reagem dessa forma à castração, tornar-se-ão lésbicas, embora essa seja uma possibilidade. Significa que mesmo no relacionamento com homens, elas adotarão uma postura ativa e comportamentos comumente atribuídos à masculinidade (FREUD, 1933/1996). O terceiro e último destino sexual da mulher, de acordo com Freud, é o que o médico vienense chama de “feminilidade normal”. Nesse caso, a mulher, ao contrário do primeiro perfil, não renunciaria à sexualidade. Em vez disso, o que ocorreria seria uma substituição de uma zona erógena por outra: se inicialmente a menina se satisfazia sexualmente através do clitóris, após dar-se conta de que esse não se transformaria em pênis (castração) ela converge seu erotismo para a vagina, preparando-se, assim, para a satisfação sexual mediante a introdução do membro masculino. Tampouco, a mulher que se encaminha para a “feminilidade normal” reage à castração se identificando com o pai e se tornando masculina, como no segundo perfil. Ao contrário, ela toma a mãe como modelo e o homem como objeto sexual. Semelhantemente à mulher inibida sexuTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 283 almente, a mulher desse terceiro perfil também substituirá o desejo por um pênis pelo desejo por um filho. No entanto, ela não renuncia a sua sexualidade em função disso (FREUD, 1933/1996). Toda essa digressão se faz relevante uma vez que as proposições em pauta permitem entender porque é menos dispendioso para a mulher substituir sua satisfação sexual por atividades de lazer, contatos com familiares e amigos, etc., o que não ocorre com igual facilidade no caso do homem. Sabe-se que nas prisões, por exemplo, é muito comum que, na ausência de mulheres, um grande número de homens tome a seus companheiros de detenção como parceiros sexuais. Isso evidencia que é muito mais complicado para o homem abdicar da satisfação sexual pelas chamadas “vias de fato”. No caso feminino, como vimos, a substituição é um elemento presente desde o início de seu desenvolvimento sexual. No entender de Freud, para que a “feminilidade normal” se estabeleça, são necessárias, no mínimo, três substituições. Em primeiro lugar, a substituição do objeto sexual: em vez da mãe, objeto original em virtude do cuidado materno, o pai. Concomitantemente, a mudança de zona erógena: do clitóris para a vagina e, posteriormente, a substituição do desejo de ter um pênis pelo desejo de ter um filho (FREUD, 1933/1996). Além disso, a ausência do pênis torna as vias de circulação da libido (que é como Freud denomina a força motriz da sexualidade) muito mais abertas para a mulher do que para o homem, pois nesse a libido está concentrada no órgão genital. É a partir dessa premissa que Freud explicará um aspecto bastante característico da feminilidade, a vaidade: Assim, atribuímos à feminilidade maior quantidade de narcisismo, que também afeta a escolha objetal da mulher, de modo que, para ela, ser amada é uma necessidade mais forte que amar. A inveja do pênis tem em parte, como efeito, também a vaidade física das mulheres, de vez que elas não podem fugir à necessidade de valorizar seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual (FREUD, 1933/1996, p. 131). Evidentemente, quando Freud utiliza o termo “inferioridade sexual” não está se referindo a um aspecto moral. O autor está apenas descrevendo como a castração é amiúde concebida na realidade psíquica da mulher. Vemos, portanto, que a ausência do pênis, faz com que a imagem do próprio corpo se afigure como um veículo ideal de descarga da libido, no caso das mulheres. Mas não só a imagem corporal. 284 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Freud, no artigo metapsicológico “Os Instintos e suas Vicissitudes” (FREUD, 1915/1996) cita outro possível destino de nossa sexualidade, além da satisfação com o próprio eu (narcisismo). Tal vicissitude designaria o uso da energia sexual (libido) para fins deveras distantes da sexualidade, mais particularmente para intenções relacionadas a realizações culturais. Ou seja, adotando tal “estratégia”, por assim dizer, o sujeito, em função da impossibilidade de descarga da libido pela via sexual, o faria através de empreendimentos de cunho cultural. Tais realizações não caracterizam apenas a criação de obras de arte ou a produção de um livro, por exemplo. Têm a ver muito mais com o uso da linguagem, na medida em que essa se constitui em condição sine qua non de existência da cultura. Assim, podem ser caracterizados exemplos de sublimação, visitar parentes e amigos, ir à igreja, fazer orações, ler, assistir TV, ir ao cinema ou ao shopping, etc., isto é, todas essas atividades que nossas entrevistadas alegaram praticar como saída para a solidão. O próprio contato telefônico com o parceiro no exterior não pode ser encarado apenas como uma conversa normal entre um casal. Muito mais do que em outras ocasiões, cada palavra dita nesse intercurso está carregada de libido que, não podendo ser “dissolvida” no corpo, se imiscui nos intervalos de cada significante pronunciado. Em alguns casos, como mostram os resultados, a libidinização da fala ocorre de forma bastante explícita como entre aquelas mulheres que fazem o chamado “sexo por telefone” com o parceiro. Tabela 4 Frequência e atitude diante da ocorrência do desejo sexual – 2007 TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 285 Embora vários autores afirmem que o emigrar é um projeto de família, há que se atentar para o fato de que grande parte das entrevistadas não concordou que o parceiro fosse para o exterior (38,1%) ou ficou em dúvidas da viabilidade do empreendimento e não deu opinião (11,7%). Mesmo não concordando com a partida do parceiro, as entrevistadas deixam transparecer que acabaram acatando a decisão por acreditar que seria um meio de dar um futuro melhor aos filhos, independentemente das situações adversas a que seriam submetidas. Inegavelmente, um significativo número dentre as entrevistadas foi solidário com a decisão do parceiro e o incentivou a emigrar (35,2%). A estas que viam a inserção no processo emigratório como positiva, somam-se as que acreditavam que a vida melhoraria (10,1%) e as que consideravam o emigrar do parceiro como uma possibilidade de se sentirem mais livres sem ter que romper com o relacionamento (4,9%) que já apresentava desgaste. É comum que, por ocasião da decisão de partir, o parceiro afirme ter interesse em levar a mulher com ele para o exterior. Num primeiro momento, diante do convite muitas das entrevistadas fizeram a escolha de permanecer no país. Entendem que tal escolha era a que mais poderia contribuir para o alcance dos objetivos que justificavam o envolvimento da família no processo. Pelo bem da melhoria das condições da família ou por motivos particulares, o viver esse distanciamento seria, num primeiro momento, a melhor opção. Os relatos abaixo atestam que a decisão de permanecer no País aguardando o retorno do parceiro era normalmente motivada pela preocupação com o bem-estar dos filhos. Segundo elas, as crianças não teriam com quem ficar e elas não gostariam de deixá-las com parentes ou outras pessoas. O relato de duas entrevistadas deixa a entender que deixar os filhos para trás seria praticamente impossível, apesar da insistência do parceiro. De alguma forma, entre a função materna e a função de companheira, sacrificar a segunda seria menos doloroso ou a decisão mais acertada: Pra eu estar indo depois, ele tem vontade (o marido), mas eu já desisti, porque de primeira a gente acha que vai ser fácil, tipo assim ele “tá indo a gente vai”, mas depois a gente fica pensando que os filhos ficam sozinhos, porque pra levar todo mundo já fica difícil (E. 41 anos). 286 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Tive vontade de ir várias vezes, depois eu desisti. Não fui porque eu mesma desisti. Meu marido apoiava, ele me ajudou muito a pensar, mas eu desisti por causa das meninas. Tenho quatro filhas (D. 36 anos). Teria coragem de ir, e me sentiria muito bem em estar lá. Mas eu não gosto muito da idéia de ir e deixar a família para traz (S. 28 anos). A decisão do parceiro de emigrar exige uma tomada de posição importante na vida dessas mulheres. Emigrar junto do marido, implicaria viver distante dos filhos e ter suspensa a função materna. Para elas, o sacrifício de tal função seria mais difícil de aceitar, por questões sociais ou pessoais. Em decorrência, era preferível abrir mão de emigrar para viver junto do parceiro no exterior a abrir mão de ficar junto dos filhos e aguardar o retorno do parceiro. Tal opção subtrai a presença da figura masculina da vida dessas mulheres. Apesar da ausência do parceiro, elas deveriam dar continuidade à vivência do “ser esposa” durante a permanência dele no exterior, embora por desejo ou ironia, não mais estariam cumprindo a função de mulher ou, pelo menos, de amante do parceiro. Na vida cotidiana das entrevistadas, a preocupação com o papel de mãe permanece mais presente na consciência dessas mulheres do que a preocupação com o papel de esposa, reduzido em decorrência da ausência do parceiro. Suas responsabilidades ficaram limitadas ao gerenciamento do lar, cuidado e educação dos filhos. Garantir o cumprimento dessa opção implica não mais pensar na possibilidade de unir-se ao parceiro no exterior deixando seus filhos para trás. Tal atitude é descrita na citação que se segue: Lacan (1974/1975) mostra que a mãe ocupar-se-á de seus filhos, em vez de gozar às custas deles, ao se oferecer como causa do desejo para um homem. Por não poder responder ao enigma do feminino, uma mulher pode tentar respondê-lo sendo A mãe. É a introdução da versão do pai que permitirá a limitação do gozo materno, pois a criança funciona como um condensador de gozo. É essa limitação ao gozo que assinala a transmissão da função paterna, da versão do pai, a père-version (LIMA, 2002). Esse comportamento é comum no que consiste o distanciamento conjugal e a não vivência afetiva e sexual com nenhum outro homem como nos mostra o estudo em questão, para a maioria das entrevistadas. A não presença tanto física quanto simbólica do parceiro deixa uma TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 287 lacuna na vida da mulher, permitindo, assim, que preencha esse vazio exercendo a função de mãe, entregando-se por completo a essa dedicação, deixando apagadas suas experiências de mulher. A não presença do pai permite ainda que a criança e mãe regridam para a primeira condição de relação mãe e filho, onde não existe uma terceira pessoa. Ainda na conferência sobre “Feminilidade” Freud faz uma reflexão sobre as relações da mulher com a maternidade. Para o autor, como vimos anteriormente, o nascimento de um filho significa, na realidade psíquica da mulher, uma compensação por sua falta de pênis. Por conta disso, pode-se entender a preferência das entrevistadas por permanecer no Brasil em função dos filhos não apenas do ponto de vista ingênuo que alegaria uma colocação em ato de um suposto “instinto materno”. Pode-se enxergar a situação sob outra ótica. Na medida em que, na realidade psíquica da mulher, o filho equivale ao pênis, logo preferir a distância do marido à distância dos filhos significa também um exercício de narcisismo, como se a mulher dissesse: “Agora que já me deste o que eu tanto desejava, a compensação por minha inferioridade sexual, já não preciso tanto de ti. Prefiro permanecer completa, ao lado de meus filhos/pênis do que ir contigo”. É justamente em função dessa nova dinâmica conjugal introduzida pelo nascimento dos filhos que Freud vai refletir sobre uma saída possível para a manutenção do equilíbrio entre o casal, o que, em outras palavras, implica na superação da inveja do marido pela atenção maior dispensada pela mulher aos filhos. A solução, para Freud, é que o próprio marido se converta também em filho! Nas palavras do psicanalista: Uma mãe pode transferir para seu filho aquela ambição que teve de suprimir em si mesma, e dele esperar a satisfação de tudo aquilo que nela restou do seu complexo de masculinidade. Um casamento não se torna seguro enquanto a esposa não conseguir tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele como mãe (FREUD, 1933/1996, p. 133). A vivência em torno do processo emigratório gerou significativas mudanças no modo como tais mulheres passaram a perceber a participação nesse empreendimento. A partir da experiência, a maioria (79,0%) passou a considerar que o melhor é que o parceiro permaneça no País, entendendo que o mais importante é que o casal esteja junto nos bons e maus momentos. 288 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Por ocasião das entrevistas, a maioria das mulheres aguardava o retorno do parceiro. O percentual daquelas que confiam no sucesso financeiro, mesmo aceitando que ele ainda demore algum tempo para retornar (49,0%), não é muito distante daquelas que preferem tê-lo perto do que se preocupar em ganhar dinheiro trabalhando no exterior (39,7%), somadas àquelas que gostariam que eles as ouvissem e voltassem para casa (7,3%). Tabela 5 Desejo de emigrar, prioridade conjugal e sentimentos gerados pelo distanciamento - 2007 O grande tempo de distanciamento demonstra que a percepção dessas mulheres mudou de acordo com fatos e acontecimentos singulares e particulares do relacionamento e da vida de cada uma delas. A idéia sobre emigração traz para essas mulheres sentimentos e pensamentos que as remetem a lembranças tristes e aspectos ligados principalmente ao enfraquecimento das relações familiares, que, segundo elas, é a área mais atingida e prejudicada pelo processo emigratório. Percebe-se uma mudança de axioma: se antes se pensava positivamente na emigração como uma forma de obtenção de bens materiais e melhoria da qualidade de vida familiar, atualmente o processo é percebido como vilão, tornando-se a presença e a co-habitação contínua dos parceiros, valores prioritários a serem resguardados pela família. Isto pode ser constatado através de fragmentos do discurso das entrevistadas. Ah tem que ser muito forte pra resistir, se não for não consegue manter a estrutura de constituir uma família sozinha não. Se a pessoa não tiver assim cabeça e não pensar bem no que é que TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 289 faz então é melhor não ir não. Eu acho que sinceramente todo mundo sente né, muito difícil, agente gostar e saber que um tá tão longe do outro é complicado (D., 36 anos). Tenho muita tristeza, tenho agonia, só de pensar que a pessoa vai, tudo bem que é pra melhoria de vida, mas que é muito triste é, que a pessoa ta deixado tudo pra trás, pra tentar outra vida, e chega lá você não sabe se vai dar certo, nem tanto a vida que ele deixou aqui, e nem a vida que ele deixou lá, então é muito complicado (A., 24 anos). Eu fico mal, vou te falar a verdade, não me passa nada bom, eu fico com aquele sentimento de um vazio, aquela coisa ruim dentro de mim (E., 30 anos). Eu tenho pena, porque você separar um casal, um pai da família é muito triste né. A pessoa que é amorosa sente demais da conta. Não é fácil você largar tudo pra trás e ir pra um país estranho, casal novinho é pior quando a pessoa já ta mais velha ainda pensa melhor, mas novinho não deve resistir não (S., 51 anos). Conclusão Tomando como referência o relato das entrevistadas, a participação do parceiro no processo emigratório gera prejuízos emocionais e familiares, impactando negativamente sobre as possibilidades de continuidade do relacionamento conjugal. A decisão de emigrar em busca de oportunidades que favorecessem a melhoria financeira da família acarreta mudanças significativas na vida da mulher. Estas se tornam diferentes em relação ao que eram antes de participarem do processo, tanto as que aguardam o retorno do parceiro, quanto as que, em função de novos acontecimentos, não vivem mais tal expectativa. O isolamento social e sexual se torna parte do cotidiano de mulheres de emigrados, sobretudo no intuito de se evitar uma série de fatores, tais como ciúmes do parceiro, vigilância familiar e social e o controle da moral da mulher por parte das famílias. No processo de preservação do casal, cria-se para a mulher do emigrado uma sensação constante de estar sendo fiscalizada e inspecionada. Sensação esta que, mesmo apoiada pelas famílias, torna-a cada vez mais refém de sua própria solidão. À luz da teoria freudiana, no entanto, não se pode atribuir apenas à vigilância familiar e social as limitações sofridas por tais mulheres no tocante às suas atividades sociais. Há um elemento muito próprio da 290 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO condição feminina que é, como vimos, uma maior resiliência para a adaptação a situações em que o parceiro está ausente. O desenvolvimento psicossexual feminino evidencia que a mulher já está, por assim dizer, “acostumada” a fazer concessões em sua vida sexual e a substituir suas expectativas originais. Isso, evidentemente, não justifica e torna aceitável o olhar perscrutador dos familiares e vizinhos. No entanto, é preciso assinalar a ressalva de que é muito mais fácil para uma mulher viver sob tais condições do que um homem, cuja sexualidade não se presta à mesma capacidade metamorfótica que a da mulher. Apesar da sobrecarga de responsabilidades, da angústia da distância, das saudades que ora se tornam mais presentes, da sexualidade não vivenciada, o relacionamento persiste graças ao que Orwell (1984:36) chamou de “duplipensar”. De fato, essas mulheres são capazes de “esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois tornar a esquecê-lo”. No próprio dizer das entrevistadas, “quando ele viaja não sinto que tô casada, mesmo sem pôr o pé na rua. Casamento é casal junto”. O isolamento social vivenciado pela mulher do emigrado e os impactos dele decorrentes não são opções, mas efeitos colaterais da escolha por uma solução para dificuldades financeiras enfrentadas pela família. São efeitos colaterais, por serem consequências negativas resultantes de uma opção de distanciamento que, a princípio, seria a solução para os problemas da família. A importância de se investigar tais efeitos deletérios da emigração na vida das parceiras de emigrantes reside, para-além da ciência, no fornecimento de dados para que possa ser possível a criação de redes de apoio social e psicológico não só para as mulheres como também para seus filhos. Como os resultados mostraram, muitas mulheres podem não deter os recursos necessários para vivenciar de forma saudável o distanciamento do marido, podendo apresentar quadros mais graves de transtorno psicológico. Com efeito, só conhecendo tal realidade, será possível a formulação de estratégias específicas de atenção a esse grupo de pessoas. Do ponto de vista da continuidade da pesquisa científica, os resultados e conclusões do presente estudo estimulam a elaboração de outras pesquisas que, para fins comparativos, poderiam investigar como se dá a experiência de distanciamento conjugal entre os homens que emigraram, isto é, o que pensam sobre a experiência de emigrar, quais TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 291 estratégias adotam para lidar com a solidão e a saudade da parceira e dos filhos etc. Tais estudos se fazem necessários com vistas a demonstrar que o processo emigratório afeta emocionalmente não apenas aqueles que permanecem no país, mas também os que aderiram à aventura de fazer a América, a Europa, o mundo... Bibliografia ALMEIDA, Agnes Rocha de; MACHADO, Ana Paula de Freitas Mendonça; DIAS, Carlos Alberto; BOECHAT, Clarisse Souza. Impactos do isolamento conjugal sobre a sexualidade da mulher do emigrado. In: Anais do XIII Seminário Sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: UFMG/ Cedeplar, 2008. p. 01-10. 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TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 293 294 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Política Linguística no Brasil: para ser o que é Nádia D. F. Biavati1 Introdução s eventos históricos caracterizam a formação do Português Brasileiro, refletindo na consolidação do idioma ressignificado no Brasil. Como parte de um conjunto de elementos na formação de uma nação, a língua, no território brasileiro, orienta-se a partir de uma memória que se reinventa, distinguindo-se do olhar, dos valores e das práticas do colonizador. Um dos aspectos significativos dessa reinvenção se relaciona à política linguística do país em seu aporte histórico. O Entendo Política Linguística como um conjunto de acontecimentos, de atitudes e de práticas oficiais e não oficiais emanadas do Estado e do povo, o que indica uma jurisprudência provocada ou não sobre o idioma. Além disso, constitui e interpela o povo e os governantes sobre a língua, nesse caso, o Português do Brasil. A ideia é que o idioma se configura a partir de definições – algumas provenientes de uma relação cotidiana entre os falantes, na interação; outras concentradas em práticas originadas do governo local ou pelo mando do colonizador no território brasileiro, seja no início da colonização, no império ou na república. Dessa forma, percebe-se um mosaico de valores, crenças e práticas o qual cerca o idioma, influenciando a forma como ele se consolida ao longo do movimento sócio-histórico desse lado do Atlântico. Nessa perspectiva, existem representações sobre o dizer, a regra e o fato (uso), e outros elementos de gramatização, os quais indicam caminhos para que a língua portuguesa se “redesenhe” no Brasil e constituase por um conjunto de valores que, até certo ponto, seriam incompatíveis entre si. Em um estudo teórico-discursivo sobre o idioma brasileiro, baseado na História das Ideias Linguísticas e na Historiografia Linguística no país, destacam-se, a seguir, eventos que refletem a preocupação, no 1 Doutora em Linguística pela UFMG. Professora do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território da Universidade Vale do Rio Doce. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 295 território simbólico brasileiro2, entre dois caminhos: a persistência no acompanhar as tendências de uma política linguística de Portugal e a consolidação do idioma ressignificado no território brasileiro, a partir de suas especificidades. Embora o senso-comum retrate a consolidação de um idioma único no país, sabe-se de uma implantação do português cercada de eventos que, de forma pacífica ou conflituosa, interferem no curso da língua e indicam reflexos de valores do colonizador para a nação brasileira. Ou seja, ao contrário do que em muitos momentos é enunciado, houve uma intervenção significativa do colonizador, às vezes, por força de leis, para a constituição do Português no Brasil. Faz-se interessante expor, através de um estudo teórico sobre a gramatização no país, alguns aspectos importantes sobre a entrada do idioma do colonizador, bem como o papel do docente nas relações sociais, ao se encarregar de aulas do idioma da colonização. Ainda que o professor tolere, por vezes, as entradas de outros elementos lexicais, sintáticos e semânticos dos portugueses e de outros povos que chegam e estão no país, cabe a ele difundir o idioma, ao modo brasileiro, ajudando a consolidar o território simbólico da língua. Considerações teórico-metodológicas Para investigar com o olhar crítico a consolidação do Português no território brasileiro, consideram-se importantes duas abordagens temáticas: a história das ideias linguísticas e a historiografia lingüística. Ambas explicam e ajudam a compreender algumas práticas discursivas, responsáveis por ações e por eventos que influenciaram na efetivação da língua Portuguesa no Brasil. Ratifica-se, nesse sentido, que o conceito de território se postula como aquele constituído de elementos de uma exterioridade que se dá a partir de relações simbólicas, as quais cercam a língua. Raffestin (1993: 53) trabalha com essa acepção, revelando a manifestação espacial do poder fundamentada em relações sociais. Tais relações ocor2 Entendo território como conjunto de valores que, a partir das relações de poder,consolidam a construção simbólica da nação em seu próprio aporte, ainda que sob as influências dos mecanismos de colonização, com a entrada da língua, da cultura, de valores e práticas de Portugal e em menor influência elementos de outros países. 296 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO rem a partir de uma apropriação do idioma colonizador, no sentido de se apoderar desse idioma e de “torná-lo apropriado” às condições socioculturais brasileiras. Isso significa que o Português brasileiro se fixa como fato e regra no território simbólico de uso do Português Brasileiro. Em Minas Gerais e em Governador Valadares, por exemplo, há a presença do idioma ressignificado nas condições brasileiras, ainda que existam condições de migração, da fala de quem vai e volta do exterior, como “cidadão global”. Há, portanto, um conjunto de relações simbólicas permeado por um poder que impõe a língua do colonizador e tolera, até certo ponto, inserções linguísticas de outros modos. Dessa forma, entende-se que território se constitui simbolicamente por atitudes de aceitação e imposição, não só fundamentadas geograficamente, mas também por dualidades de apropriação e de imposição de práticas. Seguindo essa dualidade, existem a expressão e a normatização de uma língua sob o viés histórico, descontínuo e sucessivo (BASTOS; PALMA, 2004), com formas que o saber linguístico tomou no Brasil, na relação com o sujeito, a língua, as línguas e o saber sobre as línguas ao longo da história brasileira (ORLANDI, 2000: 21). Para a História das Ideias Linguísticas, a Análise de Discurso3 é importante, pois permite “pôr em relação diferentes ordens de discurso: a do saber ‘sobre’ a língua e a do saber ‘a’ língua” (ORLANDI, 2000: 20). Nesse viés, muitas das manifestações, das atitudes e dos valores do chamado professor-mosaico4 se explicam por um conjunto de elementos disseminado sobre a língua e o “saber-a-língua” na história – elementos que devem ser avaliados criticamente. Assim, tanto o “saber” a língua quanto o saber “sobre” a língua resgatam aspectos que, ao longo do processo histórico, instauram ou efetivam uma memória discursiva sobre o “dar aulas de Português” no Brasil, seguindo as características do “apropriar-se” de um modelo e de torná-lo apropriado (reinventado) – adaptando ou seguindo adaptações do idioma de acordo com as influências na construção do Português Brasileiro. A seguir, concentra-se o olhar sobre pontos na história que marcam, de 3 Para o momento, considero Análise de Discurso e Análise do Discurso como sinônimas. 4 O conceito de professor-mosaico se desenvolve a partir da definição de que o professor se mostra uma identidade cujas práticas seriam bricolagens de valores e crenças até certo ponto incompatíveis entre si (BIAVATI, 2009). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 297 alguma forma, as relações que configuram o caminho dos falantes, o que é observado pelo professor, influenciando sua prática. Memória discursiva e historicidade: saberes que atravessam o fazer do professor de Português Ainda que se considere a história da língua de forma linear, a diferença entre as posições mencionadas acima passa despercebida; entretanto, não há como negar a importância de se tomar a história da língua e a dos sujeitos que a ensinam como discursos, caracterizados como versões. Ao se voltar à década de 1980, indica-se a importância do movimento denominado “revolução historiográfica” e do olhar de Foucault sobre “a descontinuidade”. Nesse movimento, a ideia de História Tradicional é desconstruída, já que, vista sob o viés linear, ela é “uma forma de proteger a soberania do sujeito”. Com o olhar de analista do discurso, Foucault propõe a relevância de se perceber a dispersão e a descontinuidade para problematizar os eventos da História. No mesmo movimento, a Nova História propõe uma história-para, indicando que os documentos são monumentos, na medida em que é criado um “efeito de realidade” a partir do relato histórico. Nesse ponto, a fase genealógica de Foucault é especialmente importante, já que existe o propósito metodológico de tematizar a discursividade que cerca o fato histórico. Desse modo, a compreensão dos fatos de uma forma não linear, em que há uma discursividade permeando a gramatização, no país, é crucial, uma vez que existe uma memória discursiva importante. Entende-se por memória discursiva um conjunto de formações discursivas que se constituem pelos deslocamentos de sentidos, que se fazem, no caso, “entre o Português e o Português brasileiro”, os quais alimentam a institucionalização das ideias linguísticas sobre Português brasileiro e a maneira fragmentada como essas povoam o imaginário dos professores, influenciando seus valores e suas práticas ao ensinar “Português”. Mencionar o processo de consolidação do idioma brasileiro condiz com o que se descreve sobre a seleção de elementos os quais compõem a historicidade que atravessa o ensino, trazendo implicações e efeitos. Há, portanto, uma discursividade entrelaçada nesses conceitos, compondo os “arquivos” que regem o ser/fazer dar aulas de Português. 