fazer - Núcleo estudos de gênero
Transcrição
fazer - Núcleo estudos de gênero
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LEONARDO DIOGO CARDOSO NOGUEIRA MACHADO PATOLOGIZAÇÃO DO DESEJO: O HOMOSSEXUALISMO MASCULINO NOS MANUAIS DE MEDICINA LEGAL DO BRASIL DAS DÉCADAS DE 1940 E 1950 CURITIBA 2010 LEONARDO DIOGO CARDOSO NOGUEIRA MACHADO PATOLOGIZAÇÃO DO DESEJO: O HOMOSSEXUALISMO MASCULINO NOS MANUAIS DE MEDICINA LEGAL DO BRASIL DAS DÉCADAS DE 1940 E 1950 Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof.ªDr.ª Ana Paula Vosne Martins CURITIBA 2010 AGRADECIMENTOS À professora Ana Paula Vosne Martins, pela excelente orientação, apoio e paciência. Pela seriedade de seu trabalho e pelo respeito que sempre demonstrou. Aos meus grandes amigos Stefani Arrais Nogueira, Thiago Bragança Braga, Fernanda Azeredo de Moraes, Débora Raquel Faria e Manuela Volaco, pelos conselhos, longas conversas e carinho. AGRADECIMENTOS À FAMÍLIA À minha mãe, Sonia Maria Cardoso, e à minha avó, Terezinha da Luz Cardoso, pela educação, amor incondicional e exemplo. RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar o discurso médico-legal brasileiro das décadas de 1940 e 1950 acerca da homossexualidade masculina. A partir da segunda metade do século XIX muitos médicos e psiquiatras começaram a escrever sobre as perversões sexuais. Objeto de novos saberes, o corpo homossexual foi constituído e institucionalizado na disputa de influência que existiu entre o saber médico e o saber jurídico. A Medicina buscava então, através da patologização da homossexualidade, consolidar-se enquanto instituição de controle social. Neste sentido, o corpo homossexual, definido enquanto natureza patológica e desviante pelo discurso médico, foi um elemento importante de um jogo político. Quais são as imagens e representações da homossexualidade presentes nos manuais de medicina legal brasileiros? Em que momento e como foi possível a ativação de tais representações? Eis algumas questões que norteiam esta pesquisa. Palavras chave: homossexualidade masculina, Medicina Legal, discursos normativos. RESUMÉ Ce travail a pour objectif d’analyser le discours de la médecine légale brésilienne des années 1940 et 1950 en ce qui concerne l’homosexualité masculine. A partir de la deuxième moitié du XIX siècle, beaucoup de médecins et de psychiatres ont commencé à écrire sur les perversions sexuelles. Objet de nouveaux savoirs, le corps homosexuel a été constitué et institutionalisé à partir de la lutte d’influences qui a existé entre le savoir médical et le savoir juridique. A partir de la psychiatrisation de l’homosexualité, la médecine cherchait alors à se consolider en tant qu’institution de contrôle social. En ce sens, le corps homosexuel, défini en tant que nature patologique et déviante par le discours médical, a été un élément important d’un jeu politique. Quelles sont les images et les représentations de l’homosexualité présentes dans les manuels de médecine légale brésiliens? A quel moment et comment a été possible l’activation de telles représentations? Voilà quelques questions qui ont conduit cette recherche. Mots-clés: homosexualité masculine, Médecine Légale, discours normatifs. SUMÁRIO 1 - Introdução .........................................................................................................8 2 – A emergência do homossexual no e pelo discurso médico ............................16 2.1 – Os médicos na era dos trens expressos............................................................17 2.2 – O poder do discurso ou o poder discursar. ......................................................22 2.3 – Psiquiatrização do prazer perverso: o olhar médico sobre o corpo homossexual. ......................................................................................................................27 3 – Os contornos da perversão: definições e imagens do corpo homossexual nos manuais de medicina e de sexologia do século XIX e da primeira metade do século XX ..............................................................................................................37 3.1- Crepúsculo de juízes, manhã de médicos: a medicina-legal na segunda metade do século XIX .......................................................................................................39 3.2 – A fabricação da diferença entre os sexos e a inversão sexual........................43 3.3 - Selva de definições: da multiplicidade de corpos desviantes .......................48 4 – O vício ao sul do Equador: medicalização e institucionalização da homossexualidade no Brasil da primeira metade do século XX.........................64 4.1 – Na fronteira: a homossexualidade entre o crime e a loucura .........................65 4.2 – Patologização do desejo: o homossexualismo masculino nos manuais de medicina legal do Brasil das décadas de 1940 e 1950 ...................................................73 5 – Conclusão........................................................................................................84 Fontes....................................................................................................................87 Referências Bibliográficas.......................................................................................88 Anexo – Imagens ..................................................................................................91 8 1. Introdução O ofício da Santa Inquisição que se instalou em Portugal em 1553 e o código penal português vigente no período previam que a sodomia deveria ser punida com morte na fogueira, podendo ser confiscadas as propriedades dos culpados por tal ato1. Assim, até a primeira metade do século XIX, os sodomitas foram definidos e controlados pelo direito civil e canônico na metrópole e no Brasil. Segundo James N. Green Entre 1587 e 1794, a Inquisição portuguesa registrou 4.419 denúncias. (...) Do total, 394 foram a julgamento, dos quais trinta acabaram sendo queimados: três no século XVI e 27 no século XVII2. Influenciado pelo Código Penal francês de 1791 e pelo Código Napoleônico de 1810, o Código Penal Imperial promulgado por Dom Pedro I em 1830, “eliminava toda e qualquer referência a sodomia”3. No entanto, mesmo se a sodomia não era mais criminalizada a partir de então, os indivíduos que mantinham relação amorosa e sexual com pessoas de seu mesmo sexo não estavam livres da repressão policial e da intervenção das autoridades. A partir da segunda metade do século XIX, os indivíduos envolvidos em práticas homossexuais começaram a chamar a atenção não só de juristas e juízes, mas de médicos e psiquiatras. Em realidade, podemos perceber neste período uma lenta, complexa e importante transformação; o sodomita, sujeito jurídico definido por um ato criminoso, começou a ser suplantado pelo homossexual, indivíduo de personalidade desviante que não deveria ser julgado por um crime, mas definido e tratado por sua natureza anormal. Foi na segunda metade do século XIX que o personagem do homossexual começou a ser cercado e definido nas e pelas práticas médicas. As sexualidades perversas passavam assim a ser objeto de responsabilidade da medicina, que, por sua vez, reivindicava constantemente seu direito em se pronunciar sobre os anormais. Para 1 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 2 Op. Cit., pp.55-56. 3 Op. Cit. p. 56. 9 além, foi na e pela medicina que o homossexual enquanto indivíduo de personalidade psíquica e somática desviante fez sua aparição. Como se deu esta transição? Em que momento e como a medicina passou a se ocupar daqueles indivíduos que antes eram sujeitos do controle do saber jurídico? A transição do personagem do sodomita ao homossexual reflete e diz respeito a diversas e complexas mudanças sociais, dentre as quais a emergência da medicina enquanto importante instituição de controle social é uma das mais evidentes. Neste movimento, diversos manuais médicos que buscaram cercar as perversões sexuais foram escritos a partir do fim da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX. Na Europa e no Brasil, muitos médicos se propuseram a definir a inversão sexual, estudar sua etiologia e suas manifestações para, se possível, curá-la, livrando assim a sociedade deste “vício perverso”. Compreendendo a importância da produção médica e em especial da produção médico-legal para a definição das perversões sexuais, buscamos analisar neste trabalho o discurso médico-legal brasileiro das décadas de 1940 e 1950 acerca da homossexualidade masculina, tentando compreender como a medicina afirmou sua autoridade em se pronunciar sobre estes indivíduos. Desta forma, o presente trabalho se inscreve no estudo da história das sexualidades que se preocupa em analisar os discursos sobre o sexo4. Não nos propusemos em nossa pesquisa estudar a vivência das sexualidades, muito menos a experiência dos próprios homossexuais, mas buscamos acompanhar e analisar a produção de discursos normativos que definiram a homossexualidade e que, ao mesmo tempo, criaram subjetividades. Considerada um elemento a-histórico ou natural, a sexualidade foi desde o fim do século XIX um objeto negligenciado pela história, sendo mais estudado pelas ciências naturais e biológicas. No entanto, sob a influência das mudanças sociais vividas nas décadas de 1960 e de 1970, começaram a surgir pesquisas historiográficas que se propuseram a investigar a sexualidade. Os movimentos feministas e aqueles que militavam pelos direitos gays e lésbicos incentivaram o trabalho de muitos 4 ENGEL, Magali. História e sexualidade. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (org.) Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Campus. Rio de Janeiro, 1997. pp. 297-311. 10 historiadores que então começavam a se debruçar sobre novos temas e objetos. Foi neste contexto que a mulher e o homossexual emergiram enquanto personagens da História e objetos do saber historiográfico. Sendo muito influenciados pelo militantismo gay e lésbico americano, os trabalhos pioneiros de investigação histórica que se debruçaram sobre os homossexuais e sobre a homossexualidade foram aqueles produzidos em língua inglesa5. De fato, os primeiros trabalhos que surgiram neste campo de investigação estavam diretamente ligados à militância gay e lésbica. O historiador Jonathan Katz comenta que à l’aube exaltante de la libération gay et lesbienne (…) nous avions l’audace d’imaginer un futur sexuel radicalement libre et différent. Il nous restait encore à reconstituer un passé sexuel totalement différent6. Os trabalhos em língua inglesa que surgiram no campo de investigação da história das sexualidades se debruçaram desde cedo sobre as homossexualidades. Durante a década de 1980, o grande debate entre historiadores “essencialistas” e “construtivistas” incentivou a produção de muitos trabalhos que se propuseram a analisar a construção histórica da “homossexualidade”. “Essencialistas” compreendiam a homossexualidade em termos de continuidade histórica e cultural, prevendo a existência de uma certa “essência homossexual” que atravessaria diferentes períodos históricos, sendo a repressão o elemento que se alteraria no tempo e no espaço. Em outro sentido, os “construtivistas”, muito influenciados pelo trabalho de Michel Foucault, analisavam a homossexualidade em termos de descontinuidade histórica, prevendo que não é a mesma homossexualidade que atravessa a História de maneira imutável. Majoritários no campo da produção do saber histórico, os “construtivistas” compreendem que o processo de emergência e definição da homossexualidade teria acontecido na segunda metade do século XIX. Desta maneira, 5 REBREYEND, Anne-Claire. Comment écrire l’histoire dês sexualités au XXème siècle? Bilan historiographique compare français/anglo-américain. Disponível em: http://clio.revues.org/index1776.html#ftn8 6 “no raiar da libertação gay e lésbica (...) nós tínhamos a audácia de imaginar um futuro sexual radicalmente livre e diferente. Restava-nos ainda reconstituir um passado sexual totalmente diferente”. (tradução livre) Citação em REBREYEND, Anne-Claire. Comment écrire l’histoire dês sexualités au XXème siècle? Bilan historiographique compare français/anglo-américain. Disponível em: http://clio.revues.org/index1776.html#ftn8. 11 seria anacrônico, por exemplo, falar sobre homossexualidade na Grécia antiga7. Este trabalho vai ao encontro das formulações construtivistas da história da sexualidade. Se a produção em língua inglesa é bastante rica, carecemos ainda de trabalhos em língua portuguesa que tenham se proposto a escrever a história das homossexualidades na América Latina e espanhola. James Green atenta-nos para o fato de que No campo da história, há alguns poucos artigos sobre a homossexualidade, a sodomia e a Inquisição durante o período colonial na América Latina espanhola e no Brasil, e um número mais minguado ainda de obras relativas aos séculos XIX e XX8. Antes dos historiadores, foram os sociólogos e antropólogos que se debruçaram sobre o estudo das homossexualidades no Brasil contemporâneo. Peter Fry é um dos pioneiros nesta área, inaugurando estes estudos com artigos sobre a relação entre homossexualidade e candomblé. Influenciados por Fry, autores como Carmen Dora Guimarães, Edward MacRae ou mesmo Veriano de Souza Terto Júnior que em seu trabalho “No escurinho do cinema” analisou a sociabilidade e o sexo homossexual nos cinemas do Rio de Janeiro, contribuíram muito para este campo de estudo9. O livro“O direito de curar: homossexualidade e medicina legal no Brasil dos anos 30” do antropólogo Carlos Alberto Messeder Pereira é igualmente uma obra de referência para os estudiosos da homossexualidade no Brasil. Pereira analisou em seu trabalho os escritos de médicos e criminologistas no Brasil dos anos 1920 e 1930, chamando nossa atenção pela natureza de suas fontes, em muito similar àquelas analisadas no presente trabalho. No mesmo sentido, Talisman Ford analisa o discurso da sexologia brasileira da primeira metade do século XX acerca da sexualidade10. 7 Op. Cit. GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 9 GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro. Garamond Editora, 2004. TERTO JR, Veriano de Souza. No escurinho do cinema: socialidade orgiástica nas tardes cariocas. Rio de Janeiro, 1989. MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade Sexual e Política no Brasil da "Abertura". Campinas, Editora da Unicamp, 1990. 10 PEREIRA, Carlos A. M. O direito de curar: homossexualidade e medicina legal no Brasil dos anos 30. FORD, Talisman. Passion in the Eye of the Beholder: sexuality as Seen by Brazilian Sexologists, 1900-1940. Dissertação de doutorado, Vanderbilt University, 1995. 8 12 Em outro sentido, o historiador Peter Beattie se propôs a analisar o comportamento homoerótico no âmbito político, analisando a definição, pelo Estado brasileiro, da sexualidade masculina ideal no contexto de crescente nacionalismo e militarismo do fim do século XIX11. Finalmente, o trabalho de James N. Green intitulado “Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX” é uma obra de grande importância no campo da investigação histórica acerca da homossexualidade masculina no Brasil contemporâneo. A pesquisa de Green “atua como uma ponte entre as análises históricas dos discursos médico-legistas dos anos 30 e os estudos antropológicos de homossexuais brasileiros contemporâneos”12. Por sua proposta e pela natureza de algumas de suas fontes, o trabalho de Green nos foi de grande utilidade, nos permitindo ao mesmo tempo melhor contextualizar nosso objeto e nos apontando um possível caminho de tratamento das fontes. O objetivo de nosso trabalho foi o de analisar o discurso médico legal brasileiro das décadas de 1940 e 1950 acerca da homossexualidade masculina. Buscamos compreender não somente os termos dos debates estabelecidos entre os autores brasileiros, mas procuramos igualmente analisar a influência dos autores europeus da segunda metade do século XIX e início do século XX sobre a produção nacional, inscrevendo assim nossos autores numa tradição mais ampla e mais antiga de medicalização da homossexualidade. Para tanto, dividimos nossas fontes em dois conjuntos distintos. O primeiro conjunto de fontes analisado foi composto pelos autores “clássicos” europeus que muito influenciaram a produção brasileira. Primeiramente trabalhamos sobre a obra de 1859 do médico legista francês Ambroise Tardieu intitulada “Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs”. Em seguida analisamos a influente obra “Psycopathia sexualis” do psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing publicada em 1895. O terceiro autor analisado foi Havelock Ellis através do seu livro “Sexual Inversion” de 1896. Finalmente, nos debruçamos 11 BEATTIE, Peter. Asking, telling, and pursuing in the brazilian army and navy in the days of cachaça, sodomy, and the lash. 1860-1916” 12 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000, p. 33. 13 sobre as formulações de Sigmund Freud presentes na obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” de 1909. Ao analisar este primeiro corpo de fontes buscamos acompanhar os debates entre estes autores, procurando estabelecer as nuances, discordâncias e singularidades das obras bem como suas semelhanças. Desta forma, analisamos como estes autores definiram a homossexualidade (disfunção psíquica, somática, moral, de causas congênitas ou adquiridas, entre outros fatores...), com quais aspectos desta experiência eles se preocuparam e quais as imagens do corpo homossexual que puderam ser entrevistas naquelas produções. Nosso segundo conjunto de fontes foi composto por autores brasileiros que, ao terem produzido no interior de um espaço legítimo de enunciação, nos permitiram acompanhar os debates existentes no interior da medicina legal brasileira. Quatro obras foram contempladas. Analisamos em um primeiro momento a obra “Homossexualismo Masculino” de Jorge Jaime, publicada em 1953. Em seguida, nos debruçamos sobre “Psicologia Forense e Psiquiatria Médico-Legal” escrita por Napoleão L. Teixeira e publicada em 1954. O livro “Sexologia forense” de 1934 e da autoria de Afrânio Peixoto foi a terceira obra analisada. Finalmente, a obra de José Alvez Garcia publicada em 1958 com o título “Psicopatologia Forense” completa nosso segundo corpo de fontes. Após termos analisado as concepções e representações do corpo homossexual presentes nas produções européias, buscamos acompanhar o debate brasileiro, tentando compreender quanto os autores nacionais foram influenciados pelos autores europeus e quais são os elementos que marcam a originalidade de nossos autores. Assim, nosso trabalho de análise buscou primeiramente acompanhar os debates existentes entre os autores brasileiros e os autores europeus, com o objetivo de compreender como se deu a apropriação, pelos médicos nacionais, das formulações dos médicos europeus. Em seguida, procuramos traçar quais as semelhanças e discordâncias existentes nas obras brasileiras analisadas. Analisamos a produção discursiva da medicina legal acerca da homossexualidade nos apoiando sobre as reflexões de Michel Foucault. Este autor recolocou em questão a “hipótese repressiva” que tanto marcou a história da 14 sexualidade. Para Foucault, não deveríamos escrever esta história a partir da idéia de crescente repressão da sexualidade, mas sob a luz da compreensão do processo de “colocada do sexo em discurso” que teria se iniciado no fim do século XVI. Neste sentido, procuramos analisar nossas fontes a partir da compreensão da emergência, no século XVIII, de um novo saber sobre o sexo. O sexo teria assim se tornado um elemento privilegiado pelo discurso médico que, por sua vez, se apoiou sobre o sexo para afirmar a legitimidade de seu lugar de enunciação social. Objetivando melhor contextualizar nossas fontes e, desta maneira, analisá-las sob a luz das transformações históricas da sociedade e das comunidades profissionais no interior das quais elas foram produzidas, dividimos o presente trabalho em três capítulos que buscaram dar conta de algumas questões importantes. O primeiro capítulo se propôs a compreender como se deu a emergência da categoria “homossexual” nos discursos médicos do século XIX e começo do século XX. Para tanto, dividimos este capítulo em três tópicos de análise. Apoiando-nos sobre as reflexões de Peter Gay e de Michel Foucault13, analisamos primeiramente como, a partir do século XVIII, os médicos passaram a poder se pronunciar sobre a saúde da sociedade. Em seguida, buscamos compreender como o saber médico passou a ter autoridade em pronunciar a “verdade sobre o sexo”. Finalmente, analisamos como o corpo homossexual foi cercado, definido e materializado pelo saber médico. Em nosso segundo capítulo buscamos analisar nosso primeiro conjunto de fontes tentando compreender como se construíram as representações do corpo homossexual nelas presentes. No entanto, com o objetivo de contextualizar nossas fontes, analisamos neste capítulo a emergência, na segunda metade do século XIX, da autoridade da medicina legal em se pronunciar sobre a sorte de certos indivíduos e a interação e diálogo entre a medicina e a justiça no movimento de controle social dos perversos sexuais. Em seguida, estudamos brevemente a produção da diferença sexual no interior dos discursos médicos, objetivando assim melhor compreender a produção da idéia de inversão sexual. Finalmente, sob a luz de tais análises, passamos ao exame das nossas fontes. 13 GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo, 1988 e FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social In: Microfísica do poder. Edições Graal. Rio de Janeiro, 1979. pp. 79-98. 