ditabranda, eu? - Retrato do Brasil
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ditabranda, eu? - Retrato do Brasil
retrato doBRASIL DANTAS A peleja dos fundos de pensão das estatais contra o Lúcifer das privatizações WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 8,00 | NO 21 | ABRIL DE 2009 AMARGO REGRESSO A crise traz de volta os nossos emigrantes ÍNDIOS Eles fazem vídeos surpreendentes para mostrar sua cultura POLO NORTE O gelo do Ártico está aumentando de novo NEPAL Os maoistas enfrentam os desafios da transição ao socialismo Ernesto Geisel, general presidente do Brasil (1974-78) DITABRANDA, EU? O DEBATE SOBRE O REGIME MILITAR NO BRASIL ENTRE 1964 E 1985 PARAISÓPOLIS A vida dos 80 mil habitantes da segunda maior favela paulistana Agora 100% das nossas propriedades rurais podem ter eletricidade. Através dos anos, Pernambuco tem desenvolvido um intenso programa de eletrificação rural, contando para isso com o importante apoio da força de trabalho da Celpe. Um grande impulso aconteceu em 1987, quando o então governador Miguel Arraes adotou esta ação como uma política de estado prioritária. A partir de 2004, o Governo Federal deu início, através do Programa Luz para Todos, ao desafio de garantir a universalização do acesso à energia elétrica e do seu uso à população rural de todo o país. De acordo com os dados da Aneel, Pernambuco tornou-se o primeiro estado do Norte e Nordeste a atingir sua meta do plano de universalização: a capacidade de atender a 100% das propriedades rurais do estado. Uma conquista que enche a todos de orgulho e alegria e que garante uma vida cada vez mais iluminada para o povo de Pernambuco. PERNAMBUCO ILUMINADO É Pernambuco que se transforma no primeiro estado do Norte e Nordeste a atingir a meta de universalização do Programa Luz para Todos. fale conosco: WWW.RETRATODOBRASIL.COM ASSINATURAS [email protected] tel. 11 | 3813 1527 de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 17h ATENDIMENTO AO ASSINANTE [email protected] tel. 31 | 3281 4431 de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h PARA ANUNCIAR [email protected] tel. 11 | 3813 1527 de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 17h CIRCULAÇÃO EM BANCAS [email protected] EDIÇÕES ANTERIORES [email protected] REDAÇÃO [email protected] tel. 11 | 3814 9030 CARTAS À REDAÇÃO www.retratodobrasil.com [email protected] rua fidalga, 146 conj.42 - vila madalena cep 05432-000 são paulo - sp Entre em contato com a redação de Retrato do Brasil. Dê sua sugestão, critique, opine. Reservamo-nos o direito de editar as mensagens recebidas para adequá-las ao espaço disponível ou para facilitar a compreensão. doBRASIL retrato WWW.RETRATODOBRASIL.COM | R$ 8,00 | NO 21 | ABRIL DE 2009 Ponto de vista AS FORMAS DE DITADURA O que está por trás do debate sobre as metamorfoses do regime militar brasileiro dos anos 1964-1985 6 População A IMIGRAÇÃO DOS EMIGRANTES A crise econômica global começa a empurrar para casa os brasileiros que foram fazer a vida no exterior. Na bagagem, muitos problemas Natalia Viana 9 Política O DIABO DAS TELES A expulsão de Daniel Dantas das telecomunicações foi como um exorcismo, que só confundiu a compreensão dos complexos problemas nascidos da privatização Raimundo Rodrigues Pereira 12 Futebol DRIBLANDO A LEI Com o fim do passe, os jogadores deveriam deixar de ser mercadorias. Mas há muitas formas de manter tudo mais ou menos como era no passado Rafael Hernandes 31 Nepal AVANÇO REVOLUCIONÁRIO Os maoistas, aliados a outras forças, enfrentam o desafio de conduzir a transição com um programa moderado e sem perder a revolução de vista Samir Amin 33 Reportagem PARAISÓPOLIS, UM LUGAR COMO POUCOS Encravada em meio a riqueza, a grande favela paulistana é um local em que a violência é menor que a de regiões bem mais ricas Léo Arcoverde 36 Clima O PARADOXO DO ÁRTICO O gelo do polo Norte pode acabar, disseram alguns cientistas. Agora, descobriu-se que ele voltou a aumentar Verônica Bercht 44 Cinema MUITO ALÉM DO VÍDEO Documentários ajudam a recuperar a identidade de povos indígenas e os apresentam à sociedade como expressões da diversidade cultural Carlos Azevedo 47 Livro UMA HISTÓRIA POSSÍVEL Na Colônia e no Império, a matemática pouco se desenvolveu. Só no século XX a disciplina adquiriu papel relevante no Brasil Tiago Tozzi 49 EXPEDIENTE SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira EDIÇÃO Armando Sartori REDAÇÃO Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht EDIÇÃO DE ARTE Ana Castro • Pedro Ivo Sartori REVISÃO Silvio Lourenço • Gabriela Ghetti [OK Linguística] COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Alex Silva • Carla Bispo • Léo Arcoverde • Paulo Cunha • Samir Amin • Tiago Tozzi Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. EDITORA MANIFESTO S.A. 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A tese central do texto: “a acusação de suborno é baseada numa montagem de escutas telefônicas sobre imagens de um jantar, no qual os acusados somente estavam trocando informações não-criminosas”. E essa montagem seria feita por interesses da Rede Globo, em parceria com o delegado Protógenes Queiroz e a Justiça Federal em São Paulo. Sem evidências e provas a respeito, o artigo de 13 páginas só faz uma coisa: sugerir, sugerir, sugerir... Dantas, Braz e Chicaroni não são vítimas inocentes. É uma história em que o grande capital, banqueiros e políticos acham que o mundo é seu parque de brinquedos e o Estado e sua população subordinados aos seus interesses. Marcel Hazeu [por e-mail] Ponto de vista: AS FORMAS DE DITADURA O que está por trás do debate sobre as metamorfoses do regime militar brasileiro dos anos 1964-1985 POR UM MÊS, entre meados de fevereiro e meados de março, as páginas de editoriais, comentários políticos e de cartas dos leitores da Folha de S.Paulo, um dos maiores diários do País, foram local de debate sobre a natureza do regime militar brasileiro recente. O jornal afirmou, primeiro, de passagem, em editorial que critica o presidente venezuelano, Hugo Chávez, que nosso sistema político, entre os anos 1964-1985, foi como as “ditabrandas” que “partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”. Com isso, quis dizer o que um de seus colaboradores, Marco Antonio Villa, tornou explícito poucos dias depois, na seção “Tendências e Debates” do jornal: “Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei da Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982”. Depois, criticado por muitos leitores, políticos e intelectuais, o jornal recuou. Seu diretor de redação, Otavio Frias Filho, disse que “o uso da expressão ditabranda em editorial (...) foi um erro”, porque o termo teria “uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto”. Frias recuou atirando, no entanto. A professora Maria Victoria Benevides tinha considerado infamante o trecho do editorial. O jurista Fabio Comparato tinha dito que o autor do texto e o próprio diretor do jornal deveriam ser “condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro”. Frias aproveitou a reação dura dos dois intelectuais e contra-atacou, então, os “democratas de fachada”, que não repudiam, “com o mesmo furor inquisitorial [...] as ditaduras de esquerda”. O debate envolve duas questões diferentes. Uma, a das metamorfoses do regime político que se instalou no País com o golpe militar de 1964. Outra, a natureza de regimes políticos de sistemas sociais opostos ao nosso, voltados para a construção do socialismo. Comecemos pela primeira. O PAÍS DA “DITABRANDA” A ditadura brasileira dos anos 1964-1985 sofreu transformações, e suas diversas fases, sem dúvida, podem ser adjetivadas. E, se alguém foi a pessoa responsável pela consolidação das condições para que o período 1979-1985 pudesse ser de ditadura abrandada, esse alguém, com certeza, foi Ernesto Geisel, o terceiro general-presidente do Bra6 sil, que governou por cinco anos, entre 1974 e 1978, e procurou eliminar, até mesmo fisicamente, todos aqueles que poderiam ser obstáculo a esse abrandamento. Geisel trabalhou no gabinete do ministro da Guerra de Getulio Vargas, na ditadura de 1937-1945. Segundo Elio Gaspari, um dos jornalistas que mais o conheceram e pesquisaram, Geisel era admirador de Benito Mussolini, o líder fascista italiano da época. Apoiou a deportação de Olga Benário, mulher do líder comunista Luiz Carlos Prestes, para a Alemanha. Olga foi enviada pelo regime nazista para um campo de concentração, onde morreu. Quando Adolf Hitler invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial, Geisel estava de malas prontas com seu chefe, Goes Monteiro, para visitar a obra de reconstrução econômica da Alemanha, comandada pelo líder nazista após a derrota de seu país na Primeira Guerra Mundial. Geisel foi um dos conspiradores responsáveis pelo golpe militar de 31 de março de 1964 que derrubou o presidente constitucional do País, João Goulart. Tomou posse como presidente em 15 de março de 1974, “eleito” por um colégio eleitoral armado pelos generais que o antecederam no cargo. Com base em fitas gravadas que recebeu de Heitor Aquino, auxiliar de Geisel, Gaspari conta a conversa ocorrida um mês antes da posse, entre o então “recém-eleito” presidente e o general Dale Coutinho, escolhido para ser o seu ministro do Exército. Primeiro, este conta que a situação de segurança do País tinha melhorado, a partir de 1969, depois que “começamos a matar”. Geisel o apoia. “Ó, Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem de ser.” Coutinho fala das operações de destruição da guerrilha do Araguaia, o esforço para derrotar a ditadura a partir de um foco de luta popular no campo, comandado pelo Partido Comunista do Brasil. Geisel dá sequência ao assunto: “Sabe que agora pegaram o tal líder e liquidaram com ele. Não sei qual o nome dele” (Gaspari conta, mais à frente, que se trata do médico Osvaldo Orlando da Costa, conhecido como Osvaldão, que, depois de preso, teria sido apresentado à população da região onde atuava pendurado a um helicóptero e, depois, degolado). Geisel conclui o assunto Araguaia dizendo: “Bom, o que eu queria assinalar é isso. Nós vamos ter que continuar ano que vem. Nós vamos ter que continuar essa guerra”. Geisel, diz Gaspari, “conhecia, apoiava e desejava a continuação da política de extermínio” de presos políticos. Apoiava, inclusive, a política de esconder os corpos dos mortos pela repressão. Gaspari conta também um episódio em que isso fica absolutamente claro. Transcreve trecho de conversa de Geisel, na qual ele diz a um chefe de segurança, a respeito da notícia da captura e liquidação de um grupo de pessoas que viera do Chile, passara pela Argentina e fora interceptado no Paraná: “É, o que tem que fazer nessa hora, agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”. Com Geisel, chegou ao apogeu a política de extermínio e desaparecimento dos corpos de presos políticos pela ditadura militar. A política de repressão do general Geisel foi seletiva. Embora tenha atingido muito mais gente, era voltada contra a esquerda especificamente. Procurou destruir a herança comunista do País. É dele a política de extermínio dos velhos dirigentes comunistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Procurou atingir, especificamente, os setores da oposição democrática progressista mais aguerridos. Um exemplo: o general Augusto Pinochet, chefe do golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende, no Chile, compareceu à posse de Geisel. E o deputado baiano Francisco Pinto, do chamado “Grupo Autêntico” do Movimento Democrático Brasileiro (MDB, precursor do atual PMDB), da tribuna do Congresso, chamou Pinochet de “assassino”, “mentiroso” e “fascista”. Como conta Gaspari, o deputado reclamara da tranquilidade com que se recebera o ditador chileno. Disse da tribuna: “Para que não lhe pareça, contudo, que no Brasil todos estão silenciosos e felizes com sua presença, falo pelos que não podem falar, clamo e protesto por muitos que gostariam de reclamar e gritar nas ruas contra sua presença em nosso País”. Geisel pediu a sua cassação ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, amedrontado, cassou o deputado Pinto. A repressão seletiva do general Geisel pode ser compreendida com clareza no contexto de uma breve história da imprensa brasileira nos anos 1964-1985. O golpe militar, ao contrário do que sugere o professor Villa, não permitiu que se mantivesse uma grande movimentação político-cultural no País porque foi extremamente violento com relação à imprensa. Atacou e destruiu as publicações da esquerda comunista, da esquerda católica retratodoBRASIL 21 retratodoBRASIL 21 Reprodução e todas as publicações do movimento sindical urbano, de sem-terras e outras organizações populares que tinham então vida legal. Seus jornais foram fechados, suas gráficas próprias foram destruídas e os mais conhecidos de seus jornalistas foram presos ou entraram para a clandestinidade e tiveram seus direitos políticos cassados. A repressão foi violenta também contra a imprensa do grande movimento nacionalista então existente. O maior dos jornais desse movimento era a rede de jornais da Última Hora, com edições diárias no Rio, em São Paulo, em Porto Alegre, no Recife e em mais nove cidades do País. Seu proprietário era Samuel Weiner (1912-1980), ligado a Getulio Vargas e apoiado por empresários nacionalistas como Fernando Gasparian (1930-2006) e José Ermírio de Moraes (1890-1973). Weiner foi cassado pelo golpe e exilou-se. Vendeu, aos pedaços, a cadeia de jornais e o que escapou de máquinas e equipamentos em suas sedes, muitas delas invadidas e depredadas. Para se ter uma ideia da extensão do efeito dessa repressão, nunca mais se teve no País, desde então, um diário de posições mais progressistas e com maior presença. Todos os que foram feitos, a partir da iniciativa de jornalistas, e não de grandes empresários, só existiram por não mais que meio ano: O Sol, no Rio, entre 1967 e 1968; o Jornal da República, em 1979-1980, e Retrato do Brasil, em 1986, os dois em São Paulo. Quando iniciou sua política de distensão lenta, gradual e segura, logo no início de seu governo, Geisel suspendeu, em março de 1975, numa das primeiras ações de seu governo, a censura ao grande jornal conservador O Estado de S. Paulo, que havia se recusado a obedecer à autocensura determinada pela Polícia Federal (PF). A censura contra a revista Veja também foi suspensa na mesma época. Mas, três semanas depois, foi restaurada em função não da posição do patronato, mas da postura do diretor de redação da publicação, Mino Carta. A censura voltou e permaneceu até fevereiro de 1976, quando Mino, considerado um inimigo irredutível da ditadura, abandonou a empresa. A censura aos jornais da ala mais combativa do movimento progressista, como o diário Tribuna da Imprensa e os semanários O São Paulo (da Arquidiocese de São Paulo), Movimento (de iniciativa de um grupo de jornalistas) e Opinião (de Gasparian), só foi suspensa em junho de 1978, quando, forçado pela pressão de um amplo movimento de mas- sas, Geisel teve de imprimir um ritmo mais apressado à política de distensão lenta que começara a pôr em prática já no início de seu governo. TRÊS CONJUNTURAS A ditadura militar brasileira surgiu numa conjuntura específica. Os americanos estavam tentando consolidar suas posições diante do avanço dos comunistas na Europa e na China e das chamadas forças de libertação nacional em várias colônias e países dependentes. Após a derrota do Exército francês diante das tropas vietnamitas em Dien Bien Phu, as Forças Armadas americanas passaram a defender o Vietnã, o Camboja e o Laos da “ameaça comunista”. Em 1956, os últimos soldados franceses saíram da Indochina, e em 1963 já havia um enorme contingente americano em sua substituição. Na América Latina, a Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro, triunfara em 1959 e surgira na esquerda latino-americana o lema de criar “um, dois, três, muitos Vietnãs”. O golpe militar no Brasil foi apoiado por dinheiro americano e teria a retaguarda armada americana se a resistência do governo de João Goulart fosse mais prolongada, conforme está provado por extensa documentação. Mas a conjuntura de 1974, quando Geisel tomou posse, era outra. Os americanos tinham sido derrotados no Vietnã. Negociaram a saída de suas tropas de combate em 1973. Em abril de 1974, retiraram a guarda de segurança de sua embaixada em Saigon, seus últimos soldados naquele país. Nos dois últimos anos de seu governo, Geisel não tinha mais a conjuntura da ofensiva americana para conter o comunismo na América Latina: teve de conviver com a presidência de Jimmy Carter, nos EUA, e sua “política de direitos humanos”, que procurava mostrar uma outra face, benigna, do império americano, e pressionava as ditaduras latino-americanas, como a comandada por Geisel e por Pinochet, a abandonar a política repressiva. De certo modo, a conjuntura de meados dos anos 1970 é como a de agora: depois de uma ofensiva espetacular de um quarto de século – dessa vez no campo econômico, com a financeirização da economia global –, o império americano está lambendo as feridas, provocadas pela explosão da grande bolha especulativa criada por eles mesmos e procurando se recom7 Reprodução Einstein: no capitalismo é impossível o cidadão “fazer uso inteligente de seus direitos” por, com o governo de Barack Obama. É nesse contexto que o debate sobre a “ditabranda” se desenvolve. Em meados dos anos 1970, enquanto o governo Geisel recuava e procurava eliminar a esquerda mais radical para que ela não ocupasse o espaço deixado vazio, dentro do movimento democrático teve início um debate sobre a natureza do império americano, entre os que defendiam que ele afirmavam que ele realizara mudanças cosméticas com a “política de direitos humanos” e que, portanto, precisava ainda ser combatido. Dizia-se também que o governo Geisel era nacionalista e democrático e que os únicos a não aceitar essa avaliação eram os setores mais radicais da oposição – que, aliás, não seriam democráticos porque defenderiam os regimes socialistas, de “ditadura do proletariado”. De certo modo é o que se observa agora, no debate sobre a “ditabranda”. Há uma nova conjuntura, e os conservadores em geral procuram desqualificar a parte mais combativa do movimento democrático. Ao também criticar o uso do termo “ditabranda”, o editor de Política da Folha, Fernando de Barros e Silva, referiuse, como Frias, a esses setores. Disse que “muitos intelectuais se assanham agora com a tirania por etapas que Chávez vai impondo à Venezuela”. Disse que “o regime moribundo mas terrível de Fidel Castro” ainda exerce um fascínio “sobre figurões e figurinhas da esquerda nativa”. Afirmou ainda que a proposta de Comparato, de obrigar os autores do neologismo “ditabranda” a ficarem de joelhos em praça 8 pública, lembrava a “tortura chinesa” com que “a polícia política maoista punia desvios ideológicos durante a Revolução Cultural”. A quem interessa isolar a esquerda na conjuntura atual? Na política oficial, há em curso um esboço de polarização entre a possível candidatura do PSDB, de José Serra, governador de São Paulo, e a também possível candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, por uma coligação de partidos em torno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ambas as candidaturas buscam uma união ampla de forças para enfrentar a grande crise pela qual o País passa, decorrente, fundamentalmente, do fato de que o caminho liberal que começou a ser trilhado no governo de Fernando Collor de Mello e que foi aprofundado pelo governo Fernando Henrique Cardoso não foi, em sua estrutura, minimamente alterado. ESQUERDA MODERNA Ambas as candidaturas, entretanto, parecem procurar ancorar-se num setor social específico: o dos grandes empresários. Assim, setores progressistas mais radicais tendem a ser apartados das alianças que estão se formando. Esse tipo de ponto de vista foi bem expresso por Marcos Nobre, também colunista da Folha, que, no debate citado, mostrou qual é o alvo. Nobre atacou as posições da esquerda que ele chama de tradicional, que, em vez de “aceitar o desafio de pensar uma nova relação entre liberdade e igualdade”, insistiu em reafirmar posições antigas, coisas como “o desemprego não é culpa do desempregado, mas de um sistema econômico que produz injustiça”, “o progresso material só significa progresso social e político se houver uma justa e solidária distribuição de riqueza” e “por aí vai”. Nobre toca num ponto crucial. A esquerda política moderna nasceu em meados do século XIX exatamente para qualificar a discussão da democracia. O regime político novo, que havia sido consolidado com as grandes revoluções burguesas – a Inglesa, do fim do século XVII, e a Americana e a Francesa, do fim do século XVIII –, era, na época, uma decepção: o direito ao voto atingia frações da população, as mulheres não votavam, o trabalho, inclusive de crianças, não tinha limites de horário. Foram as revoluções sociais e o movimento dos trabalhadores de então que levantaram a ideia de que era necessária uma democracia nova, popular, socialista. E é dessas ideias, exatamente, que surge, em 1917, a Revolução Russa. Os conservadores partem do desmoronamento da União Soviética e concluem que a única forma de democracia é a democracia liberal, cuja base essencial é a propriedade privada. Não é, é claro. “O capital privado tende a se tornar concentrado em poucas mãos, em parte em razão da competição entre capitalistas e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de grandes unidades de produção em detrimento das pequenas. O resultado desses desenvolvimentos é a formação de uma oligarquia de capitalistas privados, cujo enorme poder não pode ser efetivamente contestado mesmo por uma sociedade organizada democraticamente. Isso porque, na medida em que os membros das câmaras legislativas são selecionados por partidos políticos largamente financiados e além disso influenciados por capitalistas privados, para todos os fins práticos, fica separado o eleitorado dos legisladores. A consequência é que os representantes do povo de fato não protegem suficientemente os interesses da maioria mais pobre da população. Além disso, sob as condições atuais, os capitalistas privados inevitavelmente controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação – imprensa, rádio, educação. É, portanto, extremamente difícil, e, na maior parte dos casos, praticamente impossível, para o cidadão individual, chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente de seus direitos políticos.” Esse extenso pensamento é evidentemente atual, embora seu autor, Albert Einstein, o tenha escrito em maio de 1949, para o lançamento da revista socialista americana, Monthly Review. retratodoBRASIL 21 População: A IMIGRAÇÃO DOS EMIGRANTES A crise econômica global começa a empurrar para casa os brasileiros que foram fazer a vida no exterior. Na bagagem, muitos problemas | Natalia Viana A casa da família Okajima, na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte paulistana, nunca esteve tão cheia. Em dois meses, o sobrado onde moravam apenas Hideki e Marie, um casal de meia-idade, passou a abrigar quatro filhas, seus maridos e três crianças. Hideki teve de improvisar, com chapas de madeirite, quartos extras para os novos moradores. Todos eles voltaram do Japão, onde moravam. “É muita gente junta, estamos meio sem espaço, dormindo na sala, na varandinha...”, reclama Evelyn Okajima Duarte, 27, que regressou em meados de janeiro, depois que a fábrica onde montava câmeras digitais passou a cortar as horas de trabalho – e o salário. A irmã Agnes veio com ela. Foi demitida da fábrica de cabos elétricos na cidade de Karasuyama, no centro-oeste do Japão. Sem os cerca de 3,5 mil reais que ganhavam, as irmãs tiveram de retornar ao Brasil com os filhos a tiracolo. Deixaram os maridos por lá, ainda empregados – mas não se sabe por quanto tempo. “O sonho de fazer fortuna no Japão acabou”, resume Agnes. Como elas, milhares de brasileiros que partiram para tentar a sorte em países ricos estão regressando. Esse retorno tem uma marca fundamental: a crise econômica mundial. Existem atualmente cerca de 3 milhões de brasileiros vivendo no exterior. Cerca de metade está nos EUA, depois vêm a Europa e o Japão, regiões severamente afetadas pela crise. Não há números precisos, mas o Ministério das Relações Exteriores confirma que, nos consulados, aumentou a quantidade de brasileiros que querem voltar. “Há indicadores que mostram que está havendo o retorno de um número expressivo de brasileiros por causa da crise”, diz o retratodoBRASIL 21 embaixador Eduardo Gradilone, chefe do Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior. “Difícil é saber quantos são.” O Itamaraty não mantém controle do número de brasileiros que entram no País. Outro grande problema é que a maioria dos brasileiros nos EUA – principal destino dos emigrantes, com cerca de 1,5 milhão deles – e na Europa – onde vivem cerca de 800 mil – está em situação irregular. Por isso, muitos evitam procurar os serviços consulares. Resultado: o retorno de toda uma geração de emigrantes acaba sendo um fenômeno pouco dimensionado, invisível ao poder público. NO JAPÃO É DIFERENTE A grande exceção é o Japão, onde a maioria dos decasséguis brasileiros está em situação legal. Hoje vivem lá 330 mil brasileiros que trabalham, na maioria, em fábricas. A situação do país, que viu sua economia encolher fortemente no último trimestre de 2008, os afetou diretamente. Contratados como mão de obra temporária, foram os primeiros a ser dispensados. Há estimativas de que cerca de 40 mil brasileiros estejam sem emprego no país. Muitos vão parar nas ruas, já que a moradia geralmente é atrelada à empresa que os contrata. “Tem muitas famílias morando debaixo de ponte, dentro de carro, barracas de camping”, conta Humberto Simomura, de 29 anos. Ele, que trabalhava em uma fábrica de motores da Suzuki, também chegou a ficar sem teto. “Recebi o aviso prévio em outubro, mas só consegui passagem de volta para o dia 15 de dezembro porque tem muita gente voltando. Tiraram-me do apartamento, tive de ficar na casa da minha irmã.” Projetista formado, Simomura foi para o Japão em 2002 com a meta de juntar 50 mil reais para abrir uma empresa. Mesmo depois de seis anos trabalhando duro, não conseguiu. De volta a São Paulo, desabafa: “Eu me arrependo muito de ter ido”. No Japão, há muitos brasileiros que permanecem em situação precária por não terem como pagar a passagem de volta. A saída é recorrer ao Itamaraty. Neste ano, 30 brasileiros foram repatriados pelo governo, um processo que só é permitido quando o requerente prova que não tem como se sustentar ou pagar a sua passagem. O número é mais que o dobro do total de repatriados no ano passado. “Estamos trabalhando intensamente junto com o governo japonês”, diz Gradilone. Um pacote lançado em fevereiro no Japão prevê maior facilidade para os filhos de decasséguis ingressarem em escolas públicas, apoio na busca de emprego, treinamento profissionalizante e estabilidade de moradia para os desempregados. “Em último caso, vai haver auxílio ao retorno, que poderá ser feito, inclusive, em cooperação com o Brasil se nenhuma dessas medidas se provar eficaz”, diz o funcionário brasileiro. NOS EUA, TODOS AFETADOS Na falta de dados concretos, o cenário se repete nos EUA sem qualquer ação do Itamaraty. A crise, que no quarto trimestre do ano passado levou a um encolhimento de 6,2% do Produto Interno Bruto (PIB), tem afetado tanto os imigrantes legais quanto os ilegais, segundo a professora Sueli Siqueira, pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e da Universidade Vale do Rio Doce (Univale). 