298 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Em relação a isso, entende-se “arquivo” no sentido foucaultiano, como sendo gestos de interpretação que se fazem pelos sentidos-para, sobre os movimentos constituintes da memória coletiva da profissão “professor de Português”, o que merece atenção. Na confluência entre os estudos foucaultianos e pecheutianos, há de se considerar a importância da “escuta dos saberes dominados” e “da história não linear” da discursividade. Por isso, a relevância dos autores, pois tanto o projeto de Pêcheux quanto o de Foucault caminham para descortinar relações existentes e não aparentes (naturalizadas) entre proposições e saberes que regem a profissão do professor-mosaico. A exterioridade na constituição do professor de Português Compreende-se exterioridade como um conjunto de fatores que orientam as práticas e os valores do professor. São eles que influenciam seu conjunto de decisões, de dizer e o seu fazer na profissão. A fim de investigar a identidade profissional do docente, faz-se necessário desvendar os conflitos por que passam as concepções ou os saberes norteadores da sua formação. Nesse contexto, a política linguística aparece como determinante interdiscursivo às representações que cercam o universo do professor de Português, influenciando a forma de compreensão dos valores defendidos em sua prática. É relevante destacar que as ideologias interpelam a consolidação do idioma pelo viés histórico, em que se configuram dicionários, modos de dar aulas e valores a serem defendidos ao se ensinar o idioma. Na verdade, apresentam-se, a seguir, aspectos marcantes de “arquivos”5 que constituem a memória, cujos caminhos são percorridos através de discursos disponíveis sobre os saberes metalinguísticos que norteiam o professor-mosaico no ensino de Língua Portuguesa. Nesse ínterim, é interessante frisar que, no ensino, o mercado editorial e o Estado definem valores e influenciam professores, ao defender determinadas filiações teóricas. Os docentes, por sua vez, influem na maneira como o Estado vê o ensino, nas obras publicadas e nos valores a serem defendidos na formação do aluno em língua materna. 5 A noção de arquivo é discutida por Pêcheux e Foucault e revela os gestos de interpretação percebidos através da escuta de sentidos. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 299 Entre os aspectos significativos que afetam a formação e a prática do professor de Português, destaca-se o que Orlandi (1990; 2002) chama de política linguística no país. A respeito do caso brasileiro, a autora (2002: 76) observa que a língua é um lugar “politicamente significado da articulação da ciência com a religião e o poder”. Entendo política linguística como um conjunto de ações e decisões linguísticas formais ou informais sobre o tratamento (estatal ou não estatal, oficial ou não oficial) da língua e dos objetos linguísticos. Segundo Fiorin (2002: 108), trata-se de uma escolha explícita entre as alternativas dos níveis de utilização para caracterizar os usos oficiais ou públicos da língua. A política linguística constitui e é constituída por ideias e por valores que traçam a relação do ensino com norma e gramática e com o processo de letramento, estabelecendo rumos para a convergência disso na prática social, com o Estado, com a sociedade e com as escolas. Ainda que, atualmente, regiões como o Vale do Rio Doce/MG detenham, por décadas, as influências das condições de migração de chegada e saída de brasileiros para o espaço estrangeiro, a interação lingüística acontecerá em Português Brasileiro, levando-se em conta a historicidade dessa língua no espaço brasileiro, já consolidado por gerações, com suas características. Nesse sentido, acredito que o professor de língua materna é o maior veículo institucional da política linguística em um país. No caso do Brasil, que historicamente traz as marcas históricas de séculos da colonização e carrega as fortes marcas da colonização na língua, essa situação não é diferente. 2.2 A formação do Estado brasileiro e a língua nacional: “nós e eles” Assume-se que o modelo brasileiro de língua nacional se reinventa e, conforme Orlandi (2001:13), mostra-se peculiar, porque houve o que a autora descreve como formação da língua nacional antes da efetivação do Estado brasileiro independente de Portugal. Desde o fim do século XVI, a língua falada no Brasil já não era mais a mesma que se falava no território português e, com a independência, apresentou-se a questão da língua nacional, embora as variações já existissem e fossem consideradas invisíveis para o domínio político. Orlandi e Guimarães (2001), no livro História das Ideias Linguísticas, resultado de estudos desenvolvidos no Grupo de Estudos sobre a 300 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO História das Ideias Linguísticas no Brasil, observam que as ideias linguísticas no país se constroem em dois eixos: • De um lado, no fato de que há condições determinadas em que se inscreve a constituição da língua nacional; • De outro, no fato de que o saber metalinguístico se inscreve em um jogo complexo entre o papel legislador do Estado e o papel regulador da instrução gramatical. O processo de colonização pode ser compreendido tanto a partir do olhar do colonizado quanto do colonizador, mas com um ponto comum, que é o da percepção de que existe a reinvenção e a ressignificação de práticas na chamada política de sentidos organizada a partir da língua de metrópole. Para Orlandi (2001), o projeto de gramática, no Brasil, articula-se ao projeto de organização da nação brasileira. Essa política de sentidos envolve dois momentos significativos: em um deles, as gramáticas são elementos de relação entre portugueses e brasileiros; no outro, entre brasileiros e brasileiros. Chama atenção o fato de que, em uma encruzilhada, os valores da gramática portuguesa ou gramática brasileira se fazem por deslocamentos: • Deslocamentos do constituir-se como prolongamento das regras de uma gramática lusitana, que reivindica a “lei”. • Deslocamentos do idioma constituindo-se um conjunto de elementos como recorrência do fazer linguístico por uma gramática brasileira, com o Português ressignificado. Ideologicamente, esses deslocamentos representam dois caminhos que se fazem paralelamente ou se chocam em uma formação do mosaico: pensar e pesar a regulação (a regra) e a regularidade (o fato linguístico) no uso. 2.3 Os eventos históricos constituindo eventos discursivos A efetivação do idioma, no Brasil, acontece a partir de aspectos históricos que marcam a política linguística brasileira. Os aspectos históricos, em relação ao dizer, fazem-se também como eventos discursivos, uma vez que as relações linguísticas constituem as relações sociais. Nesse viés, os eventos históricos marcam a relação entre portugueses e brasileiros na constituição do idioma. Já a relação dos portugueses com TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 301 a sua língua, no início da colonização, é marcada por uma política guardiã da identidade portuguesa. No que diz respeito aos instrumentos que potencializam essa política, vale lembrar que o ensino de língua portuguesa, nessa época, vem de uma tradição baseada no modelo eclesiástico, de observância aos preceitos da fé, e no modelo latinista, ao lado dos valores de “apego ao espírito, acima dos desejos mundanos” (CASAGRANDE, 2004: 32-33). Na verdade, como um conjunto de eventos discursivos pautados na tradição, o modelo latinista se faz a partir de deslizamentos de sentidos: valores de uma língua “melhor” em detrimento de uma “pior”, uma língua já consolidada, “perto dos valores de Deus”, em vez de uma língua ressignificada. Casagrande (2004) destaca que ainda há uma mentalidade medieval na produção lusitana do século XII ao século XV, com a tendência teocêntrica no tratamento das questões relativas à cultura. Existem registros, coletados por essa autora, de professores avulsos (profissionais não ligados ao sacerdócio), com formação baseada na tradição da época, que ministravam as primeiras letras em Évora, no ano de 1439. Também existem relatos da não valorização do profissional, inclusive com negociação para baixar o pagamento desses professores laicos. Casagrande (2004: 39) enxerga a coroa portuguesa, no século XVI, como usufrutuária da condição de “conquistadora” de novos domínios. Há, portanto, um papel semelhante ao que foi reservado aos romanos, na condição de dominadores, ao disseminar o uso da língua latina. A política linguística, na época da colonização, com as chamadas grandes navegações, marca reflexos dos “preceitos de dominação por meio da imposição da língua do dominador” (CASAGRANDE, 2004: 43). Já o sucesso nas navegações, com a descoberta de novas terras para a exploração, garante forças ao império português em uma ação que atinge a todos os povos os quais “conquistam” territórios: o direito de sustentar, como demonstração de forças no domínio, a valorização da língua dominadora — a lusitana, no caso — em seu caráter social, cultural e político, papel que equivale à condição de tratamento do latim até então. Assim, o caráter normativo se constitui uma forma de ideologia que interpela os colonizadores no tratamento da língua como objeto de ensino: é a “língua boa”, pois é a língua dos mais fortes e ousados. Vale lembrar que, na época da colonização, segundo Mariani (2004: 26), consolidam-se documentos normativos escritos organiza302 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO dos em Portugal. As gramáticas de Fernão de Oliveira e de João de Barros se tornam fontes importantes no tratamento da língua. Em estudo sobre a gramática de Fernão de Oliveira, Casagrande (2004: 38) afirma que esse compêndio sistematiza as regras da língua portuguesa, mesmo que nele seja perceptível uma volta constante aos clássicos do latim. Além disso, indica categorias para efetivação de um saber linguístico a ser ensinado e apreendido; descreve o interesse pela imposição do Português como forma de proporcionar a língua “aos gentios”; e salienta e sustenta a argumentação de que “aos conquistados” cabe aprender e “aprimorar” o idioma. Na essência dessa gramática, símbolo de afirmação de identidade, o Português é tratado por Fernão como uma língua que não se deve curvar às outras, devido o tratamento reivindicado ao colonizador. Portanto, nem sempre as mudanças são bem-vistas, pois, ao assumir empréstimos, a língua poderia se corromper, destituindo-se “de sua identidade primeira”. A forma de política linguística defendida por Fernão se torna inviável no que diz respeito ao tratamento de uma língua que chega a um espaço em que já existem centenas de outras em plena atividade. Remetendo-se aos aspectos históricos que marcam a formação da língua e do Estado brasileiro pós-chegada dos portugueses, Orlandi e Guimarães (2001: 22-30) relatam as condições do funcionamento dessa língua, refletindo sobre momentos nos quais essa história pode ser problematizada. Segue-se a separação cronológica sugerida pelos autores. Aos cinco momentos são acrescentados fatos importantes que influenciaram, de alguma forma, a consolidação da língua no espaço nacional, constituindo eventos da política lingüística brasileira e trazendo reflexos ao ensino no país. Primeiro momento (início da colonização até 1654 - expulsão dos holandeses): A língua portuguesa é falada pelos senhores de engenho, funcionários da coroa. Entre a população, fala-se a língua geral (franca). A esse respeito, há um contexto em que, segundo Teyssier (2001: 94), os colonos fazem uso do Português com traços específicos que vão se acentuando com o tempo. Assim, a língua geral é um tupi simplificado, gramaticalizado pelos jesuítas. É o nheengatu, nas palavras de Dias (1996). Já na visão de Mariani (2004: 22), a língua é o tupi jesuítico, resultado da transformação do tupinambá falado na costa brasileira para fins catequéTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 303 ticos. Por um lado, a gramatização do tupi, no sentido de torná-lo forma de comunicação sistematizada, proporcionou o ensino e a escrita e, em última instância, o avanço da evangelização. Por outro, o não controle da língua tornou-se inibidor da colonização nos moldes como queria Portugal, nesse momento, pois o Português e o Tupi conviveram lado a lado como língua de comunicação. Nesse contexto, uma política linguística (não oficial) de silenciamento das línguas do colonizado se faz presente. A visibilidade então recai sobre a língua do colonizador, em um processo que Mariani (2004: 31) qualifica como uma “pressuposta hierarquização linguística” em curso, nas relações entre colonizador e colonizado. Cunha (1985: 75) relata que “não havia espaço para o ensino do vernáculo”. Ressaltam-se, dessa forma, movimentos de significação da língua para o colonizado, os quais revelam uma prática discursiva de resistência dos índios à chamada “conquista” ou “dominação” linguística. Mariani (2004: 32), novamente, relata episódios em que o índio simula um aprendizado: “[os índios]... fingem que aprendem a língua ou aprendem para discutir com comerciantes ou para refutar a legislação que se estabelece a seu respeito; aprendem a língua portuguesa e mentem valendo-se dessa mesma língua”. Nos documentos oficiais, percebe-se a prevalência do Português, que é ensinado aos brancos nas escolas católicas. Entretanto e, apesar das gramáticas lusitanas que começam a surgir, seguir o modelo educacional da época indicava a aprendizagem do6 latim e através do latim, segundo relata Soares (2002:158-159). O espaço de comunicação entre colonizado e colonizador se faz por uma oralidade em que as duas memórias discursivas se modificam em função da condição dos povos e das línguas nesse espaço – o brasileiro. Segundo momento (1654-1808): Aumenta o número de negros no Brasil e chegam mais portugueses de diferentes regiões de Portugal, o que faz com que as variedades de uso do Português se efetivem também no espaço brasileiro. Dias (1996: 11) relata que João de Barros, em sua obra Diálogo em louvor da nossa linguagem, ainda no século XVI, pregava junto à corte portuguesa a necessidade de uma política da língua nas colônias. Entretanto, só a partir do século XVIII, passa-se a ter um interesse pela situação linguística, que se concretizou com a carta régia de 12 de setembro de 1727. Nela, determina-se que os jesuítas ensinem a 6 Grifos da autora. 304 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO língua portuguesa aos índios. Com a descoberta de ouro, aumenta o interesse pela colônia brasileira. Assim, em 1757, implanta-se a legislação sobre a língua, com o decreto do Marquês de Pombal. Nesse momento, é oficialmente implantado e imposto o ensino de Português nas escolas do Brasil. Pelo decreto ocorre também proibição do ensino de línguas indígenas nas escolas dos jesuítas, o que reforça o ensino de Português (esse fato marca o processo de regulação linguística no país). Teyssier (2001) relata que a língua dos índios prevalece nos espaços privados, enquanto o Português é a língua dos espaços públicos, aquela que os meninos vão aprender na escola. Outro fato interessante marca a questão do ensino nessa época: a expulsão dos jesuítas em 1759. Conforme Teyssier (2001: 95), “a expulsão dos jesuítas, em 1759, afastava da colônia os principais protetores da língua geral”, o que significou uma reestruturação do sistema escolar. Por fim, a institucionalização do ato político-jurídico denominado Diretório dos Índios oficializa, em 1759, de modo impositivo, que apenas a língua portuguesa deveria ser falada (MARIANI, 2004: 33). Passa-se, então, ao silenciamento da língua geral e de seus falantes, a partir da caracterização da mesma como “invenção diabólica”. Nos 50 anos seguintes, a língua geral seria eliminada como língua comum, restando preferencialmente, no nível do léxico, vocábulos integrados ao Português. Põe-se em curso uma nova organização escolar, baseada no esforço do uso incondicional da língua portuguesa. Terceiro momento (1808-1826): A vinda da família real provoca o fortalecimento do Português como língua nacional e o projeto de língua portuguesa como língua oficial. É a época da criação da imprensa no Brasil e da fundação da Biblioteca Nacional, consolidando o processo de gramatização no país. Com a família real na colônia, ocorre o que Teyssier (2001: 96) chamou de relusitanização do Rio de Janeiro, então capital da coroa. Franco (2004: 95) relata que, nessa época, houve poucos estudos gramaticais formalizados, a exemplo do Breve Compendio da Grammatica Portugueza, tratado gramatical escrito por Frei Caneca entre 1817 e 1819, que só viria a ser publicado no quartel final do século XIX. No período compreendido entre 1808 e 1821, o país vive a condição de colônia administrada por D. João VI, e, após, por D. Pedro I. Tanto um quanto outro possuía interesse nas realizações culturais no país, seguindo o modelo europeu. Já na Constituição de 1824 (art. 179), propunha-se instrução primária gratuita a todos. No entanto, o sistema TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 305 não se organizava para dar conta dessa realidade. Também não havia pessoal preparado para o magistério: as aulas de Português, segundo Franco (2004: 98), negavam a língua falada no país e privilegiavam, sobretudo, o padrão de Portugal como base para o ensino. Quarto momento (1826): Consoante Dias (1996), nesse momento, propõe-se uma discussão linguística com a sugestão de que os diplomas fossem redigidos em “linguagem brasileira”. Para esse autor, a língua nacional ganha sentidos que se constituem em dois eixos enunciativos: o da língua “brasileira” com identidade a ser valorizada e o da língua “brasileira” como “idioma corrompido”. Usa-se a terminologia “língua nacional” e determina-se em lei que professores devem ensinar a ler e a escrever utilizando a dita língua. Em 1837, funda-se o Colégio Pedro II, instituição que, nas palavras de Orlandi (2001) e de Franco (2004), tornar-se-ia, ainda no século XIX, modelo para o ensino de Língua Portuguesa, mostrando-se também poderoso auxiliar no processo de gramatização no país. Nesse entremeio, registra-se que profissionais do ensino ora confirmam, ora resistem aos preceitos e iniciativas das lideranças político-educacionais (FRANCO, 2004). Quinto momento (final do século XIX, início do século XX): Há nova onda de migração para o Brasil, principalmente a partir do último quartel do século XIX, o que, mais uma vez, traz à tona a relação língua(s) interna(s) e língua externa, garantindo movimento de hibridização no contato entre os falares. Teyssier (2001: 97) relata que, mais tarde, sobretudo durante o período de 1870-1950, ocorre a migração europeia para cá, partindo de uma iniciativa do aparelho estatal, contribuindo para “branquear” o Brasil contemporâneo e trazendo valores europeizantes ao Estado brasileiro. Payer (2001: 235), na mesma perspectiva, relata eventos de interdição da prática da língua de imigrantes na década de 1930, com uma legislação que implantou oficialmente o Português como língua nacional nas áreas de colonização estrangeira. Há relatos de política de nacionalização das comunidades migrantes, com professores para ensinar Português. Da mesma forma, existe preocupação com a unidade nacional, por meio de uma “política de integração”: a “nação” se efetivaria com a língua como “instrumento de soberania nacional”, em uma unidade prevalecendo na diversidade. Uma política para o ensino se delineia a partir da Nomenclatura Gramatical Brasileira na segunda metade do século XX: os preceitos da classificação 306 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO são seguidos nos instrumentos de gramatização desde então. Acentuase uma preocupação a partir daí, com a ordem do classificar, estruturar “a língua” no ensino de Língua Materna. A questão da língua como espaço de comunicação, que Teyssier (2001: 99) relata, diz respeito ao povoamento inicial no Brasil, com a elaboração de “uma koiné por eliminação de todos os modos marcados dos falares portugueses do Norte e por generalização das maneiras não marcadas7 do Centro-Sul” de Portugal. Esse é o primeiro reflexo das situações discursivas em que há o apagamento relativo das línguas do espaço dominado. Além disso, há a inserção de elementos linguísticos ou mesmo discursivos de outros povos que vieram para cá. Portanto, fica clara a existência de um trabalho de reinvenção da língua no espaço brasileiro, que produz efeitos de sentido de unidade ora próxima, ora afastada do colonizador. Percebe-se, pelo breve recorte das informações acima, que, conforme afirmam Orlandi e Guimarães (2001: 33), o processo de efetivação do Português brasileiro é circunscrito na diferença observada entre transporte e transferência da língua. Em um país de modelo colonizado, mostra-se um esforço para que a língua se consolide como reflexo de um deslocamento da língua do colonizador para o espaço colonizado. Para os autores, no Brasil, não existe simplesmente o transporte de processos; tais processos de significação se inscrevem na história e negam a simples cristalização de situações discursivas e de sentidos. Isso significa que a construção simbólica do território linguístico brasileiro se faz pelo idioma reinventado, seguindo a política linguística do país. Ao mesmo tempo em que o processo de gramatização se fundamenta nos valores do colonizador, evidenciam-se eventos discursivos que salientam a consolidação do idioma nas condições brasileiras. Reforça-se essa afirmativa com o fato de, no Brasil, ter havido o processo de transferência de língua, marcado por um trabalho de consolidação de memória local e do saber discursivo que produz sentidos. A desterritorialização do Português se faz por diferentes situações enunciativas, pois existe a historicização da língua, que se consolida de diferentes formas no espaço colonizado, refletindo, ainda hoje, elementos diferentes do uso lusitano – com a entrada de vários elemen7 Grifos do autor. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 307 tos léxicos de origem diferente; a consolidação de elementos sintáticos típicos, como o uso da dupla negação; e um sistema pronominal que se solidifica à moda brasileira. Por isso, o funcionamento discursivo se sobrepõe às regras formais de regulação da língua desde quando havia simplesmente um espaço colonizado. Na percepção de que há uma realidade própria da língua no espaço brasileiro, a expressão “língua nacional” é posta em questão, a partir do processo de gramatização brasileiro, iniciado na segunda metade do século XIX. Para Auroux (1992: 65), gramatização é “o processo que conduz a descrever uma língua na base de duas tecnologias ainda consideradas os pilares do nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário”. Para Orlandi (2002), o processo de gramatização consiste no estabelecimento de uma gramática própria da língua. No caso brasileiro, esse processo só se inicia no século XIX, época também da independência do estado brasileiro. Para a autora (2002, p. 163), a gramatização resulta na construção de instrumentos linguísticos, tais como gramáticas normativas e dicionários. Em conformidade com Guimarães e Orlandi (2001), a gramatização apresenta duas facetas: uma é a de universalização, que consiste na ideia de unidade imaginária, da língua colonizada, instrumentalizada a partir da cultura ocidental; outra, diz respeito a deslocamentos, que pressupõem a influência de outras línguas, de variedades. Há, portanto, um processo de ambivalência de unificação no Português brasileiro. Teyssier (2001), filólogo francês, em 1980, na História da língua portuguesa, obra traduzida por Celso Cunha, admite a consolidação de uma norma brasileira elaborada “nas camadas socioculturais superiores”. Citando Ortega y Gasset, também Celso Cunha (1964), em plena ditadura, observa que a norma não se reduz ao espaço do colonizador. Para o autor, reduzir o colonizado ao colonizador era tirar-lhe condições para crescer. Como professor de Português do tradicional Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, Celso Cunha produziu, nessa década, vários manuais de ensino de língua, observando o “casticismo” arcaizante (CUNHA, 1964: 22), os recursos intocados do idioma e a gramática como “código de impedimentos ao uso dos meios expressivos de que nos servimos na fala e na escrita”. Na defesa e no esforço da unidade da língua portuguesa, publicou A nova gramática do português contemporâneo, em co-autoria com o lusitano Lindley Cintra. 308 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Foram escolhidos, acima, apenas alguns aspectos que marcam a gramatização do país e a construção histórica do idioma pelo cunho discursivo. É necessário, portanto, que seja mais bem divulgada a implantação do idioma no Brasil, desmistificando a ideia de que a Língua Portuguesa teria sido simplesmente transportada pacificamente para essa nação. Vale ressaltar, por fim, eventos discursivos, ou seja, eventos históricos em seu viés linguístico, que não se esgotam com os citados nesse texto. Atualmente, em Governador Valadares, Minas Gerais, por exemplo, o fenômeno migratório de ida e vinda do exterior para países como os EUA é praticado por brasileiros e filhos de brasileiros (migrantes de 2ª. geração), refletindo possibilidades diferentes de trabalho para os professores da região. Não raro, são recebidos nas escolas os filhos de brasileiros que foram alfabetizados em Língua Inglesa norte-americana, porque moraram nos Estados Unidos até a adolescência. Para lidar com essa realidade, o próprio curso de Letras da Universidade Vale do Rio Doce criou a disciplina intitulada “Português para estrangeiros”, dadas as diferenças que se notam no letramento do aprendiz que só teve até um dado momento da vida, o contato escolarizado com a Língua Inglesa. Esse fenômeno marca apenas uma das facetas dessa atividade que se tem com o exercício de ensino de línguas no mundo nas condições globais. Sente-se, portanto, sempre, a necessidade de trilhar novos caminhos, e ainda que a língua não tenha sido afetada, o sistema de ensino dessa região foi em alguma medida por essa realidade específica de ensino do Português Brasileiro no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Considerações Finais O processo sócio-histórico do ensino marca referências discursivas para formular e indicar posições sobre como ensinar Língua Portuguesa. Os professores, portanto, em suas práticas, devem considerar o fazer histórico sobre a língua, os processos de significação do idioma e do ensino, bem como o território e o processo de gramatização no país. Saber sobre os processos da colonização linguística no Brasil e o modo como se deu a política linguística é crucial para compreender a dualidade língua e gramática que o docente enfrenta na profissão, uma vez que as duas posições são válidas: considerar as regularidades da língua no território brasileiro, bem como as regras do uso padrão. Ambas são poTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 309 sições decisivas para que se possa desvelar a forma institucional através da qual se orientam a nossa política linguística e a nossa sociedade. São várias as intervenções que podem sofrer o idioma e as formas de ensino. É necessário, portanto, que se observe a realidade que atravessa o território, pois as influências sociais e políticas são decisivas, tanto para a construção discursiva do idioma, quanto para a política do ensino de línguas. No caso do Brasil, a consolidação da política lingüística se fez sob o jugo do colonizador, mas se fez também sob as várias influências aqui presentes, tanto no passado, há gerações atrás, quanto ainda hoje, com a condição de mobilidade dos brasileiros, em seus processos individuais. Cabe dizer, então, que a língua se faz, refaz, se ressignifica sempre, mesmo que os resultados sejam visíveis após tempos. Ainda que se considere o mosaico do fato e da regra na formação do idioma e nas práticas institucionais de ensinar, o professor, enquanto identidade investida socialmente e como autoridade investida pelo saber das instituições de ensino, representa a educação, constrói e reproduz o papel de disseminar e efetivar tais saberes. Referências ALÉONG, S. 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Finalizados tais ciclos, não havendo mais nenhum recurso a ser explorado, a MGV vê evadir, através do processo emigratório, um dos bens mais preciosos que aqui existe, o grande número de sujeitos em idade socialmente produtiva. 1 Especialista em Design Educacional para EaD Virtual e em Informática em Educação, Mestrando em Gestão Integrada do Território e Professor da Universidade Vale do Rio Doce. 2 Doutor em Psicologia pela Universidade de D´Amiens – França, Professor da Universidade Vale do Rio Doce. 3 Por Microrregião entende-se um agrupamento de municípios limítrofes. Essa forma de territorialização visa integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. Efetivamente o termo é muito mais conhecido em função de seu uso prático pelo IBGE. Este órgão procura utilizar essa forma de divisão dos estados da federação, para fins estatísticos baseando-se em similaridades econômicas e sociais. A microrregião de Governador Valadares é composta por 25 municípios, a saber: Alpercata, Campanário, Capitão Andrade, Coroaci, Divino das Laranjeiras, Engenheiro Caldas, Fernandes Tourinho, Frei Inocêncio, Galileia, Governador Valadares, Itambacuri, Itanhomi, Jampruca, Marilac, Mathias Lobato, Nacip Raydan, Nova Módica, Pescador, São Geraldo da Piedade, São Geraldo do Baixio, São José da Safira, São José do Divino, Sobrália, Tumiritinga e Virgolândia. