Jornal Brasileiro de Psiquiatria

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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
DIA
GR A
PHIC
®
ISSN 0047-2085
CODEN JBPSAX
E D I T O R A
Jornal Brasileiro de Psiquiatria • vol. 52 - nº 2 • Março - Abril 2003
Jornal Brasileiro
de Psiquiatria
Brazilian Journal
of Psychiatry
v o l u m e 52 • mar/abr
3
mar/abr-- 2 0 003
P u b l i c a ç ã o bimestral
Órgão Oficial do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB
J.B.
Sem título, 19/5/1986
Guache sobre papel
2
Jornal Brasileiro
de Psiquiatria
ISSN 0047-2085
CODEN JBPSAX
volume 52 • mar/abr 2003
J.bras.psiquiatr. 52 (2): 87-160, 2003
Publicação bimestral
Órgão Oficial do Instituto de PPsiquiatria
siquiatria da Universidade FFederal
ederal do Rio de Janeiro – IPUB
UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO DE JANEIRO
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Jornal brasileiro de psiquiatria / Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. —
V.1, nº 1 ( ). — Rio de Janeiro: ECN-Ed. Científica Nacional, 2000
v.50
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Editado pela Diagraphic a partir do V.49 (10-12), 2000
Descrição baseada em: V.47, nº12 (1998)
ISSN 0047-2085
98-1981.
1. Psiquiatria - Periódicos brasileiros. I.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psiquiatria
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CDU 616.89
Nossa Capa
J.B
J.B..
Sem título, 19/5/1986
Guache sobre papel
Durante sua nona e mais longa internação no Ipub, J.B. apresentou, ao lado de sintomas esquizofrênicos já conhecidos, “quadro
depressivo-ansioso com humor depressivo, idéias delirantes de culpa,
ausência de planos para o futuro e parcial consciência da doença”.
O relatório do monitor de praxiterapia assinala: “Paciente
participa pouco das atividades programadas, não demonstra
interesse por sua pintura, retraído e triste. Ao contrário de outras
internações, não orienta os colegas nem tenta explicar sua produção”.
Devido à seqüência de internações do paciente, torna-se difícil
inferir se este surto foi uma recaída ou recidiva, com episódio de
depressão pós-psicótica.
De qualquer modo, além dos antipsicóticos, adicionou-se ao esquema terapêutico associação de 100mg/dia de imipramina e
400mg/dia de carbamazepina. A partir daí, o paciente voltou a freqüentar as sessões de psicoterapia de grupo e seu rendimento na
praxiterapia melhorou, tornou-se comunicativo, voltou a ajudar os colegas, sugerir motivos para pinturas e passou a explicar aos
monitores o conteúdo daquilo que produzia. Quando questionado ou quando alguém fazia reparos à sua pintura, rasgava o papel,
limpava os pincéis e voltava imediatamente para a enfermaria.
O quadro foi evoluindo favoravelmente e, ao final da internação, em 21/7/1986, o paciente teve alta “melhorado, em condições
de permanecer em tratamento ambulatorial e continuar o grupo de psicoterapia do ambulatório”.
O importante a se notar nesta instância é a aparição de sintomas depressivo-ansiosos em paciente esquizofrênico cronificado,
após repetidas internações motivadas exclusivamente por sintomas esquizofrênicos e agitação psicomotora. O acerto das medidas
terapêuticas adotadas é confirmado pelo comportamento do paciente na praxiterapia e pela retomada de sua produção artística,
mais complexa, sem céu estrelado e arco-íris, tema recorrente em seus quadros que se encontram no acervo do Ipub.
É uma pena que, por falta de programas de reinserção, as internações seguintes de J.B. não tenham sido evitadas.
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Sumário
87-96
Erikson Felipe Furtado
Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância: um modelo conceitual para a
psicopatologia do desenvolvimento
Infant development of cognition and language: a conceptual framework in developmental
psychopathology
97-107
Gabriel Ferreira Pheula; Cláudio Eduardo Müller Banzato; Paulo Dalgalarrondo
Mania e gravidez: implicações para o tratamento farmacológico e proposta de manejo
Mania and pregnancy: issues related to pharmacologic treatment and management proposal
109-116
Leconte de Lisle Coelho Júnior; Bernard Gontiès; Valdiney V. Gouveia
Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes (Posit): adaptação
brasileira
Questionnaire to detect potential use of drugs among adolescents (Posit): an adaptation to the Brazilian
reality
117-126
Marco Antônio Brasil; Julieta Mejia-Guevara
Hepatite C, interferon e depressão: uma revisão (da série Depressão Induzida por
Substâncias)
Hepatitis C, interferon and depression: a review (from the Substance-Induced Depression series)
127-135
Flavio Jozef; Jorge Adelino Rodrigues da Silva
Doença mental e comportamento violento: novas evidências da pesquisa
Mental disease and violent behavior: new evidence from research
137-142
Douglas Dogol Sucar; Ewerton Botelho Sougey; Amaury Cantilino; Riane Marinho
Interações medicamentosas dos antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos
Drug interactions of noradrenergic/serotonergic antidepressants
143-158
Lúcia Abelha Lima; Marina Bandeira; Sylvia Gonçalves
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente (ILSS-BR) para
pacientes psiquiátricos
Transcultural validation of the Independent Living Skills Survey (ILSS-BR) for psychiatric patients
Fontes de referência e indexação:
Academia de Ciências da Rússia Biological Abstracts
BLDSC – British Library Document Supply Center
CAS – Chemical Abstracts Service of American Chemical
Society
Chemical Abstracts
Embase/Excerpta Medica
EMDOCS – Embase Document Delivery Service
IBICT – Sumários Correntes Brasileiros
INIST – Institute de L’information Scientifique et Technique
KNAW – Library of The Royal Netherlands Academy of Arts
and Sciences
LILACS – Index Medicus Latino-Americano
NISC Pennsylvania, Inc.
Periódica – CICH-UNAM
Psychoinfo – American Psychological Association
Ulrich’s International Periodicals Directory
UMI – University Microfilms International
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Desenvolvimento da cognição e da
linguagem na infância: um modelo
conceitual para a psicopatologia
do desenvolvimento
Infant development of cognition and language: a conceptual
framework in developmental psychopathology
Recebido em: 25.09.02
Erikson Felipe Furtado
Aprovado em: 11.12.02
Resumo
O desenvolvimento da linguagem tem se tornado um tema muito importante para pesquisas no campo da psicopatologia do
desenvolvimento. Este artigo faz uma revisão extensa sobre os processos mais importantes que estão envolvidos nos mecanismos
da aquisição da linguagem pela criança no seu primeiro ano de vida, seguida de uma discussão sobre a relação entre estes
processos e a ocorrência de psicopatologia na infância. Alguns achados das pesquisas nesta área têm oferecido suporte à hipótese de uma continuidade, ao invés de uma descontinuidade, que parece existir entre os primeiros sinais comunicativos do
lactente, tais como gestos, expressão facial e vocalizações pré-verbais, e os marcos mais conhecidos do desenvolvimento da
linguagem na criança. Os aspectos particulares concernentes à origem de um código simbólico – a origem da linguagem – são
apresentados ao leitor.