9 Arquivo pessoal Evelyn e Agnes Okajima, no Japão: elas agora vivem apertadas na casa dos pais, em São Paulo Desde 2007, ela entrevistou 398 mineiros da região de Governador Valadares que haviam emigrado para os EUA e retornaram. Desses, 43% voltaram por causa da redução dos ganhos, e outros 37% por causa do medo da deportação. “Há um movimento de retorno mais acentuado e por um fator mais determinado. Por causa da crise, o custo-benefício já não é tão grande. Os ganhos se reduzem. Os que tinham dois, três empregos passam a ter nenhum”, diz ela. Foi o que aconteceu com a paulista Raquel Talacimon, de 33 anos. Depois de nove anos trabalhando como faxineira em Rhode Island, ela viu seu rendimento diminuir rapidamente. “A primeira coisa que afeta é a limpeza. Se a pessoa perde o emprego, corta a faxineira. Eu perdi 20% das minhas casas assim.” Por causa da situação, ela voltou em dezembro último. “Todos os brasileiros estavam preocupados. Na comunidade católica que eu frequentava, em dois meses mais 20 voltaram.” Ela, que era imigrante ilegal, sentiu também a pressão da nova legislação, mais dura, que dificulta, por exemplo, a renovação da carteira de motorista para os ilegais. “Hoje o imigrante vive continuamente com o medo”, resume Sueli. NA EUROPA, XENOFOBIA O mesmo medo tem sido companheiro constante dos que vivem na Europa. Concomitantemente à crise econômica, as leis de imigração endureceram no último ano. No ano passado, foi aprovado o novo pacto europeu de migração, que facilita a expulsão de imigrantes ilegais. Neste ano, foi aprovada uma diretiva que penaliza empregadores que contratarem tais imigran10 tes. Na Itália, uma polêmica lei do primeiro-ministro Silvio Berlusconi abre espaço para médicos delatarem pacientes em situação migratória irregular. A mensagem é cada vez mais clara. Foi exatamente por isso que o goiano Caio Cesar Alves, de 19 anos, resolveu voltar para casa. Com uma identidade portuguesa falsa – pela qual pagou 200 euros –, trabalhou durante dois anos e meio como auxiliar de pedreiro em Paris. “Cheguei a morar com 11 brasileiros que estavam no mesmo esquema. Ganhávamos 1,2 mil euros por mês”, conta ele a Retrato do Brasil um dia após aterrissar no País. No fim de 2008, em meio a tantas notícias de colegas sendo presos e deportados, decidiu deixar de lado a identidade falsa. Ao mesmo tempo, a crise atingiu em cheio a indústria da construção. “Consegui fazer uns bicos por alguns dias em construções, mas só dava pra comprar o que comer.” O medo de ser mandado de volta tem razão de ser. Desde o início da crise, a França tem aumentado a repressão aos ilegais, e os provenientes do Brasil se tornaram alvos. Isso pode ser constatado no súbito aumento de brasileiros barrados nos aeroportos. Desde outubro, o número dobrou: de oito a dez por dia passou a 16 ou 17, segundo o consulado brasileiro. O fato se repete em outros países europeus, em especial Inglaterra e Espanha, onde os brasileiros são os mais barrados. Na Espanha, um dos países mais afetados pela crise, os imigrantes estão tendo de competir com a mão de obra local. De malas prontas para voltar ao Brasil, o paulistano Rafael Ziegelmaier tem um per- fil diferente do da maioria dos imigrantes. O designer tem passaporte espanhol, foi para Barcelona há três anos para cursar mestrado e trabalhava na área de marketing de uma empresa que vendia alumínio e sistemas de iluminação. “A empresa vinha mal desde outubro, as vendas caíram muito. No meu departamento havia eu e uma espanhola. Adivinhe quem foi para a rua...” Em Portugal, 30% dos 180 mil brasileiros no país estão desempregados, segundo levantamento da Organização Internacional de Migrações (OIM), braço da Organização das Nações Unidas (ONU). Já é a principal nacionalidade a participar do programa de retorno voluntário da organização, que financia a volta dos imigrantes. Em 2008, foram 247 brasileiros mandados de volta – mais de 80% do total daqueles que solicitaram o retorno de Portugal –, ante 194 no ano anterior. Os brasileiros também estão retornando em peso de outro país, de migração mais recente, a Irlanda. Em 2008, 246 brasileiros pediram apoio à OIM para voltar ao Brasil – 64% do total. Neste ano, o número já chegou a 216. Aos poucos, o sonho de migrar para a Europa vai tomando contornos de pesadelo. FIM DO SURTO EMIGRATÓRIO? Especialistas já veem uma mudança de padrão no fluxo migratório. “A migração é um fenômeno dinâmico. Os controles estão se tornando mais rigorosos em todos os países desenvolvidos, por questões de segurança, da crise econômica, de emprego”, diz Gradilone. “Ir ao exterior exige um cuidado maior, documentação, um planejamento mais intenso do que existia antes.” Ao mesmo tempo em que esses países rechaçam mais fortemente a mão de obra desqualificada, que forma o grosso dos nossos imigrantes, há uma procura maior por profissionais. “Isso nos preocupa, porque pode ter efeito de atração de talentos e cérebros que pode não coincidir com nossos interesses. Temos de ficar atentos”, completa o embaixador. Para muitos, na incerteza da crise, ainda é cedo para determinar quão profunda vai ser essa mudança de padrão. Mas, para o professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) Duval Fernandes, uma coisa é certa: o fluxo de brasileiros indo para o exterior deve diminuir. “A atração da vida no exterior diminui à medida que diminui a facilidade de retratodoBRASIL 21 arrumar emprego e obter renda. Ainda há um estoque de brasileiros que vivem lá, mas, se a crise se aprofundar, eles vão ter de retornar”, diz. Sueli Siqueira acredita que “o sonho americano está sendo repensado”. Para ela, o fato de que o Brasil tem sofrido menos com a crise é fundamental para determinar uma redução da emigração. “O que move o migrante são condições piores na origem e melhores no destino. Mas agora isso começa a se reverter.” Seja um processo temporário ou permanente, fica a pergunta: Será que o Brasil está preparado para esse retorno? Para Sueli, não. Os retornados são um grupo com características muito específicas devido à sua história de vida e aos impactos que a emigração gera. De certa forma, eles são como estrangeiros em seu próprio País. Por isso, o crescente fenômeno do retorno merece mais atenção das autoridades. “Não existe política pública consolidada para receber esse imigrante que retorna. Existem organizações que tentam dar apoio, mas não há um projeto efetivo para atender a essa demanda.” Uma história comum é a de Evelyn. Quando saiu do Brasil, há oito anos, ela queria juntar dinheiro para poder fazer faculdade. Com o tempo, os planos mudaram. Hoje, de volta à casa dos pais, sem uma poupança significativa, com uma filha a tiracolo e um marido ainda na terra distante, cabe a ela buscar um emprego. “Estou procurando trabalho como recepcionista, e já mandei alguns currículos.” Se tiver sorte, conseguirá uma vaga para ganhar de 500 a 700 reais por mês – o que nem se compara aos 3,5 mil reais que ganhava no Japão. “Mas tem de ficar otimista, né?” VOLTA DIFÍCIL Muitos dos que estão retornando enfrentam grandes dificuldades. “A maioria voltou sem um planejamento porque o custo de vida no exterior é altíssimo. Se você não tem recursos, tem de tomar rapidamente a decisão de comprar passagem e vir embora”, diz Kiyoharu Miike, da Associação Brasileira de Dekasseguis (ABD), com sede em Curitiba (PR), que atende brasileiros que voltam do Japão. Segundo ele, há dificuldades sérias em se recolocar no mercado de trabalho. “Os emigrantes que retornam são pouco valorizados porque não têm experiência. Estão adequados a uma outra cultura e passaram muito tempo fora, têm um grande buraco no currículo”, diz Miike, cuja associação ajuda decasséguis a arrumar emprego ou investir suas poupanças em negócios viáveis. Arquivo pessoal Simomura (ao centro), ainda no Japão: há muitas famílias morando debaixo de ponte retratodoBRASIL 21 Segundo Sueli Siqueira, esse é um dos principais problemas enfrentados pelos retornados. Apenas 18% dos entrevistados de Governador Valadares conseguiram voltar com alguma renda fixa. Outros 51% chegaram com dinheiro para investir. Mas, segundo Sueli, 70% deles perderam todas as economias depois de um ou dois anos. “São pessoas que não têm perfil empreendedor, ganharam dinheiro, mas não capital cultural de conhecimento.” Outro grande problema é que, para aqueles que voltam, o dinheiro passa a ser um sinal de status, uma maneira de se livrar da pecha de “fracassado”. Por isso, muitos acabam gastando sem muita necessidade. “O emigrante que pertencia à classe média chega lá e vai limpar banheiros. Quando retorna, ele precisa resgatar sua identidade, mas não tem nada para conseguir isso, só o dinheiro.” Além disso, o “choque cultural” muitas vezes gera uma condição psicológica séria. Para o psicanalista Décio Nakagawa, que trabalha com emigrantes retornados, muitas vezes a volta é mais difícil até do que emigrar. “A adaptação é difícil porque muitas vezes o emigrante guarda uma imagem fotográfica de seu país. Quando retorna, o tempo passou, as coisas mudaram e ele perdeu esse processo. Fica difícil se relacionar emocionalmente com isso.” Nakagawa chegou a identificar um quadro psicológico que batizou de “síndrome do regresso”. Segundo ele, em casos críticos, o retornado desenvolve sintomas como confusão mental e dispersão do pensamento, distanciamento afetivo e tendência autodestrutiva. “Ele abre um negócio suicida, por exemplo, um mercadinho ao lado de um supermercado. Há também, em muitos casos, uma tendência suicida mesmo.” Para Sueli Siqueira, a sensação de fracasso acaba tendo repercussões psicossociais importantes. No caso do seu estudo, a conclusão é que quem sai perdendo é a região de Governador Valadares. “Hoje a região recebe de volta pessoas frustradas, com problemas de saúde, sem perspectivas para o futuro e com uma percepção extremamente negativa do seu local de origem. Esse é um alto preço a se pagar pelas remessas de dólares enviados à região – que com certeza não enriqueceram os emigrantes trabalhadores.” Outra certeza é que a região, que tem cerca de 17% de seus habitantes no exterior, não se preparou para o melancólico desfecho da onda migratória. E nem o nosso País. 11 Alex Silva Política O DIABO DAS TELES 12 retratodoBRASIL 21 A expulsão de Daniel Dantas das telecomunicações foi como o descarrego de um demônio que instabilizaria o setor. Esse exorcismo confundiu a compreensão dos complexos problemas nascidos da privatização das estatais brasileiras | Raimundo Rodrigues Pereira 1. Quem é Daniel Dantas? Para alguns, Daniel Dantas seria o símbolo da “privataria”, nome que muitos dão, com fundadas razões, ao processo de venda das estatais brasileiras. Talvez, para mais gente ainda, Dantas é pior que isso – é o demônio. • Um amigo do repórter, que conhece pessoalmente o personagem e acompanha sua história há mais de uma década, responde, em síntese, numa conversa de uma hora e meia no fim de fevereiro: “É um gênio do mal, comandante de forças poderosíssimas, articulado com o que há de pior nas estruturas do Estado brasileiro”. • O juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Federal Criminal, especializada em crimes contra o sistema financeiro nacional e em lavagem de valores, dedicou quatro páginas de sentença em que condenou Dantas a uma espécie de avaliação psicológica. Diz que ele é de “uma individualidade ímpar e irracional, egocêntrico”, “se desvincula facilmente dos parâmetros sociais para satisfação de seus interesses” e conclui: “sem hesitar, acredita no dinheiro, não como instrumento legítimo para circulação de bens, mas como algo determinante de suas ações ou omissões, bem como de todas as pessoas que passam por seu caminho”. • A senadora Heloísa Helena (PSOL-AL), falando a Dantas na reunião conjunta das comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs) “dos Correios” e da “Compra de Votos”, em setembro de 2005: “DuDANTAS, COMO LÚCIFER, O ANJO EXPULSO DOS CÉUS Ilustração com base em desenho do romance gráfico Prelúdios e Noturnos, de Neil Gaiman. No original, o rosto do anjo é do compositor David Bowie retratodoBRASIL 21 rante toda a minha militância no PT, eu sempre ouvi falar de Vossa Senhoria [...] meio como um Lúcifer, o gênio do mal, alguém preparado para as piores coisas, para tudo aquilo que, na minha opinião, é da essência do capitalismo: a chantagem, o suborno, a espionagem, a corrupção”. • A senadora Ideli Salvatti (PT-SC), atacando Dantas na reunião da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em meados de 2006, à qual ele compareceu para esclarecer a denúncia da revista Veja de ter sido a origem das informações que levaram o semanário a publicar uma lista apócrifa de pessoas com contas ilícitas em paraísos fiscais, dentre as quais o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Paulo Lacerda, então chefe da Polícia Federal (PF): “Eu tenho o convencimento de que o senhor faz o que for preciso, com quem quer que seja, utilizando todo e qualquer instrumento, legal, ilegal, [...] todo o elenco possível e imaginável; com este, com outro, com qualquer governo, porque, para o senhor, eu acho que só interessa o seu interesse financeiro, em primeiro, em segundo, em terceiro e até o último lugar”. • A revista Veja, na edição de 16 de julho do ano passado, comentando a prisão de Dantas, por duas vezes, uma semana antes, na Operação Satiagraha: “Ele é expoente entre os negociantes e sistemas empresariais que nunca se expuseram ao poder purificador da concorrência, que se escondem sob as asas estatais para fugir dos rigores da lei e do vento trazido pela abertura econômica. Nada sabem sobre inovação ou produtividade, os reais motores da criação de riqueza no sistema capitalista. Nesta condi- ção, Dantas envolveu-se em praticamente todos os grandes escândalos de economia mista – estatal e privada – da última década no Brasil”. Demonizar alguém não é uma boa solução para um grande problema – no caso, o processo de privatização do sistema brasileiro de telecomunicações. Este repórter buscou uma outra saída; e, nas três primeiras partes desta história, procurou dizer quem é Dantas e qual o seu negócio. No processo em que foi condenado pelo juiz De Sanctis a dez anos de prisão em regime fechado e ao pagamento de multa de 12 milhões de reais, Dantas chegou a ser acusado pelo delegado federal Protógenes Queiroz de ter oferecido dinheiro para tentar livrar o filho da prisão. Dantas não tem filho, mas uma filha, que vive na França. Ele mora no Rio de Janeiro, com a mulher, num apartamento na Vieira Souto, a avenida mais famosa de Ipanema. O repórter o visitou em meados de setembro passado, cerca de um mês depois de seu depoimento à “CPI do Grampo”, durante a qual ele convidou qualquer dos parlamentares presentes a ir a sua residência para confirmar a mentira disseminada pelo noticiário sobre a existência de uma parede falsa atrás da qual os agentes da PF, durante sua prisão, teriam encontrado discos rígidos de computador com registros criptografados. De fato, a parede falsa não existe. O apartamento é grande, com cerca de 600 metros quadrados. O escritório onde estaria a suposta parede, ao lado do quarto do casal, tem, de fato, um enorme armário com portas de correr, sem qualquer sinal de arrombamento. Dantas mostra, sobre uma mesa próxima ao armário, o monitor Apple solitário, 13 do qual a PF levou a CPU, e, no armário, a instalação com conexões para seis dispositivos USB, às quais estavam ligados os discos levados pela PF. Dantas diz que neles estavam gravadas imagens fotográficas de vários locais que está prospectando para fazer investimentos imobiliários, uma das áreas para onde tenta se deslocar depois de ter sido, como diz, “expelido do setor de telecomunicações”. No fim de fevereiro, o delegado Queiroz divulgou carta enviada por ele ao presidente americano, Barack Obama, referindo-se a esses discos, aparentemente enviados pela PF brasileira a órgãos de segurança do governo dos EUA para serem descriptografados. Queiroz repetiu sua versão: os discos foram “encontrados dentro de uma parede oca na residência do banqueiro-bandido Daniel Dantas”. Queiroz queixou-se de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mudou o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e co- locou no seu comando “seis indivíduos amigos de Lula, todos com um passado ético extremamente questionável”. E pediu a “vigilância” e o “apoio” de Obama, “para que os processos de avaliação e divulgação dos dados contidos nos 12 discos rígidos”, que ele diz estarem “em poder da CIA [serviço de inteligência dos EUA]”, “não sejam obstruídos”. O delegado Queiroz não quis falar conosco. Procuramos um amigo dele, Luiz Antonio de Medeiros, secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, que afirmou ter pedido a ele, duas vezes, que recebesse o repórter. Queiroz disse que só poderá falar depois que a investigação da PF sobre ele for concluída. A reportagem de capa da revista Veja de 11 de março, “A tenebrosa máquina de espionagem do Dr. Protógenes”, mostra que a investigação está perto da conclusão, mas, principalmente, espalha fofocas. E não serve para a história que nos interessa. 2. O representante do Citi Dantas nasceu em Salvador, de família rica, e se tornou muito mais rico: sua fortuna deve estar na casa de várias centenas de milhões de dólares. Avaliar seus bens – imóveis, ações – não é simples, ele diz, em função dos preços de mercado que são muito variáveis. De hábitos, Dantas é quase um asceta. Trabalha das oito às oito. Não bebe, é vegetariano. Não parece ter luxos – os móveis de seu apartamento são velhos, uma poltrona tem um buraco em um dos braços. Quase não tem vida social, diz uma pessoa que o acompanha há cerca de 30 anos e acha que ele “não gosta de gente”. Com base nas evidências examinadas pelo repórter, Dantas não tinha qualquer militância política mais expressiva. Mas suas relações nesse campo eram, claramente, com a centro-direita: com Antonio Carlos Magalhães, do antigo Partido da Frente Liberal (atual Democratas), partido ao qual prestou alguma assessoria; com Fernando Collor de Mello e com Fernando Henrique Cardoso, que o ouviram umas poucas vezes. A mais importante de suas relações, aparentemente, foi comercial, com o Citibank. O banco americano tinha ocupado a presidência do comitê de bancos credores do Brasil, depois da quebra do País, 14 sob o regime militar, em 1982. Em 1994, quando essa dívida foi, afinal, renegociada – os compromissos da dívida antiga foram trocados por outros – os famosos Brady Bonds –, foi o presidente do Citi de então, William Rhodes, que veio ao Brasil para selar o compromisso em reunião com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Em 1996, o banco queria converter seus papéis em investimentos. Os títulos da dívida antiga tinham quase virado pó. Com a renegociação e a nova conjuntura financeira no Brasil, os bradies eram ouro. O Citi escolheu Dantas para aplicá-los. Dantas tinha, então, 42 anos e uma história. Com 24, se formara engenheiro e iniciara carreira nas finanças. Com 26, foi consultor numa empresa do amigo Dório Ferman, criador e dono do Banco Opportunity. Em 1972, com 28 anos, Dantas se tornou doutor em economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV), com elogios de seu mestre, Mario Henrique Simonsen, banqueiro, ministro nos governos militares e, depois, participante do conselho de administração do Citi. Com 29, obteve um pós-doutoramento em finanças no Massachussets Institute of Technology (MIT). Com 31, estava na alta finança. Foi vice- presidente de investimentos da Bradesco Seguros e Previdência e, com 32, presidente do Icatu Empreendimentos e Participações, da família de Vivi Nabuco, ex-mulher do banqueiro Almeida Braga, ex-sócio, no Bradesco, de Amador Aguiar, criador do banco. O Citi, segundo afirmou Dantas ao repórter, o selecionou em um “beauty contest” – um concurso de beleza – depois de conversar, no Brasil, com alguns dirigentes de bancos de investimento e empresas especializadas em gestão de recursos. Junto com representantes do Citi, Dantas foi ao presidente Fernando Henrique Cardoso pedir apoio para a criação de uma estrutura que facilitasse os projetos imaginados. FHC apoiou a ideia, e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ofereceu uma linha de empréstimos para os negócios. “Era pouca coisa”, diz Dantas, no começo de março, na última de várias entrevistas que o repórter fez com ele. No Plano Nacional de Desestatização, o BNDES já financiava os grupos privados em parte das compras. Mas é claro que a visita ao presidente abriu portas para uma aproximação com os fundos de pensão das estatais. Em 1997, foi feito, inclusive, nos EUA, um seminário do Citi em conjunto com os fundos, com o objetivo de familiarizá-los com o mundo dos investimentos. Para a escolha de Dantas pelo Citi pesou também o fato de ele, desde 1992, quando ainda estava no Icatu, ter criado, nas Ilhas Cayman, o Opportunity Fund para investimentos no Brasil de capitais existentes no exterior. Já nos últimos anos do governo José Sarney (1985-1989), o País havia iniciado mudanças na sua legislação sobre finanças, com vistas a atrair capitais de fora, mesmo os que haviam saído ilegalmente. Muitos desses fundos tinham sido criados. Hoje, são mais numerosos ainda. Recentemente, o Ministério da Justiça do Brasil conseguiu, com ajuda do governo americano, o bloqueio de 500 milhões de dólares que estavam sendo enviados, por intermédio do sistema bancário daquele país, para o Opportunity Fund. O bloqueio, disse Dantas ao repórter, foi suspenso pouco depois, logo que foi provada a natureza da operação: ela se referia à venda dos direitos dos cotistas do Opportunity Fund na BrT à antiga Telemar, hoje Oi, dos empresários Sérgio Andrade e Carlos Jereissati. A operação foi realizada retratodoBRASIL 21 retratodoBRASIL 21 José Carlos Moreira / Agência O Globo para formar, com apoio do governo Lula, a chamada BrOi, a tele verde-amarela. Ao responder às notícias do bloqueio, Dantas fez divulgar uma nota na qual apresentou uma lista com cerca de cem fundos semelhantes ao Opportunity Fund. De fato, a Opportunity Asset Management Inc., a empresa do grupo de Dantas registrada em Cayman, é como a Unibanco Asset Management, a Votorantim Asset Management e o Banco do Brasil Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários S.A., empresas brasileiras com vários fundos registrados em Cayman que operam com ativos no Brasil. O Opportunity Fund não foi nem o único nem o primeiro fundo off-shore a participar da venda das estatais brasileiras. Um ano antes, o Sweet River, fundo operado pelo Liberal Bank, braço em Cayman do Banco Liberal, do Brasil, já havia permitido a associação bilionária de capitais locais e internacionais que comprara a Companhia Vale do Rio Doce. O NationsBank, americano, que tinha um pedaço do Sweet River, emprestou 2 bilhões de dólares ao Bradesco, que, ao final, acabou ficando com a parte do leão na compra da Vale – colocou Roger Agnelli, um de seus executivos, como o comandante da companhia. Houve um escândalo em torno do Banco Liberal. Dirigentes da instituição foram acusados de, por meio do Liberal de Cayman, ter roubado ou acobertado o roubo de cerca de 50 milhões de dólares do Nations. Houve uma campanha de difamação na imprensa brasileira contra os acusados, que acabou não prosperando. O Nations, então rebatizado de Bank of America, que o comprara, abriu inclusive um processo contra o repórter, autor de artigos que contaram a história da campanha (por exemplo, “A versão que quase virou fato”, publicada no semanário CartaCapital de 11 de setembro de 2002). Depois, desistiu. Desde sua escolha pelo Citi, em 1996, até março de 2005, Dantas falava pelo banco e esta era sua grande força. Comunicava-se regularmente, quase diariamente, com a direção da instituição, nos EUA. Isso pode ser visto pela extensa lista de cerca de 40 mil e-mails que o Citi e Dantas foram obrigados, pela Justiça americana, a permutar logo que, em março de 2005, o Citi, digamos assim, traiu Dantas, afastou-o da condição de seu representante e O jovem Dantas, ao lado de seu mestre e apoiador, Simonsen, que foi do Conselho do Citibank moveu contra ele ação na Justiça dos EUA, cobrando-lhe 300 milhões de dólares. De fato, desde outubro de 2004, quando mudou de direção e a principal interlocutora de Dantas na matriz do banco, em Nova York, Mary Lynn Putney, foi afastada do cargo, o Citi tramava contra Dantas, com os fundos de pensão brasileiros. Mas isso é adiantar a história. Voltemos ao negócio de Dantas. Quando, em 1996, encontrou-se com FHC, estava acompanhado de Putney e de William Confort, que era o chefe internacional da área de private equity do banco. Dantas deu ao repórter detalhes da reunião: “Confort explicou ao presidente o que era o private equity. Esse setor das finanças reformou a indústria americana, disse Confort a Fernando Henri- que. A indústria nos EUA estava acomodada nas mãos de oligarquias familiares e administrativas no fim dos anos 1970. O private equity promoveu sua reestruturação, ele disse”. No Congresso brasileiro, em setembro de 2005, Dantas tentou explicar o que é um fundo de private equity. Arriscando uma tradução, ele disse tratar-se de “um fundo de participações privadas”. Esses fundos têm um administrador. “Ele identifica a oportunidade. Ele adquire o investimento. Ele escolhe os gestores que vão tomar conta, que vão gerenciar esses investimentos. Ele fixa metas e objetivos, toma conta, cobra resultado. Ele presta atenção se, porventura, em algum momento, esse investimento se torna conveniente de ser vendido. E, se assim for, o vende ou o refinancia.” 