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RETRATO DO BRASIL | nO 9 DEPENDÊNCIA 1 RetratodoBRASIL nO 9 R$ 6,00 As nossas multinacionais PARA ONDE ELAS VÃO? 2 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 AFLIÇOES DE UM AFLIÇÕES NACIONALISTA DEPENDÊNCIA 3 RETRATO DO BRASIL | nO 9 Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem Nas páginas seguintes A Vale e o interesse nacional O que mais faz a companhia, além de escavar o território nacional e mandar montanhas de minério para fora do País? p.5 As múltis do Estado brasileiro Sim, a Petrobras é, apesar de ter grande participação de acionistas estrangeiros. A Eletrobrás, embora Lula diga que sim, não é p.8 Empreendedores e financistas Steinbruch e Ermírio de Moraes pertencem às duas categorias de articuladores das múltis brasileiras junto ao Palácio do Planalto p.11 Real quebra, palácio muda A era dos juros estratosféricos levou o Brasil ao FMI em 1998. E mudou o câmbio, a política para a internacionalização e até os palacianos p.13 Gerdau chega ao topo Ele vem de longe. Comprou pechinchas estatais já no início da privatização, no governo Sarney. Com a Açominas, deu um salto p.14 Os caubois verde-amarelos As multinacionais brasileiras do agronegócio representam a grande vantagem comparativa global do País? p.18 Porque reinventar a roda Apesar do sucesso comercial da Embraer, sua história mostra uma atuação limitada com relação a um campo crítico, o da defesa p.21 A emenda e o soneto A Telebrás poderia ter sido uma múlti das telecomunicações. A tele verde-amarela parece um remendo no plano de privatização do setor p.24 Para onde elas vão? O Brasil não tem norte na política que diz respeito às multinacionais. Sem norte, como dizia Sêneca, não há vento que ajude p.27 Nossa história começa com considerações do ex-presidente do BNDES Carlos Lessa relacionadas com os destinos da Vale do Rio Doce IMAGEM DA CAPA: Presidente Lula em vagão do trem que liga Mariana a Ouro Preto, MG (5/5/2006) Ricardo Stuckert / PR Abril de 2008 Expediente Redação Mino Carta [ supervisão editorial ] Raimundo Rodrigues Pereira [ coordenação ] Armando Sartori [ edição ] Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht [ redação ] Ana Castro • Pedro Ivo Sartori [ edição de arte ] OK Lingüística | Silvio Lourenço • Marco Bortolazzo [ revisão ] Vendas Paulo Barbosa [ gerente ] • Vítor Cruz Joaquim Barroncas [ representante em Brasília ] Administração Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho • Gabriel Carneiro Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. Editora Manifesto S.A. Roberto Davis [ presidente ] Marcos Montenegro [diretor administrativo e financeiro] Escritório de administração Rua do Ouro, 1.725 - 2o andar • Belo Horizonte MG CEP 30210 590 • Telfax 31 32814431 [email protected] Escritório comercial e redação Rua Fidalga, 146 - conj. 42 • São Paulo SP CEP 05432 000 • Telfax 11 38149030 [email protected] Representação comercial em Brasília SCN Quadra 01 - Bloco F • Edifício American Office Tower - sala 1.408 • Brasília DF • CEP 70711 905 Tel 61 33288046 • [email protected] Impressão e acabamento Grecco & Mello - Rua Chave, 614 • Barueri SP Telfax 11 4198 9860 E le já foi comparado por um jornal americano ao caubói solitário das velhas publicidades dos cigarros Malboro. A razão é sua postura nacionalista, considerada retrógrada, em particular no caso das empresas Vale do Rio Doce e Petrobras, às quais ele atribui importância estratégica. Como primeiro presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Carlos Lessa evitou que a Vale saísse do controle acionário brasileiro. Foi o suficiente para que o diário The Wall Street Journal, porta voz do mundo financeiro, o considerasse como uma espécie de rebelde antiquado, em luta contra a tendência inexorável da internacionalização dos capitais. No final de fevereiro, em sua casa incrustada num paredão de pedra do bairro do Cosme Velho, na cidade do Rio de Janeiro, Lessa (na foto acima) explica o episódio a Retrato do Brasil. “Quando assumi o BNDES [começo de 2003] fui surpreendido com a informação de que a Bradespar [empresa de participações do banco Bradesco] ia vender um lote de ações ordinárias da Vale para o banco [japonês] Mitsui. Pensei imediatamente em determinar que o BNDES comprasse essas ações, visto que existia um acordo de acionistas que nos dava direito de preferência na compra. Fui consultar meus escalões superiores.” Superiores de Lessa, durante sua permanência à frente do BNDES, eram os ministros Luiz Furlan, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; José Dirceu, da Casa Civil; e o presidente Lula. “Eles me disseram o seguinte: não faça nada, porque essa é uma negociação que se arrasta há dois anos”, diz Lessa. Ele ouviu também a argumentação de que o Mitsui, que já tinha ações da Vale, não tinha ambições de controlar nada. E que a interferência do BNDES na venda de ações pela Bradespar seria muito prejudicial à Vale, porque o banco japonês estaria empenhado na amarração dos crescentes negócios da companhia com a China. E o que propunha poderia até mesmo azedar as relações entre Brasil e Japão. Sem maior convicção, Lessa acatou a decisão. “Pensava: por que esse banco vai comprar ações ordinárias [que dão direito a voto] se não quer mandar? Se quer aplicar, por que não compra ações mais baratas na bolsa de Nova York?”, diz a RB. No lance seguinte, porém, o caubói sacou primeiro. “Em 2003, os funcionários da 4 DEPENDÊNCIA LADEIRA ABAIXO Entre 1995 e 2002, o Brasil teve um enorme déficit nas transações correntes com o exterior. A partir de 2005 começa outro 15 10 2005 2000 -10 1995 0 1990 No começo de abril, no entanto, a avaliação já era outra. No encerramento do ano passado, o Banco Central estimava que a conta de transações correntes, uma das principais do balanço de pagamentos do País, teria um déficit de 3 bilhões de dólares no ano, o primeiro resultado negativo desde que Lula chegou ao governo, em 2003. Findo o primeiro bimestre, entretanto, o déficit estava em mais de 6 bilhões de dólares. No início de abril, o BC reavaliou a situação e elevou a estimativa de déficit para 12 bilhões. Valor que, tudo indica, terá de ser alterado, uma vez que é bastante provável que o saldo negativo das transações correntes supere 9 bilhões de dólares no primeiro trimestre. Na edição anterior de RB (“Deus é brasileiro?”, nº 8, março de 2008), sobre as contas do País, já tínhamos destacado que o Brasil estava amarrado a um esquema de especulação financeira global ameaçador, que desautorizava qualquer otimismo acerca do futuro. Outras vozes, mais recentemente, confirmaram essa avaliação. O alemão Heiner Flassbeck, economista-chefe da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em março, disse que a valorização das commodities, que elevou o preço das ações da Vale e da Petrobras, faz parte de um jogo financeiro 1985 Esquema ameaçador pesado, uma espécie de “cassino internacional”, do qual o Brasil é uma das vítimas. “Investidores, temendo a fraqueza do dólar, estão buscando as commodities e também moedas de países com certa estabilidade, mas ainda com taxas de juros altas”. O Brasil está nesse caso, diz ele. Flassbeck explica o mecanismo da mesma forma como fizemos na edição passada. A compra de commodities pelos grandes fundos financeiros eleva o valor da Vale e Petrobras na Bolsa de Valores de São Paulo. O que incha o próprio Ibovespa, o índice que mede o desempenho da bolsa paulista, composto pela cotação de 54 papéis e no qual as ações de empresas que operam na cadeia de commodities têm peso de mais de 47% (Vale e Petrobras, juntas, têm um peso de quase 30%). A combinação da especulação com as commodities e com a das ações na Bovespa aumenta a sangria de recursos do País. O argumento contrário é o de que o jogo é pesado, mas igual. Ao passo que os estrangeiros remetem cada vez mais lucros para fora do País, o Brasil tem progressivamente mais empresas no exterior que enviam mais lucros para cá. No final das contas, uma coisa compensa a outra e, ao mesmo tempo, a economia nacional vai crescendo. É como se, pela atuação das grandes empresas multinacionais brasileiras, o País tivesse descoberto um atalho para livrar-se da dependência do grande capital internacional. 1980 mular a internacionalização das grandes empresas de capital nacional, mas não parecem demonstrar a mesma preocupação de Lessa quanto à natureza do papel a ser desempenhado por essas empresas e a seu controle acionário. Petrobrás e Vale, por exemplo, foram, em boa parte, vendidas ao capital internacional. Seus lucros vão para onde? Ajudam ou não o sempre difícil equilíbrio das contas externas do País? Até o início deste ano, o governo Lula dava mostras de acreditar que o País estaria “blindado” contra os efeitos mais preocupantes da crise financeira global desencadeada pelo estouro da bolha imobiliária americana no primeiro semestre do ano passado. Essa avaliação apoiava-se nos resultados econômicos obtidos pelo Brasil no ano passado. A economia cresceu mais de 5%; nossa balança comercial, assim como o ingresso de investimentos estrangeiros, teve bons resultados; além dos níveis de nossas reservas em moeda estrangeira baterem recordes. 1975 Vale reunidos na Investvale, felizes da vida com a valorização das ações da companhia, quiseram vender seu lote. E o BNDES tinha o direito de preferência para a compra”. As ações da Investvale eram, originalmente, do banco estatal e, diz Lessa, foram vendidas aos funcionários pelo governo Fernando Henrique Cardoso “a preço de banana”, como uma espécie de cala-boca, para que engolissem a privatização da empresa. “Dessa vez, eu não consultei ninguém”, diz o economista. O BNDES adquiriu os 8,5% da Investvale. “Comprei para impedir que o Mitsui ficasse com elas e passasse a ter direito de veto na Valepar [a sociedade que detém o controle acionário da Vale e onde está o BNDES, Bradespar, Mitsui e fundos de pensão das estatais].” Se comprasse o lote da Investvale, o Mitsui passaria a ter direito a veto nas grandes decisões. “Se eles tivessem direito de veto, a companhia passaria a ser nipo-brasileira. Não seria mais brasileira”, diz Lessa. As reações contrárias foram imediatas. O presidente Lula, em viagem à África, foi avisado. “O Lula me telefonou pedindo uma reunião assim que voltasse ao Brasil. Eu fui. Estavam lá quatro ministros, que me criticaram muito. O presidente disse: ‘Lessa, se eu estivesse na África e um jornalista me perguntasse se o governo brasileiro queria reestatizar a Vale, eu diria que não. Mas parece que estávamos comprando a Vale justamente naquele momento’.” Lessa argumentou que havia aumentado o lote de ações do BNDES por duas razões: uma, porque era um bom negócio pela lógica do banco; e porque “na lógica nacional também era extremamente correto, para manter a companhia em mãos brasileiras”. “Expliquei o jogo das ações e o Lula, que é extremamente inteligente, entendeu na hora e ficou do meu lado”. Lessa diz que a Vale do Rio Doce é “uma empresa estratégica para o desenvolvimento brasileiro”. Os embates que teve com outros membros do governo durante sua permanência à frente do BNDES, que não se resumiram ao episódio da Vale, refletem a dissonância de suas posições em relação ao pensamento predominante no Palácio do Planalto, tanto no que se refere ao que é “empresa estratégica” quanto ao que é “desenvolvimento”. Altos representantes do governo, como a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, têm dito também que o governo quer esti- RETRATO DO BRASIL | nO 9 -20 -30 EVOLUÇÃO DO SALDO DAS TRANSAÇÕES CORRENTES, EM US$ BILHÕES (1970-2008*) -35 * estimativa do BC em março 1 FONTE: Banco Central DEPENDÊNCIA 5 Divulgação/ Vale RETRATO DO BRASIL | nO 9 Vista aérea de Carajás (PA): para o presidente da Vale, não é um buraco Esta edição de RB argumentará que não é assim. Os fatos atuais mostram o contrário: existe uma imensa disparidade entre nossas multinacionais e as grandes empresas estrangeiras instaladas no País. Não há um plano geral de fortalecimento dos interesses nacionais no movimento de internacionalização das empresas brasileiras. Há casos específicos que podem ser vistos, no geral, como positivos, a despeito de uma ou outra limitação mais séria, como mostraremos nas histórias da Petrobras, da Embraer, da Votorantim. Mas há também casos como o da própria Vale do Rio Doce, no qual, agora que está entregue a um operador privado, parece-nos difícil dizer que ela atende efetivamente aos interesses nacionais, se eles forem vistos de modo mais amplo. A VALE E O INTERESSE NACIONAL O que mais faz a companhia, além de escavar o território nacional e mandar montanhas de minério para fora do País? É final de fevereiro. Mais de 50 jornalistas se espremem no modesto auditório do edifício-sede da Vale, no centro do Rio de Janeiro. São profissionais dos principais veículos de comunicação do País e correspondentes dos grandes jornais e agências internacionais de notícias: The Wall Street Journal, Reuters, Associated Press, Bloomberg. Todos mandaram representantes. Eles foram convocados para uma entrevista coletiva dos dirigentes da empresa. A pergunta na cabeça de cada um deles é: a Vale vai ou não comprar a Xstrata, mineradora anglo-suíça, a sexta maior do mundo, com grandes reservas de carvão, níquel e cobre? Fábio Barbosa, o diretor da Vale que abre a coletiva, ignora essa ansiedade, no entanto. Fala sobre programas de responsabilidade social e ambiental da empresa e, sobretudo, da formação de profissionais no Brasil, Moçambique, Peru, Indonésia e 6 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 Eny Miranda/ Cia da Foto/ Divulgação/ Vale Barbosa e Agnelli: a Vale lucrou US$ 11,8 bilhões em 2007. Custou só R$ 3,4 bilhões Nova Caledônia. Explica que há escassez de mão-de-obra qualificada para atender as demandas da Vale. É a deixa para a cena seguinte. Quatro jovens empregados da companhia, de diferentes partes do País, falam sobre o quanto estão satisfeitos de aprenderem seus ofícios na mineradora. E encerram seus depoimentos prometendo tudo fazer para tornar a Vale, hoje, a terceira no ranking, a primeira mineradora do mundo. Roger Agnelli, diretor-presidente da empresa, que se mostra inquieto, parece vibrar com o entusiasmo demonstrado pelos funcionários. Buraco é com garimpeiro Barbosa passa a apresentar os resultados da Vale em 2007, todos muito impressionantes. A receita da companhia atingiu 33,1 bilhões de dólares de dólares, a mais elevada da história. Foi também inusitado o lucro líquido, de 11,8 bilhões, correspondente a US$ 2,42 por ação. O que fez o valor de mercado da companhia, calculado em função do preço das ações, atingir, em fevereiro, incríveis 171 bilhões de dólares. Nada mau para uma empresa que, na privatização, foi vendida pelo governo Fernando Henrique por pouco mais de 3 bilhões de reais. Depois de muitos números, sempre positivos, Agnelli assume a palavra. Seu foco é a promoção institucional da empre- sa. Fala sobre a importância da Vale na geração de oportunidades no Brasil e em outros países onde atua, formando e contratando profissionais qualificados. Ressalta o fato de que outras empresas brasileiras, como as construtoras Camargo Corrêa e Odebrecht, acabam se incorporando às ações da Vale no exterior e se beneficiam com