15 Ao longo de nosso terceiro e último capítulo pretendemos dar conta da análise de nosso segundo conjunto de fontes. Para tanto, analisamos em um primeiro momento o contexto brasileiro da primeira metade do século XX, nos preocupando em acompanhar o movimento de consolidação da medicina e da psiquiatria enquanto instituições de controle social. Analisamos igualmente o movimento de superposição das imagens de louco e criminoso nas práticas médicas e jurídicas que cercaram o corpo homossexual. 16 2. A emergência do homossexual no e pelo discurso médico Ao sodomita, sujeito jurídico cujos atos o direito civil e o antigo direito canônico buscavam dar conta, sobrepõe-se a figura do homossexual, personagem que nasce no interior do discurso médico do século XIX14. Se o sodomita era um indivíduo julgado por um ato, o homossexual é um personagem definido por sua sexualidade; « rien de ce qu’il est au total n’échappe à sa sexualité » 15 . Este novo sujeito possui uma história, um passado, uma forma de vida, um corpo que pode e deve ser identificado, separado e analisado. Muito diferente do sodomita, o homossexual não corresponde ao pecador que passa a existir no ato, mas é de uma natureza singular que merece atenção, controle e cura. Como se deu e qual a natureza desta importante transformação? Em que momento e como se deu a emergência deste curioso personagem que é cercado e interrogado pelo discurso médico? Para responder a esta pergunta é necessário num primeiro momento entender como a partir do século XVIII os médicos passaram a ter autoridade para se pronunciar sobre a saúde da sociedade. Em seguida, tentaremos compreender como o conhecimento médico se constituiu como um saber legítimo de produção da verdade sobre o sexo e como por sua vez o sexo se tornou uma das bases de sustentação do saber médico. Finalmente, é então possível analisar como o corpo homossexual se constituiu como um objeto privilegiado pelo olhar médico - olhar este que não apenas se volta ao corpo homossexual, mas o define, materializando-o. Estas questões merecem atenção especial se pretendemos melhor compreender alguns autores e obras clássicas nas quais e pelas quais a homossexualidade foi definida. Neste capítulo pretendemos apontar um caminho sólido em direção a algumas respostas para a definição do homossexual e da homossexualidade no regime dos saberes e das práticas de normatização produzidos no século XIX. 14 15 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. “nada do que ele é escapa à sua sexualidade” (trad. livre). Op. Cit. p.59. 17 2.1. Os médicos na era dos trens expressos As inúmeras e rápidas mudanças nas estruturas sociais, no corpo das cidades, nas técnicas, nas ciências humanas e naturais que vinham sendo percebidas no mundo ocidental desde a Revolução Francesa e a Revolução Industrial produziram profundos efeitos nas consciências e nos espíritos do século XIX. Cientes de estarem vivendo uma nova era, os indivíduos do período o caracterizavam como uma “era de mudanças” ou ainda uma “era de transições”16. Este período de rápidas e nem sempre facilmente assimiláveis mudanças produziu ansiedade, angústia e mesmo desespero. O progresso veio acompanhado de certo desconforto psíquico. Antes do século XIX a ansiedade tinha sido pontual e restrita já que as mudanças eram acompanhadas pela previsibilidade de seus efeitos. Isto é, o ciclo de boas e más colheitas, o fim do governo de um monarca ou a derrubada de uma estrutura de poder eram movimentos que geravam conseqüências mais ou menos previsíveis. Já “as mudanças que ocorriam no século XIX eram mais difíceis de serem decifradas”17. Neste processo de transformações insere-se um movimento de acelerada migração do campo para a cidade e de conseqüente urbanização que preocupou alguns observadores atentos da época. Entre 1800 e 1850 a população de Paris passou de 600 mil habitantes para mais de um milhão. Berlim aumentou sua população de 420 mil habitantes em 1850 para 2 milhões em 1900. A população inglesa residindo em cidades de 10 mil habitantes ou mais passou de 21 por cento em 1800 aos 40 por cento em 1850. Mesmo países que mantinham tradição de vida no campo como a Bélgica e os Estados Unidos passaram igualmente por um importante processo de migração de suas populações rurais em direção a médias e grandes cidades18. A mudança na configuração do espaço urbano afetou as experiências daqueles indivíduos que viram seus marcos orientadores sendo rapidamente modificados. Ora, a expansão da cidade e o aumento da população urbana, a construção de estradas de 16 GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo, 1988. 17 Op. Cit. p.51 18 Op. Cit. p. 45. 18 ferro e estações, a multiplicação das fábricas, a constante configuração e reconfiguração de bairros que modificaram profundamente as formas de habitação não foram pequenos detalhes sem efeito sobre a vida dos citadinos. A cidade mudava e a percepção sobre o espaço urbano se transformava igualmente. A imprevisibilidade das conseqüências de tão rápidas e profundas mudanças parece ter tido como efeito um processo de racionalização da vida19. A religião enquanto orientadora de um discurso de explicação dos fenômenos que operava tão bem em um mundo menos ansioso e mais previsível perdeu espaço em um mundo ansioso, agitado, em constante transformação e de futuro incerto. É então neste mundo que clama por explicações racionais de certos fenômenos cotidianos que a medicina forja um lugar de enunciação legítimo. Desde o século XVIII a cidade começa a ser considerada um espaço patogênico, no qual a transmissão de doenças e o aparecimento de epidemias colocam em questão a qualidade do ar, a circulação da água, a concentração de pessoas e de coisas, etc20. Neste processo, os médicos são interrogados sobre a saúde e higiene das cidades. Para melhor compreender a ação do saber médico sobre o corpo urbano, poderíamos analisar brevemente o caso da administração dos cemitérios. O poder de discurso sobre a morte que era essencialmente detido pelos religiosos, passa a estar nas mãos dos médicos a partir do século XVIII. Os cemitérios eram espaços onde, até a primeira metade do século XVIII, corpos eram amontoados de forma desordenada. Não havia então grandes preocupações em relação a disseminação de doenças devido a proximidade dos vivos e dos mortos. No entanto, a crença amplamente difundida no período de que o ar tinha uma influência direta sobre o organismo deu surporte a um pânico generalizado em relação aos cemitérios. Importantes manifestações eclodiram por volta dos anos de 1740 e 1750 em Paris. A população exigia então a intervenção e controle médicos na gestão 19 Op. Cit. FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social In: Microfísica do poder. Edições Graal. Rio de Janeiro, 1979. pp. 79-98. 20 19 dos corpos mortos que podiam infectar o ar, elemento tão influente sobre o organismo21. É assim que se inicia um processo de individualização e de emigração dos cemitérios para as regiões periféricas da cidade; processos estes sob o gerenciamento e o controle do saber médico. Isto é, a partir do século XVIII, são os médicos que podem e devem pronunciar a verdade sobre questões que colocam em risco a saúde e higiene da população citadina. Se o caso da gestão dos cemitérios é representativo da intervenção médica sob o espaço urbano, ele não é único e isolado. Michel Foucault lembra que é na segunda metade do século XVIII que ... se colocou o problema da unificação do poder urbano. Sentiu-se a necessidade, ao menos nas grandes cidades, de constituir a cidade como unidade, de organizar o corpo urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo de um poder único e bem regulamentado22. Constituída como corpo unificado, que possui uma saúde a ser vigiada, a cidade é a primeira a ser medicalizada, é o espaço onde primeiro a medicina interveio como saber institucionalizado e oficial. Isto é, um saber a serviço deste poder único e regulamentado que começa a aparecer nas cidades do século XVIII. Patrice Corriveau23 concorda com Foucault, reafirmando que a cidade sob a influência de uma moral burguesa e através do núcleo familiar urbano foi a primeira a ser “medicalizada”. Ao estudar os casos da França e do Québec, Corriveau percebe uma importante distância entre as práticas urbanas e rurais em relação à saúde e sua organização. Enquanto no espaço urbano cada vez mais a intervenção médica se fez sentir, nos espaços rurais franceses e da colônia a resistência ao processo de intervenção médica 21 Op. Cit. pp. 89-90. Para saber mais sobre a intervenção dos médicos na gestão dos cemitérios no Brasil do século XIX, ver: REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitoscentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (org) História da vida privada no Brasil 2: Império: a corte e a modernidade nacional. Editora Schwarcz. São Paulo, 1997. 22 Op. Cit. p. 86. 23 CORRIVEAU, Patrice. La répression des homosexuels au Québec et en France : du bûcher à la mairie. Sillery, Septentrion, 2006. 20 foi evidente e se constituiu principalmente a partir da família tradicional ainda muito apegada a valores e práticas religiosos. Assim, não é um equívoco associar o processo de emergência da importância e intervenção do saber médico a um processo de urbanização e mesmo ao processo de formação da burguesia e de uma moral burguesa. Neste sentido, Peter Gay não distoa muito de Michel Foucault e Patrice Corriveau quando aborda a seriedade com que a burguesia tratava dos assuntos relativos a sua saúde, descendência, em suma, sua sobreviência em um mundo que ameaçava a pureza da raça24. Ora, em um primeiro momento, não foi a partir da necessidade de controle da mão de obra do proletariado que a medicina começou a intervir sobre o corpo social. Foi a partir da vontade de afirmar a vitalidade de seu corpo e garantir a boa saúde de sua descendência que a burguesia clamou pela intervenção do saber médico. A extensão dos domínios de ação do poder e saber médicos se fez a partir da família burguesa, do núcleo familiar burguês. Foi a família que exigiu e incitou o discurso médico e foi ela que o reproduziu. Foi ela que articulou os objetivos gerais de um projeto de ação sobre a saúde do corpo social com a ação sobre os indivíduos, sobre o corpo individualizado. Segundo Foucault25, foi a família “medicalizada e medicalizante” do século XVIII que permitiu o funcionamento da política de saúde do século XIX; política esta marcada pela emergência do saber médico enquanto espaço legítimo de enunciação sobre a saúde do corpo social. Em suma, o mundo ocidental a partir do século XVIII viveu um processo de racionalização da sociedade e de suas instituições. Este processo foi concomitante, investiu e foi investido por outras importantes transformações sociais vividas no período. A urbanização, a emergência da burguesia, os avanços tecnológicos e das ciencias naturais e sociais marcaram o século XVIII e, principalmente, o século XIX, gerando ansiedade e perturbando os espíritos, ou seja, inaugurando novas sensibilidades que, mais propensas a serem influenciadas pela razão, clamavam por 24 GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo, 1988, p. 237. 25 FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social In: Microfísica do poder. Edições Graal. Rio de Janeiro, 1979. 21 uma “ciência da sociedade”26. Uma ciência capaz de guiar os espíritos pelas trevas da modernidade, de oferecer respostas e acalentar as almas. Neste contexto, a medicina forja um espaço privilegiado de enunciação sobre o corpo da sociedade. A burguesia emergente, vitoriosa, mas ansiosa, foi a primeira a exigir a intervenção dos médicos. Com uma preocupação de si, querendo respostas sobre o seu corpo, saúde, higiene e sobre seu sexo, os burgueses se voltaram aos médicos - que eram também indivíduos de suas classes - e a eles dirigiram suas perguntas. 26 GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo, 1988, p. 52. 22 2.2. O poder do discurso ou o poder discursar Recolocando em questão a “hipótese repressiva”, isto é, a idéia de uma contínua e crescente repressão da sexualidade a partir do século XVIII, Michel Foucault27 defende que a história da sexualidade está marcada por uma explosão ou crescente multiplicação dos discursos sobre o sexo desde o fim do século XVI. « Or un tout premier survol fait de ce point de vu, semble indiquer que... la ‘mise en discours’ du sexe, loin de subir un processus de restriction a au contraire été soumise à un mecanisme d’incitation croissante ». 28 Desta forma, seria necessário analisar a história da sexualidade não do ponto de vista da repressão, mas através da idéia da formação a partir do século XVIII de um novo saber sobre o sexo. Para além, deveríamos seguir, analisar e tentar compreender a formação deste saber no interior de um processo amplo de instalação na maior parte do mundo ocidental de um novo tipo de poder, de uma nova economia de poder, reconhecendo assim a relação entre poder e saber estabelecida por Michel Foucault29. No que toca ao controle médico dos indivíduos, o mundo ocidental parece ter apresentado dois grandes modelos que funcionaram no interior de economias distintas de poder; o modelo da “exclusão do leproso” e o modelo de “controle da peste”30. O primeiro é aquele da exclusão do indivíduo para a purificação da sociedade, sendo o segundo modelo o da inclusão do indivíduo em um processo de vigilância minucioso e rigoroso, modelo este da análise detalhada e cuidadosa que separa e circunscreve; que tudo vê e nada ignora. Ora, este segundo modelo parece ter substituído definitivamente no século XVIII o modelo da “exclusão do leproso”. Com a ativação aparentemente definitiva do “modelo da peste”31, o tipo de poder próprio a sociedades soberanas – direito de vida e 27 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. “Ora, um primeiro sobrevôo feito deste ponto de vista parece indicar que... a ‘colocada do sexo em discurso’, longe de sofrer um processo de restrição foi pelo contrário submetida à um mecanismo de incitação crescente” (trad. livre) Op. Cit.. p.21 29 Op. Cit.. 30 FOUCAULT, Michel. Les Anormaux. Gallimard /Le Seuil. Paris, 1999. 31 O nome dado por Foucault à este modelo é “modèle de l’inclusion du pestiféré” do qual se distancia o “modèle de l’exclusion du lépreux”. Ambos os conceitos são descritos pelo autor em sua obra « Les Anormaux » (Op. Cit. pp. 40-46). 28 23 de morte32 - parece vacilar e começar a ser suplantado por um outro tipo de poder que gera a vida, um poder sobre a vida que inaugura uma nova economia e que possui uma tecnologia diferente; a este poder Foucault dá o nome de bio-poder33. O bio-poder destina-se à “majoração da vida”, à otimização das forças ou ainda à produção e organização das forças humanas. Neste sentido não se trata mais tanto de excluir indivíduos, mas de disciplinar os corpos, de produzir corpos dóceis. Neste contexto o corpo social como um todo é colocado sobre vigilância e a vida de cada indivíduo é investida por este novo tipo de poder. Desta forma, podemos compreender como o sexo se torna uma peça chave de um jogo político. Ora, o sexo ... est à la chanière des deux axes le long desquels s’est développé toute la technologie politique de la vie. D’un côté il rélève des disciplines du corps: dressage, intensification et distribution des forces, ajustement et économie des energies. De l’autre il rélève de la regulation des populations, par tous les effets globaux qu’il induit34. O sexo é o elemento pelo qual este novo tipo de poder estende seu campo de ação. Ele permite um novo investimento, uma nova forma de ação sobre o corpo individual - dando espaço à uma vigilância constante e meticulosa, a um controle de todos os instantes, justificando e abrindo a possibilidade a exames médicos e psicológicos permitindo a ação de um “micro-poder sobre o corpo”35- e igualmente sobre todo o corpo social36. O sexo com seu poder de produzir a vida preocupou a burguesia do século XIX. Não é por acaso que o sexo heterossexual reprodutivo foi o primeiro a ser interrogado. Com o objetivo de se produzir uma descendência saudável, a burguesia vitoriana olhou para seu sexo, tentando educá-lo e controlá-lo. Preocupando-se com seu bom uso e tentando evitar o dispêndio desnecessário de suas energias, “a moralidade burguesa, 32 Op. Cit. p.177 “Bio-pouvoir”. FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. 34 “...está no interstício dos dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida. De um lado, ele remete às disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajuste e economia das energias. Por outro lado, ele remete à regulação das populações, por todos os efeitos globais que ele induz”. (tradução livre). Op. Cit., pp. 191-192 35 “micro-pouvoir sur le corps” Op. Cit., p. 192. 36 Por medidas que visam o corpo social como um todo entendemos, entre outras, as práticas estatais de regulação ou controle da reprodução humana. 33 24 especialmente no tocante à sexualidade, fazia duras exigências e impunha tensões sem precedentes às classes médias”37. Os “porta-vozes influentes da sociedade”38 veiculavam ignorância e pânico em relação as práticas sexuais “não saudáveis”, isto é, aquelas que não objetivavam a reprodução, criando intermináveis listas das conseqüências de uma sexualidade não sadia. Os diversos manuais do século XIX sobre a masturbação e suas conseqüências desastrosas para o organismo são um bom exemplo deste movimento. Este pânico exprimido pelos educadores era o reflexo de temores acerca do sexo muito presentes na cultura do período ... temores esses que tinham dimensões políticas, militares e biológicas. Acreditava-se que a sífilis incapacitava muitos jovens para o serviço militar, e por conseguinte os exércitos corriam o risco de se enfraquecerem fatalmente; a ignorância acerca da escolha sexual levaria os elementos “desejáveis” da população a se afogarem em meio a uma torrente populacional de espécies inferiores; rapazes e moças desinformados ou mal-informados poderiam infectar seus parceiros com horríveis doenças e prejudicar a sociedade moderna, quando não a condenassem de todo39 Assim, o conhecimento sexual era extremamente importante naquelas sociedades, uma vez que era através do sexo que elas poderiam garantir sua sobreviência ou mergulhar na sua decadência. Este conhecimento sexual era importante na cura das enfermidades sociais. Interrogando os indivíduos e obrigandoos a revelar a verdade de seu sexo, isto é, a exposição dos vícios e pecados individuais era o primeiro passo de um longo caminho em direção à cura sexual da sociedade. É neste contexto que a instituição médica40 enquanto autoridade estabelecida no que diz respeito a saúde do corpo social forja um espaço de enunciação legítimo sobre o sexo; um poder discursar ou um poder de discurso. Ora estes discursos médicocientíficos, e em especial aqueles fabricados no interior do saber psiquiátrico, parecem também estabelecer na metade do século XVIII o sexo como uma de suas bases de sustentação. Na realidade, o sexo, ou melhor, a sexualidade é ao mesmo tempo efeito e 37 GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo, 1988, p. 51. 38 Op. Cit.. 39 Op. Cit., p. 237. 40 Compreendendo esta instituição em um sentido mais amplo; medicina do sexo, psiquiatria, sexologia, etc... 25 instrumento destes saberes médico-científicos. Isto é, a sexualidade emerge no interior destes discursos e é o elemento através do qual estes discursos estendem seu campo de ação. Este dispositivo de sexualidade produz igualmente subjetividades. Indivíduos são ao mesmo tempo criados por certos discursos e assujeitados por eles através das práticas do exame e da institucionalização. A histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexo das crianças, a socialização das condutas de procriação e enfim, a psiquiatrização do prazer perverso41 são algumas estratégias que atravessaram e utilizaram o sexo das crianças, das mulheres e dos homens, não só delimitando o sexo como objeto privilegiado, mas produzindo também os indivíduos sobre os quais estas estratégias pesaram em busca de normalização. A mulher histérica e a mulher sã, a criança onanista e aquela que não se masturba, o casal malthusiano, o adulto perverso e o normal, são ao mesmo tempo os alvos, a criação e o ponto que permite a ativação de saberes específicos. Ao serem examinados, interrogados, separados e catalogados, aqueles individuos foram sendo desenhados, criados e materializados. É no fim do século XVIII que emerge uma nova tecnologia do sexo. Mesmo se ela não é completamente livre da temática do pecado, esta nova tecnologia não será mais ordenada pela instituição eclesiástica. A partir de então ela começa a se ordenar em torno da pedagogia, da medicina e da economia, fazendo do sexo uma questão laica e uma questão de Estado42. Ora, mesmo se esta nova tecnologia se apropria de temáticas próprias ao cristianismo – como por exemplo a questão da sexualidade das crianças que já havia sido problematizada na pedagogia espiritual do cristianismo – ela o faz transformando estas temáticas e o faz a partir e do interior de disciplinas específicas que possuem um discurso e um vocabulario diferente. Eis a mudança capital situada na virada do século XVIII para o século XIX; o sexo passa a pertencer ao domínio da medicina. A partir da exigência de normalidade e se organizando ao redor da temática da vida e da doença – temáticas próprias ao 41 “Hystérisation du corps de la femme”, “pédagogisation du sexe de l’enfant”, “socialisation des conduites procréatrices” e “ psychiatrisation du plaisir pervers ” (tradução livre) FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. pp. 137-138. 42 Op. Cit., p.154. 