Introdução ao Islampopular!
Transcrição
Introdução ao Islampopular!
2 Está é uma publicação do departamento religioso do Centro de Divulgação do Islam Para América Latina, que tem como objetivo educar, esclarecer e divulgar a crença, prática e os ensinamentos da religião Islâmica. Presidente do CDIAL Ahmad Ali Saifi Editor Responsável Ziad Ahmad Saifi Produção Editorial Editora Makkah Projeto Gráfico e Capa Editora Makkah Distribuição Gratuita 2012 IMPRESSO NO BRASIL INTRODUÇÃO AO ISLAM Dr. Mohammad Hamidullah O Profeta do Islam- Sua Biografia Nos anais da historia dos, não tem faltando aqueles que notadamente devotaram as suas vidas à reforma sócio-religiosa dos seus povos. Encontramo-los em todas as épocas e em todas as partes. Na Índia, viveram os que transmitiram ao mundo os Vedas, e também houve o grande Gautama Buda; a China teve seu Confúcio; Zoroastro deixou o Zend Avesta, no Irã. A Babilônia deu ao mundo um dos maiores reformadores, o Profeta Abraão (sem falar nos ancestrais deste, tais como Enoque e Noé, sobre os quais temos poucas informações). O povo judeu também merece orgulhar-se de uma longa série de reformadores, como Moisés, Samuel, Davi, Salomão e Jesus, entre outros. Todos esses reformadores alegavam, ser os portadores, cada um deles, de uma missão divina. Deixaram livros sagrados, que incorporavam códigos de vida para orientação dos seus povos. Mas, a isto, sempre se seguiam guerras fratricidas, massacres e genocídios transformavam-se na ordem do dia, ocasionando, uns mais, outros menos, a perda quase total das suas mensagens. Dos livros de Abraão, restaram-nos somente os nomes; e quanto aos livros de Moisés, a história nos conta como foram repetidamente destruídos e só parcialmente restaurados. O Conceito de Deus A julgar pelas relíquias do passado, já trazido à luz, do conhecimento do homo sapiens, descobrimos que o homem sempre esteve consciente da existência de um Ser Supremo, Senhor e Criador de tudo. Os métodos e as abordagens podem ter sido diferentes, mas todos os povos, de todas as épocas, deixaram provas das suas tentativas de obedecer a Deus. A comunicação com o Onipresente, porem invisível Deus, também foi reconhecida como possível, por uma reduzida porção de homens e por alguns espíritos nobres e exaltados. Se essa comunicação assumia a forma de encarnação da Divindade, ou consistia, simplesmente, na resolução de um meio receptor das mensagens divinas, através da inspiração ou da revelação, o propósito sempre foi o de servir de orientação para o povo. Era mais do que natural que certas interpretações e explicações viessem a se provar mais importantes e convincentes do que outras. No final do 5° século, após o nascimento de Jesus Cristo, os homens já haviam alcançado grandes progressos, em diversos campos da vida. Nessa época algumas religiões, que apregoavam abertamente que se destinavam apenas a determinadas raças e grupos de homens, esta claro que não ofereciam remédio 6 para os males da humanidade em geral. Havia, também, algumas que proclamavam a universalidade, mas declaravam que a salvação do homem residia na renuncia ao mundo. Estas eram religiões para a elite, e atendiam a um numero limitado de homens. Não precisamos falar das regiões onde inexistia qualquer religião, onde o ateísmo e o materialismo reinavam absolutos, onde o pensamento se ocupava exclusivamente com os próprios prazeres, sem qualquer ressalva ou consideração pelos direitos alheios. O exame do mapa do maior hemisfério (do ponto de vista da proporção de terra e mar) nos mostra a Península Arábica, situada no ponto de confluência dos três grandes continentes: a Ásia, a África e a Europa. Nesse período, esse extenso subcontinente arábico, composto principalmente, por regiões desérticas, era habitado por povos sedentários, tanto quanto por nômades. Não raro, membros da mesma tribo dividiam-se entre ambos os modos de vida, e preservavam o seu relacionamento, apesar de seguirem tais caminhos diferentes. Os meios de subsistência, na Arábia, eram escassos. O deserto oferecia inúmeras desvantagens, fazendo com que as caravanas comerciais tivessem uma importância maior do que a agricultura e a indústria. Isto implicava em viagens constantes, fazendo com que os homens ultrapassassem a península, para adentrar a Síria, Egito, Abissínia, Iraque, Índia e outras terras. Pouco sabemos a respeito dos lihyanitas da Arábia Central, mas o Iêmen era justificadamente conhecido como Arábia Felix. Tendo outrora sido a sede das civilizações florescentes de Saba e de Ma’in, antes mesmo da fundação de Roma, e tendo, posteriormente, conquistado algumas províncias de Bizâncio e dos persas, o grande Iêmen, que havia passado pelos melhores dias de sua existência, encontrava-se, nessa altura, repartido em inúmeros principados, e em parte até ocupado por invasores estrangeiros. Os sassânidas do Irã, que haviam penetrado no Iêmen, já se tinham apossado da Arábia Oriental. Na capital Mada’in (Ctesifonte), reinava o caos sócio-político, que se refletia nos demais territórios. A Arábia do Norte havia sucumbido sob a influência bizantina, e enfrentava os seus próprios problemas. Somente a Arábia Central permanecia imune aos efeitos desmoralizantes da ocupação estrangeira. Nesta área limitada, a existência do triangulo Makka – Ta’if – Madina parecia algo providencial. Makka, desértica, carente de água e dos benefícios da agricultura, representava, por suas características físicas, a África e o escaldante deserto. A uns meros oitenta quilômetros de distancia, Ta’if apresentava um retrato da Europa, com as suas geadas. Madina, situada mais ao Norte, não era menos fértil do que países mais temperados, como a Síria. Se é que o clima ex7 ercia alguma influencia na natureza do caráter humano, este triangulo situado no centro do maior hemisfério, era do mundo todo. E foi aí que nasceu um descendente de Abraão da Babilônia e da egípcia Hagar, Muhammad, o Profeta do Islam, natural de Makka por nascimento, mas relacionado consanguineamente, tanto a Madina como a Ta’if. A Religião Do ponto de vista religioso, a Arábia era idólatra; somente uns poucos indivíduos haviam abraçado religiões como o cristianismo, o masdeísmo, etc. os nativos de Makka possuíam uma noção do Deus Único, porem acreditavam, também que os ídolos tinham poder de interceder junto a Ele. Curiosamente, eles não acreditavam na Ressurreição e na Outra Vida. Haviam preservado o ritual da peregrinação ao Deus Único, à Caaba, um costume instituído por inspiração divina ao seu ancestral, Abraão; entretanto, os dois mil anos que os separavam do tempo de Abraão haviam degenerado essa peregrinação, transformando-a num espetáculo de feira comercial e numa oportunidade para a idolatria insensata, o que, longe de produzir qualquer bem, servia tão somente para corromper o seu comportamento individual, tanto no contexto social, como no espiritual. A Sociedade A despeito da relativa pobreza de recursos naturais, Makka era o mais desenvolvido, dos três núcleos do triangulo. Dos três, somente Makka se constituíra em Cidade-Estado, sendo governada por um conselho de dez chefes hereditários, que desfrutavam de uma nítida divisão de poderes. Havia um ministro das relações exteriores, um ministro, guardião do templo, um ministro dos oráculos, um ministro, guardião das oferendas ao templo, outro, para determinados pagamentos e indenizações, e outro, ainda, encarregado do conselho municipal ou parlamento, incubido de assegurar a axecução das decisões dos ministros. Havia, também, ministros, encarregados de assuntos militares, tais como a custodia da bandeira, a liderança da cavalaria, etc. gozando de boa reputação como caravaneiros, os nativos de Makka conseguiam obter permissão dos impérios vizinhos do Irã, Bizâncio e Abissínia, bem como firmar tratados com as tribos que habitavam as rotas usadas por tais caravanas, para transitar por seus territórios e negociar, no comercio de importação e exportação. Eles também proporcionavam escolta para os estrangeiros que passassem pelo seu país, bem como pelos territórios das tribos suas aliadas da Arábia. Apesar de não estarem muito interessados em preservar idéias e registros escritos, cultiva8 vam, apaixonadamente as artes e as letras, como a poesia, a oratória e historias folclóricas. As mulheres eram, em geral, bem tratadas, desfrutavam do privilegio de possuir propriedades por direito próprio, e eram consentidos contratos de casamento em que elas podiam, inclusive, acrescentar clausulas que lhes reservassem o direito de se divorciarem dos seus maridos. Podiam casar-se novamente, quando enviuvavam ou se divorciavam. Em certas partes, realmente existiu o costume de enterrar filhas vivas, mas isto era raro. O Nascimento do Profeta Foi nesse meio-ambiente e nessas condições de vida que, no ano 570 d.C., nasceu Muhammad. Seu pai, Abdullah, havia falecido algumas semanas antes, e foi seu avô que se encarregou de criá-lo. De acordo com os costumes da época, a criança foi confiada aos cuidados de uma ama beduína, com quem passou alguns anos no deserto. Todos os seus biógrafos afirmam que o Profeta infante mamou somente de um seio de sua ama, deixando o outro para o sustento de seu meio irmão. Quando a criança foi trazida de volta ao lar, sua mãe, Amina, levou-a aos seus tios maternos, em Madina. Durante a viagem de retorno, ele perdeu a mãe, que sucumbiu de morte repentina. Em Makka, outra desolação o aguardava, o falecimento do seu afetuoso avô. Submetido a tais privações aos oito anos de idade, ele se viu finalmente entregue aos cuidados do seu tio, Abu Tálib, um homem generoso por sua natureza, mas cujos recursos estavam sempre aquém até das necessidades da sua própria família. O jovem Muhammad se viu, portanto, diante da necessidade de procurar imediatamente um meio de ganhar a vida; serviu, inicialmente, como menino-pastor para alguns vizinhos. Com dez anos, acompanhou o seu tio à Síria, quando este levou uma caravana para lá. Não se mencionam quaisquer outras viagens de Abu Tálib, mas existem referencias de que ele teria aberto um negocio em Makka. É possível que Muhammad o tenha ajudado, também, nesse empreendimento. Aos vinte e cinco anos de idade, Muhammad havia-se tornado bem conhecido na cidade, por sua integridade, disposição e honestidade de caráter. Uma viúva rica, Khadija, tomou-o a seu serviço e determinou-lhe que levasse as suas mercadorias, para vendê-las na Síria. Feliz com os lucros incomuns que ele obteve, bem como encantada pelo carisma pessoal do seu agente, ela ofereceu-lhe a sua mão. Diz-se que na época ela tinha quarenta anos de idade. A união foi feliz. Mais tarde, vêmo-lo, às vezes na feira de Hubacha (no Iêmen), e pelo menos uma vez no país dos ‘Abd al-Kais (Bahrain-Omã), como foi mencionado por Ibn 9 Hanbal. Há motivos para acreditar que esta referencia diz respeito ao grande mercado de Dabá’ (Omã) onde, de acordo com Ibn Al-Kalbi, se reuniam todos os anos, os mercadores da China, do Hind e Sind (India, Paquistao), da Pérsia, do Oriente e, também, a um sócio comercial de Muhammad, em Makka. Esta pessoa, de nome Sa’ib, relata: “Revezávamo-nos um ao outro; se Muhammad liderava a caravana, não ia para casa, ao retornar, sem antes acertar as contas comigo, e se era eu que liderava a caravana, quando voltava, ele perguntava sobre o meu bem-estar, sem nada dizer do capital que me estava confiado.” Uma Ordem de Mérito Mercadores estrangeiros traziam frequentemente, os seus bens para vender em Makka. Um dia, certo iemenita (da tribo de Zabid), improvisou uma sátira poética contra alguns nativos de Makka, que se haviam recusado a pagar-lhe o preço de que lhes havia vendido, e outros que não haviam confirmado as suas alegações ou que haviam se omitido de ajudá-lo, quando ele foi espoliado. Zubair, tio e chefe da tribo do Profeta, sentiu grande remorso, só em ouvir essa sátira. Convocou uma reunião de certos chefes da cidade, e organizou uma Ordem de Cavalheiros, chamada Hilf al-fudul, com o objetivo de ajudar os oprimidos em Makka, independentemente de serem habitantes da cidade ou estrangeiros. O jovem Muhammad tornou-se um membro entusiasta dessa organização. Mais tarde, costumava dizer: “Participei dela, e não estou disposto a renunciar a esse privilegio, mesmo por uma caravana de camelos; se, ainda hoje, alguém viesse pedir a minha ajuda, em virtude daquele juramento, eu me apressaria em socorrê-lo. Inicio da Conscientização Religiosa Pouco se sabe sobre os hábitos religiosos de Muhammad, até os seus trinta e cinco anos de idade, exceto que ele jamais adorou ídolos. Esta afirmação é consubstanciada pelos seus biógrafos. Pode se afirmar que havia alguns outros poucos em Makka que, do mesmo modo, se haviam revoltado contra a pratica insensata do paganismo apesar de manterem a sua fidelidade à Caaba, como a casa dedicada ao Deus Único, por seu construtor, Abraão. Aproximadamente no ano 605 da era crista, os panos que cobriam a parede externa da Caaba se incendiaram. O edifício foi afetado e não suportou o peso das chuvas torrenciais, que se seguiram. A reconstrução da Caaba foi, então, apreendida. Cada cidadão contribuiu, de acordo com as suas posses; e só eram aceitas doações, provenientes de ganhos honestos. Todos participaram do tra10 balho de reconstrução, e os ombros de Muhammad ficaram feridos, de tanto carregar pedras. Para identificar o local onde se inicia o ritual de circungira-la, foi embutida uma rocha negra, na parede da Caaba, que provavelmente datava da época do próprio Abraão. Houve rivalidade entre os cidadãos, pela honra de recolocar a pedra em seu lugar. Ao surgir o risco de correr sangue, alguém sugeriu que deixasse o assunto por conta de Providencia, e assim, se aceitasse o arbítrio daquele que calhasse chegar ali primeiro. Aconteceu que naquela hora Muhammad chegava para ajudar no trabalho, como era normal. Ele era popularmente conhecido pela alcunha de al-Amin (o honesto), e todos aceitaram o seu arbítrio, sem hesitar. Muhammad colocou um pano no chão, colocou a pedra sobre ele e pediu aos chefes de todas as tribos da cidade para, juntos, levantarem o pano. Feito isto, ele próprio colocou a pedra no seu lugar certo, em um dos cantos do edifício, ficando todos muito satisfeitos. É desse momento em diante que encontramos Muhammad cada vez mais e mais absorvido em meditações espirituais. Como seu avô, ele também costumava retirar-se, durante o mês inteiro de Ramadan, para uma caverna em Jabal-an-Nur (a Montanha da Luz). Essa caverna é chamada de Ghári-Hirá, ou caverna da pesquisa. Ali ele orava, meditava e compartilhava as suas parcas provisões com os viajantes, que calhassem passar por lá. A Revelação Estava ele com quarenta anos de idade, e era o quinto ano consecutivo, desde que iniciara os seus retiros anuais, quando, certa noite, próximo ao final do mês de Ramadan, um anjo veio visitá-lo, e anunciar que Deus o havia escolhido, como Seu Mensageiro para toda a humanidade. O anjo ensinou a ele os modos das abluções, o modo de cultuar a Deus e de conduzir a oração. E comunicou-lhe a seguinte mensagem divina: “Le, em nome do teu Senhor, que criou; criou o homem de um coagulo; lê, que o teu Senhor e Generosíssimo, que ensinou através do cálamo. Ensinou ao homem o que este não sabia.” (96a Surata, versículos 1-5) Profundamente comovido, ele voltou para casa e contou o acontecido a sua esposa, expressando o seu temor de que pudesse ter sido algo diabólico, ou feito por ação de espíritos malignos. Ela o consolou, dizendo que ele sempre fora um homem caridoso e generoso, que sempre ajudara os pobres, os órfãos, as viúvas e os necessitados, e assegurou-lhe que Deus o protegeria contra todo o mal. 11 Sobreveio, então, um lapso na revelação, que duraria mais de três anos. O Profeta deve ter sentido, inicialmente, um choque, seguido por uma calmaria, um desejo ardente, e, após um certo tempo de expectativa, uma crescente impaciência. As novas da sua primeira visão haviam-se espalhado e, diante do lapso, os céticos da cidade começaram a escarnecer dele e a contar piadas maldosas. Chegaram ao ponto de dizer que Deus o havia abandonado. Durante os três anos de espera, o Profeta se entregara mais e mais as orações e a outros hábitos espirituais. Finalmente, reiniciaram-se as revelações, e Deus assegurou-lhe que de modo algum o havia abandonado; pelo contrario, fora Ele quem o guiara no caminho reto; que, portanto ele deveria cuidar dos órfãos e dos desamparados, e proclamar a generosidade que Deus tivera para com ele. Que o teu Senhor não te abandonou, nem te odiou. E sem dúvida que a outra vida será melhor, para ti, do que a presente. Logo o teu Senhor te agraciará, de um modo que te satisfaça. Porventura, não te encontrou órgão e te amparou? Não te encontrou extraviado e te encaminhou? Não te achou necessitado e te enriqueceu? Portanto, não maltrates o órfão, nem tampouco repudies o mendigo, mas divulga a mercê do teu Senhor, em teu discurso. (93a Surata, versículos 3-11) Na verdade, esta foi uma ordem para pregar. Outra revelação mandou-o alertar as pessoas contra as praticas ilícitas, exortá-las a não louvar nenhuma outra divindade, alem do Deus Único, e abandonar tudo o que desagradasse a Deus. Levante-te e admoesta! E enaltece o teu Senhor! E purifica as tuas vestimentas! E foge da abominação! E não esperes qualquer aumento (em teu interesse), mas persevera, pela causa do teu Senhor. (74a Surata, versículos 2-7) Ainda outra revelação ordenou-lhe avisar os seus próprios parentes mais próximos. Proclama, pois, o que te tem sido ordenado, e afasta-te dos idolatras. (15a Surata, versículo 94) A Missão O profeta começou a anunciar a sua missão, primeiro secretamente e entre os seus amigos mais íntimos, depois entre membros da sua própria tribo e, daí por diante, publicamente, pela cidade e pelos seus subúrbios. Ele insistiu 12 na crença no Deus Único e Transcendente, na Ressurreição e no Juízo Final. Conclamou os homens a caridade e a beneficência. E tomou as providencias necessárias para preservar, por escrito, as revelações que estava recebendo, ordenando aos seus partidários que também as decorassem. E isto continuou durante toda a sua vida, uma vez que o Alcorão não foi revelado todo de uma só vez, mas em fragmentos, conforme surgia a ocasião para tal. O número dos seus partidários aumentou gradativamente; mas, diante da denúncia do paganismo, a oposição também se tornou mais intensa, por parte daqueles que estavam firmemente ligados às suas crenças ancestrais. Essa oposição degenerou, ao longo, na perseguição e na tortura física do Profeta e daqueles que haviam abraçado a sua religião. Estes eram estirados sobre areias escaldantes, cauterizados com ferros em brasa e presos com correntes nos pés. Alguns deles morreram das conseqüências da tortura, mas nenhum renunciou à sua religião. Em desespero, o Profeta Muhammad aconselhou os seus companheiros a deixarem a sua cidade de origem e a se refugiarem no exterior, na Abissínia, “onde governa um governante justo, em cujo reino ninguém é oprimido”. Dezenas de muçulmanos se beneficiaram desse conselho, ma não todos. Essas fugas em segredo incitaram uma perseguição maior, àqueles que ficaram para trás. O Profeta Muhammad chamou a sua religião de “ISLAM”, isto é, submissão à vontade de Deus. As características que a distinguem são duas: 1) Um equilíbrio harmônico entre as coisas temporais e espirituais (o corpo e a alma), que permite desfrutar, por inteiro, de todas as graças, criadas por Deus, prescrevendo, ao mesmo tempo, para todos, deveres para com Deus, tais como o culto, do jejum, da caridade, etc. o Islam veio para ser a religião das massas e não apenas de uns poucos eleitos. 2) A universalidade do chamamento, para que todos os crentes se tornem irmãos e iguais, sem qualquer distinção de classe, raça ou idioma. A única superioridade que ela admite é exclusivamente pessoal, baseada no maior temor a Deus e na maior devoção. Boicote Social Quando um grande número de muçulmanos de Makka emigrou para a Abissínia, os lideres do paganismo deram um ultimato à tribo do Profeta, exigindo que ele fosse excomungado, declarado fora da lei, e entregue aos 13 pagãos, para ser morto. Todos os membros da tribo, muçulmanos ou não, rejeitaram a exigência. Em conseqüência dessa recusa, a cidade decidiu impor um boicote total à tribo: ninguém podia falar, manter relações comerciais ou matrimoniais com seus membros ou. As tribos que habitavam os subúrbios, que eram aliadas dos de Makka, também aderiram ao boicote, causando uma abjeta miséria entre as vitimas inocentes, crianças, homens e mulheres, velhos, doentes e fracos. Alguns sucumbiram, mas ninguém concordou em entregar o Profeta aos seus perseguidores. Após três anos, quatro ou cinco não-muçulmanos, mais humanos do que os demais e pertencendo a clãs diferentes, proclamaram o seu repudio ao injusto boicote. Ao mesmo tempo, o documento, promulgando o pacto do boicote, que havia sido exposto no templo, foi encontrado, como profetizado por Muhammad, roído por formigas brancas, até que não lhe sobraram senão as palavras “Deus” e “Muhammad”. O boicote foi suspenso, mas devido às privações por que tivera de passar, a esposa e o tio do Profeta faleceram em seguida. Outro tio do Profeta, Abu-Lahab, que era um inimigo inveterado do Islam, assumiu, então, a chefia da tribo. A Ascensão Foi por esse tempo que o Profeta Muhammad teve a ascensão (mi’raj): ele se viu, numa visão, sendo recebido no céu por Deus, testemunhando as maravilhas das regiões celestiais. Ao voltar, trouxe para a sua comunidade, como dádiva divina, o culto islâmico, que constitui uma espécie de comunhão entre o homem e Deus. Vale recordar que na parte final do culto muçulmano, os fiéis empregam como símbolo de que estão na própria presença de Deus, não algum objeto concreto, como fazem outros na hora da comunhão, e sim as exatas palavras de saudação, trocadas entre o Profeta Muhammad e Deus, por ocasião da ascensão daquele: “Todas as saudações, devoções, orações e bons atos são dedicados a Deus. Que a paz e a graça de Deus estejam contigo, ó Profeta. Que a paz esteja conosco e com os virtuosos servos de Deus!” A notícia desse encontro celestial levou a um recrudescimento da hostilidade dos pagãos; e o Profeta foi obrigado a deixar a sua cidade natal, em busca de asilo em outro lugar. Ele procurou os seus tios maternos em Ta’if, mas voltou imediatamente a Makka, pois as pessoas malvadas daquele lugar o perseguiram até os limites da cidade, atirando-lhe pedras e ferindo-o. 14 A Migração para Madina A peregrinação anual à Caaba trouxe a Makka gente de todas as partes da Arábia. O Profeta Muhammad tentou persuadir uma tribo após outra, a lhe conceder abrigo e permitir que continuasse com a sua missão de reforma. Os contingentes de quinze tribos, que ele abordou sucessivamente, recusaram-se a fazê-lo de modo mais ou menos brutal, mesmo assim, ele não se desesperou. Finalmente, encontrou-se com meia dúzia de habitantes de Madina, os quais, sendo vizinhos dos judeus e dos cristãos, tinham alguma noção, das mensagens divinas e dos profetas. Também sabiam que “Os Povos dos Livros” estavam esperando a chegada de um profeta – um último consolador. Por isso, os de Madina decidiram não perder a oportunidade de ficar um passo à frente dos outros, e conseqüentemente abraçaram o Islam, prometendo aumentar o numero de sectários e proporcionar-lhes o apoio necessário em Madina. No ano seguinte, uma dúzia dos novos cidadãos de Madina fez o juramento da aliança com o Profeta e pediu que ele lhes enviasse um mestre missionário. O trabalho desse missionário, Muss’ab, teve grande êxito e ele levou um contingente de setenta e três novos convertidos para Makka, na época da peregrinação. Estes convidaram o Profeta e os seus companheiros de Makka a migrar para sua cidade, prometendo abrigo para o Profeta, e tratá-lo, a ele, e aos seus companheiros, como se fossem seus próprios parentes. Secretamente e em pequenos grupos, a maioria dos muçulmanos emigrou para Madina. Diante disso, os pagãos de Makka não somente confiscaram as propriedades dos imigrantes, como também armaram um plano para assassinar o Profeta. Com isto, tornava-se agora, impossível, para ele, permanecer em casa. Devese notar que, a despeito da sua hostilidade para com a missão de Muhammad, os pagãos continuaram a ter uma confiança sem limites na probidade do Profeta, tanto assim que muitos deles costumavam deixar as suas finanças guardadas com ele. O Profeta Muhammad, então, confiou todos esses depósitos a um primo, com instruções para devolvê-los, oportunamente, aos proprietários de direito. Deixou, a seguir, secretamente a cidade, em companhia do seu fiel amigo, Abu Bakr. Depois de algumas aventuras, eles conseguiram alcançar Madina em segurança. Isto aconteceu no ano 622, no qual começa o calendário da Hégira. 15 A Reorganização da Comunidade Para melhor reabilitação dos imigrantes deslocados, o Profeta criou uma irmandade entre eles e um número igual de madineses abastados. As famílias de cada par de irmãos contratuais trabalhavam juntas para ganhar o sustento, e eles ajudavam-se uns aos outros, na vida comercial. Alem disso, ele pensava que a evolução do homem, como um todo, seria melhor conseguida, se ele coordenasse a religião e a política, como duas partes constituintes do mesmo todo. Com esse fim, convidou representantes, dentre os muçulmanos, como também dentre os habitantes não-muçulmanos da região, pagãos, judeus, cristãos e outros, e sugeriu a fundação de uma Cidade-Estado em Madina. Com o consentimento deles, ele dotou a cidade de uma constituição escrita – a primeira do gênero, no mundo – na qual definiu os deveres e os direitos, tanto dos cidadãos, como de chefe e o Estado. O Profeta Muhammad foi proclamado como tal, por unanimidade, e aboliu a habitual justiça particular. O cumprimento dos termos desse documento tornou-se, daí em diante, a principal preocupação da organização central dessa comunidade de cidadãos. Esse sistema estabeleceu os princípios de defesa e de política externa e organizou um sistema de seguro social, para casos de obrigação extremamente onerosos. Ele reconhecia que o Profeta Muhammad teria a última palavra em todas as divergências, e que não havia limites ao seu poder de legislar. Reconhecia também, explicitamente, a liberdade de religião, especialmente para os judeus, a quem o ato constitucional conferia igualdade com os muçulmanos, em tudo o que se relacionava com a vida neste mundo. Muhammad empreendeu diversas jornadas, com vistas a persuadir as tribos vizinhas e a estabelecer, com elas, tratados de aliança e de ajuda mútua. Com a ajuda destas tribos, ele decidiu exercer uma pressão econômica sobre os pagãos de Makka, que haviam confiscado as propriedades dos muçulmanos retirantes, e também causando incontáveis prejuízos. A obstrução do caminho das caravanas de Makka e o impedimento da sua passagem pela região de Madina, exasperaram os pagãos, ensejando uma luta sangrenta. Ao se preocupar, Muhammad, com os interesses materiais da comunidade, não foi negligenciado o aspecto espiritual. Mal passara um ano, desde a migração para Madina, quando a mais rigorosa das disciplinas espirituais, o jejum de um mês inteiro, todos os anos, no mês de Ramadan, foi imposta a todo homem e mulher, muçulmanos, adultos. 16 A Luta Contra a Intolerância e a Descrença Não satisfeitos com a expulsão dos compatriotas muçulmanos, os habitantes de Makka enviaram um ultimato aos de Madina, exigindo a entrega ou pelo menos a expulsão de Muhammad e dos seus companheiros, mas evidentemente todos esses esforços foram em vão. Alguns meses mais tarde, no ano 2 da Hégira, eles enviaram um poderoso exercito contra o Profeta, que os enfrentou em Badr e, mesmo sendo três vezes mais numerosos do que os muçulmanos, os inimigos inimigos foram desbaratados. Depois de um ano de preparativos, os habitantes de Makka, novamente invadiram Madina, para vingar a derrota de Badr. Desta vez, eram quatro vezes mais numerosos do que os muçulmanos. Após uma batalha sangrenta, em Uhud, os inimigos se retiraram, não tendo o encontro sido decisivo. Os mercenários do exercito de Makka não queriam se arriscar demasiadamente, nem expor as suas vidas. Nesse meio tempo, os cidadãos judeus de Madina começaram a criar problemas. Na época da vitoria de Badr, um dos seus lideres, Ka’b Ibn al-Achraf, seguiu para Makka, para firmar a sua aliança com os pagãos e para incitá-los a uma guerra de vingança. Após a batalha de Uhud, a tribo desse mesmo chefe tramou o assassinato do Profeta, pretendendo jogar sobre ele uma pedra de moinho, quando fosse visitar sua localidade. Apesar disso tudo, a única exigência que o profeta fez aos homens dessa tribo foi a de que saíssem da região de Madina, levando com eles todas as suas posses, após venderem os imóveis e receberem o que lhes devessem os muçulmanos. A clemência, demonstrada dessa maneira, surtiu efeito contrario ao esperado. Os exilados, não somente entraram em contato com os de Makka, como com as tribos Ao Norte, Sul e Leste de Madina, mobilizando-se em ajuda militar e planejando uma invasão de Madina, a partir de Khaibar, com forças quatro vezes mais numerosas ainda, do que as que foram empregadas em Uhud. Os muçulmanos preparam-se para enfrentar um cerco e cavaram um fosso, para se defender do que previam ser a maior provação que teriam de enfrentar. Mas a deserção dos judeus, que ainda permaneciam dentro de Madina, numa etapa posterior, transtornou toda a estratégia. Usando de diplomacia sagaz, entretanto, o Profeta conseguiu desarvorar a aliança inimiga e os diversos grupos retiraram-se, um após o outro. 17 Foi nessa época que foi decretada a proibição, para os muçulmanos, do consumo de bebidas alcoólicas, das apostas e dos jogos de azar. A Reconciliação O Profeta tentou, ainda, mais uma vez, reconciliar-se com os de Makka. A obstrução da rota do Norte, das suas caravanas, havia arruinado a sua economia. O Profeta prometeu-lhes transito livre, a extradição dos seus fugitivos e o atendimento de todas as condições que eles impusessem, concordando até em voltar a Madina, sem completar a peregrinação à Caaba. Em vista disso, ambas as partes negociadoras prometeram, em Hudaibiya, não só a preservação da paz, mas também a observância da neutralidade, nos seus conflitos com terceiros. Aproveitando a paz, o Profeta se lançou a um intensivo programa de propagação da sua religião. Ele enviou certas missionárias aos governantes de Bizâncio, do Irã da Abissínia e de outros países. O sacerdote autocrático bizantino – Doughatir dos árabes – abraçou o Islam, mas, por isso, foi linchado pela turba; o prefeito de Ma’an (na Palestina) sofreu idêntico destino, sendo decapitado e crucificado pelo imperador. Um embaixador muçulmano foi assassinado na Síria-Palestina; e ao invés de punir o culpado, o imperador Heráclito apressou-se a protegê-lo, com o seu exercito, da expedição punitiva, enviada pelo Profeta (batalha de Um’ta). Os pagãos de Makka, esperando aproveitar-se das dificuldades dos muçulmanos, violaram os termos do tratado. Diante disso, o próprio Profeta liderou um exercito de dez mil homens, tomando Makka de surpresa e sem derramamento de sangue. Como conquistador benevolente, fez reunir os vencidos, lembrou-lhes os seus atos pecaminosos, a perseguição religiosa, o confisco injusto das propriedades dos imigrantes, as repetidas invasões e a hostilidade insensata e continua dos últimos vinte anos. Perguntou-lhes: “Agora, o que espera de mim?” Quando todos baixaram as cabeças, envergonhados, o Profeta proclamou: “Que Deus os perdoe; vão em paz; não serão chamados à responsabilidade hoje; estão livres!” Ele, inclusive, renunciou à reivindicação das propriedades muçulmanas confiscadas pelos pagãos. Isto produziu uma grande reviravolta psicológica de ânimos. Quando um chefe, dentre eles, se adiantou, com o coração transbordante de alegria, após ter ouvido essa anistia geral, e decidido declarar a sua aceitação do Islam, disse-lhe o Profeta: “E, por minha vez, nomeio-o governador de Makka!” Sem deixar um único soldado na cidade conquistada, o Profeta retirou-se para Madina. A islamização de Makka, realizada em poucas horas, fora completa. 18 Imediatamente após a ocupação de Makka, a cidade de Ta’if mobilizou-se para lutar contra o Profeta. Com alguma dificuldade, o inimigo foi dispersado, no vale de Hunain, mas mesmo assim, os muçulmanos preferiram levantar o sitio de Ta’if e usar meios pacíficos para quebrar a resistência dessa região. Menos de um ano mais tarde, uma delegação de Ta’if veio a Madina, oferecer a rendição. Porem, podia isenção das orações, dos impostos e do serviço militar, bem como a continuação das praticas do adultério, da fornicação e do consumo de bebidas alcoólicas. Exigia até que lhes deixassem conservar o templo do ídolo AL-Lát, em Ta’if. Mas o Islam não era nenhum movimento materialista e imoral, e a delegação não tardou a ver-se envergonhada das suas exigências, relativas à oração, ao adultério e à bebida. O Profeta concordou em conceder uma isenção dos impostos e da prestação de serviços militares, dizendo: “Vocês não precisam demolir o templo com as suas próprias mãos; mandaremos gente nossa para esta tarefa, e caso haja alguma conseqüência, das que vocês temem, devido à sua superstição, ela recairá sobre os nossos homens.” Este ato do Profeta mostra bem que concessões podiam ser feitas aos novos convertidos. A conversão dos habitantes de Ta’if foi tão sincera que em pouco tempo, eles próprios renunciaram às isenções pactuadas, e encontramos o Profeta nomeando um coletor de impostos na sua localidade, como fez em outras regiões islâmicas. Em todas essas “guerras”, que se estenderam por um período de dez anos, os não-muçulmanos perderam, no campo de batalha, não mais de 520 homens, enquanto as perdas dos muçulmanos foram ainda menores. Com essas poucas incisões, toda a Península arábica, com seus 2 milhões de quilômetros quadrados, se viu curado do abscesso da anarquia e da imoralidade. Durante esses dez anos de lutas desinteressadas, todos os povos da Península Arábica e das regiões ao sul do Iraque e da Palestina haviam abraçado, voluntariamente, o Islam. Alguns grupos cristãos, judaicos e masdeístas permaneceram ligados às suas crenças, e a estes foi concedida a liberdade de consciência, assim como a autonomia judicial e jurídica. No ano 10 da Hégira, quando o Profeta foi a Makka em peregrinação, encontrou lá 140.000 muçulmanos, vindos das mais diversas regiões da Arábia, para cumprir a sua obrigação religiosa. Pronunciou para eles o que se tornou o seu celebre sermão, no qual resumiu os seus ensinamentos: “A crença no Deus Único, sem imagens ou símbolos, a igualdade de todos os fieis, sem distinção de raça ou classe, a superioridade dos indivíduos, derivando unicamente da devoção, a santidade da vida, da propriedade e da honra; a abolição da usura, das vinganças e da justiça particular; o tratamento melhor para as mulheres; a 19 noção da possibilidade de acumulação de riquezas, a distribuição obrigatória, dos bens dos falecidos, entre os seus parentes mais próximos, de ambos os sexos; e não a concentração das mesmas nas mãos de uns poucos. O Alcorão e a conduta do Profeta deveriam servir de fundamento à lei e de critérios sadios para todos os aspectos da vida humana.” Ao voltar para Madina, o Profeta caiu doente; e, algumas semanas mais tarde, quando exalou o seu último suspiro, o fez com a satisfação de que havia cumprido à altura a tarefa que tinha empreendido – a de pregar ao mundo a mensagem divina. Ele legou à posteridade uma religião de puro monoteísmo; criou um Estado disciplinado, a partir do caos que existia e trouxe a paz, para substituir a guerra de todos contra todos; estabeleceu um equilíbrio harmônico entre os assuntos espirituais e os temporais, entre a mesquita e a cidade; deixou um novo sistema de leis, que distribuiu a justiça imparcial, à qual até o Chefe de Estado estava tão sujeito quanto qualquer plebeu, e na qual a tolerância religiosa era tanta, que os habitantes não-muçulmanos dos países muçulmanos, desfrutavam, igualmente, de total autonomia judicial e cultural. Em matéria de receitas do Estado, o Alcorão estabeleceu os princípios orçamentários e se preocupou mais com os pobres do que com os demais. As receitas foram ressalvadas, terminantemente, de vir a ser transformadas em propriedades particular do Chefe de Estado. Acima de tudo, o Profeta Muhammad deixou um exemplo nobre, pela pratica integral de tudo o que ensinava aos outros. A Preservaçao dos Ensinamentos Originais do Islam Não pode haver nada em comum entre o verdadeiro e o falso, e não há no mundo duas coisas mais opostas, uma a outra, do que estas. Nas coisas materiais e vulgares da vida quotidiana, os malefícios da falsidade são óbvios e reconhecidos por todos. É claro que, nos assuntos de salvação eterna, das crenças, e dos ensinamentos originais de uma religião, o malefício que a falsidade provoca transcende todos os outros males. Um homem honesto e razoável não tem nenhuma dificuldade em deduzir se determinado ensinamento é justo e aceitável, ou não. Em matéria de dogmas, o que freqüentemente ocorre é que, primeiro, julgamos a pessoa do mestre, antes dos preceitos que ele transmite. Se o achamos confiável, tanto mais facilmente nos deixamos persuadir a reconhecer as nossas próprias deficiências em entender, uma parte, ao menos, dos seus ensinamentos, em vez de rejeitar, 20 por completo, as suas palavras. Por essa razão, a verificação da autenticidade das palavras e dos ensinamentos, especialmente se o seu autor tiver morrido, torna-se imperativa. Todas as religiões mais importantes do mundo se baseiam em certos livros sagrados, os quais são, na maioria das vezes, atribuídos a revelações divinas. Seria patético se, por alguma infelicidade, ocorresse a perda do texto original da revelação; a reposição jamais seria totalmente igual ao que foi perdido. Bramanistas, budistas, judeus, masdeístas e cristãos podem comparar os métodos empregados para preservar os ensinamentos básicos das suas respectivas religiões, com o método dos muçulmanos. Quem escreveu os seus livros? Quem os transmitiu de geração em geração? Essa transmissão tem sido dos textos originais, ou somente de versões ou traduções deles? Não tem, as copias desses textos, sido afetadas pelas guerras fratricidas? Não existem contradições ou lacunas internas, às quais se encontrem referencias alhures? Estas são apenas algumas das perguntas que podem ser feitas e que exigem respostas satisfatórias. Meios de Preservação Na época em que surgiram aquilo a que chamamos de grandes religiões, os homens não dependiam apenas das suas memórias, mas haviam inventado a escrita, para preservar os seus pensamentos, pois a escrita durava mais do que a recordação individual dos seres humanos, visto estes terem um tempo de vida limitado. Ainda assim, nenhum desses dois meios é infalível, se levado em conta separadamente. É uma questão de vivencia diária o fato de que naquilo que se escreve e em seguida se revisa, descobrem-se erros inadvertidos, omissões de letras ou até de palavras, repetição de opinião do próprio autor, que também corrige o seu estilo, os seus pensamentos, os seus argumentos e, às vezes, reescreve o documento inteiro. O mesmo é verdade, a respeito da faculdade da memória. Aqueles que têm a obrigação ou o habito de decorar algum texto, para recitá-lo posteriormente, especialmente quando esse texto contém passagens longas, sabem que, não raro, lhes falha a memória, até durante a recitação, e eles saltam passagens, misturam uma com a outra, ou não recordam, de modo algum, a seqüência; às vezes, o texto certo permanece no subconsciente e é relembrado em algum momento posterior, ou ao se refrescar a memória, pela indicação feita por alguém ou por consulta ao texto de um documento escrito. 21 O Profeta do Islam, Muhammad, com uma memória abençoada, empregou ambos os métodos simultaneamente, usando cada um para ajudar o outro, e assim fortalecer a integridade do texto e reduzir, ao mínimo, as possibilidades de erro. Os Ensinamentos Islâmicos Os ensinamentos do Islam se baseiam, principalmente, nas coisas que o Profeta Muhammad dizia ou fazia. Ele próprio ditava certos trechos aos seus escribas, que constituem o que chamamos de Alcorão, enquanto que outros eram compilados pelos seus companheiros, na maioria das vezes por iniciativa própria; a estes textos chamamos de Hadis – Tradições. A História do Alcorão “Alcorão” significa, literalmente, leitura ou recitação. Ao ditar estes textos aos seus discípulos, o Profeta afirmava que eles eram a revelação divina, que lhe havia sido feita. Ele não ditou tudo de uma só vez; as revelações sobreviam-lhe em fragmentos, de tempos em tempos. Tão logo ele recebia uma, imediatamente costumava comunicá-la aos discípulos e não só pedia que a decorassem – de maneira a poder recitá-la durante o culto – como também que a escrevessem e produzissem cópias. Em casa uma de tais ocasiões ele indicava o lugar preciso, da nova revelação, no texto; a sua compilação não era, entretanto, cronológica. Não se pode deixar de admirar suficientemente a preocupação e o cuidado tidos com a exatidão, principalmente ao considerar o padrão cultural dos árabes daqueles tempos. É razoável crer que as primeiras revelações, recebidas pelo Profeta, não foram registradas por escrito imediatamente, pela simples razão de que, até então, ele não tinha nem discípulos nem seguidores. Estas partes iniciais não foram, nem numerosas, nem muito longas. Não havia risco de o Profeta se esquecer delas, visto que as recitava com freqüência, nas suas orações e nas palestras de pregação. Alguns fatos da historia nos dão uma idéia do que aconteceu. Considera-se que Umar foi a quadragésima pessoa a converter-se ao Islam. Isto se refere ao ano 5 da Missão (8 anos antes da Hégira). Já nessa época existiam certos capítulos do alcorão e, como relata Ibn Hicham, foi devido à impressão profunda, causada pela leitura de algum desses documentos, que Umar se converteu ao Islam. Não sabemos com, precisão, quando foi que se estabeleceu o costume 22 de registrar o Alcorão, mas há poucas duvidas de que, nos dezoito anos finais da vida do Profeta, o numero de muçulmanos crescia diariamente, assim como o número de copias do texto sagrado. O Profeta recebia as revelações em fragmentos, e não é mais do que natural que o texto revelado se referisse aos problemas da época. Podia acontecer de vir a falecer um dos companheiros; a revelação se dedicaria a promulgar a lei da herança; não poderia ser referente à lei da punição do furto, por exemplo, a que fosse revelada naquela ocasião. As revelações continuaram, durante toda a vida missionária de Muhammad, abrangendo treze anos, em Makka, e dez anos, em Madina. Uma revelação podia, às vezes, consistir de um capítulo inteiro, fosse comprido ou curto, e, outras vezes, de alguns versículos, apenas. A natureza das revelações exigia que o Profeta as repetisse constantemente, em suas recitações, e revisasse continuamente a forma que as coleções de fragmentos tinham de assumir. É acreditadamente sabido que o Profeta recitava anualmente, no mês de Ramadan, perante o anjo Gabriel, a parte do Alcorão até então revelada, e que, no ultimo ano de sua vida, Gabriel requereu-lhe que recitasse duas vezes o texto completo. Daí o Profeta deduziu que estava se aproximando a hora da sua partida desta vida. Ele costumava revisar, durante o mês de jejum, os versículos e capítulos acumulados, e colocá-los na ordem adequada. Isto era necessário, em face da continuidade das novas revelações. É também sabido que tinha o habito de celebrar um culto adicional de louvor, no mês do jejum, todas as noites, às vezes até em congregação, durante o qual ele recitava o Alcorão do principio até o fim, completando esta tarefa no decurso do mês. Este ritual de Tarawih continua a ser observado, com grande devoção, até aos nossos dias. Quando o Profeta exalou o seu ultimo suspiro, estava em marcha uma rebelião, em certas partes do país. Ao subjugá-la, morreram varias pessoas, que reconheciam o Alcorão de cor. O Califa Abu-Bakr sentiu, então, a urgência de codificar o Alcorão, fazendo com que a tarefa fosse terminada uns poucos meses após a morte do Profeta. Nos últimos anos da sua vida, o Profeta costumava empregar Zaid Ibn Sábit como seu principal amanuense, para anotar o ditado das revelações recebidas mais recentemente. Abu Bakr encarregou esse mesmo cavalheiro da tarefa de preparar uma copia inteligível do texto completo, na forma de um livro. Nessa época, havia em Madina diversos huffaz (aqueles que sabiam o Alcorão de cor), e Zaid era um deles. O Califa ordenou-lhe extrair duas copias de cada parte do texto, antes da sua inclusão no todo. Por requisição do Califa, o povo 23 de Madina trazia para Zaid as copias que possuía, dos vários fragmentos. Os ricos haviam mandado inscrevê-los em pergaminhos ou pedaços de couro; os pobres, os inscreveram em omoplatas, ossos, pedras planas e até em cacos de cerâmica. As fontes afirmam autorizadamente que somente dois versículos tinham uma única prova documental e que o restante se baseou nas numerosas cópias produzidas. A cópia inteligível assim elaborada, recebeu o nome de Mus’haf. Ela era guardada sob a custódia do Califa Abu Bakr e, depois dele, do seu sucessor, Umar. Enquanto isso, o estudo do Alcorão era encorajado, em todos os cantos do Império Muçulmano. O Califa Umar sentiu a necessidade de enviar copias do texto autentico aos centros de províncias, para evitar desvirtuamentos; mas coube ao seu sucessor, Otman, levar a cabo esta tarefa. Um dos seus lugar-tenentes, ao retornar da longínqua Armênia, relatou ter encontrado cópias divergentes do Alcorão, e que, freqüentemente, havia desentendimentos, entre os preceptores do Livro, por causa dessas divergências. Otman ordenou, imediatamente, que a cópia, preparada por Abu Bakr, fosse confiada a uma comissão, presidida pelo já mencionado Ziad Ibn Sábit, para que fossem preparadas sete cópias; e autorizou-o a atualizar, se necessário, a ortografia antiga. Quando a tarefa foi terminada, o Califa mandou que fosse feita a leitura publica dessa nova “edição”, perante os especialistas presentes na capital, que tinham sido companheiros do Profeta, enviando, então, estas cópias aos diferentes pontos centrais do mundo islâmico e ordenando que, daí em diante, todas as cópias fossem baseadas, exclusivamente, naquela edição autentica. Mandou destruir as cópias que, de alguma maneira, divergissem do texto, admitindo como o oficial. É inteiramente concebível que as grandes conquistas militares dos primeiros muçulmanos tivessem persuadido algumas figuras hipócritas a proclamar a sua conversão ao Islam externamente, por motivos materiais, e a tentar prejudicá-lo, de um modo clandestino. Elas poderiam ter fabricado versões do Alcorão, com inserções falsas. As “lagrimas de crocodilo”, diante da ordem do califa Otman, para ter sido derramadas por tais hipócritas. É sabido que o Profeta, às vezes, abolia certos versículos, transmitidos ao povo anteriormente, fazendo isso por força das novas revelações divinas. Havia companheiros que tinham aprendido a primeira versão, mas desconheciam as modificações posteriores, ou por virem a falecer, ou por morarem fora de Madina. Esses podiam ter deixado cópias para os seus descendentes, as quais, apesar de serem autenticas, estavam desatualizadas. Outrossim, alguns muçulmanos tinham o costume de pedir ao Profeta a explicação de certos termos, 24 empregados no texto sagrado, anotando tais explicações nas margens de suas cópias do Alcorão, para que não as esquecessem. As cópias, feitas mais tarde, com base nestes textos anotados, podiam, talvez, ter gerado confusão quanto ao conteúdo do texto. Apesar da ordem de Otman para que todos esses textos inexatos fossem destruídos, no 3° e 4° séculos da Hégira existia material suficiente para compilar obras volumosas sobre as “Variações no Alcorão”. Esse material chegou até ao nosso tempo, e um estudo mais apurado mostra que essas variações foram causadas pelos erros cometidos, ao se decifrar a antiga escrita árabe, que nem possuía sinais vocálicos, nem distinguia as letras parecidas com pontos, como se faz atualmente. Alem do mais, existiam diversos dialetos, em diferentes regiões, e o Profeta havia autorizado que os muçulmanos dessas regiões recitassem o Alcorão em concordância com os seus dialetos, e até substituíssem palavras que lhes eram desconhecidas por outras, que entendessem melhor. Esta foi, meramente, uma medida emergente da graça e da clemência. Na época do Califa Otman, entretanto, a instrução pública havia evoluído bastante, e se achou desejável que essas concessões não fossem mais toleradas, para não afetar o texto divino e permitir que se enraizassem leituras diversas. As cópias do Alcorão, enviadas por Otman aos centros das províncias, desapareceram gradativamente, nos séculos que se seguiram, tendo sobrevivido até aos nossos tempos somente uma delas, que esta, atualmente em Tashkend. O governo czarista da Rússia, publicou esse texto, junto com uma reprodução em fac-simile, e pode-se constatar que existe uma identidade total, entre essa cópia e o texto em uso corrente. O mesmo se pode dizer do outro manuscrito existente do Alcorão, que data do primeiro século da Hégira. O habito de decorar o texto do Alcorão data do tempo do próprio Profeta. Os califas e Chefes de Estado muçulmanos sempre encorajaram este habito. Uma feliz coincidência o confirmou. Desde o principio, os muçulmanos estavam acostumados a ler uma obra, diante do seu autor ou de um dos seus pupilos, e obter autorização para transmitir adiante tal obra, após as necessárias correções quando da compilação. Aqueles que recitavam o Alcorão de cor ou simplesmente liam o texto escrito, procediam desse mesmo modo. O habito continuou até os nossos dias, com a característica notável de que o mestre declara categoricamente, no certificado que emite, não somente que a representação do seu pupilo foi correta, mas também que estava conforme com aquela pela qual ele, mestre, havia aprendido, por sua vez, com o seu mestre, e que aquele, por sua vez, afirmara também ter aprendido exatamente com o mestre dele, prosseguindo esta corrente até alcançar o Profeta, como fonte. O autor destas linhas estudou o Alcorão em Madina, com o Chaikh Hassan Ach-Cha’ri e o 25 certificado que obteve observa, entre outras coisas, a corrente de mestres e como o último destes havia estudado simultaneamente com Otman, Ali, Ibn Mass’ud, Ubai Ibn Ka’b e Saad Ibn Sábit (todos estes companheiros do Profeta) e que todos haviam aprendido de um texto exatamente idêntico. O número de huf-faz, atualmente, se conta em todo o mundo em centenas de milhares, e milhões de cópias do texto, que existem por toda a parte do planeta. E o que merece ser ressaltado, especialmente, PE que não existe absolutamente diferença entre os textos usados. O original do Alcorão foi escrito em árabe; e o mesmo texto continua em uso. Têm sido feitas traduções para todos os idiomas mais importantes do mundo, umas mais, outras menos úteis, para aqueles que desconhecem o árabe. Deve ser lembrado, entretanto, que foi no idioma árabe original que o texto nos foi transmitido, e que não há motivos para reverter para o árabe qualquer das traduções posteriores existentes. Um texto no idioma original, uma codificação autorizada pelo próprio Profeta, a preservação continua, pelo duplo controle simultâneo de memorizar e escrever, exercido por um incontável número de indivíduos de cada geração, e a ausência de quaisquer variações desse texto – estas são algumas das características notáveis do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. O Conteúdo do Alcorão Como já foi afirmado, os muçulmanos acreditam que o Alcorão é a palavra de Deus, revelada ao Seu Mensageiro, Muhammad. O mensageiro é apenas um intermediário, para a recepção e a comunicação das revelações; e seu papel não é, nem de autor, nem de editor. Se o Profeta Muhammad mandava, às vezes, suprimir certos versículos, fazia-o unicamente em face de uma nova revelação, que lhe sobrevinha do Todo-Poderoso. Deus é transcendente e está alem de qualquer percepção física do homem; e é por intermédio de um mensageiro celestial, um anjo, que Deus faz com que a Sua vontade e a Sua ordem sejam reveladas ao Seus mensageiro humano, para o bem da humanidade. Deus está acima de quaisquer limitações da linguagem. Podemos, para explicar, usar a metáfora de que os profetas são lâmpadas, e a revelação é a corrente elétrica; em contato com a corrente, a lâmpada se acende, de acordo com as suas voltagens e cor. O idioma nativo do profeta é a cor da lâmpada. A energia da lâmpada, a corrente e outras coisas são determinadas pelo próprio Deus; o fator humano é mero instrumento de transmissão, um simples condutor. 26 O Alcorão está endereçado a toda a humanidade, sem distinção de raça, religião ou época. Além do mais, ele busca guiar o homem em todos os caminhos da vida: espiritual, temporal, individual e coletivo. Ele contém as diretrizes para o comportamento do Chefe de Estado, assim como para o do plebeu, dos ricos, tanto quanto dos pobres, na paz, como na guerra, para a cultura espiritual, bem como para o comercio e para o bem-estar material. O Alcorão busca, primeiramente, desenvolver a personalidade do individuo: cada criatura será pessoalmente responsável, perante o seu Criador. Com este propósito, o Alcorão não apenas ordena, mas também procura convencer. Ele apela à razão do homem, e relata historias, parábolas e metáforas. Ele descreve os atributos de Deus, Aquele que é Uno, Criador de tudo, Onipotente, Poderoso, capaz de ressuscitar-nos, após a morte, e de julgar o nosso comportamento mundano, Justo, Misericordioso, etc. ele contém, também, as maneiras de louvar Deus, mostrando-nos quais são as melhores orações, quais são os deveres do homem, em relação a Deus, aos seus semelhantes e a si mesmo; o conceito principal que o Alcorão envolve e o de que não pertencemos a nos mesmos e sim a Deus. O Alcorão fala sobre as melhores regras da vida social, comercial, matrimonial, da herança, da lei penal, da lei internacional e daí por diante. Porem, o Alcorão não e um livro, no sentido comum da palavra; ele e uma coletânea das Palavras de Deus, reveladas de tempos em tempos, ao longo de vinte e três anos, ao Seu Mensageiro, junto aos seres humanos. O Rei da as Suas instruções ao Seu embaixador; portanto, há coisas compreendidas e outras implícitas; há repetições e ate variações na forma de expressão. Assim, Deus fala, às vezes, na primeira pessoa, e outras, na terceira pessoa do verbo. Ele diz ‘’Eu’’, assim como diz ‘’Nos’’ ou ‘’Ele’’, mas nunca ‘’Eles’. O Alcorão é uma coletânea de revelações transmitidas aos poucos e, por isso, devemos lê-lo continua e repetidamente, para melhor assimilar o significado das mesmas. Ele contém diretrizes para todos, em todos os lugares e situações, e para todos os tempos. A dicção e o estilo do Alcorão são magníficos e apropriados a sua qualidade divina. A sua recitação comove o espírito ate daqueles que só o escutam, mesmo sem o compreender. O Alcorão, em virtude da sua reivindicação de ser de origem divina, desafiou os homens e os espíritos a produzirem, em conjunto, mesmo que uns poucos versículos, iguais ao que ele contém. O desafio permanece sem resposta ate hoje. 27 As Tradições As narrações de Muhammad, o Profeta do Islam, são chamadas Hadis, quer digam respeito ao que ele disse, ou simplesmente tolerou que os seus discípulos dissessem ou fizessem, em sua presença. Essa aprovação tácita implica na permissibilidade da conduta em questão publica. O Alcorão recorda, dezenas de vezes, a importância jurídica das tradições: Obedecei a Deus e obedecei ao Mensageiro... (4a Surata, versículo 59) Aceitai o que vos da o Mensageiro, e abstende-vos de tudo quanto ele vos proíbe. (59a Surata, versículo 7) Não fala por capricho; não e senão a inspiração que lhe foi revelada. (53a Surata, versículos 3-4) Realmente, tendes no Mensageiro de Deus um excelente exemplo, para vos e para aqueles que esperam contemplar Deus, deparar com o Dia do Juízo Final, mencionando Deus freqüentemente. (33a Surata, versículo 21) Assim, fosse o que fosse que o Mensageiro ordenasse,era, aos olhos da comunidade, a vontade do Autor divino. Havia casos em que o Profeta, não tendo recebido uma revelação, exercia um esforço pessoal para formular uma opinião, guiada pelo bom senso. Quando Deus não aprovava isso, vinha uma revelação para corrigi-lo. Este processo interno, de formação das tradições, ocorria somente post eventum, e quando o Profeta se encontrava investido da autoridade do Estado, aumentando, em conseqüência, o número e o assunto das cartas que emitia. O Alcorão é, freqüentemente, sucinto; é na prática do Profeta que precisamos procurar o método de aplicação dos preceitos, os detalhes e as explicações necessárias. Uma ilustração, a propósito, será: o Alcorão diz, tão-somente, “praticai as orações”, sem entrar em detalhes sobre a forma como elas devem ser realizadas. O Profeta também não podia descrever tudo com meras palavras. Foi por isso que, certo dia, disse aos fieis: “Vede como procedo, vede como oro, e acompanhai-me.” A importância das tradições, para os muçulmanos, é ainda maior, pelo fato de que o Profeta Muhammad não apenas ensinava, mas aproveitava para pôr 28 em pratica os seus ensinamentos, em todos os assuntos importantes da vida. Após a sua designação como Mensageiro de Deus, ele viveu por vinte e três anos. Ele enriqueceu a sua comunidade com uma religião, religião essa que ele próprio praticava escrupulosamente. Fundou um Estado, que administrava como chefe supremo, mantendo a paz e a ordem internas, liderando o exército, para a defesa externa, julgando e decidindo os litígios dos seus súditos, punindo os criminosos e legislando sobre todos os assuntos da vida. Ele casou-se, e deixou um exemplo de vida familiar. Outro fato importante é que ele não se colocou acima da lei comum, a mesma que impunha os outros. A sua conduta não era apenas um comportamento particular, senão uma interpretação e uma aplicação minuciosa dos seus ensinamentos. Muhammad, como homem, era cauteloso e modesto em suas ações. Como Mensageiro de Deus, tomava todas as providencias necessárias e possíveis para a comunicação, bem como para a preservação da mensagem divina, o Alcorão. Se tivesse tomado os mesmo cuidados para preservar os seus próprios ditos, ele teria sido considerado um egoísta, por muitos. Por esse motivo, a história das tradições é muito diferente da historia do Alcorão. Os Documentos Oficiais Há uma parte das tradições que, por sua própria natureza teria de ser registrada por escrito, pois trata dos documentos oficiais do Profeta. Em um trecho do Tarikh de At-Tabari, verificamos que, quando os muçulmanos de Makka, sendo perseguidos por seus compatriotas, foram refugiar-se na Abissínia, o Profeta deu-lhes uma carta de recomendação, endereçada a Négus. Há, também, alguns outros documentos, escritos por ele antes da Hégira. Mas, quando deixou a sua terra natal, para fixar-se em Madina, e se viu investido da autoridade do Estado, o número e a temática das suas cartas aumentaram dia após dia. Logo depois da sua chegada a Madina, ele conseguiu fundar, ali, uma Cidade-Estado, constituída, tanto por habitantes muçulmanos, quanto por não-muçulmanos. Dotou esse Estado de uma constituição escrita, na qual se referia, de maneira pormenorizada, aos direitos e deveres do Chefe de Estado e dos seus súditos, bem como determinava as suas condições para a administração de tal organização. Esse documento chegou até nós. Nele, o Profeta também delimitou, por escrito, as fronteiras dessa Cidade-Estado. Mais ou menos na mesma época, mandou realizar um censo de toda a população muçulmana, e, diz Al-Bukhari, obteve 1500 registros individuais. 