Unitermos
desenvolvimento; linguagem; cognição; psicopatologia; infância
Summary
The issue of language development became a very important topic of research in the field of developmental psychopathology. The
present article makes a comprehensive review on the most important processes underlying the mechanisms of infant language acquisition in
the first year of life followed by a discussion on their relation to child psychopathology. Some research findings in this area have brought
support to the hypothesis of a continuity instead of a discontinuity, that seems to exist from the infant initial communicative signals, such as
gesture, facial expression and preverbal vocalizations, to the best known milestones of the child language development. The particular
aspects concerning the origin of a symbolic code – the origin of language – are introduced to the reader.
Uniterms
development; language; cognition; psychopathology; infant development
Professor-doutor do Departamento de Neuropsiquiatria e Psicologia Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (USP).
J . b r a s . p s i q u i a t r.
vol. 52 (2): 87-96, 2003
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Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância
Introdução
A relação entre distúrbios da comunicação
ou da linguagem e a ocorrência de
psicopatologia na infância tem sido mencionada com freqüência na literatura especializada.
Entretanto os aspectos particulares do desenvolvimento psicolingüístico envolvidos neste processo são menos conhecidos5. O nosso objetivo
com o presente texto é apresentar uma revisão
extensa do conhecimento atual sobre o tema,
com o intuito de discutir um modelo conceitual
sobre o desenvolvimento precoce da competência comunicativa humana e sobre os respectivos
processos cognitivos relevantes associados ao
surgimento de psicopatologia na infância.
Nosso tema ocupa-se principalmente com o
desenvolvimento da competência comunicativa
no lactente, isto é, com o desenvolvimento prélingüístico nos primeiros doze meses de vida. Portanto os conceitos comunicação e competência
que serão aqui utilizados devem ser primeiramente definidos de forma clara para o leitor:
• comunicação significa um intercâmbio de informações35;
• competência, por sua vez, representa uma capacidade inata, a qual evolui diante de exigências ambientais.
A competência comunicativa é decisiva para
os processos de socialização, pois já nos primeiros estágios de vida o recém-nascido envia seus
primeiros sinais comunicativos que possibilitam
o desencadeamento da interação entre o bebê e
a pessoa que lhe presta cuidados.
Isto fica mais claro através da seguinte afirmação feita por Brazelton: “Um bebê não é tão
indefeso quanto parece, e existem sinais e mensagens de um bebê que podem guiar uma mãe e
um pai iniciantes”11.
Brazelton afirma que bebês silenciosos e passivos não têm sucesso em atrair a atenção dos
adultos “cuidadores” e, portanto, apresentam um
risco elevado para adoecimento11. Isto nos leva à
consideração de que a competência comunicativa possui um significado evolutivo, pois aumenta
as chances de sobrevivência de um bebê. A competência comunicativa tem como sua incumbência evolutiva obter, manter e assegurar a atenção
das pessoas “cuidadoras”, além de permitir da
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Furtado
parte destas a produção de reações adequadas de
acordo com as necessidades do bebê13, 63.
O conceito competência comunicativa, tal
como será usado neste texto, não exige uma estrutura mental ou cognitiva que seja exclusiva e
separada das demais funções mentais. A competência comunicativa deve ser compreendida muito
mais como o resultado de um sistema, para o qual
contribuem processos sensoriais, motores e
cognitivos, de tal forma que desta associação se
desenvolve uma função que serve ao estabelecimento da comunicação.
Comunicação supõe motivação, assim como
intencionalidade, atenção e reatividade. Visto
que o conceito comunicação significa um intercâmbio de representações e/ou intenções entre pelo menos dois interlocutores, levanta-se a
questão de se os lactentes de fato participam
da interação como interlocutores. O requisito
para isto é que as crianças reconheçam os esforços comunicativos de seu parceiro. A linguagem é uma ferramenta da comunicação. Entretanto, bem antes de obtermos o seu domínio,
já existe comunicação53. Linguagem, portanto,
é uma designação que não indica somente um
canal vocal. Ela exige o conhecimento de um
código para as representações de idéias sobre
o mundo através de um sistema convencional
de sinais atributivos57. Assim sendo, referimonos ao conceito de fala para designar as formas de comportamento motor relacionadas à
comunicação verbal. A linguagem ocorre também na ausência da fala, como, por exemplo,
na linguagem de sinais usada por deficientes
auditivos, em que a mímica e os gestos, ou seja,
o canal visual, incluem em si o caráter da linguagem, a propriedade de um código.
Tem sido postulada uma continuidade entre
a fase pré-lingüística, na primeira infância, e o posterior desenvolvimento da linguagem5. A fase prélingüística é caracterizada pela ausência de indicação objetiva de intencionalidade. Mais do que
intencionalidade, esta fase é caracterizada por um
apetite, uma ânsia de comunicar.
Do ponto de vista da psiquiatria infanto-juvenil, para uma melhor compreensão dos processos psicopatológicos na infância, o desenvolvimento do uso da linguagem, ou o que se
convencionou chamar de pragmática, é o que
Furtado
Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância
mais nos interessa. Portanto, associaremos aqui
o conceito de competência comunicativa com a
pragmática da linguagem.
Aquisição da linguagem
no lactente
Esquemas sensório-motores precoces
A competência comunicativa pode ser postulada como uma capacidade primariamente inata
em que esquemas sensório-motores interagem
para propiciar o seu desenvolvimento diante das
demandas ambientais. A capacidade de um lactente para comportamento conjunto (matching
behavior), sobretudo para comportamento carregado de significado comunicativo, sustenta-se
em esquemas sensório-motores que précondicionam a comunicação. A capacidade para
atenção seletiva e para reação discriminativa, especialmente dos canais auditivo e visual, é a base
para os esquemas que se desenvolverão a seguir48.
Lactentes, já aos dois meses de idade, apresentam diferenças importantes quanto à sua
reatividade para pessoas e objetos58. Isto indica
uma atenção seletiva para sinais visuais e auditivos de origem humana.
Em um estudo sobre comportamento
imitativo em recém-nascidos, foram observados
40 recém-nascidos saudáveis com 72 horas de
vida, que apresentaram comportamento imitativo
para movimentos de cabeça e movimentos da língua. Os autores concluíram que mesmo recémnascidos são capazes de produzir coordenação
motora e acoplamento de movimentos selecionados
em
situações de comportamento conjunto (joint
behavior)41.