isso. Agnelli também aponta como benefícios da atuação da Vale o aumento da demanda por produtos, como pneus e navios (cinco novos cargueiros estão sendo construídos no Rio de Janeiro para a empresa). E não deixa de mencionar investimentos feitos em obras de saneamento e na construção de escolas, como em Canaã dos Carajás, “a região que mais cresce no Brasil, uma ilha de prosperidade”. Agnelli ataca a tese de que a Vale apenas faz buracos para extrair minério e busca bons resultados financeiros para seus acionistas. “Quem faz buraco é garimpeiro”, diz. “Mineração não. Mineração é indústria, processa”. O executivo não diz nada de relevante sobre as negociações para a compra da Xstrata. Inquerido sobre o jantar que tivera com o presidente Lula em sua casa, no Rio de Janeiro, na época das negociações, diz que foi “uma delícia de jantar” e que o assunto Xstrata não esteve no menu. Difícil acreditar nessa versão. Os jornais divulgaram nos dias que se seguiram detalhes do que teria sido o encontro. O diário Valor Econômico, por exemplo, disse que, apesar de ter sido realizado a pretexto de outros temas, “sem perder um minuto daquela oportunidade, o executivo [Agnelli] chamou o presidente [Lula] num canto, expôs os ‘conceitos básicos’ da aquisição da Xstrata e lhe fez um pedido: ‘não emitir nenhuma opinião pública sobre o negócio até que ele fosse concluído’”. Segundo o jornal, Lula teria aceitado o pedido, “colocando-o em prática imediatamente”. Agnelli nega essas versões. “O governo não precisa se preocupar com isso, porque essa é, antes de mais nada, uma preocupação da Vale”, disse aos jornalistas, depois de afirmar que sabia o quanto era importante a Vale continuar a ser brasileira. Àquela altura, especulava-se que a Vale compraria a Xstrata a um preço estimado pelo mercado, entre 80 e 90 bilhões de dólares. Com isso, se tornaria a maior empresa diversificada do setor de mineração e metais do mundo. Passaria a ter minas de cobre, níquel e carvão, além de produção de alumínio. Teria negócios estruturados em 18 países. Empréstimo especial Para realizar a aquisição, porém, a Vale teria que tomar emprestados no exterior cerca de 50 bilhões de dólares. Quando comprou a canadense Inco, em 2006, a companhia fez uma dívida de 14,6 bilhões na moeda americana. A compra da Xstrata, entretanto fracassou. Mesmo assim, a Vale tomou um empréstimo de 7,3 bilhões de reais junto ao BNDES. O presidente do banco, Luciano Coutinho, disse que a operação foi excepcional. Segundo ele, o BNDES teve de alterar seus estatutos, pois só podia emprestar a empresas e empreendimentos, não a grupos econômicos. “A determinação era que as negociações fossem empresa por empresa. Agora, podemos tratar com grupos econômicos”, disse Coutinho aos jornais. Segundo ele, o empréstimo excepcional à Vale prevê o desenvolvimento de 18 projetos, todos eles no Brasil. Um jornalista perguntou a Coutinho se o negócio já atendia aos requisitos da nova política industrial a ser anunciada pelo DEPENDÊNCIA 7 RETRATO DO BRASIL | nO 9 pletou a extração de 1 bilhão de toneladas, teve 95,5% desse minério exportado. O minério vai para fora. E para onde vão os lucros? Isso é muito importante, porque, ao contrário da Petrobras, que paga muito lucro, mas muito mais imposto e royalties, a Vale é praticamente isenta de pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), por exemplo, por ser basicamente uma empresa exportadora. E um dos estados mais prejudicados por isso é o do Pará. Sua atual governadora, a petista Ana Julia Carepa, insiste que é preciso mudar a legislação porque, com a isenção, a companhia deixa de pagar ao Pará cerca de meio bilhão de reais por ano. Desvantagem comparativa A empresa não tem um balanço que esclareça bem a questão de seus lucros e dividendos. Nas informações dadas aos jornalistas na entrevista coletiva da diretoria, a empresa destacou o desempenho de suas ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York. O balanço cita a pesquisa “The 2007 value creators report”, feita pelo Boston Consulting Group, segundo o qual, a Vale foi a empresa que mais gerou valor para seus acionistas no mundo entre os anos de 2002 e 2006. Nesse período, ofereceu um retorno médio de 54,6% ao ano sobre os valores investidos. A mesma pesquisa afirma que a Vale foi a empresa estrangeira a ter as ações de maior giro médio na bolsa novaiorquina em 2007: foram mais de 725 milhões de dólares diários. Em seguida, veio a Petrobras, cujos papéis geraram negócios da ordem de quase 627 milhões de dólares ao dia. Em terceiro, ficou a finlandesa Nokia, maior produtora mundial de celulares, com 360 milhões. A Vale destacou que recebeu de suas filiais no exterior 2,3 bilhões de dólares, dos quais 2,2 bilhões da Inco. Contudo, quanto mandou para fora? A questão é relevante, considerando que a empresa não só tem grande parte de seu capital social no exterior, como tem de amortizar a dívida e pagar juros do empréstimo feito para comprar a Inco. A Vale enfrenta grande competição. À sua frente no ranking do setor, estão a BHPBillinton e a Rio Tinto, ambas australianas. Essas empresas têm suas bases operacionais muito mais próximas do grande mercado mundial, que é hoje o asiático, onde está o principal motor da siderurgia e o grande consumidor de minérios do mundo, a China. Assim, a Vale tem na distância (muito maior) que a separa do mercado asiáti- Ana Julia (dir.), Agnelli, Dilma e Lula: falta meio bilhão de reais por ano para o Pará Antônio Cruz/ ABR governo. Ele disse que sim. Agnelli reforçou a idéia, repetindo o que dissera aos jornalistas no encontro já citado. “A atividade de mineração, especialmente de nãoferrosos, é uma atividade industrial. Às vezes, você precisa minerar uma grande quantidade de material para extrair apenas 1% a 2% de minério”, justificou. As jazidas de minério do País são definidas por lei como patrimônio nacional. A Vale é uma concessionária, com direito a explorá-las. A empresa foi criada, nos anos 1940, como uma estatal, e com o objetivo de ser um instrumento para alavancar o desenvolvimento nacional, especificamente, a industrialização do País, ainda incipiente. A idéia não era, basicamente, exportar minério. Era também, e principalmente, produzir aço e criar indústrias, desenvolver o País. Durante a ditadura militar, o projeto da Ferrovia do Aço pretendia levar o minério extraído das montanhas de Minas Gerais para os complexos siderúrgicos localizados no próprio estado, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Esse projeto fracassou e a ferrovia é hoje, como várias outras, canal para exportação de minério e produtos siderúrgicos semi-elaborados. A mina da Serra dos Carajás, no estado do Pará, descoberta na fase dos governos militares, que no ano passado com- 8 DEPENDÊNCIA ABR Bush e Lula: quem disse “não acho que o Estado deva dirigir empresas”? RETRATO DO BRASIL | nO 9 co o que David Ricardo, um dos três grandes nomes da economia clássica, junto com Adam Smith e Karl Marx, chamaria de uma “desvantagem comparativa”. No caso, é o contrário do que dizem os adeptos da proposição de que o futuro do Brasil está na exploração das commodities, agrícolas ou minerais. Essa é, possivelmente, a explicação para o grande empenho da empresa em tirar o minério do subsolo brasileiro praticamente sem pagar impostos aos estados brasileiros nos quais opera. Existe um plano? Nos dois últimos anos, a Vale se empenhou na construção de acordos para industrializar o minério no País. Tem um projeto de 4,2 bilhões de dólares com a alemã Thyssen-Krupp, outro de 2,0 bilhões de dólares com a coreana Dongkuk e mais um com a chinesa Baosteel, na qual colocará 3,2 bilhões de dólares. Está envolvida ainda com uma expansão da Usiminas, em que estão os japoneses da Nippon Steel, e anunciou que construirá uma siderúrgica no Pará, com sócios ainda não definidos, eventualmente indianos. De que forma os negócios siderúrgicos da Vale alterarão o seu status de exportadora da commodities? Quase todos são projetos para produção de placas de aço, insumo básico da indústria. Do ponto de vista da Vale, é um avanço. Não se pode dizer, todavia, que isso faça parte de um grande projeto de industrialização e desenvolvimento técnico do País. Ao desmantelar o conjunto de empresas nacionais estatais com a privatização, o governo Fernando Henrique abandonou a idéia de um plano para enfrentar o problema da inserção industrial do Brasil no processo de globalização a partir da ação ativa do Estado. De que forma isso se alterou no governo Lula é o que veremos nas páginas seguintes. Primeiramente, trataremos de uma retomada de conceitos sobre o interesse nacional a partir de uma entrevista da ministra Dilma Roussef. Passaremos, então, para a Petrobras e à Eletrobrás, empresas chaves para a história das multinacionais brasileiras e para a compreensão do processo de industrialização do País. AS MÚLTIS DO ESTADO BRASILEIRO Sim, a Petrobras é, apesar de ter grande participação de acionistas estrangeiros. A Eletrobrás, embora Lula diga que sim, não é A ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, foi chamada pelo presidente Lula de “mãe” do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a grande iniciativa do governo para desenvolver o País. Em entrevista publicada pelo jornal Valor Econômico em setembro do ano passado, ela teorizou sobre a questão do interesse nacional no que diz respeito às grandes empresas instaladas no Brasil. Explicou que a atuação do governo Lula tem por objetivo apoiar “os processos de concentração que estão ocorrendo no mundo, porque o que se quer é ter grandes players”. Players, de jogadores, em inglês, no jargão econômico da moda, são as grandes empresas com capacidade de atuação global. “O governo acha isso perfeitamente natural, bem-vindo, sem problema algum”, disse a ministra. Ela foi além. Explicou que é importante que, como já ocorre em outros países, exista no Brasil “uma relação ínti- ma entre setor público e setor privado”. “Íntima no bom sentido”, ressalvou. Seria uma “relação de parceria, de cooperação, de apoio do governo às suas empresas, sejam privadas nacionais ou estrangeiras”. A última afirmação é estranha. É certo falar em “suas empresas [do governo]”, referindo-se à relação entre o governo brasileiro e as empresas privadas, as nacionais e, especialmente, as estrangeiras? Outras duas observações a respeito do sentido amplo dessas declarações da ministra são necessárias. Uma: a formação dos grandes players, que se dá no processo de concentração de capitais a partir do qual gigantescas empresas se formam e expandem suas atividades para fora das fronteiras nacionais de origem não é, em linhas gerais, novidade. Foi descrito há mais de um século por diversos autores. Outra: se há algo novo na era em que vivemos é que esse fenô- DEPENDÊNCIA 9 RETRATO DO BRASIL | nO 9 meno, originalmente ocorrido no centro capitalista, está acontecendo com empresas de países de industrialização tardia, da periferia capitalista, como Brasil, China, Coréia do Sul, Índia, México e outros. O novo, portanto, está na origem dos capitais. Exatamente o aspecto que a ministra minimiza. “Vamos apoiar muito os empresários de capital externo que estão aqui”, disse ela a Valor Econômico. “Não nos interessa deixar o capital estrangeiro, que do ponto de vista da Constituição é brasileiro, sem cobertura”. Ela, entretanto, aponta – e critica – casos recentes envolvendo grandes empresas, em que os governos de França e Itália pressionaram com o objetivo de fortalecer os capitais nacionais. O que mostra que nos países do centro capitalista, em momentos críticos, prevalece a distinção do capital segundo sua origem. Tendência, aliás, explicitada numa declaração de 1995 do então presidente americano Bill Clinton. Ele disse, na ocasião, que “o papel do governo é o de um sócio do setor privado, agindo como um defensor dos interesses econômicos nacionais”. Mais ou menos o mesmo disse James Woolsey, diretor da Agência Central de Inteligência dos EUA, a CIA, no final de 2000. Ele afirmou que “muitos bilhões de dólares dos contratos para as empresas americanas” foram obtidos com o uso de dados coletados pelos serviços de informação de seu país. A MÚLTI QUE NÃO FOI As três histórias do que deixou de ser feito no governo Lula para fortalecer a Eletrobrás A PRIMEIRA É “A ESCOLHA DE DILMA” (Reportagem nº 54, março de 2004). Conta como o governo Lula, já antes de sua posse, decidiu manter o projeto liberal de descontratação das geradoras de energia elétrica do País, basicamente estatais, programado para 1º de janeiro de 2003. Conta também como a Eletrobrás, comandada então por Luiz Pinguelli Rosa, há anos o principal porta-voz do presidente para a área de energia, foi afastada da definição do novo modelo para o setor. A segunda é “Contratos Imorais” (Reportagem nº 59, agosto de 2004). Investiga os contratos que o governo FHC fez na tentativa praticamente desesperada de fazer funcionar um sistema de geração de energia à base de termelétricas a gás natural, para evitar um apagão. O apagão não foi evitado. Os contratos foram qualificados de imorais, mesmo por autoridades do governo que disseram ter de mantê-los. Prejudicaram principalmente o sistema Eletrobrás e a Petrobras. Termelétricas privadas assinaram contratos com distribuidoras de seus próprios grupos econômicos para vender energia elétrica a preços, de um modo geral, duas vezes superiores aos das geradoras estatais. Esses contratos foram mantidos. A Petrobras, por sua vez, bancava os lucros de sócios privados em termelétricas que sabidamente não tinham condições de funcionar. No entanto, renegociou esses contratos. A terceira é “Energia, o espectro liberal” (Retrato do Brasil-CartaCapital, agosto de 2007), e conta o que se qualificou como “a farra dos livres”, o enorme crescimento das vendas no “mercado livre”, em que grandes consumidores chegaram a comprar 50% do consumo industrial de eletricidade do País a preços até 44% menores que os do mercado cativo, de consumidores residenciais e pequenos e médios empresários. Reestatizar a Vale, nem pensar Embora as declarações da ministra brasileira tenham sentido nítido, isso não quer dizer que, na prática, o governo Lula não veja problemas quanto à origem dos capitais. O governo, contudo, não dá sinais de querer transformar tais preocupações numa política mais clara e atuante. Talvez, para manter-se em paz com o grande capital, tanto nacional quanto estrangeiro, que têm boa parte de seus interesses entrelaçados. Na entrevista citada, a ministra Roussef também opina sobre a proposta, referendada pelo último Congresso do Partido dos Trabalhadores, ao qual é filiada, de reestatizar a Vale. Ela se diz contra: “Não faz mais sentido fazer isso”. O motivo, depreende-se do que diz, é administrativo, não econômico ou político: “A Vale é uma empresa consolidada, uma empresa mineradora muito bem gerida”. Curiosamente, mais ou menos na mesma época da entrevista a Valor Econômico, quando das descobertas do campo petrolífero de Tupi, em outra fala, a ministra se disse a favor de uma revisão da lei do petróleo para aumentar o controle nacional sobre as reservas brasileiras. O presidente Lula também é contraditório com relação ao assunto. Numa famosa entrevista ao jornal americano The Washington Post, divulgada pouco