29 Além disso, foram celebrados tratados de aliança e de paz com muitas tribos árabes. Algumas vezes eram redigidas duas cópias de cada tratado, ficando cada parte com uma. Cartas patentes foram concedidas, estendendo a proteção aos chefes que se submetiam, confirmando os seus direitos anteriores à terra, água, etc. com a expansão do Estado Islâmico, houve, naturalmente, um certo volume de correspondência com os governantes das províncias, para comunicar novas leis e outras determinações administrativas, para a revisão de determinadas decisões judiciais e administrativas dos funcionários, para responder às consultas desse funcionários, feitas a governo central, com referencia a impostos, etc. Havia também, cartas missionárias, enviadas a governantes diversos, convidando-os a se converter ao Islam, tais como as que foram enviadas aos chefes das tribos da Arábia, aos imperadores de Bizâncio e do Irã, a Négus, da Abissínia, e a outros. Para cada expedição militar convocavam-se voluntários, mantendo-se listagens escritas deles. Os despojos, tomados, era cuidadosamente relacionados, para permitir a sua distribuição em proporções iguais, entre os componentes da força expedicionária. A libertação de escravos também parece ter sido feita por documentos escritos. Pelo menos dois documentos desse tipo, expedidos pelo próprio Profeta, se conservaram até aos nossos tempos. Pode-se mencionar um incidente interessante. No dia da tomada de Makka, no ano 8 da Hégira, o Profeta havia feito um importante pronunciamento, que tratava, também, de certas determinações legais. Por exigência de um iemenita, o Profeta mandou que fosse feita uma cópia, por escrito, do seu discurso, e que ela fosse entregue a Abu-Chah. Também podemos mencionar o caso da tradução do Alcorão. O Profeta havia determinado que todos os muçulmanos deviam celebrar as suas orações em árabe. Alguns persas converteram-se ao Islam e não queriam adiar a pratica das orações, até quando tivessem decorado os textos arábicos ou capítulos próprios do Alcorão. Com a aprovação do Profeta, Salman al-Fárici, um muçulmanos de origem persa, que conhecia o árabe, traduziu para o persa o primeiro capitulo do Alcorão, para atender às necessidades imediatas dos persas convertidos. Coletâneas que incorporam este tipo de documentos, do tempo do Profeta, alcançaram algumas centenas de paginas. 30 É fácil observar que o Profeta se preocupava, especialmente com a instrução publica, e costumava dizer: “Deus enviou-me como instrutor (mu’allim).” Ao chegar a Madina, o seu primeiro ato foi construir uma mesquita, uma parte da qual foi reservada para servir de escola. Esta parte era a famosa Suffa, que servia de dormitório, à noite, e de sala de aula, durante o dia, para todos quantos se quisessem aproveitar disso. No ano 2 da Hégira, quando o exercito pagão de Makka foi dispersado, em Badr, sendo capturados muitos prisioneiros, o Profeta mandou que todos os prisioneiros, que soubessem ler e escrever, pagassem o seu resgate ensinando, cada um, dez meninos muçulmanos. O Alcorão também ordena que quaisquer transações de credito comercial sejam validadas por documentos escritos, com a assinatura de duas testemunhas. Este e outros requisitos contribuíram para o rápido aumento da alfabetização, entre os muçulmanos. Não é, portanto, surpreendente que outros companheiros do Profeta tivessem aumentado o interesse em preservar, por escrito, os pronunciamentos de seu guia supremo. Como acontece com todo o recém e sinceramente convertido, a devoção e o entusiasmo deles eram imensos. Eis um exemplo típico disso: Umar relata que, ao chegar a Madina, tornou-se irmão contratual de um muçulmano nativo – no tempo da famosa fraternização, determinada pelo profeta, para promover a reabilitação dos refugiados de Makka – e ambos os irmãos trabalhavam alternadamente, em uma plantação de tâmaras. Quando era a vez de Umar trabalhar, o seu companheiro visitava o Profeta e, ao anoitecer, vinha relatar a Umar tudo o que tinha visto e escutado, na presença do Profeta; e quando chegava a sua vez de trabalhar, Umar fazia o mesmo. Assim, ambos ficavam a par e atualizados sobre tudo o que se passava em torno do Profeta, isto é, quanto à promulgação de novas leis, ao entendimento de questões de política e de defesa, e assim por diante. Quanto à compilação escrita das tradições, durante a vida do Profeta, os incidentes, recontados a seguir, falam por si. Compilações do Tempo do Profeta Conta-nos At-Tirmidhi: ‘’Certo dia, um ansari (muçulmano nativo de Madina) queixou-se ao Profeta, que tinha uma memória fraca e que por isso esquecia rapidamente os seus discursos de instrução. O Profeta respondeu-lhe: ‘’Peca ajuda a sua Mão direita’’ (i.e., escreva). ’’ Inúmeras fontes (At-tirmidhi, Abu Dauwd, etc.) contam que Abdullah Ibn Amr Ibn al-As, um jovem de Makka, tinha o habito de escrever tudo o que o Profeta dizia. Um dia, os seus companheiros o admoestaram, dizendo-lhe que o Profeta era um ser - humano, que poderia, num dia, estar feliz e satisfeito, 31 e no outro aborrecido, e que era indesejável que alguém anotasse, indiscriminadamente, tudo o que ele pronunciava. Abdullah foi ao Profeta e perguntou a ele se uma pessoa podia anotar tudo o que ele dissesse. Ele respondeu: ‘’Sim’’. Abdullah persistiu: ‘’Mesmo quando está feliz e satisfeito, e mesmo quando estiver aborrecido?’’ O Profeta disse: ‘’Claro, por Deus! Tudo o que sai desta boca jamais e falso.’’ ‘Abdullah deu a sua compilação o nome de Sahifa Sadika (O Livro da Verdade). Durante varias gerações, este livro foi ensinado e transmitido como um trabalho independente; mais tarde, foi incorporado as coleções maiores de tradições, compiladas por Ibn Hanbal e outros. Conta-nos Ad-Darimi: Certa vez Abdullah estava com seus pupilos, quando alguém perguntou: ‘’Qual das duas cidades será capturada primeiro pelos muçulmanos, Roma ou Constantinopla?’’ Abdullah fez com que lhe trouxessem uma caixa antiga, da qual tirou um livro, e após procurar entre as suas paginas, leu o seguinte: ‘’Certo dia, quando nos estávamos em torno do Profeta, para escrever o que ele dizia, alguém perguntou a ele: ‘’Qual das duas cidades será capturada primeiro, Roma ou Constantinopla?’’ E ele respondeu: ‘’ A cidade dos descendentes de Heraclios.’’ Esta historia prova, categoricamente, que os companheiros do Profeta se interessavam, mesmo durante a sua vida, em escrever todas as suas palavras. Mais importante e o caso de Anãs. Um dos raros nativos de Madina, que sabia ler e escrever, quando contava apenas dez anos de idade; seus devotados pais o apresentaram ao Profeta, para servi-lhe de criado pessoal. Anãs não se separou do Profeta, senão pela morte dele. Permanecendo em sua casa dia e noite, Anãs teve a oportunidade de ver o Profeta e escutá-lo. Anãs nos conta: ‘’Se insistíssemos’’ – e em outra versão: ‘’se fossemos muitos’’ – ‘’Anas desfolhava as suas folhas de documentos, , e dizia: ‘Estes são ditos do Profeta, que eu anotei e depois li, para ele corrigir qualquer erro.’’ Esta importante afirmação não so fala do que se compilava, mesmo duarnte a vida do Profeta, mas também prova que o Profeta conferia e verificava tais registros. Este caso e citado por diversos autores clássicos, tais como ar-Ramhurmuzi (morto em cerca do ano 360 da Hegira), al-Hakim (m. 405), al-Khatib al-Baghdadi (m. 463), e estes grandes colecionadores de tradições já citam fontes anteriores. Compilações do Tempo dos Companheiros do Profeta Era natural que o interesse pela biografia do Profeta tivesse crescido após sua morte após a sua morte. Seus Companheiros deixaram, aos seus filhos e parentes, relatos de tudo o que sabiam sobre o Profeta. Os novos convertidos tinham sede das suas novas fontes de religião. A morte reduzia, diariamente, o 32 numero daqueles que conheciam as tradições em primeira mão; e isto serviu de incentivo adicional aos que ainda sobreviveram, para que dessem uma maior atenção à preservação das suas memórias. Um grande número de escritos foi, assim, compilado sobre os ditos e atos do Profeta, baseados nas narrações dos seus companheiros, após a morte do mestre. Quando o Profeta nomeou ‘Amr Ibn Hazm governador do Iêmen, deu-lhe instruções escritas, sobre os deveres administrativos que teria de desempenhar. ‘Amr preservou esse documento e também procurou as cópias de vinte e um outros documentos, emanados do Profeta e endereçados às tribos Juhaina, Judham, Taiy, Saquif, etc., compilando-os, na forma de um compêndio de documentos oficiais. Este trabalho sobreviveu até aos nossos tempos. No Sahih de Al-Bukhari, lemos que Jábir Ibn ‘Abdullah compilou um opúsculo sobre a peregrinação a Makka, no qual nos da um relato da ultima peregrinação feita pelo Profeta, incluindo o seu celebre sermão de despedida, pronunciado na ocasião. Diversas fontes também mencionam uma obra de Jábir, Sahifa, que os seus pupilos costumavam decorar. Provavelmente essa obra versava sobre os ditos e ações gerais do Profeta. Dois outros companheiros do Profeta, Samura Ibn Jundab e Sa’d Ibn ‘Ubada, também teriam compilado as suas memórias, para patrimônio dos seus filhos. Ibn Hajar, falando delas, acrescenta que a obra de Samura era grande e volumosa. Ibn ‘Abbás, que era muito jovem no tempo do Profeta, aprendeu muita coisa dos seus camaradas mais velhos, e compilou inúmeras obras, com o material assim acumulado. Dizem os cronistas: “Quando ele faleceu, deixou escritos suficientes para carregar um camelo.” Al-Bukhari narra que ‘Abdullah Ibn Awfa, Abu Bakra e Al-Mughira Ibn Chu’ba, ensinavam as tradições por correspondência: “Se alguém desejasse informações sobre o Profeta, eles respondiam por escrito. Tomavam até a iniciativa de comunicar aos funcionários, por exemplo, as decisões do Profeta, referentes a problemas específicos da ocasião”. Mais esclarecedor é o seguinte relato, preservado por numerosas fontes: “Certo dia, um aluno de Abu Huraira disse assim: Você me disse isto, assim e assim. Abu Huraira, que já devia estar bastante idoso, com a memória enfraquecida, recusava-se a acreditar na tradição; porem, quando o seu aluno insistia que a aprendera daquela forma dele mesmo, Abu Huraira respondia: ‘Se foi comigo que aprendeu, ela deve estar nos meus escritos.’ Tomou-o pela mão e condu33 ziu-o à sua casa, mostrando-lhe “muitos livros sobre as tradições do Profeta”, para que procurasse até chegar a tradição em questão. Uma vez encontrada, ele disse ao aluno: ‘Eu não lhe disse que se a tivesse aprendido de mim, teria de encontra-la nos meus escritos?’ – Deve-se observar que, neste relato usa-se a expressao “muitos livros”. Abu Huraira morreu no ano 59 da Hégira. A um dos seus discípulos, Hammam Ibn Munabbih, ele ditou (ou talvez tenha dado já escrito) um opúsculo de 138 tradiçoes sobre o Profeta. Esse trabalho, datado da primeira metade do primeiro século da Hégira, foi preservado. Ele nos toma possível fazer uma comparação com compilações posteriores das tradições e confirmar a afirmação dos mais antigos, de que as tradições têm sido preservadas com esmerado cuidado, para o beneficio da posteridade. Relata-nos Adh-Dhahab: "O Califa Abu Bakr compilou um trabalho, no qual havia 500 tradições do Profeta, entregando-o à sua filha, 'Aicha. Na manhã seguinte, ele o retomou dela e o destruiu, dizendo: 'Eu escrevi o que entendi; é, no entanto possível haver coisas aí que não correspondam, extualmente, ao que o Profeta efetivamente disse. ' Quanto a Omar, verificamos no testemunho de Ma'mar Ibn Rachid, que, durante o seu califado, consultou, certa vez, os companheiros do Profeta, sobre a conveniência de codificar as tradições. Todos apoiaram a idéia. Mas Umar continuou a hesitar, e orou a Deus por um mês inteiro, pedindo orientação e esclarecimento. Finalmente, decidiu não empreender a tarefa, e disse: "Outros povos tem negligenciado os livros divinos e se concentrado somente na conduta dos seus profetas; não quero tornar possível a ocorrência de confusões entre o Alcorão Sagrado e as tradições do Profeta." A Interdição do Registro Escrito das Tradições Os dois últimos relatos, referentes a Abu Bakr e a ornar, são importantes, uma vez que explicam a verdadeira implicação da tradição que nos diz ter o Profeta proibido que se registrassem, por escrito, os seus ditos. Até onde sabemos, os únicos narradores que se diz terem relatado a ordem do Profeta de que não se escrevesse nada além do Alcorão, são Abu Sa'id al Khudri, Zaid Ibn Sábit e Abu Huraira. Nem o contexto, nem a ocasião em que essa determinação se deu são conhecidos. Deve-se observar que Abu Sa'id al Khudri e Zaid Ibn Sábit estavam no grupo dos jovens companheiros do Profeta, pois no ano 5 da Hégira, não deviam ter mais do que uns 15 anos de idade. Por mais inteligentes que fossem, é admissível que o Profeta os tivesse proibido anotar as suas palestras nos primeiros anos. Quanto a Abu Huraira, vimos que ele próprio havia compilado "muitos livros" sobre as tradições. Ele é historicamente reconhecido como um 34 homem muito piedoso, puritano e rígido; e seria impensável que um homem com tal caráter tivesse violado um mandamento específico do Profeta, se não tivesse recebido do próprio Profeta a revogação de tal proibição. Abu Huraira chegou do Iêmen para se converter ao Islam, no ano 7 da Hégira. É possível que nos primeiros dias, após a sua conversão, o Profeta lhe tivesse ordenado que não escrevesse nada, senão do Alcorão; e que, posteriormente, tendo ele assimilado o Alcorão suficientemente, para distinguir entre o Livro Divino e as tradições, tivesse deixado de existir a razão da interdição. Fato importante é que também se afirma que Ibn 'Abbás teria dito, como sua opinião, sem referências ao Profeta, que as tradições não deviam ser compiladas por escrito. Mesmo assim, como vimos, a sua prolixidade sobrepujava a dos companheiros do Profeta, que haviam consignado as tradições em forma escrita. A contradição, entre a palavra e a ação destes que, nem por isso são menos conhecidos por sua devoção e obediência escrupulosa às determinações do Profeta, confirma a nossa suposição de que a ressalva contra o registro escrito das tradições devia estar ligada a um contexto que nos foi passado, nas narrativas, e que era de âmbito limitado. Devemos, por-tanto, procurar conciliar as duas ordens contraditórias do Profeta, ao invés de rejeitar ambas. Três explicações possíveis vêm à mente: (1) Tal interdição pode ter sido individual, e se referido àqueles que só recentemente tinham aprendido a arte de escrever, ou àqueles que haviam se convertido ao Islam há pouco, e que ainda estariam longe de ser capazes de distinguir entre o Alcorão e as tradições. A interdição viria a ser suspensa mais tarde, ao se constatar terem eles adquirido competência, posteriormente alcançada. (2) Essa interdição poderia ter sido destinada a evitar que se copiassem as tradições nas mesmas folhas em que viessem a ser escritos trechos do Alcorão, com o objetivo de evitar o surgimento de eventuais confusões, entre o texto e a exegese. Abu Sa'id al-Khudri se refere a isto, e temos, também, a ressalva formal do Califa ornar, contra esse modo de preservar as tradições. (3) Ela pode ter se relacionado com algumas palestras, em especial, do Profeta, como por exemplo a ocasião em que ele vaticinou, com referência ao futuro do Islam e às suas imensas conquistas espirituais e políticas; a interdição seria, então, motivada pelo desejo de que a crença na predestinação não levasse certas pessoas a abandonar a devoção espiritual. 35 Outras explicações poderiam, ainda, ser acrescentadas, mas estas devem ser suficientes, por ora. Nos Séculos Seguintes No princípio, as compilações das tradições eram breves e individuais, cada companheiro tomando as suas próprias anotações. Na segunda geração, quando os estudantes passaram a assistir a palestras de mais de um mestre, tornou-se possível reunir diversas memórias em volumes maiores, anotando-se cuidadosamente todas as fontes diferentes. Algumas gerações mais tarde, foram colecionadas todas as memórias dos companheiros do Profeta, e algum tempo depois houve uma tentativa para classificar essas tradições, de acordo com os assuntos tratados, reunindo as regras jurídicas e outros usos científicos. Como no caso do Alcorão, tomou-se compulsório decorar cada uma das tradições; e para ajudar na rememoração, utilizava-se os textos escritos. Este método duplo, de apresentação e segurança, foi rigorosamente observado por alguns, e menos por outros. Daí a relativa importância dos diferentes mestres e sua confiabilidade. Não muito após o falecimento do Profeta, os narradores das tradições adotaram o costume de mencionar, não somente o nome do Profeta, como fonte original do conhecimento contido, como também o meio pelo qual foi obtida aquela informação. Al-Bukhari, por exemplo, diz: "Meu mestre, Ibn Hanbal, disse: 'Ouvi meu mestre, 'Abd ar-Razzak dizendo: 'Meu Mestre, Ma'mar Ibn Rachid me disse: 'Ouvi meu mestre, Hammam Ibn Munabbih dizer-me: 'Meu mestre, Abu-Huraira me disse: 'Escutei o Profeta dizer isto assim, assim. Para um único relato de algumas palavras sobre o Profeta, passou a haver uma extensa corrente de referências, relatando as sucessivas autoridades enunciadoras. Numa única corrente de narradores, como a que acabamos de citar, encontramos referência, não apenas ao Sahih de Al-Bukhari, mas também ao Musnad de Ibn Hanbal, ao Musannaf de 'Abdar-Razzak, ao Jamí de Ma'mar e ao Sahifa de Hammam, como lhe foram transmitidos por Abu-Huraira, o companheiro do Profeta. Encontramos o relato dessa corrente em todas essas obras citadas - que, felizmente, se preservaram até ao nosso tempo - nessas palavras, exatamente. Diante da presença de uma sucessão de tantas fontes autorizadas, seria insensato presumir, e uma calúnia indigna sugerir, por exemplo, que al-Bukhari tivesse inventado a narração, atribuindo-a ao Profeta, ou tivesse fabricado, ele próprio, a corrente de narradores, ou tivesse simplesmente recolhido o folclore ou diz-que-me-diz popular da sua época e o tivesse atribuído ao Profeta. 36 Conclusão É por esse método de salvaguarda dupla, ou seja, decorando o conteúdo e preservando-o, ao mesmo tempo, por escrito - sistema pelo qual um método ajuda o outro a tomar a integridade dos relatos duplamente correta - que os ensinamentos religiosos do Islam têm sido preservados, desde o princípio e até aos nossos dias. Isto é verdadeiro, tanto em relação ao Alcorão, quanto as tradições, que consistem das memórias dos companheiros do Profeta, e que se referem aos ditos, atos e aprovações tácitas, por ele, da conduta dos seus companheiros. É preciso lembrar que também, como fundador de uma religião, o Profeta Muhammad teve um tremendo êxito. Aliás, no ano 10 da Hégira, foilhe permitido falar à assembléia em 'Arafat, Makka, para cerca 140.000 muçulmanos que se haviam reunido ali em peregrinação (sem contar muitos outros, que não haviam ido a Makka naquele ano). Os biógrafos dos companheiros do Profeta afirmam que o número de companheiros do Profeta Muhammad, que relatou, no mínimo, um incidente da vida do Profeta, excede cem mil. Naturalmente, há que haver repetições, mas é exatamente a multiplicidade de fontes, relatando o mesmo acontecimento, que dá credibilidade ao fato. Possuímos cerca de dez mil relatos (excluindo as repetições, contidas nas tradições, sobre a vida do Profeta do Islam), e esses relatos se referem a todos os aspectos da vida, incluindo a orientação, dada por ele, aos seus discípulos, em assuntos, tanto espirituais, como temporais. O Conceito Islâmico De Vida A vitalidade de uma sociedade, povo ou civilização, depende sobremaneira da filosofia de vida concebida e praticada por ele (a). No seu estado natural, o homem não pensa em nada, além de no seu interesse particular e, somente depois desse, nos dos seus parentes mais próximos. Entretanto, tem havido, em todas as épocas, grupos humanos, que se destacaram de modo especial. Quando estudamos os traços e as características de uma vintena de civilizações, - e talvez estejamos agora no amanhecer de mais uma - constatamos que, mesmo se determinado grupo tendo destacado, entre outros, como porta-estandarte de uma determinada época, isto não significa, necessariamente, que os demais grupos contemporâneos vivessem em estado de selvageria primitiva. Há, pelo contrário, uma relativa predominância de uns sobre os outros, na escala de graduação. Quando os fenícios, por exemplo, entraram em cena e desenvolveram uma brilhante civilização, diversos outros povos contemporâneos eram, talvez, tão civilizados quanto eles, faltando-lhes apenas a ocasião e um campo adequado para o desenvolvimento das suas atividades. Na época árabe-islâmi37 ca, os gregos, os romanos, os chineses, os hindus e outros, possuíam todas as características de um povo civilizado; no entanto, não ascenderam à altura de porta estandartes da civilização da sua época. Em nossos tempos, se os EUA e a Rússia formam a vanguarda, com o seu poderio nuclear, e outras pretensões, os ingleses, franceses e alemães seguem-nos bem de perto. Não obstante o progresso de alguns, existem ainda, e ao mesmo tempo, mesmo nesta segunda metade do século XX, em algumas partes do planeta, grupos entregues à selvageria, senão ao canibalismo. Surge a questão de porque a evolução de alguns é rápida, enquanto a de outros é lenta. Na época em que os gregos desfrutavam de uma civilização gloriosa, porque a Europa Ocidental estava entregue à barbárie? Por que o barbarismo prevalecia na Rússia, quando os árabes alcançaram o ápice do esplendor? A mesma questão pode ser formulada em relação a diversas nações, em várias épocas. Será pura e simplesmente uma questão de acaso e circunstância, ou será que isto se deve ao fato de que alguns indivíduos, de personalidade mais nobre e elevada, nasceram em um dado grupo, em detrimento de outros? É possível que haja, também, outras explicações plausíveis, mais complexas e dependentes de uma gama variada de causas coexistentes, que governam as realizações de uns, e a frustração e até extinção de outros. Há, ainda, uma outra questão. Após uma fase momentânea de esplendor, porque os povos recaem novamente numa obscuridade relativa, quando não num estado quase bárbaro? Propomo-nos a investigar essas questões, em relação ao Islam contemporâneo, e debater, se possível, as chances que este tem de sobreviver. Se acreditarmos em Ibn Khaldun, aceitaremos o fator biológico como a causa essencial. No final de uma única geração, a raça esgota a sua vitalidade e, para propósitos de rejuvenescimento, é preciso que haja, na família humana, pelo menos uma mudança na liderança dos seus negócios. A teoria racial, mesmo que seja considerada como um exagero intelectual, pode afetar civilizações étnicas e religiões intransigentes, que não admitem a conversão e a miscigenação. O Islam, felizmente, escapa desse ciclo de decadência, pois os seus seguidores são encontrados permeando todas as raças, e ele continua alcançando um maior ou menor progresso, em todos os cantos do mundo. Além do mais, é unanimemente reconhecido que o Islam conseguiu eliminar, completamente, dentro da sua comunidade, os preconceitos raciais, uma característica que lhe permite aceitar, sem hesitação, os homens 38 de qualquer raça, para serem seus líderes e porta-estandartes. A emancipação sistemática dos escravos, que foi ordenada pelo Alcorão, representa outro exemplo glorioso. Para dizer a verdade, é notável que tenham existido várias dinastias de governantes muçulmanos na história, que se originaram de escravos recém-libertos. A vida e morte de uma civilização dependem, de maneira igual, da qualidade dos seus ensinamentos básicos. Se eles convidam os seus acólitos a renunciar ao mundo, com certeza obterão um grande progresso espiritual, porém as outras partes constituintes do homem, o seu corpo, as suas faculdades intelectuais etc., não poderão desempenhar as suas habilidades naturais, e morrerão, antes mesmo de florescerem. Se, por outro lado, uma civilização ressalta somente os aspectos materiais da vida, o homem atinge bastante progresso nesses aspectos, em detrimento dos outros; e uma tal civilização pode até transformar-se em um boomerang, causando a sua própria morte. Isto porque o materialismo freqüentemente engendra o egoísmo e a falta de respeito pelo direito de terceiros, criando inimigos, que ficam na expectativa de oportunidades para represálias. A conseqüência é a matança mútua. A história dos dois salteadores é bem conhecida. Eles tinham conseguido apossar-se de algum saque. Um deles foi à cidade comprar provisões, enquanto o outro se encarregou de cortar lenha, para preparar a refeição. Entretanto, ambos resolveram, intimamente, livrar-se um do outro, para ficar sozinhos com o produto do saque. Com esse propósito, o que tinha ido fazer compras, envenenou as provisões, enquanto o seu camarada ficou esperando de tocaia, matando-o, no retomo da vila; porém, ao saborear a comida, ele também se reuniu ao seu companheiro, no outro mundo. Há, talvez, um outro defeito, inerente a uma civilização, cujos ensinamentos não contenham uma capacidade inata de desenvolvimento e de adaptação às circunstâncias. Por mais atraentes que os seus ensinamentos sejam, em determinada época ou ambiente, podem não servir em outra (o); ser seduzido por tais ensinamentos provará, evidentemente, ser fatal para aqueles que os vierem a seguir. Um exemplo simples deve bastar para ilustrar esse ponto. Quando ainda não havia luz elétrica e quando os centros de certos cultos não possuíam uma receita estável, acender uma vela, certamente, era interpretado como um ato de devoção, em tais lugares de interesse religioso. Nada há que se dizer contra um ato de devoção, por parte de alguém arrependido, para quem esse ato representa uma forma de expiação e de anulação do crime cometido contra Deus, ou contra um homem, que seria difícil de reparar de outro modo. Mas pode o ato de acender velas, em um lugar agora amplamente iluminado com lâmpadas elétricas, ser considerado mais do que um desperdício inútil? Estudemos o Islam, à luz de tais circunstâncias. 39 A Ideologia Islâmica É bem sabido que a divisa do Islam está resumida na expressão do Alcorão "bem-estar neste mundo e bem-estar no outro". O Islam certamente não satisfaz os extremistas de qualquer escola, seja a dos ultra-espiritualistas ou a dos ultra-materialistas; porém, pode ser praticado pela maioria preponderante da humanidade, que segue um caminho intermediário, e procura desenvolver, simultaneamente, o corpo e a alma, criando um equilíbrio harmonioso, no homem como um todo. O Islam insiste na importância de ambos estes fatores constituintes do homem, e na sua inseparabilidade, de modo que um não venha a ser sacrificado, em benefício do outro. Se o Islam prescreve deveres e práticas espirituais, estas contêm, também, vantagens materiais; da mesma forma, se o Islam autoriza um ato de utilidade secular, explica como tal ato também pode servir de fonte de satisfação espiritual. Os exemplos que seguem servirão para ilustrar este argumento. É provável que concordemos em que o objetivo das práticas espirituais é o de nos aproximar do Ser Necessário, nosso Criador e Senhor, e de obter o Seu agrado. Portanto, o homem tenta "tingir-se com as cores de Deus", como determina o Alcorão, a fim de enxergar com os olhos d'Ele, de falar a linguagem d'Ele, buscando imitá-lo, conforme as humildes capacidades humanas. O crente deve jejuar, na ocasião determinada pelo Alcorão, porque este é um mandamento de Deus. E obedecer o mandamento do Senhor é um ato de devoção e, além disso, o jejum enfraquece o corpo, fortificando a alma, pela redução dos desejos materiais. O praticante sente uma elevação espiritual, pensa em Deus, e em tudo o que Ele faz por nós, além de desfrutar, ainda, de outros benefícios espirituais. Mas o jejum também proporciona benefícios materiais. A acidez, que é secretada pelas glândulas, quando estamos com fome e com sede, mata muitos micróbios, no estômago. Desenvolvemos, também, a capacidade de suportar a privação, em momentos de crise, sem por isso perturbar o cumprimento dos nossos deveres normais. Se jejuamos por razões materiais, apenas, o ato não tem nenhum valor espiritual; mas se jejuamos para obter as boas graças de Deus, as vantagens materiais não são excluídas. Sem entrar num debate pormenorizado, pode se observar que os outros atos e práticas do Islam também têm tal efeito duplo, espiritual e temporal. Assim ocorre na oração, seja individual ou em congregação, e isto também é verdadeiro na abnegação do próprio ser, que se pratica na ocasião da peregrinação à casa de Deus, na prática da caridade para com os pobres, e em outras práticas religiosas e espirituais, além 40 do mínimo obrigatório. Se fizermos alguma coisa exclusivamente por amor a Deus, ela sempre terá um mérito duplo: uma vantagem espiritual, sem prejuízo dos benefícios materiais. Pelo contrário, se fizermos a mesma coisa com um objetivo material, somente, podemos obter o propósito pretendido, mas a vantagem espiritual estará totalmente perdida. Recordemos o célebre ditado do Profeta Muhammad: "Os atos devem ser julgados de acordo com as intenções." Para falar de um ato exclusivamente temporal, todos pagamos impostos ao governo. Não deveria ser motivo de espanto saber que o Islam considera este ato como um dos cinco elementos básicos da fé, tão importante quanto a crença, a oração, o jejum e a peregrinação. A significação é profunda: une-se o espiritual e o temporal em um todo único, e paga-se o imposto, não como um dever, ou mesmo uma obrigação social, e sim, como um dever para com Deus, do Qual nada pode ser ocultado e Que é, além do mais, capaz de nos ressuscitar e de exigir a nossa prestação de contas. Pode-se compreender facilmente com que cuidado e escrúpulo o fiel pagará o que é devido, no desempenho dessa obrigação. Do mesmo modo, a guerra é proibida pelo Islam, exceto se for pela causa de Deus; e não é difícil compreender que um soldado de um tal exército seja mais humano e não deseje um ganho secular, pelo fato de arriscar a sua vida. Para a espiritualização dos deveres temporais, o Islam não teve nenhum outro motivo que o fortalecimento do fator espiritual do homem, o qual, desse modo, ao invés de buscar ganhos materiais pelos valores materiais, aspira tão somente a obter as graças de Deus. O grande místico al-Ghazali não exagerou quando disse: "Se alguém ora ou jejua por ostentação, está praticando o politeísmo, o culto de si mesmo, e não de Deus, Todo-Poderoso; pelo contrário, se coabitamos com a nossa esposa — não pelo prazer carnal, mas no desempenho de um dever imposto por Deus — isto constitui um ato de devoção, merecedor da graça e da recompensa de Deus." Um corolário, talvez do mesmo conceito abrangente de vida, está no fato de que o Alcorão usa, freqüentemente, a fórmula dupla "crê e pratica boas ações", pela qual a mera declaração de crença, sem a aplicação ou a prática, não tem muito valor. O Islam insiste em um, tanto quanto no outro. A prática de boas ações sem a crença em Deus é, sem dúvida, preferível, para o bem da sociedade, à prática de ações ilícitas; entretanto, do ponto de vista espiritual, uma boa ação sem fé não pode propiciar a salvação na outra vida. Como distinguir o lícito do ilícito? Em primeira instância, somente a lei revelada pode servir de critério, e em último recurso, a nossa própria consciência é que deverá servir de árbitro. Quando um problema surge, podemos consultar 41 os textos da lei islâmica, pessoalmente, se pudermos, ou com a ajuda de alguém instruído, ou, se necessário, com algum dos especialistas. Entretanto, um jurisconsulto só poderá responder, com base nos fatos que lhe forem dados a conhecer. Se quaisquer fatos materiais forem ocultados dele, seja intencionalmente, seja de outro modo, a injustiça que resultar não poderá ser atribuída à lei. Podemos, aqui, recordar um parecer encantador do Profeta, que disse, certo dia: "Gente!, nas queixas que vêm até mim, decido, com base somente nos fatos que são trazidos ao meu conhecimento; se, por falta de informações completas, eu tomar uma decisão em favor de alguém que não possui nenhum direito, façam-no saber que será destinada a ele uma parte do fogo do inferno." Um axioma islâmico ressalta o mesmo, ao dizer: "Consulte a sua consciência, até mesmo se os jurisconsultos lhe proporcionam justificativas." Jamais pensar nos outros, mas somente em si mesmo, não só não é humano, como é animalesco. Pensar nos outros, após haver preenchido as nossas próprias necessidades, é normal e permissível. Assim, o Alcorão louva aqueles que preferem os outros acima de si mesmos, mesmo que a pobreza lhes sobrevenha, como conseqüência disso. Os que antes deles residiam (em Madina) e haviam adotado a fé, mostram afeição por aqueles que migraram para juntodeles e não nutrem inveja alguma em seus corações, pelo que (tais migrantes) receberam (de despojos); por outra,preferem-nos, em detrimento de si mesmos. Sabei que eles que se preservarem da avareza serão os bem-aventurados. (59a Surata, versículo 9) Evidentemente, trata-se apenas de uma recomendação e não de um dever obrigatório, imposto ao homem comum; se não a observarmos, não seremos considerados criminosos ou pecaminosos. Podemos citar, também, a tradição do Profeta, em relação ao mesmo tema: "O melhor dos homens é aquele que faz o bem aos outros." A orientação alcorânica pode ser considerada como tendência característica do Islam, a saber: divulga a mercê do teu Senhor, em teu discurso! (93a Surata, versículo 11) Uma tradição do Profeta explica esse versículo de modo impressionante: "Deus gosta de ver os traços das Suas graças sobre as Suas criaturas." Aconteceu que, certa vez, um dos seus companheiros veio ter com ele, vestido miseravelmente, apesar de ser uma pessoa abastada. Quando o Profeta lhe perguntou a razão 42 daquilo, ele respondeu que preferia ter uma aparência miserável, não por avareza, mas por devoção, já que preferia os necessitados a si próprio. O Profeta não aprovou isso, e impôs um limite à alinegação. O Alcorão vai mais além: "Não te esqueças dos teus deveres neste mundo."O Islam não admite que o homem pare de trabalhar e se transforme num parasita; pelo contrário, cada um deve usar todos os dons e talentos que possui, para desfrutar dos frutos da criação de Deus, e adquirir tantos quantos possíveis; o que exceder as suas próprias necessidades, poderá ser destinado a ajudar aqueles que carecem do essencial. O Profeta disse, de modo inequívoco: "É melhor que deixeis para trás os vossos parentes bem providos, do que eles se vejam obrigados a pedir esmolas a outrem." Apesar da imposição de práticas diárias consideráveis, o Islam não exige de ninguém a mortificação ou a miséria voluntárias; pelo contrário, o Alcorão censura aqueles que têm tal comportamento: Dize-lhes: Quem pode proibir as galas de Deus e o desfrutar dos bons alimentos, que ele preparou para os Seus servos? Dize-lhes ainda: Estas coisas pertencem aos que crêem, durante a vida neste mundo (ainda que as compartilhem com os demais); porém, serão exclusivas dos crentes, no Dia da Ressurreição.' Assim, elucidamos os versículos aos sensatos. (7a Surata, versículo 32) Há as coisas que são permitidas pela lei; mas negar, voluntariamente, a si mesmo, não é, necessariamente, um ato de devoção, como seria o caso da abstenção das coisas proibidas pela mesma lei. A Crença em Deus O homem parece ter sempre procurado conhecer o seu Criador, com o propósito de Lhe obedecer. Os melhores líderes religiosos, de todas as épocas e civilizações, estabeleceram regras de conduta, com esse fim. Os povos primitivos adoravam as manifestações dos poderes e da beneficência de Deus, esperando, desse modo, agradar-Lhe. Outros acreditam em dois deuses distintos, um deus do bem e outro do mal, sem perceber a conseqüência lógica de tal distinção, que implica num conflito entre os deuses. Outros, ainda, cercaram Deus de mistérios que, às vezes, mistificavam a pessoa de Deus. E outros, ainda sentiram a necessidade de ter símbolos, fórmulas ou gestos, mal distinguindo as suas próprias concepções, da idolatria e do politeísmo. Nesse campo, o Islam tem a sua particularidade. Ele acredita na absoluta Unicidade de Deus, e prescreve uma forma de culto e de oração que não 43 admite, nem imagens, nem símbolos (considerando-os como reminiscências do primitivismo e da idolatria). No Islam, Deus não é somente transcendente e imaterial, acima de qualquer percepção física, mas é, também, Onipotente. As relações entre o homem e o seu Criador são diretas e pessoais, sem exigir qualquer intermediário. Até os mais santos dos santos, como os profetas, não passam de guias ou mensageiros; e cabe ao homem, individualmente, fazer a sua escolha e assumir a sua responsabilidade perante Deus. Vê-se, desse modo, que o Islam busca desenvolver a personalidade do indivíduo. Ele admite que o homem tem fraquezas, visto que é composto, simultaneamente, pelas capacidades, tanto do bem, como do mal; mas não admite que haja nele um pecado original, pois fazê-lo seria uma injustiça. Se Adão cometeu um pecado, não há porque este fato repassar a responsabilidade aos seus descendentes (à posteridade), pois cada ser humano é individualmente responsável somente por sua própria conta e atos. Em sua fraqueza, o indivíduo pode cometer ofensas a Deus ou aos seus semelhantes. Cada ofensa tem, em princípio, um castigo proporcional, mas o Islam reconhece a possibilidade do perdão, cujos constituintes são o arrependimento e a reparação. No que tange às ofensas contra o homem, elas devem ser reparadas, na medida do possível, para que a vítima possa perdoar graciosamente, ou, com a restituição do objeto que lhe foi tomado, ou pela reposição deste, ou de alguma outra forma semelhante. No tocante às ofensas a Deus, o homem pode ser adequadamente punido ou receber o Seu perdão magnânimo. O Islam não admite que Deus precise punir, primeiro, algum inocente, para só então conceder o Seu perdão a alguns pecadores arrependidos; pois tal procedimento seria injusto da parte d'Ele. A Sociedade Ao mesmo tempo em que o Islam procura o desenvolvimento da individualidade do homem, também procura aperfeiçoar a coletividade social. Isto pode ser percebido em todas as suas determinações, sejam religiosas ou temporais. Assim, a oração é, em princípio, uma atividade coletiva (se, em caso de necessidade, há alguma isenção, relativa às cinco orações diárias, não existe nenhuma, em relação às congregações semanais ou anuais); a peregrinação é um exemplo ainda mais nítido, uma vez que os fiéis se reúnem no mesmo lugar, vindos de todos os pontos do planeta. O aspecto coletivo do jejum se manifesta no fato de ele ter lugar no mesmo mês, para os fiéis de todo o mundo; a exigência de haver um califa, a obrigação de pagar o imposto do zakat, para suprir as neces44 sidades da coletividade, etc., todas estas medidas visam o mesmo objetivo. É naturalmente compreendido que, na coletividade, ou sociedade, há uma força que as pessoas não possuem individualmente. Por razões que são melhor conhecidas por Ele, Deus dotou indivíduos diferentes com qualidades diferentes. Dois filhos de um mesmo casal, dois alunos de uma mesma sala de aula, nem sempre possuem as mesmas qualidades ou capacidades. Nem todas as terras são férteis; os climas diferem; duas árvores da mesma espécie não produzem a mesma quantidade de frutos, nem a mesma qualidade. Cada ser, cada parte do ser, tem as suas próprias peculiaridades. Com base nesse fenômeno natural, o Islam afirma, por um lado, a igualdade original de todos, e por outro lado, a superioridade de um indivíduo sobre o outro. Todos são criaturas do mesmo Senhor, mas não é a superioridade material que conta, para obter uma melhor apreciação, junto a Deus. Somente a devoção serve de critério para se avaliar a grandeza do indivíduo. Afinal, a vida neste mundo não é senão efêmera, e deve existir uma diferença entre o comportamento do homem e o do animal. A Nacionalidade E é nesse sentido que o Islam rejeita o estreito fundamento da nacionalidade, como elemento de solidariedade. A afinidade do parentesco ou com a terra de natividade é, sem dúvida, natural; porém, o próprio bem da raça humana exige uma certa tolerância, para com outros grupos semelhantes. A distribuição da riqueza natural, de diferentes partes do mundo, em quantidades variáveis, torna o mundo interdependente. Inevitavelmente, vemo-nos forçados a "viver e deixar viver"; caso contrário, uma onda interminável de vendetas nos exterminaria a todos. A nacionalidade, baseada na linguagem, na raça, na cor, ou no lugar de nascimento, é por demais primitiva; ela contém uma fatalidade, um impasse - algo em que o homem não tem escolha. A noção islâmica de nacionalidade é progressiva, e se baseia unicamente na escolha do indivíduo, pois ela propõe a unidade de todos aqueles que acreditam na mesma ideologia, sem distinção de raça, língua ou lugar de domicílio. Uma vez que se exclui a exterminação ou subjugação dos outros, a única possibilidade válida é a da assimilação, e que meios servirão melhor à assimilação do que a crença na mesma ideologia? Podemos reiterar que a ideologia islâmica é uma síntese das exigências, tanto do corpo como da alma, além do que, ela incute a tolerância. O Islam tem proclamado que Deus sempre enviou os Seus mensageiros, em diferentes épocas e a povos diferentes. O próprio Islam não reivindica mais do que a função de renovar e reviver a eterna mensagem de Deus, tantas vezes 45 repetida pelos profetas. Ele proíbe toda a compulsão, em matéria de crença religiosa; e por mais inacreditável que pareça, o Islam se obriga ao dever dogmático e religioso de permitir a autonomia dos não-muçulmanos, domiciliados no solo dos Estados Islâmicos. O Alcorão, as tradições e o costume em todos os tempos, exigem que os não-muçulmanos tenham as suas próprias leis, administradas em seus próprios tribunais por seus próprios juízes, sem qualquer interferência, por parte de autoridades muçulmanas, em quaisquer assuntos, sejam religiosos ou sociais. Visão Econômica A importância social das questões econômicas é evidente demais para exigir qualquer ênfase. O Alcorão não exagera, quando declara: Não entregueis aos néscios o vosso patrimônio, cujo manejo Deus vos confiou, mas mantende-os, vesti-os e tratai-oshumanamente, dirigindo-vos a eles com benevolência. (4a Surata, versículo 5) Que os bens materiais constituem os meios próprios da subsistência da humanidade. Se todos não pensassem em ninguém além de si próprios, a sociedade correria um perigo cada vez maior, pela simples razão de que há sempre alguns poucos ricos e um número bem maior de pobres; e no instante de lutar pela sobrevivência, a vasta maioria dos esfomeados exterminaria, no decorrer do tempo, a maioria dos ricos. Uma pessoa pode suportar muitas privações, mas não a de alimentos. A concepção islâmica sobre este assunto é bem conhecida. Ela enfoca a constante redistribuição e circulação da riqueza nacional. Assim, os pobres são isentos dos impostos, enquanto os ricos são taxados, para prover os necessitados. Além disso, há leis, que exigem a distribuição compulsória das heranças e que proíbem a acumulação de riquezas, nas mãos de uns poucos, pelo banimento dos juros sobre empréstimos, e pela proibição de legados que prejudi-quem parentes próximos, etc., e há aquelas que prescrevem regras de dispêndio da receita do Estado, visando uma redistribuição benéfica dessa renda entre os beneficiários, dentre os quais os pobres estão em primeiro lugar. Resguardado esse ponto de vista, a lei tolera diferenças, nos meios e nos métodos, de acordo com a região, a época e as circunstâncias, desde que a meta seja alcançada. É tolerada a competitividade das empresas privadas, enquanto esta não degenerar na exploração e na ruína, daqueles que são economicamente 46 mais fracos. Igualmente, será tolerado o planejamento global, se isto parecer necessário, devido às circunstâncias ou à evolução econômico-demográfica. De qualquer modo, deve ser evitado o desperdício de bens, como também de energia, e devem ser adotados os meios que melhor se adaptem às necessidades do momento. O Livre Arbítrio e a Predestinação Isto nos leva à questão filosófica do livre-arbítrio. Esse eterno dilema, jamais poderá ser resolvido pela lógica pura. Pois, se o homem desfruta do livre-arbítrio, em relação a todos os seus atos, isto afeta, evidentemente, a onipotência de Deus. Do mesmo modo, se Deus preestabelece o destino, porque, então, o homem deve ser responsável pelos seus próprios atos? O Profeta Muhammad recomendava, enfaticamente, aos seus seguidores, que não se envolvessem em debates sobre este tópico, "que já desvirtuou tantas pessoas, que vieram antes de vocês"; e ele separou as duas questões, ou seja, a onipotência de Deus e a responsabilidade do homem. Na verdade, não há lógica no amor, e o muçulmano ama o seu Criador; ele é incapaz de aceitar que Deus tenha atributos defeituosos; Deus não só é sábio e poderoso, como também é justo e misericordioso, no mais alto grau. O Islam separa os assuntos celestiais, que são atributos de Deus, dos assuntos temporais, e insiste em que os fiéis ajam; e uma vez que a vontade divina repousa oculta do homem, é dever deste jamais se desesperar, após um fracasso preliminar, mas tentar novamente, e mais uma vez, até que o objetivo, ou seja alcançado, ou se torne impossível de realizar. O conceito islâmico da predestinação vem, no último caso, para consolar o homem: aquilo era a vontade de Deus, e o êxito ou o fracasso neste mundo, não têm importância, em relação à salvação eterna, assunto no qual Deus julga, de acordo com as intenções e com os esforços, e não de acordo com a medida de realizações e êxitos. De acordo com o Alcorão essa é a verdade, que é sempre revelada por Deus aos Seus sucessivos mensageiros: Acaso, não foi inteirado de tudo quanto encerram os livros de Moisés? E os de Abraão, que cumpriu (suas obrigações)? Que nenhum pecador lucrará com culpa alheia? E que o homem não obtém senão o fruto do seu proceder? E que o seu proceder será examinado? Depois, ser-lhe-á retribuído, com a mais eqüitativa recompensa? E que pertence ao teu Senhor o limite? (53a Surata, versículos 36-42) 47 Se o homem não se considerasse responsável pelos seus atos, perante Deus, Todo Poderoso, ele não mereceria, nem punição, nem recompensa. Para resumir, já que o Islam separa completamente as duas questões, não é difícil, ao Islam, admitir, ao mesmo tempo, os requisitos do homem (esforço, senso de responsabilidade) e os direitos de Deus, com todos os Seus atributos, incluindo o poder de predeterminar. A predeterminação, no Islam, tem um outro significado, não menos importante, ou seja, de que é somente Deus Que, sozinho, determina para o ato humano a qualidade do bem ou do mal; é somente Deus que é a fonte de toda a lei. São as prescrições divinas que devem ser obedecidas, em todo o nosso comportamento, as quais Ele nos comunica, através dos Seus mensageiros escolhidos. Muhammad foi o último deles, e também aquele cujos ensinamentos foram melhor preservados. Não possuímos os originais das mensagens mais antigas, que sofreram danos, nas infelizes guerras fratricidas da sociedade humana. O Alcorão não é apenas uma exceção à regra, mas constitui, também, a última mensagem divina. É tido como convencional que a lei, de data mais recente, revoga as disposições contrárias, anteriores, do mesmo legislador. Concluindo, vamos nos referir a outra característica da vida islâmica: É dever do muçulmano, não apenas obedecer à lei divina, em sua conduta diária, em sua vida como um indivíduo, bem como parte da coletividade, e em sua vida temporal, tanto quanto na espiritual; ele também deve contribuir, de acordo com as suas capacidades e condições, para a propagação dessa ideologia, que se baseia na revelação divina, e que é destinada ao bem-estar de todos. Vê-se que um credo tão completo, abrange a vida inteira do homem, não somente material, como também espiritual; e que, de acordo com ele, cada um vive, neste mundo, em constante preparação para a outra vida. Fé e a Crença Todo o indivíduo acredita em alguma coisa, na verdade, nas superstições, e, às vezes, até em coisas resultantes de interpretação falsa ou equívoca. Tais crenças podem se modificar, com a idade e com a experiência, entre outros fatores. Mas, certas crenças, são compartilhadas por grupos em comum. Nesse contexto, o aspecto mais importante é a idéia que o homem faz da sua própria existência: de onde ele veio? para onde vai? quem o criou? qual a razão e o objetivo da sua existência?, e assim por diante. A ciência que trata disso é a religião. As crenças são um assunto puramente pessoal. Nem por isso, deixou a história de registrar, quanto às religiões da espécie humana, inúmeros atos de 48 violência e horror fratricidas, atos de que até os animais se envergonhariam. O princípio básico do Islam está contido no seguinte versículo do Alcorão: Não há imposição quanto à religião, porque já se destacou a verdade do erro. Quem renegar o sedutor e crer em Deus, ter-se-á apegado a um firme e inquebrantável sustentáculo, porque Deus é Oniouvinte, Sapientíssimo. (2a Surata, versículo 256) É uma caridade, e até um sacrifício, guiar os outros, no seu esforço de dispersar a ignorância dos semelhantes, sem obrigar quem quer que seja a qualquer espécie de crença - esta é a posição do Islam. O conhecimento e a inteligência do homem estão num processo contínuo de evolução. O conhecimento médico ou matemático de um Galeno ou de um Euclides mal preenche, hoje em dia, os requisitos básicos para uma prova de admissão; muito mais do que isso é exigido dos universitários, atualmente. No campo dos dogmas religiosos, é bem possível que o homem primitivo tivesse sido até incapaz de formular uma noção abstrata sobre um Deus transcendental, cujo culto dispensasse símbolos ou outras representações materiais. Até na sua linguagem, ele era incapaz de transmitir idéias sublimes, sem se ver forçado a usar termos que pouco se adequavam a tais conceitos abstratos. O Islam enfatizou, de modo específico, o fato de que o homem é constituído de dois elementos, corpo e alma, frisando que ele não deveria negligenciar um, em favor do outro. Dedicar-se exclusivamente a objetivos espirituais seria o mesmo que aspirar a se tornar um anjo (e Deus criou outros anjos); dedicar-se exclusivamente a objetivos puramente materiais é o mesmo que se rebaixar à condição bestial, ou de um legume, se não à de um diabo (Deus criou outras formas, além dos homens, para atender tais propósitos). O objetivo de ter criado o homem com a sua capacidade dual, continuará inalcançável, se este não mantiver, simultaneamente, um equilíbrio harmonioso, entre as necessidades do corpo e as do espírito. Os muçulmanos devem a sua fé religiosa a Muhammad, o Mensageiro de Deus. Certo dia, o Profeta Muhammad respondeu assim, a uma pergunta, sobre o que seria a fé: "Acreditar no Deus Uno, em Seus mensageiros angelicais, nos livros, revelados por Ele, nos seus mensageiros humanos, no Dia do Juízo Final e na determinação, por Deus, do bem e do mal." Na mesma ocasião, ele explicou o que significa submissão a Deus, e qual a melhor maneira de obediência, aspectos que serão tratados nos dois capítulos que se seguem. 