26 sistema do bio-poder – a verdade sobre o sexo deverá a partir de então ser pronunciada pela instituição médica. O advento do “instinto sexual”, a abertura do grande campo médico-psicológico das perversões, a questão da hereditariedade e principalmente o grande tema da “degenerescência” do qual falaremos mais à frente, são igualmente os efeitos e os intrumentos de um projeto médico mas também político de administração do sexo e de sua capacidade de produzir a vida; a gestão estatal dos casamentos, dos nascimentos, das perversões sexuais e da vida em si se legitima e pode existir graças à emergência de uma medicina do sexo, domínio este que a partir de então se separa do grande domínio da medicina geral dos corpos43. Em resumo, o sexo teria se tornado um elemento muito importante no processo de desenvolvimento e implementação do bio-poder nas sociedades disciplinárias ocidentais, elemento pelo qual este poder estende seus efeitos e amplia seu campo de ação. A exigência de normalidade e o controle sobre a vida passam pela normalização e controle do sexo. Ora, em sociedades que conheceram um processo de secularização desde o Iluminismo e onde a ciência parece ter sucedido à religião na explicação do mundo44, a instituição médica se consolida como um espaço legítimo de produção de um discurso sobre o sexo. Eis então o contexto no interior do qual é desenhado o personagem do “adulto perverso”, que por sua vez dará origem ao homossexual; indivíduo este definido por sua sexualidade anormal e desviante, que será diagnosticado e que deverá ser curado. É então a instituição médica que o define, que o desenha e que dele se ocupa. 43 Op. Cit. LHOMOND, Brigitte. Nature et homosexualité: Du troisième sexe à l’hypothèse biologique . In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les sciences et la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000. 44 27 2.3. Psiquiatrização do prazer perverso: o olhar médico sobre o corpo homossexual. A palavra “homossexualidade” data de 1869. Quem a usou pela primeira vez foi o escritor austro-hungaro Karl Maria Benkert45, autor de dois panfletos anônimos que se destinavam ao ministro da justiça da Prússia visando a abrogação do parágrafo 143 do código penal prussiano que condenava a “homossexualidade”46. Porém, não foi através dos escritos de Benkert que o termo ganhou popularidade. Na segunda edição de seu Psychopathia sexualis(1887), Krafft-Ebing47 se apropriou da palavra e inscreveu no termo suas conotações médicas e médico-legais. A partir de então, o termo foi amplamente utilizado e começou a aparecer nas publicações de médicos, sexólogos e psiquiatras do fim do século XIX e do começo do século XX48. Este termo de uma incoerência conceitual gritante descreve um indivíduo que nem sempre é bem definido, mas que é em todo caso cercado pela instituição médica. Não nos bastaria analisar as definições dadas a estes indivíduos reconhecidos e definidos a partir de suas sexualidades. Seria igualmente indispensável se debruçar sobre a fabricação da sexualidade e por consequência investigar a emergência dessas sexualidades desviantes, perversas e pervertidas, para então compreendermos como as definições do corpo homossexual pelo discurso médico puderam ser criadas e ativadas no interior desta disciplina e enfim entrever quais imagens ao mesmo tempo definem e materializam o corpo invertido49. 45 Karl Maria Kertbeny – batizado Karl-Maria Benkert- (1824-1882) foi um jornalista, escritor, tradutor e militante pelos direitos dos homossexuais. Ele se opôs ao parágrafo 143 de 1794 do código penal prussiano que condenava as relações “contra a natureza”. Segundo este parágrafo: “a fornicação entre homens ou entre pessoas e animais será punida de prisão”. Este veio a se tornar o parágrafo 175 do código penal alemão que esteve em vigor de 1871 à 1994 e que continuou punindo a homossexualidade. 46 HALPERIN, D. Homosexualité. In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. 47 Richard Von Krafft-Ebing (1840-1902) foi um médico alemão, professor de psiquiatria e autor da conhecida obra Psychopathia Sexualis publicada em 1885. Produzindo no fim do século XIX, este autor se inscreve na tradição da medicalização da homossexualidade própria ao período. 48 HALPERIN, D. Homosexualité. In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. 49 Referência ao termo “inversão” utilizado por Havelock Ellis. 28 Michel Foucault concebe a sexualidade não enquanto um dado natural que ao poder cabe controlar ou mesmo enquanto um domínio obscuro que deve ser desvendado por um tipo determinado de saber. Para o autor, a sexualidade seria ...le nom qu’on peut donner à un dispositif historique:... (un) grand réseau de surface où la stimulation des corps, l’intensification des plaisirs, l’incitation au discours, la formation des connaissances, le renforcement des contrôles et des résistances, s’enchaînent les un avec les autres, selon quelques grandes stratégies de savoir et de pouvoir 50. Estas estratégias de saber e poder das quais fala Foucault não seriam exatamente uma luta contra a sexualidade ou uma vontade pura e simples de controle do sexo. Trata-se na verdade da produção da sexualidade em si. Este dispositivo de sexualidade encontraria sua razão de ser na proliferação de discursos, anexação, invenção e penetração nos corpos de forma cada vez mais detalhada, minuciosa e global. Isto é, através do dispositivo de sexualidade seria possível o controle dos indivíduos, a incitação ao prazer e a sua canalização através de estratégias plurais e muito diversas51. Para Foucault, este dispositivo de sexualidade nasce no seio de nossas sociedades modernas se sobrepondo, sem suplantar completamente, o dispositivo de aliança – sistema anteriormente mais presente e mais ativo. O dispositivo de aliança se constituira sobre um sistema de casamentos, de parentalidade e de transmissão de bens e de nomes que funcionou através de um conjunto de regras, do que era permitido e não permitido, lícito e ilícito em termos de relações sexuais. A preocupação central neste sistema é a regulação dos laços entre parceiros com o status bem definido52, dirigindo sua atenção principalmente ao casal heterossexual monogâmico reprodutor. 50 “... o nome que se pode dar a um dispositivo histórico:... grande rede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, se encadeiam umas nas outras, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder” (tradução livre) FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. p.139. 51 Op. Cit. p.139 52 Op. Cit. p. 140 29 Contrariamente a este sistema, o dispositivo de sexualidade – que começa a ser implantado nas sociedades ocidentais por volta do século XVIII - funciona através de técnicas móveis e polimorfas de poder, provocando uma extensão e expansão permanente dos domínios e formas de controle. Este novo dispositivo não funciona através da interdição como é o caso do dispositivo de aliança, mas através da proliferação, multiplicação, anexação dos desejos e dos prazeres, expansão dos saberes e de técnicas de poder sobre os corpos, visando um controle detalhado e global do corpo social. Assim, poderiamos ir de encontro à “hipótese repressiva” e levar em conta algumas hipóteses que recolocam em questão o tema da repressão crescente da sexualidade nas sociedades ocidentais, admitindo assim que se trataria muito mais da emergência da sexualidade a partir do século XVIII que de uma tentativa de repressão e neutralização de seus efeitos. Neste sentido, Foucault contrapõe à idéia de uma sexualidade reprimida três teses; ...la sexualité est liée à des dispositifs récents de pouvoir; elle a été en expansion croissante depuis le XVIIe siècle; l’agencement qui l’a soutenue depuis lors n’est pas ordonné à la reproduction; il a été lié dès l’origine à une intensification du corps – à sa valorisation comme objet de savoir et comme élément dans les rapports de pouvoir53. Desta maneira podemos entrever uma certa imagem da relação estabelecida pelo pensador francês entre poder e saber. Em realidade, a análise da emergência do dispositivo de sexualidade presente em “História da sexualidade” só pode ser compreendida a partir e sob a luz do conceito de poder e da relação então estabelecida entre poder e saber. Nesta relação, o corpo assume um papel central; alvo de discursos e elemento importante nas relações de poder; é por esta razão que preferimos nos servir da idéia de “corpo homossexual”. 53 “... a sexualidade está ligada a dispositivos recentes de poder; ela esteve em expansão crescente desde o século XVII; as ações que a sustentaram não estiveram ordenadas em torno da reprodução; estas ações estiveram desde sempre ligadas à uma intensificação do corpo – à sua valorização como objeto de saber e como elemento nas relações de poder” (trad. livre) Op. Cit., p.141 30 O processo de ativação do dispositivo de sexualidade não parece ter sido homogêneo em todas as classes sociais. Mesmo que seguindo caminhos de análise muito diferentes e talvez irreconciliáveis, Michel Foucault e Georges Chauncey54 convergiram em suas análises ao perceberem um descompasso, uma assincronia na ativação de práticas, discursos e representações entre as classes médias e populares. Foucault afirma que o dispositivo de sexualidade que se dirigiu ao corpo, à longevidade, à procriação, à descendência, foi dirigido antes de tudo às classes dominantes. Mais que um dispositivo inicialmente voltado à repressão do sexo das classes exploradas visando a otimização das forças de trabalho, o dispositivo de sexualidade agiu, em um primeiro momento, sobre o corpo, a força, objetivando a proteção dos descendentes das classes dominantes, operando uma “distribution nouvelle des plaisirs, des discours, des vérités et des pouvoirs55”. Desta forma, Foucault defende a idéia de que precisaríamos encarar a ativação deste dispositivo mais como uma questão de auto-afirmação de uma classe que de sujeição de outra56. A burguesia que então prosperava preocupada com a questão de sua longevidade, de sua saúde, de seu corpo, de sua descendência foi a primeira a se interrogar sobre o seu sexo. O sexo é aquilo que a inquietou, que exigiu a intervenção de saberes, um elemento que precisou ser desvendado. Assim, para o filósofo, a sexualidade enquanto “l’ensemble des effets produits dans les corps, les comportements, les rapports sociaux par un certain dispositif relevant d’une technologie politique complexe”57 não operou da mesma forma, não surtiu efeitos de forma homogênea em todo o corpo social. Se ela emerge no seio das classes dominantes, se ordenando ao redor da preocupação da vida, da longevidade e da hereditariedade em um processo de auto-afirmação de classe, ao ser transposta para as outras classes sociais produziu efeitos diferentes e revelou possuir objetivos diversos. 54 CHAUNCEY, Georges. Gay New York: 1890-1940. Fayard, 2003. “como nova distribuição dos prazeres, dos discursos, das verdades e de poderes” (trad. livre) FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976, p. 162. 56 Op. Cit., p. 162. 57 “o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais por um certo dispositivo que tem origem em uma tecnologia política complexa” (trad. livre) Op. Cit., p. 168. 55 31 É a partir do século XIX que, não sem resistência, o dispositivo de sexualidade será disseminado pelo tecido social. Para que o sexo, a sexualidade e a saúde do proletariado fossem colocados em questão, foi necessária a eclosão de conflitos no espaço urbano. A contaminação e transmissão de doenças ligadas a promiscuidade e proximidade das habitações, a prostituição e a rápida disseminação de doenças venerias, a necessidade do controle demográfico, são alguns dos elementos que permitiram ou exigiram que o proletariado fosse interrogado, analisado e controlado; que ele fosse também subjetivado através do dispositivo da sexualidade. Desta forma, é possível compreender a idéia defendida pelo autor francês de que o sexo se ordenou ao redor da temática da vida e da doença. Temática esta que funciona no interior ou que faz funcionar o sistema do bio-poder. Na primeira metade do século XIX a importante discussão em torno da hereditariedade fez do sexo uma questão central, um elemento que deve ser levado em consideração quando se trata da saúde do corpo social como um todo. Se o sexo não fosse vigiado, controlado, tratado, as gerações futuras seriam colocadas em perigo58. Os médicos enquanto autoridades capacitadas a discursar sobre a saúde e o sexo da sociedade, começaram a propor explicações que se pretendiam racionais sobre as conseqüências de certas relações sexuais no devir da civilização. Assim, não é uma coincidência o fato de a teoria da degenerescência, amplamente difundida e aceita pelos espíritos do século XIX, ter sido defendida em primeiro por um psiquiatra. Foi Benedict-Auguste Morel59 um dos primeiros a conceitualizá-la e desenvolvê-la. Afirmando que as anormalidades físicas, intelectuais e morais da espécie humana eram decorrentes de um processo único de degenerescência, Morel explicava como uma família sã pode caminhar de geração em geração em direção à decadência60. Assim, um conjunto indefinido de anormalidades seria transmitido de forma hereditária, podendo tocar diversos ou todos os membros de uma família61. Um 58 Op. Cit., p.156 Benedict Augustin Morel (1809-1873) foi um psiquiatra franco-austríaco. Membro da Société de Médecine de Rouen, da Académie des sciences, belles-lettres et arts de Rouen e da Société médico-psychologique de Paris, Morel foi um dos primeiros a teorizar sobre a degenerescência e a demência precoce. 60 CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007. 61 BUSSCHER, P. O. De, Dégénérescence In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. 59 32 indivíduo com alguma doença não muito grave transmitiria ao se reproduzir sua “tara”, agravando-a. L’irritabilité bénigne d’un ascendant devient à la deuxième génération une déficience nerveuse plus grave, puis à la troisième une disposition innée à la folie. Quatre générations produisent le dégénéré complet avec qui la lignée s’éteint puisqu’il est stérile62. Mesmo se esta teoria foi formulada a partir de um vocabulário médico, ela não se restringiu ao domínio da medicina enquanto disciplina, mas teve uma ampla aplicação a partir da segunda metade do século XIX nas sociedades ocidentais63. A medicina legal assim como o direito fizeram funcionar seus discursos durante muito tempo com base neste sistema. Para além, a teoria de Morel marcou muito as mentalidades e os espíritos da época, extrapolando os limites dos espaços oficiais e legítimos de enunciação e se disseminando pelo tecido social. Foi esta teoria que permitiu o estabelecimento e a articulação da idéia de perversão e de hereditariedade, já que elle expliquait comment une hérédité lourde de maladies diverses – organiques, fonctionnelles ou psychiques, peu importe – produisait en fin de compte un pervers sexuel... mais elle expliquait comment une perversion sexuelle induisait aussi un épuisement de la descendance – rachitisme des enfants, stérélité des générations futures64. Assim, poderíamos afirmar que a teoria da degenerescência foi um elemento muito importante no movimento de intervenção do olhar médico sobre o corpo do perverso sexual. O discurso médico de então percebia o perigo da perversão sexual já que esta colocava em risco a descêndencia dos indivíduos e começou então a procurar na ascêndencia destes “perversos sexuais” as marcas que conduziram-os à perversão. 62 “A irritabilidade leve e remediável de um ascendente se torna na segunda geração uma deficiência nervosa mais grave, se tornando já na terceira geração uma disposição inata a loucura. Quatro gerações produzem o degenerado completo, em quem a linhagem acaba já que ele é estéril”. (trad. livre) Op. Cit. 63 Op. Cit, pp. 156-157 64 “... ela explicava como uma hereditariedade carregada de diversas doenças – orgânicas, funcionais ou psíquicas, pouco importa – produzia no fim das contas um perverso sexual... mas ela explicava também como uma perversão sexual afetava a descendência – raquitismo das crianças, esterilidade das futuras gerações”. (trad. livre) FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976 p. 156 33 Esta relação que então se estabelecia entre perversão-hereditariedadedegenerescência dirigiu o olhar médico em direção ao corpo do perverso sexual, tentando definí-lo. Isto é, os médicos que se preocupavam com o sexo deslocaram então na segunda metade do século XIX seu olhar do casal heterossexual monogâmico reprodutor para os múltiplos corpos anormais, perversos e desviantes. Corpos estes que escondiam em seu sexo as doenças e as taras que poderiam conduzir ao declínio da civilização, a contaminação e extinção da raça. É então no sexo destes indivíduos que se encontra a verdade de suas existências. O sexo deveria ser vigiado, interrogado e vasculhado já que nele se esconde a verdade do indivíduo. Desta forma, a sexualidade passa a ser um domínio específico da personalidade. O homossexual é e não está ou foi. Ora, o sodomita não possuía um corpo específico, uma história, uma sexualidade e uma personalidade, existindo no ato que o definia e sendo julgado não por sua essência mas por uma ação. Já o corpo homossexual que assombrava os manuais médicos do século XIX e começo do século XX é um corpo que possuía formas, um passado e uma natureza específica. Este corpo era alvo de discursos e sujeito em determinadas relações de poder. A França pós-revolucionária tirou em 1791 da sua lista de crimes e delitos os “atos contra a natureza”, dentre os quais a sodomia fazia parte. O novo código penal napoleônico ratificou esta mudança e introduziu em seu corpo a idéia de demência no momento do ato criminoso e da inculpabilidade do indivíduo se comprovada a irresponsabilidade psíquica65. É então que os médicos começam a ser interrogados pelo saber jurídico para analisar e identificar se o indivíduo julgado por um ato criminoso estava em perfeitas condições mentais no momento do crime. Desta forma, são cada vez mais os médicos que devem se pronunciar sobre a condição e o futuro dos indivíduos detidos por atendado à moral. Assim, 65 CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007. 34 Petit à petit, expertise après expertise, ils énoncent le licite et l’intolérable, délimitant du même coup les déviances et la normalité en matière de comportement sexuel66 Os médicos começam então a separar e categorizar as diversas taras e perversões sexuais tentando dar conta de todas as anomalias do instinto sexual, criando e materializando desta forma o corpo perverso. Isto é, a prática médica criou também subjetividades, circunscreveu e criou os indivíduos anormais – e por conseqüência os normais - sobre os quais ela discursou. É então no século XIX e no interior de um movimento de solidificação da autoridade do discurso médico em pronunciar a verdade sobre a saúde da sociedade que o perverso sexual parece começar a ser desenhado. Em suma, poderíamos afirmar que a delimitação dos contornos do corpo perverso se deu em um momento em que que a sexualidade começou a se tornar um domínio específico da personalidade dos indivíduos e o sexo se tornou uma preocupação para a sociedade por sua capacidade de produzir vida e de reproduzir vícios e taras. Elemento que os define, a sexualidade é um domínio de sua natureza que deve ser interrogado, revelado, confessado. O confessionário então dá lugar ao consultório, ao divã e à clínica. Esta discussão sobre a criação da categoria social do homossexual pelo discurso médico foi iniciada nos trabalhos de Michel Foucault e em seguida animada pelo lançamento, nas décadas de 1980 e 1990, de trabalhos influenciados por ele. Contudo, ela está longe de ser consenso absoluto entre os historiadores. Georges Chauncey em seu trabalho “Gay New York: 1890-1940”67 afirma que os manuais médicos do fim do século XIX e começo do século XX permitem antes de tudo e tão somente acompanhar a evolução dos termos da ideologia sexual da época, e deveria ser esta então a utilização destes escritos como fonte para o historiador. Chauncey defende que as categorias empregadas naqueles trabalhos médico-científicos americanos já estavam disseminadas na cultura popular. Isto é, as caraterísticas do “invertido”, do “perverso” ou dos “normais” presentes no discurso médico refletiam categorias já ativas nas representações das pessoas comuns. 66 “Pouco a pouco, exame após exame, eles enunciam o lícito e o intolerável, delimitando ao mesmo tempo a anormalidade e a normalidade em matéria de comportamento sexual”. (trad. livre). Op. Cit., p. 55. 67 CHAUNCEY, Georges. Gay New York: 1890-1940. Fayard, 2003.. 