depois de ter sido eleito em 2002, ele disse, explicitamente: “Não acho que o Estado tenha de dirigir empresas. O pa- 10 DEPENDÊNCIA pel do Estado é planejar, estimular o desenvolvimento com incentivos e, se necessário, procurar a iniciativa privada para fazer parcerias em financiamentos”. Nos últimos tempos, no entanto, tem dito que o Brasil deve ter duas multinacionais estatais: a Petrobras e a Eletrobrás. O propósito do governo Lula de transformar a Eletrobrás numa das multinacionais brasileiras, porém, tem sido uma palavra vazia. Retrato do Brasil e a extinta revista Reportagem, publicações da Editora Manifesto, dedicaram, em três edições, um total de quarenta páginas nas quais há uma espécie de demonstração de que este governo nada fez nessa direção. Ao contrário: manteve o grande plano de desmantelamento dos contratos de concessão de energia das geradoras estatais e desenvolveu um “mercado livre” de energia, no qual os grandes grupos econômicos compraram por muito tempo eletricidade a preços incrivelmente baixos, em detrimento dos investimentos dessas geradoras. Petrobrás, Petrobras e Petrobrax A Petrobras é a grande multinacional brasileira. Sua marca original era “Petrobrás”, com acento agudo no último “a”. No governo Collor, quando teve início uma campanha em defesa da privatização da empresa, o sinal gráfico foi retirado. No governo Fernando Henrique, a Petrobras perdeu o monopólio da exploração e distribuição do petróleo no País. E sua marca quase mudou para “Petrobrax”. Na época, em nota aos funcionários da empresa, explicando a mudança, seu então presidente, Philippe Reichstul, disse: “Agora, não somos apenas uma empresa nacional de petróleo com a imagem vinculada a postos de gasolina. Somos uma corporação transnacional de energia”. Além de se livrar da imagem de estatal, com a marca “Petrobrax”, a empresa se livraria também da pecha de ser brasileira. A mudança, entretanto, parou em “Petrobras”, sem acento. A atuação do governo Lula com relação à nossa maior estatal foi menos espetaculosa que a de seu antecessor. Basicamente, não foi revertido o processo de privatização da companhia, realizado parcialmente. Hoje 39,1% do capital total da empresa estão com estrangeiros. RETRATO DO BRASIL | nO 9 E 50,6% de suas ações preferenciais, com prioridade na distribuição dos lucros, também pertencem a investidores com domicílio legal fora do País. O Conselho de Administração da empresa, supostamente o órgão supremo da companhia, também reflete essa preocupação com o capital privado. Embora o Estado seja o detentor da maioria das ações com direito a voto e tenha nomeado José Sérgio Gabrielli como presidente da empresa , e a ministra Roussef como presidente do conselho, grandes empresários, como Jorge Gerdau Johannpeter e Arthur Sendas, têm assento nesse fórum. A Petrobras tem enorme peso financeiro, como suas assemelhadas do exterior. Tem, segundo seu balanço do ano passado, um enorme capital de curto prazo. Somando o caixa e o que tinha em bancos no curtíssimo prazo, mais as disponibilidades no País e no exterior, rubrica que se refere a dinheiro aplicado no prazo de menos de um ano, tinha 13 bilhões de reais no fim de 2007. É esse tipo de disponibilidade que faz que uma multinacional possa pressionar governos em vários cantos do mundo por concessões, enquanto estuda onde vai fazer investimentos. O balanço da Petrobras é bastante claro, quando comparado com o de outras O BOLO DA PETROBRAS A maior fatia do valor adicionado à produção pela empresa foi a dos impostos e royalties pagos a entidades governamentais. A menor, a destinada aos trabalhadores VALOR ADICIONADO NA PRODUÇÃO EM R$ MILHÕES (2007) ENTIDADES GOVERNAMENTAIS 70,6 13,4 12,8 23,2 INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS E FORNECEDORES PESSOAL ACIONISTAS FONTE: Petrobras 2 empresas. No de 2007, a empresa mostra que gerou uma riqueza equivalente a 120 bilhões de reais. Desse bolo, a parte menor foi para seus trabalhadores, 12,8 bilhões de reais, mais ou menos metade da parte que coube aos acionistas, 23,2 bilhões de reais e menos que o pago de juros para instituições financeiras e em aluguéis e afretamentos para fornecedores, 13,5 bilhões de reais. Mas a parte maior, 70,6 bilhões de reais, paga a título de impostos e royalties, foi para os governos, federal, estaduais e municipais. Política liberal em discussão Em certa medida, a empresa se reorientou em direção a uma política voltada mais diretamente para os interesses internos do País no governo Lula. O efetivo fixo da companhia mais que dobrou depois de anos consecutivos de incentivo à terceirização, quando parte dos trabalhadores que atuavam na companhia eram empregados de outras empresas que prestavam serviços para a estatal. O quadro funcional da Petrobras foi de 32,8 mil para 68,9 mil funcionários entre 2001 e 2007. No setor de gás e de energia, a Petrobras completou a construção, nacionalizou e reorganizou um expressivo patrimônio, que havia sido parcialmente construído sob as regras da liberação do setor elétrico e que, agora, sob seu comando, poderá ser de enorme utilidade para o País numa eventual crise nessa área. Seu grande feito mais recente foi a descoberta de gigantescas reservas de petróleo e gás nos campos de Tupi e Saturno, na Bacia de Santos, litoral do Sudeste brasileiro. Elas levantaram, como se viu pelas declarações da ministra Roussef, a questão da política liberal de concessões para a exploração do petróleo no subsolo brasileiro. No mundo, as grandes multinacionais do petróleo detêm cada vez menos reservas, e os Estados nacionais cada vez mais. Seria razoável, portanto, que o governo tomasse posição clara quanto à mudança da lei aprovada no governo Fernando Henrique. O próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, declarou, privadamente, ser favorável ao uso de parte das reservas brasileiras em moeda estrangeira para recomprar ações da Petrobras. Entretanto, nada disso ocorreu. DEPENDÊNCIA 11 Felipe Vieira/Folha Imagem RETRATO DO BRASIL | nO 9 EMPREENDEDORES E FINANCISTAS Steinbruch e Ermírio de Moraes pertencem às duas categorias de articuladores das múltis brasileiras junto ao Palácio do Planalto N Almeida Rocha/Folha Imagem a entrevista já citada, a ministra Dilma Rousseff afirma, a certa altura, quando explicita a “relação íntima” entre os setores público e privado, que considera “fundamental que se tenha o capitalista”, “o empresário schumpeteriano”. Ela se referia a Joseph Schumpeter (1883-1950), o economista americano que destacava a importância dos capitalistas empreendedores e da “destruição criativa” que eles promoviam. O Palácio do Planalto sempre foi aberto a essas criaturas. A partir das reformas liberais promovidas pelos americanos no final dos anos 1970 e da hiperinflação brasileira dos anos 1980, entre os empreendedores com grande influência no núcleo do poder, destacou-se uma categoria especial, a dos financistas. Gente como Daniel Dantas, Armínio Fraga, Francisco Gros, Pérsio Arida, André Lara Resende, Luiz Carlos Mendonça de Barros. O Brasil não tem, no entanto, nenhuma grande multinacional financeira. Aqui, os financistas basicamente criaram os esquemas da privatização das grandes estatais. No começo dos anos 1980, as maiores empresas no País eram quase só multinacionais estrangeiras ou empresas estatais. E as estatais dominavam os setores do petróleo e gás, mineração, siderurgia, energia elétrica e telecomunicações. Dois grandes empreendedores, cujos nomes devem ser associados às multinacionais privadas brasileiras formadas nesse período, são Benjamin Steinbruch e Antônio Ermírio de Moraes. Eles disputaram a Vale do Rio Doce, hoje a maior multinacional privada do País. E no desfecho da história, acabam se misturando os empreendimentos industriais e financeiros. Ermírio de Moraes podia ser visto como um empresário antigo (não pode mais, como logo adiante se verá). Seu pai, José Ermírio de Moraes, era um dos raros exemplares de uma burguesia local verdadeiramente nacional. Foi derrotado com o golpe militar de 1964, quando o processo de monopolização no capitalismo brasileiro ainda não havia dado o salto para além do mercado nacional. Ermírio de Moraes, “o estrangeiro” Antes do golpe, José era senador pelo PTB. Elegeu-se por Pernambuco em 1962, na chapa do governador Miguel Arraes. Não apoiou os golpistas que derrubaram o presidente João Goulart e praticamente desapareceu da cena política nos governos dos generais pós-1964. Vinha de uma família de senhores de engenho pernambucanos decadentes. Havia ajudado o sogro, Antonio Pereira Inácio, a consolidar a Votorantim, uma das maiores fábricas de tecidos do Steinbruch: um financista pré-1998 empreendedor- País na primeira metade do século passado. Coube a José assumir a empresa após a morte do sogro. Sob sua direção, a empresa expandiu-se para várias áreas. O destaque foi a fundação, em 1955, da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) que cresceu espetacularmente a despeito de atuar num setor dominado pelas multinacionais estrangeiras. Em 1997, Antônio Ermírio de Moraes, já então no comando do grupo Votorantim, liderou o consórcio Valecom, para disputar a Vale do Rio Doce no leilão de privatização. Juntou-se à mineradora AngloAmerican, de capital sul-africano, à Mitsui, trading japonesa de minério de ferro, à Japão-Brasil Participação (formada por 12 corporações) e aos fundos de pensão Centrus (dos funcionários do Banco Central) e Sistel (dos funcionários da Telebrás). Antônio Ermírio teve como adversário Benjamin Steinbruch, um dos três filhos do empresário Mendel Steinbruch, o principal sócio do grupo têxtil Vicunha, à época o maior do ramo no País. Benjamin liderou o consórcio Brasil, tendo à frente a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Ermírio de Moraes: um empreendedorfinancista pós-1998 12 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 AINDA É POUCO A participação das múltis estrangeiras nos financiamentos do BNDES é um quarto do total. E deveria ser maior, diz economista DESDE A REFORMA LIBERAL da Constituição de 1995, que eliminou a distinção entre empresa nacional e estrangeira, o financiamento do BNDES às empresas sob controle de capital estrangeiro é crescente. No fim de 2006, já representava praticamente um quarto do total, cerca de 12 bilhões em 650 50 bilhões de reais. O econo- 600 mista Antônio Correa de 550 VARIAÇÃO DOS DESEMBOLSOS DO BNDES A EMPRESAS, TOTAL E Lacerda, da PUC-SP, ainda 500 450 SOB CONTROLE DE CAPITAIS acha pouco. Ele argumenta: as 400 ESTRANGEIROS, EM % (1996-2006) multinacionais estrangeiras re- 350 300 Estrangeiros presentavam 45% das 500 250 maiores empresas do País em 200 2006. Deveriam ter direito a 150 Total uma porcentagem próxima 100 50 desse índice nos investimentos 0 do BNDES. 1996 1998 2000 2002 2004 2006 Do ponto de vista da lógica libeFonte: BNDES ral, a conta está certa. empresa criada por Getúlio Vargas, que adquiriu num processo que será descrito posteriormente, quando falarmos das multinacionais brasileiras da siderurgia. Com base no patrimônio da CSN, Steinbruch tomou um empréstimo de 1,2 bilhão de dólares do Nations Bank, banco americano que depois compraria o Bank of America. E conseguiu mais uns 2 bilhões de fundos de pensão das estatais liderados pelo Previ (dos funcionários do Banco do Brasil); de um fundo financeiro organizado pelo banco Opportunity, que tinha por trás o Bradesco; e de um grupo de investidores do exterior, entre os quais George Soros, agrupados na Sweet River. Curiosamente, Steinbruch acabou sendo a parte nacional na compra da Vale, embora os dois lados em disputa tivessem a participação de capitais estrangeiros. O PT mobilizou-se contra a venda. Entretanto, setores do partido adotaram uma postura pragmática. Argumentando que o leilão era inevitável, atuaram para favorecer o consórcio de Steinbruch, considerado mais “nacionalista”. Políticos e sindicalistas do partido tinham influência na gestão dos fundos de pensão das estatais. Aloysio Mercadante, uma das estrelas petistas, muito ligado a Lula, era na ocasião assessor do Sindicato dos Bancários de São Paulo. Ex-parlamentar, não tinha concorrido à reeleição para a Câmara dos Deputados por ter sido candidato a vice na chapa em que Lula perdeu a eleição presidencial de 1994. Mercadante orientou o Previ a apoiar o consórcio de Steinbruch. O hoje senador diz a RB que “não fazia sentido privatizar a Vale, uma empresa estratégica, rentável”. “Quando percebemos que o leilão era inevitável, no entanto, achamos que era importante que os trabalhadores participassem de alguma forma desse processo”, explica. Os maiores capitalistas Mercadante considera que a compra da Vale foi um excelente negócio para a Previ. “Os maiores beneficiados são os trabalhadores do Banco do Brasil. Hoje, sobram muito poucas empresas de capital nacional no País, mas as que sobraram têm a participação dos fundos de pensão de trabalhadores”, diz. “Os maiores capitalistas brasileiros são hoje os trabalhadores organizados nos fundos de pensão”. Hoje, a Vale é comandada por um financista. Roger Agnelli foi nomeado pelo Bradespar, o fundo de participações do banco Bradesco, que estava por trás do Opportu- nity (não podia aparecer no leilão porque participara da avaliação da Vale). O grupo Votorantim cresceu e se ampliou por novas áreas. Foi com o cimento, um setor menor da economia global, que se internacionalizou a partir de 2001. O cimento representa um setor importantíssimo no grupo, responsável por 19% de sua receita líquida. Naquele momento, a estratégia da empresa era compensar no exterior a falta de crescimento do mercado interno de construção civil. Segundo estudo da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais da Globalização Econômica (Sobeet), a empresa foi também em busca de dólares, moeda forte na época, tendo estabelecido como meta ter 50% de sua receita em moeda forte, tanto em operações no exterior como com exportações, até 2010. Consultores e estudos feitos pelo grupo apontaram que o rumo era a América do Norte, e a forma de investimentos seria a compra de unidades já existentes. O Votorantim se estabeleceu, afinal, em Ontário, no Canadá, e na região dos Grandes Lagos e Flórida, nos Estados Unidos. Os empreendimentos envolveram fábricas de cimento, usinas de concreto, terminais de distribuição, navios para transporte. Antônio Ermírio, que tem o costume de fazer ruminações filosóficas sobre o valor do trabalho, o mal dos juros e a felicidade nacional, há poucos anos declarou que “a internacionalização da companhia é um mal necessário”. E que preferia aplicar todos os recursos no Brasil. A despeito de sua persistente pregação contra os juros, o grupo, no seu balanço do ano passado, registrou que 26% de suas receitas líquidas foram provenientes dos negócios financeiros, a segunda maior fonte de renda. O Banco Votorantim é, segundo o balanço, o quarto maior banco privado brasileiro, com ativos de 66 bilhões de reais. Também fazem parte do braço financeiro do Votorantim a BV Corretora de Títulos e Valores Mobiliários, a BV Leasing e a BV Financeira, que concede financiamentos de veículos, material de construção e crédito pessoal e crédito consignado público e privado. Está também no ramo de administração de grandes fortunas. Ao comentar em 2004 o