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 317 Pode-se considerar que o fluxo migratório tão marcante nesta região possui efeitos análogos aos dos ciclos extrativistas não-sustentáveis como mencionados acima. Ele traz à tona a denúncia da falta de condições de vida dada na origem, que forçam inúmeros cidadãos a buscar, em outras terras, fontes que garantam para si e sua família a manutenção de seus status social. Neste artigo, a emigração é tratada como um fenômeno cujas consequências são comparáveis aos ciclos exploratórios por constituirse numa alternativa não-sustentável que não é adequadamente amparada pelos órgãos públicos. Segundo dados do IPEAD e UFMG (2004), 72% da população da Microrregião possui entre 0 e 39 anos de idade. Ligado a este fato, um survey realizado na região em 2005 aponta que cerca de 58% dos que migram possuem entre 20 e 40 anos (SIQUEIRA, 2006). Estes dados indicam que a região é constituída por uma população jovem em idade produtiva, que, mesmo tendo o Estado investido na educação e saúde destes, por ineficiência do próprio Estado, tal investimento não se torna efetivo na geração de desenvolvimento para o País e a Região. A esse título, vale citar Sales (1997:14), quando afirma que os emigrantes (cidadãos valadarenses) “no momento mais precioso de suas vidas, vão realizar alhures um trabalho geralmente aquém de sua qualificação profissional”. Entretanto, o que vale destacar é que a Microrregião de Governador Valadares é também um forte pólo agropecuário, turístico e educacional. Neste último, por exemplo, estão instaladas na região oito Instituições de Ensino Superior abrigando cerca de 15.000 estudantes distribuídos em níveis de Graduação e Pós-Graduação. A cada dia percebe-se a consolidação deste território como pólo educacional não apenas da Micro como da Mesorregião do Vale do Rio Doce. Além da produção do conhecimento necessário para a quebra de paradigmas, essa atividade é também econômica gerando grande movimentação financeira. Destaca-se o fato que, dos estudantes que recorrem a crédito educacional para financiar seus estudos, 78% deles compõem a primeira geração de sua família num curso de graduação (CALEJON, 2009). Tal fato contribui diretamente para uma mudança das lideranças sociais, reduzindo a força das oligarquias. É notável que exista ainda na região uma predominância de ‘sobrenomes’ tradicionais 318 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO ocupando os cargos de liderança. O incremento de uma Educação de qualidade para os habitantes da Microrregião de Governador Valadares cria possibilidades de renovação de uma identidade social marcada por crises, para o surgimento de uma sociedade identificada com o espaço que ocupa e com a crença de que esse território pode se converter numa terra de promissão. Neste sentido, faz-se mister uma análise sobre o Ensino Superior e suas aplicações no contexto da MGV. Analisar-se-á também a prática de ensino na condição de processo contraditório e político, que molda relações e que, segundo Olschowsky (2001:10), “ajuda a formar a personalidade e difunde idéias políticas”. Na busca pela construção de uma identidade territorial que reflita uma concepção de construção individual em prol do desenvolvimento coletivo por parte dos habitantes desta região, o processo educacional se apresenta como uma viável possibilidade de transformação. Segundo a mesma autora, é na escola que a transmissão do saber ocorre objetivando a qualificação para o trabalho e para a reprodução de ideologias, constituindo-se, assim, “num espaço de resistência e luta no qual as ideias são questionadas e repensadas” (OLSCHOWSKY, 2001:10). Disposta na condição de formação complementar após a Graduação, o ensino de especialização busca o aperfeiçoamento e a discussão de saberes em uma área específica. Esta formação direcionada, quando aplicada aos problemas relevantes e recorrentes de uma determinada problemática regional, torna-se uma estratégia para aprimorar o saber e influenciar diretamente na construção/reconstrução de postura em relação a ações promotoras do desenvolvimento regional. Entretanto, na atualidade, um novo contexto de mobilidade social ascende em função do grande número de indivíduos que se encontram conectados através Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), não dispondo de espaço-tempo para a realização de uma solução educacional em nível de especialização que seja presencial. Uma formação direcionada que ocorra na modalidade a distância promove situações que vão além do aprendizado específico de uma proposta de ensino. Tal formação ilustra a perspectiva educacional sob um prisma atual que possibilita olhar os desafios para a constituição do saber através de práticas educacionais que visem a uma abordagem subjetiva e, ao mesmo tempo, técnica, científica e política. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 319 Atualmente, a modalidade de Ensino a Distância apresenta uma crescente evolução no cenário educacional. A evolução tecnológica e a sociedade da informação têm espontaneamente transformado esta modalidade em uma força mais intensa e ampla no cenário educacional. A flexibilidade de tempo e a facilidade de acesso tornam a implantação e aceitação da EaD um passo necessário para o acesso multidimensional da educação. É preciso entender a Educação a Distância como modalidade de ensino que precisa, como as outras modalidades, de projetos bem contextualizados e aplicados para atingir seus objetivos educacionais. A elaboração de um Design Educacional Contextualizado, que tenha seu foco nos habitantes da MGV em todas as suas etapas, é o ponto de partida para a inserção adequada de um projeto educacional que verse a utilização das tecnologias acessíveis para este público específico com as bases educacionais que mais se adaptam a este contexto. Este estudo conduz uma reflexão acerca da qualificação profissional dos habitantes da MGV em nível de especialização através da Educação a Distância. Acredita-se que a oferta de soluções educacionais contextualizadas pode maximizar a aplicação do conhecimento adquirido na região e possibilitar alternativas de reconstrução de uma nova identidade territorial. Conforme definido por Moran, uma educação à distância de qualidade é capaz de “promover a experimentação e o desenvolvimento de atividades que visam a inserção no ambiente de trabalho, a partir da intervenção e modificação de uma realidade social de criação de contextos” (MORAN, 2006, sp). MGV: de ciclos exploratórios ao nascimento de um pólo educacional A Microrregião de Governador Valadares é uma região do Estado de Minas Gerais constituída de uma grande vocação logística, tendo posição territorial privilegiada no Estado. Por suas terras transpassam estradas e ferrovias que dão acesso às principais capitais e rotas de exportação do Brasil. Trata-se de um território aparentemente capaz de abarcar, na ação de seus habitantes, um processo de territorialização que contribua para o contínuo desenvolvimento regional. Entretanto, essa região é midiaticamente conhecida no cenário nacional e internacional devido a ocorrências situadas em torno do processo 320 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO emigratório. Os escândalos referentes à venda de passaportes adulterados, o grande número de “cônsules”4 e “coiotes”5 que atuam na região e a permanência de Valadarenses no exterior de forma indocumentada pouco contribuem para o fortalecimento de uma imagem positiva da região. Compreender como surgiu o fluxo emigratório nesta microrregião, comparável aos diversos ciclos exploratórios que devastaram suas terras, contribui para o entendimento de como seus habitantes foram desterritorializando este espaço durante toda sua construção histórica. A Microrregião de Governador Valadares é uma das oito microrregiões que compõem a Mesorregião do Vale do Rio Doce. Com uma área total de 11.327,403 km², esta microrregião é considerada uma das maiores de Minas Gerais. Ela corresponde a 27% do Vale do Rio Doce, cuja área total é de 41.809,873 km² (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2002). Segundo dados do IBGE (2007), a Microrregião de Governador Valadares possui aproximadamente 412 mil habitantes, sendo que 63% desse conglomerado reside na cidade de Governador Valadares. Esses dados apontam para a referida cidade como o foco do desenvolvimento da região. No Estado de Minas Gerais, a cidade de Governador Valadares constitui-se num pólo com grande vocação logística. Sua localização geográfica é estratégica, por ser um ponto no qual se entrecruzam três importantes rodovias, sendo elas a BR-116, BR-381 e BR-259. Essas rodovias dão ou facilitam o acesso a grandes centros, tais como, Belo Horizonte, Vitória e Rio de Janeiro. A Estrada de Ferro Vitória-Minas que viabiliza considerável fluxo das importações e exportações do País, não só cruza o território como também tem em sua história uma dívida para com a cidade. Uma atenção especial será dada a esse tema nesse estudo. Essa região tornou-se um pólo comercial e de serviços das mais variadas espécies, fazendo com que os habitantes da Microrregião de Governador Valadares vejam essa cidade como uma grande praça comercial para se fazer bons negócios. Na condição de centro ativo e mantenedor da região, Governador Valadares tem cerca de 5,5 mil estabelecimentos comerciais que equivalem aproximadamente a 80% da economia local (FELÍCIO, 2009). Isso seria um bom indicativo, se não 4 Cônsules são agenciadores que auxiliam o emigrante a entrar ilegalmente nos EUA, eles promovem meios que vão desde a produção de documentos falsos à contatos com coiotes. 5 Coiotes são os responsáveis por realizar a travessia ilegal das fronteiras com os emigrantes. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 321 fosse uma explícita denúncia de que ao longo dos anos a região foi explorada de diversas formas até o esgotamento de seus recursos naturais. A não preocupação em criar uma economia autossustentável deixou a cidade empobrecida tornando a exploração comercial a maior alternativa em termos de investimentos individuais ou coletivos. De certa forma, a criação de uma identidade regional foi marcada por estes atos. Durante toda a sua história, a MGV foi alvo de ciclos extrativistas não-sustentáveis. Do ciclo do ouro entre os séculos XVI e XVII até o estouro da bolha imobiliária internacional em 2008, sua população foi marcada pelos efeitos de uma história centrada nas relações de poder das classes dominantes. Os movimentos contínuos e, ao mesmo tempo, desconexos contribuíram para que fossem estabelecidos entre os habitantes dessa região, sentimentos de não pertencimento a esse território. Para muitos, a microrregião tornou-se uma terra de passagem, que, após a extração dos recursos desejados, o habitante deveria galgar para outros horizontes (ESPINDOLA, 2005). Historicamente, a exploração dos recursos da região tem-se refletido na identidade social de seus habitantes. Os ciclos econômicos que existiram no decorrer de sua história, com destaque para o da Madeira, da Extração Mineral, da Pecuária, fizeram deste território um ponto de extração despreocupado com a sustentabilidade de seus recursos naturais. Além destes ciclos, destaca-se também o fenômeno da Emigração, que se tornou um fenômeno rotular da região. Todos estes aspectos são fragmentos de uma história baseada em estratégias de desenvolvimento regional que não se manteve nem evoluiu com o passar do tempo. Com efeitos análogos aos ciclos extrativistas, cabe destacar o fenômeno da emigração de residentes da Microrregião de Governador Valadares. Este evidencia e serve de denúncia das precárias condições de vida dadas na origem. É certo que um nativo não deixa seu lar se nele consegue tudo que se busca, o desejo de migrar deste ator sempre está envolvido com algum problema na base que o faz tomar a decisão de deixar sua terra. Desde sua descoberta, essa Microrregião vive momentos marcados pela extração de seus recursos sem a preocupação com sua sustentabilidade. Os sujeitos que nela vivem possuem em sua identidade marcas profundas de um habitat que é usado para o benefício de alguns em detrimento de muitos. Movimentos como a busca pelo ouro, a de322 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO vastação da floresta para a venda da madeira e, posteriormente, para a pecuária, o tráfico de mão de obra para os EUA são problemas relevantes que fugiram do controle da sociedade. Entender estes ciclos como propulsores de crises para habitantes da região são subsídios básicos para a elaboração de projetos de desenvolvimento regional que não permitam que a história se repita. A Microrregião de Governador Valadares pode ser considerada hoje um território marcado pela exploração e sentimentos de não pertencimento. Seus habitantes viveram ao longo da história momentos que os levaram, em seu imaginário, a criar a idéia de ser aqui apenas uma terra sem oportunidades. Nesse contexto, o estar na região é uma etapa na qual muitos procuram reunir recursos para ir em direção à terra de seus sonhos. O esgotamento da terra, decorrente dos sucessivos ciclos exploratórios, contribuiu para que cristalizasse no pensamento dos atores da MGV a ideia de não ser este um lugar acolhedor, capaz de fornecer a seus habitantes condições de trabalho e desenvolvimento. Por esse processo, o estabelecimento de íntimas relações do homem com o lugar ficou seriamente comprometido. Relações de pertencimento necessárias para que possam acontecer na região uma valorização que parta de dentro para fora, do sujeito para com o lugar, despertando nos envolvidos o desejo e a vontade de contribuir, de alguma forma, para com o desenvolvimento desse lugar. Em um ensaio preliminar6 objetivando verificar o comprometimento de estudantes de uma Universidade com a região, foi levantada a questão sobre a possibilidade de continuarem vivendo na Microrregião de Governador Valadares após concluírem o Curso de Graduação. Mais de 50% dos entrevistados declararam o desejo de migrar para uma região que oferecesse melhores condições de trabalho e qualidade de vida. Apesar de se tratar de um ensaio, este levantamento aponta para a inexistência ou frágil relação identitária dos respondentes para com sua região. Assim, apesar de estarem se preparando para atuar como atores de mudanças, reduzida é a intenção de envidar esforços para a supera6 No fim de 2008, foi realizado um ensaio preliminar com 4 turmas de cursos de graduação (duas turmas de Design Gráfico, uma de Produção Audiovisual e outra de Jornalismo), em que foram levantadas questões, através de um questionário, com o objetivo de analisar as perspectivas de mercado destes futuros profissionais. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 323 ção dos problemas regionais e contribuir para a melhoria da qualidade de vida da sociedade de origem. O sentimento de não pertencer a um determinado território contribui para a estagnação e o esvaziamento econômico da região, uma vez que não há a preocupação com a manutenção e ampliação dos recursos que existem nesta terra. Dados da pesquisa de Soares (1995) apontam que o PIB per capita, a renda média e os índices demográficos da região do Rio Doce a situam como a segunda mais pobre do estado de Minas Gerais. A Microrregião de Governador Valadares está no epicentro de um quadro de concentração de pobreza cujo reflexo é diretamente assimilado à identidade de seus habitantes. Entretanto, em decorrência da adaptabilidade de seu povo às situações adversas, a MGV têm se constituído como um forte polo agropecuário, turístico e educacional. No tocante à Educação Superior, vale apontar a presença de nove Instituições de Ensino Superior, além de duas outras que abrirão suas portas em 2011. A partir de um convênio com a Prefeitura da cidade, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) funcionará a partir de 2011 com cursos nas áreas da saúde e humanas. A segunda que ainda não está em funcionamento é uma unidade da Rede Pitágoras de Ensino, que atualmente aguarda o aval do Conselho Nacional de Educação (CNE) para o início das atividades. Estes empreendimentos são percebidos pela comunidade como um coroamento do esforço regional pela formação superior de seus habitantes, cuja história é importante relatar. Pioneira na região no âmbito educacional, o Minas Instituto de Tecnologia (MIT) surgiu em 1967 como embrião da Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE). Esta foi reconhecida como Universidade pela portaria 1037 do MEC publicada em 9 de julho de 1992. Atualmente a UNIVALE oferta grande número de Cursos de Graduação, Extensão e Ação Comunitária, além de soluções em Pós-Graduação lato e stricto sensu. Um ano após a abertura desta primeira Instituição de Ensino Superior (IES) da região, é criada a Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE). Fundada em 13 de agosto de 1968, a Fadivale, desde o início, busca oferecer o ensino jurídico de qualidade em nível de Graduação e, posteriormente Pós-Graduação. Entretanto, seu reconhecimento se deu apenas em 1974, através do Decreto 74.922 de 21 de novembro de 1974. 324 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Seguindo na história, em 1975, amparada por um grupo da sociedade civil intitulado “Mater et Magistra”, formado por instituições de ensino e membros influentes da população, surge a Faculdade de Administração de Governador Valadares (FAGV). Sua criação foi amparada pela demanda de pessoal especializado nessa área, vindo a preencher, desta forma, uma lacuna na oferta regional de profissionais de Nível Superior. Sua autorização foi emitida pelo Decreto Federal n° 75.513, de 19 de março de 1975, assinado pelo então Presidente da República, Ernesto Geisel e pelo Ministro da Educação, Ney Braga. Em 2003, foi instalada em Governador Valadares a Universidade Professor Antônio Carlos (UNIPAC), cuja criação se deu na cidade de Barbacena no ano de 1963. Seu reconhecimento como Universidade se deu através da Portaria do MEC nº 366, de 12 de março de 1997. Recente no mercado Valadarense, essa instituição oferece cursos em níveis de Graduação e Pós-Graduação nas áreas das Ciências Sociais Aplicadas, Educação e Saúde. Além dessas IESs privadas, outras duas atuam como polos semipresenciais oferecendo Cursos de Graduação e Especialização em diversas áreas do saber, sendo elas a Universidade de Uberaba (UNIUBE) e o Grupo Educacional Fatec e Facinter. Funcionando desde janeiro de 2010 em Governador Valadares, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG/GV) é uma opção pública na oferta de Cursos de Graduação para os habitantes da região. Soma-se a esta, o Centro de apoio à Educação a Distância da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com Cursos de Graduação e Pós-Graduação e cursos vinculados à Universidade Aberta do Brasil (UAB), oferecidos também pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Universidade Federal de Viçosa (UFV). Considerando este amplo cenário educacional na região, que abriga atualmente cerca de 15.000 estudantes distribuídos em níveis de Graduação e Pós-Graduação, vislumbram-se articulações para a reconhecimento da MGV como polo educacional capaz de desenvolver projetos educacionais contextualizados e aplicáveis ao seu desenvolvimento. O incremento de uma Educação de qualidade para os habitantes desta região cria possibilidades de renovação de uma identidade social até então marcada por crises. Almeja-se a formação de cidadãos identificados com o espaço que ocupam e convictos de que esse terriTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 325 tório constitui-se também numa terra de promissão. Assim, entender a gênese do ensino superior, bem como as articulações acerca do avanço nos estudos através de cursos de Pós-Graduação, justifica-se na busca de soluções para o desenvolvimento regional. Ensino Superior no Brasil: um longo caminho O início do Ensino Superior no Brasil deu-se em 1808 com a chegada da família real portuguesa ao país. Contudo, a iniciativa privada e a "expansão" desta modalidade somente aconteceram muito tempo depois com a Constituição da República de 1891 que descentralizou a oferta do Ensino Superior, permitindo que os governos estaduais e a iniciativa privada criassem seus próprios estabelecimentos. Segundo Colossi et al. (2001), algumas datas ilustram a trajetória da educação superior no Brasil. Em 1827, foram criados os Cursos de Ciências Jurídicas em São Paulo e Olinda. No ano de 1889, o ensino na República se desenvolve com a criação de 14 Escolas Superiores. A Universidade de Manaus, criada em 1909, mostrou a força do ciclo da borracha e, em 1912, a Universidade do Paraná, no contexto do ciclo do café. Posteriormente foram criadas a Universidade do Rio de Janeiro em 1920, de Minas Gerais em 1927, de São Paulo em 1937 e, em 1961, a Universidade de Brasília. Segundo dados do Ministério da Educação, atualmente o País conta com 280 Universidades, sendo 97 públicas, 55 federais, 36 estaduais, 6 municipais e 86 privadas. Além de Universidades, o Brasil abarca também 2151 IESs que se classificam como Centros Universitários, Faculdades Integradas, Faculdade, Faculdade Tecnológica, Instituto Superior ou Escola Superior e Centro de Educação Tecnológica (MEC, 2008). Considerando o grande número de IES no Brasil, o Governo Federal tem buscado soluções cujo objetivo maior é ampliar, qualificar e permitir o acesso ao Ensino Superior no país. Neste sentido, alguns projetos merecem destaque, tais como: PROUNI - Programa Universidade para Todos; UAB - Universidade Aberta do Brasil; e REUNI - programa de apoio a planos de Reestruturação e a Expansão das Universidades Federais. O PROUNI é um Programa do Ministério da Educação, criado pelo Governo Federal em 2004, que oferece bolsas de estudos em instituições de educação superior privadas, em Cursos de Graduação e 326 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO sequenciais de formação específica a estudantes brasileiros, sem diploma de nível superior (MEC, 2008). Uma característica importante deste programa é permitir ao aluno de baixa renda e que possui bom rendimento escolar o acesso ao Ensino Superior, através do fornecimento de bolsas de estudos parciais (50% de desconto) e/ou integrais (100% de desconto), concedendo às IESs privadas, em contrapartida, a isenção de alguns tributos fiscais. A UAB é um programa do Ministério da Educação criado em 2005, no âmbito do Fórum das Estatais pela Educação, e possui como prioridade a capacitação de professores da educação básica. Seu objetivo é estimular a articulação e a integração de um Sistema Nacional de Educação Superior, sendo um sistema formado por instituições públicas de ensino superior, as quais se comprometem a levar o ensino superior público de qualidade aos municípios brasileiros (MEC, 2008). Através desta iniciativa, o Governo possibilita a qualificação dos profissionais da Educação Básica, de modo que este incentivo se reflita em ações positivas não só ao próprio professor, mas também a toda a comunidade administrativa e discente que forma a rede educacional de ensino. Já o REUNI, segundo o Governo Federal (2007), tem por objetivo criar condições para a ampliação do acesso e permanência na Educação Superior. Nesse esforço, focaliza-se a Graduação no tocante ao aumento da qualidade dos cursos e melhor aproveitamento da estrutura física e recursos humanos existentes nas Universidades Federais. Apesar de ser um projeto nacional, pretende-se respeitar as características particulares de cada instituição e estimular a diversidade do sistema de ensino superior. A concepção destes e outros programas por parte do Governo Federal tem proporcionado um crescente exponencial referente ao acesso ao Ensino Superior. Destaca-se o dado que, no período de 1999/2000, o Brasil apresentou uma baixa taxa de escolarização bruta (15%) na Educação Superior. Entretanto, Pinto (2004) afirma que essa situação já apresentou quadros mais desanimadores. Efetivamente em 1960, a taxa de escolarização bruta na Educação Superior era de apenas 1%. No ano de 1933, as primeiras estatísticas sobre a educação contavam com 64,4% de instituições na iniciativa privada, o que praticamente não se alterou até meados de 1960. Esse espaço ocupado por tais instituições decorre do fato de o Estado não ter sido capaz de absorver a demanda. Daí tornam-se extremamente necessárias as medidas que TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 327 visam permitir a entrada de alunos no Ensino Superior, com auxílio de bolsas, na tentativa de preencher essa demanda do ensino privado que cresce significativamente. Segundo Pinto (2004), ao longo dos 40 anos que se seguiram, as matrículas cresceram de forma distinta entre as redes públicas e privadas. No mesmo período, as matrículas da rede privada cresceram praticamente três vezes mais do que as da rede pública. Essa ocorrência tornou o Brasil um dos países com maior grau de privatização desse nível de ensino. Em 2001, o Ensino Superior no Brasil contava com cerca de 900 Instituições de ensino, sendo que pouco mais de uma centena era constituída como Universidade (COLOSSI et al., 2001). Apesar do considerável número de instituições de ensino, dados coletados nas principais regiões metropolitanas do Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2007) indicaram que apenas 6% da população com mais de 20 anos possui ensino superior e que menos de 1% adquire o título de Mestre ou Doutor. Indicadores tão baixos refletem a dificuldade em se ampliar o tempo de estudo e avançar na construção do conhecimento após a Graduação. A busca por uma formação específica através da Pós-Graduação busca articular saberes e práticas na elaboração de novos conceitos e ações. Ao abrir novas possibilidades de reconstrução do conhecimento, o ensino de Pós-Graduação lato sensu surge como alternativa viável de mecanismo propulsor do desenvolvimento do território da MGV. Para um melhor entendimento, faz-se necessário aprofundar na investigação sobre esta modalidade. Baseada na estrutura das Universidades Americanas, a Pós-Graduação no Brasil origina-se da necessidade da elaboração de novos conhecimentos a partir das atividades de pesquisa e da impossibilidade da Graduação de abarcar uma formação específica em determinadas áreas do conhecimento. Assim, segundo Olschowsky (2001:37), na Graduação o estudante “obtém os conhecimentos e uma preparação básica e geral de sua profissão e a complementação dessa formação viria com os estudos pós-graduados”. A Pós-Graduação foi instituída no país pela Lei nº 4.024/61-Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sendo aprovada no Parecer nº 977/65 do Conselho Federal de Educação (CFE). Dois tipos de 328 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Pós-Graduação foram previstos: a “stricto sensu”, com nível de mestrado e doutorado, e a “lato sensu”, envolvendo os cursos de especialização (Parecer nº 977/65). O Parecer 997/65 conceitua Pós-Graduação como todo e qualquer curso que se segue após a finalização da Graduação e promove uma diferenciação entre as modalidades stricto sensu e lato sensu. Os Cursos de Pós-Graduação lato sensu têm um objetivo técnicoprofissional específico sem abranger o campo total do saber em que se insere a especialidade, em que sua meta é o domínio técnico e científico de uma certa área limitada do saber ou da profissão para formar um profissional especializado. A Especialização é sempre estudada no contexto de uma área completa de conhecimentos e, quando se trata do profissional, o fim é fornecer ampla fundamentação científica à aplicação de uma técnica ou ao exercício de uma profissão. Trata-se de um sistema de cursos que se superpõe à Graduação com objetivos mais amplos e aprofundados de formação científica e cultural, e que, por sua vez, podem se apresentar sob a forma de Cursos de Especialização, Aperfeiçoamento e Atualização. Por sua vez, os Cursos de Pós-Graduação stricto sensu são destinados à formação de pesquisadores e docentes para os cursos superiores. Sua essência está na natureza acadêmica e de pesquisa e, mesmo atuando em setores profissionais, tem objetivo basicamente científico. Atualmente, a oferta de Cursos de Pós-Graduação lato sensu tem sido altamente propagada pelas IESs com o discurso de permitir o aprimoramento de específicos campos do saber. Entretanto, o que se percebe é uma grande industrialização desta modalidade, criando modelos pasteurizados e descontextualizados com a realidade do participante. Estes e outros fatores têm contribuído para a banalização e descrédito de propostas ligadas a este