Em situações reais, entretanto, são as mães que
parecem mais ser imitadoras de seus bebês. A
expressividade e a reatividade comunicativa da
criança exigem uma alta complexidade da coordenação sensório-motora correspondente. Assim,
tem sido defendida a existência de padrões de
comportamentos inatos pré-programados, necessários para o estabelecimento do comportamento comunicativo, os quais não se deixam esclarecer somente pela limitada capacidade de
aprendizagem do recém-nascido59, 60.
Pesquisas em primatas reforçam a hipótese do
desenvolvimento filogenético da competência comunicativa humana. Entretanto existe uma enorme
diferença entre a linguagem humana e os sinais comunicativos do repertório de primatas, tanto natural quanto aprendido em laboratório50. Em resumo,
a filogenia é responsável pela base da competência
comunicativa humana, no entanto é a socialização
no interior de uma determinada comunidade que
determina o desenvolvimento posterior da competência comunicativa. A questão do papel dos problemas da interação entre forças filogenéticas e
aprendizado social para a produção de distúrbios
da comunicação permanece como uma questão
aberta para futuros esforços de pesquisa.
Desenvolvimento da linguagem
perceptiva
A avaliação da capacidade de percepção da
fala pelo bebê é feita através das suas características isoladas, sobretudo pela sensibilidade sonora
(capacidade de captação de ondas sonoras), e da
capacidade de diferenciação e de localização de
fontes sonoras.
Nos últimos meses da gestação o feto já manifesta movimentos em resposta a estímulos sonoros suaves51. Vários estudos, apoiados nos resultados obtidos das modificações da freqüência
cardíaca ou da presença de potenciais acústicos
evocados, têm indicado que já algumas semanas
antes do nascimento o feto possui um sentido auditivo funcionante2.
Uma característica importante da percepção
auditiva humana é demonstrada pelo bebê já nos
primeiros meses através de sua marcada preferência
pela voz humana. A discriminação entre ruídos do
ambiente e vocalizações de uma pessoa conhecida
inicia-se cedo no desenvolvimento61. Pode-se dizer
então da existência de um apetite, de um desejo
direcionado para as expressões vocais humanas, especialmente das vocalizações maternas32. De fato,
recém-nascidos demonstram um evidente interesse
pela voz humana, como também por alguma melodia a que tenham sido expostos antes ainda do nascimento20, 45. Mais tarde, a atenção do lactente será
alcançada e mantida através das características
prosódicas ou melódicas da fala (tempo, duração e
freqüência), quando sob a forma da fala de bebê
pelo adulto19, 23, 27. Tem sido verificado que recémJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
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Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância
nascidos e lactentes possuem a capacidade de percepção auditiva categorial. Esta é a base para a capacidade discriminativa para fonemas e sílabas de
cada idioma falado no ambiente imediato da criança2, 22, 34, 42.
O que provocam as vocalizações humanas
nos lactentes? Um estudo procurou investigar
as reações corporais de 16 recém-nascidos diante de vocalizações de adultos18. Os autores
relataram uma sincronização das vocalizações
dos adultos com a atividade motora da criança. Este efeito pôde ser confirmado tanto na
situação em que a criança ouvia as vocalizações
a partir de uma fita gravada de audiocassete,
na ausência de qualquer pessoa, quanto também, da mesma forma, se lhe apresentava uma
gravação de vocalizações em um idioma estrangeiro. O efeito não pôde ser confirmado, entretanto, diante de vocalizações isoladas18.
A reação do bebê a vocalizações de adultos se
manifesta preponderantemente através de comportamentos motores complexos e inter-relacionados. Estes são, sobretudo, a produção de sons
vocais, a mímica facial e os movimentos das mãos,
ou, mais precisamente, vocalizações positivas, sorriso, direcionamento do olhar e pointing (posicionamento do dedo indicador na forma de
apontar)16, 21, 28, 30, 40, 58, 60.
Sinais comunicativos provenientes de adultos
podem provocar reações comportamentais no
lactente, e estas podem ser interpretadas como
sinais comunicativos do bebê, pela sua semelhança com o repertório comportamental comunicativo humano. Isto possibilita a interação e fala a
favor de uma função senso perceptiva básica de
valor comunicativo.
As primeiras vocalizações
Quando nasce uma criança, esta é indefesa e
completamente dependente de auxílio externo.
Isto leva-nos à compreensão do significado da primeira vocalização inata humana: o choro. Da mesma forma que para outros seres vivos, os sinais
acústicos humanos são veículos de comunicação
que têm o poder de transmitir informações35. Choro e gemidos são as vocalizações mais freqüentes
do recém-nascido, sinalizando para a mãe o estado de fome, dor ou desconforto do bebê. A fre-
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J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Furtado
qüência em que ocorre o choro inato reduz-se
logo após as primeiras semanas de vida4. Suas características (intensidade, ritmo, etc.) tornam-se
gradativamente diferenciadas com o tempo36.
Mesmo que o choro inato do bebê e os ruídos fisioló- gicos pareçam contribuir pouco para o desenvolvimento posterior da linguagem44, eles pertencem ao repertório comunicativo do bebê e têm
um caráter comunicativo para os pais e demais
adultos. Tem sido verificado que a interpretação
subjetiva, feita por adultos, em relação ao significado do choro do bebê ocorre mesmo em adultos sem experiência anterior12.
De acordo com Herzka, as mães classificam a produção vocal de seus bebês em três categorias:
• choros e gemidos;
• balbucios;
• gritos e risos36.
Os bebês produzem também ruídos fisiológicos tais como espirros, suspiros, soluços, arrotos,
etc., e vocalizações motoras, ou seja, sons vocais
produzidos durante o esforço físico.
As vocalizações do lactente podem ser classificadas também segundo o seu caráter informativo do estado emocional do bebê. Desta forma,
surge uma classificação que divide as expressões
vocais precoces da criança em vocalizações positivas ou negativas, vocalizações de bem-estar ou
de desconforto36, 38, 62.
Tem sido verificado que, mesmo em bebês
de dois meses, as demais vocalizações diferentes do choro, especialmente as negativas, também recebem um valor comunicativo por parte
dos pais47. Em um estudo sobre a relação entre
vocalizações de lactentes nos primeiros quatro
meses de vida e as reações dos pais, foi verificado que diferentes vocalizações, já nas primeiras
duas semanas de vida, eram interpretadas como
formas de expressão do estado emocional do
bebê38. Sobretudo as vocalizações positivas do
lactente revelaram-se capazes de provocar reações vocais e verbais dos pais.