fato de que o lucro líquido do banco foi maior que o da CBA, Antônio Ermírio disse: “Infelizmente, tomamos gosto pela coisa”. DEPENDÊNCIA 13 RETRATO DO BRASIL | nO 9 REAL QUEBRA, PALÁCIO MUDA A TROCA DE PAPÉIS Quando o Brasil quebrou, em 1998, o Estado voltou a se endividar, para socorrer os grandes grupos endividados A era dos juros estratosféricos levou o Brasil ao FMI em 1998. E mudou o câmbio, a política para a internacionalização e até os palacianos Dívida externa pública 140 130 120 B enjamin Steinbruch mantém relações importantes. É amigo dos tempos de juventude do senador Mercadante. E, segundo o diário Correio Braziliense, também de Josué Gomes da Silva, filho do vice-presidente da República, José Alencar. Josué é presidente da Coteminas, a maior empresa têxtil do País, também multinacional, associada com a americana Springs. A família Steinbruch continua muito rica, mesmo depois de ter vendido sua parte na Vale para acertar as contas da CSN. A revista americana Forbes incluiu em sua lista de bilionários de 2006 dois Steinbruchs: Dorothea, com 6,1 bilhões de dólares; e Eliezer, com 4 bilhões, mãe e tio de Benjamin. Hoje, a estrela de Steinbruch não brilha tanto no Palácio do Planalto quanto em meados dos anos 1990, quando Paulo Henrique Cardoso, filho do então presidente da República, estava na folha de pagamentos da CSN. O Brasil mudou. A década de 1990 foi o período dourado do neoliberalismo no País. O leilão da Vale do Rio Doce em maio de 1997 foi talvez o início do fim desse período. A Telebrás foi vendida no final de julho de 1997 já com o País assolado por um processo de fuga de capitais, que levaria à sua quebra no final do ano seguinte e a uma mudança radical na sua política cambial, que afetaria, essencialmente, os empréstimos externos, como o que Sergio Lima / Folha Imagem fora conseguido por Steinbruch para comprar a Vale. A privatização dos anos anteriores fora, no fundo, um processo de concentração de capitais, no qual o Estado transferiu para capitalistas privados boa parte do patrimônio público acumulado na Era Vargas. Foi desenvolvida com apoio nos capitais estrangeiros e nos financiamentos do BNDES e dos fundos de pensão dos funcionários das estatais. Baseou-se na criação do real, uma moeda aparentemente forte, mas, de fato, apoiada em juros descomunais – de mais de 20% reais nos primeiros meses de implantação do Plano Real –, e deixou um gigantesco passivo na forma de uma dívida interna galopante. 110 100 90 80 70 Dívida externa privada 60 50 40 EVOLUÇÃO DAS DÍVIDAS EXTERNAS PÚBLICA E PRIVADA, EM US$ BILHÕES (1992-2007) 30 20 10 0 1992 1995 1998 2001 2004 2007* Trinca financista A quebra do País em 1998 foi o final desse ciclo de concentração. Os capitais externos pararam de financiar o processo e começaram a cobrar a conta. Isso trouxe mudanças radicais na área financeira. Até 1998, o Estado ainda estava completando a renegociação da dívida externa da época dos governos militares. A dívida externa pública havia até decrescido levemente depois da disparada pós-golpe militar. Foi de mais de 100 bilhões de dólares, em 1992, para pouco mais de 90 bilhões, mas o endividamento externo privado disparara. No mesmo período, saltou de cerca de 20 bilhões de dólares, naquele ano, para perto de 130 bilhões. Almeida Rocha/Folha Imagem Sergio Lima / Folha Imagem * dados estimados (até setembro) FONTE: Banco Central e elaboração própria 3 O presidente Collor colocara na presidência do Banco Central, na área externa do banco e no Ministério da Fazenda, respectivamente, a trinca Francisco Gros-Armínio Fraga-Marcílio Marques Moreira. Em maio de 1992, os juros reais brasileiros foram elevados para os níveis mais altos do mundo, lá se encontram até hoje. Isso levou, primeiramente, a uma enorme especulação na arbitragem de juros: o financista-empreendedor pegava dinheiro a juros baixos no exterior, convertia em reais, aplicava em títulos da dívida pública brasileira a juros monumentais e multiplicava seu dinheiro em pouco tempo. A quebra do real, a moeda artificialmente forte criada pelo governo Fernando Henrique, levou ao desmantelamento desse esquema de ação do Estado brasileiro. A partir daí, o processo mudou. O movimento dos empréstimos se inverteu. Os financistasempreendedores pararam de tomar emprés- A trinca dos juros estratosféricos: Gros-Fraga-Marques Moreira 14 DEPENDÊNCIA timos no exterior e passaram a pagá-los, ou a prorrogá-los. O governo brasileiro foi buscar os dólares junto aos patronos do sistema: Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Tesouro americano. Tomou três grandes empréstimos entre 1998 e 2002. Em termos líquidos, ou seja, descontadas as amortizações pagas, tiradas dos empréstimos novos para pagar os velhos, recebeu dessas instituições oficiais cerca de 45 bilhões de dólares. Uma lei para a nova dívida Para ajudar os grandes devedores privados a pagar suas dívidas externas, o Estado reavivou os títulos da dívida pública com correção cambial, a antiga fórmula jurídica da moeda do Banco Central, a qual tem duplo comportamento. O devedor compra esses títulos pagando em reais, mas, juridicamente, eles valem dólares. No fundo, o Estado brasileiro ficou responsável pelo chamado risco cambial, pelo problema decorrente das eventuais desvalorizações da moeda nacional. Se o real passasse a valer menos, o Estado teria que despender mais reais, quando o financista-empreendedor precisasse converter os títulos em dólar para pagar suas dívidas lá fora. Por esse motivo, no final de 1998, Fernando Henrique pronunciou o famoso discurso no Palácio do Itamaraty, a sede do Ministério das Relações Exteriores, que daria origem à Lei de Responsabilidade Fiscal. Nele, comprometeu o Estado a realizar uma política de arrocho nos salários dos funcionários, no custeio da máquina pública e nos investimentos estatais. E a se empenhar num furor arrecadatório. Tudo para garantir os reais necessários para sustentar o novo sistema de dívida pública. O período de 1999 a 2004 foi de transição no processo da formação das grandes multinacionais brasileiras. Nesse intervalo, o grupo Votorantim, que, ao fracassar na batalha pela Vale, perdeu a chance de tornar-se uma multinacional de minério, tornou-se multinacional no setor de cimento e concreto, como já visto. É desse período também a sugestiva história da formação da multinacional Gerdau. Jorge Gerdau Johanpeter faria parte, hoje, de uma seleta turma com “acesso fácil” ao presidente Lula, diz o Correio Braziliense. O grupo, segundo o jornal, é pequeno. Além de Gerdau, inclui Roger Agnelli, Davi Feffer (do grupo Suzano), Emílio Odebrecht (do RETRATO DO BRASIL | nO 9 Odebrecht). Sérgio Andrade (do Andrade Gutierrez) e Paulo Godoy (presidente da Associação Brasileira de Infra-estrutura e Indústria de Base). A história contada pelo CB parece plausível. Na entrevista da ministra Dilma Rousseff a Valor Econômico, várias vezes citada nesta edição, ela diz que “a Suzano chegou e disse que agora quer concentrar seu negócio em papel e celulose”. “E insistiu bastante com a Petrobras”. A ministra estava contando a história da compra da Suzano, de Davi Feffer, pela Petrobras, que é parte do movimento que teve o aval do Palácio do Planalto e com o qual a estatal e a Odebrecht, outro grande player nos negócios multinacionais brasileiros, reorganizaram o setor petroquímico do País. Gerdau, de acordo com o CB, é “de longe o mais influente” do grupo de empreendedores consultados amiúde pelo Planalto. Ele foi convidado e recusou assumir um posto no Ministério quando Lula iniciou seu segundo mandato. No final de 2006, seu grupo era o décimo quarto do mundo em volume de produção de aço, com 15,6 milhões de toneladas. GERDAU CHEGA AO TOPO Ele vem de longe. Comprou pechinchas estatais já no início da privatização, no governo Sarney. Com a Açominas, deu um salto A aquisição no Brasil da gigantesca Aço Minas Gerais (Açominas), uma das empresas do sistema Siderbrás, a holding estatal da siderurgia, contribuiu para a consolidação do grupo Gerdau como player na produção mundial de aço. O grupo tem mais de um século. João Gerdau, avô de Jorge, começou com uma fábrica de pregos em 1901. Em 1940, época em que Getúlio Vargas estava articulando a CSN, comprou a Siderúrgica Riograndense. A entrada em operação da CSN em 1946 foi o grande marco da siderurgia nacional. Com a criação do BNDES no segundo governo Vargas, a siderurgia passou a contar então com um agente financiador e o banco tornou-se sócio das empresas. Em 1956, nasceu a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), com recursos do BNDES e do governo paulista. No mesmo ano, foi criada a Usina Siderúrgica de Minas Gerais (Usiminas), com capitais privados nacionais, japoneses, do governo mineiro e do banco. Nos anos 1970, como parte do plano dos governos militares para desenvolver o País, o setor estatal siderúrgico foi reorganizado. Em 1974, surgiu a Siderbrás, que comprou a preço simbólico a participação que o BNDES tinha nas diversas empresas. A Açominas é da época da Siderbrás. Foi inaugurada nos anos 1980, quando também se completou o quadro das grandes estatais do setor, com a Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), no Espírito Santo. A essa altura, no entanto, o sistema Siderbrás estava amplamente endividado e praticamente não investia. O governo federal, enrolado na crise da dívida externa, utilizara suas empresas para gerar projetos que captassem recursos externos. A maioria desses projetos encalacrou; não tinham sido feitos levando em conta todas as condições para sua realização efetiva. Em 1990, após a posse de Fernando Collor, a Siderbrás foi extinta e o BNDES assumiu papel oposto ao que desempenhara anteriormente. Foi designado como gestor do programa de privatização. Todas as grandes estatais foram vendidas nos anos 1990. A Gerdau adquiriu a Açominas num longo processo de falência, não apenas do projeto siderúrgico dos militares, mas de seu próprio projeto nacional. O objetivo dos banqueiros que emprestavam dinheiro ao País era conseguir rolar a dívida externa brasileira com novos empréstimos. Os grandes projetos dos governos dos presidentes militares dessa época, os generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, envolviam sempre grandes compras de equipamentos no exterior. E os empréstimos tomados para esses projetos sempre incluíam DEPENDÊNCIA 15 RETRATO DO BRASIL | nO 9 Caio Guatelli/Folha Imagem O presidente e Gerdau: o empresário não foi ministro porque não quis créditos para comprar os equipamentos dos grandes fabricantes internacionais e dólares chamados “livres”, que eram usados para a rolagem da dívida. Com isso, os governos militares tocavam o País e os fornecedores de equipamentos e banqueiros ganhavam algum enquanto o sistema agüentava. O sistema se manteve precariamente até 1982. Nesse ano, o Brasil quebrou. As estatais, a essa altura, estavam também quebradas. Açominas, trampolim do Gerdau Fez-se, então, um novo esquema. Por força de acordos com o FMI, o Estado brasileiro parou de financiar as estatais. E começou a discutir a venda dessas empresas. No ramo siderúrgico, a privatização começou já no primeiro governo após os militares, na Nova República. Em 1988, ainda durante a administração do presidente José Sarney, foram privatizadas siderúrgicas de menor porte. O grupo Gerdau começou sua ampliação por ai. Foi um dos principais compradores dessas usinas, junto com o Villares, outro dos grandes grupos siderúrgicos do setor privado, depois vendido a estrangeiros. No entanto, foi a aquisição da Açominas que parece ter sido a operação que impulsionou o grupo Gerdau para ser uma multinacional. A Açominas era um dos megaprojetos do governo Geisel. Junto com a Ferrovia do Aço se voltaria para atender os setores envolvidos em processos industriais mais avançados. Fabricaria aços especiais para a construção civil. A Ferrovia deveria unir os três grandes centros industriais do País, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Por ela, circulariam o minério de ferro e os aços elaborados para os diversos tipos de indústria pelas usinas siderúrgicas estatais dos três locais, CSN, Açominas, Usiminas e Cosipa. Empenhado em manter o crescimento da economia no ritmo acelerado do período do “milagre brasileiro” (1968-1973), quando a economia brasileira cresceu em média a 10% ao ano, o general Geisel, que procurava afastar-se da órbita americana, fechou acordos de financiamento para a compra de equipamentos com governos da Europa e do Japão. No caso da construção da Açominas, esses financiamentos externos somaram cerca de 1 bilhão de dólares. O orçamento completo para a construção da Açominas, entretanto, pulou de 1,8 bilhão de dólares em 1976 para mais de 3 bilhões de dólares em 1997 e cerca de 7 bilhões de dólares em 1986, quando ela afinal começou a operar com seis anos de atraso em relação ao cronograma original. Os equipamentos mais sofisticados da siderúrgica haviam sido adquiridos no exterior. Parte fora instalada, embora nem tudo funcionasse. Antes de levá-la a leilão, em 1993, o governo fez com a Açominas o que se tornaria regra das privatizações – assumiu a maior parte de suas dívidas. Vendeu a empresa por muito menos do que investiu, cerca de 800 milhões de dólares, 600 milhões em dinheiro e títulos, mais um pedaço pequeno da dívida deixada com a companhia, de 200 milhões de dólares. O comprador principal, que assumiu o controle da companhia, foi o grupo organizado em torno da empreiteira mineira Mendes Júnior. Hoje, depois de mais de 20 anos de crise, que incluíram 300 pedidos de falên- >> 16 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 RETRATO DO BRASIL | nO 9 DEPENDÊNCIA 17 18 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 Tadeu Bianconni/ Divulgação / Vale Agnelli com os chineses da Baosteel: a Vale se arma contra a Gerdau >>cia num só ano, o grupo mineiro é uma sombra do que foi no período dos governos militares quando, junto com a Petrobras e outros grupos, foi para o Iraque, onde realizou grandes obras. Em 1995, o Mendes Júnior deixou o controle da Açominas. O passo decisivo da Gerdau A Gerdau entrou como acionista da siderúrgica num acordo com o grupo NatSteel (de Cingapura), em 1997. Investiu 75 milhões de dólares (o sócio cingapurense colocou 70 milhões). A direção do projeto ficou com uma espécie de fundo público (o Fundo de Participação Acionária dos Empregados da Açominas) financiado pelo BNDES, que fez parte do consórcio liderado pelo Mendes Junior na época da privatização. Em 1998, o Brasil quebrou de novo e a Açominas entrou em nova crise. Foi quando a Gerdau deu o passo decisivo para sua aquisição. Com mais 135 milhões de dólares, ficou com 36% do capital da empresa. No final de 2000, quando o Banco Econômico, que também tinha parte da empresa, fechou após intervenção federal, o Banco Central vendeu os 17% da Açominas que possuía para a Gerdau, que, conseqüentemente, assumiu seu controle. Em entrevista publicada pela revista semanal CartaCapital em janeiro deste ano, Jorge Gerdau explica que o baixo crescimento da economia brasileira é um dos principais fatores que levaram à internacionalização da produção do grupo. De acordo com o ex-presidente do Instituto Bra- sileiro de Siderurgia, Luís Vicente, o consumo per capita de aço no Brasil