49 Deus Os muçulmanos nada têm em comum com os ateus, com os politeístas, nem com os outros, que associam outros ao Deus Uno. A palavra árabe que se refere ao Deus Único é Allah, e não admite gênero masculino ou feminino, nem tão pouco a pluralização. Até o homem mais simples, mais primitivo e inculto, entende claramente que ninguém pode criar a si mesmo e que, portanto, deve haver um Criador de todos nós e de todo o universo. O ateísmo não responde a essa necessidade da lógica. Acreditar no politeísmo envolve a complicação de ter que se dividir os poderes entre os diversos deuses, quando não provocar um conflito entre eles. E é fácil, para qualquer um, perceber que tudo o que existe no universo é interdependente. O próprio homem, por exemplo, depende de plantas, metais, animais e das estrelas, do mesmo modo que cada uma dessas formas depende de outra, de uma maneira qualquer. A divisão dos poderes divinos torna-se, por isso, impraticável. Em sua bem-intencionada solicitude de não atribuir a Deus o mal, certos pensadores imaginaram dois deuses diferentes, acrescentando um deus do mal. Mas a questão que surgiu foi se ambos os deuses agiriam de comum acordo, ou se haveria conflito entre eles. No primeiro caso, a dualidade tornar-se-ia redundante e supérflua; se o deus do bem condescendesse com o do mal, ele se tornaria cúmplice do que é ilícito, viciando, desse modo, a razão de ser da dualidade. No segundo caso, ter-se-ia de admitir ser o deus do mal vitorioso mais freqüentemente, e em conseqüência prevalecer. Deveríamos, então, acreditar num ente fraco como sendo Deus? O monoteísmo, por si só, puro e sem mesclagem, é capaz de satisfazer a razão pura. Deus é Único, apesar de Ser capaz de fazer toda a sorte de coisas. Daí a multiplicidade dos Seus atributos. Deus não é somente o Criador, mas também o Senhor de tudo: Ele governa os céus e a terra; nada se move, sem o Seu conhecimento e a Sua permissão. O Profeta Muhammad disse que Deus possui noventa e nove atributos sublimes: Ele é o Criador, a essência da existência de tudo, Justo, Misericordioso, Onipotente, Onisciente, Determinante de tudo, a Ele pertencem a vida, a morte, a ressurreição, etc. Segue-se que o conceito de Deus difere, conforme os indivíduos: um filósofo não O concebe, da mesma forma que o homem comum das ruas. O Profeta Muhammad admirou o fervor 50 da fé da gente simples, e freqüentemente usou como exemplo "a fé das mulheres idosas", isto é, inabalável e plena de convicção sincera. O belo conto do elefante e de um grupo de cegos é bem conhecido: eles nunca tinham ouvido falar do elefante; assim, com a chegada de um, cada um dos cegos se aproximou do estranho animal; um, pousou a sua mão na tromba deste, o outro na orelha, outro, numa das pernas, um outro, ainda, segurou a cauda, etc. Ao voltarem a sua terra, cada um contou e descreveu o elefante, à sua própria maneira e de acordo com a sensação que tinha experimentado pessoalmente, a de que o elefante era como uma coluna, como uma asa, algo como uma rocha dura, ou macia, ou esguia. Cada um estava certo; entretanto, nenhum conhecera a verdade toda, tendo-se restringido à limitação da sua capacidade de percepção. Se substituirmos os homens cegos desta parábola pelos que procuram o Deus Invisível, facilmente compreenderemos a veracidade relativa dos seus conceitos individuais. Como certos místicos, dos primórdios do Islam, costumavam dizer: "Há uma verdade, em Deus, que o homem comum conhece, e outra, só dos iniciados, ainda uma outra, só dos profetas inspirados, e finalmente aquela que é conhecida somente pelo próprio Deus." Por essa exposição, apoiada na autoridade do Profeta do Islam, verifica-se haver suficiente elasticidade no conceito, para que se satisfaçam as necessidades das diferentes categorias de homens: a dos instruídos, tanto quanto a dos ignorantes, a dos inteligentes, tanto quanto a dos simplórios, a dos poetas, artistas, juristas, teólogos e demais. O ponto de vista e o ângulo de visão podem variar, de indivíduo para indivíduo, mas o objetivo dessa visão permanece constante. Os sábios muçulmanos construíram todo o seu sistema sobre bases jurídicas, e nele os direitos e os deveres são correlacionados. Deus nos deu órgãos e faculdades, cabendo à posse de cada uma dessas dádivas, uma obrigação específica. Louvar a Deus, ser-Lhe grato, obedecê-Lo, evitar tudo o que não corresponda à Sua Divindade universal - essas atitudes constituem os deveres individuais de todos, por cujo cumprimento cada um é, pessoalmente, responsável. Os Anjos Sendo Deus invisível e inacessível à percepção física, era necessário haver algum meio de contato entre o homem e Ele; do contrário, não seria possível seguir a vontade divina. Deus é o Criador, não apenas dos nossos corpos, mas de todas as nossas faculdades, que são diversas, e cada uma capaz de uma certa evolução. Foi Ele que nos muniu de intuição, de consciência moral, e com os meios de que nos valemos para nos orientar pelo caminho reto. O espírito humano é capaz, tanto de boas, como de más inspirações. Entre a gente sim51 ples, crê-se que é possível pessoas boas receberem, às vezes, uma inspiração má (tentação) e às pessoas más receber inspirações para o bem. As inspirações podem provir, também, de outra fonte, além de Deus, assim como as sugestões más vêm do Diabo. É a graça de Deus que habilita a nossa razão a distinguir aquilo que tem origem celestial e que vale a pena seguir, daquilo que é diabólico e deve ser evitado. Havia diversas maneiras de estabelecer contato ou comunicação entre homem e Deus. A melhor teria sido a encarnação; mas o Islam a rejeitou. Seria por demais degradante a um Deus transcendente tornar-se homem, comer, beber, ser torturado pelas criaturas da Sua própria criação, e até ser morto. Por mais perto que o homem possa chegar de Deus, na sua jornada até Ele, mesmo na sua ascensão mais elevada, o homem continua a ser homem e, dessa forma, permanece distanciado d'Ele. O homem é capaz de se aniquilar, como dizem os místicos, anulando completamente a própria personalidade, com o fito de agir de acordo com a vontade de Deus, mas, ainda assim - e frisamos isto - o homem continua homem, e sujeito a todas as suas fraquezas, enquanto Deus está acima de todas essas deficiências. Entre outros meios de comunicação do homem com Deus, que estão à disposição do homem, talvez o mais tênue seja o sonho. De acordo com o Profeta, os bons sonhos são sugeridos por Deus e orientam os homens na direção certa. Outro meio é a ilcá (literalmente, jogar algo na direção de alguém), que é um tipo de auto-sugestão, de intuição, de pressentimento de soluções, em casos de impasse ou de problemas insolúveis ou difíceis. Há também o il-ham, que pode ser traduzido como sendo a "inspiração divina". As idéias são sugeridas ao coração (mente) de um homem, cuja alma seja suficientemente evoluída, nas virtudes da justiça, da caridade, do desinteresse e da benevolência para com os outros. Os santos, de todas as épocas e nações, desfrutaram dessa graça. Quando alguém se devota a Deus e se tenta esquecer de si mesmo, há instantes - de curtíssima duração - em que o estado da presença de Deus reluz num relampear e, naquele momento, compreende, sem nenhum esforço, alguma coisa que nenhum esforço lhe teria tornado possível compreender. O espírito do homem - ou o seu coração, como diziam os antigos - fica iluminado, passando a existir um sentimento de convicção, contentamento e realização da verdade. É Deus que guia e controla esse homem e os seus pensamentos, bem como os seus atos. Até os profetas - os mensageiros humanos de Deus - recebem esse tipo de direcionamento, entre outros. De qualquer modo, permanece uma possibilidade de erro de ajuizamento ou de 52 interpretação, por parte do homem. Os místicos afirmam que, às vezes, até o mais devoto dos homens se vê traído pelo inconsciente, sendo incapaz de perceber as inspirações negativas, que surgem como provação. O mais alto nível de contato, o meio mais seguro e infalível de comunicação entre homem e o seu Criador é chamado, pelo Profeta Muhammad, de wahi. Esta não é uma inspiração comum, mas sim, a verdadeira revelação, feita ao homem pelo Senhor, uma comunicação celestial. O homem é matéria; Deus, pelo contrário, está acima até do espírito, e, portanto, é inacessível a qualquer contato físico direto com o homem. Deus é Onipresente, e como diz o Alcorão (50a, 16), está "mais perto dele do que a (sua) veia jugular"; mesmo assim, não há qualquer contato físico, Portanto, é um malak - literalmente, portador de mensagem celestial, mensageiro, geralmente chamado de "anjo" - que serve de intermediário ou de canal de comunicação da mensagem de Deus ao Seu agente ou mensageiro humano, ou seja, o profeta. Ninguém, além do profeta, recebe uma tal revelação, por intermédio de um mensageiro celestial. Deve ser lembrado que, no Islam, profeta não significa aquele que faz profecias e vaticínios, mas tão-somente aquele que é escolhido, por Deus, para ser o portador da mensagem divina, destinada ao seu povo. Quanto ao anjo e à sua figura, não entra no âmbito, destes nossos estudos, discutir se ele é um ente espiritual, à parte dos outros seres materiais do universo, ou qualquer outra coisa. De acordo com o Alcorão, o mensageiro celestial, que trouxe as revelações para o Profeta, chama-se Jibril (Gabriel), o que etimologicamente significa "o poder de Deus". O Alcorão também se refere a Mikail (Miguel), sem, porém, indicar as suas funções. O encarregado do inferno se chama Malik. E o Alcorão também fala de outros anjos, sem atributos específicos, sendo que todos eles cumprem as ordens do Senhor. A crença islâmica reconhece que Jibril, que o Alcorão também cognomina de "espírito fiel" (ar-ruh al-amiri), prevalece sobre todos os outros. Nos ditos do Profeta Muhammad enquanto distintos do Alcorão, lemos que este mensageiro celestial, Jibril, não aparecia ao Profeta sempre na mesma forma. O Profeta o via, às vezes, como algo indefinível, suspenso no ar; outras vezes, na forma de um homem, outras, ainda, possuindo asas, etc. Em uma narração, compilada por Ibn Hanbal, relata-se que, certo dia, diante de muitas pessoas, um desconhecido chegou e fez algumas perguntas ao Profeta Muhammad, indo embora em seguida. Alguns dias mais tarde, o Profeta informou aos seus companheiros que aquele desconhecido era o próprio Gabriel, que lhes havia aparecido, para ensinar-lhes a religião. A maneira como as revelações costumavam vir era através das próprias palavras 53 do Profeta, como se descreve a seguir. Ele escutava um som, como o de um sino, e sentia o peso de uma carga imensa, bem como um calor, que o fazia transpirar, mesmo no dia mais frio. Enquanto durava a revelação, ele permanecia imóvel. Se acontecesse de estar montado no seu camelo, no instante da revelação, o peso da carga obrigava o animal a ar-riar; e se este resistisse, suas patas se dobravam, de maneira que se temia que se partissem. Certo dia, o Profeta estava sentado com os seus companheiros e, por acaso, o seu joelho se apoiava no de um dos seus amigos, quando se iniciou uma revelação. Esse companheiro relata: "Senti um tal peso sobre a minha coxa, que gritei de dor e tirei o meu joelho, para livrar-me". Tão logo uma revelação ou comunicação da mensagem divina terminasse, o Profeta voltava ao seu estado normal, mas a mensagem ficava gravada em sua memória. Não era no estado de "êxtase", e sim após ter voltado ao normal, que o Profeta recitava para os fiéis a mensagem divina, que havia acabado de receber; e a ditava aos seus escribas, para que a registrassem e copiassem, a fim de divulgá-la à comunidade dos fiéis. Os Livros Revelados Sendo Deus, Senhor da terra e dos céus, é dever do homem obedecer-Lhe, ainda mais por Ele, em Sua misericórdia, enviar os Seus mensageiros, para o bem do homem. Deus é Soberano e a Fonte de toda a lei tanto espiritual quanto temporal. Acabamos de falar das revelações e comunicações da vontade de Deus ao homem. A coleção e compilação destas revelações são o que constitui os Livros Revelados. A fórmula do credo, enunciada pelo Profeta Muhammad, fala desses Livros, não se referindo tão-somente ao Livro, o que significaria apenas o Alcorão. Esta tolerância é característica, nos seus ensinamentos. O Alcorão alude a ela em vários trechos. Por exemplo: "O Mensageiro crê no que foi revelado por seu Senhor e todos os fiéis crêem em Deus, em Seus anjos, em Seus livros e em seus mensageiros. Nós não fazemos distinção alguma entre os Seus mensageiros. Disseram: 'Escutamos c obedecemos. Só anelamos a Tua indulgência, ó Senhor nosso! A Ti será o retorno! '" (2a Surata, versículo 285). Novamente, o Alcorão declara: "Não houve povo algum que não tivesse tido um admoestador." (35a Surata, versículo 24). E outra vez: "Antes de ti, tínhamos enviado mensageiros; temos-te relatado a história de alguns deles, e há aqueles dos quais nada te relatamos." (40a Surata, versículo 78). O Alcorão cita os nomes e reconhece os livros de Abraão, a Tora de Moisés, os Salmos de Davi e o Evangelho de Jesus, como os Livros, revelados por Deus. É verdade que hoje não restam nem traços dos livros de Abraão. Conhece-se a triste história da Tora de Moisés, e como ela foi destruída pelos pagãos, por 54 mais de uma vez. O mesmo destino tiveram os Salmos. Quanto a Jesus, ele não teve tempo para compilar ou ditar o que pregava; foram os seus discípulos e sucessores que rebuscaram e transmitiram, para a posteridade, os seus ensinamentos, em inúmeros tratados, muitos dos quais são apócrifos. Seja como for, eis um dogma para os muçulmanos: crer, não só no Alcorão, mas também nas coletâneas de revelações divinas da época pré-islâmica. O Profeta do Islam não citou Buda, nem tão pouco os fundadores do bramanismo. Portanto, os muçulmanos não estão autorizados a afirmar, categoricamente, a natureza divina, por exemplo, dos Vedas hindus; mas tão pouco podem, formalmente, rejeitar a possibilidade de os Vedas terem sido, em sua origem, revelações divinas, ou terem sofrido um destino igual ao do Pentateuco de Moisés. O mesmo se aplica às religiões da China, da Grécia e de outras terras. Os Mensageiros de Deus (Profetas) Um anjo traz a mensagem de Deus a algum homem escolhido, e é este que é incumbido de comunicá-la ao povo. Na terminologia alcorânica, este agente humano da mensagem é chamado de diversas maneiras: nabi (profeta), rasul (mensageiro), bachir (alvissareiro), nadhir (admoestador), etc. Os profetas são homens de profunda devoção, modelos de comportamento correto, tanto espiritual quanto temporal. Eles não precisam realizar milagres (apesar da história lhes atribuir inúmeros); os seus ensinamentos são critérios suficientes para a constatação da sua veracidade. De acordo com o Alcorão, houve certos profetas que foram receptores de revelações de Livros divinos, e outros, que não sendo receptores de Livros novos, tiveram a incumbência de seguir aqueles que haviam sido revelados aos seus predecessores. As mensagens divinas não discordam, quanto às verdades fundamentais, tais como a Unicidade de Deus, a necessidade de se praticar o bem, de se abster do que é ilícito etc., mas podem diferir a respeito das regras de comportamento social, de acordo com a evolução, alcançada por um determinado povo, nesse campo. Se Deus enviou profetas sucessivos, isto prova que as diretrizes anteriores foram superadas e substituídas por regulamentos novos; no entanto, com exceção das que tiverem sido revogadas pelas mais recentes, as demais permanecem intactas, seja tácita ou explicitamente. Certos profetas tiveram a missão divina de instruir tão-somente os membros de uma única casa (tribo ou clã), ou raça, ou região; outros tiveram missões mais amplas, que abrangeriam toda a humanidade e se estenderiam por todos os tempos. 55 O Alcorão menciona, expressamente, alguns desses profetas, tais como Adão, Enoque, Abraão, Jacó, Davi, Moisés, Sálih, Hud, Jesus, João Batista, e Muhammad; mas menciona, claramente, que houve ainda outros, antes de Muhammad, sendo ele o último dos mensageiros de Deus. A Escatologia O Profeta Muhammad também exigiu a crença no Dia do Juízo Final, o dia em que o homem será ressuscitado, após a morte, quando Deus julgará os seus atos, durante a vida neste mundo, e o recompensará, de acordo com os seus atos de bem, e o punirá, pelos atos ilícitos. Um dia, o nosso universo será destruído, por determinação de Deus, e depois de um certo tempo, Aquele que nos criou inicialmente, nos devolverá à vida. O Paraíso, como recompensa, e o Inferno, como castigo, não são mais do que metáforas, para nos transmitir um determinado estado de coisas, que está muito além das nossas noções, a respeito da vida neste mundo. Falando a esse respeito, diz o Alcorão: "Nenhuma alma sabe que deleite para os olhos lhe está reservado, como recompensa pelo que tiver feito de bem." (32a Surata, versículo 17). Um dito do Profeta Muhammad, freqüentemente citado, é: "No Paraíso, há coisas que nenhum olho jamais fitou, nenhum ouvido jamais escutou, nenhum coração ou nenhuma mente humana jamais sentiu ou pensou." No Sahih de Muslim e em outras fontes, registra-se outro importante ditado do Profeta: "Quando as pessoas, merecedoras do Paraíso o tiverem adentrado, Deus lhes dirá: 'Digam-Me, o que mais lhes poderei proporcionar?' E as pessoas pasmarão. Então, Deus removerá o véu, e nada haverá de mais belo do que a visão do Senhor." Em seguida, ele citava o seguinte versículo alcorânico: "Aqueles que praticam o bem, obterão o bem e ainda algo mais; nem a poeira, nem a ignomínia, anuviarão os seus rostos" (10a Surata, versículo 26). Al-Bukhari e Muslim se referem a outra tradição, que diz que, "além do garbo da Grandeza, nada mais ocultaria Deus do olhar dos homens." Em outras palavras, a oportunidade de contemplar Deus seria a maior e mais autêntica recompensa do crente, isto para aqueles capazes de compreender e apreciar a noção abstrata de um outro mundo. É à luz dessa interpretação fundamentada, que o Alcorão e as tradições devem ser lidos, quanto às descrições constantes que fazem, para o homem do povo, das alegrias do Paraíso e dos horrores do Inferno, com ex-pressões que nos lembram circunstâncias deste nosso mundo. No Paraíso há jardins e rios, há jovens bonitas, há tapetes e vestes luxuosos, pérolas, pedras preciosas, frutas, vinho e tudo o mais que o homem pode desejar. Em contrapartida, no Inferno, há fogo, há serpentes, água fervente e outros suplícios, apesar dos quais, não haverá morte. Tudo isto se explica facilmente, tendo-se em conta a vasta maioria de 56 homens da massa dos povos, a que se destina a mensagem divina. É preciso falar-se a cada um, conforme a sua capacidade de compreender e o seu nível de inteligência. Certo dia, quando o Profeta Muhammad falava a um grupo de fiéis sobre o Paraíso e seus prazeres (incluindo os seus tronos voadores), um beduíno levantou-se e perguntou: "E haverá camelos, também?" O Profeta sorriu e respondeu delicadamente: "Haverá tudo o que uma pessoa pode desejar." O Alcorão fala do Paraíso e do Inferno, apenas como meio de persuadir o homem comum a levar uma vida justa e a caminhar na trilha da verdade; ele não dá importância a detalhes de descrição de lugares e coisas. Isto também não deveria nos interessar. É evidente que o Paraíso será uma recompensa eterna: uma vez merecido, não haverá condição de a pessoa ser expulsa dele. Alguns entrarão nele de imediato, enquanto outros sofrerão períodos mais ou menos longos de retenção no Inferno, antes de merecer o Paraíso. A questão é: Será o Inferno um castigo eterno para os infiéis? As opiniões dos teólogos muçulmanos têm divergido sobre este ponto, apesar de uma grande maioria afirmar, baseando-se nos versículos alcorânicos, que Deus poderá perdoar todos os pecados e todos os crimes, exceto o da descrença em Deus, e que o castigo, aplicado a este último pecado, será eterno. Outros opinam que até a punição da descrença poderá terminar um dia, pela graça de Deus. Esses teólogos deduzem as suas opiniões, também, de certos versículos do Alcorão. Não precisamos nos deter mais neste assunto, por ora. A Predestinação e o Livre-Arbítrio Em sua exposição, o Profeta Muhammad culminou por exigir que se acreditasse que a determinação (Kadr) de tudo o que fosse bom e mau vinha de Deus. Será que esta frase significa que tudo está predeterminado, para o homem, ou a afirmação se refere tão-somente à implicação de que a estipulação do que é bom ou mau é um ato que emana de Deus? Em outras palavras, nada é bom ou mau em si, sendo-o apenas porque Deus o teria estipulado de uma ou de outra forma, cabendo ao homem, nada mais do que a observância dessa estipulação. Aí surge, na verdade, um dilema, para o teólogo. Se, por um lado, dizemos que o homem é responsável pelos seus atos, isto é incompatível com a predestinação dos mesmos. Do mesmo modo, se declaramos que o homem é livre, quanto aos seus atos, isto implica em dizer que Deus 57 não tem, nem poder sobre ele, nem conhecimento do que o homem fará, durante a sua vida terrena. Ambas as alternativas criam um embaraço. Desejamos atribuir a Deus não somente a justiça, mas também a onipotência e a onisciência. O Profeta Muhammad ridiculariza o debate, devendo este ficar permanentemente indefinido; e ele ordenou, formalmente, aos seus seguidores, que não se envolvessem nele, acrescentando: "Muitos dos que vos precederam já foram desvirtuados por essa discussão." Ele reconhece em Deus, com todo o respeito e reverência, os atributos da onipotência e da onisciência, e afirma, também, que o homem é responsável pelos seus atos. Ele não deseja ligar esses aspectos um ao outro. De certo modo, ele relega esta discussão ao nível da futilidade daquele que questiona quem surgiu primeiro, se foi o ovo ou a galinha. Além do mais, o bem e o mal, são apenas conceitos relativos. Um tigre caça uma lebre para se alimentar. O que é bom, para um (subsistência), é ruim para o outro (a morte). É por isso que quando algo que nos atinge nos parece mal, isto ocorre porque a nossa natureza merece ou necessita daquele "mal". E é por isso que cabe a Deus determinar, para quem determinado ato é um bem, ou lícito, e para quem é um mal, ou ilícito. Ademais, deve ser lembrado que o conceito de "responsabilidade" é coisa deste mundo, enquanto a "recompensa e o castigo divinos" são assuntos do outro. É quando pretendemos considerá-los no mesmo nível que nos chocamos, visto que fazê-lo é sofismar. Recordemo-nos de que é esta crença dupla, na onipotência de Deus e na responsabilidade individual total do homem, que anima o muçulmano, munindo-o, inclusive, de forças, para suportar com facilidade as infelicidades inevitáveis. Longe de o relegar a um estado de imobilidade, ela injeta-lhe dinamismo. É necessário que estudemos a história dos primórdios dos muçulmanos, que eram os que melhor praticavam os ensinamentos do Profeta, para que possamos nos convencer da verdade dessa afirmação. Conclusão Eis um resumo, quase completo, de tudo aquilo em que um muçulmano precisa acreditar. Toda a fórmula do credo está sucintamente resumida nas duas expressões seguintes: "Não há outra divindade além de Deus, e Muhammad é o Mensageiro e servo de Deus." Isto deveria nos lembrar de que o Islam não é somente uma crença, mas também uma maneira de viver, tanto espiritual como temporal. E, em verdade, um código completo para a vida humana. 58 A Vida Devocional e a Prática Religiosa No Islam O objetivo do Islam é oferecer um código completo de vida, sem negligenciar nenhum dos diversos aspectos da atividade humana. Sua meta é a coordenação de todos esses aspectos. A preocupação que evidencia com a "centralização", se faz necessária, pelo fato de todas as práticas islâmicas dizerem respeito, simultaneamente, tanto ao corpo, como à alma. Não só as práticas temporais adquirem um caráter moral sagrado, quando conformes com as prescrições divinas, mas também as práticas espirituais possuem uma utilidade material. As regras de conduta, seja temporal ou espiritual, emanam de uma mesma e única fonte, o Alcorão, que é a Palavra de Deus. O resultado inescapável é que o imam (guia ou líder supremo do mundo muçulmano) representa, não só o líder dos rituais de devoção na mesquita, mas também o chefe do Estado muçulmano. Em tradição bem conhecida, o Profeta Muhammad definiu a fé (Iman), a submissão (Islam) e o melhor método (Ihsari) que conduz a isto. Para elucidar o assunto em discussão, serviria admiravelmente ao nosso propósito citar e comentar tudo o que tem sido dito a respeito do segundo ponto. Ele declarou: A Submissão a Deus (Islam) consiste no dever de se celebrar o ritual das orações, observar o jejum anual, realizar a peregrinação e pagar a taxa do zakat. Os Rituais de Oração "O culto é o pilar da religião", é uma tradição do Profeta Muhammad. O Alcorão fala dele mais de uma centena de vezes, chamando-o de diversas maneiras, salat (oração), du'a (prece, apelo) dhikr (rememoração), tasbih (glorificação), etc. Na sua preocupação de criar uma atmosfera da soberania de Deus sobre a terra, o Islam determinou um ritual de cinco orações diárias: deve-se orar ao se levantar - e deve-se levantar cedo -, novamente, após o meio-dia, ao entardecer, ao pôr do sol, e à noite, antes de se deitar. Isto exige uma renúncia, durante os poucos minutos de cada oração, a todos os interesses materiais, para provar as nossas submissão e gratidão a Deus, nosso Criador. O ritual da oração, após o meio-dia, é transformado, todas as sextas-feiras, numa prática coletiva semanal, adquirindo maior solenidade, durante o qual o imam da localidade também profere um sermão, antes das orações. O Islam instituiu duas festas anuais: uma, no fim do mês de jejum, e a outra, por oc59 asião da peregrinação a Makka. Estas duas festividades são celebradas com a realização de dois cultos especiais, além dos cinco diários. Desse modo, pela manhã, cedo, as pessoas se congregam para as orações, após as quais o imam faz um sermão. Outro culto obrigatório, porém de participação facultativa, é realizado pelas almas dos mortos, antes do sepultamento. Falando dos misteriosos efeitos da oração, ou culto, o grande místico Waliullah ad-Dihlawi, diz: "Saibam que às vezes somos transportados, com a velocidade de um raio, aos Recintos Sagrados (da Presença Divina), e nos descobrimos unidos, com a mais firme aderência possível, ao limiar de Deus. Descem sobre a pessoa as transfigurações divinas (tajalli), que dominam a sua alma. Ela vê e sente coisas que a língua humana é incapaz de descrever. Uma vez passado o estado de luminosidade, ela retoma ao seu estado natural, e se sente supliciada, pela perda de tal êxtase. Conseqüentemente, tenta reunir aquilo que lhe escapou, e adota a condição deste mundo inferior, que se aproxima mais de um estado de absorção do conhecimento do Criador. Essa é uma postura de respeito, de devoção, e de comunicação quase direta com Deus, que é acompanhada de ações e palavras apropriadas. A oração consiste essencialmente de três elementos: (1) a humildade do coração (espírito), resultante de uma sensação da presença da majestade e da grandeza de Deus; (2) o reconhecimento dessa superioridade (de Deus) e humildade (do homem), por meio de expressões apropriadas; e (3) a adoção, pelos órgãos do corpo, das posturas essenciais de reverência... Para demonstrar a nossa honra, perante alguém, ficamos de pé, concentrando toda a nossa atenção e voltando o nosso rosto para aquela pessoa. Ainda mais respeitoso é o gesto de nos curvarmos e inclinarmos a nossa cabeça, em reverência... O maior sinal de respeito é demonstrado quando pousamos a nossa fronte - que reflete, de maneira acentuada, o nosso ego e a consciência de nós mesmos -, de forma a tocar, com ela, o solo, diante do objeto da nossa reverência. Como o homem só é capaz de alcançar a sua evolução espiritual gradativamente, é evidente que tal ascensão deve passar pelos três estágios; e um culto devo-cional completo terá de incluir as três posturas: de pé, curvado e prostrado, com a cabeça no solo, na presença do Todo-Poderoso, devendo tudo isto ser realizado com a evolução essencial do espírito, para que possamos, verdadeiramente, sentir a sublimidade de Deus e a humildade do homem.'' Em certo trecho, o Alcorão diz: Não reparas, acaso, em que tudo quanto há nos céus e tudo quanto há na terra se prostra ante Deus? O sol, a lua, as estrelas, as montanhas, as árvores, os animais e muitos humanos? (22a Surata, versículo 18) 60 O culto islâmico combina, na realidade, as formas devocionais de todas as criaturas. Os corpos celestes (sol, lua, estrelas) repetem o seu ato de ascender e de se pôr; os montes permanecem de pé, já os animais, mantêm-se curvados e inclinados; quanto às árvores, verificamos que elas obtêm a sua subsistência através das raízes, o que, em outras palavras, significa que estão perenemente prostradas; a água purifica (referimo-nos às abluções), e no dizer do Alcorão (13a Surata, versículo 13): O trovão celebra os Seus louvores. Todas essas formas, adotadas no ritual de devoção islâmico, são perfeitamente adequadas ao objetivo a que se destinam. (Veja as ilustrações das diferentes posturas da oração muçulmana, no último capítulo. Os cinco cultos diários foram tornados obrigatórios para os muçulmanos, por ocasião da ascensão do Profeta (mi'raj). O Profeta Muhammad declarou, além do mais, que o culto de louvor de um crente é a sua própria forma de ascensão, por meio da qual ele é içado à presença de Deus. Estas não são palavras vazias, pois vejamos o que um muçulmano faz, ao realizar a sua oração. Antes de mais nada, ele se põe de pé, levanta as suas mãos, e declara: "Deus é o Maior", com o que renuncia a tudo, exceto a Deus, e se submete à vontade, unicamente, do seu Senhor. Após ter cantado e rememorado os méritos de Deus, ele se sente tão humilde, diante da majestade divina, que se curva e prostra, em sinal de reverência, proclamando: "Glória ao meu Senhor, o Ingente." Então, volta a ficar de pé, para agradecer a Deus por tê-lo guiado e, no âmago do seu ser, se sente tão comovido pela grandeza de Deus, que se sente impelido a prostrar-se e a encostar a testa no solo, com toda a humildade, para declarar: "Glória ao meu Senhor, o Altíssimo", repetindo estes movimentos, de modo a que o seu corpo se acostume ao exercício espiritual e, gradativamente, se torne mais e mais merecedor de ser içado, do mundo da matéria, para passar pela atmosfera celeste e chegar à presença de Deus. Ali, ele saúda Deus, e tem a resposta à saudação. Aliás, ele emprega, com este propósito, exata mente as fórmulas que foram usadas, durante a Ascensão do próprio Profeta Muhammad, quando ele saudava Deus: "As saudações, devoções, orações e bons atos são dedicados a Deus. Que a paz e a graça de Deus estejam contigo, ó Profeta. Que a paz esteja conosco e com os virtuosos servos de Deus". Sem símbolos materiais, o crente viaja, por assim dizer, até ao Deus transcendente, numa jornada espiritual que, em certas comunidades, é chamada de "comunhão". Tal é o significado espiritual do culto de devoção. Quanto às suas utilidades materiais, elas são numerosas. Cinco vezes por dia, reúne os habitantes de uma localidade, proporciona uma oportunidade de descanso, por alguns minutos, 61 do curso dos deveres monótonos dos afazeres individuais, e congrega, em perfeita igualdade, as personalidades mais elevadas com as plebéias (pois cabe ao líder da localidade a condução das orações; e na metrópole, na grande mesquita, esse dever é desempenhado pelo próprio (chefe de Estado). Assim, não só reencontra outros membros da comunidade, como também os funcionários responsáveis do lugar, falando com eles diretamente, sem qualquer formalidade ou obstáculo. O aspecto social do culto de oração está em que os fiéis sentem, em torno de si, a soberania de Deus, vivendo num estado de disciplina militar. Ao chamado do muezzin, todos acorrem ao lugar de reunião, se postam em fileiras cerradas, atrás do líder, perfazendo os atos e movimentos, junto com os outros, em perfeita harmonia e coordenação. Além disso, os fiéis de todas as partes do globo, voltam os seus rostos, durante o rito devotivo, para o mesmo ponto, a Caaba ou "Casa de Deus," em Makka. Isto os relembra da unidade da comunidade mundial dos muçulmanos, sem distinção de classe, raça ou região de domicílio. A forma de culto preferencial e mais formal é a que se realiza em congregação. Não sendo isto possível, ou faltando as condições adequadas para tal, ora-se sozinho e individualmente, seja-se homem ou mulher. As cinco orações do dia representam um dever mínimo de passar cerca de 24 minutos, a cada 24 horas, na presença e na rememoração de Deus; mas o crente deve, na realidade, lembrar-se de Deus a todo o instante, esteja alegre ou infeliz, trabalhando, deitado ou mesmo ocupado em qualquer outra atividade. Diz o Alcorão: Na criação dos céus e da terra e na alternância entre o dia e a noite, há sinais para os sensatos, que mencionam Deus, estando de pé, sentados ou deitados, e meditam na criação dos céus e da terra, dizendo: 'Senhor nosso, não criaste isto em vão! Glorificado sejas! (3a Surata, versículos 190-191) Deus submeteu o universo, para o uso e benefício do homem; entretanto, o desfrute deve ser acompanhado do reconhecimento (gratidão) e da obediência, e não de rebeldia contra Deus e de injustiça, para com outros seres semelhantes. Pode ser mencionado, aqui, que, no exato momento em que se instituía o rito de oração, foi revelado o versículo 286 da segunda surata do Alcorão, que diz: "Deus não impõe a nenhuma alma uma carga superior às suas forças." É a intenção e a vontade que contam, para Deus, e não a quantidade ou o modo aparente de realizar alguma coisa. Se um homem, honestamente devotado, crê não poder cumprir as cinco orações do dia, então que a observe quatro, ou três, 62 duas ou até uma vez, somente, por dia, de acordo com as suas oportunidades e circunstâncias, enquanto perdurarem as limitações. O ponto essencial é que ninguém se deve esquecer do seu de ver espiritual, devido às preocupações materiais e mundanas. Essa redução do rito é permitida, em circunstâncias anormais, tais como a doença e quando alguém tem crises de desmaio ou inconsciência. No transcurso da Batalha da Trincheira, aconteceu de o próprio Profeta ter de praticar quatro dos ritos, durante a noite, porque o inimigo não lhe dera um instante sequer de folga, durante o dia todo, para que pudesse orar. Bukhari e Muslim relatam que, às vezes, o Profeta combinava as orações zuhr, asr e maghrib', quando se via extremamente ocupado com os assuntos da comunidade. Cada um deve, porém, consultar a sua própria consciência, lembrando-se de que ninguém pode enganar Deus. Há, também, o problema da hora mais adequada para as orações. Sabe-se que existe uma grande diferença, nos horários do levante e do poente do sol, entre os países das zonas equatoriais e tropicais e as regiões situadas além dessa faixa, em direção aos pólos. Al-Biruni observou que, nos pólos, o sol tem um ciclo de seis horas, como poente, e outras seis, de levante, continuamente, excetuados os dois equinócios. Os teólogos-juristas do Islam afirmam, em geral, que os horários válidos são iguais, do paralelo de 45° ao paralelo de 90°, devendo as pes-soas guiar-se pelo relógio e não pelo ciclo solar. Isto se aplica, tanto ao culto como aos jejuns e outros deveres correlatos. As mulheres são dispensadas das orações, durante as épocas da sua indisposição mensal e do parto. O Jejum O segundo dever religioso de um fiel é o de jejuar por um mês, todos os anos. Devemo-nos abster, todos os dias do mês de Ramadan, de comer, beber e fumar (incluindo as inoculações e injeções), desde a madrugada até ao pôr do sol, nos países equatoriais e tropicais (e por um período equivalente, nas regiões situadas longe do centro do globo, calculado em horas, com base na ocorrência normal do paralelo 45, como já mencionamos). Vale dizer que a abstenção se estende aos prazeres carnais e outros, incompatíveis com o regime espiritual. Esta é uma disciplina bastante rigorosa, que pode parecer difícil, para os adeptos de outras religiões; mas até os recém convertidos se acostumam a ela facilmente e demonstram boa vontade e disposição, conforme já se comprovou, pela experiência de séculos sucessivos. O jejum se estende por um mês inteiro, e como é bem sabido, no Islam, o calendário é lunar. Conseqüentemente, o mês do jejum, Ramadan, muda de ano em ano, passando por todas as estações, outono, inverno, primavera e 63 verão; e acostumamo-nos a passar essas privações, tanto no calor escaldante do verão, como no frio enregelante do inverno, superando tudo como disciplina espiritual, em obediência aos preceitos de Deus. Ao mesmo tempo, advêm-nos benefícios seculares ligados à higiene, ao treinamento militar, ao desenvolvimento da força de vontade, entre outras vantagens, do mesmo modo que auferimos vantagens seculares do culto de devoção. Deve-se, entretanto, ter em mente que o objetivo desse rito é, essencial e principalmente, uma prática religiosa e um exercício espiritual, para nos habilitar à proximidade de Deus. Se jejuarmos apenas por razões seculares - por prescrição médica, por exemplo -, estaremos longe do cumprimento do nosso dever religioso. Como no caso das orações, as mulheres estão dispensadas do jejum, durante as suas indisposições femininas, devendo, no entanto, compensar esses dias com um número igual de dias de jejum, após o restabelecimento do seu estado natural. Podemos recordar que o Profeta proibia os jejuns que se estendiam por todo um ano, ou por toda a vida, mesmo para aqueles que ansiavam por fazê-lo, por excesso de zelo, para obter benefícios maiores. Dizia ele: "Tendes obrigações a cumprir, até em relação a vós mesmos." Além do jejum obrigatório do mês de Ramadan, podemos jejuar ocasionalmente, a título de exercício voluntário, se o desejarmos; e, para esse jejum, o Profeta recomendou que se jejuassem dois dias de cada vez. Do ponto de vista médico, nota-se que o jejum se torna um hábito, que não produz o mesmo efeito, quando é praticado com intervalos. Jejuar menos do que um mês não produz grande efeito, e um jejum de mais de 40 dias acaba por se tornar um hábito. Os místicos observam que uma exaltação da natureza animal obstrui a perfeição do espírito humano. A fim de submeter o corpo ao espírito, é necessário quebrar a resistência do corpo e aumentar a do espírito. Constatou-se que, para isso, não há nada melhor do que a fome, a sede, a renúncia aos desejos carnais e o controle da língua, do pensamento e dos outros órgãos. Um dos aspectos da perfeição individual é a subordinação da natureza animal à razão e ao espírito. Esta natureza, às vezes, se revolta, e o seu comportamento, em outras ocasiões, é de submissão. É preciso, portanto, que pratiquemos exercícios rígidos, tais como o jejum, para manter sob controle esse animalismo. Se cometemos pecados, a penitência e a mortificação, através do jejum, nos consolam e purificam a alma, além de fortalecer a vontade, de maneira a evitar a renovação de nossas incontinências. Também tem sido observado que nem comer, nem beber é próprio dos anjos; e ao impor tal regime a si mesmo, o homem se assemelha, mais e mais os anjos; e uma vez que pretende que os seus atos correspondam aos mandamentos de Deus, ao praticá-lo, ele se aproxima mais de Deus e da Sua graça; e este, afinal, é o objetivo principal do homem. 64 A Peregrinação (Hajj) Literalmente, Hajj quer dizer "dirigir-se a." Convencionalmente, este termo é traduzido como peregrinação, apesar disto estar longe de corresponder ao significado exato da palavra hajj. Este é o terceiro, dos deveres religiosos do muçulmano. É obrigatório a todo o adulto, homem ou mulher, ir a Makka, pelo menos uma vez na vida, para ali fazer o grande esforço de adequar o próprio ser à vontade de Deus. Aqueles que não possuem recursos materiais para fazer essa viagem, estão dispensados de fazê-la. Mas qual é o muçulmano que não irá economizar, pouco a pouco, o montante necessário, para que um dia possa visitar o centro da sua religião, a Caaba ou "Casa do Senhor?" O Alcorão não exagera, quando diz que esta é a Casa mais antiga do mundo, dedicada a Deus e ao culto do monoteísmo (3a Surata, versículo 96). Basta pensarmos em Abraão - que, de acordo com a tradição islâmica; não foi mais do que o restaurador do edifício, erguido originariamente por Adão. Ainda assim, a Caaba seria mais antiga do que o templo de Jerusalém, construído por Salomão. Não se conhece nenhum outro lugar de oração, mais antigo do que a Caaba de Makka. Os ritos da peregrinação podem ser descritos de modo breve. Nos limites do território sagrado, ao redor de Makka, despe-se a roupa habitual, vestindo-se, à guisa de hábito religioso, dois pedaços de tecido - uma faixa lombar e uma faixa sobre os ombros, vestimenta esta só requerida dos homens, e não das mulheres. O homem, então, se mantém de cabeça descoberta, e procura desprender-se de si mesmo, durante os dias da peregrinação. Segue para Arafat, nos subúrbios de Makka, para ali passar o dia meditando. Ao anoitecer, ele retorna, para passar a noite em Muzdalifa, e, ao amanhecer do dia seguinte, se dirige a Mina, nos arredores de Makka. Ali o peregrino passa três dias, durante os quais ele lapida Satã a cada manhã, sacrifica um carneiro, faz uma rápida visita à Caaba, para praticar o ritual de dar sete voltas ao seu redor, e percorrer a distância entre os montes Safa e Marwa, em frente a esta. O ato simbólico, também pode ser descrito de modo breve: Após caírem do Paraíso, Adão e Eva foram separados e se perderam. Ficaram procurando um ao outro até que, por graça de Deus, se encontraram em 'Arafat. Por gratidão a Deus, os descendentes de Adão e Eva voltam-se para Ele, fazendo um esforço é para esquecerem de si mesmos, para se assimilarem à Presença Divina, com vistas a obter o Seu perdão, pelas deficiências do passado, e a Sua ajuda, para o futuro. Quanto à lapidação de Satã, podemos lembrar que, quando Abraão alegou 65 amar Deus acima de tudo o mais, como prova, Deus exigiu-lhe a imolação do seu amado filho. Para tornar maior essa provação, Satã foi tentar Abraão, por três vezes, para que desistisse da sua decisão - e diz-se que isto aconteceu em Mina -, mas Abraão expulsou Satã, todas as vezes, atirando-lhe pedras. Por isso, repetimos este ato simbolicamente, para afirmar a nossa resolução de repelir as tentações diabólicas. A visita à "Casa de Deus" dispensa maiores explicações. Para comprovar a nossa obediência, fazemos essa visita com respeito e humildade. É um costume muito antigo dar a volta a alguma coisa, procurando demonstrar, assim, a nossa disposição de nos sacrificarmos, em prol do objeto de nossa devoção, carinho e amor. Quanto ao ato de percorrer sete vezes a distância entre Safa e Marwa, conta-se que, quando Abraão deixou a sua mulher, Hagar, e o seu primogênito, Ismael, no sítio desolado e desabitado de Makka, e se esgotou a sua provisão de água, movida pelo afeto maternal, Hagar corria de um lado para o outro, procurando um pouco de água para o seu filho sedento; foi quando, repentinamente, surgiu a fonte de Zamzam. Por isso, repetimos esse ato, no mesmo lugar onde Hagar o praticou, para homenagear o amor maternal e por gratidão pela misericórdia de Deus. O aspecto social não é menos notável. A irmandade mundial dos muçulmanos se manifesta, da maneira mais vivida, através do rito da peregrinação. Os fiéis, sem distinção de raça, língua, lugar de nascimento ou classe, sentem a obrigação de ir lá e de se misturarem uns com os outros, num espírito de igualdade fraternal. Eles acampam no deserto, e praticam os seus deveres religiosos em comum. Por dias seguidos, em horas prefixa das, marcham juntos, passam noites em tendas - tudo isto a um grau que excede de longe o mero compartilhar dos cinco ritos de oração, sendo também o melhor treinamento do soldado de Deus para uma vida de disciplina. Há motivos para crer que essa prática de peregrinação pré-islâmica foi continuada, ao menos, pelas primeiras gerações de muçulmanos, durante a festividade da peregrinação. Aproveitando a oportunidade que esta proporcionava, gerando a reunião de vasta congregação, organizou-se um congresso literário, durante o qual "novos" poetas apresentavam as suas composições, oradores exercitavam a sua retórica, diante das massas reunidas, sob o arrebatamento do evento, para demonstrar os seus talentos, e lutadores profissionais fascinavam os espectadores. O Califa Umar formalizou tais eventos, com o cunho de 66 um salutar apoio administrativo. A ocasião tornou-se ideal para a realização de sessões de tribunal de apelação, do povo em relação aos governadores e comandantes do Califa, como também para esclarecer e responder às consultas do público, com referência a projetos em andamento. Devemos nos lembrar sempre de que, no Islam, o sagrado e o profano, o espiritual e o secular, andam sempre juntos, convivendo numa interação e colaboração mútuas, harmônicas e contínuas. O Imposto do Zakat O Alcorão, na 4a Surata, versículo 5, reconhece que a riqueza é a base e o meio essencial de subsistência da humanidade. Não deverá, portanto, causar surpresa, ter sido o recolhimento do imposto elevado, pelo Profeta, à dignidade de um ato de fé, e estipulado como um dos quatro ritos fundamentais da religião. No Islam, não se pagam "tributos", aos chefes das localidades, para sustentar o luxo e a vaidade deles, mas recolhe-se um imposto, que constitui um direito relacionado com a coletividade, e mais especialmente, é uma provisão para o atendimento dos necessitados; e que é sempre investido do propósito de "crescimento" e purificação pessoais do contribuinte. Disse o Profeta Muhammad: "O chefe de um povo é, na realidade, o seu servo." O desprendimento com que assumiu a direção da sua gente - tanto como guia espiritual, quanto como Chefe de estado - levou o Profeta a declarar, formalmente, que as receitas do Estado muçulmano, oriundas das contribuições dos muçulmanos, eram estritamente vedadas, tanto a ele, como a todos os membros da sua tribo, por princípio religioso. Se o Chefe de Estado não abusar da confiança pública, aos seus subordina dos não restará alternativa, senão a de serem escrupulosos, no cumprimento dos seus deveres. Na época do Profeta e dos Califas ortodoxos, não havia, no Estado muçulmano, qualquer imposto, além do zakat. Longe de ser uma doação de esmolas, ele constituía em imposto de Estado, uma contribuição obrigatória, que era cobrada dos recalcitrantes, por meio de sanções e até de coerção. Com o fim de melhor incurtir a importância de tais contribuições, no espírito dos fiéis, o Profeta declarou o zakat um dever religioso e um mandamento divino, do mesmo grau da crença em um Deus Uno, do rito das orações, do jejum e da peregrinação. Se a fé é um dever espiritual, a oração, o jejum e a peregrinação são deveres corporais, o pagamento do zakat tornou-se um dever fiscal. Os juristas o qualificaram como a louvação de Deus, por meio da propriedade ('ibada maliyà). Esta é mais uma prova - como se fosse necessária - do fato de que o Islam coordena toda a vida humana, dentro de um contexto integral, com 67 o propósito de criar um equilíbrio harmonioso entre o corpo e a alma, sem favorecer ou desdenhar qualquer dos dois elementos constitutivos do homem. O Alcorão usa diversas palavras para designar esse imposto, indiferentemente: zakat, significa tanto o crescimento como a purificação. A sua conotação é de que devemos pagar pelo crescimento da nossa riqueza com uma parte da mesma, para purificá-la; sadaca significa, tanto a verdade, como a caridade devida ou hak. Se a sadaca é um direito de terceiros, também implica um dever daqueles que têm posses - pois os direitos e deveres são conceitos relacionados, e a colaboração é a base do caráter operacional da sociedade. Existem taxas sobre poupança, safras, mercadorias, reses e animais que pastam nos campos públicos, sobre a mineração, os produtos do mar, etc. Essas taxas variam, mas são todas chamadas de zakat, sadaca, além de outros sinônimos. As taxas que existiam no tempo do Profeta não eram, nem rígidas, nem inalteráveis. O grande Califa Umar reduziu os impostos sobre a importação de gêneros de primeira necessidade, em Madina. Durante a vida do Profeta, houve ocasiões em que foi necessário recorrer a contribuições extraordinárias para, por exemplo, custear a defesa da nação contra ameaças estrangeiras. Isto permitiu aos juristas concluir que o governo pode impor outros impostos provisórios, ou aumentar as taxas, nas e durante as épocas de crise. O silêncio do Alcorão sobre os objetos e valores da taxação confirma as conclusões dos juristas. No entanto, o Alcorão explica, pormenorizadamente, a maneira de o Estado proceder nos gastos, classificando os itens principais do orçamento governamental: Os tributos são tão-somente para os pobres, para os necessitados, para os funcionários, empregados na administração do Estado, para aqueles cujos corações têm de ser conquistados, para a redenção dos escravos, para os endividados, para a causa de Deus e para o viandante; isto é um preceito emanado de Deus, porque Deus é Sapiente, Prudentíssimo. (9a Surata, versículo 60) Enquanto outros legisladores preferiam elaborar leis de receita, o Alcorão, pelo contrário, formulava princípios, somente quanto aos gastos do Estado. Nas oito categorias de beneficiários, de que fala o versículo, é notável que não se menciona o Profeta. Alguns comentários talvez sejam úteis, para uma melhor 68 compreensão do alcance e da gama deste versículo, que fala de receptores específicos e exclusivos: De acordo com interpretação tão acreditada, como a do Califa Umar, os pobres (fuçará) são somente os da comunidade muçulmana, e os necessitados (masakín) são os pobres, dentre os habitantes não-muçulmanos (os protegidos). Deve-se notar que, embora os tributos não contem com receita proveniente de não-muçulmanos, o Islam os inclui entre os beneficiários dos impostos pagos pelos muçulmanos. Os que se ocupam com a arrecadação são os coletores, contadores e auditores, que praticamente constituem toda a administração, tanto civil como militar, do Estado, diante do fato de que, como beneficiários dessa receita, estão incluídos, praticamente, todos os departamentos da administração. Aqueles cujos corações devem ser conquistados. O grande jurista, Abu Ya'la al-Farra' discrimina: "queles, cujos corações devem ser conquistados," podem ser de quatro tipos: 1) aqueles cujos corações tenham de ser conciliados, por terem vindo em defesa dos muçulmanos; 2) aqueles cujos corações tenham de ser conquistados, para que se abstenham de causar da nos aos muçulmanos; 3) aqueles que são atraídos para o Islam e 4) aqueles que, por meio da conversão ao Islam, se tornam prováveis propagadores, junto aos membros da sua tribo. É correto beneficiar cada uma e todas essas categorias, sejam muçulmanas ou politeístas." Pelas palavras "redenção de escravos," sempre se entendeu a emancipação dos escravos e o resgate dos prisioneiros de guerra, aprisionados pelo inimigo. Uma palavra, a respeito dos escravos, pode não ser extemporânea. Parece que nenhuma outra religião, antes do Islam, se preocupou em melhorar a condição dos escravos. O Profeta do Islam proibiu total mente a escravização de árabes; quanto à gente de outros povos, o Alcorão, determina que, se um escravo bem comportado estiver disposto a resgatar a sua liberdade, não se lhe pode recusá-la; na verdade, o senhor é constrangido a proporcionar ao seu escravo todas as oportunidades para ganhar e poupar o valor necessário para ajudar os escravos, que desejem emancipar-se. Aqueles que não possuem recursos para casar-se, que se mantenham castos, até que Deus os enriqueça com a Sua graça.Quanto àqueles, dentre vossos escravos e escravas, que vos peçam a liberdade por escrito, concedei-lha, desde que osconsidereis dignos dela, e gratificai-os com uma parte dos bens com que Deus vos agraciou. Não inciteis as vossas escravasà prostituição, para proporcionar-vos o gozo transitório da vida terrena, sendo que elas 69 querem viver castamente. Mas sealguém as compelir, Deus as perdoará por terem sido compelidas, porque é Indulgente, Misericordiosíssimo. (24a Surata, versículo 33) A razão de se permitir a existência de escravos no Islam, não é a de explorar os infelizes. Longe disso, seu objetivo é, principalmente, o de proporcionar abrigo aos prisioneiros de guerra, que perderam todas as suas posses e, por alguma razão, não foram repatriados; e em segundo lugar, o de dar-lhes a oportunidade de adquirir cultura, dentro das condições de vida islâmicas, sob o governo de Deus. Os escravos erm obtidos somente por meio de alguma guerra legítima, empreendida pelo governo. Não são permitidos, nem sancionados por lei, os saques particulares, o seqüestro ou mesmo a venda de crianças, por seus pais. A ajuda àqueles que já estão pesadamente endividados ou que suportam uma carga excessiva, pode tomar diversas formas. Vimos, inclusive, o Califa ornar organizar um serviço de empréstimos sem juros. "Para a causa de Deus," inclui todas as causas caritativas; e os juristas não hesitaram em incluir nisso a compra de equipamento militar, para a defesa do Islam, uma vez que o Islam só combate, para estabelecer o Reino de Deus na terra. Quanto aos "viandantes", pode-se ajudá-los, não apenas oferecendo-lhes hospitalidade, mas também cuidando da sua saúde e do seu conforto, da segurança dos seus caminhos, e adotando medidas, em favor do bem-estar de todos os que tiverem de passar por qualquer lugar, que não seja o seu país, sejam nativos ou estrangeiros, muçulmanos ou não. Conclusão Após ter detalhado os fatos, concernentes às práticas religiosas, pode não ser fora de propósito dizer que o desenvolvimento global e a coordenação das partes componentes são o princípio determinante do modo de vida islâmico. O Alcorão reitera, repetidamente: "Praticai a oração e pagai o zakat." Pode haver uma manifestação mais nítida da unidade do corpo e da alma do que o culto ao Deus Único e o pagamento do dever para com a sociedade serem ordenados pelo mesmo mandamento?! Os deveres espirituais não são destituídos de vantagens materiais, e os deveres temporais também têm os seus valores espirituais; todos são dependentes das intenções e motivações, que determinam a razão de cada um para cumprir esses deveres. 70 O Cultivo da Vida Espiritual O Islam contempla o homem com uma disciplina para a sua vida como um todo, tanto material, quanto espiritual. Não há como negar o fato de que, devido às diferenças de temperamento individuais, certas pessoas se especializam em certos campos, mas não em outros. Mesmo que qualquer um de nós se concentrasse no lado espiritual da sua existência, ainda assim permaneceria mais ou menos dependente das outras ocupações da vida, para a sua subsistência, para a sobrevivência da sociedade de que é membro, e assim por diante. Na célebre exposição dos seus ensinamentos sobre a fé, a submissão e o melhor modo de submeter-se a Deus, o Profeta Muhammad definiu esse último ponto nos seguintes termos: "Quanto à otimização (ihsari),da conduta, cumpri o vosso louvor e as vossas obrigações para com Deus como se O estivésseis a ver; pois, mesmo que não O vejais, Ele vos vê." Essa otimização da submissão a Deus, esse método melhor e mais belo de devoção ou louvor a Deus, é a cultura espiritual do Islam. "Servir a Deus" é uma frase de fácil entendimento e abrange, não apenas o culto, mas também se relaciona com a conduta humana, no transcurso da vida. Os mais aculturados, do ponto de vista espiritual, são aqueles que conduzem todos os seus atos, o máximo possível, de acordo com a vontade de Deus. As questões que dizem respeito a essa disciplina formam a temática do misticismo. A palavra misticismo tem, no Islam, diversos sinônimos: Ihsan (que vemos usado na exposição supracitada do Profeta), Qurb (ou, aproximando-se de Deus), Tarika (caminho, i.é., a viagem em direção a Deus), Suluk (viagem, i.é., em direção a Deus), Tasawuf (que, etimologicamente, significa "vestir um manto de lã"). Curiosamente, este último é o mais usado atualmente. É verdade que os místicos muçulmanos - tanto quanto os seus pares das outras civilizações - não têm muito entusiasmo em divulgar assuas práticas e as suas peculiaridades àqueles que não estão dentro do círculo fechado dos seus discípulos e confrades. Isto não ocorre por existirem segredos escandalosos, mas, provavelmente, porque o homem comum dificilmente compreenderia porque eles se submetem a tanta dor "desnecessária," pela renúncia às facilidades da vida; e também porque os homens comuns não acreditam, de modo geral, nas experiências pessoais dos místicos. Por isso, os místicos imaginam que é melhor ocultá-las daqueles que não as são capazes de vivenciar. Incidentalmente, também acontece que, se algo é cercado de sigilo, torna-se mais apreciado por aqueles que o desconhecem, mas que o estão sempre a buscar. 71 As diferenças individuais de temperamento têm existido sempre, na raça humana. Credita-se ao Islam ter percebido certas coisas, que podem ser impostas a cada um e a todos, independentemente do temperamento; um mínimo necessário, a ser compartilhado e praticado, igualmente e em comum; e essa necessidade mínima toca, não somente as necessidades espirituais, mas simultaneamente, também as materiais. Para compreendê-la bem, deve-se observar que todos estão de acordo em que os melhores muçulmanos foram os primeiros discípulos do Profeta, seus companheiros. O estudo das suas vidas mostra que, desde o princípio, eles representavam uma diversidade de temperamentos. Havia Khalid, um guerreiro, soldado intrépido, a quem o Profeta concedeu, por admiração, o título de "Espada de Deus"; havia Otman e Ibn 'Auf, que eram dois ricos mercadores, aos Profeta quais tinha anunciado a boa nova de que pertenciam à gente do Paraíso; havia, também, Abu Dharr, que detestava todo o tipo de propriedade, preferindo uma vida ascética, de mortificação. Podemos recordar o beduíno nômade, que visitou o Profeta, certo dia, para aprender quais eram os deveres mínimos a cumprir, para merecer o Paraíso. O Profeta lhe respondeu: "Fé no Deus Único, orações, cinco vezes por dia, jejum, durante todo o mês de Ramadan, o pagamento do zakat e a peregrinação, se tiveres condições para tanto." O beduíno converteu-se ao Islam e exclamou: "Por Deus! Não farei, nem mais, nem menos do que isso." E quando ele se foi, o Profeta comentou: "Quem quiser conhecer um homem digno do Paraíso, que olhe para ele! Seja Khalid, ou o rico Otman, nenhum deles jamais descuidou dos deveres essenciais do Islam e da sua espiritualidade." Assim, também, Abu Dharr, Salman, Abu'd-Dardá' e outros, que gostavam do asceticismo e que não obtiveram a permissão do Profeta para levar vidas reclusas, jejuar perpetuamente, ou se castrar, por horror aos prazeres carnais, etc. Pelo contrário, o Profeta instigava-os a se casarem e acrescentava: "Tendes obrigações, também, para com os vossos corpos." De acordo com o Islam, não pertencemos a nós mesmos, mas a Deus; e não é permitido usar mal a confiança que Deus deposita em nós, na forma das nossas pessoas. A Suffa Na grande mesquita de Madina, havia, no tempo do Profeta, uma parte especial, chamada Suffa, um pouco afastada do salão de oração. Era um centro de treinamento e instrução, que funcionava sob a supervisão do próprio Profeta. Era ocupada por um número considerável de muçulmanos. Eles devotavam parte do seu tempo, durante o dia, a aprender o modo islâmico de viver, não apenas a respeito das relações do homem com Deus, mas também quanto às suas relações com os outros membros da sociedade. Eles também trabalhavam 72 para ganhar o seu sustento mínimo, de maneira a não se transformarem em parasitas e peso para terceiros. Durante a noite, passavam o seu tempo, como os demais místicos, em orações voluntárias (nafl), ou meditando. Não há dúvida de que esses voluntários internos da Siiffa eram mais ligados às práticas espirituais do que a vocações materiais. Talvez não saibamos todos os detalhes das práticas que o Profeta prescreveu a esses primeiros místicos muçulmanos, práticas essas que deviam variar, de acordo com o temperamento e com as capacidades de cada indivíduo. Porém, uma vez definido o objetivo, havia bastante liberdade para selecionar os meios legais que levassem a ele. Pode se rememorar, por sinal, o que o Profeta disse, certa vez: "A sabedoria é o bem perdido do crente; onde quer que ele a encontre, ele deve recuperá-la." A Essência do Misticismo Através do misticismo, o Islam contempla uma retidão de crenças, a otimização dos atos de devoção, tomando a vida do Profeta por modelo, a ser seguido em todas as atividades da vida, no melhoramento da conduta pessoal e no cumprimento dos deveres impostos por esta religião. Isto nada tem a ver com o poder de conhecer coisas invisíveis, com a realização de milagres ou com a imposição da nossa vontade aos outros, por meios psíquicos misteriosos, nem mesmo com o asceticismo, a mortificação, a reclusão, a meditação e as sensações daí resultantes (que às vezes podem servir de meio, porém nunca de fim), ou mesmo com certas crenças a respeito da pessoa de Deus, com o panteísmo, etc.; muito menos com tudo o que os charlatães afirmam, que o místico está acima da lei islâmica e dos deveres mínimos necessários, impostos por ela. Por falta de um termo melhor, usamos a palavra "misticismo" que, no Islam, representa o método para o aperfeiçoamento do comportamento individual, i.