O estudo Funcional Ano-Rectal
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O estudo Funcional Ano-Rectal
Estudo funcional ano-rectal Miguel Mascarenhas Saraiva, MD, PhD Gastrenterologista ManopH, Laboratório de Endoscopia e Motilidade Digestiva – PORTO Instituto CUF de Diagnóstico e Tratamento – PORTO Face a um doente com sintomatologia ano-rectal, a avaliação proctológica pretende esclarecer o aspecto da mucosa, a função anorectal e a integridade das estruturas vizinhas. O exame proctológico covencional (inspecção, toque e anuscopia) continua a ser o instrumento mais perfeito na avaliação da patologia ano-rectal. Como tal, apesar da actual disponibilidade de uma grande variedade de métodos de estudo, esta avaliação nunca deverá ser descurada. Para esclarecimento de dúvidas no exame proctológico ou uma melhor quantificação da situação que se pretende esclarecer, existem vários métodos de estudo a que se pode recorrer. Muitas vezes são necessários vários exames para esclarecer uma só situação. Por exemplo, a investigação da incontinência fecal poderá necessitar da realização de estudos funcionais e imagiológicos múltiplos. Da aplicação destes métodos de estudo, pode-se chegar à conclusão que os seus resultados convergem para solidificar a hipótese de diagnóstico que anteriormente se tinha colocado; outras vezes permitem estabelecer os diferentes componentes etiológicos para uma situação que se afirmava complexa; no entanto, outras vezes, acabam por levantar hipóteses etiológicas múltiplas, que só quando integradas com a impressão clínica inicial poderão conduzir a um real benefício da sua aplicação na investigação do doente. Uns são de desenvolvimento mais recente, outros mais antigos, sendo a sua metodologia recentemente refinada ou a suas indicações reformuladas. O aspecto da mucosa A avaliação endoscópica continua a ser fundamental em toda a investigação proctológica. Mesmo quando têm causa anal evidente, a colonoscopia esquerda está indicada em todos os doentes com rectorragias. Na avaliação de doentes com fistulas anais complexas, a ileo-colonoscopia é necessária para exclusão da doença inflamatória intestinal (doença de Crohn). No doente com incontinência anal, a realização da colonoscopia esquerda é mandatória para excluir doença inflamatória intestinal. 1 Por outro lado, certos achados endoscópicos levam à necessidade de realizar métodos de estudo complementares. Por exemplo, o achado de uma úlcera solitária no recto coloca o prolapso rectal como hipótese etiológica, indicando a defecografia para a sua confirmação. Estudo funcional ano-rectal Actualmente, para tratar certo número de condições, como a incontinência anal e a obstipação por perturbações da exoneração, tornase imperativo conhecer os distúrbios fisiopatológicos desta região. As razões para os estudos funcionais podem ser agrupadas em: - Teste de diagnóstico - pode ser fundamental para diagnosticar a doença de Hirschsprung. - Avaliação da gravidade de uma determinada situação - por exemplo, da incontinência anal. - Os resultados podem interferir na escolha de uma terapêutica - por exemplo, não se pode proceder a uma anastomose ileo-anal se os estudos funcionais não demonstrarem uma função esfincteriana normal. De igual modo, não adianta suturar um esfíncter seccionado por uma prévia cirurgia se os estudos demonstrarem estar a sua inervação seriamente comprometida. Para uma compreensão dos objectivos destes testes, são necessárias algumas considerações fisiopatológicas prévias. A função ano-rectal pode ser simplificada como a integração de 3 sistemas: - UM SISTEMA PROPULSIVO: Representado pelo cólon, que poderemos estudar com vários métodos, como a manometria e electromiografia do cólon, ou,de um modo mais grosseiro, pelos estudos do transito cólico, com marcadores radiopacos ou com radioisótopos. - UM SISTEMA CAPACITATIVO: Representado pela ampola rectal: que poderemos estudar por estudos de sensibilidade à distensão ou estimulação eléctrica, os testes de expulsão e continência a materiais de variada consistência, a avaliação da compliance pelo barostato. - UM SISTEMA RESISTIVO: representado pelos esfíncteres anais e pavimento pélvico, estudado pela manometria anal, ecografia endo-anal, electromiografia e defecografia. O estudo do sistema propulsivo inicia-se com a determinação do tempo de transito cólico com marcadores