tipo de curso. Na tentativa de ampliar a gama de “clientes”, diversas IESs têm buscado, na oferta de cursos de especialização a distância, uma possibilidade para maximizar seu campo de atuação. Apesar de abarcar um público carente de tempo e espaço para realizar um aprimoramento educacional, ao criar propostas educacionais que não são adequadas a um determinado contexto, cria-se também uma lacuna no tocante à aplicabilidade da proposta que está sendo oferecida ao aluno. Em um cenário distorcido, antagonicamente surgem alternativas positivas para o acesso à educação que, ao mesmo tempo que promova TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 329 a qualificação, contribua para o desenvolvimento específico de uma região. Através da oferta de cursos de Pós-Graduação, por meio de modalidades não-presenciais, podem-se criar instrumentos de dominação e reprodução das relações de produção e/ou força política. Estes cursos, ao promover a cooperação dos habitantes dos municípios limítrofes que compõem a Microrregião do Vale do Rio Doce através de um ambiente de aprendizado, passam a atuar como elemento importante de neutralização das representações regionais estigmatizantes. Além disso, como define Gramsci (1991), estas propostas educacionais servem também como importante ferramenta de mobilização social para alterar a função hegemônica da classe no poder, sendo instrumento de divulgação, persuasão e penetração da concepção de mundo na classe dominante. Com base nas asserções que compuseram esse tópico, pode-se dizer que, em nível de Pós-Graduação e, sobretudo, da Pós-Graduação a Distância, existe um processo educacional a ser construído para a MGV. Um processo que permita ao aluno dar novo sentido a seu papel social e estar apto a interagir de forma local e global. No dizer de Moran (2008), a educação deve ser capaz de auxiliar na aquisição e (re)construção do conhecimento. A escola precisa partir de onde o aluno está, das suas preocupações, necessidades, curiosidades e construir um currículo que dialogue continuamente com a vida, com o cotidiano. Uma escola centrada efetivamente no aluno e não no conteúdo, que desperte curiosidade, interesse. Precisa de bons gestores e educadores, bem remunerados e formados em conhecimentos teóricos, em novas metodologias, no uso das tecnologias de comunicação mais modernas. Educadores que organizem mais atividades significativas do que aulas expositivas, que sejam efetivamente mediadores mais do que informadores. É uma mudança cultural complicada, porque os cursos de formação de professores estão, em geral, distantes tanto das novas metodologias como das tecnologias (MORAN, 2008:1). Com base no exposto, pode-se dizer que uma Educação a Distância de qualidade deve, segundo Moran, ser capaz de “promover a experimentação e o desenvolvimento de atividades visando a inserção no ambiente de trabalho, a partir da intervenção e modificação de uma realidade social, de criação de contextos” (MORAN, 2006, sp). Neste sentido, faz-se necessário analisar o contexto da Educação a Distância (EaD) em 330 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO detalhes, buscando trazer um olhar além da utilização das Novas Tecnologias de Informação de Comunicação (NTICs), que valorize a participação das pessoas através dos processos de afetividade e interação. Educação a Distância: contextos e descontextos A Educação a Distância (EaD) é uma inovação trazida pela LDB que promoveu um grande impacto sobre a oferta de vagas para a Educação Superior. Com tecnologias que buscam a cada dia dar tons de realidade à experiência não presencial, a EaD tem sido alvo de constantes análises e aplicações metodológicas. Sua inegável aceitação se dá em razão da realidade pós-moderna, em que os indivíduos carecem de soluções flexíveis em todas as dimensões. Segundo Nunes (2002), essa modalidade: [...] pressupõe um processo educativo sistemático e organizado que exige não somente a dupla via de comunicação, como também a instauração de um processo continuado, onde os meios ou os multimeios devem estar presentes na estratégia de comunicação. A escolha de determinado meio ou multimeios vem em razão do tipo de público, custos operacionais e, principalmente, eficácia para a transmissão, recepção, transformação e criação do processo educativo. (NUNES, 2002:3) A EaD é mais antiga do que parece. Esse modelo possui mais de um século de existência. O primeiro registro data de 1881 quando William R. Harper, primeiro Reitor e fundador da Universidade de Chicago, ofereceu com absoluto sucesso um Curso de Hebreu por correspondência. Em 1889 o Queen’s College do Canadá deu início a uma série de cursos a distância. Devido principalmente a seu baixo custo e às grandes distâncias que separavam os centros urbanos, tais ofertas foram alvo de grande procura. Desde então, a EAD vem se desenvolvendo, utilizando-se das mais variadas estratégias, ferramentas e tecnologias (LOYOLLA & PRATES, 1999). Atualmente, a EaD encontra na internet uma plataforma capaz de promover soluções inovadoras que encurtam as diferenças com o ensino tradicional. Pautada na autonomia e interação dos atores, a EaD, através da Internet ou Educação on-line, tem sido base de inúmeros estudos e metodologias que buscam cada vez mais esculpir este meio e transformá-lo em uma fonte confiável de transmissão de conhecimento. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 331 Assim, apesar das frentes tradicionais que defendem a utilização única e plena do ensino presencial, a EaD tem apresentado excelentes resultados quando bem aplicada e, sobretudo, como uma possibilidade de encurtar diferenças sociais. Uma aplicação efetiva da Educação on-line sempre estará amparada por profissionais qualificados, metodologias responsáveis e investimentos capazes de subsidiar a realização plena do projeto educacional. Uma das áreas que se destaca como peça chave nesse processo é o Design Instrucional (DI), que envolve todo o planejamento, organização e execução do projeto. Esta ciência cria pontes entre o professor e seus alunos numa modalidade educacional em que não estão fisicamente ligados. Filatro(2007:32) define o Design Instrucional como sendo “[...] o planejamento, o desenvolvimento e a utilização sistemática de métodos, técnicas e atividades de ensino para projetos educacionais apoiados por tecnologias”. Esta ciência é responsável pela maximização do processo de ensino-aprendizagem a distância, fazendo uso dos mais variados recursos e estratégias educacionais. Em tempos de constante evolução tecnológica e com uma sociedade cada vez mais conectada, o DI se torna uma ferramenta chave no sucesso de um aprendizado não presencial. Várias são as formas de se aprender a distância. Desde o século XX, a grande diversidade de mídias disponíveis possibilitou a propagação do conhecimento. Com o advento tecnológico, bem como a disponibilidade de computadores e conexão com a internet acessíveis às diversas camadas da sociedade, a Educação on-line, tem ganhado visibilidade e aceitação por parte de toda a sociedade da informação. Tal fato contribui diretamente para o crescente número de profissionais e metodologias que visam ampliar e tornar cada vez mais agradável e efetivo o ato de aprender a distância. Os Ambientes Virtuais de Aprendizagem possibilitam a comunicação sob duas formas básicas, a síncrona e a assíncrona. A comunicação síncrona ocorre quando existe a troca imediata de informações e a participação simultânea de dois ou mais alunos em uma determinada aplicação. Já a assíncrona, possibilita a participação atemporal, em que todos os alunos podem participar de acordo com a sua flexibilidade de tempo. Esta última vem sendo muito utilizada e amparada por inúme332 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO ros recursos de produção de conteúdo multimídia como slides, vídeos, faixas de áudio, web conferências, hipertextos e outros. Um instigante e complexo desafio na concepção destes projetos tem sido a construção de processos e metodologias que estabeleçam a interação e a comunicação entre seus participantes. Apesar de todos os avanços tecnológicos, tem-se percebido que a participação de pessoas é essencial e a única capaz de garantir um tratamento contextualizado e humano. A história nos mostra que, desde os primórdios da humanidade, a comunicação se encontra atrelada ao processo de aprendizagem. A comunicação constitui-se em ferramenta básica no desenho instrucional em qualquer modalidade – presencial ou a distância. No entanto, na EaD, a qualidade da comunicação que sustenta o processo educativo pode ser determinante para o sucesso do empreendimento, uma vez que professor e aluno não estão frente a frente para eliminar “ruídos” inerentes ao meio e aos múltiplos contextos dos sujeitos da comunicação. A via que sustenta a Educação a Distância é a comunicação exercida em suas mais variadas formas. Em relação aos meios que utiliza e ao processo em si, Pierre Levy (1999a:147) observa que: Comunicar não é de modo algum transmitir uma mensagem ou receber uma mensagem. Isso é a condição física da comunicação, mas não é comunicação. É certo que para comunicar, é preciso enviar mensagens, mas enviar mensagens não é comunicar. Comunicar é partilhar sentido. Ainda, de acordo com o autor, o homem pensa em rede onde a aprendizagem, o ensino, a relação professor-aluno, a relação de equipe de trabalho estão em permanente construção. Para o autor, o ciberespaço possibilita um novo campo visual onde a representação gráfica, sonora e pictória integram uma nova forma de conhecer, a um só tempo, cognitiva e sensitivo-sensória (LEVY b, 1999). O “partilhar sentido” de Levy é o mesmo que, sob o nosso olhar, a afetividade nos relacionamentos virtuais. Segundo Ballone (2003, apud XAVIER, 2007:7), a afetividade “confere o modo de relação do indivíduo com a vida, e será através da tonalidade de ânimo que a pessoa perceberá o mundo e a realidade”. Ela contribui como meio e fim na aprendizagem, caracterizando-se através de comportamentos que expressam TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 333 emoções que favorecem a interação do indivíduo com o meio. Freire (1967) destaca que não podemos falar de educação sem falar de amor. De acordo com o autor, a relação professor-aluno é um fator fundamental para o sucesso e a realização de ambos. Por essa razão, a relação entre os atores da educação deve ser marcada pela parceria, diálogo, aceitação dos limites e pela valorização do potencial de cada um. Assim, aplicando esta relação para a EaD, a ausência física dos atores pode ser amenizada pelas diversas mídias e estratégias de comunicação e interação estabelecidas no projeto educacional contextualizado. O professor/tutor também necessita sentir a presença, o sorriso, a aceitação e o comprometimento com a aprendizagem por parte de seus alunos, pois a afetividade não tem lado. É preciso eliminar “ruídos” inerentes ao meio e/ou aos contextos multidimensionais dos sujeitos da aprendizagem, uma vez que a troca de afetos, considerada nas teorias interacionistas de Piaget e Vygotsky, é condição para o avanço da aprendizagem (FRANCO et al, 2009). A aprendizagem a distância pode ocorrer das mais variadas formas, pois parte do pressuposto básico de que as pessoas possuem ritmos, bases e formas de aprender diferentes. Numa perspectiva humanista, a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI criou um Relatório da UNESCO em que se baseia o conceito de Educação em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a conviver, aprender a fazer e aprender a ser (GIUSTA & FRANCO, 2003). A aprendizagem ocorre a todo instante e nas mais variadas instituições com que o sujeito contracena. Franco et al. (2009), citando Almeida (2006), destaca que é preciso ter consciência de: [...] como estes fatores nos afetam, conhecer nossos próprios processos de aprendizagem e aprendermos como aprender, devem ser nossas principais armas para conseguirmos a flexibilidade necessária a essa nova realidade, porém o caminho para atingirmos este objetivo é tão individual quanto o processo de aprendizagem em si (ALMEIDA, 2006, apud FRANCO et al. 2009 sp). Neste sentido, destaca-se a importância do Cognitivismo no processo de ensino-aprendizagem frente a tão variados estilos de aprendizagem, definidos por Felder e Silvermann (1988) como aprendizes: Ativos x Reflexivos; Racionais x Intuitivos; Visuais x Verbais; Sequenciais 334 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO x Globais e Indutivos x Dedutivos. Uma pessoa pode naturalmente navegar entre estilos diferentes, mas subjetivamente tem seu aprendizado maximizado quando algo é apresentado de acordo com seu estilo. A Aprendizagem Significativa, definida por David Ausubel, é uma representante do cognitivismo e entende a aprendizagem como um processo de armazenamento de informação que é incorporada a uma estrutura na mente do indivíduo. Masini e Moreira (2001), baseando-se nas assertivas de Ausubel, definem a aprendizagem significativa como “um processo pelo qual uma nova informação se relaciona com um aspecto relevante da estrutura de conhecimento do indivíduo” (MASINI & MOREIRA, 2001: 17). Assim, segundo os autores, o sujeito absorve a informação e trata de acordo com o seu cotidiano, disponibilizando-a na mente de forma organizada e formando uma conceituação a partir de sua experiência. Considerando o desenvolvimento crescente das teorias da aprendizagem, bem como a própria necessidade imposta por uma sociedade carente por práticas educacionais compatíveis a ela, o Design Instrucional se engaja em conciliar, da melhor forma possível, uma relação entre a teoria e a prática educacional. Segundo Filatro (2007), o Design Instrucional precisa ter uma visão transdisciplinar capaz de aliar as mais diversas áreas do saber com os avanços tecnológicos. Destaca, ainda, a adoção de uma perspectiva de diversidade, considerando os pontos de interseção positivos e viáveis que podem ocorrer nessa junção entre teoria e prática (FILATRO, 2007). A importância do contexto em projetos de ensino não presenciais Atualmente as Instituições de Ensino do Brasil enfrentam desafios que podem ser sintetizados na revisão de suas formas de organização e relacionamento com alunos, com o objetivo de dar novo sentido ao seu papel social e proporcionar uma interação entre o local e o global. Compete às atuais Instituições de Ensino Superior (IESs) entender e apontar soluções para problemas que as transformações colocam a toda sociedade. Como enfatizado por Gondim (2002), o desenvolvimento científico e o tecnológico são suportes fundamentais para o processo de globalização. Esse posicionamento está em acordo com a UNESCO que se expressa da seguinte forma: TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 335 A experiência comum de numerosos países é que o Ensino Superior não é mais uma pequena parcela especializada ou esotérica da vida de um país. Ele se encontra no próprio coração das atividades da sociedade, é um elemento essencial do bem-estar econômico de um país ou região, um parceiro estratégico do setor do comércio e da indústria, dos poderes públicos, assim como das organizações internacionais (UNESCO, 1999:256). Nos últimos anos, muito se tem estudado e publicado sobre a emergência de um novo paradigma educacional em resposta às transformações econômicas, políticas e sociais decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico da, assim chamada, era da informação ou era do conhecimento (FILATRO, 2007). A emergência de modalidades de ensino não presencial mediadas pela tecnologia justifica-se como forma de equacionar a diferença entre o número restrito de vagas da rede de ensino e a necessidade de incluir socialmente uma maior parcela da população. Trata-se de uma busca que seja capaz de integrar as exigências individuais e sociais às novas demandas do mercado globalizado. Estatísticas oficiais asseguram que as Tecnologias de Informação e Comunicação estão, de fato, cada vez mais presentes nos ambientes universitários. A incorporação das novas tecnologias de informação e comunicação, além de permitir uma adequação ao antigo modelo, possibilita também uma reavaliação no modo de pensar e praticar a educação. Entretanto, a tendência da industrialização do ensino cria modelos educacionais pasteurizados, baseados na construção de projetos educacionais que visam principalmente o alcance e o lucro. Os currículos baseados em novos moldes precisam contribuir efetivamente para o desenvolvimento integral de todos os envolvidos. Neste sentido, é importante destacar que, além da integração midiática, devem-se considerar os estilos e ritmos diferenciados de aprendizagem, assim como as características regionais, buscando fazer um elo entre as informações compartilhadas e as experiências externas do aluno. Wilson & Myers (1999), por considerar o contexto importantíssimo para o paradigma educacional, fazem a seguinte afirmativa: Pensar e aprender só faz sentido dentro de situações particulares. Qualquer pensamento, aprendizagem ou cognição é situado em 336 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO um contexto particular. Não existe algo como uma aprendizagem não-situada. Em decorrência, uma abordagem educacional deve ser mais sensível às condições locais e adaptadas às circunstâncias de situações específicas (WILSON e MYERS, 1999:71).7 Considerando todo esse panorama, a intervenção pedagógica assumida pelas Instituições de Ensino Superior (IES) é de fundamental importância no desenvolvimento de cidadãos empreendedores, capazes de aprender a aprender. A necessidade sempre foi e continua sendo de uma educação para a vida, ou seja, uma formação continuada que prioriza a ética e os valores sociais, econômicos e culturais da sociedade (SANTOS et al., 2005). A valorização da problemática regional tende a estimular a sociedade valadarense para a construção natural de uma identidade territorial comprometida com o seu desenvolvimento. Diversos autores convergem ao reconhecimento de que os projetos educacionais precisam estar adaptados ao contexto de aplicação. Neste sentido, Filatro (2007:104) destaca que este processo compreende “a ação intencional de planejar, desenvolver e aplicar situações didáticas específicas incorporando mecanismos que favoreçam a contextualização”. Jonassen (1999) defende a importância da inserção de fatores contextuais para uma implementação bem-sucedida de um projeto educacional. Segundo ele: As concepções construtivistas da aprendizagem assumem que o conhecimento é construído individualmente e socialmente reconstruído pelos alunos com base nas interpretações de suas experiências no mundo. Uma vez que o conhecimento não pode ser transmitido, a instrução deve ser composta de experiências que facilitem a construção do conhecimento. (JONASSEN, 1999:217)8 A criação de ambientes de aprendizagem baseados em tecnologia precisa promover aos alunos interações significativas que lhes permitam interpretar e construir o conhecimento com base em suas experiências 7 “Thinking and learning make sense only within particular situations. All thinking, learning, and cognition is situated within particular contexts. There is no such thing as nonsituated learning. Consequently, an approach situated instructional design should be more sensitive to local conditions and adapt to circumstances localized to specific situations” (WILSON & MYERS, 1999:71). 8 “Constructivist conceptions of learning, on the other hand, assume that knowledge is individually constructed and socially coconstructed by learners based on theis interpretations of experiences in the world. Since knowledge cannot be transmitted, instruction should consist of experiences that facilitate knowledge construction” (JONASSEN, 1999:217). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 337 e interações. Assim, os educadores precisam lançar mão de uma abordagem construtivista que adapte as estratégias educacionais em prol do envolvimento dos alunos, permitindo a eles a exploração, experimentação, construção, colaboração e reflexão do que estão estudando. O conceito do construtivismo enfatiza que o estudante deva ser um aprendiz ativo, desempenhando um papel central na mediação e controle de aprendizagem (Jonassen, 1999). Esta ênfase no contexto do aluno permite a apropriação fluida da experiência da aprendizagem. Assim, quando ele se apropria dos conceitos, a aprendizagem ativa focada nos estudantes permite que a construção do conhecimento ocorra de forma natural (GREENING, 1998). Jonassen (1999) e Filatro (2007) defendem o modelo contextual desenvolvido por Tessmer e Richey (1997) que constitui-se num conjunto de processos para analisar e mapear o contexto físico, organizacional e sociocultural em que os problemas ocorrem. O mesmo problema em diferentes contextos sociais se apresenta de forma diferente. A elaboração de projetos educacionais deve contemplar a declaração de todos os fatores contextuais que cercam uma determinada problemática. O modelo proposto por estes autores caracteriza o contexto em termos temporais e em níveis de abrangência. Filatro (2007) vai ilustrá-los da seguinte forma: Em termos temporais: a) contexto de orientação: anterior à aprendizagem, influencia a motivação futura do aluno e o prepara cognitivamente para aprender; b) contexto de instrução: geralmente determinado temporalmente pelo evento instrucional (curso, programa, aula), envolve os recursos físicos, sociais e simbólicos que fazem parte da situação didática; c) contexto de transferência: posterior à aprendizagem, envolve basicamente o ambiente ou a situação em que a aprendizagem será aplicada. Estes três contextos se expressam em três níveis de abrangência: a) a perspectiva individual; b) a perspectiva imediata, característica do entorno; c) a perspectiva cultural ou institucional, característica de uma organização, instituição ou da sociedade (FILATRO, 2009:106-107). A prática da Informática na Educação requer uma reflexão constante, permitindo-se descobrir estratégias para utilizar o computador de maneira Construcionista, Contextualizada e Significativa (CCS). É preciso fazer com que os alunos sejam ativos e reflexivos, capazes de elaborar conceitos e implementá-los fazendo uso de uma aprendizagem 338 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO colaborativa assistida por computador9. Cabe ao professor, neste processo, saber articular o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC´s) e de todos os benefícios potencializadores que trazem para uma educação de qualidade a todos envolvidos. Existem diversas inquietações em relação às metodologias da Educação a Distância com auxílio do computador. Essas se devem, sobretudo, quanto às formas em que os alunos encaram o uso desse tipo de ferramenta. Conforme destacado por Schlünzen (2000), em função dos objetivos que se pretende alcançar, duas abordagens são largamente aplicadas no processo educacional não presencial: a abordagem instrucionista e a construcionista. Na abordagem instrucionista, o computador exerce a função de transmissor da informação para o aluno por meio de um programa (software). Ele cumpre um papel semelhante ao de um professor que passa as informações específicas aos seus alunos, como o que é realizado nos métodos tradicionais de ensino. Desta forma, o professor pode sentir que será facilmente substituído pela máquina, já que as informações são transmitidas pelo computador. Assim, se o professor utiliza o computador para passar as informações aos alunos, não há necessidade de uma formação mais complexa para o exercício do magistério (FRANCO et al, 2006). Contrapondo-se a essas idéias, a abordagem construcionista não espera que o aluno apenas receba informações. Conforme preconizado por Papert (1985), ela caracteriza-se como uma abordagem de uso educacional do computador, voltado para o processo de aprendizagem do aluno. Assim, o aluno interage com o computador na busca de informações significativas para a compreensão, representação e resolução de uma situação problema ou para a implementação de um projeto. Nessa abordagem, o computador é usado como suporte para que o aluno resolva problemas ou construa algo de seu interesse, baseado em situações reais de seu cotidiano. Assim, segundo Schlünzen (2000:4), “ele insere sua realidade nos conceitos envolvidos no problema que está sendo resolvido”, testando idéias, hipóteses e estratégias. 9 Aprendizagem colaborativa assistida por computador ou (CSCL - Computer Supported Collaborative Learning) pode ser definida como “[...] estratégia educativa em que dois ou mais sujeitos constroem o seu conhecimento através da discussão, da reflexão e da tomada de decisões, e onde os recursos computacionais atuam (entre outros) como importantes e eficazes mediadores do processo de ensino-aprendizagem (COSTA, 2005:7) TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 339 Nesse processo de ensino, são oferecidas condições para que ele tenha um aprendizado personalizado e contextualizado. É dessa forma que o sujeito acaba por descobrir uma maneira mais prazerosa de aprender, de dar significado ao seu aprendizado, formalizando e contextualizando os conceitos (SCHLÜNZEN, 2000). Entretanto, a prática da contextualização do ensino não é algo que as IESs estejam preparadas para aplicar em seu cotidiano, apresentam de forma excessivamente previsível, burocrática e pouco estimulante para os bons professores e alunos (MORAN, 2008). Elas precisam se tornar instituições efetivamente significativas, inovadoras e empreendedoras. Ao envolver um tempo de produção maior e uma ampliação na equipe elaboradora dos projetos educacionais, esta prática é vista por muitas instituições como uma despesa injustificada e um complicador em termos de cumprimento de prazos (FILATRO, 2007). Moran (2008) também considera que, em sua maioria, as instituições existentes têm sido previsíveis e burocráticas em demasia e pouco estimulantes para professores e alunos. Eis porque se torna necessário que as IESs busquem quebrar alguns paradigmas na busca por aproximar a sociedade das demandas atuais revendo seus métodos, procedimentos e currículos. Considerações finais A Microrregião de Governador Valadares teve sua história impulsionada por diversos ciclos exploratórios e por um peculiar fluxo migratório, que conspiraram para a construção de uma identidade regional desterritorializada. Identidade anômala, que faz com que os habitantes deste território tenham como ideal econômico e social trabalhar no exterior como emigrantes para construir um melhor futuro para suas famílias. Identidade constituída ao longo da história em função das interações dos sujeitos com os contextos que fizeram parte da formação desta região. O grande número de Instituições de Ensino Superior existentes na região contribui para a consolidação de um polo educacional com poder de direcionar investimentos e diretrizes políticas voltadas para o estabelecimento de qualificações especializadas. Não se trata aqui de qualificações tradicionais, mas daquelas capazes de melhorar a qualidade de vida não apenas dos participantes das propostas educacionais, mas de todos os sujeitos residentes na MGV. 340 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Geralmente, na busca por se especializar através de cursos de PósGraduação a distância, os habitantes da MGV buscam a aplicação dos conhecimentos adquiridos em outras terras. Obviamente que políticas públicas precisam ser instauradas na intenção de potencializar a aplicação destas especialidades, mas estas soluções em EaD precisam promover a experimentação e a modificação do contexto regional, sendo aplicável para a melhoria da qualidade de vida de todos os envolvidos. A Educação a Distância é mais antiga do que parece. Entretanto, vale lembrar que ela atravessa atualmente uma revolução tecnológica comparável à revolução industrial e à cultural que existiram na primeira metade do século XX. Os computadores têm adquirido cada vez mais recursos capazes de ampliar possibilidades de interação e, consequentemente, tratar a experiência adquirida na modalidade a distância em algo cada vez mais real. Aborda-se aqui a EaD mediada pelo computador não como mais uma possibilidade da educação, mas, sim, como uma evolução natural do processo de ensino aprendizagem pós-moderno. Ao promover caminhos diferenciados aos alunos, de forma que cada um possa potencializar seu aprendizado de acordo com sua identidade, os projetos educacionais contextualizados percebem que a chave para o sucesso está na valorização das variáveis locais, sem abrir mão das condições gerais. Neste sentido, a oferta contextualizada de cursos de Pós-Graduação a distância por parte das IESs localizadas na Microrregião de Governador Valadares constituem uma alternativa viável para o aprendizado e sua consequente aplicação em nível local e global. A utilização desta modalidade de ensino contribui para a geração e de mão de obra especializada e para o desenvolvimento regional. Referências Bibliográficas CALEJON, Serena. Nós nunca estudamos tanto. Exame. São Paulo, Especial Consumo, p. 42-45, 8 de abril. 