3. Um administrador de private equity Os fundos de private equity são administrados por empresas consideradas não financeiras pela lei brasileira, por exemplo. Dantas não acha certo ser chamado de banqueiro. Diz ser um “administrador de recursos de terceiros”. No seu currículo está exatamente isso, em inglês: diretor do Opportunity Asset Management Ltda. (OAM Ltda.). A empresa tem sede no 28º (e penúltimo) andar de um prédio ao lado da Academia Brasileira de Letras (ABL), na avenida Presidente Wilson, no centro do Rio de Janeiro. Todo o andar é ocupado por empresas de Dantas. Numa parte do 29º andar fica o banco Opportunity, de Ferman. Quase toda a parte sul, com magníficas vistas para o Pão de Açúcar, a entrada da baía de Guanabara e a marina da Glória, é ocupada por salas de reunião. A maior parte dos en- contros para a discussão dos contratos dos acordos de sócios para a privatização das teles foi feita nessas salas. Dantas tem escritório no extremo leste do andar, na parte com vista para o mar. Na parte norte fica a grande sala de open-market, mercado aberto, na qual meia centena de operadores realiza, para diversos fundos de investimentos ligados a Dantas e a Ferman, operações de compra e venda de ações, títulos e outros papéis nos mercados financeiros daqui e do exterior. Veronica Dantas, uma das sócias do irmão Daniel, ocupa, com Ferman, mesas de frente para os operadores. Em setembro do ano passado, ela comentou com ironia o fato de o delegado Queiroz ter considerado suspeito existirem muitas empresas registradas naquele mesmo endereço: “É assim conosco e com a torcida do Flamengo”, disse. Con15 sulta ao anuário Valor Grandes Grupos, sobre os conglomerados brasileiros, mostra que eles têm, geralmente, dezenas de empresas. No caso de Dantas e seus sócios, embora seja evidente, para um observador minimamente atento, que constituam um grupo do qual Dantas é o líder, não há uma estrutura legal de grupo econômico, entidade definida nas leis brasileiras. As empresas criadas entre os sócios surgem de negócios específicos e, muitas vezes, como conta Veronica, durante a visita do repórter, há empresas “de prateleira”, novas, já prontas para aproveitar negócios de ocasião. Outra das críticas mais comuns a Dantas é a de que, com pouco capital próprio aplicado nas empresas, ele controlaria “toda a sociedade”, como lhe disse o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) na abertura da CPMI citada. Serraglio foi específico: pediu que Dantas respondesse à crítica da relação do Opportunity com os fundos de pensão das estatais. Dantas deu os números do chamado “fundo nacional” no qual estava associado com esses fundos de pensão. O Opportunity tinha 0,36% do total de capital investido, cerca de 20 milhões de reais. O conjunto de fundos de pensão investiu perto de 500 milhões de reais, cerca de 80% do total. Previ e Funcef, fundos de pensão dos funcionários do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, aplicaram, por exemplo, 150 milhões de reais e 110 milhões de reais, respectivamente. Havia ainda participações do BNDES – 40 milhões de reais, por meio do braço de participações do banco, o BNDESPar – e de uma empresa privada, Delta, com participação pequena. Serralho insistiu: perguntou se Dantas achava certo os fundos de pensão precisarem de cerca de 90% de votos para afastá-lo da direção de um fundo de investimentos em que ele tinha participação mínima. “É exatamente esse o ponto”, respondeu Dantas. A seguir, deu o exemplo de um fundo local famoso que ele e Ferman administravam na ocasião. Quem tivesse aplicado nele o equivalente a 10 mil dólares em 1986, se quisesse retirar o dinheiro naquele dia do depoimento, teria o equivalente a 5,2 milhões de dólares. “E o que fizeram os cotistas do fundo nesse período?”, perguntou Dantas, para em seguida dar a resposta: “Não deram nenhuma opinião”. Mais adiante na CPI , Dantas voltou ao argumento, para dizer que o problema dele com os fundos de pensão era o 16 fato de estes não estarem preocupados com o que deveriam: o retorno do investimento feito. Eles queriam era mandar, disse. No capítulo final desta história, o repórter procura saber dos dirigentes dos fundos de pensão por que, nos investimentos de que participam – nos quais, muitas vezes, têm a maioria do capital quando somados às aplicações dos bancos oficiais –, eles não dirigem os investimentos no sentido de promover o desenvolvimento tecnológico independente do País. E eles respondem que seu compromisso básico é com o rendimento das aplicações. Nossa história é cheia de contradições. Conta a briga de um grande gestor de fortunas, brasileiro, que servia ao Citibank, americano; mostra como os principais fundos de pensão, brasileiros, se associaram com empresas estrangeiras – canadense, ita- liana, americana – e acabaram expulsando Dantas do setor de telecomunicações. A história mostra que o gestor de fortunas diz que seu negócio era fazer o dinheiro render, e os fundos de pensão dizem que o compromisso principal deles era o mesmo. A realidade é cheia de contradições. Elas movem o mundo, dizia Hegel, um dos maiores filósofos do século XIX. Compreendê-las é essencial para o conhecimento. Mas o próprio filósofo achava que a resolução das contradições empurra o conhecimento para perto da Ideia, onde ele via algo como Deus. Dizer, na nossa história, que suas contradições são como uma trama de Lúcifer, um anjo caído dos céus, é compreensível. Mas não é a posição do repórter. A seguir, vamos à última parte do esclarecimento inicial necessário para entender direito a guerra que virá adiante. 4. Veja publicou quase uma boa mentira A tarefa de Dantas não era uma gestão de dinheiro para ganhar mais dinheiro de tipo simples. Ele administrava três fundos, com uma complicação adicional: envolvia três países e regimes fiscais e regulatórios diferentes. O fundo nacional já citado, formado com os fundos de pensão, estava sediado no Brasil. Os outros dois – o Opportunity Fund e o do Citibank – funcionavam nas Ilhas Cayman. O Federal Reserve, o banco central americano, determinava que, se o Citi tivesse a maioria de um fundo de investimento, deveria registrá-lo como “ativo imobilizado”. A consequência da aplicação dessa regra é que o banco ficava com menor liquidez, o que lhe trazia desvantagens. O Citi queria, então, que Dantas achasse investidores com os quais formasse uma maioria, para que ele mesmo fosse minoritário na associação. Por motivos fiscais próprios, o Citi ainda exigiu que o fundo tivesse sede em Cayman, o que era uma vantagem para Dantas, que já administratava o Opportunity Fund lá desde 1992. Mas também era ruim, porque os fundos de pensão, pela legislação brasileira, não podiam aplicar no exterior. Mesmo assim, Dantas formou, com o auxílio dos fundos de pensão, a maioria de capitais necessária para abrigar o Citi, exatamente nas condições pretendidas pelo banco americano. O Opportunity Fund de Cayman entrou com 200 milhões de dólares; o fundo nacional, onde Dantas estava junto com os fundos de pensão, com 560 milhões de reais; e o fundo do Citi, também de Cayman, com 700 milhões de dólares. Como, na época de formação dessa estrutura, em fins de 1997, o real valia mais ou menos um dólar, o Citi ficou minoritário nos projetos, como precisava. Com base no capital dos três fundos, Dantas buscou mais sócios e, com o capital ampliado, adquiriu a Telemig Celular, a Amazônia Celular, a estatal Tele Centro Sul (depois chamada de Brasil Telecom, a BrT), o terminal de contêineres do porto de Santos, o Metrô do Rio e um pedaço da Sanepar, a companhia de saneamento do Estado do Paraná. Em cada um desses projetos, o arranjo de três fundos comandado por Dantas fez arranjos societários específicos, dos quais participavam os outros sócios, coinvestidores. Exemplo: no bloco de controle da BrT, a Telecom Italia (TI) tinha 38% do capital, e os três fundos, 62%. Na Telemig Celular e Amazônia Celular, a Telesystem International Wireless (TIW), canadense, tinha 49% de uma holding que controlava as duas empresas, e os três fundos, 51%. Os coinvestidores tinham várias vantagens, para compensá-los pelo fato de não estarem no comando estratégico da comretratodoBRASIL 21 A ESTRUTURA QUE COMPROU A BRASIL TELECOM E OS CINCO PASSOS PARA ENTENDER A SUA CONSTRUÇÃO 1 Dantas construiu a estrutura básica das empresas FUNDO NACIONAL FUNDO DO CITI OPPORTUNITY FUND OUTROS onde ficavam os fundos de pensão, com registrado nas Ilhas Cayman, com registrado nas Ilhas Cayman, com nacionais, entre os quais empresas, fundos, com 34% ON da Zain 42,10% ON da Zain 9,75% ON da Zain que compraram várias estatais com três fundos: um, nacional, com os fundos de pensão, e dois em Cayman, um do Citi e outro, do Opportunity. No caso específico da compra da Brasil Telecom, esses fundos formaram, em seguida, a Zain. 2,7% ON da Zain 2 A Zain se associou com coinvestidores – a maioria PREVI PETROS ZAIN OUTROS fundo de pensão do Banco do Brasil, com fundo de pensão da Petrobras, com representava os três grandes fundos, com 19,72% ON da Invitel 3,77% ON da Invitel 67,82% ON da Invitel também fundos de pensão com INVITEL empresa auxiliar da Techold, com 100% ON da Techold 8,69% ON da Invitel 3 A Invitel era controladora integral da Techold, tinha 100% de suas ON. As duas empresas desempenhavam aproximadamente o mesmo papel e foram criadas para facilitar o financiamento do BNDES ao projeto, que, de fato, acabou vindo em duas partes, uma pela Techold, outra pela Invitel. TIMEPART TECHOLD TELECOM ITALIA que Veja considerava um “absurdo”. Tinha, da Solpart representa todos os investidores acima. Tinha, da Solpart o “sócio estratégico”. Tinha, da Solpart 62% ON, antes 0,2% ON, depois 0% PN, antes 0% PN, depois 19% ON, antes 61,8% ON, depois 62% PN, antes, 0% PN, depois SOLPART a empresa que comprou a BrT, com: 53,59% ON da BrT Participações BrT PARTICIPAÇÕES a empresa vendida no leilão de julho de 1998. Tinha: 96,81% ON da BrT deles, os próprios fundos de pensão que, nesta categoria, não pagavam a Dantas taxa de administração nem de desempenho. A Zain, com grande maioria, mais os co-investidores somados, com 32,18 de ações ordinárias nominativas (ON), formaram a Invitel. 19% ON, antes 38%, depois 38% PN, antes 0%, depois 4 A Techold associou-se com a Telecom Italia (TI) para formar a Solpart, empresa que comprou a BrT. Mas tanto o grupo comandado por Dantas, unido em torno da Techold, como a empresa italiana tinham outros objetivos, comprar a Embratel e a Telesp, respectivamente. Para isso, não podiam ter mais de 19% de ações ON no consórcio Solpart. Não podiam, também, desmanchar o consórcio antes de 5 anos. E os consórcios tinham de ser formados antes dos leilões, é claro. A solução foi criar uma empresa, a Timepart, cujas ações deveriam ser diluídas após o prazo de cinco anos, formada por pessoas de confiança. Em vermelho estão os números do controle da Solpart, após o vencimento desse prazo. 5 No leilão de julho de 1998, o governo vendeu 20,18% do total de ações, onde estavam 53,59% das ON, que permitiam o controle, da BrT Participações. Esta, por sua vez, tinha o controle da BrT – possuía 65,36% do total de suas ações, nas quais estavam 96,81% de suas ON. Fonte: Comissão de Valores Mobiliários panhia. Por exemplo, não pagavam as taxas de administração e de êxito, características básicas da remuneração das empresas de private equity. De um modo geral, antes e depois do escândalo Dantas, a gestão dos fundos de investimento por esses administradores de fortunas é paga com 1% a 2% de taxa de administração e 20% de taxa de êxito. Esta é calculada como porcentagem do lucro conseguido pelo gestor acima de um rendimento médio de mercado – boa parte das vezes, o que se obteria com uma aplicação mais conservadora, em depósitos interfinanceiros (DI), dos empréstimos feitos entre bancos. Afinal, os acordos foram firmados, após dezenas de reuniões entre dezenas de advogados e assessores representando as partes envolvidas. Dois anos depois, no entanto, uma grande disputa colocou, de um lado, os fundos de pensão brasileiros e a Telecom Italia e, do outro, Daniel Dantas. Na sua edição de 2 de agosto, a revista Veja, em artigo sobre a compra da Brasil Telecom disse: “os fundos de pensão pagaram 1.000 reais por ação sem direito a voto; enquanto isso, uma empresa controlada pelo pai de Dantas, pagou 1 real por ação com direito a voto e comprou 62% da companhia”. Como se provaretratodoBRASIL 21 rá, a seguir, a matéria de Veja pode ser classificada como uma quase boa mentira. O esquema nesta página representa a estrutura societária que comprou a Tele Centro Sul, depois chamada Brasil Telecom (BrT), operadora de telefonia fixa nas regiões centrooeste e sul do País. No leilão de julho de 1998. o governo federal vendeu as ações que tinha na controladora da BrT, a BrT Participações. Elas representavam apenas 20,18% do total do capital da companhia leiloada, mas incluíam o suficiente para seu controle: 53,59% de ações ordinárias nominativas (ON), com direito a voto. Essas ações foram compradas pela Solpart, um consórcio de três companhias. Uma era a Techold, onde ficavam Dantas, o Citi, os fundos de pensão e outros. Outra, a Telecom Italia (TI). A terceira, a Timepart. Na nossa história, mostraremos que quem comandava os passos estratégicos da BrT era Dantas, portanto, era ele o grande comandante da Solpart, compradora da BrT. Mas a controladora parece ser a Timepart, que tem 62% das ON. Qual o mistério? Voltando à matéria de Veja. Era verdade que os fundos de pensão tinham comprado ações da Solpart a mil reais a ação. E o pai de Dantas, comprara ações a um real. Mas Veja omitira que: • As ações compradas a mil reais cada eram umas - as PN, “preferenciais nominativas”, sem direito a voto. As compradas a um real eram outras, ON. • Todos os cotistas da Solpart - TI, Citi, Dantas e muitos outros, e não apenas os fundos de pensão - compraram as PN da empresa a mil reais cada. • Cada PN podia ser transformada em 1.063 ON por contrato de acionistas assinado por todas as partes compradoras da Solpart. • A criação da Timepart foi aprovada pelo BNDES, a Anatel e a CCBL – Câmara Brasileira de Liquidação e Custódia, que processou os pagamentos da privatização. De fato, a invenção da Timepart foi um acerto entre o grupo comandado por Dantas e a TI, então comandada por Giovanni Agnelli, da Fiat, para cumprir as regras da privatização e manter os objetivos diversos dos consorciados. A TI queria o grande premio do leilão de 1998: a Telesp, a operadora de telefonia fixa da cidade de São Paulo, para o que formara um outro consórcio com a Globo. Os fundos comandados por Dantas pretendiam, em primeiro lugar, comprar a Embratel, a operadora de telefonia fixa de longa distância. E, em segundo, a Tele Norte Leste, com a telefonia fixa dos esta17 Folha Imagem Demarco, quando ainda era do Opportunity. Depois, ficou contra Dantas em todas as paradas dos litorâneos do Rio até a Amazônia (depois Telemar, depois Oi). Os consórcios tinham de ser formados e aprovados antes dos leilões. E não podiam ser alterados antes de cinco anos, para que os empreendimentos tivessem estabilidade no controle. A Timepart, com 62% de ON da Solpart, tinha um poder fictício. Ele podia ser diluído: os detentores das PN da Solpart podiam transformá-las em ON, na proporção de 1 para 1.063, citada, a qualquer momento. Quando essa conversão foi feita por todos, a Techold ficou com 61,8% das ON. A TI, com 38%. E a Timepart, com 0% de PN, foi reduzida a 0,2% das ON. Os donos da Timepart eram apenas pessoas de confiança das partes – trustees, no nome em inglês – para que o acordado entre elas fosse cumprido. Uma empresa como a Timepart já tinha sido criada pela Anatel, para garantir que a Telefonica de Espanha vendesse a CRT para a BrT, história que adiante se contará. Numa boa mentira, o mentiroso conta partes menores da verdade e omite partes essenciais. No caso do artigo de Veja, não era uma boa mentira completa, porque a revista não apenas omitiu. Mentiu também: disse que a Timepart era controlada pelo pai de Dantas, Raymundo Dantas. Não era: Raymundo representava a Teleunion, com 33,80% da Timepart. Ao seu lado estavam a Telecom Holding, do Citibank, com 33,10%. E a Privtel Investimentos, com 33,10%. 5. Os interesses do pequeno Demarco Nossa história não é, como a campanha da demonização a representa, a de uma peleja do bem contra o mal, em torno de grandes ideais. É, no fundo, a de uma disputa de interesses políticos e comerciais. E, entre os comerciais, interesses grandes e pequenos. Um dos pequenos, notável, é o de Luiz Roberto Demarco, que trabalhou no Opportunity de novembro de 1997 a fevereiro de 1999, quando foi demitido e, a partir daí, tornou-se um implacável acusador de Dantas para políticos, policiais e jornalistas. Ligou-se a todos os inimigos de Dantas, na política e no meio empresarial. Na política, o seu contato principal, para nossa história, é com Luiz Gushiken. O futuro ministro do governo Lula era a principal liderança dos bancários paulistas na 18 oposição sindical que ganhou o sindicato já nos anos 1980. Fora deputado federal por três legislaturas, até 1989. Depois, foi coordenador da campanha presidencial de Lula em 1998. Nessa campanha, Demarco ajudou Gushiken a construir uma “loja virtual” do PT, para arrecadar fundos por meio da venda de livros, broches, camisetas. No meio empresarial, ligou-se, primeiro à TI e à TIW; depois, ao Citi. Ele não recebeu Retrato do Brasil nem respondeu a qualquer das perguntas que lhe enviamos. Mas não há dúvida de que fez essa campanha por dinheiro, e não por amor à verdade. Do Citi, segundo documento visto pelo repórter, recebeu, pelo menos, 7,5 milhões de dólares. Inimigos de Demarco também se uniram. Foi o inquérito policial de sua briga com uma ex-esposa rica, de quem se divorciou, que deu acesso a Dantas ao conjunto de e-mails trocados por Demarco com Luiz Gushiken antes de o petista tornar-se ministro do governo Lula. Os e-mails fazem parte de um processo, do ano 2000, que tramita na 28ª Vara Cível de São Paulo, no qual Demarco cobra da ex-mulher 2,5 milhões de reais por danos morais. Segundo perícia policial constante do inquérito, ela invadiu o computador do ex-marido. No dia 17 de agosto de 2000, o diário O Globo publicou artigo no qual Demarco falava de litígio entre ele e Dantas na Justiça de Cayman e dizia ter juntado aos autos do processo documentos mostrando que o Opportunity Fund descumpria as regras brasileiras estabelecidas para os fundos off-shore, visto que ele próprio, morador de São Paulo, tinha aplicações nesse fundo. Depois da divulgação dessa notícia, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), entidade que regulamenta e fiscaliza o mercado de compra e venda de títulos e ações no País, lhe pediu os documentos apresentados em Cayman e iniciou um inquérito administrativo. A conclusão do órgão é de abril de 2003. Condena o banco Opportunity, a empresa de asset management de Dantas no Brasil, o banco daqui que operava as aplicações vindas de Cayman, o ABN-Amro e mais quatro pessoas, entre as quais Verônica e Ferman. As penas foram consideradas brandas, entre 20 mil e 100 mil reais. Os punidos apelaram ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. No Opportunity, Ferman foi o analista informal da documentação apresentada por Demarco no processo que tramitou na CVM. O repórter o conheceu no começo de sua investigação e o entrevistou diversas vezes. Ferman apresentou o que seriam sinais de falsificação nos documentos de Demarco: somas incluindo valores em moedas diferentes; papel timbrado da empresa na qual Demarco trabalhou com Dantas – e não do Banco Opportunity ou das duas empresas de asset Dantas, os únicos compatíveis com os termos da denúncia; planilha anexa a um e-mail cuja data é anterior à da planilha, dentre outros. As conclusões de Ferman foram apoiadas por perícia feita pela Justiça paulista para o processo na CVM. A sentença final, de 30 de agosto de 2007, absolveu todos os condenados na primeira instância, em seis votações – uma por 8 a 0 e as outras por 5 retratodoBRASIL 21 a 3. No seu voto, o relator do processo, Felisberto Pereira, entre outras coisas, diz que a perícia, um documento de cem páginas constante dos autos, verificou “anomalia”, “irregularidades” e “contrafação” nas evidências apresentados por Demarco. Demarco foi derrotado no fórum da CVM, mas sua luta mobilizou muita gente que combatia exatamente as regras da abertura do mercado de capitais brasileiros. O esforço de abertura da conta de capitais do País é antigo. Desde a penúltima quebra do sistema financeiro internacional, em 1929, o Brasil controlava rigidamente essa conta. Em julho de 1986, quando o governo Sarney começou a transitar de uma política mais nacionalista para outra, mais liberal, os controles passaram a ser abrandados. O decreto-lei 2.285 orientou o Conselho Monetário Nacional (CMN) a aplicar regras favorecidas de Imposto de Renda (IR) para entidades que visassem trazer para cá dinheiro, “fundos e outras entidades de investimento coletivas, residentes ou domiciliadas no exterior”. Em 1987, o Banco Central (BC) completou essa orientação com a Resolução 1.289, que estabeleceu os limites das aplicações favorecidas, e, em 1991, já no governo Collor, uma outra resolução do BC, a 1.832, criou um documento famoso, o Anexo IV, para disciplinar a “constituição e a administração da carteira de investimentos imobiliários mantidos no País por investidores institucionais”, tais como “fundos mútuos de investimento constituído no exterior”. E, finalmente, em janeiro de 1992, a CVM baixou a Instrução 169 para regulamentar esses fundos. No inciso VI, a instrução especificava quem podia ser registrado para gozar de isenção de IR: “entidade que tenha por objetivo a aplicação de recursos no mercado financeiro e de capitais, da qual participem as pessoas físicas e jurídicas residentes e domiciliadas no exterior, e que não tenha sido constituída ou opere em benefício exclusivo de uma pessoa física”. Sob essa rede de leis, normas, resoluções e instruções nasceu, por exemplo, o Opportunity Fund, em 1992. A regulamentação dos fundos off-shore para aplicação no Brasil mudou com o tempo. Em junho de 1996, ocorreu um auge no movimento especulativo de entrada de dólares no País, provocado pela política interna de juros reais altíssimos surgida no governo Collor e mantida por Fernando retratodoBRASIL 21 Henrique Cardoso. Nessa época, como disse um dos donos do Banco Liberal ao repórter, “traziam-se dólares para cá para aplicar em qualquer coisa”. Na ocasião, a CVM editou o “Ofício Circular 001/96” para exigir das auditorias desses fundos a comprovação da “inexistência de pessoas físicas e jurídicas residentes e domiciliadas no Brasil”. Em março de 2000, quando a conjuntura já tinha se invertido e o Brasil precisava de dólares, o CMN revogou tanto a Resolução 1.289, que disciplinava os fundos constituídos no exterior privilegiados por isenções fiscais, como a 1.832, que criara o Anexo IV. E a CVM revogou a Instrução 169. Sob essas novas normas criou-se um outro conceito: o de “investidor não residente”. Seriam investidores não residentes “as pessoas físicas ou jurídicas, os fundos ou outras entidades de investimento coletivo com residência, sede ou domicílio no exterior”, e o entendimento passou a ser o de que a caracterização de “investidor estrangeiro” não se refere mais à residência do proprietário das cotas da entidade não residente que in- veste no Brasil. Hoje, uma pessoa física ou jurídica com RG, CPF ou CNPJ brasileiro pode investir no Brasil por meio de um fundo coletivo registrado no exterior como não residente no Brasil. O fundo é que tem de ser não residente. Esse é o entendimento. As normas antigas faziam parte do esforço inicial de abertura da conta de capitais do Brasil. Com as normas novas, a conta de capitais do País foi completamente aberta. No ano passado, por exemplo, estrangeiros e brasileiros trouxeram para cá, apenas pela rubrica da compra e venda de ações e títulos de renda fixa, cerca de 220 bilhões de dólares; e levaram para fora cerca de 225 bilhões de dólares. E há quem considere essa abertura insuficiente: tramita no Congresso projeto de lei do senador Delcídio Amaral (PT-MS) que pretende conceder perdão fiscal aos que tiverem remetido recursos para o exterior ilegalmente, mas os repatriem. Mas a polícia passou a perseguir Dantas com base na norma velha. Antes da polícia, porém, a política. 6. Dantas-Dirceu, uma ligação diabólica A absolvição na CVM não foi um fim de caso. Enquanto ela apurava as acusações de Demarco, Dantas foi objeto de várias outras denúncias. A principal redundou na chamada Operação Chacal, da PF. Em outubro de 2004, empregando quase cem agentes, comandados pelo delegado Ezio Silva, a PF, por meio de invasões, levou meia tonelada de documentos da sede das empresas de Dantas, do banco Opportunity, do apartamento de Dantas, da casa da presidente da BrT, Carla Cico, e da sede da empresa Kroll, acusada de espionar, a mando de Dantas e Carla, empresas e pessoas, entre as quais o ministro Gushiken e o presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb. A Kroll fora contratada pela BrT no fim de 2002, mas a empresa de telefonia, estranhamente, foi poupada da invasão da PF. Ferman conseguiu na Justiça uma liminar para suspender o exame dos discos rígidos do servidor central de seu banco, apreendido na batida realizada no Rio sem mandato judicial . Mas o pedido de abertura dos discos voltou à cena, em função de uma questão política: a investigação do chamado “mensalão”, iniciada no fim de 2005. Graças aos esforços da senadora Ideli Salvatti – política petista que tinha Dantas na pior conta, como se viu na abertura deste artigo –, na CPMI já citada, foi feito um pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) – negado pela ministra Ellen Gracie – para permitir a abertura dos discos. Mas os autos da CPMI, enviados à Procuradoria Geral da República, resultaram em uma denúncia ao STF envolvendo 40 pessoas, entre as quais o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu. Em maio de 2006, o processo foi enviado aos estados onde viviam os vários acusados. Dirceu, que mora em São Paulo, era apontado como “chefe de quadrilha”, o elemento-chave de uma operação que teria desviado fundos para o Partido dos Trabalhadores (PT), por meio de falsos contratos de publicidade de empresas controladas por Dantas – a Telemig Celular, a Amazônia Telecom e a BrT – operados por empresas do publicitário Marcos Valério. Na época, o País vivia o auge da campanha de desmoralização do governo Lula. Graças à pressão criada pelo “mensalão”, Dirceu saiu da Casa Civil em junho de 2005; a 1º de dezembro, foi cassa19 Folha Imagem Dirceu: a imprensa o estigmatizara como “chefe do mensalão”. E ao associá-lo a Dantas, através da Telemig e da Brasil Telecom, formou a dupla maligna do pelo Congresso e se tornou, para a grande mídia conservadora, um “maldito”. Mesmo setores da esquerda e do movimento democrático progressista passaram a considerar Dirceu um traidor do presidente Lula, a partir da hipótese de que Delúbio Soares teria sido escolhido por ele. Na verdade, Soares tinha sido colocado na direção do partido por indicação do próprio Lula. Mas, para a mídia conservadora, ligar Dantas e Dirceu era formar uma dupla do diabo. Marcos Valério, ligado a Soares no chamado “mensalão”, publicitário da Telemig e da Teleamazonia, comandada, em última instância, por Dantas, era o elo dessa união maldita. A partir dos autos da CPMI enviados a São Paulo, Ana Roman, procuradora da República, pediu – e obteve – da Justiça Federal no estado a ordem para abertura dos discos rígidos do Opportunity. “Acredita-se que o HD (hard disk, disco rígido) do banco possa conter dados que venham a demonstrar a relação entre a Telemig e a Amazônia Celular e Marcos Valério”, ela escreveu. Com base na ação da procuradoria paulista, foi aberto inquérito na PF de São 20 Paulo, e o delegado Ezio Silva, da Operação Chacal, que tinha apresentado seu relatório em abril de 2005, pedindo a condenação de Dantas, Carla e outros, foi encarregado de comandar a nova investigação. O inquérito de Silva transcorreu de meados de 2006 ao fim de março de 2007, quando ele escreveu ao juiz – na época, um substituto de Fausto De Sanctis, o titular da Vara –, dizendo que, depois de semanas de interceptação das comunicações do Opportunity, não pretendia mais prorrogá-la, visto que não tinha obtido resultados. Isso significava, no fundo, que Silva não via a pretendida ligação do “mensalão” com o caso Dantas. 