radiopacos: baseia-se este método no facto de que o tempo de transito oro-cecal é sempre inferior a 24 horas, o permitirá por um RX seriado observar a progressão dos marcadores no cólon. Atendendo à disposição anatómica do quadro cólico, será possível o estudo do tempo de transito cólico total e em 3 segmentos fundamentais: cólon direito, cólon esquerdo, e região rectosigmoideia. Assim, num determinado doente em que se considera a necessidade de um estudo funcional da obstipação, da realização deste teste simples pode-se concluir da normalidade do transito, ou do atraso global dos marcadores em todo o cólon, denominado de inércia cólica, ou fundamentalmente no cólon esquerdo, denominado de hindgut dysfunction, ou na região rectossigmoideia, apontando para obstrução terminal e para a necessidade de um estudo da função ano-rectal. Este método de estudo, desenvolvido nos últimos 20 anos, continua a ser útil. 2 Os testes de sensibilidade estudam a capacidade sensorial das mucosas rectal e do pecten, assim como os volumes necessários para induzir estas respostas. É determinada colocando uma balão no recto, avaliando-se os volumes necessários para despertar sensação de preenchimento rectal: volume limiar subjectivo (volume mínimo para provocar a sensação consciente de preenchimento); volume de percepçäo constante - em que se mantem constante a sensação de necessidade de defecação, aumentando a insuflação até um ponto em que é intolerável, denominado de volume máximo tolerável. Este estudo é muito útil para definir a incontinência de “overflow”, pode dar indicações sobre a fisiopatologia da obstipação e é um guia importante para o tratamento pelo biofeedback. No entanto, os seus resultados dependem da informação dada pelo doente, o que reveste o estudo de uma subjectividade considerável. Mais recentemente, recorrendo à tomografia de emissão de positrões ou à ressonância magnética funcional, foi proposto o estudo da actividade cerebral provocada pela estimulação rectal. Estes últimos métodos, que ainda se encontram em fase de investigação, poderão no futuro ter grande utilidade na avaliação da incontinência em certos casos, como em crianças e nas situações surgidas no contexto da síndrome do intestino irritável, situação em que, à luz das investigações mais recentes, a disfunção sensorial parece jogar um importante papel fisiopatológico. O barostato permite estudar a actividade tónica do recto. Poderá ser útil na investigação de situações de incontinência (demonstrando a existência de uma parede rectal não adaptativa) ou de obstipação (demonstrando uma parede pouco reactiva). Recentes estudos demonstraram, em doentes com obstipação terminal, a inexistência do recflexo gastro-rectal (que consiste no aumento da tonicidade rectal em resposta à refeição). A manometria ano-rectal tem por fim avaliar as pressões anais em repouso e em contração voluntária, bem como as respostas do recto à distensão. Os sistemas de manometria podem ser de diversos tipos: sonda de perfusão ou com microbalão ligados a transdutor externo, sonda com microtransdutor. Este último tipo de sonda permite a realização da manometria ambulatória, que poderá ser útil no estudo de situações de incontinência em que os métodos mais convencionais não detectam alterações, identificando situações de relaxamentos espontâneos e transitórios dos esfíncteres anais. A manometria mantém a sua actualidade, particularmente no estudo da fissura anal (em que permite quantificar a hipertonia, componente a ser tratado pela esfincterotomia ou pela injecção de toxina botulínica) e da incontinência (avaliando as pressões antes e depois de actos terapêuticos). Na fase de expulsão das fezes, requere-se a geração de pressão intraabdominal pela contracção abdominal, assim como a neutralidade de contracção por parte do esfíncter anal e do puborectal, abrindo o angulo ano-rectal. A defecografia, os testes de defecação simulada e a electromiografia estudam a acção dos diversos componentes desta resposta. 