é., o meio pelo qual alguém adquire controle sobre si mesmo, a sinceridade, a realização da presença constante de Deus, em todos os seus atos e pensamentos, e busca amar a Deus, de uma forma cada vez maior. Nos ensinamentos islâmicos, há certos deveres "externos", tais como os cultos de oração, o jejum, a caridade, a abstenção de tudo o que é ilícito ou mau, etc. E há também os deveres "internos", tais como a fé, a gratidão a Deus, a sinceridade e o desprendimento do egoísmo. O misticismo é um treinamento, para se viver de acordo com esse último conceito. Entretanto, mesmo os deveres externos são motivados pela purificação do espírito, que é o único meio para se alcançar a salvação eterna. De forma geral, o místico desenvolve, por suas práticas espirituais, certas faculdades e talentos, que, para os homens comuns, 73 parecem miraculosos; mas o místico não está em busca disso, e os despreza. Conhecer coisas invisíveis, mesmo que isso se torne possível para algumas pessoas, através de certas práticas, não é o desejado pelo místico, pois essas coisas constituem os segredos de Deus e a sua divulgação prematura é danosa para o homem, a longo prazo. É por isso que o místico não utiliza tais poderes, mesmo quando os adquire; o seu objetivo continua a ser a purificação do espírito, para que possa, cada vez, mais agradar ao Senhor. O homem perfeito é aquele que embeleza, não só a sua aparência externa, mas também o seu ser inte-rior, ou - como dizem os místicos - o seu corpo e o seu coração. Quanto ao aspecto externo, existe a jurisprudência (fiquih), que consiste de regras para toda a vida externa, incluindo o que se refere a culto, relações contratuais, penalidades, etc. É, no entanto, o aspecto interno que é a verdadeira meta do misticismo. Os atos de oração e de culto pertencem ao domínio da jurisprudência, enquanto que a sinceridade e a devoção são coisas íntimas e pertencem ao misticismo. Recordemos, em relação a isto, dois versículos do Alcorão: Quanto àqueles, cujas ações pesarem mais, serão os bem-aventurados. (23a Surata, versículo 102) Os hipócritas quando se dispõem a orar, fazem-no com indolência, para fazer ostentação ante os demais, e pouco mencionam Deus. (4a Surata, versículo 142) Os bons e maus modos de praticar o culto, indicados neles, dão-nos uma indicação, para o entendimento daquilo que o Islam requer dos seus seguidores, em todas as atividades da vida. O Beneplácito de Deus As pessoas comuns desejam que Deus as ame, de modo um tanto unilateral, sem que elas O amem; que Ele lhes dê bem-estar, sem que elas Lhe obedeçam. O Alcorão nos ensina: Os crentes só amam fervorosa mente a Deus. (2 Surata, versículo, 165) E, novamente, o Alcorão nos indica as características dos melhores entre os homens, dizendo: ... pessoas, as quais amará, as quais O amarão. (5a Surata, versículo 54) 74 Obter a graça de Deus não é o mesmo que desfrutar dos confortos materiais, que Deus pode conceder ao homem, para testar a sua gratidão. Às vezes, um homem é privado de tais confortos, para se por à prova a sua resistência e constância. Em ambos os casos, o homem deve demonstrar a sua devoção e o seu apego a Deus. Isto exige, por um lado, a abnegação do ego, deixando-se ele absorver pela vontade de Deus e, por outro lado, um sentimento constante da Sua presença real. A concepção filosófica do panteísmo emana da necessidade da "abnegação de si próprio, em favor de Deus". Para o místico, a mera afirmação de tal crença não tem valor; ele aspira assimilá-la e senti-la como uma realidade. Por isso é que as distinções cultivadas entre o panteísmo, no sentido da unidade da existência, e da unidade de visão, ou qualquer outra, são, para o verdadeiro místico, a simples logomaquia, que leva o viajante ansioso a perder o seu caminho, retardando a sua chegada ao seu destino. Podemos ressaltar, neste ponto, que a concepção islâmica do panteísmo não leva à reunificação do homem com Deus. Por mais que um homem se possa aproximar de Deus, continuará a haver uma distinção, uma separação, e uma distância, entre o Criador e a criatura. Podemos negar o nosso ego, mas não podemos negar a nossa pessoa. Quão mais alto for o nível que alcancemos, tanto mais Deus "falará com a nossa língua", "agirá com a nossa mão", e "desejará com o nosso coração". Existe uma ascensão e uma viagem do homem em direção a Deus, mas não existe nenhuma confusão entre as duas. É por isso que o muçulmano jamais usa a palavra "comunhão", que pode significar somente uma união e uma confusão. Os muçulmanos denominam a viagem espiritual de mi 'raj, termo que significa "uma escada," "uma ascensão", o que varia, de acordo com os indivíduos e com as suas capacidades. O nível mais alto, imaginável, que um homem pode atingir, é aquele que foi atingido pelo Profeta Muhammad; e essa experiência dele também é chamada de mi 'raj. Assim, num estado de consciência e despertar, o Profeta teve a visão (ru'ya) de estar sendo transportado para o céu e agraciado com a honra da Presença divina. Mesmo ali, naquele estado, além do tempo e do espaço, o Alcorão, indica, formalmente, a distância entre Deus e o Profeta, dois arcos de comprimento ou menos ainda, e tal descrição gráfica enfatiza, simultaneamente, a contigüidade da proximidade e a distinção entre ambos. Até a uma distância de dois arcos (de atirar setas), ou menos ainda. (53a Surata, versículo 9) 75 O próprio Profeta usou a palavra mi'raj em relação aos fiéis comuns, ao in-dicar que "o culto de oração é o mi'raj do crente." Evidentemente, a medida de cada um é a sua capacidade e o seu mérito. A viagem espiritual tem toda uma série de etapas, que são ultrapassadas gradualmente. Da vida do Profeta Muhammad, constatamos que ele começou essa viagem na caverna de Hirá, passando, depois pelo período de Makka, durante o qual lhe estavam reservados o sofrimento e a abnegação de si mesmo, pelo bem da causa divina. Foi somente após a Hégira que ele se permitiu, - sempre por instrução divina -, opôr-se à injustiça pela força. É bem possível que alguém, ou finja ser um derviche, ou o seja somente na aparência, sendo, na realidade, um lobo, disfarçado de ovelha; ao mesmo tempo, também, é possível que um rei, com todos os poderes e tesouros acumulados em suas mãos, obtenha o beneplácito de Deus, e que dessas riquezas todas não usufrua nenhum lucro, impondo-se aos maiores sacrifícios, enquanto procura cumprir os seus deveres, renunciando ao seu conforto pessoal. Para quebrar o ego, a primeira exigência é a sensação de humildade, que tem de ser desenvolvida. O orgulho é considerado como o maior dos pecados contra Deus. Nas palavras de al-Ghazzali, a ostentação é a adoração de si mesmo, e portanto, realmente uma espécie de politeísmo. Os temperamentos diferem, e é por isso que os caminhos também são vários. Costumamos insistir na necessidade de um guia e mestre. A alguém que tenha estudado medicina, particularmente, sem ter passado por um período de aprendizado ou pelo menos assistido aos cursos, ministrados por médicos experimentados, não se lhe permite praticar medicina. São raros os casos em que vemos todos os nossos defeitos; mais raras, ainda, são as vezes em que as pessoas se corrigem prontamente. É preciso um mestre que nos ensine, em primeira instância, e indique os nossos defeitos e também a maneira pela qual eles podem ser removidos. Há um desenvolvimento constante e uma evolução perpétua no indivíduo, e o mestre nos poupa muito esforço desnecessário. Se não aproveitássemos a experiência do passado, e se cada recém-nascido recomeçasse toda a tarefa e recaísse na sua individualidade própria, não haveria crescimento da cultura ou da civilização, que podem ser definidas como o conhecimento e a experiência acumulados pelas gerações dos nossos ancestrais. O aluno respeita o julgamento e os conselhos do seu mestre, o que jamais recebe de seus camaradas e pares. Após estudos teóricos, passa-se para o período experimental, para nele aprender a aplicação prática do que aprendemos em teoria. Isto se aplica, tanto às ciências materiais, quanto às espirituais. Há mui76 tas coisas que não se pode aprender pela simples leitura ou auscultação, sendo necessária a orientação de mestres, já experimentados, para a sua aplicação prática. Além do mais, o simples saber não é suficiente, ele deve ser assimilado, até se transformar em parte natural do próprio ser. Os místicos recomendam quatro exercícios: comer menos, dormir menos, falar menos e ligar-se menos às pessoas. "Menos" não significa a negação total, que é, às vezes, impossível (tal como comer e dormir) e, na maioria das vezes, indesejável; deve sempre haver moderação. Devemos comer para viver e não viver para comer. Comer, com o propósito de suprir as energias necessárias para cumprir a vontade e os mandamentos de Deus, é um ato de devoção; reduzir a alimentação e enfraquecer, a ponto de reduzir a nossa produtividade espiritual, é um pecado. O sono é necessário para a saúde, e é um dever imposto ao homem, enquanto a preguiça, que nos faz permanecer na cama por mais tempo, afeta o nosso progresso espiritual. Dormir não quer dizer deixar passar o tempo das obrigações materiais, pois devemos encontrar, sempre, mais tempo para praticar a nossa devoção e a nossa religiosidade. Falar menos, quer dizer reduzir as conversas frívolas, e evitar, se possível, toda a maledicência. Temos o hábito de dar conselhos aos outros, mas nos esquecemos de praticá-los, nós mesmos. Associar-se menos às pessoas, quer dizer reduzir as conversações desnecessárias e o desperdício de tempo em contatos inúteis. Fazer algum favor a outrem, ocupar-se com a realização de coisas, com o objetivo de agradar ao Senhor, são atitudes bastante mais desejáveis. Entretanto, não nos devemos esquecer de que as necessidades dos indivíduos variam, conforme o seu estado de evolução; não se dá o mesmo conselho a um mestre experimentado e a um jovem aprendiz. Os hábitos mundanos envolvem, geralmente, tentações, desperdício de tempo útil, e o esquecimento das nossas obrigações mais importantes. Práticas Especiais Devemos nos lembrar de Deus a todo o momento. A característica essencial é lembrar isto de coração. Mas, se a concentração não é constante, empregam-se, então, métodos físicos, para fortalecer a presença do espírito e focalizar o pensamento na pessoa divina. O Alcorão diz: Ó crentes, mencionai freqüentemente Deus, e glorificai-O, de manhã e à tarde. (33a Surata, versículos 41-42) E novamente: 77 Que mencionam Deus, estando em pé, sentados ou deitados, e meditam na criação dos céus e da terra, dizendo: Senhor nosso, não criaste isto em vão. Glorificado sejas! Preserva-nos do tormento infernal. (3a Surata, versículo 191) Há lítanias, nas quais certas fórmulas são repetidas várias vezes; há orações, que se pronunciam, diariamente, por hábito. Isto é feito em voz alta ou baixa, mas deve ser sempre e invariavelmente ligado a Deus, à Sua pessoa ou aos Seus atributos, jamais sendo dedicado a criaturas ou coisas. Mesmo se o objeto for o próprio Profeta Muhammad, a abordagem deverá ser sempre por intermédio de Deus. Por exemplo: "Ó Deus, inclina-Te em favor de Muhammad e toma-o sob a Tua proteção." Ou "Deus, ressuscita Muhammad, no lugar glorioso que lhe prometeste, e aceita a sua intercessão a nosso favor", etc. Para desenvolver a concentração do pensamento, os místicos, às vezes, vivem reclusos ou em retiros, paralisam, por momentos, a respiração, fecham os olhos, e se concentram no pulsar dos seus corações, enquanto pensam em Deus, etc. Eles também falam de três níveis de recordação de Deus: lembrar-se somente do Seu nome, lembrar-se da Sua pessoa, através do Seu nome, lembrar-se da Sua pessoa, sem precisar do Seu nome ou de qualquer outro recurso. Entre outros costumes dos místicos, pode ser mencionado o de viver como asceta, em alinegação, e em meditação, especialmente sobre a morte e o Juízo Final. Para o Islam, estas coisas não constituem fins e sim meios, se bem que temporários ou provisórios, para subjugar e dominar o ego. Tudo aquilo que nos permitimos, neste mundo, se divide em duas classes: a das necessidades e a dos luxos. Jamais devemos renunciar às necessidades, pois isto seria suicídio. E cometer suicídio é religiosamente proibido no Islam, pois não pertencemos a nós mesmos, e sim a Deus; e destruir algo que ainda não tenha tomado forma, completamente, é voltar-se contra a vontade de Deus. Quanto aos luxos, se não forem transformados nos objetivos ou nas razões da nossa existência, neste mundo, são permissíveis. Mas podemos renunciar a eles, para atingir o domínio sobre a nossa animalidade. Também podemos fazê-lo, para ajudar aqueles que carecem até dos meios essenciais para viver, ou ainda como penitência. Porém, não é permitido agir de modo exagerado ou desproporcional. Um homem viril, que se esforça por viver uma vida casta, tem maior mérito do que aquele que destrói os seus desejos por meio, por exemplo, de uma cirurgia. Aquele que é incapaz de qualquer mal não tem nenhum mérito, em comparação com aquele que tem a mais perfeita capacidade para o mal, mas se abstém, voluntariamente, de praticá-lo, por temor a Deus. 78 A alinegação, as abstinências e outros costumes espirituais engrandecem certas faculdades. Porém, a aquisição dessas faculdades, por mais miraculosas que possam ser, não é o objetivo de alguém que se encaminha para Deus. Procuramos praticar atos, mas não pelas sensações que eles possam nos proporcionar. Até um infiel pode adquirir determinadas faculdades, dos homens que gozam do beneplácito de Deus, mas, nem por isso, terá a salvação final. O místico está, continuamente, voltado para o seu destino, sem pensar nelas, e muito menos em usá-las para se beneficiar dos incidentes resultantes dessa caminhada. A vida de um sufi, de um derviche ou de um místico, começa com o arrependimento dos pecados passados e com a reparação, na medida do possível, dos danos causados a outras criaturas; pois estas, somente, é que podem perdoar. Somente depois disso é que se pode empreender o caminho, em direção ao Senhor. Esta atitude não é monopólio de unia pessoa, classe ou casta; é possível e acessível a qualquer um, seguir esse caminho. As provisões para essa viagem são de dois tipos: obediência a Deus e constante re-memoração d'Ele. A obediência é mais fácil, no sentido de se saber o que se deve fazer e qual a vontade do Senhor. Ele revelou a Sua vontade e os Seus mandamentos através dos Seus profetas escolhidos, para serem comunicados a toda a gente. Deus enviou inúmeros profetas. Se os ensinamentos deles divergem em pormenores, não é porque Deus tenha mudado de opinião, mas porque, em Sua misericórdia e sabedoria, compreendeu a evolução ou a deterioração das capacidades humanas exigia (am) uma mudança, nas regras de conduta e nos pormenores. Apesar de na essência dos seus ensinamentos, especialmente a daqueles que se referem à relação do homem com Deus, os profetas não divergirem, - o Alcorão frisa isto, com grande ênfase - faz parte da obediência, devida pelo homem às ordens de Deus, regular-se pela disposição da Sua vontade mais recente. Se Deus ensinou algo ao homem, por intermédio do profeta Abraão, por exemplo, não seria uma desobediência passar a cumprir os ensinamentos do profeta Moisés, porque este trouxe as mais recentes disposições, do mesmo Legislador, correspondentes à sua época; e no mais, negligenciar as diretrizes de Moisés e continuar a praticar as de Abraão é que constituiria uma desobediência flagrante a Deus. É dessa forma que o homem deve acatar, na sua seqüência, as mensagens de Deus, trazidas em sucessão pelos profetas, dos quais o último foi Muhammad. 79 E por isso que, com todo o respeito pelos profetas anteriores, o muçulmano não pode acatar senão as últimas disposições da vontade de Deus, que lhe foram comunicadas. O muçulmano venera a Tora, os Salmos e o Evangelho, como a palavra de Deus, porém acata as palavras de Deus, recebidas por último e mais recentemente, especialmente o Alcorão. Qualquer um que se mantém ligado às leis anteriores não pode ser considerado, pelo Legislador, como obediente e cumpridor da lei. Conclusão Sendo o homem constituído, simultaneamente, de corpo e alma, composto de uma existência "externa" e de outra, "interna", o progresso harmônico e a evolução equilibrada, em direção à perfeição, exigem que se dê atenção aos seus dois aspectos. A mística, ou cultura espiritual do Islam, enfoca a redução do ego e a percepção crescente da presença de Deus. Estar absorvido na submissão à vontade de Deus não significa a imobilidade, longe disso. Em muitos versículos, o Alcorão estimula o homem à ação e até à continuação da sua busca pela graça divina, por meio das boas ações. Não ceder aos próprios desejos malignos, conduzindo-se tão-somente de acordo com a vontade de Deus, não leva à inércia; só acontece aquilo que Deus determina. Porém, desconhecendo a vontade de Deus, que permanece oculta aos homens, estes devem continuar sempre nos seus esforços, mesmo fracassando repetidamente, em tentar atingir a meta, que acreditam, conscientemente, ser boa e conforme aos mandamentos revelados por Ele. Essa noção da predestinação dinâmica, que nos incita à ação e à resignação à vontade de Deus, está explícita nos seguintes versículos do Alcorão: Não assolará desgraça alguma, quer a terra, quer as vossas pessoas, que não esteja registrada no Livro, antes que Nós a evidenciemos. Sabei que isso é fácil para Deus, para que não vos desespereis pelos (prazeres) que vos foram omitidos, nem exulteis por aquilo com que vos agraciou, porque Deus não aprecia nenhum arrogante e jactancioso. (57a Surata, versículos 22-23) O homem deve sempre cogitar a grandeza de Deus e, em contrapartida, a sua própria humildade, bem como pensar no Dia da Ressurreição, quando o Senhor pedirá contas individuais. Diz o Alcorão: 80 Quanto àqueles que diligenciam por Nossa causa, encaminhá-los-emos pelas Nossas sendas. Sabei que Deus está com os benfeitores. (29a Surata, versículo 69) O Sistema Moral Os homens podem ser divididos em três categorias principais: (1) aqueles que são bons, por índole, e incorruptíveis, diante das tentações, cujos instintos lhes sugerem aquilo que é bom e caritativo; (2) aqueles que são justamente o oposto e são incorrigíveis; e (3) aqueles que pertencem a um grupo intermediário e se conduzem corretamente, quando constrangidos a isto, por supervisão ou sanção, mas que, de outra forma, recaem num estado de irresponsabilidade e de injustiça para com os outros. Esta última categoria compreende a imensa maioria da raça humana, enquanto os membros das outras duas categorias, de extremos opostos, não passam de uns poucos indivíduos. O primeiro tipo (os anjos-humanos) não necessita de qualquer direcionamento ou controle; mas é o segundo tipo (os diabos-humanos) que precisa ser controlado, para impedi-lo de praticar o mal. Grandes cuidados precisam ser dedicados ao terceiro tipo (os homens humanos). Os membros da terceira categoria se assemelham, em certos aspectos, aos animais: são calmos e felizes quando possuem, enquanto não perceberem algo melhor, possuído por outros, ou não suspeitarem de qualquer prejuízo por parte de outrem. Esta propensão maldosa, diante das tentações, tem sido, sempre, objeto de intensa preocupação, por parte da sociedade humana. Por isso, o pai controla os seus filhos; o chefe da família, da tribo, da Cidade-Estado ou de qualquer agrupamento de homens, tenta submeter os que estão sob a sua autoridade, para que se contentem com aquilo que possuem e não usurpem o que os outros obtiverem de modo honesto e legítimo. Talvez o único propósito da sociedade humana seja, exatamente, o de controlar as tentações e remediar os prejuízos já tidos. Todos os homens, mesmo os membros da mesma nação, se desenvolvem do mesmo modo. Um espírito nobre se dispõe ao sacrifício e a ser caridoso. Um espírito inteligente enxerga muito além, e as conseqüências que comprometeriam o ganho imediato o previnem de praticar o ilícito, mesmo que não seja persuadido a sacrificar-se por sua própria iniciativa. Quanto ao espírito comum, este não só não consente, voluntariamente, no próprio sacrifício, como até se permite prosperar à custa dos outros, a menos que haja o temor de uma reação imediata e violenta, por parte da sua vítima, da sociedade ou de qualquer outro poder superior. Já o espírito obtuso não é detido, 81 nem mesmo por tal temor, e persiste, até às últimas conseqüências, nos seus intentos criminosos, lutando contra qualquer oposição, até que seja posto, pela sociedade, em alguma condição em que não possa mais causar qualquer estorvo, tal como a punição pela pena de morte ou pela prisão. Todas as leis, todas as religiões e todas as filosofias, procuram persuadir as massas, ou a categoria intermediária, a se comportar de maneira adequada e até a se prontificar ao sacrifício, para ajudar os pobres, os indigentes e aqueles que têm necessidades e que não as podem satisfazer por razões nas quais não lhes cabe culpa. Características do Islam O Islam é um modo de vida de plena abrangência. Ele não estabelece apenas crenças, mas também as regras do comportamento social; além do mais, ele se ocupa com a melhor maneira de aplicar o funcionamento das suas leis. Sabemos que o Islam não acredita que a vida neste mundo seja um fim em si, ou no corpo, sem qualquer relação com a alma. Pelo contrário, ele ensina a acreditar na vida após a morte. Seu lema, como enunciado pelo Alcorão, diz: "O melhor, neste inundo, assim como o melhor na Outra Vida." É dessa forma que ele não só glorifica o bem e condena o mal, mas também prescreve recompensas e sanções, tanto espirituais como materiais. No que diz respeito as injunções e proibições, o Islam imprime, no espírito, o temor a Deus, ao Juízo Final, após a Ressurreição, e ao castigo do fogo do Inferno. Não satisfeito com isto, toma todas as precauções necessárias e possíveis, no tocante a sanções materiais, com o fim de impedir o homem de se permitir cometer atos de injustiça e de violação dos direitos alheios. É dessa forma que o crente ora e jejua, mesmo quando não é compelido a fazê-lo; paga o imposto, até quando o governo deixa de fixar o seu valor ou se vê impossibilitado de colhê-lo por imposição. Os Fundamentos da Moralidade Não raro, acontece de as razões ou circunstâncias provocarem uma profunda mudança no valor dos atos, que parecem assemelhar-se extremamente, entre si. Por exemplo, a morte, causada pelas mãos de um bandido, ou pelo caçador, que confunde a sua vítima com a caça, de um idiota ou menor em defesa própria, pelo chefe, ao executar a pena capital, ordenada por um tribunal, por um soldado, em defesa do seu país, contra uma invasão agressora, etc. - em todos esses casos, a matança é, às vezes, punida com maior ou menor severidade, 82 às vezes perdoada, outras, considerada um dever normal, que não merece, nem encômios nem censura, e às vezes resulta em alta glorificação e honra. Quase toda a vida humana se compõe de atos, cuja natureza lícita e ilícita é relativa. É por isso que o Profeta, freqüentemente, dizia: "Os atos serão julgados, de acordo com as intenções." O Islam se baseia na crença na revelação divina, feita aos homens, por intermédio dos profetas. A sua lei, a sua moral, e até a sua fé, estão, portanto, baseadas nos mandamentos divinos. É possível que, na maioria dos casos, a própria razão humana acabasse por chegar à mesma conclusão; porém, essencialmente, é o aspecto divino que adquire a significação decisiva no Islam, e não o raciocínio de um filósofo, um jurista ou um moralista, tanto mais porque os raciocínios de indivíduos diferentes podem divergir e levar a conclusões completamente contrárias. Às vezes, o motivo da disciplina está implícito em uma obrigação ou um costume, que parece supérflua (o). Podemos dividir os atos humanos, inicialmente, em lícitos e ilícitos, representados por ordens e proibições. Os atos que devemos evitar são, também, separados em duas grandes categorias: os que estão sujeitos a sanção temporal ou punição material, além da condenação, no dia do Juízo Final, e aqueles que são condenados pelo Islam, por sanções próprias, somente na Outra Vida. Num dito, atribuído ao Profeta, vemos a concepção da vida, prevista pelo Islam: “Certo dia, Ali interrogou o Profeta, a respeito dos princípios reguladores do comportamento geral. Ele respondeu: 'O conhecimento é o meu capital, a razão é a base da minha religião, a vontade é a minha montaria de viagem, a recordação de Deus é o meu camarada, a confiança é o meu tesouro, a ansiedade é a minha companheira, a ciência é o meu braço, a paciência, o meu manto, o contentamento é o meu botim, a modéstia é o meu orgulho, a renúncia ao prazer é a minha profissão, a probidade é o meu alimento, a verdade, o meu mediador, a obediência é a minha grandeza, a luta é o meu hábito e a alegria do meu coração está na oração.” Em outra ocasião, o Profeta Muhammad disse: "A soma total da sabedoria é o temor a Deus. A moral islâmica começa com a renúncia à veneração de tudo, menos de Deus, seja esta a adoração de si mesmo (egoísmo), ou a adoração das nossas obras (ídolos, superstições), etc., e a renúncia a tudo o que degenere a humanidade (ateísmo, injustiça, etc.)." Abolindo as desigualdades inescapáveis(l) - baseadas em raça, cor da pele, 83 linguagem, lugar de nascimento, o Islam proclamou (e realizou mais do que qualquer outro sistema) a superioridade do indivíduo, baseada somente na moral, que é algo acessível e aberto a todos, sem exceção. Eis como se expressa o Alcorão a esse respeito: Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos e tribos, para que vos reconhecêsseis uns aos outros. Sabei que o mais honrado, dentre vós, ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é Sapicntíssimo e está bem inteirado. (49a Surata, versículo 13). Numa belíssima passagem o Alcorão estabelece os seus mandamentos à comunidade muçulmana, e diz: O decreto do vosso Senhor é que não adoreis senão a Ele; que sejais indulgentes com os vossos pais, mesmo que a velhice atinja um deles ou ambos, em vossa companhia; não os reproveis, nem os repilais; outrossim, dirigi-lhes palavras honrosas. £ estendei sobre eles a asa da humildade e dizei: 'Ó Senhor meu, tem misericórdia de ambos, como eles tiveram misericórdia de mim, criando-me desde pequenino!' Vosso Senhor é mais sabedor do que ninguém do que há em vossos corações. Se sois virtuosos, sabei que Ele é indulgente para com os contritos. Concedei aos vossos parentes o que lhes é devido, bem como aos necessitados e aos viandantes, mas não sejais perdulários, porque os perdulários são irmãos dos demônios, e o demônio foi ingrato para com o seu Senhor. Porém, se vos abstiverdes de privar com eles, com o fim de alcançar a misericórdia do vosso Senhor, que almejais, falai-lhes afetuosamente. Não cerreis a vossa mão excessivamente, nem a abrais em toda a sua extensão, porque vos venéis censurados, arruinados. (17a Surata, versículos 23-29) Seria longo demais citar, aqui, todas as exortações alcorânicas. Entretanto, podemos citar uma passagem, em que se fala do comportamento social do homem comum: Adorai a Deus e não Lhe atribuais semelhantes. Tratai com benevolência vossos pais e parentes, os órfãos, os necessitados o vizinho, quer vos seja achegado ou não, o companheiro, o viandante e os vossos servos, porque Deus não estima nenhum arrogante e jactancioso, que abraça a tacanhez, recomenda aos demais a avareza c oculta o que Deus lhe concedeu da Sua graça; que aquele saiba que temos um castigo ignominioso destinado aos incrédulos. (Tampouco Deus aprecia) os que distribuem com ostentação os seus bens e não crêem em Deus, nem no Dia do Juízo Final, além de terem Satã por companheiro! (4a Surata, versículos 36-38) 84 Em outro trecho, o Alcorão descreve as características da sociedade muçulmana: Sabei que os crentes são irmãos; reconciliai-vos, pois, com os vossos irmãos, e temei a Deus, para que sejais compadecidos. Ó crentes, que nenhum povo zombe do outro; é possível que os escarnecidos sejam melhores do que eles escarnecedores. Que tampouco nenhuma mulher zombe de outra, porque é possível que esta seja melhor do que ela. Não vos difameis nem vos motejeis com apelidos, mutuamente. Muito vil é o nome que denota maldade (para ser usado por alguém), depois de ter recebido a fé! £ aqueles que não se arrependerem serão os iníquos. Ó crentes, evitai, tanto quanto possível, a suspeita, porque algumas suspeitas implicam pecado. Não vos espreiteis, nem vos calunieis mutuamente. Quem de vós seria capaz de comer a carne do seu irmão morto? Tal atitude vos causa repulsa. Temei a Deus, porque Ele é Remissório, Misericordiosíssimo. (49a Surata, versículos 10-12) A Falta e a sua Expiação Ninguém poderia opor-se aos bons conselhos, dados pelos versículos supracitados; mas o homem tem as suas fraquezas. Ele é constituído, simultaneamente, pelos elementos do bem e do mal. Por causa dos seus defeitos inatos, ele se zanga, está sujeito a tentações, e é levado a prejudicar os que são mais fracos do que ele e que não têm meios de se defender ou de se vingar. Do mesmo modo, os seus sentimentos nobres o levam a se arrepender posteriormente; e, proporcionalmente à força do seu arrependimento, ele tenta reparar, mais ou menos, o prejuízo que causou. O Islam divide as faltas em duas grandes categorias: aquelas que são cometidas contra os direitos de Deus (a descrença, o negligenciamento da oração etc.), e aquelas contra os direitos dos homens. Além do mais, Deus não perdoa o dano, causado por um homem ao seu semelhante; somente a vítima pode perdoá-lo. Se prejudicamos outra criatura, seja homem, animal ou qualquer outra coisa, cometemos, na verdade, um crime duplo: um crime contra a nossa vítima imediata, e também um crime contra Deus, uma vez que a conduta criminosa em questão, constitui uma violação dos mandamentos divinos. É por isso que, quando tiver sido perpetrada uma injustiça ou um crime contra uma outra criatura, deveremos, não só tentar reparar o dano causado, pela restituição, à vítima de nossa violação, do direito que lhe foi subtraído, mas também teremos de implorar o perdão de Deus. Em um famoso parecer, o Profeta Muhammad avisou que, no dia do Juízo Final, certa pessoa seria atirada ao Inferno, por 85 ter amarrado um gato com uma corda, não lhe dando, nem de comer, nem de beber, provocando assim a morte do animal. Em outra tradição, o Profeta falou do castigo divino para os homens que não cumprissem os seus deveres para com os animais, não os alimentando suficientemente, ou impondo-lhes cargas além das suas forças, etc. O Profeta proibiu até o corte de árvores sem necessidade. Os homens devem procurar aproveitar beneficamente as criações de Deus, porém racional e eqüitativamente, pois a devastação de qualquer espécie é um desperdício. Quando causamos prejuízos a outrem e desejamos reparálos, há diversos modos de fazê-lo. Às vezes, tudo se acerta com o simples pedido de perdão; outras vezes, pode ser necessário restituir o que foi subtraído, ou compensá-lo, se não puder ser restituído, e assim por diante. Mostrar clemência para com outrem e perdoar, são virtudes nobres, sobre as quais o Islam insiste freqüentemente. Ao louvá-las, diz o Alcorão: Emulai-vos em obter a indulgência do vosso Senhor e um Paraíso, cuja amplitude é igual à dos céus e da terra, e que está preparado para os tementes, que fazem caridade, tanto na prosperidade como na adversidade, que reprimem a cólera, que indultam o próximo. Sabei que Deus aprecia os benfeitores. (3a Surata, versículos 133-134) O perdão é recomendado, mas a vingança também é permitida (para o homem comum). A esse respeito, o Alcorão diz: E o delito será expiado com o talião; mas, quanto àquele que indultar (possíveis ofensas dos inimigos) e se emendar, saiba que a sua recompensa incumbirá a Deus, porque Ele não estima os agressores. (42a Surata, versículo 40) Deus é incomparavelmente mais clemente e mais misericordioso do que o mais misericordioso dos homens. Entre os nomes com que o Islam chama Deus, estão Rahman (Clemente), Tauwab (Remissório), Ghaffar (Indulgente) etc. Aqueles que cometem um pecado contra Deus, e em seguida se arrependem, verificam que Deus é pleno de indulgência. Dois versículos do Alcorão poderão mostrar a concepção islâmica da bondade de Deus: Deus jamais perdoará quem Lhe atribuir semelhantes, conquanto perdoe os outros pecados a quem Lhe aprouver. (4a Surata, versículo 116) Dize: Ó servos Meus, que se excederam contra si próprios, não desespereis 86 da misericórdia de Deus; certamente, Ele perdoa todos os pecados, porque Ele é o Indulgente, o Misericordiosíssimo. (39a Surata, versículo 3) Se abandonarmos a descrença e nos voltarmos para Deus e Lhe pedirmos o Seu perdão, sempre poderemos contar com a Sua clemência. O homem é fraco, e muito freqüentemente rompe com as suas resoluções; mas o verdadeiro arrependimento sempre pode restaurar a graça de Deus. Não existe nenhuma formalidade, não há como adquirir o perdão divino pela intercessão de outros homens; cada um deve se voltar diretamente para Deus, expor-Lhe o seu sincero arrependimento, numa comunicação pessoal com Ele (munaja, pois Ele sabe de tudo e nada Lhe pode ser ocultado). "O amor de Deus por Suas criaturas é setenta vezes maior do que o amor de uma mãe por seu filho", disse certa vez o Profeta; e "se dermos um passo em direção a Deus, Deus dará dois em nossa direção", disse ele, em outra ocasião. As esmolas e a caridade são, sem dúvida, recomendadas, porém elas não "compram" automaticamente o perdão divino para algum pecado; cada uma dessas coisas tem existência própria, e a liberdade de Deus é absoluta. As Injunções O Alcorão, freqüentemente, emprega dois termos característicos, para designar o bem e o mal. Assim, ele se refere a ma'ruf(o bem, como é conhecido de todos e reconhecido como tal), e a munkar (o mal, que é denunciado por todos e reconhecido como tal). Em outras palavras, o Alcorão tem confiança na natureza humana, no bom senso do homem: "Jamais haverá uma unanimidade em favor do mal, mesmo que algumas pessoas se permitam tal coisa", é a substância de um bem conhecido dito do Profeta. O Alcorão chama os fiéis de a melhor nação (3a Surata, versículo 110) e explica isso, dizendo que, se eles assim são, é porque "recomendais o bem (Ma'ruf) e proibis o ilícito (Munkar), e credes em Deus." Em outro trecho é ainda mais categórico: Pela época, que o homem está na perdição, salvo os crentes, que praticam o bem, se aconselham na verdade e se recomendam a perseverança mutuamente. (103a Surata, versículos 1-3) Mas também existem injunções contra determinados males. Como já se observou, há aqueles a que se aplica uma sanção e um castigo públicos, e outros, a respeito dos quais só se admoesta contra o castigo na Outra Vida, e dos 87 quais, exceto nos casos de extraordinária gravidade, as autoridades públicas não tomam conhecimento. Em seu célebre sermão, por ocasião da Peregrinação de Despedida, o Profeta declarou a inviolabilidade dos direitos do homem, nas três categorias: pessoa, propriedade e honra. A lei penal muçulmana leva isto muito a sério, denunciando como principais crimes: o assassinato, os danos físicos, a fornicação e o adultério (sendo, todos estes, crimes contra a pessoa), o furto e o roubo (que são crimes contra a propriedade) a calúnia contra a castidade e o consumo de bebidas alcoólicas (que constituem crimes contra a honra). Todos estes são punidos. No tocante aos danos à pessoa, a punição correspondente é essencialmente a da retribuição: uma vida por uma vida, um olho por um olho, um dente por um dente. Mas existe, primeiro, a consideração do grande princípio do motivo e da intenção. O dano foi causado voluntariamente ou por acidente? Aí, há a opção, para a vítima (ou para os herdeiros dos seus direitos), de concordar com uma reparação pecuniária, ou até de perdoar completamente. Se a prova jurídica estabelecer que o crime foi premeditado, as autoridades públicas não têm direito de perdoar; o assunto pertence ao sofredor. Casos muito diferentes são o da fornicação e o do adultério. O consentimento das partes não atenua a gravidade da ofensa. O Profeta desenvolveu a justiça e a auto-crítica a tão elevado nível, entre os seus companheiros, que eles preferiam o castigo público à punição na Outra Vida; e assim, apresentavam-se voluntariamente ao Profeta, para confessar os seus pecados e submeter-se, de bom grado, às sanções legais. Fora a confissão, é sempre muito difícil provar a relação sexual ilícita, quando ambas as partes a consentem. Para o fim de reduzir a tentação, o Islam adotou, outras precauções, também, a proibição da promiscuidade, do fácil e desacompanha do encontro de jovens de sexo oposto, fora das vistas dos seus pais, e até a recomendação do véu, para cobrir o rosto da mulher, que sai à rua ou encontra estranhos. Longe de procurar atrair os olhares amorosos de estranhos com a sua faceirice, é dever de toda a mulher muçulmana reservar a sua beleza e os seus atrativos somente para o seu marido. O véu tem ainda outras vantagens, para a mulher. São sabidas as diferenças entre a aparência das mulheres que trabalham no campo, por exemplo, e a daquelas que não ficam expostas ao sol. Também é bem sabida a diferença entre as penas externas e as internas das aves. Na verdade, o véu serve para preservar, por mais tempo, o encanto e a frescura da pele. Isto pode ser facilmente constatado, comparando-se a pele do rosto ou das mãos com 88 a de outras partes do corpo, que normalmente ficam protegidas por vestes. O véu não representa, de modo algum, o isolamento, mas serve efetivamente para reduzir a tentação que poderia seduzir estranhos. De passagem, deve-se mencionar que não existe nenhuma penalidade legal pela falta do cumprimento desta recomendação. Não precisamos entrar em pormenores sobre os diversos aspectos da injunção em relação ao furto e o roubo, ou a outros crimes contra a propriedade. É característico de o Islam ter imposto uma penalidade à difamação de mulheres, em relação à sua castidade. Quando se pensa nas freqüentes ocasiões em que nos permitimos conjecturar, a respeito de vizinhos ou de outras mulheres, e na facilidade com que soltamos a nossa língua, na companhia de amigos, é preciso admitir que essa providência do Islam é dirigida para o benefício da sociedade. Se alguém pretender acusar uma mulher, deverá apresentar provas judiciais; de outro modo, as conjecturas que mancharem a honra dela, serão punidas com sanções severas. A proibição das bebidas alcoólicas é uma das características mais conhecidas do Islam. Foi gradativamente que o Alcorão a impôs: Interrogar-te-ão acerca da bebida inebriante e do jogo de azar; dize-lhes: 'Em ambos radicam-se benefícios e malefícios para o homem; porém, os seus malefícios são maiores do que os seus benefícios. (2a Surata, versículo 219) E novamente: Ó crentes, não vos deis à oração quando vos achardes ébrios, até que saibais o que dizeis. (4a Surata, versículo 43) E finalmente: Ó crentes, a bebida inebriante, os jogos de azar, a dedicação às pedras e a adivinhação com setas, são manobras abomináveis de Satanás. Evitai-as, pois, para que prospereis. Satanás só ambiciona infundirvos a inimizade e o rancor, mediante a bebida inebriante e o jogo de azar, bem como apartarvos da recordação de Deus e da oração. Não desisti-reis disso? (5a Surata, versículos 90-91) Não passará despercebido que, neste último versículo, o Alcorão inclui as bebi89 das alcoólicas e a idolatria na mesma categoria. Durante a sua vida, o Profeta Muhammad aplicava quarenta chibatadas àqueles que violassem esta injunção. O Califa Omar dobrou esse castigo, argumentando que o ébrio tende à loquacidade obscena, com a qual calunia a castidade das mulheres, crime pelo qual o Alcorão impôs, como punição, oitenta chibatadas; portanto, as bebidas alcoólicas deveriam sofrer a mesma sanção. Quantos enormes prejuízos não seriam evitados, e quantos lares não recuperariam a paz, se a bebida, tão perigosa à saúde e à moral, fosse deixada de lado! Entre os atos, para os quais não foi prescrita nenhuma pena específica, mas que são deixados a critério do juiz, podemos mencionar os jogos de azar de todas as espécies (incluindo as loterias, apostas em corridas, etc.). Quem desconhece as tragédias causadas pelos cassinos? Quantos lares já não foram arruinados, pela vã esperança de um ganho fácil - e, portanto, ganho ilícito? As loterias, organizadas em escala nacional, gradativamente, deterioram a distribuição igualitária das riquezas do país, provando ser a fonte de inúmeros males econômicos. E também afetam a política. Em sua impaciência para depurar a sociedade, e acima de tudo, a administração pública, da corrupção, o Profeta empregou as formas mais severas de condenação: "Aquele que recebe, e aquele que oferece o suborno, irão ambos para o Inferno". Certo dia, um coletor de impostos prestou contas ao Profeta, dizendo: "Estas aqui são as contribuições públicas, e estas aqui, gratificações, que as pessoas me ofereceram." Enfurecendo-se, o Profeta subiu ao púlpito da sua mesquita e bradou: "Que estes coletores de impostos fiquem na casa de suas mães, para ver se lhes serão dadas gratificações por isso!" Sem o conhecimento do seu marido, certo dia, a esposa do Califa Omar mandou, por um mensageiro oficial, que seguia para Bizâncio, um presente para a esposa do imperador que, por sua vez, mandou-lhe um colar precioso. Quando o Califa ficou sabendo do episódio, confiscou o colar, em favor do Erário Público, e indenizou a sua mulher no valor do presente que ela havia mandado à imperatriz. Para melhorar a moral pública, o Profeta disse certo dia: "Não insultem o tempo; pois é a Deus que insultam, pois a sucessão de noites e de dias provém d'Ele." Esta admoestação merece ser ponderada até pelos nossos contemporâneos. Afinal, que proveito nos proporciona a nossa maledicência freqüente, durante o dia, se não for para provar a nossa própria estupidez? 90 O Islam não exige o impossível; ele procura, tão-somente, um constante aperfeiçoamento da moral humana, em todos os caminhos da vida, através dos próprios indivíduos, membros das coletividades. E a responsabilidade, nesse processo, será sempre pessoal. Assim, o Alcorão diz: Deus não impõe a nenhuma alma uma carga superior às suas forças. Beneficiar-se-á com o bem quem o tiver feito, e sofrerá o mal quem o tiver cometido. (2a Surata, versículo 286) Um espírito nobre não se permite o mal, sob o pretexto de que outros o praticam. Ao invés de imitar os vícios dos outros, devemos, pelo contrário, servir de exemplo do bem e da integridade de caráter. Podemos tecer alguns comentários sobre a conduta social em geral. Com relação aos direitos da boa vizinhança, o Profeta Muhammad assim falou: "Gabriel, tantas vezes e tão veementemente insistiu sobre os direitos dos vizinhos, que eu temi fosse ele conceder-lhes os direitos de herança, em igualdade de condições com os parentes mais próximos do falecido." Conta-se que, certo judeu vivia na vizinhança do Profeta, em Madina, e que o próprio Profeta serviu de exemplo de como um muçulmano devia tratar os seus vizinhos não-muçulmanos. Entre outros atos diários de cortesia, o Profeta costumava visitar a casa do judeu, caso ele adoecesse, para saber da sua saúde e oferecer a sua ajuda. No que respeita às relações diárias para com terceiros, dizia o Profeta: "Nenhum de vocês é realmente crente, se não lhe apraz que o seu irmão tenha as mesmas coisas, de que gosta para si próprio." E também: "O melhor homem é aquele que faz o bem aos outros." O Alcorão reporta-se a um caso concreto, àquele dos primeiros muçulmanos de Madina, que estenderam a sua hospitalidade aos refugiados de Makka, e os cita como exemplo do Islam posto em prática: Preferem-nos (aos refugiados), em detrimento de si mesmos. (59a Surata, versículo 9) Para terminar: Ó crentes, sede justiceiros, fiéis testemunhas por amor a Deus, ainda que o testemunho seja contra os vossos achegados, seja o acusado rico ou pobre, porque a Deus incumbe julgá-los. (4a Surata, versículo!35) 91 Sistema Político do Islam Sendo a concepção islâmica da vida uma coordenação entre o corpo e a alma, era natural que um relacionamento muito íntimo se estabelecesse entre a religião e a política, entre a mesquita e o palácio do governo. Em sua concepção social, o Islam é "comunal". Ele prefere uma vida social, exige a oração coletiva e em congregação, durante a qual todos se voltam na mesma direção (a da localização da Caaba), o jejum conjunto e simultâneo, em todo o mundo, e a visitação da Casa de Deus (a Caaba), como um dos principais deveres de todos os muçulmanos, homens e mulheres. Enfatiza a responsabilidade estritamente pessoal, e não descuida do desenvolvimento do indivíduo, ao mesmo tempo em que organiza todos os indivíduos numa única e integral comunidade muçulmana. A mesma lei regula as atividades de todos, independentemente de classe ou país; e, como veremos, todos os fiéis do mundo juram fidelidade ao mesmo chefe, o Califa. Nacionalidade Na sociedade humana constataram-se, em revezamento, duas tendências contraditórias: a centrípeta e a centrífuga. Por um lado, indivíduos diferentes, se agrupam, por meio do casamento, famílias, tribos, Cidades-Estado, Estados e Impérios, às vezes voluntariamente, outras por compulsão. Por outro lado, descendendo do mesmo casal e dos mesmos ancestrais, grupos se destacam de unidades maiores, para levar vidas separadas e independentes, distantes dos seus parentes; e esta separação ocorre, às vezes, amigavelmente, para desenvolver meios de vida em outro lugar, e assim aliviar a carga de alguma localidade que tenha dificuldade em prover a subsistência para todos, enquanto que, outras vezes, tais separações são ditadas por paixões, disputas e vários outros motivos. Apesar do pensamento quase unânime de que todas as raças humanas têm a mesma origem, dois fatores têm contribuído, poderosamente, para acentuar a diversidade: a morte e a distância. O homem está instintivamente ligado a parentes e ancestrais, porém, este fator de união desaparece com a morte do parente em comum; e a noção do relacionamento entre os membros sobreviventes, cujo número se multiplica diariamente, tem uma importância que se torna gradativamente menos eficaz. No que diz respeito à distância, ela não somente nos faz esquecer os elos de relacionamento, mas também, como a história tem mostrado, cria obstáculos insuperáveis. Deixamos de falar a mesma língua, de ter os mesmos interesses ou de defender os mesmos valores. 92 Quando surgiu o Islam, no 7° século da era cristã, as diferenças e preconceitos de raça, língua, local de nascimento e outras, eram a regra, em vez de a exceção; tão enraizadas se tomaram tais noções, que se instituíram quase que como instintos naturais. Era assim por toda a parte do mundo, na Arábia, na Europa, na Ásia, na América e alhures. O Islam começou por classificar essas noções como características negativas da humanidade, tentando trazer-lhes uma cura. Os laços unificadores de família, de clã, e até de tribo, provaram-se fracos demais, para servir às necessidades de defesa e de segurança de um mundo, onde o egoísmo e a cobiça tinham gerado guerras inevitáveis, de todos contra todos os demais. Às vezes, criavam-se grupos maiores, pelo uso da força, por guerreiros e imperadores. Fracassando, porém, em criar uma identidade de interesses entre a totalidade dos seus súditos, estas uniões artificiais estavam constantemente ameaçadas de desintegração. Sem nos envolvermos com a história de milhares de anos da evolução desse aspecto da sociedade humana, seria suficiente notar que, no nosso próprio tempo, a idéia do nacionalismo ilustra claramente este ponto. Se a nacionalidade se basear na identidade da língua, da raça ou do lugar de nascimento, é evidente que fará com que o problema dos estrangeiros persista infindavelmente, e tal nacionalidade será por demais restrita, jamais chegando a englobar o mundo todo; e se os estrangeiros não forem assimilados, sempre haverá o risco de conflitos e guerras. Aliás, o liâme da nacionalidade não é, de modo algum, um vínculo seguro, já que dois irmãos podem ser inimigos um do outro, enquanto que, dois estranhos, que tenham uma ideologia em comum, serão amigos. O Alcorão rejeitou qualquer forma de superioridade, derivada da língua, da cor da pele ou de qualquer outra incidência inescapável da natureza), reconhecendo a superioridade dos indivíduos somente com base na devoção. Uma ideologia, comum a todos, é a base da "nacionalidade", entre os muçulmanos, e o Islam é essa ideologia. Não falaremos de religiões que não admitem a conversão. Entre as religiões de aplicação universal, o Islam se distingue, pelo fato de não exigir a renúncia ao mundo, mas insistir no crescimento e na operação simultânea do corpo e da alma. O passado demonstrou que os muçulmanos assimilaram este ideal supra-racial e supra-regional de irmandade, e que este sentimento é uma força viva, que existe entre eles, até aos dias atuais. A naturalização é uma alternativa, hoje admitida pelas "nações", mas naturalizar-se em um novo idioma, em uma nova cor da pele e numa nova terra, 93 não é tão fácil, quanto o é aderir a uma nova ideologia. Para os outros, a nacionalidade é essencialmente um acidente inevitável da natureza; no Islam, é uma coisa que depende, exclusivamente, da vontade e do arbítrio do indivíduo. Meios de Universalização Além dos meios já mencionados, ou seja, a existência de uma mesma lei para todos, uma única direção em que se voltar nas orações, o mesmo lugar de encontro, na peregrinação universal, etc., a instituição do califato universal tem um papel muito especial. Muhammad, de memória extraordinária, proclamou-se mensageiro de Deus, enviado à totalidade dos seres humanos, e também o último de tais mensageiros, por todos os tempos, até ao fim do mundo. Seus ensinamentos aboliram as desigualdades de raça e de classe. Além do mais, o próprio Profeta exercia todos os poderes, espirituais, seculares e outros, na comunidade que organizou como Estado e dotou de todos os seus organismos. Essa acumulação de poderes foi passada como herança, após a sua morte, aos seus sucessores no Estado, com a diferença de que esses sucessores não eram profetas, e portanto, não recebiam revelações divinas. O Profeta Muhammad tinha sempre insistido na necessidade da vida comunitária, a ponto de ter declarado que "aquele que falecer sem conhecer o seu Imam (califa), morrerá pagão." Ele também insistia na unidade e solidariedade da comunidade muçulmana, dizendo que "aquele que dela se distancia vai para o Inferno." Mesmo no tempo em que o Profeta vivia, havia indivíduos, e até grupos de muçulmanos, que viviam voluntariamente, ou sob compulsão, além das fronteiras do Estado Islâmico, por exemplo, na Abissínia, e em Makka (antes da sua conquista pelo Profeta). Algumas das regiões não-muçulmanas desconheciam a tolerância religiosa, e perseguiam a Cidade-Estado de Madina (como Makka e o Império Bizantino). Outras, como a Abissínia cristã, praticavam uma política liberal, em assuntos da consciência. Como acabamos de ver, o califa herdara do Profeta o exercício do poder duplo, espiritual-secular, e presidia a celebração dos cultos de oração na mesquita, ao mesmo tempo em que era o Chefe de Estado, nos assuntos seculares. Em reconhecimento ao Profeta, costumava-se jurar fidelidade (bafa, o pacto de obediência), fazendo o mesmo perante os califas, no momento em que estes eram eleitos. A base da organização estatal é um pacto, convencionado 94 entre o governante e os governados. Na prática, somente as pessoas que são as mais representativas da população, prestam esse juramento de aliança. Tal nomeação sob pacto implica, é claro, a possibilidade da anulação do pacto e da deposição do governante, pelas mesmas personalidades representativas. Foi em virtude de ser o mensageiro de Deus, que o Profeta Muhammad dirigiu a sua comunidade; e a lei que ele promulgou e deixou para a posteridade, foi igualmente de inspiração divina. A soberania de Deus continuou a existir para os seus sucessores, como uma realidade, na sua esfera de competência, pois aí eles eram os sucessores do Profeta de Deus. Mas, para eles, não existia qualquer possibilidade de receber revelações divinas; e assim, os seus poderes, em matéria de legislação, foram limitados; eles não podiam revogar as leis, estabelecidas pelo Profeta, em nome de Deus; podiam, entretanto, interpretar essas leis, e legislar, nos casos em que a lei do tempo do Profeta era silente. Em outras palavras, o Califa não podia ser um tirano, pelo menos em matéria de legislação; ele era um líder constitucional, e tão sujeito às leis do país quanto qualquer outro habitante comum do Estado. A tradição, criada pelo próprio Profeta, é responsável pelo fato de que o Chefe do Estado Muçulmano não pode ficar acima da lei; e a história mostrou que os califas podiam ser sempre intimados, mesmo pelo mais humilde dos súditos, e também pelos não-muçulmanos, a aparecer nos tribunais do país, desde os tempos de Abu Bakr (o primeiro califa) até aos nossos dias. A teoria e a prática do califado não têm, entretanto, sido sempre as mesmas, na sociedade muçulmana. Será útil um rápido esboço dessa história, para uma melhor compreensão da posição atual. O Califado O Alcorão fala de reis, tanto bons como maus, mas jamais fala de outra forma de governo, tal como uma república. O fato de terem havido divergências de opinião, por ocasião da morte do Profeta, mostra que ele não havia deixado instruções categóricas e precisas para a sua sucessão. Certos grupos desejavam que o poder estatal permanecesse, por hereditariedade, na família dele; e como ele não havia deixado nenhum herdeiro homem, seu primo 'Ali era o parente mais próximo, que o sucederia. Outros desejavam uma eleição "ad hoc" individual; e nesse grupo, havia divergência quanto ao candidato a ser escolhido. Uma maioria irresistível organizou-se, em favor de uma eleição. A forma de governo, assim instituída, ficou no plano intermediário entre uma monarquia hereditária e uma república; o califa foi eleito para um mandato vitalício. Se o 95 fato de ocorrer a eleição tornou o sistema de governo semelhante ao da república, a duração do poder era igual à de uma monarquia. Desde o começo, houveram dissidências em relação aos califas eleitos; mais tarde, houve até pretendentes rivais, que causaram, algumas vezes, o derramamento de sangue na comunidade. Tempos mais tarde, o poder foi mantido por uma dinastia. Desse modo, os omíadas foram substituídos pelos abássidas; estes últimos não conseguiram obter a adesão da longínqua província da Espanha, onde dinastias independentes, de governantes muçulmanos, detinham poderes soberanos, sem entretanto, jamais ousar adotar o título de "califa". Foram necessários mais dois séculos para que o mundo muçulmano viesse a ter uma multiplicidade de califas, em Bagdá, em Córdova e no Cairo (fatímidas). Os turcos, ao se converterem ao Islam, introduziram nele um fator novo. Primeiramente, forneceram soldados e, em seguida, comandantes, que se transformaram no verdadeiro poder de governo do Estado. Lado a lado com os califas, apareceu um "comandante dos comandantes" e mais tarde um "sultão". A autoridade do Estado foi dividida e a administração ficou nas mãos do sultão, que governava em nome do califa. Isto gerou ganância e suscitou invejas; diversos príncipes tornaram-se independentes, produzindo "dinastias" de governadores, as quais, por sua vez, eram substituídas por outros aventureiros; e o califa não tinha opção, a não ser ratificar os fatos consumados, onde quer que acontecessem. O califado do Cairo foi o primeiro a desaparecer; e este reino foi assumido por uma dinastia de governadores turco-curdos, que reconheceu o califado de Bagdá. Quando este último foi devastado por tártaros pagãos, a sede do califado foi transferida para o Cairo. Mais tarde, os turcos otomanos conquistaram o Egito, e aboliram a dinastia neo-abássida de califas, que se instalara ali. Após algum tempo, o califado espanhol rendeu-se aos conquistadores cristãos, e reconstituiu o ca-11 lado no Marrocos. A Istambul dos turcos, e a Délhi dos mongóis também pretenderam o califado; entretanto, por maiores que os seus impérios fossem, as suas pretensões foram reconhecidas, somente, nos limites dos seus respectivos domínios. Antes desses dois houve, pelo menos, uma reivindicação da qualificação obrigatória de o califa ser um coraixita, isto é, um descendente dos árabes de Makka, do tempo do Profeta. Nem os turcos, nem os mongóis, preenchiam esta condição, mas voltaremos a este ponto mais adiante. Os mongóis foram destituídos do poder, na índia, pelos ingleses; o califa turco de Istambul foi, mais tarde, deposto, pelos seus próprios súditos, que não só não escolheram uma forma republicana de governo, como não conservaram a dignidade do califado para o chefe de Estado. Os poderes e privilégios do califa foram, nom96 inalmente, confirmados pela Grande Assembléia Nacional, não sendo, entretanto, o posto, nem reivindicado, nem desempenhado por ele. O último califa turco, 'Abdulmajid XI, o centésimo depois do Profeta, morreu no exílio, como imigrante, em Paris. Nesse meio tempo, o califado do Marrocos tornou-se um protetorado da França. Cabem, aqui, algumas observações, que nos surgem, em relação a tudo isto, O Profeta vaticinou que, depois dele, o califado só continuaria por trinta anos, e que, passado esse tempo, seguir-se-ia um reinado "mordaz". Outra fonte atribui ao Profeta um dito, no sentido de que o califado pertence à tribo Coraix. O contexto dessa última orientação é desconhecido; mas o que o próprio Profeta praticou não parece confirmar o caráter obrigatório de tal qualificação. Pois a história mostra que, desde a sua chegada a Madina, e da criação da Cidade-Estado naquela localidade, o Profeta deixou a sua metrópole pelo menos umas vinte e cinco vezes, não só em expedições militares, para defender o território estatal, como também em viagens com propósitos pacíficos (como a peregrinação). Em todas essas ocasiões, ele nomeou, sempre, um sucessor em Madina, porém nunca escolhia a mesma pessoa, para desempenhar esse governo interino. Encontramos entre esses sucessores, chamados de khalifa ou califa, madinenses, coraixitas, quinanitas e outros; houve até um deles que era cego. No tempo da sua ultima viagem, quando ele empreendeu a peregrinação, três meses antes da sua morte, foi uma pessoa cega que ficou como "califa", na metrópole. Outro ponto, a ser notado, é que, quando da eleição de Abu Bakr como califa, havia uma proposta para um governo conjunto, com dois califas funcionando simultaneamente. Por razões práticas, essa proposta foi rejeitada. É, entretanto, uma das formas possíveis de governo muçulmano, uma vez que é reconhecida pelo Alcorão, que se refere a Aarão associado a Moisés no poder do Estado, e porque esta forma foi preservada pelo próprio Profeta no Omã, onde Jaifar e 'Abd, que governavam juntos, se haviam convertido ao Islam. O califa universal não existe, hoje em dia, entre os muçulmanos; entretanto, as massas continuam a aspirar a isso. A existência muito independente dos muçulmanos é por demais sujeita a reconquistas fragmentárias. Antes de restaurar a instituição de um califa universal, é possível que se tivesse de recorrer aos precedentes, estabelecidos no tempo do Profeta, de modo a evitar rivalidades e suscetibilidades regionais; poder-se-ia vir a ter um "Conselho do Califado", composto pelos chefes de todos os Estados muçulmanos, os sunnitas junto com os chi'itas, os coraixitas junto comos não-coraixitas; e, por rodízio, cada membro poderia presidir o Conselho por, digamos, um ano de mandato. 