Enquanto que a freqüência dos sons vocais
negativos e fisiológicos reduz-se drasticamente até
o fim do terceiro mês, são produzidas cada vez
mais vocalizações positivas. Principalmente afeto
positivo, estimulação verbal, o uso da fala de bebê
e a correta colocação de pausas, por parte dos
Furtado
Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância
pais, auxiliarão a criança a produzir mais sílabas e
consoantes no terceiro mês de vida8, 9, 36. No terceiro mês, o bebê demonstra surpresa com suas
próprias vocalizações e começa a brincar com
elas46. Esta atenção dirigida à própria voz é vista
por muitos autores como um importante pré-requisito para o desenvolvimento da linguagem.
Antigos estudos supunham o desenvolvimento
fonológico do lactente normal como relativamente
semelhante ao desenvolvimento de lactentes com
deficiências auditivas, pelo menos em sua fase inicial. Pesquisas mais recentes33, 44 mostraram, no entanto, que a fase de lalação, ou balbucio, torna-se
atrasada e prejudicada qualitativamente na presença de deficiência do sistema sensorial auditivo. O
surgimento da produção canônica de sílabas
(canonical babbling) apresenta, em lactentes saudáveis, uma variabilidade tão baixa, que foi recomendado como uma medida para o diagnóstico precoce
de deficiências auditivas44. Assim, verifica-se que,
embora a competência comunicativa esteja fundamentada em atributos inatos, a organização da fala é
conseqüência de ambos, uma organização sensóriomotora íntegra e um aporte de estímulos auditivos
adequado.
Comunicação não-vocal através de
mímica e gestos
Padrões de movimentos musculares coordenados transmitem informações sobre o estado
emocional e sobre o estado de vigilância da criança. Nossa atenção dirige-se, sobretudo, para a
face, na busca dessas informações. Fronte, sobrancelhas, olhos, lábios e boca são os pontos de referência a partir dos quais movimentos musculares
coordenados espelham e informam sobre o estado emocional de uma pessoa. Da mesma forma,
os movimentos e o posicionamento da cabeça,
das mãos e dos braços também podem auxiliar
no reconhecimento de estados emocionais. Em
indivíduos adultos, tais movimentos reforçam ou
negam as expressões verbais. Isto é chamado de
metacomunicação35.
As formas de comportamento comunicativo
não-verbal durante o primeiro ano de vida, excetuando-se o sorriso inato, o choro e a direção do
olhar, têm sido pouco estudadas, mesmo apesar
da comprovação, desde já algum tempo37, da capacidade do lactente de produção de expressões
faciais representativas de estados emocionais.
A capacidade do bebê de expressar emoções
torna-se gradativamente mais diferenciada de
acordo com o seu desenvolvimento cognitivo.
Este processo pode ser descrito de maneira sucinta: a transição da expressão de dor, já presente ao
nascimento (e exclusivamente sendo uma reação
visceral), para uma expressão de desconsolo ou
frustração no segundo ou terceiro mês ocorre em
conseqüência do aparecimento dos processos de
reação circular primária e antecipação simples29.
Mais posteriormente, no primeiro ano de vida, a
evolução algo tardia da primitiva expressão de dor
em expressão de raiva decorre provavelmente da
crescente capacidade da criança de apreensão de
causalidade e intencionalidade. Nesta mesma direção, em conseqüência do desenvolvimento do
processo de permanência de objeto, evolui a expressão de preocupação para incluir a expressão
de medo. Entre o terceiro e o sexto mês de vida a
criança já sorri ao ver sua mãe, mais freqüentemente do que o faria ao observar objetos. Na idade de seis meses o sorriso acompanha os atos espontâneos e intencionais de busca e alcance de
objetos, e da mesma forma o sorriso passa a ser
utilizado regularmente no controle de interação
social, ao provocar adultos trazendo-os para situações de jogos, como, por exemplo, no ato de
experimentar objetos29.
Enquanto as formas de expressão não-verbais
ocorrem preponderantemente diante de estados
emocionais positivos ou negativos, existem outras formas de expressão que ocorrem especialmente diante de estados neutros de vigilância
atenta (attentional state), como, por exemplo, o
pointing, a extensão do dedo indicador no ato
de apontar. Lactentes mais velhos e crianças pequenas utilizam-se de outros gestos como auxílio
para diferentes propósitos de comunicação. Quando da ocasião do surgimento das primeiras palavras, a criança utiliza-se de gestos, que servem
para que objetos e situações possam ser identificados, descritos, solicitados, rejeitados ou, ainda,
servem para atribuição de predicados1, 5, 6, 13, 14, 57.
O uso de mímica e gestos pode ser observado
em crianças surdas que desenvolvem espontaneamente uma linguagem de sinais, que, tal como
a linguagem verbal, está representada no hemisfério cerebral esquerdo. Diante de uma lesão do
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
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Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância
hemisfério esquerdo pode ocorrer uma afasia para
linguagem de sinais. Lactentes saudáveis, tendo
aprendido uma linguagem de sinais no primeiro
ano de vida, encontram-se em melhores condições para a produção de mensagens com simbolismo1. Disto se infere, para alguns autores, que
estes achados constituem-se em indicadores da
precondição temporal dos símbolos gestuais no
repertório comunicativo da criança1.
Principalmente o pointing confirma-se como uma
habilidade ou competência que, surgida precocemente, revela-se significativa para o posterior desenvolvimento da linguagem. Tem sido observado que a criança começa, no segundo mês de vida, a produzir
movimentos coordenados de mãos, braços e dedos
em situações de interação social 58, 60.
Semelhantemente, têm sido relatadas observações
dos movimentos de mãos e dedos, em interações
sociais, de lactentes cegos desde o nascimento31. Aos
dois e três meses de vida, o pointing ocorre
freqüentemente antes e após vocalizações e movimentos bucais (mouthing), e aos seis meses, diante
de comportamento de orientação frente a um objeto29. No último trimestre do primeiro ano de vida, o
pointing evolui como uma forma específica de nomeação e indicação gestual. A avaliação de algumas
formas de comunicação não-verbal pode ser utilizada como meio diagnóstico auxiliar, com possível aplicação prática57. Entre os gestos utilizados na comunicação é sobretudo o pointing o melhor preditor do
desenvolvimento da linguagem a partir do início da
fase de palavras isoladas, aos nove meses de idade57.
Cognição e aquisição da linguagem no
primeiro ano de vida
A capacidade para discriminação de categorias
e classes de fonemas é importante para o surgimento da competência lingüística. O desenvolvimento cognitivo encontra-se associado ao desenvolvimento da percepção seletiva visual e auditiva
através do processo de construção de classes
categoriais. Inicia-se cedo no desenvolvimento do
bebê uma forma de ordenação e classificação de
fenômenos acústicos e visuais, que revela a presença e a importância dos processos cognitivos para
o desenvolvimento posterior da linguagem22.
