1 Vol XXI 2012 - Revista Nascer e Crescer
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1 Vol XXI 2012 - Revista Nascer e Crescer
Vol. 21, nº 1, Março 2012 21| 1 Revista do Hospital de Crianças Maria Pia | Departamento de Ensino, Formação e Investigação | Centro Hospitalar do Porto Ano | 2012 Volume | XXI Número | 01 Directora | Editor-in-Chief | Sílvia Álvares; Director Adjunto | Associated Editor | Rui Chorão; Directora Executiva | Executive Editor | Margarida Lima Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Porto | Director | Fernando Sollari Allegro Corpo Redactorial | Editorial Board Artur Alegria, CHP Armando Pinto, IPOPFG Carmen Carvalho, CHP Cláudia Pedrosa, CHVNG/E Conceição Mota, CHP Cristina Rocha, CHEDV Gustavo Rocha, CHSJ João Barreira, CHSJ Laura Marques, CHP Lurdes Morais, CHP Margarida Guedes, CHP Rui Almeida, HPH/ULSM Editores especializados | Section Editors Artigo Recomendado – Helena Mansilha, CHP; Maria do Carmo Santos, CHP Perspectivas Actuais em Bioética – Natália Teles, CGMJM Pediatria Baseada na Evidência – Luís Filipe Azevedo, FMUP; Altamiro da Costa Pereira, FMUP A Cardiologia Pediátrica na Prática Clínica – António Marinho, CHUC; Fátima Pinto, HSM/CHLC; Maria Ana Sampaio, HCV, Maria João Baptista, CHSJ; Paula Martins, HPCM/CHUC, Rui Anjos, HSC/CHLO; Sílvia Álvares, CHP Ciclo de Pediatria Inter-Hospitalar do Norte – Armando Pinto, IPOPFG; Carla Carvalho, HSMM; Carla Moreira, HB/EB; Conceição Santos Silva, CHPVVC; Fátima Santos, CHVNG/E; Inês Azevedo, CHSJ; Isalita Moura, HSMM; Isolina Aguiar, CHAA; Joaquim Cunha, CHTS; Susana Tavares, CHEDV; Cármen Carvalho, CHP; Rosa Lima, CHP; Sofia Aroso, HPH/ULSM; Sónia Carvalho, CHMA Caso Dermatológico – Manuela Selores, CHP; Susana Machado, CHP Caso Electroencefalográfico – Rui Chorão, CHP Caso Endoscópico – Fernando Pereira, CHP Caso Estomatológico – José Amorim, CHP Caso Radiológico – Filipe Macedo, CHAA Genes, Crianças e Pediatras – Esmeralda Martins, CHP; Margarida Reis Lima, HPP Pequenas Histórias – Margarida Guedes, CHP Consultor Técnico | Consultant Gama de Sousa, Porto Consultora de Epidemiologia e de Bioestatistica | | Advisor of Epidemiology and Biostatistics Maria José Bento, IPOPFG Conselho Científico Nacional | | National Scientific Board Alberto Caldas Afonso, CHSJ, FMUP, Porto Almerinda Pereira, HB/EB, Braga Álvaro Aguiar, FMUP, Porto Ana Maria Leitão, HSSM, Barcelos Ana Ramos, CHP, Porto António Martins da Silva, CHP e ICBAS/UP, Porto Arelo Manso, Porto Braga da Cunha, CHTS, Penafiel Cidade Rodrigues, CHP, Porto Conceição Casanova, CHPVVC, Póvoa de Varzim Eurico Gaspar, CHTMAD, Vila Real Fátima Praça, CHVNG/E, Vila Nova de Gaia Gonçalves Oliveira, CHMA, Famalicão Helena Jardim, CHP, Porto Henedina Antunes, HB/EB, Braga Hercília Guimarães, CHSJ, FMUP, Porto Ines Lopes, CHVNG/E, Vila Nova de Gaia José Barbot, CHP, Porto José Carlos Areias, FMUP, Porto José Cidrais Rodrigues, HPN/ULSM, Matosinhos José Pombeiro, CHP, Porto Lopes dos Santos, HPH/ULSM, Matosinhos Luís Almeida Santos, CHSJ, FMUP, Porto Luís Vale, HPBN, Porto Manuel Salgado, HPCM/CHUC, Coimbra Manuela Selores, CHP, Porto Marcelo Fonseca, ULSM, Matosinhos Margarida Lima, CHP, ICBAS/UP, Porto Maria Augusta Areias, HPBN, Porto Norberto Estevinho, HPP, Porto Óscar Vaz, CHN, Mirandela Paula Cristina Ferreira, CHP, Porto Pedro Freitas, CHAA, Guimarães Rei Amorim, CHAM, Viana do Castelo Ricardo Costa, CHCB, Covilhã Rosa Amorim, CHP, Porto Rui Carrapato, CHEDV, Santa Maria da Feira Teresa Temudo, CHP, Porto Conselho Científico Internacional | | International Scientific Board Alain de Broca, Centre Hospitalier Universitaire Amiens, Amiens Annabelle Azancot, Hôpital Robert Debré, Paris Francisco Alvarado Ortega, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid Francisco Ruza Tarrio, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid George R. Sutherland, University Hospital, Edinburgh Harold R. Gamsu, Kings College Hospital, Londres J. Bois Oxoa, Hospitals Vall d’Hebron, Barcelona Jean-François Chateil, Hôpital Pellegrin, Bordeaux José Quero, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid Juan Tovar Larrucea, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid Juan Utrilla, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid Luís Callís, Hospital Vall d’Hebron, Barcelona Peter M. Dunn, University of Bristol, Bristol Assessores Editoriais | Editorial Assistants Carolina Cortesão Paulo Silva Publicação trimestral resumida e indexada por Catálogo LATINDEX EMBASE / Excerpta Médica Index das Revistas Médicas Portuguesas SciELO Scopus Design gráfico bmais comunicação Execução gráfica e paginação Papelmunde, SMG, Lda Vila Nova de Famalicão ISSN 0872-0754 Depósito legal 4346/91 Tiragem 2.500 exemplares Autorização CTT DE 0005/2005 DCN Propriedade, Edição e Administração / Publisher Departamento de Ensino, Formação e Investigação Centro Hospitalar do Porto Largo do Prof. Abel Salazar – 4099-001 Porto Telefone: (+351) 222 077 500; fax: (+351) 222 082 166 Telemóvel: (+351) 915 676 516 [email protected] Condições de assinatura Anual Nacional (4 números) - 40 euros Anual Estrangeiro (4 números) - 80 euros Número avulso - 12 euros CGMJM, Centro de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães, CHAA, Centro Hospitalar do Alto Ave; CHAM, Centro Hospitalar do Alto Minho; CHCB, Centro Hospitalar da Cova da Beira; CHEDV, Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga; CHMA, Centro Hospitalar do Médio Ave; CHN, Centro Hospitalar do Nordeste; CHP, Centro Hospitalar do Porto; CHPVVC, Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim – Vila do Conde; CHSJ, Centro Hospitalar de São João; CHTMAD, Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro; CHTS, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa; CHUC, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra; CHVNG/E, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho; DEFI, Departamento de Ensino, Formação e Investigação; FMUP, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; HB/EB, Hospital de Braga/Escala Braga; HCV, Hospital Cruz Vermelha; HPBN, Hospital Privado da Boa Nova; HPCM/CHUC, Hospital Pediátrico Carmona da Mota; HPH/ULSM, Hospital Pedro Hispano/Unidade Local de Saúde Matosinhos; HPP, Hospitais Privados de Portugal; HSC/CHLO, Hospital de Santa Cruz/Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental; HSM/CHLC, Hospital de Santa Marta/Centro Hospitalar de Lisboa Central; HSMM, Hospital Santa Maria Maior; ICBAS/UP, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto; IPOPFG, Instituto Português de Oncologia do Porto, Francisco Gentil. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 índice número1.vol.XXI 7 Editorial 8 Artigos Originais Margarida Lima e Sílvia Álvares Infecção por H1N1 num Serviço de Pediatria Joana Magalhães, Liliana Pinho, Catarina Mendes, Andreia Dias, Carla Zilhão, Cristina Garrido, Susana Pinto, Guilhermina Reis, Margarida Guedes 13 Luxação congénita do joelho: que abordagem? Revisão teórica e experiência de um Hospital Pediátrico Luísa Neiva Araújo, Eduardo Almeida 19 Artigos de Revisão Alterações ungueais em Pediatria Susana Gomes, André Lencastre, Maria João Paiva Lopes 25 Casos Clínicos Endocardite infecciosa num recém-nascido pré-termo Cristiana Ribeiro, Marta Rios, Luísa Lopes, Sílvia Álvares, Elisa Proença, Ana Guedes 28 Miosite orbitária numa criança José Fraga, Aida Sá, Cristina Cândido, José Pereira Pinto, Fátima Dias 33 Síndrome de Miller Fisher numa criança Dora Gomes, Filipa Leite, Nuno Andrade, Mónica Vasconcelos, Conceição Robalo, Isabel Fineza 37 Paraplegia espástica familiar tipo 4 – antecipação ou variabilidade fenotípica? Nádia Rodrigues, Sofia Ferreira, Lia Rodrigues, Ana Castro, Célia Barbosa, Roseli Gomes 40 Artigo Recomendado Maria do Carmo Santos NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 42 Perspectivas Actuais em Bioética O direito à saúde na União Europeia em perspectiva diacrónica: elementos para uma genealogia do artigo 35.º da CDFUE (cont.) Luís Menezes do Vale de Pediatria Inter-Hospitalar 54 Ciclo do Norte Febre de etiologia indeterminada – encruzilhada de diagnósticos Manuel Oliveira, Carla Meireles, Patrícia Costa, Margarida Guedes, Ana Luísa Lobo 57 Qual o seu Diagnóstico? Caso Dermatológico Ana Oliveira, Madalena Sanches, Manuela Selores 59 Caso Estomatológico José M. S. Amorim 61 Caso Hematológico Teresa São Simão, Miguel Salgado, Emília Costa, José Barbot 63 Genes, Crianças e Pediatras Esmeralda Martins, Teresa Oliveira, Anabela Bandeira 65 Normas de Publicação NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 summary number1.vol.XXI 7 Editorial 8 Original Articles Margarida Lima e Sílvia Álvares H1N1 Infection in a pediatric unit Joana Magalhães, Liliana Pinho, Catarina Mendes, Andreia Dias, Carla Zilhão, Cristina Garrido, Susana Pinto, Guilhermina Reis, Margarida Guedes 13 Congenital dislocation of the knee: what approach? Review and experience of a pediatric hospital Luísa Neiva Araújo, Eduardo Almeida 19 Review Article Nail disorders in pediatrics Susana Gomes, André Lencastre, Maria João Paiva Lopes 25 Case Reports Infective endocarditis in a preterm newborn Cristiana Ribeiro, Marta Rios, Luísa Lopes, Sílvia Álvares, Elisa Proença, Ana Guedes 28 Orbital myositis in a child José Fraga, Aida Sá, Cristina Cândido, José Pereira Pinto, Fátima Dias 33 A child with Miller Fisher Syndrome Dora Gomes, Filipa Leite, Nuno Andrade, Mónica Vasconcelos, Conceição Robalo, Isabel Fineza 37 Hereditary spastic parapelgia type 4 – anticipation or phenotypic variability? Nádia Rodrigues, Sofia Ferreira, Lia Rodrigues, Ana Castro, Célia Barbosa, Roseli Gomes 40 Recommended Article Maria do Carmo Santos NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 42 Current Perspectives in Bioethics The right to health in the EU in a diachronic perspective: a genealogy of article 35º of the CFREU (cont.) Luís Menezes do Vale 54 Paediatric Inter-Hospitalar Meeting Fever of unknown origin – a difficult diagnostic problem Manuel Oliveira, Carla Meireles, Patrícia Costa, Margarida Guedes, Ana Luísa Lobo 57 What is your Diagnosis? Dermatology case Ana Oliveira, Madalena Sanches, Manuela Selores 59 Oral pathology case José M. S. Amorim 61 Hematology case Teresa São Simão, Miguel Salgado, Emília Costa, José Barbot 63 Genes, Children and Paediatricians Esmeralda Martins, Teresa Oliveira, Anabela Bandeira 65 Instructions for Authors NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 editorial A revista Nascer e Crescer teve origem há duas décadas no Hospital de Crianças Maria Pia, onde foi criada por iniciativa de um grupo de médicos motivados para a promoção da actividade científica e da educação médica na área da pediatria, com a convicção de que contribuiriam desta forma para melhorar a qualidade assistencial. Com a criação do Centro Hospitalar do Porto e a integração da Revista no Departamento de Ensino, Formação e Investigação, surgiram dificuldades que nos esforçamos por ultrapassar. A estas dificuldades acresceram outras, determinadas pela competitividade no mundo científico e na área da divulgação do conhecimento. Não tem sido fácil manter a edição regular da revista Nascer e Crescer, aumentando o grau de exigência e melhorando a qualidade dos artigos publicados. Foi necessário reformular o corpo editorial e redactorial da Revista, promover a formação dos revisores e garantir o secretariado. Para lhe dar uma maior visibilidade, passamos a disponibilizar os artigos em texto integral no portal interno do Centro Hospitalar do Porto e no Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal. Outro passo fundamental foi a indexação da revista Nascer e Crescer em várias bases de dados bibliográficos, a última das quais a SciELO. Na época difícil em que vivemos, marcada, entre outros, pelos constrangimentos económicos e pelo encerramento recente do Hospital onde a Revista teve origem, queremos deixar aqui um apelo. Encaremos as dificuldades como oportunidades e como mais um desafio à capacidade para nos adaptarmos às novas realidades e para fazer mais e melhor. Sejamos capazes de dar continuidade a este projeto que deve ser motivo de orgulho para o Hospital e para os profissionais que nele trabalham. Contribuamos, individualmente e como conjunto, para aumentar a quantidade e sobretudo a qualidade dos artigos publicados na nossa Revista. Margarida Lima Directora do Conselho de Gestão do Departamento de Ensino, Formação e Investigação do Centro Hospitalar do Porto Sílvia Álvares Directora da Revista Nascer e Crescer editorial 7 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Infecção por H1N1 num Serviço de Pediatria Joana Magalhães1, Liliana Pinho1, Catarina Mendes1, Andreia Dias1, Carla Zilhão1, Cristina Garrido1, Susana Pinto1, Maria Guilhermina Reis1, Margarida Guedes1 RESUMO Introdução: A infecção por vírus influenza A H1N1 constituiu a primeira pandemia deste século. Para reduzir a propagação, foram enfatizadas medidas de protecção individual e atendimento e internamento em áreas específicas, com isolamento de gotícula. Objectivos: Avaliar a importância da área de isolamento para casos de suspeita de infecção por H1N1 num Serviço de Pediatria. Caracterização da infecção nos doentes internados. Material e métodos: Consulta do processo clínico, com avaliação segundo parâmetros definidos pela Direcção Geral de Saúde. Tratamento de dados em Microsoft Excel 2007. Resultados: A área de isolamento teve oito camas, com 36% de ocupação. Dos 28 doentes internados, 82% tinham indicação para investigação, positiva em 54%. Foi feita pesquisa a 25 doentes fora do isolamento, positiva em 12%. Não ocorreu infecção nosocomial. Houve 23 casos, 74% de 16 de Novembro a 6 de Dezembro de 2009. A idade variou entre seis semanas e 16 anos, com mediana de um ano. A febre foi constante, tosse, rinorreia e vómitos foram frequentes. Os motivos de internamento foram febre em pequeno lactente, intolerância oral e hipoxemia. A terapêutica antiviral foi instituída em 13 doentes, com uma resistência. Em sete dos casos ocorreram complicações: pneumonia bacteriana provável (cinco), convulsão febril e abcessos esplénicos. Conclusões: As medidas foram eficazes. A área foi sobredimensionada. Relativamente à pandemia, existem essencialmente dados de organizações governamentais. Parece importante confrontar resultados para definir estratégias para uma futura epidemia. Palavras-chave: gripe, H1N1, pediatria. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 8-12 INTRODUÇÃO A infecção por vírus influenza A, subtipo H1N1 constituiu a primeira pandemia do século XXI. Teve início no México em Abril de 2009 e propagou-se rapidamente(1,2), o que foi facilitado pela __________ 1 8 S. Pediatria, CH Porto artigo original original article elevada mudança antigénica, com consequente baixa imunidade das populações, e pela elevada mobilidade das mesmas. O pico de incidência no hemisfério Norte ocorreu em Outubro de 2009(3), tendo-se verificado mais tarde em Portugal, entre 16 e 29 de Novembro(4). Foi mais precoce que o da gripe sazonal, que geralmente ocorre em Janeiro. Posteriormente a incidência diminuiu, o que se poderá dever parte à evolução natural, parte à vacinação que se iniciou em finais de Outubro. A infecção por H1N1 teve uma elevada incidência, principalmente crianças e adultos jovens (15-30 anos nos EUA(3), 0-10 anos em Portugal)(4), tendo a maioria dos casos correspondido a doença ligeira. Não obstante, verificou-se uma maior taxa de hospitalizações (0,7% dos casos, em Portugal)(4), sobretudo de crianças com menos de 4 anos(3). A mortalidade foi baixa (1,04/100000 habitantes, 0,38/100 000 em idade pediátrica)(4), envolvendo essencialmente indivíduos com factores de risco(2,3,4). O quadro clínico de síndrome gripal é inespecífico, comum a muitas doenças, o que dificulta o diagnóstico(2,5). A suspeita é confirmada através da identificação do vírus por RT-PCR (transcriptase reversa seguida de polimerase chain reaction) em zaragatoa da naso e orofaringe. O vírus H1N1 pandémico é sensível aos inibidores da neuraminidase, sendo o oseltamivir por via oral o tratamento padrão. Este parece diminuir o risco de complicações da doença, além da duração da sintomatologia e do tempo de contágio(1,3,6,7). A sua administração foi preconizada como terapêutica e como quimioprofilaxia em doentes de risco. Foi descrita resistência ao oseltamivir, num pequeno número de casos, por todo o mundo, maioritariamente em indivíduos com terapêutica/quimioprofilaxia prévias ou imunodeficientes(3,8,9). Em todas as fases da epidemia houve preocupação em diminuir a sua propagação, entre a população e aos profissionais de saúde, pelo que foram enfatizadas as medidas de protecção individual e o atendimento e internamento dos doentes em áreas específicas, com isolamento de contacto e gotícula. Por motivos de gestão de espaço e indisponibilidade de um teste rápido fiável, foi realizado isolamento de corte juntando os casos suspeitos e os confirmados, na maioria das instituições. MATERIAL E MÉTODOS Objectivo principal: Avaliar a importância de uma área de isolamento destinada a crianças com suspeita de infecção por H1N1, activada no Serviço de Pediatria do Hospital de Santo NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 António (HSA) – Centro Hospitalar do Porto (CHP) entre 20 de Novembro de 2009 e 9 de Janeiro de 2010. Objectivo secundário: Caracterizar a infecção por H1N1 nos doentes internados no referido Serviço, de acordo com os parâmetros definidos pela Direcção Geral de Saúde (DGS)(5). Foi realizada revisão dos processos clínicos dos doentes internados com infecção por H1N1, suspeita ou confirmada, no Serviço de Pediatria do HSA-CHP no ano epidemiológico de 2009/2010. Os dados foram obtidos através da consulta do processo clínico dos doentes e tratados em Microsoft Excel 2007. A importância da área de isolamento foi determinada através das taxas de ocupação e de contágio. A taxa de ocupação foi calculada considerando o número de camas (8), e dividindo o número total de dias de internamento pelos dias de internamento disponíveis. A taxa de contágio foi calculada pela razão entre o número de casos de infeção nosocomial e o número total de casos. As variáveis consideradas para a caracterização da infecção por H1N1 foram as seguintes: idade, sexo, etnia, semana de internamento, apresentação clínica inicial [definição de caso segundo orientação técnica (OT) 1 da DGS – Quadro I], factores de risco (OT 1 – Quadro II), motivo de internamento, indicação para investigação laboratorial (OT 2 – Quadro III), resultados analíticos, terapêutica (OT 7 – Quadro IV), co-infecções e complicações (OT 1 – Quadro V)(5). Quadro I - Definição de caso suspeito de infecção por influenza A H1N1 (OT1) (5) Quadro III - Critérios para investigação etiológica laboratorial num caso de suspeita de infecção por influenza A H1N1 (OT 2) (5) • Início súbito de febre (temperatura ≥38 °C) ou história de febre nos últimos dias e, pelo menos, dois dos seguintes sintomas: - tosse, - cefaleias, - odinofagia, - mialgias/artralgias, - rinorreia, - vómitos/diarreia e/ou • Doente internado com síndroma gripal; • Doente em UCI; • Doente internado com pneumonia; • Grávidas; • Criança ≤ 12 meses; • Suspeita de resistência do vírus aos antivirais; • Investigação de cluster (dois primeiros casos); • Profissional de saúde, com contacto directo com doentes. • Doença respiratória aguda grave (incluindo pneumonia) sugestiva de etiologia infecciosa. Nota: • Os lactentes, principalmente se tiverem idade ≤ 3 meses, podem apresentar apenas febre ou hipotermia e prostração; mas também um quadro clínico de sépsis, suspeito ou confirmado. • Após os 3 meses a infecção poderá manifestar-se por infecção respiratória baixa, de gravidade variável, nomeadamente bronquiolite, pneumonia, bronquite, derrame pleural. Quadro II - Factores de risco para infecção por influenza A H1N1 (OT 1) (5) • Idade <5 anos e, em particular, crianças menores de 2 anos. Até aos 12 meses considera-se uma situação de risco acrescido • Portadores de doença crónica (principalmente se grave e/ou descompensada): - pulmonar (incluindo asma com necessidade de terapêutica diária com corticóides inalados); - cardiovascular (excluindo hipertensão arterial isolada); - renal; - hepática; - hematológica (incluindo drepanocitose); - neurológica e neuromuscular; - metabólica (nomeadamente diabetes mellitus); - oncológica. • Imunossupressão (incluindo imunossupressão induzida por medicamentos ou infecção por VIH); • Grávidas; • Indivíduos de idade ≤18 anos sob terapêutica de longa duração com salicilatos; • Obesidade mórbida (IMC ≥ 25 se idade ≤10 anos, IMC ≥35 se idade >10 e <18 anos). Quadro IV - Critérios para instituição de terapêutica antiviral nos casos de infecção por influenza A H1N1 suspeita ou confirmada (OT 7) (5) • Critérios de gravidade clínica ou doença progressiva; • Portadores de doença crónica (sobretudo se grave ou descompensada), imunodeprimidos, obesidade mórbida; • Idade <2 anos; • Grávidas e puérperas; • Profissionais de saúde; • Doentes internados (qualquer que seja o motivo). Quadro V - Complicações da infecção por vírus influenza A H1N1 (OT 1) (5) Complicações com gravidade variável: • Agravamento de doença crónica subjacente • Infecção respiratória alta: sinusite, otite, laringite ou laringo-traqueíte • Infecção respiratória baixa: pneumonia (inclui pneumonia bacteriana secundária), bronquiolite • Complicações cardíacas: miocardite, pericardite • Complicações músculo-esqueléticas: miosite, rabdomiólise • Complicações neurológicas: encefalopatia aguda ou pós-infecciosa, encefalite, convulsões febris artigo original original article 9 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 RESULTADOS No período de 20 de Novembro de 2009 a 9 de Janeiro de 2010, no Serviço de Pediatria do HSA-CHP, foi activada uma área de isolamento de contacto e gotícula (uso de viseira, máscara, luvas e avental), com lotação de 8 camas, adequadas para as diferentes faixas etárias. Foram internados 28 doentes, o que correspondeu a uma taxa de ocupação de 36%. A infecção por H1N1 foi confirmada em 15 casos (54%). Cinco doentes (18%) não tinham indicação para efectuar investigação laboratorial, de acordo com as orientações da DGS, embora o teste tenha sido positivo num deles. Entre os 23 doentes com indicação para investigação, a infecção foi confirmada em 14 (61%). Durante o mesmo período, foi efectuada pesquisa do vírus H1N1 a 25 doentes internados no referido Serviço, mas fora da área de isolamento, tendo a infecção sido confirmada em três dos casos (12%). Cinco doentes (20%) não apresentavam indicação para a colheita, embora o teste tenha sido positivo num deles. Todos os casos de infecção por H1N1 foram adquiridos na comunidade, tendo a taxa de contágio na enfermaria sido nula. Fazendo uma análise conjunta dos doentes internados no Serviço de Pediatria do HSA-CHP com infecção por H1N1, no ano epidemiológico de 2009/10, obtém-se um total de 23 casos, 5 dos quais antes da área de isolamento ter sido activada (Gráfico 1). A duração de internamento variou entre dois e 78 dias, com média e mediana de oito e cinco dias, respectivamente. A idade dos doentes internados com infecção por H1N1 variou entre as seis semanas e os 16 anos (mediana de um ano): nove lactentes (< 12 meses), seis crianças com 1-5 anos, seis crianças com 5-10 anos e dois adolescentes com 11 e 16 anos, todos de etnia caucasiana e 65% do sexo masculino. Relativamente à forma de apresentação clínica, depois da febre, presente na totalidade dos casos, a tosse (74%), a rinorreia (52%) e os vómitos (43%) foram os sintomas mais frequentes. A tríade febre, rinorreia e tosse, associada ou não a outros sintomas, verificou-se em 10 casos (43%). A odinofagia (um caso), a diarreia (um caso) e as mialgias (dois casos) foram sintomas menos comuns. Dezoito doentes (78%) apresentavam factores de risco, nomeadamente idade inferior a cinco anos (14), imunossupressão e obesidade mórbida (1), doença pulmonar crónica – asma sob corticoterapia inalada (1) e epilepsia (2). Três doentes (13%) não tinham indicação para investigação laboratorial, atendendo a que, segundo as orientações da DGS (Quadro I), não preenchiam os critérios para definição de caso suspeito de infecção por H1N1: lactente de nove meses de idade com febre e rinorreia, criança de um ano com febre e tosse, criança de sete anos com febre e vómitos. Os principais motivos de internamento foram: febre em pequeno lactente (30,4%), pneumonia e intolerância oral (17,4%), vómitos incoercíveis (8,7%) e hipoxemia (8,7%). Além da pesquisa do vírus H1N1 por RT-PCR em zaragatoa da naso e orofaringe, os exames complementares de diagnóstico realizados foram: hemograma (91,3%), proteína C reactiva (87%) e bioquímica sérica com transaminases (21,7%) (Quadro VI). Quadro VI - Resultados de exames complementares de diagnóstico Exame complementar n Valor médio Valor máximo 11,7 12 008,0 50,3 35,4 257 857,0 13,7 26 730,0 91,6 75,1 436 000,0 9 2270 8 3 43 000 Hemograma Hemoglobina (g/dL) Leucócitos (/μL) Neutrófilos (%) Linfócitos (%) Plaquetas (/μL) 21 Proteína C Reactiva (mg/L) 20 47,9 352,2 0,3 Transaminases AST (U/L) ALT (U/L) 5 44 21 51 23 35 19 N.º de casos Infecção confirmada pelo vírus H1N1 Semana de internamento Gráfico 1 – Distribuição temporal da infecção por influenza A H1N1 no Serviço de Pediatria 10 artigo original original article Valor mínimo NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Quinze doentes (65%) efectuaram telerradiografia torácica, tendo revelado alterações em 9 casos: hipotransparência sugestiva de condensação (5) e infiltrado intersticial (4). A terapêutica antiviral não foi instituída em 10 casos (44%), o que não está de acordo com as orientações da DGS (Quadro IV). Não se registaram intolerâncias ou efeitos adversos associados ao tratamento, embora tenha sido documentado um caso de resistência ao oseltamivir, confirmado no Instituto Ricardo Jorge. Entre os 23 doentes internados com infecção por H1N1, verificou-se uma co-infecção: meningite por enterovírus. Quanto à evolução, sete doentes (30%) apresentaram complicações: pneumonia de provável etiologia bacteriana (5), convulsões febris (1) e abcessos esplénicos (1), mas nenhum necessitou de admissão em unidade de cuidados intensivos. Não se registaram sequelas nem óbitos. DISCUSSÃO A DGS estima que a infecção por vírus influenza A H1N1 pandémico teve uma incidência de 10% em Portugal(4). Houve uma incidência elevada em crianças e jovens, com maior taxa de internamentos de lactentes e crianças em idade pré-escolar. Assim, uma análise dos internamentos associados a esta doença num Serviço de Pediatria parece ser pertinente. A DGS determinou a activação da área de isolamento do serviço de Pediatria do HSA-CHP, um hospital central, aquando do pico de incidência da doença, vários meses após o início da pandemia. Porém, a taxa de ocupação desta área de isolamento foi baixa (36%), pelo que poderá ter sido sobredimensionada. Dos doentes com infecção por H1N1 confirmada, a maioria (65%) esteve internada na área de isolamento criada para o efeito, juntamente com outros doentes com síndrome gripal, sem identificação desse agente. Contudo, não houve registo de contágio no internamento e todos os casos confirmados foram adquiridos na comunidade, pelo que esta área cumpriu o seu objectivo. Relativamente à distribuição temporal dos casos de infecção por H1N1, a maioria ocorreu na segunda quinzena de Novembro e na primeira semana de Dezembro, sobreponível ao descrito pela DGS(4), segundo a qual o pico de incidência em Portugal ocorreu na segunda quinzena de Novembro, com um decréscimo posterior, mais acentuado a partir das últimas duas semanas do ano civil. A distribuição etária também está de acordo com o descrito pelas instituições oficiais, com um predomínio das faixas etárias mais baixas, compreensível dado que se trata de um estudo realizado em doentes internados num Serviço de Pediatria. Não temos registo de casos em recém-nascidos, cujo internamento terá ocorrido prioritariamente em unidades de cuidados intensivos e/ou intermédios especializadas. Neste estudo, a maioria dos casos correspondeu a doentes do sexo masculino, com um valor superior ao descrito pela DGS. Nas descrições publicadas, a proporção tem sido variável(4,11,12). A apresentação clínica foi compatível com o descrito, com predominância da associação de febre, tosse e rinorreia(2,5,11,12). Porém, a infecção por H1N1 foi confirmada em pouco mais de metade dos casos suspeitos internados, o que pode ser justificado por se tratar de um quadro clínico inespecífico, provocado por diversos agentes virais. No grupo estudado, 13% dos casos de infecção por H1N1 não apresentavam critérios clínicos para definição de caso suspeito, podendo denotar uma baixa sensibilidade dos critérios da DGS(2,5). Contudo, a definição de síndrome gripal inclui queixas subjectivas, nomeadamente mialgias/artralgias ou cefaleias, que em lactentes e crianças pequenas não são expressas. Grande parte das crianças internadas apresentava factores de risco, sendo o mais prevalente a idade <5 anos. Houve um número reduzido de doentes com patologia crónica, o que pode dever-se a um maior cuidado com a prevenção nessas crianças, relativamente a medidas gerais e vacinação. O principal motivo de internamento foi febre em pequeno lactente, o que é explicado por uma atitude mais proactiva perante quadros febris em lactentes e crianças pequenas. Os outros motivos estão relacionados com a presença e/ou suspeita de infecções graves como complicações ou diagnóstico diferencial, e com intolerância oral. A variabilidade dos resultados analíticos pode ser explicada pelas características da própria infecção por vírus influenza H1N1. Alguns casos (5) com suspeita de sobreinfecção nomeadamente pneumonia bacteriana apresentaram valores mais elevados dos marcadores inflamatórios. Apesar de, na literatura, a linfopenia ser referida como possível marcador precoce de diagnóstico (9), neste estudo isso não foi confirmado. De acordo com as orientações da DGS, todos os doentes internados com síndrome gripal tinham indicação para terapêutica com oseltamivir. Neste estudo, verificámos que esta não foi instituída em quase metade dos casos confirmados o que poderá ser explicado pela demora na confirmação etiológica e/ou melhoria clínica na ausência de terapêutica. No entanto, os estudos confirmam a eficácia do oseltamivir na redução das complicações e do contágio(3,6,7), pelo que se considera que a terapêutica antiviral deveria ter sido instituída. Neste estudo, foi documentado um caso de resistência ao oseltamivir, numa criança com uma imunodeficiência (síndrome de DiGeorge e síndrome de Evans corticodependente) e obesidade mórbida, que havia tido o diagnóstico de gripe A e realizado a terapêutica antiviral adequada em ambulatório, antes de ser internada. O défice imunitário e a terapêutica prévia com oseltamivir são dois factores associados à maioria dos casos de resistência descritos(8,9). Segundo a OMS, apesar de uma elevada taxa de incidência e de hospitalização na idade pediátrica, as complicações graves são mais frequentes nos adultos jovens(2,3,4). Neste estudo, considerou-se ocorrência de complicações em 30% dos casos, inlcuindo as admitidas pela DGS: pneumonia e convulsões febris. A criança com infecção resistente ao antiviral teve um internamento prolongado (78 dias) e complicado por abcessos esplénicos. Apesar de não estar documentada, não pode ser excluída a associação desta complicação à infecção por H1N1. No período em que decorreu este estudo, já estava em curso o programa de vacinação, que para os doentes com patologia artigo original original article 11 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 crónica teve início a 2 de Novembro e para as crianças até aos dois anos a 16 de Novembro(5). Apesar das indicações, nenhum dos doentes envolvidos neste estudo tinha registo desta vacinação. CONCLUSÃO Os dados disponíveis sobre a epidemia pelo vírus H1N1, no ano epidemiológico 2009/2010, foram fornecidos pelas organizações governamentais, dispondo-se de escassas casuísticas locais(11,12,13). O impacto parece ter sido muito inferior ao previsto, em termos de incidência, morbilidade e mortalidade, o que pode dever-se às características da própria doença, ou ser uma consequência da instituição precoce e efectiva das medidas de contenção(3,7). No entanto, devemos registar e aprender com os casos que evoluem de forma menos favorável, confrontar resultados, e rever estratégias que possam ser adoptadas numa futura epidemia. H1N1 INFECTION IN A PEDIATRIC UNIT ABSTRACT Introduction: The influenza A H1N1 infection was the first pandemic in this century. To reduce the transmission, personal protection measures were emphasized and clinical observation and impatient care took place in specific areas, with respiratory droplet isolation. Objectives: To evaluate the importance of an isolation area for children admitted to a pediatic ward with suspected H1N1 infection. To characterize of the infection in hospitalized patients. Material and methods: Clinical files’ review. Evaluation according to parameters set by National Health Authority review using Microsoft Excel 2007. Results: The isolation area had eight beds, and 36% occupancy. Of 28 inpatients, 82% met criteria for investigation, positive in 54%. Investigation was done on 25 patients out of isolation, positive in 12%. Nosocomial infection did not occur. There were 23 cases, age ranged from six weeks to 16 years, 74% from November 16th to December 6th. Fever was always present, cough, coryza and vomiting were common. The reasons for hospitalization were fever in small infants, oral intolerance and hypoxemia. The antiviral therapy was instituted in 13 patients, with one resistance. Seven of the patients with H1N1 infection had complications: probable bacterial pneumonia (five), febrile convulsions and splenic abscesses. Conclusions: The protective measures were effective. The area was oversized. With regard to the pandemic, there is basically data from government organizations. It seems important to compare results to define strategies for a future epidemic. Keywords: influenza, H1N1, pediatric. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 8-12 12 artigo original original article BIBLIOGRAFIA 1. Pereira C, Cordeiro E, Salgado M. A gripe pandémica A (H1N1). Saúde Infantil. 2009; 31: 05-11. 2. Plessa E, Diakakis P, Gardelis J, Thirios AA, Koletsi P, Falagas ME. Clinical features, risk factors, and complications among pediatric patients with pandemic influenza A (H1N1), Clin Pediatr (Phila). 2010; 49: 777-81. 3. Centers for disease control and prevention. Update: Influenza Activity – United States, August 30, 2009-March 27, 2010, and Composition of the 2010-11 Influenza Vaccine. 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O tratamento pode ser conservador ou cirúrgico, sendo que o primeiro habitualmente resulta em melhor prognóstico. Os autores relatam a sua experiência no tratamento da luxação congénita do joelho e os resultados favoráveis nos doentes submetidos a redução conservadora imediata nas primeiras horas de vida. Material e métodos: Realizou-se um estudo retrospectivo descritivo com base na análise dos processos clínicos dos doentes com o diagnóstico de luxação congénita do joelho tratados no Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Maria Pia, entre 1990 e 2008. Resultados: Apresentam-se quatro casos de luxação congénita do joelho: três tratados por métodos conservadores e um submetido a tratamento cirúrgico. Discussão e conclusões: Os autores salientam a importância da redução imediata da luxação nas primeiras horas de vida como fronteira de atitude terapêutica e prognóstico, onde o pediatra pode assumir um papel determinante no reconhecimento e referenciação atempadas. Destacam a importância do exame ortopédico completo, para exclusão de outras deformidades associadas e a aparente irrelevância da patologia de base para o sucesso do tratamento conservador precoce. A propósito dos casos clínicos apresentados, faz-se uma revisão sumária desta patologia. Palavras-chave: luxação congénita, joelho, criança. tacto entre estas duas superfícies articulares. Foi descrita pela primeira vez por Chatelain, em 1822, na Suíça, citado por Shattock em 1891(1). Apresenta uma incidência de 1:100000 nados-vivos, cerca de 1% da incidência da doença displásica da anca (DDA). A maioria ocorre de forma esporádica, com alguns casos familiares. Segundo Jacobsen e Vopalecky, é mais comum no sexo feminino, na proporção de 10:3(2). Um terço dos casos é bilateral, e os restantes com igual atingimento à direita e esquerda. Associa-se com frequência (60%) a outras anomalias músculo-esqueléticas(3), sendo as mais comuns a DDA e o pé equino-varo. Diagnóstico e classificação Em geral, o diagnóstico é estabelecido imediatamente após o nascimento através do exame objectivo detalhado. À inspecção torna-se evidente o característico deslocamento anterior da extremidade proximal da tíbia em relação aos condilos femurais, permitindo a sua classificação em 3 graus(4,5) (Anexo 1): I - Genus recurvatum: Hiperextensão do joelho superior a 15º; conservada a capacidade de flexão completa; II - Subluxação anterior da tíbia sobre o fémur: Hiperextensão do joelho superior a 15º; flexão limitada do joelho a partir da posição neutra; resistência ou instabilidade à flexão; III - Luxação anterior: Joelho luxado anteriormente, normalmente sem flexão e instável (casos quase sempre cirúrgicos) Nascer e Crescer 2012; 21(1): 13-18 Anexo 1 INTRODUÇÃO A luxação congénita do joelho é uma anomalia rara que se integra no grupo das deformidades de hiperextensão do joelho, sendo característico desta patologia o deslocamento anterior da tíbia em relação ao fémur com graus variáveis de perda de con__________ 1 2 S. Pediatria, H Maria Pia, CH Porto S. Ortopedia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto As ecografias pré-natais podem fazer suspeitar o diagnóstico ao mostrar espessamento focal na área de fibrose do músculo quadricípete e uma área anormal, hiperecogénica na porção distal deste músculo(6). O exame radiológico pode auxiliar a avaliação da forma dos condilos femurais e tibiais e das suas relações, sendo a RMN um bom exame para avaliar o grau de fibrose do quadricípete e os ligamentos, sobretudo nos casos de luxação anterior (grau III). artigo original original article 13 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Tratamento e prognóstico O tratamento pode ser conservador ou cirúrgico. A escolha depende da gravidade da luxação, idade do paciente e da presença de outras deformidades associadas. O objectivo é obter uma capacidade de flexão mínima de 90º, independentemente do tipo de intervenção. Tratamento conservador: Tratamento imediato, idealmente nas primeiras 24-48 horas de vida. Redução da luxação através de manipulações de tracção suaves e vários movimentos de flexão passiva dos joelhos, posteriormente imobilizados com uma tala sintética ou aparelho gessado cruro-podálico, na posição de flexão conseguida (maior grau de flexão possível). Ressalva-se especial atenção com eventuais fracturas ou deslocamentos epifisários da tíbia proximal em manipulações mais “vigorosas” que darão a impressão de flexão, tratando-se evidentemente de deformidade da lesão. Esta manobra deverá ser repetida semanalmente até a obtenção da completa flexão articular e a imobilização gessada tubular, geralmente é mantida durante seis semanas. CASOS CLÍNICOS # Caso 1 Recém-nascido (RN) do sexo feminino, nascida a 2/8/1992. Antecedentes obstétricos e pré-natais irrelevantes, com ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de termo. Apresentação de pelve. Parto por cesariana. Síndrome polimalformativo detectado ao nascimento, caracterizado por luxação bilateral dos polegares, ancas e joelhos (grau II) e pés equino varos. Outros estigmas malformativos associados: microftalmia, boca em tenda, implantação baixa dos pavilhões auriculares, choro débil. CIV do septo trabeculado, grande. O diagnóstico final foi compatível com Síndrome de Larson. Doente referenciada a Ortopedia com um mês de vida (Figura 1.1). Por impossibilidade de tratamento conservador com aquela idade, foi submedida redução cirúrgica de LCJ bilateral tendo realizado quadricíplastia aberta pela técnica de Ficher e capsulotomia anterior (Figura 1.2). Posteriormente foi submetida a correcção cirúrgica de pé boto equino varo bilateral; luxação congénita da anca bilateral; luxação congénita da metacarpo falângica do polegar bilateral. Actualmente apresenta marcha autónoma com ortótese (Figuras 1.3 e 1.4). Tratamento cirúrgico: Recomendado nos casos de deformidades graves ab initio (geralmente grau III), diagnóstico tardio ou falência do tratamento conservador (mais de três meses de tratamento conservador sem evidência de redução da luxação ou flexão articular mínima de 45º). As técnicas cirúrgicas mais utilizadas na correcção da LCJ são a quadricíplastia aberta mais capsulotomia anterior pela técnica de Ficher ou a secção percutânea do quadricipete pela técnica de Roy e Crawford(7). O tratamento cirúrgico deve ser realizado antes do início da marcha, idealmente antes dos seis meses de idade(8). Na presença de outras deformidades associadas, o joelho deve ser tratado em primeiro lugar, seguido do pé e finalmente da anca. OBJECTIVOS Os autores relatam a sua experiência no tratamento da LCJ e os resultados favoráveis obtidos nos casos submetidos a redução conservadora imediata nas primeiras horas de vida. Figura 1.1 – Primeira consulta de Ortopedia, com 1 mês de vida. MATERIAL E MÉTODOS Realizou-se uma análise retrospectiva dos processos clínicos dos doentes com o diagnóstico de LCJ, tratados no Serviço de Ortopedia Pediátrica na Unidade Maria Pia, CHP entre 1 de Janeiro de 1992 e 31 de Dezembro de 2008. Os parâmetros avaliados e que motivaram e o tipo de intervenção terapêutica foram a idade de apresentação, gravidade da luxação e presença de outras deformidades musculo-esqueléticas associadas. RESULTADOS Os autores apresentam quatro casos de luxação congénita do joelho (sete joelhos): três tratados por métodos conservadores e apenas um submetido a tratamento cirúrgico. 14 artigo original original article Figura 1.2 – Após redução cirúrgica dos 2 joelhos (joelho direito aos 3 meses e joelho esquerdo aos 7 meses). NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Figura 1.3 – Evolução: Cicatrizes perna direita. Figura 1.4 – Com aparelho bota. Marcha autónoma. # Caso 2 RN do sexo masculino, nascido a 14/11/2007. Apresentação cefálica. Parto eutócico às 38 semanas. Síndrome polimalformativo suspeito em ecografia e ressonância magnética fetal, confirmado ao nascimento, caracterizado por luxação bilateral dos joelhos, pé equinovaro bilateral, displasia da anca esquerda, assimetria da mandíbula e retrognatia (Figura 2.1). Referenciado a Ortopedia no primeiro dia de vida tendo sido submetido a redução imediata da luxação congénita dos joelhos (grau III) (Figuras 2.2 e 2.3), posteriormente estabilizados com tala gessada em flexão. Joelhos reduzidos estáveis, aos 30 dias de vida (Figura 2.4). Outros tratamentos do foro ortopédico envolveram manipulações e gessos do pé equino varo bilateral, manipulações do polegar na palma bilateral e colocação de tala de Koszla (em D5 de vida) por luxação congénita da anca (LCA) bilateral. Actualmente sem marcha, com doença neuromuscular em investigação. Figura 2.1 – Primeira consulta de Ortopedia, com 1 dia de vida. Figura 2.3 – Primeira consulta de Ortopedia. Após redução bilateral. Figura 2.2 – Primeira consulta de Ortopedia. Após redução à direita. Figura 2.4 – Evolução, com 30 dias de vida: joelhos reduzidos estáveis. artigo original original article 15 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 # Caso 3 RN do sexo feminino, nascida a 29/10/2007. Antecedentes obstétricos e pré-natais irrelevantes. Ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de termo. Apresentação cefálica. Parto eutócico. Luxação congénita do joelho direito (grau III) detectada ao nascimento (Figura 3.1) tendo sido excluídas outras deformidades. Referenciada a Ortopedia no primeiro dia de vida. Submetida a redução imediata da luxação. Colocada tala gessada em flexão. Aos nove dias de vida, com joelho reduzido estável, confirmado radiologicamente (Figuras 3.2 e 3.3). Às seis semanas de vida, curada, com ressonância magnética do joelho: normal. # Caso 4 RN do sexo feminino, nascida a 29/10/2007. Antecedentes obstétricos e pré-natais irrelevantes. Ecografias pré-natais relatadas como normais. Gestação de termo. Apresentação cefálica. Parto eutócico. Luxação congénita bilateral dos joelhos, grau I, detectada ao nascimento, tendo sido excluídas outras deformidades. Referenciada a Ortopedia no primeiro dia de vida (Figura 4.1). Submetida a redução imediata da luxação, conformado radiologicamente. Colocada tala gessada em flexão. Aos dois meses de vida, com joelho reduzido estável e evolução favorável (imagens não disponíveis). Figura 3.1 – Apresentação clínica em D1 de vida. Figura 4.1 – Apresentação clínica em D1 de vida. Figura 3.2 – Rx de controlo do joelho pós-redução (D9). 16 artigo original original article Figura 3.2 – Apresentação clínica pós-redução (D9). DISCUSSÃO A LCJ é uma anomalia rara que se caracteriza do ponto de vista anátomo-patológico por uma contractura do mecanismo extensor do músculo quadricipete e da cápsula anterior da articulação do joelho, aderências intra-articulares, hipoplasia ou ausência de rótula (que se começa a formar depois de reduzida a luxação) e deslocamento anterior dos tendões e músculos flexores, que agem como extensores. A etiologia é desconhecida. Sugerem-se várias possíveis causas, nomeadamente intrínsecas (genéticas ou displásicas) e extrínsecas (mecânicas), podendo ambas coexistir no mesmo doente(9). As causas intrínsecas incluem doenças específicas dos músculos ou nervos, ou manifestação de laxidez ligamentar generalizada(10), de que são exemplo: síndrome de Ehlers-Danlos, síndrome de Larsen, artrogriposis multiplex congénita e anomalias cromossómicas múltiplas (trissomias do cr.9 e 21, monossomias e trissomias parciais, tetrassomia parcial 9p, e cromossomas em anel 13,14 e 18); As causas extrínsecas incluem o mau posicionamento fetal, apresentação de pelve, a contractura do músculo quadricípete e outros. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 A LCJ representa um desafio terapêutico. Apesar de não ser consensual(11), a maioria dos autores defende que, de um modo geral, as deformidades de hiperextensão do joelho devem ser corrigidas logo após o nascimento. Nessa fase, existe maior elasticidade ligamentar, o que facilita o tratamento, impede o agravamento natural da deformidade e melhora o prognóstico(5). O tratamento deve ser precoce e iniciar-se pelos métodos conservadores. Este tem melhor prognóstico, ao garantir um movimento articular final mais estável e amplo e maior força muscular quadricipital. A dificuldade de redução aumenta com o número de horas passadas após o nascimento. As formas de LCJ de intervenção ortopédica mais tardia ou irredutíveis ab initio são as que apresentam maior consensualidade em termos de atitude terapêutica, envolvendo técnicas de correcção cirúrgica. A experiência dos autores foi concordante com um artigo recente que relata o benefício no tratamento conservador imediato nas primeiras horas de vida. C. Cheng et al (2010), descrevem a experiencia em 19 casos de LCJ tratados com redução precoce nas primeiras 24 horas de vida, idealmente nas primeiras oito. Esses doentes responderam favoravelmente ao tratamento precoce, cujo seguimento em 4,3 anos mostrou uma evolução funcional normal do joelho afectado, sem complicações. Essa revisão parece ter sido a primeira a ser publicada demonstrando uma técnica que já era aplicada no Serviço de Ortopedia do nosso hospital. Com efeito, os resultados apresentados nessa revisão são comparáveis aos obtidos em três casos da nossa experiência, envolvendo redução imediata nas primeiras 24-48h de vida. Esta redução fechada (“closed reduction”)(12) tecnicamente é descrita como emprego de manipulações suaves, em tracção, onde são aplicadas duas forças simultâneas: uma aplicada à porção posterior e distal do fémur dirigida para a frente e a outra aplicada à porção anterior e proximal da tíbia dirigida para trás. Na nossa experiência a redução manual deve ser progressiva, de hora a hora, até obtenção do ângulo mínimo de 90º. Posteriormente é feita a estabilização da extremidade imobilizada com uma tala gessada. Não se verificou necessidade de colocação de talas gessadas seriadas, uma vez que a redução completa da luxação foi alcançada num primeiro tempo. Nos dois primeiros casos, apesar de se tratar de síndromes polimalformativos a atitude conservadora foi eficaz na redução da luxação no caso 2. O timing de referenciação acabou por ditar o tipo de abordagem, independentemente do tipo e gravidade da patologia de base. É importante excluirmos malformações coexistentes uma vez que é uma associação significativa e com implicações terapêuticas. teira de atitude terapêutica e prognóstico, onde o Pediatra pode assumir um papel determinante no reconhecimento e referenciação atempadas. Destacam a importância do exame ortopédico completo, para exclusão de outras deformidades associadas e a aparente irrelevância da patologia de base para o sucesso do tratamento conservador precoce. CONGENITAL DISLOCATION OF THE KNEE: WHAT APPROACH? REVIEW AND EXPERIENCE OF A PEDIATRIC HOSPITAL ABSTRACT Background and objective: Congenital dislocation of the knee is a rare anomaly that includes a group of hyperextension deformities of the knee. Its incidence is about 1% of the developmental dysplasia of the hip. It is often associated with other musculoskeletal anomalies, the most common being the developmental dysplasia of the hip and clubfoot. In general, the diagnosis is established immediately after birth. Treatment can be conservative or surgical, and the first one usually results in better prognosis. The authors report their experience in the treatment of congenital dislocation of the knee and the favorable outcome in patients undergoing early reduction. Material and methods: A retrospective descriptive study was conducted based upon the analysis of medical records of patients diagnosed with congenital dislocation of the knee, treated at the Department of Pediatric Orthopedics of Hospital Maria Pia between 1990 and 2008. Results: Four patients with congenital dislocation of the knee are presented: three treated by conservative methods and one that required surgery. Discussion and conclusions: The authors highlight the importance of early reduction of congenital dislocation of the knee in the first hours of life as a frontier of therapeutic approach and prognosis. Pediatricians can play a key role in timely recognition and referral. They also emphasize the importance of complete orthopedic examination in order to exclude other associated deformities, and the apparent irrelevance of the underlying pathology for the success of early conservative treatment. A brief review of congenital dislocation of the knee is presented. Keywords: congenital dislocation, knee, child. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 13-18 COMENTÁRIOS O principal valor desta revisão consiste na sua contribuição para apresentação e abordagem de uma anomalia congénita rara, com poucas referências na literatura científica actual. Considerou-se igualmente interessante, o sucesso e a experiência demonstrada através da intervenção terapêutica mínima, conservadora. Como palavra final, os autores salientam a importância da redução imediata da LCJ nas primeiras horas de vida como fron- BIBLIOGRAFIA 1. Shattock SG. Genu recurvatum on a foetus at term. Trans Pathol Soc London 1891; 42: 280-92. 2. Jacobsen K, Vopalecky F. Congenital dislocation of the knee. Acta Orthop Scand 1985; 56: 1-7. artigo original original article 17 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 3. Ferris B, Aichroth P. The treatment of congenital knee dislocation. Clin Orthop Relat Res. 1987; 216: 135-40. 4. Bensahel H, Dal Monte A, Hjelmstedt A, Bjerkreim I, Wientroub S, Matasovic T, et al. Congenital dislocation of the knee. J Pediatr Orthop 1989; 9: 174-7. 5. Laurence, M. Genu recurvatum congenitum. J Bone Joint Surg Br 1967; 49: 121-34. 6. Kamata N, Takahashi T, Nakatani K, Yamamoto H. Ultrasonographic evaluation of congenital dislocation of the knee. Skeletal Radiol 2002; 31: 539-42. 7. Roy DR, Crawford AH. 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CORRESPONDÊNCIA Luísa Neiva Araújo E-mail: [email protected] NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Alterações ungueais em Pediatria Susana Gomes1, André Lencastre2, Maria João Paiva Lopes2 RESUMO Estima-se que cerca de 7% das crianças com idade inferior a dois anos tenha pelo menos um tipo de alteração ungueal e que estas alterações representem até 11% dos motivos de recurso à consulta de Dermatologia Pediátrica. As alterações ungueais adquiridas na criança são semelhantes às observadas no adulto, contudo diferem em prevalência e existem algumas particularidades específicas da infância. A patologia ungueal de origem traumática é a que mais motiva o recurso ao serviço de urgência. As restantes alterações, sobretudo as crónicas e assintomáticas, são frequentemente desvalorizadas; no entanto, podem constituir a primeira manifestação de doenças dermatológicas ou sistémicas. Abordam-se as principais alterações ungueais congénitas, traumáticas, infecciosas, secundárias a exposição farmacológica, neoplásicas e os sinais ungueais que podem ser identificados no contexto de outra doença cutânea ou sistémica. Palavras-Chave: unhas, doenças cutâneas, crianças. Noções Gerais: Embriologia, Anatomia e Fisiologia das unhas As unhas ocupam a superfície dorsal das falanges distais das mãos e pés e são constituídas por quatro epitélios especializados: a matriz ungueal, o leito ungueal, a prega ungueal proximal e o hiponiquium. A matriz é um epitélio germinativo cuja proliferação celular dá origem a uma estrutura de múltiplas camadas de células corneificadas que cobre o leito, denominada o prato ungueal. O prato ungueal é uma estrutura rectangular, translúcida, cuja aparência rosada lhe é conferida pelos capilares presentes no leito ungueal. Na porção proximal do prato ungueal é visível a lúnula, uma estrutura opaca, esbranquiçada, em forma de semi-círculo que corresponde à visualização da porção distal da matriz. O prato ungueal está inserido proximal e lateralmente nas pregas ungueais e termina num bordo livre distal de coloração esbranquiçada causada pelo contacto com o ar. A camada córnea da prega proximal forma a cutícula(3) (Figura 1). Nascer e Crescer 2012; 21(1): 19-24 INTRODUÇÃO As alterações ungueais em idade pediátrica podem apresentar-se de forma congénita ou adquirida, corresponder a simples variantes do normal ou constituir a primeira manifestação de algumas doenças cutâneas ou sistémicas. Estima-se que cerca de 7% das crianças com idade inferior a dois anos tenha pelo menos um tipo de alteração ungueal(1) e que estas alterações representem até 11% dos motivos de recurso à consulta de Dermatologia Pediátrica(2). A patologia ungueal de origem traumática é a que mais motiva o recurso ao serviço de urgência; as restantes alterações, sobretudo as crónicas e assintomáticas, são frequentemente desvalorizadas pelos familiares, contudo a sua identificação e interpretação pode ser fundamental para o diagnóstico diferencial de várias patologias. __________ 1 1 S. Pediatria, H Espírito Santo, Évora S. Dermatologia, H Santo António dos Capuchos, Lisboa Figura 1 – Anatomia da Unha normal A unha é um derivado ectodérmico, cuja formação se inicia na nona semana de vida embrionária. Às 13 semanas de idade gestacional o prato ungueal é já visível e, progressivamente, adquire consistência e rigidez. Após o nascimento a matriz continua a proliferar. A velocidade média de crescimento das unhas é de cerca de 3 mm por mês (0,1mm/dia) nas mãos e 1mm/mês nos pés. Situações de desnutrição podem reduzir esta velocidade e é possível ocorrer paragem transitória do crescimento ungueal no contexto de doença grave(4). As unhas protegem a superfície distal dos dedos, potenciam a discriminação táctil e a capacidade para manipular pequenos objectos(5). artigo de revisão review articles 19 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Sinais ungueais – terminologia Na maioria das alterações ungueais o diagnóstico é clínico, pelo que se torna essencial compreender a terminologia adequada à descrição das alterações físicas identificadas no exame objectivo (Quadro I). A interpretação destes sinais ungueais é frequentemente suficiente para estabelecer a correlação com o local anatómico da unha afectado. Assim, lesões da matriz poderão manifestar-se como linhas transversais, pitting, leuconíquia, fissuração, estriação longitudinal, onicomadese ou traquioníquia; enquanto lesões do leito ungueal podem determinar hemorragia, onicólise e hiperqueratose sub-ungueal(6). Alterações ungueais observadas no recém-nascido e lactente Ao nascimento as unhas são finas, transparentes e friáveis. O bordo distal livre pode ser encurvado para baixo, cobrindo parte da extremidade distal do dedo, ou exibir uma curvatura para cima, acompanhada de concavidade do prato ungueal. A coiloníquia é uma alteração comum na criança, afecta habitualmente vários dedos e é auto-limitada, desaparecendo aos dois-três anos. O mau alinhamento da primeira unha dos dedos do pé é uma distrofia ungueal de transmissão autossómica dominante caracterizada pelo desvio do eixo do prato ungueal relativamente ao eixo da falange distal. Pode ser unilateral ou bilateral. É uma situação frequente ao nascimento, com melhoria espontânea em alguns indivíduos, mas pode persistir até à idade adulta. As complicações mais comuns incluem a predisposição para unha incarnada, hipertrofia da prega ungueal lateral e paroníquia (caracterizada pela infecção dos tecidos moles peri-ungueais)(7). O aparecimento de depressões transversais em todas as unhas, linhas de Beau, pode ser observado em cerca de 25% dos lactentes, traduzindo o desaceleramento transitório do crescimento verificado nos primeiros dias de vida. Apesar de ser um achado comum no lactente, as linhas de Beau podem aparecer em qualquer idade, manifestando-se habitualmente pelo envolvimento simultâneo ao mesmo nível de todas as unhas, o que é concordante com uma causa sistémica (por exemplo doença febril grave). O envolvimento de apenas um membro está documentado num caso de distrofia simpática reflexa(8). O aparecimento de várias linhas de Beau sequenciais traduz vários episódios de doença. Lesões secundárias ao hábito de sucção digital podem ser observadas, por vezes, ao nascimento sob a forma de pequenas vesículas de conteúdo límpido peri-ungueais que surgem na sequência de sucção vigorosa pré-natal (hábito presente desde as 29 semanas de idade gestacional)(4). Durante a infância 10 a 34% das crianças têm comportamentos de sucção digital(9) pelo que a unha está permanentemente sujeita a um ambiente húmido que a hiperhidrata e fragiliza. A ocorrência de paroníquia aguda ou crónica é a complicação mais frequente, sendo os principais agentes o estafilococos e ocasionalmente estreptococos beta-hemolíticos, gram-negativos e Candida albicans. O papel irritante da saliva contribui para a exuberância da pa- 20 artigo de revisão review articles roníquia. A paroníquia pode ainda ocorrer na sequência de lesões traumáticas produzidas, por exemplo, durante o corte das unhas. Caracteriza-se por sinais inflamatórios da prega ungueal proximal ou adjacentes à porta de entrada. Se evoluir para a formação de abcesso, com visualização de pus sub-ungueal, este deverá ser drenado em 48 horas para evitar o estabelecimento de lesões permanentes na matriz ungueal. Referem-se em seguida algumas condições congénitas menos comuns: A anoníquia congénita é rara, podendo ocorrer de forma isolada ou associada a outras alterações, nomeadamente esqueléticas, como a sindactilia. A ausência de unha nos polegares e de rótula integra a síndrome nail-patella. A anoníquia pode ser também identificada nas síndromes de Coffin-Siris e Hallermann-Streiff. Entre as displasias ectodérmicas hereditárias salienta-se a paquioníquia congénita, ou síndrome de Jadassohn-Lewandowsky, caracterizada por unhas amarelas ou acastanhadas, de consistência aumentada e aumento da curvatura do bordo livre que assume a conformação em ferradura. A braquioníquia é classicamente referida como um sinal presente na sífilis congénita. A hiponíquia congénita pode ser secundária à exposição pré-natal a álcool ou a fármacos, tais como a varfarina, hidantoína e carbamazepina(4). A ocorrência de baqueteamento digital congénito é uma das características da osteoartropatia hipertrófica. A microníquia e outras formas de onicodisplasia estão descritas na síndrome de Iso-Kikuchi. Está relatada a ocorrência rara de candidíase ungueal como única manifestação da infecção congénita a Candida albicans(10). Alterações Ungueais adquiridas As alterações ungueais adquiridas na criança são semelhantes às observadas no adulto. Importa, porém, salientar que existem algumas particularidades específicas da infância e, sobretudo, que diferem em termos de prevalência. Alterações ungueais de etiologia traumática A ocorrência de traumatismo da unha é uma situação frequente na infância. O espectro das alterações traumáticas inclui desde alterações agudas, tais como as feridas e hematomas, a lesões crónicas como as produzidas pela onicofagia e hábitos de manipulação repetida da unha. O hematoma sub-ungueal pode ocorrer na sequência de trauma fechado do leito ungueal que resulta na hemorragia dos capilares do leito, com acumulação de sangue entre este e o prato ungueal. Manifesta-se por dor e coloração vermelha a negra da unha. Se a unha estiver intacta pode ser necessário realizar trepanação da unha com objecto punctiforme aquecido, para evacuar o hematoma e aliviar a dor(11). Lacerações ungueais são muito dolorosas e a sua correcção deve ser feita sob anestesia troncular. Se ocorrer avulsão da unha durante o traumatismo esta deverá ser reposta sob a NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Quadro I – Principais sinais ungueais: terminologia e descrição Alterações da Conformação da unha Hipocratismo digital Descrito por Hipócrates, refere-se à excessiva curvatura longitudinal e transversal das unhas dos dedos das mãos - unhas em vidro de relógio - habitualmente simétrica e mais exuberante nos três primeiros dedos e associada a hipertrofia das falanges distais. Também denominado dedos em baqueta de tambor. Coiloníquia Unha côncava, com bordos invertidos, sugerindo a aparência de uma colher. Doliconíquia Braquioníquia Macroníquia Microníquia O quociente normal entre o comprimento e largura da unha é 1±0,1. Nas situações de doliconíquia este quociente é superior (unhas estreitas e extensas), na braquioníquia ocorre o inverso (unhas largas e curtas). Referem-se à alteração da dimenção de uma ou mais unhas que pode ser superior (macroníquia) ou inferior (microníquia) ao habitual. Onicoatrofia Redução da dimensão ou espessura do prato ungueal, habitualmente associada a maior fragilidade da unha. Paquioníquia Aumento da espessura da unha. Onicogrifose Alteração da unha em forma de garra. Anoníquia Ausência de uma ou mais unhas. Se ausência parcial pode designar-se hiponíquia. Alterações da Superfície da unha Linhas de Beau Estriação transversal ou sulco visível no prato ungueal. Também se denominam linhas transversais. Linhas de Mees Linhas brancas que percorrem toda a extensão transversal da unha e podem atingir uma ou várias unhas. A sua localização altera-se com o crescimento da unha. Descritas classicamente em associação com a intoxicação por arsénio, podem ser produzidas por diversas noxias. Pitting (ponteado) Depressões punctiformes localizadas na porção proximal do prato ungueal, em número, dimensão e profundidade variáveis de acordo com o envolvimento da matriz. Traquioníquia Rugosidade da superfície ungueal que confere aspecto de opacidade acinzentada à superfície da unha. Alterações do prato ungeal e tecidos moles adjacentes Pterigium Existem duas formas: Pterigium dorsal, caracterizado pelo crescimento excessivo da prega ungueal proximal que se funde com a matriz; e pterigium ventral ou inverso que corresponde à aderência do hiponiquium à face ventral do prato ungueal. Onicomadese Descolamento proximal da unha. Onicólise Destacamento distal da unha; exibe habitualmente uma coloração amarelada pela interposição de ar entre o leito ungueal e o bordo distal do prato ungueal na área não aderente. Hiperqueratose sub-ungueal Hiperplasia do tecido sub-ungueal. Alterações da consistência da Unha Onicorrexe Alteração do normal balanço entre a rigidez da unha e a sua flexibilidade (com aumento da rigidez) que origina fragilidade da unha. Pode condicionar fragmentação do bordo livre da unha conferindo-lhe aspecto irregular. Onicomalácia Diminuição da consistência da unha. Alterações da coloração da unha Leuconíquia Coloração esbranquiçada da unha. Pode tratar-se de leuconíquia aparente, se o aspecto embranquecido desaparece à digitopressão estando mantida a transparência da unha (exposição a agentes de quimioterapia, hipoalbuminémia), ou verdadeira leuconíquia (secundária a lesão da matriz ungueal). Ocasionalmente pode ocorrer leuconíquia limitada a uma banda longitudinal ou transversal, sendo o traumatismo a causa mais frequente. Linhas de Muehrcke Pares de linhas brancas que percorrem toda a extensão transversal da unha. Traduzem uma alteração da vascularização do leito ungueal e desaparecem com a pressão digital. Não são alteradas pelo crescimento da unha. Classicamente associadas a albumina sérica <2g/dl, desaparecem após correcção da hipoalbuminémia. Melanoníquia Linha ou banda longitudinal de coloração acastanhada observada no leito ungueal. Outras discromias Outras alterações da coloração da unha. Importante o diagnóstico diferencial com coloração exógena (vernizes, pinturas, corantes de plasticina). artigo de revisão review articles 21 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 cutícula e suturada com fio de sutura reabsorvível. Deve ser criado um pequeno orifício na unha para drenagem. Se não for possível repor a unha deverá ser colocada uma folha de alumínio estéril a cobrir o leito ungueal durante 3 semanas. É importante excluir a existência de lesões ósseas (presentes em 50% dos casos)(12). A onicofagia é um tipo de lesão traumática auto-infligida resultante da mordedura do bordo distal da unha. A prevalência desta condição é elevada em crianças em idade escolar e adolescentes e pode associar-se a perturbações psiquiátrica(13). Complicações decorrentes da onicofagia incluem traumatismo peri-ungueal e infecção secundária (paroníquia, verrugas peri-ungueais). Podem utilizar-se vernizes com sabor desagradável como