2009. COLOSSI, Nelson; QUEIROZ, Etty Guerra de; CONSENTINO, Aldo. Mudanças no contexto do Ensino Superior no Brasil: uma tendência ao ensino colaborativo. Revista FAE. Curitiba: v.4, n.1, p.49-58, jan./abr. 2001. ESPINDOLA, Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. Bauru: Edusc, 2005, 485 p. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 341 FELDER, Richard M. e SILVERMAN, Linda K. Learning and teaching styles in engineering education. Eng.Education. V.78, n. 7, p. 674-681, 1988. FELÍCIO, César. Em Valadares, sobrou apenas o comércio. Valor Econômico. 3 de abril. 2009. FILATRO, Andrea. Design Instrucional contextualizado: educação e tecnologia. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2ª ed., 2007, 215 p. 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N Para entender a maneira como a violência é socialmente percebida nos dias atuais, faz-se necessária uma análise do processo histórico que conduziu a essa compreensão e uma reflexão do impacto dela na organização social. O primeiro movimento nesta direção deve buscar o significado do termo “violência” e, aí, tem-se a primeira elucidação a respeito deste fenômeno, comum às sociedades humanas. A definição do que é violência subordina-se a alguns princípios inerentes à manifestação desse fenômeno: a noção de coerção ou força, que pode alcançar as dimensões material, física e/ou simbólica; a sua configuração em contextos histórico-culturais específicos; a racionalidade embutida em sua prática; a dimensão de desigualdade em que se instaura, estabelecendo uma relação fundada no binômio dominação1 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua na área de violência e criminalidade, tendo trabalhos de análise da distribuição de crimes violentos na cidade de Governador Valadares. É professora de Sociologia e Metodologia da Pesquisa Científica na Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE e é responsável pela linha de Pesquisa “Violência e Criminalidade” do Núcleo Multidisciplinar de Estudos Regionais – NEDER/UNIVALE. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 345 submissão (SANTOS, 2002). Segundo Zaluar (1999, p. 13), a violência deve ser entendida como “[...] um instrumento, e não como um fim [...]”, e este argumento se aproxima ao que Santos (s.d. apud ZALUAR, 1999) denomina como uma forma de sociabilidade que, uma vez legitimada por parcela da sociedade, possibilita o controle social aberto, contínuo. Neste sentido, ela se faz presente no cotidiano das sociedades, em todos os tempos e espaços historicamente constituídos, podendo se manifestar em várias instâncias sociais. “As primeiras formas de violência (que vem de cima para baixo) são as propiciadas pelas estruturas sociais iníquas... Quem define o ato violento? Os que detêm o poder. Como definem o ato violento? Como transgressão das regras criadas pelo mesmo poder. Assim, se entre essas regras existem regras violentas, não são caracterizadas como atos violentos, por exemplo, salários injustos; castiga-se como ato violento o roubo de 100 cruzeiros (sic), porque é um ato violento, mas ficam impunes violências muito maiores, como todas as formas de iniqüidade social. É uma violência silenciosa... Ninguém pode responsabilizar ninguém pelas dezenas de milhares de crianças subnutridas, famintas, retardadas, tuberculosas, bestificadas. Mas ninguém ignora que elas também foram vítimas de assaltantes, aqueles que deram um salário de fome a seus pais, que obrigaram suas mães a se prostituírem, que sonegaram impostos, que burlaram a previdência social” (D’AVILA s.d apud ZALUAR, 1999, p. 10-11). Minayo (1990, p. 09-10), em sintonia com o conceito proposto anteriormente, identifica três tipos de violência: a estrutural, a revolucionária e a delinqüência e afirma que [...]. Por violência estrutural entende-se aquela que nasce no próprio sistema social, criando as desigualdades e suas consequências, como a fome, o desemprego e todos os problemas sociais com que convive a classe trabalhadora. Estão aí incluídas as discriminações de raça, sexo e idade. Cuidadosamente velada, a violência estrutural não costuma ser nomeada, mas é vista antes como algo natural, a-histórico, como a própria ordem das coisas e disposição das pessoas na sociedade. [...] a delinqüência [...] compreende roubos, furtos, sadismos, seqüestros, pilhagens, tiroteios de gangues, delitos sob o efeito do álcool, drogas, etc. Essa é a forma mais comentada pelo senso comum como violência. É importante entender que a delinqüência não é um fenômeno natural e muito menos pode ser explica346 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO da pela conduta patológica dos indivíduos e muito menos ainda como atributo dos pobres e negros. O aumento da criminalidade se alimenta das desigualdades sociais, da alienação dos indivíduos, da desvalorização das normas e dos valores morais, do culto à força e ao machismo, do desejo do lucro fácil e da perda de referências culturais. Se o conceito de violência é amplo e perpassa a experiência social de todos os tempos e lugares, é inegável que na atualidade o fenômeno é percebido socialmente em um sentido bastante específico. Quando se fala em violência, geralmente está-se abordando o fenômeno identificado como “criminalidade violenta”, ou seja, aquele conjunto de práticas violentas que foram progressivamente criminalizadas no contexto de constituição dos Estados Modernos, aqui entendidos como “Estados-nação”, no sentido adotado por Giddens (2008). Segundo este autor, no processo histórico de constituição da Modernidade a violência, até então socialmente tolerável e objeto de práticas individuais ou comunitárias de resolução de conflitos, passa a ser definida como desvio – comportamento socialmente indesejável, tendendo, por isso, à criminalização. “[...] O ‘criminoso’, em específico, não é mais um rebelde, mas um tipo de ‘desviante’ que deve ser ajustado às normas de comportamento aceitável como o definido pelas obrigações da cidadania. Nos tipos anteriores de sociedade as classes dominantes não buscaram, ou exigiram, a necessidade da aquiescência regularizada da população, com exceção de critérios demasiadamente restritos à submissão material. A manutenção da ‘ordem’ – um termo que não possui a mesma aplicação em qualquer caso naqueles tipos de sociedade – foi o pretexto de uma combinação de controle da comunidade local e de possibilidade de intervenção quando necessária. Mas no Estado-nação, o encarceramento, mais o policiamento, substituem amplamente essas influências. A ‘guerra civil’, onde ocorre, normalmente é distinguida mesmo das confrontações violentas, bastante significativas entre as autoridades de Estado e agrupamentos de classe rebeldes ou outros grupos dissidentes organizados” (GIDDENS, 2008, p. 205). Giddens (2008) afirma que a nova percepção da violência e a prática socialmente instituída de controle dela é parte de um processo histórico-social preciso. Analisando as condições de desenvolvimento do Ocidente, e mais especificamente da Europa, este autor observa que, no processo de modernização, o Estado se organiza territorialmente, deTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 347 limitando claramente as suas fronteiras e criando uma unidade cultural nos limites do seu território - situação até então inalcançável pelos modelos de Estado anteriormente estabelecidos. A isso é acrescentado um considerável desenvolvimento industrial e o processo de burocratização das instituições sociais, agora denominadas “organizações”. As sociedades caracterizadas como Estados-nação seriam “pacificadas”, ou seja, internamente organizadas para o controle da violência. Isso significa dizer que, a partir da formação desse tipo de sociedade, há uma tendência à diminuição das manifestações violentas, na experiência cotidiana. A pacificação se dá sobretudo no contexto interno, pois a violência torna-se prerrogativa da função administrativa do Estado – só esta instituição pode praticá-la, e com o objetivo de garantir a ordem ou defender os interesses da nação. Segundo Giddens (2008), o processo de pacificação interna dos Estados-nação decorreu das condições histórico-sociais relacionadas com o desenvolvimento do Capitalismo e Industrialismo, no século XIX, da centralização do poder político e da urbanização. O papel do Estado foi importante neste processo, pois territorialmente organizado tomou para si a responsabilidade do controle da violência. Antes da emergência dessa nova estrutura organizacional, a violência era administrada difusamente por nobres e seus representantes comunitários, que tinham ampla autonomia em relação à regulação das leis e das medidas punitivas. Na nova estrutura política, o Estado torna-se um poder administrativo que possui as seguintes atribuições: controlar a comunicação e o armazenamento das informações; garantir a ordem interna; e defender os interesses nacionais, no contexto internacional. Para isso, desenvolve processos de elaboração, disseminação e aplicação das leis e elabora estatísticas oficiais que têm como função orientar as ações do Estado. Para o bom desempenho dessas atribuições, o Estado se articula com as outras instituições sociais que, agora como organizações no sentido burocrático do termo (argumento weberiano), compõem um sistema, uma vez que elas se tornam interdependentes e se articulam em função de um projeto comum (GIDDENS, 2008). Isso se impõe como uma exigência decorrente da unidade territorial que marca a formação dos Estados-nação e da responsabilidade assumida por estes, que se tornam um power-container, por assumir atribuições que são de natureza administrativa, política e social. 348 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO A pacificação interna não ocorreu aleatoriamente ou como parte de um processo natural de evolução humana, mas resultou da capacidade de vigilância possibilitada pelo controle da comunicação e armazenamento de informações pelos Estados-nação. Ao se tornarem um território nacional, coube aos novos Estados a unificação formal das leis e o desenvolvimento da capacidade de fazê-las cumprir (processo de legitimação delas). Isso contribui para a disseminação de um poder disciplinatório, que se faz presente em várias instituições sociais. A consequência direta da criação de um sistema de vigilância social e da imposição do poder disciplinatório é o controle da violência, possível através da vigilância das condutas individuais. Isso se dissemina entre todas as instituições sociais, entre elas as empresas e os locais de trabalho. O conflito aberto e o espírito guerreiro cedem espaço para a negociação e a conciliação de interesses divergentes (argumento de SPENCER, 1979 apud GIDDENS, 2008), pois “[...] considerando que as sociedades pré-industriais são predominantemente guerreiras, as sociedades industriais [...] são por natureza pacíficas, dependendo mais da cooperação conciliatória do que do antagonismo entre as comunidades humanas” (GIDDENS, 2008, p. 48). Neste sentido, podese afirmar que o alcance do comportamento pacificado dependeu, em grande parte, do reconhecimento do direito à liberdade individual e do exercício da cidadania. É neste contexto que as leis consolidam a noção de desvio, criam a figura do criminoso e o princípio da privação da liberdade como o principal recurso contra o desviante (GIDDENS, 2008). Ao fazê-lo, adota-se um modelo disciplinatório de punição, em que o que é importante é o reconhecimento social de que a ordem se alcança através da adequação dos membros da sociedade à lei. “[...] ‘A privação da liberdade’ torna-se o principal meio punitivo. [...] A privação forçada da liberdade é, de alguma forma, uma expressão da centralização que os direitos ‘democráticos’ ou de cidadania vieram a assumir dentro do Estado. O debate [...] sobre quão longe a tendência relativa ao confinamento como uma sanção punitiva corresponde aos ideais humanos é, em alguns aspectos, equivocado. A questão não é apenas se ocorreu uma transição de um tipo de punição (violenta, espetacular, aberta) para outra (disciplinatória, monótona, escondida), mas que um novo complexo de relações coercitivas foram estabelecidas onde poucas estavam loTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 349 calizadas antes. A criação de uma necessidade pela ‘lei e ordem’ é o lado reverso da emergência de concepções de ‘desvio’ reconhecidas e categorizadas pelas autoridades centrais e por especialistas profissionais. Estas são intrínsecas à expansão do alcance administrativo do Estado, penetrando nas atividades diárias – e à aquisição de um monopólio efetivo da violência nas mãos das autoridades do Estado.” (GIDDENS, 2008, p. 204-205) A conseqüência direta da expansão do poder disciplinatório como base da estrutura organizacional das instituições sociais é a diminuição da violência no contexto dos Estados-nação. Estas sociedades, pacificadas, não são isentas de conflitos ou oposição de interesses, ou seja, não são por natureza não violentas. A diferença que se estabelece entre elas e os modelos de instituições político-sociais até então desenvolvidas reside no fato de que nelas os sujeitos regulam a sua conduta tomando como referência o princípio da “liberdade” (WALLERSTEIN, 1979 apud GIDDENS, 2008), e, por isso, alinham-se aos pressupostos do exercício da cidadania, em particular nas obrigações geradas por ela. Neste sentido Giddens (2008, p. 181-182) afirma que [...] No capitalismo industrial há o desenvolvimento de um novo tipo de sistema de classe no qual a luta de classes é predominante, mas em que também a classe dominante – aqueles que detêm ou controlam grande volume de capital – não têm ou não pedem acesso direto aos meios de violência para manter o seu domínio. Ao contrário dos sistemas anteriores de dominação de classe, a produção envolve relações próximas e contínuas entre os principais agrupamentos de classes. Isso presume uma ‘duplicação à vigilância’ os modos de vigilância tornando-se um aspecto chave das organizações econômicas e do próprio Estado.[...]” O processo de pacificação ou acomodação mais efetiva dos indivíduos à lei cria um sentimento de segurança ontológica – porque pensada como inerente à vida em sociedade, e a rotinização da vida, base para a estabilidade social e pleno funcionamento das “organizações”. Giddens (2008, p. 216) observa que [...] Em relação aos sentimentos de segurança ontológica, os membros de sociedades modernas são particularmente vulneráveis à ansiedade generalizada. Isso pode se intensificar quando, como indivíduos, têm de confrontar dilemas existenciais corriqueiros omitidos pela segregação, ou quando as rotinas da vida social são, por alguma razão, substancialmente interrompidas. O vazio 350 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO das rotinas seguido pela vida social moderna engendra uma base psicológica para a incorporação de símbolos que podem tanto promover solidariedade quanto causar separação. [...] Neste ponto, a tese de Norbert Elias (1993; 1994; 1997) sobre o processo civilizador que culminou na configuração da “modernidade” apresenta-se como complemento às reflexões de Giddens. Abordando o processo histórico que conduziu às sociedades urbano-industriais (Civilização em Elias e Estados-nação em Giddens), Elias trata o tema na perspectiva das implicações das transformações políticas, econômicas e culturais na configuração do que ele denomina de uma nova “personalidade social”. Para ele, o processo se inicia na transição entre o feudalismo e o capitalismo, passando pelos Estados Absolutistas e desembocando nas revoluções liberais e seu principal desdobramento, a Revolução Industrial (ELIAS, 1993). Na análise desse processo histórico, confere especial atenção às mudanças que todas estas transformações produzem no comportamento dos indivíduos, para ajustarem-se às novas exigências decorrentes das mudanças em curso, gerando neles novas formas de relacionamento, integração e interdependência. A centralização política, a circulação da moeda, o estabelecimento de relações internacionais e a nova ordenação social proporcionada pelo surgimento da burguesia foram decisivos para a decadência da ordem consolidada na Idade Média européia. À medida que estas mudanças se processam, novos padrões de relacionamentos são estabelecidos entre os membros da sociedade (ELIAS, 1993). As relações sociais se tornam mais complexas devido ao renascimento comercial, pois as alterações geradas pelo processo de produção e comercialização exigem o concurso de muitos braços para a sua efetivação. À medida que estas mudanças ocorrem, os seres humanos se entrelaçam no desempenho das funções sociais, submetendo-se mais à vigilância uns dos outros, especializando-se em determinadas atividades econômicas e competindo entre si no novo mercado de trabalho. Para Elias (1993), a sociedade se torna uma “rede”, no sentido de se caracterizar como um sistema em que os indivíduos, organizados em funções sociais especializadas, vinculam-se a estruturas maiores – as organizações. Portanto, embora ajam individualmente, suas ações dependem do concurso de vários outros indivíduos, gerando o princípio da interdependência das funções sociais. Neste sentido, progressivamente o livre TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 351 curso das emoções e dos impulsos naturais, nos indivíduos, é substituído pela racionalidade da precisão da ação e do autocontrole. No novo contexto histórico-social, a mudança nos padrões de comportamento ou conduta humana gera nos indivíduos uma maior vigilância mútua, que tende a tornar-se autovigilância. São nestes termos que a pacificação pode ser entendida como uma compulsão para o autocontrole, em decorrência do aumento do controle social sobre e entre os indivíduos. Segundo La Bruyére (1922 apud Elias, 1993, p. 226), “O homem que conhece a corte é senhor de seus gestos, de seus olhos e expressão. É um homem profundo, impenetrável. Dissimula as más ações que comete, sorri para os inimigos, reprime o mau-humor, disfarça as paixões, rejeita o que quer o coração, age contra os sentimentos”. Este é o padrão de comportamento individual socialmente imposto como desejável no contexto que Elias denomina como “processo civilizador” do Ocidente. Nele, o indivíduo ajustado é aquele que se caracteriza pelo comportamento racionalizado, comedido, capaz de controlar as suas emoções e canalizar os seus sentimentos para as questões definidas como relevantes para a sociedade. Aos que não conseguem alcançar este padrão de comportamento, cabem o estigma de “desviantes” e a punição processual, como meio de fazê-los cumprir a lei – que por sua vez tem a função de ajustá-los socialmente. O processo de pacificação exige dos indivíduos uma autodisciplina que só pode ser mantida à medida que as condições sociais impostas a eles sejam incorporadas como significativamente válidas, ou seja, sejam justificadas pelo “valor” que carregam. Isso impõe como contrapartida do Estado e das instituições sociais a capacidade de garantirem um nível mínimo de satisfação individual, que lhes possibilitem a identificação com a ordem estabelecida (ELIAS, 1997). À medida que isso não é possível, instaura-se um vazio existencial que cria a possibilidade da explosão da violência como um discurso, uma vez que a sua manifestação demarca a incapacidade da sociedade de ser efetivamente significativa para os seus membros. Analisando os confrontos alemães das décadas de 1960 e 1970, e particularmente a ação dos jovens neste contexto, Elias (1997, p. 186) afirma que “[...] se um considerável número de jovens teve sufocadas suas oportunidades de expressão, como ainda hoje ocorre com freqüência, então existe uma emergência na sociedade, um potencial 352 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO explosivo que, sob condições favoráveis, encontrará repercussão, repetidas vezes, em movimentos que se colocam em pronunciada oposição às instituições políticas estabelecidas [...]” Neste ponto do texto, devem-se tecer considerações acerca da violência, da sua progressiva criminalização no contexto ocidental, do sentimento socialmente construído em relação a este fenômeno e das representações sociais relacionadas à sua manifestação na atualidade. Para fazê-las, serão desenvolvidos alguns argumentos. Em primeiro lugar, deve-se considerar que, embora haja uma tendência a se generalizar o processo de modernização do Ocidente como um fenômeno global, deve-se considerar que o que é global é a proposta de internacionalização dos ideais ocidentais, sobretudo para garantir os interesses do capitalismo e do industrialismo. Neste sentido, observa-se que, apesar da incorporação de padrões de desenvolvimento e organização social, grande parte do mundo alinhado aos interesses do Ocidente o faz marginalmente, no sentido de ajustarem-se aos interesses das potências mundiais, modernizando-se sem, contudo, conseguir incorporar, stricto sensu, seus modelos organizacionais, embora idealmente persigam isso. Não se pode dizer que o processo de pacificação seja homogêneo, embora também não se possa negar que haja um esforço governamental e das instituições sociais nesta direção, na maioria das nações modernas. No que se refere especificamente ao padrão “civilizado” de comportamento, apesar de ser ele desejável, nem sempre é conseguido, sobretudo em países onde os ideais de liberdade e o exercício da cidadania são limitados por Estados que fundamentam a sua autoridade em padrões ditatoriais de governo – situação em que o Brasil se enquadra em grande parte do seu percurso histórico2. Nestes, pode-se afirmar que, muito mais do que o controle da violência, há o exercício dela pelo Estado – que legitima a sua ação em nome da “ordem”, e o controle sobre as informações relacionadas à sua manifestação, para disseminar o sentimento de segurança proporcionada pelo Estado, garantindo, assim, a sua autoridade. Além disso, o contexto moderno restringe o conceito da violência, valorizando aqueles fenômenos que agridem ou ameaçam a integridade 2 Neste caso deve-se considerar o quão recente é o processo de redemocratização do Brasil – década de 1980. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 353 física e os bens da vítima. Estão entre eles os crimes violentos denominados Homicídio Tentado e Consumado, Roubo, Assalto, Sequestro e Latrocínio. Há de se considerar que a progressiva criminalização deles decorreu da ameaça que representam em relação aos princípios da liberdade individual valorizada no contexto da modernidade e isso é legítimo. Porém, outras violências decorrentes da desigualdade social inerente ao processo de industrialização e urbanização também se constituem ameaça à liberdade individual, sem que isso seja reconhecido como tal e gere punição aos transgressores. Por fim, é necessário entender que, se as informações que se tem produzido sobre a violência restringem-se predominantemente à sua versão “criminalidade violenta”, esta abordagem focaliza o problema no transgressor, que representa uma ameaça à sociedade. A maneira como o problema é tratado tem a função de sanear o desvio e restabelecer a “ordem” ameaçada, punindo exemplarmente o transgressor, na maioria das vezes sem nenhuma consideração para com o contexto em que a violência ocorre. Ademais, na atualidade a ocorrência desses fenômenos conta com uma ampla divulgação nos meios de comunicação de massa, que transformam o problema em mercadoria e formam opinião sobre ele, disseminando na população o medo e incentivando a intolerância em relação aos agressores. Estas questões levam a outras, específicas ao Brasil e que, por isso, aplicam-se ao caso de Governador Valadares. No país, as discussões em torno da violência se disseminam no processo de redemocratização decorrente do fim da ditadura militar, na década de 1980, em função do reconhecimento de que neste contexto houve uma “explosão” da criminalidade violenta, tornando-a um problema nacional. Como conseqüência, os Governos federal e estaduais ampliam os investimentos destinados à elaboração de informações oficiais que permitam dimensionar o tamanho do problema e estabelecer estratégias de ação. É também aí que uma série de estudos sobre a violência é desenvolvido por grupos de pesquisa especializados na área, a maioria deles tendo como fontes de informação dados oficiais. Sem desconsiderar a importância dos investimentos, estratégias de enfrentamento do problema e das pesquisas desenvolvidas na área, algumas considerações devem ser feitas sobre este processo. Em primeiro lugar, deve-se perguntar se os padrões de violência eram menores ou se eles foram 354 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO ocultados pela ditadura militar, com o objetivo de manutenção da ordem, o que seria garantido pela censura à disseminação de algumas informações por parte do Governo3. Depois, é necessário considerar que dados oficiais são importantes e são as fontes mais seguras de análise, quando se pretende estabelecer estatísticas criminais, apesar do fato de que dependem da adesão da sociedade ao processo de notificação de casos. Muitos crimes não são registrados oficialmente ou o são parcialmente, em decorrência de vários fatores: insegurança e desconfiança das vítimas em relação aos agressores e aos setores administrativos responsáveis pelo registro, respectivamente; desinteresse ou incapacidade técnica dos profissionais responsáveis pelos registros; e avaliação, por parte das instâncias governamentais, do impacto político e econômico de tais registros, situação que orienta a decisão sobre a maneira mais adequada de fazê-los4. Outra questão relacionada ao problema da violência no Brasil refere-se à aceitação, por parte do Estado e de uma parcela considerável da sociedade, de que a maneira como o fenômeno se manifesta internamente e nos vários espaços territoriais do Brasil se identifica com o que ocorre em outros países. Isso contribui para a aplicação interna de políticas e medidas vindas de “fora”, como se a situação que ocorre “aqui” fosse idêntica à de “lá”, os agressores e vítimas tivessem a mesma experiência de vida e, como conseqüência, a mesma motivação5. Além desses aspectos, deve-se considerar o limite do enfoque centrado na criminalidade violenta urbana, amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa, ocultando as muitas variáveis que permeiam a ocorrência desse fenômeno e que são elementos explicativos deles. Isso parece parte de um projeto político que focaliza o crime a partir da figura do criminoso e não da estrutura social, deixando, assim, de tocar o problema na sua raiz. Como conseqüência, muito do que se produz em pesquisas e projetos políticos de controle e prevenção da violência fortalece a estrutura social vigente e, consequentemente, não produz uma mudança substantiva em relação ao problema. 3 Não se pretende, com esta discussão, desconsiderar o fato de que vários estudos demonstram o crescimento das taxas de violência no Brasil, nas três últimas décadas. 4 Neste caso deve-se considerar o impacto que o registro de casos de violência tem, por exemplo, em Estados e cidades brasileiros com alto potencial turístico. 5 Aqui não se pode negar o caráter internacional de muitos crimes, especialmente aqueles ligados ao tráfico de drogas, armas, etc. Porém, também não se pode cair no erro de se acreditar que todos os crimes têm vinculação direta com eles e podem ser explicados a partir deles. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 355 Isso é observado na maneira como a violência é percebida e tratada no Brasil. A seguir, serão relatados os resultados dos estudos de base nacional, estadual e municipal que demonstram a situação de Governador Valadares nas estatísticas relacionadas com a violência. Antes disso, porém, será realizada uma breve descrição da condição sócioeconômica do município. II - O município de Governador Valadares Governador Valadares é uma cidade localizada no leste de Minas Gerais. Emancipada politicamente em 1938, percorreu um processo histórico que fez dela um pólo regional. Sede do município que recebe o mesmo nome, segundo o censo de 1991 se organizava em torno de treze distritos, que naquela época comportava uma população de 230.524 habitantes (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2003). Em 2000 esta população era de 247.131 habitantes, sendo que no distrito sede concentrava-se 93% dela, ou seja, 229.703 habitantes. Inserido administrativamente na Região de Planejamento do Rio Doce, Governador Valadares faz parte dos 102 municípios que integram esta região administrativa, que, no intervalo entre 1991 e 2000, teve uma taxa de crescimento de 0,5% ao ano e produziu um grau de urbanização correspondente a 75,9% da população regional6 (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2004, p. 118). Neste período, o crescimento rural do município foi negativo, na proporção de –2,9% ao ano. No contexto estadual, Governador Valadares se destaca por estar entre os vinte municípios mais populosos de Minas Gerais (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2004). Nesta categoria, enquadram-se os territórios político-administrativos com população maior que 100.000 habitantes. Na região, Ipatinga é o outro município que, embora com uma população menor – 212.496 habitantes7, divide com Governador Valadares a posição de pólo regional. As características destes dois municípios colocam a Região de Planejamento Rio Doce em evidência no contexto estadual, se considerados o tamanho da população, o grau de urbani6 Segundo a mesma fonte em 2000 a população da região de Planejamento Rio Doce era de 1.534.268 habitantes. 