Mesmo que não se possa falar propriamente
da ocorrência de linguagem nos primeiros meses
de vida, podem-se encontrar aí os seus primeiros
92
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Furtado
traços. Conforme Bruner, para o estudo dos precursores da linguagem, devemos dirigir nossa
atenção para o problema da construção das relações entre sinais e objetos ( reference
production)14, 15. O desenvolvimento de processos para a apropriação e utilização de uma
taxonomia delimitada seria, a seu ver, o problema psicológico principal do período prélingüístico. Estes processos são por ele denominados de indicating, deixis e naming. Indicating
refere-se aos gestos e vocalizações que produzem
o direcionamento da atenção do interlocutor para
um objeto, uma ação ou um estado. Deixis referese à manipulação de contextos temporoespaciais,
os quais contribuem para o surgimento de um sistema de referência conjunta (joint reference).
Naming refere-se a um léxico padrão, o qual é utilizado no ambiente familiar da criança e de seu
cuidador. Conforme achados de observações,
pode-se identificar a presença do processo de
indicating em lactentes já aos quatro meses de idade14.
A fim de exemplificar melhor os conceitos acima tomaremos a situação habitual de um bebê
faminto, o qual procura informar sua mãe de que
tem fome através de movimentos do olhar em
direção à cozinha, alternando com curtas vocalizações lamentosas (indicating). A mãe, ao acompanhar o insistente olhar de sua criança, traz-lhe
então algo para comer. Toda a situação em si oferece um contexto global, no qual hora, local e
objetos contribuem para a referência ao horário
da comida e ao comer (deixis). Assim formam-se
associações entre comportamento, contexto e palavras (sinais acústicos), fechando o processo do
naming.
Resumindo, o papel do desenvolvimento cognitivo para o desenvolvimento da linguagem, no
lactente, pode ser compreendido através do desenvolvimento da capacidade de imitação ativa,
da integração sensorial, da intencionalidade e da
apreensão de causalidade, os quais conduzem a
competência comunicativa na direção do desenvolvimento da linguagem verbal.
Desenvolvimento da linguagem
e psicopatologia
Tem sido discutida intensamente a questão da
relação entre as formas de comportamento comu-
Furtado
Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância
nicativo que se iniciam nos primeiros meses de vida
e o desenvolvimento de psicopatologia29. A competência comunicativa de um bebê aos três meses deve,
no entanto, sobretudo influenciar o seu momento
atual do desenvolvimento muito mais do que demonstrar utilidade para qualquer outro momento
no desenvolvimento futuro. As possíveis conseqüências futuras acontecerão através de um complexo
mecanismo de interação entre fatores individuais e
condicionantes ambientais49.
O significado atual da interação social para
lactentes aos três meses foi investigado através
da observação experimental do desempenho de
lactentes em um exercício de contingência nãosocial, logo após uma interação com suas mães.
Através disto foi confirmada uma relação entre a
duração de episódios de diálogo vocal mãe–filho
e o desempenho do bebê21. Isto fala a favor de
uma relação precoce entre operações comunicativas e favorecimento de competência cognitiva.
Durante a fase pré-lingüística, são encontrados problemas do desenvolvimento da linguagem
junto
a
determinados
transtornos
psicopatológicos precoces, sobretudo nos chamados transtornos globais do desenvolvimento52.
Autismo é um exemplo extremo da relação entre
prejuízo da competência comunicativa e
surgimento de um complexo quadro de
adoecimento psíquico. A produção de sílabas em
crianças portadoras da síndrome autista apresenta-se prejudicada qualitativa e quantitativamente
já no primeiro ano de vida53. Cerca de 15% dos
irmãos de crianças autistas apresentam transtornos da linguagem, dificuldades de aprendizagem
e/ou um retardo52. Distúrbios da comunicação são
encontrados com maior freqüência em famílias
que possuem um membro portador de autismo52.
O papel da competência comunicativa e da linguagem para o desenvolvimento de transtornos
psicopatológicos pode ser reconhecido através da
alta prevalência de problemas psiquiátricos em crianças com distúrbios da linguagem7. A maioria dos
estudos que se ocuparam desta questão foi realizada com crianças em idade escolar e pré-escolar26. Se
incluirmos também o grupo das crianças com transtornos cognitivos parciais ou específicos, os quais
são em boa parte caracterizados por apresentarem
distúrbios da fala e da linguagem, reconheceremos
que não somente a psicopatologia atual, mas tam-
bém características de desempenho (as quais servem corriqueiramente como preditores que prognosticam problemas psiquiátricos), incluem
freqüentemente transtornos da linguagem25. Transtornos da leitura e da escrita podem ser compreendidos, da mesma forma, como problemas das funções responsáveis pela linguagem39.
Em vista disto, tem-se um largo espectro em
que os elementos da competência comunicativa em evolução (a pragmática, a percepção, a
expressão, etc.) relacionam-se de alguma forma
com o desenvolvimento de psicopatologia. A
presença de processos lingüísticos prejudicados
ocorrendo em variados padrões de transtornos17
torna a nossa procura de uma relação direta entre ambos os fenômenos mais difícil. Entretanto
é óbvio que com a progressão do desenvolvimento da criança as relações entre linguagem e
cognição aumentam de forma crescente55. A linguagem incorpora-se como uma ferramenta preciosa para o desenvolvimento cognitivo, influenciando o raciocínio, as concepções de tempo
e espaço, a expressão de sentimentos e a formação de conceitos. A linguagem participa ainda
como uma ferramenta fundamental para a formação de categorias mentais, idéias e conceitos17, 53, 55.
Ao considerarmos os precursores da linguagem,
através da avaliação da competência comunicativa
no bebê, poderemos mapear os processos
psicopatológicos ao longo do desenvolvimento. Os
fatores que contribuem para desvios do desenvolvimento normal da competência comunicativa no primeiro ano de vida podem ser classificados em primários ou secundários, ou, ainda, condicionados
hereditariamente ou ambientalmente. No bebê, encontramos variações normais do desenvolvimento
cognitivo41, da reatividade diante de interação humana, da sensibilidade social, da produção vocal,
etc. Lactentes são parceiros ativos em uma interação
e, portanto, suas características de desempenho podem influenciar a qualidade da interação mãe–filho.
Bebês que produzem mais vocalizações positivas recebem mais freqüentemente uma resposta verbal e,
através disto, são conseqüentemente mais estimulados. Portanto as vocalizações positivas do bebê têm
conseqüências para o desenvolvimento de uma boa
interação mãe–filho e, por conseguinte, para o seu
próprio bom desenvolvimento da linguagem38. A
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
93
Desenvolvimento da cognição e da linguagem na infância
interação desses fatores, em situações de déficits, pode
contribuir para o desenvolvimento de psicopatologia.
A constatação de uma continuidade dos elementos pré-lingüísticos até a linguagem presente na idade escolar e pré-escolar5 e a sua relação com
psicopatologia3, 10, 17, 24, 43 falam a favor de um maior
investimento em pesquisas no campo da comunicação e da psicopatologia no primeiro ano de vida.