forma de desmotivar a onicofagia, mas os resultados são limitados. Lesões ungueais provocadas pelo hábito de manipular as unhas (por exemplo, manipulação digital persistente ou fricção da superfície da unha contra objectos), são situações a considerar perante lesões crónicas, inespecíficas e sem outra etiologia aparente. A perpetuação deste tipo de comportamentos pode determinar a cronicidade das lesões e a evolução para distrofia ungueal. A história clínica e a observação prolongada da criança permitem habitualmente realizar o diagnóstico. Perante lesões recorrentes, nomeadamente hematomas em várias fases de evolução, com outros traumatismos associados e sem correlação obvia com a história clínica há que considerar a possibilidade de maus tratos ou síndrome de Munchausen por procuração. Patologia ungueal e peri-ungueal de etiologia Infecciosa Etiologia bacteriana A paroníquia, já anteriormente abordada, é a infecção bacteriana mais frequente. Nas crianças com hábitos de sucção ou onicofagia os agentes etiológicos mais comuns são provenientes da cavidade oral. Nos casos de gravidade ligeira a moderada é em geral suficiente a aplicação de água morna sobre a lesão e antibioterapia tópica (bacitracina, gentamicina ou mupirocina aplicadas três vezes ao dia, durante dez dias). A terapêutica antibiótica sistémica está indicada nas infecções persistentes ou de maior gravidade e extensão, devendo ser consideradas as penicilinas com actividade anti-estafilocócica (flucloxacilina, amoxicilina em associação com ácido clavulânico) ou macrólidos (eritromicina, claritromicina)(14). A infecção peri-ungueal por pseudomonas pode surgir como complicação de unha incarnada e confere coloração esverdeada à unha e tecido peri-ungueal. Pode ocorrer dactilite com formação de bolha peri-unguel secundária à infecção por Streptococcus beta-hemolitico do grupo A, eventualmente com necessidade de drenagem. Etiologia viral A infecção pelo vírus do papiloma humano (VPH serotipos 1,2 e 4) pode determinar o aparecimento de verrugas peri-ungueais que causam dor, deformidade e compromisso estético. Como tratamento de primeira linha na criança podem ser 22 artigo de revisão review articles utilizadas soluções queratolíticas (por exemplo ácido salicílico em concentração elevada). A utilização de crioterapia com azoto líquido é reservada para tratamento de segunda linha por ser de aplicação dolorosa e requerer mais do que uma aplicação. Podem utilizar-se imunomoduladores, como por exemplo o imiquimod, ablação por laser ou excisão cirúrgica. A recorrência é alta. A infecção periungueal por herpes vírus simplex tipo 1, habitualmente secundária a auto-inoculação de lesões herpéticas peri-orais, pode desencadear a formação de bolha dolorosa peri-ungeal. A utilização de aciclovir diminui a duração da doença. Etiologia fúngica A onicomicose é a onicopatia mais frequente do adulto. Todavia a sua prevalência em idade pediátrica é baixa (0,2 a 0,44%), sendo excepcional em crianças com idade inferior a 10 anos. Constituem grupos de risco para a doença as crianças com trissomia 21 ou infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. O diagnóstico é clínico, complementado pela identificação de dermatófitos no exame micológico ou no exame directo do raspado ungueal com hidróxido de potássio. Os dermatófitos mais comummente envolvidos são Trichophyton rubrum, T. tonsurans e T. mentagrophytes (15). O tratamento clássico inclui a utilização de anti-fúngicos sistémicos - terbinafina, fluconazol, cetaconazol ou itraconazol – em regimes terapêuticos prolongados (como exemplo, cita-se o esquema posológico de terbinafina: 62,5mg/dia se peso < 20Kg; 125mg/dia se peso 20-40Kg e 250mg/dia se peso > 40Kg, em tratamento contínuo durante seis semanas no caso de onicomicose de unha da mão ou três meses se atingimento de unha do pé)(15). Apesar da boa tolerância da terapêutica sistémica e da baixa incidência de complicações descrita nas várias séries publicadas, é prudente a avaliação laboratorial mensal da função hepática. Em alternativa à terapêutica clássica, alguns autores defendem mais recententemente a utilização de anti-fungicos tópicos como primeira linha na onicomicose pediátrica, pelo facto destes agentes terem melhor penetração no prato ungueal da criança comparativamente ao do adulto onde são considerados ineficazes(16). Soluções ungueais como a amorolfina a 5% e ciclopirox a 8% estão disponíveis para utilização tópica, embora ainda não estejam licenciadas para utilização na criança. Alterações Ungueais adquiridas relacionadas com a exposição a fármacos São reconhecidos os efeitos secundários de determinados fármacos sobre as características das unhas. Habitualmente as modificações envolvem todas as unhas, surgem em relação temporal com a administração do fármaco e desaparecem após a sua suspensão, podendo, todavia, ser permanentes. Os fármacos mais frequentemente implicados são as tetraciclinas (onicólise e descoloração), antimaláricos e zidovudina (hiperpigmentação)(17). Está descrita a ocorrência de onicomadese secundária à terapêutica com valproato de sódio(18) e melanoníquia secundária à terapêutica prolongada com hidroxiureia(19). NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Manifestações Ungueais no contexto de patologia dermatológica Algumas patologias dermatológicas associam-se a manifestações ungueais que, apesar de frequentemente inespecíficas, podem preceder o aparecimento das manifestações no tegumento e auxiliar no diagnóstico. Citam-se alguns exemplos. Eczema atópico: pode observar-se aumento do brilho do prato ungueal por fricção repetida na pele por coceira. Alterações como distrofia ungueal, pitting e irregularidade da conformação da unha podem ocorrer se existir inflamação da matriz. O envolvimento eczematoso peri-ungueal pode determinar paroníquia. Psoríase: ocorre envolvimento ungueal em 7 a 40% das crianças com psoríase e estas alterações associam-se com maior prevalência de artrite psoriática. As alterações mais frequentes são o pitting e descoloração, mas pode ocorrer distrofia ungueal. Líquen plano: o envolvimento ungueal pode manifestar-se como distrofia ou pterigium dorsal com perda progressiva e definitiva de unhas. Alopecia areata: A alteração mais frequente é o pitting; a onicodistrofia pode preceder a queda de cabelo. Paraqueratose pustulosa: Doença inflamatória da extremidade digital e unha, de ocorrência rara, mais comum em crianças com idade inferior a 5 anos. O evento inicial consiste no aparecimento de vesículas na extremidade distal do dedo e a evolução habitual incluiu a progressão para distrofia ungueal e hiperqueratose sub-ungueal. Doença de Darier: O envolvimento das unhas é frequentemente a manifestação inaugural da doença. O aspecto típico consiste no aparecimento de uma banda longitudinal de coloração avermelhada, que termina com um defeito triangular do bordo livre da unha. Pitiríase rósea: Por vezes associa-se a pitting. Distrofia de 20 unhas ou traquioníquia: Situação caracterizada pela rugosidade da superfície do prato ungueal de todas as unhas. Pode ser a forma de manifestação de inúmeras doenças inflamatórias, incluindo a alopécia areata, líquen plano ou psoríase. Manifestações Ungueais no contexto de patologia sistémica Algumas doenças sistémicas acompanham-se de alterações da conformação, estrutura, cor ou velocidade de crescimento das unhas. A diminuição da velocidade do crescimento das unhas que acompanha os episódios de doença grave, aguda ou crónica, pode manifestar-se pelo aparecimento de linhas de Beau, um achado relativamente frequente e inespecífico. O hipocratismo é a alteração digital que mais frequentemente se observa em associação com patologias sistémicas crónicas. (6) Quadro II – Condições sistémicas associadas a hipocratismo digital Doenças Cardiovasculares Cardiopatia congénita (cianótica), malformação arteriovenosa pulmonar congénita, insuficiência cardíaca, endocardite bacteriana Doenças Pulmonares Fibrose quística, infecções crónicas (tuberculose, abcesso), sarcoidose, fibrose pulmonar, neoplasias Doenças gastrointestinais Doença inflamatória intestinal, parasitose, hepatite, atrésia das vias biliares Outras Hipertiroidismo, infecção VIH, anemia de células falciformes Outras alterações ungueais sugestivas de doença sistémica estão expressas no Quadro III. Quadro III – Alterações Ungueais que podem surgir no contexto de patologia sistémica Coiloníquia Anemia ferropénica, hemocromatose, lúpus eritematoso sistémico, doença de Raynaud Onicólise Infecção, hipertiroidismo, sarcoidose, amiloidose, doenças do tecido conjuntivo, porfiria Doliconíquia Síndrome de Marfan, síndrome de Ehlers-Danlos e hipopituitarismo Macroníquia Síndrome de Proteus, outras megadactilias Pitting Síndrome de Reiter, incontinência pigmenti Coloração amarela Tuberculose, tiroidite, artrite reumatoide Leuconíquia Insuficiência hepática, cirrose, diabetes, hipertiroidismo, desnutrição Lúnula azul Doença de Wilson Linhas de Mees Intoxicação por monóxido de carbono, doença de Hodgkin, malária Linhas de Muehrcke Hipoalbuminémia Hemorragias de Splinter Endocardite bacteriana, lúpus, artrite reumatóide, síndrome antifosfolípido, úlcera péptica, uso de contraceptivos (adolescentes) Telangiectasia Dermatomiosite, esclerodermia, lúpus eritematoso sistémico, artrite reumatóide Pterigium ventral Esclerodermia Tumores da unha A patologia tumoral da unha é pouco frequente em pediatria. No entanto, pela gravidade e necessidade de uma elevada suspeição clínica para que seja feito um diagnóstico precoce salienta-se o caso particular do melanoma. Apesar da melanoníquia ser na maioria das situações uma variante do normal com forte predomínio racial (presente em 77% dos indivíduos de raça negra), o diagnóstico diferencial com me- artigo de revisão review articles 23 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 lanoma é apenas possível pela realização de exame histológico. Favorecem a hipótese diagnóstica de melanoma os seguintes factores: identificação de uma lesão pigmentada do tipo melanoníquia em indivíduo de pele clara, envolvimento de apenas uma unha, alteração da aparência da lesão, pigmentação da pele das pregas ungueais, espessura da banda pigmentada superior a 3 mm, história familiar de melanoma ou nevo displásico e alteração da estrutura da unha(20). CONCLUSÃO A maioria das alterações ungueais abordadas corresponde a modificações subtis da estrutura ou aparência da unha, com impacto estético e sintomatologia variáveis. Embora a correcção total nem sempre seja possível, o estabelecimento de um diagnóstico correcto é fundamental para esclarecer sobre a eventual benignidade e prognóstico das lesões e adoptar o esquema terapêutico mais apropriado à optimização estética e sintomática. O reconhecimento do envolvimento da unha no contexto de outras patologias deve alertar o médico para a importância da observação sistemática dos sinais ungueais. NAIL DISORDERS IN PEDIATRICS ABSTRACT About 7% of children under two years of age have at least one type of nail change and these disorders represent up to 11% of the motifs for consulting Pediatric Dermatology. Acquired nail changes in children are similar to those observed in adults, but there are differences in the prevalence and there are some particularities of childhood. Traumatic nail injuries are the most frequent nail disorder observed at the emergency department. Other disorders, especially chronic and asymptomatic ones, are often undervalued, although they might be the first manifestation of systemic or skin diseases. We focused the most important nail disorders, such as congenital, traumatic, infectious, drug-related, neoplastic and nail signs that can be identified in the context of skin or systemic diseases. Keywords: nails, children, skin diseases. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 19-24 BIBLIOGRAFIA 1. Sarifakioglu E, Yilmaz AE, Gorpelioglu C. Nail alterations in 250 infant patients: a clinical study. J Eur Acad Dermatol Venereol 2008; 22: 741-4. 2. Iglesias A, Tamayo L, Sosa-De-Martínez C, Durán-Mckinster C, Orozco-Covarrubias L, Ruiz-Maldonado R. Prevalence and nature of nail alterations in pediatric patients. Pediatr Dermatol 2001; 18: 107-9. 3. Tosti A, Piraccini B. Nail disorders. In: Harper J, Oranje A, Prose N editors. 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Caso clínico: Os autores descrevem o caso clínico de um recém-nascido, pré-termo de 31 semanas que ao 15º dia de vida apresentou quadro séptico pelo que iniciou antibioticoterapia. Nas hemoculturas efectuadas isolou-se Staphylococus aureus, sensível aos antibióticos prescritos e o cateter epicutâneo-cava introduzido no sexto dia de vida foi nesta altura substituído. Ao 25º dia detectou-se sopro sistólico grau II/VI, tendo o ecocardiograma mostrado imagem sugestiva de vegetação na válvula tricúspide (dimensões-8,5x4mm). Por suspeita de endocardite bacteriana, efectuou tratamento com vancomicina, gentamicina e rifampicina. As hemoculturas posteriores foram estéreis e não se verificou aumento do tamanho da vegetação. Em ambulatório manteve-se clinicamente bem e actualmente, com nove meses de idade corrigida apresenta vegetação de 3x3mm. Conclusão: A suspeita de endocardite bacteriana deve ser considerada nos recém-nascidos com sépsis hospitalar, internados numa Unidade de Cuidados Intensivos, com colocação de cateter venoso central, sobretudo se os agentes envolvidos são o Staphylococcus aureus ou fungos. A base do tratamento é um curso prolongado de antibioticoterapia com um regime bactericida apropriado. Contudo a mortalidade permanece elevada. Palavras-chave: catéteres venosos centrais, endocardite, recém-nascido pré-termo, Staphylococus aureus. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 25-27 INTRODUÇÃO O diagnóstico de endocardite infecciosa (EI) no período neonatal, apesar de pouco frequente, tem vindo a aumentar, devido à maior sobrevivência de recém-nascidos (RN) pré-termo que requerem técnicas invasivas, nomeadamente catéteres venosos centrais(1,2). A incidência estimada é de 0,07% em RN internados __________ 1 2 S. Neonatologia, Maternidade Júlio Dinis, CH Porto S. Cardiologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto em Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais(1). Estima-se que cerca de 8-10% dos casos de EI diagnosticada na população pediátrica ocorra no período neonatal(3). A etiopatogenia é complexa, mas na maioria dos casos associa-se a lesão a nível do endocárdio ou endotélio vascular que expõe o colagéneo subendotelial, promovendo a deposição de fibrina e plaquetas, dando origem a vegetações trombóticas não infecciosas(1,2,3,4,5). Durante episódios de bacteriémia ocorre colonização da superfície atingida, levando à formação de vegetações infectadas. Pode ocorrer em RN com cardiopatia congénita, mas mais frequentemente surge em RN com coração estruturalmente normal, que necessitam de catéteres venosos centrais para alimentação parentérica(1). Os sinais e sintomas são inespecíficos. Pode não haver febre, mesmo na presença de septicémia(3). Laboratorialmente caracteriza-se por aumento dos marcadores de infecção, trombocitopenia e geralmente hemoculturas persistentemente positivas. A presença de vegetações no ecocardiograma é sugestiva do diagnóstico, mas a sua ausência não o exclui (alguns ecógrafos não permitem visualização de vegetações inferiores a 2mm)(2,4). Nos doentes sem cardiopatia congénita, surgem frequentemente na válvula tricúspide. Os principais microorganismos envolvidos são o Staphylococcus aureus, Staphylococcus coagulase negativos, gram negativos (Klebsiella pneumoniae, Enterobacter cloacae e Enterococcus faecalis) e fungos. Os critérios de Duke modificados revistos em 2005 são os mais consensuais para o diagnóstico desta patologia. São divididos em critérios maiores e menores, considerando-se casos confirmados aqueles que reúnem dois critérios maiores ou um critério maior e três menores ou cinco critérios menores, e casos possíveis aqueles que cumprem um critério maior e um menor ou três menores(6). Critérios maiores: 1) Hemocultura positiva - isolamento de agentes comuns de EI em duas hemoculturas distintas, na ausência de foco primário; - microorganismo compatível com EI isolado em hemoculturas persistentemente positivas; - única cultura ou serologia positiva para Coxiella burnetii; 2) Evidência de envolvimento do endocárdio - Ecocardiograma sugestivo (oscilação de massa intracardíaca na válvula ou estruturas adjacentes; em material protésico na ausência de explicação anatómica alternativa; abcesso; deiscência parcial de novo de prótese valvular; insuficiência valvular de novo). casos clínicos case reports 25 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Critérios menores: 1) Factor predisponente para EI; 2) febre; 3) fenómenos vasculares; 4) fenômenos imunológicos; 5) evidência microbiológica - hemocultura positiva mas sem preencher os critérios maiores previamente descritos. O tratamento baseia-se num curso prolongado de antibióticos bactericidas, geralmente entre quatro a oito semanas, por via endovenosa(1,2). Alguns estudos referem que a administração de aspirina em baixas doses pode reduzir a incidência de eventos embólicos e o tamanho da vegetação(1,7). O tratamento cirúrgico está indicado quando há compromisso hemodinâmico com sinais de insuficiência cardíaca, culturas persistentemente positivas apesar de tratamento antibiótico adequado, aumento do tamanho da vegetação, sobretudo se dimensões superiores a 10 mm e risco de embolização. A mortalidade nos RN com EI permanece alta (alguns estudos referem atingir os 55%) e em grande parte reflecte a população de alto risco que tipicamente afecta(1,2). Na população pediátrica em geral varia entre 10 e 20%, na maioria dos estudos publicados(1). A prevenção da infecção recorrente é importante, uma vez que após um episódio de EI, o risco de recorrência é elevado. CASO CLÍNICO Recém-nascido do sexo masculino, pré-termo de 31 semanas, nascido de cesariana por apresentar traçado cardiotocográfico patológico. O índice de Apgar foi de 5/8, ao primeiro e quinto minutos, respectivamente e o peso ao nascimento era adequado à idade gestacional (peso:1305g). O ecocardiograma fetal efectuado às 25 semanas de idade gestacional foi normal (antecedentes maternos de epilepsia, medicada até à oitava semana de gravidez com valproato de sódio). Foi internado na unidade de cuidados intensivos neonatais com necessidade de ventilação não invasiva no primeiro dia de vida, por doença das membranas hialinas. O rastreio séptico realizado ao nascimento foi negativo, no entanto, com trombocitopenia (plaquetas: 65.000/mm3), tendo necessitado de concentrado de plaquetas no terceiro dia. Ao sétimo dia de vida apresentava 139.000/mm3 plaquetas e o estudo efectuado excluiu causas mais comuns de trombocitopenia. Com 15 dias de vida, por clínica de hipotonia e hiporreactividade efectuou rastreio séptico que revelou um aumento da proteína C reactiva, desvio da fórmula leucocitária para a esquerda e trombocitopenia (plaquetas:32.000/ mm3) com necessidade de novo concentrado de plaquetas. Iniciou vancomicina e amicacina, tendo sido isolado em duas hemoculturas distintas Staphylococus aureus, sensível aos antibióticos prescritos. O cateter epicutâneo-cava introduzido ao sexto dia de vida, para nutrição parentérica, foi nesta altura substituído. Ao 25º dia foi detectado sopro sistólico grau II/VI, tendo o ecocardiograma mostrado coração estrutural e funcionalmente normal, ponta do cateter insinuada na aurícula direita e imagem hiperecogénica, móvel, na válvula tricúspide, com cerca de 8,5x4mm sugestiva de vegetação (Figura 1) e insuficiência tricúspide ligeira (Figura 2). Por suspeita de endocardite bacteriana, completou oito semanas 26 casos clínicos case reports de tratamento com vancomicina, duas semanas com gentamicina e cinco semanas com rifampicina. Efectuou um mês de tratamento com ácido acetilsalicílico na dose de 3 mg/kg/dia. As hemoculturas posteriores foram estéreis, a velocidade de sedimentação manteve-se normal e a vegetação apresentou dimensões sobreponíveis. Efectuou ecografias transfontanelares ao sexto e 16º dias que mostraram hiperecogenicidade periventricular bilateral, sendo as ecografias subsequentes normais. Manteve-se sempre hemodinamicamente estável e sem intercorrências neurológicas ou respiratórias. Verificou-se normalização sustentada do valor das plaquetas a partir do 53º dia de vida (250.000/mm3). Teve alta Figura 1 – Imagem hiperecogénica, móvel, na válvula tricúspide, com cerca de 8,5x4mm sugestiva de vegetação Figura 2 – Insuficiência tricúspide ligeira NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 ao 71º dia de vida, orientado para Consulta de Cardiologia Pediátrica. Em ambulatório permaneceu sem sintomas cardiovasculares e verificou-se uma redução gradual do tamanho da vegetação. Actualmente, com nove meses de idade corrigida mantém à auscultação cardíaca sopro sistólico curto no bordo esquerdo do esterno e apresenta vegetação com dimensões de 3x3mm. DISCUSSÃO A variabilidade e inespecificidade da apresentação clínica da EI no período neonatal acarreta dificuldades e atraso no diagnóstico, a não ser que haja um elevado grau de suspeição. Ecocardiogramas seriados são recomendados nos RN, com sépsis hospitalar, internados numa Unidade de Cuidados Intensivos, com colocação de cateter central, sobretudo se os agentes envolvidos são o Staphylococcus aureus ou fungos, mesmo na ausência de alterações de novo na auscultação cardíaca. Após o diagnóstico de EI o cateter venoso central deve ser removido e o tratamento com antibioticoterapia endovenosa deve ser iniciado o mais precocemente possível. São necessárias doses mais elevadas de antibióticos relativamente ao tratamento de uma sépsis hospitalar isolada, de forma a penetrarem na vegetação. O tratamento cirúrgico está indicado nos doentes com compromisso hemodinâmico, ausência de resposta ao tratamento antibiótico, sinais de embolização e aumento do tamanho da vegetação (dimensão>10mm). No caso clínico apresentado, o quadro clínico de sépsis com isolamento de Staphylococcus aureus nas hemoculturas, o aparecimento de sopro cardíaco/ insuficiência valvular de novo num RN pré-termo com colocação de cateter venoso central e o ecocardiograma mostrando vegetação intracardíaca confirmaram o diagnóstico. Devido ao elevado risco cirúrgico nesta faixa etária, apesar do tamanho da vegetação no final do tratamento antibiótico ser sobreponível ao inicial, o facto do RN se ter mantido hemodinamicamente estável permitiu que se optasse por uma atitude expectante. Foi-se verificando diminuição progressiva do tamanho da vegetação, apresentando na última avaliação uma dimensão de 3x3mm, pelo que se mantém sem terapêutica. Apesar do risco de recorrência e de complicações embólicas ser pequeno atendendo às dimensões actuais da vegetação, nunca pode ser eliminado. Este caso raro de EI no período neonatal reforça a importância do conhecimento dos factores de risco e dos sinais sugestivos deste diagnóstico, de forma a instituir medidas terapêuticas adequadas e atempadas. INFECTIVE ENDOCARDITIS IN A PRETERM NEWBORN ABSTRACT Background: Infective endocarditis is a rare but serious illness in neonatal period. Case report: The authors describe the case of a preterm newborn, 31 weeks of gestation who presented at 15th day of life a condition consistent with neonatal sepsis and antibiotic therapy was administered. Staphylococus aureus, sensitive to antibiotics that were prescribed, were detected in blood cultures and the central venous line introduced at 6th day of life was replaced at this point. At 25th day an II/VI grade blowing systolic murmur was heard and the echocardiography showed a suggestive image of vegetation (size-8,5x4mm) in the tricuspid valve. Bacterial endocarditis was suspected and the newborn was treated with vancomycin, gentamicin and rifampicin. The subsequent blood cultures were negative and no increase on vegetation size was observed. In ambulatory, he remained clinically well and actually, with nine months of corrected age, the size of vegetation is 3x3mm. Conclusion: Suspicion of infective endocarditis must be considered in newborns with hospital sepsis in an intensive care setting, with an indwelling catheter, especially if the agents involved are Staphylococcus aureus or fungi. The cornerstone of treatment is a prolonged course of antibiotic treatment with an appropriate bactericidal regimen. However mortality remains high. Keywords: central venous lines, endocarditis, preterm newborn, Staphylococus aureus. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 25-27 BIBLIOGRAFIA 1. Martin R. The recognition and treatment of infective endocarditis. Current Paediatrics 2002; 12: 212-9. 2. Overturf G. Focal Bacterial Infections. 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CORRESPONDÊNCIA Cristiana Ribeiro e-mail: [email protected] casos clínicos case reports 27 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Miosite orbitária numa criança José Fraga1, Aida Sá1, Cristina Cândido1, José Pereira Pinto2, Fátima Dias1 RESUMO Introdução: A doença inflamatória orbitária caracteriza-se por um processo inflamatório, de etiologia desconhecida, que pode atingir qualquer estrutura da órbita. Apresentamos um caso clínico da forma que envolve os músculos extraoculares (miosite orbitária). Caso clínico: Criança do sexo masculino com nove anos de idade, sem antecedentes patológicos de relevo, que iniciou subitamente dor ocular à direita, acompanhada de edema palpebral homolateral. À observação, apresentava proptose, edema palpebral moderado com rubor local, limitação da elevação da pálpebra e da elevação e abdução do olho direito, com diplopia. A investigação efectuada sugeriu o diagnóstico de miosite orbitária, tendo iniciado terapêutica com corticóide sistémico com resolução do quadro. Discussão: O presente caso descreve uma entidade nosológica rara em idade pediátrica, habitualmente benigna, mas que se não reconhecida e tratada precocemente, pode originar sequelas da mobilidade ocular. Palavras-chave: miosite orbitária, doença inflamatória da órbita, manifestações oculares. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 28-32 INTRODUÇÃO O pseudotumor inflamatório da órbita, actualmente designado por doença inflamatória orbitária (DIO), é um processo inflamatório dos tecidos orbitários. Apesar de a etiologia ainda não estar esclarecida, alguns autores sugerem uma origem de carácter auto-imune, secundária a infecção respiratória ou outro processo imunomediado(1-5). A primeira descrição é de 1905, quando Birch-Hirchsfield descreve uma patologia orbitária caracterizada por aumento do volume palpebral, na qual a exploração cirúrgica só identificou um processo inflamatório dos tecidos envolventes. No entanto, só em 1954, Umiker et al(6). o designa desta forma, pela sua capacidade para mimetizar clínica e radiologicamente um processo maligno. __________ 1 2 S. Pediatria, H Vila Real, CH Trás-os-Montes e Alto Douro S. Oftalmologia, H Vila Real, CH Trás-os-Montes e Alto Douro 28 casos clínicos case reports Na literatura, estão descritas algumas classificações para esta entidade. A mais utilizada é a classificação de Rootman(7), que se baseia na identificação de subtipos, de acordo com a estrutura orbitária na qual o processo inflamatório é predominante: lacrimal; miosítica; anterior; difusa e apical. O Quadro I compara as características dos diferentes subtipos. A DIO acomete principalmente adultos, sendo a sua prevalência em idade pediátrica rara(8). É responsável por cerca de 6% de todas as lesões orbitais. Destas, apenas 6% dos casos acontecem em crianças(9). Clinicamente, os doentes apresentam-se com edema e hiperémia palpebrais, proptose, alteração da motilidade ocular, diplopia e dor. É geralmente unilateral. Uma apresentação bilateral sugere a existência de doença sistémica de base. Em crianças, podem observar-se sinais e sintomas de compromisso sistémico, como febre, cefaleias, vómitos e mal-estar geral(1,8). O diagnóstico é feito pela história clínica, exames físico e oftalmológico cuidados, estudo analítico, tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM) da órbita/seios da face com contraste, e, em casos duvidosos, biópsia com estudo anátomo-patológico(1,10). O diagnóstico diferencial envolve qualquer patologia susceptível de induzir um quadro orbitário agudo, no entanto, em crianças, é com a celulite orbitária e com a oftalmopatia tiroideia que mais vezes esta entidade se confunde(1,10). O tratamento consiste na administração de corticóide via oral, habitualmente com resposta dramática em 48 a 72 horas. Outras possibilidades terapêuticas com imunossupressores e radioterapia parecem ter alguma eficácia(1,8-10). O principal objectivo do presente trabalho é descrever um caso de miosite orbitária(11,12), um dos subtipos de DIO, em idade pediátrica e ilustrar as dificuldades no diagnóstico diferencial com celulite orbitária, fazendo referência a aspectos imagiológicos e terapêuticos. CASO CLÍNICO Criança do sexo masculino, de nove anos de idade, raça caucasiana, natural e residente em Vila Real, sem antecedentes pessoais relevantes, que iniciou cinco dias antes da admissão dor ocular direita, acompanhada de edema palpebral homolateral. É negado qualquer outro sinal ou sintoma acompanhante, incluindo mal-estar geral, anorexia, emagrecimento, febre, vómitos ou cefaleias. São negadas infecção respiratória ou gastrointestinal previamente à sintomatologia actual. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Ao exame objectivo apresentava bom estado geral e de nutrição. Estava apirético e hemodinamicamente estável. A tiróide era palpável, não aumentada de volume, de consistência preservada e sem massas. Ao exame oftalmológico tinha proptose, edema palpebral moderado com rubor local, limitação da elevação e abdução do olho direito; referia também diplopia vertical no olhar para a direita e para cima. A acuidade visual, campos visuais, fundoscopia e reflexos pupilares eram normais. O restante exame objectivo e neurológico não mostrava alterações. O estudo analítico inicial com hemograma, bioquímica, PCR e VS, não mostrou alterações relevantes. A TC da órbita realizada à admissão (Figuras 1 a 3) mostrou ao nível da órbita à direita, marcado empastamento do recto medial, assim como ocupação significativa do espaço intra-cónico, com má definição do recto superior e aumento dos tecidos peri-orbitários, podendo corresponder a lesão de natureza inflamatória ou lesão de outra natureza. Figura 2 – TC órbita esquerda (corte sagital) sem alterações. Figura 3 – TC órbitas (corte frontal) mostra espessamento do recto superior e recto medial. Figura 1 – TC órbita direita (corte sagital) mostra espessamento do recto superior. Quadro I – Comparação entre os subtipos (formas) de DIO(7) Miosítica Músculos Anterior Porção anterior do globo ocular Lacrimal Glândula lacrimal Difusa Todos os tecidos orbitários Apical Ápice da órbita Apresentação clínica Dor Ao movimento À palpação Moderada Moderada Severa, mas ocasional Sintomas e sinais ↓ motilidade ocular; acuidade visual mantida; sinais inflamatórios locais Deformação palpebral em S; quemose e sinais inflamatórios locais Uveíte; descolamento da retina; ↓ motilidade ocular Bom Bom Uveíte; descolamento da retina; ↓ motilidade ocular Ocasionalmente com sequelas ↓ acuidade visual; ↓ motilidade ocular; proptose e quemose Ocasionalmente com sequelas Reforço difuso com contraste; ↓ da gordura orbitária Infiltração apical irregular com extensão aos músculos e nervo óptico Prognóstico visual Bom Aspectos imagiológicos TC & RMN Espessamento muscular e edema na inserção muscular Extensão variável até ao Edema da glândula lacrimal nervo óptico; e tecidos subjacentes ↓ da gordura orbitária casos clínicos case reports 29 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Este aspecto é compatível com um processo ocular inflamatório, não se podendo excluir etiologia infecciosa. Perante estes resultados iniciou terapêutica com metilprednisolona (2mg/kg/dia endovenosa, durante cinco dias) e antibioterapia (ceftriaxone + clindamicina) endovenosas, com recuperação quase completa, persistindo apenas com ligeira limitação na elevação do olho direito (Figura 4). Perante este diagnóstico iniciou prednisolona 1mg/Kg/dia, durante 10 dias, com desmame progressivo em quatro semanas, e resolução completa do quadro clínico. A restante investigação não revelou alterações sugestivas da existência de outra patologia de base (Tabela 1). O exame neurológico e oftalmológico aos três e seis meses após o início da doença foi normal, assim como a RM aos seis meses. Tabela 1 – Investigação etiológica complementar Figura 4 – Limitação da elevação do olho direito. Ao nono dia de doença verifica-se recidiva súbita da sintomatologia, pelo que é realizada RM orbitária (Figuras 5 e 6) que apresentava espessamento do oblíquo superior, rectos superior e medial à direita e um espessamento dos tecidos peri-orbitários, traduzindo pseudotumor orbitário (forma miosítica). Figura 5 – RM orbitária (corte frontal – T2): espessamento do recto superior e medial. 