97 Devores do Estado Os deveres e funções de um Estado muçulmano parecem ser quatro: Executivo (para a administração civil e militar), Legislativo, Judiciário e Cultural. O Executivo não exige um exame muito apurado; é evidente, por si só, e válido em qualquer lugar do mundo. A soberania cabe a Deus, e trata-se de uma custódia, administrada pelo homem, para o bem-estar de todos, sem exceção. Já mencionamos as restrições de competência legislativa, existentes na sociedade islâmica, à luz do fato de que nesta existe o Alcorão, Palavra de Deus, que é a fonte de lei para todas as sendas da vida, espirituais e temporais. No domínio do Judiciário, já destacamos a igualdade de todos os homens perante a lei, da qual nem o chefe de Estado está isento, do mesmo modo que os seus súditos. O Alcorão ordenou outra importante disposição: os habitantes não-muçulmanos do Estado Islâmico desfrutam de uma autonomia judicial. Cada comunidade tem os seus próprios tribunais, os seus próprios juízes, administra as suas próprias leis, em todas as atividades da vida, tanto cíveis como penais. O Alcorão diz que os judeus devem aplicar a lei da Tara, e os cristãos as do Evangelho. Vale dizer que, no caso de conflitos entre as leis, onde as partes de um litígio pertencem a comunidades diferentes, disposições especiais deverão resolver as dificuldades na escolha das leis, bem como dos juízes, fazendo com que uma espécie de lei internacional regule tais casos. Por dever cultural, queremos dizer a própria razão de ser do Islam, que pretende que somente a Palavra de Deus prevaleça neste mundo. É dever de cada um e de todos os indivíduos muçulmanos, e em conseqüência, do governo muçulmano, não só acatar a lei divina, no comportamento diário, mas também organizar as suas missões estrangeiras, de maneira a dar conhecimento aos outros daquilo que o Islam representa e defende. O princípio básico, como diz o Alcorão, é o de que "Não há imposição quanto à religião." Longe de significar uma letargia e uma indiferença, este impõe uma batalha perpétua e desinteressada, para persuadir os outros da validade do Islam. Forma de Governo O Islam não dá muita importância à forma externa de governo; ele se satisfaz, desde que o seu (do governo) objetivo seja o bem-estar do ser humano em ambos os mundos, e desde que seja aplicada a lei divina. Assim, a questão constitucional assume um papel secundário, e, como já mencionamos, uma 98 república, uma monarquia, uma junta governativa, entre outras formas, são todas válidas, na comunidade islâmica. Se este objetivo é alcançado por um único chefe, é aceito. Se, em dado tempo, em determinadas circunstâncias, nem todas as qualidades necessárias a um "comandante dos fiéis" ou califa, são encontradas, juntas, na mesma pessoa, admite-se, voluntariamente, a divisão do poder, também para o melhor funcionamento do governo. Podemos citar o famoso caso, relatado pelo Alcorão (2 Surata, versículos 246-247): A certo profeta, anterior a Muhammad, foi solicitado, pelo povo, que escolhesse, para eles, um rei, que governasse junto com ele, de modo que pudesse,m guerrear, sob a sua liderança, contra o inimigo, que os havia expulso dos seus lares e os separado das suas famílias. A designação de um rei, na presença de e em acréscimo ao profeta, e até com a intermediação deste último, nos mostra a que ponto podemos chegar nesta direção. A divisão é, desse modo, estabelecida, entre as funções espirituais e as seculares, sem que se tolere o poder arbitrário de qualquer delas; a política e o rei permanecem tão sujeitos à lei divina quanto o culto e o profeta. A fonte de autoridade e os códigos de leis permanecem os mesmos; somente a aplicação da lei e a execução das disposições necessárias é que cabem a pessoas diferentes. É mais uma questão de especialização, do que de separação, entre os dois aspectos da vida. Deliberações Consultivas A importância e a utilidade da consulta ainda não puderam ser suficientemente destacadas. O Alcorão manda, repetidamente, que os muçulmanos tomem as suas decisões, só depois de recorrer à consulta, seja o assunto matéria pública ou privada. A prática do Profeta reforçou essa disposição. Pois, apesar da excepcional virtude de ser guiado pelas revelações divinas, o Profeta Muhammad sempre consultou os seus companheiros, e os representantes das tribos aliadas, antes de tomar as suas decisões. Os primeiros califas não eram defensores menos ardentes da instituição da consulta. Também a esse respeito, o Alcorão não determina métodos rígidos e precisos. O número, a forma de eleição, a duração do mandato, etc., são deixados a critério dos líderes de cada época e de cada país. O que é importante é que cada um se cerque de personalidades representativas, que desfrutem da confiança daqueles que elas representam, e possuam integridade de caráter. O Alcorão também falou de um tipo de representação proporcional, quando 99 descrevia a seleção dos setenta representantes do povo, por Moisés, a serem recebidos na presença de Deus: Então Moisés selecionou setenta homens, dentre seu povo, para que comparecessem ao lugar por Nós designado; equando o tremor se apossou deles, disse: Ó Senhor meu, quisesses Tu, tê-los-ias exterminado antes, juntamente comigo!Porventura nos exterminarias pelo que cometeram os néscios dentre nós? Isto não é mais do que uma prova Tua, com a qualdesvias quem faz isso, e encaminhas quem Te apraz; Tu és nosso Protetor. Perdoa-nos e apieda-Te de nós, porque Tu és omais equânime dos indulgentes! (7a Surata, versículo 155) Relações Exteriores As relações com os países estrangeiros se baseiam naquilo que é atualmente chamado de direito internacional. As regras de conduta, nesse setor, evoluem muito mais lentamente do que as do comportamento mútuo dentro de um grupo social. Na época pré-islâmica, o direito internacional não tinha existência independente; ele fazia parte da política e era dependente da vontade e do desejo do chefe de Estado. Poucos eram os direitos, reconhecidos, para os amigos estrangeiros, menos ainda para os inimigos. Podemos dar relevo ao fato histórico de que foram os muçulmanos que, não somente desenvolveram o direito internacional, o primeiro no mundo, como matéria à parte, mas também o integraram à jurisprudência (ao invés de à política). Eles compuseram monografias especiais sobre o assunto, sob o nome de siyar (conduta, i.e., do governante), e também falaram a respeito disso nos tratados gerais de direito. Para os que deram origem a estes estudos (do começo do segundo século da Hégira/8° século da Era Cristã), a questão da guerra fazia parte da lei penal. Assim, depois de discutir o banditismo e os assaltos de estrada entre os povos locais, os juristas falavam, logicamente, das atividades parecidas no estrangeiro, exigindo uma maior mobilização das forças da ordem. Porém, a inclusão da guerra no capítulo da legislação penal, significa, inequivocamente, que os seus efeitos eram vistos como assunto jurídico, pela qual os acusados tinham o direito de se defender perante um tribunal judiciário. O princípio básico do sistema de relações internacionais do Islam, no dizer dos juristas, é o de que "os muçulmanos e os não-muçulmanos são iguais (sawa') em face dos sofrimentos deste mundo". Na Antigüidade, os gregos, por exemplo, tinham a concepção de que existia uma lei internacional, que regulava 100 as relações somente entre as cidades-Estado gregas; quanto aos bárbaros, a natureza os tinha destinado, dizia Aristóteles, a ser escravos dos gregos. Era, portanto, uma atitude arbitrária, e não uma lei, o que regulava as relações entre eles. Os antigos hindus tinham uma idéia parecida, e o dogma da divisão da humanidade em castas, junto com a noção da intocabilidade, tornava o futuro dos vencidos ainda mais incerto. Os romanos reconheciam alguns direitos dos seus amigos estrangeiros; mas, para o resto do mundo, não havia mais do que a discriminação e o jugo arbitrário, que mudava conforme a índole ou o humor dos comandantes ou os tempos que corriam. A lei judaica acreditava que Deus havia ordenado a exterminação dos amalecitas (habitantes da Palestina); e que, ao resto do mundo, poderia ser permitido sobreviver, desde que pagasse tributos e servisse os judeus. Até 1856, os ocidentais reservavam a aplicação do direito internacional aos povos cristãos; e, mesmo tendo, desde então, feito uma distinção entre povos civilizados e não-civilizados, estes últimos continuam a não ter quaisquer direitos. Na história das leis internacionais, os muçulmanos foram os primeiros - e até aqui os únicos - a admitir os direitos dos estrangeiros, sem qualquer discriminação ou reserva. O primeiro Estado muçulmano foi fundado e governado pelo Profeta. Era a Cidade-Estado de Madina, uma confederação de vilas autônomas, habitadas por muçulmanos, judeus, árabes pagãos, e, possivelmente, um punhado de cristãos. A própria natureza desse Estado exigia uma tolerância religiosa, que foi formalmente admitida na sua constituição, documento que sobreviveu até aos nossos dias. Os primeiros tratados de aliança defensiva foram feitos com não-muçulmanos, e foram sempre escrupulosamente cumpridos. O Alcorão insiste, de maneira enérgica, na obrigação de se cumprirem as promessas feitas e de fazê-lo com justiça e correção (impondo, em caso contrário, punições na Outra Vida). As diferentes fontes das regras de conduta internacionais compreendem, não somente a legislação internacional, mas também os tratados com os estrangeiros, etc. Os juristas têm insistido de tal maneira na importância da palavra empenhada, que dizem que, se um estrangeiro obtiver permissão e ingressar em território islâmico, por um período determinado, e se nesse meio tempo ocorrer uma guerra, entre o governo muçulmano e o da nação do dito estrangeiro, a segurança deste não poderá ser afetada; ele poderá permanecer, tranqüilamente, até expirar o visto da sua permanência; e não somente poderá retornar a salvo e em segurança para o seu lar, como também levar com ele todos os seus bens e ganhos. Além do mais, durante a sua permanência, desfrutará da proteção das cortes, do mesmo modo que ela lhe era garantida antes da guerra. A pessoa do 101 embaixador é considerada imune a toda a violação, mesmo que ele seja portador de uma mensagem desagradável. Ele desfruta da liberdade de credo, e de segurança de estadia e de retorno. A questão da jurisdição também comporta certas peculiaridades. Os estrangeiros, residentes em território islâmico, estão sujeitos à jurisdição muçulmana, porém não à lei muçulmana, uma vez que o Islam tolera, em seu território, a multiplicidade de leis, com poderes judiciários autônomos para cada comunidade. Um estranho estaria, portanto, sob a jurisdição do seu próprio tribunal confessional. Se ele fosse cristão, judeu ou de outro credo qualquer, e se a outra parte litigante professasse a mesma fé e costumes - não importando se esta parte fosse súdita do Estado Muçulmano ou outro estrangeiro - o caso seria decidido, de acordo com as leis próprias dos litigantes. Quanto aos casos em que os litigantes são de comunidades diferentes, a questão já foi examinada acima. Entretanto, é sempre admissível, legalmente, a um não-muçulmano, renunciar a esse privilégio, em favor de um tribunal islâmico, desde que ambas as partes do litígio concordem. Em tal eventualidade, será aplicada a lei islâmica. É preciso ressalvar que a preocupação com a legalidade, forçou os juristas muçulmanos a admitir que se um crime for cometido, mesmo contra um muçulmano, que está sujeito ao Estado Muçulmano, por um estrangeiro, num país estrangeiro, e este mesmo estrangeiro vier, posterior e pacificamente a um território muçulmano, ele não será submetido aos tribunais islâmicos, que não têm competência para considerar casos que tenham ocorrido fora do território das suas jurisdições. A lei islâmica não admite isenções, em favor do chefe de Estado, o qual está tão sujeito à jurisdição dos tribunais quanto qualquer outro habitante do país. Se o chefe do Estado Muçulmano não desfruta de tais privilégios (injustos) em seu próprio país, não temos porque esperar que tais privilégios sejam dispensados a soberanos ou a embaixadores estrangeiros. Todo o respeito, adequado à qualidade de hóspedes e à dignidade de suas posições, lhes é prestado, mas isto não os coloca acima da lei e da justiça. Diversos casos dos tempos clássicos retratam uma outra característica peculiar da justiça islâmica. Em caso de litígios, eram mantidos reféns, por ambas as partes, para garantir o cumprimento dos tratados, estipulando-se, explicitamente, que se uma das partes viesse a assassinar os reféns, que haviam sido cedidos pela outra, a esta caberia o direito de se vingar, sobre os reféns que, 102 por sua vez, detinha. Este tipo de situação já aconteceu, tendo os juristas muçulmanos, entretanto, observado unanimemente, que os reféns inimigos não poderiam ser executados, porque a perfídia e a traição tinham sido cometidas pelo seu governante, e não pelas pessoas desses reféns; e o Alcorão proíbe, formalmente, que se aplique qualquer punição por delegação, ou que se inflija represália a quem quer que seja, pelo crime de outrem. A lei muçulmana de guerra é humana. Ela distingue entre os beligerantes e os combatentes; ela não permite a matança dos menores, das mulheres, dos idosos, dos doentes, nem dos monges; as dívidas, em favor dos cidadãos do país inimigo, não são afetadas pela declaração de guerra: toda a matança e devastação, além do mínimo indispensável, é proibida; os prisioneiros são bem tratados, e os seus atos de belicosidade não são considerados criminosos. Com o objetivo de reduzir as tentações dos soldados conquistadores, o produto do saque não cabe àquele que o toma, e sim ao governo, que centraliza os despojos e os redistribui, na proporção de quatro - quintos para os participantes da expedição e um quinto para os cofres do governo; as partes de um soldado e do comandante-em-chefe são iguais. Em um trecho interessante, o Alcorão exorta à paz, e diz: Se eles se inclinam para a paz, inclina-te tu também para ela e encomenda-te a Deus, porque Ele é o Oniouvinte, o Sapientíssimo. (8a Surata, versículo 6) O Alcorão atribui tal importância à palavra empenhada, que não hesita em dar-lhe preferência, acima do interesse material da comunidade muçulmana. Assim, ensina-nos a lei islâmica da neutralidade, nos seguintes termos: Quanto aos crentes que não migraram, não vos tocará protegê-los, até que o façam. Mas, se vos pedirem socorro, em nome da religião, estareis obrigados a prestá-lo, salvo se for contra povos com os quais tenhais tratados; sabei que Deus bem vê tudo quanto fazeis. (8a Surata, versículo 72) Conclusão Resumindo, o Islam pretende estabelecer uma nova comunidade mundial, com igualdade completa entre os povos, sem distinção de raça, classe, ou nação. Procura converter por persuasão, não permitindo qualquer compulsão a credos religiosos, devendo permanecer, cada indivíduo, pessoalmente, responsáv103 el perante Deus. Para o Islam, governo significa custódia, um serviço, no qual os funcionários são servos do povo. De acordo com ele, é dever de todos os indivíduos fazer um constante esforço para disseminar o bem e prevenir o mal; e Deus nos julga pelos nossos atos e pelas nossas intenções. O Sistema Judiciário do Islam Contribuições Especiais dos Muçulmanos A lei existe, na sociedade humana, desde tempos imemoriais. Toda a raça, religião, ou grupo de homens, trouxe alguma contribuição a essa esfera. A contribuição, feita pelos muçulmanos, é tão rica, quanto meritória e valiosa. Todos os povos antigos tiveram as suas leis peculiares e próprias. Entretanto, parece que jamais se tinha pensado, antes de Ach-Chafí'i (150-204 da Hégira/767-820 d.C.), numa ciência da lei, abstrata na existência e distinta das leis e dos códigos. A obra desse jurista, Risála, designa essa ciência pelo expressivo título de "Raízes da Lei", advindo daí os diversos ramos da regulamentação da conduta humana. Esta ciência, chamada daí para a frente de Usul-ul-Fiquih, pelos muçulmanos, trata, simultaneamente, da filosofia da lei, da fonte das regras, e dos princípios da legislação, interpretação e aplicação dos textos legais. As leis, i.é, regulamentos, são chamadas de "ramos" (furü) dessa árvore. A Intenção do Ato Entre as novidades, no domínio dos conceitos fundamentais da lei, podemos apontar a importância dada ao conceito de motivo e intenção (niyà) dos atos. Esta noção se baseia no célebre parecer do Profeta do Islam: “Os atos devem ser julgados de acordo com as intenções." Desde então, a infração ou crime intencional e o ato involuntário, não têm sido tratados de maneira igual pelos tribunais. A Constituição Escrita do Estado É tão interessante quanto inspirador, observar que, já na primeira revelação recebida pelo Profeta do Islam, que era uma pessoa iletrada, constava o engrandecimento do cálamo, como meio de conhecimento das coisas ignoradas, e como uma graça de Deus. Não nos surpreende que, quando o Profeta Muhammad dotou o seu povo de um organismo estatal, criado do nada, ele tenha 104 promulgado uma constituição escrita para esse Estado, que era, inicialmente, uma Cidade-Estado, mas, meros dez anos mais tarde, quando o seu fundador morria, já se estendia por toda a Península Arábica e pela parte do sul do Iraque e da Palestina. Após outros quinze anos, durante o califado de Otman, ocorreu uma penetração fantástica dos exércitos muçulmanos na Andaluzia (Espanha), por um lado e no Turquestão chinês, pelo outro, através dos países intermediários. Essa constituição escrita, preparada pelo Profeta Muhammad, contendo 52 cláusulas, sobreviveu, intacta, até aos nossos dias. Ela trata de uma variedade de questões, tais como os direitos e deveres que dizem respeito ao governante e aos governados, legislação, administração da justiça, organização da defesa, tratamento a ser dispensado aos súditos não-muçulmanos, seguro social, baseado na mutualidade, e outros requisitos daquela época. O Ato (constitucional) data de 622 da Era Cristã, i.e., do primeiro ano da Hégira. A Lei Internacional Universal A guerra, que infelizmente sempre tem sido freqüente, entre os membros da família humana, é a ocasião em que se está menos disposto a conduzir-se racionalmente e a praticar a justiça, principalmente sobre os próprios súditos, em favor do nosso adversário. Como isto, na verdade, é uma questão de vida ou morte, uma batalha pela própria sobrevivência, na qual o menor deslize ou erro pode levar a conseqüências perigosas, os soberanos e chefes de Estado sempre reivindicaram o privilégio de decidir, a seu próprio critério, as medidas a serem aplicadas ao inimigo. A ciência, relacionada a esse comportamento dos soberanos independentes, existe desde os tempos mais remotos; mas fazia parte da política e era mera prudência, quando muito, guiada pela experiência. Os muçulmanos parecem ter sido os primeiros a separar esta ciência do direito internacional público das Vontades e desejos mutáveis dos governantes dos Estados, e a dispô-la numa base puramente legal. Além do mais, foram eles que deixaram para a posteridade os tratados mais antigos existentes, sobre o direito internacional, desenvolvido como uma ciência independente. Eles a chamam de siyar, ou seja, conduta do soberano. E mais, nos códigos de leis convencionais, fala-se desse assunto como integrante da lei da terra. Aliás, fala-se dele imediatamente em seguida à questão do banditismo, como se a guerra pudesse ser justificada com as mesmas razões que a ação policial contra os assaltantes de estrada. O resultado disso é que os beligerantes têm, não apenas direitos, como também obrigações, reconhecidas pelos tribunais muçulmanos. 105 Características Gerais do Direito Muçulmano A primeira coisa que chama a atenção do leitor de um manual sobre o direito islâmico é que ele procura regular todo o leque de atividades da vida humana, tanto no seu aspecto material, como no espiritual. Tais manuais começam, geralmente, com os ritos e práticas do culto, e discutem, nesse mesmo capítulo, também, as questões constitucionais da soberania, uma vez que o imam, ou seja, o chefe de Estado é o líder ex-ofício das orações, na mesquita. Não devemos, portanto, nos espantar de essa parte também (ratar dos impostos devidos ao erário, uma vez que o Alcorão, freqüentemente, fala sobre o culto e o imposto do zakat, no mesmo versículo, tratando esse imposto como uma das formas de louvar a Deus, por intermédio do dinheiro. Depois disso, discutem-se as relações contratuais de todos os tipos; em seguida, os crimes e suas penalidades, que incluem as leis da guerra e da paz com países estrangeiros, i.e., o direito internacional e também a diplomacia; e, finalmente, os regulamentos que regem a herança e os testamentos. O homem consiste de corpo e alma; e se o governo, com os seus enormes recursos, cuidar tão somente dos assuntos materiais, o espírito ficará esfomeado, e sendo deixado à sua própria mercê, seus recursos serão paupérrimos, em comparação com os que estão disponíveis para os assuntos seculares. O desenvolvimento desigual do corpo e da alma levará à falta de equilíbrio do homem, cujas conseqüências serão, a longo prazo, desastrosas para a civilização. Este tratamento do todo, tanto do corpo como da alma, não implica que os não iniciados se devam aventurar nos domínios da religião, tanto quanto não se deve permitir ao poeta aventurar-se a realizar cirurgias; todo o campo de ação humana deve ter os seus próprios especialistas e pessoas qualificadas. Outra característica do direito islâmico parece ser a ênfase posta na correlação do direito e da obrigação. Não somente as relações mútuas dos homens entre si, mas também a relação dos homens com o seu Criador, estão baseadas no mesmo princípio; e o culto não é mais do que o cumprimento do dever do homem, correspondente aos direitos que a providência lhe concede. Falar somente dos "direitos do homem", sem, ao mesmo tempo, dar relevo aos seus deveres, seria o mesmo que transformá-lo em um animal voraz como o lobo, ou no próprio diabo. 106 A Filosofia da Lei Os juristas clássicos muçulmanos, põem as leis sobre a base dupla do lícito e do ilícito. Deve-se praticar o que é lícito e abster-se do que é ilícito. O lícito e o ilícito são, às vezes, absolutos e evidentes por si, e, outras vezes, apenas relativos e parciais. Isto nos leva à divisão, em cinco categorias, de todas as regras jurídicas, tanto as ordens como as injunções. Desse modo, tudo o que é absolutamente lícito é um dever absoluto e devemos praticá-lo. Tudo o que tem um caráter lícito preponderante, é recomendável e considerado meritório. As coisas que têm ambos os aspectos, lícito e ilícito, em proporções iguais, ou que não possuem nenhum dos dois, são deixadas a critério do indivíduo, para que ele as pratique ou não, e até mude tal prática, de tempos em tempos. As coisas absolutamente ilícitas, são objeto de proibição total, e são repreensíveis e desencorajadas. A divisão básica dos atos ou regras em cinco categorias pode ter outras subdivisões, para inserir nuances menores, tal como os indicadores do mostrador de uma bússola, que acrescentam direções compostas, além dos quatro pontos cardeais principais. Resta definir e distinguir o lícito do ilícito. O Alcorão, sendo a Palavra de Deus e um livro sagrado para os muçulmanos, fala dessas coisas em muitas ocasiões, dizendo-nos sempre, que devemos praticar o ma'rufe nos abster do munkar. Ora, ma'rufquer dizer um ato que é reconhecido como tal por todos, até pela própria razão lícito, enquanto munkar significa aquilo que é rejeitado por todos, por não ser de modo algum bom, um mal que é reconhecido como tal por todos; e aquilo que até a própria razão reconhece como mal, deve ser proibido. Uma grande parte da moral do Islam está contida neste domínio; e são raros os casos em que o Alcorão proíbe algo, a respeito do qual exista qualquer divergência de opinião humana, tal como a proibição de bebidas alcoólicas, ou de jogos de azar; mas, para dizer a verdade, a razão de ser da lei, mesmo em tais casos, jamais é negada às mentes lúcidas e férteis. Na prática, isto é uma questão de confiança na sabedoria e na inteligência do Legislador, cujas diretrizes, em todos os casos, não têm causado senão a aprovação universal. As Sanções Encontram-se, entre os membros da raça humana, os mais variados temperamentos, e estes podem ser agrupados em três grandes categorias: a daqueles que são bons e resistem a quaisquer tentações do mal, sem precisar ser compelidos, para tanto; a daqueles que são maus, e procuram, por todos os meios, fugir de toda e qualquer vigilância; e finalmente, a daqueles que se comportam 107 de maneira adequada só enquanto temem as conseqüências, mas que se permitem praticar o ilícito, também, quando são tentados, quando há uma maior ou menor probabilidade de escaparem ilesos de qualquer represália. Infelizmente, o número de indivíduos da primeira categoria é muito limitado; estes não precisam nem de guias, nem de sanções contra a violação de leis. As outras duas categorias necessitam de sanções em benefício da sociedade. A disposição de espírito de causar danos a outrem pode ser uma doença, um resquício de animalidade criminosa, resultado de uma má educação, ou ser devida a outras causas. Tem de se fazer um esforço para controlar e neutralizar o dano que possa ser causado por homens da segunda categoria, cujo número, felizmente, também não é muito grande. Resta a terceira categoria, intermediária, e que é constituída pela grande maioria dos homens. Estes necessitam de sanções, mas de que espécie? Vale dizer que, se o próprio chefe tivesse a consciência pesada, por ter cometido alguma coisa proibida, ele teria pouca disposição para repreender os outros a respeito da mesma coisa. Portanto, o Islam atinge a raiz e a fonte desse tipo de mal, e declara que ninguém está isento das obrigações, nem mesmo o soberano, nem o próprio profeta. Os ensinamentos, como as próprias práticas do Profeta Muhammad, seguidos pelos seus sucessores, exigem que o chefe de Estado seja plenamente capaz de ser intimado a comparecer perante os tribunais do país, sem qualquer restrição. A Tradição Islâmica tem sido a de os juizes jamais hesitarem, ao decidir contra os seus soberanos, em casos de prevaricação. È desnecessário mencionar, pormenorizadamente, as sanções materiais que existem no Islam, como também em todas as outras civilizações. Por isso, existem funções públicas, que são encarregadas de manter a lei e a ordem, de vigiar e de custodiar, de cuidar da paz e da tranqüilidade, das relações de convívio dos habitantes do país, assegurar que qualquer pessoa que seja vitimada por violência, possa reclamar, diante dos tribunais, e que a polícia traga os acusados aos juízes, bem como garantir que seja, finalmente, executada a decisão destes. Mas a concepção de sociedade que o Profeta do Islam tinha acrescentou ainda uma outra sanção, talvez mais eficaz do que a sanção material, e que é a sanção espiritual. Mantendo toda a parafernália administrativa da justiça, o Islam imprimiu, nas mentes dos seus seguidores, a idéia da ressurreição após a morte, do Juízo Final e da salvação ou condenação, nesse Juízo Final. E é assim que o crente cumpre as suas obrigações, mesmo quando tem a oportunidade de as violar impunemente, e se abstém de causar danos aos outros, apesar de todas as 108 tentações, e de contar, seguramente, estar livre de qualquer risco de represália. Essa tríplice sanção - pela qual os governantes estão sujeitos, em condições de igualdade, à lei geral, às sanções materiais e também às sanções espirituais, cada elemento servindo para fortalecer a eficácia do anterior, - tenta assegurar, no Islam, a observância máxima das leis e a realização plena dos direitos e dos deveres de todos. A Legislação Para melhor compreender as implicações da afirmação de que Deus é o supremo Legislador, precisamos meditar sobre os diversos aspectos da questão. O Islam acredita no Deus Único, o Qual não só é o Criador de todas as coisas, mas também o Provedor, o sine qua non da existência de todo o universo. Ele não foi "posto no rol de aposentados", após ter criado tudo o que criou. O Islam acredita, principalmente, que Deus está muito além da percepção física do homem, e que Ele é Onipresente, Onipotente, Justo e Misericordioso, além de, por Sua clemência ilimitada, Ele ter dado ao homem, não somente a razão, como também ter mandado mensageiros, escolhidos entre os próprios homens, instruindo-os sobre quais as direções que são mais sábias e mais úteis para a sociedade humana. Deus é Transcendente e envia as Suas mensagens aos Seus escolhidos por meio de portadores intermediários, de mensagens celestiais. Deus é Perfeito e Eterno. Entre os homens, pelo contrário, há uma constante evolução. Deus não muda as Suas opiniões, mas exige dos homens somente aquilo de que são capazes, dentro das suas capacidades individuais. É por isso que há divergências, pelo menos em certos detalhes, entre as legislações, que reivindicam para si próprias o fato de serem baseadas nas revelações divinas. Em assuntos legislativos, a última lei revoga e substitui as que a antecederam; o mesmo é verdadeiro, com respeito às revelações divinas. Entre os muçulmanos, o Alcorão, que é um livro escrito na língua árabe, é a Palavra de Deus, uma revelação divina, recebida pelo Profeta Muhammad e destinada aos seus seguidores. Além disso, em sua qualidade de Mensageiro de Deus, Muhammad explicou o texto sagrado, e acrescentou outras diretrizes, que estão registradas nas Tradições (ou coleções dos seus relatos, ditos e atos). Seria desnecessário dizer que as leis, promulgadas por determinada autoridade, só podem ser revogadas por ela mesma, ou por uma autoridade superior, mas nunca por uma inferior. Assim, a revelação divina só pode ser revogada por uma outra revelação divina posterior. Do mesmo modo, as diretrizes do Profeta 109 só podem ser modificadas por ele próprio ou por Deus, mas não por qualquer um dos seus discípulos ou por outras pessoas. Mas este aspecto teórico e rígido se transforma numa prática bastante elástica no Islam, para que os homens se possam adaptar às exigências e às circunstâncias: 1) As leis, mesmo aquelas de origem divina ou emanadas do Profeta, não têm, todas, o mesmo âmbito. Já vimos que somente algumas delas são obrigatórias; outras são apenas recomendações, enquanto, no restante dos casos, a lei permite ampla extensão aos indivíduos. Um estudo das fontes mostrará que as regras da primeira categoria, i.e., a das obrigatórias, são muito poucas; as recomendações são em número um pouco maior, e os casos em que o texto é silente são inúmeros. 2) Uma autoridade inferior não modifica a lei, mas pode interpretá-la. O poder de interpretação não é monopólio de qualquer pessoa, no Islam; qualquer um que tenha feito um estudo especial da matéria tem o direito de impretá-la. Uma pessoa doente jamais irá consultar um poeta, nem mesmo um que tenha sido laureado com o prêmio Nobel; para construir uma casa, não consultamos um cirurgião, e sim um engenheiro; do mesmo modo, para s questões legais, precisamos estudar as leis e aperfeiçoar o nosso conhecimento do assunto; a opinião das pessoas não qualificadas é apenas empírica. As interpretações dos especialistas mostram as possibilidades de adaptar até a lei divina às circunstâncias; por Muhammad ter sido o derradeiro dos profetas e ter deixado este mundo como qualquer mortal, não há mais nenhuma possibilidade de se receber uma nova revelação de Deus, para decidir sobre os problemas surgidos pela divergência nas interpretações. Tais divergências devem, evidentemente, existir, pois nem todos os homens pensam do mesmo modo. Pode-se ressaltar que os juízes, jurisconsultos e outros juristas também são seres humanos; e se eles divergem entre si, não será o povo comum que terá maior poder de decisão. Num litígio judicial, o juiz deve ser obedecido; em outros casos, as escolas, que se dedicam ao estudo e interpretação das leis, recebem a preferência, aos olhos dos que seguem a respectiva escola, e assim por diante. 3) Foi o próprio Profeta Muhammad que enunciou a regra de que "O meu povo jamais será unânime em relação a um erro." Tal consenso tem grandes possibilidades de desenvolver a lei islâmica, e adaptá-la, de acordo com a mudança das circunstâncias. 4) Um famoso incidente na vida do Profeta Muhammad merece ser relatado, aqui. Moaz Ibn Jabal, um juiz designado do Iêmen, visitou o Profeta, para se 110 despedir dele, antes de seguir para o seu posto. A seguinte conversação teve lugar, entre os dois: - "Com que fundamentação irás decidir os litígios?" "De acordo com as previsões contidas no Livro de Deus (o Alcorão)!" "E se não encontrares nenhuma provisão nele?" "Então, de acordo com a conduta do Mensageiro de Deus (i.e., Muhammad)!" "E se nem aí encontrares exemplo apto?" "Bem, então, usarei a minha própria diligência!" O Profeta ficou tão feliz com estas respostas que, longe de repreendê-lo, exclamou: "Deus seja louvado, pois guiou o mensageiro do Seu Mensageiro ao que mais agrada ao Mensageiro de Deus! Esta diligência pessoal de opinião e bom senso, por parte de um homem honesto e consciencioso, não só é uma maneira de desenvolver a lei, mas também um receptor da bênção do Profeta. 5) Podemos recordar que, na legislação de um problema novo, na interpretação de um texto sagrado, ou em qualquer outro caso de desenvolvimento da lei islâmica, mesmo quando isto tenha sido feito com base num consenso, sempre há a possibilidade de que uma regra, adotada num processo, venha a ser substituída por outra, por outros juristas que se utilizem dos mesmos métodos. A história tem demonstrado que o poder de "legislação" deve, no Islam, ser confiado a sábios particulares, para que estes estejam isentos da interferência oficial. Tal legislação não deverá sofrer a influência da política quotidiana, nem atender a interesses de quaisquer pessoas em particular, mesmo que sejam os do chefe de Estado. Sendo os juristas todos iguais, cada um deles pode, livremente, criticar a opinião do outro, tornando possível, desse modo, o exame de todos os aspectos de relevo de um problema, quer de pronto, quer no curso das gerações seguintes, até que se alcance a melhor solução. Vimos, assim, que a origem divina da legislação islâmica não a torna despropositadamente inflexível. O que é mais importante, ainda, é que esta qualidade de origem divina da lei, inspira aos fiéis um respeito maior por ela, tornando possível a sua observação mais consciente e escrupulosamente. Podemos acrescentar que os juristas dos tempos clássicos haviam declarado, unanimemente, que: "Tudo o que os muçulmanos consideram bom, o é, também, aos olhos de Deus." - mesmo que isso não se refira a qualquer dito do próprio Profeta. O consenso, à luz de tal interpretação, implica que mesmo as conclusões dos sábios leigos envolvam a aprovação divina, um fato que só acrescenta respeito pela lei, aos olhos dos homens. 111 A Administração da Justiça Uma característica da legislação alcorânica, neste sentido, é a autonomia judiciária das diferentes comunidades muçulmanas. Longe de impor a lei alcorânica a todos, o Islam admite, e até encoraja, que cada grupo, cristão, judeu, masdeísta, ou outro, mantenha os seus próprios tribunais, presididos pelos próprios juízes, de sorte que se apliquem as suas próprias leis, em todos os ramos do direito, tanto civil como criminal. Se as partes em disputa pertencerem a comunidades diferentes, uma espécie de lei internacional privada decidirá o conflito entre as leis. Ao invés de buscar a absorção e a assimilação de todos, dentro da comunidade "governante", o Islam protege os interesses de todos os seus súditos. Quanto à administração da justiça entre os muçulmanos, à parte de sua simplicidade e rapidez, a instituição da purificação das testemunhas merece ser mencionada. Note-se que, na realidade, os tribunais, de todas as localidades, organizam arquivos, que registram a conduta e os hábitos de todos os habitantes, para saber, sempre que necessário, se uma testemunha é confiável. Não se deixa por conta da outra parte, apenas, derrogar o valor de um testemunho. O Alcorão diz que, se alguém ataca a castidade de uma mulher e não prova a sua acusação, pelos meios exigidos pelo tribunal, não somente é punido, mas passa a constar, para sempre, como indigno de testemunhar nos tribunais. Origem e Desenvolvimento da Lei O Profeta Muhammad ensinou dogmas teológicos aos seus seguidores; ele também lhes deu leis, referentes a todas as atividades da vida, individuais ou coletivas, seculares ou espirituais; além disso, criou um Estado a partir do nada, que administrou, organizou exércitos, que comandou, estabeleceu um sistema diplomático e de relações exteriores, que controlou; e, se surgiam litígios, era ele quem os decidia, para os seus "súditos". Portanto, é para a figura dele, mais do que para qualquer outra, que devemos nos voltar, para estudar a origem do direito islâmico. Ele nasceu de uma família de mercadores e caravaneiros, domiciliados em Makka. Em sua juventude, visitou as feiras e mercados do Iêmen e da Arábia Oriental, bem como da Palestina. Seus contemporâneos costumavam, também, viajar para o Iraque, Egito e Abissínia para comerciar. Quando ele iniciou a sua vida missionária, a violenta reação dos seus compatriotas obrigou-o a se exilar e a domiciliar-se em outra cidade, Madina, onde o principal meio de subsistência dos habitantes era a agricultura. Ali, ele organizou a vida estatal; estabeleceu, primeiro, uma Cidade-Estado, que foi 112 gradativamente transformada em um Estado, que se estendia, na época da sua morte, por toda a Península Arábica, além de algumas partes do Sul do Iraque e da Palestina. A Arábia era atravessada por caravanas internacionais. É bem conhecido que os sassânidas e os bizantinos tinham ocupado algumas regiões da Arábia, e estabelecido colônias ou protetorados. As feiras, principalmente as da Arábia Oriental, atraíam mercadores da índia, da China, "do Leste e do Oeste", como descreveram Ibn Al-Kalbi e Al-Mas'udi. Na Arábia não havia somente nômades, mas também povos sedentários, como os iemenitas e os lihianitas, que haviam desenvolvido civilizações, que da-tavam de muito antes da fundação das cidades de Atenas e de Roma. As leis que prevaleciam no país foram transformadas, com a chegada do Islam, em atos de legislação estatais; e o Profeta detinha, da parte de seus seguidores e súditos, a prerrogativa, não só de modificar os velhos costumes, mas também de promulgar leis completamente novas. A sua condição de Mensageiro de Deus era a razão principal do imenso prestígio de que desfrutava. Tanto assim, que, não apenas o que ele dizia, como todos os seus atos, tomavam-se lei, para os muçulmanos, em todas as sendas da vida; até o silêncio dele implicava que ele não se opunha a algum costume, que era praticado à sua volta, pelos seus seguidores. Essa fonte tríplice de legislação, ou seja, as suas palavras, que se baseavam sempre nas revelações divinas, os seus atos e a sua aprovação tácita das práticas e costumes dos seus seguidores, foi preservada, para nós, no Alcorão e nas tradições. Ainda durante a sua vida, começou a germinar uma outra fonte, constituída pelas deduções e pela elaboração de regras, nos casos em que a legislação era silenciosa, o que era feito pelos juristas que não fossem chefes de Estado. Havia juizes e jurisconsultos, no tempo do Profeta, até na metrópole, para não falar dos centros administrativos das províncias. Já mencionamos as instruções, levadas por Moaz, quando este foi enviado ao Iêmen, como juiz. Havia casos em que os funcionários das províncias requeriam instruções do governo central, que também tomava a iniciativa e intervinha, nos casos de decisões incorretas dos seus subordinados, sempre que estas chegavam ao conhecimento da autoridade mais alta. A ordem para alterar ou modificar os costumes e práticas antigas, ou para a islamização da lei de todo o país, só poderia se consolidar gradativamente, por que os juízes não intervinham, senão nos casos que lhes eram submetidos; devem ter sido numerosos os casos que não lhes foram submetidos, sendo resolvidos pelos litigantes, de acordo com a sua conveniência, à parte da lei. A morte do Profeta marca o cessar das revelações divinas, que possuíam a força de ordenar toda a lei, revogando ou modificando todos os costumes ou práticas 113 antigas. A partir daí, a comunidade muçulmana se viu obrigada a se contentar com a legislação, já estabelecida pelo Profeta, e com os meios autorizados para o desenvolvimento da lei, autorizada pela própria legislação Dessas leis reveladas, as mais importantes talvez tenham sido as seguintes: por diversas vezes, o Alcorão, depois de instituir determinadas proibições, acrescenta, explicitamente, que tudo o mais é lícito (no domínio envolvido), de maneira que, tudo aquilo que não contraria a legislação emanada do Profeta, é permissível, constituindo-se em lei positiva. As leis e até os costumes de países estrangeiros, sempre serviram de matéria-prima aos juristas muçulmanos, de onde eles extraíam aqueles que eram incompatíveis com o Islam, considerando lícitos os demais. Essa fonte é permanente. Outra fonte, talvez surpreendente, é a diretriz, fornecida pelo Alcorão de que as revelações divinas, recebidas por profetas anteriores - e são citados diversos, como por exemplo, Enóque, Noé, Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Jesus Cristo, João Batista - são também válidas para os muçulmanos. Porém, essa diretriz se restringe às revelações comprovadas, sem margem de dúvida, isto é, àquelas explicitamente reconhecidas pelo Alcorão ou pelas tradições. A lei de talião do Pentateuco é um caso, mencionado no Alcorão. Passados apenas quinze anos da morte do Profeta, vemos os muçulmanos governando em três continentes, em vastos territórios da Ásia e da África, e na Andaluzia, na Europa. O Califa ornar achou que o sistema fiscal dos sassânidas era bom e o manteve nas províncias do Iraque e do Irã; já o sistema fiscal dos bizantinos achava opressivo, e por isso modificou-o, na Síria e no Egito, e assim por diante. Todo o primeiro século da Hégira foi um período de adaptação, consolidação e transformação. Os documentos, escritos em pergaminhos, encontrados no Egito, nos informam de muitos aspectos da administração egípcia. Já a partir do segundo século da Hégira, passamos a ter códigos de leis, compilados por juristas privados, sendo um dos primeiros o de Zaid Ibn Ali, que morreu no ano 120 da Hégira. Os antigos chamavam o Iêmen de Arábia Felix', e não sem razão. As suas condições gerais e físicas, deram-lhe, na Antigüidade pré-cristã, uma superioridade incomparável sobre as outras regiões da Arábia, no que diz respeito à cultura e à civilização; a sua riqueza, atestada pela Bíblia, era legendária, e os seus reinos, poderosos. No início da era cristã, uma onda de emigração levou certas tribos iemenitas para o Iraque, onde elas fundaram o Reino de Hira, que ficou célebre por estimular as letras, e que continuou a existir até à aurora do Islam. Nesse meio tempo, o Iêmen conheceu o domínio dos judeus (por Dhul-Nawas), a dominação cristã (pelos abissínios), seguida da sua ocupação 114 pelo Irã, pelos masdeístas ou fársis, que, por sua vez, deram lugar ao Islam. Os iemenitas, influenciados por todas essas sucessivas interações e tensões, foram persuadidos, pelo Califa Umar, a emigrar novamente para o Iraque, para colonizá-lo, especialmente a região de Kufa, que era uma cidade nova, construída sobre as ruínas da antiga Hira. Omar enviou Ibn Mas'ud, um dos mais eminentes juristas, de entre os companheiros do Profeta, para organizar lá uma escola. Os seus sucessores nessa escola, Ibrahim an-Nakha'i, Hammád, e Abu Hanifa, foram todos, graças ao acaso da providência, especialistas em leis. Entrementes, 'Ali, outro grande jurista, dentre os companheiros do Profeta, transferiu a sede do califado de Madina para Kufa. Não era de surpreender, portanto, que esta cidade se tornasse o berço de tradições ininterruptas, adquirindo uma reputação crescente, em matéria de leis. A ausência de qualquer interferência da autoridade central na liberdade de opinião dos juízes e juristas, provou favorecer enormemente o rápido progresso dessa ciência; mas também tinha as suas inconveniências. Na realidade, um administrador experimentado e altamente conceituado, como Ibn al-Mukaffa', reclamava, no início do segundo século da Hégira, da existência de uma quantidade enorme de divergências, nas leis muçulmanas casuísticas, penais, da condição pessoal e em outros ramos da legislação, especialmente em Hira e Kufa, e sugeriu ao califa a criação de uma instituição superior, para a revisão das decisões do judiciário, visando a imposição de uma lei única e uniforme em todas as partes do reino. A sugestão foi abortiva. O seu contemporâneo, Abu Hanifa, cioso da liberdade da ciência, e zeloso em mantê-la à distância dos tumultos da política, continuamente mutável, criou, ao invés disso, uma academia de direito. Composta por quarenta membros, sendo cada um especialista em alguma ciência relacionada com o direito, - tal como a exegese do Alcorão, das tradições, a lógica, a lexicologia, etc. - a academia dispôs-se a uma profunda avaliação da legislação casuística da época, e empreendeu a codificação das leis; ela tentou, também, preencher as lacunas das leis muçulmanas, a respeito de pontos sobre os quais não existiam, nem precedentes no direito casuístico, nem textos, que emitissem um parecer aplicável. Um dos seus biógrafos afirma que Abu Hanifa (m. em 150 da H.) promulgou meio milhão de regras (ver Almuwaffak, 11, 137). Málik, em Ma-dina, e Al-Auza'i, na Síria, empreenderam, ao mesmo tempo, um trabalho semelhante, porém eles dependiam apenas do seu próprio conhecimento e dos seus recursos pessoais. Se Abu Hanifa enfatizava a racionalização - in-dependentemente do recurso ao Alcorão e às tradições, como bases da lei -, Málik preferia espelhar-se na população de Madina - cidade impregnada pelas tradições do Profeta -, para emitir as suas interpretações dedutivas ou lógicas. 115 O Alcorão foi "publicado", apenas alguns meses após a morte do Profeta. A tarefa de coligir os ditados e atos do Profeta, bem como os exemplos de sua aprovação tácita da conduta de seus companheiros - material esse que é chamado de tradições -, foi empreendida por algumas pessoas, estando ainda vivo o Profeta, e posteriormente, após a sua morte, por muitas outras. Mais de cem mil companheiros do Profeta deixaram valiosas tradições para a posteridade, baseadas em tudo do que se pudessem lembrar sobre o assunto. Alguns transcreviam essas recordações e outros as transmitiam oralmente. Esse material, de grande valor legislativo, estava naturalmente disperso pelos três continentes, onde os companheiros do Profeta se tinham domiciliado, no tempo dos califas Omar e Otman. Nas gerações que se seguiram, os pesquisadores compilaram tratados, inclusive mais abrangentes, baseados no amálgama de coleções de memórias pessoais, dos companheiros do Profeta. A avaliação da lei casuística e a codificação das tradições foram completadas, como obras paralelas, na mesma época, porém uma ignorava e colocava em suspeição a outra. Ach-Cháfi'i nasceu no ano em que Abu Hanifa morreu. As diferenças mútuas ou polêmicas, levaram os juristas a buscar um conhecimento mais profundo das tradições, e os especialistas em tradições a catalogar os dados sobre os ditados e atos do Profeta, a avaliar os méritos individuais da sua transmissão, e a determinar o contexto e a época dos ditos do Profeta, para deduzir o seu conteúdo legal. Ach-Cháfi'i especializou-se, simultaneamente, em direito e nas tradições, e graças às suas elevadas qualidades intelectuais e à sua diligência, foi possível descobrir uma síntese entre as duas disciplinas. Ach-Cháfi'i foi o primeiro, na história mundial, a criar uma ciência abstrata do direito, distinguindo-a das leis, no sentido estrito das regras aplicadas em um país. Outra grande escola (ou tradição) de direito foi fundada por Jaafar As-Sádik, descendente de 'Ali e contemporâneo de Abu Hanifa. A evolução do direito de herança, nessa escola, de um modo especial, deveu-se mais a razões de caráter político. Abu Hanifa, Málik, Ach-Cháfi'i, Jaafar As-Sádik e diversos outros juristas, deixaram, cada um, a sua própria escola de direito. Os seguidores dessas escolas formam sub-comunidades do Islam, nos tempos atuais; porém, as diferenças que existem entre elas, têm menos influência ainda que as que existem entre as escolas filosóficas. Com a passagem dos séculos, tornou-se uma experiência comum constatar que alguns chafi’itas divergem de Cháfi’i em certos pontos da lei, concordando sobre estes com Málik ou com Abu Hanifa, e vice-versa. 116 Como acabamos de ver, o Império Muçulmano se estendeu, desde logo, por imensos territórios, que eram anteriormente governados por diferentes sistemas legais, como por exemplo, o iraniano, o chinês, o hindu, o bizantino, o godo e outros, e a estes foram acrescentadas as contribuições locais dos primeiros muçulmanos da Arábia. A possibilidade de qualquer sistema legal estrangeiro, em especial, ter o monopólio de influenciar o direito muçulmano está, portanto, excluída. Entre os fundadores das escolas, também constatamos que Abu Hanifa era de origem persa e Málik, AchCháfTi e Jaafar As-Sádik eram árabes. O biógrafo Ad-Dhahabi relata que Al-Auza'i era originário do Sind; e, nas gerações subseqüentes, surgiram juristas muçulmanos em todos os povos. O desenvolvimento do direito muçulmano foi, portanto, um empreendimento "internacional", do qual participaram juristas muçulmanos de variadas origens étnicas, falando idiomas diferentes e seguindo costumes diferentes. É um fenômeno, constatado em todos os países, que certos chauvinistas, e aqueles que carecem de um pensamento independente, desejam sacrificar o espírito ao pé da letra dos ensinamentos de um mestre antigo, enquanto outros se aventuram no inconformismo. São os meio-termos que, entretanto, devem prevalecer! Um espírito sem complexo de inferioridade, mas munido das informações necessárias, e dotado, ao mesmo tempo, da devoção de um crente praticante, nunca terá dificuldade em reconhecer que a interpretação não só é prática, como razoável, a ponto de ser capaz, até, de modificar as opiniões, defendidas pelos antigos. Repare na convicção e na segurança com que o grande jurista Pazdawi nos diz que não só as opiniões pessoais, como até o consenso dos tempos antigos, podem ser modificados por um consenso moderno! Conclusão O direito muçulmano começou como a lei do Estado e da comunidade governantes, e serviu aos propósitos dessa comunidade, enquanto o domínio muçulmano cresceu, em dimensões, e se estendeu do Atlântico ao Pacífico. Ele tinha uma capacidade inerente, para se desenvolver e se adaptar às contingências do tempo e do clima. Ele não perdeu o seu dinamismo, nem mesmo nos dias atuais; na realidade, está recebendo um reconhecimento, cada vez maior, como força ativa para o bem, dos países muçulmanos que estavam, antes, sob o domínio político estrangeiro - e conseqüentemente, jurídico -, e que atualmente estão tentando reintroduzir a Chari'a em todas as atividades da vida. 117 O Sistema Econômico do Islam O Islam proporciona orientação a todos os seus seguidores, em todas as atividades da vida, nos assuntos, tanto materiais quanto espirituais, e seus ensinamentos básicos, quanto à economia, são citados em diversos trechos do Alcorão. Longe de desprezar o bem-estar material, ele ordena: Não te esqueças da tua porção neste mundo. (28a Surata, versículo 77) Enfatiza, entretanto, a composição dual do homem, lembrando: Entre os humanos, há aqueles que dizem: 'Ó Senhor nosso, concede-nos nosso bem-estar terreno!' Porém, não participarão da ventura da outra vida. Outros dizem: 'Ó Senhor nosso, concede-nos a graça deste mundo e do futuro e preserva-nos do tormento infernal!' Estes, sim, lograrão a porção que tiverem merecido, porque Deus é Destro em ajustar contas. (2a Surata, versículo 200-202) Em outros versículos, encontramos afirmações claras e categóricas de que tudo o que se encontra sobre a terra foi criado por Deus para beneficiar o homem; ou de que tudo o que está na terra, nos céus, no oceano, nas estrelas e além, foi feito por Deus para servir ao homem. Resta ao homem conhecer e saber aproveitar a criação de Deus, e beneficiar-se, de maneira racional, dando ao futuro a sua devida importância. A política econômica do Islam também foi explicada no Alcorão, nos seguintes termos: ...para que (as riquezas) não sejam monopolizadas pelos opulentos, entre vós. (59a Surata, versículo 7) É com base neste princípio fundamental, que o Islam vem construindo o seu sistema econômico. Por um lado, ele estabelece a distinção entre o mínimo necessário e a fartura desejável, e por outro lado, entre os mandamentos e injunções, que são acompanhados por sanções materiais, e aqueles que não o são, mas que, para o cumprimento dos quais, o Islam se satisfaz tão-somente com a persuasão e a educação. Descreveremos, primeiro, e em poucas palavras, este aspecto moral. Alguns exemplos nos ajudariam a compreender melhor as implicações contidas nele. Os termos mais enérgicos têm sido empregados, pelo Islam, para demonstrar que é abominável pedir esmolas aos outros, e que isto seria motivo de verg118 onha no dia do Juízo Final; entretanto, ao mesmo tempo, este sistema dedica louvores ilimitados àqueles que ajudam os outros, dizendo serem melhores os homens que se dispõem ao próprio sacrifício, em benefício de outrem, do que de si mesmos. E também a avareza e o desperdício são proibidos. Certo dia, o Profeta do Islam precisou de recursos consideráveis para uma causa pública qualquer. Um dos seus amigos trouxe-lhe determinada soma, oferecendo-a como contribuição e, à pergunta feita pelo Profeta, ele respondeu: "Não deixei em casa, senão o amor a Deus e ao Seu Mensageiro." Esta pessoa mereceu os maiores elogios do Profeta. Já em outra ocasião, outro companheiro seu, que se encontrava seriamente doente, disse-lhe, quando ele veio saber da sua saúde: "Ó Mensageiro de Deus! Sou um homem rico, e desejo doar tudo o que possuo, para o bem-estar dos pobres." O Profeta lhe respondeu: "Não! É melhor que deixes os teus parentes em condições de viver independentes do que eles se vejam obrigados a depender dos outros ou a esmolar." Mesmo diante da redução da pretendida doação para dois terços ou metade, o Profeta disse: "Isto é demais." Quando lhe foi submetida a proposta de ser doado um terço das posses para a caridade, ele disse: "Bem, até um terço é muita coisa." Outra vez, o Profeta viu um dos seus companheiros vestindo-se miseravelmente. Perguntado, este respondeu: "Ó Mensageiro de Deus! Eu não sou realmente tão pobre; só que prefiro gastar a minha riqueza com os pobres, mais do que comigo mesmo." O Profeta retrucou: "Não. Deus gosta de perceber, nos Seus servos, traços das dádivas que Ele lhes concedeu!" Não há nenhuma contradição nessas diretrizes; cada uma tem o seu próprio contexto e se refere a casos individuais, distintos um do outro. Esses exemplos nos permitem estabelecer limites para que excede o mínimo obrigatório em proporção aos outros membros da sociedade. Herança Tanto o direito individual de dispor da própria riqueza, quanto o direito coletivo, de todo aquele que é membro da sociedade, têm de ser preenchidos, ao mesmo tempo. Os temperamentos individuais diferem sobremaneira. A doença, ou outros acidentes, também pode afetar despropositadamente o homem. Portanto, é necessário exercer certa disciplina a esse respeito, em benefício da coletividade. Diante disso, o Islam tomou duas resoluções: primeiramente, a obrigatoriedade da distribuição dos bens, de alguém falecido, entre os seus parentes próximos; e, em segundo lugar, a restrição da liberdade de doação, através de testamentos e heranças. Os herdeiros legais não precisam de quaisquer disposições 119 testamentárias, herdando a propriedade do falecido, nas proporções previstas pela lei. O testamento só é necessário, em favor daqueles que não têm nenhum direito natural à herança daquela pessoa. Existe uma igualdade entre os pais de uma mesma categoria, e ninguém pode dar a um filho (mais velho ou mais novo), mais do que ao outro, seja ele maior ou menor (de idade). O primeiro ônus, que incide sobre a propriedade, deixada por alguém que morre, são as despesas funerárias. O que sobra vai, então para os seus credores, já que a dívida tem prioridade sobre os "direitos" dos herdeiros. Em terceiro lugar, o seu testamento é executado, na medida e extensão em que não passar de um terço de toda a propriedade disponível (após o enterro e o pagamento de dívidas). Somente depois de satisfazer essas obrigações primordiais, é que são então considerados os herdeiros. O parceiro (homem ou mulher) da vida em comum, os pais, os descendentes (filhos e filhas) são os herdeiros naturais, e herdam em todos os casos. Irmãos e irmãs, e outros parentes mais remotos, herdam, somente, quando não há parentes mais próximos. Entre esses parentes mais remotos, contam-se os tios, tias, primos, sobrinhos e outros. Sem entrar em detalhes técnicos, certas regras básicas podem ser descritas. Um homicida é excluído da herança da sua vítima, mesmo se o tribunal decidir que tenha sido um caso de morte por acidente involuntário. A idéia subliminar parece ser a de evitar qualquer tentação de se matar um parente rico para usufruir mais cedo da herança. O Profeta também proibiu a herança entre parentes de religiões diferentes, mesmo em se tratando de marido e mulher. Entretanto, o direito de testamento pode ser invocado, neste caso: o marido muçulmano, por exemplo, poderá, ao se ver moribundo, doar uma parte da sua propriedade para a sua mulher não-muçulmana. Com base nas condições políticas e internacionais que prevaleciam no seu tempo, os juristas muçulmanos instituíram ainda outro obstáculo, ou seja, a diferença territorial (isto é, nacionalidade política), como motivo de exclusão da partilha. Evidentemente, os tratados podem regular a questão do direito internacional privado, num sentido contraditório, com base na reciprocidade. Nos países onde a lei islâmica de herança não é aplicada pelos governos, e, no entanto se reconhece o direito testamentário, os cidadãos muçulmanos podem, e devem, utilizar esse recurso, para cumprir o seu dever religioso, com relação à disposição das suas posses, após a sua morte. 