7 Dados referentes ao Censo de 2000. 356 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO zação que comportam e o produto interno bruto (PIB) que produzem, pois, segundo Simão (2004), ela está entre as regiões mineiras que produzem um PIB superior a quinhentos milhões de reais por ano. A análise cuidadosa desta informação, porém, revela as disparidades que ocorrem no interior da sua organização, pois, de acordo com Ferreira (1996) e Santana (2002), citados por Simão (2004, p. 23), este PIB é extraído, majoritariamente, do complexo siderúrgico do Vale do Aço. Por isso afirmam estes autores que “[...] se excluirmos os municípios que compõem o Vale do Aço, a Região Vale do Rio Doce torna-se problemática, pois os demais municípios, que não se localizam no complexo, não são dinâmicos economicamente.” O que é observado no âmbito regional expressa uma situação comum ao Estado de Minas Gerais, que opõe dinamicidade e modernidade, de um lado, e atraso e estagnação, de outro (Simão, 2004). Neste caso embora a economia mineira ocupe o 3º lugar no ranking nacional, encontram-se no seu interior “[...] regiões dinâmicas, modernas e com indicadores sócio-econômicos de alto nível, com localidades atrasadas, estagnadas, que não oferecem a mínima condição de vida para a população[...]” (QUEIROZ, 2001 apud SIMÃO , 2004, p. 3) A desigualdade entre as regiões de planejamento mineiras e no interior delas se revela, também, no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M). Segundo a Fundação João Pinheiro (2004), embora tenha havido um aumento deste índice no intervalo entre 1991-2000 no âmbito estadual, e, como conseqüência, isso tenha refletido nas regiões administrativas, a Região Rio Doce ocupa o 8º lugar no ranking estadual, estando abaixo dela somente as regiões Norte de Minas e Jequitinhonha/Mucuri8. Por outro lado, o IDH-M de Governador Valadares é melhor do que o regional – expressando o desenvolvimento do município, no período, e menor do que o da região metropolitana do Vale do Aço (RMVA)9. Segundo a Fundação João Pinheiro (2004), considerando-se os dois anos censitários em análise, o Vale do Aço apresentou um IDH-M nos valores de 0,773 e 0,803, respectivamente. Os valores da Região do Rio Doce são 0,656 e 0,739, respectivamente, e de Governador Valadares são 0,717 e 0,772. 8 As outras regiões de planejamento são Triângulo, Central, Alto Paranaíba, Centro-oeste de Minas, Sul de Minas, Mata e Noroeste de Minas. 9 Nela se encontram os municípios de Coronel Fabriciano, Ipatinga, Timóteo e Santana do Paraíso. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 357 As diferenças reveladas na variação dos índices dos IDH-Ms, no interior da Região de Planejamento Vale do Rio Doce, são indicativas das desigualdades sociais que permeiam o desenvolvimento do Estado de Minas Gerais. Esta situação permite a inferência de que estas desigualdades se manifestam na forma de concentração de renda, pois, embora tenha havido crescimento sócio-econômico do Estado, na década de 1990, isso não produziu condições homogêneas para a totalidade das regiões que o compõem. Essa situação pode ser observada, em Governador Valadares, através de outros indicadores sociais, que demonstram as condições de desenvolvimento local. Eles revelam que a pobreza diminuiu, pois o percentual da população com renda domiciliar per capita abaixo de R$75,50 passou de 36,2% em 1991, para 26,8% em 2000. A renda per capita média do município cresceu 45,23%; e houve um crescimento de 2,5% da parcela da população composta pelos 20% mais ricos. Em compensação, cresceu a desigualdade social, pois o Índice de Gini, que em 1991 correspondia a 0,59, em 2000 ficava em torno de 0,62 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2003). A desigualdade sócio-econômica é observada na organização do espaço urbano. Segundo dados do UFMG/IPEAD e FAGV (2004), a cidade de Governador Valadares era composta, em 2000, por 80 bairros, alguns deles agregados, por serem recentes e não terem ainda claramente definidos os seus limites territoriais. A população da área urbana correspondia, naquela época, a 227.440 habitantes, ou seja, a 99% da população da cidade, demonstrando o ajuste deste espaço ao que acontece no país, onde se observa a tendência à concentração urbana. Para compor o perfil sócio-econômico da cidade, foi realizada uma pesquisa, que, baseada nos dados censitários de 2000, fez o levantamento da renda e do nível de escolaridade dos chefes de domicílio particulares permanentes. Observou-se que a renda mínima e máxima desses chefes oscilava entre R$191,34 e R$2585,58, respectivamente. Com base nestes dados, foram construídos os seguintes indicadores: renda: baixa (R$191,34 a R$333.15); média-baixa (R$338,76 a R$446,15); média-alta (R$472,15 a R$756,14) e alta (R4771,68 a R$2585,58). Na variável escolaridade, tomaram-se como referência os indicadores: Sem Curso; Alfabetização de Adultos; Fundamental Completo; Fundamental Incompleto; Médio Completo; Médio Incompleto; Superior; Pós-Graduado (UFMG/IPEAD e FAGV, 2004). 358 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO A pesquisa chegou à seguinte caracterização dos chefes de domicílio: 71,50% deles são do gênero masculino; 62,28% enquadram-se na faixa etária de 20 a 49 anos; 87,45% são alfabetizados, sendo que, dentre estes, 73,08% têm até o ensino fundamental completo ou incompleto. O rendimento médio dos chefes de domicílio é de 4,21%, sendo que 73,5% deles, recebiam, em 2000, de 0 a 5 salários mínimos. Outros resultados conduzem à conclusão de que em sua maioria os chefes de domicílio estão enquadrados nas categorias de renda baixa e média – sendo que 51,25% deles estão nas classificações Renda Baixa e Médiabaixa, em oposição a 25% dos chefes de domicílio que enquadram-se na classificação Renda Alta (UFMG/IPEAD e FAGV, 2004). Compondo o cenário sócio-econômico de Governador Valadares, outra variável surge como marca local: a violência e a criminalidade, embora neste aspecto sejam enfatizadas, nas estatísticas nacionais, estaduais e locais, apenas as taxas de criminalidade violenta do município, a partir da década de 1980. Este assunto será abordado a seguir. 2.1 - Caracterização de Governador Valadares nos estudos de base local, estadual e nacional sobre a violência Governador Valadares é um município que, desde a sua origem, carrega o estigma de ser um espaço violento. Vivendo a sua ascensão e apogeu como pólo regional no período que se estende da década de 1940 à década de 1960, o seu desenvolvimento fundamentou-se, segundo o imaginário social dominante na cidade, entre o progresso e a violência. Os registros escritos e a memória oral relacionam os crimes de Homicídio como a marca mais característica da violência que reinava no município, nos seus primeiros anos. Na atualidade, estudos realizados sobre a distribuição de crimes violentos nas regiões de planejamento de Minas Gerais revelam que, o Vale do Rio Doce e a cidade de Governador Valadares, estão entre as áreas que apresentam as taxas mais elevadas de crimes violentos no Estado. Segundo o imaginário social dos moradores antigos de Governador Valadares, no primeiro momento a criminalidade local ajustava-se à euforia em torno das possibilidades econômicas da cidade. Nos dias atuais, ela se desenvolve em meio à relativa melhoria da qualidade de vida da população, expressa no crescimento dos indicadores sociais apresenTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 359 tados pelos dados censitários dos anos de 1991 e 2000. Mas estes dados também revelam a ampliação da desigualdade social e a vulnerabilidade econômica do município, se considerado o desenvolvimento de outros municípios e regiões de planejamento de Minas Gerais. Se historicamente a cidade sempre se destacou no cenário mineiro como produtora de inúmeros crimes, hoje ela se localiza, no contexto estadual e da nacional, entre os municípios com elevadas taxas de crimes violentos. Neste sentido, um estudo relacionado à organização dessa categoria de crimes, ocorridos em Minas Gerais entre os anos de 1980 e 1995, revelou que a Microrregião do Vale do Rio Doce estaria entre as regiões mais violentas do Estado no que se refere às taxas de Homicídio, e também entre aquelas de maiores taxas de Roubos (ARAÚJO JR. E FAJNZYLBER s.d,). Em 1991 Governador Valadares enquadrava-se entre os dez municípios mais violentos de Minas Gerais (BEATO FILHO, 1998; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS, UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, s. d.); e em 1998 o município se destacou por ocupar o 1º lugar no ranking dos municípios da Região Rio Doce no que se refere às taxas de Homicídio (RIGOTTI e AMORIM FILHO, s.d). Dados sobre os crimes de Roubo, Assalto, Homicídio Consumado e Homicídio Tentado, praticados em Governador Valadares, entre os anos de 1998 e 2002, confirmam as análises produzidas por estudos de base estadual. Agregando-se os crimes segundo as categorias estudadas, observou-se que, considerando-se os anos limites do estudo, houve o crescimento das taxas em aproximadamente 50% (CAETANO, SILVA E PINTO, 2005). Outra conclusão produzida por este estudo informa que, paralelo ao crescimento das taxas de crimes interpessoais, há o crescimento expressivo das taxas de crimes patrimoniais. Esta situação revelaria uma nova dinâmica da criminalidade local, até então destacada pelas altas taxas de Homicídio (CAETANO, SILVA E PINTO, 2005). Em outro estudo, observa-se o crescimento do número de crimes violentos, no período de 1998 a 2006 (CAETANO, 2007), pois a comparação das taxas médias de índice de crimes/ano entre os períodos de 1998-2002 e 2003-2006, revelou os valores de 566,9 crimes/ ano e 929,5 crimes/ano, respectivamente. A comparação entre as taxas médias de crimes violentos ocorridos em Governador Valadares, 360 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO nos dois períodos de estudo, por crimes (CAETANO, 2007) demonstrou que o crescimento percentual das taxas foi da ordem de 71% para o Homicídio Consumado, 68% para Assalto; 66% para o Roubo, e 35% para o Homicídio Tentado. A relevância das taxas médias dos crimes de Homicídio Consumado confirma as indicações comuns a outros estudos (RIGOTTI e AMORIM FILHO, s.d.; BEATO FILHO, 1998; ARAÚJO JR. E FAJNZYBER, s.d.) que apontam Governador Valadares não apenas como uma das dez cidades mais violentas do Estado de Minas Gerais, mas também como uma dentre as que apresentam taxas ascendentes de crimes violentos, em particular no que se refere às taxas de Homicídio. Estudos de base nacional também enfatizam a representação de Governador Valadares nas estatísticas da violência. Em um deles, Waiselfisz (2008) analisa os números da mortalidade violenta no Brasil – incluindo aí o que classifica como Acidentes de Trânsito, Homicídios e mortes por arma de fogo, no período entre 1996 e 2006. Utilizando como fonte de informação o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), os resultados da pesquisa demonstram que, no período em análise, houve o crescimento de 20% nos registros de caso de Homicídio, valor maior do que o percentual de crescimento populacional, que ficou em torno de 16,3%. Segundo o mesmo estudo (WAISELFISZ, 2008), 556 municípios brasileiros (10% do número total de municípios) foram responsáveis, em 2006, por 73,3% dos casos de Homicídio no país. Em Minas Gerais estariam 31 desses municípios, sendo que na escala dos municípios mineiros com as maiores taxas de Homicídio, Governador Valadares ocuparia o 4º lugar. Quando os valores consideram as taxas de Homicídio juvenil, por Estado, o município ocupa o 3º lugar entre os dez que apresentam as maiores taxas do crime. Considerando-se o índice de vitimização juvenil, Governador Valadares ocupa o primeiro lugar no Estado e o 21º lugar no ranking dos 200 municípios do país que apresentam os maiores índices. O município também se destaca na estatística dos Homicídios por arma de fogo: está em 5º lugar no ranking mineiro (em relação a 12 municípios) e 45º lugar no ranking nacional, em relação aos 200 municípios do país mais violentos, nesta categoria (WAISELFISZ, 2008). Em 2009, um novo estudo se dedicou à análise da distribuição dos Homicídios nos 267 municípios do Brasil com população maior que TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 361 100.000 habitantes. Baseando-se na construção de um Índice de Homicídios na Adolescência10 - IHA, os resultados da pesquisa localizam Governador Valadares em 2º lugar no ranking dos 20 municípios que apresentam os índices mais elevados (OBSERVATÓRIO DAS FAVELAS, 2009). Segundo a mesma fonte, há uma expectativa de que em um período de sete anos, considerando-se o ano de 2006 como referência, ocorram no município 327 mortes por Homicídio, entre os adolescentes. Em Minas Gerais, outros quatro municípios se destacam neste ranking: Contagem (13º lugar); Ibirité (17º lugar); Betim (19º lugar) e Ribeirão das Neves (20º lugar). Os dados demonstram a situação da violência, em Governador Valadares. Orientadas por estas informações, novas pesquisas são propostas no âmbito local e políticas públicas de prevenção e controle dos crimes violentos são desenvolvidas pelo poder público estadual e municipal. Os programas e projetos voltam-se prioritariamente para a infância e adolescência e são importantes instrumentos de combate à violência. A reflexão aprofundada do problema demonstra, porém, a necessidade de que novas pesquisas e políticas públicas sejam orientadas por metodologias mais elaboradas, que sejam capazes de produzir uma visão ampliada do fenômeno da violência e da criminalidade urbana. 2.2 - Proposição de uma abordagem alternativa para a compreensão do fenômeno da violência em Governador Valadares As estatísticas sobre a violência ocorrida em Governador Valadares, nos anos recentes, revelam informações importantes sobre a dinâmica da criminalidade violenta no município. Observa-se a coerência entre os estudos desenvolvidos no âmbito estadual e local e isso possivelmente resulta do uso das mesmas fontes de dados, embora com enfoques diferenciados. Os estudos de base nacional também destacam os índices e taxas de crimes violentos no município, enfocando particularmente a violência interpessoal – Homicídios Dolosos e Culposos, e a população adolescente e jovem. Ao fazerem isso, prestam grande serviço à sociedade, à 10 Os dados de referência para a construção do IHA são oriundos do SIM e do IBGE e correspondem, de maneira predominante, às informações do ano de 2006. 362 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO medida que demonstram a situação de vulnerabilidade desta parcela da sociedade, pela condição de desenvolvimento em que se enquadram. Além disso, proporcionam, com os relatórios de pesquisa, a orientação de políticas públicas de prevenção e controle da violência. Os limites das pesquisas se manifestam quando elas apresentam uma visão reducionista do problema, fundamentada na apresentação de dados de natureza tipicamente quantitativa. O que revelam são índices, taxas e percentuais que demonstram a evolução do fenômeno, sem se dedicarem à contextualização dele, ou seja, à compreensão do que ocorre a partir “de dentro” – aqui entendida como a comunidade envolvida. Como conseqüência da adoção deste tipo de abordagem, as estatísticas contribuem para a generalização de fatos marcados por historicidades distintas, que se perdem na descrição dos dados e contribuem para a criação de muitos estigmas em relação a vítimas e agressores. No que se refere especificamente ao caso de Governador Valadares, observa-se que variáveis como tamanho populacional – o fato de se inserir na categoria dos municípios brasileiros com população maior que 100.000 habitantes; o processo de urbanização e a sua condição sócio-econômica contribuem para que este município seja alvo dos estudos nacionais que se dedicam ao levantamento dos municípios mais violentos do país e de Minas Gerais. Estes estudos, porém, deixam de abordar especificidades e incoerências internas ao desenvolvimento sócio-econômico, que podem se transformar em importantes variáveis de explicação do fenômeno. Ao descrever o ranking dos municípios brasileiros de maior incidência de violência, Waiselfisz (2008) reconhece que, a partir de 1999, observase uma mudança na dinâmica da criminalidade violenta. Segundo o autor, se antes ela se concentrava nas grandes capitais e metrópoles, nos anos recentes ela vem se interiorizando, exigindo, por isso, nova abordagem técnico-científica e político-social do fenômeno. Esta deve considerar as condições de desenvolvimento regional e o impacto disso na organização da violência local. [...] Isso parece resultar de uma dinâmica territorial específica que ainda não é bem compreendida, mas que comporta provavelmente aspectos como a identidade regional, um clima favorável ao espírito empreendedor, a existência de redes públicas e privadas ou a atração do meio cultural e natural. Essa nova dinâmiTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 363 ca territorial do desenvolvimento estaria também impactando a distribuição geográfica da violência no país [...] (ABROMOVAY, 1998;1999 apud WAISELFISZ, 200,p. 8). Diante das inúmeras variáveis que envolvem a questão da violência, entende-se que a abordagem quantitativa é frágil na sua capacidade de explicar em profundidade o problema da violência e criminalidade. Isso coloca a necessidade de que a abordagem qualitativa seja aplicada aos estudos de problemas dessa natureza. Em relação à situação de Governador Valadares, o que se observa com a publicação dos resultados das pesquisas é uma comoção social em torno das informações, que oscila entre a indignação e a descrença, com predomínio da primeira. Em ambos os casos há a tendência de se compreender que o problema é de responsabilidade do Governo e que medidas enérgicas devem ser tomadas para o enfrentamento dele. Além disso, espera-se que as medidas surtam efeito em curto prazo, o que é tecnicamente impossível. A compreensão mais profunda do problema deve direcionar-se tanto para a dimensão histórica dele, como para as condições de organização do município, na atualidade. No que se refere ao aspecto histórico, observa-se que à adoção de uma estratégia violenta de ocupação do território, no século XIX, seguiu-se a construção de um imaginário sobre a violência, no município (ESPINDOLA, 2005; SIMAN, 1988). Isso deve ser objeto de análise, no sentido de explicitar em que medida este imaginário colabora para a manutenção de padrões elevados de violência local. Além da análise histórica, é necessário que novos estudos, embasados na configuração atual do município, focalizem não o fenômeno da violência em si, mas a sociedade como um todo. Um dos pressupostos teóricos que motiva este olhar sobre o objeto em análise parte da compreensão de que o espaço urbano é o resultado da interação de indivíduos e instituições sociais que se localizam em lugares, sentimentos e valores diferenciados, que, em confronto, formam a tessitura das relações instituídas (TELLES, 2007). Nesta perspectiva, entende-se que o urbano é caracterizado por “[...] trajetórias habitacionais, percursos ocupacionais, deslocamentos cotidianos nos circuitos que articulam trabalho, moradia e serviços urbanos. Três dimensões entrelaçadas nas trajetórias individuais e familiares. [...] na ótica dos atores, essas formas 364 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO de mobilidades não são apenas interdependentes, mas diversas facetas de um processo único de reorganização das condições de existência. Seus eventos precisam, portanto, ser situados nos tempos e espaços em que as histórias se desenrolam. É por essa via que se deixam ver como pontes de condensação de tramas sociais que articulam histórias singulares e destinações coletivas. Tempos biográficos organizam trajetórias que individualizam histórias de vida e estão inscritos em práticas situadas em espaços e circuitos urbanos que as colocam em fase com tempos sociais e temporalidades urbanas.” (TELLES, 2007, p. 23-24). Este enfoque entende o problema da violência como parte do processo cultural, no sentido que lhe é dado por Geertz (1989). Para ele, é através do comportamento humano, que se manifesta na ação dos indivíduos, que se articula a cultura. Aquele – o comportamento, é, ao mesmo tempo, estruturante e estruturado pelo padrão da vida corrente, fazendo configurar um todo coerente que é o sistema cultural. Assim, pode-se definir a cultura como um fenômeno público, que, de maneira consciente ou inconsciente, faz-se presente em todas as mentes humanas. “[...] São esses circuitos que as trajetórias urbanas permitem apreender e que interessa compreender: a natureza de suas vinculações, mediações e mediadores, agenciamentos da vida cotidiana que operam como condensação de práticas e relações diversas” (TELLES, 2007, p. 26). Portanto, refletir sobre a violência comum ao espaço urbano exige a compreensão de que este ambiente caracteriza-se pela interseção de diferentes categorias e agentes sociais, que, ao interagirem, constroem sistemas e redes de relações (VELHO, 2003). Estas sustentam a vida em sociedade e transformam as aparentes contradições e/ou oposições de interesses em parte de um todo coerente e fundamental ao funcionamento social. O urbano é o espaço da heterogeneidade, onde os indivíduos e suas biografias demarcam o seu lugar no meio sociocultural (VELHO, 2003), muitas vezes em oposição a outros indivíduos e às instituições sociais. A experiência individual é o resultado de uma construção histórico-social, que, ao interagir com outros indivíduos e suas representações, contribui para a composição de uma rede de significados que sustenta a vida em sociedade, configurando, assim, a cultura (VELHO, 2003; KUPER, 2002). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 365 Ao compreender as cidades como “sistemas de redes e relações”, reconhece-se a importância que os sujeitos sociais e suas trajetórias de vida têm, como prerrogativa para a compreensão desses espaços: [...] Dessa forma, os indivíduos, na sua singularidade, também se tornaram matéria da antropologia, à medida que eram percebidos como sujeitos de uma ação social constituída a partir de redes de significados. Em lugar de considerar os indivíduos como determinados por instâncias englobantes anteriores, passava-se a estudá-los como intérpretes de mapas e códigos socioculturais, enfatizando-se uma visão dinâmica da sociedade e procurando-se estabelecer pontes entre os níveis micro e macro (VELHO, 2003, p.16). As identidades urbanas devem ser percebidas como uma complexidade marcada pela multidimensionalidade do mundo real, onde se manifestam diferentes níveis e províncias de significados (VELHO, 2003). Neste contexto, aplica-se o conceito de “Mapa Cultural” proposto por Ortiz (2000, p. 72): “[...] um espaço ocupado por unidades diferenciadas, no qual a dinâmica global se faz a partir do movimento de cada uma das partes”. Segundo este autor, os mapas culturais são espaços demarcados territorialmente, sendo que as partes estão em contato permanente, embora existam limites internos e externos a eles. Os primeiros caracterizam-se pela demarcação das identidades que definem cada “foco cultural”, e os externos expressam as fronteiras territoriais em que podem se projetar socialmente. Nesta perspectiva analítica, o pesquisador é motivado pela necessidade de compreender como os processos sociais se estruturam (WEBER, 1991), a partir da interação de sujeitos que se localizam em espaços ou territórios diferenciados e aparentemente antagônicos. Entende-se que estes, ao se posicionarem em lugares socialmente diferenciados, contribuem para a configuração de uma realidade que, ao mesmo tempo que se impõe a eles, são produtos da inter-relação entre as várias ações sociais de sujeitos subjetivamente motivadas. A adoção da abordagem qualitativa na análise do fenômeno da violência urbana é a condição para que ele seja não apenas entendido em profundidade, mas possa produzir mecanismos eficazes de resolução do problema, que tanto incomoda a sociedade e gera expressivos gastos governamentais voltados para a sua prevenção e controle. Neste sentido, não se pode negar, no processo de construção de um saber sobre a 366 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO violência em Governador Valadares, como os sujeitos interagem entre si e com as instituições sociais, e, a partir daí, constroem saberes relacionados à tessitura do espaço em que habitam. Fenômenos como a emigração internacional; a existência de 15 bolsões de pobreza no município (AVSIBRASILE; PREFEITURA MUNICIPAL DE GOVERNADOR VALADARES; CDM, 2002); as condições de empregabilidade; a percepção social do funcionamento do sistema de segurança pública; o sentimento de pertencimento; as características do sistema viário; e as condições de realização de interesses individuais, entre várias outras questões, são variáveis importantes para a compreensão do problema da violência local. Assim, é fundamental que o conceito de violência seja ampliado para além do que se define como criminalidade violenta, e que se analise se não há vínculos de continuidade entre as várias faces da violência, no contexto local (MINAYO, 1990). Só assim será possível uma compreensão mais abrangente e menos reducionista e estigmatizante da violência. Cabe a esta nova abordagem romper com a visão globalizante do problema, que muitas vezes impõe a aplicação de modelos “estrangeiros” de enfrentamento do problema, imaginando-se poder alcançar os mesmos resultados em situações apenas aparentemente iguais. Mas, para isso, deve-se romper com a idéia corrente, tanto no âmbito do Estado como da sociedade em geral, de que o saber sobre a violência tem como função primordial a ordem social, através do controle dos potenciais ofensores. É só nesta perspectiva que os percentuais, taxas e índices se justificam como demonstrativos da situação. Por outro lado, ao focalizarem o agressor como principal alvo das políticas públicas, e não as estruturas sociais, que são ao mesmo tempo produtoras e produtos da interação social dos vários indivíduos, as respostas governamentais e sociais à violência produzem parcos resultados em relação às dimensões reais do problema. O que deve ser objeto de análise, portanto, é o que a violência tem a informar sobre as condições de organização da sociedade, nas várias territorialidades em que se manifestam. Considerações finais Este texto iniciou com a descrição do que é violência e de como este fenômeno foi historicamente forjado no processo de modernização das sociedades ocidentais. Com base nos estudos de Antony Giddens TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 367 e Norbert Elias, conclui-se que o sentimento socialmente estabelecido em relação à violência, na atualidade, reside em grande parte no fato de que as sociedades modernas são sociedades pacificadas, ou seja, assentadas no efetivo controle da violência e fundadas em um sentimento de segurança ontológica, segundo a qual a sociedade está protegida da irrupção de fenômenos violentos. Na perspectiva histórico-social, este sentimento fundamentase na percepção de que cabe ao Estado-nação gerenciar a violência, sobretudo através da aplicação rigorosa da lei aos indivíduos que passam a ser definidos como “desviantes”, por ameaçarem os princípios da liberdade individual e da cidadania. Neste contexto, observa-se a progressiva criminalização da violência, sobretudo quando os alvos dos agressores são os indivíduos e os bens materiais. A representação social da violência como algo negativo está disseminada internacionalmente, principalmente se considerado o contexto ocidental. Esta representação também contribui para que, a partir das últimas décadas do século XX, sejam ampliados os estudos e discussões sobre o problema da violência, em particular da sua manifestação como criminalidade violenta. Com base na abordagem quantitativa do problema, muitos deles têm revelado o crescimento das taxas de crimes através dos tempos. No Brasil, as pesquisas focam especificamente a manifestação do problema em municípios com população maior de 100.000 habitantes. Os resultados, que, na maioria das vezes, revelam taxas ascendentes, têm orientado políticas públicas de prevenção e controle da violência. Governador Valadares está entre os municípios que, no âmbito estadual e nacional, produzem elevadas taxas de crimes violentos, atingindo especialmente a população adolescente, tanto na condição de agressores como de vítimas. Esta situação ocorre em meio a uma trajetória que, segundo relatos históricos (ESPINDOLA, 2005; SIMAN, 1988), permeia o processo de formação da cidade e se configura, nos dias atuais, como parte de um contexto sócio-econômico marcado por desenvolvimento e ampliação da desigualdade social (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2003; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2004; SIMÃO, 2004). Observa-se que os resultados das pesquisas desconsideram as especificidades dos contextos em que a violência ocorre, embora haja muitas disparida368 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO des entre os vários municípios identificados como os mais violentos, no Brasil. Além disso, as dimensões estruturais do problema não são abordados, sendo o enfoque principal a vítima e o agressor, como se eles não tivessem uma história e como se esta não tivesse vínculos de proximidade com o contexto em que habitam. O resultado da divulgação das estatísticas criminais é a disseminação do medo, da indignação e da intolerância em relação aos agressores. No que se refere à circulação midiática delas, observa-se o uso das estatísticas como mercadoria, forjando opiniões e contribuindo para a disseminação de discursos, na maioria das vezes, discriminatórios. Diante deste fato, considera-se a importância de que novos estudos sobre a violência e a criminalidade adotem a metodologia qualitativa como modelos de análise. Dessa forma, poder-se-á alcançar um resultado menos globalizante e mais profundo do problema, o que contribui para a implementação de medidas mais efetivas de enfrentamento dele, com projeções de médio e longo alcance. Espera-se que em Governador Valadares a análise da violência alcance uma visão mais aprofundada do problema, em que as inúmeras variáveis que se colocam como elementos de investigação sejam alcançadas. Na nova abordagem metodológica, deve-se ter como referências as especificidades da trajetória histórica do município e as condições de organização econômica e sócio-culturais locais. Referências ARAÚJO JR., Ari Francisco de, FAJNZYLBER, Pablo. Crime e economia: um estudo das microrregiões mineiras. In. Seminário sobre economia mineira, 9. s.l. s.d., p. 809-840. 