7. A polícia e seus objetivos móveis Por motivos que o inquérito não explica, a 27 de março de 2007, mesmo sem resultados, a investigação de Silva, cujo objetivo era encontrar as ligações entre a suposta espionagem de Dantas e o suposto “mensalão” de Dirceu –, tendo atingido seu objetivo, ou seja, visto que não encontrara o elo entre as “duas quadrilhas”, a de Dantas e a de Dirceu, sofreu uma metamorfose e continuou. Mudou de nome, passando de Dálien – misto de Dantas e Álien, o alienígena – para Satiagraha, mudou de chefe, passando a ser comandada pelo delegado Protógenes Queiroz, e mudou de objetivo. A leitura do relatório final do delegado Queiroz e de seus inúmeros arrazoados pedindo prorrogação das escutas telefônicas e de internet, que atingiram dezenas de pessoas, mostra que ele mudou de objetivo algumas vezes. Mas uma delas é mais evidente. Ocorreu depois que ele recebeu a perícia realizada nos discos rígidos do Opportunity pelo Instituto Nacional de Criminalísta (INC). Seu antecessor, Silva, havia pedido ao INC um exame preliminar dos discos. Com base nos resultados obtidos, incluiu, no relatório da Chacal, algumas listas de nomes retratodoBRASIL 21 “sem ser de não residentes”, que revelariam “crime de evasão de divisas”. Queiroz pediu ao INC, então, um trabalho mais conclusivo. Pouco antes de terminar sua investigação, um ano e três meses depois, em junho de 2008, e antes de pedir a prisão de Dantas, de seus sócios e outras pessoas, como o financista Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, Queiroz recebeu três laudos do INC. Eles também não eram definitivos. Apresentavam várias listas de nomes. Na conclusão dos três laudos, entretanto, o INC recomendou que fossem realizadas novas investigações, algo como uma auditoria contábil ao vivo no Opportunity. O delegado Queiroz parece ter achado isso muito difícil e mudou o objetivo de sua investigação. Procurou uma saída aparentemente mais fácil: a busca de uma prova de corrupção contra Dantas. E, a despeito da precariedade do trabalho feito, convenceu De Sanctis a condenar Dantas, Humberto Braz, um ex-executivo da Brasil Telecom Participações, e Hugo Chicaroni, um ex-professor da Universidade de São Paulo (USP). Em “A provação de Braz” (RB edição 17, dezembro de 2008), argumentamos que a prova de Queiroz deveria ter sido mais bem examinada por De Sanctis, pois havia evidentes irregularidades. Desde a sentença do juiz, surgiram novos indícios nesse mesmo sentido. Um deles é o fato de que o vídeo do encontro decisivo entre Braz, Chicaroni e um delegado, apresentado ao juiz como tendo sido feito pela PF, ter, de fato, sido gravado por dois profissionais a serviço da Rede Globo. Uma pessoa que assistiu às imagens – o vídeo faz parte das evidências arroladas no relatório preliminar do delegado federal Amaro Vieira, que investiga a investigação de Queiroz – disse que elas mostram os dois operadores testando a câmera no banheiro do restaurante El Tranvia, onde houve o encontro considerado crítico para a sentença de De Sanctis. Queiroz, como se sabe, foi substituído pelo delegado Ricardo Saadi e depois submetido a inquérito. Saadi, considerado especialista em investigar finanças, aparentemente está concentrado na investigação das supostas operações de desvio de divisas por Dantas e suas empresas. Espera-se que ele divulgue seu relatório final ainda neste mês. Saadi apresentou um relatório parcial com 242 páginas em meados de novembro passado. Desse relatório fica a impressão de retratodoBRASIL 21 que nada mudou na investigação. A maior parte dele é dedicada às reclamações dos fundos de pensão contra Dantas e às pessoas e empresas ligadas a ele. Saadi ouviu os presidentes dos três maiores fundos, reproduziu no relatório o folheto “O caso Brasil Telecom”, divulgado pelos fundos anos atrás, e resumiu vários processos movidos por eles contra Dantas. Todos esses processos, assim como as respostas do grupo de Dantas na Justiça, foram retirados dos tribunais quando do acordo feito em 25 de abril de 2008, para a venda das participações do Citi e de Dantas e seus sócios para a Telemar, com vistas à formação da BrOi. No detalhe, Saadi apresenta duas novidades. Uma é um esquema de lavagem de dinheiro que utilizaria as fazendas de gado compradas recentemente pelo grupo de Dantas. A outra é resultado de duas operações, na casa de Roberto Amaral, ex-alto dirigente da Andrade Gutierrez, e de seu filho, que poderiam ter feito transações ilegais com Dantas, a partir de paraísos fiscais. Mas isso também, por enquanto, é só isso: hipótese. Como é possível tirar conclusões de uma nota de rodapé no relatório, que diz sobre as fazendas: “A análise dos documentos apreendidos é superficial”? Sobre os possíveis negócios ilícitos entre Dantas e Amaral, outra nota de rodapé afirma que “não se tem confirmação” de que a operação existiu. 8. A planilha chuchu com borboleta Contra o trabalho de Queiroz surgiu também mais um documento. É o parecer de Nelson Carvalho sobre os três laudos do INC referentes aos discos rígidos. Carvalho é um dos maiores especialistas do País em contabilidade. É o coordenador da edição anual da revista de negócios Exame 500 Melhores e Maiores Empresas do Brasil, da Editora Abril, e atual presidente do Grupo Intergovernamental de Especialistas em Padrões de Contabilidade e em Relatórios Financeiros da Conferencia das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), entre outros títulos. Ele produziu, a pedido do Opportunity, o “Relatório Circunstanciado de Análise Técnica dos Laudos do Instituto Nacional de Criminalística (INC), da Operação Satiagraha”. O relatório relembra, como fez o repórter de RB no segundo trabalho de sua investigação (“Crimes perfeitos”, RB edição 14, outubro de 2008), que os peritos da PF tinham recomendado que Queiroz trabalhasse mais para concluir direito sua investigação. Eles citam a frase dos peritos do INC, contida no relatório de Queiroz de meados do ano passado: “Assim, pelo exposto, para entender as operações e esclarecer a origem e destino das vultosas somas movimentadas, faz-se necessário efetuar exames contábeis e financeiros em toda a documentação do Banco Opportunity, que é o centro operacional-financeiro responsável pela operacionalização e movimentação dos recursos e dos clientes da instituição, pessoas físicas e jurídicas, tendo em vista a dificuldade de se apartar os clientes normais daqueles que efetivamente possam ter participado de operações suspeitas”. (o grifo é do repórter) O parecerista Carvalho diz, em suma, que o INC misturou chuchu com borboleta: juntou informações de um banco de dados do Opportunity Fund Cayman com as de um outro, um banco de dados sobre fundos locais do Opportunity. Nos dados do fundo de Cayman, os aplicadores são identificados por números, mas não há nomes nem qualquer número de documento pessoal. Nos fundos locais, os aplicadores são identificados por número e com nome, número de RG e CPF e mais dezenas de dados identificadores da pessoa física ou jurídica. O INC cruzou os dois bancos de dados a partir dos números. Mas os pareceristas dizem que “a premissa na qual se basearam os peritos do INC para realizar o cruzamento de dados foi totalmente incorreta: os números atribuídos internamente pelos sistemas de controle dos fundos (off-shore e nacionais) são diferentes. O sistema Shareholder, relativo ao Opportunity Fund, possuía uma numeração própria de clientes e estava em base de dados própria. No sistema Shareholder, inexistiam informações sobre dados cadastrais de investidores (nome, endereço, CPF ou CNPJ, etc). Por seu turno, o sistema Cotista, referente aos Fundos Nacionais, possuía sua própria numeração de cotistas, era mantido em base 21 discos rígidos apreendidos pela PF na Operação Chacal. Mas, diz Carvalho, deveria ter usado apenas os dados do período 19982000, porque a lei mudou e surgiu a definição de “não residente”, que inclui todos os brasileiros, pessoas físicas ou jurídicas, que tenham um comprovante de “não residente” legalmente aceito pelas autoridades. Ferman, que entregou ao repórter as 42 páginas e os 39 documentos anexos do relatório de Carvalho, ironiza o trabalho da polícia com um exemplo: “Eles concluíram que uma recém-nascida tinha enviado para o exterior 2 milhões de dólares usando o CPF do pai. É que misturaram os dados de uma menina, filha de um diretor do Opportunity, que, ao nascer, eu presenteei com mil cotas do fundo Lógica II, um fundo nacional”. Terminado o exame das provas policiais, nos últimos capítulos de nossa história, volta-se à questão maior que ela envolve – os interesses comerciais. Primeiro, situando o contexto no qual eles se desenvolvem. Reprodução de dados exclusiva e diferente daquela do sistema Shareholder e mantinha os dados cadastrais dos clientes”. Carvalho concluiu assim seu trabalho: “De todos os mecanismos de prova apresentados pelos peritos criminais para a comprovação do ilícito alegado, não há o que subsista como conclusivo em nenhuma das peças analisadas no âmbito deste relatório”. Em outra passagem, ele diz ainda que, nas suas demonstrações, o INC usou dados referentes ao período 1998-2004, que é o dos Trechos da conclusão da PF: a menor, com o CPF do pai, estaria desviando recursos do País ilegalmente. De fato, os peritos apenas embaralharam bancos de dados distintos 9. As conjunturas da privatização O processo de reestruturação do sistema brasileiro de telecomunicações decorrente das privatizações se desenvolveu em conjunturas específicas. No momento, vivemos uma dessas conjunturas, a do desmoronamento do sistema financeiro internacional criado a partir dos EUA, no fim dos anos 1970, cujo desenvolvimento foi central para a venda das estatais brasileiras. A privatização brasileira foi planejada e teve início no auge de uma primeira etapa do processo de inserção do País no novo mercado global que se criou a partir do início dos anos 1990, com a financeirização da economia americana, o desmoronamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o grande desenvolvimento da China. O Brasil não se inseriu nesse mercado como a China, que adotou uma forte política de controle da especulação financeira. Também não adotou uma política, como a chinesa, de fortalecimento e desenvolvimento tecnológico de seu setor estatal produtivo. No fim dos anos 1990, por exem22 plo, a estatal China Telecom já era a empresa com o maior número de celulares do mundo. Já o Brasil havia retalhado e vendido o sistema de telefonia celular que desenvolvera com expressivo esforço tecnológico próprio. Quando a venda das teles estatais brasileiras teve seu grande momento, em meados de 1998, com o leilão das fatias de todo o sistema Telebrás – oito teles celulares e mais quatro empresas de telefonia fixa –, a euforia dos primeiros anos do Plano Real, implantado quatro anos antes, era passado. A política de atrelar o real ao dólar, que garantia uma cotação de um real para um dólar, atraindo moeda estrangeira com juros monumentais, logo seria substituída pela de taxas de câmbio flutuantes, metas de inflação e superávit fiscal para pagar juros em quantidade suficiente para manter a dívida pública sob controle. Mudou-se também o comando do BC. Pode-se dizer que o mercado derrubou o enfant terrible Gustavo Franco, o inventor do falso real forte, e apontou ao presidente Fernando Henrique Cardoso um dos seus, Armínio Fraga, para assumir o lugar de Franco. Fraga era operador de George Soros, um dos banqueiros que compunham o capital da Sweet River, o fundo em Cayman que participou da compra do controle da Vale do Rio Doce por um consórcio formado pelo Bradesco, pelos fundos de pensão brasileiros e pelo BNDESPar. Fraga foi o indicado por Soros para representar o capital estrangeiro nos conselhos da Vale. Quando a companhia foi vendida, em 1997, a expansão financeira internacional tinha chegado ao seu apogeu, e várias crises já haviam abalado os mercados emergentes – no México, na Rússia, na Argentina. Em meados de 1998, havia uma fuga de capitais do Brasil. O que valia, um ano antes, quando da venda das concessões da Banda B da telefonia celular – manter o controle nacional –, deixou de valer. No grande leilão da Telebrás, o mote era trazer dinheiro de fora, criando mais facilidades para atrair o capital estrangeiro. Um relatório apresentado na Bolsa de Valores de São Paulo retratodoBRASIL 21 retratodoBRASIL 21 Malan, como revelam gravações menos divulgadas das dezenas de fitas que compõem o grampo, estarem, secretamente, preparando um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para depois das eleições que se aproximavam e nas quais o presidente se reelegeria. Está no fato de esses diálogos mostrarem que Fernando Henrique Cardoso se comprometeu com Stanley Fischer, do FMI, a fazer aprovar o que seria depois a Lei de Responsabilidade Fiscal, que definiu como compromisso central do orçamento público a geração do chamado superávit primário, a economia de recursos dos três níveis de governo para pagar juros da dívida pública. No contexto do debate das privatizações de 1998, quando o “grampo do BNDES” veio a público, a invenção da figura do de- mônio Dantas, por mais católica que tenha sido a intenção, desviou o foco do verdadeiro problema: a política de inserção subordinada da economia brasileira ao mercado financeiro global, a fantasia de que a economia do País seria estabilizada com o Tesouro pagando, como faz até hoje, as maiores taxas reais de juros do mundo. Se em 1998 a crise pegou o Brasil, no fim de 2000 ela pegou o coração do sistema: a economia americana mergulhou na recessão, grandes bancos entraram em crise e o setor de telecomunicações global perdeu seu ímpeto. Essa mudança na conjuntura ajuda a entender a ação da Telecom Italia, talvez a figura central no enorme conflito que se instalou no sistema das teles no País após a privatização. FHC e Fischer, no Planalto, em fevereiro de 1999: o essencial no orçamento era pagar os juros da dívida Folha Imagem (Bovespa), na ocasião, mostrava as concessões feitas. O governo permitiu ao capital estrangeiro comprar até 100% das ações leiloadas, em comparação com o máximo de 49% na Banda B. Suprimiu, além disso, a exigência de um operador internacional na formação dos consórcios compradores do controle, o que abriu mais espaço para a presença de instituições financeiras e investidores institucionais, e ampliou de 20% para 25% o limite de participação dos fundos de pensão no processo. Para arrematar, facilitou as condições de pagamento, a ser feito, então, em três parcelas – uma de 40% e as outras de 30% do valor, corrigidas pelo IGP-DI mais juros de 12% ao ano. Um dos argumentos centrais da crítica a Dantas é que ele foi favorecido pelo governo FHC e que o leilão da privatização das teles foi contaminado por seus dons malignos. De fato, as pessoas, representando grandes ou pequenos interesses, fazem a história. Mas não como a idealizam e, sim, dentro de condições determinadas. E essas condições não ajudam a provar que Dantas foi o gênio do mal no processo específico da privatização das teles. Diálogos exaustivamente divulgados mostram a clara preferência dos financistas do governo – Luiz Carlos Mendonça de Barros, então ministro das Comunicações, e André Lara Rezende, presidente do BNDES – pelo Opportunity na disputa pela Telemar, atual Oi, em detrimento da “rataiada”, que é como os dois se referem ao bloco liderado por Sergio Andrade, do grupo Andrade Gutierrez, e Carlos Jereissati, do grupo La Fonte. Os divulgadores desses diálogos, no entanto, geralmente deixam de lado a razão central dessa preferência. Mendonça de Barros e Lara Rezende queriam dólares. O consórcio capitaneado pelo Opportunity era formado pelo Citi, pela Telecom Italia (TI) e pelos fundos de pensão. Se esse consórcio adquirisse a Telemar, que foi vendida por 2,9 bilhões de reais, a parte correspondente ao Citi e à TI ingressaria no País em dólares. Já se a Telemar fosse comprada pelo bloco da dupla Andrade-Jereissati – como, de fato, ocorreu –, o pagamento seria (e o foi) exclusivamente em reais. O grande crime que os diálogos dos grampos revelam não é o favorecimento do Opportunity, que não existiu, porque o fundo não comprou a Telemar. O grande crime, no entender do repórter, está no fato de FHC, Lara Rezende e o então ministro da Fazenda, Pedro 23 10. No bloco dos grandes interesses A Telecom Itália (TI) fora privatizada em 1997, em um esquema aparentemente fantástico: um grupo de empresários, ancorado na figura lendária de Giovanni Agnelli, da Fiat, com 6,6% do capital da companhia, apoiado pelo Estado italiano, com uma golden-share de 3,46% do capital, supervisionaria a instalação de um comando empresarial telecom competente e estável. O esquema, no entanto, durou apenas dois anos. Em junho de 1999, o comando da TI passou de Agnelli, da Fiat, para Roberto Colaninno, da Olivetti, e, dois anos depois, deste para Marco Tronchetti-Provera, da Pirelli. No processo, a TI deixou de ser uma das grandes estatais públicas da Europa e tornou-se um monopólio italiano privado. Perdeu força no mercado, tornou-se menor que a Telefónica de Espanha, que tinha um quarto de seu tamanho no fim dos anos 1980 e, hoje, está no próprio bloco controlador da TI. A TI sob comando da Olivetti, empresa que produzia máquinas de escrever em conjunturas pretéritas e parecia sem futuro, viu, na crise e na telemática, na convergência das mídias, uma plataforma para sair da encalacração em que se encontrava. O Brasil foi parte importante desse projeto. O primeiro grande lance dado pela TI no País, depois da privatização, foi, tudo indica, forçar a BrT – a empresa comprada pelo bloco do qual faziam parte, junto com Dantas e além da TI, os fundos de pensão brasileiros e o Citi – a pagar um sobrepreço pela Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT). No esquema geral da privatização, a telefonia fixa da Telebrás foi dividida em quatro empresas, e a BrT era a parte que cobria as regiões Centro-Oeste e Sul do País. A CRT, uma operadora de telefonia regional, de propriedade do estado do Rio Grande do Sul, ficava na área da BrT e tinha sido privatizada antes do leilão da Telebrás. Passara para o controle da espanhola Telefónica. Pelas regras do novo esquema, a Telefónica teria de vender a CRT aos controladores da BrT, o que acabou ocorrendo em julho de 2000, quando a empresa espanhola recebeu deles 800 milhões de dólares. Isso só ocorreu, entretanto, após uma encarniçada batalha na qual o Opportunity denunciou que estava sendo pressionado pelo 24 governo federal a pagar mais do que a CRT valia. Em 2006, ao depor na CCJ do Senado, Dantas disse que estimava esse sobrepreço em 200 milhões de dólares e que tinha sido exatamente para descobrir o caminho desses dólares que a Brasil Telecom teria contratado, no fim de 2002, a Kroll, empresa de auditoria posteriormente acusada de espionagem ilegal no Brasil, a seu mando. Não há dúvida de que a compra da CRT foi o episódio que primeiro dividiu o bloco de acionistas da BrT. De um lado ficaram Dantas e o Citi. Do outro, a TI e os fundos de pensão brasileiros. Porque os fundos de pensão ficaram com a TI desde 2000, quando seus principais dirigentes eram nomeados pelo governo FHC, é questão relevante, a ser examinada mais adiante. A posição da TI era explícita. Colaninno a apresentou no Brasil ao diário Valor Econômico logo depois que assumiu o controle da empresa: ele queria mudar o contrato assinado com o Opportunity em 1998, para ter o controle da BrT. Dantas contou a mesma história com detalhes no depoimento ao Congresso em setembro de 2005. Ele e Colaninno reuniram-se em maio de 2000 numa sala reservada do Copacabana Palace, no Rio. “Disse que não havia sentido em que a Telecom Italia, sendo uma empresa de telefonia, não fosse a controladora da Brasil Telecom”, contou Dantas aos senadores e deputados. “Ele disse que queria o controle da Brasil Telecom e que só faria sentido para ele ser controlador. Eu até argumentei e disse: Até entendo, mas o senhor também, enquanto Olivetti, é uma empresa financeira que comprou a Telecom Italia. Então, no aspecto empresarial, estamos no mesmo nível”. O contrato que dava o controle ao bloco de três fundos comandado por Dantas fora assinado dessa forma pelos executivos e advogados nomeados na gestão de Agnelli, que estava, então, preocupado apenas com os rendimentos do investimento. Não queria, ao contrário da gestão de Colaninno, assumir o controle da empresa brasileira na esperança de realizar grandes negócios com ela. É certo que Colaninno foi ajudado por outras vítimas da crise que também tentaram sair dela desatando as amarras contratadas com Dantas. Uma delas foi a TIW. A empresa canadense participou junto com vários sócios – como o próprio Dantas – do leilão da Banda B da telefonia celular de 1997, mas teve de criar as empresas nos locais onde ganhou: a Telet, no Rio Grande do Sul, e a Americell, na região Centro-Oeste. Mandava nessas empresas, mas estava tendo prejuízo com elas. Perto do fim de 2000, quando a crise do mercado das empresas da chamada nova economia disparou, a TIW amargava prejuízos somados de cerca de 1 bilhão de dólares, segundo estimativas. Só eram lucrativas suas participações na Telemig Celular e na Amazônia Celular, as ex-estatais que comprara junto com os três fundos comandados por Dantas, dos quais era sócia, com 49%. Entre os 11 assentos do Conselho de Administração da holding do grupo, a TIW tinha cinco e nomeara um diretor de operações na Telemig. Mas, de fato, não comandava estrategicamente a empresa. A TIW iniciou então uma série de ataques contra Dantas com o objetivo de assumir o controle das duas ex-estatais. Isso se vê de modo explícito em outro dos inúmeros grampos dessa história, o das conversas entre Nelson Tanure, dono do diário Jornal do Brasil, um ex-consultor de Dantas e então seu assessor, Paulo Marinho, Bruno Decharme, diretor internacional da TIW, e o jornalista Ricardo Boechat. O famoso colunista publicara em O Globo, em 16 de abril de 2001, uma nota com informações reveladoras dos planos do Opportunity para derrubar, no dia seguinte, numa assembleia, dois conselheiros da Telpart, a controladora da Telemig, que haviam desmontado o controle de Dantas nessa empresa, ao terem se bandeado do lado dele para o dos canadenses da TIW. No mesmo dia, a Previ moveu uma ação na Justiça pedindo uma liminar contra a realização da assembleia. No mesmo dia, a obteve. Nas transcrições das conversas divulgadas, lê-se Tanure comentando seu acordo com Decharme para “levar Dantas à loucura” e Marinho dizendo a Boechat que o tal artigo, ainda a ser publicado, “diz tudo o que a gente queria falar”. Em 2003, finalmente, a TIW perdeu a batalha e, no acordo com o Opportunity para lhe vender sua parte na Telemig e na Amazônia Celular, assinou documento no qual diz explicitamente que a sua motivação ao mover as ações legais contra Dantas e suas afiliadas, inclusive “nas quais certos fundos de pensão brasileiros são parte”, é decorrente de retratodoBRASIL 21 “preocupações comerciais estratégicas”. Ou seja: business, just business; negócios, apenas negócios. O esquema de Colannino não foi longe. A grande armação financeira que ele fizera com o Chase Manhattan para comprar a TI foi abalada: com a crise, o banco americano passou a pressionar para receber dos que lhe deviam. Tudo indica que o agressivo Colannino, aproveitando-se do fato de que as Organizações Globo estavam falidas, com uma dívida de 2 bilhões de dólares, montou um esquema, acertado com o Chase: tirou dinheiro com o qual a Olivetti pagaria o Chase, para a Globo pagar o Chase, o que, para o banco, dava na mesma. E, para Colannino, mantinha vivas as esperanças em um de seus projetos importantes -ð o do portal Globo.com, que valeria o meio bilhão de dólares que a TI investiu nele, pensando em exportar novelas para toda a América Latina. Em pouco tempo, no entanto, o portal passou a valer umas poucas dezenas de milhões de dólares. Colannino caiu e Tronchetti-Provera, da Pirelli, assumiu a TI em fins de 2001. 