120 Testamentos Acabamos de mencionar que o direito testamentário torna válidas as doações, somente quando não ultrapassem o limite de um terço das posses, em favor das pessoas que não sejam, nem credores, nem herdeiros naturais. O objetivo desta regra parece ter duplo sentido: primeiro, o de permitir que um indivíduo concilie as coisas quando, nos casos extraordinários, a regra geral traz problemas, e quando um terço das suas posses é suficiente para o cumprimento de tais deveres morais. O outro motivo da lei dos testamentos é o de evitar a acumulação de riquezas, nas mãos de uns poucos, coisa que aconteceria, se déssemos, por herança, a uma só pessoa, toda a nossa propriedade, excluindo totalmente os outros parentes próximos. O Islam deseja a distribuição das riquezas entre o maior número de pessoas possível, sem deixar de levar em conta os interesses da família. Bens Públicos Também temos obrigações, como membros de uma família maior ainda do que a nossa, ou seja, a sociedade e o Estado em que vivemos. Na esfera econômica, pagarmos impostos, os quais o governo redistribui, no interesse da coletividade. A proporção dos impostos varia, de acordo com os vários tipos de fonte de renda, e é interessante observar que o Alcorão, que determina diretrizes precisas, com relação aos gastos orçamentários, não pronunciou regras ou valores a respeito da receita do Estado. Respeitando escrupulosamente o que o Profeta e os seus sucessores imediatos praticaram, esse silêncio do Alcorão pode ser interpretado como a concessão do uso de critério lato, pelo governo, na fixação das receitas, de acordo com as circunstâncias, desde que no interesse do povo. No tempo do Profeta, existiam impostos agrícolas, e os camponeses entregavam a décima parte das suas colheitas, desde que isto fosse além de um mínimo isento. No comércio e na exploração de minas, recolhia-se dois e meio por cento do valor dos produtos. Quanto ao imposto de importação, cobrado aos caravaneiros estrangeiros, existe um fato interessante, que vale a pena comentar com destaque. No tempo do Profeta, os caravaneiros deviam pagar um dízimo, a título de taxa alfandegária; o Califa Omar, reduziu esta taxa pela metade para os estrangeiros, sobre determinadas categorias de provisões, importadas por Madina. Este precedente sentencioso, traz à luz os princípios essenciais da política fiscal do Islam. No tempo do Profeta, havia impostos sobre caravanas 121 de camelos, redís de ovelhas e rebanhos de cabras e reses, desde que esses fossem alimentados nos pastos públicos e excedessem em número, o mínimo, que era isento. A isenção era concedida, também, às bestas de carga, e às que eram emprega das na aragem e na irrigação. Existia uma taxa de dois e meio por cento sobre poupanças e sobre prata e ouro. Isto obrigava as pessoas a empregar as suas riquezas, para aumentá-las, evitando que as entesourassem inutilmente. Gastos Estatais O Alcorão estabeleceu os princípios reguladores do orçamento dos gastos do Estado no Islam, nos seguintes termos: Os tributos são tão-somente para os pobres, para os necessitados, para os funcionários, empregados na sua administração, para aqueles, cujos corações têm de ser conquistados, para a redenção dos escravos, para os endividados, para a causa de Deus e para o viandante; isto é um preceito, emanado de Deus, porque Deus é Sapiente, Prudentíssimo. (9a Surata, versículo 60) Estas oito categorias de despesas, que cobrem praticamente todas as necessidades de uma coletividade, precisam ser elucidados, para tornar possível a compreensão do âmbito e do alcance exatos da sua aplicação. O termo sadacát, que traduzimos por tributos, ou o imposto prescrito pelo Estado aos muçulmanos, é sinônimo de zakat, e representa todos os impostos e taxas, pagos pelos muçulmanos ao seu governo, em tempos normais, quer seja sobre a produção agrícola, a mineração, o comércio, a indústria, a pastagem de animais, poupanças ou quaisquer outras fontes. Estão excluídas as taxas provisórias, que são impostas em tempos anormais, os impostos cobrados aos não-muçulmanos - súditos ou estrangeiros -, bem como todas as contribuições não-compulsórias. A literatura contemporânea, e principalmente os ditos do Profeta, não deixam dúvida de que era neste sentido que se empregava o termo sadacát. Ele não se referia às esmolas, que não podem, nem ser compulsórias, nem ter valor prefixado ou ocasião determinada para serem pagas. A expressão que se refere à esmola é infakfi sabil allah, e significa despesa na causa de Deus. As primeiras duas categorias, a dos pobres (fuçará') e a dos necessitados (masaldri), que são quase sinônimas, não foram explicadas pelo Profeta; daí existir uma divergência de opinião a respeito delas. De acordo com o que o Califa ornar dizia e praticava, os "fuçará" são os pobres, entre os muçulmanos, 122 e os masakin o são, entre os não-muçulmanos, residentes em território islâmico, tais como os judeus, os cristãos, etc. O jurista Ach-Cháfi'i pensava que os dois termos eram absolutamente sinônimos, e que Deus, na Sua bondade, nomeara-os duas vezes, para deixar uma provisão redobrada. De acordo com essa interpretação, uma vez que cada uma das oito categorias, descritas no versículo alcorânico, deveria receber um oitavo da receita do Estado, os pobres receberiam duas oitavas partes. Seja como for, o primeiro dever do Estado é o de assegurar que nenhum habitante, em solo islâmico, careça de meios de subsistência: alimento, roupa, moradia, etc. O item seguinte diz respeito aos salários dos funcionários: coletores, contadores, controladores da despesa, auditores, etc. Na verdade, esta categoria compreende a administração toda, civil, militar e diplomática, como se pode ver na descrição das categorias dos beneficiários. O historiador al-Baladhuri (em seu Al-Amab), preservou um documento, no qual o Califa ornar exige, do seu governador na Síria, que: "Manda-nos (a Madi-na) um grego qualificado, para que ele possa pôr em ordem a contabilidade das nossas receitas". Não precisamos de autoridade melhor do que esta, para afirmar que os não-muçulmanos, não só podiam ser empregados na administração do Estado muçulmano, como também podiam ser beneficiados pelos sadacát, impostos exclusivamente aos muçulmanos. A categoria daqueles "cujos corações têm de ser conquistados", pode ser mais facilmente entendida, aplicando-se-lhe o termo moderno de “serviço secreto." O jurista Abu-Ya'la al-Farra', diz: "Quanto àqueles, cujos corações têm de ser conquistados, há quatro tipos: (1) aqueles cujos corações têm de ser conquistados, por virem ajudar os muçulmanos; (2) ou por se absterem de causar danos aos muçulmanos; (3) para convidá-los a converterem-se ao Islam; e (4) para convidar, por intermédio deles, os seus clãs e famílias, a se converterem ao Islam. E admissível, legalmente, ter despesas com todos e com cada um, quer se trate de muçulmanos ou de politeístas." A expressão fir ricáb "libertar o pescoço", tem sido sempre entendida como compreendendo dois tipos de despesa: com a libertação de escravos e com o pagamento de resgates de prisioneiros de guerra, das mãos do inimigo. De acordo com a lei islâmica, todo o escravo tem o direito de adquirir a sua emancipação, pagando o valor desta ao seu senhor; e para que ele ganhe o montante necessário, pode exigir que o seu senhor lhe forneça meios para trabalhar, e que, durante tal período, ele não tenha que o servir; além disso, como já vimos, é dever do governo alocar, todo o ano, como parte do orçamento, uma 123 determinada soma, para ajudar os escravos a adquirirem a sua liberdade. Um documento do Califa ornar Ibn 'Abdel Aziz, da dinastia omíada, diz que o pagamento dos resgastes, por parte do governo muçulmano, inclui a libertação, até, de súditos não-muçulmanos, que tenham sido aprisionados pelo inimigo. A categoria daqueles que estão pesadamente endividados tem, de acordo com o costume dos tempos clássicos, toda uma série de aplicações: ajudava-se os que sofriam calamidades, tais como enchentes, terremotos, etc. Ela não se refere aos pobres, que já foram mencionados no começo do versículo, e sim aos que estavam bem de vida e vieram a ser prejudicados por condições anormais, de força maior. O Califa ornar estabeleceu uma seção especial do Tesouro Público, destinada a emprestar dinheiro, isento de juros, àqueles que tivessem necessidades temporárias e dessem as garantias necessárias de reembolso. O próprio califa recorria a este meio para atender às suas necessidades particulares. Vale dizer que a "nacionalização" do financiamento sem juros, foi uni favor concomitante, necessário, diante da proibição da cobrança de juros, pelo Islam. O mesmo califa costumava emprestar dinheiro até aos mercadores, por prazos fixos, e o Tesouro participava, com eles, em um percentual do ganho comercial que auferiam, participando não somente dos ganhos, mas também das perdas, se as houvesse. Outra aplicação dos gastos estatais era uma espécie de seguro social. Se alguém fosse condenado, por homicídio involuntário, e não tivesse condições de pagar a indenização, ou dinheiro de sangue, exigido por lei, com os seus próprios meios, o governo ajudava-o, deste fundo, como se evidenciou em diversos casos, praticados pelo Profeta. Voltaremos a isto novamente, mais adiante, com maiores detalhes. A expressão "para a causa de Deus", na terminologia islâmica, significa, em primeira instância, a defesa militar e o gasto com pessoal, equipamento, etc. Mas o termo se aplica, na realidade, a todo o tipo de obras de caridade, tais como ajuda aos estudantes, doações e ajuda a causas religiosas, como a construção de mesquitas, etc. A última categoria diz respeito às comunicações e ao trânsito turístico, em sentido lato: a construção de pontes, estradas, hotéis, restaurantes, a segurança das rotas (incluindo o policiamento), serviços de higiene, transporte de viajantes, e todos os confortos, proporcionados a estrangeiros, no decurso das suas viagens, tais como a concessão do hospitalidade a estes, sem ônus, e na proporção dos recursos existentes. Antigamente, essa hospitalidade era garantida por três dias, em cada lugar de permanência. 124 Para que se possa apreciar o mérito dessas disposições, devemos nos lembrar de que foram instituídas no início do Islam, há catorze séculos atrás. Não há muito que se acrescentar a estas categorias de gastos. Parecem ser aplicáveis aos nossos próprios tempos, em um Estado progressivo e voltado para o bem-estar da sua população. Impostos Excepcionais As-Sadacát eram o único tributo do Estado, no tempo do Profeta e dos califas ortodoxos. Mais tarde, em ocasiões de grande e extraordinária necessidade, os juristas admitiram a possibilidade legal de impor tributos suplementares, desde que em caráter estritamente provisório, para possíveis emergências. Tais tributos são chamados nawa'ib (calamidades). Previdência Social Somente os riscos que envolvem grandes valores são objeto de seguros, e estes variam de acordo com os tempos e com as condições sociais. Entre os árabes, do princípio do Islam, as agruras cotidianas eram desconhecidas, e o tratamento médico não custava praticamente nada; o homem comum construía a sua casa com as suas próprias mãos, e não pagava nem mesmo a maior parte do material usado. Assim, é fácil entender porque não existia qualquer necessidade de seguros contra doenças, incêndios, etc. Pelo contrário, os seguros, que eram uma necessidade real, eram aqueles contra o cativeiro e contra o assassinato. Já nos tempos do Profeta este ponto havia merecido atenção, e certas disposições foram providenciadas, com certa elasticidade, para desenvolvê-lo mais e adaptá-lo às circunstâncias que sobreviessem. Assim, na Constituição da Cidade-Estado de Madina, no primeiro ano da Hégira, este seguro se chamou de ma'aquil, e funcionava da seguinte maneira: se alguém fosse feito prisioneiro de guerra por um inimigo, era necessário pagar-se o resgate, para comprar a sua libertação. Do mesmo modo, os danos físicos e os homicídios culposos exigiam o pagamento dos prejuízos, ou dinheiro de sangue. Isto, freqüentemente, excedia os recursos do indivíduo envolvido, fosse ele o prisioneiro ou o criminoso. O Profeta instituiu um seguro, em bases de mutualidade, com o qual os membros de uma tribo podiam contar, e que era mantido no erário central da tribo, para o qual todos contribuíam, de acordo com as suas posses; e se o erário da tribo fosse insuficiente, outras tribos, ligadas ou vizinhas, tinham a obrigação de prestar ajuda. Foi instituída uma hierarquia, para a integração das unidades num todo. Em Madina, as tribos dos Ansar eram bem conhecidas; o Profeta tinha mandado os refugiados de Makka para lá, fossem eles de origem 125 de Makka ou da Abissínia, ou árabes, que vinham de diferentes regiões, e que assim passaram a fazer parte de uma nova "tribo", só deles, especialmente com relação ao referido seguro social. Mais tarde, no tempo do Califa Umar, os fundos mútuos, ou unidades de seguro, foram organizados, de acordo com as profissões, serviços administrativos ou militares a que pertencessem, ou até por regiões. Sempre que necessário, o governo central ou o da província vinha em socorro dessas unidades, como já descrevemos acima, quando falamos nos gastos do Estado. O seguro significa, essencialmente, a partilha da carga que onera um indivíduo, entre tantos quantos possível, a fim de tornar mais leve a carga de cada um. Ao invés das empresas capitalistas de seguros, o Islam preferiu organizar o seguro, com base no sistema mutuário e cooperativo, facilitado por uma graduação das unidades, e culminando num governo central. Uma unidade dessas podia empreender o comércio, com a ajuda dos fundos, não-utilizados, que estivessem ao seu dispor, para que o capital fosse, assim, aumentado. Viria um tempo em que os membros de uma unidade poderiam ser totalmente liberados de continuar a contribuir, podendo até chegar a receber partes do lucro do comércio. Vale dizer que estas unidades de ajuda mútua podiam segurar o indivíduo contra qualquer risco, tais como acidentes de trânsito, fogo, prejuízos em trânsito, e assim por diante. Também vale dizer que o negócio de seguros é passível da "nacionalização" para todos os tipos de riscos, como por exemplo, para as coberturas temporárias, na expedição de encomendas, etc. Sem nos determos em detalhes técnicos, pode-se ressaltar que os seguros, do tipo capitalista, em que o segurado não participa dos lucros da empresa, na proporção correspondente às suas contribuições, não são tolerados no Islam. Pois, tal forma de seguro, constitui uma espécie de jogo de azar. De passagem, poderíamos mencionar um outro tipo de instituição social, do tempo do Califa ornar. Ele tinha organizado um sistema de penNionato para todos os habitantes do país - e de acordo com o Ar-Rissala Al-Otmaniya, de alJáhiz, até os súditos não-muçulmanos estavam incluídos entre os beneficiários de tais pensões -, a tal ponto que, tão logo nascesse uma criança, o progenitor começava a receber uma determinada pensão. Os adultos recebiam o mínimo necessário para sobreviver. No começo, o califa praticava uma certa discriminação entre as diferentes categorias de pensionistas, e se o mínimo estava estabelecido em l, a pessoa mais favorecida recebia 40; porém, mais para o final da sua vida, ele decidiu promover uma igualdade total, mas acabou morrendo, antes que tal reforma fosse introduzida. 126 Jogos de Azar Ao proibi-los, o Alcorão os definiu como manobras de Satanás e o fez por razões convincentes. Reconhece-se que a maioria dos males sociais emana da má distribuição da riqueza nacional, la/endo com que alguns indivíduos sejam ricos demais, e outros pobres demais, o que resulta em que eles se deixem explorar pelos ricos. Nos jogos de azar e nas loterias, é grande a tentação dos ganhos rápidos e fáceis, e, na maioria das vezes, um ganho fácil é prejudicial para a sociedade. Supondo-se que nas corridas - de cavalos ou outras - e nas loterias, públicas ou particulares, assim como em outros jogos de azar, as pessoas, num país qualquer, gastem 3 milhões de unidades de moedas por semana - como é o caso de certos países -, no final de dez anos, apenas, terá sido recolhido um montante de 1.560 milhões de unidades de moedas, de um grande número de habitantes, e distribuído a um número ridiculamente pequeno. Menos de um por cento das pessoas é contemplada, às custas dos outros 99 por cento. Não importa se os jogos de azar, incluídas as loterias, são nacionalizados ou não; o mal de se acumular a riqueza nas mãos de uns poucos, às custas de uma enorme maioria, opera com força integral. Eis o porquê da proibição dos jogos de azar e das loterias, no Islam. Tal e qual os seguros capitalistas, os jogos de azar implicam riscos unilaterais. Juros sobre Empréstimos É provável que não exista nenhuma religião, no mundo, que não tenha proibido a usura. O que distingue o Islam é que ele não somente proibiu este tipo de ganho, mas também remediou as causas, que levam à existência dessa instituição ilícita, na sociedade humana. Ninguém paga juros por dinheiro emprestado de bom grado; a pessoa o faz, somente, porque precisa de dinheiro, e descobre que não o pode conseguir sem pagar juros. O Islam criou uma distinção, muito clara, entre o lucro comercial e o juro sobre empréstimos de dinheiro. Diz o Alcorão: ... Deus permite o comércio e veda a usura... (2a Surata, versículo 275) Mais adiante um pouco, diz ainda: Mas, se tal não acatais, esperai a hostilidade de Deus e do Seu Mensageiro; porém, se vos arrependerdes, reavereis apenas o vosso capital. Não defraudeis e não sereis defraudados. (2a Surata, versículo 279) 127 O fundamento da proibição do juro é, também, o de ser ele um risco unilateral. Se tomarmos emprestado um certo valor, para obter, com ele um lucro, é possível que as circunstâncias venham a não ser suficientemente propícias para ganhar o bastante para cobrir os juros prometidos, sem que o financiador tenha participado dos riscos da aplicação. Não é possível compelir um indivíduo a privar-se do seu próprio dinheiro, para que o empreste a outros, de graça e sem juros. Já ressaltamos que o Islam ordenou que um dos encargos da receita do Estado é a obrigação de ajudar aqueles que estão pesadamente endividados. Conseqüentemente, o Tesouro Público proporciona empréstimos, livres de juros, sem acréscimo, ou para suplementar os empréstimos que são oferecidos por homens ou entidades caridosos, para ajudar aqueles que deles necessitam. O princípio é o da ajuda mútua e da cooperação. No caso dos empréstimos comerciais, existe também o sistema de mudháraba, pelo qual empresta-se o dinheiro, participando igualmente dos ganhos e dos riscos. Se, por exemplo, dois indivíduos formam uma empresa, cada um fornecendo metade do capital e do trabalho, a distribuição do lucro não é complicada. Entretanto, se o capital vem de um e o trabalho do outro, ou se os dois fornecem capital, apesar de somente um deles trabalhar, ou se as proporções de participação dos sócios não são iguais, nesses casos, a remuneração razoável pelo trabalho, com base em condições previamente acordadas, é considerada, antes da distribuição dos ganhos e dos lucros ser feita. É claro que todos os cuidados possíveis são envidados, para se proteger dos riscos, porém, o Islam exige que, em todas as participações contratuais, ambas as partes contratantes participem, tanto dos lucros, quanto dos prejuízos. No que diz respeito aos bancos, as suas atividades são, basicamente, de três tipos: remeter valores de um lugar para o outro, proporcionar a segurança das economias dos clientes, e o empréstimo de dinheiro a terceiros, por conta de lucros. As despesas de funcionamento são rateadas entre aqueles que se servem dos serviços dos bancos. Resta a questão dos empréstimos ao comércio, à indústria ou a qualquer outro tipo de negócio. Se o banco participa dos lucros dos seus devedores, tanto quanto de todos os seus riscos, o Islam permite o exercício de tais atividades bancárias; em caso contrário, não. A confiança nasce da confiança. Se o banco de poupança de um governo declarar, no fim do ano, e não no começo, que está em condições de distribui tal e tal percentual dos lucros aos seus clientes, não somente ele será consid128 erado legítimo, no Islam, mas o público também não hesitará em depositar as suas economias nos bancos do governo, apesar do silêncio inicial, quanto ao valor do lucro esperado. É de se supor que exista confiança na administração pública. Para resumir, o princípio da participação mútua, nos lucros, deve ser observado, em todos os contratos comerciais. Estatisticas Em todo o planejamento, é necessário ter-se uma idéia dos recursos disponiveis. O Profeta organizou o censo da população muçulmana, como nos informa al-Bukhari. No califado de Omar, o censo dos animais, das arvores frutíferas e de outros produtos foi instituído; e, nas províncias que viessem a ser adquiridas, eram medidas as terras cultiváveis. Com um espírito benigno, e com preocupação pelo bem-estar do público, o Califa Omar tinha o costume de convidar representantes do povo, das diversas províncias, após a coleta dos impostos, para saber se eles tinham alguma queixa contra o comportamento dos seus coletores, naquele ano. A Vida Diária Podemos terminar este breve esboço, mencionando duas proibições de considerável importância, que formam, na realidade, facetas características da vida diária de um muçulmano, a dos jogos de azar e a das bebidas alcoólicas. Tivemos oportunidade de discutir os jogos de azar, nos quais se costuma gastar constantemente, por muitos anos, às vezes sem conseguir nada de volta. Que prejuízo, para aqueles que são economicamente fracos! O uso do álcool tem a peculiaridade de que o seu consumo, em uma quantidade pequena, nos faz ficar alegres e nos reduz a decisão de não beber mais; e, quando findamos por ficar embriagados, não temos mais nenhum controle sobre os nossos atos. Nesse estado, podemos desperdiçar dinheiro, sem perceber o que fazemos. A estes males se acrescentam os efeitos anti-higiênicos das bebidas alcoólicas. Um dos versículos alcorânicos fala disto, em termos interessantes: Interrogar-te-ão acerca da bebida inebriante e do jogo de azar; dize-lhes: 'Em ambos radicam-se benefícios e malefícios para o homem; porém, os seus malefícios são maiores do que os seus benefícios. (2a Surata, versículo 219) O Alcorão não nega que existem certos benefícios, no uso do álcool, mas o declara um pecado contra a sociedade, contra o próprio indivíduo, e, é claro, contra o Legislador. 129 Em outro versículo ele relega estes atos ao mesmo nível da idolatria, e os declara obras de Sa-tanás; e acrescenta que, se quisermos ser felizes em ambos os mundos, deveremos nos abster dos jogos de azar e das bebidas alcoólicas. A Mulher Muçulmana Quando estudamos os principais direitos e obrigações das mulheres, no Islam, é necessário ressaltar, ainda no início, que, apesar da capacidade de readaptação e desenvolvimento da lei muçulmana às circunstâncias, não haverá qualquer dúvida em se reconhecer a extrema liberdade de que as mulheres desfrutam atualmente, de fato e de direito, em certos setores da vida social, tanto nas áreas de influência capitalista, como nas de influência comunista. O Islam exige que a mulher permaneça um ser razoável. Ele não espera que ela seja nenhum anjo, nem demônio. "O meio-termo é o melhor," dizia o Profeta Muhammad. Se quisermos comparar ou contrastar a sua posição no Islam, com a que ela tem em outras civilizações ou sistemas jurídicos, devemos levar em conta todos os aspectos, e não apenas os costumes isolados. Na realidade, em relação a determinados aspectos da moral, o Islam é mais rígido e mais puritano do que outros sistemas de vida dos nossos tempos. Generalidades A posição da mãe é bastante exaltada, na tradição islâmica. O Profeta Muhammad chegou ao ponto de dizer: "O Paraíso repousa aos pés das vossas mães". E Al-Bukhari relata: "Alguém perguntou ao Profeta qual era a obra que mais agradava a Deus. Ele respondeu: 'O culto de oração nas certas'. E quando lhe perguntaram: 'E depois disso?', o Profeta respondeu: 'Ser generoso com o seu pai e a sua mãe'. O Alcorão se refere a isto com freqüência, recordando ao homem que ele deve sempre ter em mente o de que foi sua mãe que o carregou no ventre, sofreu por sua causa e o criou, à custa de todo o tipo de sacrifícios. No que diz respeito à mulher como esposa, é bem conhecido o que o Profeta disse: "Os melhores, dentre vós, são aqueles que tratam melhor as esposas." Em seu inesquecível Sermão de Despedida, pronunciado por ocasião da última peregrinação, o Profeta falou longamente sobre a mulher, dizendo em especial: "Ó humanos, em verdade, vossas mulheres têm direitos sobre vós como vós tendes direitos sobre elas. Quanto aos seus deveres para convosco, é que não permitam que os vossos leitos sejam maculados, nem permitam que entrem em vossas casas aqueles que não vos agradam, sem a vossa permissão deven130 do evitar a imodéstia. Se fizerem tais coisas, Deus vos permite repreendê-las, em primeiro lugar, evitar relações sexuais com elas (por algum tempo), em segundo, castigá-las, em terceiro, sem, contudo causar-lhes ferimentos. Se elas se abstiverem disso e vos forem obedientes, então é vosso dever alimentá-las e vesti-las, de acordo com os bons costumes. Tratai bem as vossas mulheres e sede bondosos para com elas, pois elas são as vossas companheiras e empenhadas ajudantes. Vós as tomastes como depósito de Deus, e elas foram feitas lícitas para vós, pela Palavra de Deus. Temei, pois, a Deus, no que diz respeito às mulheres! Estais notificados? Que Deus seja Testemunha!" Com relação à mulher como filha, a atitude islâmica pode ser deduzida das admoestações que o Alcorão expressa contra o comportamento pagão, pré-islâmico, por ocasião do nascimento de filhas: E atribuem filhas a Deus! Glorificado seja! E ensaiam para si somente o que desejam. Quando a algum deles é anunciado o nascimento de uma filha, seu semblante se ensombrece e fica angustiado. Oculta-se do seu povo, pela má notícia que lhe foi anunciada; deixá-la-á viver, envergonhado, ou a enterrará viva? Que péssimo é o que julgam! (16a Surata, versículos 57-59) O Alcorão nos relembra, continuamente, que Deus criou todas as coisas em pares, e que, para a procriação, os sexos são igualmente indispensáveis, cada um tendo a sua função precípua. E proclama: ... aos homens lhes corresponderá a sorte a que fizerem jus; assim, também, as mulheres terão sorte igual. (4a Surata, versículo 32) A natureza não desejou uma igualdade perfeita entre os dois sexos, e sim uma distribuição das ocupações e das funções. Por exemplo, não é possível, ao homem, conceber uma criança; de modo semelhante, os atributos naturais do homem não podem ser desempenhados pela mulher. Ela têm uma constituição física mais delicada, que afeta até mesmo o peso do seu cérebro e ossos, tem gostos mais conformes com as necessidades da preservação dessa delicadeza. Mais robusto, o homem tem mais força e está, portanto, dotado para empreender os papéis mais desgastantes da vida. A cada um se dá, conforme a sua necessidade, tanto natural, como racional. Se existe uma certa desigualdade natural entre os dois sexos, em muitos outros aspectos da vida eles se assemelham. Assim, seus direitos e obrigações, também são semelhantes. De certo modo, o ensinamento islâmico, a respeito da mulher, se resume no seguinte: ela é considerada igual ao homem, em certos aspectos, mas não em outros. Isto será melhor compreendido, descrevendo-se as suas obrigações e os seus direitos. 131 As Obrigações da Mulher Em assuntos religiosos, o primeiro dever dela, tanto quanto do homem, é o de crer na unicidade de Deus, que é o único meio de salvação, na Outra Vida. Sabe-se que o Islam proibiu, formalmente, o uso da compulsão, para converter alguém ao Islam - e podemos ter em mente, aliás, que a esposa não-muçulmana, de um marido muçulmano, tem todo o direito de conservar a sua própria religião, e de praticá-la, mesmo durante o seu convívio com o marido muçulmano -, como também sabemos que, no seio da comunidade muçulmana, é imposta uma disciplina rigorosa, para a sua preservação como um todo, e para a preservação do seu sistema de vida. A aleivosia, diante disto, é penalizada como traição; e no entanto, certos precedentes, dos tempos dos califas ortodoxos, mostram que a punição aplicada, por isso, às mulheres, é bem menos severa que a aplicada aos homens. Entre os ritos religiosos, cabe às mulheres, como aos homens, a celebração das orações, apesar de haver certas concessões. Uma mulher adulta está isenta da prática das orações por vários dias, por ocasião da menstruação. Quanto ao culto das sextas-feiras, este lhe é opcional, enquanto que, para o homem, é obrigatório. O rigor dos jejuns também lhe é mais aliviado, e na ocasião do parto, etc., ela tem o direito de adiar o seu jejum do mês de Ramadan. Com relação ao Hajj (a peregrinação a Makka), também aí há certos ritos de que ela é dispensada, se estiver impedida de os realizar, por motivos próprios femininos. Para ser breve, o Islam é benevolente e circunspecto para com ela. Quanto ao último dos deveres básicos, ou seja, o do pagamento do imposto do zakat, ela está em igualdade com o homem, apesar de certas escolas de jurisprudência - a chi'ita, por exemplo – lhe fazerem certas concessões. Há, portanto, um tributo sobre as economias, porém, as economias convertidas por uma mulher em ornamentos do seu uso pessoal são isentas desse tributo. Apesar de o Islam admoestar, enfaticamente, a respeito de se manter em constante circulação a riqueza nacional, para promover o seu crescimento contínuo, e desencorajar o entesouramento, pela aplicação de um imposto, ele tem, entretanto, feito concessões, em favor das mulheres e dos seus gastos femininos. Existem, também, os deveres sociais. Com vistas à distribuição equitativa da riqueza nacional, os meios que levam ao entesouramento dos recursos, nas mãos de uns poucos, são proibidos, como é o caso dos jogos de azar e da usura. A mulher muçulmana tem tantas restrições e obrigações quanto o homem. Permanecem terminantemente proibidas as loterias e especulações em corridas, etc., por serem danosas ao equilíbrio econômico da sociedade. 132 Recordemos, agora, uma outra fonte de inúmeras infelicidades, que é o álcool. É um dever estrito de cada muçulmano se abster dele. O Alcorão o chama de obra de Satanás. Os seus males higiênicos, econômicos, morais e outros, são sobejamente conhecidos e dispensam ser descritos. As bebidas alcoólicas têm uma relação especial com a mulher: é ela que nutre o bebê, com o seu próprio sangue, e depois com o seu leite, transmitindo-lhe, assim, a sua saúde ou as suas deficiências, e por ele, às novas gerações e ao futuro da humanidade. Um dever altamente compreensível é o da moral. Se a espiritualidade é o nosso dever para com o nosso Criador, a moral tem o mesmo lugar, nas nossas relações mútuas com os nossos semelhantes. Em seu ardente desejo de atacar as raízes básicas do mal, e não apenas as suas manifestações, o Islam tem imposto, recomendado e de outras maneiras encorajado certos hábitos, que nos surpreenderiam, se não levássemos em consideração as suas profundas razões. Todas as religiões declaram que a fornicação e o adultério são criminosos, mas o Islam vai mais além, prescrevendo meios para reduzir as tentações para tanto. É fácil cogitar que cada pessoa seja capaz de desenvolver a sua moral individual, de modo a resistir a tais tentações; mas é mais sábio reduzir as oportunidades, em que as pessoas de caráter fraco - que constituem a vasta maioria da humanidade - precisem travar batalhas, em que a derrota final esta decidida de antemão. Eis como o Alcorão exorta os muçulmanos: Dize aos crentes que recatem os seus olhares e conservem os seus pudores, porque isso é mais plausível para eles; Deus está bem inteirado de tudo quanto fazem. Dize às crentes que recatem os seus olhares, conservem os seus pudores e não mostrem os seus atrativos, além dos que (normalmente) aparecem, que cubram o peito com os seus véus... (24a Surata, versículos 30-31) Em nenhum lugar se recomenda uma vida de reclusão. O único propósito do véu é diminuir as oportunidades de atração, e ele é citado, também, em outra parte do Alcorão: Ó Profeta, dize a tuas esposas, tuas filhas e às mulheres dos fiéis que (quando saírem) se cubram com as suas mantas;isso é mais conveniente, para que distingam das demais e não sejam molestadas; sabei que Deus é Indulgente,Misericordiosíssimo. (33a Surata, versículo 59) Em cada época da história islâmica, incluindo o tempo do Profeta, viam-se mulheres engajadas em todas as profissões que lhes são adequadas. Elas trabalharam como enfermeiras, mestras, e até como combatentes, ao lado dos 133 homens, quando necessário, além de terem sido cantoras, cabeleireiras, cozinheiras, etc. O califa Umar empregava uma mulher como Inspetora de Mercado, na capital (Madina). Os juristas admitem a possibilidade da nomeação de mulheres, como juízes, nos tribunais, e existem vários exemplos de tais fatos. Em resumo, longe de ser mantida como um parasita, a mulher sempre pode colaborar com os homens, na sociedade muçulmana, ganhando o seu próprio sustento e desenvolvendo os seus talentos. De acordo com o Alcorão: E entre os Seus sinais está o de vos ter criado companheiras da vossa mesma espécie, para que com elas convivais; e vos vinculou a elas, pelo amor e pela piedade. (30a Surata, versículo 21) As mulheres e os homens se complementam mutuamente: Elas são as vossas vestimentas e vós sois as delas. (2a Surata, versículo 187) Razão pela qual se devem entender em tudo; são necessárias concessões mútuas, em benefício do lar e para a melhor compreensão, no seio da família. O conselho do Alcorão ao marido, quanto ao tratamento que deve dispensar à esposa, merece ser ponderado mais profundamente: Harmonizai-vos com elas, pois se as menosprezardes podereis estar depreciando um ser que Deus dotou com muitas virtudes. (4a Surata, versículo 19) Na verdade, maior sabedoria demonstra aquele que faz as maiores concessões, principalmente se é o mais poderoso. Com o propósito do matrimônio, buscamos e preferimos a pessoa que amamos. Mas a questão do amor tem uma história melancólica, nos anais dos homens. Os motivos do amor, especialmente entre os jovens, são, no mais das vezes, fantásticos e efêmeros: uma voz doce, um modo encantador de sorrir, os olhos, a cor, o penteado, enfim, qualquer gesto passageiro dá início ao drama. E no entanto, para a verdadeira vida conjugai, isto não é suficiente. O Profeta Muhammad nos deu um conselho muito profundo, a esse respeito: "Não casem somente por causa da beleza, pois a beleza poderá vir a causar a degradação moral. Não casem, tampouco, por causa da riqueza; pois a riqueza poderá vir a ser causa de insubordinação. Casem, principalmente, com base na devoção religiosa." (Ibn Maja, n.° 895). Como a religião islâmica regula todos os domínios da vida, vale dizer que aquele que cumpre escrupulosamente todos os seus deveres religiosos é o mais apto a manter a paz no lar. Em outra ocasião, o Profeta disse: "O mundo é uma coisa passageira; e entre as coisas mundanas, nada é melhor do que uma es134 posa devotada." (idem, n.° 1855). At-Tirmidhi e An-Nissái relatam uma outra declaração do Profeta: "O crente perfeito é aquele que tem um caráter perfeito e é bondoso para com a esposa." Como acabamos de frisar, o Islam atribui uma importância especial à moral. Assim, é mister que a promiscuidade seja suprimida, por todos os meios. De acordo com o Alcorão (4a Surata, versículo 34), se tememos a imoralidade, da parte da nossa esposa, devemos, inicialmente, admoestá-la, passando a pressioná-la, pela separação dos leitos, e, finalmente, até a aplicar-lhe um castigo, desde que não seja cruel".(l). Se não houver meios de reconciliação, o divórcio - que foi caracterizado pelo Profeta como "a mais detestável, entre as coisas admissíveis"-, pode ser a solução para o problema. A obrigação de castidade é recíproca. Mais adiante, o Alcorão diz que, se uma mulher teme a imoralidade ou a indiferença, da parte do seu marido, deve tentar consertar as coisas, e, em último recurso, também ela tem o direito de exigir a separação jurídica. Os Direitos das Mulheres Os árabes pré-islâmicos davam muito menos importância à pessoa da mulher do que à do homem. Assim, se o meliante fosse um homem e a vítima uma mulher, não haveria represália. O Alcorão aboliu esta desigualdade, e os delitos contra a mulher foram postos no mesmo nível que aqueles praticados contra o homem, independente de dizerem respeito à pessoa, à propriedade ou à honra. Podemos dizer, até, que em certos casos, os direitos das mulheres são considerados mais importantes. O Alcorão decreta que, se o homem acusa a mulher de imoralidade, sem apresentar provas, ele está sujeito, não só à pena prescrita para a falsa acusação, como também a ser declarado permanentemente indigno de testemunhar, perante um tribunal (isto, além da punição divina na Outra Vida, que poderá, entretanto, ser anulada pelo arrependimento). Há também quase um consenso a respeito de que o arrependimento anula o pecado, no sentido escatológico, permanecendo constante, no entanto, a incapacidade de prestar testemunho, mesmo sendo reconhecido o arrependimento. O Alcorão parece querer purgar a sociedade dos efeitos negativos da maledicência, especialmente nos casos em que o dano é fácil de causar e difícil de remediar. A individualidade perfeita e completa da pessoa da mulher está manifestada, da maneira mais notável, no tocante à posse de propriedades. De acordo com a lei islâmica, a mulher detém um direito inalienável sobre a sua propriedade. Se ela for maior, poderá dispor da sua propriedade à vontade, sem interferência de quem quer que seja, pai, irmão, marido ou filho. Neste aspecto, não existe diferença alguma entre o homem e a mulher. A propriedade da mulher não 135 pode ser tocada, mesmo que o seu marido, ou pai, ou qualquer outro parente, tenha dívidas que excedam o seu próprio patrimônio. Do mesmo modo, essas pessoas também não podem ser responsabilizadas, se ela contrair dívidas. A mulher tem os mesmos direitos que o homem para a aquisição de propriedades. Ela pode herdá-las, recebê-las em doação ou como presente, ganhá-las, como remuneração do seu trabalho e esforço, e todos os seus bens serão exclusivamente seus. Ela é a senhora absoluta dos seus bens, para desfrutar deles, presenteá-los a quem quiser, ou dispor deles, por venda ou por qualquer outro meio legal, conforme a sua própria vontade. Todos esses direitos são inerentes à mulher; não há meios de os alienar, através de qualquer espécie de contratos, quer através do seu marido, quer através de qualquer outra pessoa que os pudesse ceder. O direito de herança requer algum esclarecimento. A mulher árabe pré-islâmica não tinha o direito de ser herdeira de ninguém, nem do pai, nem do seu próprio marido. O Profeta Muhammad não deu atenção a essa , durante os primeiros quinze anos da sua missão. Os cronistas mencionam, que, no ano 3 da Hégira, um rico dos Ansar, Aus Ibn Sábit, fale-BU, deixando uma viúva e quatro filhas impúberes. De acordo com os costumes de Madina, somente os adultos do sexo masculino, capazes de lutar numa guerra, tinham direito a herdar; nem mesmo um filho, menor de idade, tinha qualquer direito à propriedade do seu falecido pai. Desse modo, os primos de Aus tomaram posse de tudo o que ele havia deixado, fazendo com que a família ficasse indigente, da noite para o dia, privada dos meios de sobrevivência. Nesse momento, foi revelado um trecho do Alcorão, que promulgou uma lei de herança que, desde então, vem sendo aplicada pelos muçulmanos, e até mesmo por várias comunidades, tais como a dos cristãos do Oriente. De acordo com i (4a Surata, versículos 7-12 e 176), diversos parentes do sexo feminino passaram a ter direitos de herança, em especial a esposa, a filha, a mãe e a irmã. Em relação à herança, o Islam não distingue entre propriedades moveis e imóveis; todas as coisas devem ser divididas entre os herdeiros de direito. Para evitar caprichos mal-intencionados, o Islam também proibiu a doação, em testamento, de posses a estranhos, e a privação dos parentes próximos. Estes, por sua vez, não precisam nem ser mencionados no testamento, pois herdam automaticamente. Um testamento não pode diminuir ou aumentar os direitos individuais dos parentes à herança, sendo esses direitos fixados e determinados pela lei. O testamento só tem valor em beneficio de 136 "estranhos", i. é, aqueles que não têm direito natural de herdar, mente, os bens do falecido. O Islam fixou o limite máximo, que pode ser deixado em herança testamentária, que é de um terço de todos os bens, destinando-se dois terços aos parentes próximos. Um testamento que lhes i ui mais do que um terço, só será válido, se os herdeiros o aceitarem, unanimemente, no momento da distribuição da herança. A lei de herança é bastante complicada, pois as partes que correspondem aos diferentes herdeiros variam, de acordo com circunstâncias específicas individuais, se a filha for única ou se tiver um irmão, se a mãe for só ou o pai também for herdeiro, com filhos ou sem eles, tendo uma irmã única ou também um irmão, pai ou filhos do falecido. Cada um tem direitos em proporções diferentes, correspondentes a cada caso, individualmente. Não é nossa intenção descrever tais detalhes, aqui. Podemos mencionar, rapidamente, a parte que cabe às herdeiras femininas. A esposa obtém uma oitava parte, se o falecido deixar um filho; caso contrário, receberá uma quarta parte. A filha, se única, recebe metade; se forem várias filhas, receberão, ao todo, dois terços, para dividirem entre elas, em proporções iguais; isto, sempre que não haja filhos homens. Se houver filho homem, a filha recebe metade do que receberá o seu irmão. A mãe, sendo só, recebe um terço; havendo pai, filhos ou irmãos e irmãs do falecido, ela recebe uma sexta parte. A irmã não herda, se o falecido tiver deixado um filho; mas se houver somente ela, ela recebe a metade; duas ou mais irmãs recebem dois terços, para dividirem entre si, por igual. Na presença de uma filha, a irmã recebe uma sexta parte; na presença de um irmão, ela recebe a metade do que ele receber. Há também diferenças entre as partes de irmãs legítimas, irmãs consangüíneas e irmãs uterinas. Talvez seja necessário uma palavra de esclarecimento sobre a desigualdade entre uma irmã e um irmão, entre mãe e pai e entre filha e filho. Parece que o Legislador levou em consideração os direitos da mulher em sua totalidade, junto com o fato de que as leis são formuladas para os casos normais da vida, e não para situações excepcionais (que são sempre providas por meios, também, excepcionais). Já dissemos que a mulher detém os seus bens separadamente, e que sobre estes, ninguém, nem seu pai, marido, ou qualquer outro parente exerce qualquer poder. Além disso, afora esta separação dos seus direitos de proprietária, ela tem o direito à manutenção (alimentos, vestuário, moradia etc.), e o tribunal obriga o seu pai, marido etc., a cumprir com esta obrigação. A mulher também obtém do seu marido o mahr, um valor contratual que, antigamente, antes do Islam, se destinava ao pai da mulher, mas que o Islam reverteu, para o benefício exclusivo da própria mulher. Ele é um fator necessário sem o 137 qual nenhum casamento é válido. Desse modo, é evidente que a mulher tem necessidades materiais menores, a serem atendidas, do que as de um homem, cujas obrigações são maiores. Nessas condições, é fácil entender porque um homem tem direito a uma parte maior da herança do que a mulher. Devemos nos lembrar de que, apesar do fato de a mulher ter o direito de ser mantida, à custa dos outros, o Islam lhe concede um direito suplementar a bens, na forma de herança. Vale repetir que um bom relacionamento doméstico requer cooperação mútua, e a mulher também trabalha para aumentar a renda da família, ou para diminuir a despesa que se teria, se ela não trabalhasse; mas estamos falando dos direitos da mulher, e não dos costumes sociais, que podem variar de um indivíduo para outro. O conceito de manutenção é tão arraigado no Islam que, de acordo com a lei, a mulher não é obrigada, sequer, a amamentar a sua criança, sendo dever do pai da criança contratar uma ama-de-leite, no caso de a mãe se recusar a isso. Falemos, agora, do casamento, assunto que também provoca inúmeros questionamentos. O casamento, de acordo com o Islam, é um contrato bilateral, baseado no livre consentimento das duas partes contratantes. Os pais, com certeza ajudam, com os seus conselhos e experiência, na procura e na seleção do companheiro (a) para o (a) seu (sua) filho (a), mas é o casal que terá de dar a última palavra sobre o assunto. Neste sentido, não há nenhuma diferença entre o homem e a mulher, no que diz respeito à lei. Práticas ilegais podem existir, em grau maior ou menor, variando conforme a região e a classe social, mas a lei não reconhece qualquer costume que se contraponha às suas provisões, a esse respeito. É verdade que o Islam permite a poligamia, mas sobre este ponto a lei muçulmana é mais elástica e mais adequada às necessidades da sociedade do que outros sistemas jurídicos, que não admitem a poligamia, em nenhuma hipótese. Supondo-se um caso de uma mulher que tem filhos jovens, e se vê presa de uma doença crônica, tornando-se incapaz de cumprir os afazeres domésticos. O marido não tem recursos para contratar uma empregada para os realizar, o que dizer das necessidades naturais da vida conjugal? Supondo, também, que a esposa consinta ao seu marido tomar uma segunda esposa, e que haja uma mulher que concorde em casar com o individuo em questão. A´lei ocidental preferiria permitir a imoralidade ao invés de um matrimônio legal, para promover a felicidade desse lar aflito. Na realidade, a lei muçulmana está mais perto da razão, pois ela admite a poligamia, quando a própria mulher consente tal modo de vida. A lei não impõe a poligamia, permitindo-a, somente, em determinados casos. 138 Acabamos de afirmar que ela depende, unicamente, do consentimento da mulher. Isto se aplica, tanto à primeira esposa, quanto à segunda pretendida Seria desnecessário observar que a segunda mulher pode, simplesmente, recusar-se a casar com um homem que já tem uma esposa, pois já vimos que ninguém pode forçar uma mulher a contrair laços matrimoniais, sem o seu próprio consentimento. Se a mulher concorda em ser uma "co-esposa", a lei que deve ser considerada cruel e injusta para com as mulheres e favorável, somente, aos homens. Quanto à primeira esposa, o ato da poligamia depende dela, já que, por ocasião do seu casamento, ela pode exigir a aceitação, e inserção, no documento referente ao contrato nupcial, de uma cláusula, assegurando que o seu marido pratique somente a monogamia. Tal cláusula é tão válida quanto qualquer outra de um contrato legal. Se uma mulher não quiser utilizar esse seu direito, não será a legislação que a obrigará a fazê-lo. Referimo-nos, há pouco, a casos excepcionais; e para esses, a lei tem de prever possíveis remédios. A poligamia não é a regra, e sim a exceção, com vantagens multilaterais, sociais, entre outras -, seria cansativo discorrer pormenorizadamente sobre elas - e a lei islâmica tem orgulho da sua própria maleabilidade. Nas leis religiosas da Antigüidade, não existe nenhuma restrição, quanto ao número de esposas que um homem pode ter. Todos os profetas bíblicos eram polígamos. Até na cristandade, que se tornou sinônimo de monogamia, o próprio Jesus Cristo jamais pronunciou uma palavra contra a poligamia; por outro lado, há eminentes teólogos cristãos, como Lutero, Melancton, Bucer e outros (cf. Dictionaire de Ia Bible, § Polygamie), que não teriam hesitado em concluir a legalidade da poligamia, a partir da parábola das dez virgens, contida no Evangelho de Mateus (25:1-2), na qual Jesus Cristo prevê a possibilidade de um homem casar-se com até dez moças, ao mesmo tempo. Se os cristãos não se querem beneficiar da permissão que o fundador da sua religião lhes parece ter dado, a lei não é alterada, por isso. Isto também vale para os muçulmanos, cuja lei é, além do mais, a única da história, que limita expressamente o número máximo permissível de esposas. A possibilidade de anulação de um casamento, também existiu sempre, na lei muçulmana. Há o direito unilateral, adquirido pelo marido, de divorciar-se da esposa. Esta pode adquirir um direito igual, no ato da contratação do casamento. A corte de justiça também tem o poder de separar o casal, mediante queixa da esposa, caso o marido seja incapaz de cumprir com os seus deveres conjugais, ou esteja sofrendo de alguma doença especialmente séria, ou tenha desaparecido há anos, sem deixar qualquer pista, etc. Há, ainda, a separação bilateral, quando ambos os membros do casal concordam mutuamente, sob 139 determinadas condições, em romper o laço matrimonial. O Alcorão insiste em que ambos devem submeter as suas querelas a um arbítrio, antes de se decidir por uma separação definitiva. Podemos nos lembrar do ditado do Profeta: "A mais detestável das coisas, permitidas aos olhos de Deus, é o divórcio." A lei, a ética, e as exortações, todas completam-se umas às outras; e a fonte delas é a mesma, ou seja, o Alcorão e as tradições. A Condição dos Não-Muculmanos No Islam É natural que se faça uma distinção, e até uma discriminação, entre o que está mais perto e o que está mais distante, entre o parente e o estranho. Com a evolução intelectual e moral contemporânea, surgiu uma tendência na sociedade humana, a facilitar a assimilação do estrangeiro. Se a sociedade se fosse agrupar, tão-somente, com base na consangüinidade, a naturalização ficaria fora de quaisquer cogitações, para sempre. O mesmo ocorreria se a base tomada fosse a da cor da pele, condição que não tem como ser dissimulada. A linguagem é um fator de unificação social, que requer longos anos para uma assimilação viável. O lugar de nascimento é bem menos perceptível, no estrangeiro e, desde que quando o homem ultrapassou o horizonte das Cidades-Estado, a importância, dada a esse fator, diminuiu consideravelmente. Entretanto, é digno de nota que, em todos os conceitos básicos de unidade social, a base é um mero acidente da natureza e pertence mais ao instinto animal do que à racionalidade do homem. É de conhecimento geral que o Islam rejeitou todas essas noções de nacionalidade, selecionando, tão-somente, a identidade de idéias - que depende do livre-arbítrio do homem, e não de acidentes, ou acasos de nascimento -, como o elo básico da sociedade, e fator de sua unidade. A naturalização e a assimilação, numa sociedade dessa ordem, não só fáceis e acessíveis a todas as raças humanas, sem exceção, mas estão, também, mais próximas da razão, como também mais aptas a mostrar o modo mais prático de se viver em paz e com tranqüilidade. Se o crente em Deus ou o capitalista são considerados estrangeiros, nos países comunistas, tanto quanto o homem de pele negra o é, naqueles países de brancos que praticam a segregação racial, ou mesmo um não-italiano na Itália, não deveria surpreender que um não-muçulmano seja considerado estrangeiro na terra do Islam. Os conceitos variam, mas a verdade é que todos fazem uma ou outra distinção, entre aqueles que pertencem ao seu grupo e os que não pertencem a ele. Como em todo e qualquer outro sistema político e social, o Islam também distingue entre os seus "afins" e os "estranhos", porém, com duas características que lhe são peculiares: (1) a facilidade em derrubar essa barreira, 140 pela conversão dos "estranhos" à sua ideologia; e (2) pela mínima desigualdade aplicada às duas categorias, em relação às atividades seculares. Tentaremos esclarecer um pouco este último aspecto da questão. Origem Divina dos Deveres Não se deve esquecer a grande importância prática do fato de que os muçulmanos obedecem ao seu sistema legal, como algo de origem divina, e não como mera expressão da vontade da maioria dos líderes do país. Neste último caso, a minoria se envolveria em uma luta inglória, para fazer prevalecer os seus próprios conceitos. Nas democracias do nosso tempo, não somente as maiorias mudam, de uma eleição para a outra, como também se vêem constituídas, ou desintegradas, por toda a sorte de negociações e combinações, e, em geral, o partido que está no poder procura desestabilizar a política estabelecida por aqueles que o precederam, causando com isso, entre outras modificações, também a modificação das leis. Sem entrar, aqui, no mérito da adaptabilidade das leis islâmicas às exigências da evolução social, poderíamos afirmar, como verdade incontestável, o fato de a lei muçulmana propiciar uma estabilidade muito maior - devido à sua origem divina - do que a de qualquer outro sistema legislativo, secular, do mundo. A lei islâmica ordena que se faça justiça a, e que se observem determinadas regras, no tratamento dos não-muçulmanos. Estes, portanto, não precisam ter qualquer apreensão, quando ocorrem querelas políticas ou eleições parlamentares no país em que residem, quanto às leis islâmicas que estão em vigor. Noções Básicas Os crentes e os não-crentes, ou fiéis e não-fiéis, não podem ser iguais: os primeiros irão para o Paraíso, os outros para o Inferno; ainda assim, isto diz respeito à Outra Vida. Quanto à vida neste mundo, os juristas muçulmanos têm sempre revelado a maior igualdade possível e compatível, seu sistema, entre os "afins" e os "estranhos," como veremos adiante. Há a questão da tolerância religiosa. O Alcorão determina que não há nenhuma compulsão, em relação à religião. Os súditos residentes, tanto quanto os residentes temporários, têm assegurada a sua segurança e a liberdade de suas consciências. Há as questões da hospitalidade e do asilo, em relação às quais o posicionamento teórico é reforçado pelos costumes e práticas de mais de mil anos, A esse respeito, há o sobejamente conhecido versículo do Alcorão, que diz: Se algum dos idolatras procurar a tua proteção, ampara-o, para que escute 141 a palavra de Deus e, então, escolta-o, até que chegue ao seu lar. (9a Surata, versículo 6) As vítimas de perseguições raciais, religiosas, políticas e outras, sempre encontraram refugio e proteção em terras islâmicas. As Práticas do Profeta Quando o Profeta Muhammad se instalou em Madina, encontrou o local em completa anarquia, pois a região nunca tinha conhecido um Estado ou tido um rei, para unificar as tribos, desintegradas em feudos destrutivos. Em apenas poucas semanas, ele conseguiu reagrupar todos os habitantes da região e pôlos em ordem. Constituiu uma Cidade-Estado, na qual muçulmanos, judeus, árabes pagãos e, provavelmente, também um pequeno número de cristãos, ingressaram num organismo estatal, através de um contrato social. A lei constitucional desse primeiro Estado "Muçulmano" - que era na realidade uma confederação, em conseqüência da multiplicidade dos grupos populacionais -, sobreviveu in totó até aos nossos dias, e nela podemos encontrar, não apenas a cláusula "aos muçulmanos, a religião deles, e aos judeus, a deles", ou "deverá prevalecer a benevolência e a justiça", mas também a surpreendente: "Os judeus... são uma comunidade (aliada) com a - de acordo com Ibn Hicham e na versão de Abu 'Ubaid, uma comunidade (fazendo parte da) - dos fiéis (i.e., dos muçulmanos) ." O próprio fato de, no tempo da constituição da Cidade-Estado, se terem as vilas autônomas de judeus, de livre e espontânea vontade, unido ao Estado confederado, e reconhecido Muhammad como o seu chefe político supremo, torna claro, em nossa opinião, que os súditos não-muçulmanos possuíam o direito de votar, na eleição do chefe do Estado Muçulmano, pelo menos no que dizia respeito à vida política do país. A defesa militar era, de acordo com o mesmo documento, dever de todos os membros da população, incluindo os judeus. Isto implica que eles também participavam da consulta e da execução dos planos adotados. Alguns meses após a criação desta Cidade-Estado, vemos o Profeta Muhammad estabelecendo tratados de aliança defensiva e assistência mútua, com os árabes pagãos, dos arredores de Madina. Alguns desses viriam a converter-se ao Islam, cerca de dez anos mais tarde. Durante esses longos anos, a confiança mútua era a mais completa, como os incidentes, que relatamos a seguir, demonstram. 