mantémse em torno de 100 kg desde o início da década de 1980. A compra de empresas no exterior foi esporádica até que o grupo completasse a digestão da gigante mineira – foram apenas três usinas adquiridas entre 1980 e 2002, no Uruguai, Chile e Canadá. As compras dispararam nos anos recentes, especialmente nos EUA. Hoje, o grupo Gerdau tem mais de 50 usinas, acima de um quarto delas em território nacional. As demais estão espalhadas por 12 países das Américas e da Europa. Emprega mais de 35 mil funcionários, 40% deles no Brasil. Obteve em 2006 uma receita de 12,6 bilhões de dólares. Do total produzido, quase 75% são dirigidos ao mercado externo, incluindo os 30% que são exportados da produção realizada em território nacional. As estatais chinesas, no conjunto, são hoje os grandes produtores mundiais de aço. A China está produzindo a um ritmo que chegará a 480 milhões de toneladas de aço até o fim do ano, em amplíssima medida para seu mercado interno. Na sua busca por negócios fora do País, o grupo Gerdau almeja agora o mercado chinês. De acordo com o Jorge Gerdau, a dificuldade maior está na política de Pequim, que não permite que as usinas siderúrgicas locais sejam compradas por estrangeiros. “É da própria natureza do setor siderúrgico na China trabalhar em associação”, explicou Gerdau em entrevista publicada em O Estado de S. Paulo. A principal estatal chinesa é a Baosteel, que produz 22,5 milhões de toneladas anuais e que, como vimos, associou-se à Vale para construir uma siderúrgica no estado do Espírito Santo. A multinacional estatal chinesa, portanto, está ligada a uma multinacional brasileira, disputando com a concorrente Gerdau, outra multinacional brasileira. OS CAUBÓIS VERDE-AMARELOS As multinacionais brasileiras do agronegócio representam a grande vantagem comparativa global do País? A mais recente e espetacular de nossas multinacionais é a Friboi, que atua no mercado de carnes bovinas, um ramo do agronegócio. É nesse setor que alguns localizam nossa grande vantagem comparativa global, porque temos terra, matas, pastos, sol, uma taxa de fotossíntese insuperável e coisas do gênero. A doutrina de que os países devem se especializar naquilo que produzem melhor é do inglês David Ricardo (1762-1823) e foi chamada de “teoria das vantagens comparativas”. O próprio Ricardo usou como exemplo o relaci- onamento que havia no começo do século XVIII entre seu país, a Inglaterra, e Portugal. Essa relação era disciplinada por uma série de acordos dos quais o mais famoso foi o Tratado de Methuen, de 1703. Segundo Ricardo, os dois países eram parceiros comerciais. Cada um, segundo sua teoria, deveria produzir o que fazia de forma mais eficiente. Portugal, dizia ele, era um produtor de vinhos relativamente mais eficiente do que de tecidos. E a Inglaterra era mais eficiente na produção de tecidos do que na de vinhos. DEPENDÊNCIA 19 EM BRUTO Ao contrário da Argentina, que elevou a exportação de soja industrializada, o Brasil, cada vez mais, manda para fora o produto na forma de grão 2008* 2006 2007 2005 2004 2003 2002 2001 2000 O AGRONEGÓCIO BRASILEIRO pode contribuir com cerca de 40 bilhões de dólares para minorar o desequilíbrio das transações correntes do País neste ano. Esse volume de dólares é fruto de uma projeção do saldo da balança comercial do agronegócio feita a partir do resultado do primeiro trimestre de 2008. Boa parte desse saldo, no entanto, é de exportações de produtos não elaborados. Na carne bovina, por exemplo, as exportações de carne bruta são mais de 80%. No caso da soja, a situação parece piorar. O complexo da soja – em grão, farelo e óleo – é o terceiro item da pauta de exportações do agronegócio em valor exportado, e as vendas externas também são crescentes. A exportação da soja em grão, cujo pre11 ço alcançou máximas his10 tóricas na bolsa de ChicaGrão 9 go, cresceram mais de 10 8 vezes desde 1996. Mas 7 EXPORTAÇÃO DE SOJA E 6 farelo e óleo, produtos DERIVADOS NO BRASIL, EM US$ BILHÕES (1996-2008) 5 com maior valor agrega4 do, tiveram sua produção Farelo 3 e comércio quase estag2 Óleo nados, com modesto cres1 cimento. Na Argentina, 0 ocorreu o movimento contrário, com o forte crescimento das vendas * estimativa / Fonte: Valor Econômico de farelo e óleo. 1999 No livro Imperialismo, da era colonial ao presente (Zahar Editores, 1979), o economista americano Harry Magdoff critica a teoria de Ricardo. Ele diz que o Tratado de Methuen é o quarto de uma série, celebrada entre os dois países, que começou em 1642, logo após Portugal livrar-se de um período de 60 anos sob domínio espanhol, e que Methuen é apenas o coroamento de um processo de divisão internacional do trabalho que ele qualifica ironicamente de “ideal”, “festejado até hoje como exemplo ímpar das virtudes de leis econômicas independentes e objetivas”. Magdoff explica que, para manter seu império, que se espalhava por América, África e Ásia, e, tendo a Espanha como ameaça, Portugal fez sucessivas e cada vez mais amplas concessões econômicas e militares aos ingleses. Antes do Tratado de Methuen, por exemplo, Portugal ainda tinha uma indústria têxtil, com incentivos locais e protegida da concorrência inglesa por leis internas que proibiam a utilização de tecidos estrangeiros. Após Methuen, foram eliminadas as restrições legais aos tecidos e aos produtos de lã ingleses. Em troca, a Inglaterra reduziu as tarifas aduaneiras dos vinhos portugueses em comparação com os franceses, a despeito de esses serem os vinhos dominantes no mercado inglês. “Como decorrência do tratado, a economia de Portugal, com sua concentração no vinho e ausência de indústria manufatureira que lhe teria dado maior flexibilidade econômica, tornou-se crescentemente dependente da economia britânica.” Portugal pagou a conta dessa dependência com o ouro que extraiu do Brasil, diz Magdoff. Ele cita o historiador inglês Christopher Hill: “Especialmente após a assinatura do Tratado [de] Methuen em 1703, o comércio português, em especial do ouro do Brasil, contribuiu para transformar Londres no mercado mundial de ouro em barra.” Magdoff conclui: “Esse fato se cons- 1998 O Brasil pagou a conta tituiu em um estímulo valioso para a conquista, pela Inglaterra, da situação de banqueiro mundial e de principal nação capitalista.” É como se Portugal fosse uma empresa mineradora que extraía ouro do Brasil e tentasse, com esse ouro, pagar sua dependência da Inglaterra. O resultado é que o Brasil ficou sem ouro. E Portugal nem sequer quitou a conta com a Inglaterra. Como se sabe, fez parte do acordo da independência do Brasil, em 1822, uma negociação tripartite, pela qual nosso país assumiu a dívida de Portugal com a Inglaterra. A JBS-Friboi, a nova multinacional brasileira, apareceu em grande estilo para o público em meados do ano passado, quando anunciou a compra da Swift por 1,4 bilhão de dólares. O negócio, de fato, tem mais a ver com o surto de especulação financeira dos anos pós2005 no Brasil do que com nossas supostas vantagens comparativas. A Swift chegara ao Brasil na época da Primeira Guerra Mundial. Era americana e foi criada por caubóis empre- do BNDES e dos fundos 1996 De acordo com Ricardo, cada um dos países deveria usar seus recursos de modo a obter a maior produção de tecidos e de vinhos. Se Portugal pudesse obter vinho e tecidos investindo tudo na produção de vinhos e importando tecidos, esse seria o melhor caminho para o país. No caso da Inglaterra, o oposto: ela obteria tecidos e vinhos investindo na produção de tecidos e importando vinhos. Num sistema de livre comércio, concluía Ricardo, ambos tirariam o máximo proveito de suas vantagens comparativas. José e um dos filhos: a Friboi tem apoio 1997 Tininho Júnior / O Diário de Barretos RETRATO DO BRASIL | nO 9 20 DEPENDÊNCIA Ometto (centro, de óculos ): o impulsivo empreendedor criticou a ministra mente os movimentos de capitais a que o País está submetido. Que vantagens o BNDES e fundos públicos vêem ao incentivar o processo de fusão de empresas que implica um aumento do endividamento nacional? Ainda apoiado pelo BNDESPar e pelos fundos de pensão, o grupo JBS fez novas aquisições no exterior em março deste ano. Comprou a National Beef, a Smithfield Beef, americanas, e o Tasman Group, da Austrália, por 1,7 bilhão de dólares. Com isso, tornou-se a maior empresa abatedora e de vendas de carne bovina do mundo. Por que este e não outro? Mas e daí? A JBS enfrenta visíveis dificuldades no momento. No fim de fevereiro, rolou a dívida, de 750 milhões de dólares, que contraiu com os bancos para financiar a compra da Swift. Por que o BNDES e os fundos apoiaram seu novo endividamento? Um dos argumentos para emprestar ao JBS é o de que se trata de grupo do agronegócio e o Brasil tem vantagens comparativas excepcionais nesse setor. Como vimos, essa é uma conversa antiga. E, a nosso ver, equivocada. Vem dos tempos em que a Holanda financiava os portugueses que exploravam cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro à base de trabalho escravo dos negros africanos. E, já na época, embora os termos fossem outros, não havia interesse nacional brasileiro nessa história. Além do mais, o agronegócio tem inúmeros setores que poderiam ser incentivados de inúmeras formas. Por que incentivar este grupo e não aquele outro? O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Marcio Pochmann, por exemplo, defende que o governo crie uma estatal para produzir biocombustíveis e aproveite os altos preços do petróleo e da energia em geral. Nesse setor, está em curso um extraordinário movimento de fusões e incorporações comandado, de um modo geral, pelo capital privado internacional. A ação mais espetacular nesse campo, no entanto, é de um empresário brasileiro, Rubens Ometto, dono da Cosan, a maior empresa de produção de açúcar e álcool do País. Ometto é de uma família tradicional de usineiros paulistas. É um financista, no entanto. Já foi, por exemplo, diretor do Unibanco. E ergueu a Cosan ao primeiro posto do setor com uma agressiva política de endividamento. No fim de 2005, como muitos outros empresários, ele viu a perspectiva de obter dinheiro mais barato na Bolsa. Abriu o capital da empresa na Bovespa vendendo 26,7% da companhia em dezembro daquele ano, com o que conseguiu 740 milhões de reais. Com isso, no entanto, admitiu na sua própria empresa minoritários que podiam querer tomar o seu lugar de controlador num novo movimento de expansão que fosse executado por ela. Com certeza, havia gente na praça com essa idéia. Os quatro grandes grupos mundiais do agronegócio, Archer Daniels Middland (ADM), Bunge, Cargill e Dreyfus, têm todos posições no agronegócio brasileiro e manifestaram interesse concreto no setor de biocombustíveis. O americano ADM, por Divulgação endedores da região de Chicago em meados do século XIX. Em 2002, já era comandada por financistas: passara ao controle de um fundo de investimentos, o HMTF (Hicks, Muse, Tate & Furst), com sede em Dallas, no Texas, conhecido no Brasil por seus negócios no futebol. Investiu no Corinthians, de São Paulo, e no Cruzeiro, de Belo Horizonte. Os que adquiriram a companhia, José Batista Sobrinho (JBS) e seus três filhos, são de Anápolis. Caubóis goianos, como os chamou a revista de negócios Exame. O pai fundou a Friboi em 1953. No período de 1982 a 2002, de estagnação da economia do País, comprou aqui diversas empresas nacionais e estrangeiras em crise. E, em 2005, já reestruturada como JBS S.A., a companhia deu seu primeiro grande passo para fora. Comprou por 225 milhões de dólares a Swift Armour argentina. A Armour junto com a Swift, a Anglo e a Wilson eram empresas de capitais americanos e ingleses que participaram da primeira grande incursão dos capitais internacionais no setor de carnes na América do Sul, no Brasil e, especialmente, na Argentina. A JBS foi um dos personagens do extraordinário movimento na Bolsa de Valores de São Paulo no primeiro semestre do ano passado. Em maio, realizou uma oferta pública de ações, concertada com o BNDESPar e com os grandes fundos de pensão das estatais, com os quais conseguiu cerca de metade do dinheiro para comprar, logo depois, a Swift americana. A outra metade veio de uma operação de curto prazo com quatro grandes bancos. O que a JBS e seus apoiadores fizeram a seguir deve ser visto com algum detalhe para entender a questão das chamadas multinacionais brasileiras dentro da economia nacional. Como se sabe, o cenário internacional se deteriorou a partir do segundo semestre de 2007. Ainda no início deste ano, no entanto, tanto o Banco Central como a Presidência da República, como mostramos em nossa edição do mês passado, difundiram a idéia de que a situação das contas nacionais era maravilhosa e que tinha sido encerrado o capítulo da dependência externa. Como os fatos logo demonstraram, isso não era verdade. Está em curso um grande movimento de desequilíbrio nas contas externas e o governo deveria analisar detida- RETRATO DO BRASIL | nO 9 DEPENDÊNCIA 21 RETRATO DO BRASIL | nO 9 exemplo, anunciou explicitamente seu interesse em comprar a Cosan. Ometto tentou fazer a Cosan dar um novo salto no segundo semestre de 2007, já em meio à profunda crise financeira internacional. Criou uma empresa, a Cosan Limited, com sede nas Bermudas, um paraíso fiscal. Mudou as regras da captação para garantir que ficasse com o controle, criando um tipo de ação especial para si mesmo, a exemplo do mecanismo que garante aos empresários que criaram a Google o controle da empresa, mesmo tendo menos de 20% do total das ações da companhia. E tentou captar 2 bilhões de dólares na Bolsa de Nova York. Ometto parece ser um cidadão impulsivo. A revista Época narra o que disse durante reunião no Palácio do Planalto na qual ele criticou a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, por sua falta de interesse em apoiar a geração de energia elétrica pelas usinas de açúcar e álcool a partir do bagaço da cana, para evitar a ameaça de apagão, também no segundo semestre de 2007. “Dilma, eu não vim aqui dizer o que a senhora quer ouvir, mas para falar o que deve ser dito. A senhora está pisando no lodo e não sabe o que tem debaixo dos pés”, teria dito ele. não ter muitas ilusões. Dos três irmãos que controlam a empresa com mais de 60% das ações, dois vivem no Colorado (EUA). Há uma enorme disputa pelo agronegócio brasileiro. O setor de carne bovina não é nem o maior, nem o mais importante. De cada 100 kg que exporta, 80 kg são de carne in natura. A Perdigão, sob controle de fundos de pensão, e a Sadia, controlada pela família do ex-ministro Luiz Furlan, são as duas grandes empresas do setor de carnes em geral, com destaque para a carne de frango, da qual o Brasil é o maior exportador mundial. As duas empresas são basicamente industriais e exportam uma variedade muito grande de produtos. Nesse sentido, são mais importantes. E para o setor de biocombustíveis em particular? Por que não criar uma estatal, por meio da Petrobras? A petroleira tem em andamento alguns projetos de produção de álcool em associação com cooperativas agrícolas, que favoreceriam os pequenos produtores. Para a produção de biodiesel, uma estatal pode ser a principal esperança de que se desenvolva a cultura da mamona, tanto defendida pelo presidente Lula e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário há pouco