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A condição do proletariado, portanto, sofreu nessa época profundas transformações a partir das conquistas das lutas sociais. O desenvolvimento do Estado-Providência não chegou, contudo, a vencer a antiga insegurança social e a eliminar o medo do futuro. Assim, Ao fim dos Trente Glorieuses, terminada a década de 1970, a utopia de uma sociedade livre das necessidades, de um indivíduo protegido contra os principais riscos de existência, parecia estar ao nosso alcance. No entanto, já no início da década seguinte, o crescimento do desemprego e o surgimento de novas formas de pobreza pareciam, ao contrário, afastar-nos desse ideal (p. 23). Não existia apenas simples retorno aos problemas do passado. As antigas categorias de exploração do homem não poderiam enquadrar os novos fenômenos da exclusão. Surgia, portanto, uma Nova Questão Social, traduzida: 1 Psicóloga (UFRJ), Mestre em Educação (PUC-RIO), Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). Professora Adjunta e pesquisadora da Universidade do Vale do Rio Doce – UNIVALE – FHS - Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território. E-mail: [email protected] TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 373 [...] pela inadaptação dos antigos métodos de gestão do social, como testemunha o fato de que a crise do Estado Providência, diagnosticada no fim dos anos 1970, mudou de natureza, iniciando uma nova fase a partir do princípio da década de 1990 (p. 23). Castel (2001) apresenta a “Questão Social” como uma inquietação quanto à capacidade de manter a coesão de uma sociedade. Coesão esta que sofre ameaças de ruptura, em razão da existência de determinados grupos de pessoas que dependem de intervenções sociais distintas, de acordo com o critério de serem ou não capazes de trabalhar. Velhos indigentes, crianças sem pais, estropiados de todos os tipos – cegos, paralíticos, escrofulosos e idiotas – compõem um primeiro perfil de população que não supre, por si mesma, suas necessidades básicas, porque não pode trabalhar (CASTEL, 2001). Caracteriza-se, assim, segundo o autor, uma teoria da desvantagem, no sentido amplo do termo. Grande problema: onde, exatamente, passaria a linha divisória entre a capacidade e a incapacidade de trabalhar? Velhos cegos, por exemplo, teriam condições de sobreviver por seus próprios meios? “Os infortunados sempre serão suspeitos de quererem viver à expensa dos ricos.” (p. 41). Deve-se, portanto, compreender a Teoria da Desvantagem no sentido metafórico, pois embora a categoria seja heterogênea quanto às condições que levam à situação de impossibilidade – deficiência física ou psíquica, manifestada em virtude da idade, de enfermidades, situações familiares ou sociais desastrosas –, existe coerência quanto ao tipo de trabalho qualificado por esse sentido metafórico. Prossegue Castel (2001): Essas populações isentas de obrigação de trabalhar são os clientes potenciais do social-assistencial. Tal assistência pode representar problemas financeiros, institucionais e técnicos difíceis. Não cria problemas de princípio. Desde que consiga fazer reconhecer sua incapacidade, o indivíduo pode ser assistido, ainda que, na prática e amiúde, esse tratamento se revele insuficiente, inadequado, condescendente e até mesmo humilhante. Porém, se sempre é fonte de embaraços, a existência desse tipo de população não questiona, de modo fundamental, a organização social (p. 42). Um segundo perfil de grupo de assistidos apontado por Castel (2001) é composto por aqueles que, apesar de revelarem a capacidade de trabalhar, não o fazem. Inicialmente apresentam-se sob a figura de indigente válido, ou seja, carente, dependente de auxílio, embora 374 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO sem condições de beneficiar-se dos dispositivos concernentes aos assistidos (isentos da obrigação de autossustento). Sem trabalho e fora da área de assistência, o indigente válido é colocado em situações contraditórias: se estrangeiro-forasteiro-sem vínculos, não se beneficia das redes de proteção próximas, que asseguram aos autóctones o atendimento, ainda que mínimo, de suas necessidades elementares. Torna-se, portanto, o desfiliado por excelência, em situação de vagabundagem na sociedade pré-industrial do ocidente cristão, a qual vai da metade do século XIV às transformações do fim do século XVIII. Entretanto, de acordo com Castel (2001), encoberta pelo rótulo de vagabundagem, encontramos a realidade sociológica de um personagem trabalhador, que vive a instabilidade do emprego e caminha em busca de uma ocupação que se esquiva: a questão da condição do assalariado. Condição esta que exprime, na visão do autor: [...] a necessidade crescente de recorrer ao assalariamento e ao mesmo tempo, a impossibilidade de regular uma condição salarial, devido à persistência de tutelas tradicionais que comprimem o trabalho em redes rígidas de obrigações sociais e não econômicas (p. 43, 44). O caminho traçado desde as tutelas até o contrato de trabalho é longo e vai desembocar na modernidade liberal, ao fim do século XVIII, como nos aponta o autor. Percorrer esse caminho é, na visão de Castel (2001), [...] embrenhar-se pelas formas complexas da organização do trabalho da sociedade industrial, o trabalho regulado, trabalho forçado, desenvolvimento de núcleos esboçados e fragmentários, mas sempre circunscritos e controlados, condição de assalariado livre (p. 44). Dessa forma, as proteções vinculadas ao trabalho regulado não garantem a condição da maioria dos que vivem do trabalho de seus braços. Condição caracterizada por uma vulnerabilidade de massa, que conjuga a precariedade do trabalho, a fragilidade dos suportes de proximidade, e o enfraquecimento das proteções, em substituição ao excesso de coerções. Castel (2001) resume a construção da “Questão Social”, ao afirmar que inicialmente: [...] havia as tutelas e as coerções que o Estado absolutista e a organização tradicional dos ofícios conspiravam para manter. No fim – final do século XVIII – dá-se o advento dos contratos e da TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 375 liberdade de empreender, que o princípio da governabilidade liberal, modelado pelo Iluminismo, impõe aos fatos através da revolução política [...] A tarefa de uma política social a partir do século XIX será, realmente, ancorar esta estrutura muito friável do livre contrato de trabalho (p. 44, 45). Demasiadamente forte e selvagem, a liberdade que favorecia apenas as empresas gerava uma face sombria para todos aqueles que se encontrassem sem vínculos ou suportes, privados de qualquer tipo de proteção e de qualquer reconhecimento: a individualidade negativa. Como resposta a tal situação, construiu-se assim, na ótica do autor, o Estado Social, segundo o qual é possível conjurar os riscos, por meio de sólidos sistemas de garantias. Não tão sólidos, no entanto, porque vão perdendo gradativamente seus poderes integradores. Logo, o acompanhamento das rupturas e recomposições representa o caminho mais rigoroso para chegar à problemática contemporânea, decorrente em especial da perda do poder integrador das regulações tecidas em torno do trabalho. Assim, através de Castel (2001), podemos compreender que se opera uma reviravolta total da sociedade pré-industrial à sociedade pósindustrial. Do excesso de coerções ao enfraquecimento das proteções, constitui-se a vulnerabilidade. A Nova Questão Social pela lente de Arendt Ao discutir em seu livro, A Condição Humana, Arendt (2000) afirma que a Era Moderna trouxe a glorificação teórica do trabalho, resultando na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária2. Sociedade operária que abriga o sonho de libertar-se dos grilhões do trabalho desenvolvido no interior das fábricas - visto como um fardo e já escasso - e ingressar nas atividades que considera superiores e mais importantes. Sonho que, no entanto, se revela ilusório, pois além de essa sociedade desconhecer os mecanismos necessários para acesso a tais atividades, estas últimas na realidade mostram-se igualmente escassas. 2 Arendt (2000) frisa que a Era Moderna não coincide com o mundo moderno. A primeira começou cientificamente no século XVII e terminou no limiar do século XX, ao passo que o mundo em que vivemos, o mundo moderno, surgiu com as primeiras explosões atômicas. 376 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Trata-se de uma sociedade igualitária, porque: [...] é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem. Até mesmo presidentes reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da sociedade; e, entre os intelectuais, somente alguns indivíduos isolados consideram ainda o que fazem em termos de trabalho, e não como meio de ganhar o próprio sustento (ARENDT, 2000, p. 12, 13). Depara-se, portanto, na visão da autora, com a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, única atividade que lhes resta. Os novos supranumerários, os inúteis do mundo, na concepção de Castel (2001). Assim, a liberação da força de trabalho não se restringiu a certas classes da sociedade, nem a apropriação resultou em satisfação das necessidades e desejos. O acúmulo de capitais infiltrou-se por toda a sociedade, dando início a um fluxo constante de aumento de riqueza, o qual se tornou possível porque o mundo e a própria mundanidade do homem foram (e continuam sendo) sacrificados (ARENDT, 2000). Arendt (2000) classifica o sacrifício-alienação em estágios. O primeiro é caracterizado pela crueldade, pela miséria e pela pobreza material que atingiram os trabalhadores pobres, despojados da dupla proteção da família e da propriedade – pedaço de mundo que, até o advento da Era Moderna, lhes pertencia, bem como a todos os seus, e abrigava em seu interior não só o processo vital individual, mas também a atividade de labor sujeita às necessidades desse processo. Cabe o questionamento: quem são os trabalhadores pobres na atualidade? De um ponto de vista meramente descritivo, como aponta Zaluar (2000), os trabalhadores pobres seriam todos aqueles incluídos nas faixas de renda mais baixa. Entretanto, o que poderia ser considerado como faixa de renda mais baixa, em pleno século XXI, dentro da realidade brasileira? Diante de tantas possibilidades de respostas, optei pelas informações do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, publicação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, que nos fornece também dados mais aprofundados sobre o perfil dos municípios brasileiros. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 377 Através dessa publicação, obtém-se a informação de que a pobreza é medida pela proporção de pessoas com renda domiciliar per capita inferior a R$ 75,50, equivalente à metade do salário mínimo vigente em 2000. Considera-se como renda mensal domiciliar a soma dos rendimentos mensais dos moradores da unidade domiciliar, excluindo-se os rendimentos das pessoas cuja condição no domicilio seja de pensionista, empregado doméstico, ou parente de empregado doméstico. Embora a renda per capita média do município de Governador Valadares (MG) tenha crescido 45,23%, passando de R$ 212,19 em 1991, para R$ 309,02 em 2000, e o percentual de pobres tenha diminuído 25,86%, passando de 36,15% em 1991, para 26,80% em 2000, a intensidade da pobreza3, bem como a intensidade da indigência4, aumentaram de uma década para outra – de 39,90% para 42,78%; e de 31,17% para 47,78%, respectivamente. O índice de Gini passou de 0,59 em 1991, para 0,625 em 2000. Esses números podem indicar tendência ao aumento da desigualdade, caso persistam os mesmos fatores estruturais e conjunturais na economia local e nas políticas públicas municipais e estaduais. Segundo Rocha e Tolosa (1991), o rendimento oriundo do trabalho constitui a principal fonte de renda dos indivíduos, sejam estes pobres ou não-pobres. Entretanto para os pobres, a dependência da renda de trabalho é muito maior; além desse aspecto, o fato de ser pobre resulta em inserção inadequada no mercado de trabalho, em virtude das características deste último (subemprego, trabalho informal, desemprego, trabalho precoce) e do próprio indivíduo (gênero, etnia, nível de escolaridade). Características presentes também na realidade do município em estudo. Rocha (1992) esclarece que a crescente informalidade (percentagem de empregados sem carteira de trabalho e trabalhadores por conta própria não cobertos pela seguridade social) está intimamente associada 3 Intensidade da Pobreza é a distância que separa a renda domiciliar média per capita dos indivíduos pobres (com renda domiciliar per capita inferior à linha de pobreza – R$ 75,50) do valor da linha de pobreza – medida em termos de seu percentual do valor. (PNUD – Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil). 4 Intensidade da Indigência é a distância que separa a renda domiciliar média per capita dos indivíduos indigentes (renda familiar per capita inferior a R$ 37,75) do valor da linha de indigência. O indicador aponta o quanto falta para um indivíduo deixar de ser considerado indigente. (PNUD / Atlas do desenvolvimento Humano no Brasil). 378 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO ao declínio do emprego nas indústrias, ou seja, no setor secundário, bem como à terceirização em atividades de baixa produtividade e baixa remuneração, principalmente no comércio e nos serviços não especializados. Voltemos aos estágios do sacrifício-alienação propostos por Arendt (2000). O segundo estágio caracteriza-se pela transformação da sociedade em sujeito do novo processo vital, em substituição à família. Assim, [...] a participação numa classe social substituiu a proteção que antes era oferecida pela participação numa família, e a solidariedade social passou a ser substituta muito eficaz da solidariedade que antes reinava na unidade família. [...] Uma vez que a sociedade passa a substituir a família, os critérios de sangue e terra devem governar as relações entre os seus membros; a homogeneidade da população e seu arraigamento ao solo passam a ser os requisitos do estado nacional em toda parte (p. 268, 269). O terceiro e último estágio é apontado pela autora como o declínio do sistema de estados nacionais europeus; o encolhimento econômico e geográfico da Terra, transformando em fenômenos globais a prosperidade, mas também a depressão; a transformação da humanidade em entidade existente, cujos membros podem se encontrar em curto tempo, nas mais distantes pontas do globo. Arendt (2000) alerta-nos, no entanto, para as consequências do processo de alienação no mundo, desencadeado pela expropriação e pelo crescente acúmulo de riquezas. Os homens não podem ser cidadãos do mundo como são cidadãos dos seus países, e homens sociais não podem ser donos coletivos como os homens que têm um lar e uma família. São donos de sua propriedade privada. A ascensão da sociedade trouxe consigo o declínio simultâneo das esferas pública e privada; mas o eclipse de um mundo público comum, fator tão crucial para a formação da massa solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, alienada do mundo, dos modernos movimentos ideológicos de massa, começou com a perda, muito mais tangível, da propriedade privada de um pedaço de terra nesse mundo (p. 269). Respostas para tamanha questão jamais deverão ter apenas por base considerações teóricas ou a opinião de uma só pessoa, pois não existe solução única possível. Impõe-se, portanto, a reflexão sobre o que nós temos feito. Afinal, “a irreflexão – a imprudência temerária, ou a irremediável confusão, ou a repetição complacente de verdades que TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 379 se tornaram triviais e vazias – parecem ser uma das principais características de nosso tempo” (ARENDT, 2002, p. 13). Analisar os múltiplos olhares sobre a pobreza, bem como alguns aspectos que caracterizam a população pobre valadarense serão os próximos passos neste artigo. Afinal como se define e se mensura o fenômeno pobreza? Quem são os pobres em Valadares? La pobreza se encuentra directamente relacionada tanto com los niveles y patrones de empleo como com lãs desigualdades y processos de discriminación existentes em la sociedad. A su vez, lãs diferentes formas que adopta la discriminación están estrechamente asociadas com los fenômenos de exclusión social causantes de la pobreza. Son, además, responsables de la superposion de distintos tipos de vulnerabilidad, así como de la creación de poderosas barreras adicionales que impeden a los personas y grupos discriminados superar su situción de pobreza. Los sectores discriminados san más vulnerables frente a la pobreza que otros y sus carências sociales y econômicas son también más severas. (OIT, 2003. p. 84).5 O conceito de pobreza, para Tolosa (1991), deve ser definido e mensurado de forma a evitar a exclusividade de sua dimensão econômica, incluindo também os aspectos social, cultural e biológico. Assim, em sentido mais amplo, “a cultura da pobreza refere-se a uma atitude de vida adquirida em ambiente social e histórico, caracterizado pela ausência de participação e integração nas principais instituições da sociedade” (p. 108). Na definição mais restrita, Tolosa (1991) propõe a idéia de que pobreza estaria associada a restrições severas, impostas aos indivíduos e suas famílias na escolha e no acesso a bens e serviços. Admite-se, nessa linha de raciocínio, que a renda, ou melhor, a insuficiência de renda 5 A pobreza se encontra diretamente relacionada tanto aos níveis e padrões de emprego, quanto às desigualdades e aos processos de discriminação existentes na sociedade. Por sua vez, as diferentes formas adotadas pela discriminação estão estreitamente associadas aos fenômenos de exclusão social causadores da pobreza. São, ademais, responsáveis pela superposição de distintos tipos de vulnerabilidade, assim como pela criação de poderosas barreiras adicionais que impedem que pessoas e grupos determinados superem sua situação de pobreza. Os setores discriminados são mais vulneráveis do que outros diante da pobreza, e suas carências sociais e econômicas são também mais severas. (tradução nossa) 380 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO representaria adequadamente deficiências nutricionais e de acesso aos serviços de infraestrutura social. Embora se admita que, do ponto de vista metodológico, esse critério de associação de renda e pobreza seja criticado por vários autores. Abranches (1985) também caracteriza o fenômeno pobreza como a destituição de meios de subsistência satisfatória; tal fenômeno apresenta como parâmetro estruturador, intrínseco à sua lógica de formação, a privação absoluta. Assim, a pobreza “está intimamente associada ao padrão vigente de consumo e aos mecanismos de distribuição de bens e serviços fora dos circuitos normais do mercado, através das políticas de cobertura social” (p. 46). Expõe ainda Tolosa (1991) o fato de que a pobreza poderá ser entendida em termos relativos, quando as desigualdades na distribuição de renda forem medidas pelas diferenças entre as participações relativas dos vários grupos na população total e na renda agregada. Segundo as palavras do mesmo autor: a representação gráfica é conhecida como curva de Lorenz. Nos eixos coordenados são representadas as porcentagens (ou participações relativas) cumulativas dos vários grupos (geralmente decis) na população total e na renda agregada. A distribuição eqüitativa seria então representada pela diagonal principal, ou seja, quando as participações relativas de vários grupos na população e na renda forem rigorosamente iguais. Qualquer desvio em relação àquela diagonal será representado por uma curva convexa definida entre a origem e os 100% da população e da renda (p. 134). O autor esclarece também que existem alguns indicadores de pobreza, como o de Gini6 e o de Theil - este último mais difundido, porque permite a decomposição em partes aditivas. O primeiro, o coeficiente de Gini, nada informa sobre níveis absolutos de renda, apenas sobre desigualdades relativas na distribuição. Além dos termos relativos, a pobreza também pode ser explicada em termos absolutos, apesar do alto custo das pesquisas de orçamentos 6 O coeficiente de Gini para determinada distribuição de renda medirá desvios em relação a uma distribuição perfeitamente equitativa. Quanto mais elevado o Gini, maior a pobreza relativa. O coeficiente mede a razão entre o numerador – área compreendida entre a curva de Lorenz e a diagonal principal, e o denominador – área do triângulo equilátero definido pela diagonal principal e pelo eixo das abscissas. Seu intervalo de variação está entre 0 (perfeita igualdade) e 1 (desigualdade máxima). Fontes: Tolosa (1991), PNADs-IBGE-2003. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 381 familiares requeridas para tal tarefa. “A idéia é medir desvios da renda dos indivíduos, famílias ou grupos em relação à linha de pobreza geralmente definida a partir de critérios nutricionais e antropométricos.” (TOLOSA, 1991, p. 108, 109). Segundo Abranches (1985), faz-se necessário explicar melhor esse ponto de interpretação de números relativos e absolutos: A melhoria nas proporções da pobreza relativa das populações carentes é significativa em si mesmo, pois indica que uma parcela das pessoas e das famílias destituídas logrou melhorar, ainda, que em pequena escala, suas chances de vida. Entretanto, o número absoluto dos pobres também tem relevância intrínseca: em primeiro lugar, porque diz respeito a seres humanos em condições miseráveis; em segundo lugar, porque as estratégias de erradicação da pobreza devem ter como alvo esse número absoluto, tanto no sentido do combate à pobreza, quanto no sentido do cálculo e programação dos gastos necessários (p. 33). Portanto, para o autor, existe grande diferença entre relativo e absoluto, quando se comparam os meios rural e urbano, porque as mudanças relativas são mais eloquentes que as coincidências numéricas. Existe, assim, forte predomínio de grupos empobrecidos no conjunto de populações rurais, o que determina um contexto socioeconômico e político mais deprimido, de maior destituição, e com mais escassas estratégias de ação. As características econômicas do meio rural, na visão de Abranches (1985), são menos sensíveis à melhoria dos níveis de emprego e renda, assim como ao acesso a bens e serviços essenciais (saúde, educação). Além desse aspecto, a forte concentração da pobreza nas áreas rurais contribui progressivamente para o agravamento das condições de vida. Marcantes desigualdades de oportunidades são reflexos das diferenças entre os meios rural e urbano. Palavras de Abranches (1985): “disparidades relativas indicam desigualdades reais e concretas entre as populações urbana e rural” (p. 33). Estudos do CEPAL (2004) apontam o fato de que a maioria dos pobres na América Latina vive nas cidades e, no entanto, a incidência de pobreza continua mais elevada na zona rural. Países como Brasil, Colômbia, México e Venezuela revelam aproximadamente metade da população rural na situação de pobreza. 382 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Constituem fatores apontados pelo CEPAL (2004) como geradores de índices de pobreza rural, entre outros: os baixos níveis de produtividade da população ocupada em atividades agrícolas, influenciados pela migração rural urbana – os jovens de maior nível educacional deslocamse para as cidades, e permanecem no campo os adultos com menor grau de instrução; a falta de acesso a comunicações; a dificuldade de acesso a serviços básicos; as atividades agropecuárias com deficiências tecnológicas; a deterioração dos solos explorados pelos pobres. La agricultura es el setor de la economia com mayor proporción de empleo precário. Entre los asalariados agrícolas se encuentra las tasas más elevadas de trabajadores sin contrato ni prevision social. Junto com esto, se expande cada vez más la subcontratación7 (p. 61). Lessa, Salm, Soares e Dain (1997) também tecem críticas às abordagens restritivas da discussão sobre pobreza e políticas sociais, as quais se deixam fascinar pelos fetiches dos dados estatísticos e se limitam às concepções setoriais das políticas; aos minimalismos das práticas bemsucedidas; ao reducionismo econômico; e, sobretudo, à submissão da política social às prioridades de estabilização. Não se devem ignorar os dados estatísticos, advertem os autores; no entanto “caberia identificar um denominador comum aos estados de pobreza” (p. 64), o qual escapasse ao raciocínio circular da definição de pobreza e miserabilidade pelo que se é (se tem), ou não se é (não se tem). Assim, “sua síntese, ou expressão mais geral, seria a precariedade de inserção dos pobres em um ou mais dos seguintes circuitos: produção, consumo, acesso / fruição de bens públicos e cidadania”. (p. 64) De acordo com a linha de raciocínio de Lessa, Salm, Soares e Dain (1997) – segundo a qual as várias manifestações da pobreza são percebidas como formas diversas de expressão de precariedade, ou seja, como fato heterogêneo, fenômeno muito complexo –, a população pobre valadarense, segundo dados levantados no Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, (2000) e no Censo de 2000 – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, estaria incluída entre: 7 A agricultura é o setor da economia com maior proporção de emprego precário. Entre os assalariados agrícolas encontram-se as taxas mais elevadas de trabalhadores sem contrato nem previdência social. Junto com isso, expande-se cada vez mais a subcontratação. (Tradução nossa). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 383 a) os 10,80% de pessoas, em Governador Valadares, que detêm renda per capita abaixo de R$ 37,75; b) os 26,80% de pessoas, em Governador Valadares, que detêm renda per capita abaixo de R$75,50; c) os domicílios particulares permanentes por situação, tipo de domicílio, tipo de esgotamento sanitário8 – 4,09% com fossa rudimentar; 1,10% com esgotamento em vala; 3,31% com esgotamento no rio, e 2,51% sem banheiro e nem sanitário; d) os domicílios particulares permanentes e moradores em domicílios particulares permanentes por setor de abastecimento de água – 4,74% que utilizam poço ou nascente na propriedade; e 0,49% que não têm água canalizada; e) os domicílios particulares permanentes por situação e destino de lixo – 9,42% da população que queima o lixo na própria residência; 0,19% da população que enterra o lixo na própria residência; 3,05% da população que joga o lixo em logradouro ou terreno baldio; 0,17% da população que joga o lixo no rio; e 4,5% da população que tem o lixo coletado em caçamba; f) as pessoas de 10 anos ou mais, segundo grupos de anos de estudos9 – 8,34% da população sem instrução, e com menos de um ano de estudo, exclusive curso de alfabetização de adultos; 15,73% da população com 1 a 3 anos de estudos; 38,43% da população com 4 a 7 anos de estudos. Apresentam também como características não mais específicas à condição de pobreza, mas à vulnerabilidade familiar, segundo informações do Atlas de Desenvolvimento Humano – PNUD (2000): a) 0,11% de crianças do sexo feminino entre 10 e 14 anos com filhos; b) 7,10 % de adolescentes do sexo feminino entre 15 e 17 anos com filhos; 8 Os serviços de esgotamento sanitário, abastecimento de água, coleta de lixo, entre outros não citados aqui, continuaram a ampliar sua cobertura no país, segundo dados da PNADs-2003. O mesmo ocorreu em Governador Valadares, de acordo com os dois Censos Demográficos de 1991 e 2000. 