142 No ano 2 da Hégira, os pagãos de Makka enviaram uma missão diplomática à Abissínia, para exigir de Négus a "extradição" dos muçulmanos de Makka, que ali haviam procurado asilo. Para neutralizar as suas maquinações, o Profeta, por sua vez, também enviou um embaixador, para interceder, junto a Négus, em favor dos muçulmanos, que haviam recorrido à proteção da sua nação, em conseqüência da perseguição religiosa, empreendida pelos seus concidadãos. Este embaixador do Islam era 'Amr Ibn Umaiya ad-Damri, "que ainda não havia abraçado o Islam". Na realidade, ele pertencia a uma das tribos aliadas, que mencionamos existir nos arredores de Madina. Numa época em que existiam constantes guerras, ao longo das fronteiras do território islâmico, o serviço militar não era, de modo algum, um modo de vida fácil, pois os riscos de vida e as más condições de sobrevivência dos combatentes eram patentes. A isenção dos súditos não-muçulmanos de prestar esse serviço foi motivada pela suspeição da sua confiabilidade. Entretanto todos os não-muçulmanos, que tinham aceito a dominação muçulmana e que não tramavam a sua derrota, em conluio com outros estrangeiros, receberam de muito bom grado essa isenção. Eles puderam dedicar-se tranqüilamente aos seus afazeres e prosperar, enquanto os muçulmanos se viam ocupados com os deveres militares e com todos os riscos concomitantes. Assim, os não-muçulmanos pagavam um pequeno tributo suplementar, jizya - do qual somente as mulheres e os pobres eram isentos -, tributo esse que não era, nem pesado, nem injusto. Nos tempos do Profeta, a jizya era de dez dirhams anuais, o que correspondia às despesas de uma família média em dez dias. Além do mais, se um súdito não-muçulmano participasse do serviço militar, durante alguma expedição, num determinado ano, ele era isento da jizya, naquele ano. Alguns casos típicos mostrarão a aplicação prática desse tributo. No princípio do Islam, este tributo não existia, no Estado Muçulmano, quer em Madina, quer em outro lugar qualquer. Foi só no ano 9 H. que o Alcorão o determinou. Que se tratava de um expediente, e não de uma questão dogmática de dever islâmico, é suficientemente demonstrado, pelos incidentes que se relatam a seguir. Conta-se que, por ocasião da morte do seu filho, Ibrahim, o Profeta Muhammad teria declarado que "tivesse ele sobrevivido, eu teria isentado todos os coptas da. jizya, como sinal de estima pela mãe de Ibrahim" (que era uma moça copta). E, em outra ocasião, quando um egípcio não-muçulmano propôs ao governo muçulmano o projeto de dragar o antigo canal, que ia de Fustat (Cairo) ao Mar Vermelho, facilitando, desse modo, o transporte marítimo de alimentos, do Egito para Madina - o famoso Nahr Amir al-Mu'minin -, o Califa Omar recompensou-o, isentando-o da jizya pelo resto da sua vida. Os 143 juristas também levavam em conta as repercussões internacionais que afetam os interesses muçulmanos, em vista do fato de ter o Islam penetrado em todos os quadrantes do mundo, e de haver milhões de muçulmanos residindo em países que estão sob o domínio não-muçulmano; com o que, a jizya cobrada a cristãos, judeus, hindus e outras nacionalidades, presentes em território islâmico, produziria, inevitavelmente, uma reação contra os muçulmanos, em países cristãos ou outros. Há um outro dito do Profeta, pronunciado em seu leito de morte, orientando sobre a transferência dos judeus e dos cristãos, dentre as populações do Hijaz, para outras regiões, ato cujo contexto não foi mencionado nas tradições, mas é evidente que se trata de certas populações dessa região, de comportamento político suspeito, constituindo, portanto, numa proibição geral aos membros dessas duas comunidades. Deve-se notar que, no tempo dos califas, existiam escravos não-muçulmanos, tanto homens como mulheres, que pertenciam a muçulmanos, e viviam com os seus senhores, em Makka, em Madina, etc. Um caso célebre de não-muçulmanos livres é o do médico cristão, cujo consultório era exatamente embaixo do minarete da mesquita da Caaba (em Makka). Ele residia ali, no tempo dos califas ortodoxos (cf. Ibn Saad e Dawud Ibn 'Abdur Rahman: Dawud era muçulmano, mas seu pai médico, 'Abdur Rahman, permaneceu cristão até à morte). Também podemos recordar a orientação, dada pelo Profeta, antes de morrer: "Observem escrupulosamente a proteção que concedo aos súditos não-muçulmanos" (cf. al-Mawardi). Outra tradição do Profeta, diz: "Quem quer que oprima os súditos não-muçulmanos, terá, em mim, o advogado deles, no dia da Ressurreição (contra os muçulmanos opressores)." As diretrizes, bem como a prática do Profeta, constituem as leis mais altas dos muçulmanos. Quanto à assimilação dessas leis, na vida dos muçulmanos, e à sua prática, nas épocas posteriores, obtém-se uma melhor visão pelo estudo da história. Referimo-nos, neste trabalho, a uns poucos fatos. Práticas Posteriores Certo governador do Califa Umar escolheu um secretário não-muçulmano. Sabendo disso, o califa ordenou que ele o substituísse por um muçulmano. Isto se reporta à época em que a província em questão ainda não tinha sido pacificada, estando ainda em guerra. Isto é compreensível, em vista da importância do posto e da desconfiança natural dos habitantes de uma nação recém-conquistada. Para melhor compreender a atitude de ornar, recordemos um outro 144 incidente, também no tempo desse mesmo califa (relatado por Al-Baiadhuri, Ansab): "Certo dia, ele escreveu ao seu governador, na Síria: 'Envia-nos um grego, para que ele ponha em ordem as contas das nossas receitas.'" Ou seja, ele também pôs um cristão na chefia da sua administração, em Madina. Esse mesmo califa, com freqüência, consultava não-muçulmanos sobre questões militares, econômicas e administrativas. Não se pode censurar os muçulmanos por preservarem o cargo de iam (o líder do serviço de oração na mesquita) exclusivamente para os seus correligionários. O Islam busca a coordenação de todos os aspectos da vida, tanto espirituais quanto seculares. Donde, o fato de a liderança das ações, na mesquita, ser um dever e um privilégio do Chefe de Estado, por ser ele, também, o chefe da religião. Se levarmos em consideração essa ordem de idéias, compreenderemos, com mais facilidade, porque um não-muçulmano não pode ser eleito chefe de um Estado muçulmano. Porém, essa exceção não implica, de forma alguma, a exclusão dos súditos não-muçulmanos da vida política e administrativa do país. Desde tempos dos califas, vemos não-muçulmanos ocupando cargos de ministros, nos Estados muçulmanos. Uma prática paralela é testemunhada, nas democracias seculares mais importantes do mundo, onde não faltam súditos muçulmanos. Que tal prática dos califas não contraria os ensinamentos do Islam, é constatado pelos autores clássicos, e os juristas chafi’itas (como Al-Mawardi) e hanbalitas (como Abu Ya'la Al-Farra'), não hesitaram em apoiar o ponto de vista de que o califa pode, legalmente, nomear súditos não-muçulmanos para ministros e membros dos Conselhos Executivos. Já nos referimos ao caso de um embaixador não-muçulmano, enviado pelo Profeta à Abissínia. Autonomia Social Talvez a característica mais peculiar do Islam, quanto à sua atitude em relação aos não-muçulmanos, esteja contida na concessão da autonomia social e jurídica. Em longa passagem do Alcorão, lemos que: São os que escutam a mentira, ávidos em devorar o que é ilícito. Se se apresentarem a ti, julga-os ou aparta-te deles, porque, se te separares deles, em nada te poderão prejudicar; porém, se os julgares, faze-o eqiiitativamente, porque Deus aprecia os justos. Como haveriam de tomar-te por juiz, quando têm a Tora, que encerra o juízo de Deus? E mesmo depois disso, eles logo virarão as costas. Estes, em nada são crentes. Revelamos a Tora, que encerra orientação e luz, com a qual os profetas submetidos a Deus julgam os judeus, 145 bem como os rabinos e os doutos, aos quais estava encomendada a observância e a custódia do l.ivro de Deus. Não temais, pois, os homens, e temei a Mim, e não chatineis as Minhas leis a preço vil. Aqueles que não julgarem, conforme o que Deus revelou, serão incrédulos. Nela (a Tora), prescrevemos-lhes: vida por vida, olho por olho, nariz por nariz, orelha por orelha, dente por dente e as chagas tais quais; mas quem indultar um culpado, isso lhe servirá de expiação. Aqueles que não julgarem, conforme o que Deus revelou, serão iníquos. E depois deles (profetas), enviamos Jesus, filho de Maria, corroborando a Tora, que o precedeu; e lhe concedemos o Evangelho, que encerra orientação e luz, confirma o que ele possui da Tora, e é orientação e exortação para os tementes. Que os adeptos do Evangelho julguem segundo o que Deus nele revelou, porque aqueles que não julgam conforme o que Deus revelou são depravados. Em verdade, revelamos-te o Livro corroborante e preservador dos anteriores. Julga-os, pois, conforme o que Deus revelou, e não sigas a concupiscência deles, desviando-te da verdade que te chegou. A cada um de vós ditamos uma lei e uma norma; e, se Deus quisesse, teria feito de vós uma só nação; porém, fez-vos como sois, para provar-vos, quanto àquilo com que vos agraciou. Emulai-vos, pois, na benevolência, porque todos vós retornareis a Deus, que vos inteirará das vossas divergências. (5a Surata, versículos 42-48) É com base nesse mandamento que o Profeta e os seus sucessores, no Islam, têm concedido a todas as comunidades não-muçulmanas, dentre os súditos do Estado Islâmico, uma autonomia jurídica, não somente em termos de condição individual, mas também em relação a todos os afazeres do quotidiano, inclusive os assuntos de contendas civil, penal e outras. No tempo dos califas ortodoxos, por exemplo, encontramos o testemunho de cristãos contemporâneos, que atestam o fato de que o governo muçulmano delegara aos sacerdotes cristãos muitos poderes jurídicos temporais. No tempo dos califas abácidas, encontramos o patriarca cristão e o hakham judeu, ambos entre os mais altos dignatários do Estado, ligados diretamente ao califa. Nos tempos do Profeta, os judeus de Madina tinham a sua Bait-al-Midras (que funcionava como sinagoga e como instituto educacional). No tratado com os cristãos de Najran (Iêmen), o Profeta deu garantias, não somente da segurança da pessoa e da propriedade dos habitantes, mas também delegou explicitamente, à própria comunidade cristã, a nomeação de seus bispos e sacerdotes. Existe uma tendência, em muitas pessoas, a imitar os seus governantes e chefes, no comportamento, em termos de aparência externa, como no vestuário, no corte de cabelo, no penteado, na etiqueta, etc. O resultado disso é uma assimi146 lação superficial, que não traz nenhuma vantagem à,comunidade dominante, e que causa dano moral às classes que a imitam, dessa maneira servil. No Estado islâmico, os não-muçulmanos formam uma comunidade-protetorado (zimmí). Por isso, é dever do governo proteger os interesses legítimos desses "estranhos". Razão por que vimos, durante o califado abácida, que, longe de desejar assimilar os "estranhos" pela força, o governo desencorajava a imitação de uns pelos outros: muçulmanos, cristãos, judeus, masdeístas e outros conservavam o seu modo próprio de se vestir, a sua conduta social e as suas individualidades distintas. Somente uma assimilação total, através da conversão religiosa, era desejável, mas não uma confusão de comunidades. Isto prova, sobejamente, que a medida nada tinha a ver com as exigências religiosas do Islam - e nos tempos do Profeta, não havia nem traço dela -, e sim, com uma condição de vida, que atendia aos conceitos sociais da época, sendo o seu propósito essencial o de respeitar, o máximo possível, a comunidade religiosa de cada um e de todos os indivíduos. A intenção era a de proteger, dessa maneira, a cultura de todos, de modo a que se destacassem, cada vez mais, os valores e os defeitos intrínsecos de cada uma. De passagem, pode-se reiterar que a concepção de nacionalidade no Islam não se baseia, nem na origem étnica, nem no lugar de nascimento do indivíduo, e sim na identidade de ideologia, i.é, na sua religião. A pessoa, a propriedade e a honra de todo o indivíduo, seja indígena ou heterogêneo, são integralmente protegidas, no território islâmico. Charh ul-Hidaya, que é um manual jurídico de uso corrente, emprega, por exemplo, esta frase característica: "A difamação é proibida, seja em relação ao muçulmano, seja em relação a um protegido (não-muçul-mano)." Outro jurista, de reconhecida autoridade, autor de Al-Bahr ar-Ráik, diz: "Até os ossos dos mortos dos protegidos (não-muçulmanos) têm o direito de ser respeitados, do mesmo modo que os ossos dos muçulmanos; não se permite profaná-los, porque o mau trato ao protegido (não-muçulmano) é proibido, enquanto ele é vivo, devido à proteção de que desfruta, e, portanto, a proteção dos seus ossos, contra qualquer espécie de profanação, é também obrigatória, após a sua morte." Os juristas são unânimes em afirmar que, se um muçulmano violentar uma mulher não-muçulmana, ele receberá a mesma punição, que é prescrita contra o estupro de mulheres muçulmanas. No tempo do Califa Omar, certos muçulmanos desapropriaram um terreno, pertencente a um judeu, e no local construíram uma mesquita. Sabendo disso, o califa ordenou a demolição da mesquita e a devolução da terra ao judeu. O 147 Prof. Cardahi (um cristão do Líbano, em 1933) escreveu: “A casa desse judeu, Bait al-Yahudi, ainda existe, e é bem conhecida." Mencionemos, então, a circular do Califa ornar Ibn Abdel'Aziz (preservada por Ibn Saad), que é auto-suficiente, como um eloqüente testemunho: "Em nome de Deus, o Clemente e Misericordioso. Do servo de Deus, Comandante dos fiéis, ornar (Ibn 'Abdel 'Aziz) (ao governador) 'Adi Ibn Ar-tat e aos muçulmanos fiéis, que estão com ele: ' A paz esteja convosco. Envio-vos a saudação de Deus, junto do Qual não há nenhum outro Deus. Prestai atenção à condição dos protegidos (não-muçulmanos), e tratai-os com bondade. Se algum deles, ao chegar à idade avançada, não tiver posses, cabe a vós sustentá-lo. Se ele tiver irmãos contratuais, exigi destes que o façam. E castigai qualquer um que faça mal a ele. Do mesmo modo, se tiverdes um escravo, que chegar à idade avançada, devereis sustentá-lo até ao fim dos seus dias, ou então libertá-lo. Eu soube que tendes recebido tributos, pela importação de vinhos, e que os incluis no Erário, que pertence a Deus. Aviso-vos para não incluí-lo, jamais, no Tesouro, que pertence a Deus, por menor que seja o montante, não se tratando de propriedade pura e legalmente admissível. A paz esteja convosco." Outra carta, do mesmo califa, diz: "Purifiquem os registros da acusação de obrigações (i.é, de tributos cobrados injustamente), e consultem arquivos mais antigos (também). Se for cometida qualquer injustiça, quer seja contra um muçulmano, quer contra um não-muçulmano, devolvam-lhe os seus direitos. E se qualquer, de tais pessoas, tiver morrido, remetam os seus haveres aos seus herdeiros." É do conhecimento geral que os juristas muçulmanos reconhecem o direito de propriedade, em relação a vizinhos. Se alguém vende o seu imóvel, o vizinho tem um direito preferencial ao de um estranho. Este direito é estendido, também, aos não-muçulmanos. A salvaguarda dos direitos dos não-muçulmanos, em território islâmico, vai ao ponto de lhes permitir, livremente, a prática de costumes que se confrontam com os do Islam. Por exemplo, o consumo de bebidas alcoólicas é proibido aos muçulmanos; entretanto, os habitantes não-muçulmanos do país têm inteira liberdade de as consumir, como também de as fabricar, importar e vender. O mesmo se aplica, também, aos jogos de azar, casamento com parentes próximos, contratos que envolvem juros, etc. Em tempos antigos, estas coisas não afetavam os muçulmanos e eram raros os abusos e as repercussões. Os juristas modernos têm restringido esta liberdade, enquanto relacionada com o comércio internacional. Uma vez que quaisquer esforços para restringir o consumo de bebidas alcoólicas, não serão 148 eficientes, se não forem aplicados a toda a população, o consentimento dos representantes dos não-muçulmanos tem facilitado a tarefa dos juristas, que, em princípio, não intervém nas práticas das diferentes comunidades, cujos costumes variam, de acordo com a região. A lei islâmica faz certas distinções entre as diferentes comunidades não-islâmicas, no que tange às relações com indivíduos muçulmanos. Ela separa os não-muçulmanos em dois grupos, que poderíamos chamar de "desenvolvidos" e de "primitivos", ou seja, aqueles que acreditam no Deus Único e seguem leis divinas, reveladas aos fundadores das suas religiões, e aqueles que não procedem dessa maneira (tais como os idolatras, ateus, pagãos, animistas, etc...). Todos são tolerados, como súditos, e desfrutam da proteção, com relação à sua liberdade de consciência e de vida, porém um muçulmano os tratará de modo diferente, em suas relações privadas. O muçulmano tem o direito de se casar com uma mulher não-muçulmana "desenvolvida", mas não com uma "primitiva". Senão, vejamos: o muçulmano não só se pode casar com uma moça cristã ou judia, como também lhe preservar a liberdade de conservar a sua própria religião. Ela pode freqüentar a sua igreja ou sinagoga, etc. Mas é proibido, a um muçulmano, casar com uma mulher que não acredite em Deus. Seguindo a mesma linha de pensamento, o muçulmano não pode consumir carnes de animais abatidos por membros de comunidades "primitivas". Por outro lado, uma mulher muçulmana não se pode casar com um não-muçulmano, seja qual for a categoria a que ele pertença. Conversão A lei islâmica reconhece, explicitamente, o direito dos não-muçulmanos de preservar as suas crenças; e se, por um lado, ela proíbe o recurso a qualquer forma de compulsão, na conversão de outros membros ao Islam, ela mantém uma disciplina rigorosa, entre os seus próprios adeptos. A base da "nacionalidade" islâmica é religiosa, e não étnica, lingüística ou regionalista. Portanto, a apostasia é, naturalmente, considerada como traição política. E, mesmo sendo verdade que a este crime se aplicam penalidades, a história nos tem demonstrado que tal necessidade raramente tem urgido. E não somente na Idade Média, quando os muçulmanos reinavam soberanos, do Pacífico ao Atlântico, mas mesmo nestes nossos dias de debilidade política, material e intelectual, entre os muçulmanos, ainda assim apostasia é surpreendentemente inexistente. E isso se constata, não somente nas regiões onde existem Estados com semblante muçulmano, mas até alhures, sob poderes coloniais que, inclusive, têm feito todos os esforços humanamente possíveis para converter os muçulmanos 149 a outras religiões. O Islam cresce, mesmo atualmente, e até entre os povos ocidentais, da Finlândia à Noruega e à Itália, e do Canadá à Argentina. E isto ocorre, a despeito da ausência de qualquer ação missionária organizada. Jihad Vamos concluir esta breve exposição com algumas palavras sobre a questão que é a mais incompreendida, nos círculos não-muçulmanos. Por todo o curso da vida de um muçulmano, seja em relação aos assuntos espirituais ou aos temporais, o seu procedimento é orientado por uma disciplina, emanada da lei divina. Se um muçulmano celebra qualquer dos seus ritos de oração, sem a verdadeira convicção (fazendo-o por ostentação, por exemplo), tais atos não são atos de devoção espiritual, e sim um crime contra Deus e uma adoração de si mesmo, passível de punição, na Outra Vida. Mas, pelo contrário, um muçulmano faz as suas refeições para se prover das energias necessárias ao desempenho de suas obrigações para com Deus; coabita com uma mulher, como um ato de obediência à lei divina, lei essa que lhe ordena que tais atos, para atender às necessidades e prazeres, constituem-se em atos sagrados de devoção, merecedores de todas as recompensas divinas, prometidas à caridade, como disse ai Ghazali. Sendo este o conceito da vida, uma luta justa não pode ser senão um ato sagrado. Toda a forma de guerra é proibida, pelo Islam, a não ser que seja por uma causa justa e ordenada pela lei divina. A vida do Profeta nos proporciona precedentes de somente três tipos de guerra: defensiva, punitiva e preventiva. Em sua célebre correspondência com o Imperador Heráclito de Bizâncio, referindo-se ao assassinato de um embaixador muçulmano em território bizantino, o Profeta propôs três opções: "Convertam-se ao Islam; caso contrário, paguem o tributo âzjizya... se não, não interfiram entre os súditos e o Islam, se aqueles desejam converter-se a ele... caso contrário, paguem zjizya" (cf. Abu ‘Ubaid). O objetivo e a luta do Profeta Muhammad eram o e pelo estabelecimento da liberdade de consciência, no mundo, e quem ter no Islam, mais autoridade do que ele? Esta é a "guerra santa" dos muçulmanos, aquela que não é empreendida com o propósito da exploração, mas num espírito de sacrifício, sendo o seu único objetivo o de fazer prevalecer a Palavra de Deus. Tudo o mais é ilícito. Não há, absolutamente, razão para se engajar em guerras, para compelir outrem a converter-se ao Islam; tal ato seria uma guerra profana. 150 A Contribuição Dos Muçulmanos às Ciências e às Artes Quanto mais ciências há, tantos mais especialistas são necessários, entre os historiadores, para descrever adequadamente as contribuições muçulmanas em cada ramo, e para colaborar, na compilação de uma análise geral, sobre este vasto tópico. Longe de pretender tratar dele adequadamente, fazemos, aqui, uma tentativa de fornecer informações de caráter geral, com relação ao papel desempenhado pelos muçulmanos, no desenvolvimento das diversas ciências e artes. Atitude Geral O Islam é uma concepção abrangente de vida, e não apenas uma religião, que descreve as relações entre o homem e o seu Criador. Torna-se necessário, portanto, primeiramente, relatar, em linhas gerais, a sua atitude para com as ciências e as artes. Longe de desencorajar uma vida de bem-estar neste mundo, o Alcorão expressa, repetidamente, fatos como este: Dize-lhes: Quem pode proibir as galas de Deus e o desfrutar dos bons alimentos, que Ele preparou para os Seus servos? (7a Surata, versículo 32). Ele louva aqueles que: Dizem: Ó Senhor nosso, concede-nos a graça deste mundo e do futuro, e preserva-nos do tormento infernal. (2a Surata, versículo 201). Ele ensina à humanidade: Procura aquilo com que Deus te tem agraciado, e não te esqueças da tua porção neste mundo, e sé amável, como Deus tem sido para contigo. (28a Surata, versículo 77) É essa busca pelo conforto que atrai o homem ao conhecimento, de maneira tão perfeita quanto possível, de tudo o que existe no universo, de modo a usufruir de todos os benefícios dessas coisas, e, por elas, ser grato a Deus. Diz o Alcorão: Temo-vos enraizado na terra, na qual vos proporcionamos subsistência. Quão pouco No-lo agradeceis! (7a Surata, versículo 10) 151 E nela vos proporcionamos meios de subsistência. (15a Surata, versículo 20). Ele foi Quem criou para vós tudo quanto existe na terra. (2a Surata versículo 29) Porventura, não reparais em que Deus vos submeteu tudo quanto há nos céus c na terra, e vos cumulou com as Suas mercês, cognoscíveis e incognoscíveis? (31a Surata, versículo 20) Deus foi Quem criou os céus e a terra e é Quem envia a água do céu, com a qual produz os frutos para o vosso sustento! Submeteu-vos os navios que, com a Sua anuência, singram os mares, e submeteu-vos os rios. Submeteu-vos o sol e a lua, que seguem os seus cursos; submeteu-vos a noite e o dia. (14a Surata, versículos 32-33). E submeteu-vos a noite e o dia; o sol, a lua e as estrelas estão submetidas às Suas ordens. (16a Surata, versículo 12) Não tendes reparado em que Deus vos submeteu o que existe na terra, assim como as naves, que singram os mares segundo Sua vontade? (22a Surata, versículo 65) Deus foi Quem criou sete firmamentos e outro tanto de terras. (65a Surata, versículo 12) Por um lado, o Alcorão recorda aos homens o seu dever de adorar a Deus, o Único: Que os prove contra a fome e os salvaguarda do temor! (106a Surata, versículo 4) E, por outro, diz-lhes da necessidade de se esforçarem, num mundo de causa e efeito: Que o homem não obtém senão o fruto do seu proceder. (53a Surata, versículo 39). O Alcorão não somente incita os homens a perseverar em suas buscas: 152 Dize-Ihes: Percorrei a terra e observai qual foi a sorte daqueles que vos precederam. (30a Surata, versículo 42) Mas também a tentar novas descobertas: ...meditem na criação dos céus e da terra, dizendo: Ó Senhor nosso, não criaste isto em vão! (3a Surata, versículo 191) Quanto ao método de aumentar o conhecimento, é inspirador observar que, já na primeira revelação, que veio ao Profeta, que nasceu entre gente iletrada, havia um mandamento para ler e escrever, e uma loa ao cálamo, que é o único meio do conhecimento humano: Lê, em nome do teu Senhor, Que criou, criou o homem de um coágulo. Lê, que teu Senhor é generosíssimo, que ensinou através do cálamo; ensinou ao homem o que este não sabia. (26a Surata, versículos 1-5) O Alcorão nos lembra também: Perguntai-o, aos adeptos da Mensagem, se o ignorais! (16a Surata, versículo 43) Assim como: ...só vos tem sido concedida uma ínfima parte do saber. (17a Surata, versículo 85). ... Nós elevamos as dignidades de quem queremos, e acima de todo o conhecedor está o Onisciente. (12a Surata, versículo 76) E como é bela a oração que o Alcorão ensina ao homem: Dize: Ó Senhor meu, aumenta-me em sabedoria. (20a Surata, versículo 114) O Profeta Muhammad disse: "O Islam está edificado sobre cinco pilares: a crença em Deus, a prática das orações, o jejum, a peregrinação à casa do Deus Único e o imposto do zakat." Se a crença exige o cultivo das ciências teológicas, os demais exigem um estudo das ciências seculares. Para a prática das orações, o rosto se volta em direção a Makka, e o rito deve ser executado por ocasião do acontecimento de determinados fenômenos naturais. Isto requer o conhe153 cimento de elementos de geografia e de astronomia. O jejum também requer a compreensão de fenômenos naturais, tais como o surgimento da aurora, o pôr-do-sol, etc. A peregrinação exige o conhecimento das rotas e dos meios de transporte para que se possa dirigir-se a Makka. O pagamento do zakat requer o conhecimento da matemática, para fazer o cálculo para a distribuição da herança dos mortos. De modo semelhante, existem necessidades fundamentais para a compreensão do Alcorão à luz de fatos históricos, citações e referências às ciências nele contidas. Na verdade, o estudo do Alcorão requer, antes de mais nada, um conhecimento da linguagem, na qual ele está compilado (ciências idiomáticas); as suas referências aos povos exigem um conhecimento de história e de geografia, e assim por diante. Lembremo-nos da maneira como o Profeta começou uma vida independente, domiciliando-se em Madina, tendo sido o seu primeiro ato a construção de uma mesquita, com uma parte reservada para o funcionamento de uma escola - a célebre Suffa - que, durante o dia, servia corno salão de palestras, e durante a noite, como dormitório para os estudantes. Deus ajuda aqueles que ajudam a causa de Deus, e isto é reafirmado, freqüentemente, no Alcorão. Não é surpreendente que os muçulmanos tenham a boa sorte de possuir em abundância e a bom preço, papel suficiente para divulgar o conhecimento às massas. Desde o século 2 da Hégira, começaram a ser implantadas fábricas de papel por todo o vasto império. Para os objetivos desta breve exposição, referir-nos-emos somente a umas poucas ciências, para as quais as contribuições dos muçulmanos têm sido particularmente importantes, para toda a humanidade. As Ciências Religiosas e Filosóficas As ciências religiosas surgiram, como era natural, com o Alcorão, que os muçulmanos receberam como a Palavra de Deus, a Mensagem divina, endereçada ao homem. O seu exame e compreensão exigiram o estudo das ciências da lingüística, gramática, história, e até das ciências especulativas, entre muitas outras - que geralmente se transformavam em ciências independentes, de grande utilidade -, enquanto a recitação do texto sagrado deu origem ao desenvolvimento da "música" religiosa do Islam (assunto ao qual retornaremos mais adiante). A preservação do Alcorão levou ao aperfeiçoamento da grafia arábica, não só do ponto de vista da precisão, mas também da beleza gráfica. Com a sua pontuação e vocalização, a escrita arábica é, incontestavelmente, a 154 mais precisa, para atender às necessidades desta língua. O caráter universal do Islam requeria o entendimento do Alcorão por não-árabes; e vemos surgirem, aí, séries de traduções, algumas já nos tempos do Profeta - Salman al-Farsi traduziu trechos desta obra para o persa - e até aos nossos dias, e o fim desse processo ainda está bem distante. Deve-se ressaltar que essas traduções foram feitas, unicamente, com o propósito de tornar possível a compreensão do conteúdo, por aqueles que não conhecessem a língua árabe, jamais para o culto, pois, na prática dos ritos de oração, só se usa o texto árabe. E o método, adotado por ordem do Profeta, foi perpetuado, ou seja, a transcrição por escrito e a memorização, ambos a serem feitos simultaneamente. Cada processo destinava a ajudar o outro, para evitar o esquecimento ou o cometimento de erros. A instituição de métodos jurídicos de verificação aperfeiçoou ainda mais o sistema. Assim, não bastava, somente, obter uma cópia do Alcorão, mas também lê-la início ao fim, diante de um mestre reconhecido, para que se pudesse obter um certificado de autenticidade. Esta prática continua, até nos dias de hoje. Como no caso do Alcorão, os muçulmanos também se fixaram nos ditos do Profeta. Os relatos dos seus ditos e atos, tanto públicos como privados, foram preservados. A preparação de tais memoriais começou já no tempo de vida do Profeta, pela iniciativa pessoal de alguns dos seus companheiros, e foi continuada após a sua morte, por um processo de coletânea de conhecimentos de primeira mão. Como no caso do Alcorão, em todas essas transmissões fez-se questão da autenticidade. Qualquer um poderia relatar ter conhecido Noé, Moisés, Jesus, Buda e outros grandes homens da Antigüidade, em poucas páginas. Entretanto, os detalhes conhecidos da biografia do Profeta Muhammad, ocupam centenas de páginas, tão grande o cuidado que foi tomado para preservar para, a posteridade, dados documentados e precisos. O aspecto especulativo da Fé, particularmente quanto a crenças e dogmas, mostra que as discussões, que começaram ainda em vida do Profeta, tomarse-iam, posteriormente, as raízes de diversas ciências, tais como o Kalam (dogmático-escolástica), e o 7aíawwt//(místico-espiritualista). As polêmicas religiosas com os não-muçulmanos, e até entre os próprios muçulmanos, introduziram elementos externos, a partir de filosofias gregas e hindus etc. Mais tarde, não faltaram aos muçulmanos os seus próprios e grandes filósofos, dotados de originalidade e erudição, como Al-Kindi, Al- Farabi, Ibn-Sina (Avicena), Ibn-Ruchd (Averróis) e outros. A tradução, para o árabe, de livros 155 estrangeiros, resultou na feliz circunstância de centenas de obras gregas e sânscritas, cujos originais haviam sido perdidos, ficarem preservadas, nas suas versões árabes. As Ciências Sociais O papel, desempenhado pelos muçulmanos, no desenvolvimento das ciências sociais, tem sido muito importante. Uma característica notável da ciência muçulmana é a rapidez com que se desenvolve. O Alcorão foi o primeiro livro, escrito na língua árabe. Menos de dois séculos mais tarde, essa língua, de beduínos analfabetos, provou ser urna das mais ricas do mundo, tomando-se, posteriormente, não só a mais rica do mundo, mas também o idioma internacional, para toda a sorte de ciências. Sem parar para investigar a causa desse fenômeno, vale relembrar um outro fato. Os primeiros muçulmanos foram, em sua maioria, árabes; entretanto, com exceção do seu idioma, que era o repositório da Palavra de Deus e do Seu Profeta, eles apagavam muitas facetas da própria personalidade, sob a influência do Islam, de modo a receber, nele, todos os povos, em condições de absoluta igualdade. Portanto, todos os povos participaram, no progresso das ciências "islâmicas": árabes, iranianos, gregos, turcos, abissínios, berberes, indianos e outros, que se convertiam ao Islam. A sua tolerância religiosa era tão grande, e o apadrinhamento do saber tão perfeito, que cristãos, judeus, masdeístas, budistas e outros colaboravam, com o objetivo de enriquecer as ciências muçulmanas, no domínio literário das suas respectivas religiões, além de em outros ramos do conhecimento. A Lei Por sua natureza abrangente, a ciência jurídica desenvolveu-se, entre os muçulmanos, desde o princípio. Foram eles os primeiros, no mundo, a conceber uma ciência abstrata do direito, separada dos códigos de legislação geral do país. Os antigos possuíam as suas leis, mais ou menos desenvolvidas e até codificadas, porém faltava, ainda, uma ciência que tratasse da filosofia e das origens do direito, do método de legislação, da interpretação e da aplicação das leis, etc., e antes do Islam esta idéia nunca se tinha cristalizado. Desde o segundo século da Hégira (século 8 d.C.), começaram a surgir obras islâmicas desse gênero, chamadas de Usul al-Fiquih. Antigamente, a lei internacional não era, nem internacional, nem era lei; fazia parte da política, e dependia da boa vontade e das intenções dos estadistas. Além do que, as suas regras só se aplicavam a um número limitado de Estados, geralmente os habitados pelos povos de uma mesma raça, que seguiam a mesma religião e falavam a mesma língua. Os muçulmanos foram os primeiros a 156 dar-lhes um lugar definido no sistema jurídico, criando, tanto direitos, como deveres. Isto poderá ser observado nas regras de lei internacional que formaram um capítulo à parte, nos códigos e tratados da lei muçulmana, desde o início. O tratado mais antigo que possuímos é o Almajmú, de Zaid Ibn 'Ali, que morreu em 120 H./737 d.C. Essa obra já contém o capítulo a que nos referimos. Além disso, os muçulmanos desenvolveram este ramo de estudos como uma ciência inde-pendente, e já em meados do segundo século da Hégira existiam monografias sobre o assunto, todas sob o título genérico de Siyar. Um aspecto característico dessa lei internacional é o de que ela não faz qualquer discriminação entre estrangeiros; ela não se refere a interesses muçulmanos, e sim, somente, aos dos Estados não-muçulmanos de todo o mundo. Em princípio, o Islam forjou uma única unidade e uma comunidade orgânica singulares. Outra contribuição, no domínio jurídico, é a Lei Casuística comparada. O surgimento de diversas escolas de direito muçulmano tomou esse tipo de estudo necessário, para relevar as razões das diferenças de interpretação, bem como os efeitos das divergências de princípios sobre um determinado ponto legal. A constituição escrita do Estado também foi uma inovação dos muçulmanos. Aliás, o Profeta Muhammad foi o seu autor. Quando ele fundou uma Cidade-Estado em Madina, dotou-a com uma constituição escrita, documento este preservado até hoje. Ela menciona, em termos precisos, os direitos e as obrigações do Chefe de Estado, define as unidades constituintes, e também os respectivos setores em matéria de administração, legislação, justiça, defesa, etc. Ela data do ano 622 da Era Cristã. Na esfera do direito, propriamente dito, apareceram os primeiros códigos, já no princípio do segundo século da Hégira. Estes dividem-se em três partes principais: culto ou práticas religiosas, relações contratuais de todos os tipos e penalidades. De acordo com a sua visão abrangente da vida, não havia, no Islam, qualquer distinção entre a mesquita e o capitólio. A doutrina do Estado ou a lei constitucional faziam parte do culto, uma vez que o Chefe de Estado era também o chefe do culto religioso. As receitas e finanças também faziam parte do culto, uma vez que o Profeta as declarou como um dos cinco fundamentos do Islam, lado a lado com o rito de oração, o jejum e a peregrinação. A lei internacional fazia parte dos direitos, sendo a guerra colocada no mesmo nível dos atos de pilhagem, pirataria e outras violações de direitos e tratados. Foi devido a essa visão abrangente do direito, entre os muçulmanos, que nos detivemos numa discussão maior da questão. 157 História e Sociologia A parte muçulmana destas ciências é importante, sob dois aspectos: o da certificação da autenticidade e o da coleção e preservação dos detalhes mais variados. Nascido à plena luz da história, o Islam não precisou depender de lendas ou de folclore. Com referência a informações sobre povos, cada narrativa recebia o valor merecido. Mas a história corrente do Islam exigia medidas de confiabilidade total, para manter a sua integridade, através dos tempos. A certificação, por testemunhas, fora, antes, uma prerrogativa exclusiva dos tribunais de justiça. Os muçulmanos aplicaram-na à história; exigia-se a comprovação de cada relato apresentado. Se aparecia na primeira geração, após o acontecimento relatado, bastava que houvesse uma única testemunha confiável do evento. Já na segunda geração, era necessário citar-se duas fontes sucessivas. Ouvi "A" dizer que escutara "B", que vivera na época do evento, contar os detalhes do mesmo". Na terceira geração, passavam a ser necessárias três fontes de testemunho, e assim por diante. Estas referências exaustivas asseguravam a veracidade da corrente do fontes sucessivas, pois tornavam possível recorrer aos dicionários biográficos, que indicavam não somente o caráter dos personagens individualmente citados, mas também os nomes dos seus mestres e do seus principais pupilos. Este tipo de comprovação existe, não somente em relação à biografia do Profeta, mas para todos os ramos do conhecimento, transmitidos de geração para geração, algumas vezes até na forma de anedotas, destinadas, simplesmente, ao divertimento da época. Os dicionários biográficos são um aspecto característico da literatura histórica muçulmana. Os dicionários foram organizados por profissões, cidades, regiões, séculos, épocas, etc. Também foi atribuída grande importância às árvores genealógicas, especialmente às árabes, e o rol de centenas de milhares de pessoas, de alguma importância, pesquisadas, facilita a tarefa do estudioso, que deseje penetrar nas causas subliminares dos acontecimentos. Quanto à história, propriamente dita, a tendência característica das crônicas é a sua universalidade. At-Tabari, por exemplo, que é um dos primeiros historiadores do Islam, não só inicia os seus volumosos anais com um relato da criação do universo e da história de Adão, mas também fala de outras raças que conheceu, no seu tempo - tarefa essa que foi continuada, com ainda maior perseverança, pelos seus sucessores, al-Mas'udi, Ibn Miskawaih Sa'id al-Andalusi, Rachiduddin Khan e outros. É interessante observar que estes historiadores para começar com At-Tabari -, iniciaram as suas obras com a discussão de uma concepção do tempo. Ibn Khaldun mergulhou, mais profundamente nessas 158 discussões sociológicas e filosóficas, em seus célebres "Prolegômenos à História Universal". Já no primeiro século da Hégira, dois ramos da história começaram a se desenvolver independentemente e foram, posteriormente, combinados num todo composto. Um era a história islâmica, que começava pela vida do Profeta e continuava com o período dos califas; o outro, a história não-muçulmana, quer referente à Arábia pré-islâmica ou a países estrangeiros, como o Irã, Bizâncio, etc. Um claro exemplo disso é a história de Rachiduddin Khan, cuja maior parte ainda falta publicar. Ela foi elaborada, simultaneamente, em árabe e em persa - e fala, com igual familiaridade dos profetas, dos califas, dos papas, bem como dos reis de Roma, da China, da índia, da Mongólia, etc. Geografia e Topografia Tanto a Peregrinação como o comércio do vasto império muçulmano precisavam de comunicações. "Todas as vezes que o correio partia com algum destino - que variava do Turquestão ao Egito, e isto acontecia quase diariamente -, o califa Omar costumava anunciar o fato em praça pública, para que também pudessem ser enviadas cartas particulares a tempo, pelo mensageiro oficial." Os Diretores das Postas preparavam guias de rotas, cuja publicação era sempre acompanhada de uma descrição mais ou menos detalhada de cada lugar, do ponto de vista histórico-econômico, sendo os nomes das localidades organizados em ordem alfabética. Esta geografia literária estimulava outros estudos científicos. A geografia de Ptolomeu foi traduzida para o árabe, como também o foram as obras de autores hindus. Relatos de viagens aumentavam, diariamente, o conhecimento do homem comum. A própria diversidade de informações anulava qualquer possibilidade de chauvinismo: qualquer um era capaz de pôr tudo o que lhe interessasse à prova, por meios práticos. O diálogo entre Abu Hanifa (m. em 767) e seus discípulos é célebre: Certo Mu'tazilita perguntou-lhe onde ficava o centro da terra e ele respondeu: "Exatamente no lugar onde você está sentado." Esta resposta comprovava, sem margem de dúvida, que o orador que-ria dizer que a terra era redonda. Os mapas-múndi mais antigos, elaborados pelos muçulmanos, representam a terra em forma circular. A cartografia de Ibn Haukai (do ano 975), por exemplo, não apresenta qualquer dificuldade para a identificação do Mediterrâneo, próximo às nações do Oriente Médio. O mapa de al-Idrisi, elaborado para o rei Rogério da Sicília (1101-54), surpreende por sua elevada precisão; nele consta até a nascente do rio Nilo. Precisamos nos lembrar de que os mapas árabe-muçulmanos posicionam o Sul para cima, com o Norte virado para baixo. As viagens marítimas 159 precisavam de escalas das longitudes e latitudes, tanto quanto do astrolábio e de outros instrumentos náuticos. Milhares de moedas muçulmanas, descobertas em escavações na Escandinávia, atestam, conclusivamente, a atividade dos caravaneiros muçulmanos da Idade Média. Ibn Májid, que serviu como piloto de Vasco da Gama até à índia, fala da bússola como um objeto já familiar. Os marinheiros muçulmanos espantam-nos com a sua perícia e ousadia em viagens, de Basra (Iraque) até à China. As palavras "almirante", "cabo", "monsoon" (monção), "alfândega", "tarifa" são todas de origem árabe, e são provas substanciais da influência muçulmana sobre a moderna cultura ocidental. Astronomia A descoberta e o estudo do número de estrelas são reconhecidos como valiosas e inesquecíveis contribuições dos muçulmanos. Um grande número de estrelas continua a ser conhecido, nas línguas ocidentais, pelos seus nomes árabes, e foi Ibn Ruchd (Averróis) que reconheceu a existência de manchas na superfície do sol. A reforma do calendário, feita por Omar al-Khayyam, precede, de longe, a reforma gregoriana. Os beduínos árabes pré-islâmicos já tinham desenvolvido observações astronômicas bastante precisas, não só para se orientarem, nas viagens noturnas pelo deserto, mas também para fazerem previsões meteorológicas (chuva, etc). Vários livros, conhecidos como Kitab al-Anwa', nos proporcionam provas suficientes da extensão do conhecimento árabe. Posteriormente, com a tradução de obras hindus, gregas e outras para o árabe, a confrontação das informações divergentes exigiu novas experiências e cuidadosas observações. Surgiram observatórios em todos os lados. No reinado do califa al-Ma'mun, foi medida a circunferência da terra, cuja exatidão é espantosa. Compilaram-se obras sobre as marés, o amanhecer, o anoitecer, o arco-íris, e, principalmente, sobre o sol e a lua, e seus movimentos. Ciências Naturais A faceta característica deste campo da ciência islâmica é a ênfase devotada à experimentação e à observação, sem o prejuízo de idéias preconcebidas. O método árabe era bastante singular e formidável. Os autores começavam o estudo das ciências preparando-se, através dos dicionários classificados de termos técnicos, que existiam em seus próprios idiomas. Com extraordinária paciência, eles examinavam todos os livros de poesia e prosa, para extrair todos os termos, - com as citações úteis -, referentes a cada ramo separado, incluindo anatomia, zoologia, botânica, astronomia, miner160 alogia, etc. Cada geração sucessiva revisava as obras dos seus predecessores, de maneira a acrescentar-lhes algo novo. Estas simples listagens de palavras, algumas acompanhadas de observações literárias ou anedóticas, provavam ser de imenso valor, quando começava o trabalho de tradução; e raros eram os casos em que se tornava necessário adaptar a palavra ao árabe, ou conservar uma palavra estrangeira. As palavras, usadas na botânica, são características desse processo. Exceto pelos nomes de certas plantas, que não existiam no Império Muçulmano, não existe um único termo de origem estrangeira; encontravam-se palavras árabes para todos os termos. A Enciclopédia Botânica de ad-Dinawari (m. 895), em seis grossos volumes, foi compilada muito antes da primeira tradução, para o árabe, das obras gregas sobre o assunto. No dizer de Silberberg: "Após mil anos de estudo, a botânica grega se resumia nas obras de Dioscorides e Teofrasto, mas já na primeira obra de ad-Dinawari, sobre o assunto, os muçulmanos os ultrapassam, tanto em erudição como em dimensão. Ad-Dinawari descreve não apenas o exterior de cada planta, como também as suas propriedades alimentares, medicinais e outras: classifica-as, descreve o seu hábitat e fornece outros detalhes." A medicina também teve um extraordinário progresso com os muçulmanos, nos ramos da anatomia, da farmacologia, da organização de hospitais e da preparação de médicos, que eram submetidos a exames, antes de serem autorizados a exercer a profissão. Mantendo fronteiras em comum com Bizâncio, com a índia, com a China, etc., a arte médica muçulmana e a sua ciência, tornaram-se uma síntese do conhecimento médico mundial; os usos e costumes populares eram submetidos à experimentação e testes, gerando também novas contribuições. As obras de Razi (Rhazes), de Ibn Sina (Avicena) e de outros foram, até recentemente, a base de todo o estudo da medicina, mesmo no Ocidente. Sabemos, agora, que eles já conheciam a circulação do sangue. Ótica A ciência tem uma dívida específica para com os muçulmanos. Possuímos um livro de raios, de Al-Kindi (do século IX), que já estava muito à frente do saber grego sobre os espelhos incendiários. Ibn al-Haitam (Alkhazen, 965), que o sucedeu, mereceu uma celebridade justa. Al-Kindi,Al-Farabi, Ibn Sina, 161 Al-Biruni e outros, que representam a ciência muçulmana, não cedem o seu lugar a ninguém, na história mundial das ciências. Mineralogia e Mecânica Estes assuntos atraíram a atenção dos eruditos, tanto do ponto de vista médico, como com o propósito de distinguir as pedras preciosas, conhecimento tão almejado pelos reis e por outras pessoas abastadas. As obras de Al-Biruni ainda são úteis nesses campos. Ibn Firnás (m. 888) inventou um aparelho, no qual voava por grandes distâncias. Morreu num acidente, sem deixar qualquer sucessor, que continuasse e aperfeiçoasse o seu trabalho. Outros sábios muçulmanos inventaram instrumentos mecânicos, para içar à superfície navios submersos, ou para arrancar do solo, sem qualquer dificuldade, árvores, de enormes dimensões. Quanto aos conhecimentos do mundo submarino, existem numerosos tratados, escritos, sobre a pesca de pérolas e o tratamento das suas conchas. Zoologia A observação da vida dos animais selvagens e das aves sempre fascinou os beduínos da Arábia. Al-Jáhiz (m. 868) deixou uma imensa obra, para a popularização do assunto, na qual tratava da evolução, tema que mais tarde foi desenvolvido por Ibn Miskawih, Al-Kazwini, Ad-Dumairi e outros. Química e Física O Alcorão estimula os muçulmanos, repetidamente, a meditar sobre a criação do universo, e a estudar como os céus e a terra foram feitos, para serem subservientes ao homem. Portanto, jamais houve qualquer condito entre a fé e a razão, no Islam. Foi assim que os muçulmanos começaram, muito cedo, um estudo sempre progressivo e sério, da química e da física. Atribuem-se obras científicas a Khalid Ibn Yazid (m. 704), ao grande jurista Ja'far As Siddik (m. 765) e ao pupilo deles, Jabir Ibn llayyan (m. 776), cujo mérito tem sido celebrado através dos tempos. A faceta característica das suas obras é a experimentação objetiva, ao invés da simples especulação: era através da observação que eles acumulavam da-dos. Por influência deles, a antiga alquimia foi transformada numa ciência exala, baseada em fatos, passíveis de demonstração. Jabir 162 já conhecia as operações químicas da calcinação e da redução, e desenvolveu, também, os métodos da evaporação, sublimação, cristalização, etc. É evidente que, nesses caminhos do conhecimento humano, foi necessário o trabalho paciente de gerações e séculos inteiros. A existência de traduções latinas das obras de Jabir e de outros, - usadas durante muito tempo como livros de texto básicos, na Europa - é suficiente, para mostrar o quanto a ciência moderna deve às obras dos sábios muçulmanos, e como ela se desenvolveu rapidamente, graças à aplicação do método árabe-muçulmano da experimentação, em vez do método grego. Matemática A ciência matemática tem, no seu desenvolvimento, traços, que não podem ser apagados, da participação muçulmana. Os termos "álgebra", “zero", "cifra," etc., são de origem árabe. Os nomes de Al Khwarizmi, Omar al-Khayyam, AlBiruni e outros, permanecerão tão famosos quanto os de Euclides, do autor hindu da Siddhanta, etc. A trigonometria era desconhecida pelos gregos. O crédito de sua descoberta pertence, indubitavelmente, aos matemáticos muçulmanos. Para Resumir Os muçulmanos continuaram o seu trabalho, a serviço da ciência, até que se abateram grandes desgraças, sobre os seus principais centros intelectuais, Baghdad, no Oriente, e Córdova e Granada, no Ocidente. Estes foram ocupados por bárbaros, para grande infelicidade da ciência, numa época em que a imprensa ainda não se tinha firmado, que queimaram as bibliotecas, com centenas de milhares de manuscritos, ocasionando perdas irreparáveis. Os "massacres por atacado" não livravam os eruditos. O que havia sido construído, durante séculos, foi destruído, em poucos dias. E uma vez que uma civilização entra em declínio, devido a tais calamidades, leva alguns séculos, não só de tempo, mas também de recursos, inclusive de meios para estudar as realizações de outras civilizações - que deveriam ter assumido a bandeira da cultura, diante da queda dos vanguardeiros da civilização que os precedeu -, antes de se poder cobrir a distância. Além do mais, não se pode criar nobreza de caráter e grandes gênios apenas por querê-lo; estas qualidades são dádivas da graça do Todo-Poderoso, para um povo. E que homens de caráter nobre sejam reprimidos, ao invés de serem investidos na liderança dos seus conterrâneos, é mais uma tragédia que, freqüentemente, temos de lamentar. 163 As Artes Como no caso das ciências, também nas artes foi o Alcorão que estabeleceu a iniciativa do seu desenvolvimento, entre os muçulmanos. A recitação litúrgica do Alcorão Sagrado criou uma nova forma de música. A conservação do seu texto tornou necessário o desenvolvimento da caligrafia e da encadernação. A edificação de mesquitas desenvolveu a arquitetura e a arte decorativa. A estas, foram, posteriormente, acrescentadas as necessidades seculares dos mais abastados. Em seu zelo pelo estabelecimento de um equilíbrio entre o corpo e a alma, o Islam ensinava a moderação em todas as coisas, levando os talentos naturais na direção certa, e tentando desenvolver o homem como um todo harmônico. Lemos, no Sahih de Muslim, um interessante dito do Profeta: “Deus é belo e ama a beleza." Outro dos seus ditos nos diz que “A beleza está configurada em todas as coisas; portanto, se matar, faça-o de modo elegante." Deus disse, através do Alcorão, que Adornamos o céu com lâmpadas. (67a Surata, versículo 5) Ou então: Tudo quanto existe sobre a terra, criamo-lo para ornamentá-la, a fim de os experimentarmos e vermos aqueles, dentre eles, que melhor se comportam. (18a Surata, versículo 7) E chega ao ponto de ordenar: Revesti-vos do vosso melhor atavio quando fordes às mesquitas. (7a Surata, versículo 31) Durante a vida do Profeta, foi nos dado a conhecer o seguinte incidente, bastante esclarecedor: Certo dia, ele viu um túmulo, que ainda não estava nivelado por dentro. Ordenou que o defeito fosse acertado, acrescentando que isto não faria nem bem, nem mal aos mortos, mas que seria mais agradável aos olhos dos vivos. A capacidade e o gosto para apreciar as belas-artes são inatos, no homem. Como no caso de todas as outras dádivas naturais, o Islam procura desenvolver os talentos artísticos com espírito de moderação. Podemos lembrar que o excesso de alinegação e de práticas espirituais é proibido no Islam. 164 O mimbar (púlpito) da mesquita, que foi preparado para o Profeta, foi decorado com duas bolas, parecidas com romãs, e os dois pequenos netos do Profeta adoravam ficar brincando com elas. Este foi o início da arte de entalhar madeira. Mais tarde, cópias do Alcorão foram embelezadas com cores, e eram tomados os maiores cuidados, na sua encadernação. Enfim, o Islam jamais proibiu o progresso artístico. A única restrição que fez foi quanto à representação de figuras de animais (incluindo o homem). A proibição não parece, entretanto, ser absoluta; porém, o Profeta impôs uma restrição a este tipo de atividade. As razões para tanto são metafísicas, bem como biológicas e sociais. Na criação, dos diversos reinos, o animal é a mais alta das manifestações, sendo os vegetais e os minerais de ordem inferior. Portanto, na sua ansiedade de mostrar um profundo respeito pelo Criador, o homem reserva a Deus o privilégio da criação suprema, e se con-tenta com a representação de seres e objetos inferiores. O aspecto biológico é o de que o talento não aproveitado eforça aqueles que estão em uso constante. Desse modo, o cego possui uma memória e uma sensibilidade que são muito superiores às dos homens normais. Abstendo-se da representação do reino animal, na pintura, no entalhe, na escultura, etc., o talento inato do artista busca outros canais de extravasamento e se manifesta, com maior vigor, nos outros domínios da arte. Quanto ao aspecto social, o horror ao chauvinismo degenera em idolatria, e a restrição à representação de formas animais imporia, também, uma restrição à idolatria. Há, no entanto, várias exceções, tais como a dos brinquedos das crianças, a decoração de tapetes e tapeçarias - ambos tendo sido explicitamente tolerados pelo Profeta -, necessidades científicas (para o ensino da anatomia, antropologia, etc.), necessidades de segurança policial (como identificação, etc.), e outras de importância igual. Nestes casos, as representações não podem ser restritas. A história demonstra que este "freio" à arte figurativa, entre os muçulmanos, nunca conteve a arte em geral; pelo contrário, foi atingida uma evolução surpreendente, nas esferas não-figurativas. O próprio Alcorão (24a Surata, 36) recomendou grandeza, na edificação das mesquitas. A mesquita de Sulaimaniyeh, em Istambul, o Taj-Mahal, em Agra (na índia), o Palácio de Alhambra, em Granada, e outros monumentos, não são, de modo algum, inferiores às obras-primas de outras civilizações, quer em termos de arquitetura, quer em termos de decoração artística. A caligrafia, como arte, é uma especialidade muçulmana. Ela transforma a escrita numa arte, em vez de usar imagens; é empregada na pintura mural ou na escultura, na decoração de tecelagens finas e outros materiais. Os espécimes excelentes dessa arte, com a sua graça, beleza e poder de execução impression165 antes, são coisas para ver, impossíveis de ser descritas. Outra arte, que é típica dos muçulmanos, é a recitação do Alcorão. Desacompanhada de instrumentos musicais e não sendo, nem sequer em versos, a leitura do Alcorão tem atraído grande atenção, desde os tempos do Profeta. A língua árabe se presta a uma suavidade e a uma melodia, na prosa, dificilmente sobrepujáveis pela poesia rimada de outros idiomas. Aqueles que já ouviram o mestre recitador, ou Kari, recitando o Alcorão, ou mesmo pronunciando, várias vezes ao dia o chamado para as orações, sabem que essa especialidade dos muçulmanos tem encantos próprios e inigualáveis. Até a música e a canção seculares, apadrinhadas por reis e por outras pessoas abastadas, tiveram os seus dias de glória, entre os muçulmanos. Os teóricos, como Al-Farabi, os autores da Rasa'il Ikhwan As-Safa, Avicena e outros, não só deixaram obras monumentais, como também promoveram correções apreciáveis na música grega e hindu. Eles empregaram símbolos, para escrever a música, e descreveram os diferentes instrumentos musicais. A escolha da melodia, adequada a diferentes poemas, e a seleção dos instrumentos, de acordo com as necessidades da ocasião - de alegria e de tristeza, na presença de pessoas doentes, etc. -, todas foram objeto de estudos profundos. Quanto à poesia, o Profeta declarou: 'Há versos e poemas que são plenos de sabedoria e há discursos de oradores que produzem efeitos mágicos." O Alcorão desencorajou a poesia imoral. Seguindo essa diretriz, o Profeta cercou-se dos melhores poetas da sua época, e mostrou-lhes o caminho a ser seguido e os limites que deviam ser respeitados, distinguindo, desse modo, o bom e o mau uso desse grande talento natural. As obras poéticas dos muçulmanos são encontradas em todas as línguas e se referem a todas as épocas; seria impossível descrevê-las, aqui, mesmo da maneira mais breve. Um árabe, no entanto, se sente sempre à vontade com a sua poesia, como se verifica pela sinonímia: Bait significa, tanto uma tenda, como um verso de dois hemistíquios; Misra, tanto significa a aba da tenda, quanto um hemistíquio; Sahab, tanto é a corda da tenda como também uma medida métrica de versos; Watad, significa cavilha da tenda, e também as sílabas métricas dos versos. Estas são apenas algumas, das muitas fabulosas peculiaridades da língua árabe. Em suma, no reino das artes, os muçulmanos fizeram contribuições valiosas, evitando as suas características mais danosas, desenvolvendo os seus aspectos estéticos e inventando coisas novas, para enriquecê-las. Nesta esfera, também, a sua cota de participação, no desenvolvimento das artes, foi considerável. 