11. Os espiões italianos são melhores Em 22 de julho de 2004, a Folha estampou como manchete principal: “Empresa privada espiona o governo Lula”, referindo-se especialmente ao então ministro Gushiken, cujos e-mails teriam sido espionados. Essa denúncia firmou a convicção de que Dantas é um “monstro”, que espiona tudo. A revista CartaCapital, em inúmeras capas, pintou a imagem do “orelhudo”. O que existia a essa altura era uma investigação da Kroll internacional encomendada pela presidente da Brasil Telecom, Carla Cico, em dezembro de 2002 e capturada pela Kroll, em função de movimentos comandados pela Telecom Italia de Tronchetti Provera, como se verá adiante. Tronchetti-Provera é um homem de negócios. Queria fazer deslanchar, no Brasil, os negócios do celular, a Telecom Italia Mobile (TIM). Na gestão de Colaninno, com seus poderes de sócio estratégico na BrT, a TI havia imposto condições que tornaram impossível à companhia participar do leilão de licenças para a telefonia móvel de fevereiro de 2001 e comprara licenças de celular para a TIM em todo o País, inclusive na área onde a BrT atuava. Colaninno deixou essa herança, complicada, para Tronchetti-Provera. Pelas regras da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), uma empresa não podia ter duas teles numa mesma área. Por estar no bloco de controle da BrT, a TI só poderia operar celular no Centro-Oeste e em todo o Sul do País se a BrT pagasse um preço: antecipasse o cumprimento de suas metas de universalização dos serviços de telefonia fixa. Maria Amália Coutrim, sócia de Dantas, explica os fundamentos e as posições assumidas pela BrT no longo debate que se seguiu com a TI. Primeiro, a BrT encomendou estudo ao banco de investimentos UBS Warburg. O estudo mostrou que a BrT perderia dinheiro – 240 milhões de reais -ð se antecipasse as metas de universalização. Isso porque a antecipação era um ônus imposto a ela em troca de um bônus: a licença para operar o celular, coisa que a BrT não tinha. A companhia decidiu, então, não antecipar a universalização. Iria cumprir essa meta no pra- Folha Imagem Manchete da Folha, 22 de julho de 2004: o jornal denuncia Dantas como “espião” e ajuda a formar a imagem do “monstro” retratodoBRASIL 21 25 A Petrobras é mais do que uma empresa de petróleo. E, se você pensar bem, mais do que uma empresa de A Petrobras é respeitada no mundo inteiro por sua tecnologia e liderança na exploração e produção de petróleo em águas profundas e ultraprofundas. É pioneira em biocombustíveis e investe sempre em fontes alternativas de energia. Mais do que www.petrobras.com.br energia também. isso, a Petrobras é uma empresa comprometida com o desenvolvimento social e a sustentabilidade, valorizando a cultura, as artes, o meio ambiente e a cidadania. Se o futuro é um desafio, a Petrobras está pronta. zo máximo permitido pela Anatel, janeiro de 2004. Até lá, portanto, a TIM não poderia operar celular em grande parte do Brasil. Com o mercado de celular disparando, Tronchetti-Provera recuou e as negociações tiveram um primeiro acordo no fim de agosto de 2002. Por ele, a TI reduziu sua participação acionária na BrT e saiu do bloco de controle da companhia, com o direito de voltar depois do cumprimento, pela BrT, das metas de universalização. Três meses depois, em novembro, sob orientação de Dantas, a BrT fez outro lance estratégico: comprou licenças para operar celular na sua região. Ficaram, então, a BrT e a TI com licenças de celular superpostas. E mais: a TI com o direito de voltar ao bloco de mando da BrT. O conflito tinha data certa para estourar: janeiro de 2004, quando a BrT já teria cumprido suas metas de universalização, o que de fato ocorreu. Ela e a TI, por meio da TIM, estavam com licenças para celular superpostas numa mesma área, E a TI, com direito de voltar ao bloco de controle da BrT. Quem tinha razão? Maria Amália diz, com razão, que o governo Lula e os fundos de pensão se voltaram contra Dantas na disputa, mas que a razão estava com ele, nas opções da BrT que comandou. “Tronchetti-Provera declarou, na sala do então ministro das Comunicações, Miro Teixeira, que o Opportunity era esquizofrênico. Declarou também que era a BrT que tinha de abdicar do serviço de telefonia móvel. Ora, o celular era o futuro. Sem o celular, a BrT não teria futuro.” No fim de 2002, com Lula já eleito, Dantas recebeu um recado de TronchettiProvera por meio de um assessor da BrT, o publicitário Mauro Salles. Este se encontrara com Naji Nahas, financista conhecido, então representando Tronchetti-Provera. Nahas disse que tinha estado com Carlos Jereissati, da Telemar, cujas relações com os fundos de pensão das estatais eram antigas, e este lhe teria dito estar a par dos futuros passos desses fundos, especialmente da Previ, no futuro governo Lula. Jereissati disse a Nahas que o novo governo se comprometera a tirar o Opportunity das teles. Melhor seria, portanto, Dantas negociar com Tronchetti-Provera, pois o dano a sofrer seria menor. Dantas criptografou o recado transmitido por Salles e publicou o resultado em seis edições dos classificados do diário O Estado de Minas, entre 22 de novembro de 2002 e 28 de março de 2003. 28 A TI acabou aceitando que uma solução para seu conflito com o Opportunity fosse dada por um tribunal arbitral, em Londres. As negociações nesse fórum começaram em dezembro de 2003. Mas Tronchetti-Provera tinha outros trunfos. Sob sua gestão, sabese agora, graças a um processo conduzido pela Justiça italiana, que ocorreram fatos que levaram duas dúzias de pessoas do setor de segurança da Pirelli a serem detidas sob acusação de atividades ilegais, principalmente escutas clandestinas. O juiz do processo, Giuseppe Gennari, de Milão, diz nos autos que descobriu, numa investigação de dois anos, uma “estrutura criminosa”, “plasmada especificamente por Giuliano Tavaroli”, o responsável pela segurança de empresas associadas da Pirelli, entre as quais, destacadamente, a TI. Tavaroli ficou preso por um ano. Nos seus depoimentos, disse que Nahas recebeu, em espécie, numa valise, alguns milhões de dólares e mais depósitos bancários como prestador de serviços para a Telecom Latinamerica. A investigação italiana encontrou Naji Roberto Nahas como “prestador de serviços” dessa empresa e somou as quantias recebidas por eles a esse título, entre 2002 e 2006: exatamente 25.473.811 euros. Foi a TI que, de certo modo, deflagrou a Operação Chacal. Ângelo Jannone, responsável pela segurança da TIM Brasil, também investigado e preso posteriormente no processo italiano, entregou à PF em Brasília, em 2004, em formato digital, documenta- ção da Kroll obtida pelo “Tiger Team”, um grupo a serviço da divisão de segurança da TI. O “Tiger Team” entrou no servidor da Kroll por meio de uma operação de “hackeragem” contra um agente da empresa, Omer Oerghinzoy. O presidente da TI no Brasil, Paolo Dalpino, entregou cópia da documentação já em poder da PF “talvez à Folha de S.Paulo”, disse Tavaroli num dos depoimentos na Itália. Nos autos da Operação Chacal, a investigação aberta pela PF a partir da denúncia da TI, não há nenhuma acusação de grampo contra Dantas, nem mesmo contra a Kroll. E os e-mails trocados entre Demarco e Gushiken não foram capturados por grampo da Kroll, nem, como a Folha sugere na manchete, quando Gushiken era ministro, mas, sim, anos antes, pela então mulher de Demarco, como já contamos. Nos autos da Chacal, lidos pelo repórter, percebe-se que a Kroll, grande empresa internacional especializada em perseguir a origem de dinheiro sujo, controlada pela IBM, já contratada várias vezes pelo governo e por empresas brasileiras, parece ter mãos limpas. Mas, na ponta, parece, também, comprar funcionários públicos menores para obter informações, fichas cadastrais, extratos. Dantas disse ao repórter que acusá-lo por problemas desse tipo na investigação da Kroll seria muito mais injusto do que acusar o presidente Lula pelos supostos erros de Delúbio Soares no “mensalão”, visto que, comparando-se os dois casos, os passos na cadeia de comando até ele eram muito maiores. 12. Uma outra crítica é possível O presidente Lula, com certeza, apoiou a campanha contra Dantas. No início de seu governo discursou em seminário dos fundos de pensão das estatais chamando-os de estratégicos. Colocou como seu ministro de “assuntos estratégicos” Luiz Gushiken, especialista em fundos de pensão, com uma antiga ligação com o arquiinimigo de Dantas, Demarco. Gushiken foi o responsável pela indicação de Sergio Rosa, para o comando da Previ, e de Wagner Pinheiro, para o comando da Petros, os dois, como ele, do movimento sindical dos bancários de São Paulo. E, sob o comando de Rosa, o governo Lula unificou as ações contra Dantas dos três grandes fundos das es- tatais, incluindo a Funcef, para onde foi o economista Guilherme Lacerda, mais ligado a José Dirceu. Rosa passou a ouvir Demarco por indicação de Gushiken, conforme disse ao repórter de RB. E os três grandes fundos “deram velocidade e priorização”, como diz Pinheiro, à campanha para afastar Dantas do comando dos fundos que vinha do governo anterior. Indiretamente, a demonização de Dantas contribuiu para gerar a impressão de que um grande problema da privatização das teles brasileiras foi eliminado com sua expulsão do setor. Muitos acham que, de um modo bem amplo, a privatização das telecoretratodoBRASIL 21 Sergio Lima/ Folha Imagem Pinheiro, da Petros, Rosa, da Previ, e Lacerda, da Funcef: eles comandaram a ofensiva que derrubou Dantas do fundo nacional, do fundo do Citi e da BrT municações foi um grande feito dos governos liberais. São apontados, como prova desse êxito, os números de linhas fixas e de celulares que existiam antes da privatização e os que existem agora. E o fato de que qualquer prestador de serviços sem escritório fixo hoje poder responder, pelo seu celular, imediatamente, a todos os seus possíveis clientes. E coisas do gênero. O repórter não pensa assim. Acha que o negócio da telefonia no País, com a privatização, tornou-se uma espécie de indústria automobilística, oferecendo a parcelas maiores da população um bem sofisticado que, no entanto, é produzido, como os carros, sem maior desenvolvimento da indústria e da tecnologia locais. O Brasil, não tem, por exemplo, uma indústria de produção de chips, básicos para a telemática e a construção dos celulares. E, por esse motivo, no saldo exportação-importação nesse setor, tem um déficit anual de perto de 10 bilhões de dólares. Mesmo a chamada tele verde-amarela, resultante da fusão da BrT com a Oi, com alguns compromissos de palavra com o desenvolvimento de tecnologias locais, não se pode ter como uma perspectiva de longo prazo. Ao final dos acordos para a constituição da nova empresa, a dupla de controladores Andrade-Jereissati acabou convencendo o governo de que não deveria existir, no apoio que recebeu, tanto do presidente Lula que comandou a mudança de leis para que a fusão ocorresse, como dos bancos de financiamento oficiais, que contribuíram com vários milhões de reais para financiar a operação, qualquer cláusula que os impedisse de vender a companhia a um comprador de fora do País. retratodoBRASIL 21 O repórter acha que o destino da tele verde-amarela pode ser o mesmo da Ambev, que resultou da fusão, incentivada pelo governo federal, das cervejarias Brahma e Antarctica. A global Ambev, nascida de processo abençoado com o dinheiro do BNDES e apoio político oficial, também seria verdeamarela. Mas, hoje, tem sede num paraíso fiscal, onde têm domicílio oficial seus grandes controladores, executivos de private equity do mesmo tipo e época de Dantas. Wagner Pinheiro, presidente da Petros, o fundo de pensão da Petrobras, disse ao repórter de RB, em meados de março, que o acordo de formação da BrOi dá ao governo o direito de impedir a venda. Ela só pode ser feita com a concordância de 85% dos acionistas do bloco de controle. E nesse bloco, só o BNDES tem 16%. E Previ, Petros mais Funcef têm 32,9%, diz Pinheiro. RB procurou também as duas principais lideranças do PT na área dos fundos de pensão, Dirceu e Gushiken. Dirceu conversou com o repórter duas vezes em fins do ano passado e meados de março. Acha que o governo errou ao ter tomado partido contra Dantas na disputa do empresário com os fundos de pensão. E disse ter deixado isso claro a Gushiken e a Sérgio Rosa quando era ministro. Quando o repórter lhe perguntou se ele sabe se o governo, por meio de suas autoridades de segurança, como o diretor geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Mauro Marcelo, apoiou os trabalhos clandestinos da TI no Brasil, como está em depoimentos nos autos do inquérito italiano, ele disse não saber. Mas admitiu que isso pode ter acontecido sem conhecimento do primeiro escalão do governo. Gushiken não quis falar, sob qualquer forma. Não quis, sequer, receber o texto antes de ele ser publicado, para ajudar com a correção de possíveis erros factuais ou de raciocínios muito tortuosos. Os três principais dirigentes dos grandes fundos, Sérgio Rosa, da Previ, Wagner Pinheiro, da Petros e Guilherme Lacerda, da Funcef, receberam o repórter. Os três foram os comandantes das grandes operações que desmantelaram o esquema de Dantas nas telecomunicações: 1) sua destituição do fundo nacional, em outubro de 2003; 2) as pressões contra o banco americano, negando-lhe contratos e intermediações, que levaram finalmente o Citi a afastar Dantas do comando do seu fundo em Cayman, em março de 2005; 3) a destituição de Humberto Braz do comando da BrT Participações, a controladora direta da BrT, no final de 2005; e 4) a devassa que foi feita na BrT, a partir da nova diretoria, nomeada após o afastamento de Braz, e que acabou resultando em vários processos contra o grupo de Dantas. Dessa devassa saiu a pincelada última no retrato do demônio Dantas. O departamento jurídico da nova BrT contratou um advogado conhecido, José Roberto Santoro, um ex-procurador da República. Em 2002 ele foi apontado pelo ex-presidente Sarney como sendo um dos articuladores da operação que acabou exibindo pelo Jornal Nacional da Globo pilhas de dinheiro flagrado em escritório ligado à campanha de sua filha Roseana, então candidata a candidata da coligação PSDB-PFL para disputar a Presidência contra Lula. 29 Santoro acabou afastado do cargo quando foi divulgado grampo de Santoro, feito pelo bicheiro Carlos Cachoeira, na própria sede da procuradoria, em Brasília. Às três horas da manhã, Santoro procurava convencer Cachoeira a entregar-lhe uma gravação que serviria para matéria sobre pedido de propina, de anos anteriores, feito por Waldomiro Diniz, na época assessor do então ministro José Dirceu. Com base nos seus arquivos, sob o comando de Santoro, a nova BrT despejou na Justiça uma dezena de novas ações contra Dantas e as empresas que controla. E os jornais e revistas passaram a ser alimentados com notícias para reforçar as operações jurídicas. Várias artigos foram publicados com informações saídas evidentemente da BrT e reforçaram, por exemplo, a tese de que Dirceu, apontado como chefe da quadrilha do “mensalão” era financiado por Dantas a partir da Telemig e da BrT, que eram atendidas por agências de publicidade comandadas por Marcos Valério e Duda Mendonça. Os dirigentes da Previ, Petros e Funcef não se identificam com as posições de Santoro. Os três disseram ao repórter que cobraram do presidente da nova BrT explicações pela contratação do polêmico advogado e que não as consideraram convincentes. 13. Ornitorrincos ou tico-ticos? Nenhum dos presidentes dos três grandes fundos de pensão das estatais, no entanto, parece ter dúvidas de que era preciso romper com Dantas. Rosa tem 49 anos. É jornalista formado pela Escola da Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Foi diretor eleito da Previ em 2000 e, desde o início do governo Lula, é presidente nomeado do fundo. Comandou o grupo que esteve em Nova York, no final de 2004, para a cerimônia de aproximação que abriu caminho para o “acordo put”, de garantia de preço para eventual compra futura das ações do Citi na BrT. Ele diz o que pode ser atribuído também a Pinheiro e Lacerda: nas estruturas societárias, só Dantas mandava, e ninguém mais. Para todos, o repórter perguntou se o esquema de controle da BrT por Dantas não era, como lhe parecia no exame da estrutura de societária de diversas empresas privatizadas, antes a regra do que a exceção. De um modo geral, todos concordaram que é assim. Os fundos põem muito dinheiro e mandam pouco. Guilherme Lacerda, da Funcef, disse mais, no mesmo sentido: que no capitalismo brasileiro é praticamente regra haver grande parte de ações preferenciais, sem direito a voto, o que faz com que o controle das empresas se faça por detentores de muito pouco capital. O repórter aponta mais um problema. Os dirigentes sindicais do PT, como Rosa, Pinheiro e Lacerda, não foram contra a privatização? E, agora, os fundos de pensão não estão sendo beneficiados por ela? Pi30 nheiro disse ao repórter que era “presidente de um fundo de pensão, gestor de recursos de terceiros que estão alocados em empresas capitalistas” e que seu papel é o de “zelar por este patrimônio” e que “as crenças e posições políticas” não devem pautar “o seu papel de gestor dos recursos”. Lacerda é um petista de longa data e um intelectual, doutor em economia pela Unicamp. Diz que o repórter aponta, de fato, um problema.“Tome-se o caso da Vale. Ela foi privatizada e depois teve esse crescimento estupendo. Quem ganhou? Foram todos os acionistas, é claro. E funcionários, dirigentes. Entre os acionistas, quem tinha mais, ganhou mais. Nesse sentido, a Previ ganhou mais, foi a grande beneficiária. A Funcef também ganhou muito. Aí há uma contradição se colocando. A Previ é dos trabalhadores e do Banco do Brasil. Mas não é de todos os trabalhadores. É de um grupo de trabalhadores”. Como resolver essa contradição? Na época do “mensalão”, Lacerda escreveu artigo no qual comentava a imagem criada pelo sociólogo Chico de Oliveira de que os dirigentes dos fundos de pensão seriam bichos estranhos, como o ornitorrinco, no sentido de estarem a meio caminho entre o socialismo e o capitalismo. Os fundos de pensão nos governos liberais que antecederam Lula, respondeu Lacerda, foram como os tico-ticos, que chocam os ovos dos chupins, aproveitadores do trabalho alheio. E agora, o compromisso dos dirigentes dos fundos de pensão seria “desatar complexos nós surgidos à época da privatização”. Não parece que a demonização de Dantas corresponda a esse objetivo. Ainda hoje os fundos das estatais dizem que foi um encontro entre Dantas e FHC em 2002 que promoveu um retrocesso na política dos fundos. De fato, o que ocorreu foi outra coisa. Em 2001, o governo aprovou a Lei Complementar 108, que estabeleceu como regra que a entidade mantenedora do fundo de pensão – a Petrobras no caso da Petros, a Caixa Econômica Federal, no caso da Funcef, e o Banco do Brasil, no caso da Previ – poderiam criar estruturas paritárias para a direção dos fundos. Metade dos postos dos conselhos de direção seriam ocupados por trabalhadores eleitos por seus pares, metade por representantes nomeados pelo mantenedor. O voto de minerva nesses conselhos paritários seria necessariamente da empresa pública mantenedora. Por muito tempo o PT ficou discutindo apenas a questão formal da eleição e do estatuto de poder dos eleitos ou nomeados, mas não o tipo de política – seu conteúdo de classe – a ser posta em prática por esses dirigentes. No poder, o PT desistiu da mudar o estatuto criado por FHC e o manteve. O voto em qualquer questão decisiva, na executiva e no conselho deliberativo dos fundos, tem necessariamente a concordância do governo. Falta, parece claro ao repórter, uma participação maior dos dirigentes dos fundos, saídos do movimento de trabalhadores, na orientação da política de investimentos gerais do País, para tirá-lo da dependência, um problema que vai além dos horizontes corporativos dos trabalhadores de umas poucas empresas. Que são, de certo modo privilegiados, e têm contradições com os interesses do conjunto dos trabalhadores e mesmo com os interesses de camadas médias do País. No caso da disputa Provera contra Dantas, se os fundos tivessem vencido a batalha e assim Provera tivesse ganho, o resultado mais provável é que não haveria uma solução para as telecomunicações brasileiras com um mínimo de conteúdo nacional. Nem mesmo o do tipo que a BrOi representa. O argumento usado pelos fundos de pensão, ainda hoje, é o de que o negócio com a TI era melhor, do ponto de vista comercial. Eles não incluem nenhuma consideração de ordem nacional. Isto porque, é claro, por considerações apenas de ordem comercial, apoiaram a empresa estrangeira. retratodoBRASIL 21 Futebol: DRIBLANDO A LEI Com o fim do passe, os jogadores deveriam deixar de ser mercadorias. Mas há muitas formas de manter tudo mais ou menos como era no passado | Rafael Hernandes retratodoBRASIL 21 Anderson passou a “bater uma bolinha” – isto é, treinar – com os jogadores profissionais do Porto. Quando completou 18 anos, estreou pelo time profissional. COZINHEIRA BEM PAGA O artifício utilizado pelo clube português, no entanto, é uma burla ao espírito da regulamentação da Fifa. A evidência é o salário recebido pela mãe de Anderson, na casa das dezenas de milhares de euros, algo que, certamente, pouquíssimos chefs da cozinha internacional conseguem. O Porto, obviamente, pagava a Anderson, por meio do restaurante – ao qual, aliás, ela nunca apareceu –, o salário que ele deveria, mas não podia, por razões legais, receber. O caso foi denunciado ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de Portugal, que abriu investigação sobre o ocorrido. Como não foram encontradas provas suficientes e Anderson acabou se transferindo para a Inglaterra, o caso não foi adiante. No Brasil, o fim do passe foi regulamentado pela chamada Lei Pelé, de 1998. A nova legislação, assim como a estrangeira, tinha como objetivo declarado extinguir a espécie de servidão que existia na relação entre os clubes e os jogadores brasileiros. Mas, assim como a legislação internacional, a Lei Pelé dei- Folha Imagem Anderson é um cara sortudo, além de talentoso. Após fazer sucesso disputando a segunda divisão do Campeonato Brasileiro pelo Grêmio porto-alegrense em 2005, com apenas 17 anos ele se transferiu para o Porto, tradicional clube de Portugal. De lá, entre uma e outra convocação para jogar pela seleção brasileira (imagem), foi parar no Manchester United, time inglês em que atua ao lado de Cristiano Ronaldo, escolhido pela Fifa como o melhor jogador de futebol de 2008. Um detalhe de sua história ilumina o cenário do mundo do futebol profissional atual, especialmente um de seus cantos mais obscuros: o dos negócios. Desde o fim, na década passada, do “passe” – figura jurídica que obrigava os jogadores de futebol a se manterem atrelados a seus clubes de origem – , o futebolista profissional deixou de ser considerado uma mercadoria negociada entre os clubes e, em tese, se transformou num trabalhador que presta serviços a quem o contrata. Diferentemente da época do passe, encerrado o prazo do contrato nada mais o prende ao contratante e, se qualquer uma das partes quiser romper o compromisso em vigência, paga uma multa como em qualquer outro negócio. Parece tudo muito claro em teoria. Na prática, no entanto, a situação é diferente, como revela a história de Anderson. Uma das condições impostas pela Fifa, a entidade que regula mundialmente o futebol, é a proibição de transferências internacionais de menores de 18 anos, como forma de prevenção contra a exploração de adolescentes. Mas, então, como Anderson pôde ser contratado pelo Porto aos 17 anos? Para driblar a regra da Fifa, o clube português repetiu um esquema comumente utilizado pelos clubes europeus. Para garantir que Anderson ficasse vinculado ao clube mesmo antes de assinar um contrato profissional, ele se mudou para Portugal com a mãe. Lá, ela foi contratada como cozinheira por um pequeno restaurante português, de forma a permanecer legalmente no país, e 31 xou abertos caminhos para um sem-número de novas formas de exploração, inclusive de adolescentes. Neymar Santos Júnior, atacante do Santos Futebol Clube, protagoniza um desses casos, também com final feliz. Sua história se desenrola desde quando ainda não havia completado 16 anos, idade mínima exigida pela legislação nacional para que se possa assinar o primeiro contrato profissional de trabalho. A essa altura ele já chamava a atenção de muita gente, inclusive de times europeus, como o Real Madrid (Espanha) e o Chelsea (Inglaterra). Diante da possibilidade de perder um jovem e promissor talento e, assim, deixar de ganhar muito dinheiro com uma possível transferência realizada mais tarde, a diretoria do Santos procurou e achou um meio legal de mantê-lo vinculado ao clube: um contrato de licença de uso de imagem. O contrato de imagem é comumente usado no meio artístico por atores e modelos infantis que participam de novelas, filmes e comerciais de TV. “É um contrato que o vincula ao Santos, embora não como atleta profissional”, diz o advogado especializado em direito esportivo Edson Sesma. “Esse tipo de acordo pode ser feito até com bebês recém-nascidos”, explica. RESCISÃO, O VELHO “PASSE” Quando completou 16 anos, Neymar assinou seu primeiro contrato como futebolista profissional e, em fevereiro, quando completou 17 anos e nem havia estreado profissionalmente, o acordo foi renovado em bases bem mais generosas para o jogador. Interessantes são os detalhes: primeiro ficou acertado que, em uma possível transferência para outro clube, 40% do valor da multa rescisória estabelecida (estimada em 30 milhões de euros) seria repassado ao Grupo Sonda. Em troca, este pagaria 2,5 milhões de euros à família do atleta, detentora desse direito. Ficou acertada também a emancipação civil de Neymar, de forma que ele pudesse assinar um compromisso de longo prazo, de cinco anos, maior que o máximo de três anos permitido para atletas entre 16 e 18 anos. Os detalhes do contrato de Neymar revelam que a tal multa rescisória, que deveria ser paga por quem rompe o contrato, funciona, na verdade, como a antiga transação de compra e venda do passe do jogador. A diferença é que hoje a multa é temporária, válida apenas para o tempo da vigência do con32 trato, enquanto na época do passe os direitos do clube valiam praticamente durante toda a carreira profissional do atleta. O direito da família de Neymar a uma parte do valor da multa rescisória, a qual, eventualmente, deveria ser paga pelo próprio jogador, mostra também uma semelhança com o que ocorria no passado, quando o jogador tinha direito a uma porcentagem do valor estabelecido por seu passe. A Lei Pelé parece também ter incentivado a criação de um mercado paralelo para negociar os altos valores envolvidos nessas transferências disfarçadas de multas rescisórias. A participação do Grupo Sonda é apenas um dos muitos exemplos de investidores, pessoas físicas ou jurídicas, que adquirem direitos sobre as transações que envolvem jogadores. Não é incomum que o primeiro detentor desse direito revenda tudo ou parte dele a terceiros, o que acaba, muitas vezes, complicando transações futuras em razão das divergências de interesses entre os diferentes investidores envolvidos. Se as histórias dos jogadores de futebol se resumissem aos finais felizes vividos por Anderson e Neymar, seria o caso de dizer que as manobras legais para contornar a legislação são aspectos secundários do problema. Infelizmente, nem todos têm a sorte desses dois. “Temos muitos jovens que, sonhando em se tornar jogadores de futebol, acabam confiando em desconhecidos e são explorados”, diz Frans Nederstigt, coordenador do Projeto Trama, organização de respeito aos direitos humanos. É o caso de José de Melo Júnior, de 21 anos. No ano passado, quando encerrava seu contrato com o Santos, seu último time, recebeu uma proposta de um homem chamado Sílvio, supostamente empresário, para atuar pelo Ionikos, time da segunda divisão da Grécia. Discutidas as bases do acordo e financiado por um amigo, partiu para Atenas, onde, dois dias depois, assinaria contrato. Foi recebido por um brasileiro e instalado em um bom hotel para aguardar um sócio de Sílvio que o levaria até o clube para fechar o acordo. Os dias se passavam e ele não recebia nenhum contato nem conseguia falar com o empresário no Brasil. Sem falar inglês – e muito menos grego – e sem seu passaporte – retido pela administração do hotel, que permitiu que ele continuasse dormindo e comendo no local –, Melo entrou em um beco sem saída. Felizmente, depois de quase cinco meses na Grécia, o agente de seu irmão, também jogador, ficou sabendo da história e resolveu pagar de seu bolso todas as despesas de hotel e trazê-lo de volta, no início de fevereiro. Casos como o de Melo são mais comuns que os de Anderson ou Neymar e envolvem uma figura que ganhou grande destaque à medida que, nas últimas décadas, a mercantilização do futebol se acentuou: a do intermediário que conta, a seu favor, com a frouxa fiscalização da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). COMÉRCIO DE