35 O autor vai ainda mais além ao afirmar que, contrariamente ao que propõe Michel Foucault, o discurso médico sobre a homossexualidade teve um efeito e uma influência limitados sobre as representações da população de Nova York até meados do século XX. ... alors que quelques garçons étaient diagnostiqués comme homosexuels par les médecins, un nombre beaucoup plus grand était dénoncé comme anormaux (queers) par les autres garçons dans la rue68 Desta maneira, não poderíamos reconhecer uma importância e uma influência desmedida ao discurso médico como se este sozinho tivesse influenciado e mudado completamente as representações em relação a estas práticas sexuais consideradas anormais. Se reconhecemos uma importante mudança nos discursos médicos em relação a estas práticas, não podemos esquecer que estes discursos foram criados em um contexto histórico e ativaram representações que rivalizaram, entraram em contato, influenciaram e foram influenciadas por outras representações. Ora, esta reflexão presente no trabalho de Georges Chauncey nos permite igualmente relembrar que os indivíduos que escreveram sobre as perversões e que se interessaram por estas questões não estavam recortados da realidade social e cultural de sua época. Eram, por outro lado, indivíduos que compartilharam crenças, idéias e representações com seus contemporâneos. Assim, é importante ter em vista que os médicos do século XIX e do começo do século XX que olharam para a perversão sexual com interesse crescente não eram somente médicos, mas eram também e antes de tudo indivíduos que viveram em um período histórico determinado e em uma classe sócio-cultural bem definida, sendo, portanto, influenciados pelas ansiedades da época e pelo desejo de controle e regulação das diferenças. Contudo, o presente trabalho não se propõe a analisar as representações populares das práticas sexuais desviantes ou o processo de subjetivação e de autoidentificação dos homossexuais. Uma vez que nosso objetivo é o de tentar compreender e entrever as imagens do corpo homossexual produzidas nos manuais 68 “... enquanto alguns meninos eram diagnosticados como homossexuais pelos médicos, um número muito maior era denunciado como anormais (queers) pelos outros meninos na rua”. (trad. livre) CHAUNCEY, Georges. Gay New York: 1890-1940. Fayard, 2003, pp. 163-164. 36 médico-legais brasileiros das décadas de 1940 e 1950, as reflexões de Michel Foucault não perderam sua atualidade e nem sua pertinência teórica. 37 3. Os contornos da perversão: definições e imagens do corpo homossexual nos manuais de medicina e de sexologia do século XIX e da primeira metade do século XX. No século XIX as perversões sexuais se tornaram objeto de atenção especial da parte de médicos, psiquiatras e juízes. O corpo perverso em sua particularidade e em sua anormalidade começava então a ser melhor definido nos e através dos pareceres e teses médicas e nas diversas revistas científicas da época. Neste segundo capítulo analisaremos algumas obras clássicas de grande difusão e aceitação nos espaços oficiais de produção dos discursos médicos da segunda metade do século XIX e início do século XX. Para tanto, devemos levar em conta as considerações feitas por Jean-Christophe Coffin69 no que se refere aos cuidados a se tomar ao escrever a história de uma comunidade profissional. Para evitar o anacronismo e a visão teleológica que marcaram alguns trabalhos da história das ciências, devemos proceder a um estudo dos conteúdos de nossas fontes primando pela análise das discordâncias e nuances existentes nos debates promovidos no interior de comunidades profissionais específicas. É igualmente importante não negligenciar um estudo do contexto histórico no qual nossas fontes se inserem, pois mesmo se as ciências médicas “peuvent avoir des rythmes propres et des critères de production du savoir qui leur sont spécifiques, demeurent liées à la culture dans laquelle elles évoluent”70 Assim, para melhor compreendermos nossas fontes e com o objetivo de inseri-las em seu contexto histórico, estudaremos primeiramente neste capítulo a emergência da medicina legal na segunda metade do século XIX e as disputas de influência então existentes entre a medicina e a justiça para se determinar “de quelle sphère relèvent les pervers”.71 69 COFFIN, Jean-Christophe. Sexe, hérédité et pathologies. Hypothèses, certitudes et interrogations de La medicine mentale, 1850, 1890. In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les sciences et la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000. 70 “podem ter ritmos próprios e critérios de produção do saber que são específicos, continuam ligadas a cultura na qual elas evoluem” (trad. Livre) Op. Cit. p. 100. 71 “de qual esfera pertencem os perversos” (trad. Livre). LHOMOND, Brigitte. Nature et homosexualité: Du troisième sexe à l’hypothèse biologique . In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les sciences et la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000. p. 154. 38 Em um segundo momento, analisaremos brevemente a produção do masculino e do feminino no interior dos discursos médicos, já que a produção do corpo invertido está relacionada a um processo de produção da diferença sexual. Finalmente, estudaremos nossas fontes tentando identificar as imagens nelas presentes dos perversos, invertidos e homossexuais, procurando compreender os termos do debate que existiu entre os autores e acompanhando assim a evolução das representações produzidas. 39 3.1. Crepúsculo de juízes, manhã de médicos: a medicina-legal na segunda metade do século XIX. A França do século XIX viu a ativação em seu corpo de leis de uma doutrina de bons modos que visava assegurar a moralidade pública, a condenação da violência e a proteção da família e da infância72. Já em 1810 o código penal francês através do artigo 330 previa o crime de atentado público ao pudor. Outros crimes como o de incitação de menores à corrupção, o de atentado ao pudor com violência e o de estupro eram já reconhecidos e estavam mais ou menos bem definidos no código de então. A partir da segunda metade do século XIX a infância e a juventude passaram a ser objetos de preocupação e de novas observações por parte do Direito. As violências morais começam então a ser punidas quando cometidas contra crianças e importantes alterações da legislação em matéria de idade penal de consentimento em relações sexuais puderam ser observadas. Se desde 1832 o atentado ao pudor sem violência era somente considerado para as crianças menores de 11 anos, em 1863 a idade mínima de consentimento passou a ser de 13 anos73. Para Sylvie Chaperon, as preocupações dos juristas da época diante dos “atentados ao pudor” eram de “soutenir la famille et surtout l’autorité maritale, repousser la violence, s’assurer de la non-publicité de la sexualité”74. Contudo, mesmo que a adoção de tais leis acusem a existência de uma preocupação com a família e a juventude no que diz respeito ao sexo e à sexualidade, o Direito não tratava e não era muito prolífico no tocante a discussão sobre o sexo anormal e aos desviante. A sodomia foi retirada do corpo de crimes e delitos do código penal francês em 1791, sendo esta alteração reafirmada pela redação do código de 181075. A partir de então, o direito francês se mostrou neutro diante das “perversões sexuais”. Contudo, os pederastas não estavam protegidos da repressão policial. Mesmo se os juristas não definiam o vício através das leis, os juízes e policiais não mediam esforços em fazer uso das leis então existentes para punir a pederastia. Assim, o artigo 334 do código 72 CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007. Op. Cit. 74 “manter a família e sobretudo a autoridade do marido, afastar a violência, manter a não-publicidade da sexualidade” (tradução livre) Op.Cit. p.57 75 Op. Cit. 73 40 penal de 1810 que previa o crime de incitação à corrupção era freqüentemente ativado em casos de relações pederásticas. Por volta de 6500 pederastas foram fichados pela polícia parisiense entre 1860 e 187076. O silêncio diante de um vício presente na sociedade e condenado por ela deveria ser rompido. Foi a partir da necessidade de identificação dos perversos sexuais e de maior definição científica de sua natureza que o discurso da medicina legal se sobrepôs ao silêncio do direito. Na França a emergência da medicina legal foi possível através de modificações nas leis do Império que previam que todo tribunal deveria se cercar de um corpo de médicos prontos a se pronunciar sobre determinadas questões que diziam respeito à saúde dos acusados. O artigo 64 do Código penal de 1810 estipulava que Il n’y a ni crime ni délit lorsque le prévenu était en état de démence au temps de l’action, ou lorsqu’il a été contraint par une force à laquelle il n’a pu résister77. Cada vez mais, a partir da metade do século XIX, a suspeita de lesão mental dos indivíduos acusados por certos crimes é colocada em questão. Assim, a medicina começava a ser interrogada pela justiça. A partir de então, são os médicos que devem se pronunciar sobre a saúde mental do indivíduo cercado pela justiça e assim decidir sua sorte. Começam então a surgir numerosas pesquisas e pareceres médicos que se debruçaram sobre o corpo perverso. Estas pesquisas se inscrevem em um amplo quadro de produção científica sobre a histeria, as neuroses e as psicoses. Os perversos sexuais passam a ser objetos de atenção por sua natureza fisiológica evidentemente, mas também por sua natureza psíquica desviante. Se o saber jurídico não pode dar conta das anormalidades sexuais, são os responsáveis pela saúde da população que devem oferecer explicações científicas para a definição da natureza daqueles indivíduos que carregavam consigo a possibilidade de 76 Op. Cit. “Não existe nem crime nem delito se o acusado estava em estado de demência no momento da ação ou se ele foi levado ao ato por uma força a qual ele não pode resistir” (tradução livre). Op. Cit. p.58 77 41 contagiar a sociedade com seu sexo anormal. Neste contexto de formação do saber médico-legal é então dever dos médicos definir a natureza da inversão, identificar o invertido em sua particularidade física e psíquica e se possível apontar os caminhos que levam a sua cura. Discutimos no primeiro capítulo como a cidade se torna no século XIX um ambiente de produção e reprodução de vícios e doenças. Não é coincidência então o fato de a medicina-legal emergir enquanto saber legítimo neste contexto. Ora, o médico legista é o indivíduo que deve “répertorier les nouvelles formes de violences urbaines et de proposer aux autorités publiques des outils scientifiques susceptibles non seulement de diagnostiquer la perversion mais également de l’éradiquer”78 Ambroise Tardieu79 é um bom exemplo de um homem de ciência que cumpriu seu papel no quadro de formação do saber médico-legal. Seu objetivo era o de oferecer aos médicos e juristas não uma explicação das causas da pederastia, mas de apontar um caminho sólido em direção a definição das marcas físicas da inversão. Assim, os pederastas poderiam ser reconhecidos pelos homens de ciência e de lei. Desta maneira, a inversão sexual enquanto um elemento constitutivo da personalidade dos indivíduos era algo passível de ser identificado, diagnosticado e talvez curado. Ela passa então a ser um objeto de estudo privilegiado pela medicinalegal recém nascida. Os alienistas, médicos que se ocupavam das patologias e das alienações mentais, desenvolviam por vezes exames médicos longos e dispendiosos já que um parecer médico requisitado por um tribunal exigia diversos interrogatórios dos acusados, vários exames médicos aprofundados, consulta aos documentos reunidos pelos responsáveis do caso, visita aos parentes e vizinhos do acusado, entre outros procedimentos. Mesmo se eram os médicos os responsáveis por complicados e demorados pareceres que tinham grande peso nos processos criminais, a decisão final no 78 “repertoriar as novas formas de violências urbanas e de propor as autoridades públicas as ferramentas científicas que possibilitem não somente o diagnóstico da perversão mas também de sua erradicação” (tradução livre) BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005. p. 267. 79 Ambroise Tardieu (1818-1879) foi um dos principais nomes da medicina-legal francesa. Em sua obra “Étude médico-légale sur les attents aux moeurs” publicada em 1857, Tardieu dedica um capítulo inteiro à “pederastia” e a “sodomia”. 42 julgamento não cabia a eles. Em realidade, nem sempre os pareceres médicos eram acatados pelos juízes. É interessante perceber que existia uma luta de influência entre os discursos médico e jurídico no que diz respeito ao controle dos perversos sexuais. Para além, a organização de alguns médicos renomados da segunda metade do século XIX contra determinadas leis que penalizavam a pederastia são representativos de jogos e disputas que comprovam que os saberes médico e jurídico nem sempre andavam de mãos dadas. Em países europeus como a Inglaterra e a Alemanha que possuíam uma legislação mais repressiva que a da França em relação à pederastia, foram por vezes os próprios médicos que lutaram pela descriminalização da homossexualidade. Carl Westphal, Magnus Hirschfeld80 e Richard von Krafft-Ebing, por exemplo, foram alguns dos médicos que se posicionaram contra o parágrafo 175 do código penal alemão que condenava a homossexualidade. Em resumo, poderíamos afirmar que o saber médico-legal emerge em um momento em que os médicos passam a ter maior autoridade sobre questões de saúde e de doença, bem como sobre as definições de normalidade e de patologia. Momento em que os tribunais passam a interrogá-los, permitindo que o saber médico invista no campo jurídico. Assim, podemos perceber um movimento de interação entre estes dois campos de saber distintos. O corpo perverso foi um objeto privilegiado nesta interação e se constituiu a partir desta luta de influências. Ele começa a ser desenhado nos processos criminais, nos pareceres médicos, nas teses de medicina legal e nas inúmeras publicações médicas da época. 80 Carl Friedrich Otto Westphal (1833-1890) foi um neurologista alemão, alienista no hospital da caridade de Berlim, professor de doenças nervosas e cerebrais e diretor da revista “Archiv für Psychiatrie”. É considerado por Michel Foucault como um dos responsáveis pelo nascimento da homossexualidade moderna. Foi um dos primeiros a escrever sobre a sexualidade enquanto um problema de desordem psíquica. Magnus Hirschfeld (1868-1935) foi um médico e sexólogo alemão e é considerado como um dos pais dos movimentos de liberação homossexual. 43 3.2. A fabricação da diferença entre os sexos e a inversão sexual Inversão, uranismo, homossexualidade, unisexualidade, travestismo, bissexualidade ou hermafroditismo psíquico foram alguma das muitas definições criadas por médicos do século XIX que se esforçavam em cercar e definir as aberrações sexuais de maneira cada vez mais exata e detalhada. Do interior das teses de medicina-legal, dos trabalhos de psiquiatria e dos pareceres de médicos destinados aos tribunais, as fronteiras entre a normalidade e anormalidade, entre o sadio e o doente em termos de comportamento sexual começaram a ser traçadas. Desta maneira, para poder delimitar a linha que separa a normalidade da anomalia era necessário conhecer as leis naturais da sexualidade. Segundo Sylvie Chaperon, o evolucionismo de Darwin que encontrou grande aceitação pelos espíritos do século XIX teve uma grande influência sobre os médicos quando de suas tentativas em explicar a sexualidade e seu desenvolvimento normal81. A teoria do evolucionismo foi de grande utilidade para os médicos e psiquiatras do período que não entraram em discussões muito aprofundadas sobre o assunto, mas que retiveram dela a idéia da dinâmica, do movimento que vai do inferior ao superior. Des espèces vivantes les plus primitives jusqu’à l’espèce humaine, de l’aube de l’humanité jusqu’au présent, du nourrisson jusqu’à l’adulte, ils (les médicins et les psychiatres) observent le même passage du chaos vers l’organisé, du simple vers le complexe, de l’instinct vers la raison, mais aussi du corps vers l’intellect82. Ora, este esquema poderia justificar todas as hierarquias. Em realidade, ele serviu até mesmo para justificar a inferioridade feminina, dando a esta condição social uma explicação científica. Para além, a teoria do evolucionismo permitia muito mais. Oferecia as bases de explicação do desenvolvimento da sexualidade humana e da diferença entre os sexos. A partir da teoria de Darwin foi possível explicar a formação e a diferenciação dos 81 CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007.. “Das espécies vivas mais primitivas à espécie humana, dos primórdios da humanidade ao presente, do filhote ao adulto, eles (os médicos e psiquiatras) observam a mesma passagem do caos em direção ao organizado, do simples ao complexo, do instinto a razão, mas também do corpo ao intelecto” (tradução livre) Op. Cit., p. 74. 82 44 sexos enquanto um processo ao mesmo tempo fisiológico e mental. A natureza masculina, apesar de complementária, seria radicalmente diferente da natureza feminina. De fato, quanto maior a diferença entre os sexos, mais forte seria a expressão do progresso de uma civilização. Isto é, para aqueles indivíduos influenciados pelo pensamento evolucionista, quanto mais bem definidas as características masculinas e femininas, mais evoluída uma sociedade seria. A história do termo sexualidade acusa certas representações do pensamento médico do período em relação ao sexo. No Dictionnaire Dechambre a palavra sexualidade era descrita como “l’ensemble des attributs anatomiques et physiologiques qu’entraînnent avec elles l’apparition et l’existence des sexes.83 O termo se referia então a formação do sexo masculino e do sexo feminino e não às práticas sexuais. Seguindo as reflexões de Thomas Laqueur, Patrice Corriveau e Brigitte Lhomond84 concordam sobre o fato de que o século XVIII parece inaugurar uma nova maneira de perceber o sexo ou a diferença entre os sexos. Assim, o modelo de dois sexos biológicos distintos tem sua própria história. A percepção herdada dos gregos concebia um único sexo que poderia ter duas variações em termos de gênero. Neste modelo, não haveria diferença biológica ou natural entre o corpo masculino e feminino, sendo as diferenças existentes uma questão de graduação de um mesmo corpo. Dependendo da quantidade de calor atribuída a cada corpo, ele se moldaria, em termos mais ou menos perfeitos, em um corpo de homem quando o calor foi suficiente para externalizar os órgãos reprodutivos, ou em um corpo de mulher quando foi insuficiente e os órgãos permaneceram internos85. 83 “...conjunto dos atributos anatômicos e fisiológicos que acarretam a aparição e a existência dos sexos” (tradução livre). Dictionnaire Dechambre ou Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales foi publicado de 1864 à 1889 pelo médico e jornalista Amédée Dechambre . 84 LAQUEUR, Thomas. Making Sex. Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge: Harvard University Press, 1990. CORRIVEAU, Patrice. La répression des homosexuels au Québec et en France : du bûcher à la mairie. Sillery, Septentrion, 2006. LHOMOND, Brigitte. Nature et homosexualité: Du troisième sexe à l’hypothèse biologique . In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les sciences et la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000. 85 ROHDEN, Fabíola. “O corpo fazendo diferença” In: Mana vol.4 n.2 Rio de Janeiro Oct. 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131998000200007&script=sci_arttext 45 A partir do Renascimento e de forma mais clara a partir do século XVIII, mudanças no pensamento científico articuladas a movimentos sociais e culturais inauguraram um modelo de dois sexos biológicos distintos. Se antes a diferença era expressa em termos de gênero, ela passa a partir de então a ser marcada pelo sexo. Dois corpos radicalmente distintos, duas psicologias opostas. Para os médicos os primeiros sinais do sexo apareceriam desde cedo na criança sob a forma de gostos e predisposições específicos. O menino brinca de soldado e a menina brinca de boneca. Assim, os médicos viam o sexo não somente no corpo dos indivíduos, mas em todos os níveis de sua personalidade. A teoria do evolucionismo oferecia naquele contexto ferramentas de explicação do desenvolvimento da sexualidade. Neste sistema, os indivíduos partiriam de uma infância de relativa indeterminação sexual para a idade adulta e de reprodução, quando o sexo deveria estar muito bem definido. Assim, podemos perceber como a sexualidade considerada normal no período dependia de uma determinação e diferenciação sexual muito bem marcada86. Apesar de natural e biologicamente distintos, os sexos eram percebidos como complementares. A partir do fim do século XIX podemos perceber a ativação de idéias e teorias no interior do campo médico que buscavam dar cientificidade a este princípio de complementaridade dos sexos. Segundo uma analogia magnética, a vida sexual era no período analisada sob o prisma das leis da eletricidade; os sexos contrários se atraem enquanto os homólogos se afastam87. Neste sistema de explicação os desviantes sexuais eram percebidos como corpos que derraparam no movimento da evolução. Eram vistos como aberrações da evolução e, por conseqüência, da natureza. Não é impossível neste sentido perceber como se deu a ativação do modelo do invertido sexual. O pensamento médico do período apresenta um continuum entre sexo, gênero e práticas sexuais. Isto é, o sexo, definido pelos órgãos sexuais e pelas características sexuais secundárias (pilosidade, desenvolvimento de seios, timbre da voz, etc) deveria ser correspondido pelo gênero (mulher-feminina e homem-masculino), sendo os 86 87 CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007.. Op. Cit. 46 impulsos sexuais normais aqueles dirigidos ao sexo oposto. Neste quadro de pensamento, aqueles indivíduos desviantes teriam não somente uma prática sexual anormal, mas possuiriam igualmente uma personalidade anormal. O termo “inversão sexual” aparece pela primeira vez na segunda metade do século XIX. Em 1869, Carl Westphal escreveu “Die Konträre Sexualempfindung” sendo em seguida a vez de Havelock Ellis88 de utilizar o conceito de “inversão sexual” para dar conta de casos em que o desejo sexual do indivíduo é dirigido ao mesmo sexo. Ora, o processo de concepção e utilização deste termo reflete o tipo de filosofia em relação ao sexo no interior da qual se inserem os médicos responsáveis por seu nascimento. Neste sistema em que sexo, gênero e práticas sexuais estavam intrinsecamente ligados, a inversão se manifesta pela descontinuidade do sexo anatômico e dos impulsos sexuais. Assim, um homem que tivesse desejos sexuais pelo mesmo sexo era entendido como alguém que possuía uma parte de feminilidade. Em todo caso, este indivíduo não era e não poderia ser completamente homem já que ele possuía um impulso sexual feminino. Para outros autores como Krafft-Ebing, a inversão sexual seria uma espécie de marca de degenerescência e um fenômeno parcial de um estado neuro-psicopatológico que tem como causa a hereditariedade89. É importante ressaltar que a teoria da degenerescência é ativada pelo saber médico para poder cercar os casos de indivíduos que representam a exceção à regra da evolução. Assim, muitos psiquiatras vão explicar as aberrações sexuais pelo prisma desta teoria. Desta maneira, poderíamos afirmar que as teorias do evolucionismo e da degenerescência interagiram no seio das práticas médicas da segunda metade do século XIX. Contrariamente às proposições de Krafft-Ebing, para Havelock Ellis a inversão não é uma doença, mas uma condição orgânica, congênita ou uma variação da natureza. Contudo, parece que para ambos os autores ela é uma espécie de derrapagem no continuum sexo-gênero-práticas sexuais. 