166 História Geral do Islam A história do Islam representa, praticamente, a história do mundo, nos últimos quatorze séculos. O que podemos tentar, aqui, é traçar, de forma modesta e em linhas gerais, os principais acontecimentos dessa história. Os Califas Ortodoxos No ano 632 (11 H.), o Profeta Muhammad exalou o último suspiro. Durante os vinte e três anos anteriores, ele tinha obtido êxito, num imenso esforço para formar uma religião e criar um Estado do nada, o qual, começando como uma pequena Cidade-Estado, terminou por açambarcar, no curto espaço de dez anos, a administração de toda a Península Arábica, junto com algumas partes do sul da Palestina e do Iraque. Fora isso, ele deixava uma comunidade, composta por várias centenas de milhares de adeptos, possuidores de plena fé e convicção em suas doutrinas, e capazes de continuar o trabalho que ele iniciara. O sucesso temporal do Profeta do Islam estimulou alguns aventureiros, nos derradeiros anos da sua vida, a se intitularem profetas. Por vários meses, após a morte do Profeta Muhammad, a tarefa do seu sucessor, Abu Bakr, consistiu em suprimir esses impostores, que, encorajados pela morte do Profeta, tinham conseguido aliciar algumas pessoas. No momento da morte do Profeta, havia um estado de guerra com Bizâncio, e outro quase igual com o Irã. Relembraremos que um embaixador muçulmano havia sido assassinado, em território bizantino, e que ao invés de fazer as devidas reparações, o imperador não só havia rejeitado todas as opções, propostas pelo Profeta, como havia ordenado a intervenção militar, para proteger o assassino da expedição punitiva, enviada pelos muçulmanos. Quanto à Pérsia, já há alguns anos ocorriam escaramuças sangrentas, entre essa nação e os protetorados da Arábia; algumas das tribos que habitavam essas regiões tinham-se convertido ao Islam. Os atos de agressão e repressão, por parte dos persas, não poderiam ser deixados sem resposta, sem provocar complicações, em escala internacional. Deve-se ter em mente que os Impérios Bizantino e Sassânida constituíam, na época, os dois grandes poderes do mundo, enquanto que os árabes não possuíam nada que fosse invejável, sendo vistos, ainda, como um bando de nômades, destituídos de armamento militar e de recursos materiais. Com uma coragem e temeridade de espírito que nunca será suficientemente admirada, o Califa Abu Bakr empreendeu uma guerra contra esses dois grandes 167 poderes, ao mesmo tempo. No primeiro confronto, os muçulmanos ocuparam determinadas regiões da fronteira. Então, o califa enviou uma embaixada a Constantinopla, para tentar uma solução pacífica, o que foi em vão. A derrota do comandante em Cesaréia, entretanto, alarmou o imperador, e ele alistou novas tropas. Abu Bakr julgou necessário transferir certos elementos do exército muçulmano da frente no Iraque (Império Persa), para a Síria. Em 634, uma nova vitória foi obtida, em Ajnadin, próximo a Jerusalém, seguida de perto por outra, em Pihl; como resultado delas, a Palestina foi definitivamente perdida por Bizâncio. O velho Califa Abu Bakr morreu nessa época, e seu sucessor, Omar, não teve outra alternativa, senão a de continuar essa tarefa. Não demorou muito e Damasco, e em seguida Êmeso (Hims), no norte da Síria, abriram os seus portões aos muçulmanos. Os fatos mostram que os povos dessas regiões receberam os muçulmanos, não como conquistadores e inimigos, mas como libertadores. Após a tomada de Êmeso, os esforços concentrados finais, do Imperador Heráclito, obrigaram os muçulmanos a evacuar a cidade e algumas outras regiões, com o propósito de melhor reagrupar e organizar as suas forças. Quando foi decidida a evacuação, o comandante muçulmano mandou que todos os tributos, recolhidos do povo daquela localidade - todos não-muçulmanos - lhe fossem devolvidos, uma vez que não cabia mais a cobrança de tributos, já que não era mais possível oferecer proteção àqueles súditos. Não é de surpreender, portanto, que os vencidos derramassem lágrimas, ao ver os seus melhores conquistadores serem obrigados a se retirar. De Goeje escreve que: "Na verdade, a disposição dos homens da Síria era muita favorável para com os árabes, e eles a mereciam, uma vez que a brandura com que trataram os vencidos contrastava fortemente com a tirania rígida, que lhes era infligida pelos senhores anteriores (bizantinos)." Logo após a sua retirada tática, os muçulmanos voltaram, com mais forças e popularidade. O destino da Pérsia não foi muito diferente. As primeiras incursões levaram à ocupação de Hira (atual Kufa) e de algumas outras localidades fortificadas. A partida de alguns destacamentos para a Síria criou uma calma momentânea, porém poucos meses depois o conflito recomeçou, e a capital, Mada'in (Ctesifonte), foi facilmente ocupada. O Imperador Yazdgird pediu ajuda ao Imperador da China, ao rei do Turquestão e a outros príncipes vizinhos, mas a ajuda que recebeu não serviu às suas necessidades, e seus aliados também sofreram grandes perdas. Durante o tempo de ornar (634-44), os muçulmanos reinaram de Trípoli (Lí168 bia) a Balkh (no Afeganistão) e da Armênia ao Sind e a Gujerae (na índia), e sobre as nações que ficavam no seu caminho, tais como a Síria, o Iraque, o Irã, etc. Sob o seu sucessor, Otman (644-56), eles tornaram-se senhores da Núbia, até aos arredores de Dongola, e também ocuparam uma parte da Andaluzia (Espanha); no Oriente, atravessaram o rio Oxus (Laihun) e tomaram algum território aos chineses. As ilhas de Chipre, Rodes e Creta tornaram-se parte das terras do Islam; e até Constantinopla experimentou um primeiro ataque árabe. Pouco mais do que quinze anos haviam transcorrido, desde a morte do Profeta, quando a expansão muçulmana, no eixo Leste-Oeste, se estendeu do Atlântico até as costas do Pacífico, e foi ocupada uma área que era tão grande quanto o continente europeu inteiro. Nessa "conquista-relâmpago", o que é mais surpreendente é que em nenhum lugar os povos conquistados reclamavam. Isto também é comprovado pelo fato de que, no ano 656, quando os muçulmanos se viram divididos pela sua primeira guerra civil, não houve revoltas locais, e o imperador bizantino não pôde contar com nenhum dos seus súditos anteriores, tendo que se contentar com uma pequena indenização, que lhe foi prometida pelo cauteloso governador muçulmano da Síria, em troca da sua neutralidade. Seria um erro atribuir essa rápida expansão a qualquer causa isolada. O enfraquecimento dos Impérios Bizantino e Sassânida resultou dos conflitos mútuos, compensando a falta de equipamento bélico, organização e outros recursos materiais dos conquistadores árabes. Os muçulmanos não podiam se espalhar em massa, da China à Espanha, e não havia árabes suficientes para distribuir por todo esse vasto território. Já vimos que as causas originais dessas guerras foram políticas; não houve qualquer desejo de impor a religião pela força, ainda mais que a sua religião proibia, formalmente, sequer pensar nisso. A história também nos mostra que nessa época não foi sequer empregada qualquer compulsão, para converter os povos subjugados. A simplicidade e a racionalidade da sua doutrina religiosa, junto com o exemplo de vida prática dos muçulmanos, foi, sem dúvida, o que atraiu adeptos. A pilhagem ou os ganhos econômicos seriam motivos ainda mais pobres para explicar a velocidade das conquistas; por outro lado, a troca de senhores foi saudada, pelos vencidos, como uma mudança para melhor. Os documentos administrativos contemporâneos, escritos em papi-ros, recentemente descobertos no Egito, atestam o fato de que os árabes tinham aliviado em muito a carga de tributos, no Egito - e parece certo que reformas idênticas foram introduzidas em todos os países conquistados. O custo da administração também foi bastante reduzido, em conseqüência, não apenas da frugalidade da vida dos árabes, mas também da honestidade dos administradores muçulmanos. Os despejos de guerra não 169 pertencem, no Islam, aos soldados que os tomam, mas ao governo, e é este que, por fim, o distribui entre os componentes da expedição, em proporções fixadas por lei. O Califa Omar ficava constantemente surpreso com a honestidade dos soldados e dos oficiais, que entregavam até pedras preciosas e outros objetos de valor, que poderiam ter sido facilmente escondidos. Podemos concluir esta parte, citando um documento contemporâneo cristão. Este se refere a uma carta de um bispo nestoriano, endereçada a um amigo dele, que foi preservada (cf. Assemani, Bibl. Orient, III, 2, p. 96): Esses tayitas (i.e., árabes), a quem Deus concedeu a dominação, nestes nossos dias, também se tornaram nossos senhores; entretanto, eles não com batem a religião cristã de nenhum modo; pelo contrário, até protegem a nos sa fé, respeitam os nossos sacerdotes e os nossos santos, e fazem doações às nossas igrejas e conventos." Os Omíadas Com a morte do terceiro califa, Otman, o mundo muçulmano enfrentou uma guerra de secessão, que foi renovada diversas vezes, nos trinta anos subseqüentes, no curso da qual mais de meia dúzia de soberanos subiram ao trono e sumiram de cena. Com a ascensão ao poder de 'Abd al-Málik (685-705), o governo novamente se estabilizou, e iniciou-se uma nova onda de conquistas. O Marrocos e a Espanha, por um lado, e o Norte da índia e a Transoxiana, por outro, foram acrescentados ao domínio dos muçulmanos. Vemos Bordeaux, Narbonne e Toulouse (na França), também passando para as suas mãos. A capital mudou de Madina para Damasco. Quando a Cidade Sagrada deu lugar ao que antes havia sido uma localidade bizantina, a devoção também enfraqueceu, em favor das atividades temporais. O luxo e o desperdício de riquezas, o favoritismo e as conseqüentes revoltas e revoluções não faltaram. Entretanto, as conquistas aumentaram, nos campos intelectual e social. A indústria recebeu um grande impulso; a medicina foi especialmente estimulada pelo governo, que empreendeu a tradução de obras de medicina estrangeiras, do grego e de outras línguas, para o árabe. O curto reino de ornar Ibn 'Abdel 'Aziz (817-20) foi especialmente brilhante e marcante. Sendo ele próprio monógamo, por sua devoção, promoveu um renascimento dos períodos de Abu Bakr e de Omar. Procedeu a uma revisão dos processos antigos de confisco, fazendo devolver propriedades a seus donos de direito ou aos herdeiros deles. Aboliu muitos tributos injustificados. Chegou até a ordenar a evacuação de cidades, que haviam sido ocupadas, traiçoeiramente, por exércitos muçulmanos. O resultado foi espantoso. No início da sua dinastia, as receitas do Iraque, por exemplo, 170 somavam 100 milhões de dirhams, caindo para 18 milhões sob o califa que o precedeu. Porém, no seu tempo, a receita voltou a crescer, atingindo 120 milhões. A sua devoção religiosa produziu uma boa impressão no mundo todo, e os rajás do Sind converteram-se ao Islam. O mundo inteiro começou a se interessar pelos estudos religiosos, e surgiu toda uma galáxia de sábios, para alcançar ápices, nos campos da ciência, na comuni-dade muçulmana. A repressão vigorosa da corrupção serviu, ainda mais, para popularizar a administração, em todos os aspectos. Entre os monumentos arquitetônicos desse tempo, está a Cúpula do Rochedo, em Jerusalém, construída em 691. As ruínas de outros monumentos, em Damasco e em outros lugares, atestam o progresso, igualmente precoce, dos muçulmanos, nesse campo. Observou-se, nessa época, também, um grande desenvolvimento da música, apesar de ainda não ter sido inventada a partitura; por isso, não podemos ter uma idéia definida do progresso alcançado. As duas grandes divisões, entre os muçulmanos, os sunitas e os chi'itas, se formaram nesse período. A diferença entre esses dois grupos está baseada numa questão política, relativa ao problema da sucessão do Profeta, sobre se ela deveria ocorrer por eleição ou por hereditariedade, recaindo, neste último caso, sobre descendentes mais próximos do Profeta. Esta questão transformou-se num dogma, para os chi'itas, e o cisma gerou ramificações próprias e guerras civis. Foi uma revolta dessas que acabou por derrubar a dinastia dos omíadas, fazendo-a dar lugar, em 750, à dos abácidas. Mas os chi'itas não lucraram muito com a mudança. Nos nossos dias, provavelmente, não mais do que dez por cento dos muçulmanos do mundo são chi'itas, sendo sunitas os demais, para não falar no grupo infinitamente pequeno dos kharijitas, que também surgiu, mais ou menos, nesse período. Os Abácidas A ascensão ao poder dos abácidas, em 750, coincide com a divisão do território muçulmano, primeiro em duas partes, e depois em um número cada vez maior de pedaços. Em Córdova (Espanha), foi estabelecido um califado rival, que nunca se reconciliou, até à sua queda, em 1492, com o Leste, onde Bagdad tinha tomado o lugar de Damasco, como sede do califado. A história dos abácidas não nos apresenta conquistas militares, se excluirmos as iniciativas de chefes regionais, os quais, apesar de reconhecer o califa de Bagdad como seu soberano, não dependiam dele para nada, quer em assuntos de política estrangeira, quer na administração interna. Falaremos do sub con171 tinente da índia, nesse contexto, em um parágrafo próprio. As relações com Bizâncio tornaram-se cada vez mais amargas e sangrentas, e o império grego viu-se obrigado a deixar definitivamente a Ásia Menor e a contentar-se, por mais algum tempo, apenas com as suas possessões européias. Os abácidas inauguraram a política do emprego de mercenários de origem turca, e isto deu origem ao feudalismo e culminou, posteriormente, no estabelecimento de províncias independentes, onde vamos encontrar "dinastias" de governadores. Cerca de um século depois de subirem ao poder, os califas abácidas começaram a delegar - e até a perder - as suas prerrogativas de soberanos para governadores descentralizadores, até que, gradativamente, a sua soberania se viu limitada ao seu próprio palácio, sendo o resto controlado pelos emires, dos quais o mais poderoso ocupava até a capital. Vemos aí um contraste estranho com o Papado: os papas começaram sem nenhum poder político, mas foram adquirindo-o gradativamente, especialmente após a criação do Sacro Império Romano. Por algum tempo eles se tornaram mais fortes até do que os imperadores, perdendo essa autoridade somente no ecorrer do tempo. Foi no reinado dos abácidas que o governador de Túnis foi chamado a intervir nas guerras civis da Sicília. Ele ocupou a ilha, e um bom pedaço da Itália continental, chegando a avançar até perto dos muros de Roma. O Sul da França também foi anexado, assim como também uma boa parte da Suíça. Essa onda expansionista foi levada a efeito pelos aglábidas, que foram posteriormente substituídos, à força, evidentemente, pelos fatímidas. Estes últimos eram chi'itas, e transferiram a sua capital para o Cairo, onde estabeleceram um califado rival. Civilizadores em geral, um deles, entretanto, profanou, num momento de insensatez, os santuários sagrados dos cristãos em Jerusalém. Isto provocou um enorme ressentimento na Europa, e até os papas pregaram uma guerra santa contra o Islam. Seguiram-se uma série de cruzadas, que fizeram sangrar, tanto o Oriente quanto o Ocidente, por duzentos anos. No tempo da primeira cruzada, os fatímidas já tinham abandonado a Palestina, e foi a população inocente que se viu vitimada pela fúria dos invasores. Fato ainda mais patético é que esses fatímidas, às vezes, colaboravam com as cruzadas, em sua guerra contra o Levante. Os curdos e os turcos começaram a tomar o lugar dos árabes, na luta contra o Ocidente. Salahuddin (Saladino), herói muçulmano da época da segunda cruzada, não só expulsou os europeus da Síria-Palestina, como também varreu os fatímidas do Egito. Salahuddin e os seus sucessores reconheceram o califado de Bagdad, porém este jamais conseguiu recuperar o seu poder político, que permaneceu dividido entre vários Estados fragmentários. Alguns deles conseguiram estender as fronteiras das terras muçulmanas. 172 Em 921, o rei búlgaro (i.e., a região de Kazan, às margens do rio Volga, na Rússia), pediu um missionário muçulmano a Baghdad. Ibn Fa-dlan foi o enviado. De acordo com o relato da sua viagem, que é extremamente interessante, o rei búlgaro converteu-se ao Islam, e criou, por assim dizer, uma ilha islâmica, no meio de regiões não-muçulmanas. A islamização do Cáucaso e das regiões vizinhas continuou, lentamente. Índia A dinastia gaznávida do Afeganistão começou a conquista da índia. Outras dinastias se seguiram, que se contentaram apenas com o norte do país, até à chegada dos khiljids, que estenderam as suas conquistas para o sul. Um comandante negro, Málik Kafur, numa "expedição-relâmpago," chegou até ao Cabo Comorim, porém, só mais tarde é que o sul da Índia veria o estabelecimento de Estados muçulmanos naquela área. Os Grão Mughals (1526-1858) são especialmente decantados na história muçulmana da índia. Por muito tempo, eles reinaram sobre quase todo esse vasto subcontinente, sendo considerados os "Grandes" do mundo. A sua autoridade central começou a ser enfraquecida, entretanto, pela ação de governadores provinciais, a partir do século XVIII. Foi somente em 1858 que os ingleses os expulsaram, anexando três quintas partes do país à Coroa, ficando o resto dividido em Estados indígenas, alguns dos quais eram muçulmanos. Estes últimos conservaram a cultura indo-muçulmana até aos nossos dias. Um deles, Haidarabad, situado no centro da índia, era tão grande quanto a Itália, com mais de 20 milhões de habitantes. Ele era bem renomado pela atenção que dispensava, especialmente à reforma da educação islâmica. Em sua universidade, fundada ao estilo ocidental, com uma dúzia de faculdades, existia, também, uma faculdade de teologia islâmica. Esta universidade lecionava em todos os níveis de todas as faculdades, na língua local, urdu, escrita com caracteres árabes. A especialização começava na fase escolar, sendo a língua árabe obrigatória, ensinando-se o Fiquih (leis muçulmanas) e o Hadis (ditos do Profeta e documentos sobre a sua vida), junto com outras matérias, como a língua inglesa, matemática e outros cursos de educação moderna. Na fase universitária, os estudantes da Faculdade de Teologia aprendiam, não somente um inglês de alto nível, como também o árabe e matérias relacionadas exclusivamente aos estudos islâmicos. Além disso, tornaram-se moda os estudos comparativos. Com o Fiquih, se emparelhava a jurisprudência moderna; com o Kalam, a história da filosofia ocidental; com o árabe, ensinava-se também o hebraico ou alguma língua européia moderna, sendo as preferidas o francês e o alemão. Quando os estudantes preparavam as suas teses, viam-se ligados a duas orientações: por um lado, a de um professor 173 da Faculdade de Teologia, e, por outro, a de um professor da Faculdade de Artes e Letras ou de Direito, conforme o caso. Isto proporcionava condições para o aprendizado simultâneo, tanto dos fatos islâmicos, como das tendências ocidentais modernas, sobre a mesma matéria. Depois de trinta anos de experiência e de obter resultados muito felizes, não restam, atualmente, mais do que lembranças distantes de tudo isto, pois quando os ingleses deixaram o país de vez, em 1947, dividindo o país entre o Paquistão muçulmano e o Bharat não-muçulmano, este último, não só incorporou os seus Estados indígenas vizinhos, como também os desmantelou e dissolveu, impondo-lhes novos sistemas administrativos. Voltemos ao nosso assunto principal. Como espectadores passivos, os califas de Baghdad continuaram a assistir às constantes modificações nas "províncias", onde golpes de Estado substituíam os governadores, dividiam uma província em duas ou três unidades, reuniam diferentes províncias sob o mesmo jugo, e assim por diante. Ainda assim, foram raros os casos em que terras do Islam foram ocupadas por não-muçulmanos. Os seljúcidas merecem menção especial. Com a sua ascensão ao poder, no século XI, eles subjugaram não apenas a Ásia Central, mas estenderam as suas conquistas às mais longínquas regiões da Ásia Menor, tendo Kônia (Iconium) por capital. Após algumas gerações de brilhante reinado, eles de-ram lugar àqueles a quem chamamos de turcos otomanos. Foram estes últimos que, mais tarde, atravessaram o Bósforo e estenderam o domínio islâmico até aos muros de Viena. A sua primeira capital foi Brusa (Bursa), depois Constantinopla (Bizâncio, agora Istambul), e atualmente é Ankara. O seu recuo começou no século XVIII, com a evacuação, por eles, de terras européias, e atingiu o seu clímax em 1919, quando eles perderam tudo, na Primeira Guerra Mundial. Alguns acontecimentos felizes, de natureza internacional, ajudaram a Turquia a ressurgir como uma república, que nos seus primórdios foi ferozmente nacionalista e secular; mas, sendo democrática por natureza, o seu regime teve de conformar-se, cada vez mais, com os sentimentos religiosos do povo, sentimentos esses profundamente muçulmanos. No século XVI, os turcos otomanos reinavam sobre a Europa até à Áustria, a África do Norte até à Argélia, e a Ásia, da Geórgia ao Iêmen, passando pela Mesopotâmia, pela Arábia e pela Ásia Menor. Algumas das suas antigas possessões muçulmanas são, hoje, Estados independentes, enquanto outras passaram à dominação da Ex-União Soviética, até a desintegração desta, em 1991, 174 e o restabelecimento de novos Estados Islâmicos independentes, sem falar nas regiões com maioria não-muçulmana, que se separaram da Turquia. No século XIII, alguns tártaros haviam-se convertido ao Islam. Hulagu era o seu líder, e massacrou centenas de milhares de pessoas, no seu avanço, até destruir Baghdad em 1258, que era, então, a sede do califado. Entretanto, o seu exército foi aniquilado na Palestina, por Barbars, rei muçulmano do Egito. Hulagu tentou liderar uma nova invasão, e convidou até os cruzados para formarem, com ele, uma aliança ofensiva, mas sem êxito. Este evento marca o declínio da ciência muçulmana e a aurora da ciência ocidental. Hoje, neste século XX, os muçulmanos estão muito atrasados, quando comparados com alguns dos americano-europeus, nesse campo. Deve-se observar que os esforços de místicos muçulmanos reorganizaram esses tártaros bárbaros, que, tendo-se convertido ao Islam, não somente assumiram a causa deste, mas também emigraram para diferentes países da Europa, colonizando-os. Sobrevivem traços remanescentes deles nas comunidades muçulmanas da Finlândia, Lituânia, Polônia e Ex-URSS. O Califado Andaluz Como mencionamos acima, foi com a ascensão ao poder do califado dos abácidas que a Espanha se separou do Oriente muçulmano. Após quase mil anos de dominação, em 1492, os últimos traços de um Estado muçulmano foram varridos da Espanha, pelos cristãos de Castela. O período muçulmano foi um período de progresso e prosperidade material. As universidades muçulmanas, que ali existiam, atraíam, constantemente, estudantes não-muçulmanos de todas as partes da Europa. As ruínas da arquitetura muçulmana, ainda encontradas na Península Ibérica, mostram o progresso espantoso que foi alcançado nesse campo. Após o enfraquecimento político, os muçulmanos foram vítimas de sangrentas perseguições, que visavam convertê-los ao cristianismo, com a destruição, em massa, das suas bibliotecas, nas quais se perderam centenas de milhares de manuscritos, queimados quando a imprensa ainda não se tinha projetado. A perda foi irreparável. A Ásia Oriental e o Sudeste Asiático A China jamais conheceu a dominação política muçulmana. Avançando pela Ásia Central, os muçulmanos islamizaram a província de Sin-Kiang, e viajando, provavelmente, por rotas marítimas, eles ganharam terreno para a sua fé, na província sulina de Un-Nan. Surgiram alguns principados efêmeros, mas 175 os milhões de habitantes da China e do Tibete foram atraídos ao Islam, acima de tudo, pela ação pacífica dos missionários muçulmanos. A grande maioria dos chineses, entretanto, sempre se manteve à parte da religião monoteísta do Islam. Muito diferente é a história do Sudeste Asiático. Nestes últimos séculos, mercadores muçulmanos do Sul da Arábia e do Sul da índia têm viajado para esta parte do continente, e graças aos seus esforços em propagar a fé, não só na Península da Malásia, como também nos milhares de ilhas desta região, quase que conquistaram completamente estas terras para o Islam. Na Indonésia, como também nas ilhas do sul das Filipinas, o Islam tornou-se predominante. Dividida como estava, num grande número de principados, esta região, aos poucos, se submeteu ao jugo dos europeus, especialmente dos ingleses e dos holandeses. Depois de vários séculos de dominação estrangeira, a Indonésia, com os seus setenta milhões de muçulmanos, conseguiu recuperar a sua independência, e a Península da Malásia, caminhando para a soberania autônoma completa, dentro da Confederação Britânica (Commonwealth), também a obteve recentemente. África A África do Norte, do Egito ao Marrocos, esteve anexada a territórios islâmicos desde os primeiros séculos do Islam. No resto do continente, as diferentes regiões têm histórias próprias de desenvolvimento. A África Oriental foi, naturalmente, a primeira a ser influenciada pelo Islam, graças à proximidade com a Arábia. Não só vastas regiões foram fortemente islamizadas, como também se desenvolveram, ali, Estados muçulmanos de grande importância. A África Ocidental conheceu o Islam algo mais tarde; assim mesmo, os esforços dinâmicos de certos governantes muçulmanos, naquela região - esforços condizentes com as culturas indígenas -, converteram uma grande parte da população à Fé. Através dos séculos, encontramos diversos desses verdadeiros impérios muçulmanos. De acordo com os cronistas árabes, foi a população amante do mar dessa região que primeiro descobriu o caminho das Américas, especialmente, o Brasil aventurando-se pelos oceanos. Os primeiros europeus que ali chegaram (às Américas), com Cristóvão Colombo e seus sucessores, encontraram, já radicadas, populações negras. Apesar da falta de documentos históricos, tudo indica que foram os muçulmanos da África Negra e os berberes, que participaram da colonização da América, - como sugere o próprio nome Brasil, uma vez que Biralah é o nome de uma bem conhecida tribo berbere, e o nome coletivo dos membros dessa tribo é exatamente Brasil. A ilha de 176 Palma, no Atlântico, chamava-se, antes, Bene Hoare - tal e qual o nome de outra tribo berbere, os Beni Huwara -, o que reforça, ainda mais, essa suposição. A relação da África Ocidental muçulmana com a América continuou até à queda da Espanha Muçulmana e o início das viagens européias à América. A África também sucumbiu diante das potências européias, tais como a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália, Portugal e a Bélgica. Há vastas área do continente que jamais conheceram o domínio islâmico e, no entanto, o Islam as alcançou e penetrou, mesmo naqueles tempos de estreita vigilância e de toda sorte de obstáculos, impostos pelos senhores ocidentais, que ali imperavam. Entre os países que tinham um percentual elevado de população islâmica, o Sudão e a Guiné são hoje totalmente independentes; a Nigéria e a Somália viriam a sê-lo a partir da década de 1960. Outras regiões também marcham em direção a uma autonomia crescente. As Áfricas Francesa Ocidental e Equatorial são exemplos notáveis. O Mundo Contemporâneo Da Indonésia ao Marrocos, há uma série de Estados muçulmanos, que já são membros da ONU. Se na Europa existe a Albânia, dentro da Ex-URSS há várias outras repúblicas muçulmanas, que conseguiram a sua autonomia, com a desintegração da União Soviética. A Confederação (Co-m-monwealth), desenvolvida pelos britânicos, mostrou que o convívio com uma coletividade de Estados não-muçulmanos não impede a verdadeira independência dos muçulmanos. Se a França, Rússia, índia, China e outros países preparem os seus territórios muçulmanos para a autonomia integral, a luta pela libertação, empreendida por eles, perderá a sua razão de ser, e todos serão capazes de viver e conviver em concórdia e cooperação, com um no sentido de bem-estar universal. O Islam está representado, e de fato assim tem sido há longos séculos, no seio de todas os principais povos, com exceção dos índios peles-vermelhas da América. Os povos de língua árabe fundamentam a sua importância especialmente no fato de que são depositários dos ensinamentos originais do Islam, contidos principalmente no Alcorão e no Hadis. Os indo-paquistaneses e os maláio-indonésios constituem os dois grupos étnicos mais numerosos. A raça negra desfruta do privilégio especial de ter preservado as suas energias até aos nossos dias. Sábios eruditos, como o Prof.Arnold Toynbee, de Londres, não hesitam em conjecturar que a próxima etapa da civilização humana terá os negros na sua liderança. E o Islam está, na realidade, à frente, nessa corrida, com numerosos seguidores, sendo o zelo que demonstram os novos convertidos bem conhecido. 177 O numero exato de muçulmanos, no mundo, dificilmente pode ser contado com precisão, pois há mortes e nascimentos, e há conversões que, freqüentemente, não são publicamente assumidas, por razões pessoais diversas. Mas, a partir das informações disponíveis, não há dúvida de que algo em tomo de uma quarta parte dos descendentes de Adão e Eva já se voltam, diariamente, em direção à Caaba (em Makka), para proclamar, em alto e bom som, Alláhu-Akbar, Deus é o Maior! A Vida Diária de um Muçulmano Nascimento Se uma religião não for preservada, para uso exclusivo de uma raça, ou restrita a uma nação, mas se destinar a toda a humanidade, então existirão dois tipos de nascimentos: o voluntário e o involuntário. Primeiramente, há o nascimento voluntário, ou a conversão de um adulto, com plena consciência do seu ato e por sua livre e espontânea vontade, representando aquilo que o Profeta Muhammad descrevia, dizendo: "declaração pela língua e afirmação pelo coração." Primeiro, toma-se um banho, de preferência de chuveiro, com o fim de purificar simbolicamente o corpo, limpando-o da sujeira da ignorância e da descrença; em seguida, declara-se, geralmente na presença de duas testemunhas, a seguinte fórmula: "Testemunho que não há outra divindade além de Deus, e testemunho que Muhammad é o Mensageiro de Deus" (achhadu an-la iláha il-lalah wa ach-hadu anna muham-madan rassu-lullah) O Profeta costumava perguntar ao novo convertido o seu nome e, se este tinha algum traço anti-islâmico, ele o mudava, dando à pessoa um nome novo e mais conveniente. Assim, se o homem se chamava "Adorador da Caaba" ou "Adorador do Sol", ou ainda "o disperso" ou "o errado", etc., o Profeta não tolerava tais cognominações. Hoje em dia, os convertidos, geralmente, adotam um novo prenome árabe, a língua materna do Profeta e das esposas do Profeta, que são as Mães dos fiéis - e, portanto, a língua mãe de todo o muçulmano. Sendo o árabe a língua mãe espiritual de todo o muçulmano, é seu dever 178 aprendê-la, pelo menos o alfabeto, para que assim seja capaz de ler o Alcorão no original. Em todas as épocas, os convertidos sempre deram tão grande importância a isto, que até adotaram a forma gráfica da escrita árabe, nas suas línguas originais. Assim foi com os persas, os turcos, os falantes do urdu, os malaios, os falantes do pashtu, os curdos, etc. Recomenda-se, sobremaneira, aos novos ingressantes no Islam, assenhorear-se da escrita árabe e empregá-la - pelo menos na correspondência intra-muçulmanos -, mesmo quando estiverem a escrever em suas línguas locais. Na verdade, quando a escrita árabe é utilizada, com todos os seus símbolos de vocalização, ela é incomparavelmente superior a todas as outras escritas do mundo, do ponto de vista da precisão e da ausência de ambigüidade. No caso do português, pode-se sugerir que se acrescentem novas consoantes e novos símbolos para as vogais breves, que são típicas no português e não existem no árabe: Se quisermos escrever algo em português, utilizando-nos do alfabeto árabe, é muito fácil. Daremos, aqui, um exemplo: O Islam é a religião do futuro. É um prazer ver os muçulmanos, que falam a língua portuguesa, adaptarem a escrita árabe ao seu idioma, o que os aproxima mais do Alcorão e do seu Profeta Muhammad (Deus o abençoe e lhe dê paz). Em seguida, vem o nascimento involuntário, quando nasce uma criança numa família muçulmana. Imediatamente após a parteira terminar o seu trabalho, pronuncia-se o adan no ouvido direito da criança, e a icáma no seu ouvido esquerdo, de modo a fazer com que a primeira coisa que o recém-nascido escute seja o testemunho da fé, o chamado ao louvor do Criador e o pedido de graças pelo seu bem-estar. O adan ou "Chamado à Oração", é o seguinte: "Deus é o Maior", (quatro vezes), "Eu testemunho que não há outra divindade, além de Deus" (duas vezes). "Testemunho que Muhammad é o Mensageiro de Deus" (duas vezes). "Vinde para a oração" (duas vezes). "Vinde para a salvação" (duas vezes). "Deus é o Maior" (duas vezes). "Não há outra divindade, além de Deus". A icáma ou a preparação para a oração, é formulada nos seguintes termos: "Deus é Maior! Deus é Maior! Testemunho que não há outra divindade além de Deus; testemunho que Muhammad é o Mensageiro de Deus! Vinde para a oração; vinde para a salvação; a oração está prestes a começar; a oração está prestes a começar; Deus é Maior; Deus é Maior. Não há outra divindade além de Deus". 179 Os Primeiros Anos de Vida Quando se cortam, pela primeira vez os cabelos da criança, costuma-se distribuir o equivalente ao peso destes em prata ou o valor correspondente em dinheiro, entre os pobres. Se se dispõe de meios para tanto, abate-se uma cabra ou uma ovelha, para festejar a ocasião com os pobres e com os amigos. Não há uma idade específica, mas a circuncisão é feita, no menino, quando ainda em tenra idade. Para os adultos convertidos isto não é obrigatório. Quando a criança chega à idade adequada para iniciar os seus estudos, logo após os primeiros quatro anos, organiza-se uma festa em família, ocasião em que a criança recebe a sua primeira lição. Para promover um augúrio, lê-se, diante da criança, os primeiros cinco versículos da 96a Surata do Alcorão, que consistem da primeira revelação que sobreveio ao iletrado Profeta do Islam, e que se refere à leitura e à escrita. Faz-se a criança repetir, palavra por palavra esse texto. Eis uma tradução: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Lê, em nome do teu Senhor, que criou; Criou o homem de um coágulo. Lê, que teu Senhor é Generosíssimo, Que ensinou através do cálamo, Ensinou ao homem o que este não sabia. (96a Surata, versículos 1-5) Quando a criança já tiver capacidade para isso, ensinar-se-lhe-á a orar, instruindo-a gradativamente a decorar os textos apropriados, dos quais falaremos adiante mais pormenorizadamente. A partir do seu décimo ano de idade, os pais devem impôr-lhe disciplina, para que a criança se habitue a orar. O jejum é obrigatório, tanto quanto a oração, desde que a criança atinge a puberdade. Nas famílias muçulmanas, entretanto, a criança começa a acostumar-se a isso mais cedo. Aliás, a primeira vez constitui-se em ocasião de grande alegria e festividade, quando a criança cumpre o primeiro jejum no mês de Ramadan. Geralmente, com a idade de doze anos, a criança começa jejuando apenas um dia, aumentando o número de dias com o passar dos anos, de maneira a estar acostumada a suportar a tensão de jejuar um mês inteiro. Isto acontece quando ela já é maior. A Peregrinação (Hajj), é obrigatória pelo menos uma vez na vida, desde que 180 se tenha recursos para realizá-la. Deve ser feita na segunda semana do mês lunar de Dhul-Hijja, quando toda a gente se reúne em Makka, passando uma semana em lugares diversos, nos arredores da cidade, em 'Arafat, Muzdalifa e Mina. Guias oficiais instruem todos os peregrinos sobre o desempenho correto dos diversos ritos. O zakat é um tributo, imposto sobre diferentes tipos de produtos e propriedades, tais como agricultura, comércio, exploração mineral, manadas de carneiros, cabras, reses e caravanas de camelos, por pastarem em campos públicos, e sobre economias em dinheiro. Hoje em dia, é sobre este último item que, não apenas nos países não-muçulmanos, como também nos muçulmanos, cabe a cada indivíduo muçulmano contribuir, como caridade pessoal regular, já que os demais são taxados pelos respectivos governos locais. Assim, aquele que tiver economizado determinado montante (digamos, 200 dirhams ou moedas de prata do tempo do Profeta, correspondendo hoje a mais ou menos 5 libras esterlinas ou a 14 dólares americanos), e retiver essa economia por um ano, deverá pagar, sobre ela, um tributo correspondente a dois e meio por cento do total. Se estiver endividado, deduz-se o valor da dívida do total das economias, para calcular o valor líquido sobre o qual incide o tributo. A distribuição do zakat é feita diretamente, ou através de instituições, que porventura existam na localidade. De acordo com o Alcorão, este tributo existe: ... para os pobres, para os necessitados, para os funcionários, empregados na sua arrecadação, para aqueles cujos corações têm de ser conquistados, para a redenção dos escravos, para os endividados, para a causa de Deus e para o viandante. (9a Surata, versículo 60) Podemos usar o total do nosso zakat anual para um item, apenas, ou para diversos deles. Há um outro tributo, que é pago por ocasião dos dois festivais anuais. No final do mês do jejum costuma-se dar, a algum pobre, dinheiro suficiente para alimentar uma pessoa, por um dia. O segundo festival ocorre ao mesmo tempo em que se procede à peregrinação anual, em Makka. Nessa época, as pessoas que têm condições melhores, sacrificam uma cabra ou uma ovelha, destinando uma parte da mesma para ser distribuída entre os pobres, e a outra parte para o consumo da família. Em relação aos assuntos monetários, deve-se ter em mente que não é permitido, ao muçulmano, participar de transações que envolvam o recebimento de 181 juros sobre empréstimos, ou de jogos de azar, loterias ou outras atividades especulativas semelhantes. Ninguém paga juros por vontade própria. Exigir juros, por empréstimos feitos a pessoas particulares, deve ser evitado. A questão dos juros bancários sobre as economias é complicada, e depende do mecanismo da administração de cada banco. Se o banco é usurário, os lucros que advêm das suas operações também são ilícitos; porém, em certos países, acontece não existirem outros tipos de bancos e de, caso nos recusemos a receber os juros, o banco remeter tais valores recusados para crédito de instituições que, às vezes, são prejudiciais ao Islam, tais como obras missionárias, que almejam promover a apostasia dos muçulmanos. Portanto, devemos recuperar os juros percebidos pelos nossos depósitos no banco, mas ao invés de gastá-los com a nossa própria pessoa ou com alguém da nossa família, devemos utilizá-los em obras de cari-dade. É lícito contratar seguro com entidades governamentais ou com sociedades que atuem pelo sistema mutuário. Casamento O homem muçulmano pode casar-se, não somente com uma mulher muçulmana, mas também com uma mulher de fé judaica ou cristã; mas não com uma adepta da idolatria, politeísta ou ateia. Uma mulher muçulmana não se pode casar com um homem que não seja muçulmano. No caso de uma mulher casada converter-se ao Islam, não sendo o seu marido muçulmano, a vida conjugai cessa imediatamente, e, após um prazo razoável, a mulher deve pleitear a separação judicial. Morte O muçulmano moribundo, em seu leito de morte, deve procurar pronunciar a seguinte profissão de fé: "Não há outra divindade além de Deus, Muhammad é o Mensageiro de Deus." As pessoas que estiverem ao redor do moribundo poderão ajudar, repetindo essa fórmula, para a pessoa que está nos estertores da morte. O corpo da pessoa falecida deve ser lavado e limpo, sempre que possível, antes do enterro. A mortalha consiste de três lençóis simples, após a retirada da roupa costumeira. Ao banhar o morto, é despejada água, primeiramente misturada com sabão ou material parecido; em segundo lugar, utiliza-se água para lavar todos os 182 traços da primeira mistura; e finalmente, a água é misturada com um pouco de cânfora e despejada por todo o corpo do morto. Quando não é possível banhar o corpo adequadamente, então é suficiente praticar o tayammum (ver na parte que trata das abluções). Depois de amortalhar o corpo, é celebrado o funeral. Este rito pode ser realizado, mesmo estando ausente o corpo, que pode ter sido enterrado em outro local. A sepultura deve ser aberta paralelamente a Makka, tanto quanto possível, sendo a cabeça do morto virada um pouco para o lado direito, de modo a ficar olhando para a Caaba. Ao intro-duzir o corpo do morto na sepultura, pronuncia-se a seguinte fórmula: "Em nome de Deus e pela religião do Mensageiro de Deus". Os muçulmanos acreditam que o morto é visitado, na sepultura, por dois anjos, que lhe fazem certas perguntas, quanto à sua crença,. Por isso, após o enterro, pronunciamos, junto ao túmulo, um texto, como que para orientar o morto sobre como ele deverá responder. A tradução desse texto é a seguinte: "Ó servo (a) de Deus, recorda-te do testemunho que fizeste, ao deixar esta vida, isto é, da afirmação que fizeste de que não há outra divindade além de Deus, e de que Muhammad é o Mensageiro de Deus, e de que a crença no Paraíso é veraz, de que o Inferno existe, de que o questionamento, dentro da sepultura, haverá e de que o Dia do Juízo Final virá, não havendo dúvidas a respeito dessas coisas; de que Deus ressuscitará todos os que estão sepultos, e de que aceitaste Deus como o teu senhor, o Islam como a tua religião, Muhammad como o teu Profeta, o Alcorão como teu guia, a Caaba como a diretriz, para a qual te voltas, para realizares as orações, e de que todos os crentes são teus irmãos. Que Deus te mantenha firme nesta senda." Pois o Alcorão diz: Deus manterá os crentes com a palavra firme, na vida terrena, tão bem como na outra vida, e desviará os iníquos, porque procede como Lhe apraz. (14a Surata, versículo 27) E também diz: E tu, ó alma em paz, retorna ao teu Senhor, satisfeita e comprazida! Entra no número dos Meus servos! E entra em Meu jardim! (89a Surata, versículos 27-30) É proibido gastar com fausto em sepulcros, que devem ser os mais simples possíveis; devemos, ao invés disso gastar tais valores com os pobres e com aqueles que merecem, e rogar a Deus para que a recompensa dessa caridade seja dada ao falecido. 183 Hábitos Gerais Além das horas dedicadas diariamente às orações e o jejum anual, certos hábitos são recomendados aos muçulmanos. O mais importante é o de estudar continuamente o texto e a tradução do Alcorão, meditar sobre o seu conteúdo, para assimilar as suas diretrizes na vida quotidiana. O que pode causar mais felicidade do que a invocação da Palavra de Deus? Devemos dizer Bismil-lah (i.é, em nome de Deus) quando estivermos para começar qualquer ato, e alhamdulil-lah (i.é, louvado seja Deus) ao terminar o mesmo. Quando se pretende ou se promete algo para o futuro, deve-se dizer imediatamente inchaal-lah (i.é., se Deus quiser). Quando dois muçulmanos se encontram, saúdam-se, dizendo: As-salamu 'alaikum (que a paz esteja convosco). Pode se responder do mesmo modo, ou dizer Wa'alaiht-mus-salaam (que a paz esteja convosco). Devemos nos habituar a glorificar Deus, ao nos deitarmos e levantarmos: Subhanallah (glorificado seja Deus), é a fórmula mais simples. Devemos, também, invocar a misericórdia de Deus para com o Profeta, usando, por exemplo, a seguinte fórmula: Al-lá-humma sal-li'ala Muhammad wa baarik wa sal-lim (i.e., que Deus abençoe Muhammad e lhe dê paz). O Profeta preferia o lado direito. Quando calçava as sandálias, calçava primeiro o pé direito, e depois o esquerdo, e exatamente o contrário quando as tirava; quando vestia uma camisa, vestia primeiro o braço direito, depois o esquerdo; quando penteava o cabelo, penteava-o primeiro do lado direito, e depois do esquerdo; ao entrar numa casa, ou na mesquita, fazia-o primeiro com o pé direito, depois com o esquerdo; mas quando entrava no banheiro, fazia-o primeiro com o pé esquerdo, e, ao sair, com o pé direito na frente. Quando tirava a roupa, calçados, etc., despia primeiro o braço, perna ou pé esquerdos. Quando distribuía algo, ele começava sempre pelos que estavam à sua direita e terminava com os que estavam à esquerda. Alimentos e Bebidas Os pontos mais importantes a saber, a este respeito, são os seguintes: A carne de porco é proibida, do mesmo modo que as bebidas alcoólicas. Quanto à carne, o muçulmano não pode consumir animais ou aves que não tenham sido abatidos pelo ritual islâmico. Diz o Alcorão: 184 Estão-vos vedados: a carniça, o sangue, a carne de suínos c tudo o que tenha sido sacrificado com a invocação de outro nome que não o de Deus, os animais estrangulados, os vitimados a golpes, os mortos por causa de uma queda, ou a chifradas, os apanhados por feras, salvo se conseguirdes sacrificá-los ritualmente, os que tenham sido sacrificados para os ídolos... Mas, quem obrigado pela fome, e sem intenção de pecar, se vir compelido a alimentar-se daquilo que é vedado, saiba que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo! (59a Surata, versículo 3) O ritual do abate é desempenhado, pronunciando-se a fórmula Bis-millah (Em nome de Deus), e cortando a garganta do animal, i.e., o tubo de respiração, de alimentação e bebida e as duas veias jugulares; não se deve tocar a coluna vertebral, muito menos decepar a cabeça ou esfolar o animal, antes que esteja completamente morto. É proibido, aos muçulmanos, o uso de pratos ou utensílios de ouro ou de prata. Vestuário e Tratamento do Cabelo É proibido, aos homens muçulmanos, usar roupas, feitas de tecidos fabricados inteiramente de seda natural, bem como usar roupas vermelhas. O Profeta usava barba, e recomendava aos muçulmanos que fizessem o mesmo. As mulheres muçulmanas devem usar vestidos que cubram os seus corpos de maneira adequada, evitando saias curtas, roupas decoladas, ou tecidos transparentes, que deixem perceber a nudez do corpo. Não devem imitar, nem o modo de vestir, nem o modo de cuidar dos cabelos dos homens; e devem evitar tudo o que caracteriza as moças glamurosas. A Oração e as Abluções "A higiene pessoal é metade da fé", diz o Profeta. Portanto, sempre que se pretenda celebrar a oração, deve-se primeiramente, limpar o corpo. Normalmente há abluções simples, para os ritos de oração diários. Um banho, de preferência de chuveiro, é sugerido para outras ocasiões, no caso dos homens e das mulheres, depois do relacionamento como marido e esposa, para os homens que tenham tido sonhos lascivos, para as mulheres, após a menstruação e após o resguardo pós-parto. Também para o culto das sextas-feiras, recomenda-se tomar um banho. O ritual do banho consiste em se fazer as abluções e, a seguir, despejar água sobre o corpo todo, da cabeça aos pés, pelo menos três vezes. Se o banho for de banheira ou de tina, sugere-se que se despeje água limpa sobre o corpo, após 185 esvaziar a banheira, por sobre a cabeça e os ombros. As abluções são feitas do seguinte modo: o primeiro passo é a intenção da purificação, diga bismillah (em nome de Deus), lave as mãos até aos pulsos, enxágüe a boca com água, limpe as narinas com água, lave o rosto, a partir da testa para o queixo e de orelha a orelha, lave o braço direito e depois o esquerdo, até aos cotovelos (inclusive), passe os dedos molhados sobre a cabeça e nos orifícios das orelhas (e de acordo com algumas escolas, também no pescoço), lavando, então, primeiro o pé direito e depois o esquerdo, até ao tornozelo - repetindo cada ato três vezes (a não ser que haja pouca água, caso em que uma vez só será suficiente). Se não houver água nenhuma, permite-se praticar o tayammum ou ablução com areia. Isto também é permitido aos doentes que estejam impedidos de tocar na água por razões médicas. Nestes casos, devemos pronunciar a intenção da purificação, pronunciar o nome de Deus (Bismillah), pousar as mãos sobre a areia (até sobre uma pedra) e passar as palmas das mãos no rosto, pôr as mãos novamente sobre a areia e, em seguida, passar a palma esquerda sobre o braço direito, depois a palma direita sobre o braço esquerdo. Este ato simboliza a humildade do homem diante de Deus, Todo-Poderoso. As abluções devem ser feitas sempre que as últimas que foram feitas tiverem sido invalidadas pelo sono, pela emissão natural de gases, pela urina, pela secreção de qualquer substância pelas das partes íntimas, ou pelo vômito. Deve-se usar água comum do banheiro para a higiene das partes genitais, não bastando usar somente papel. Para as orações, deve-se usar uma roupa limpa, um lugar limpo e arrumado, e saber a direção em que fica a Caaba (em Makka). Com a ajuda de um mapa-múndi comum, parecido com o que se acha incluído neste capítulo, é fácil localizar a direção de Makka (na Arábia, próximo à costa ocidental); uma bússola ajudará a localizar a posição exata em que a pessoa se deverá colocar. As pessoas que estiverem no Brasil, por exemplo, deverão voltar-se para o sudeste nos Estados Unidos, para o leste-sudeste. Devemos nos lembrar, porém, que sendo o mundo esférico, e em vista de se usar a direção da distância mais curta, entre o lugar onde se está e a localização da Caaba, devemos nos orientar com cuidado. Para quem estiver m Nova Iorque, a direção leste-sudeste será a da distância mais curta, mas rã quem estiver no Alasca, à direção mais apropriada será a sudoeste. A.antípoda (ponto diametralmente oposto a outro) da Caaba se localiza próximo às ilhas Sandwich ou Samoa, e para quem estiver passando nesse ponto, num barco, as quatro direções serão eqüidistantes, tendo preferência aquela escolhida por aquele que guiar o culto, do mesmo modo como se estivesse dentro da própria Caaba. 186 São cinco as orações diárias, das quais a segunda é substituída, todas as sextas-feiras, por um culto solene, em congregação. Além disso, há dois cultos anuais, para a celebração da festa do final do mês de jejum e da festa dos sacrifícios, que coincide com a peregrinação a Makka. Todos os cultos se assemelham, na forma, mas não na duração. Assim, a primeira oração, feita de madrugada, consiste de apenas duas rak'át (genuflexões); a segunda e a terceira (início e no final da tarde), consistem de quatro, cada uma; a quarta (ao anoitecer) tem três, e a quinta (à noite), consiste de quatro. Os cultos das sextas-feiras e das festividades consistem de apenas duas rak'át, cada um. O Profeta recomendou, veementemente, que se acrescentasse, ao quinto culto diário, outro, chamado witr, composto por três rak'át. Uma Peculiaridade As escolas cháfi'ita e hanbalita acrescentam uma prece de invocação, chamada "Kunut," ao culto da madrugada. Assim, quando a pessoa se reergue, após inclinar-se na segunda rak'at, recita essa oração (Apêndice II), antes de prostrar-se. As outras escolas não observam este costume, alegando que o Profeta só o seguiu durante algum tempo. A escola hanafita também tem um "Kunut". Este, no entanto, é acrescentado à terceira rak'at do culto witr, que é celebrado após a oração da noite. Assim, terminando a recitação do Alcorão na terceira rak’at e antes de inclinar-se, pronuncia-se uma oração semelhante, após a qual inclina-se e completa-se o rito da maneira normal. No caso do culto em congregação, entretanto, devemos acompanhar o Imam, independentemente da escola que ele seguir. Finalmente, após segunda rak'at, quando a pessoa se senta, pela primeira vez, para invocar a presença de Deus, algumas escolas também pedem as bênçãos para o Profeta; outras fazem isto somente no final da segunda invocação. Perturbações Durante o Culto Se uma pessoa conversar com alguém durante a oração, expelir gases, rir em voz alta, comer ou beber alguma coisa, anulará a sua oração, que deverá ser recomeçada com novas abluções, no caso da segunda eventualidade. Entretanto, se uma pessoa esquecer algum ato de oração, durante a mesma, do qual se recorde mais adiante, não lhe será necessário recomeçar o rito, mas sim darlhe prosseguimento até ao final, prostrar-se duas vezes após a súplica e então enunciar a saudação. Durante essas prostrações por esquecimento, a pessoa 187 pode recitar as mesmas glorificações de Deus, usuais, ou usar esta outra fórmula, muito mais apropriada: "Glória Àquele que é o único que nem dorme, nem esquece." Se uma pessoa chegar um pouco atrasada e se juntar à congregação, não precisa se preocupar com a parte da oração que já tiver sido cumprida, devendo acompanhar os atos do Imam. No caso de ter perdido uma rak'at inteira ou mais, deverá erguer-se, depois que o Imam fizer a saudação, e completar, sozinha, a rak'at ou rak'át que já tinha(m) sido completada(s) quando da sua chegada, e proceder com a invocação, etc., terminando com a saudação. Supondo-se que ela se tenha juntado à congregação a prostração da segunda rak’at da oração do anoitecer, deverá acompanhar Imam somente numa rak'at; ao final dela, deverá reerguer-se, praticar uma rak'at e sentar-se para a primeira invocação, realizando a segunda rak'at e a invocação, para terminar. Geral Se a direção certa da Caaba for desconhecida, deverá ser suposta, o que será suficiente. Deus está presente em todos os lugares. Após o culto, podemos rezar a Deus, pedindo o que tivermos de pedir, sendo as melhores preces aquelas que o próprio Alcorão nos ensinou. Como os textos, durante o culto, devem ser recitados em árabe, devemos decorá-los, começando com a “Alfátiha” (primeira surata do Alcorão), que é considerada a parte principal e sine qua non do ritual. Estando Doentes ou Viajando Se estamos doentes e confinados na cama, devemos praticar as nossas orações da melhor maneira que pudermos, sentado ou até mesmo deitados. No caso de o fazermos sentados, o ato da inclinação é feito de tal modo, que a cabeça não deve tocar o solo. No caso de estarmos fazendo a oração deitados, é suficiente imaginar as posturas que praticamos, quando participando normalmente da oração, recitando os textos, correspondentes a cada movimento que teria sido feito numa situação normal. Viajantes e outras pessoas que, por alguma razão, não puderam dispor do tempo necessário para todas a nações, têm a permissão do Profeta para as conjugar. Por exemplo, juntar a segunda e a terceira, realizando-as em qualquer momento entre o meio-dia e o pôr-do-sol, e a quarta e a quinta, a qualquer hora da noite. 188 Por que um Calendário Puramente Lunar Como é sobejamente conhecido, o Islam segue, para os propósitos litúrgicos ou religiosos, um calendário lunar, pelo qual, por exemplo, o mês de Ramadan, com o seu jejum, e o de Dhul-Hijja, com a sua peregrinação, mudam de estação, de ano para ano. Na Arábia pré-islâmica, já era conhecido o recurso da intercalação, tanto que foi o próprio Profeta que aboliu este uso - depois de longa e profunda meditação a respeito, digamos assim -, durante a sua última peregrinação, meros três meses antes da sua morte. Isto intriga os não-iniciados, e choca aqueles que sofrem de complexo de inferioridade, querendo imitar cegamente os outros. Das muitas utilidades desta reforma islâmica, três podem ser destacadas. No que diz respeito ao jejum, é muito útil, uma vez que propicia a possibilidade de nos acostumarmos com a privação de alimentos e de bebidas em todas as estações - nem sempre árdua, e nem sempre fácil de suportar. Sendo o Islam destinado ao mundo todo, as diferenças entre os diferentes climas também têm de ser levadas em consideração. Se o jejum tivesse sido determinado num certo mês do calendário solar, isto é, numa estação específica, o propósito seria viciado pela natureza, e fisicamente isto se tomaria impraticável. Na verdade, o verão do Hemisfério Norte, dos países situados ao norte do equador, coincide com o inverno do Hemisfério Sul, nos países ao sul do equador. Pode ser que o inverno seja uma estação agradável para os habitantes das regiões equatoriais, e terrível nas regiões subpolares. Essa discriminação sazonal, entre os fiéis dos diversos países, é facilmente evitada, seguindo-se o calendário lunar. Cada um terá, por sua vez, a mesma experiência, em todas as estações. O recolhimento do zakat sobre as economias, o comércio etc. – à exceção dos produtos agrícolas -, é aumentado imperceptivelmente, de modo que, a cada 36 anos, pagamos um tributo adicional, que é recebido dos ricos para o bem da comunidade, especialmente das classes pobres. Conclusão Rogamos a Deus para que este humilde esforço possa servir aos seus propósitos de esclarecer aqueles que desejam conhecer os elementos do Islam. Para maiores detalhes, existem inúmeros livros, exaustivos e especializados, pessoas instruídas, e instituições, tais como a al-Azhar, no Egito, a Zaituna, na Tunísia, a Karawiyin, em Fez, no Marrocos, Darul-ulum, em Deoband, na índia, etc. 189 apoio cultural: CENTRO DE DIVULGAÇÃO DO ISLAM PARA AMÉRICA LATINA Caixa Postal 242 - CEP: 09725-730 São Bernardo do Campo - SP - Brasil Fone: (055) 11 - 4122-24 00 / Fax: (055) 11- 4332-2090 e-mail: [email protected] Portal: www.islambr.com.br