Furtado
O investimento na investigação de processos
patológicos do desenvolvimento, reconhecido hoje
como uma disciplina acadêmica autônoma,
a psicopatologia do desenvolvimento, poderá contribuir ainda mais para o desenvolvimento de meios
e instrumentos mais efetivos para o diagnóstico e
tratamento precoces de transtornos psiquiátricos da
infância e da adolescência54, 56.
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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
Endereço para correspondência
Erikson Felipe Furtado
Departamento de Neuropsiquiatria e Psicologia
Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto – Universidade de São Paulo
Av. dos Bandeirantes 3.900 – Campus da USP
CEP 14049-900 – Ribeirão Preto-SP
e-mail: [email protected]
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J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Mania e gravidez: implicações
para o tratamento farmacológico
e proposta de manejo
Mania and pregnancy: issues related to pharmacologic
treatment and management proposal
Gabriel Ferreira Pheula1; Cláudio Eduardo Müller Banzato2; Paulo Dalgalarrondo3
Recebido em: 06.11.02
Aprovado em: 09.12.02
Resumo
O tratamento de doenças psiquiátricas na gravidez é complexo, implicando decisões clínicas difíceis, sem contar-se com
dados da literatura que embasem amplamente estas decisões. O transtorno afetivo bipolar é comum em mulheres em idade
fértil, e há alto risco de ocorrência de manifestações clínicas na gravidez e no período pós-parto. Os autores revisam o conhecimento atual sobre o uso de psicotrópicos para episódio maníaco na gravidez e o efeito no desenvolvimento fetal e da criança.
Enfatizam que, hoje, o uso de psicotrópicos na gravidez é apropriado em muitas situações clínicas, mas nenhuma decisão é
completamente isenta de risco. Também apresentam uma proposta de manejo da doença em relação ao uso de psicotrópicos na
gravidez, para pacientes com transtorno bipolar, e para aquelas que desejam engravidar.
Unitermos
mania; transtorno bipolar; gravidez; psicofarmacologia; manejo; tratamento
Summary
The management of psychiatric disorders during pregnancy is complex, including clinical decisions which are difficult, and there is no
sufficient data regarding this management in medical literature. Bipolar disorder occurs commonly in women during childbearing years, and
there is high risk of recurrence during pregnancy and postpartum period. The authors review the existing data regarding the use of psychotropic
agents in mania, and the impact on infant and childhood development. It is emphasized that nowadays the use of psychotropic medications
during pregnancy is appropriate in many clinical situations, but no decision is risk-free. Moreover, a guideline is presented for psychotropic
drug use during pregnancy and for bipolar women who wish to conceive.
Uniterms
mania; bipolar disorder; pregnancy; psychopharmacology; management; treatment
○
○
○
○
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○
Introdução
Transtornos psiquiátricos graves causam uma
série de riscos para a mulher gestante e para o
feto, sendo estes proporcionais a fatores como intensidade dos sintomas e do descontrole compor-
○
○
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○
tamental associado ao transtorno mental40. Estes
efeitos incluem recusa a cuidados pré-natais, incapacidade de seguir orientações médicas, desnutrição, abuso e dependência de álcool e drogas, tabagismo, risco de suicídio e de
auto-indução de parto, além de alteração da ca-
1Pediatra; residente de Psiquiatria do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
2Professor-assistente; doutor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
3Professor livre-docente do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
J . b r a s . p s i q u i a t r.
vol. 52 (2): 97-107, 2003
97
Pheula et al.
Mania e gravidez
pacidade de julgamento, incluindo risco de relação sexual sem proteção. Desta forma, são relativamente previsíveis os riscos de uma gestante com
transtorno psiquiátrico grave sem tratamento1.
Existem poucos estudos a respeito da evolução e do tratamento do transtorno bipolar na gravidez, assim como sobre os quadros maníacos e
hipomaníacos que eclodem especificamente durante a gestação. Dados iniciais indicaram que a
gravidez seria considerada fator de proteção para
doenças afetivas em geral, além de diminuir o risco de suicídio22. No entanto, atualmente estes dados são questionados, e há evidências de alto risco da ocorrência de transtornos de humor em
mulheres em idade fértil, com o pico de
prevalência ocorrendo entre 25 e 44 anos35.
A conduta médica padrão tradicionalmente incluía até há pouco tempo a suspensão da medicação3. Entretanto é sabido que pacientes psiquiátricos constituem população com alta prevalência de
gravidez indesejada40 devido à freqüente falta de
insight da doença, menor planejamento e controle
comportamental, além da possível interação
medicamentosa entre anticoncepcionais e psicotrópicos, reduzindo a efetividade daqueles35.
Preocupados com a carência de dados sobre
este tema, Viguera et al.40 estudaram a evolução
da doença bipolar em 101 pacientes divididas entre gestantes e não-gestantes, todas mantidas sem
medicação por 40 semanas. Verificaram que o risco de recorrência foi igual entre as duas populações durante a gravidez, mas foi maior no período pós-parto do que nas pacientes não-grávidas.
Também constataram que o risco de recorrência
foi maior em pacientes que fizeram retirada rápida da medicação (menos de duas semanas) e em
pacientes que tiveram quatro ou mais episódios
de doença afetiva anterior. Desta forma, a retirada abrupta da medicação pode contribuir para
um alto risco de recorrência.
Kastrup et al.18 verificaram um aumento de
oito vezes nas admissões hospitalares de pacientes bipolares no primeiro mês de gestação. Assim, considera-se que, em média, com a retirada
lenta da medicação, o risco de recaída é igual entre
gestantes e controles nos primeiros seis meses,
sendo de cerca de 50%39. Sharma et al. relataram
os casos de três pacientes portadoras de transtorno bipolar do tipo II que se mantiveram eutímicas
e sem medicação durante a gestação, sugerindo
que, possivelmente, pacientes com transtorno
98
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
bipolar do tipo II talvez tenham uma melhor resposta a esta conduta34.
A exposição a drogas psicotrópicas envolve uma
série de riscos ao feto, os quais incluem
malformações orgânicas decorrentes da exposição
no período da embriogênese (primeiras 12 semanas), síndromes perinatais pelo uso da droga no
período próximo ao parto, além de alterações
neurocomportamentais de aparecimento tardio,
geralmente no período escolar, surgindo na forma
de retardo de amadurecimento comportamental e
problemas de aprendizagem1, 3.
O objetivo deste estudo é fazer uma revisão de
literatura sobre o tema, apresentar alguns casos
ilustrativos e formular uma proposta de manejo de
mania na gestação, considerando o conjunto de
evidências atuais à disposição na literatura.