88 “Inversão do instinto sexual” (tradução livre). Havelock Ellis (1859-1939) foi um médico, sexólogo, psicólogo e reformador social britânico. Escreveu sobre a inversão sexual, considerando-a natural e congênita. ERIBON, D. Havelock Ellis In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. 89 CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007. 47 Desta maneira, podemos concluir que a ativação do modelo de inversão sexual se deu em um momento em que as práticas médicas estavam reforçando o modelo de bicategorização sexual, produzindo um sistema de pensamento em que sexo, gênero e impulsos sexuais estavam ligados. Devemos agora, sob a luz do entendimento do contexto de nascimento da medicina legal e da produção da diferença sexual no interior das práticas médicas, observar e compreender melhor algumas de nossas fontes no interior das quais podemos entrever imagens e representações dos desviantes sexuais. 48 3.3. Selva de definições: da multiplicidade de corpos desviantes Ambroise Tardieu foi o primeiro médico a assumir a cadeira de medicina legal da Universidade de Paris em 1861. É no contexto da emergência da medicina legal na segunda metade do século XIX que ele produziu. Naquele contexto a cidade era considerada produtora de vícios e doenças e precisava da intervenção dos homens da ciência que fossem capazes de diagnosticar as novas formas de violência e curar os perversos que tanto ameaçavam a juventude. Em seu livro “Etude médico-légale des attentats aux moeurs”90 publicado em 1857, o autor dedica o terceiro capítulo à pederastia. Ao longo de “De la péderastie et de la sodomie”, Tardieu pretendeu desenvolver um estudo científico com o objetivo de oferecer aos médicos legistas as ferramentas necessárias para se identificar o pederasta, indivíduo que carrega em seu físico as marcas de seu vício. Ele se propôs a definir a pederastia, dar uma noção geral sobre as condições nas quais este vício se exerce e finalmente traçar com a maior exatidão possível os seus sinais físicos. Diferentemente de outros autores como Havelock Ellis e Krafft-Ebing, o autor deste estudo não se preocupou com as causas da inversão. Segundo ele: “je ne prétends pas faire comprendre ce qui est incompréhensible et pénétrer les causes de la péderastie91.” Ele comenta no começo do capítulo a escassez de estudos que se debruçaram sobre este objeto de extrema importância, e afirma que em diversas ocasiões que ... m’ont été offertes dans les nombreuses expertises et l’examen de pédérastes avoués m’a été confie, que j’ai pu acquérir une expérience personnelle, qui me permettra d’aborder avec plus de certitude et plus d’autorité l’histoire des signes de la pédérastie.92 Ambroise Tardieu não cita, no entanto, as suas fontes, apresentando vagamente alguns casos provenientes de dossiês de instrução da justiça penal. Em realidade, para 90 TARDIEU, Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859. “eu não pretendo explicar o que é inexplicável e penetrar nas causas da pederastia” (tradução livre). Op. Cit. 92 “... foram-me oferecidas nas diversas expertises e no exame de pederastas assumidos que me foi confiado, que eu pude adquirir uma experiência pessoal que me permitirá abordar com mais certeza e mais autoridade a história dos signos da pederastia” (tradução livre). Op. Cit. 91 49 muitos médicos que se voltaram a estudar as perversões sexuais, este tipo de fonte foi muito utilizada articuladamente aos longos testemunhos de pederastas ou até mesmo de descrições pouco científicas sobre a vida dos invertidos. Nesta obra é possível perceber uma aproximação operada pelo autor entre a pederastia e o crime, isto é, a imagem do pederasta criminoso parece ser mais recorrente que a do pederasta doente. Tardieu levanta questões relativas ao lugar do vício da pederastia na determinação do crime a partir do estudo e da observação de casos de assassinatos cometidos contra “pervertidos” em que os autores eram seus pares sexuais. Assim, para o autor, os “actes contre nature (qui) auraient servi de pretexte et d’occasion à l’assassinat”93 é um objeto de análise que não deveria ser negligenciado nas investigações de homicídio. Desta maneira, ele dedica uma parte deste capítulo de sua obra ao estudo da relação dos elementos que devem ser levados em conta pelo médico legista quando da análise da relação da pederastia e do motivo e circunstâncias do assassinato. Em outro momento, Tardieu chega mesmo a citar um juiz de instrução parisiense de nome M. Le Baron A. de Saint-Didier que sobre a inversão sexual afirmava: “On peut dire que dans Paris la péderastie est l’école à laquelle se forment les plus habiles et les plus audacieux criminels”94. Ambroise Tardieu não foi o único autor a contribuir para a reafirmação da imagem do pederasta criminoso. A partir de uma preocupação marcada pela proteção das crianças e dos jovens que deveriam ser afastados do perigo da inversão sexual, Krafft-Ebing reativa a imagem do pederasta corruptor. Assim, ele se esforça em identificar as particularidades e os níveis diferentes dos múltiplos casos de inversão. O autor tenta listar aqueles casos em que, por sua influência perversa, a deformação da personalidade e da individualidade psíquica do indivíduo invertido colocaria em perigo a saúde dos jovens. Richard von Krafft-Ebing foi um dos principais nomes da tradição de medicalização da homossexualidade do fim do século XIX. Professor de psiquiatria nas universidades de Estrasburgo, Graz e Viena, ele publicou a famosa obra Psychopathia Sexualis em 1885. Podemos perceber a particularidade dos objetivos e 93 “atos contra a natureza (que) teriam servido de pretexto e de ocasião ao assassinato” (tradução livre)Op. Cit. “Podemos dizer que, em Paris, a pederastia é a escola aonde se formam os mais habilidosos e audaciosos criminosos”. Op. Cit. 94 50 da produção deste autor em relação à produção de Ambroise Tardieu. Se Tardieu buscava, sobretudo, oferecer uma lista completa das marcas físicas da inversão, se preocupando em identificar os pederastas, Krafft-Ebing busca, para além, compreender as causas da perversão95. Sua dupla formação de médico-legista e psiquiatra o levou a construir uma dupla imagem – a de pederasta criminoso e a de pederasta doente – além de operar uma importante transição. A perversão que antes estava inscrita no físico dos indivíduos passou, a partir de suas formulações, a se inscrever no domínio psíquico. O antropólogo e sociólogo holandês Gert Hekma percebe aí um movimento importante na história da medicalização da homossexualidade. Para ele as formulações da medicina legal davam conta, antes de tudo, das conseqüências físicas das práticas sexuais. Depois de 1880, período do advento de uma psiquiatria das perversões, os médicos passaram a se concentrar na personalidade dos indivíduos. Foi então que as perversões começaram a ser formuladas em termos de anormalidades no desenvolvimento fisiológico e psicológico 96. Krafft-Ebing é um dos principais nomes que contribuiu para tal transição da imagem do corpo homossexual nos debates médicos sobre as perversões. Na obra de Tardieu a inversão deve ser identificada a partir das marcas visíveis inscritas no corpo. Para ele, o mau uso do corpo produziria aberrações enormes. E é desta forma, a partir das anomalias físicas, que os pederastas poderiam ser reconhecidos. A pederastia deixava as suas marcas no corpo daquele que a praticava, e são essas marcas que ele se propôs analisar e listar em seu trabalho. Para tratar da pederastia o autor divide o capítulo em duas partes; uma que leva em consideração os sinais dos hábitos passivos dos pederastas e dos sodomitas e uma parte dedicada aos sinais deixados pela prática pederasta ativa. Assim, o que define o vício para Tardieu não parece ser o papel de gênero assumido na prática sexual (papel masculino-ativo ou papel feminino-passivo), mas a escolha do objeto sexual. Mesmo se o vício da prática sexual passiva parece ser mais sério do que o vício da prática sexual ativa, ambos são problemáticos para o autor. 95 KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895. HEKMA, Gert. Uma história da sexologia: aspectos e históricos da sexualidade. In: BREMMER, Jan (org.). De safo à sade: momentos na história da sexualidade. Campinas. Papirus, 1995. 96 51 Quanto aos sinais da pederastia passiva, Ambroise Tardieu se preocupa em listar todas as características que podem ser encontradas no corpo do paciente. Seriam o développement excessif des fesses, la déformation infundibuliforme de l’anus, le relâchement du sphincter, l’effacement des plis, les crêtes et caroncules du pourtour de l’anus, la dilactation extreme de l’orifice anal, l’incontinence des matières, les ulcérations, les rhagades, les hemorrhoïdes, les fistules, la blennorrhagie rectale, la syphilis, les corps étrangers introduits dans l’anus97. Poderíamos afirmar que Tardieu não só observa o corpo invertido objetivamente, mas o produz a partir de marcas específicas que ao mesmo tempo o definem e o constroem. Tratar-se-ia não somente do estudo objetivo sobre a inversão, mas também da construção das especificidades do corpo invertido. Krafft-Ebing identifica igualmente em certos casos graves de perversão do instinto sexual marcas no corpo dos indivíduos que se aproximariam mais das características do sexo anatômico oposto. Isto é, um homem que se encontrasse em um estágio de androginia, por exemplo, poderia apresentar um esqueleto, um rosto ou mesmo uma voz que se aproximaria da de um indivíduo de sexo feminino. Da mesma forma, a inversão sexual poderia levar o indivíduo a assumir um papel social diferente do esperado para seu sexo anatômico. Contudo, mesmo se o autor não nega a especificidade física em alguns casos de perversão sexual, ele leva em conta casos onde somente as “sensations du sens sexuel”98 fariam prova de inversão. Ou seja, alguns indivíduos poderiam apresentar um físico e um comportamento social em conformidade com seu sexo anatômico, mas possuir um desejo sexual desviante do considerado normal para seu sexo. Krafft-Ebing segue uma direção de análise do corpo invertido bastante diferente da praticada por Ambroise Tardieu. Antes de tudo, o autor alemão busca estudar 97 “desenvolvimento excessivo das nádegas, a deformação infundi buliforme do anus, o relaxamento do sfíncter, o desaparecimento das dobras, as estrias ao redor do anus, a dilatação extrema do orifício anal, a incontinência de matérias, as ulcerações, as hemorróidas, as fístulas, a blenorragia retal, a sífilis, os corpos estranhos introduzidos no anus”. (tradução livre) TARDIEU, Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859.. 98 “as sensasões do sentido sexual”, (tradução livre). 52 profundamente as causas da perversão sexual, fazendo com que múltiplas imagens do corpo perverso pudessem ser construídas. Para Krafft-Ebing, as causas da inversão poderiam ser de origem congênita ou adquirida, sendo que só esta última era passível de cura. Neste mesmo sentido, o autor afirma também a importância da distinção entre perversão e perversidade. Para ele o que define os perversos não é a prática sexual anormal, mas uma constituição psíquica anormal. Já os pervertidos eram indivíduos “normais”, isto é, de desenvolvimento psicossexual em conformidade com seu sexo anatômico, que poderiam manter relações homossexuais esporádicas determinadas pelo contexto e muitas vezes resultado da sedução e não de uma anormalidade psíquica ou orgânica. Assim, a “première tâche de la science sera donc de différencier les vrais pervers des autres”99. Neste sentido, os pervertidos se distinguiriam dos perversos por não possuírem uma disfunção psíquica. Seriam eles indivíduos normais que por terem precocemente desenvolvido hábitos considerados prejudiciais a saúde sexual – dentre os quais a masturbação era a mais freqüentemente listada pelos médicos – foram levados a manter relações sexuais com pessoas de seu mesmo sexo. Outra é a situação do “taré”100 que possuiria uma “emoção sexual” por indivíduos de seu sexo. Esta emoção seria o “commencement d’un processus de transformation du corps et de l’âme”101. Assim, perversão ou inversão sexual é para Krafft-Ebing um fenômeno que possui níveis diferentes que vão da mais ou menos simples inversão da escolha do objeto sexual – nível em que o indivíduo ainda mantém o papel sexual e social de gênero próprio ao seu sexo – à “metamorphose sexuelle paranoïaque”, estágio em que o “sentiment d’appartenance au sexe opposé est 99 “a primeira tarefa da ciência sera então a de diferenciar os verdadeiros perversos dos outros” (tradução livre BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005. 100 Tarado. (tradução livre). 101 “começo de um processo de transformação do corpo e da alma” (tradução livre). Citado em BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005. p. 290. 53 tellement fort... qu’il est impossible d’entreprendre une quelconque thérapie curative”102. Quanto à homossexualidade, Krafft-Ebing a considera como um fenômeno congênito e de causa hereditária. Para a formulação da idéia de sentido sexual homossexual, Krafft-Ebing faz então uso da teoria da degenerescência. Seria através de um processo de degeneração da linhagem que a inversão sexual se desenvolveria nos indivíduos, tendo por causa uma formação cerebral anormal. Assim, Krafft-Ebing afirma que nos casos de inversão sexual “c’est la vie cérebrale morbide qui determine la vie sexuelle”. A inversão sexual se inscreve então no cérebro, na organização cerebral dos indivíduos. Tardieu desenvolve formulações menos complexas e menos profundas que as de Krafft-Ebing em relação às origens da pederastia. Para o autor francês, é a ociosidade dos “maus lugares” que produz o vício e que o dissemina. Assim, o perfil mais comum dos pederastas segundo ele são os jovens de menos de vinte e cinco anos provenientes dos meios populares. Michel Foucault e Peter Gay103 afirmam que as camadas populares eram consideradas nos séculos XVIII e XIX os agentes nos quais as doenças poderiam ser mais rapidamente disseminadas, e onde a delinqüência e a criminalidade encontravam um ninho e um meio de reprodução. Ora, mesmo considerando a existência de certos casos de pederastia entre “respeitáveis pais de família”, Ambroise Tardieu faz deste vício um problema das classes mais baixas da sociedade. Isto não seria então uma coincidência. Esta visão estaria muito provavelmente ligada às representações e aos preconceitos disseminados nas classes médias do século XIX a respeito do sexo doente e problemático do proletariado. A sodomia é igualmente tratada em seu estudo. Não apenas a sodomia entre pessoas de mesmo sexo é problemática para Tardieu, como é também criminosa e problemática a sodomia entre homem e mulher, mesmo que dentro do casamento. 102 “o sentimento de pertencimento ao sexo oposto é tão forte... que é impossível proceder a uma terapia de cura” (tradução livre) KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895. 103 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. e GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo, 1988. 54 Desta forma, o autor dedica uma parte deste capítulo aos “attentats contre nature commis sur des femmes”104 Devemos lembrar que uma das principais preocupações das políticas do sexo do século XIX dizia respeito à proteção do núcleo heterossexual reprodutor. As práticas sexuais que poderiam levar à reprodução eram então a normalidade em termos de comportamento sexual. A prática médica extremamente influenciada por esta preocupação com a regulação do sexo, acabou por delimitar as zonas do corpo que poderiam ser ativadas em uma relação sexual e aquelas que não deveriam ser utilizadas. Esta delimitação se deu - diferentemente da pedagogia sexual do cristianismo que operava sob o sistema do pecado - a partir do que era considerado saudável ou prejudicial ao corpo e a saúde. O que pode ser entrevisto no trabalho de Tardieu é uma extensão das interdições que já estavam ativas no antigo sistema de combate à sodomia que existiu, dentre outras formas, sob a forma de proibição jurídica até o fim do século XVIII na França e que continuou existindo em outros países da Europa no século XIX. Assim, poderíamos nos perguntar se o que Ambroise Tardieu produziu quando tratou da sodomia é de fato o resultado de pesquisas médicas ou a reprodução de representações e preconceitos existentes e praticados em seu contexto sócio-cultural. Em um primeiro momento podemos evidentemente perceber a reprodução de imagens vinculadas entre as classes médias de seu século, contudo, o tema da sodomia enquanto pecado e ato contra a natureza é reinvestido no trabalho de Tardieu a partir da utilização de um vocabulário e de técnicas que se pretendiam médico-científicas. No entanto, é certo que Tardieu não abriu mão de um vocabulário moralizador que nada tinha de científico. “Attouchements obscènes”, “actes honteux”, “approches immondes” ou “actes contre nature105” são termos utilizados pelo autor francês e que nos permitem perceber a influência, na produção científica, da ideologia sexual e dos preconceitos compartilhados pelos indivíduos das classes médias. 104 “atentados contra a natureza cometidos contra mulheres” (tradução livre) TARDIEU, Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859. 105 “carinhos obscenos”, “atos vergonhosos”, “aproximações imundas” e “atos contra a natureza”. TARDIEU, Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859. 55 Krafft-Ebing pretende igualmente desenvolver um trabalho “livre dos preconceitos do passado”106. No entanto, a reativação em sua obra de certos temas recorrentes na cultura do período nos leva a crer que ele não avançou muito em direção a uma abordagem inovadora. O modelo do casal heterossexual reprodutor, por exemplo, é também o norte que indica a normalidade nas formulações do psiquiatra alemão. Como diversos autores da época ele produzia e reproduzia uma hierarquia sexual que tinha a finalidade reprodutiva como base de normalidade. Assim, as práticas sexuais que não conduzem à reprodução eram necessariamente perversões, anormalidades no desenvolvimento sexual. Para Krafft-Ebing a diferenciação e clara determinação dos sexos e o objetivo reprodutor das práticas sexuais eram parte de um processo normal do desenvolvimento sexual. Une des parties constitutives les plus solides de la conscience du moi, à l’époque de la pleine maturité sexuelle, c’est d’avoir la conviction de représenter une individualité sexuelle bien determinée, et d’éprouver le besoin, pendant les processus physiologiques... d’accomplir des actes sexuels conformes à l’individualité sexuelle, actes qui consciemment ont pour but la conservation de la race107. Esta passagem nos permite entrever algumas das posições adotadas pelo autor em termos de produção da idéia de desenvolvimento normal da sexualidade. Os temas da diferenciação dos sexos e da complementaridade dos sexos em seu objetivo de reprodução encontram-se aqui presentes. O indivíduo constitui-se em uma individualidade sexual bem determinada. O menino se torna homem através de processos fisiológicos e ao atingir este estado ele busca conscientemente os atos sexuais que têm por objetivo a reprodução, logo, a conservação da raça. 106 KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895. “Uma das partes mais sólidas que constituem o “eu”, é a de ter na época da plena maturidade sexual a convicção de representar uma individualidade sexual bem determinada e de sentir a necessidade durante os processos fisiológicos de praticar atos sexuais em conformidade com a individualidade sexual, atos que, conscientemente, tem por objetivo a preservação da raça” (tradução livre). KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895.. 