tempo e até agora praticamente esquecida. A safra de mamona caiu de 2006 para 2007. O presidente – compareceu a três lançamentos das unidades de produção da Brasil Ecodiesel, que anunciava com grande estardalhaço a produção de biodiesel a partir de óleo de mamona, mas demitiu Ildo Sauer, o diretor da Petrobras que criou os dois programas da estatal citados. Não por acaso, Sauer foi o principal teórico do PT na formulação de um plano para aproveitar as vantagens comparativas do País na geração de energia elétrica em benefício da grande maioria da população. E foi afastado da direção da Petrobras também por sua política de crítica ao mercado livre de energia, no qual os grandes empresários se apropriaram, a preços baixos, do excesso de energia das estatais criado com a redução do consumo após o racionamento de 2001-2002. PORQUE REINVENTAR A RODA Uma estatal de biocombustíveis? Parece claro que Ometto é um empresário empreendedor e corajoso. O lançamento da Cosan Limited na Bolsa de Nova York é uma prova disso. Ele conseguiu praticamente a metade do que pretendia, 1,05 bilhão de dólares. É preciso entender, entretanto, que o lançamento foi feito, como conta a revista Época, num momento tão ruim que o órgão regulador do mercado americano, a SEC, poderia impedi-lo. Ometto tinha de esperar três minutos após o início das operações da Bolsa “para receber sinal verde” para a operação. Teria sido a primeira vez que uma empresa lançou ações após a abertura do pregão. Todo mundo achou que ele abortaria a operação, diz a revista semanal brasileira. Por que o governo apoiou a JBS e não a Cosan Limited? A JBS Friboi pode encher de orgulho os que acham importante dizer que “o Brasil tem a maior empresa de abate e venda de carne bovina do mundo”. No momento, o custo concreto dessa afirmação é um aumento do endividamento externo do País. No ano passado, a empresa deu prejuízo. Quanto à remessa de lucros futuros, que em tese viriam das filiais no exterior para os seus donos – para o Brasil, portanto –, é preciso Apesar do sucesso comercial da Embraer, sua história mostra uma atuação limitada com relação a um campo crítico, o da defesa O presidente da General Motors no Brasil, Ray Young, disse no início do ano passado ao jornal Valor Econômico , em nosso País, “a prioridade são as commodities” e, na China, “a prioridade é proteger a indústria”. “A China briga por contratos de transferência de tecnologia”, disse. Seguramente, o executivo da multinacional americana estava se referindo à necessidade de proteger mais a indústria automobilística estrangeira instalada no Brasil, da qual é um dos dirigentes. E, possivelmente, não estava sugerindo que aqui se adote uma política de transferência de tecnologia como a da China – que levou aquele país a ter uma poderosa indústria automobilística nacional, ao contrário daqui, onde, atualmente, não há sequer uma pequena montadora de automóveis brasileira. A relação da tecnologia com o modelo de desenvolvimento e com uma política de incentivo à formação de multinacionais nos vários setores da economia é complexa. Há quem defenda que o Brasil se especialize no agronegócio, em que teria atualmente um altíssimo nível de desenvolvimento tecnológico. Embora consideremos essa formulação questionável, por ora pretendemos destacar o problema da tecnologia apenas com relação a duas das grandes empresas verde-amarelas (nossa edição de número onze tratará especificamente da dependência tecnológica do País): à Embraer, considerada a nossa mais bem-sucedida multinacional tecnológica, e à das telecomunicações, que se anuncia. Começamos pela Embraer. Seus aviões representam cerca de um terço dos produtos de alta tecnologica exportados pelo Brasil. E a empresa tem um papel potencial relativo a um aspecto que não pode deixar de ser levado em conta quando se fala em multinacionais do País: a defesa nacional. 22 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 Divulgação/ Embraer Yokota, da Embraer: aviões executivos para os ricos e muito ricos Embora a Embraer seja privada e mais de 55% de suas ações sejam negociadas na Bolsa de Valores de Nova York, trata-se de uma empresa construída como uma estatal federal, dentro de um plano de defesa nacional. Ela foi fundada no Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA), em São José dos Campos. O CTA foi criado no governo Vargas, em 1946, pelo brigadeiro Casimiro Montenegro. Com o golpe militar de 1964, Montenegro foi afastado. Seu superior, o brigadeiro Eduardo Gomes, ministro da Aeronáutica do primeiro governo militar, era um liberal. Achava as idéias nacionalistas de Montenegro atrasadas. O CTA deveria ser um centro de reparo de aviões e não tentar reinventar a roda, produzindo aviões. Mudar para fugir da sobretaxa Bagageiro ideal para tacos de golfe Em 1969, no governo militar seguinte, mais repressivo e mais nacionalista, a Embraer foi criada, e o CTA se envolveu num grande esforço de pesquisa avançada sobre materiais e processos relacionados com a defesa nacional. Em meados de março, Retrato do Brasil foi à sede da companhia, em São José dos Campos. A empresa, que tinha apenas 400 funcionários nos anos 1970, hoje emprega mais de 23 mil. Na sede, são 14 mil, 70% com segundo grau técnico, 25% universitários, 5% pósgraduados, mestres ou doutores. Durante a visita, a repórter de RB circula por três enormes hangares. Em um, vê a fuselagem de dois ERJ 145, para transporte de 37 a 50 passageiros, sendo pintadas de branco. Noutro, seis aviões da família de jatos 170/190, para entre 70 e 122 assentos, já devidamente pintados, com os logotipos de companhias aéreas de vários cantos do mundo e a barriga carregada de cabos elétricos, motores e sistemas. Num terceiro, quatro jatos executivos recebem os últimos retoques de funcionários de touca, botas e luvas de pano. Um deles explica: a indumentária é necessária para preservar o ambiente, porque os clientes, que pagam entre 3 milhões e 27 milhões de dólares pelos jatinhos, devem ter a impressão de serem os primeiros a tocar neles. Ele mostra à repórter uma maquete em tamanho natural do Phenom 300, um dos últimos lançamentos da empresa, que foi apresentado no 1º Athina Onassis de ações ordinárias. Seus principais sócios são atualmente o Previ, com 13,9% do capital, o Grupo Bozano, Simonsen, com 8,7%, o BNDESPar, com 5%, e a União, com 0,3%. Em 2006, a partir de um lucro líquido consolidado de quase 622 milhões de reais, a Embraer distribuiu a seus acionistas, sob a forma de juros sobre o capital próprio e dividendos, mais de 327 milhões de reais, equivalentes a R$ 0,44 por ação ordinária. Os acionistas estrangeiros ficaram com a maior parte, aproximadamente 55,10% do total (o valor é aproximado, porque são descontados impostos). International Horse Show, em agosto de 2007, na Sociedade Hípica Paulista. Seu interior foi desenhado pelo BMW Group Design Works. “O bagageiro é ideal para pôr os tacos de golfe e os esquis. Foi feito na medida para este tipo de cliente”, explica. “A privatização foi a tábua de salvação da empresa”, diz Satoshi Yokota, vice-presidente-executivo de Planejamento Estratégico e Desenvolvimento Tecnológico da Embraer. Ele ingressou na empresa em 1970. Diz que, antes da privatização, “a Embraer estava afundada em dívidas e seus produtos estavam ficando obsoletos”. Com a privatização, passou a ser controlada pelo Bozano, Simonsen, um grupo financeiro associado aos fundos de pensão Previ e Sistel. O BNDES, como é hábito, apoiou ativamente o processo: após a privatização, emprestou cerca de 100 milhões de dólares à empresa para ajudá-la no desenvolvimento de novos jatos. Em 2003, o Bozano, Simonsen vendeu 20% das ações ordinárias da companhia a um consórcio formado pela Dassault Aviation, Aérospatiale Matra, Thompson CFS e Snecma, empresas do setor de defesa francês. Teve enorme lucro: no leilão de privatização tinha pago R$ 2,14 por ação. Vendeu por R$ 8,27. Os franceses venderam sua parte em 2006. A Embraer foi então reestruturada. Seu capital social passou a ser composto apenas Graças ao lançamento da família de aviões entre 70 e 120 lugares, a Embraer é hoje a terceira maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo, atrás da americana Boeing e da européia Airbus. Yokota diz, no entanto, que essa posição pode não se manter. Empresas chinesas, japonesas e russas também já desenvolvem aviões para mais ou menos a mesma faixa de mercado. A Embraer tem uma joint venture com a estatal chinesa Harbin Aviation Industry para fabricar e reparar aviões na China. A sede da joint venture é a cidade de Harbin. Lá, fica a única unidade fabril da Embraer fora do Brasil. Foi inaugurada em 2003. A Embraer tinha feito uma primeira grande venda de aeronaves prontas para a China. O governo chinês passou a sobretaxar a importação de aviões com até 100 assentos. E a produção no local, em associação com os chineses, foi a saída para continuar no mercado de lá. Exceto 18 aviões já produzidos na China, todos os outros são montados no Brasil. Nos últimos dez anos, a Embraer cresceu entre 10% a 15% ao ano. “Em 1996 vendemos perto de 500 milhões de dólares. Em 2007, foram 5,2 bilhões, quer dizer, crescemos dez vezes em onze anos”, diz Yokota. Das receitas da empresa, 99,4% vêm das vendas externas. A aviação para o transporte de passageiros respondeu por 64,4% do total faturado. Só a aviação executiva, inaugurada apenas em 1999, foi responsável por 16%. “No Oriente Média, na Rússia, na China e também no Brasil, tem havido um crescimento significativo dos ricos e dos muito ricos, ou das empresas que, por dificuldades do transporte aéreo regular precisam de jatos executivos”, explica Yokota. O primeiro avião produzido pela Embraer foi comercial, o Bandeirante, utili- DEPENDÊNCIA 23 RETRATO DO BRASIL | nO 9 EUA vetaram venda a Chávez “Como todos os fabricantes de avião, a Embraer é uma montadora, uma integradora”, explica Yokota. “É uma tendência quase universal. Veja os fabricantes de tênis. Praticamente, nenhum faz seus próprios tênis. Eles contratam. As empresas têm de se concentrar naquilo em que são fortes. E qual é o forte da Embraer? É concepção, entendimento de mercado, marketing, engenharia, gestão”, argumenta. O fato de depender de tecnologias originárias de outros países traz problemas para VINTE EM QUATRO Um exemplo de concentração de capital nas empresas multinacionais, o das que atuam na área de defesa nos EUA (GD Space) Lockheed Martin Northrop Grumman Boeing Boeing Rocwell McDonnell Douglas Magnavox Hughes (Hughes Space) (Hughes Eletronics) E-Sistems Raytheon Texas Instruments Raytheon 1990 1995 2000 2002 Fonte:The Economist (20/6/2002) General Dynamics (GD Fort Worth) GE Aerospace Martyin Marietta Lockhead Loral LTV Grumman Northorp Westinghouse Litton TRW Nos anos 1990, sob a orientação do Departamento de Defesa do país, diz a revista The Economist, fez-se a consolidação do já reduzido grupo de 20 empresas do setor: quatro empresas mais fortes engoliram as menores os negócios da multinacional brasileira. Em 2006, o governo americano proibiu a Embraer de vender 36 aviões para a Venezuela. O governo de Hugo Chávez compraria 12 AMX-T, última geração da família Tucano, por 300 milhões de dólares, e 24 patrulheiros Super Tucano, por 170 milhões. Segundo a revista IstoÉ Dinheiro relatou na época, uma autoridade do Departamento de Estado americano comunicou à diplomacia brasileira, em Washington, que seu país havia decidido vetar essa venda. Caso a Embraer insistisse, os EUA obrigariam empresas americanas a interromper o fornecimento de componentes para seus aviões, inclusive civis. Vários itens importantes do Tucano são produzidos por empresas americanas ou de países muito próximos dos EUA. O motor Super Tucano e Phenom: avião de defesa é problema. O de luxo, sucesso Divulgação/Embraer zado em rotas regionais. Depois, veio o Xavante, produzido sob licença da Aermacchi italiana, para missões militares de treinamento e ataque. Hoje, a empresa fabrica, além dos jatos comerciais e dos executivos, os aviões de defesa Tucano, para treinamento e ataque leve, o EMB 145 AEW&C, de alerta aéreo antecipado e controle, o EMB 145 RS/ AGS, para sensoreamento remoto e vigilância ar-terra e o PP-99, de patrulha marítima e guerra anti-submarina. As vendas das aeronaves de defesa respondem por 6,6% das receitas da empresa. Considerando as receitas em todos os segmentos, os americanos podem ser vistos como clientes especiais. Em 2007, a Embraer vendeu 103 aeronaves para os EUA e 103 para todos os outros destinos somados. Os americanos também são especiais quando se trata do fornecimento de peças. Dependendo da aeronave, entre 60% e 70% dos componentes são importados. Turbinas, asas, computadores de bordo, sistemas de controle de combustível, de iluminação, hidráulicos e de visão noturna são fabricados na Bélgica, Inglaterra, França, Estados Unidos e Israel. 24 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 zônia colombiana. E, quase um ano depois, na madrugada de 1º de março deste ano, aeronaves Super Tucano da Força Aérea Colombiana invadiram o espaço aéreo do Equador e atacaram um acampamento das Farc situado cerca de dois quilômetros dentro daquele país, num dos mais graves incidentes diplomáticos recentes no continente. Como se vê, as questões relacionadas com a defesa nacional são muito sérias e ajudam a entender porque a Embraer parece conformada a explorar um campo menos explosivo. O País quer ter uma empresa multinacional no campo da defesa militar? Desde que os índios perderam para Portugal o território que é hoje o Brasil, por conta de seus canhões e caravelas, sabe-se que uma independência nacional efetiva não se constrói apenas com boas intenções. A EMENDA E O SONETO A Telebrás poderia ter sido uma múlti das telecomunicações. A tele verde-amarela parece um remendo no plano de privatização do setor A tele verde-amarela que está sendo gestada nos últimos meses pode ser enxergada como um esforço do governo Lula no sentido de reorganizar amplamente o setor depois da grande privatização do final dos anos 1990. Antes desse processo, as estatais representavam pouco menos de 100% do faturamento geral nas telecomunicações brasileiras, aí incluídas as contas da telefonia celular. Essa inclusão é importante quando se quer debater corretamente a privatização do setor: as estatais também já desenvolviam a telefonia móvel em ritmo espetacular. Entre 1994 e a privatização, as linhas de celulares cresceram a taxas entre 50% a 100% ao ano, pulando de 800 mil para 7,4 milhões. O sistema Telebrás incluía o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CpqD), considerado o maior núcleo de pesquisas da América Latina e um dos maiores pólos tecnológicos do mundo nas áreas de telecomunicações e informação, também privatizado e hoje transformado numa fundação sem fins lucrativos. Para nossa história, por enquanto, basta ver que o processo de privatização não equacionou o problema representado pelo acelerado desenvolvimento técnico do setor. Em 1997, realizaram-se os leilões da tecnologia antiga, fixa. Foram vendidas as concessões das três grandes áreas de telefonia fixa local em que o País foi dividido com o reagrupamento das operadoras estaduais. E houve também o leilão da Embratel, a operadora federal da telefonia fixa de longa