Uso de psicotrópicos em episódio
maníaco na gestação
As drogas utilizadas em episódios maníacos
incluem os estabilizadores do humor, que compreendem o lítio e os anticonvulsivantes, notadamente a carbamazepina e o ácido valpróico,
além de outros mais recentes: a lamotrigina, o
topiramato e a gabapentina. Também são utilizados os antipsicóticos para controle de sintomas
psicóticos e agitações psicomotoras graves, além
de benzodiazepínicos em quadros de inquietude
e agitação importantes33.
A Food and Drug Administration (FDA) não
aprovou nenhuma das drogas psicotrópicas para
uso na gestação, a despeito do uso freqüente35.
Logo, constitui-se em um dilema, nestes casos,
verificar a relação entre o risco de exposição aos
efeitos teratogênicos de uma droga contra o impacto da doença não-tratada, em relação ao prognóstico materno e fetal. Baseada nesta premissa,
a FDA elaborou um protocolo de estratificação
de risco na gestação, a fim de auxiliar na decisão
Quadro 11).
clínica (Quadro
Os estudos sobre as estimativas de risco materno-fetal na gestação são, na sua maioria, dos
tipos caso-controle ou coorte retrospectivo e, devido à limitação metodológica inerente, apresentam maior freqüência de bias e fatores de confusão, com menores validades interna e externa35.
Não há ensaios clínicos randomizados, do tipo
duplo-cego, prospectivos e controlados sobre o as-
Pheula et al.
Mania e gravidez
Quadro 1 – Estratificação de risco na gravidez, segundo o FDA3
A – Estudos controlados não mostram risco. Estudos adequados e bem controlados em mulheres grávidas não
demonstraram risco no feto.
B – Não há evidência de risco em humanos. Os estudos em animais ou não mostram riscos, ou mostram, mas não
em humanos.
C – Risco não pode ser descartado. Não existem estudos em humanos, e os estudos em animais ou mostram riscos
no feto ou não existem. Entretanto os benefícios podem superar os riscos.
D – Evidência positiva de risco. Dados de investigação ou pós-comercialização mostram risco para o feto. Entretanto
os benefícios podem superar os riscos.
X – Contra-indicada na gravidez. Estudos em animais ou humanos, ou dados de investigação ou pós-comercialização,
mostram risco fetal que claramente supera qualquer benefício ao paciente.
sunto, devido ao imperativo ético. Considerandose isto, tem-se discutido a real validade de uma estratificação de risco conforme a descrita acima, pois na
época ainda não havia metanálises sobre o assunto,
as quais aumentaram o poder estatístico destes estudos pelo aumento da amostra. Baseados nisto,
Viguera et al.38 propuseram, em 2002, uma nova
classificação das drogas psicotrópicas conforme o
potencial teratogênico. O Quadro 2 apresenta as
propostas de classificação das drogas utilizadas em
quadros maníacos de transtorno bipolar, considerando as duas formas de estratificação citadas.
A seguir, é feita uma breve revisão das evidências disponíveis sobre risco de uso dos principais
psicofármacos utilizados nos episódios maníacos
de transtorno bipolar. Neste trabalho, o risco de
uso de um psicofármaco será muitas vezes exposto utilizando-se o conceito de risco relativo (RR). O
risco relativo é a medida de associação comumente
utilizada nos estudos de coorte, compreendendo a
relação entre a incidência de malformação, ou outro desfecho clínico, em fetos expostos ou não ao
fármaco, e o fator em estudo. Desta forma, o valor
expressa a força ou magnitude da associação entre o fator e a resultante clínica. Assim, valores
menores que 1 indicam que o fator confere proteção para o desfecho (a ocorrência de
malformações). Caso o valor seja igual a 1, não há
relação entre os dois, e, se for maior do que 1, indica um risco maior para o evento clínico.
Quadro 2 – Classificação das drogas utilizadas em episódios maníacos, segundo as formas de estratificação9, 38
Droga
Lítio
Carbamazepina
Ácido valpróico
Anticonvulsivantes novos
Gabapentina
Lamotrigina
Benzodiazepínicos
Clonazepam
Alprazolam
Clordiazepóxido
Diazepam
Lorazepam
Antipsicóticos típicos
Haloperidol
Clorpromazina
Levomepromazina
Tioridazina
Trifluoperazina
Antipsicóticos atípicos
Risperidona
Olanzapina
Quetiapina
Clozapina
Classificação do FDA (2000)
Classificação de Viguera et al. (2002)
D
C
D
Risco moderado
Alto risco
Alto risco
C
C
Risco desconhecido
C
D
D
D
D
Não-avaliado
C
C
C
C
C
Baixo risco (preferir os de alta potência)
C
C
C
B
Risco desconhecido
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99
Pheula et al.
Mania e gravidez
Lítio e gravidez
Em relação ao lítio, os relatos iniciais do International Register of Lithium Babies revelaram taxas significativas de malformações cardíacas em
fetos expostos no período pré-natal, principalmente anomalia de Ebstein (má disposição dos
folhetos tricúspides, com decorrente insuficiência tricúspide, dilatação de ventrículo direito e,
ocasio- nalmente, defeito de septo ventricular),
sendo o risco relativo (RR) de 40031. Estudos mais
recentes revelaram que houve limitações
metodológicas, com superestimação dos efeitos,
pois os dados analisados eram provenientes de
relatos voluntários dos médicos25.
Cohen11 avaliou todos os estudos publicados até
1994, com delineamento de coorte e caso-controle. Deste, o único estudo de coorte com validade
interna foi o de Kallen17, que encontrou um RR de 3
para malformações gerais e de 7,7 para
malformações cardíacas, sendo que os outros apresentaram baixa prevalência de casos. O outro estudo, de Jacobson16, avaliou 148 usuárias de lítio no
primeiro trimestre, pareado com controles, tendo
encontrado um feto com anomalia de Ebstein entre
os casos e um lactente no grupo de controle com
defeito de septo ventricular. Na revisão de Cohen,
os quatro estudos de caso-controle avaliados
totalizaram 200 crianças com anomalia de Ebstein,
sendo que nenhuma delas apresentou mãe usuária
de lítio. Concluiu, então, que existe um maior RR
com o uso de lítio (incidência de 1/1.000-1/2.000)
em relação à população geral (incidência de 1/
20.000, ou seja, risco de 10 a 20 vezes). Desta forma, identificou-se que a prevalência de anomalia de
Ebstein em usuárias de lítio é de 0,05% a 0,1%, de
tal forma que o risco absoluto foi considerado pequeno. O risco absoluto considera a magnitude do
risco relativo em termos populacionais, sendo pequeno pela baixa prevalência do efeito teratogênico.
Em termos gerais, considera-se que a melhor estimativa do risco de malformações congênitas maiores em fetos de usuárias de lítio na gestação situa-se
entre 4% e 12%, sendo de 2% a 4% na população
geral11.