JOGADORES São legalmente autorizados a exercer a função de empresários dos jogadores os chamados “agentes Fifa” (credenciados pela entidade), advogados, pais, cônjuges e irmãos, explica Sesma. Mas um acordo pode ser fechado mesmo sem a participação formal de um representante legal. Assim, um indivíduo pode intermediar uma negociação – e, com isso, receber parte dos valores envolvidos nela – e simplesmente não colocar seu nome no contrato. “O futebol é a comercialização do atleta”, diz Nederstigt. “Funciona no sentido de investir em atletas mesmo se eles ainda não podem dar retorno. Se eles se tornam um bom investimento, ficam todos felizes. Mas, se não, esses atletas de 16, 17, 18 anos são abandonados.” Trata-se de um fenômeno especialmente forte no Brasil. De um lado, há o fato de que, somente em 2007, os 20 maiores clubes brasileiros arrecadaram mais de 455 milhões de reais com a negociação de atletas, pouco mais de um terço de sua receita total naquele ano. De outro lado, estão os jovens, em sua grande maioria vindos de origem muito pobre, que veem no futebol um meio de enriquecer, assim como Ronaldo, Kaká ou Robinho, que são como gotas d’água no mar de candidatos a ídolo. No Brasil, o futebol exerce um grande atrativo como forma de ascensão social, diz Sandro Orlandelli, avaliador de jogadores, com anos de experiência trabalhando para o Arsenal, da Inglaterra. “Na Europa, o garoto com 13 ou 14 anos começa a criar independência e tem oportunidades proporcionadas pelo governo e pela estrutura familiar, que fazem que ele possa escolher em qual profissão atuar. Ele não se vê em uma situação de desespero, como os jovens brasileiros se veem”, completa. retratodoBRASIL 21 REUTERS/Adrees Latif Nepal: AVANÇO REVOLUCIONÁRIO PROMISSOR Os maoistas, aliados a outras forças, enfrentam o desafio de conduzir a transição com um programa moderado e sem perder a revolução de vista | Samir Amin O Nepal, pequeno país de 147 mil quilômetros quadrados e quase 30 milhões de habitantes, encravado entre China e Índia no lado sul da cordilheira do Himalaia, foi uma monarquia nos primeiros 240 anos de sua história independente, completados no ano passado. Reformas políticas introduzidas nos anos 1990 transformaram o regime, antes autocrático, numa monarquia constitucional e criaram um sistema multipartidário. A partir de 1996,o regime passou a enfrentar uma revolta armada liderada pelo Partido Comunista do Nepal-Maoista (PCN-M). Em abril de 2006, após inúmeras crises políticas que levaram à renúncia do rei Gyanendra, os rebeldes maoistas chegaram a um acordo que encerrou a guerra civil. No ano seguinte, eles se juntaram ao governo provisório então instalado em Katmandu. No ano passado, uma Assembleia Constituinte eleita com ampla liberdade partidária e na qual os maoistas se tornaram a principal força aboliu a monarquia e transformou o Nepal numa república federal. Em agosto, um gabinete liderado pelos maoistas foi instalado no poder tendo à frente Prachanda, o principal líder do PCN-M. O texto a seguir, de autoria de Samir Amin, foi publicado na edição de fevereiro da revista americana Monthly Review. Amin é um conhecido e respeitado intelectual egípcio, autor de vários livros e artigos. Aqui, ele procura sintetizar o processo político em curso no Nepal e traçar suas perspectivas. Imagine. Um exército de libertação que apoia uma revolta camponesa generalizada chega aos portões da capital, onde o povo se insurge, tira a realeza do poder e acolhe como seu libertador o Partido Comunista do Nepal-Maoista (PCN-M), cuja eficiente estratégia revolucionária dispensa maiores demonstrações. O que está em questão aqui é o avanço revolucionário vitorioso mais radical da nossa era e, por isso, o mais promissor. Essa vitória no Nepal criou as condições para uma revolução popular nacional e democrática descrita pelo próprio PCN-M como uma revolução antifeudal e anti-imperialista. De fato, a revolta urbana generalizada, unindo as camadas empobrecidas da população com a classe média, forçou todos os partidos políticos do Nepal a se proclamarem “revolucionários republicanos”. Antes da vitória dos maoistas, outros partidos trilharam o caminho do “combate pacífico”, na via reformista, investindo suas esperanças nas “eleições”. Deliberadamente, o PCN-M escolheu firmar um acordo conciliatório com esses retratodoBRASIL 21 partidos que escolheram a via “pacífica”, entre os quais o Partido Comunista do Nepal, Marxista-Leninista Unificado (MLU), o Congresso Nepalês e outros. Sua avaliação é de que a agregação desses partidos dá à revolução um mínimo de legitimidade, de forma que ela não possa ser contestada junto às massas. Esse acordo – descrito pelas autoridades das Nações Unidas que o recomendaram como um “acordo de paz” – conferiu a uma Assembleia Constituinte a responsabilidade de escrever uma nova constituição republicana, democrática e popular. Eleições multipartidárias colocaram o PCN-M como o principal partido, possibilitando, dessa forma, a coalizão vitoriosa. O acordo conciliatório não resolve todos os problemas futuros. Pelo contrário, ele revela a amplitude deles. Os desafios que as forças populares revolucionárias enfrentam são gigantescos. Eles foram divididos em cinco blocos – terra, Forças Armadas, tipo de democracia a implantar, federalismo e dependência econômica –, que serão examinados a seguir. 33 REUTERS/Rupak De Chowdhuri REFORMA AGRÁRIA O levante camponês foi gerado pela análise correta do PCN-M sobre a questão agrária e pelas conclusões estratégicas, também corretas, dela derivadas: a grande maioria dos camponeses poderia ser organizada em uma frente unificada e passar à luta armada e à ocupação das terras para reduzir ou abolir a renda da terra paga aos proprietários e expulsar os usurários das vilas, etc. O levante gradualmente se espalhou pelo país e o exército camponês, organizado pelo PCN-M, infligiu derrotas às Forças Armadas estatais. No atual contexto de “conciliação”, duas linhas foram apresentadas pelas forças políticas associadas e representadas no Parlamento: • A linha defendida pelo PCN-M, de uma reforma agrária revolucionária radical, garantindo acesso à terra (e aos meios necessários para se viver dela) a todos os camponeses pobres (a grande maioria). Essa reforma, entretanto, não propõe acabar com a propriedade dos camponeses médios e ricos. • A vaga linha defendida, em particular, pelo partido Congresso Nepalês, de uma reforma agrária mais “moderada”, que exige, antes da aplicação de novas regras no campo, o retorno da antiga ordem feudal-usurária nas áreas que já foram liberadas pela revolta camponesa. FORÇAS ARMADAS Na questão militar, a coexistência das duas forças armadas (a rebelde e a estatal) obviamente não pode durar. O PCN-M sugere a fusão. Seus adversários temem (e admitem publicamente) que nessa fusão os soldados rasos do Exército estatal sejam “contagiados” pela ideologia maoista e propõem, em vez da fusão, a absurda ideia de “reabilitar” os integrantes do Exército maoista, que seriam integrados às Forças Armadas estatais. DEMOCRACIA O grande ponto dos debates para o qual convergem todas as atenções, no entanto, refere-se ao tipo de democracia a ser implantada no Nepal: burguesa ou popular. Na sociedade nepalesa há defensores de uma fórmula convencional (rotulada rotineiramente como “ocidental”), resumida nos seguintes componentes: sistema multipartidário, eleições, separação formal dos poderes e proclamação dos direitos humanos e das políticas fundamentais. 34 Fim da guerra civil: nepaleses comemoram Os maoistas dizem que os direitos básicos sobre os quais repousa essa forma de “democracia” colocam o respeito à propriedade privada no topo da hierarquia dos assim chamados direitos humanos. Como contraproposta, o PCN-M defende que se dê prioridade aos direitos sociais – direito à vida, à comida, à habitação, ao trabalho, à educação e à saúde –, sem os quais não é possível nenhum progresso social. A propriedade privada não é considerada “sagrada” e seu respeito é limitado à necessidade de implementação dos direitos sociais. Em outras palavras, um grupo defende o conceito de democracia identificado com o direito santificado de propriedade e dissociado das questões relacionadas ao progresso social (o conceito burguês e dominante de “democracia”), enquanto o outro defende a democracia associada ao progresso social. O debate, no Nepal, não é obscuro, mas frequentemente polêmico. Entre os defensores da “democracia ocidental” estão revolucionários autênticos. Em suas fileiras há também democratas indubitavelmente sinceros, mas que não são muito sensíveis às verdadeiras misérias que as classes populares sofrem. Os maoistas lembram que não desafiam a propriedade camponesa privada nem mesmo a propriedade capitalista, nacional ou estrangeira. Não descartam, porém, a nacionalização de propriedades se for considerada necessária aos interesses nacionais (como a proibição de bancos estrangeiros imporem aos nepaleses a integração do país ao mercado financeiro mundial). Eles colocam em questão apenas as terras e edifícios “feudais”, que sucessivos reis deram aos seus clientes quando os autorizaram a dispor das comu- nidades camponesas. Não contestam os direitos pessoais e um Judiciário independente, responsável por garantir o respeito a esses direitos, e somam a esse programa, sem reduzi-lo, os direitos sociais. A democracia popular que eles definem dessa maneira será, claro, colocada em prática gradualmente com a intervenção tanto das classes populares auto-organizadas quanto do Estado. Com relação ao futuro, obviamente não há “garantias” que protejam o Nepal, por exemplo, da tentação de retroceder a um Estado autocrático ou do não menos provável alinhamento oportunista com o que parece ser o “possível” para o futuro imediato, com a adesão do PCN-M à linha “moderada” dos seus rivais. Entretanto, que direito há em condenar a experiência a priori, quando se sabe que as questões levantadas aqui são objeto de sérios debates – com grande pluralidade de opiniões – dentro do próprio partido? Uma das novidades do processo em curso no Nepal é que essas análises e o debate sobre as estratégias a seguir vão além das ideologias de libertação nacional populistas do tempo da Conferência de Bandung, de 1955. Os regimes que surgiram na época das lutas – legítimas e populares – de libertação nacional na Ásia e na África eram menos avançados. A ideologia sobre a qual a legitimidade do poder repousava não usava o marxismo como referência e foi criada com um pouco disso um pouco daquilo. Associava uma leitura do passado grandemente reinventado, apresentada como sendo essencialmente “progressista” (por meio de alegadas formas de democracia do exercício do poder nas sociedades antigas e interpretações religiosas de uma natureza semelhante), e mitos nacionalistas com um pragmatismo dificilmente crítico com relação às necessidades de modernização tecnológica e administrativa. Por isso, o “socialismo” que caracterizou os regimes de Bandung continua extremamente vago, difícil de distinguir do controle estatal populista que redistribuiu e garantiu a “justiça social”. Os maoistas do Nepal desenvolveram uma visão diferente. Eles abstêm-se de reduzir a “construção do socialismo” à realização do atual programa, mesmo na sua máxima extensão: reforma agrária radical, exército popular, democracia popular. Eles entendem esse programa como “nacional, democrático e popular”, que abre o caminho, não mais do que isso, à longa transição ao socialismo. retratodoBRASIL 21 FEDERALISMO As geografias física e humana dos vales himalaicos são expressas pela extrema diversidade das comunidades camponesas do Nepal. Não são apenas dois, três ou quatro “grupos étnicos”, mas uma centena das assim chamadas comunidades. O povo dessas comunidades quer recuperar o uso de sua terra, expropriada pelos clientes dos generais conquistadores a serviço dos reis. Também quer ver reconhecida sua dignidade e tratamento igual. Mas não quer a separação. Esse também é o caso entre as várias comunidades da Terai (as planícies na fronteira com a Índia), que recentemente se tornaram o alvo principal da intervenção estrangeira. A fórmula de uma república federal, defendida pelos maoistas, certamente pode satisfazer as demandas do povo nepalês. Isso não exclui o perigo de adversários do poder estatal centralizado manipularem essa fórmula. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA O Nepal é classificado pelas Nações Unidas como “país subdesenvolvido”. A administração moderna do Estado, dos serviços sociais e o desenvolvimento de uma infraestrutura moderna dependem da ajuda externa. O governo em vigor parece ciente da necessidade de se libertar dessa extrema dependência. Porém, sabe que essa libertação só poderá ser gradual. A soberania alimentar não é a principal questão no Nepal, embora a autossuficiência nessa área esteja geralmente associada a níveis deploravelmente baixos de consumo. O maior problema é a organização de redes de distribuição mais eficientes e econômicas que liguem os produtores do campo aos consumidores urbanos, algo que traz à tona os interesses dos intermediários. Um programa que desenvolva a produção em pequena escala, meio artesanal e meio industrial, capaz de reduzir a dependência dos importados, exigirá esforço árduo e tempo para produzir resultados adequados. Os maoistas propõem um modelo de desenvolvimento “inclusivo”, ou seja, que beneficie as classes populares diretamente e em cada etapa, em vez do modelo indiano de crescimento associado com um modelo social “exclusivo”, que beneficia apenas 20% da população e condena os 80% restantes à estagnação, se não ao empobrecimento. Isso testemunha a escolha de princípios que não se pode deixar de apoiar. Porém, falta criar programas que tornem o modelo realidade. A INFLUÊNCIA EXTERNA O Nepal revolucionário enfrenta a extrema hostilidade do seu principal vizinho, a Índia, cuja classe governante teme a contaminação. A revolta endêmica dos Naxalistas (grupo rebelde de tendência maoista, classificado como “terrorista” pelo Estado indiano) poderia, se tomar como ponto de partida as lições das vitórias obtidas no Nepal, REUTERS/Gopal Chitrakar Prachanda toma posse como primeiro-ministro: os maoístas avançam com cautela colocar seriamente em questão a estabilidade dos modos de exploração e opressão em vigor no subcontinente indiano. Essa hostilidade não pode ser subestimada. Ela é uma das razões da reaproximação militar entre a Índia e os EUA. Ela mobiliza recursos materiais e políticos consideráveis. Entre outras coisas, a Índia financia a tentativa de construção, no Nepal, de um partido político hindu alternativo nos moldes do chauvinista BJP indiano, análogo ao partido islâmico do Paquistão e alhures ou ao partido budista do dalai-lama. O apoio dos EUA e de outras potências ocidentais – Inglaterra em particular – é coordenado por meio desses projetos reacionários. A cristalização de uma poderosa força política hindu nepalesa poderá acontecer se as conquistas, mesmo que modestas, do novo Nepal forem adiadas por muito tempo. Essas intervenções externas poderiam também mobilizar os reacionários nepaleses e provocar movimentos de “secessão”. A assistência externa – sempre com fios, mesmo que invisíveis, amarrados – e o discurso demagógico sobre direitos humanos e democracia alimentado pela rede de ONGs têm lugar na estratégia do inimigo. O acordo conciliatório em vigor atrasa a implementação de um programa de reformas radical que é a fonte da popularidade do PCNM. Ele encoraja certas tendências – mesmo dentro das fileiras da liderança política – a se manterem nos limites do que esse acordo permite, abrindo assim o espaço para a contraofensiva da reação. Mas não há com o que se desesperar. Os maoistas reafirmaram publicamente que as classes populares têm o direito de se manter mobilizadas e continuar lutando para que seu programa seja aplicado, independentemente das deliberações da Assembleia Constituinte. O PCN-M não caiu na armadilha eleitoral que busca votos acima de tudo. Ele distingue cuidadosamente o que se chama de base social (“grupo social”), composta pela maioria (camponeses pobres, trabalhadores urbanos das classes populares, estudantes e jovens, mulheres e setores patrióticos e democráticos das classes médias), da sua base eleitoral (“grupo eleitorado”), a qual, como todas as bases eleitorais, continua volátil. Transformar essa base social popular em bloco social organizado governante, uma alternativa ao bloco feudal-usurário destituído do poder, é o objetivo da luta de longo prazo do PCN-M. Tradução PAULO CUNHA. retratodoBRASIL 21 35 Reportagem: PARAISÓPOLIS UM LUGAR COMO POUCOS 36 retratodoBRASIL 21 Encravada em meio a mansões e prédios de alto padrão, a segunda maior favela paulistana, habitada por 80 mil pessoas, é um local em que a violência é menor que a de regiões bem mais ricas | Texto Léo Arcoverde Fotos Carla Bispo Um mar de mansões cerca Paraisópolis, o lugar que, no início de fevereiro, apareceu no noticiário policial das TVs do Brasil inteiro. São casarões medindo metade de um quarteirão e arranha-céus de 30 andares, com apartamentos de pelo menos 150 metros quadrados. Imóveis que valem até 2,5 milhões de reais. Que sufocam a favela de quase 18 mil casas de alvenaria, boa parte sem revestimento, onde vivem 80 mil pessoas envolvidas num manto cor de tijolo, de um vermelho forte nas horas de maior incidência solar. As mansões e apartamentos caros intimidam a segunda maior das 1,6 mil favelas paulistanas, que é como um pedaço do Rio de Janeiro, onde convivem dois brasis frente a frente: o dos 10% dos brasileiros que detêm 90% da renda nacional e o dos 90% dos brasileiros que detêm os 10% restantes. Abismo social só parecido com o que conhecem os cariocas na junção Rocinha–São Conrado ou Dona Marta–Ipanema. Paraisópolis fica a três minutos do estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi, casa do São Paulo Futebol Clube, e a menos de mil metros do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista e residência de José Serra. Está encravada numa faixa extensa do terreno ligeiramente irregular que separa as avenidas Giovanni Gronchi e Morumbi. Está, ainda, a dez minutos do shopping Cidade Jardim, o mais luxuoso da cidade, onde a “dondoquice” paulistana que não abre mão de andar com seus cãezinhos a tiracolo faz uso de um fraldário canino – o primeiro do mundo! Nas portas das casas, barulhentas, as roupas justas, curtas e em tons berrantes, meninas que já são mães e mães que mal sentiram o gosto da adolescência gastam os olhos com o movimento, um vaivém intermitente que por aqui chamam de furdunço. E como tem gente na rua! Com biótipo nordestino, quase todos têm a mesma cor, ora mais claros, ora mais escuros. A pele parda de um marrom que, nos mais velhos, parece couro rachado – sinal de herança dos anos vividos na caatinga do sertão. Mulheres com no máximo um retratodoBRASIL 21 metro e sessenta e homens igualmente de estatura mediana, todos se sentam às portas das casas, que se multiplicam por vielas com relógios de luz aos magotes presos à parede. É casa demais para pouco espaço. A densidade populacional em Paraisópolis é alta: mil habitantes por hectare – cerca de 10 metros quadrados por pessoa, – contra trinta habitantes por hectare no Morumbi – mais de 300 metros quadrados para cada morador. As crianças, olhos vivos, correm pelo meio de ruas sem calçadas que levam nomes de pensadores do século XIX, como o francês Ernest Renan e o inglês Herbert Spencer. Espaços de lazer praticamente não existem: há um único campo de futebol, o do Alemão, na rua Melchior Giola, parte central da favela. Não existe uma única praça em toda a Paraisópolis. A favela é a queridinha do terceiro setor: nada menos que 54 ONGs atuam lá. Só o programa de voluntários do Hospital Israelita Albert Einstein, um dos mais disputados, realizou 300 mil atendimentos a crianças e adolescentes em 2008. Os pacientes são recebidos num complexo de 4,5 mil metros quadrados, com ambulatório médico, salas de fisioterapia e fonoaudiologia, biblioteca, brinquedoteca, auditório e quadra poliesportiva. Os colégios Porto Seguro, Pio XII e Santo Américo, a Graded School (que construiu e montou uma biblioteca), a Porto Seguro Seguradora e a fabricante italiana de computadores Arce também estão na favela. Tem até instituição de mãe de atriz famosa: a ONG Florescer, criada há 20 anos pela empresária Nádia Rúbio Bacchi, mãe da atriz Karina Bacchi, da TV Record. Atende 900 crianças e emprega mulheres da comunidade. A HISTÓRIA Nem sempre foi assim. Paraisópolis cresceu ignorada pelo poder público e, durante décadas, foi indesejada por seus vizinhos abastados. O começo de sua história se dá nos idos da década de 1920, quando a então Fazenda do Morumbi foi loteada em 2,2 mil terrenos. A ideia inicial era destinar aquela área, a exemplo de outras na região, a investidores estrangeiros e brasileiros endinheirados. Mas o negócio não vingou. Entre os motivos estava o fato de o local ser muito escondido se comparado às partes do Morumbi que prosperaram. “Era a época do ciclo do café, não existiam ali as grandes avenidas que encontramos hoje, como a Giovanni Gronchi”, lembra Nelson Baltrusis, urbanista e autor de uma dissertação de mestrado e de uma pesquisa de doutoramento sobre Paraisópolis. “Naquela época, era muito difícil o acesso àquela parte da cidade, só dava para atravessar o rio Pinheiros de barco. Existiam proprietários estrangeiros, proprietários que tinham morrido e cujos lotes estavam no espólio. Enfim, existia uma infinidade de situações jurídicas que contribuíram para a formação daquilo que conhecemos hoje por Paraisópolis.” O resultado? O local permaneceu desocupado por mais de 20 anos, até ser invadido por migrantes nordestinos atraídos pela promessa de emprego na construção civil, o que deu início ao que Baltrusis classifica como a “segunda etapa” da ocupação. “É quando ocorre o desenvolvimento do entorno e a instalação de um polo industrial na zona sul, sobretudo na região de Santo Amaro.” Isso até os anos 1960 e meados da década seguinte, época em que 1% dos paulistanos morava em favelas (hoje são 16%, percentual que em números absolutos significa que nada menos que 400 mil famílias – entre 1,6 milhão e 2 milhões de pessoas – vivem em favelas). A partir de então, não é mais possível mudar-se para Paraisópolis por meio de ocupação. De duas, uma: ou se muda para a casa de algum parente ou conhecido ou se compra ou aluga um imóvel, um esquema que envolve transações informais, feitas ao arrepio da lei, uma vez que os imóveis são considerados irregulares. “Os contratos, quando existem, não são registrados num cartório de imóveis. Existe um documento que descreve a transação realizada entre as partes, com firmas reconhecidas em cartório”, diz Baltrusis. São documentos comerciais váli37 dos, mas que “não têm a força de um título registrado no cartório”. Nessa época, Paraisópolis começou a despontar como grande favela. A prefeitura de São Paulo, não tendo como combater o crescimento desordenado da área, oficializou seu nascimento pela Lei nº 700.198, de 1968. No fim do mesmo ano, começaram os arruamentos. Administração após administração, o local foi recebendo migalhas de melhoramentos. Na década de 1970, sua população já ultrapassava a marca dos 20 mil habitantes. É a época em que viviam em São Paulo perto de 600 mil nordestinos – hoje são 3,6 milhões. A “terceira etapa” da ocupação de Paraisópolis, segundo Baltrusis, compreende os anos 1980 e 1990 e está baseada, sobretudo, em dois fatores: 1) a falência do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1986, “que, por mais críticas que possamos fazer, era o órgão responsável pela política habitacional do País”, e 2) a remoção da favela Água Espraiada, localizada próximo dali, na margem oposta do rio Pinheiros, na década de 1990. No local da antiga favela surgiu um centro comercial desses que se costuma qualificar como “de primeiro mundo”. “Restou àquele pessoal todo ir para Paraisópolis ou para as áreas de manancial próximas às represas, na zona sul”, explica Baltrusis. Com um detalhe: os caminhões da própria prefeitura ajudaram esses moradores com a mudança. O LUGAR Hoje Paraisópolis ocupa uma área de 799 mil metros quadrados (o equivalente a 80 campos de futebol). Cerca de 90% de seus domicílios estão em situação irregular. A favela é dividida em cinco áreas: Antonico, Brejo, Centro, Grotão e Grotinho. Alguns mapas incluem o Brejo e o Centro numa mesma região, repartindo, assim, a favela em quatro grandes pedaços. Trata-se de uma forma de simplificar a descrição do território. É uma medida mais formal do que qualquer outra coisa, já que os moradores do Brejo sabem, e afirmam, que não vivem no Centro, e viceversa. E as diferenças de uma área para outra, de fato, existem. O Antonico se distingue por ser a maior delas e por abrigar, por exemplo, a sede do programa do Einstein, o mais badalado trabalho social e assistencial desenvolvido em toda Paraisópolis. A região dá nome ao Córrego do Antonico, que cruza praticamente toda a extensão da favela, mais ou menos 38 paralelamente ao curso da avenida Giovanni Gronchi, antes de passar bem próximo ao estádio do Morumbi e seguir em direção ao rio Pinheiros. É a região de maior visibilidade em Paraisópolis para quem passa diariamente pela Giovanni Gronchi. Faz divisa, praticamente, com outra favela muito conhecida, a do Jardim Colombo, que ocupa uma área pequena se comparada à de Paraisópolis, do outro lado da avenida, beirando o muro que cerca o Gethsêmani, um dos três cemitérios nobres que ficam próximos um do outro naquela região (os outros dois são o Cemitério da Paz e o Cemitério do Morumbi). Um local para gente rica, onde foi enterrado, por exemplo, há dois anos, o corpo de Octávio Frias de Oliveira, dono do jornal Folha de S.Paulo. O Brejo fica no lado oposto ao Antonico se tomarmos como referência a Giovanni Gronchi. A área abriga, na rua Iratinga, a sede da ONG Florescer. É o lugar da favela mais próximo do Palácio dos Bandeirantes, e sua vizinhança se difere da do Antonico em termos arquitetônicos: é cercada por mansões, em vez dos edifícios de alto padrão que ladeiam a Giovanni Gronchi. É através do Brejo, ainda, tomando a rua Flávio Américo Maurano, que se tem acesso à avenida Morumbi. Perto do Brejo, moradores de Paraisópolis fizeram de um terreno baldio, situado no fim da rua Rudolfo Lutz, um campo de futebol. Não se trata, porém, de um espaço público de lazer. É uma área privada. Alguns contam que pertence a um “figurão” do Morumbi que cercou o lugar para conter o avanço da favela. O fato é que, há mais de dez anos, enquanto não se constrói nada, ali é o lugar das peladas de fim de tarde e fins de semana daqueles que não jogam no campo do Alemão, que fica próximo, no Centro de Paraisópolis, ou são loucos por futebol e batem bola nos dois lugares. O Centro é onde Paraisópolis “ferve”. Lugar de intenso movimento durante o dia e a noite, a área concentra