9 Média de anos de estudos de pessoas de 10 anos ou mais de idade total que se encontravam ocupadas durante a semana de referência, levantada na PNADs - 2003 – IBGE no Brasil > 1993(5,0 anos), 2003 (6,4 anos). 384 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO c) 17,83% de crianças residentes em domicílios com renda per capita menor que R$ 37,75; d) 39,33% de crianças residentes em domicílios com renda per capita menor que R$75,50; e) 4,41% de crianças residentes em Governador Valadares, que estão fora da escola; f) 5,25% de crianças residentes em Governador Valadares, que trabalham; g) 5,85% de mães chefes de família, sem cônjuge, com filhos menores de 15 anos; h) 13.34% de pessoas em Governador Valadares, com mais de 50% de sua renda proveniente de transferências governamentais. Na verdade, como nos apontam Rocha e Tolosa (1991), no detalhamento de unidades de análise em nível submetropolitano como município, só conta como fonte de informação o censo demográfico, “cuja realização decenal inviabiliza um monitoramento da pobreza compatível com a rapidez das mudanças estruturais que vêm ocorrendo” (p. 143). A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) constitui uma fonte privilegiada de estudos sobre pobreza anual, porém só considera como áreas de análise as Unidades da Federação e/ou os estratos urbano, rural e metropolitano. Abranches (1985) ressalta também o fato de que a avaliação da pobreza não é inteiramente suficiente, quando se utiliza apenas o critério de renda. Outras dimensões de destituição são importantes, embora não apresentem relação direta e necessária com a renda individual ou familiar. Dependem de uma série de fatores, como: saúde, condições sanitárias e de habitação, alimentação, e educação. No entanto, a renda sempre será um eficiente indicador aproximado de destituições. Assim, segundo Abranches (1985): [...] as famílias pobres são, em média, maiores (em torno de cinco membros por unidade) e têm maior proporção de pessoas jovens [...], apresentam maior incidência de desemprego e subemprego, mobilizam para o trabalho os filhos em idade escolar e aqueles membros em menor condição de trabalhar (velhos, inválidos) e precisam submeter-se, no conjunto, a uma sobrecarga de trabalho para obter a renda parca que lhes garanta a subsistência precária. São as imposições da necessidade, que tolhem a liberdade, pois consomem as energias exclusivamente na luta contra a morTERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 385 te. Não podem cuidar senão de sua mínima persistência física, material. [...] Para sobreviver, consomem mais horas de trabalho, subtraídas ao estudo, ao descanso, ao lazer, à busca de opções de trabalho e renda, ao exercício da criatividade, à ação política, aos cuidados com a saúde (p. 34, 35). Em relação aos aspectos de saúde, Abranches (1985) revela a existência de grande desigualdade entre os grupos de menor e maior renda. Vários fatores determinam o aumento de esperança de vida, todos intimamente relacionados ao fenômeno mais geral da destituição: condições socioeconômicas das famílias; condições sanitárias básicas e de habitação; nível de instrução das mães; e acesso a bens e serviços básicos. O autor apresenta como exemplo a taxa de mortalidade infantil, que tende a decrescer com o processo de desenvolvimento, porém permanece elevada para as famílias mais pobres; os índices de mortalidade infantil aos dois anos de idade, mais elevados nas famílias com mães sem instrução do que naquelas com mães mais instruídas; e as barreiras mais vigorosas de acesso aos serviços de saúde para os mais pobres, uma vez que estes dependem exclusivamente da assistência governamental, predominantemente usada em casos de doença manifesta10. A lógica da destituição, para Abranches (1985), manifesta-se no fato de que: [...] privados de recursos mínimos, monetários e não-monetários, materiais, culturais e políticos, os pobres terminam presos em malha espessa de carências, da qual não podem sair a não ser através da ação específica e direta do Estado. São dependentes da (boa) vontade pública (p. 37). Os aspectos da saúde da população dependem também, segundo Abranches (1985), das condições de salubridade em que esta vive. Existe, portanto, relação direta entre as condições de habitalidade e salubridade, e as taxas de mortalidade, complementadas pela associação transparente entre nível de renda e esperança de vida. 10 Vale a pena ressaltar que o nível de abrangência do programa de saúde da família no município de Governador Valadares, assim como em outros municípios brasileiros, ainda é pequeno. Governador Valadares conta com 35 unidades de Estratégia de Saúde da Família, as quais atendem 46,04% da população total; 22 Equipes de Saúde Bucal- modalidade I e 8 Equipes de Saúde Bucal – modalidade II. Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE / SAS/ DEPARTAMENTO DE ATENÇÃO BÁSICA Sistemas de Informação em Saúde. 2010. 386 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Assim, segundo Abranches (1985): [...] as condições de residência e salubridade, quando reforçadas pela baixa renda, limitam drasticamente o horizonte de vida das famílias despossuídas, nas quais os sobreviventes testemunham a luta dos mais novos, em um ambiente em que os riscos superam as oportunidades diariamente (p. 40). Considerando que a condição material da sobrevivência é a alimentação, o autor cita Coimbra (1984) para explicar que o déficit alimentar no Brasil é mais calórico do que protéico. Logo, diz mais respeito à quantidade do que à qualidade dos alimentos. Consequentemente a insuficiência calórica acompanha os níveis de renda, tornando mais vulneráveis as famílias mais pobres, com menor poder de aquisição de alimentos e, em alguns casos, de aquisição do mínimo considerado indispensável pela ONU, em proteínas (2.400 calorias). Calsing (1983), citado por Abranches (1985), aponta as consequências danosas à saúde das crianças em idade escolar (5-15 anos), produto da subnutrição das famílias pobres: comprometimento do desenvolvimento físico e cognitivo, em algumas situações levando à morte por deficiências nutricionais profundas. Quadro também explicado, segundo Abranches (1985), pelo fenômeno da destituição. Acrescenta-se ainda um fator importante para a avaliação do fenômeno pobreza: a educação, discutida à luz de sua magnitude como recurso, ainda que parcial, para a luta por melhores oportunidades de vida, sobretudo pelo fato de participar da liberdade e, portanto, da cidadania. Afinal, conhecer a si mesmo, assim como às condições do entorno, faz parte do direito do ser humano, como nos aponta a Constituição Federal de 1988: “Art 23 - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios: V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência”. Um fato de suma importância, levantado por Abranches (1985) para a caracterização da população pobre, inclusive a do município em estudo, Governador Valadares, refere-se ao aspecto de tal população se mostrar precocemente incorporada ao mercado de trabalho, com interrupção da formação educacional; dessa forma, suas chances de mobilidade social reduzem-se sensivelmente. No entanto, a inserção precoce através de programas de geração de renda e elevação da escolaridade contribui para que a mobilidade social não seja apenas um sonho, mas TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 387 uma possível realidade, não nos solos americanos ou europeus, mas no território de Valadares. No incremento da discussão, Rocha (1992) apresenta outras formas de complementação de renda familiar em tempos de ausência de crescimento econômico e diminuição de renda da maioria dos trabalhadores: subemprego; maior participação das mulheres na força de trabalho; consequente diminuição do lazer com a família; e redução do tempo dispensado aos cuidados com a família. Assim, conclui Rocha (1992) que, nesse contexto, a diminuição do nível de rendimento torna o emprego um luxo, até para os nãopobres, pois faz com que estes últimos, ao perderem seus empregos, tenham de buscar nova atividade no mercado de trabalho, mesmo que inadequada quanto à habilitação ou à remuneração. Acrescento as palavras de Lessa, Salm, Soares e Dain (1997): Nunca parece excessivo reafirmar que, em situações de extrema desigualdade social, uma parte significativa da melhoria das condições de sobrevivência, digna da população de baixa renda depende de seu acesso ao circuito de cidadania. Saúde e educação em primeiro lugar, sobretudo para garantir melhores oportunidades às novas gerações, e complementações de renda. De prestação continuada, para os mais frágeis, são elementos essenciais de qualquer formulação de direitos sociais básicos. (p. 66). Enfrentamentos da pobreza e das vulnerabilidades Draibe (2002) aponta o fato de que, no campo dos programas de assistência social e enfrentamento da pobreza, desde a década de 80 até a atualidade o Brasil tem enfrentado, no plano institucional, uma das mais radicais mudanças, comparável talvez às mudanças na política de saúde e, mais recentemente, na política educacional. Ressalta a autora que o Brasil “vem de uma forte e antiga tradição de política assistencial” (p. 266), e aqui esteve presente o reino da arbitrariedade, do clientelismo e do assistencialismo, no qual se desqualificavam os pobres. Dois movimentos ou ondas de reformas são indicados como deflagradores das alterações nesse campo de intervenção pública: primeiramente, na década de 80, a formulação da Política Nacional de Assis388 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO tência Social com tonalidade universalista, definida na Constituição de 1988, a qual pretendia forte e complexa institucionalidade, como a política do SUS – Sistema Único de Saúde –; posteriormente, o segundo movimento, nos anos 90, que apresentou pela primeira vez como tema central a temática da pobreza, presente na agenda pública brasileira, com todos os seus créditos. Alerta-nos Draibe (2002) para o fato de que, no entanto, a Política Nacional de Assistência Social, definida na Constituição de 1988, não se apresentava como política para o enfrentamento da pobreza. O quadro apresentado abaixo ilustra as políticas assistenciais e de combate à pobreza, e seus principais eixos e conteúdos de mudanças. EIXO DE MUDANÇA PRINCIPAIS CONTEÚDOS DAS ALTERAÇÕES Direito social como fundamenNa concepção: no fundamento to da política. Combinação de da política; nos critérios de justi- programas universais com proça; no estilo de política/gestão. gramas focalizados. Redução do clientelismo. Introdução da participação do seNa Relação pública / privada: no tor privado empresarial. Reforço financiamento; na provisão. das parcerias com o terceiro setor. No fundo especial de pobreza. Introdução e / ou reforço de: proNa natureza dos programas imple- gramas de transferências monetámentados rias, programas de tipo produtivocapacitação e crédito popular. Na armação institucional das políticas: no sistema de financiamento; no sistema decisório; no sistema de gestão; no sistema de supervisão e controles. Descentralização do poder decisório e de recursos. Delegação federativa de funções. Ampliação e institucionalização da participação social (forma conselhista). FONTE : DRAIBE , 2002, p. 267. TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 389 A Constituição Federal de 1988, conhecida como cidadã primeira a incluir os direitos sociais 11 como direitos humanos fundamentais, incorporando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como diversos pactos e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário -, é considerada a mola propulsora de todas essas mudanças. Os artigos abaixo citados ilustram essa nova ótica, ou melhor, os novos paradigmas: Título I – Dos Princípios Fundamentais: Art 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I-a soberania, II-a cidadania, III-a dignidade de pessoa humana, IV-os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa, V-o pluralismo político. Art 3º- Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I-construir uma sociedade livre, justa e igualitária; II-garantir o desenvolvimento nacional; III-erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV-promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminações. Os direitos sociais são caracterizados no Título I – Capítulo II, a partir da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, da seguinte forma: Art 6º São direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição. 11 “Por direitos sociais, entende-se o conjunto das pretensões ou exigências das quais derivam expectativas legítimas que os cidadãos têm, não como indivíduos isolados, uns independentes dos outros, mas como indivíduos sociais que vivem, e não podem deixar de viver, em sociedade com outros indivíduos. O fundamento da forma de governo democrática, em oposição às várias formas de governo autocráticas que dominaram grande parte da história do mundo, é o reconhecimento da pessoa. Ora, o homem é ao mesmo tempo pessoa moral, em si mesmo considerado, e pessoa social (recordemos o celebérrimo animal político de Aristóteles), já que vive, desde o nascimento até a morte, em vários círculos, que vão da família à nação, da nação à sociedade universal, através dos quais sua personalidade se desenvolve, se enriquece e assume aspectos diversos, de acordo com os diferentes círculos em que vive. À pessoa moral referem-se especificamente os direitos de liberdade, à pessoa social, os direitos sociais, que recentemente foram também chamados por Gustavo Zagrebelsky de direitos de justiça.”(Bobbio, 2000, p. 501, 502). 390 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Parafraseando Odalia (2003), devemos lembrar que escrever, pensar ou falar sobre cidadania impõe a apreciação de uma lenta construção, que vem se fazendo a partir da Revolução Inglesa, no século XVII, passando pelas Revoluções Americana e Francesa e pela Revolução Industrial – esta última muito especialmente por ter trazido à cena histórica nova classe social: o proletariado. Assim, para Odalia (2003), o proletariado como herdeiro da burguesia não só adquiriu a consciência histórica do papel de força revolucionária, como também buscou , nos séculos XIX e XX (e ainda busca), a ampliação dos direitos civis conquistados pela burguesia com a sua ajuda, por meio da Revolução Francesa. Abriu-se assim, “o leque de possibilidades para que as chamadas minorias” (p. 166) pudessem ser abrangidas pelos direitos civis. Trata-se de uma história que ainda está sendo escrita. Palavras de Mondaini (2003): A história do desenvolvimento dos direitos do citadino, a evolução da cidadania na Europa centro-oriental transcorre há pelo menos três séculos – de acirrados conflitos sociais – relacionada à conquista de três conteúdos de direitos, diversos entre si: os direitos civis, no século XVIII; os direitos políticos, no século XIX, e os direitos sociais, no século XX. Junto a esses tipos de direitos, novas formas de Estado também foram se constituindo nesses três séculos, novas funções estatais indicadores de uma relação dinâmica entre indivíduos, sociedade e aparelho estatal (p. 116). Considera-se hoje, segundo Draibe (2002), que: a) a pobreza, além de multidimensional, é altamente heterogênea, envolvendo também aspectos materiais e imateriais; b) as capacidades, o nível de acesso a ativos diferenciados, assim como as capacidades do meio para superação da pobreza, dependem das pessoas e de seus graus de autoestima; c) sua superação, por constituir um problema societal12 e de relações sociais, depende também das mudanças nas relações 12 Segundo Castel (2001) o social não deve ser entendido na discussão sobre social-assistencial como “o conjunto das relações que caracterizam a humanidade enquanto espécie que se define por viver em sociedade. Realmente ‘o homem é um animal social’, e a abelha também. Entretanto, para evitar o embaraço de mera questão de vocabulário, estabelecer-se-á chamar de ‘societal’ a qualificação geral das relações humanas enquanto se refere a todas as formas de existência coletiva. O ‘social’, ao contrário, é uma configuração específica de práticas que não se encontram em todas as coletividades humanas”(p. 48). TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 391 entre pobres e não-pobres, bem como das relações entre os meios sociais pobres e não-pobres. Na ótica de Draibe (2002), os resultados alcançados ao longo dos anos 90, embora modestos, registraram razoável redução de incidência da pobreza, amparada por melhorias significativas nos níveis de bemestar das populações mais novas: entre outras, redução da mortalidade infantil; atendimento às necessidades nutricionais de crianças menores de cinco anos; universalização do acesso ao ensino fundamental; melhorias nos níveis de aprovação e terminalidade dos alunos; significativo acesso de adolescentes ao ensino médio. Contudo, afirma Draibe (2002) que os resultados em termos de habitação e saneamento não se mostraram tão positivos, e muito menos os níveis de desigualdade social, ainda escandalosos. “Nossos indicadores de desigualdade mantêm-se relativamente estáveis há mais de quarenta anos registrando quase nula redução, salvo no tocante às desigualdades de gênero, em termos educacionais.” (p. 268). Como ressalta Draibe (2002), tais desigualdades constituem heranças de nossa forte e antiga tradição de política assistencial, baseadas em nosso limitado welfare state13. No contexto em questão estavam presentes os seguintes fatores, apontados também como mitos por autores como Kliksberg (2002), mas na verdade considerados por Draibe (2002) como constituintes da nossa realidade: a superfluidez dos programas; o reino da arbitrariedade e do clientelismo; o assistencialismo e a desqualificação dos pobres; a fragmentação organizacional; e a forma arbitrária de fazer política. 13 Expressão de origem inglesa descrita no verbete Estado do Bem-estar do Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci e Pasquino (1993) – em primeira análise, com uma citação de H. L. Wilensky (1975) – como Estado que garante “tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação assegurados a todo o cidadão, não como caridade, mas como direito político” (p. 416). É comum associar a conceituação acima descrita com a política posta em prática na Grã-Bretanha, a partir da Segunda Guerra Mundial, quando logo após o debate aberto pela apresentação do primeiro relatório Beveridge (1942), foram aprovadas as providências no campo da saúde e da instrução, como forma de garantia de serviços idênticos a todos os cidadãos, independentemente de renda. Vincula-se o conceito de assistência pública ao das sociedades de elevado desenvolvimento industrial e de sistema político do tipo liberal-democrático (sistema político contrário a uma visão limitativa do Liberalismo, encarada como mera garantia de direitos individuais. Salienta o momento de participação democrática na direção da política do país). Assim, a distinção entre o Estado assistencial e os demais tipos de Estado, “não é tanto a intervenção das estruturas públicas na melhoria do nível de vida da população quanto o fato de que tal ação é reivindicada pelos cidadãos como um direito” (p. 416). 392 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO A superfluidez é explicada por Kliksberg (2002) como a visão dos países da América Latina, segundo a qual a política social constitui uma espécie de concessão forçada, um custo imposto que desvia recursos do esforço central – o crescimento econômico. O autor cita a visão sinteticamente verbalizada por alguns países: a única política social é a política econômica. Dessa forma, na visão do autor, ao ser colocada em situação de deslegitimação contínua, a política social conserva limitadas possibilidades de existir, e se torna vítima fácil de cortes e ajustes, situada em lugares secundários nos organogramas, sendo seus representantes principais interessados – afastados dos espaços de tomada de decisões macroeconômicas. Os próprios fatos demonstram (KLIKSBERG, 2002) que constitui erro grave considerar a política social como supérflua. Primeiramente, porque não se trata de concessão política, pois a política social representa a própria essência do funcionamento da democracia. Em segundo lugar, porque a reivindicação prioritária da cidadania latino-americana consiste na ação contra a pobreza, por meio de políticas sociais agressivas, bem articuladas, bem gerenciadas e eficazes. Portanto, o seu atendimento não significa concessão, mas respeito ao sistema democrático. Acrescenta Kliksberg (2002) que as experiências mundiais das últimas décadas têm mostrado que, além de responder a uma demanda legítima, “a política social também é um aspecto fundamental da ação em prol de um desenvolvimento sustentável” (p. 168). Embora o crescimento seja imprescindível, e todo país deva se empenhar para alcançá-lo no intuito de obter estabilidade, o progresso tecnológico e a competitividade não vão resolver, por si sós, o problema da pobreza. Kliksberg (2002) ilustra suas considerações levantando o questionamento também apontado pelo Instituto de Pesquisa do Banco Mundial (2000), em seu texto – A Qualidade do Crescimento: como se explica o fato de países que tiveram praticamente os mesmos índices de crescimento apresentarem resultados muito diferenciados quanto às conquistas na melhoria da vida da população e quanto à sustentabilidade desse crescimento. Existem, portanto, grandes diferenças entre dois tipos de crescimento (Kliksberg, 2002): TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 393 a) o crescimento distorcido – que se reduz à função de apagar grandes incêndios, pelo fato de beneficiar principalmente poucos setores; concentrar ainda mais as oportunidades e a renda; e ocorrer apenas em alguns centros urbanos, dificultando o desenvolvimento de pequenas e médias empresas, bem como o desenvolvimento de outras iniciativas econômicas de base; b) o crescimento compartilhado – que potencializa a população e aumenta suas possibilidades de integração através de seu eixo-base estratégico, a política social. De acordo com determinada posição, a política social é supérflua e constitui uma despesa, embora a Organização Mundial da Saúde já tenha jogado por terra essa suposição, demonstrando que destinar recursos à saúde não é gastar, mas investir, e com altíssimos níveis de retorno sobre o investimento (KLIKSBERG, 2002). Considera-se, assim, que os bons níveis de saúde pública não são consequências, mas sim pré-requisitos para o crescimento da economia. “Com uma população com problemas de saúde, o rendimento cai, perdem-se muitos anos de vida possível e os níveis de produtividade se reduzem” (KLIKSBERG, 2002, p. 170). Um dos graves problemas apontados por Draibe (2002) e Kliksberg (2002) – a contribuição marginal da sociedade civil – transmite a mensagem de que tal contribuição seria simbolicamente meritória, mas na verdade equivaleria à caridade. Uma vez que não resolve nenhum problema de peso, não é merecedora de apoio especial, ou seja, não recebe incentivos fiscais sistemáticos para sua promoção. “São débeis as medidas que almejam potencializar as possibilidades de participação da sociedade civil na política social.” (KLIKSBERG, 2002, p. 173). Cresce, no entanto, a visão segundo a qual fatores como confiança interpessoal, capacidade de associação, consciência cívica, e valores éticos, podem proporcionar resultados positivos nos desempenhos macroeconômicos, produtivos, políticos e sociais dos países latino-americanos. Por meio da capacidade de associação, uma sociedade pode gerar toda sorte de formas de cooperação. E, quando forte, constrói um tecido social rico, que confere visibilidade a múltiplas formas de contribuição para o projeto global de desenvolvimento. Já os níveis de consciência cívica e os valores éticos influenciam as decisões individuais de participação ativa na resolução dos problemas coletivos. Dentre 394 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO algumas expressões, cita Kliksberg (2002) o voluntariado e a responsabilidade social das empresas privadas. Forte aliada da contribuição marginal da sociedade civil, a desqualificação dos pobres, também apontada por Draibe (2002) e Kliksberg (2002), herança de nosso limitado welfare state, é discutida em pesquisa desenvolvida pelo Banco Mundial (2000) no objetivo de levantar, em 50 países, dados indicativos de quais seriam as percepções dos pobres sobre a pobreza. Alguns resultados são trazidos por Kliksberg (2002): [...] a pobreza não é apenas a carência de recursos básicos, mas destrói ou desgasta as famílias, além de causar danos psicológicos e afetivos. Enfim, caracterizam que, acima de tudo, ela atenta contra a sua dignidade como seres humanos. Uma de suas vivências centrais é o olhar desvalorizado que converge para eles dos diferentes setores da sociedade. Eles são vistos como pessoas inferiores, quase subumanos, em função de sua pobreza material (p. 175). Respostas às indagações sobre as organizações de confiança colocam em primeiro lugar as organizações dos próprios pobres. Assim, os pesquisadores recomendam que investir no fortalecimento da capacidade organizativa dos pobres, mediante a capacitação de seus líderes; na oferta de infraestrutura para atividades societárias; e na desregulamentação jurídica, constituiria a estratégia fundamental de superação dos moldes tradicionais de política social, nos quais o pobre aparece como alvo de projetos que procuram atenuar impactos, e não como sujeito capaz de oferecer contribuições importantes e, por intermédio destas, resgatar sua dignidade (KLIKSBERG, 2002). Assim, na visão de Kliksberg (2002): Uma política social eficaz é aquela que ataca efetivamente as causas, e não apenas os sintomas da pobreza. [...] É preciso somar o governo federal, as regiões, os municípios, a sociedade civil e as organizações dos próprios pobres, e integrar as ações nos campos do trabalho, da educação, da saúde, da família e outras. Impõem-se alianças, estratégias entre as diferentes organizações (p. 179, 180). Política esta que teria total respaldo no que determina a Constituição Federal de 1988, no Título III – Da Organização do Estado – Capítulo II – Da União: TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO - 395 Art 23 – é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios: X – combate às causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos; Art 24 – Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XV – proteção à infância e à juventude. Santos (1994) alega, no entanto, que aparentam ser tarefa de Sísifo ou política paternalista as escolhas da política pública de combate à pobreza. [...] as demandas gerais da população que não afetam a um grupo específico dificilmente são capazes de mobilizar setores a ponto de que se organizem para reivindicá-las. Ocorre aqui, em razão da hipótese de Olson quanto à natureza da ação coletiva, a existência do que Salisburg chama de padrão difuso de demandas, isto é, não articulado, o que dá ao governo maior latitude de operação, pois não precisa confrontar-se com grupos sociais específicos. Um ou outro atendimento setorial fica por conta, neste caos, das políticas distributivas, paternalistas, no sentido de Lowi, por parte do Legislativo quando este é efetivo (p. 77, 78). Afinal, existe hoje, segundo Medeiros (2001), um consenso no país: A pobreza abjeta, o emprego precário e a péssima distribuição de renda constituem para amplíssimo espectro de opiniões os principais problemas e os desafios a serem enfrentados pelo país nos próximos anos. Por diversas razões, mas principalmente pelo aumento do desemprego urbano que se afirmou na segunda metade da década, o grau de tolerância com a desigualdade e a pobreza historicamente muito elevada – parece ter reduzido, ao menos retoricamente, na sociedade brasileira. Esse posicionamento naturalmente não se limita ao Brasil. Ao contrário, há hoje unanimidade. Do banco Mundial ao austero FMI renova-se a ênfase sobre a necessidade de preservar os mais pobres dos custos sociais dos ajustes macroeconômicos (p. 165). Discutir o que o município tem feito em prol da população pobre e das possibilidades de enfrentamento de suas vulnerabilidades, tornase tarefa de todos nós, professores e pesquisadores, ao longo da organização de um programa de Mestrado em Gestão do Território em solo valadarense. Esperamos cumprir a parte que nos cabe. 396 - TERRITÓRIO, SOCIEDADE E MODERNIZAÇÃO Referências bibliográficas ABRANCHES, S. H. Os despossuìdos: Crescimento e pobreza no país do milagre. 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