3 A defecografia permite uma avaliação dinâmica da funçäo defecatória. Consiste na observação do esvaziamento de um produto de contraste prèviamente colocado no recto e sentando o doente num penico colocado em frente à ampola de fluoroscopia com sistema de amplificador de brilho, permitindo a gravação do esvaziamento do contraste em video. É útil quando se suspeita de prolapso rectal e na avaliação da interferência de um rectocelo na defecação. Também permite, tal como a electromiografia, avaliar o comportamento dinâmico da musculatura pélvica com o esforço defecatório, identificando situações de dissinergia do pavimento pélvico (nomeadamente a contracção paradoxal do puborectal). Mais recentemente tem sido proposta a realização de defecografia por ressonância magnética. Este método, a permitir estudar variação das estruturas vizinhas com o esforço defecatório, ajuda no estudo do prolapso rectal (por exemplo, na detecção de um enterocelo). A descida anormal do períneo estira a inervação pélvica, provocando lesões neurológicas, que agravam a situação (por diminuirem a acçäo tónica do pavimento pélvico, potenciando o efeito da compressão abdominal no esmagamento do recto) e podem estar na origem ou agravamento de uma incontinência anal. O mesmo pode acontecer em certas situações obstétricas, como parto demorado, recém-nascido de alto peso, multiparidade ou forceps. Deste modo, em certas situações é necessário completar a avaliação com o estudo neurofisiólogico do pavimento pélvico e esfíncter anal. Vários métodos existem para estudar a inervação pélvica, escolhidos de acordo com cada situação. A electromiografia convencional é particularmente útil para estudar a actividade eléctrica dum modo grosseiro em repouso, contracção e esforço defecatório, nos casos em que se suspeita de espasticidade pélvica ou de contracção paradoxal do puborectal durante o esforço defecatório como causa de obstipação. Também é útil para estabelecer a actividade eléctrica nos diferentes quadrantes do esfíncter, auxiliando na detecção de defeitos traumáticas do músculo, podendo ser dirigida por ecografia anal, aperfeiçoando o "mapeamento" do esfíncter anal. A Single-fiber EMG permite uma melhor definição de características de desnervação num músculo e tem sido aplicada ao esfíncter anal e pubo-rectal. Os estudos de condução nervosa permitem avaliar lesões do nervo pudendo, estimulando em certos locais do seu trajecto e procedendo ao registo electromiográfico dos potenciais evocados nos músculos efectores, determinando o tempo de latência para cada resposta. Nenhum destes métodos tem valor quando efectuado isoladamente: é errado pensar que uma simples manometria ano-rectal ou uma defecografia dá as informações necessárias para estudar um doente com uma perturbação funcional ano-rectal. O estudo da função ano-rectal deverá agrupar vários destes métodos e ser considerado após a clínica ter feito uma avaliação geral e demonstrado a necessidade de focalizar certos aspectos. As estruturas vizinhas e morfologia 4 Vários métodos, como a ecografia endo-anal e endo-rectal, a tomografia axial computorizada e ressonância magnética ajudam a melhor definir a estrutura (ou as suas alterações na presença de patologia) da região ano-rectal e as estruturas vizinhas, o que poderá ser muito útil na avaliação de processos supurativos, na definição de malformações congénitas, no mapeamento esfincteriano e do pavimento pélvico e no esclarecimento de alterações suspeitas ao ex. proctológico. A ecografia endo-anal ou endo-rectal com sonda rotativa é a ideal para o estudo de tumores ou abcessos rectais. Uma modificação da ponta com uma membrana dura preenchida com água, permite o estudo ecográfico do canal anal, obtendo uma imagem radial, preferível à longitudinal. Esta técnica pode ser extremamente útil na avaliação de lesões esfincterianas, estadiamento de lesões tumorais do canal anal e no estudo de supurações ano-rectais. Mais recentemente, existem sistemas de software que permitem o estudo tridimensional, que contribui para uma melhor definição das lesões esfincterianas. A ressonância magnética pode ser útil na avaliação do pavimento pélvico - onde é superior à TAC na definição do puborectal e do esfíncter anal, no diagnóstico de malformações ano-rectais congénitas e na avaliação de supurações ano-rectais complexas, permitindo distinguir os níveis de envolvimento das estruturas musculares pelos trajectos fistulosos. Estes métodos completam o arsenal de investigação do proctologista, A exploração morfofuncional bem orientada não necessita de ser exaustiva, mas deverá dar resposta a questões pertinentes no manuseamento clínico do doente proctológico 5
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