30 casos clínicos case reports • IgG: 1000mg/dL; IgA: 98mg/dL; IgM: 85mg/dL; IgE: 119UI/mL • C3: 233mg/dL e C4: 36mg/dL Alfa-1 antitripsina: 190mg/dL • IgA e IgG anti-S cerevisae (ASCA): 2,0 UI/mL • Anticorpo anti-citoplasma dos neutrófilos (ANCA): negativo • Anticorpos anti-receptores acetilcolina: negativo • Anticorpo anti-músculo liso: negativo • Factor reumatóide: <20 UI/mL • Anticorpo anti-nuclear (ANA): negativo • Anti-dsDNA: 0,80 UI/mL; anti-SSA: 0,0 UI/mL; anti-SSB: 0,1UI/mL; anti-Sm: 0,0 UI/mL; anti-RNP: 0,9UI/mL; anti-Jo-1: 0,0 UI/mL; anti-Scl 70: 0,0 UI/mL; anti-CCP: 1,6UI/mL • Aldolase: 2,7UI/dL Creatina fosfoquinase: 46UI/L • TSH: 2,0UI/mL T4 livre: 1,3ng/dL Anticorpos anti-tiroideus: negativo • Prova tuberculínica: 0mm • Radiografia tórax: sem alterações • Ecografia abdominal: sem alterações Figura 6 – RM orbitária (corte coronal – T2): espessamento do recto superior NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 DISCUSSÃO O caso clínico presente ilustra as dificuldades para se estabelecer o diagnóstico de DIO na criança. Por um lado, porque é uma entidade rara nesta faixa etária e por outro lado, pelo facto de a história clínica e exame físico simularem um quadro de celulite orbitária. A criança apresentava alguns sinais e sintomas de celulite orbitária. Apesar de analiticamente não ser compatível com um quadro infeccioso, a TC orbitária sugeria um processo inflamatório envolvendo os músculos extra-oculares, não excluindo etiologia infecciosa, pelo que iniciou antibioterapia e corticoterapia sistémicas. A evolução clínica inicial foi satisfatória, no entanto após ter interrompido corticóide verificou-se recidiva das queixas, pelo que é realizada RM que afirma o diagnóstico de pseudotumor inflamatório (forma miosítica). Foi reiniciada corticoterapia com resolução completa do quadro. Neste caso é curioso observar uma limitação da abdução do olho direito. Este facto poderá dever-se à inflamação concomitante do oblíquo superior que está em relação próxima com o recto superior, e cuja sensibilidade da RM não seja suficiente para permitir esta distinção. Por outro lado a inflamação do recto medial poderá condicionar uma hiperactividade do próprio músculo limitando a abdução ocular. A miosite orbitária é um desafio diagnóstico, como se pode observar no Quadro II onde se enumeram e caracterizam os diagnósticos diferenciais e suas diferenças(11-14). Tendo em conta a raridade desta patologia, a realização de biópsia poderia ter algum interesse(7). No entanto os dados imagiológicos sugestivos, o risco inerente à realização da técnica e a resposta favorável à corticoterapia permitiram o diagnóstico. O valor da ecografia, de fácil acesso e baixo custo, poderá ser importante na exclusão de massa tumoral e na avaliação dos tendões de inserção dos músculos permitindo o diagnóstico diferencial entre miosite orbitária e oftalmopatia tiroideia, havendo atingimento da inserção na miosite(15). A frequência com que esta patologia se tem associado a infecção respiratória prévia ou a doenças imuno-mediadas tem levantado a hipótese de este processo ser mediado por mecanismos de auto-imunidade(1,4-7), facto que não se confirmou no presente caso clínico. O tratamento da miosite orbitária é semelhante à DIO. A primeira escolha é a corticoterapia com prednisolona, na dose de 1 a 1,5 mg/kg/dia, durante uma a duas semanas com desmame gradual em 4 a 12 semanas(1,8,10-14). Outras possibilidades terapêuticas com eficácia comprovada em adultos, apesar dos possíveis efeitos adversos importantes, incluem anti-inflamatórios não esteróides, fármacos imunossupressores (azatioprina, metotrexato, micofenelato mofetil, ciclosporina, tacrolimus, anti-TNF α), imunoglobulina G hiperimune, anticorpo monoclonal anti-CD20 e radioterapia. A cirurgia reconstrutiva tem um papel fundamental sobretudo nas sequelas resultantes do atingimento muscular(16-18). O prognóstico a longo prazo da DIO, e da miosite orbitária em particular, é muito variável, dependendo, entre outras, do grau inicial de envolvimento das estruturas orbitárias, do número de recidivas e da resposta terapêutica. Se não diagnosticado e tratado precocemente a possibilidade de alteração irreversível da mobilidade ocular e do nervo óptico é uma realidade. Esta criança teve uma evolução bastante favorável, permanecendo assintomática e com controlo imagiológico sem alterações, seis meses após o quadro. Quadro II – Diagnóstico diferencial da miosite orbitária (adapt. 12) Dor Proptose Diplopia Limitação c/ Hiperemia movimentos Sintomas palpebrais Observações conjuntival oculares RM: envolvimento muscular e inserção; Dor com os movimentos; Acuidade visual N Miosite orbitária + Ligeira + + Ligeira Moderada Oftalmopatia tiroideia - Variável: Moderada a grave +/- + Ligeira Retracção palpebral RM: sem envolvimento da inserção muscular; Função tiroideia AN; +/- + + Edema e hiperemia Clínica e laboratório sugestivos de infecção Celulite orbitária +++ Aguda +/- Neoplasia - Sub-aguda Crónica +/- +/- - Edema e proptose Massa palpável Outra DIO +/- ++ +/- +/- +/- Edema e hiperemia Neuropatia óptica Trombose seio cavernoso +/- + - + + Edema +/Proptose Atingimento dos pares cranianos (III, IV, V, VI) Cefaleias; febre; letargia +/- Neurite óptica + - - - - Parésia pares cranianos - - + + - Ptose se III par Clínica depende do par atingido Miastenia gravis - - + + - Ptose +/- Inicio insidioso; Agravamento com cansaço - Campos visuais atingidos; dor c/ movimentos oculares Legenda: DIO – doença inflamatória orbitária; RM – ressonância magnética; N – normal; NA – anormal. casos clínicos case reports 31 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 CONCLUSÃO A miosite orbitária é uma doença rara em idade pediátrica cujo diagnóstico e tratamento atempado são fundamentais. A RM da órbita é o exame de imagem mais sensível. O seu diagnóstico é feito após exclusão de causas secundárias. A primeira linha de tratamento é a corticoterapia, mas nos casos refractários a utilização de fármacos imunossupressores poderá estar indicada. ORBITAL MYOSITIS IN A CHILD ABSTRACT Background: Orbital inflammatory disease is characterized by an inflammatory process of unknown etiology, which may affect any structure of the orbit. We describe a case report of inflammation of the extraocular muscles (orbital myositis). Case report: A previously healthy nine year-old male, with negative paste medical history, presented with right eye pain and homolateral eyelid swelling of sudden onset. On physical examination there was proptosis, eyelid edema with moderate local redness, and diplopia with limitation in the elevation of the eyelid and of abduction and elevation of the eye. The investigation suggested the diagnosis of orbital myositis. Intravenous corticosteroid therapy was started with clinical improvement. Discussion: This case report reports a rare, usually benign, entity in children, which if not early recognized and treated may cause persistent eye motility dysfunction. Keywords: orbital myositis, orbital inflammatory disease, eye manifestations. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 28-32 BIBLIOGRAFIA 1. Berger JW, Rubin PA, Jakobiec FA. Pediatric orbital pseudotumor: case report and review of literature. Int Ophtalmolol Clin 1996; 36: 161-77. 2. Squires RH Jr, Zweiner RJ, Kennedy RH. Orbital myositis and Crohn’s disease.J Pediatr Gastroenterol Nutr 1992; 15: 448-51. 3. Serop S, Vianna RN, Claeys M, De Laey JJ. Orbital myositis secondary to systemic lupus erythematosus. Acta Ophthalmol (Copenh) 1994; 72: 520-3. 4. Panfilio CB, Hernández-Cossio O, Hernández OJ. Orbital myositis and rheumatoid arthritis: case report. Arq Neuropsiquiatr 2000; 58: 174-7. 32 casos clínicos case reports 5. 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Caso clínico: Os autores relatam o caso de uma criança de cinco anos de idade com disartria, ataxia e oftalmoplegia após episódio de gastroenterite aguda na semana prévia ao início da sintomatologia. À observação apresentava disartria, parésia bilateral do VI par, fraqueza muscular distal (de predomínio nos membros direitos) com ausência dos reflexos osteotendinosos aquilianos. A investigação analítica e imagiológica inicial não revelou alterações. O resultado do electromiografia foi compatível com poliradiculoneuropatia subaguda. O diagnóstico de síndrome Miller Fisher foi efectuado após exclusão de outras etiologias. A evolução clínica foi favorável, sem insuficiência respiratória ou outras complicações, com melhoria gradual dos défices neurológicos. Houve recuperação da ataxia ao fim de quatro semanas e da oftalmoplegia três meses após o diagnóstico. Conclusões: O síndrome Miller Fisher é extremamente raro em idade pediátrica e constitui um desafio diagnóstico neste grupo etário. O prognóstico é habitualmente favorável. A propósito deste caso são discutidos os principais diagnósticos diferenciais. Palavras-chave: síndrome de Miller Fisher, síndrome de Guillain-Barré, doença desmielinizante, criança. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 33-36 INTRODUÇÃO O síndrome de Guillain-Barré (SGB) é a causa mais comum de paralisia flácida aguda nas crianças. Trata-se de uma polineuropatia periférica de início agudo, de natureza auto-imune, que é precedida por um episódio infeccioso em mais de metade dos casos. Classicamente caracteriza-se por paralisia progressiva e simétrica, geralmente com carácter ascendente, e arreflexia. A pa__________ 1 2 S. Pediatria, H São Teotónio, Viseu Centro de Desenvolvimento da Criança Luís Borges, Consulta de Neuropediatria, H Pediátrico de Coimbra ralisia dos músculos respiratórios com necessidade de ventilação mecânica é uma complicação possível do SGB. Pode ocorrer atingimento dos nervos cranianos. Estão habitualmente associadas alterações disautonómicas (arritmias, hipotensão postural, flutuações da tensão arterial, sinais vasomotores)(1). O diagnóstico é essencialmente clínico. O estudo do líquido cefalorraquidiano (LCR) e a electromiografia (EMG) são importantes adjuvantes diagnósticos. A análise do LCR mostra aumento da proteinorraquia e contagem celular <10 células/mm3 (dissociação albumino-citológica). A electrofisiologia revela diminuição das velocidades de condução nervosa sensitiva e motora, compatível com desmielinização. O prognóstico é geralmente favorável. A recuperação tem início duas a quatro semanas após paragem da progressão e na criança geralmente esta é completa. As sequelas neurológicas estão descritas em 5 a 25% dos doentes e a recorrência em 3% dos casos. Em 1932, Collier descreveu a tríade ataxia, arreflexia e oftalmoplegia como uma variante do síndrome Guillain-Barré(2). No entanto, em 1956, Miller Fisher relatou três doentes com esta tríade clínica, mas como uma entidade separada, mais tarde denominada Síndrome Miller Fisher (SMF)(2,3). Este quadro neurológico é, actualmente, considerado uma doença desmielinizante inflamatória aguda do sistema nervoso periférico, afectando principalmente os nervos cranianos(3,4). Desde que este síndrome foi descrito pela primeira vez, em 1956, até 1992 foram relatados 223 casos, destes apenas 32 em crianças. A incidência estimada na criança é de 2-8 casos/10 milhões(2,4). É mais frequente no sexo masculino, com uma razão de 2:1, com um pico de incidência nos meses da Primavera(2,5,6). Em dois terços dos casos está descrita uma intercorrência infecciosa, geralmente infecção das vias aéreas superiores ou gastroenterite aguda, precedendo os sintomas neurológicos em cinco a dez dias(2,7,8). Os microrganismos mais frequentemente descritos têm sido o Haemophilus influenzae e Campylobacter jejuni. A presença de anticorpos anti-IgG GQ1b está associada ao SMF(4,9). Em 60% dos doentes observa-se hiperproteinorraquia. O curso natural do SMF é caracterizado por uma boa recuperação, com pouca ou nenhuma incapacidade funcional 10 semanas, em média, após o início da sintomatologia(2,5). Apresentamos o caso clínico de uma criança de cinco anos de idade com o objectivo de acrescentar mais informação a uma entidade neurológica rara em Pediatria, visto que existem, até à data, poucas revisões casuísticas de SMF publicadas. A propósito deste caso clínico são discutidos os principais diagnósticos diferenciais. casos clínicos case reports 33 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 CASO CLÍNICO Os autores relatam o caso de uma criança de cinco anos de idade, do sexo masculino, que, sete dias após episódio de gastroenterite aguda, inicia diplopia, alteração da voz e desequilíbrio. Este quadro teve início com diminuição da força muscular dos membros direitos a que se associou limitação da mobilidade ocular e disfonia. Teria ingerido mel na véspera do início da sintomatologia. Recorreu ao serviço de urgência do Hospital local (hospital nível II) com o quadro descrito com três dias de evolução. Ao exame objectivo foi constatada disartria, parésia bilateral do VI par, fraqueza muscular distal de predomínio nos membros direitos e ausência de reflexos osteotendinosos aquilianos. As hipóteses de diagnóstico colocadas inicialmente foram: síndrome Miller Fisher, botulismo e acidente vascular cerebral. A investigação inicial, que incluiu glicemia, hemograma e bioquímica sérica, pesquisa de tóxicos na urina, pesquisa de toxina botulínica nas fezes e tomografia computorizada cerebral, não revelou quaisquer alterações. Por agravamento clínico com recusa na marcha e prostração foi transferido para um hospital nível III para apoio de Neuropediatria e complemento de neuroimagem colocando-se nessa altura as hipóteses de diagnóstico de encefalomielite aguda disseminada (ADEM), síndrome Miller Fisher e botulismo(4,10). Realizou ressonância magnética (RM) cerebral e medular que não evidenciou alterações. O exame do LCR, realizado ao quarto dia de doença, não revelou aumento das proteínas nem pleocitose. O índice de IgG e as bandas oligoclonais do LCR foram normais. A pesquisa de anticorpos anti-GQ1b não pôde ser realizada. Não foram efectuadas coproculturas. Realizou EMG com estudo de condução nervosa, uma semana após o início dos sintomas, que mostrou uma diminuição das velocidades de condução nervosa compatível com polirradiculoneuropatia subaguda. Este resultado permitiu o diagnóstico de síndrome de Miller Fisher. Ao sexto dia de internamento, constatou-se agravamento da disartria e ataxia, com aparecimento de disfagia. No entanto assistiu-se a melhoria clínica 48 horas depois, de tal modo que a criança teve alta ao 11º dia. Nunca houve compromisso respiratório durante todo o internamento. A evolução clínica desta criança foi favorável, com resolução completa da ataxia quatro semanas após o início da sintomatologia e melhoria progressiva da oftalmoplegia aos três meses. DISCUSSÃO O síndrome Miller Fisher é raro na criança, o que torna o seu diagnóstico difícil. Pode estar associado a doenças infecciosas, autoimunes e neoplásicas. No caso apresentado há referência a gastroenterite aguda na semana prévia ao início do quadro. O diagnóstico de síndrome Miller Fisher é essencialmente clínico, pelo que na sua suspeita há que excluir outras causas de fraqueza muscular, ataxia ou oftalmoplegia. Neste caso, o diagnóstico de SMF foi sugerido atendendo essencialmente à clínica e efectuado após exclusão de outras etiologias. Realça-se que na criança há com frequência formas atípicas de apresentação, 34 casos clínicos case reports o que implica excluir entidades que cursam com alteração da vigília como a encefalite e encefalomielite aguda disseminada, que se apresentam com ataxia como tumores cerebrais e intoxicações, que surgem com défice neurológicos focais como doença vascular cerebral e esclerose múltipla e ainda entidades que se manifestam com oftalmoplegia como a miastenia gravis e o botulismo. Assim sendo o diagnóstico diferencial deve ser ser feito com as neuropatias periféricas (tóxicas e infecciosas), a poliomielite (sobretudo a vacinal), mielopatia aguda por compressão medular (traumatismo, tumor, abcesso), doença vascular cerebral, doença dismielinizante do sistema nervoso central e doença da placa neuromuscular (botulismo, miastenia gravis) (Quadro 1). Quadro 1 - Diagnóstico diferencial de síndrome Miller Fisher Doenças Doenças da Junção Drogas infecciosas neuromuscular Outros Meningite Traumatismo Encefalite Poliomielite Botulismo Miastenia gravis Intoxicação Doença neoplásica Doença desmielinizante do SNC Doença vascular cerebral Os exames complementares, nomeadamente o exame do LCR e EMG podem ser normais no início do quadro, pelo que é fundamental um alto índice de suspeição. No nosso caso, não se verificou dissociação albumino-citológica no LCR o que pode ser explicado pela precocidade da realização da punção lombar dado que a elevação da proteinorraquia ocorre tardiamente (após a primeira semana)(10). Nos casos em que a punção lombar é realizada na primeira semana de doença, pode ser necessário repetir posteriormente para esclarecimento diagnóstico. A EMG é útil para a confirmação do diagnóstico, sobretudo na presença de características atípicas, mas também pode ser normal na primeira semana(10). Neste caso clínico o resultado da EMG veio corroborar o diagnóstico de síndrome Miller Fisher. A RM cerebral e medular permitiu excluir doença do sistema nervoso central nomeadamente doença desmielinizante.Na investigação etiológica poderia ter interesse neste caso a realização de coprocultura com pesquisa de Campylobacter jejuni. Não foi efectuada a pesquisa de anticorpos anti-gangliosídeo GQ1b, o que poderia ter reforçado o diagnóstico. A patogenia do SMF é atribuída a mecanismo auto-imune contra os antigénios dos nervos periféricos. Em cerca de 90% dos doentes com SMF podemos encontrar anticorpos anti-gangliosídeo GQ1b. Está descrita também reactividade cruzada destes anticorpos com epítopos de Campylobacter jejuni. Os gangliosídeos GQ1b constituem um componente lipídico abundante dos nervos oculomotores o que explica a oftalmoplegia(11,12). A abolição dos reflexos osteotendinosos sugere o atingimento nervoso periférico, achado quase constante nesta entida- NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 de. A principal diferença entre SMF e as variantes mais comuns do SGB é que os grupos nervosos a serem afectados em primeiro lugar nos doentes com SMF são os dos pares cranianos, resultando em alteração dos movimentos oculares e desequilíbrio. A paralisia em outras formas de SGB é, na maioria dos casos, geralmente ascendente com fraqueza muscular progressiva com início nos membros inferiores. Atendendo à boa evolução clínica do caso apresentado, sem perda total da autonomia da marcha e sem necessidade de ventilação mecânica, não se efectuou tratamento com imunoglobulina endovenosa. O tratamento com imunoglobulina ou plasmaferese no SMF está reservado para as formas clínicas moderadas e graves. Considera-se o uso de imunoglobulina endovenosa ou plasmaferese na doença rapidamente progressiva, com incapacidade de caminhar sem ajuda, agravamento da função respiratória e necessidade de ventilação mecânica e na paralisia bulbar significativa(10). No entanto, não há estudos randomizados realizados em idade pediátrica e os estudos de evidência de imunoglobulina no SMF são escassos(13,14). O uso de corticoterapia não está indicado no SMF por falta de evidência científica(15). O SMF é habitualmente uma situação auto-limitada, como aconteceu no caso clínico descrito. O prognóstico é quase sempre favorável, com uma boa recuperação e sem défices residuais. No entanto, existem casos descritos com evolução para insuficiência respiratória e necessidade de ventilação mecânica. A recuperação habitualmente começa dentro de duas a quatro semanas após o início dos sintomas e está completa dentro de seis meses(2). CONCLUSÕES O síndrome Miller Fisher é uma entidade neurológica rara em idade pediátrica e constitui um desafio diagnóstico neste grupo etário. A tríade clínica característica (ataxia, arreflexia e oftalmoplegia) e os exames de imagem, nomeadamente a RM cerebral, exame do LCR e a EMG ajudam a confirmar o diagnóstico e a excluir outras situações que podem ser clinicamente sobreponíveis. A terapêutica é de suporte, sendo necessária vigilância e monitorização contínua destes doentes. A imunoglobulina endovenosa ou plasmaferese estão indicadas na doença moderada ou grave. O prognóstico é habitualmente favorável, com recuperação total que ocorre em média ao fim de seis meses. A CHILD WITH MILLER FISHER SYNDROME ABSTRACT Background: Miller Fisher syndrome, a variant of Guillain-Barré syndrome, is an acute inflammatory demyelinating disease that is rare in children. The diagnosis is based on the triad of ophthalmoplegia, ataxia and areflexia. In about half of the cases there is an infectious complication preceding neurologic symptoms in five to ten days. Case report: We describe the case of a five year-old boy who presented with a three-day history of diplopia, dysarthria and gait disturbance following an acute gastroenteritis. On examination he was found to have ataxia, areflexia and ophthalmoplegia. The laboratorial and imaging investigations were normal. The results of electromyogram were consistent with subacute polyradiculoneuropathy. The diagnosis of Miller Fisher syndrome was made after the exclusion of other conditions. The clinical outcome was favorable without respiratory failure or other complications, with gradual improvement of neurological deficits. Ataxia was restored in four weeks and ophthalmoplegia improved three months later. Conclusions: Miller Fisher syndrome is extremely rare in children and is a diagnostic challenge at those ages. Outcome is usually good. This report outlines the frequency of Miller Fisher syndrome and lists the differential diagnoses that should be considered. Keywords: Miller Fisher syndrome, Guillain-Barré syndrome, demyelinating disease, child. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 33-36 BIBLIOGRAFIA 1. Hahn FA. Guillain-Barré syndrome. Lancet 1998; 352: 635-41. 2. Berlit P, Rakicky J. The Miller Fisher syndrome, review of the literature. J Clin Neuroophtalmol 1992; 12: 57-63. 3. Fisher M. An unusual variant of the acute idiopathic polyneuritis (Syndrome of ophtalmoplegia, ataxia and areflexia). N Engl J Med 1956; 255: 57-65. 4. Garrett J, Ryan P. A child with Miller Fisher syndrome. J Paediatr Child Health 2002; 38: 413-6. 5. Mori M, Kuwabara S, Fukutake T, Yuki N, Hattori T. Clinical features and prognosis of Miller Fisher syndrome. Neurology 2001; 56: 1104-6. 6. Lo YL. Clinical and immunological spectrum of the Miller Fisher syndrome. Muscle Nerve 2007; 36: 615-27. 7. Bushra J. 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Nádia Rodrigues1, Sofia Ferreira1, Lia Rodrigues1, Ana Castro1, Célia Barbosa2, Roseli Gomes2 RESUMO Introdução: A Paraplegia Espástica Familiar (PEF) é um grupo heterogéneo de doenças neurodegenerativas hereditárias, com uma prevalência de 2/100000 indivíduos na população portuguesa. Caracteriza-se sobretudo por espasticidade progressiva e insidiosa dos membros inferiores, por degeneração do feixe corticoespinhal. Caso Clínico: Apresentamos uma criança com espasticidade e hiperreflexia progressivas dos membros inferiores, com vários familiares da linha paterna com sintomatologia semelhante, sugerindo ao diagnóstico de paraplegia espástica familiar. Foi identificada no probando uma mutação causal de paraplegia espástica familiar tipo 4. Conclusão: Nesta família, a idade de início variou entre os cinco e os 50 anos, e diminuiu em média 22,5 anos ao longo de três gerações e, por outro lado, a apresentação e evolução da doença foram aparentemente mais graves em gerações sucessivas, sugerindo a existência de fenómeno de antecipação. Palavras-chave: doença de Strümpell-Lorrain, paraplegia espástica familiar, paraplegia espástica familiar tipo 4, espastina, antecipação, variabilidade fenotípica. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 37-39 INTRODUÇÃO A Paraplegia Espástica Familiar (PEF), também conhecida como Doença de Strümpell-Lorrain, é um grupo heterogéneo de doenças hereditárias neurodegenerativas, sendo reportadas prevalências díspares na literatura variando de 0,5 a 12/100000(1-4). Em Portugal, Silva et al, estima uma prevalência de 2/100000(5). São características comuns às várias formas da doença a fraqueza muscular e espasticidade progressivas e insidiosas dos membros inferiores. A penetrância é incompleta e dependente da idade, é estimada em 85% aos 45 anos de idade(1). Fisiopatologicamente caracteriza-se por degenerescência das terminações do feixe corticoespinhal, com atingimento predominante das terminações das fibras mais longas que suprem os membros inferiores. __________ 1 2 S. Pediatria, H Pedro Hispano, ULS Matosinhos U. Neuropediatria, H Pedro Hispano, ULS Matosinhos A maioria são de transmissão autossómica dominante, e cerca de 40% destas formas correspondem ao tipo 4(5-7). A paraplegia espástica familiar tipo 4 está associada à mutação do gene que codifica a espastina (SPG4). Apresenta elevada variabilidade inter e intrafamiliar quer na idade de início quer na evolução clínica(1,7,8). Alguns autores descrevem o fenómeno de antecipação para alguns tipos da doença, nomeadamente no tipo 4, ou seja, doença de início mais precoce e mais grave em gerações subsequentes(1,9-11). O diagnóstico é sugerido fundamentalmente pela clínica sugestiva e história familiar. Existe diagnóstico molecular em várias formas da doença, possibilitando o diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético pré-implantatório. CASO CLÍNICO Criança do sexo feminino, cinco anos de idade, referenciada à consulta de Neurologia Pediátrica por dificuldades na marcha com quedas frequentes, cansaço fácil e tendência a marcha em bicos de pés. Os antecedentes pré ou peri-natais e neonatais eram irrelevantes. Ao nível do desenvolvimento psico-motor era notório o atraso na aquisição das etapas motoras, com início da marcha com apoio aos 18 meses e sem apoio aos 24 meses de idade e sempre com grandes dificuldades na corrida, sendo o desenvolvimento cognitivo normal. Na história familiar eram evidentes sintomas semelhantes em vários familiares da linha paterna, nomeadamente o pai de 33 anos, com antecedentes de cansaço fácil com a marcha desde os 25 anos e actualmente com grandes dificuldades em deambular e com disartria e disfagia; o tio paterno de 28 anos com sintomas idênticos desde os 25 anos e já com grandes dificuldades de deambulação; a avó paterna de 53 anos que desde os 50 anos está depende de apoio de cadeira de rodas; e a bisavó paterna de 72 anos com dificuldades em deambular sem apoio, desconhecendo a idade do início dos sintomas (Figura 1). Ao exame neurológico apresentava dificuldades na marcha em calcanhares, sem qualquer limitação na marcha em bicos de pés, hiperreflexia limitada aos membros inferiores, clónus esgotável dos tornozelos, Babinski bilateral e limitação da dorsiflexão das articulações tibiotársicas. A força muscular e os reflexos osteotendinosos dos membros superiores eram normais. As sensibilidades (dolorosa, térmica, vibratória e proprioceptiva) estavam preservadas. O restante exame objectivo era normal. Perante a clínica de fraqueza, espasticidade e hiperreflexia dos membros inferiores numa criança com vários familiares com casos clínicos case reports 37 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 sintomatologia semelhante foi colocada como hipótese diagnóstica a PEF. A apresentação familiar sugeria uma forma da doença de transmissão autossómica dominante. A ressonância magnética cerebral e medular foi normal, nomeadamente, sem alterações de sinal da substância branca e em particular dos feixes piramidais, da estrutura ou morfologia do corpo caloso. O estudo molecular foi dirigido inicialmente à pesquisa de mutações, delecções e duplicações do gene SPG3A, por ser a forma autossómica dominante que frequentemente se manifesta na infância. Contudo, o estudo por DHPLC (denaturing high-performance liquid chromatography) não identificou mutações, nem a análise por MLPA (multiplex ligation-dependent probe amplification) identificou delecções ou duplicações do gene SPG3A. Dada a forte suspeita clínica de estarmos perante uma forma autossómica dominante da doença, foi ainda realizado o estudo molecular do gene SPG4, por DHPLC, que identificou a mutação missense c.1158T>G (p.Asn386Lys) em heterozigotia no exão 8, mutação já descrita por outros autores e considerada causal(12), confirmando o diagnóstico de PEF tipo 4. DISCUSSÃO A heterogeneidade clínica e genotípica são uma característica chave da PEF. Mesmo dentro de cada família não existe consistência fenotípica, sendo manifesta a grande variabilidade na idade de início dos sintomas, na gravidade clínica e evolução da doença. Apesar de na PEF tipo 4, a idade média de início dos sintomas serem os 30 anos, a doença poder-se-á apresentar em qualquer idade. A doença tipicamente evolui inexoravelmente, habitualmente de forma insidiosa, apesar de alguns indivíduos permanecerem apenas ligeiramente afectados ou mesmo assintomáticos(7). Esta variabilidade justifica a necessidade de uma vigilância adequada de familiares assintomáticos. Figura 1 - Heredograma 38 casos clínicos case reports No presente caso é evidente que em gerações sucessivas a doença se manifestou em idades progressivamente mais precoces e os sintomas são sucessivamente mais graves e rapidamente progressivos, podendo este facto traduzir o fenómeno de antecipação ou simplesmente a conhecida variabilidade fenotípica da doença. Nesta família, a idade de início varia dos cinco aos 50 anos e diminui em média 22,5 anos ao longo das três gerações. Os cinco indivíduos descritos nesta família distribuídos por três gerações, não constituem número suficiente para concluir ou excluir antecipação. O fenómeno de antecipação, ou seja, a diminuição da idade de início dos sintomas e/ou o aumento da gravidade dos sintomas em geração subsequentes tem sido descrito em estudos que envolvem várias famílias afectadas pela doença(11) ou que estudam apenas uma família mas com muitos indivíduos afectados pela PEF(10). Outros autores, pelo contrário, não encontram evidências suficientemente consistentes que confirmem este fenómeno na PEF tipo 4(7). Apesar de a maioria dos indivíduos afectados por esta forma da doença apresentarem a forma pura da doença, a forma complicada da doença tem sido descrita por vários autores(1,13). As formas complicadas associam-se a outras manifestações, como défice cognitivo, epilepsia, retinopatia e neuropatia óptica, ataxia, disartria, surdez, neuropatia periférica e ictiose, entre outras. Nesta família, o pai do probando apresenta sintomas rapidamente progressivos e também sinais de disfunção bulbar como a disartria e disfagia, o que sugere uma forma complicada, não manifesta nos restantes familiares. Deverá suspeitar-se de PEF em indivíduos com clínica característica e história familiar positiva. Deverá ponderar-se o estudo genético molecular após a exclusão de causas estruturais de paraplegia espástica. Dada a heterogeneidade genotípica, NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 o estudo molecular deverá ser dirigido pela clínica e forma de hereditariedade subjacente. O estudo molecular do gene SPG4 deverá ser realizado em doentes com a forma pura de paraplegia espástica familiar autossómica dominante de início na idade adulta e o estudo do gene SPG3A em formas puras autossómicas dominantes de início na infância. Contudo, à semelhança do descrito neste caso clínico, em crianças afectadas em que há familiares com doença de início na idade adulta, deve solicitar-se o estudo molecular do gene SGP4, quer pela sua frequência quer pelo fenómeno de antecipação, que tem vindo a ser associado a esta forma de PEF. A disponibilidade de confirmar, em várias formas da doença, o diagnóstico clínico com o estudo genético molecular, permite oferecer a possibilidade de diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético pré-implantatório, quando a mutação, delecção ou duplicação causais são conhecidas. CONCLUSÃO O diagnóstico de paraplegia espástica familiar deve ser considerado em doentes com sintomatologia característica, nomeadamente fraqueza muscular e espasticidade limitadas aos membros inferiores, de evolução progressiva e insidiosa, e história familiar positiva. O diagnóstico molecular deverá ser dirigido pela clínica e formas de hereditariedade subjacentes a cada caso individualmente. São, contudo, necessários mais estudos que envolvam grande número de famílias, para esclarecer se o fenómeno de antecipação está de facto associado à PEF tipo 4 ou se se trata apenas de variabilidade fenotípica. HEREDITARY SPASTIC PARAPLEGIA TYPE 4 – ANTICIPATION OR PHENOTYPIC VARIABILITY? ABSTRACT Introduction: Hereditary spastic paraplegia is a heterogeneous group of inherited neurodegenerative diseases, with a prevalence of 2/100000 in the Portuguese population. It is mainly characterized by progressive and insidious spasticity of the lower limbs due to degeneration of corticospinal tracts. Case Report: We present a child with progressive spasticity and hyperreflexia of lower limbs, with several relatives of the paternal line with similar symptoms, suggesting the diagnosis of hereditary spastic paraplegia. A causing mutation of hereditary spastic paraplegia type 4 was identified in the proband. Conclusion: In this family, the age of onset varies from five to 50 years, and decreased in average 22,5 years over three generations. The clinical presentation and progression apparently tended to be more severe in successive generations, witch these suggests the phenomenon of anticipation. Keywords: Strümpell-Lorrain disease, hereditary spastic paraplegia, hereditary spastic paraplegia type 4, spastin, anticipation, phenotypic variability. BIBLIOGRAFIA 1. Dürr A, Tallaksen C, Depienne C. Spastic Paraplegia Type 4. Genereviews. 2009. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih. gov/books/NBK1160/ 2. Erichsen AK, Koht J, Stray-Pedersen A, Abdelnoor M, Tallaksen CM. Prevalence of hereditary ataxia and spastic paraplegia in southeast Norway: a population-based study. Brain 2009; 132: 1577-88. 3. Braschinsky M, Luus SM, Gross-Paju K, Haldre S. The prevalence of hereditary spastic paraplegia and the occurrence of SPG4 mutations in Estonia. Neuroepidemiology 2009; 32: 89-93. 4. McMonagle P, Webb S, Hutchinson M. The prevalence of “pure” autosomal dominant hereditary spastic paraparesis in the island of Ireland. J Neurol Neurosurg Psychiatry 2002; 72: 43-6. 5. Silva MC, Coutinho P, Pinheiro CD, Neves JM, Serrano P. Hereditary ataxias and spastic paraplegias: methodological aspects of a prevalence study in Portugal. J Clin Epidemiol 1997; 50: 1377-84. 6. McDermott CJ, Burness CE, Kirby J, Cox LE, Rao DG, Hewarnadduma C, et al. Clinical features of hereditary spastic paraplegia due to spastin mutation. Neurology 2006; 67: 45-51. 7. Dürr A, Davoine CS, Paternotte C, von Fellenberg J, Cogilinicean S, Coutinho P, et al. Phenotype of autosomal dominant spastic paraplegia linked to chromosome 2. Brain 1996; 119: 1487-96. 8. Santorelli FM, Patrono C, Fortini D, Tessa A, Comanducci G, Bertini E, et al. Intrafamilial variability in hereditary spastic paraplegia associated with an SPG4 gene mutation. Neurology 2000; 55: 702-5. 9. Reddy PL, Seltzer WK, Grewal RP. Possible anticipation in hereditary spastic paraplegia type 4 (SPG4). Can J Neurol Sci 2007; 34: 208-10. 10. Thurmon TF, He C, Haskell C, Thorpe P, Thurmon SG, Rosen DR. Genetic anticipation in a large family with pure autosomal dominant hereditary spastic paraplegia.Am J Med Genet 1999; 83: 392-6. 11. Raskind WH, Pericak-Vance MA, Lennon F, Wolff J, Lipe HP, Bird TD. Familial spastic paraparesis: evaluation of locus heterogeneity, anticipation, and haplotype mapping of the SPG4 locus on the short arm of chromosome 2. Am J Med Genet. 1997; 74: 26-36. 12. Fonknechten N, Manel D, Byrne P, Davoine CS, Cruaud C, Bönsch D, et al. Spectrum of SGP4 mutations in autosomal dominant spastic paraplegia. Hum Mol Genet 2000; 9: 637-44. 13. Rowland LP, Bird TD. Silver syndrome: The complexity of complicated hereditary spastic paraplegia. Neurology 2008; 70:1948-9. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 37-39 casos clínicos case reports 39 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Should neonates sleep alone? Morgan BE, Horn AR, Bergman NJ Biol Psychiatry 2011; 70: 817-25. ABSTRACT Background: Maternal-neonate separation (MNS) in mammals is a model for studying the effects of stress on the development and function of physiological systems. In contrast, for humans,MNSis a Western norm and standard medical practice. However, the physiological impact of this is unknown. The physiological stress-response is orchestrated by the autonomic nervous system and heart rate variability (HRV) is a means of quantifying autonomic nervous system activity. Heart rate variability is influenced by level of arousal, which can be accurately quantified during sleep. Sleep is also essential for optimal early brain development. Methods: To investigate the impact of MNS in humans, we measured HRV in 16 2-day-old full-term neonates sleeping in skin-to-skin contact with their mothers and sleeping alone, for 1 hour in each place, before discharge from hospital. Infant behavior was observed continuously and manually recorded COMENTÁRIOS Com uma semana de vida, os bebés precisam cerca de 16 horas de sono, repartidas em partes iguais entre o período da noite e do dia1(1). Contudo, diversos factores podem afectar a satisfação desta necessidade, e não é incomum o aparecimento de bebés com choro inconsolável e prolongado, uma das situações que maior stress coloca aos pais(2) e que pode perturbar a regulação do sono. Outro factor, é a qualidade da vinculação, sabendo-se que pode afectar a qualidade do sono e a homeostasia a atingir nos primeiros meses de vida. No trabalho de LifeBeijers(3), verificou-se que os bebés que tinham mais despertares no primeiro semestre, desenvolviam uma vinculação insegura-resistente aos 12 meses de vida, isto é, são crianças que têm dificuldade em se tranquilizar através da mãe, demonstrando em relação a esta busca de contacto e, simultaneamente, resistência a esse contacto. Um aspecto que tem sido também discutido quanto aos benefícios emocionais para os bebés, é o de dormirem ou não com os pais – co-sleeping, podendo significar, conforme os autores, dormir na mesma cama ou no mesmo quarto dos pais. Considerada como uma forma de dar segurança e expressar afecto, é uma prática comum, ainda que nem sempre referida pelos pais. 40 artigo recomendado recommended article according to a validated scale. Cardiac interbeat intervals and continuous electrocardiogram were recorded using two independent devices. Heart rate variability (taken only from sleep states to control for level of arousal) was analyzed in the frequency domain using a wavelet method. Results: Results show a 176% increase in autonomic activity and an 86% decrease in quiet sleep duration during MNS compared with skin-to-skin contact. Conclusions: Maternal-neonate separation is associated with a dramatic increase in HRV power, possibly indicative of central anxious autonomic arousal. Maternal-neonate separation also had a profoundly negative impact on quiet sleep duration. Maternal separation may be a stressor the human neonate is not well-evolved to cope with and may not be benign. Keywords: Heart rate variability, hidden regulators, maternal-neonate separation, skin-to-skin contact, sleep, stress. Têm sido relatados acidentes – de sufocação e estrangulamento - de crianças pequenas que dormiam na cama com adultos, pelo que é uma prática desaconselhada. Este assunto torna-se no entanto polémico, e tem relevância na norma da prática médica da separação do recém-nascido da mãe. Neste estudo, esta questão é analisada como possível factor gerador de stress no bebé, através das suas consequências sobre o sono e bem-estar. Foram estudados 16 recém-nascidos, que no seu segundo dia de vida, eram monitorizados com electrocardiograma contínuo, durante uma hora em duas diferentes condições de sono – em contacto pele-a-pele com a mãe, e num berço junto da cama da mãe. A variabilidade da frequência cardíaca foi o parâmetro escolhido para quantificar a actividade do Sistema Nervoso Autónomo, sistema envolvido nas respostas fisiológicas ao stress. Os resultados foram muito expressivos, demonstrando-se que na situação de co-sleeping, havia uma muito menor activação autonómica e uma proporção muito maior de sono profundo. Na situação de separação da mãe, os indicadores apontam para uma activação autonómica central ansiosa, com um impacto negativo na qualidade do sono. Conhecendo-se a importância do sono para o neurodesenvolvimento, e os efeitos prejudiciais sobre aquele da hormona NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 de libertação da corticotrofina, com uma interferência selectiva sobre o sono profundo, a activação das respostas autonómicas ao stress que este estudo confirmou, pode assim, e de modo indirecto, afectar o desenvolvimento cerebral. Neste estudo, os bebés separados da mãe, revelavam uma maior dificuldade para entrar numa fase de sono profundo, e quando o faziam, mantinham-no por menos tempo. O contacto pele-a-pele, tem também a capacidade de fazer terminar o choro do bebé, imediatamente após o parto e noutro estudo(4) verificou-se que tinha também um poder analgésico, durante o procedimento de recolha de sangue em recém-nascidos. Tendo em conta estes dados da pesquisa, é de admitir que as rotinas hospitalares poderão estar a interferir significativamente em importantes mecanismos inibitórios da activação de respostas ansiosas no recém-nascido, através da estimulação táctil e térmica no contacto pele-a-pele entre a mãe e o bebé. Deste modo, e apesar dos riscos conhecidos do co-sleeping, e tendo em conta as necessidades de repouso da mãe, será também importante ter em conta as características do recém-nascido, nomeadamente a sua propensão para reagir com stress fisiológico à separação da mãe, e poder proporcionar-lhe alguns períodos de contacto pele-a-pele com a mãe, num ritmo regular e diário. Maria do Carmo Santos1 Nascer e Crescer 2012; 21(1): 40-41 BIBLIOGRAFIA 1. Thiedke C. Sleep disorders and sleep problems in childhood. Am Fam Physician 2001; 63: 277-84. 2. Douglas P. Managing infants who cry excessively in the first few months of life. BMJ 2011; 343: d7772. 3. Beijers R, Jarno J, Riksen-Walraven M, de Weerth C. Attachment and infant night waking: A longitudinal study from birth through the first year of life. Journal of Developmental & Behavioral Pediatrics 2011; 32, 635-43. 4. Gray L, Watt L, Blass EM. Skin-to-skin contact is analgesic in healthy newborns. Pediatrics 2000; 105, e14. __________ 1 Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital Maria Pia / CH Porto artigo recomendado recommended article 41 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 O direito à saúde na União Europeia em perspectiva diacrónica: elementos para uma genealogia do artigo 35.º da CDFUE (cont.) Luís A. M. Menezes do Vale1 SUMÁRIO Nesta segunda parte do nosso estudo, prestamos atenção ao direito à saúde, tal como reconhecido no âmbito da UE, concentrando-nos no artigo 35º da CDFUE. E dado que esta norma prescreve (i) um direito, (ii) de solidariedade, (iii) à saúde - em que os Leitmotiven da Europa da Saúde, da Europa dos Direitos e da Europa Social parecem convergir e intersectar-se - o nosso objectivo vem a ser o de reconstituir as raízes históricas dessas três vertentes do projecto europeu, descrevendo os respectivos cursos evolutivos, enquanto afluentes que desaguam no artigo 35º, alimentando-o constantemente. Esperamos assim suscitar uma reflexão crítica, que abra novas possibilidades de evolução, ao fazer das marcas genéticas do artigo 35.º verdadeiros arrimos para repensar, imaginar, descobrir, projectar e realizar a contínua reconstrução crítico-regulativa do direito devotado à protecção e promoção da saúde na UE. Palavras-chave: Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; artigo 35º CDFUE; políticas da saúde; políticas sociais; direitos humanos e fundamentais. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 42-53 O DIREITO À SAÚDE NA UNIÃO EUROPEIA 1. As raízes do artigo 35º da CDFUE A UE consagra um direito (de solidariedade) à saúde no artigo 35.º da CDFUE. Vale isto por dizer que, à semelhança do que sucede nos planos jusinternacionais universal e regional, geral e sectorial (ONU, CE, OMS), também no contexto do sistema jurídico da União, o direito à saúde assinala uma profícua intersecção da socialidade com a jusfundamentalidade e a tutela da saúde propriamente dita. Ora, pressupostos estes três referentes e os seus desdobramentos históricos, resulta delimitado o tema (saúde), afinada a perspectiva (de direitos humanos) e indicado o pendor ou a tónica (socializante) da nossa reflexão sobre o artigo 35º. __________ 1 Mestre em Direito, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 42 perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 1.1. A Europa da Saúde 1.1.1. A saúde na UE O Tratado da CEE começou por não conferir poderes específicos à comunidade europeia em matéria de saúde1. Ao abrigo do Tratado de Roma, a protecção da saúde pública não figurava no direito primário como uma missão comunitária, nem como uma acção per se, tendo apenas lugar através das directivas sobre política sanitária progressivamente adoptadas e aparecendo, por norma, sob a alçada da liberdade de circulação de mercadorias. No demais, as preocupações reportavam-se à protecção social de trabalhadores migrantes e respectivas famílias, cujos seguros de saúde e acesso aos cuidados sanitários precisavam de ser garantidos, de modo a permitir a liberdade de circulação do factor trabalho. As primeiras grandes alterações foram introduzidas com o Tratado de Maastricht, no qual se consagrou um mandato genérico da UE em matéria de saúde (no então artigo 129º), criando condições propícias ao desenvolvimento de uma política comunitária para o sector, se bem que marginal (flanking policy). Acresce que os artigos 2º e 3º foram modificados de maneira a incluir uma menção à melhoria da qualidade de vida entre as tarefas comunitárias e a integrar o concurso para a obtenção de um elevado nível de saúde no lote das actividades a desenvolver pela comunidade. Contudo, a competência comunitária permaneceu reservada a questões de saúde pública, enquanto os direitos individuais relativos à saúde resultavam indirectamente protegidos no contexto da liberdade de movimento. Com efeito, embora não recebessem protecção a nível comunitário, a liberdade de circulação de bens e serviços (prestados e recebidos) e a liberdade de estabelecimento permitiram a atribuição de direitos relativos à saúde, como o de adquirir produtos médicos noutro Estado-Membro (Acordão Decker), de receber tratamento médico além-fronteiras (Acordão Kohl) ou de desenvolver actividade médico-profissional num outro país da UE (Directiva 93/16/CEE sobre a livre circulação de médicos e o reconhecimento mútuo dos seus diplomas, certificados e outros comprovativos das qualificações formais). O mesmo vale por dizer que se confiava aos Estados-Membros a competência para a organização dos respectivos sistemas de saúde e de segurança social, cabendo-lhes determinar NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 as condições de acesso aos cuidados e às prestações sociais e o âmbito de cobertura dos sistemas, e regular as relações médico-paciente e outras questões médicas correlacionadas, como as que se prendem com a eutanásia ou a medicina reprodutiva. O cenário começou a alterar-se mais rápida e significativamente já ao abrigo do Tratado de Amesterdão e do seu insípido sucessor, assinado em Nice. De facto, com o dealbar do século, em resultado de um debate lançado pela Comissão [Comunicação da Comissão sobre a evolução da política em matéria de saúde pública (15/04/1998)] e da experiência já adquirida com programas de acção e actividades anteriores, iniciou-se uma nova fase no tratamento europeu da saúde, marcada pelo propósito de conceber e levar à prática uma estratégia global integrada no sector. Definiu-se um novo quadro de acção no domínio da saúde pública até 2008 (que incluía um novo programa de acção, no lugar dos antigos programas especializados) e uma estratégia geral da comunidade em matéria de saúde (que obrigava a uma integração com as iniciativas adoptadas nas políticas relativas ao mercado único, à protecção social, ao emprego e ao ambiente). Uma Comunicação da Comissão, de Maio de 2000, veio apelar à concentração dos recursos da União naqueles aspectos em que a intervenção comunitária pudesse trazer um valor adicional efectivo, sem duplicar esforços que os Estados- Membros, ou até certas organizações internacionais, se achassem em melhores condições de empreender. Em Dezembro de 2001 a Comissão Europeia deu o seu acordo a uma análise da provisão de cuidados de saúde e de cuidados para os mais idosos, na qual se concluiu que, embora diferentes - em termos de desenho, prestação e financiamento - os sistemas nacionais estão confrontados com desafios semelhantes. Em consequência, apontaramse-lhes três objectivos comuns: acesso aos cuidados de saúde, qualidade, e sustentabilidade. A Comunicação em apreço tem de ser vista em conexão com as conclusões do Conselho Europeu de Lisboa, que teve lugar em Março de 2000, e da Cimeira de Gotemburgo, realizada em Janeiro de 2001, durante os quais se lançou um apelo à modernização dos sistemas de protecção social na União Europeia e se exigiu a preparação de um relatório progressivo e de guidelines no campo dos cuidados de saúde. Em 2002, foram estabelecidas directrizes políticas gerais neste campo, através do novo conceito de Europa da Saúde, e, para reforçar o combate às ameaças de saúde, criou-se o Centro Europeu para a prevenção e Controlo de Doenças, que, desde então, vem desenvolvendo meritórias acções de cooperação transfronteiriça, no tocante aos sistemas de saúde e às determinantes de saúde. O Sistema de Informação da Saúde também foi chamado a desempenhar uma função nuclear na nova atitude de consciencialização europeia neste domínio, enquanto com o Fórum Europeu de Saúde se visou permitir a participação dos diferentes agentes de saúde pública na elaboração das políticas do sector. Em 15 de Julho de 2004, a Comissão lançou um Processo de reflexão acerca da promoção da saúde para todos, no âmbito da revisão da Estratégia de Saúde, definida em 2000. Foram convidados grupos de interesse, instituições públicas e cidadãos individuais, tendo-se gerado um aceso debate, que extravasou das fronteiras comunitárias, para envolver diálogos com países como a Noruega e a Suíça, os EUA e Israel. A 23 de Outubro de 2007, a Comissão Europeia adoptou uma Nova Estratégia de Saúde, designada “Together for Health: A Strategic Approach for the EU 2008-2013”, cuja intenção pioneira consistia em fornecer um enquadramento estratégico abrangente às questões nucleares da saúde e demais aspectos que, no âmbito de outras políticas sectoriais, com elas contendam. Para o efeito, propôs-se estabelecer objectivos claros, orientadores dos futuros trabalhos a nível europeu, e pôr de pé um mecanismo de implementação que garantisse a respectiva consecução, em parceria com os Estados-Membros. Segundo os responsáveis da União, a Estratégia, ainda em vigor, encontra-se focada em quatro princípios e três temas estratégicos. Os princípios requerem: uma abordagem axiológica (baseada na universalidade, no acesso a cuidados de saúde de qualidade, na equidade e na solidariedade, - fazendo, assim, da capacitação dos indivíduos, da redução das desigualdades evitáveis e injustas e da comprovação científica da qualidade tarefas verdadeiramente fundamentais); o reconhecimento das conexões entre a saúde e a prosperidade económica (assumindo o lema virgiliano de que a saúde é a maior riqueza, de modo a encarar as despesas no sector como um investimento na prevenção de custos futuros e nos factores de uma maior prosperidade); a integração da saúde em todas as políticas (uma vez que as condições de saúde se encontrarem na dependência de uma multiplicidade de factores); e o reforço do papel da UE no debate sobre a saúde global (conferindo-lhe um papel de liderança na matéria). Por seu turno, os objectivos estratégicos incluem: a Promoção da Boa Saúde numa Europa em Envelhecimento; a Protecção dos Cidadãos face às Ameaças à Saúde e a Dinâmica dos Sistemas de Saúde e Novas Tecnologias. A União mostra-se particularmente cuidadosa com a forma como as políticas de saúde são definidas, levadas a cabo e monitorizadas, e excogitou já alguns mecanismos de consideração do seu impacto, como é o caso das Commission’s integrated impact assessment guidelines. Sobressai também, neste âmbito, o trabalho realizado pelo Grupo de Alto Nível sobre os Cuidados de Saúde e Cuidados Médicos - um conjunto de peritos, criado na sequência da Comunicação da Comissão de 20 de Abril de 2004 e que iniciou funções em Julho do mesmo ano. A sua actividade cobre sete áreas: aquisição e provisão de cuidados de saúde além-fronteiras, profissionais de saúde, centros de referência, avaliação da tecnologia de saúde, informação e “e-saúde”, impacto da saúde e sistemas de saúde e segurança dos pacientes), tendo concorrido igualmente para outros perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 43 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 trabalhos relevantes em matéria de saúde e cuidados médicos, como é o caso do Método Aberto de Cooperação2 em cuidados de saúde e cuidados de longa duração, delineado pela Comissão em 2004. A evolução não parou desde então, assistindo-se, nomeadamente, à reforma do regime instituído pelo Regulamento 1408/71, à introdução do Cartão da Saúde, ao desenvolvimento de novos programas e estratégias da UE (como o Programa comunitário no campo da protecção do consumidor e da saúde), ao lançamento da Carta Europeia dos Direitos dos Pacientes e ao delineamento mais aturado dos serviços de interesse geral (de índole económica ou propriamente social)3. Em 20 de Outubro de 2009, em resultado do trabalho conjunto dos comissários responsáveis pelas áreas da saúde e da política social, a Comissão produziu uma Comunicação designada «Solidariedade na saúde: reduzir as desigualdades no domínio da saúde na União Europeia» [COM (2009), 567], que apontava uma série de objectivos ambiciosos: integrar a ideia de distribuição equitativa na noção de desenvolvimento económico e social geral; melhorar as formas de colaboração com os Estados-Membros, os diversos stakeholders e as regiões; aumentar o apoio da União à investigação sobre as desigualdades na saúde; organizar auditorias às políticas para verificar do seu impacto na redução das desigualdades de saúde; incentivar o Estados-Membros a utilizarem melhor a política de coesão, os fundos estruturais e a política de desenvolvimento rural, para influenciarem positivamente as principais determinantes da desigualdade na saúde; dirigir actividades a certos grupos vulneráveis (como minorias étnicas, migrantes e ciganos); explorar as possibilidades de uma combinação fecunda da ajuda ao desenvolvimento da Comissão com o trabalho sobre as desigualdades na saúde; melhorar a aferição e o controlo das desigualdades na saúde, prevendo-se que o primeiro relatório seja publicado em 20124. Já em 2011, a Directiva sobre os cuidados de saúde transfronteiriços [Directiva 2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Março de 2011 (JO L88/46 de 4.4.2011)] veio prescrever um conjunto de regras acerca da autorização e reembolso da prestação de cuidados ou aquisição de produtos de saúde num Estado-Membro diferente do Estado-de-afiliação, tendo aproveitado para fazer um ponto de situação em matéria de tratamento jurídico da saúde no seio da União. Com efeito, aclarou as relações da nova legislação com o sistema dogmático em que deverá integrarse e forneceu mesmo um conjunto de noções que, apesar de terem um significado meramente funcional (por restrito ao âmbito e à finalidade do novo diploma), de modo algum devem ver subestimada a sua valia (pelo menos, heurística). Institui-se agora um regime dual, uma vez que o Regulamento 1408/71 continua a aplicar-se, com as alterações entretanto sofridas, aos casos para que foi inicialmente pensado. Basicamente, o Estado-de-tratamento fica impedido de discriminar os cidadãos de outros Estados-Membros no acesso 44 perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics à saúde e o Estado-de-afiliação proibido de discriminar os cuidados transfronteiriços em matéria de reembolso, a não ser mediante a introdução de restrições com algum dos fundamentos indicados na directiva. No entanto, a autorização prévia passa a ser excepção em vez de regra, indicando-se os casos em que é permitida, e as razões admissíveis para a sua recusa (cf. art. 8º). Actualmente as atribuições em matéria de saúde estão ancoradas no artigo 152º (título XIII) do TUE (consagrado à saúde pública), que não confere à UE senão poderes funcionais para agir em complemento das políticas nacionais, na realização de um nível elevado de protecção da saúde (art. 3º). As competências na matéria pertencem, pois, em princípio, aos Estados-Membros, prevendo o §2 uma coordenação dos seus programas e políticas e uma competência partilhada, quanto à legiferação sobre assuntos comuns (de segurança, saúde pública e melhoria da saúde humana), que requer da UE uma mera acção de apoio, coordenação ou complemento. De um modo muito particular, há-de reparar-se que a União respeita plenamente as responsabilidades dos Estados-Membros em matéria de organização e fornecimento dos serviços de saúde e cuidados médicos. a) Conclui-se do exposto que, no âmbito das diferentes políticas e práticas públicas5 adoptadas nas muitas áreas do sector6, as principais instituições comunitárias - desde a Comissão Europeia ao Conselho, passando pelo PE (com destaque para as Comissões Parlamentares do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar) e pelos órgãos consultivos (como o Conselho Económico Social), sem falar nas inúmeras agências especializadas (EMEA, ECDC, EFSA, PHEA, etc.) - tiveram já ocasiões de sobejo para se pronunciarem sobre (ou interferirem n’)a saúde (e sua defesa, protecção e realização jurídicas), no exercício das respectivas competências (exclusivas, partilhadas com os Estados-Membros ou de complemento, coordenação e apoio das políticas e acções destes últimos), com vista à realização das atribuições que lhes estão cometidas, e desencadeando, desta feita, uma considerável panóplia de efeitos, com extensão e intensidade diferenciadas7, em redor de um conjunto de intenções precípuas, escoradas nas fundações axiológiconormativas da UE. Neste último caso, pensamos no acervo de valores e princípios considerados comuns aos diferentes sistemas de saúde da UE, talqualmente foram proclamados pelo Conselho e convocados em diversas estratégias e em intervenções normativas no sector8. Entre os valores contam-se a universalidade, a solidariedade e a equidade. Quanto aos princípios de funcionamento ou operativos - que todos os cidadãos esperam poder encontrar em qualquer sistema de saúde da UE - incluem a qualidade, a segurança, a confidencialidade, a participação dos pacientes, o acesso à justiça e a exigência de uma base ética e empiricamente rigorosa para a acção. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 1.1.2. O direito da saúde na UE9 No enquadramento assim definido, a União Europeia tem procurado objectivar normativo-juridicamente as suas fundações axiológicas gerais e os princípios normativos que as precipitam, aos mais diferentes níveis e sob diversas formas e meios, desta feita permeando a multifacetada actuação desenvolvida, na esfera social vertente, pelos actores, em redor dos temas e com os efeitos mencionados. De modo meramente epitomático, destacaríamos, ao nível do direito material primário, os artigos 2º, 3º, 5º, e 6º do TUE, que vertem efeitos importantes sobre a matéria, bem como os dispositivos 9º, 16º, 18º, 56º, 57º e 168º do TFUE, sem esquecer obviamente os preceitos números 1, 2, 3, 8, 20 a 26 e 31 da CDFUE, que se referem explícita ou implicitamente à saúde. No que concerne ao direito secundário, multiplicam-se os diplomas de uniformização e harmonização, a que se somam ainda os actos jurídicos (normativos ou não) e para-jurídicos dos principais órgãos e instituições europeias, como sejam as Resoluções do Parlamento, as Conclusões do Conselho, as Comunicações da Comissão ou as Opiniões e Pareceres do Comité Económico e Social Europeu. O activismo e construtivismo dos tribunais, que têm lentamente cerzido a malha normativa sustentadora da ordem jurídica da União, bem como da policy que sobre ela se edifica, não estiveram ausentes da esfera da saúde10, restando bem patente o seu contributo para a densificação do direito e política europeias do sector através de uma série de arestos famosos (Duphar, Kohl, Decker, Smits e Peerbooms, Vanbraeckel, Keller, Watts, Acereda Herrera, Stamatelaki, Elchinov)11. Naturalmente que à solidez da jurisprudência judicial da União não é alheio o concurso doutrinal dos advogados gerais, em cujas alegações não raro se descobrem importantes critérios de jurisprudência dogmática, que acrescem às elucubrações e modelos prático-normativos desenvolvidos por muitos outros especialistas, no labor de disquisição e redensificação do direito social comunitário, seja na vertente da saúde pública, seja a respeito da realização de um elevado nível de protecção de saúde, seja do acesso à prevenção e aos cuidados comunitários (o mesmo é dizer, no que respeita às várias facetas do direito à saúde, talqualmente recortado pelo artigo 35º da Carta dos Direitos Fundamentais e sem prejuízo das muitas outras normas da UE que reverberam no tratamento jurídico da saúde). Contudo, a perspectivação jusfundamental da saúde requer uma alusão, ainda que brevíssima, à ligação da UE com a agenda dos direitos fundamentais. De facto, se nem tudo na protecção da saúde são direitos, a verdade é que o artigo 35º emerge de uma Carta de Direitos Fundamentais e utiliza expressamente a linguagem dos direitos na sua abordagem à tutela da saúde pelo direito. 1.2. Os direitos fundamentais na UE 1.2.1. Das origens à CDFUE12 Como consabido, a UE nasceu sob o signo das liberdades económicas funcionalizadas à constituição de um mercado comum. No entanto, o lastro cultural da jusfundamentalidade, bem vincado em muitos países europeus e cada vez mais emulado no plano internacional, dificilmente poderia deixar a UE indiferente, tendo conduzido a um acolhimento progressivo dos direitos fundamentais no seu seio. Todavia, o reconhecimento e promoção desse património civilizacional começou por ser sobretudo obra dos tribunais, não obstante algumas iniciativas desgarradas por parte de outras instituições comunitárias [como a Declaração Conjunta do Parlamento, da Comissão e do Conselho sobre a protecção de direitos fundamentais, de 05.04.197713]. De facto, ultrapassada uma primeira fase em que se recusava pura e simplesmente a aferir a validade do direito comunitário pelos direitos fundamentais, a jurisprudência comunitária evoluiu para uma assimilação destes últimos a princípios gerais de direito - cujo respeito incumbiria aos tribunais assegurar (casos Stauder e Internationale Handelsgesellschaft) -, passando, mais tarde (a partir do famoso aresto Nold), a pressupor e equacionar, nos seus juízos, a CEDH e os instrumentos de direito internacional pertinentes. A recepção das soluções jurisprudenciais pelo direito originário ocorreu gradualmente a partir do Acto Único Europeu (no seu preâmbulo) e sobretudo com o Tratado de Maastricht (nos então artigos F, n.º 2, J, n.º 2 e K, n.º 1). O Tratado de Amesterdão referiu-se-lhes expressamente no artigo 6.º, n.º 2. No ínterim, tinham-se multiplicado já as Resoluções sobre o assunto; porém, nas vésperas da proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais, sendo certo que se reconheciam os direitos fundamentais como bases axiológicas da UE, nos termos dos artigos 6º, n.º1 e 7º do TUE, continuava ausente um catálogo de direitos fundamentais próprios da União, faltando-lhe igualmente a competência para aderir à CEDH. 1.2.2. A CDFUE14 a) A Carta dos Direitos Fundamentais resultou de uma iniciativa da presidência alemã, que procurou tirar as devidas consequências da panóplia de relatórios sobre direitos humanos, encomendados pela UE, no final dos anos 90. Acabou por ver a luz do dia sob a forma de uma solene proclamação do Parlamento, Conselho e Comissão, pelo que não constituía inicialmente mais do que uma manifestação de soft law, influenciando o direito da União apenas de modo indirecto. Todavia, considerou-se ab initio que incorporava e exprimia princípios gerais pré-existentes no direito da União, defendendo-se inclusive a sua utilização como critério interpretativo. Para além disso, à importância da clarificação normativa operada, juntava-se o impacto simbólico do diploma, tanto mais que se descortinava no preâmbulo um certo compromisso com a vocação constitucionalizante que o direito comunitário vinha assumindo. Com efeito, não só o mesmo se refere explicitamente aos povos da Europa (no lugar das usuais altas partes contratantes), como coloca declaradamente o ser humano no centro da sua acção e vê nas pessoas, individualmente consideradas, na comunidade humana e nas gerações futuras, titulares de responsabilidades e deveres derivados do gozo dos direitos que enuncia (Ana M. Guerra Martins). Por tudo o que nos parece avisado esmiuçar - ainda que apenas ligeiramente - a génese, fundamentos e justificação, fontes e conteúdo, procedimento de elaboração e ulterior evolução da CDFUE. perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 45 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 b) A decisão de criação de uma Carta dos Direitos Fundamentais foi tomada no Conselho Europeu de Colónia, de 3 e 4 de Junho de 1999. Na sua Conclusão n.