107 56 Ora, dentre outros autores, Michel Foucault e Patrice Corriveau108 discorrem sobre o fato de que a reprodução no século XIX era um elemento importante de um jogo político. O medo da queda dos índices de natalidade e o pânico gerado pelas doenças faziam da reprodução uma questão política de primeira importância. Restaria saber se a palavra “conscientemente” utilizada por Krafft-Ebing não teria alguma relação com o papel da reprodução na sociedade na qual o autor vivia. A então recente constituição do Império alemão em 1871 poderia ter influenciado as idéias do autor quanto ao papel da reprodução na sociedade já que o desenvolvimento sadio da população é uma das bases de um desenvolvimento sadio da nação. Assim o cidadão deveria, conscientemente, buscar a conservação da raça e da nação através da reprodução. A reafirmação da idéia de diferença sexual e de continuidade entre sexo, gênero e impulsos sexuais encontra igualmente lugar na obra de Havelock Ellis. Para o autor ...lors de la conception, un organisme peut être pourvu de 50 p. cent de caractères mâles et de 50 p. cent de caractères femelles, et à mesure que le développement se poursuit, ce sont soit les uns soit les autres qui prennent le dessus, en tuant ceux de l’autre sexe; mais dans l’hermaphrodisme psychosexuel, le processus ne s’est pas déroulé normalement soit par suíte d’une non-équivalence dès le début, soit parce que l’individu s’est trouvé organiquement construit d’une manière plus appropriée à l’impulsion sexuelle invertie que normale, soit pour les deux raisons109. Desta maneira podemos perceber que Havelock Ellis acreditava em um estágio primitivo de “bissexualidade” durante o processo de desenvolvimento fetal. Ao se desenvolver, o sexo do indivíduo deveria ser mais bem determinado, sendo acompanhado pelos impulsos sexuais normais correspondentes à individualidade 108 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. e CORRIVEAU, Patrice. La répression des homosexuels au Québec et en France : du bûcher à la mairie. Sillery, Septentrion, 2006. 109 “ quando da concepção, um organismo pode ser constituido de 50 por cento de características de macho e de 50 por cento de características de fêmea, e a medida que o desenvolvimento segue, são ou as primeiras ou as segundas que dominam, matando as características do outro sexo, mas em caso de hermafrodismo psicossexual, o processo não se deu de maneira normal, seja pela não equivalência desde o começo, seja porque o indivíduo se encontrou organicamente construído de uma maneira mais apropriada ao impulso sexual invertido que ao normal, seja pelas duas razões” (tradução livre) ELLIS, Havelock. L’inversion sexuelle. Mercure de France, 1909. 57 sexual. A inversão sexual então seria marcada por uma anomalia do desenvolvimento no processo de determinação sexual. Contudo, a palavra “anomalia” presente em nossa análise do trabalho de Havelock Ellis não é pejorativa, uma vez que o autor não considera a inversão sexual uma doença. Em realidade, para melhor compreender o trabalho de Ellis e a concepção de inversão sexual deste autor seria necessário acompanhar brevemente seu percurso de vida. Médico, sexólogo e psicólogo nascido na Inglaterra da metade do século XIX, Havelock Ellis se interessou profundamente pelo estudo da sexualidade humana, publicando em 1896 a obra “Sexual Inversion” co-escrita por seu amigo pessoal John Addington Symonds110. Temendo o escândalo, a família de Symonds recorreu à justiça após sua morte para recuperar todos os exemplares do livro com o objetivo de destruí-los. Em 1897, Ellis decide republicar o texto assumindo sozinho sua autoria. Contudo, seu editor inglês foi perseguido pela justiça acusado de “obscenidade”, tendo Ellis que buscar na América outro editor111. Havelock Elis freqüentava os meios anarquistas, socialistas e militantes em favor da contracepção. Muitos autores como Daniel Borrilo e Dominique Colas afirmam que tanto Symonds quanto a mulher de Havelock Ellis eram homossexuais, explicando talvez em parte o interesse e a simpatia com a qual o autor discursava sobre os invertidos. Como Magnus Hirschfeld e Carl Westphal na Alemanha, Havelock Ellis desejava que a lei inglesa que punia a homossexualidade fosse revista. Ele se insere na tradição de médicos da sexualidade que se debruçaram sobre a inversão sexual com o objetivo de comprovar suas causas congênitas. Ora, uma vez que a homossexualidade fosse considerada um fenômeno orgânico e inato, ela não poderia ser considerada antinatural ou contra a natureza e não deveria ser penalizada pelo saber jurídico. Assim, a produção de Ellis, como a de outros médicos, se inscreve em um jogo 110 John Addington Symonds (1840-1893) foi um poeta e crítico literário inglês. Homossexual, Symonds militou contra a repressão ao “amor entre iguais”. BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005. 111 Op. Cit. 58 político específico; o da tentativa de descriminalização da homossexualidade nos fins do século XIX. Poderíamos afirmar que Havelock Ellis dialoga e concorda com Krafft-Ebing e Magnus Hirschfeld quanto ao caráter congênito da inversão sexual. Contudo, Ellis se distancia de Krafft-Ebing ao considerar que a inversão não seria uma doença causada por um processo de degeneração. Em realidade, Havelock Ellis apresenta uma descontinuidade na tradição de criminalização e patologização da homossexualidade ao considerá-la nem um vício, nem uma doença. Havelock Ellis não concordava com a imagem vinculada nos trabalhos de Carl Henrich Ulrichs segunda a qual a inversão sexual seria marcada pela idéia de “anima mulieris in corpore virili inclusa”112. Para o autor de “Sexual Inversion” ... ce n’est pas là une explication; c’est simplement cristalliser(...) une impression superficielle. (...) Cela est tout simplement incompréhensible. Je ne dis rien du fait que, chez les invertis mâles, les tendances psychiques féminines peuvent être três peu marquées en sorte qu’il ne saurait être question d’ “ame féminine” ni de cet autre fait important que, dans une grande proportion de cas, le corps présente des caractères sexuels secondaires qui sont nettement modifiés113. Neste sentido, podemos perceber que mesmo se Havelock Ellis não concorda com a idéia de uma “alma feminina que vive em um corpo de homem” como modelo de explicação para a inversão, ele é, no entanto, profundamente influenciado pelo sistema de pensamento que forma e define as diferenças e as especificidades do corpo masculino e do corpo feminino. 112 “uma alma de mulher que vive em um corpo de homem” (tradução livre). Carl Henrich Ulrichs (1825-1895) foi um jurista e sexólogo alemão. Considerava a homossexualidade a partir da idéia de “terceiro sexo”. Cria o termo “uranista” em homenagem a Afrodite Urânia (filha de Uranus) presente no discurso de Pausanias do “Banquete” de Platão. ERIBON, Didier. Ulrichs In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. 113 “... esta não é uma explicação; (esta imagem) somente cristaliza(...) uma impressão superficial. (...) Isto é simplesmente imcompreensível. E ainda não digo nada do fato que, nos invertidos machos, as tendências psíquicas femininas podem ser pouco marcadas de forma que não poderíamos falar de “alma feminina”, nem (digo nada também) deste outro fato importante que, em um grande número de casos, o corpo apresenta características sexuais secundárias que são claramente modificadas”. (tradução livre) ELLIS, Havelock. L’inversion sexuelle. Mercure de France, 1909. . 59 Outro importante autor que produziu no contexto de luta por modificações dos códigos penais que reprimiam a homossexualidade foi Sigmund Freud. Freud tinha relações de trabalho com o médico e militante pela ab-rogação do parágrafo 175 do código penal alemão, Magnus Hirschfeld. Em 1908, Hirschfeld pediu a Freud que interviesse junto à Sociedade Psicanalítica de Viena para requisitar a colaboração de seus membros na elaboração de um questionário destinado ao estudo da pulsão sexual. Ora, Freud não ignorava a homossexualidade de Hirschfeld, tampouco suas intenções políticas na produção deste estudo. Assim, ao submeter a proposta de Hirschfeld à Sociedade Psicanalítica no encontro de 15 de Abril de 1908 em Viena, Freud parece, ao menos implicitamente, aprovar a luta travada pelo médico alemão contra as leis que puniam a homossexualidade114. Após certos debates no seio da instituição, ficou decidido que a Sociedade Psicanalítica contribuiria para a criação de tal estudo e assumiria sua autoria, se pronunciando publicamente pela primeira vez. Neste sentido, “il est (en tout cas) notable que la psychanalyse s’institutionnalise, avec la création de sa première Société, autour d’un questionnaire de sexologie lié au combat contre l’homophobie”115 Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” publicado em 1905, Sigmund Freud dialoga na primeira parte de sua obra com Richard von Krafft-Ebing, Havelock Ellis e Magnus Hirschfeld ao discorrer sobre a inversão sexual 116. Anteriormente discutimos o fato de Krafft-Ebing definir a inversão a partir da idéia de degenerescência, encarando-a como um fenômeno congênito. Sigmund Freud recupera neste trabalho algumas formulações do psiquiatra alemão, apresentando nuances e discordando delas em grande parte. Para Freud, a inversão sexual não se definiria como um fenômeno de degenerescência. Ora, para o autor, não caracterizaria degenerescência 1- Quand il n’y a pas coexistence d’autres déviations. 114 BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005. 115 “é (de toda forma) notável que a psicanálise se institucionaliza, com a criação se sua primeira Sociedade, em torno de um questionário de sexologia ligado ao combate contra a homofobia”. (tradução livre) Op. Cit. p. 315. 116 FREUD, Sigmund. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Gallimard, 1962. 60 2- Quand l’ensemble des fonctions et activités de l’individu n’a pas subi de graves altérations117. Desta maneira, os invertidos não deveriam ser considerados degenerados, já que muitos casos de inversão observados pelo autor não apresentaram outras anomalias, sendo muitos dos indivíduos analisados sujeitos que atingiram um alto grau de desenvolvimento moral e intelectual118. Poderíamos dizer que a psicanálise de Freud foi o elemento que alterou a relação perversão-hereditariedade-degenerescência anteriormente estabelecida pela psiquiatria das perversões. Segundo Michel Foucault119, foi a psicanálise a responsável por operar uma dissociação nesta relação até então estabelecida e reproduzida no interior dos discursos médico-psiquiátricos. Desta forma, as formulações de Freud contribuíram em grande medida para relativizar a idéia de homossexualidade enquanto perversão, patologia mental e resultado de um processo de degenerescência. Para Sigmund Freud, a explicação das origens da inversão não poderia se concentrar no debate sobre seu caráter congênito ou adquirido. Assim, mais uma vez ele se distanciava de Krafft-Ebing e se aproximava em certa medida de Havelock Ellis ao afirmar que a explicação deste fenômeno deveria levar em consideração o papel de uma bissexualidade primitiva no desenvolvimento da sexualidade humana. Discutimos anteriormente o papel da bissexualidade nas formulações de Havelock Ellis. É certo que Sigmund Freud dialogou com o autor inglês e foi em certa medida influenciado por ele, contudo, Freud apresenta nuances em suas formulações nos permitindo entrever certa originalidade em sua abordagem. Da mesma forma que nas formulações de Havelock Ellis, a bissexualidade para Freud se encontrava no começo de um processo de evolução da constituição dos indivíduos em direção à “monossexualidade”. No entanto, os indivíduos, mesmo aqueles considerados normais, poderiam conservar atrofiadas certas características do sexo oposto. 117 “1- Quando não existe coexistência com outras anomalias. 2- Quando o conjunto das funções e atividades do indivíduo não sofreu graves alterações” (tradução livre). Op. Cit. p. 22. 118 Op. Cit. 119 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. 61 Para explicar a inversão sexual, Sigmund Freud desloca a análise da bissexualidade enfocada na constituição anatômica do indivíduo para uma análise da sua constituição psíquica, ativando a idéia de “hermafroditismo psíquico”. Isto é, para compreender a inversão, Freud sugere a transferência do conceito de bissexualidade para o domínio psíquico. Diferentemente das afirmações de Havelock Ellis, Freud não acreditava ser possível identificar uma relação entra o hermafroditismo anatômico ou somático com a inversão. Assim, o autor afirma que “... les rapports de l’hybridité psychique avec l’hybridité anatomique (...) ne sont certes pas aussi intimes, aussi constants qu’on a bien voulu le dire”120. Desta maneira, Freud retém dois pontos principais para a explicação da inversão: ...d’abord, il nous faut tenir compte d’une disposition bisexuelle; mais nous ne savons pas quel en est le substratum anatomique. Nous voyons ensuite qu’il s’agit de troubles modifiant la pulsion sexuelle dans son développement121. Poderíamos dizer que ao contrário das perversões sexuais de Krafft-Ebing, a homossexualidade para Freud não é simplesmente determinada por uma disposição particular do corpo, por um vício constitutivo do psíquico ou por uma constituição inata, mas ela é considerada como o resultado de um percurso singular da pulsão sexual122. Mesmo se Freud utiliza o termo “inversão”, a homossexualidade não é, para este autor, uma inversão da escolha do objeto sexual. Ora, na teoria freudiana o conceito de “narcisismo” é ativado, caracterizando o homossexual enquanto um 120 “... as relações da hibridez psíquica com a hibridez anatômica não são tão intimas, tão constantes quanto afirmaram” (tradução livre) FREUD, Sigmund. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Gallimard, 1962. p. 26. 121 “primeiramente, precisamos levar em conta uma disposição bissexual, mas nós não sabemos qual é seu substrato anatômico. Em seguida, nós percebemos que se trata de distúrbios que modificam a pulsão sexual em seu desenvolvimento” (tradução livre) FREUD, Sigmund. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Gallimard, 1962. p. 28. 122 BORILLO, Daniel et COLAS, Dominique. L’homosexualité de Platon à Foucault: Anthologie critique. Paris. Plon, 2005. 62 indivíduo que ama não um objeto contrário aquele que ele deveria amar, mas ama a si mesmo em seu objeto de amor123. Assim, L’homosexualité est bien, dans la perspective freudienne, une “perversion”, c’est-à-dire “une fixation” de la psychosexualité à un “stade” de son “évolution” qui chez l’individu non pervers est seulement transitoire124. Freud percebe então a homossexualidade enquanto uma espécie de interrupção no processo de desenvolvimento psicossexual dos indivíduos. Em um desenvolvimento normal, o indivíduo passaria pelo estágio de narcisismo, sublimando o amor por um objeto homossexual em relações sociais que não possuiriam o componente sexual – tais quais as relações de amizade – chegando enfim ao estágio de heterossexualidade. Assim, mesmo a homossexualidade não sendo considerada uma doença para Freud, ela parece ser percebida em termos de interrupção de um desenvolvimento psicossexual normal. Tomando como referência a análise que Freud fez da homossexualidade podemos perceber as múltiplas imagens e concepções que coexistiram no fim do século XIX e começo do século XX acerca do corpo homossexual uma vez que este autor posiciona claramente sua teoria em um debate científico. Freud cita freqüentemente os autores com os quais ele dialogou e retoma, em parte, muitas das discussões nas quais a inversão sexual foi sendo definida. Definições diversas e por vezes opostas competiram no interior deste movimento de produção da inversão. A pederastia enquanto vício que marca os corpos, presente na obra de Ambroise Tardieu, destoa da perversão sexual de KrafftEbing e é em muito diferente da homossexualidade tal qual ela foi concebida por Sigmund Freud. 123 Op. Cit. p. 307. “A homossexualidade é, na perspectiva freudiana, uma “perversão”, isto é, uma “fixação” da psicossexualidade em um “estágio” de sua “evolução” que no indivíduo não perverso é somente transitória” (tradução livre) Op. Cit. 124 63 É possível então afirmar que as definições da inversão sexual não foram homogêneas nem unânimes no seio das práticas médicas. As concepções do corpo invertido produzidas nos diversos trabalhos científicos da época foram em grande parte determinadas pelo contexto social e histórico no qual elas se inseriam, pela história de vida de seus criadores, pelos debates dos quais eles participaram e pelo vocabulário e pelas práticas disponíveis nas suas disciplinas. Desta maneira, muitos elementos interagiram e influenciaram este movimento de definição e produção das sexualidades perversas e da sexualidade normal. As múltiplas imagens do corpo perverso ativadas no interior dos debates e da produção médico-científica dos fins do século XIX e começo do século XX nos permitem perceber um movimento intenso de crescente produção discursiva acerca do sexo e das perversões sexuais. Ao longo deste capítulo buscamos recuperar brevemente algumas destas imagens, iluminando este processo de produção dos corpos desviantes. 64 4. O vício ao sul do Equador: medicalização e institucionalização da homossexualidade no Brasil da primeira metade do século XX. Assim como seus colegas de profissão europeus, os médicos brasileiros da primeira metade do século XX também se preocuparam com a homossexualidade. Para James N. Green125 é certo que muitos intelectuais brasileiros da época buscavam inspirações nos escritos produzidos na Europa, no entanto, quais são as especificidades das representações da homossexualidade presentes nas obras brasileiras escritas pelos médicos? Com o objetivo de dar conta desta questão devemos primeiramente observar o contexto brasileiro da primeira metade do século XX; período no qual médicos legistas e psiquiatras consolidavam sua autoridade na formulação de pareceres a respeito de problemas de saúde mental e seus impactos nos comportamentos. Uma vez que o corpo homossexual foi cercado e definido na fronteira das concepções de crime e loucura, analisaremos igualmente neste capítulo o movimento de superposição das imagens de louco e criminoso nas práticas médicas e jurídicas, em especial aquelas que pesaram sobre o corpo homossexual. Finalmente poderemos melhor analisar as imagens e representações da homossexualidade (re)produzidas nos manuais brasileiros de medicina legal lançados nas décadas de 1940 e 1950. 125 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 65 4.1. Na fronteira: a homossexualidade entre o crime e a loucura. No fim do mês de agosto de 1927 Febrônio Ferreira de Mattos foi preso em Petrópolis acusado pelo assassinato do jovem Alamiro José Ribeiro. A Promotoria se debruçou sobre o passado criminal e moral de Febrônio tão logo levantada a suspeita de sua responsabilidade no caso. Corruptor, estuprador, possível feiticeiro, sádico e homossexual, Febrônio Índio do Brasil parecia carregar consigo a criminalidade desde a infância. Primeiramente interrogado por seu crime, Febrônio passou, a partir da intervenção médica, a ter a sua personalidade analisada. Chocante por sua brutalidade e incompreensibilidade, o caso Febrônio mobilizou juízes, advogados, médicos legistas e psiquiatras126. De fato as idéias e teorias de muitos médicos brasileiros passaram a ser conhecidas do grande público e foram aplicadas a partir do momento em que foram convocados a se pronunciar sobre o destino de Febrônio, protagonista do primeiro grande caso de sadismo no Brasil. Na análise do caso de Febrônio é possível entrever a interação entre o saber jurídico e o saber médico no Brasil da primeira metade do século XX. Médicos e psiquiatras começavam então a ser convocados pelos tribunais para atuar nos casos que se situavam na fronteira que separava a loucura e o crime. Assim, a crescente afirmação da autoridade de médicos em se pronunciar sobre o destino de certos sujeitos se explicaria pela aproximação, nas e pelas práticas jurídicas e médicas, das idéias de crime e loucura num momento em que a sociedade brasileira passava por importantes transformações. O Brasil pós Primeira Guerra Mundial sofreu profundas mudanças que tinham como pano de fundo o processo de urbanização e industrialização do país. As alterações na organização tradicional da sociedade e de suas instituições articuladas ao processo republicano de laicização e modernização do Estado brasileiro abriram espaço para a intervenção de médicos, criminologistas e juristas no que dizia respeito aos problemas sociais e morais127. 126 FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982. 127 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 66 Segundo James N. Green As décadas de 1920 e 1930 testemunharam uma crescente intervenção dos médicos, juristas e criminologistas brasileiros em questões sociais que abrangiam desde a função ‘higiênica’ da mulher na família até a relação entre raça e crime128. A criminalidade se tornou uma preocupação crescente no Brasil cada vez mais urbano do século XX. Em uma sociedade moderna seria através da racionalidade que o crime poderia ser cercado, compreendido e punido. Racionalmente, os juristas deveriam analisar os atos criminosos tentando compreendê-los para puni-los adequadamente. Desta maneira, foram os crimes que abalaram a lógica do sistema que vão exigir a intervenção médica. Isto é, os crimes que desafiavam a racionalidade considerada “intrínseca às ações humanas” colocavam em questão a própria “natureza humana” de seu autor129. Para Sérgio Carrara Os crimes que clamam pelas considerações médicas (...) dizem respeito, primordialmente, à subversão escandalosa de valores tão básicos que se pretendem estejam enraizados na própria ‘natureza humana’ – amor filial, amor materno ou piedade frente à dor e ao sofrimento humano. Desta maneira, não é surpreendente que tais subversões, tão radicais e escandalosas, coloquem em questão a própria ‘humanidade’ de parricidas, infanticidas, assassinos cruéis, sendo mais bem interpretadas no contexto das selvagerias da natureza, mais afeitas, portanto, à abordagem das ciências biológicas ou naturais130. O brutal e chocante caso de Febrônio é um bom exemplo da intervenção do saber médico no campo jurídico. O advogado do acusado, Letácio Jansen, estruturou sua defesa não no sentido de negar os atos criminosos do caso, mas decidiu seguir pelo caminho da afirmação da loucura de seu cliente. Ora, Jansen sabia que se comprovada a loucura de Febrônio, comprovada seria igualmente sua irresponsabilidade penal. O 128 Op. Cit., p. 127. CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998, p. 70. 