distância. Depois, foram realizados sucessivos leilões da tecnologia nova, do celular. Esses leilões também ocorreram por áreas, mas diferentes das anteriores. E, para as sucessivas tecnologias de celular que foram surgindo. Os últimos leilões, por exemplo, do final de 2007, referem-se às concessões dos chamados celulares de terceira geração, que permitem comunicação em banda larga, com maior capacidade de transmissão de dados. Hoje, as regras do setor criam barreiras entre áreas e tecnologias. As empresas concessionárias criticam também o fato de a chama- da Lei do Cabo, que rege a transmissão de comunicações para a tevê a cabo, criar uma barreira a mais para as grandes operadoras da telefonia fixa, por impedi-las de entrar nesse setor. Há certo consenso sobre a existência de uma “convergência de tecnologias” e de que as diversas leis de concessão acabam impedindo o progresso técnico. Só “sete ou oito” E nesse ponto se misturam diversos interesses na criação da tele verde-amarela. As multinacionais que compraram pedaços da Telebrás, como a espanhola Telefonica por exemplo, apóiam a criação da nova empresa porque isso implicará a mudança das leis do setor que lhe permitirá, acredita a empresa, capitanear o processo que chama de “consolidação do setor”. Seu presidente disse aos jornais que a Telefonica pode vir a ser uma entre “sete ou oito” teles destinadas a dominar o mercado global. “Uma chinesa, uma americana, algumas européias. O que a gente espera, como Telefonica, é que a gente seja uma dessas empresas”, disse. Difícil é vislumbrar no processso um interesse nacional, brasileiro, claro. A tele verde-amarela deve nascer de um acordo que envolve o Citibank, um banco americano. O Citibank tem um objetivo cristaliEugenio Savio/ Folha Imagem é feito no Canadá por uma subsidiária da americana Pratt-Whittney. A hélice e o sistema de visão noturna também usam tecnologia americana. Os assentos ejetáveis são da britânica Martin Baker. O sistema de aviônica é da israelense Elbit. Chávez denunciou publicamente a pressão. Pretendia, com a ajuda da Embraer, criar uma indústria aeronáutica local, com aeronaves não apenas militares. Estava sendo negociada a transferência de tecnologia dos modelos Brasília e Ipanema. Apesar de não ter conseguido efetivar o negócio com a Venezuela, no mesmo ano, a Embraer vendeu 25 Super Tucano à Colômbia, aliada dos EUA no continente. Em janeiro de 2007, uma esquadrilha de Super Tucano da Força Aérea Colombiana atacou bases do grupo rebelde Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), na Ama- DEPENDÊNCIA 25 Julia Moraes / Folha Imagem RETRATO DO BRASIL | nO 9 no. Enfrenta perdas brutais no mercado global, a despeito dos excelentes lucros do banco no Brasil no ano passado. E quer mandar o maior volume possível de divisas para auxiliar sua matriz. Por isso quer vender sua participação numa das empresas que formariam a tele verde-amarela, a Brasil Telecom (BrT). O Citi está, até o momento de fechamento desta edição, no comando da BrT. Desbancou desse posto outra instituição financeira, local, o banco Opportunity, de Daniel Dantas. Isso foi feito, tudo indica, por orientação do governo Lula, que desmantelou o esquema montado no governo Fernando Henrique. Quem ganha, quem perde? O Oportunity funcionou como uma espécie de pivô no esquema básico de privatização. De um lado, o governo mobilizou recursos oriundos dos fundos de pensão dos trabalhadores das estatais e do BNDES para financiar os chamados “sócios estratégicos”, empresas geralmente estrangeiras encarregadas de assumir o negócio privatizado. No meio disso ficava o gestor do fundo de financiamento (papel assumido pelo Opportunity), que era encarregado de definir o sócio estratégico. Uma lei aprovada na época impediu que, mesmo sendo financiadores destacados dos negócios, os fundos de pensão de serem eles mesmo os gestores dos recursos. No arranjo que se propõe para a tele verde-amarela, o comando sairia do Citi para uma dupla, os grupos de Carlos Jereissati, grande empresário cearense, e de Sérgio Andrade, da Andrade Gutierrez, conhecida empreiteira de Minas Gerais. Os dois são os principais acionistas do grupo Oi. Jereissati e Andrade (p. anterior): eles devem ficar com a tele verde-amarela Opportunity, de um lado, Citi e fundos de outro, fariam um acordo para zerar brigas jurídicas envolvendo o controle da BrT por algumas centenas de milhões de dólares. Os dois bancos cairiam fora do negócio com suas partes em dinheiro. Os fundos ficariam. O BNDESPar poria mais uma meia dúzia de bilhão de reais. Com isso, surgiria uma nova empresa, resultado da fusão da BrT com a Oi. E, de sua parte, o governo reformularia (já propôs, em parte) as leis do setor, satisfazendo as multinacionais que estão fora do negócio e viram nele uma chance de as leis serem mudadas. Frigidos os ovos, quem ganha, se o negócio der certo? Em relação às demissões de trabalhadores, há uma negociação para minimizá-las, o que é um ponto positivo. Evidentemente, não se pode garantir que, aberta a porta para um grande rearranjo do setor, a economia nas demis- ALÉM DO TRILHÃO Os fundos de pensão das estatais, Previ à frente, são os maiores sócios do grande capital. Com os privados, podem chegar a 50% do PIB em 2020 O PREVI – CAIXA DE Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil – é o maior fundo de pensão brasileiro. No fim de 2007, tinha 140 bilhões de reais em ativos – ações de empresa, imóveis, títulos e empréstimos. Esse valor equivalia a cerca de um quarto de todos os ativos pertencentes aos mais de 400 fundos de pensão do país. A partir do processo de privatização das estatais nos anos 1990, em que foi peça chave, o Previ se tornou um dos grandes investidores do País. Em 2006, re150 cebeu cerca de 180 milhões de reais EVOLUÇÃO DO PATRIMÔNIO DO de lucros da Vale do Rio Doce, 230 FUNDO PREVI, EM R$ BILHÕES milhões da Petrobras, 415 milhões do (2003-2007) Banco do Brasil, 75 milhões do Itaú e 100 assim por diante. Segundo a Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência 50 Complementar (Abrapp), os fundos no Brasil reúnem cerca de 2,6 milhões de associados e pagam benefícios a 650 mil trabalhadores. O valor dos ativos 0 2003 2004 2005 2006 2007 reunidos por esses fundos chega a 416,4 bilhões de reais, o que representa 17% Fonte: Previ do PIB nacional (70% pertencem aos fundos de empresas estatais e 30%, ao das instituições do setor privado). Segundo estimativas da Abrapp, em 2020 os ativos administrados pelos fundos de pensão podem chegar a 1,8 trilhão de reais, o que representará 50% do PIB. 26 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 MÚLTIS À CHINESA Para internacionalizar empresas, os chineses dizem que é preciso o “três-três” e “primeiro, o difícil, e, depois, o fácil” O PRIMEIRO PASSO DA estratégia chinesa batizada de “três-três” é a busca de padrões internacionais de qualidade pela obtenção de três certificações-chave: a de qualidade garantida, a internacional dos produtos e a internacional dos padrões de testes. O segundo passo determina que o uso da tecnologia pela empresa deverá se dar em três etapas: importação e assimilação da tecnologia, absorção e imitação e aquisição de conhecimento e inovação. A importância desse passo é manter a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico chinês acima dos padrões internacionais. O terceiro passo do “três-três” também se dá em três partes e trata da internacionalização do mercado da empresa: um terço dos produtos será produzido e vendido no mercado interno, outro terço será feito na China e destinado ao mercado externo e o terço restante produzido e vendido fora da China. De acordo com o o folheto Chinese enterprise groups – briming with vitality (New Star Publishers, 1998), a estratégia “primeiro, o difícil, e, depois, o fácil” para a conquista do mercado internacional prevê que os produtos da empresa entrem primeiro nos países desenvolvidos, de mercados mais competitivos, consolidem ali sua marca e ganhem fama mundial. E, depois, na parte fácil, avancem sobre os mercados dos países em desenvolvimento. Por esses caminhos, a Haier, produtora de geladeiras, condicionadores de ar, freezers, máquinas de lavar, aquecedores, televisores e outros eletrodomésticos, chegou lá. Tem de 20% a 30% do mercado interno, 124 subsidiárias na China e 26 no exterior, produzindo 7 mil tipos de eletrodomésticos. sões na “nossa” tele compensaria as que ocorreriam no processo de monopolização como um todo. Há ainda em negociação a questão da produção local de conteúdo para tevê, que seria incentivada. Se tal ocorrer, haverá um benefício também claro: nas contas externas do País, o custo da importação de audiovisuais é cada vez maior. Mas não se pode deixar de lado também a questão do conteúdo político e ideológico da programação. Se a tele verde-amarela só tem essas cores no que se refere à nacionalidade dos patrões que a controlam, mas não contribui para a formação de uma verdadeira cultura nacional, democrática e popular, não haverá grande ganho, a despeito da economia de divisas. O caminho brasileiro para a formação de uma empresa nacional expressiva nesse campo de vanguarda, que é o das teleco- municações, deve ser comparado com o de outros países. Em 1997, como no Brasil, a China também alterou seu sistema estatal do setor. Separou também a telefonia fixa e a celular. Na telefonia fixa também dividiu o país por áreas, mas não desmontou suas estatais. Na telefonia celular, por exemplo, criou a China Mobile Communications Corporation (CMCC), ou simplificadamente, China Mobile, o nome em inglês. A empresa foi desmembrada da China Telecom, o monopólio inicial. Hoje a CMCC, com sede em Hong Kong, tem 67,5% do mercado continental de telefonia móvel da China. Em número de assinantes é a maior do mundo, com cerca de 380 milhões no início deste ano. Em termos de faturamento, fica em segundo lugar no planeta, perde apenas para a Vodafone, que tem sede na Inglaterra, valor de mercado de cerca de 150 bilhões de dólares e opera em duas dúzias de países. A CMCC está em processo de internacionalização. O governo chinês abriu o mercado do país à concorrência. A Vodafone, por exemplo, comprou 3,3% da CMCC. E a CMCC comprou, no início de 2007, por cerca de 250 milhões de dólares, a Paktel, empresa de telefonia móvel do Paquistão, criada no país pela inglesa Cable&Wireless. Nem China, nem Espanha O desenvolvimento tecnológico da China nessa área é enorme. O país completou sua rede nacional de telecomunicações de alta capacidade e alta velocidade, baseada principalmente em fibra ótica e, secundariamente, em satélites e micro-ondas digitais. O setor cresceu a taxas de 20% ao ano e chegou ao nível dos países desenvolvidos, com digitalização, banda larga e controle de programas. O roaming da CMCC, a tecnologia que permite aos usuários utilizarem seus aparelhos fora da área em que estão cadastrados, é um dos mais modernos. O sistema utilizado é o GSM (global system for mobile communications) e cobre 219 países e regiões. A empresa oferece também o serviço de transferência de dados GPRS, mais avançado, para 138 países e regiões. O caminho brasileiro pode ser comparado também com o da Espanha. A economista Marina Szapiro defendeu uma tese de doutorado no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro na qual avalia os desenvolvimentos tecnológicos obtidos com a privatização da telefonia naquele país e no Brasil. A Telefonica espanhola adquiriu o serviço público existente por inteiro, não houve um desmembramento como no Brasil, o que talvez se explique pela diferença de tamanho entre os dois países. Mas, ao contrário daqui, não seguiu basicamente um plano definido pelo mercado, mas a política industrial do governo espanhol. Ela comprou equipamentos e ajudou, com capital, a criar e manter 29 empresas de desenvolvimento de tecnologia, por meio de sua subsidiária, a Telefonica Investigação e Desenvolvimento. A economista disse ao jornal Valor Econômico que isso levou a um fortalecimento do sistema de inovação de telecomunicações no País. Além disso, a DEPENDÊNCIA 27 RETRATO DO BRASIL | nO 9 Telefonica atuou com a finalidade de levar fabricantes de equipamentos espanhóis a se tornarem fornecedores nas subsidiárias que comprou com a privatização na América Latina. No Brasil, afirma a pesquisadora, tentou implantar aparelhos de telefones públicos fabricados na Espanha. Mas, desistiu, porque o Brasil desenvolveu no CPqD tecnologia mais avançada, que utiliza cartões magnéticos. Até o ano passado, o governo espanhol tinha a chamada golden share na operação da ex-estatal privatizada, o que lhe permitia participar de decisões estratégicas da Telefonica, especialmente no caso de compras de empresas de outros países ou ameaça de desnacionalização da tele espanhola. de assumir o controle da Vale. Empresa que nem sequer é dirigida por um “sócio estratégico”, como se exigia, em tese, nas privatizações liberais. Ela é comandada por um financista, da Bradespar, cuja entrada no bloco de controle da Vale é, inclusive, discutível do ponto de vista legal. Tendo participado da operação de avaliação da Vale, o Bradesco, dono da Bradespar, estava legalmente impedido até mesmo de participar do leilão de venda da companhia. Somente agora, depois de quase cinco anos e meio de mandato, Lula parece ter liberado a Eletrobrás, holding estatal do setor elétrico, que diz pretender transformar numa multinacional, a tomar a iniciativa em projetos de geração de energia. A empresa é o gigante da geração e transmissão de eletricidade. Tem 50% de Itaipu. E quase 100% da Chesf, de Furnas e da Eletronorte, empresas que operam no Nordeste, Centro e Norte do Brasil, com usinas gigantescas. PARA ONDE ELAS VÃO? O Brasil não tem norte na política que diz respeito às multinacionais. Sem norte, como dizia Sêneca, não há vento que ajude fusão que também serve para justificar ações em defesa, por exemplo, da multinacional verde-amarela nas telecomunicações. Se não pode haver distinção legal entre empresas estrangeiras e nacionais, não existe base legal para se incentivar a existência de empresas nacionais. O governo Lula não fez nenhum movimento no sentido de mudar a Constituição nesse ponto. Com relação às empresas estatais, particularmente, também não fez nenhuma grande alteração do quadro. Não mudou a orientação política do BNDES e a dos fundos de pensão das estatais, sobre as quais tem grande influência, no sentido, por exemplo, Mudança complexa Reprodução A política liberal brasileira, praticada efetivamente entre 1990 e 1998, aprovou as bases legais para se descartar o sentido nacional da ação estatal. Em 1995, por iniciativa do governo Fernando Henrique, foi eliminada a cláusula da Constituição da redemocratização do País, de 1988, que permitia a distinção entre as empresas instaladas no Brasil com capital sob o controle de nacionais e as instaladas no País sob o controle de estrangeiros. Do ponto de vista legal, portanto, compreende-se a confusão da ministra Dilma Rousseff, que se refere a “nossas empresas” quando fala tanto das nacionais quanto das estrangeiras. Uma con- O País teve, entre 2001 e 2002, um racionamento de energia espetacular, que durou oito meses. Hoje, ainda tem de torcer para que as chuvas de verão sejam boas, para que a ameaça de apagão não