º 44, o Conselho preconizou o carácter ou intenção meramente declarativa e não constitutiva do documento, e, na Conclusão seguinte, incumbiu a presidência europeia de criar as condições de implementação da decisão, até à realização do Conselho Europeu extraordinário de Tampere, agendado para 15 e 16 de Outubro de 1999. Nessa altura, o Conselho definiu a composição e estabeleceu os métodos de trabalho do corpo responsável pela redacção do esboço da Carta, o qual viria a receber o nome de Convenção (tendo o seu gabinete sido denominado de Presidium). A 13 de Setembro de 2000, a Comissão Europeia publicou a sua primeira Comunicação sobre o esquiço da Carta, subscrevendo genericamente o seu conteúdo, apesar de sugerir algumas modificações pontuais; porém, a 11 de Outubro, numa segunda Comunicação, optou por uma posição mais pragmática quanto à respectiva natureza jurídica. Por fim, no Conselho Europeu de Biarritz (13-14 de Outubro) a versão provisória da Carta foi unanimemente aprovada e remetida para o Parlamento e a Comissão, tendo obtido a concordância do primeiro em 14 de Novembro de 2000 e a aprovação da segunda em 6 de Dezembro do mesmo ano. Seguiu-se a assinatura pelos Presidentes do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão, que proclamaram a Carta em nome das respectivas instituições, a 7 de Dezembro, em Nice. c) A elaboração da Carta primou pela pluralidade dos participantes e a transparência dos procedimentos. Além de representantes dos Chefes de Estado e de Governo, dos membros do Parlamento Europeu e dos Parlamentos Nacionais e de um Comissário europeu, estiveram presentes observadores do Tribunal Europeu de Justiça, e recolheram-se as visões dos enviados do Comité dos DESC, do Comité das Regiões, de vários grupos sociais e de especialistas. Os serviços de secretariado foram assegurados pelo Secretariado-Geral do Conselho. Além disso, a Convenção criou propositadamente um sítio electrónico para divulgar os materiais que analisou, os documentos que produziu e as diversas versões provisórias da Carta que discutiu, e manteve as sessões de reunião abertas a todas as pessoas, levando em conta as críticas de muitas ONG’s (mais de 70 associações estiveram envolvidas) e as opiniões das instituições públicas interessadas (stakeholders). d) Com a Carta, a protecção dos direitos fundamentais foi genericamente elevada a princípio fundador e requisito indispensável de legitimidade da UE, reconhecendo-se assim a obrigação jurídica de respeitá-los – nos termos previamente definidos e casuisticamente consolidados pela jurisprudência do Tribunal Europeu de Justiça. Todavia, o novo Diploma nasceu apenas com o modesto ensejo de tornar evidentes os direitos que já faziam parte do património comum dos europeus, numa homenagem mais à segurança jurídica do que à justiça, o que aumentou as dúvidas acerca do preciso alcance da sua validade e eficácia, mormente quando estivesse em causa a deficitária dimensão social da construção europeia (os direitos de entono social ou a sua refracção sobre as políticas sociais da União). 46 perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics e) Ainda assim, pretendeu-se que dela constassem os direitos fundamentais: (i) garantidos pela CEDH, (ii) derivados das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros (na qualidade de princípios gerais de direito comunitário), e (iii) exclusivos dos cidadãos da União. No que concerne aos direitos económicos e sociais contidos na CSE e na Carta dos Direitos dos Trabalhadores, deviam ser igualmente levados em conta, na medida em que não se limitassem a estabelecer objectivos para a acção da União. A CDFUE não visou, pois, a criação de direitos novos, preferindo remeter a determinação do sentido das suas provisões para a CEDH e a jurisprudência do TEDH, tomadas como standards de referência. Apesar de tudo, trouxe algumas novidades relativamente àqueles parâmetros de referência: o artigo 5º acrescentou a proibição de tráfico humano à proibição de escravatura e trabalho forçado; o artigo 10º juntou o direito à objecção de consciência à liberdade de pensamento, consciência e religião. Por sua vez, os artigos 3º e 8º responderam aos avanços tecnológicos e científicos e às ameaças que colocam aos indivíduos (o primeiro, proibindo a clonagem reprodutiva de seres humanos, e o segundo, referindo-se aos dados pessoais). No que toca aos direitos sociais, os obstáculos a superar eram bem maiores. A Carta não quis desempenhar a seu respeito nem um papel propriamente de reforço, nem muito menos a função de um verdadeiro trampolim, instituindo, no entanto, uma nova plataforma de estabilização, que possui o ambivalente significado de todos os limiares. Também quanto à saúde o Estado de Direito a nível internacional não mudou com a Carta: como é óbvio, não se consagra um direito a ter saúde, mas um direito à saúde, cingido ao acesso à prevenção em matéria de saúde e aos cuidados médicos, talqualmente previstos nas legislações nacionais. f) A verdade, pois, é que a CDFUE deixara muitos problemas por resolver. Daí que, um ano depois, o Conselho Europeu tenha reunido em Laeken, na Bélgica, acordando uma convenção sobre o futuro europeu, para decidir se a Carta deveria ser incluída no direito da UE e se esta deveria assinar a CEDH. Entretanto, estavam em curso os procedimentos para a redacção de uma Constituição Europeia, que viria a ser concluída e submetida ao Presidente do Conselho Europeu a 10 de Julho de 2003. Entrementes, a Convenção Europeia responsável pela elaboração do Tratado estabelecendo uma constituição para a Europa decidiu incorporar a CDFUE no texto constitucional. Em 18 de Julho de 2003, o Chairman da Convenção Europeia entregou a versão completa do Tratado à presidência italiana do Conselho Europeu, solicitando-lhe a condução de discussões produtivas acerca do projecto, de modo a que pudesse reunir o consenso de todos os Estados-Membros. A 31 de Dezembro, no final da presidência italiana, faltava ainda um acordo final sobre o projecto, tendo entretanto sido introduzidas algumas emendas, designadamente com a adição de um par de parágrafos ao Preâmbulo e de alguns aditamentos aos artigos acerca das provisões gerais da Carta. No Conclave Ministerial de Nápoles (CIG 2003), tocou-se mesmo na saúde pública, em alguns aspectos da cláusula de solidariedade e no problema da adesão à CEDH. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Mal assumiu a presidência, a 1 de Janeiro de 2004, a Irlanda tomou a seu cargo a prossecução das tarefas. Em 17 e 18 de Junho de 2004, chegou-se finalmente a um entendimento quanto ao Projecto de Tratado, do qual efectivamente passava a constar a Carta dos Direitos Fundamentais. No entanto, como se sabe, o processo de ratificação da Constituição europeia ficou bloqueado no momento da aprovação pelos Estados-Membros, face às recusas francesa e irlandesa. A Constituição acabou por ser afastada, surgindo, em seu lugar, depois de uma longa travessia do deserto, o Tratado de Lisboa de 2009 (que estava longe de ser a Terra Prometida, como se tornou evidente…). Na verdade, o Mandato de 2007 e o resultado final obtido na capital portuguesa distanciavam-se bastante do anterior projecto constitucional. No que concerne à CDFUE, em vez de incorporada, foi objecto de proclamação solene e assinatura formal (com algumas emendas menores), em Estrasburgo, a 12 de Dezembro de 2007, pelos Presidentes do PE, do Conselho e da Comissão e publicada depois no jornal oficial (na véspera da assinatura do Tratado de Lisboa), sendo-lhe atribuído valor jurídico equiparado ao dos tratados constitutivos (artigo 6.º). 1.3. A Europa Social 1.3.1. A socialidade na UE: políticas, direito e direitos Não merece disputa que os objectivos primordiais da Euratom, da CECA e da CEE tinham um cariz essencialmente económico. As instituições comunitárias originárias achavam-se desprovidas de competências em matéria social, considerada da exclusiva regedoria dos Estados-Membros. No momento de arranque da União, o Tratado de Paris era sem dúvida o mais generoso do ponto de vista social, já que incluía disposições sobre a liberdade de acesso ao trabalho, a readaptação dos trabalhadores e o fomento do emprego. Por seu turno, o Tratado Euratom limitava-se a estabelecer algumas condições de segurança para a vida e a saúde dos trabalhadores. Já o Tratado de Roma continha normas de direito social comunitário (artigos 48º a 51º) e alguns programas de política social (como sucedia com os previstos nos dois capítulos do Título III); as primeiras criavam obrigações jurídicas para os Estados-Membros relativamente aos trabalhadores comunitários, garantidas pela Comissão e fomentadas pelo Fundo Social Europeu; as segundas pressupunham um modelo de cooperação interestadual apontado à instituição de melhores condições de vida e trabalho no contexto do mercado comum, e conducente a uma gradual harmonização dos sistemas sociais e à aproximação dos sistemas jurídicos nacionais. Em geral, o embrionário direito social comunitário servia somente para formalizar, de modo muito limitado e precário, alguns direitos sociais, sempre instrumentalizados à garantia da liberdade de circulação dos trabalhadores e respectivas exigências sociais, com o objectivo último de evitar distorções no mercado comum (v.g. que lhe diminuíssem a eficiência ou perturbassem a estabilidade funcional); quanto à política social, visava apenas impulsionar a harmonização das políticas estatais e orientar os comportamentos das instituições e interlocutores sociais, com o propósito de remover obstáculos à concorrência, facilitando a mobilidade do factor trabalho. O lento vagão da socialidade europeia continuava atrelado à locomotiva económica, que corria por calhas da política e do direito, forjadas à sua medida. Os escassos programas, políticas e directivas sociais da época não chegavam para vencer a tibieza política e a parcimónia da regulação jurídica no tocante à socialidade e aos direitos sociais, que, por isso, permaneceram marginais e consequenciais, evoluindo por tímido arrastamento. Nos anos 70 ainda se esboçou uma aproximação ao tema, através das garantias instituídas pelas directivas sobre a igualdade, mas, em rigor, parece justo afiançar que, até ao presente século, só por duas vezes o processo de integração indiciou intenções de conferir à comunidade uma dimensão social de maior envergadura: em 1989, com a Carta dos Trabalhadores, e, em 2000, mediante a tutela autónoma de direitos sociais no capítulo que a CDFUE devotou à solidariedade. Claro que a doutrina há muito denunciava este deficit social e que os próprios tribunais vinham urdindo a sua teia, bem mais do que larvar: tendo começado por não aceitar que os argumentos sociais de natureza económica pudessem justificar regulações nacionais com consequências restritivas para a livre circulação em geral (e especialmente de mercadorias), a jurisprudência foi aos poucos concedendo dignidade jurídica às razões fundadas na solidariedade e na igualdade sociais; a ponto de alguns especialistas entenderem que, antes mesmo da viragem do milénio, se havia já formado um núcleo duro de garantias sociais, construídas a partir do princípio da não discriminação e das exigências de justiça distributiva e social. 1.3.2. Da política ao direito social Em 1986, na esteira de vários programas sociais (19741980 e 1980-1986), o Acto único Europeu lançou o desafio de conferir ao Mercado Interno uma dimensão social e assegurar a coesão económica e social. Todavia, segundo Catherine Goybet, é a partir de 92 que a questão social adquire uma nova centralidade na Europa. A acta final do Tratado de Maastricht trouxe consigo três importantes protocolos sobre o assunto: o n.º 3, relativo ao artigo 119º do TCE, o n.º 14 acerca da política social, e o n.º 15, dedicado à coesão económica e social. Apesar do boicote da Inglaterra e da Irlanda, que preferiram manter-se à margem, o protocolo 14 significou um efectivo aprofundamento da Europa Social, ao incorporar como acervo a Carta Social Comunitária dos Trabalhadores e ao instigar à sua efectivação, através das instituições, mecanismos e medidas oferecidas pelo Tratado. Mais tarde, com o Tratado de Amesterdão, a Inglaterra aceitou finalmente o Protocolo sobre política social, assegurando uma maior coesão europeia no que toca aos planos de desenvolvimento da União. Por outro lado, o protocolo e acordo anexos sobre a política social foram integrados no TCE, cometendo aos Estados e à UE a prossecução dos objectivos sociais neles fixados, no quadro definido pela Carta Social de Turim (entretanto revista), e pela Carta de Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores. A grande inovação do Tratado consistiu, porém, na previsão de uma política de emprego, correspondente ao Título perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 47 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 VII e que, colocada ao serviço da realização dos objectivos definidos no artigo 2.º do TUE, visava constituir um terceiro elemento estratégico da futura União, a par das dimensões económicas e monetárias. Por outro lado, graças aos artigos 6.º e 7.º, parecia encetar-se um caminho conducente à consideração dos direitos sociais como verdadeiros direitos fundamentais da União. Contudo, refreando um pouco os ânimos, Nice representou um certo abrandamento da dinâmica de progresso social (paulatina que fosse), a despeito de ter dado lugar à definição da Agenda Social Europeia para 2000 e à formalização dos direitos de solidariedade na Carta dos Direitos Fundamentais. Com efeito, o elan dava mostras de enfraquecer, como de resto se confirmou aquando das vicissitudes atravessadas pelo Tratado Constitucional (por complexas e contraditórias que sejam as causas do seu insucesso). De algum modo, escutou-se o canto de cisne das perspectivas mais optimistas, enquanto as divergências mais ou menos latentes quanto ao modelo social europeu, aos conteúdos do social e ao próprio ritmo dos avanços sociais intumesceram, rebentando em conflitos abertos. Como a Agenda Social parecesse menos preocupada com uma política social global do que com as questões de género, a luta contra a pobreza e exclusão social e a garantia das condições de trabalho e envolvimento dos trabalhadores nas transformações laborais em curso, a segurança social permaneceu remetida aos Estados-Membros, confiando-se na cooperação inter-estatal para fazer face às necessidades de modernização detectadas. Em 2001, a cimeira de chefes de Estado e de Governo da União ainda tocou a reunir em torno de um projectado novo modelo social europeu, segundo um triângulo estratégico constituído por políticas económicas, sociais e de emprego; mas perdera-se muito do fôlego anterior. Não se imaginava ainda a crise do final da primeira década do novo século, que hoje nos força a rever o próprio projecto europeu, quiçá lamentando a desvalorização do ideal de desenvolvimento (social e economicamente) sustentável que constituía uma das suas grandes promissões... Oficialmente, a União reconhece ainda a existência de três grandes modelos sociais (numa tipologia que, infelizmente, pouco aproveita da profundidade dos estudos há muito desenvolvidos por Gosta Espin-Andersen e complementados, com especial acutilância no que toca aos países meridionais, por Maurizio Ferrera). Fala-se, portanto, em modelo liberal, modelo meridional (da Europa do sul) e modelo moderado, usando como critério o grau e extensão da constitucionalização dos direitos sociais que seria praticamente nula no primeiro caso, global no segundo e intermédia no terceiro. 1.3.3. Do direito social aos direitos sociais 1.3.3.1. Evolução Como vimos, apesar de quanto dispunha nos seus artigos 117º a 119º, o Tratado de Roma secundarizava quaisquer arremedos de direitos sociais relativamente ao desiderato de integração económica. A socialidade só encontrava algum abrigo nos artigos 2º, 6º e 7º do TUE, relativos aos objectivos da União e aos direitos fundamentais. Já o TCE consagrava os artigos 2º e 3º à igualdade e o 13º à proibição de discriminação e devotava 48 perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics todo um capítulo (136º a 153º) às políticas e aos direitos económicos e sociais, cuidando ainda do meio ambiente nos artigos 174º a 176º. A Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 9 de Dezembro de 1989, representou, por isso, um marco no reconhecimento dos direitos sociais, em que pese o seu valor meramente simbólico e a debilidade provocada pela exclusão do Reino Unido. De feito, a Carta continha direitos individuais e colectivos, de prestação e não auto-exequíveis, que podiam ser lidos como um acervo de princípios sociais mínimos correspondentes a conquistas da história política europeia, e que exortavam a um reforço dos compromissos sociais da UE. Uma finalidade para que apontara o Preâmbulo do próprio Acto Único ao referir-se à Carta Social Europeia de Turim. Ainda assim, no cenário descrito, foi sobretudo à jurisprudência do TJC que se deveu alguma – muito lenta - sedimentação dos direitos sociais no âmbito comunitário, para o que utilizou a referência a instrumentos internacionais específicos como os Convénios da OIT, a CEDH, a Convenção de Genebra de 1951, a CSE, a Carta Comunitária dos Trabalhadores e os precedentes da jurisprudência de Estrasburgo. Curiosamente, no âmbito da política de desenvolvimento e adesão – sem imediatas implicações quanto ao relacionamento com os esquemas de protecção social dos Estados-Membros - a União fez sempre questão de evidenciar que os direitos sociais deviam ser um importante factor de ponderação. Nesta medida, a previsão de alguns dos mais importantes direitos sociais da tradição jurídico-constitucional ocidental na CDFUE - a maior parte deles agrupados sob a epígrafe capitular da solidariedade - representou sem dúvida um progresso, pelo menos de um ponto de vista simbólico. 1.3.3.2. Os direitos sociais na Carta15 Os direitos fundamentais da Carta não deixam de constituir um importante elemento federador da UE (G. Canotilho), pelo que convém não menoscabar a inclusão, entre eles, dos direitos sociais. Os obstáculos que precisaram ser superadas para obter esta pequena conquista depõem a favor da sua importância. De facto, se a Convenção experimentou enormes dificuldades para obter a concordância geral quanto ao quomodo e ao próprio an da inclusão dos direitos no catálogo, tal deveu-se essencialmente a três ordens de razões, para muitos ainda subsistentes: em primeiro lugar, a fragilidade de que padecem as fontes de inspiração em matéria de direitos sociais, já que o Tratado é parco em referências, a Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores não possui força vinculativa e a Carta Social Europeia é regida por um princípio de geometria variável que a sujeita a uma aplicação assimétrica pelos Estados-Membros16; em segundo lugar, a alegada ausência de uma tradição constitucional comum suficientemente clara e evidente no que respeita aos direitos sociais; e, em terceiro lugar, a própria natureza complementar e subsidiária das atribuições da UE no domínio (do) social. Conquanto ponderosos, os argumentos não se nos afiguram - ainda que à distância - igualmente pagantes. Por outro NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 lado, haveria que sopesá-los com as razões esgrimidas pelos defensores de uma inequívoca consagração dos direitos sociais. Assim, enquanto estava a ser elaborada a CDFUE, o Comité dos DESC da ONU, por exemplo, desenvolveu instâncias junto da Convenção para que esta assegurasse os direitos económicos, sociais e culturais em pé de igualdade com os direitos civis e políticos, arguindo que, de contrário, a Carta se traduziria num inaceitável retrocesso, representando mesmo uma contravenção às obrigações do PIDESC, nomeadamente a de adoptar medidas progressivas destinadas à promoção dos direitos. No final, o mérito da previsão deve ser creditado sobretudo aos franceses que - apoiados por italianos, belgas, espanhóis e pela maioria dos alemães – tiveram de vencer a oposição dos países nórdicos, da Holanda, do Reino Unido e da Irlanda, onde a constitucionalização dos direitos sociais, conotada com uma certa rigidez regulativa, costuma ser preterida em favor da maior flexibilidade permitida pelo diálogo e negociação sociais. A estratégia seguida pelos principais proponentes obedecia a três linhas-de-força, a saber: o reconhecimento de um princípio da solidariedade (no preâmbulo e como tête de chapitre autónoma); a inclusão, sob a sua alçada, de um conjunto de direitos económicos, sociais e culturais; e a garantia de uma protecção horizontal dos direitos (artigo 53º). Relativamente ao modus de inserção e previsão eleito, procurou contornar-se a dificuldade de delimitação dos direitos segundo os critérios tradicionais, empregando uma sistematização inovadora que os agrupou em cinco categorias - dignidade, liberdade, justiça, solidariedade, igualdade e cidadania. Na prática, porém, os direitos sociais espraiam-se por todo o catálogo, extravasando da sua sede específica no capítulo da solidariedade. Com efeito, nem todos os direitos sociais foram concentrados no capítulo IV, ficando de fora a liberdade sindical [incluindo o direito de constituir sindicatos (12º)], o direito de acesso à formação profissional e contínua (14º, n.º 1), a liberdade profissional e o direito de trabalhar (15º), assim como a liberdade de empresa (16º). Por outro lado, há direitos no capítulo IV que não são direitos sociais, mas de terceira geração [protecção do ambiente (37º), defesa do consumidor (38º)]. Existem ainda direitos sociais aparentemente esquecidos pela Carta, como o direito das pessoas idosas à protecção social. Por fim, não se previu nenhum regime específico para os direitos sociais, aplicando-se-lhes indiscriminadamente as disposições horizontais dos artigos 51º e seguintes, que regem também os direitos civis e políticos. Não é este o local para uma apreciação mais detida sobre o assunto. Ainda assim impõem-se duas observações. A tradicional formulação dos direitos sociais como direitos dependentes de complementar determinação normativa – i.e., non self-executing – estribou-se, aqui, a título suplementar, no próprio princípio da subsidiariedade [que impedia o alargamento, através da Carta, das tarefas da UE, previstas nos tratados (51º/2)]; em consequência, a sua concreta configuração e radicação subjectiva depende das disposições (nacionais ou comunitárias) que os devam consagrar, bem como das diferentes práticas nacionais. Note-se, contudo, que, relativamente à protecção da saúde estatuída no artigo 35º, a remissão feita não abrange o direito comunitário, apontando somente para as práticas e direitos nacionais. Mau grado esta dependência de concretização, pelo direito comunitário e nacional (seja constitucional, seja legislativo), recusou-se a simples positivação através de normas programáticas ou meramente enunciadoras de fins gerais (que coincidiriam com os escopos da União), asseverando, assim, a valia de uma socialidade jussubjectiva. Todavia, cumpre também lembrar, no tocante ao valor jurídico dos direitos sociais da Carta, que a mesma começou por não ter efeito vinculativo. Além disso, atenta a vontade e razão do legislador histórico do diploma, os seus preceitos não deviam ultrapassar de modo algum os textos que os haviam inspirado. Contudo, no quadro da governance multinível e do sistema jurídico de interjuridicidade vigente na UE, tem tido acolhimento a proposta de uma interpretação em conformidade com o direito, seja da União, seja internacional, seja ainda dos Estados-Membros, em que se atribua prevalência ao mais subido nível de protecção de entre os consagrados nas três fontes indicadas17. Uma proposição metodológica que não deixa de gerar polémica e tropeçar em imensos escolhos, designadamente quanto a saber em que consiste o tratamento mais favorável, como se cotejam as diferentes tutelas e de que modo se procede à necessária aquilatação18. Para além disso, há normas, como a do 35º, que, por dispensarem o superlativo (protecção mais elevada), não devem admitir a interpretação comparatística de vezo maximizador, por mor de um raciocínio ex differentiae ou mesmo a contrario senso. Seja como for, tivemos já ocasião de propugnar que a interpretação axiológico-funcional do direito comunitário, alinhada com o sentido normativo-político do projecto europeu, aconselha como razoável (no mínimo…) a impossibilidade de diminuir os níveis de protecção abaixo do patamar garantido pela Carta e demais instrumentos internacionais vinculativos, mesmo que as devoluções, aos Estados-Membros, das tarefas de concreta realização dos direitos, sejam feitas tanto para os regimes actuais como para os futuros (conferindo-lhes assim enorme discricionariedade), e que as instituições comunitárias pareçam deste modo isentas de prevenir e impedir qualquer reformatio in peius por via das suas políticas sociais. Mais audaz no reforço da socialidade (mormente com respeito aos media político-institucionais de realização dos respectivos princípios e direitos jurídicos) se revelava o malogrado Projecto de Constituição Europeia, no qual se incorporou a CDFUE, como parte II. Na versão final do Tratado, o texto surgia dividido em quatro partes, três das quais continham regulações conexionadas com os direitos sociais. O I.2 ancorava-os nos valores e o I.3.3. enquadrava-os nos objectivos. Os artigos I.9.1, I.9.2, I.9.3. e III.208 consagravam cláusulas gerais em matéria de direitos fundamentais. Para além disso, delineavam-se vários direitos sociais específicos, a par de outros direitos com dimensões sociais (II.61, II.63, II.65, II.74, II.75, II.81, II.83, II.84, II.85, II.86, II.87, II.88, II.89 e II.90 a II.98) e de direitos regulados nas políticas sociais da Parte III (assim os artigos III.116-121 e III.124 e os artigos III.205, III.209, III.210, III.211e III.214). Previam-se também órgãos de protecção e instituições de garantia específicas (verdadeiras garantias ins- perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 49 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 titucionais), com a constitucionalização do Conselho Económico e Social (III.389 a III.392) e do Fundo Social Europeu e a criação de um Comité de Protecção Social (III.217). Por fim, valiam ainda as cláusulas interpretativas do II.113 (53.º), em que se acolhia o princípio da protecção mais favorável. Paralelamente distinguiam-se os direitos dos princípios (5º), subordinava-se o padrão de protecção aos parâmetros resultantes das tradições constitucionais comuns (3º) e procedia-se à constitucionalização das explicações da Carta. Após Nice, e a apesar dos recuos na política social, da desventura da Constituição Europeia e das dificuldades entretanto atravessadas pelo projecto europeu, os direitos sociais da Carta sobreviveram, gozando hoje de vinculatividade ex vi do artigo 6.º do TUE - que elevou a CDFUE a direito primário da União, inserindo-a no sistema básico dos tratados constitutivos. 1.3.3.3 Os direitos sociais na UE: noção, estatuto e função19 Segundo Teresa Sanjuán20, tanto o Tribunal de Justiça como os tribunais constitucionais de muitos países da União utilizam um conceito amplo de direitos sociais, no qual se incluem todos aqueles direitos que contribuam para o desenvolvimento do Estado social e das suas cláusulas de igualdade e dignidade. Ao contrário do que ocorria no constitucionalismo clássico e em algumas concepções originárias desta categoria de posições jurídicas, por um lado, e do que sucede com algumas revisionistas e altamente empobrecedoras leituras liberais que deles vêm sendo feitas recentemente, por outro lado, os direitos sociais não se circunscrevem às pretensões e faculdades jurídicas de uma classe ou grupo social (trabalhadores, pobres, desvalidos, necessitados), estendendo-se antes a todas as pessoas e cidadãos, como genuínos direitos de titularidade universal, posto que com uma largueza, diversidade e profundidade de exercício variáveis (dentro de certas margens e sempre obedecendo a orientações principiais) em razão das circunstâncias individuais e das opções de políticas públicas que o conflito e a alternância políticoideológicas e a evolução económica possam ditar, tanto na União como nos diferentes Estados. Peritos da comunidade pronunciaram-se já sobre a noção, o estatuto e a função dos direitos sociais no contexto da União. Demarcaram-nos das políticas sociais, apesar do relacionamento que com elas mantêm, mas distinguiram-nos também das liberdades jurídicas (sem embargo das pressuposições e implicações recíprocas); reconheceram a multiplicidade e diversidade das funções que desempenham, consoante sejam concebidos como direitos subjectivos e justiciáveis, garantias institucionais que constrangem o Estado a manter um determinado instituto jurídico, defluências de objectivos do Estado (que este deve observar em toda a sua actuação legislativa e administrativa) e séries de programas que confiam ao legislador a missão de velar pela realização do direito através de leis ordinárias (quer possuam efeitos em relação a terceiros ou apenas face aos Estados); 50 perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics para além disso, confirmaram ainda o diferente estatuto (constitucional ou legal) que lhes é atribuído em diferentes EstadosMembros. O debate a este respeito, cujos termos e argumentos dispensam apresentações, reveste-se de especial acuidade no seio da União, dadas as suas peculiares características jurídicopolíticas. Daí que Udo di Fabio tenha mesmo preconizado a criação de um tribunal comunitário especial com competência para julgar questões concernentes aos direitos fundamentais. 2. O direito à saúde do artigo 35º num relance21 Da convergência e fusão destes influxos se alimenta o artigo 35º. Não se pretende, com isto, ver nele um ponto de chegada, antes uma fonte permanentemente nutrida por aqueles veios mais ou menos subterrâneos. Antes de tudo o mais, avançamos, portanto, uma elementar proposição metodológica, segundo a qual o artigo em apreço deve ser interpretado com atenção às três componentes que historicamente nele se encontram e cruzam, mesmo que prossigam depois os seus diferentes caminhos, vindo a irrigar outros terrenos. Trata-se de uma objectivação dogmática do direito, cujo conteúdo se mostra passível de diferentes estratégias de racionalização, mais ou menos compatíveis, mas que, em todo o caso, deve ser transcendida por aquelas intenções de validade normativa e justiça – de que nos fala J. Balkin – que são seu pressuposto, ideal regulativo e fundamento último de constituição, e as quais, como tal, nunca logrará manifestar e cumprir totalmente. Com efeito, se considerarmos - ademais da sua génese prescritiva ou da evolução da consciência jurídica geral e do sistema dogmático que integra - a teleologia jurídica de que deve participar (segundo os bons parâmetros de protecção e promoção da saúde, dos direitos humanos e da solidariedade), encontraremos um fundamental elemento para lhe descortinar o sentido e para o densificar em termos jurídicos, assim ele seja problematicamente convocado. Numa radiografia grosseira, apercebemo-nos de que o artigo 35º consagra para todos os cidadãos dos Estados-Membros, mas também de Estados-Terceiros (ainda que se encontrem em situação ilegal no território da União), um direito de acesso à prevenção e um direito de beneficiar de cuidados médicos, bem como um princípio finalístico de garantia de um nível elevado de saúde, que naturalmente possuem diferentes estruturas e intensidades normativas, mesmo se a todos se reconhece um jaez social. Com efeito, na primeira parte, está em causa um direito negativo de liberdade (que impede a União ou os Estados-Membros de limitarem ou suprimirem o acesso de cada um à prevenção da saúde) mas também um direito de protecção (garantia de acesso igual à prevenção de saúde e de manutenção das condições de vida, ambiente e trabalho azadas a uma precaução dos riscos de saúde). Por seu turno, o direito a beneficiar de cuidados médicos implica um dever de realização, ainda que os Estados possam escolher os meios mais adequados de o levar a cabo. Quanto ao Zielverpflichtung da segunda parte do artigo, integra pelo menos uma proibição de omissão e um dever de criação, organização e modelação dos meios adequados à realização de um elevado nível de saúde. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 CONCLUSÃO Consideramos que uma perspectiva jurídica - filosófica, teórica e dogmaticamente inter-(e sobretudo trans-)cultural – oferece hoje suporte a uma juridicidade pública social, estruturada e densificada por um conjunto de princípios e critérios vinculativos partilhados, posto que sujeitos a diferentes determinações, ao longo de uma escala de sedimentação, que desliza até a realidade - com a qual dialogicamente interage, pela qual é alimentado e a cujos problemas procura responder, a vários níveis. Sucede sermos hoje levados à conclusão de que mudou o contexto problemático e intencional do direito, nas suas vertentes económicas, políticas e ético-culturais, porque se alterou a auto-compreensão do homem, que é sempre aquilo que faz época (Ortega y Gasset). Difundiu-se um poderoso ethos consumista e a adopção de práticas e relacionamentos consonantes, os quais, não deixando de transportar elementos de bem-estar, gratificação, e até libertação e pluralismo, se revelaram amiúde alienantes ou pelo menos, pouco emancipatórios (contrariamente ao que avonde se alardeia…). Como consequência, obnubilase cada vez mais o debate público sobre uma matéria já de si delicada - como sabemos ser a da saúde - por bulir com as relações intersubjectivas e a organização da sociedade de que o direito se ocupa. Cremos que a reconstrução de uma ordenação juridicamente justa para a esfera da saúde deve reter um conjunto de ideias-força, de que se deixa uma breve resenha: - A saúde é um bem de importância pública. De um ponto de vista económico, apresenta as características de um bem de mérito e (pelo menos) semi-público; a sobredeterminação jurídico-política da economia, porém, mais confirma o seu interesse público e social, ainda que actualmente a configure e conforme sobretudo como bem acessível (Suzana T. Silva), nos termos das regras e princípios que regem os respectivos serviços de provisão (ditos bens de acesso). - Quer as determinantes da saúde - nomeadamente os esquemas de provisão de cuidados (terapêuticos, paliativos, curativos, etc.) e de prestação de medicamentos – quer, mais genericamente, todas as interacções que a têm por objecto, colocam importantes questões de justiça; - O direito regula muitas dessas relações que entretecem a esfera da saúde, regendo agentes, acções, objectivos e consequências (macro e micro); - No cerne desta regulação deve estar um direito à saúde, em sentido amplo, desdobrável numa série de momentos subjectivos e objectivos, negativos, positivos e activos, materiais e procedimentais, e com a necessária atenção aos problemas que a respeito de cada um deles se podem suscitar. Aceites como dados incontornáveis a profunda diferenciação social e a radical pluralidade epistémica dos nossos dias, uma actualizada perspectiva jurídica de teor antropológico-culturalmente institucionalista (P. Häberle, A. Supiot, R. Jäeggi), deverá ver nos direitos sociais o fundamento axiológico-normativo básico para os muitos estatutos sociais da pessoa e do cidadão. Com efeito, os direitos sociais requerem a institucionalização de diferentes posições jurídicas no seio dos vários sistemas sociais, estabilizando normativamente as condições de acesso justo aos diversos bens (educação, saúde, segurança social, cultura, etc), em dialéctica com as respectivas dinâmicas internas e dialogando com os respectivos discursos de reflexiva constituição, num sentido correctivo e transformador. Não se veja aqui qualquer tentativa de restaurar uma prémoderna ordenação jurídico-estatutária da sociedade22, impossível depois da experiência cultural de subjectivismo filosófico, individualismo antropológico, finalismo económico, contratualismo político, cientismo epistemológico e formalismo axiológico, que a modernidade propiciou. Nos nossos dias são as pessoas concretas que criam as máscaras, as justificam e as utilizam instrumentalmente; não as máscaras que constituem e definem as pessoas. Efectivamente, num mundo complexo e gasoso, faz-se necessária a criação de zonas ou ambientes favoráveis ao direito - espaços juridicamente balizados e internamente sinalizados (i.e., iluminados por faróis jurídicos) - atravessados pela intenção prático-problemática da juridicidade e animados pelas correntes que esta propulsione. Tentando decerto prevenir a redução do direito a um discurso da área aberta (para o qual nos alerta Aroso Linhares) e corrigir o protestantismo interpretativo a que alude Sanford Levinson, há todavia que confiar efectivamente na instilação de uma cultura jurídica – i.e., na impregnação de um ethos do justo e do recto – entre os sujeitos de direitos e deveres que somos todos nós; um nomos que, sem invadir e colonizar o campo da ética e da responsabilidade absoluta, do amor e da caridade, ou da mera cortesia ou uso social, se torne todavia padrão basilar das relações intersubjectivas na esfera pública, como um sentido comungado do que nos devemos uns aos outros enquanto membros de colectividades feitas de diversas comunidades, e, assim, unidos por uma solidariedade23 institucionalmente actualizada e sujeita a modulações em função daquelas, mas cuja ideia inspiradora as transcenda, i.e., cujo princípio normativo conheça critérios diferentes mas persista sendo o da justiça social. A esta luz, a Europa tem ainda um caminho a fazer para que o direito à saúde seja devidamente recortado no quadro de um espaço político-económico e sócio-cultural não assente apenas nas liberdades de concorrência e de escolha e nas liberdades circulatórias que as servem. Não basta uma muito parcial integração sistémica de índole económica, cuja ligação legitimante ao mundo-da-vida se faz apenas através dessas liberdades. A coesão nacional não pode ser substituída pela simples competição internacional, antes clamando por um novo sistema, mais complexo, de integração em rede, cooperativamente elaborado – que pode comportar especializações, mas não deve sacrificar totalmente as exigências de justiça geral, distributiva e social, em matéria de saúde, às que decorrem de uma justiça comutativa que hiperboliza a liberdade individual. Liberdade e saúde são dois bens a ponderar, numa referência à dignidade das pessoas concretas (que requer respeito, protecção e promoção da autonomia e da responsabilidade individuais). Daí que a liberdade perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 51 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 de circulação na UE deva ser encarada com cautela, pois, ao tocar este aspecto precário da construção europeia e dos equilíbrios frágeis em que se escora, atinge um nervo profundo da própria inteligência e normação jurídicas da saúde: o da composição adequada – razoável, moderada, bem medida, i.e., correcta - de autonomia e responsabilidade individual e colectiva na repartição dos recursos necessários para intervir proficuamente na matéria. Mais do que numa fáustica vitória absoluta sobre a fragilidade (M. Benasayag) e vulnerabilidade do homem ou na total evitação tecnológico-social dos riscos inerentes à aventura individual e ao convívio com os outros, é na esperança da (e na responsabilidade pela) justiça que deve residir, também quanto à saúde, a nossa aposta jurídica. «Bei der Gesundheit verhält es sich ähnlich wie bei der Gerechtigkeit: Wer sie erlebt, nimmt sie für selbstverständlich» Paul KIRCHHOF, “Das Recht auf Gesundheit”, in Stimmen der Zeit, Heft 1, Januar 2004, p. 44. ABSTRACT In this second part of the investigation we will focus our attention on the right to healthcare, as recognized by the UE, concentrating our thoughts exclusively on article 35º of the CFREU. And since this precept prescribes a (i) solidarity (ii) right (iii) to healthcare - where the Europe of Health, the Europe of Rights and Social Europe seem to converge and intersect - our goal comes to be the reconstitution of the historical roots of these three components of the European project, describing their evolutionary course, as if they were streams, flowing into article 35º, and continually feeding its content. By means of such a display, we hope to propel some critical reflection, opening new possibilities of evolution, and using the referred genetic marks of article 35º as true sources to rethink, imagine, project and enact the continuous regulative re-construction of the EU Law specifically devoted to health protection and promotion. Keywords: Charter of Fundamental Rights of the European Union; Article 35º; European Health Policies; Social policies; Human Rights and Fundamental Rights. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 42-53 BIBLIOGRAFIA 1. Cfr. Michaelowski S., “Health Care Law” in Peers S, Ward A, The EU Charter of Fundamental Rights: politics, law and policy, Hart Publishing, Portland – Oregon, 2004, pp. 287-308. 2. V. Jorens Y. (Ed.), Open Method of Coordination. Objectives of European Health Care Policy, Nomos Verlagsgellschaft, Baden-Baden, 2003; e, em português, o nosso Racionamento e Racionalização no acesso à saúde., op. cit., volume II, pp. 286 e ss. 52 perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 3. V. o Livro Branco sobre os serviços de interesse geral [COM (2004) 0374] e a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões que acompanha a comunicação “Um mercado único para a Europa do século XXI”. Os serviços de interesse geral, incluindo os serviços sociais de interesse geral: um novo compromisso europeu [COM (2007) 725]. 4. V., também, o recente documento da Comissão Europeia (Direcção Geral do Emprego, dos Assuntos Sociais e da Igualdade de Oportunidades; Direcção Geral da Saúde e dos Consumidores), Reduzir as desigualdades no domínio da saúde na União Europeia, Serviço de Publicações da União Europeia, Luxemburgo, 2011. 5. Hervey TK, McHale J, Health law and the European Union, Cambridge University Press, Cambridge, 2004, pp. 43 e ss; Hervey T, “The European Union and the governance of health care”, in The European Union Center of Excellence, University of Wisconsin, p. 1 (http://eucenter.wisc.edu /OMC/Papers/ Pro tection/hervey.pdf). 6. Saúde pública, acesso aos cuidados de saúde, toxicodependência, informação de saúde, protecção de dados e privacidade, emprego e aspectos sociais, ambiente, desenvolvimento, segurança alimentar, regulação e mobilidade dos profissionais, investigação, medicamentos, dispositivos técnicos, desporto, etc 7. V. Hervey TK, McHale J, Health law and the European Union, op. cit., pp. 395 e ss. 8. V., nomeadamente, as Conclusões do Conselho sobre os valores e princípios comuns aos sistemas da União Europeia – JO C 146, de 22.06.2006, pp. 1-3. 9. V. Ibidem; Hervey TK, “If Only It Were So Simple: Public Health Services and EU Law”, in Cremona M, Market Integration and Public Services in the European Union, (The Collected Courses of the Academy of European Law), Oxford University Press, Oxford/ New York, 2011, pp. 179 e ss; Idem, “The European Union and the governance of health care”, op. cit.; Idem, “The European Union’s governance of health care and the welfare modernization agenda”, in Regulation & Governance (Special Issue: Health Care and New Governance: The Quest for Effective Regulation), Volume 2, Issue 1, March 2008, pages 103–120; Idem, “The ‘Right to Health’ in European Union Law”, in Hervey TK, Kenner J (ed.), Economic and Social Rights under the EU Charter of Fundamental Rights. A Legal Perspective, Hart Publishing, Oxford – Portland Oregon, 2003, pp. 193-222; McKee M, Mossialos E, Baeten R (eds.), The Impact of EU Law on Health Care Systems, P.I.E. - Peter Lang, Bruxelles, 2002. 10. V. Lenaerts K, Droit communautaire et soins de santé: les grandes lignes de la jurisprudence de la Cour de justice des Communautés européennes, pdf., s/ed., pp. 1-17 (disponível on-line em http://www.ose.be /workshop/files/LenaertsFR. pdf); Lenaerts K, Heremans T, “Contours of a European Social Union in the Case-Law of the European Court of Justice”, in European Constitutional Law Review, Volume 2, Issue NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 I, 2006, pp. 101-115; e, entre nós, Cabral P, “As difficult as finding one´s way in chinatown: O enquadramento jurídicocomunitário da liberdade de acesso a cuidados de saúde transfronteiriços na União Europeia”, in Revista da Ordem dos Advogados (on-line), 2004; Idem, “Da livre circulação de cuidados médicos na União Europeia”, in Direito e Justiça, Vol. XIV, Tomo 1, 2000; Menezes do Vale L, Racionamento e Racionalização no acesso à saúde, op. cit.,Volume II, capítulo 2, pp. 85 e ss. 11. Sobre os arestos citados, v., a nossa Anotação ao artigo 35.º da CDFUE, polic., Coimbra, 2011, pp. 1-44 (ainda inédito e futuramente integrado na Carta dos Direitos Fundamentais Anotada, que o Centro de Estudos em Direito da União Europeia da Escola de Direito da Universidade do Minho vem preparando). 12. V., para todo este ponto, Martins, AMG, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e os direitos sociais”, in Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo 2, 2001, pp. 189-230 que seguimos de muito perto. 13. Cf. JO C 103, de 27.04.1977, p. 1. 14. Carlier J-Y, Schutter O (dir.), La charte des droits fondamentaux de l’Union européenne: son apport à la protection des droits de l’homme en Europe (hommage à Silvio Marcus Helmons), Bruylant, Bruxelles, 2002; Riquito AL et alii, Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra Editora, Coimbra 2001; di Federico G (ed.), The EU Charter of Fundamental Rights: From Declaration to Binding Instrument, Dordrecht/Heidelberg/London/ New York, Springer, 2011; Tettinger PJ, Stern K, Kölner Gemeinschaftskommentar zur Europäischen Grundrechte-Charta, München, C.H. Beck, 2006; Toth A G, “The Charter of Fundamental Rights of the European Union”, in Direito e Justiça. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Tomo 1, Vol. 16 (2002), pp. 171-189; Bifulco R, Cartabia M, Celotto A (a cura di), L’Europa dei diritti: commento alla carta dei diritti fondamentali dell’Unione Europea, Bologna: Il Mulino, 2001; Caliess C, Ruffert M, EUV/EGV: Das Verfassungsrecht der Europäischen Union mit Europäischer Grundrechtecharta: Kommentar, 3. Aufl., München, C.H. Beck, 2007; Luño AEP, “La carta de Niza y la Europa de los ciudadanos: apostillas a la carta de los derechos fundamentales de la Unión Europea”, in Derechos y Libertades: Revista del Instituto Bartolomé de las casas. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, Ano 7, N. 11 (2002) p. 45-64; Ramos RMM, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a protecção dos Direitos Fundamentais”, in Cuadernos Europeos de Deusto, N. 25, 2001, p. 161-188; Vitorino A, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Principia, Cascais, 2002. 15. V. Silva JP, “Os direitos sociais e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”, in Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo 2, 2001, pp. 147-163; Martins AMG, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e os direitos sociais”, in Direito e Justiça, Vol. XV, Tomo 2, 2001, pp. 189-230. 16. V. Duarte ML, “A União Europeia e os Direitos Fundamentais – Métodos de Protecção”, in Portugal-Brasil Ano 2000, Stvdia Ivridica, Coimbra Editora, 1999, pp. 27 e ss. 17. V. Silva SZ, Direitos Fundamentais na Arena Global, op. cit., pp. 23 e ss (maxime, p. 31). 18. V. Canotilho MR, O Princípio do nível mais elevado de protecção em matéria de direitos fundamentais, polic, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2008. 19. Quanto aos direitos sociais, tendo em vista, respectivamente, a CEDH, a UE em geral, e a CDFUE, v. Iliopoulos-Strangas J, “Soziale Grundrechte”, in Merten D, Papier H-J (Hg.), Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa VI/1: Europäische Grundrechte I, Volume 6, CF. Müller, Hüthig Jehle Rehm, Heidelberg/ München/ Landsberg/ Frechen/ Hamburg, 2010, pp. 299 e ss; Eichenhofer E, “Soziale Rechte”, Ibidem, pp. 825 e ss e Langenfeld C, “Soziale Grundrechte”, Ibidem, pp. 1117 e ss; v. ainda Kingreen T, “Soziale Grundrechte” (§18), in Ehlers D (Hrsg.), Europäische Grundrechte und Grundfreiheiten, De Gruyter Lehrbuch, 3. Auflage, Walter de Gruyter, 2009.pp. 640 e ss; Coppola S, “Social Rights in the European Union. The Possible Added Value of a Binding Charter of Fundamental Rights”, in Di Federico G, The EU Charter of Fundamental Rights: From Declaration to Binding Instrument, op.cit., pp. 199-216; Bundesministerium für Arbeit und Sozialordnung, Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Sozialrecht, Akademie der Diözese Rottenburg Stuttgart (Hrsg.), Soziale Grundrechte in der Europäischen Union, Nomos, Baden-Baden, 2001; Ramos ML, “Los Derechos Sociales en la Unión Europea: Mercado o Justicia”, in Anales de la Cátedra Francisco Suárez, 35, 2001, pp. 23-57. Relativamente aos direitos sociais nos países europeus, v. Fabre C, “Social Rights in European Constitutions”, in de Búrca G Gráinne, de Witte B (Eds.), Social Rights in Europe, Oxford University Press, Oxford 2005, pp. 15-28. 20. Sanjuán T, “Los Derechos Sociales en la Constitución Europea”, in Colóquio Ibérico: Constituição Europeia, Studia Iuridica, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 330. 21. V. a nossa “Anotação ao artigo 35º da CDFUE”, op. cit., pp. 31-44. 22. Hespanha AM, Cultura Jurídica Europeia. Síntese de um Milénio, 3.ª edição, Publicações Europa-América, Lisboa, 2003, pp. 81 e ss. 23. V. as sugestivas reflexões de Maalouf A, em Um Mundo sem Regras. Quando as nossas civilizações se esgotam, Difel, Lisboa, 2009. CORRESPONDÊNCIA Luís Menezes do Vale [email protected] perspectivas actuais em bioética current perspectives in bioethics 53 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Febre de etiologia indeterminada – encruzilhada de diagnósticos Manuel Oliveira1, Carla Meireles1, Patrícia Costa2, Margarida Guedes3, Ana Luísa Lobo1. RESUMO Introdução: Os principais diagnósticos a considerar numa febre de etiologia indeterminada incluem as causas infecciosas, reumatológicas, imunológicas e neoplásicas. Caso clínico: Apresentamos o caso de uma criança de quatro anos do sexo masculino, observada por febre, cervicalgia e claudicação da marcha. Detectou-se anemia e marcadores inflamatórios elevados. No internamento foi-se evidenciando palidez, exantema maculo-papular em pico febril e adenomegalias cervicais. A avaliação por Cardiologia evidenciou ectasia coronária, tendo iniciado imunoglobulina intravenosa (IGIV) por suspeita de Doença de Kawasaki atípica (DKa). Por persistência da febre invocou-se o diagnóstico mais provável de Artrite Idiopática Juvenil sistémica (AIJs). Discussão: Após a exclusão de outras causas, o diagnóstico diferencial entre DKa e AIJs é difícil pela inespecificidade dos achados. A suspeita de DKa, justifica a terapêutica com IGIV, mas a refractariedade a esta não a exclui (10% de casos refractários). Por outro lado, está descrita a presença de dilatações coronárias em contexto de quadro inflamatório sistémico, tornando este achado sugestivo mas não patognomónico de Doença de Kawasaki. Palavras-chave: artrite idiopática juvenil, ectasia coronária, febre. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 54-56 INTRODUÇÃO Febre de etiologia indeterminada (FEI) define-se, em idade pediátrica, como uma febre documentada por um profissional de saúde, sem causa identificada, e que persiste após três semanas de investigação em ambulatório ou uma semana em regime de internamento. A causa pode ser infecciosa, reumatológica e/ ou imunológica, neoplásica, farmacológica, heredo-familiar, entre outras(1,2). Para o diagnóstico diferencial é importante ter em conta o padrão da febre e sintomas associados, antecedentes patológicos, contexto epidemiológico e um exame objectivo pormenorizado, já que os resultados dos exames complementares podem revelar-se inespecíficos. __________ 1 2 3 S. Pediatria, CH Alto Ave, Guimarães S. Cardiologia Pediátrica, CH S. João, Porto S. Pediatria, CH Porto 54 ciclo de pediatria inter hospitalar do norte paediatric inter-hospitalar meeting CASO CLÍNICO Criança do sexo masculino e raça caucasiana, quatro anos de idade, com crescimento e desenvolvimento psicomotor normais, plano de imunizações actualizado e antecedentes patológicos irrelevantes. História de consanguinidade parental (pais primos em primeiro grau), sem doenças heredo-familiares conhecidas. Agregado familiar nuclear (pais e duas irmãs), habitando casa própria em zona urbana, com água canalizada e saneamento básico. Recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por um quadro de febre com quatro dias de evolução (picos febris de três em três horas com temperatura axilar máxima de 40,2ºC), cervicalgia bilateral e coxalgia à esquerda. Foi referido episódio “semelhante” ocorrido cerca de um mês antes, resolvido ao fim de 48 horas, num contexto de amigdalite aguda medicada com penicilina. Negava traumatismos, ingestão de medicamentos ou alimentos suspeitos, alergias, contacto com pessoas doentes ou animais e viagens recentes. Ao exame objectivo apresentava limitação dolorosa da mobilidade do pescoço e marcha com claudicação à esquerda, sem outras alterações. Os exames realizados detectaram anemia (Hb 9,5 g/dL), microcítica e normocrómica, leucocitose (15900/μL) com neutrofilia (77,9%), plaquetas 349000/μL e PCR aumentada (131,9 mg/L); análise sumária de urina tipo II e citoquímica do líquido cefalorraquidiano sem alterações; radiografia pulmonar com discreto infiltrado intersticial bilateral e estudo imagiológico dirigido inconclusivo (radiografia e TAC da coluna cervical e radiografias da bacia, joelhos, tornozelos e pés). Decidiu-se o internamento para esclarecimento etiológico. Em internamento, a febre evoluiu com dois a três picos diários, de amplitude variável (38,5ºC-40ºC), predomínio vespertino e nocturno e irritabilidade associada. Manteve apetite conservado, sem vómitos ou diarreia, diurese normal, ausência de sintomas respiratórios e melhoria progressiva das queixas álgicas articulares. Foi-se evidenciando palidez muco-cutânea; exantema eritematoso maculo-papular no tronco, fugaz, evidente em pico febril; olhos encovados sem hiperémia conjuntival; lábios secos e fissurados e eritema da orofaringe, sem exsudados; e gânglios cervicais palpáveis bilateralmente, com 1 cm de maior diâmetro, indolores, de consistência elástica, não aderentes e sem sinais inflamatórios externos. A partir do terceiro dia de internamento (D7 febre) descreve-se um sopro cardíaco sistólico grau II/VI, mantendo auscultação pulmonar normal e exame abdominal sem alterações. Neste dia foi avaliado por Cardiologia Pediátrica, realizando ecocardiograma que não mostrou alterações. A marcha NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 normalizou após D6 internamento (D10 febre), mantendo sempre normal mobilidade, activa e passiva, e ausência de edema ou outros sinais inflamatórios das articulações da bacia e dos membros superiores e inferiores. Apresentava, de forma intermitente, posição preferencial da cabeça em rotação lateral direita, com rotação em bloco da cabeça e do tronco no olhar para a esquerda; sem recorrência após D13 internamento (D17 febre). Manteve marcadores inflamatórios elevados, com valor máximo de plaquetas de 652000/uL, ferritina 784,70 ng/mL, VS 108 mm/1ªh e PCR 132,8 mg/L. O estudo em curso foi inconclusivo e incluiu rastreio infeccioso alargado, marcadores neoplásicos, estudo imunológico, ecocardiograma (D3 internamento), ecografia abdominal e das ancas e RMN cervical. Em D13 de internamento (D17 febre), pela possibilidade de Doença de Kawasaki incompleta ou atípica (DKa), uma nova avaliação por Cardiologia Pediátrica evidenciou ectasia da artéria coronária esquerda (3 mm) com avaliação electrocardiográfica normal, tendo iniciado Imunoglobulina endovenosa - IGIV - (2g/kg) e AAS. No entanto a febre persistiu em picos isolados matinais (39ºC-40ºC), pelo que dois dias depois foi avaliado em consulta de Reumatologia, invocando-se o diagnóstico mais provável de apresentação sistémica de Artrite Idiopática Juvenil (AIJs). Iniciou terapêutica com naproxeno e prednisolona, tendo alta em D24 internamento, após cinco dias de apirexia sustentada. Nos seis meses de seguimento seguintes apresentou alguns períodos intermitentes de febre, que cederam após a introdução de terapêutica com metotrexato, sem outras alterações clínicas, nomeadamente recaídas articulares ou uveíte. Nas análises de controlo mantém valores normais de hemoglobina, leucócitos, plaquetas, VS, PCR, ferritina e transaminases. Avaliações posteriores por Cardiologia (após uma, seis e dezasseis semanas da primeira avaliação) indicam a persistência da ectasia de 3 mm da artéria coronária esquerda, com paredes hiperecogénicas, estando medicado com AAS em dose anti-agregante plaquetar. DISCUSSÃO Após a exclusão de outras causas de febre prolongada, pode tornar-se difícil o diagnóstico diferencial entre AIJs e DKa. Existem aspectos clínicos, laboratoriais e imagiológicos orientadores mas não suficientemente específicos. A Artrite Idiopática Juvenil é a doença reumatológica mais comum na infância, representando a forma sistémica cerca de 10% dos casos(3). Esta forma tem um pico de incidência entre um e seis anos de idade, sem predominância de género. Implica a presença de artrite em uma ou mais articulações, com febre precedente ou coincidente com pelo menos duas semanas de evolução, documentada como diária, em pelo menos três dias seguidos, e associada a um ou mais dos seguintes sinais: exantema eritematoso evanescente, não fixo; adenomegalias generalizadas, hepatomegalia e/ou esplenomegalia e serosite (pericardite, pleurite e/ou peritonite). A artrite não é migratória e não causa dor muito intensa, podendo afectar as articulações das mãos, punhos, joelhos, ancas, coluna cervical e temporomandibular, geralmente de forma simétrica. É diferente da artrite migratória e assimétrica da febre reumática e da dor óssea não articular, intensa e nocturna, da leucemia. O padrão febril é característico, com um ou dois picos diários, súbitos, de grande amplitude (≥ 39ºC), e que rapidamente retorna à linha basal ou abaixo desta (≤ 37ºC), de predomínio matinal ou vespertino. Inicialmente as crianças podem apresentar um «ar doente» em pico febril, não se verificando este padrão quotidiano da febre. O exantema, presente em 90% dos casos, é eritematoso, macular ou maculo-papular, frequentemente descrito como rosa-salmão; mas que facilmente passa despercebido já que é evanescente ou transitório, com tendência a aparecer em pico febril; migratório; com uma distribuição linear no tronco e face interna dos braços e coxas, deste modo poupando as zonas expostas. A hipersensibilidade cutânea ao trauma superficial levando à recorrência do exantema é sugestiva (fenómeno de Koebner). O exantema pode também recorrer com o calor, por exemplo, um banho quente. Salienta-se que a clínica sistémica pode preceder a artrite em semanas ou meses. Os achados laboratoriais são inespecíficos (anemia, leucocitose com neutrofilia, trombocitose - valores normais ou baixos de plaquetas devem orientar para outro diagnóstico -, elevação da VS, PCR e ferritina sérica). Anticorpos anti-nuclear (ANA) positivos encontram-se em 5-10% das crianças e o factor reumatóide (FR) é geralmente negativo. (2,3) A DKa, ao contrário da AIJ, é mais comum em crianças pequenas do que em crianças mais velhas. Caracteriza-se pela presença de febre com duração igual ou superior a cinco dias, associada a dois a três achados clássicos da Doença de Kawasaki(4,5). Poliartralgias, com ou sem sinais de artrite, podem ocorrer na fase aguda. Em adição, dados laboratoriais devem apontar para um quadro inflamatório sistémico (VS ≥ 40 mm/h e PCR ≥ 30 mg/L), associados a outros achados complementares como anemia, leucócitos > 15000/μL, plaquetas > 450000/μL após sete dias de doença, TGP aumentada, albumina ≤ 3 g/dL e piúria estéril com > 10 leucócitos/campo. A suspeita de Dka deve conduzir a uma avaliação por Cardiologia. O ecocardiograma é essencial para avaliar a morfologia das artérias coronárias - presença de ectasias ou aneurismas, número, localização, forma (saculares, fusiformes) e tamanho (pequenos <5mm e gigantes >8 mm), de sinais indirectos de arterite (hiperecogenecidade perivascular), e de trombos intravasculares –, função do ventrículo esquerdo, presença de insuficiência valvular mitral ou aórtica, dilatação da origem da aorta e sinais de pericardite com derrame pericárdico. Definem-se aneurismas coronários (AC), segundo a classificação utilizada pelo Ministério Japonês da Saúde, quando o diâmetro interno (DI) de um segmento coronário é 1,5 vezes superior ao DI do segmento coronário adjacente, quando é visível irregularidade do lúmen vascular(4,5) ou quando o DI coronário é >3 mm nas crianças com <5 anos ou >4 mm nas crianças ≥5 anos de idade(4-7). Segundo a American Heart Association (AHA), a sensibilidade diagnóstica pode ser aumentada usando-se como referência as curvas dos valores normais do diâmetro das artérias coronárias em relação com a área de superfície corporal, considerando que existe dilatação de um vaso se o seu diâmetro apresenta um SDS ≥ 2,5 em relação à média(4,5). Neste doente, pela persistência da clínica e inespecificidade dos exames auxiliares de diagnóstico, foi necessário colocar a hi- ciclo de pediatria inter hospitalar do norte paediatric inter-hospitalar meeting 55 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 pótese de DKa e pedir avaliação por Cardiologia. Esta não é uma forma atenuada de Doença de Kawasaki (DK) e tem o mesmo risco de originar o aparecimento de AC (15-25% dos casos não tratados), constituindo a causa mais importante de cardiopatia adquirida nos países desenvolvidos(4-6). O tratamento com IGIV nos primeiros dez dias diminui a incidência de AC para cerca de 2%. Embora os aneurismas raramente se formem antes deste período, alguma evidência de arterite pode estar presente numa fase aguda e conduzir à suspeita de DKa. No entanto este não é um achado 100% específico para DK, não devendo excluir outras condições. Estão descritos casos de dilatação transitória das artérias coronárias em doentes com AIJs(8). Estará associado ao aumento dos níveis circulantes de citoquinas pró-inflamatórias, especialmente a interleucina 6, que conduz a um estado de inflamação vascular sistémica. (8) Assim, em casos como o descrito, em que se identificou ectasia coronária (DI da artéria coronária esquerda com um SDS> 2,5 para a superfície corporal do doente de 0,7 m2) e mesmo com 10% de casos estimados de DK refractários à IGIV; uma febre que não cede, ou a persistência ou reaparecimento dos sinais de artrite (tipicamente auto-limitada na DK) devem alertar para a possibilidade de AIJs(1,8). O diagnóstico diferencial entre Dka e AIJs é difícil; a presença de dilatação coronária na avaliação ecocardiográfica inicial não excluiu o diagnóstico de AIJs, que deve ser colocado quando existe persistência de artrite e refractariedade à terapêutica com IGIV. FEVER OF UNKNOWN ORIGIN – A DIFFICULT DIAGNOSTIC PROBLEM ABSTRACT Background: The most common causes of fever of unknown origin are infectious diseases, rheumatologic or immunologic diseases, and malignancies. Case report: The case of a four years old male child with fever, neck pain and limping gait is presented. He was anemic and had elevated inflammatory markers. He developed gradual pallor, maculopapular rash appearing with fever peaks, and cervical lymphadenopathy. Echocardiographic documentation of coronary artery ectasia, lead to intravenous immunoglobulin (IVIG) therapy for suspected atypical Kawasaki disease (aKD). The most probable diagnosis of systemic-onset Juvenile Idiopathic Arthritis (sJIA) was made after fever maintenance. Discussion: It is difficult to differentiate between aKD and sJIA because there are no specific findings. The suspicion of aKD should lead to IVIG therapy, but failure to respond is not an exclusion criterion (10% of patients are refractory cases). Systemic inflammatory disorders, like sJIA, may be associated with coronary artery dilation. This finding supports a diagnosis of aKD but is not specific for the condition. Keywords: juvenile idiopathic arthritis, coronary ectasia, fever. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 54-56 56 ciclo de pediatria inter hospitalar do norte paediatric inter-hospitalar meeting BIBLIOGRAFIA 1. Wood M, Abinun M, Foster H. Pyrexia of unknown origin. Arch Dis Child Ed Pract 2004; 89: 63-9. 2. Komatsu H, Tateno A. Failure to distinguish systemic-onset juvenile idiopathic arthritis from incomplete Kawasaki disease in an infant. J Paediatr Child Health 2007; 43: 707-9. 3. Goldmuntz EA, White PH. Juvenile Idiopathic Arthritis: A Review for the Pediatrician. Pediatr Rev 2006; 27: 24-32. 4. Fimbres AM, Shulman ST. Kawasaki Disease. Pediatr Rev 2008; 29: 308-16. 5. Newburger JW, Takahashi M, Gerber MA, Gewitz MH, Pallasch TJ, Falace DA, et al. Diagnosis, Treatment, and Long-Term Management of Kawasaki Disease: A Statement for Health Professionals From the Committee on Rheumatic Fever, Endocarditis, and Kawasaki Disease, Council on Cardiovascular Disease in the Young, American Heart Association. Pediatrics 2004; 114: 1708-33. 6. Baer AZ, Rubin LG, Shapiro CA, Sood SK, Rajan S, Shapir Y, et al. Prevalence of Coronary Artery Lesions on the Initial Echocardiogram in Kawasaki Syndrome. Arch Pediatr Adolesc Med 2006; 160: 686-90. 7. Tsuda E, Kamiya T, Ono Y, Kimura K, Echigo S. Dilated coronary arterial lesions in the late period after Kawasaki disease. Heart 2005; 91: 177-82. 8. Binstadt BA, Levine JC, Nigrovic PA, Gauvreau K, Dedeoglu F, Fuhlbrigge RC, et al. Coronary artery dilation among patients presenting with systemic-onset juvenile idiopathic arthritis. Pediatrics 2005; 116: 89-93. CORRESPONDÊNCIA Manuel António Novais Oliveira e-mail: [email protected] NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Caso dermatológico Ana Oliveira1, Madalena Sanches1, Manuela Selores1 Criança de cinco anos, sexo feminino, sem antecedentes patológicos de relevo e com plano nacional de vacinação actualizado. Enviada à consulta de Dermatologia por lesões cutâneas assintomáticas localizadas à face e membros, com cerca de uma semana de evolução. Os pais referiam história de infecção respiratória alta, provavelmente virusal, cerca de uma semana antes do aparecimento das lesões. Ao exame objectivo observavam-se múltiplas pápulas eritematosas, arredondadas, de superfície lisa ou crostosa, infracentimétricas, dispersas de forma simétrica pelas regiões malares e face extensora dos membros. A criança encontrava-se apirética e com bom estado geral. Figura 1 Figura 2 Qual o seu diagnóstico? __________ 1 S. Dermatologia, H Santo António, CH Porto caso dermatológico dermatology case 57 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 DIAGNÓSTICO O aparecimento de lesões cutâneas eritemato-papulosas, monomórficas, distribuídas de forma simétrica pela face e regiões acrais após sintomas de infecção das vias aéreas superiores é característico do Síndrome de Gianotti-Crosti. COMENTÁRIOS O síndrome de Gianotti-Crosti (SGC) ou acrodermatite papulosa da infância é uma doença rara e autolimitada que atinge, sobretudo, crianças dos dois aos seis anos, independentemente do género. Cerca de 90% dos doentes tem menos de quatro anos. Em 1970, Gianotti e Crosti associaram-na à infecção pelo vírus da hepatite B. Posteriormente foram observadas erupções cutâneas idênticas ao SGC, em associação com outros agentes infecciosos, principalmente virais, nomeadamente o vírus de Epstein-Barr, o vírus coxsackie do tipo B e o herpes vírus do tipo 6 e vacinas. Pensa-se que traduza uma reacção de hipersensibilidade a antigénios víricos ou bacterianos. A sua baixa frequência na idade adulta parece dever-se à aquisição de imunidade para estes antigénios na infância. O curso da SGC é benigno e autolimitado, surgindo de forma súbita e resolvendo num período que varia de duas a oito semanas. Não estão descritas recorrências. As lesões cutâneas caracterizam-se por múltiplas pápulas eritematosas, não descamativas, por vezes associadas a vesiculação e a crostas sero-hemáticas, podendo coalescer em placas, distribuídas simetricamente pela face, nádegas e face extensora dos membros. O tronco raramente é afectado. As lesões são em geral assintomáticas, sendo excepcionalmente pruriginosas. Por vezes há pródromos sugestivos de infecção respiratória alta. O estado geral mantém-se inalterado ou ocorrem sintomas tais como mal-estar, febre, náuseas e vómitos. Pode associar-se a hepatoesplenomegalia, linfadenopatia e a um quadro de hepatite aguda anictérica. Uma linfocitose, eventualmente com presença de linfócitos atípicos no sangue periférico, pode ainda ser observada. O diagnóstico é clínico, embora por vezes possa ser necessário recorrer à biopsia cutânea para exclusão de outros diag- 58 caso dermatológico dermatology case nósticos diferenciais, uma vez que os achados histopatológicos do SGC são inespecíficos, traduzindo-se por espongiose focal, acantose paraqueratótica e infiltração linfohistiocítica perivascular na derme superior. Em geral, não é necessário realizar exames laboratoriais, nomeadamente em crianças vacinadas para o vírus da hepatite B. Uma vez que se trata de uma doença benigna e auto-limitada não é necessário qualquer tratamento. Se as lesões forem pruriginosas pode realizar-se um curso curto de anti-histamínico oral. Uma vez que o período infeccioso termina quando o exantema se inicia, não há necessidade de evicção escolar. ABSTRACT Gianotti-Crosti syndrome (GCS) is a disease characterized by a symmetrical erythematopapulous, acral-based eruption. It affects mainly children under four years of age. In most cases a relationship with a viral infection or a vaccine can be established. The course of GCS is benign and self-limited, the manifestations disappearing within two to eight weeks, with no recurrence. We report the case of a five year-old girl who developed a Gianotti-Crosti Syndrome after an upper respiratory infection. Keywords: Gianotti-Crosti syndrome, papular acrodermatitis of childhood. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 57-58 BIBLIOGRAFIA 1. Harper J, Oranje A, Prose NS. Textbook of Pediatric Dermatology. Oxford, United Kingdom: Wiley-Blackwell, 2010. 2. Bolognia J, Jorizzo J, Rapini R. Dermatology. Mosby Elsevier, 2008. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Caso estomatológico José M. S. Amorim1 AMSL, sexo masculino, de 10 anos de idade foi enviado à consulta externa de Estomatologia da Unidade Pediátrica Maria Pia devido “ter dentes a mais no maxilar superior”. De acordo com informação prestada pela mãe, a criança fez erupção de dois dentes “bicudos” após a esfoliação dos decíduos e depois nasceram os dentes definitivos. Ao exame objetivo apresentava dois dentes supranumerários em forma de cone, em posição central maxilar. Os dentes incisivos centrais e laterais superiores encontravam-se em po- sição distal e rodados pela falta de espaço decorrente dos dois dentes supranumerários (Figura 1). Boa higiene oral e sem cáries. Realizou ortopantomografia que não revelou dentes inclusos. Face ao descrito: Qual o seu diagnóstico? Qual a sua atitude? Figura 1 __________ 1 Serviço de Estomatologia Hospital Maria Pia / CH Porto caso estomatológico oral pathology case 59 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 COMENTÁRIOS A situação clínica acima exposta refere-se a um caso de dentes supranumerários, com coroa em forma de cone, vulgarmente designados por mesiodens. O mesiodens é o dente supranumerário mais comum na arcada dentária, situado na linha média da maxila, entre os incisivos centrais superiores. A etiologia dos dentes inclusos ainda não é consensual: - Teoria da dicotomia: proliferação da lâmina dentária permanente ou decídua, de forma anómala; - Associados a distúrbios do desenvolvimento (Síndrome de Gardner, disostose cleidocraniana e fissuras lábio palatinas) e hereditariedade. Os dentes supranumerários são mais frequentes na dentição permanente, sendo a maxila o osso mais atingido e nesta a pré-maxila (90% dos casos que surgem na maxila). A incidência na maxila/mandibula é de 10:1. O sexo masculino é mais atingido que o feminino, sendo a proporção de 2:1. O aparecimento de dentes supranumerários pode levar ao aparecimento de alterações da oclusão: apinhamento dentário (dentes tortos), impactação de dentes permanentes (não erupção), atraso na erupção ou erupção ectópica, rotação dentária, diastemas, desenvolvimento de lesões quísticas, reabsorção dos dentes adjacentes. Todas estas potenciais complicações implicam que o diagnóstico de dente supranumerário deva ser precoce, para que o tratamento seja realizado o mais precocemente possível. 60 caso estomatológico oral pathology case O diagnóstico de dente supranumerário incluso é feito com a realização de uma ortopantomografia. O tratamento destas situações passa pela exérese dos dentes supranumerários e realização posterior de ortodontia. Neste caso, foi realizada a extração dos 2 dentes supranumerários, ficando um diastema de cerca de 8 mm que vai ser encerrado com a realização de ortodontia fixa, bem como alinhados e colocados na respetiva posição os 4 incisivos superiores. ABSTRACT A ten year-old boy was sent to the query Paediatric Dentistry for the presence of two supernumerary teeth was performed, orthodontic treatment will be performed in the correct time to the occlusion. Keywords: supernumerary tooth, early diagnosis, panoramic radiography, excision, orthodontics. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 59-60 BIBLIOGRAFIA Leache EB, Odontopediatria, Masson, 2003; pág. 60-8. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Caso hematológico Teresa São Simão1, Miguel Salgado2, Emília Costa3, José Barbot3 Criança de dois anos que após quatro dias do aparecimento de um exantema compatível com Varicela recorre ao Serviço de Urgência (SU) por um quadro de equimoses, petéquias, epistáxis e vómitos hemáticos com 24h de evolução. O exame objectivo revelava um bom estado geral, palidez da pele e mucosas, equimoses e petéquias dispersas. Figura 1 – Em D11 reticulocitose a emergir mas uma concentração de hemoglobina dos reticulócitos equilibrada __________ 1 2 3 S. Pediatria, CH Alto Ave, Guimarães S. Pediatria, ULS Alto Minho, Viana do Castelo U. Hematologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto Quais as hipóteses de diagnóstico? Que exames complementares solicitava? Figura 2 – Em D15 verifica-se diminuição da concentração da Hb dos resticulócitos Figura 3 – Em D26. Após introdução da terapêutica com ferro regista-se uma evolução favorável e uma recuperação da concentração da hemoglobina dos reticulócitos caso hematológico hematology case 61 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 DIAGNÓSTICO O hemograma revelava uma trombocitopenia (plaquetas 17000/mm3) e uma anemia (Hb 8,7 g/dl) normocítica normocrómica sem reticulocitose e RDW normal. A gravidade do quadro hemorrágico e o facto de a PTI estar documentada de forma consistente como complicação da Varicela 1,2,3, esteve na base do recurso à terapêutica com IgG ev (1g/kg em toma única). No entanto, a presença de uma bicitopenia, colocava o receio de diagnósticos alternativos, eventualmente mais graves, facto que esteve na base de um estudo analítico exaustivo (estudo da coagulação, Prova de Coombs, Marcadores víricos, estudo imunológico e estudo ecográfico – todos estes sem alterações) que incluiu Mielograma (Aspirado medular - “normocelular, com presença de todas as linhagens incluindo megacariócitos “) mesmo antes da avaliação da resposta terapêutica. Os três dias seguintes vieram, no entanto, dissipar estes receios. A contagem de plaquetas (Tabela 1) subiu e emergiu uma reticulocitose. O conteúdo de Hb dos reticulócitos (CHr-27pg) que em D11 era sobreponível ao conteúdo de Hb médio (CHm-26,2pg) sofre um decréscimo em D15 (CHr-23,3pg). Este achado foi interpretado como o início duma eritropoiese ferripriva resultado de perda hemorrágica que, por sua vez, teria resultado da trombocitopenia. Que tratamento? A introdução precoce da terapêutica com ferro resolveu de forma rápida este problema conforme pode ser documentado pelo valor do CHr de D26 (CHr-32,7pg). Os histogramas das figuras 1, 2 e 3 elucidam a evolução clínica desta entidade que se revelou benigna. Após cinco meses a criança está sem anemia e com contagem de plaquetas normal (Tabela 1). COMENTÁRIOS A presença de uma anemia em associação com uma trombocitopenia não inviabiliza à partida o diagnóstico de PTI já que uma hemorragia importante pode estar na origem da anemia. Esta hemorragia pode inclusivamente despoletar um défice agu- D5 D7 D11 D15 D26 Após 5 meses 8,7 7,3 8,3 9,5 10,5 12,7 Reticulócitos 47450 71300 196500 148700 184800 67600 RDW 13,5 % 14% 17% 16% 18,5% 15,3% Plaquetas 19000 50000 48000 39000 44000 370000 Hb Tabela 1 62 caso hematológico hematology case do de ferro susceptível de prejudicar a recuperação da anemia e protelar a caracterização da situação na sua globalidade. Dois dias após a introdução da Imunoglobulina endovenosa (D7) é documentada resposta terapêutica, com posterior normalização progressiva da trombocitopenia. A sequência de histogramas permitiu em D15 esclarecer a etiologia da anemia concomitante e medicá-la de forma atempada. O esclarecimento do quadro hematológico na sua globalidade (anemia e trombocitopenia) não foi no entanto suficientemente célere para evitar a realização de aspirado de medula óssea (D6). A opção por este procedimento resultou do receio de que a bicitopenia tivesse como causa subjacente uma patologia de origem medular. Este caso clínico permite reflectir sobre a atitude clínica perante um caso que, à partida parecia óbvio mas que se tornou complexo a partir do momento em que foram evocados os diagnósticos diferenciais de uma bicitopenia. IDIOPATHIC THROMBOCYTOPENIC PURPURA – A DIAGNOSIS IS NOT ALWAYS CLEAR ... ABSTRACT The immune thrombocytopenic purpura (ITP) is a controversial disease. The generality of the literature argues that a historical objective clinical examination and a blood count with careful observation of the peripheral blood smear is sufficient for diagnosis. Some cases contradict this belief. Keywords: Immune thrombocytopenic purpura, varicella, cytopenia. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 61-62 BIBLIOGRAFIA 1. Yenicesu I, Yetgin S, Ozyürek E, Aslan D. Virus associated immune thrombocitopenic purpura in childhood. Pediatr Hematol Oncol 2002; 19: 433-7. 2. Wright JF, Blanchette VS, Wang H, Arya N, Petric M, Semple JW, et al. Characterization of platelet-reactive antibodies in children with varicella-associated acute immune thrombocytopenic purpura (ITP). Br J Haematol 1996; 95: 145-52. 3. Arvin AM. Varicella-Zoster Virus. In: Long SS, Pickering LK, Prober CG, editors. Principles and Practice of Pediatric Infectious diseases. 3 rd ed. Philadelphia: Saunders Elsevier; 2008: chap 205. CORRESPONDÊNCIA Teresa São Simão E-mail: [email protected] NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 Genes, crianças e pediatras Esmeralda Martins1, Teresa Oliveira1, Anabela Bandeira1 CASO CLÍNICO Segunda filha de um casal não consanguíneo sem história de doenças heredo familiares. Gestação vigiada sem intercorrências, parto eutócico hospitalar às 39 semanas. A somatometria ao nascimento foi: peso 3100 gr (P 50), comprimento 49 cm (P 50) e perímetro cefálico 34 cm (P 50). O período neonatal decorreu sem intercorrências. Entre os um e quatro meses de idade o crescimento é rápido com passagem do percentil do comprimento de P 50 para P 90 como se pode ver na Figura 1, passando para um P superior a 95 após o ano de idade. O peso mantém-se no P50 e o perímetro cefálico no P 75. Figura 1 - Crescimento estaturoponderal O desenvolvimento psicomotor era normal para a idade. Após iniciar a escolaridade, aos seis anos de idade, é notada diminuição da acuidade visual tendo sido encaminhada para observação por oftalmologia onde foi detetada uma luxação bilateral e inferior do cristalino (Figura 2). Na primeira consulta é de salientar a estatura superior ao P 95 com diminuição da razão entre os segmentos superior e inferior. Qual o seu diagnóstico? Figura 2 - Luxação inferior do cristalino __________ 1 U. Doenças Metabólicas, H Maria Pia, CH Porto genes, crianças e pediatras genes, children and paediatricians 63 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 DISCUSSÃO A homocistinúria clássica é causada pelo défice em cistationina β sintetase, enzima cujo cofactor é a piridoxina e que permite a conversão da homocisteína em cistationina. O gene CBS, que codifica esta doença autossómica recessiva, está localizado no braço longo do cromossoma 21. A frequência da homocistinúria clássica é variável, sendo a incidência estimada de 1/200.000 na nossa população. É uma doença com início insidioso e envolvimento progressivo dos órgãos alvo nomeadamente olho (luxação do cristalino, miopia e glaucoma), esqueleto (membros longos, estatura alta e aracnodactilia que conferem aos doentes um fenótipo marfanoide), sistema vascular (tromboembolismo) e sistema nervoso central (atraso cognitivo e acidentes vasculares cerebrais). Ao nascimento a criança é normal, podendo a doença manifestar-se em qualquer idade desde a primeira infância á idade adulta. Embora em algumas crianças possa ser já evidente algum atraso de desenvolvimento psicomotor, o diagnóstico é efectuado geralmente após os dois anos de idade pelo envolvimento ocular, sendo com frequência o ofalmologista a alertar para o diagnóstico ao detectar a luxação do cristalino, que é evidente em 80% dos casos antes dos 10 anos de idade. A osteoporose está presente em praticamente todos os doentes, após a primeira infância levando a fracturas e escoliose. As alterações vasculares, caracterizadas por arteriosclerose prematura e complicações tromboembólicas das veias e artérias, são evidentes em 50% dos doentes antes dos 30 anos de idade condicionando o prognóstico desta doença pela sua elevada morbilidade e mortalidade. O atraso mental que é relativamente frequente (60 % dos casos), raramente é grave. Os marcadores bioquímicos que orientam o diagnóstico são um aumento da homocistina e metionina com níveis reduzidos de cistina e cistationina no perfil de aminoácidos séricos e urinários. Este diagnóstico deverá ser confirmado pelo doseamento da enzima cistationina β sintetase em fibroblastos ou pelo estudo molecular. Estão descritas mais de 130 mutações nesta doença. Estas mutações determinam a resposta à piridoxina sendo a evolução mais favorável nos casos que respondem a esta vitamina. Na Península Ibérica predominam as mutações não respondedoras, principalmente a T191M frequente no norte de Portugal. O objectivo do tratamento é reduzir os níveis de homocisteína total para níveis o mais próximo possível do normal. Cerca de 50% dos doentes respondem total ou parcialmente, à administração de doses suprafisiológicas de piridoxina. Nos casos em que 64 genes, crianças e pediatras genes, children and paediatricians não há resposta ou que a resposta é parcial o tratamento passa por uma dieta hipoproteica e pela administração de betaína (fármaco que cria uma via alternativa para eliminar a homocisteína). A suplementação com ácido fólico e vitamina B12 é também necessária. Apenas um tratamento precoce iniciado nas primeiras semanas de vida permite uma evolução totalmente normal a longo prazo, justificando a inclusão desta doença no rastreio neonatal. Em Portugal, o rastreio sistemático da homocistinúria é feito desde 2005. O aconselhamento genético deve ser efectuado a estas famílias e o diagnóstico pré natal é possível pelo estudo enzimático ou pelo estudo molecular em amniócitos ou nas vilosidades coriónicas. ABSTRACT Homocystinuria is an autosomal recessive disease due to cystathionine-synthase deficiency, with the gene CBS being located in chromosome 21. In its typical presentation the eye, skeleton, central nervous system, and vascular system are all involved. The patient is normal at birth and in non-treated patients tall stature and ectopia lentis may be the first symptoms, as in the case we present. Nascer e Crescer 2012; 21(1): 63-64 BIBLIOGRAFIA 1. Couce ML, Fraga JM. Homocistinuria y alteraciones del metabolismo de folate e vitamina B12. In: P. Sanjurjo, A. Baldellou, editors. Diagnostico y tratamiento de las enfermedades metabólicas hereditarias. 4th ed. Madrid: Ergon 2006; 357-75. 2. Andria G, Fowler B, Sebastio G. Disorders of sulfur amino acid metabolism. 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As opiniões expressas são da inteira responsabilidade dos autores. Os artigos publicados ficarão de inteira propriedade da Revista e não poderão ser reproduzidos, no todo ou em parte, sem prévia autorização dos editores. Manuscrito: Os trabalhos devem ser enviados à Direcção da Revista Nascer e Crescer – Hospital Crianças Maria Pia – Rua da Boavista, 827 – 4050111 Porto, ou endereçados a [email protected] como documento anexo em qualquer versão actual de Microsoft Word, acompanhados da declaração de autoria. Todos os elementos do trabalho, incluindo a iconografia, se remetidos por correio, devem ser enviados em formato electrónico. Os artigos deverão ser redigidos conforme as normas abaixo indicadas e cabe ao Editor a responsabilidade de os: - aceitar sem modificações, - aceitar após alterações propostas, - ou rejeitar, com base no parecer de pelo menos dois revisores que os analisarão de forma anónima. Os pareceres dos peritos e os motivos de recusa serão sempre comunicados aos autores. Consentimento informado e aprovação pela Comissão de Ética: É da responsabilidade dos autores garantir que são respeitados os princípios éticos e deontológicos, bem como, a legislação e as normas aplicáveis, conforme recomendado na Declaração de Helsínquia. Nos estudos experimentais, é obrigatório que os autores mencionem a existência e aplicação de consentimento informado dos participantes, assim como a aprovação do protocolo pela Comissão de Ética. Deve constar declaração de conflito de interesses ou financiamento. NORMAS DE PUBLICAÇÃO A Revista Nascer e Crescer subscreve os requisitos para apresentação de manuscritos a revistas biomédicas elaboradas pela Comissão Internacional de Editores de Revistas Médicas (Uniform Requirements for Manuscripts submitted to biomedical journals. http://www.icmje.org. Updated October 2008). Todos os elementos do trabalho incluindo a iconografia, devem ser enviados em suporte electrónico. O trabalho deve ser apresentado na seguinte ordem: 1- Título em português e em inglês; 2- Autores; 3- Resumo em português e inglês. Palavras--chave e Keywords; 4- Texto; 5- Bibliografia; 6- Legendas; 7Figuras; 8- Quadros; 9- Agradecimentos e esclarecimentos; 10- Em destaque. As páginas devem ser numeradas segundo a sequência referida atrás. No caso de haver segunda versão do trabalho, este deve também ser enviado em formato electrónico. Títulos e autores: Escrito na primeira página, em português e em inglês, o título deve ser o mais conciso e explícito possível. A indicação dos autores deve ser feita pelo nome clínico ou com a(s) inicial(ais) do(s) primeiro(s) nome(s), seguida do apelido e devem constar os títulos ou cargos de todos os autores, bem como as afiliações profissionais. No fundo da página devem constar os organismos, departamentos ou serviços hospitalares ou outros em que os autores exercem a sua actividade, o centro onde o trabalho foi executado, os contactos do autor responsável pela correspondência (endereço postal, endereço electrónico e telefone). Resumo e palavras-chave: O resumo deverá ser redigido na língua utilizada no texto e sempre em português e em inglês. No que respeita aos artigos originais deverá compreender no máximo 250 palavras e ser elaborado segundo o seguinte formato: Introdução, Objectivos, Material e Métodos, Resultados e Conclusões. Os artigos de revisão devem ser estruturados da seguinte forma: Introdução, Objectivos, Desenvolvimento e Conclusões. Relativamente aos casos clínicos, não deve exceder 150 palavras e deve ser estruturado em Introdução, Caso Clínico e Discussão/Conclusões. Abaixo do resumo deverá constar uma lista de três a dez palavras-chave, em Português e Inglês, por ordem alfabética, que servirão de base à indexação do artigo. Os termos devem estar em concordância com o Medical Subject Headings (MeSH). Texto: O texto poderá ser apresentado em português, inglês, francês ou espanhol. Os artigos originais devem ser elaborados com a seguinte organização: Introdução; Material e Métodos; Resultados; Discussão e Conclusões. Os artigos de revisão devem obedecer à seguinte estrutura: Introdução, Objectivos, Desenvolvimento e Conclusões. Os casos clínicos devem ser exemplares, devidamente estudados e discutidos e conter uma breve introdução, a descrição do(s) caso(s) e uma discussão sucinta que incluirá uma conclusão sumária. As abreviaturas utilizadas devem ser objecto de especificação anterior. Não se aceitam abreviaturas nos títulos dos trabalhos. Os parâmetros ou valores medidos devem ser expressos em unidades internacionais (SI units, The SI for the Health Professions, WHO, 1977), utilizando para tal as respectivas abreviaturas adoptadas em Portugal. Os números de 1 a 10 devem ser escritos por extenso, excepto quando têm decimais ou se usam para unidades de medida. Números superiores a 10 são escritos em algarismos árabes, excepto se no início da frase. Bibliografia: As referências devem ser classificadas e numeradas por ordem de entrada no texto, com algarismos árabes. Os números devem seguir a ordem do texto, e ser colocados superiores à linha. Serão no máximo 40 para artigos originais e 15 para casos clínicos. Os autores devem verificar se todas as referências estão conformes aos Uniform Requirements for Manuscript submitted to biomedical journals (www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html) e se utilizam os nomes abreviados das publicações adoptadas pelo Índex Medicus. Os autores devem consultar a página NLM’s Citing Medicine relativamente às recomendações de formato para os vários tipos de referência. Seguem-se alguns exemplos: a) Revistas: listar os primeiros seis autores, seguidos de et al se ultrapassar 6, título do artigo, nome da revista (utilizar as abreviaturas do Index Medicus), ano, volume e páginas. Ex.: Haque KN, Zaidi MH SK,et al. Intravenous Immunoglobulin for prevention of sepsis in preterm and low birth weight infants. Pediatr Infect Dis 1986; 5:622-65. b) Capítulos em livros: nome(s) e iniciais do(s) autor(es) do capítulo ou da contribuição. Nome e iniciais dos autores médicos, título do livro, cidade e nome da casa editora, ano de publicação, primeira e última páginas do capítulo. Ex.: Phillips SJ, Whisnant JP. Hypertension and stroke. In: Laragh JH, Brenner BM, editors. Hypertension: pathophysiology, diagnosis, and management. 2nd ed. New York: Raven Press; 1995. p. 465-78. c) Livros: Nome(s) e iniciais do(s) autor(es). Título do livro. Número da edição. Cidade e nome da casa editora, ano de publicação e número de página. Ex.: Berne E. Principles of Group Treatment. New York: Oxford University Press, 1966:26. Figuras e Quadros: Todas as ilustrações deverão ser apresentadas em formato digital de boa qualidade. Cada quadro e figura deverá ser numerado sequencialmente por ordem de referência no texto, ser apresentado em página individual e acompanhado de título e legenda explicativa quando necessário. Todas as abreviaturas ou símbolos necessitam de legenda. Se a figura ou quadro é cópia de uma publicação ou modificada, deve ser mencionada a sua origem e autorização para a sua utilização quando necessário. Fotografias ou exames complementares de doentes deverão impedir a sua identificação devendo ser acompanhadas pela autorização para a sua publicação dada pelo doente ou seu responsável legal. O total de figuras e quadros não deve ultrapassar os oito para os artigos originais e cinco para os casos clínicos. As figuras ou quadros coloridos, ou os que ultrapassam os números atrás referidos, serão publicados a expensas dos autores. Agradecimentos e esclarecimentos: Os agradecimentos e indicação de conflito de interesses de algum dos autores ou financiamento do estudo devem figurar na última página. Destaque: Incluir três a quatro frases curtas (até 50 palavras cada) salientando os aspectos mais relevantes do trabalho. Estas deverão ser escritas em português e em inglês. Modificações e Revisões: No caso do artigo ser aceite mas sujeito a modificações, estas devem ser realizadas pelos autores no prazo de quinze dias. As provas tipográficas serão enviadas aos autores em formato electrónico, contendo a indicação do prazo de revisão em função das necessidades de publicação da Revista. O não respeito do prazo desobriga a aceitação da revisão dos autores, sendo a mesma efectuada exclusivamente pelos serviços da Revista. normas de publicação instructions for authors 65 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2012, vol XXI, n.º 1 INSTRUCTIONS FOR AUTHORS The Journal NASCER E CRESCER is addressed to all professionals of Health with interest in the area of Maternal and Child/Adolescent Health and publishes scientific articles related with Paediatrics, Perinatology, Childhood and Adolescence Mental Health, Bioethics and Health Care Management. The Editorials, the articles of Homage and articles of cultural scope are published under request of the Direction of the journal. The Journal publishes original articles, review articles, case reports and opinion articles. The articles submitted must not have been published previously in any form. The opinions therein are the full responsibility of the authors. Published articles will remain the property of the Journal and may not be reproduced, in full or in part, without the prior consent of the editors. Manuscripts for publication should be addressed to the editor of the journal: NASCER E CRESCER, Hospital Maria Pia, Rua da Boavista, 827 – 4050111 Porto, Portugal, or to [email protected] and must be accompanied by the declaration of authorship by all authors. If using postal correspondence a full digital copy of the manuscript should also be sent. Submitted articles should follow the instructions below, and are subject to an editorial screening process based on the opinion of at least two anonymous reviewers. Articles may be: - accepted with no modifications, - accepted with corrections or modifications, - or rejected. Authors will always be informed of the reasons for rejection or of the comments of the experts. Informed consent and approval by the Ethics Committee: It is responsibility of the authors to guarantee the respect of the ethical and deontological principles, as well as legislation and norms applicable, as recommended by the Helsinki Declaration. In research studies it is mandatory to have the written consent of the patient and the approval of the Ethics Committee, statement of conflict of interest and financial support. MANUSCRIPT PREPARATION Nascer e Crescer complies with the recommendations of the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) (Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals. http://www.icmje.org. Updated October 2008). All the components of the paper, including images must be submitted in electronic form. The papers must be presented as following: 1- Title in Portuguese and English; 2- Authors; 3- Abstract in Portuguese and English and key words; 4- Text; 5- References; 6- Legends; 7- Figures; 8- Tables; 9- Acknowledgements; 10- Highlights. Pages should be numbered according the above sequence. If a second version of the paper is submitted, it should also be sent in electronic format. Title and Authors: The first page should contain the title in Portuguese and English. The title should be concise and revealing. A separate page should contain name(s) degree(s), the authors’ professional affiliations, the name and the contact details of the corresponding author (postal address, electronic address and telephone), and the name of the Institutions where the study was performed. Abstract and Keywords: The abstract should be written in the same language of the text and always in Portuguese and English, provide on a separate page of not more than 250 words for original papers and a 150 words for case reports. For original papers the abstract should consist of four paragraphs, labelled Background, Methods, Results and Conclusions. Review articles should obey the following: Introduction, Past landmarks and Present developments and Conclusions. Case report abstracts should contain an Introduction, Case report and Discussion/Conclusions. Do not use abbreviations. Each abstract should be followed by the proposed Keywords in Portuguese and English in alphabetical order, minimum of three and maximum of ten. Use terms from the Medical Subject Headings from Index Medicus (MeSH). 66 normas de publicação instructions for authors Text: The text may be written in Portuguese, English, French or Spanish. The original articles should contain the following sections: Introduction; Material and Methods; Results; Discussion and Conclusions. The structure of review articles should include: Introduction, Past landmarks and Present developments and Conclusions. The case reports should be unique cases duly studied and discussed. They should contain: a brief Introduction, Case description and a succinct Discussion or Conclusion. Any abbreviation used should be spelled out the first time they are used. Abbreviations are not accepted in the titles of papers. Parameters or values measured should be expressed in international (SI units, The SI for the Health Professions, WHO, 1977), using the corresponding abbreviations adopted in Portugal. Numbers 1 to 10 should be written in full, except in the case of decimals or units of measurements. Numbers above 10 are written as figures except at the beginning of a sentence. References: References are to be cited in the text by Arabic numerals, and in the order in which they are mentioned in the text. They should be limited to 40 to original papers and 15 to case reports. The journal complies with the reference style in the Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to Biomedical Journals (www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html). Abbreviate journal titles according to the List of Journals Indexed in Index Medicus. Authors should consult NLM’s Citing Medicine for information on its recommended formats for a variety of reference types. The following details should be given in references to (a) journals, (b) chapters of books by other authors, or (c) books written or edited by the same author: a) Journals: Names of all authors (except if there are more than six, in which case the first three are listed followed by “et al.”), the title of the article, the name of the journal (using the abbreviations in Index Medicus), year, volume and pages. Ex: Haque KN, Zaidi MH SK,et al. Intravenous Immunoglobulin for prevention of sepsis in preterm and low birth weight infants. Pediatr Infect Dis 1986; 5:622-65 b) Chapters of books: Name(s) and initials of the author(s) of the chapter or contribution cited. Title and number of the chapter or contribution. Name and initials of the medical editors, title of book, city and name of publisher, year of publication, first and last page of the chapter. Ex: Phillips SJ, Whisnant JP. Hypertension and stroke. In: Laragh JH, Brenner BM, editors. Hypertension: pathophysiology, diagnosis, and management. 2nd ed. New York: Raven Press; 1995. p. 465-78. c) Books: Name(s) and initials of the author(s). Title of the book. City and name of publisher, year of publication, page. Ex: Berne E. Principles of Group Treatment. New York: Oxford University Press, 1966:26. Tables and Figures: All illustrations should be in digital format of high quality. Each table and figure should be numbered in sequence, in the order in which they are referenced in the text. They should each have their own page and bear an explanatory title and caption when necessary. All abbreviations and symbols need a caption. If the illustration has appeared in or has been adapted from copyrighted material, include full credit to the original source in the legend and provide an authorization if necessary. Any patient photograph or complementary exam should have patients’ identities obscured and publication should have been authorized by the patient or legal guardian. The total number of figures or tables must not exceed eight for original articles and five for case reports. Figures or tables in colour, or those in excess of the specified numbers, will be published at the authors’ expense in the paper version Acknowlegments: All authors are required to disclose all potential conflicts of interest. All financial and material support for the research and the work should be clearly and completely identified in an Acknowledgment section of the manuscript. Highlights: They should include three to four short sentences (each limited to 50 words) emphasizing the relevant message of the study. These should be written in Portuguese and English. Modifications and revisions: If the paper is accepted subject to modifications, these must be submitted within fifteen days of notification. Proof copies will be sent to the authors in electronic form together with an indication of the time limit for revisions, which will depend on the Journal’s publishing schedule. Failure to comply this deadline will mean that the authors’ revisions may not be accepted, any further revisions being carried out by the Journal’s staff. -