130 Op. Cit, p. 71. 129 67 juiz responsável pelo caso precisou então convocar psiquiatras que deveriam proceder a uma análise da condição psíquica do réu131. Quando levantada a suspeita de loucura o juiz precisava exigir relatórios médicos sobre a condição do acusado, podendo, no entanto, negá-los parcial ou totalmente na pronunciação do veredicto final. Assim, um indivíduo cercado inicialmente pelo saber jurídico passa a ser sujeito do saber médico. Desta maneira podemos perceber como alguns indivíduos se situaram na fronteira entre crime e loucura, sendo sujeitos de dois modelos de intervenção social; o modelo jurídicopunitivo e o modelo psiquiátrico-terapêutico132. Foi Heitor Carrilho133 o médico nomeado oficialmente no caso Febrônio. A análise do relatório de Carrilho desenvolvida por Peter Fry134 nos permite perceber algumas características da intervenção médico-legal do período, lançando luz sobre a interação de teorias e práticas médicas ativas então. O relatório em questão é dividido em quatro partes que contemplavam respectivamente os antecedentes familiares e a história de vida do “acusado-paciente”, seu exame somático, seu exame mental e, finalmente, as considerações clínicas gerais ao longo das quais é “comprovada” a loucura de Febrônio. Ao se ocupar dos “antecedentes mórbidos pessoais”, a primeira parte do relatório vasculha o passado do acusado em busca de eventos na sua história que explicariam de certa forma seu crime. Reconstruindo a história de vida de Febrônio em uma narrativa linear e lógica o médico buscava explicar o crime pela natureza de seu autor. Esta operação reflete uma mudança importante nas práticas jurídico-punitivas do Brasil da primeira metade do século XX. O crime não era julgado, mas a natureza de seu autor135. 131 FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982. 132 CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998. 133 Heitor Carrilho (1890-1954) foi um psiquiatra de renome e primeiro diretor do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro. 134 FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982. 135 CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998. 68 Em um segundo momento, Carrilho procede à análise das características físicas de Febrônio. Para Peter Fry, o fato de constar no relatório observações sobre a “feminilidade do corpo de Febrônio” tem provavelmente a ver com a “intenção do relator (em) sugerir que a sua homossexualidade possui fundamentos biológicos, de acordo com algumas teorias da época”136. O corpo enquanto objeto de análise dos pareceres médicos refletia a grande influência das idéias de Cesare Lombroso137 sobre os médicos brasileiros. As formulações de Lombroso previam a existência de um “criminoso nato” que não era apenas o autor de um crime, mas era um delinqüente em sua essência. Este indivíduo “naturalmente” criminoso apresentaria marcas físicas a partir das quais seria possível identificá-lo; ... a ausência de pêlos, o comprimento exagerado dos braços, a obtusidade das feições, as orelhas munidas do tubérculo de Darwin, os maxilares superdesenvolvidos, a fronte ‘fugidia’, a saliência dos zigomas, o exagerado escavamento da abóboda palatina e das fossas oculares e ainda outras peculiaridades do crânio desenhavam sobre o corpo do criminoso o perfil anatômico dos símios138. O conceito de criminoso nato aparece em 1870 com a publicação do livro Uomo delinqüente de Cesare Lombroso. A partir desta concepção o crime passa a ser considerado como a expressão da natureza daqueles que seriam uma “variação antropológica da espécie”139. Muito influenciado pelo pensamento darwiniano, Lombroso concebia o ato criminoso como “um fenômeno de ‘atavismo’, ou seja, como um comportamento apropriado a formas humanas inferiores”140. Muitos médicos brasileiros formularam suas explicações para o crime e para a homossexualidade baseando-se nas idéias de Cesare Lombroso. Leonídio Ribeiro, diretor do Departamento de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal na década de 1930 foi um destes indivíduos extremamente influenciado pelas formulações do médico italiano. Por suas investigações antropológico-criminais 136 Op. Cit. Cesare Lombroso (1835-1909) foi um médico italiano que atuou na área da antropologia criminal. Defendia em seus trabalhos a existência de um Homo criminalis, o “criminoso nato”. 138 Op. Cit, p. 105. 139 Op. Cit. 140 Op. Cit., p. 104. 137 69 Ribeiro foi contemplado pelo prêmio Lombroso de 1933 da Academia Real de Medicina Italiana141. As teorias eugenistas que estavam em voga no Brasil da primeira metade do século XX e a veiculação das idéias de Lombroso nos meios científicos da época foram em grande parte responsáveis pelo estabelecimento de uma relação entre raça, homossexualidade e criminalidade. Assim, negros ou mestiços eram considerados mais pendentes ao crime e ao vício que os indivíduos brancos. Obviamente que estas teorias não foram as únicas responsáveis pela intervenção do Estado, da polícia, dos juízes e dos médicos sobre as classes mais baixas. Em outro sentido, a ativação de teorias eugenistas e a relação que se estabelecia entre raça e crime eram ao mesmo tempo efeito e instrumento de projetos políticos bem determinados. A República recém instaurada foi palco de debates acerca do devir da nação e de sua constituição racial. Para aqueles que defendiam a superioridade da raça branca, as idéias “científicas” que contribuíam para o estabelecimento de uma relação entre raça e criminalidade eram o instrumento perfeito que permitia e legitimava o controle das classes inferiores da sociedade. Outras transformações importantes na sociedade brasileira nos permitem melhor compreender em que contexto e como as classes sociais inferiores foram objeto da intervenção da polícia, de juízes e de médicos. Segundo James N. Green, a modernização, a urbanização e a crescente medicalização dos assuntos sociais, ocorreram todas em meio à instabilidade política que se instaurou, sem interrupção, durante as décadas de 1920 e 1930142. Crises políticas e econômicas nas décadas de 1920 e 1930 vieram acompanhadas de grande insatisfação popular. A queda do preço do café nos primeiros momentos da Grande Depressão na década de 1930 desestabilizou consideravelmente a economia brasileira, levando desconforto e descontentamento a muitas parcelas da população. As greves gerais e a ascensão do comunismo são emblemáticos das 141 FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982. 142 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 70 mobilizações populares que não estavam à margem do olhar do Estado e que muito inquietavam as elites. Em um momento de grande expansão das cidades e em resposta às mobilizações e movimentações de um proletariado descontente, o Estado Novo recém instaurado deveria encontrar meios eficazes de identificação e controle da população. É neste contexto que Leonídio Ribeiro é nomeado para dirigir o Instituto de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal. A atividade de Ribeiro reflete as intenções do governo de Getúlio Vargas; identificar, catalogar, cercar e definir os indivíduos que ameaçavam a ordem social. A análise das atividades de Leonídio Ribeiro na década de 1930 permite-nos entrever não só as teorias e idéias a partir das quais este médico formulava suas pesquisas, mas nos permite igualmente perceber a conivência então existente entre policiais e médicos no processo de controle e institucionalização da homossexualidade. James N. Green atenta-nos para o fato que Para realizar seu estudo em 1932, Ribeiro solicitou o apoio do Dr. Dulcídio Gonçalvez, um oficial da polícia do Rio de Janeiro, que trouxe um ‘precioso contingente’ de 195 homossexuais ‘profissionais’ ao laboratório de Antropologia Criminal para serem fotografados e medicados...143. A sodomia deixara de ser crime no Brasil com a promulgação do Código Penal Imperial por D. Pedro I em 1830. O Código Penal do regime republicano aprovado em 1890 manteve a sodomia fora do corpo de crimes e delitos. Entretanto, ainda que a homossexualidade não fosse em si considerada crime, “a nova lei buscava controlar tais condutas por meios indiretos e restringia o comportamento homossexual de quatro maneiras distintas”144. Através do crime de atentado violento ao pudor previsto pelo artigo 266, pelo “Atentado Público ao Pudor” do artigo 282, pelo artigo 379 “Do Uso de Nome Suposto, Títulos Indevidos e Outros Disfarces” que tornava o travestismo ilegal e, finalmente, através do artigo 399 que previa a vadiagem como 143 144 Op. Cit., 131. Op. Cit., p. 57. 71 crime, muitos homossexuais podiam ser cercados pela polícia, por juízes e, posteriormente, por médicos145. Desta maneira, mesmo a homossexualidade não sendo prevista como crime pelo código penal republicano, os homossexuais não estavam a salvos da intervenção policial. Muitos médicos como Leonídio Ribeiro conseguiam seu “precioso contingente” de pesquisa através de sua relação e conivência com as práticas de repressão policial das condutas homossexuais. Peter Fry nos revela que indivíduos de classes sociais mais baixas considerados “delinqüentes homossexuais” eram levados ao Laboratório de Antropologia Criminal do Instituto de Identificação do Rio de Janeiro e para o Laboratório de Antropologia do Serviço de Identificação de São Paulo onde os médicos procediam livremente a seus estudos e análises146. É na fronteira entre a prática jurídico-punitiva e a prática psiquiátricoterapêutica que o corpo homossexual foi definido e institucionalizado. Este corpo começou a ser desenhado na relação complexa e conflituosa de médicos, juristas e policiais. Esta múltipla intervenção de saberes distintos sobre o corpo homossexual é ao mesmo tempo causa e conseqüência de um movimento de superposição da idéia de loucura e crime em um momento onde os médicos tentavam afirmar seu poder e legitimidade em discursar sobre a sorte de certos indivíduos. Abordamos anteriormente neste trabalho como o corpo homossexual se constituiu como um objeto privilegiado na luta de influência entre o saber médico e o saber jurídico. Ora, o caso de Febrônio é um bom exemplo de que no Brasil da primeira metade do século XX esta luta de influência existiu. O desfecho do caso é representativo não só destas disputas como do processo de afirmação da autoridade dos médicos na República brasileira. Ao acatar o parecer do médico Heitor Carrilho sobre a condição psíquica e moral de Febrônio, o juiz decide enviá-lo ao então recém inaugurado Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro. Febrônio, identificado como homossexual e sádico, não foi durante seu processo julgado pelos crimes de que foi acusado, mas foi examinado, 145 146 Op. Cit. FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 72 analisado e finalmente julgado por sua personalidade desviante. Peter Fry afirma sobre o caso de Febrônio que Embora nunca julgado pelos crimes de que foi acusado e tendo-os negado sistematicamente, o recurso da acusação de ‘loucura moral’ foi mais do que suficiente para afastar o ‘monstro’ definitivamente da vida social147. Desta maneira podemos perceber como a Medicina e a Psiquiatria enquanto instituições começam a se consolidar como “instrumento legítimo de controle social”148. Ora, durante todo o processo e durante todos os anos de encarceramento que seguiram o julgamento de Febrônio, coube a um psiquiatra se pronunciar sobre sua condição e seu destino. Sendo considerado “louco moral” Febrônio não deveria mais ser cercado pelo saber jurídico, mas passaria a ser objeto dos discursos e intervenção médicos. É então neste contexto de consolidação da autoridade do saber médico que a homossexualidade passará a ser objeto de um discurso científico e se institucionalizará. A partir destas colocações passamos a analisar nossas fontes nas quais procuramos entender como se construíram imagens e representações do corpo homossexual. 147 FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982., p. 79. 148 Op. Cit. 73 4.2. Patologização do desejo: o homossexualismo masculino nos manuais de medicina legal do Brasil das décadas de 1940 e 1950. Com o objetivo de analisar as representações do homossexualismo149 nos manuais de medicina legal optamos por trabalhar com quatro obras que, produzidas em meios oficias de fabricação do discurso científico, nos permitem entrever os debates então travados no interior desta disciplina. A primeira obra é intitulada “Homossexualismo Masculino” e é de autoria de Jorge Jaime. Recorremos à 2ª edição de 1953 que faz parte do acervo da Biblioteca de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Este trabalho foi apresentado pela primeira vez em 1947 como tese de seminário na cadeira de Medicina Legal na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Analisamos também a obra de Napoleão L. Teixeira, professor catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. A obra de Teixeira, “Psicologia Forense e Psiquiatria Médico-Legal” foi publicada em Curitiba no ano de 1954. O outro livro que analisamos é da autoria de Afrânio Peixoto, professor de Medicina Legal da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e grande nome da sexologia brasileira. Analisamos a 3ª edição de sua obra “Sexologia Forense”, publicada pela Companhia Editora Nacional em 1934. Esta é a única obra que não foi produzida na década de 1940 ou na de 1950, contudo ela foi muito lida e comentada nas décadas que se seguiram ao seu lançamento, o que justifica nossa escolha. A obra “Psicopatologia Forense” de José Alves Garcia, publicada em 1958, conclui nosso corpo de fontes. Garcia foi professor entre 1950 e 1954 no curso de doutorado da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Já no início de sua obra, Jorge Jaime apresenta uma discussão sobre o embate de concepções jurídicas e médicas na definição da criminalidade, mostrando como no início da década de 1950 a ambigüidade do lugar do homossexualismo entre as concepções de crime e doença não havia se dissipado. O autor começa sua 149 Homossexualismo era o termo utilizado muitos médicos da época. 74 apresentação a partir de um debate então importante sobre o estatuto do indivíduo criminoso, afirmando que Duas são as correntes que ora se defrontam em Direito Penal. De um lado, os juristas, seguidores da antiga tradição clássica, que vêm o delito como pura entidade anti-jurídica, dando como causas predominantes do crime os fatores sociais; e, de outro, os médicos influenciados pela escola lambroseana que procuram estudar as relações das doenças com a conduta humana. Para esses, mais interessa o conhecimento do criminoso que do crime150. Ao recuperar logo em seguida a história de Febrônio, Jorge Jaime discorre sobre os “perversos”, afirmando indiretamente a necessidade de considerá-los não enquanto autores de um crime, mas enquanto personalidades desviantes que precisam não da punição, mas do tratamento médico. Assim como grande parte dos médicos da época, Jaime tentava reafirmar a autoridade médica em se pronunciar sobre certos casos. Na realidade, Jorge Jaime foi aluno de Heitor Carrilho, diretor do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro do qual Febrônio foi o primeiro interno. Devemos sublinhar o fato de que Carrilho foi um ator importante no caso de Febrônio e pode em muito ter influenciado o trabalho de Jorge Jaime. Jaime afirma que a reincidência de um criminoso comprovaria sua natureza patológica, reforçando que A constância com que um indivíduo comete vários crimes, sempre da mesma maneira, já revela um tipo especial de debilidade mental151. Sérgio Carrara demonstra em seu trabalho como a figura do “reincidente” foi uma peça chave para a aproximação de loucura e crime através da construção deste “enquanto uma manifestação de uma doença mental ou nervosa”152. Ora, o indivíduo que após a punição voltasse a cometer crimes atentando contra a sociedade que lhe deu uma segunda chance só poderia ser louco. Jaime afirma que neste grupo de indivíduos que reincidem na criminalidade ou no vício revelando sua natureza patológica estão os homossexuais. Assim, ao fazer 150 JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, 1947, p. 21. 151 Op. Cit., p. 22. 152 CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998. 75 suas primeiras considerações sobre a relação entre homossexualismo e crime, o autor reivindica imediatamente o direito dos médicos em se pronunciar sobre estes “miseráveis” que são “como que impelidos por uma força instintiva poderosa que os arrasta, numa alucinação desenfreada, à uma vida delituosa”153. Desta maneira, o autor aproxima homossexualidade e doença, bem como relaciona a homossexualidade ao crime. O pederasta é um criminoso consumado. Atenta contra a moral pública nos cinemas, rouba nas casas comerciais, assassina nos quartos fechados e usa de meios secretos para perpetrar injúria, difamação e calúnia154. Utilizando-se de publicações da imprensa, Jorge Jaime revisita casos sórdidos recorrendo a uma narrativa romanesca, colocando em cena pederastas depravados, loucos e movidos por um ímpeto assassino, produzindo, assim, uma articulação entre a homossexualidade e o homicídio. Lembremos que na obra de Ambroise Tardieu analisada anteriormente tal aproximação já havia sido operada. Podemos perceber assim que o tema da homossexualidade articulada ao homicídio esteve muito presente na produção médico-legal tanto européia quanto brasileira. Alguns são os elementos que aproximam a produção de Ambroise Tardieu e Jorge Jaime. Mesmo se ambos os autores se preocuparam em identificar os pederastas e os homossexuais a partir das marcas físicas deste vício, ambos reconheceram o fato de que freqüentemente nenhum traço evidente diferencia o corpo de um homossexual do de um homem “normal”. Contudo, Jorge Jaime se afasta de Ambroise Tardieu ao se voltar para as causas do homossexualismo. Após apresentar algumas fotos pouco conclusivas nas quais o anus de um paciente se encontra exposto, o médico brasileiro afirma na legenda das fotos que “Em muitos (casos) o aspecto externo do organismo é normal. É necessário que aos exames físicos acrescentem-se os psicológicos”155. Nota-se como para o olhar médico não bastavam as evidências físicas quando já se havia classificado o indivíduo 153 JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, 1947, p.22. 154 Op. Cit., p. 25. 155 JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, 1947, p. 27 (Imagem em Anexo). 76 na grade patológica. O olhar devia superar os obstáculos do corpo, penetrando nos recônditos psíquicos do anormal. Outro autor que se preocupou com a análise física dos pederastas foi Afrânio Peixoto156. Ao tratar do “atentado contra o pudor”, Peixoto se dispõe a recuperar as formulações de Ambroise Tardieu no tocante às marcas físicas deixadas pela prática pederástica passiva. Peixoto considera que são questionáveis “os caracteres somáticos de inversão sexual” sobre os quais o médico francês insistiu. O autor brasileiro também afirma que “nem sempre a perversão se estereotipa em caracteres reconhecíveis”157. Assim como Jorge Jaime, Afrânio Peixoto faz uso de fotografias para ilustrar suas considerações. Peixoto apresenta em sua obra fotos de uranistas travestidos reforçando a idéia de ser a homossexualidade uma acentuada inversão de gênero158. Ao analisar o trabalho Homossexualismo e endocrinologia de Leonídio Ribeiro, James Green chama a atenção para o fato de que médicos utilizavam fotografias para complementar suas formulações pouco conclusivas, sendo as fotos e imagens utilizadas parte importante no processo de construção explicativa do objeto de seus trabalhos159. A historiadora Ana Paula Vosne Martins explica, a partir das formulações de Michel Foucault, como ao longo do século XIX o olhar passa a ser soberano na investigação científica sobre o corpo humano. Para a autora, A reorganização do conhecimento científico que aconteceu nas primeiras décadas do século XIX levou ao abandono definitivo das explicações especulativas sobre o corpo humano. O corpo se transforma num cenário material e visível, num novo território cujas verdades eram acessíveis ao olhar atento do médico e do cientista160. Martins analisa as imagens do corpo feminino presentes nos tratados de obstetrícia e, ao fazê-lo, percebe como muitos médicos buscavam apresentar - a partir 156 PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934. Op. Cit. p. 154. 158 Op. Cit. (Imagem em Anexo) 159 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 160 MARTINS, Ana Paula Vosne. A ciência dos partos: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia científica no século XIX In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 2005., p, 652. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/7275846/A-Ciencia-Dos-Partos. 