a maior parte dos 3,1 mil estabelecimentos comerciais existentes na comunidade. Lá se deu a inauguração de uma filial das Casas Bahia, maior rede de varejo de móveis e de eletrodomésticos do Brasil, no fim do ano passado. O evento contou com a presença de Michael Klein, proprietário da rede, e do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. A loja (a primeira das 550 da rede a ser instalada em uma favela) ocupa um terreno de 1,5 mil metros quadrados na rua Ernest O centro, visto a partir da Avenida Giovanni Gronchi retratodoBRASIL 21 Renan, principal via comercial de toda Paraisópolis, e fatura 1 milhão de reais por mês – 300 mil reais a mais que o faturamento, por exemplo, da filial situada no shopping West Plaza, na Barra Funda, na zona oeste paulistana. No Centro também está a sede da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, associação de bairro presidida até o ano passado por José Rolim, vereador pelo PSDB durante a legislatura passada (2005-2008), que não conseguiu se reeleger no mais recente pleito eleitoral. Hoje, em seu lugar, preside a associação seu antigo vice, Gilson Rodrigues, 24, importante liderança estudantil da região e articulador do processo de criação de grêmios em escolas de Paraisópolis. O Grotão é, de longe, a região mais pobre. Sua aparência é bem diferente da do Antonico, do Brejo ou do Centro. Lá, o amontoado de casas e de sobrados sem revestimento dá lugar a barracos, aos montes, que se avolumam à medida que nos distanciamos do Centro e nos aproximamos do muro que separa a favela do Cemitério do Morumbi. São construções de madeira e lata, ladeadas pelo esgoto que corre a céu aberto. Na parte mais funda do Grotão, o arruamento é precaríssimo, bem diferente do de outras áreas, onde há ruas extensas, retas e relativamente largas, como a Ernest Renan, a Iratinga e a Pasquale Gallupi, que cortam Paraisópolis de cima a baixo, acompanhando o curso da rua Giovanni Gronchi. É no Grotão que resta uma única e considerável área não construída, um terreno baldio, irregular, onde os moradores do entorno não permitem que ocorram novas invasões. Têm medo de que uma eventual ação de remoção, causada por uma ocupação recente, dê motivo para que todos os que vivem no entorno, mesmo já há muito mais tempo, sejam prejudicados. A rua Pasquale Gallupi é o limite entre o Grotão e o Grotinho. São áreas vizinhas e parecidas, sendo a segunda uma baixada, que foi transformada, de uns anos para cá, num imenso canteiro de obras. Lá está o Centro Educacional Unificado (CEU) Paraisópolis, inaugurado pela prefeitura em dezembro passado. Com mais de 10 mil metros quadrados de área construída, num terreno com 25,4 mil metros quadrados, a obra impressiona pelo tamanho. Ao seu lado, seguem em curso as obras de uma Escola Técnica Estadual (Etec). Num terreno vizinho, homens trabalham erguendo prédios da Companhia retratodoBRASIL 21 39 A FAVELA NA TV PROTESTOS CONTRA A AÇÃO DA POLÍCIA FIZERAM PARAISÓPOLIS APARECER NAS TELINHAS DE TODO O PAÍS A cronologia dos acontecimentos é conhecida. Em 2 de fevereiro, um grupo cerca de 40 pessoas entrou em confronto com a Polícia Militar por volta das 17h, na avenida Giovanni Gronchi. Os manifestantes queimaram pneus, sacos de lixo e pedaços de madeira, formando barricadas e amarrando postes com correntes para interditar as vias de acesso à favela. Pelo menos oito veículos foram depredados, e seis adultos e três adolescentes (apenas um com passagem anterior pela polícia, por furto), presos. O País inteiro acompanhou tudo pela TV. A razão do quebra-quebra teria sido a morte de Marcos Porcino, de 25 anos, morador da favela e foragido desde setembro do presídio Franco da Rocha I (na região metropolitana de São Paulo). No dia anterior, por volta das 12h30, uma viatura policial deparou com dois veículos, um Stilo roubado e um Palio Weekend, em alta velocidade e na contramão, na rua Taubaté, próximo ao Cemitério do Morumbi. Os policiais barraram o Stilo fechando a rua. Houve troca de tiros e Porcino morreu. Seu comparsa, Antônio Galdino de Oliveira, de 24 anos, que dirigia o Palio, foi preso por porte ilegal de arma. Como ele é cunhado do mandachuva do tráfico local, Francisco Antonio da Silva, o Piauí, o episódio causou alvoroço entre os delinquentes de Paraisópolis. A Polícia Militar suspeita que o próprio Piauí, um dos líderes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), possa ter desencadeado a reação violenta de dentro da penitenciária Nestor Canoa, em Mirandópolis, interior do estado. Ele cumpre pena desde agosto do ano passado por sequestro, receptação, roubo e falsidade ideológica. de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), uma versão do governo paulista das Cohabs existentes Brasil afora. UMA MULHER Cabelo ligeiramente grisalho preso na altura da nuca, óculos de armação preta com uma corrente prateada presa às pontas das duas hastes. Clara Ana da Silva, 60, moradora da rua Herbert Spencer, no Antonico, está sentada numa cadeira do lado esquerdo da porta da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis. São quatro horas da tarde. Atarracada, um metro e sessenta, se tanto, branca, pele castigada pelo tempo e pelo sol, bermuda de jeans azul-quase-branco de tanta lavagem, blusa de algodão azul-marinho com listras cor-de-rosa, unhas dos pés e das mãos mal pintadas de cinza, ela diz estar esperando a hora da aula do programa de alfabetização de jovens e adultos. “Faz seis meses que comecei a estudar e já aprendi a escrever meu nome. Ainda não sei ler nem escrever, mas vou aprender!”, diz, entusiasmada. Nascida no município de Camocim de São Félix, região de Caruaru, agreste pernambucano, Clara diz não lembrar exatamente em que ano veio para São Paulo. “Tive muita sorte... Cheguei num domingo, na segunda fui trabalhar no Palácio dos Bandeirantes. Mexia com a máquina de lavar louças.” Pela explicação – de que oito meses depois se casou com um porteiro do Palácio e um ano depois teve seu filho mais velho, que hoje tem 33 anos –, Clara chegou provavelmente no ano de 1974. Desde então, jamais morou fora de Paraisópolis. “Meu marido e eu não tínhamos condições de pagar aluguel. Eu já morava aqui com uma tia e dois primos, ele também.” 40 Fala daquele tempo com nostalgia, elogiando o lugar. “Daqui até lá em cima, na Giovanni”, ela aponta na direção da avenida do estádio do Morumbi, “tinha um gramado bonito, não havia nenhuma dessas casas. Quando cheguei, era difícil achar casa de alvenaria... Tudo barraco de madeira, mas não tão colado um no outro”, diz. Clara ia a pé de casa para o Palácio dos Bandeirantes. “Naquele tempo demorávamos quase uma hora, não tinha ônibus nem perua. Estavam começando a fazer as ruas.” Logo que se casou, Clara deixou a casa da tia para morar, com o marido, na Pasquale Gallupi, transversal da rua em que mora hoje. Daí, foram aparecendo os filhos. Precisavam de uma casa maior. Clara fala da sorte mais uma vez. “Nunca fiquei sem trabalhar. Depois de sair do Palácio, trabalhei nove anos numa casa de família e dez anos em outra, aqui no Morumbi. Meu companheiro, esperto que é para negócio de dinheiro, nunca ganhou salário mínimo. Sempre deu um jeitinho de tirar um pouco mais.” Mudaram-se para a Herbert Spencer, casa de quintal grande, prevendo o futuro, quando os filhos começassem a pensar em se casar. “Hoje, moramos meus quatro filhos e eu, tudo no meu quintal. Dois casados e dois comigo.” A casa vale hoje, certamente, mais de 60 mil reais. Ao falar do marido, Clara mostra uma pontinha de ressentimento – “Não coloca o nome dele aí, não, faz poucos dias que ele me deixou.” – e de arrependimento: “É que eu desfiz um negócio... E ele é doido por dinheiro. Estava para comprar uma casa, quarto e banheiro, na Melchior Giola. Queria se separar, só pode! Comprar uma casa sem me dizer nada? Peguei ele no pulo. Quando o dono da casa foi lá buscar o dinheiro, tomei os 14 mil reais que ele tinha guardado. Que desaforo!” E ele volta? Mora sozinho hoje? “Se eu não tivesse ficado com o dinheiro, acho que voltava. Hoje, não sei não. Está morando só, sim. Se fosse com outra, eu ia lá e quebrava tudo!” Quatro e meia, hora de começar a aula, e a professora está esperando. OUTRA MULHER São dez horas da manhã e Aurenice Soares, a Nice, 46, está voltando da mercearia Cremel – segundo maior supermercado da favela – para casa, perfazendo uns 15 minutos de caminhada e carregando em cada mão três sacolas plásticas com frutas dentro. Depois de deixar as compras sobre a mesa da cozinha, sem fechar a porta de casa, senta-se num banquinho, de costas para o espelho que até dias atrás fazia parte de seu salão de beleza. “Se eu fechar, não param de gritar meu nome, não consigo ter paz... Ô, vizinhança para me encher o saco!” A casa, na rua Iratinga, no Brejo, tem fachada verde, porta envernizada com janelinha cinza e vitrô com cortina branca bordada com ursinhos marrons e fundo verde, tudo combinando. É a quarta casa do lado direito da viela Vila Rica, número 10, medindo 2,5 metros de largura por 5 metros de comprimento. São dois andares, sendo o de baixo dividido em dois cômodos (sala e cozinha) por outra cortina; o banheiro e o quarto, onde Nice dorme com o marido, Benício Duarte, pedreiro, ficam em cima, onde ela também encontra espaço para a máquina de lavar roupa. Nascida em Jequié, sudoeste da Bahia, Nice mora há 18 anos em Paraisópolis. Chegou a São Paulo aos 9 anos, em meados da década de 1960, junto com a irmã Mariovalda e a tia Zefa. Instalaram-se no Capão Redondo, bairro da zona sul, na rua Henrique Reichman. “Fomos os primeiros moradores dessa rua, onde até hoje 80% das pessoas de lá são da minha família.” O bairro fica a dez minutos de Paraisópolis e, de quando em quando, Nice visita seus familiares. Casada pela primeira vez aos 14 anos, já fez quase de tudo. Foi babá, diarista, governanta, chapeira, culinarista, chocolateira, açougueira, gerente de rede de restaurantes, empresária (era dona de banquinhas de churros), vendedora de cocada e cabeleireira. “Só não roubei porque nunca tive a chance de pegar o que é de rico, porque dos pobres não tem graça, não...” Chama o que faz hoje de retratodoBRASIL 21 “manutenção de cabelo em domicílio”. Mas só para conhecidos. O amor a levou para Paraisópolis. Seu segundo marido, que ajudou Nice a criar seus três filhos, todos fruto do primeiro casamento, pediu para que ela se mudasse. “[Meu primeiro marido e eu] já estávamos separados na época. Ele me deixou sem dizer o motivo. Eu amava aquele homem de uma forma... Não era amor, era doença, queria estar respirando o mesmo ar que ele”, diz. O motivo da mudança? Esse homem foi o primeiro perueiro de Paraisópolis e pediu que Nice fosse morar numa casa da rua Rudolfo Lutz, porque assim ele poderia comer na casa dela e sempre ver as crianças, as quais considerava como filhos. Naquela época ela morava com os filhos no bairro de Artur Alvim, na zona leste. “Era vizinha dos meninos do Raça Negra [grupo de pagodeiros muito famoso na década de 1990].” Apartamento próprio, carro na garagem, um Gol do ano quitado. “Foi quando ele saiu de casa. Antes, moramos muito tempo de aluguel no Brooklin, numa das casas de seu Nicola, pai do Rivelino, aquele ex-joga- dor, sabe?” Nice conta que, logo depois da separação, o que mais a torturava era, ao conversar com o ex pelo telefone, receber como resposta: “Você não merece saber o motivo. Amo você e os nossos filhos”. “E ele não tinha outra!”, diz ela. Depois de muito tempo, ela descobriu o motivo: aquele homem que a ajudou tanto na vida tinha se tornado pastor da Assembleia de Deus. “Ele agora está vivendo em Taboão da Serra, onde fica a tal igreja. Não ligo mais para ele.” Nice está casada pela terceira vez e há seis anos mora com o atual marido. A RELIGIÃO O Nordeste – de onde vieram os moradores de Paraisópolis – sempre foi e continua sendo, proporcionalmente, a mais católica dentre as cinco regiões brasileiras. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que analisa o crescimento das chamadas igrejas neopentecostais no País entre 1940 e 2000, aponta: 70 anos atrás, 98,9% dos nordestinos se declaravam católicos apostólicos romanos e 0,7% da população se dizia evangélica. Hoje, a predominância da igreja romana não é tão grande: 79,9% dos nordestinos se declaravam católicos no censo de 2000, o último desse tipo realizado pelo IBGE, ante 10,3% de evangélicos assumidos. Apesar do salto espetacular no Nordeste, as neopentecostais não obtiveram a expansão, em número de fiéis registrada, por exemplo, na região Norte, onde praticamente 20% da população se declara evangélica, ou no Centro-Oeste, em que 18,9% se dizem seguidores do protestantismo. Esses números servem de base para entender por que hoje, em Paraisópolis, mais de 2,5 mil praticantes assistem às três missas dominicais celebradas pelo padre Luciano Borges Basílio, na Paróquia São José. “Como 99,9% dos moradores daqui da região são nordestinos, há uma predominância muito grande de católicos”, explica Basílio, carioca de 34 anos que chegou a Paraisópolis como diácono, no fim de 2006, a mando do bispo diocesano dom Emílio Pignolli. De acordo com ele, há, em toda Paraisópolis, oito templos católicos e um nono sen- Missa na Paróquia São José, o maior templo religioso de Paraisópolis, comandada pelo Padre Luciano: lota aos domingos retratodoBRASIL 21 41 do construído. Fora os 32 círculos bíblicos espalhados nas cinco regiões da comunidade. Trata-se de grupos, explica o padre, que fazem reuniões e até celebrações, realizadas por sacerdotes da localidade, sem que seja necessário ao fiel se deslocar até um dos templos. São os maiores aliados da igreja, junto com a tradição católica do povo nordestino, acentuada ainda mais naqueles oriundos do meio rural, na disputa com os protestantes. Os templos pentecostais, apesar de tudo, já são mais de 50 em toda a favela. Como em outros lugares, estão instalados em qualquer brecha, no que já foram pequenas lojas ou reduzidos galpões. O maior deles fica na rua Ricardo Avenarius, justamente a mesma da Paróquia São José, que simbolicamente é o coração do catolicismo na comunidade. É uma Assembleia de Deus, um templo tido como de médio porte: comporta 150 pessoas sen- tadas, durante um culto, tranquilamente. Só nessa mesma rua, há mais duas Assembleias de Deus. O problema para a Igreja Católica é que o distrito de Campo Limpo, onde está a maior parte de Paraisópolis – o restante pertence ao distrito do Butantã –, faz parte da zona sul paulistana. Nela, as pentecostais, apesar de tão divididas e pulverizadas, ou também por isso, são muito fortes. Basta dizer que o Templo Maior de São Paulo, tida como “segunda sede mundial” da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, fica na avenida João Dias, no bairro de Santo Amaro, a poucos minutos da favela. Na hierarquia da Igreja Universal, o Templo Maior é menos importante apenas que o chamado Templo da Glória do Novo Israel, sede mundial da igreja, localizado no bairro de Del Castilho, zona norte do Rio de Janeiro. A VIOLÊNCIA Paraisópolis não é um lugar violento. Pelo contrário: levantamento publicado pelo jornal Folha de S.Paulo em 6 de agosto de 2008, com dados referentes ao segundo trimestre daquele ano, mostra que a região onde a favela se localiza registrou índices de criminalidade abaixo dos da maioria dos bairros nobres da cidade. Os dados referentes ao 89º Distrito Policial (DP), no Portal do Morumbi, distrito policial que atende a região de Paraisópolis, revelam que, nos itens furtos e roubo a banco, a área está acima da média da cidade. Entre abril e junho do ano passado, Paraisópolis registrou 317 furtos (15 acima da média) e um roubo a banco, crime de rara ocorrência no restante de São Paulo. Levando em consideração a soma do número de ocorrências, o levantamento do se- Grotão, a área mais depauperada: no local sem arruamento, barracos de madeira em meio ao esgoto a céu aberto 42 retratodoBRASIL 21 EM MEIO À RIQUEZA, PRÓXIMA DO PODER PARAISÓPOLIS É CERCADA PELO RICO BAIRRO MORUMBI E ESTÁ NÃO MUITO LONGE DA SEDE DO GOVERNO PAULISTA Alguns números básicos da grande favela paulistana • 80 mil habitantes • 17,7 mil domicílios • 799 mil m2 de área total • 3,1 mil estabelecimentos comerciais • 90% dos lotes são irregulares • 20 mil reais custa uma casa com quarto, sala e banheiro Ilustração Alex Silva • 614 gundo trimestre do ano passado mostra que o 89º DP ficou abaixo da média registrada no município, com 728 ocorrências, enquanto a média da cidade foi de 966. O 89º DP tem menos crimes que os distritos que atendem os Jardins (1.492), Santa Cecília (1.073), Monções (1.697), Paraíso/Vila Mariana (1.136), Vila Sônia (1.447), Ibirapuera (1.446), Perdizes (2.865), Pinheiros (2.359), Santo Amaro (2.424), entre outros. Segundo Celso Lahoz Garcia, delegadoassistente do 89º DP, o maior problema de Paraisópolis é o tráfico de drogas. “Faz um ano e meio que estou neste distrito. Desse tempo para cá, o que mais tem ocorrido é a descoberta, pela polícia, de várias bocas de fumo dentro de Paraisópolis”, diz. De acordo com ele, não há incidência maior de uma droga sobre outra. “É tudo, maconha, cocaína, crack... De resto, não tem muito coisa. Para uma população de 80 mil pessoas, podemos afirmar que Paraisópolis é um lugar tranquilo.” É comum se atribuir à figura de Juarez, pernambucano de Garanhuns, hoje com mais de 60 anos, o fato de, há até bem pouco tempo, Paraisópolis ter sido ser um lugar ordeiro e intransponível para o tráfico de drogas. É o que garantem os moradores mais antigos. Retrato do Brasil colheu relatos de gente com mais de 30 anos de Paraisópolis que topou conversar sobre o assunto desde que na condição de anonimato. Por dois motivos: eles temem represálias tanto por parte de antigos desafetos de Juarez quanto de retratodoBRASIL 21 reais por mês é a renda média familiar • 25% dos adultos estão desempregados Fontes: Datafolha, Pesquisa Programa Einstein na Comunidade de Paraisópolis, Secretaria Municipal de Habitação e União dos Moradores de Paraisópolis seus amigos e admiradores, que existem aos montes na favela até hoje. E quem é esse tal Juarez? No 89º DP, não consta um único mísero registro que o desabone. Um artigo do jornal O Estado de S. Paulo, de 9 de fevereiro passado, fala um pouco a seu respeito: “Durante a década de 1990, um ladrão de cargas e justiceiro chamado Juarez foi o responsável por manter a ordem informalmente na favela à base da violência. Juarez também mantinha o tráfico de drogas afastado de Paraisópolis. Em 2003, integrantes do PCC [Primeiro Comando da Capital] conseguiram expulsá-lo, e também seus aliados, da região. Foi então que Piauí assumiu o controle do tráfico”. Informações confirmadas, em parte, pelos antigos moradores. Eles afirmam que Juarez teria, sim, envolvimento com algum tipo de crime, mas muitos não confirmam a versão de que, paralelamente à figura do justiceiro, existia a do ladrão de cargas. O fato é que Juarez impôs, à mão de ferro, durante décadas, uma espécie de “cartilha de bons costumes” a que os moradores de Paraisópolis não podiam deixar de obedecer. As histórias são muitas. “Se um homem batesse na mulher e ela contasse ao Juarez, ele dava um prazo de 12 horas para o sujeito pagar. Podia se esconder onde fosse que a turma do Juarez o encontrava e lhe quebrava as costelas, para aprender a não encostar a mão numa mulher”, diz uma moradora, que chegou a ser casada com um dos integrantes do grupo de justiceiros. “Apanhava de chicote de couro cru trançado que o Juarez usava!”, ela completa, entusiasmada. Juarez morava no Centro de Paraisópolis, na rua Ernest Renan, bem próximo ao campo do Alemão. Era sobrinho de outra figura muito conhecida na favela: Luiz Caboclo, também natural de Garanhuns, tido por muitos como o mais antigo morador de toda a Paraisópolis, hoje falecido. Seria um dos filhos de João Caboclo, irmão de Luiz. Antigos moradores contam, também, que, até ter sido expulso da comunidade por traficantes ligados ao PCC, Juarez era um bemsucedido comerciante dentro de Paraisópolis. Possuía uma mercearia de médio porte e uma adega. “Se faltasse gás em casa e a gente fosse pedir pro Juarez, ele dava, sem nenhum problema. A gente recebia até cesta básica se a situação estivesse muito preta”, diz outra moradora. E um ponto que ninguém discorda: a mão de ferro do bando justiceiro comandado por Juarez pesava mais forte ainda se o caso fosse de roubo dentro da favela. “Podia ser de uma roupa no varal. Se a pessoa pegasse o que fosse alheio, o couro comia”, conta um morador. Juarez, dizem ainda, não tolerava o comércio de drogas dentro de Paraisópolis. “A época do Juarez... Aquilo, sim, eram tempos de glória, se vivia em paz aqui”, diz a mesma moradora, que manteve um relacionamento com um integrante do grupo. Dentre todos os relatos, somente duas controvérsias: a cobrança de uma taxa por parte do grupo, em troca da tranquilidade, que não podia, em hipótese alguma, ser sonegada, e o irmão de Juarez, Giovani, integrante do grupo e bastante violento, sobretudo quando pedia algo, um cigarro que fosse, a um morador. “O Juarez nunca usou do poder que tinha para humilhar as pessoas. Agora, o irmão dele não prestava”, lembra um morador. A saída de Juarez da favela, em 2003, não foi um processo rápido. Teria ocorrido da mesma forma que acontece no Rio de Janeiro, onde, em determinada região, uma milícia armada leva vários dias, ou meses, para tomar o controle da comunidade das mãos do grupo adversário. Nessa guerra, nenhum morador duvida, Juarez não foi morto. “Ele está vivo, vinha aqui até um tempo desses. Faz uns dois anos que não temos notícias dele”, contam. Mas a maior parte do seu grupo não teve o mesmo fim. Entre os que morreram, um dos primeiros foi Giovani. Dizem que ninguém chorou por sua morte. 43 Clima: O aquecimento global pode acabar com a calota de gelo do polo Norte, disseram alguns cientistas. Agora, descobriu-se que o fenômeno contribuiu para que a capa gelada voltasse a crescer | Verônica Bercht Em novembro de 2007, no fim do verão ártico, uma enxurrada de notícias revelou ao mundo que o derretimento da calota polar havia atingido um ponto nunca visto, pelo menos, nos últimos 200 anos. Cientistas afirmaram que, com o aquecimento global em curso, o mar Ártico ficaria livre de gelo muito antes do que estipulavam as previsões mais pessimistas lançadas pelo IV Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), em 2004. Houve até um cientista que previu que isso acontecerá em 2013! As consequências, disseram eles, serão trágicas, e seus efeitos alcançariam todo o planeta: em poucas décadas, a neve das montanhas, as geleiras das regiões polares e todo o gelo depositado sobre o continente antártico, no outro polo, derreteriam, desaguando nos mares. O nível dos oceanos subiria 1,8 metro até o ano de 2100, submergindo cidades inteiras e pondo em risco metade da população humana. É bom lembrar que o gelo das calotas polares, que são a água do mar congelada, flutua sobre o mar e, por isso, não contribuirá para a elevação do nível dos oceanos. Mas, para a surpresa desses cientistas, no verão de 2008, a calota polar ártica voltou a crescer – timidamente, é verdade –, contrariando as estimativas de diminuição contínua. No inverno 2007-2008 (no hemisfério Norte, a estação vai de novembro a maio), alguns estudos que acompanham continuamente o comportamento do clima no mar Ártico registraram mudanças significativas. 