volte. A despeito desse cenário, somente no início deste ano o governo federal tomou a iniciativa de apoiar a lei que reforma os procedimentos adotados no período liberal e permite que a estatal seja majoritária em consórcios que disputam obras no setor. Ainda assim, diz o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, o governo planeja que a empresa lidere apenas a construção de usinas com os vizinhos Argentina, Uruguai, Bolívia e Peru, em um processo de integração latino-americana. A adoção da política liberal, que descarta uma ação nacional dos países em desenvolvimento, entendida como uma defesa de interesses locais próprios em contraposição aos interesses das potências imperialistas e suas empresas, não é uma mudança simples, que um governo como o do presidente Lula, que chegou ao Palácio do Planalto por meio de amplas negociações e acordos com o grande empresariado, adotaria de uma hora para outra. A formação do sistema de empresas internacionais atual nasce do movimento de Getúlio e Roosevelt: a guerra ajudou a criar as grandes estatais 28 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 UM PRÁ CÁ, SETE PRÁ LÁ O que as múltis brasileiras trazem para o País é uma fração do que as estrangeiras mandam para fora concentração de capitais do fim do século XIX nos países centrais do sistema capitalista, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, França e Japão. A essa altura, países emergentes de hoje, como Brasil, Índia e China, eram colônias abertas ou disfarçadas das principais potências imperialistas. O Brasil, por exemplo, transitava do Imperio inglês para se colocar sob a dependência americana. A primeira fase de formação das multinacionais se encerra com a Segunda Guerra Mundial. Entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século passado, houve um intenso processo de aliança e luta envolvendo os grandes trustes e seus Estados nacionais, na disputa pelos mercados mundiais. Inicialmente, as gigantescas empresas dos diferentes países se uniram para a formação de cartéis, para ação combinada. Os fabricantes de equipamentos elétricos e as “sete ir- 2007 2000 1990 OS FATOS DESMENTEM a tese de que as multinacionais brasileiras vão compensar as crescentes remessas de lucros das suas congêneres estrangeiras para fora do País. No período entre 1980 e 2007, enquanto as remessas de lucros e dividendos do investimento direto estrangeiro no País evoluem para perto de 20 bilhões de dólares, as remesRecebida de filiais sas das grandes empresas brasileiras para o País 3 brasileiras no exterior não chegam a 3 bilhões de dólares. A razão para essa desproporção é que as multinacio0 nais brasileiras são poucas, pequenas e estão concentradas em áreas de matérias-primas e produtos semi-elaborados. Entre as cem maiores empresas mundiais por -5 valor de mercado, 42 são americanas, inclusive as cinco primeiras. Todas são multinacionais. A Enviada por filiais seguir, por origem dos capitais, vem Reino Uniestrangeiras para o -10 do, com dez empresas, e França e Japão, com exterior seis. Depois, Alemanha, China e Suíça, com cinco empresas cada. O Brasil tem duas: a PetroEVOLUÇÃO DAS RECEITAS E DESPESAS COM RENDAS DE -15 bras, a 50ª, e a Vale, a 74ª. INVESTIMENTO DIRETO, EM Há outras diferenças, de natureza qualitativa, enUS$ BILHÕES (1980-2007) tre as múltis do Brasil e as das potências capitalistas. Enquanto as brasileiras presentes entre as cem -20 maiores se destacam em apenas dois ramos, o de petróleo e gás e o de mineração, as americanas, Fonte: Banco Central por exemplo, estão espalhadas por treze. mãs” do petróleo, por exemplo, tentaram evitar o conflito com regras para a divisão dos mercados centrais e das colônias. A seguir, prevaleceu o conflito. Os Estados nacionais imperialistas, na defesa dos interesses de suas empresas, promoveram duas guerras mundiais, intermediadas por outro evento cataclísmico, de outro tipo, a quebra do sistema financeiro mundial, em 1929. Esse período de guerras e ruptura financeira permitiu o nascimento, em 1917, com a Revolução Russa, e a ampliação, posterior à paz de 1945, de um sistema econômico dissidente: o do bloco soviético, capitaneado pela URSS, que incluiu as nações do Leste europeu, a China e a Coréia do Norte. Do lado onde ficou o Brasil, no bloco “ocidental”, sob a nova hegemonia, americana, criou-se uma ordem nova, regulada economicamente. Surgiram o FMI, o Banco Mundial e o antecessor da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt, na sigla em inglês). Esse acordo atribuiu aos Estados dos países capitalistas hoje chamados de emergentes, como Brasil e Índia, um papel ativo no desenvolvimento econômico. Os organismos de crédito internacional ajudaram com empréstimos em moedas fortes a importação de máquinas e equipamentos industriais necessários a projetos de desenvolvimento da infra-estrutura industrial – siderúrgicas, hidrelétricas, por exemplo, geralmente estatais. Foi nesse período que surgiram as nossas atuais multinacionais de origem estatal, a Petrobrás e a Vale, assim como a Eletrobrás e a CSN. E que se instalaram aqui, para aproveitarem-se das novas condições, multinacionais estrangeiras, como as do setor automotivo, que passaram a produzir dentro do território nacional. “Anos dourados” e crise terminal O intervalo de 40 anos, que vai da Segunda Guerra Mundial a meados dos anos 1970, foi marcado, no lado ocidental, primeiro por uma grande expansão econômica liderada pelos EUA. Foram pelo menos duas décadas de “anos dourados”. Já no fim da década de 1960, esse movimento perdeu sua força, e, em meados dos anos 1970, ocorreu uma crise aberta na hegemonia americana. Os EUA romperam de modo unilateral os acordos monetários do pós-guerra. A crise da hegemonia americana parecia ser terminal. O país sofreu uma derrota militar espetacular no sudeste asiático. No início de 1975, seus últimos soldados saíram do Vietnã, a despeito de os EUA terem colocado ali meio milhão de homens armados. Os dez anos de crise americana, entre meados dos anos 1960 e meados dos anos 1970, foram o período do apogeu dos regimes militares da América Latina. No Brasil, os governos militares aplastaram – prenderam, desterraram, torturaram, mataram – pessoas de tendências nacionalistas e de esquerda, nas classes dominantes, no movimento popular, no Congresso, no funcionalismo público, nas estatais. E por algum tempo promoveram um grande desenvolvimento econômico, a taxas iguais às que os chineses se acostumariam a partir do fim dos anos 1970. Foram criadas inúmeras estatais. Algumas novas, apoiadas em novas tecnologias, para além dos setores ligados às grandes mudanças tecnológicas dos séculos anteriores, que revolucionaram as indústrias têxtil, de DEPENDÊNCIA 29 RETRATO DO BRASIL | nO 9 Reprodução mineração, elétrica, petrolífera, siderúrgica e química. Foi o caso da Telebrás. E das primeiras estatais de computação e informática, como a Cobra. Nesse período, entre as grandes empresas no Brasil, a disputa ocorre principalmente entre estatais e multinacionais de capital estrangeiro. A partir de meados dos anos 1970, o crescimento da economia brasileira se desacelerou, embora os governos militares tentassem manter o ritmo por quase uma década. No fim dos anos 1970, no entanto, começou no lado ocidental um intenso movimento por reformas liberalizantes na economia. Já no início dos anos 1980, o Estado americano promoveu uma espetacular elevação dos juros básicos da operação do sistema, que são pagos nos títulos do Tesouro do país. Isso fez desmoronar o sistema financeiro dos países emergentes do hemisfério ocidental, que, a partir de meados da década de 1970, apoiara-se num acelerado endividamento externo. O mesmo ocorreu com países do Leste europeu que se haviam endividado a taxas de juros flutuantes. O Brasil quebrou em 1982 e a economia do País e de suas grandes empresas entrou em crise profunda. O problema foi mais grave com as estatais, que haviam se tornado instrumento de combate à inflação, com contenção de seus preços, e de captação de recursos externos, com grandes projetos precários, como vimos com detalhes no bloco que tratou da siderurgia brasileira. O retorno de Deng Do lado oriental aconteceu algo semelhante. Houve uma expansão inicial do sistema. Em meados dos anos 1960, no entanto, a expansão se desacelerou e rompeu-se o acordo URSS-China. O país asiático começou a seguir uma trajetória diferente, crítica do modelo de industrialização seguido a partir da Revolução Russa. A China foi dividida em cerca de 15 mil comunas rurais. Com isso, subordinou-se o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento político. Essa transformação foi feita sob intensa agitação político-cultural, dirigida por Mao Zedong. Esse movimento fracassou. No final dos anos 1970, Deng Tsiaoping, que fora afastado do centro do poder chinês, retornou ao primeiro time do governo e do Partido Comunista. Em 1978, durante reunião do plenário do Comitê Central do PCC, Deng apresentou e obteve a aprovação da tese que desmontou as comunas e estabeleceu o sistema de posse coletiva das áreas rurais, mas com arrendamento da terra aos camponeses. O período de 1991 a 2001, entre o desmoronamento da URSS e os atentados da Al Qaeda contra os EUA, pode ser resumido como o de apogeu do Império Americano e do sistema econômico sobre o qual ele se de- senvolve. Houve um enorme progresso técnico com a informática e as telecomunicações. Houve uma expansão financeira sem precedentes na história, tendo como centro as grandes bolsas americanas de Nova York e Chicago. Surgiram novas empresas globais americanas no topo das listas mundiais, em especial as de novas tecnologias, como a Microsoft, a Intel, a Google e as que se aproveitam da financeirização dos negócios, como a Enron, no setor de gás e energia. O setor de defesa se agrupou em uma dúzia de gigantes intimamente associados ao Departamento de Defesa americano. Do outro lado, no antigo campo comunista, caiu o simbólico Muro de Berlim, em 1989, e a URSS desmoronou em 1991. Na China, o movimento de reforma do setor estatal aparentemente foi coroado de êxito. O país pareceu aproveitar o que tinha feito de bom nos grandes movimentos comandados por Mao Zedong, que deixara a China, por exemplo, com mais de 200 empresas produtoras de automóveis. E eliminou o que esse sistema tinha de idealista e ineficiente: a pequena escala e o baixo nível tecnológico. Foi realizada uma reforma ampla, pela qual as grandes empresas do país foram reorganizadas nos atuais 128 grandes grupos. Cada um deles tem dezenas de empresas, que disputam mercados, buscam tecnologia, apoiando-se nas idéias da reforma e da abertura para o exterior. Há um grande plano de governo para o desenvolvimento de suas empresas estatais. Veja-se o caso da defesa. A Embraer está associada à Harbin Aircraft Manufacturing Corporation (HAMC) porque a China buscou um fabricante internacional com experiência e tecnologia na produção de aeronaves comerciais medias, para as faixas em torno de 100 passageiros. A HAMC foi fundada no período de Mao, em 1952. A HAMC é uma das empresas da grande estatal China Aviation Industry Corporation II (Avic II), espécie de holding das empresas de aviões pequenos, de aviões para transporte comercial de porte médio e helicópteros. A HAMC é uma empresa grande. Tem 16 mil empregados. Uma de suas subsidiárias é a Hafei Motor, um dos maiores fabricantes de automóveis da China. Na lista de produtos da Harbin, hoje, está o ERJ 145, produzido em joint venture com a Embraer. Geisel na Alemanha: com a crise dos EUA, grandes projetos para rolar a dívida 30 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9 Moacyr Lopes Jr. / Folha Imagem Clinton e Fernando Henrique, em 1999: que fazer, depois da quebra de 1998? Após 2001, um furacão O Brasil não tem um plano de desenvolvimento independente para suas empresas. Está paralisado pela indefinição, inclusive, do significado de empresa nacional. O atual governo parece querer ter empresas nacionais, mas sustenta a reforma constitucional dos governos liberais que impede que se distingam empresas nacionais de estrangeiras. O que parece dominar o desenvolvimento das empresas multinacionais chamadas de brasileiras são intervenções basicamente do mercado financeiro. Sem um plano claro, sem um norte, como dizia o filósofo romano Sêneca, não há vento que ajude. Nos últimos anos, o mundo foi assolado por um furacão. Em setembro de 2001, terroristas em nome da fé muçulmana atacaram, entre outros alvos, com uma precisão inacreditável o centro financeiro do império americano, Nova York. A seguir, o presidente dos EUA, George W. Bush, que tinha perdido as eleições pelo voto popular e ganho apenas no Colégio Eleitoral, unificou o povo americano a Lula e Agnelli: para onde vão o País e suas multinacionais? pretexto do combate ao terrorismo e invadiu dois países, o Afeganistão e o Iraque. As guerras, inicialmente, tiram os americanos da recessão que chegara após o esgotamento do inacreditável ciclo de expansão dos anos 1990. As duas guerras contra países do “Eixo do Mal” custaram até o momento, estima o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, 1 trilhão de dólares. Elas deram origem a um novo ciclo de expansão, mas também aprofundaram os problemas do desenvolvimento americano apoiado no endividamento do Estado. A China desponta no cenário global exatamente após o início da crise nas bolsas internacionais do fim dos anos 1990 e da recessão na economia americana dos anos 2000. Divulgação / Vale A Avic II tem 5 subsidiárias, incluída a Harbin. A Avic I é muito maior. Fabrica aviões pesados, inclusive militares. Tem projeto de construir aviões comerciais grandes, como os da Boeing e Airbus. Agrupa mais de 90 empresas que fabricam turbinas, material elétrico, instrumentos, aviônica, forjaria, fundição. São empresas de pesquisa, de comercialização e marketing. O comércio internacional dos chineses, que já havia se expandido nos anos 1990, empina no começo do século XXI. Como o país está na fase de desenvolvimento de uma infra-estrutura material básica, é gigantesco o seu consumo de commodities, de minérios, de ferro, de aço. Essa é uma oportunidade para o Brasil se acoplar a esse desenvolvimento como fornecedor desses produtos primários ou semi-elaborados. Será isso que pensam os comandantes e articuladores das chamadas multinacionais verde-amarelas, como o presidente Lula e o presidente da Vale, Roger Agnelli? É para lá que eles vão? O banqueiro George Soros disse recentemente que a leitura dos escritos de Karl Marx ajuda a compreender as regras do capitalismo global de nossos dias. Marx foi um crítico da teorria das vantagens comparativas. Disse que os preços dos produtos da terra – agrícolas, minerais, hídricos – realizam-se no mercado. Dessa forma, nossos minérios, nossas placas de aço se transformam em valor no mercado global de hoje, cujo centro está visivelmente deslocado para a China, para a Ásia. Nesse sentido, por exemplo, o minério de ferro brasileiro em relação a produtores como a Austrália tem uma desvantagem comparativa, não uma vantagem. O Brasil faria melhor se, em vez de se acoplar de forma subalterna ao desenvolvimento chinês, procurasse, como os chineses, um desenvolvimento com independência. RETRATO DO BRASIL | nO 9 DEPENDÊNCIA 31