157 77 da observação cuidadosa, do debate e da divulgação de seus resultados - “o fundamento material e natural para as diferenças entre homens e mulheres”161. Desta maneira, o olhar desimpedido do médico percorria os corpos e definia suas especificidades, naturalizando-as. Assim como as imagens do corpo feminino presente nos livros de obstetrícia do século XIX buscavam, a partir do “visível e enunciável”, expor a natureza feminina, as fotografias dos perversos sexuais utilizadas pelos médicos tinham igualmente por objetivo demonstrar ou comprovar as especificidades e a natureza do corpo invertido. As fotografias presentes nas obras de Jorge Jaime e Afrânio Peixoto nas quais indivíduos travestidos eram apresentados buscavam comprovar as formulações a respeito da natureza invertida daqueles indivíduos. A idéia de que o olhar era um elemento neutro legitimava o uso da fotografia enquanto uma prova científica objetiva. É compreensível assim o porquê de Afrânio Peixoto ter legendado uma de suas fotos da seguinte maneira: “Rapaz de 25 anos. Homossexualismo. Tendências feminis. A fotografia prova o gosto pelo vestuário do sexo oposto”162. Para além, as fotografias permitiam ao leitor assumir o mesmo olhar do médico no momento do exame, oferecendo à obra um efeito de realidade. Texto e imagem se complementavam naquelas obras buscando este efeito que legitimaria formulações por vezes pouco conclusivas. Era comum entre os autores brasileiros a reprodução da idéia de marcada feminilidade na homossexualidade masculina. Assim como os autores europeus que trabalhavam sobre um sistema de constante delimitação da diferença sexual, os médicos brasileiros reafirmavam a todo o momento a “inegável” e “natural” separação dos sexos, reconstruindo a imagem do homossexual enquanto um indivíduo de gênero invertido. No entanto, os médicos brasileiros consideravam a homossexualidade não a partir da escolha do papel social de gênero e do comportamento sexual, mas a partir da escolha do objeto sexual ou, como prefere Peter Fry163, da orientação sexual. Isto é, eram homossexuais não somente aqueles indivíduos de prática sexual passiva, mas 161 Op. Cit., p. 647 PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934. (Imagem em anexo). 163 FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 162 78 todos os indivíduos que mantinham comércio sexual e amoroso com alguém de seu mesmo sexo. No entanto, ao trabalhar sob a luz das idéias de autores como KrafftEbing que propõe a separação entre homossexualidade congênita e adquirida, alguns médicos brasileiros também reproduziram certa hierarquia entre homossexuais ativos e passivos. Na obra de Napoleão Teixeira164 podemos entrever a confluência de idéias e teorias de alguns autores clássicos europeus como Hirschfeld, Ulrichs e Krafft-Ebing. Teixeira não parece formular um discurso original, fazendo antes de tudo uma compilação de hipóteses que até a década de 1950 eram enormemente veiculadas entre os homens de ciência que se ocupavam em estudar a etiologia da homossexualidade. Se o estudo da obra de Teixeira não avança muito na direção da compreensão das especificidades da produção médico-legal brasileira acerca da inversão sexual, ele ilumina, num outro sentido, as discussões em voga na década de 1950 no interior da medicina legal. A análise do trabalho de Teixeira lança luz sobre as hipóteses aceitas e a partir das quais muitos médicos formularam suas explicações. Três hipóteses buscam explicar a inversão sexual: a intelectualista ou educacional (Krafft-Ebing), a endocrinológica (intersexualidade, de Marañon) e a psicogenética (fixação da libido, de Freud)165. James Green explica que Gregório Marañon foi uma grande influência para os médicos brasileiros166. Este autor espanhol afirmava que “homossexuais possuíam características tanto masculinas quanto femininas por causa de desequilíbrio endócrino”167, propondo que estas características não eram, no entanto, decisivas para o desenvolvimento da homossexualidade. Assim, ele acreditava que fatores exógenos como uma reorientação ética e moral poderiam moderar ou impedir o desenvolvimento da homossexualidade. Desta maneira, a condição da intersexualidade causada por disfunções endócrinas era apenas uma predisposição para a homossexualidade. 164 TEIXEIRA, Napoleão L. Psicologia forense e Psiquiatria médico-legal. Curitiba, 1954. Op. Cit. p. 135. 166 Gregório Marañon (1887-1960) foi um professor de medicina da Universidade de Madrid e autor da obra La evolución de la sexualidad e los estados intersexuales publicada em 1930. Idem 1. 167 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 165 79 Jorge Jaime dedica em seu trabalho um espaço ao estudo das “causas endócrinas” do homossexualismo, afirmando que Há (...) uma constituição orgânica, funcional, própria do uranista como existe outra, diferente, das pessoas normais168. Desta maneira podemos perceber como os médicos brasileiros foram reconstruindo a idéia de “condição homossexual”. Reforçando as particularidades somáticas, orgânicas e psíquicas da constituição do corpo homossexual, aqueles autores afirmavam a existência de uma “essência homossexual”. José Alves Garcia também constrói suas representações da homossexualidade a partir da idéia de intersexualidade e de confusão de gênero. Para o autor Os homossexuais masculinos ou uranistas, são seres indiferenciados física e psicologicamente, têm ademanes femininos, têm pudor diante dos homens, enfeitam-se, perfumam-se exageradamente169. Bem como Garcia muitos autores caracterizavam os homossexuais como indivíduos que, ao adotar maneiras femininas, revelavam sua natureza confusa, andrógina ou mesmo invertida. Garcia recupera e aceita a hipótese endocrinológica de Marañon revelando como os médicos brasileiros foram influenciados pelo trabalho deste espanhol. Sigmund Freud foi outra grande influência para os autores brasileiros. No entanto, alguns discordaram veementemente de suas explicações. Freud afirmava que a inversão sexual não poderia ser classificada enquanto resultado de um processo de degeneração uma vez que muitos homossexuais por ele observados pareciam ter atingido um alto grau de desenvolvimento moral, além do fato de que alguns dos homens mais notáveis haviam sido invertidos. Jorge Jaime se afasta radicalmente de Freud ao afirmar que Os invertidos são semi-loucos, degenerados, não tem senso moral. O gênio é, quase sempre, um anormal, e nada impede que alguém seja ao mesmo tempo pederasta e gênio, mas será um gênio sem as qualidades morais que lhe atribui Freud170. 168 JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, 1947. 169 GARCIA, J. Alves. Psicopatologia Forense. 2ª edição. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1958. 170 JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, 1947, p. 42. 80 Grande parte dos autores brasileiros se preocupou igualmente em descrever as práticas sexuais dos homossexuais. Alguns demonstraram que o coito anal era o fim sexual mais comum do homossexualismo (Jorge Jaime). Outros apresentaram em seu trabalho uma maior variedade de práticas sexuais, como é o caso de Afrânio Peixoto que defendia a idéia de que ... o amor entre os invertidos nem sempre vai até a pederastia: exerce-se pelo coito perineal ou intergluteo, pela masturbação mútua, raramente pela felação (coito bucal), contatos e afagos no leito, convivência, e, muitas vezes, nenhuma relação física, no que são retidos (!) por considerações morais171. Assim, todos os autores brasileiros analisados tentavam cercar através de uma escrita culta e a partir de um vocabulário “científico” a totalidade da experiência e da “natureza” homossexual. O aspecto físico, a natureza psíquica, a constituição orgânica, as escolhas pessoais (como a escolha de um emprego) eram analisadas pelos médicos que visavam revelar a verdade sobre a perversão. É curioso o fato de que o menor gesto ou o mais insignificante dos detalhes eram analisados por aqueles autores como o sinal natural que acusava o “vício” da homossexualidade. Desta maneira, o linguajar adotado nos meios de sociabilidade homossexuais, as vestimentas ou mesmo o fato de alguns indivíduos terem escolhido seguir uma profissão socialmente reconhecida como “feminina” eram elementos que, para aqueles médicos, revelavam a natureza invertida dos indivíduos. Michel Foucault tinha razão ao afirmar que, “nada do que ele (o homossexual) é escapa à sua sexualidade”172. Os homens efeminados eram os mais visados pela produção médico-legal brasileira. Eles eram indivíduos mais visíveis no espaço urbano e aqueles que, por esta razão, eram mais suscetíveis ao assédio e repressão policiais173. Para além, mesmo se os autores brasileiros consideravam a existência de homossexuais “ativos”, suas atenções se voltavam aos indivíduos que se enquadravam “mais de perto às 171 172 PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934., p. 154. “...rien de ce qu’il est au total n’échappe à sa sexualité”(tradução livre). FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976, p. 59. 173 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 81 representações tradicionais da mulher na sociedade brasileira, ou seja, o homem efeminado que, segundo as aparências, era receptivo no ato sexual”174. Este fato revela como os médicos brasileiros adaptaram os modelos teóricos europeus à “elaboração e reelaboração de conceitos populares sobre homossexualidade” ativos no Brasil de então175. Em seu trabalho “Para inglês ver: Identidade e Política na cultura brasileira”176, Peter Fry nos expõe um sistema de representações sobre a sexualidade ativo no Brasil da primeira metade do século XX e em alguns setores da sociedade brasileira da segunda metade do mesmo século. Neste sistema de representações, a homossexualidade enquanto perversão ou inversão da orientação sexual não era um conceito tão importante quanto a idéia de hierarquia, de dominação ou submissão baseada nos papéis de gênero. Isto é, um “homem” poderia se relacionar com uma “bicha” – indivíduo que adota um papel feminino, logo submisso, de gênero – sem perder seu status. Neste sentido, um homem poderia manter relações sexuais com um indivíduo de mesmo sexo e continuar sendo considerado “homem” contanto que assumisse o papel ativo na relação sexual. A partir deste sistema em que a orientação sexual não é o elemento classificativo mais importante, o mundo masculino não seria dividido entre homossexuais e heterossexuais, mas entre “homens” e “bichas”. Assim, as representações das relações sexuais e afetivas eram baseadas muito mais no papel de gênero assumido (papel masculino ou papel feminino) e no comportamento sexual dos indivíduos (atividade ou passividade sexual) que na orientação sexual 177 (heterossexualidade ou homossexualidade) . Fry defende a idéia de que este sistema de representações esteve ativo em toda a sociedade brasileira e concorreu com outros sistemas durante a primeira metade do século XX. Ora, a preocupação de muitos médicos brasileiros com a “natureza feminina” dos homossexuais e a verborragia acerca dos indivíduos de maneiras femininas acusa a possível influência que este sistema de representação teve sobre as produções por nós analisadas. 174 Op. Cit., p. 238. Op. Cit., p. 239. 176 FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 177 Op. Cit. 175 82 A análise da produção médico-legal brasileira acerca da homossexualidade nos permite compreender como os autores brasileiros se apropriaram das teorias européias. James Green defende que apesar de serem muito influenciados pelo pensamento europeu da época, os médicos brasileiros se apropriaram daquelas teorias construindo algo diferente178. A preocupação com as maneiras femininas dos homossexuais, com a natureza passiva de seus modos e de sua personalidade que pode ser entrevista nas produções analisadas revela a possível influência de sistemas populares de representação da sexualidade na produção científica brasileira. Ao contrário dos autores europeus que dialogaram e discordaram muito entre si, os autores brasileiros eram muito mais cuidadosos na formulação de críticas aos trabalhos de seus conterrâneos. Green nos mostra como a área de estudos da medicina legal era marcada por um sistema de apadrinhamento que desencorajava “a crítica aos mestres, patrocinadores e colegas”179. Os médicos legistas que se debruçaram sobre a sexualidade faziam muito mais elogios, uns aos trabalhos dos outros, que críticas. Assim, podemos mesmo perceber o porquê da certa semelhança existente entre os trabalhos analisados. A recuperação da discussão da homossexualidade enquanto fenômeno comum a diversas sociedades (como a grega e a romana), a utilização de fotos que buscavam legitimar afirmações pouco conclusivas e o emprego de um vocabulário culto e repleto de termos científicos e em latim aproximam enormemente as obras analisadas. Obviamente estes recursos acusam muito mais a fidelidade a uma prática oficial em acordo com os preceitos de uma disciplina específica que uma “falta de originalidade”. Contudo, estes elementos nos revelam igualmente a necessidade dos médicos brasileiros em reafirmar constantemente, pelo caminho da erudição e da cientificidade de suas produções, sua autoridade em se pronunciar sobre a homossexualidade. Desta maneira podemos perceber como, ainda nas décadas de 1940 e 1950, o problema da homossexualidade enquanto domínio ou objeto de responsabilidade de um saber específico não estava completamente resolvido. Os médicos brasileiros buscavam assim reafirmar constantemente a legitimidade de seu lugar de enunciação. 178 GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. 179 Op. Cit., p. 213. 83 A homossexualidade foi assim um elemento importante nas disputas de influência entre saberes e poderes distintos. 84 5. Conclusão A Medicina e a Psiquiatria buscaram se afirmar, no Brasil da primeira metade do século XX, enquanto instituições de controle social. A ativação de certos dispositivos legais permitiu então que médicos e psiquiatras fossem convocados pelos tribunais a se pronunciar sobre os casos que mexiam com a opinião pública e com a lógica do sistema judiciário. Isto é, aqueles crimes que por sua brutalidade e incompreensibilidade colocavam em questão a racionalidade do sistema a partir do qual trabalhavam os juristas, exigiam a intervenção de profissionais mais aptos a vasculhar o domínio mais íntimo da personalidade psíquica dos indivíduos. Assim, médicos e psiquiatras entraram em diálogo direto com os juristas, buscando afirmar a legitimidade de seu lugar de enunciação. O corpo homossexual foi privilegiado pelo saber médico neste momento de luta pela consolidação de sua autoridade. Ele foi cercado, vasculhado e tratado pelos médicos então considerados os mais capacitados a se pronunciar sobre os indivíduos de natureza desviante. Assim, é possível compreender, por sua vez, como o discurso oficial de maior expressão no período acerca da homossexualidade foi aquele produzido no campo do saber médico. A análise de nossas fontes nos permitiu perceber a grande influência que os médicos europeus tiveram sobre a produção do saber médico nacional acerca da homossexualidade masculina. Contudo, mesmo considerando esta influência, os médicos brasileiros produziram algo diferente e novo. A discussão acerca da “feminilidade” dos homossexuais esteve obviamente presente na produção européia que, muito marcada pela construção das diferenças sexuais não deixava de ver a homossexualidade enquanto inversão de gênero. Contudo, as obras européias analisadas reservavam igualmente um lugar ao estudo dos homossexuais que não pareciam ter modos e personalidade femininos. Os médicos brasileiros consideravam igualmente a homossexualidade a partir da escolha do objeto sexual. Isto é, eram homossexuais todos aqueles indivíduos que mantinham comércio sexual e amoroso com pessoas de seu mesmo sexo. Contudo, em suas produções científicas e em suas práticas profissionais cotidianas, os médicos 85 brasileiros se debruçaram em especial sobre os indivíduos de maneiras femininas. A atenção especial que nossos médicos reservaram a estes indivíduos acusa a possível influência de representações populares da sexualidade sobre a produção científica. A evolução das ciências médicas está ligada à evolução da sociedade no interior da qual elas se encontram. Neste mesmo sentido, poderíamos afirmar que os médicos são indivíduos que compartilham com seus contemporâneos crenças, representações e idéias. Nenhum indivíduo se encontra fora ou no exterior de seu contexto histórico. Desta maneira, podemos afirmar que os médicos brasileiros da primeira metade do século XX influenciavam e eram influenciados pelos diferentes sistemas de representação que coexistiam então. Neste sentido, não é absurdo afirmar que a produção médico-legal brasileira da primeira metade do século XX acerca da homossexualidade masculina apresenta alguns elementos em comum a outros sistemas de representação da sexualidade ativos no período. A demasiada preocupação com as maneiras femininas dos homossexuais, a idéia de que estes indivíduos possuíam uma alma de mulher ou uma disfunção somática que os posicionariam mais do lado do universo feminino que do masculino, são imagens em muito semelhantes àquelas presentes no sistema popular de representação da sexualidade estudado por Peter Fry180. Neste sistema popular de representação ativo na primeira metade do século XX, o gênero e o comportamento sexual definiam a fronteira entre o normal e o anormal em termos de conduta sexual. O “bicha” era o outro do “homem”. Ou seja, o machoefeminado se opunha ao macho de maneiras masculinas. Ora, a análise dos manuais médico-legais da primeira metade do século XX nos indica que o indivíduo de sexo masculino que apresentava em sua personalidade elementos do sexo feminino eram aqueles sobre os quais mais fortemente pesou o olhar médico. Esta análise nos permitiu entrever a interação e circularidade de representações entre sistemas diferentes que interagiram no Brasil do início do século XX. Indo além, poderíamos nos perguntar se as representações criadas, investidas ou apropriadas pelos homossexuais nos processos de construção identitária coincidem com aquelas 180 FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 86 produzidas e reinvestidas pelo discurso médico oficial. Seria, assim, necessário investigar o processo de subjetivação, de construção identitária e de autorepresentação dos homossexuais para que pudéssemos medir a influência real do discurso médico sobre a vivência e a experiência da sexualidade. A investigação do processo de construção identitária e de auto-representação dos homossexuais é ainda uma história a ser escrita. Esta análise seria de grande utilidade no sentido de se compreender a importância da produção “oficial” de discurso sobre a vida e experiência dos homossexuais. Para além, estudos desta natureza contribuiriam para que os homossexuais fossem compreendidos não só enquanto sujeitos de discursos normativos, mas igualmente enquanto atores da História. 87 FONTES ELLIS, Havelock. L’inversion sexuelle. Mercure de France, 1909. FREUD, Sigmund. Trois essais sur la théorie sexuelle. Gallimard, 1989. GARCIA, J. Alves. Psicopatologia Forense. 2ª edição. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1958. JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, 1947. KRAFFT-EBING, Richard Von. Psychopathia Sexualis. Paris. G. Carré, 1895. PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934. TARDIEU, Ambroise. Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs. Paris. Baillière, 1859. TEIXEIRA, Napoleão L. Psicologia forense e Psiquiatria médico-legal. Curitiba, 1954. 88 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUSSCHER, P. O. De, Dégénérescence In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998 CHAPERON, Sylvie. Les origines de la sexologie. 1850-1900. Louis Audibert, 2007. CORRIVEAU, Patrice. La répression des homosexuels au Québec et en France : du bûcher à la mairie. Sillery, Septentrion, 2006. CHAUNCEY, Georges. Gay New York: 1890-1940. Fayard, 2003. ENGEL, Magali. História e sexualidade. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (org.) Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Campus. Rio de Janeiro, 1997. pp. 297-311. ERIBON, Didier. Ulrichs In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. La volonté de savoir. Paris. Gallimard, 1976. ___________ Les Anormaux. Gallimard /Le Seuil. Paris, 1999. ___________ O nascimento da medicina social In: Microfísica do poder. Edições Graal. Rio de Janeiro, 1979. 89 FRY, Peter. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. Brasiliense, 1982. ___________ Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. GAY, Peter. A experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. Companhia das Letras. São Paulo, 1988. GREEN, James N. Além do Carnaval : a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Editora UNESP. São Paulo, 2000. HALPERIN, D. Homosexualité. In: ERIBON, Didier (dir). Dictionnaire des cultures gay et lesbiennes. Larousse, 2003. HEKMA, Gert. Uma história da sexologia: aspectos e históricos da sexualidade. In: BREMMER, Jan (org.). De safo à sade: momentos na história da sexualidade. Campinas. Papirus, 1995 LHOMOND, Brigitte. Nature et homosexualité: Du troisième sexe à l’hypothèse biologique . In : GARDEY, Delphine et LOWY Ilana (dir.) L’invention du naturel. Les sciences et la fabrication du féminin et du masculin. Editions des archives contemporaines. Paris, 2000. MARTINS, Ana Paula Vosne. A ciência dos partos: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia científica no século XIX In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 2005., pp. 645-665. http://www.scribd.com/doc/7275846/A-Ciencia-Dos-Partos. Disponível em: 90 REBREYEND, Anne-Claire. Comment écrire l’histoire dês sexualités au XXème siècle? Bilan historiographique comparé français/anglo-américain. Disponível em: http://clio.revues.org/index1776.html#ftn8 ROHDEN, Fabíola. “O corpo fazendo diferença” In: Mana vol.4 n.2 Rio de Janeiro Oct. 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 93131998000200007&script=sci_arttext SPENCER, Colin et SULMON, Olivier. L’histoire de l’homosexualité : de l’Antiquité à nos jours. Poche, 2005. 91 Anexos Imagem 1 – Fotografia presente no trabalho de Jorge Jaime181 181 JAIME, Jorge. Homossexualismo masculino. Tese apresentada na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, 1947. 92 Imagem 2 – Fotografia presente no trabalho de Afrânio Peixoto182 182 PEIXOTO, Afrânio. Sexologia Forense. Companhia Editora Nacional, 1934.