44 O PARADOXO DO ÁRTICO E, no inverno em curso, a quantidade de gelo que se formou até fevereiro superou aquela dos dois invernos anteriores. Mas o que aconteceu para que ocorresse uma mudança tão inesperada? Não é fácil responder. Um artigo publicado no fim do ano passado na prestigiada revista científica inglesa Nature Geoscience, assinado por Kjetil Vage e Robert Pickart, do Woods Hole Ocanographic Institution, sobre o qual reinou o gélido silêncio da grande imprensa, ajuda a dar um primeiro passo na direção das respostas. Ele mostra um enorme paradoxo: o grande derretimento de 2007 foi fator fundamental para o recrudescimento do frio no ano seguinte. FLUTUADORES ROBÓTICOS O estudo se restringe aos fenômenos locais da dinâmica interna do clima na Terra e compara dados observados numa escala de tempo muito pequena – apenas dois invernos. Para além deles, estão os fenômenos astronômicos – os movimentos da Terra, a atividade solar, as explosões das supernovas, os movimentos da Lua –, sempre lembrados por cientistas que afirmam veementemente que as mudanças no clima do planeta têm origem em causas naturais. Para estes, as alterações climáticas em curso, a exemplo do passado, mostram que estamos vivendo uma transição, e, daqui a uns 20 anos, o planeta entrará num período de temperaturas extremas: mais frio nos polos e mais calor e secura nos trópicos. Vage e Pickart lideram uma equipe composta por cientistas de instituições de diversos países – Canadá, França, Dinamarca, além de colegas da instituição americana em que trabalham. Essa equipe acompanha desde o ano 2000 o movimento da água supersalgada e gelada que se forma no Atlântico Norte quando a temperatura cai e a água do mar congela. Desde então, eles coletam, ano a ano, dados de temperatura e salinidade da água em vários pontos do Atlântico Norte e em várias profundidades. Para isso, utilizam flutuadores robóticos, instrumentos que se assemelham a grandes termômetros encapsulados em metal, que descem automaticamente à profundidade de 2 mil metros e coletam os dados em várias profundidades. Periodicamente, os flutuadores sobem à superfície e transmitem as informações via satélite, submergindo a seguir para recomeçar o trabalho. Eles são muito úteis, pois no inverno a presença de gelo dificulta a navegação dos navios de pesquisa. Com essa técnica, os cientistas descobriram que as águas geladas e densas formadas no inverno de 2007-2008 atingiram, pela primeira vez após 15 anos, profundidades abaixo de mil metros, voltando a alimentar com vigor o braço profundo de um sistema de correntes marítimas conhecido como Cinturão TermoHalino, um dos mais importantes meios de distribuição da energia solar tropical para as regiões subpolares da Terra. A atividade do cinturão tem forte papel na determinação do clima. Há evidências, por retratodoBRASIL 21 Ilustração Alex Silva exemplo, de que sua alimentação tenha sido muito vigorosa durante o Período Quente Medieval, quando as temperaturas médias do planeta se alteraram para cima. O fenômeno contrário, o enfraquecimento da alimentação do cinturão, está relacionado com outra grande mudança climática que ocorreu na Idade Média, a Pequena Era Glacial, de sentido inverso da anterior. Quando a circulação do Cinturão Termo-Halino está ativa, a corrente quente do Atlântico Norte alcança a região subpolar, vinda dos trópicos. Ali, ventos frios do Oeste, da região de Labrador, na costa leste do Canadá, tomam calor da corrente oceânica e, aquecidos, chegam à Europa, elevando a temperatura da costa do continente e de parte de seu interior. Para se ter uma ideia do efeito desse fenômeno, basta comparar a temperatura de inverno em Londres, na Inglaterra, que é de cerca de -5°C, com a da Terra Nova, no Canadá, que está na mesma latitude, que normalmente fica em torno de -15°C. Ao atingir as proximidades da costa da Irlanda, a corrente desvia-se para noroeste, passa pela Islândia e pela Groenlândia, resfriando-se lentamente até encontrar o gélido mar de Labrador, ao sul, na costa do Canadá, onde as águas frias, salgadas e densas submergem sob o manto de água do mar congelada, deslizando vagarosamente de volta para o Equador. Esse arco de retorno descrito pela corrente do Atlântico Norte, conhecido como giro subpolar, alimenta a circulação do Cinturão Termo-Halino. retratodoBRASIL 21 Em 2004, um estudo comprovou que desde meados de 1990 a alimentação do cinturão estava muito enfraquecida. Isso foi interpretado como consequência do aquecimento global e, na época, foram feitas previsões de que, ao contrário do observado no passado, esse fenômeno elevaria a temperatura nos polos, favorecendo, portanto, o derretimento do gelo. O estudo mostrou ainda que as águas da corrente do Atlântico Norte podem levar 20 anos para percorrer toda a rota do giro, entre as costas da Inglaterra e do Canadá. Já o percurso completo do Cinturão TermoHalino leva mais de mil anos. OSCILAÇÃO DO NORTE Até recentemente, acreditava-se que o vigor da alimentação do cinturão estava associado a outro fenômeno, a oscilação do Atlântico Norte, relacionado, por sua vez, à circulação atmosférica, especialmente no inverno, e muito importante para o clima da região. A oscilação rege a umidade do ar e, portanto, a ocorrência de chuva e de neve e também a direção dos ventos locais. Esse padrão oscila (daí o nome) entre duas configurações. Quando está plenamente positivo, a massa de ar que atravessa a região norte dos EUA cruza o oceano Atlântico mais ao norte, em direção aos países escandinavos, provocando tempestades de inverno mais intensas e numerosas sobre o oceano, invernos mais secos e frios no norte do Canadá e da Groenlândia e mais quentes e chuvosos na Euro- pa. O inverno na costa leste dos EUA permanece com temperaturas mais amenas e muita chuva. Na fase negativa extrema, a massa de ar do continente americano chega mais ao sul e cruza o Atlântico alcançando a boca do mar Mediterrâneo, na altura de Gibraltar, passando sobre a península Ibérica. Nessa fase, a oscilação produz tempestades menos numerosas e mais fracas sobre o oceano e leva ar úmido para o sul da Europa e norte da África, enquanto o norte europeu recebe correntes de ar frio e seco. A costa leste dos EUA sofre com abruptas quedas de temperatura e, consequentemente, com maior ocorrência de neve. A oscilação do Atlântico Norte não atua sozinha na determinação do clima de inverno, mas estima-se que ela seja responsável por 30% da variação no transporte de calor pela corrente do Atlântico Norte nessa estação do ano. Ainda não se sabe o que leva à sua mudança de fase, embora se reconheça que é um processo natural, intensamente relacionado com as correntes oceânicas e com variáveis relacionadas à própria atmosfera. A variabilidade da oscilação é enorme. Ela pode mudar de fase num mesmo inverno, em anos ou décadas e, ainda, em cada fase, aumentar ou diminuir de intensidade. Desde 1980 ela tem se mantido predominantemente muito intensa na fase positiva, mantendo um comportamento que não é observado há mais de 200 anos. Alguns cientistas atribuem essa novidade ao 45 Ilustração Alex Silva aquecimento global, mas não há unanimidade a respeito. O estudo de 2004 já havia sugerido que o enfraquecimento do giro subpolar não estava completamente relacionado à oscilação do Atlântico Norte. Durante a década de 1990, ela mudou de fase duas vezes, enquanto o giro continuou enfraquecendo. Vage e Pickart mostraram que, no inverno de 2007-2008, a água fria e densa atingiu maior profundidade no oeste do mar de Labrador, no sul e ao longo da costa leste da Groenlândia, no mar Irminger. Essas observações foram confirmadas por outros grupos de pesquisa que acompanham o clima no Ártico. Mas, se estava claro que a convecção profunda (o movimento descendente da água fria e densa) havia retornado numa extensa área no lado oeste do giro subpolar, a “questão óbvia”, segundo os autores era: “Por quê?”. As análises mostraram que o inverno de 2007-2008 registrou uma queda significativa da temperatura do ar em relação à média dos cinco anos precedentes. Evidenciaram também que a oscilação do Atlântico Norte foi fortemente positiva nos invernos de 20062007 e de 2007-2008, contrastando com índices próximos a zero ou negativos nos cinco invernos anteriores. Mas a convecção profunda ocorreu apenas no fim do inverno de 2007-2008. 46 Vage e Pickart sugerem que, no inverno de 2006-2007, condições locais atuaram com mais vigor do que a oscilação, impedindo que a convecção profunda ocorresse. Mesmo com a oscilação fortemente positiva, os ventos naquele inverno chegaram à costa canadense provenientes do sul da Groenlândia, onde o giro subpolar ainda está um tanto aquecido, transferindo calor para a atmosfera. No inverno de 2007-2008, os ventos tomaram a direção contrária, levando o frio da costa canadense para o sul da Groenlândia, facilitando, assim, a ocorrência da convecção profunda. Vage e Pickart concluíram, como os outros pesquisadores, que a mudança de fase da oscilação não atua sozinha na alteração do vigor da alimentação do Cinturão Termo-Halino. DIFERENTE DO IMAGINADO Outra conclusão do estudo coloca em xeque as previsões feitas após o verão de 2007: o déficit de gelo de um inverno não é pré-condição para a retração da calota polar no inverno seguinte. Isto é, a formação do manto de gelo no mar num inverno não tem o efeito cumulativo que se imaginava. Mais que isso, os autores sugerem que o derretimento das geleiras no Canadá entre 2004 e 2007 e da capota polar no verão de 2007 ajudou a criar as condições para o retorno da convecção profunda. O derretimento das geleiras aumentou o fluxo de água doce dos rios que desembocam na costa do Atlântico Norte canadense. Da mesma forma, o gelo formado pela água do mar há mais tempo é constituído principalmente por água doce. Assim, havia mais água doce no mar de Labrador no inverno de 2007-2008 e, com as baixas temperaturas, ela rapidamente se congelou, tornando o ambiente mais frio e propício para a formação de mais gelo. “Ironicamente”, escrevem os autores do artigo, “o desaparecimento da calota de gelo do Ártico, atribuído ao aquecimento global, deve ter ajudado a disparar o retorno da convecção de inverno no Atlântico Norte.” Analisando dados do passado recente, os cientistas verificaram que uma situação semelhante ocorreu no extraordinariamente frio inverno de 1971-1972. Outro aspecto notável do inverno de 2007-2008, lembram Vage e Pickart, foi que a redução da temperatura do ar sobre o Atlântico Norte subpolar não foi um fenômeno local. De acordo com dados do Goddard Institute for Space Studies, a temperatura global caiu 0,45°C entre os invernos de 20062007 e 2007-2008. O decréscimo foi particularmente forte sobre o norte da América do Norte, onde a temperatura média de inverno foi mais do que 3°C mais fria no inverno de 2007-2008. Uma possível explicação para isso pode estar fora dos limites da região do Atlântico Norte. Os autores sugerem que o forte fenômeno La Niña, que ocorreu no mesmo inverno, tenha alguma relação com o comportamento climático do inverno no Ártico e apontam para a necessidade de se incluirem fenômenos climáticos globais nos diagnósticos sobre a convecção profunda. “A miríade de fatores que envolvem o sistema atmosfera-oceano-gelo que levou ao retorno da convecção profunda no inverno de 2007-2008 expõe a complexidade do sistema convectivo no Atlântico Norte, tornando difícil prever quando a convecção irá ocorrer”, concluem. Nenhum modelo climático apontava qualquer evidência de que a alimentação do Cinturão Termo-Halino voltasse com vigor, ainda mais logo depois do verão de 2007. O trabalho de Vage e Pickart, porém, sugere que as previsões sobre o derretimento da calota polar foram muito precipitadas e que o clima no Ártico ainda guarda muitos mistérios. retratodoBRASIL 21 Divulgação Cinema: MUITO ALÉM DO VÍDEO Documentários ajudam a recuperar a identidade de povos indígenas e os apresentam à sociedade como expressões da diversidade cultural | Carlos Azevedo Há um novo tipo de documentário no meio cultural, feito por cineastas indígenas. Podese assistir a eles em festivais ou comprar o DVD em pontos de venda como grandes livrarias e casas de comercialização de vídeos. Entre eles estão alguns best-sellers, como o divertido Cheiro de Pequi, dos índios cuicuro, ou Amendoim da Cutia, do povo panará, este considerado pelo antropólogo Claude LéviStrauss “de longe o melhor filme que eu tenha visto sobre os índios da América do Sul. Tudo é um sucesso: a escolha dos temas, dos lugares, dos enquadramentos; e a qualidade das imagens é sensacional”, escreveu o cientista. “Temos constantemente a sensação de sermos autorizados a ver a vida indígena por dentro.” Ao todo já são 70 filmes produzidos junto a 40 povos indígenas do Brasil com base em 3 mil horas de gravação, e novos vídeos estão em produção, envolvendo outras comunidades. Esse é um resumo da atividade de 23 anos de uma entidade chamada Vídeo nas Aldeias, uma ONG cujo objetivo inicial era registrar e impedir que se retratodoBRASIL 21 perdessem traços culturais dos povos indígenas e que vem obtendo resultados muito mais importantes que os esperados. Vincent Carelli, fotógrafo e cineasta franco-brasileiro de 55 anos, está envolvido com os índios desde o fim da década de 1970. Os indígenas brasileiros já vêm sendo filmados há muitos anos e manifestaram a ele sua insatisfação com a maneira distorcida como os documentaristas “brancos” os retratavam. Carelli fez uma primeira experiência diferenciada, que foi filmar junto com os nhambiquaras de Rondônia. “Foi mágico. Eu gravava e imediatamente depois mostrava a eles. Isso motivava discussão e a participação de todos, e faziam inúmeras sugestões de mudança, de tal forma que eles passaram a me dirigir. Era um vídeo sobre uma manifestação cultural deles, a Festa da Moça. O interessante é que eles foram críticos quando viram o resultado. Diziam: ‘estamos com muita roupa’; ‘nossa pintura está malfeita’. No ano seguinte, me chamaram para filmar de novo. E aí se apresentaram com todo o rigor. Esse vídeo foi para eles como uma carteira de identidade: ‘Esses somos nós’, diziam. Cópias foram mandadas para as outras tribos e para amigos na cidade. E para mim o vídeo serviu também como instrumento para captação de recursos, para continuar o trabalho. Levei-o para a Europa e para os EUA. Neste, principalmente, houve um apoio considerável. Mais tarde, os europeus também se engajaram.” Com o surgimento do sistema VHS de vídeo, mais barato e portátil, tudo se tornou mais viável. A ideia de que os índios deveriam fazer seus próprios vídeos prosperou. Carelli conta: “Começamos a formar cineastas indígenas, dar câmeras e ilhas de edição a eles. Tudo é discutido com os chefes, que escolhem os que vão ser cineastas entre os jovens mais preparados. Na maioria, são professores das escolas indígenas, que já estudaram em Brasília e outras cidades. Fazemos um treinamento de um mês, na aldeia, e depois começamos a gravar. Eles aprendem rapidamente e desenvolvem capacidade técnica. O tema é decidido por eles, toda a aldeia participa, dá sugestões, faz o roteiro, escolhe os que vão ser protagonistas e estes dizem como pretendem atuar e o que vão dizer. Os jovens cineastas são filhos, sobrinhos, netos e todos vão discutindo cada tomada, como fazer a captação do som, como desenvolver a trama e, depois, participam da edição.Todos desejam participar e participam. É, de fato, uma produção coletiva”. APURO TÉCNICO Os vídeos mostram uma apropriação da linguagem de cinema e de documentário. A câmera clássica, discreta, sem “nervosismos” do tipo zoom in e zoom out, ou “chicotes”. Firme, como se sempre estivesse em tripé, mas se vê pelo making of que, na maioria das vezes, é operada na mão. Iluminação correta, aproveitando as nuances de luz dentro dos ambientes e corrigindo com luz artificial as sombras à luz do Sol. Enquadramento cuidadoso e busca das melhores imagens e ângulos. Operando simultaneamente com duas ou três câmaras, obtêm-se planos e contraplanos bem aproveitados na edição e 47 Reprodução Bilhete de Lévi-Strauss: “o melhor filme que eu tenha visto sobre os índios da América do Sul” que dão fluidez e naturalidade à ação. Desenvolvem-se travellings engenhosos utilizando instrumentos improvisados, como duas equipes montadas em bicicletas acompanhando moças que vão à roça de bicicleta (imagem da página anterior). Destaque para a qualidade do áudio, captado com cuidado. Não se chega a um resultado como esse por sorte ou acaso, mas com muito trabalho, criatividade e talento. E conteúdo, porque essa gente tem algo a dizer. Mas o que parecia ser uma façanha – filmar com correção as histórias da aldeia – deixa logo de ser o ponto central. O processo que está em curso é muito maior do que isso. Na verdade, o papel do vídeo é de instrumento da recuperação e da afirmação de uma identidade cultural. É um movimento criador em dois sentidos, para dentro da comunidade e para fora dela, para a interação com a sociedade envolvente, brasileira, mas também com outros povos. Para dentro da comunidade, funciona 48 como um espelho que detona um poderoso processo de recuperação e afirmação de identidade. Ao querer fazer o vídeo, ao escolher o roteiro, ao participar de toda a sua realização como cineastas, roteiristas, produtores, personagens, editores, um povo se reconhece nas imagens. Ao cuidar de tudo, das locações, das falas, dos gestos, da luz e do som e dos detalhes da pintura e adereços corporais, estão indo buscar elementos de sua cultura. Não é por acaso que, no filme dos panará, O Amendoim da Cutia, uma das personagens – a mulher do pajé, que aparece em várias cenas trabalhando e depois como xamã – afirma: “Eu sou uma velha que estava adormecida e agora está acordando”. Para entender plenamente o que ela quer dizer é preciso lembrar que esse povo era o dos míticos “índios gigantes”, que foi atropelado pelas obras da rodovia Cuiabá–Santarém. Na década de 1970, foi transferido pelos irmãos Villas Boas para o Parque do Xingu quando se encontrava a caminho da extinção. Suas terras foram logo invadidas por fazendas. Mas, 21 anos depois, em 1994, seus remanescentes conseguiram recuperar parte delas e voltaram. “Reincorporar sua identidade cultural agora”, diz Carelli, “requer um esforço de vulto. Isso não quer dizer voltar à ‘pureza’ primitiva, não é realizável e nem mesmo desejável. A comunidade já incorporou instrumentos e costumes dos ‘brancos’. Viver as duas culturas simultaneamente é o seu futuro. Ao contrário do que muita gente pensa, e como demonstra a experiência de vários povos, mesmo manejando essa situação complexa, eles não deixam de ser índios, povos diferenciados, e assim vão continuar enquanto puderem conservar sua terra e condições de sobrevivência como comunidade.” Carelli lembra o diálogo de um jovem cineasta com seu avô, que relatava tradições da tribo: “‘Avô, você nunca me contou isso!’ ‘Mas você nunca quis saber, nunca me perguntou’”. Carelli acrescenta: “O vídeo funciona assim, como um espelho, que faz a comunidade se ver, se redescobrir, se reconhecer perante si mesma e perante as outras comunidades: ‘Esses somos nós’. E isso vai muito além do vídeo, é um renascimento”. De acordo com Carelli, o vídeo também é instrumento para o povo indígena se apresentar e se tornar conhecido pelo restante do povo brasileiro: “Como prevalece muito desconhecimento e preconceito sobre os índios, não há um só público que assista a um vídeo desses que não se surpreenda e fique bem impressionado. Sim, não são brutos, há ali uma cultura, diferente, mas humana, tanto quanto qualquer cultura”. A repercussão em outros países foi forte desde o início. Tanto é que, durante os primeiros 18 anos desse trabalho, quase que a totalidade do financiamento para a produção veio do exterior. “A situação se inverteu a partir de 2003, com o governo Lula, com a nova política do Ministério da Cultura, de prestigiar a diversidade cultural e destinar verbas para as comunidades quilombolas, indígenas e da periferia das cidades, por meio dos ‘Pontos de Cultura’ e do programa ‘Cultura Viva’. Hoje, a comunidade que quer fazer seu vídeo apresenta um roteiro ao Ministério da Cultura (não precisa ser escrito, pode ser oral, gravado) e se candidata a disputar com outros cineastas o financiamento. Os recursos são limitados, mas um número considerável de projetos tem se viabilizado”, diz Carelli. retratodoBRASIL 21 Livro: UMA HISTÓRIA POSSÍVEL Na Colônia e no Império, a matemática pouco se desenvolveu. Só no século XX a disciplina adquiriu papel relevante no Brasil | Tiago Tozzi Escrever sobre história da ciência, para um público não especializado, não é um intento fácil, uma vez que fica sempre a questão, aos que se enveredam nesse projeto, sobre o quanto se deve abordar da história em geral, pensada aqui naquela que tem como foco as transformações sociais, e o quanto se deve aprofundar sobre o conteúdo científico específico a que se propõe relatar. Tal dicotomia, que evidentemente é falsa, uma vez que o conhecimento científico é produzido historicamente, se apresenta apenas pelas necessárias simplificações e cortes ligados à divulgação para públicos não especializados. Com a matemática ocorre o mesmo, ainda mais pela forma como essa área do conhecimento é vista pela sociedade, que em geral lhe atribui um grau de dificuldade de compreensão muitas vezes maior do que o real. Isso ocorre, provavelmente, devido à dificuldade que a educação e suas práticas têm em lidar com ela. É nesse caldo que junta história, matemática e educação que se insere a obra de Ubiratan D’Ambrósio, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), publicada em 2008. Mais conhecido no Brasil como “o pai da etnomatemática”, ele argumenta que a “matemática acadêmica”, da qual trata o livro e que se relaciona com aquilo que aprendemos na escola, é apenas uma das muitas etnomatemáticas exisUMA HISTÓRIA CONCISA DA MATEMÁTICA NO BRASIL Autor Ubiratan D’Ambrosio Editora Vozes Ano 2008 Páginas 128 retratodoBRASIL 21 tentes, cada uma vinculada a uma dada civilização ou sociedade (incluindo aquela que nasceu e se desenvolveu na Europa), não havendo hierarquia de valor real entre elas. Essa forma de abordar a matemática é de vital importância, uma vez que aprendemos na escola que existe uma única matemática, que seria uma obra coletiva de toda a sociedade, enquanto, historicamente, o processo não foi tão equitativo e colaborativo, conforme percebemos pela leitura dos indícios trazidos pelo livro. ESFORÇO LOUVÁVEL A obra de D’Ambrósio representa um esforço que, se não é inédito, no mínimo é louvável e raro, na medida em que busca trazer, em um pequeno livro, a história e a matemática – em ponto de equilíbrio –, destacando as transformações sociais e o desenvolvimento da última. Esse empreendimento se torna ainda mais valioso se levarmos em consideração que a temática cuja história é ali contada se refere à de um País onde, pelo menos até o início do século XX, o desenvolvimento dessa disciplina foi marginalizado em relação aos países centrais – no caso, países da Europa, como Alemanha, França, Inglaterra e Itália. A forma como isso se reflete no reconhecimento da história dessa produção nacional pode ser muito bem ilustrada pelo caso relatado de Joaquim Gomes de Sousa, mais conhecido por “Sousinha” que, vivendo no século XIX, em pleno Império, ousou produzir conhecimento matemático de forma independente, mas atrelado às questões centrais que se discutiam na Europa. Contudo, ao tentar se inserir no debate conduzido pelas nações centrais, foi tristemente ignorado em suas ideias. Com o intuito de destacar a relação permanente entre dominador e dominado que caracterizou a organização social e política brasileira, tanto de um ponto de vista interno quanto externo, e suas conexões com a produção do conhecimento, o livro passa em revista os diversos e conturbados períodos de nosso passado, sempre com um olhar mais histórico que crítico na produção do conhecimento matemático e na educação matemática, as quais – como supostamente se concebe – seriam dois lados de uma mesma moeda. Supostamente porque, na atualidade, o Brasil possui uma posição bastante destacada nas pesquisas em matemática e um bom desempenho nas olimpíadas internacionais. Porém, segundo os índices nacionais e internacionais, tem uma educação básica sofrível. Essa aparente contradição talvez tenha seu cerne na própria relação dominador– dominado mencionada acima, decorrente da qual grande parte da população brasileira sempre ficou à margem do processo educativo. Como a posição de um país numa dada escala de produção de conhecimento se deve muito mais à qualidade do que é produzido do que à quantidade, apesar do grande “incentivo” dado a quem publica grande quantidade de artigos, não é difícil compreender a falsa contradição existente na asserção anterior e que pode ser confirmada pela leitura da obra. Como a produção do conhecimento matemático no Brasil sempre esteve atrelada à educação, vemos que aqueles que detiveram o monopólio da instrução também o detiveram na produção, fato esse claro quando D’Ambrósio analisa o papel dos jesuítas, dos militares com as escolas de engenharia e, posteriormente, o governo, com as instituições 49 Reprodução de ensino e pesquisa. Esse é um ponto importante de reflexão trazido na leitura; por ele, vemos que, em toda a nossa história, a matemática sempre foi vista como um conhecimento no mínimo estratégico, no qual vários obstáculos eram interpostos no caminho daqueles que queriam ter acesso a ele. Por meio da visão panorâmica apresentada pelo livro, perdemos de vista os detalhes da produção do conhecimento matemático, com seus debates e questões centrais, mas ganhamos uma maior visão de conjunto, destacada pelos movimentos dos atores de cada período associada com a ideologia dominante da classe que estava no poder. Isso, é importante realçar, mantém-nos atentos à importância do conhecimento enquanto instância legitimadora de uma dada classe que quer tomar o poder ou se manter nele. PAPEL POSITIVISTA Infelizmente, o livro não parte para a análise, também crucial, desse pormenor, deixando para o leitor a tarefa de ligar os fatos e ajustar as lentes. Contudo, são ilustrativas sobre isso a discussão do papel dos positivistas no Brasil, com sua matemática retirada dos escritos de Augusto Comte, associado principalmente aos militares, e a nova Reprodução Sousinha: produção tristemente ignorada Exame de artilheiro, meados do século XVIII: era preciso ter conhecimento matemático matemática trazida da Europa de fins do século XIX, a qual encontrava nos liberais daqui seus representantes. É assim, seguindo essa linha de raciocínio, que o autor culmina a obra mostrando o grande desenvolvimento da matemática brasileira no século XX, resultado, entre outros, do maior intercâmbio com os países centrais (o que, por sua vez, relaciona-se com o momento histórico vivido na Europa). Localiza, associada a isso, uma burguesia industrial nascente em São Paulo, que busca, na produção de conhecimento, assegurar o seu direito de “dirigir o País”, fato esse destacado pela criação da Universidade de São Paulo (USP) na década de 1930. Essa universidade, como destaca o autor, teve um papel importantíssimo na inserção do País na produção do conhecimento matemático (e, sem exagerar, dos outros conhecimentos também), mas isso se deveu à política de trazer do exterior os profissionais que produziam o conhecimento nas nações centrais. O merecido destaque dado pelo autor ao Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), pela sua produção matemática de alto nível, poderia ser criticado pelo esquecimento de seu papel importantíssimo na educação, com seus programas atuais de formação de professores e de discussão do currículo de matemática praticado na educação básica no Brasil. Tomando como referência a intenção do autor para com o livro, de “descrever a inter- relação de eventos e indivíduos, de fatores políticos, econômicos e ideológicos, que acompanham fatos e personagens da História da Matemática do Brasil” (conforme explica na introdução), os objetivos foram cumpridos, principalmente considerando-se a dificuldade de se escrever uma obra como essa, que trata da história do desenvolvimento de uma disciplina em um País com mais de 500 anos de história e onde todas as implicações dessa tarefa são amplas e complexas para uma abordagem “concisa”, conforme anunciado pelo título. A obra, mesmo assim, cumpre a sua tarefa para aqueles interessados numa visão factual e panorâmica da evolução histórica da matemática no Brasil, podendo ser de grande valia como uma introdução bastante objetiva ao tema, apesar de fragmentada, pela quantidade de referências e dados apresentados. Pensando para além das armadilhas que uma abordagem descritiva da história nos conduz, e considerando a forma adotada pelo autor para apresentar esse desenvolvimento da matemática no Brasil, valeria a reflexão sobre o apontamento deixado por Nietzsche, na sua Segunda Consideração Extemporânea: da utilidade e desvantagem da história para a vida: “Precisamos da história, mas precisamos dela de outra maneira que o mimado caminhante ocioso no jardim do saber”. TIAGO TOZZI é físico, professor de física e matemática, pós-graduando em ensino de ciências na USP. BRASÍLIA SBS Quadra 4, Lotes 3/4 – Asa Sul – (61) 3206-9450/9448 EXPOSIÇÃO Peter Paul Rubens e seu Ateliê de Gravura De 24 de abril a 24 de maio de 2009 Terça a domingo, das 9h às 21h Classificação: livre Entrada franca Galeria Vitrine CURITIBA Rua Conselheiro Laurindo, 280 – Centro – (41) 2118-5409 EXPOSIÇÃO Programação abril/2009 30 Anos de Fotografia De 7 de abril a 3 de maio de 2009 Terça a sábado, das 10h às 21h Domingo, das 10h às 19h Classificação: livre Entrada franca Galeria da CAIXA RIO DE JANEIRO Av. Almirante Barroso, 25 – Centro – (21) 2544-4080 EXPOSIÇÃO Ser Jovem na França De 23 de abril a 17 de maio de 2009 Terça a sábado, das 10h às 22h Domingo, das 10h às 21h Classificação: livre Entrada franca Galeria 3 SALVADOR Rua Carlos Gomes, 57 – Centro – (71) 3322-0228/0219 EXPOSIÇÃO Madeleine Colaço – A Tapeceira dos Trópicos De 17 de março a 26 de abril de 2009 Terça a domingo, das 9h às 18h Classificação: livre Entrada franca Galeria Mirante e Salão Nobre SÃO PAULO Av. Paulista, 2.083 – Cerqueira César – (11) 3321-4400 EXPOSIÇÃO Dag Alveng – Nova Iorque Noruega 1979/2008 De 26 de março a 3 de maio de 2009 Terça a domingo, das 9h às 21 h Classificação: livre Entrada franca Galeria da Paulista CAIXA. O banco que acredita nas pessoas.
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