O uso de lítio não foi associado a alterações
neurocomportamentais. Existem dois relatos de associação de poliidrâmnio com uso de lítio no segundo trimestre, possivelmente relacionados com a
ocorrência de diabetes insípido nefrogênico5. Em um
deles, o neonato apresentou sinais de intoxicação
ao nascimento, conforme descrito abaixo. No entanto o uso no terceiro trimestre pode estar associa100
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do, principalmente em níveis tóxicos, com bócio
fetal, além de efeitos no neonato decorrentes de intoxicação, incluindo cianose, hipotonia,
hepatomegalia, sangramento gastrintestinal, convulsões e alterações cardíacas (bradicardia, flutter atrial,
inversão de onda T), os quais são reversíveis em sete
a 14 dias3.
Anticonvulsivantes usados como
estabilizadores do humor e gravidez
A carbamazepina, na gestação, está associada a
um risco duas vezes maior de malformações, particularmente espinha bífida35. Ocorre em 1% dos casos, sendo que, na população geral, a incidência é
de 0,03%35. Esta malformação, que ocorre após exposição nos dois primeiros trimestres, é ainda mais
prevalente com o ácido valpróico, ocorrendo em 3%
a 6% dos casos. Também há relatos de autismo associado a exposição ao ácido valpróico no primeiro
trimestre, além de malformações cardíacas e de ossos longos42. Os dois fármacos podem causar a chamada face anticonvulsivante, antigamente relacionada apenas com a fenitoína. Esta caracteriza-se por
hipoplasia de região média de face, com nariz curto, narinas evertidas e lábio superior longo. Não há
evidências de alterações neurocomportamentais relacionadas a anticonvulsivantes usados para o tratamento de doença bipolar, ao contrário da fenitoína,
cujo uso na gestação está associado a retardo de
desenvolvimento neuropsicomotor no lactente1, 32.
A carbamazepina, usada no terceiro trimestre, também pode causar uma deficiência reversível e transitória de fatores de coagulação dependentes de vitamina K, com risco de hemorragia cerebral no
neonato24. Além disso, uma paciente que usou, para
profilaxia de doença bipolar na gravidez, 400mg/
dia de carbamazepina na gestação, deu à luz um
neonato apresentando neuroblastoma de supra-renal com metástases cutâneas, não sendo, entretanto, encontrada possível relação causal entre as duas
condições clínicas7.
Em uma recomendação publicada em 2002,
a Academia Americana de Psiquiatria5 preconiza
que mulheres que mantiverem o uso de
estabilizadores de humor na gestação devem realizar dosagem de alfafetoproteína para triagem de
defeitos do tubo neural antes da 20ª semana de
gestação, com realização de amniocentese em
caso de valores alterados. Também indica a realização de ecocardiografia fetal de alta resolução
entre 16 e 18 semanas para detecção de anomalias cardíacas. Deve ser feita dosagem sérica fre-
Pheula et al.
Mania e gravidez
qüente da medicação, pois as alterações
hemodinâmicas da gravidez predispõem à intoxicação. A Academia Americana de Pediatria3 orienta o consumo diário de 0,4mg de ácido fólico
em mulheres em idade fértil, para prevenção de
defeitos de tubo neural. Se houver história de feto
anterior portador destes defeitos ou uso de medicação que os predisponha, aumentar a dosagem
para 4mg/dia.
Como as drogas anticonvulsivantes estão associadas a maior incidência de malformações do
que o lítio, elas não são, em princípio, recomendadas na gravidez31. Além disso, em casos de retirada do lítio, não é recomendada a troca de
estabilizador do humor em pacientes sem resposta
a outras medicações, pois a gravidez não é, reconhecidamente, um momento para experimentar
novos fármacos35. Não existem estudos com uso
de anticonvulsivantes novos também usados
como estabilizadores do humor, como
lamotrigina, gabapentina e topiramato35.
Antipsicóticos e gravidez
O uso de antipsicóticos pode ser considerado
em pacientes bipolares que apresentam piora clínica na gravidez, não estando em uso de estabilizador do humor, principalmente para episódios maníacos e para pacientes com história de
transtorno bipolar e predomínio de episódios maníacos. Além disso, os antipsicóticos podem ser
considerados substitutos do lítio no tratamento
de episódios maníacos na gestação5. No entanto
estas drogas não têm eficácia na prevenção de
episódios depressivos. Os antipsicóticos são considerados classe C na escala do FDA, ao contrário
dos estabilizadores de humor, que são, com exceção da carbamazepina, classe D. Há um leve
aumento de risco, não-específico, para malformações induzidas por exposição, no primeiro trimestre, a antipsicóticos de baixa potência1. Este
estudo foi realizado com uso de clorpromazina
para gestantes com hiperêmese, cujas doses são,
geralmente, menores do que para episódios maníacos27. Estudos retrospectivos e prospectivos não
revelaram relação do haloperidol com ocorrência de malformações. Existem dois relatos, com
avaliação de alguns lactentes expostos, que não
mostraram evidência de malformações com
risperidona e clozapina21, 41.
Não há consenso sobre a ocorrência de
alterações na avaliação neurocomportamental a
longo prazo. Desta forma, considera-se que os
antipsicóticos sejam efetivos como substitutos do
lítio no tratamento de episódios maníacos durante
a gestação, com eficácia discutível na profilaxia5,
11
. Entre eles, são preferidos os antipsicóticos de
alta potência, pois, além de terem menores efeitos
anticolinérgicos, anti-histamínicos e hipotensores,
não há evidência de malformações com uso de haloperidol, tiotixeno, trifluoperazina e flufenazina3, 5. O
uso de preparações de longa ação (depot) deve
ser evitado pelo risco de efeitos tóxicos no neonato3. Da mesma forma, o uso de antipsicóticos
deve ser evitado no terceiro trimestre, pelo risco
de efeitos extrapiramidais no neonato.
Benzodiazepínicos e gravidez
Também os benzodiazepínicos têm sido propostos para o tratamento de episódios maníacos5.
Os benzodiazepínicos foram, em estudos realizados com o diazepam, tradicionalmente associados com a ocorrência de anormalidades orofaciais,
principalmente fenda palatina28. Uma metanálise
que examinou os estudos caso-controle realizados mostrou um aumento do risco relativo de fenda palatina, embora com risco absoluto pequeno12.
Entre os vários benzodiazepínicos, o
alprazolam mostrou maior associação, com incidência de 0,7% em casos de exposição no primeiro trimestre contra 0,06% na população geral1. No entanto dois estudos prospectivos, que
avaliaram cerca de 250 gestantes usuárias de
alprazolam no primeiro trimestre, não verificaram
alterações no neonato30, 36. O clonazepam, um dos
benzodiazepínicos considerados de escolha em
pacientes maníacos, em virtude de sua maior potência para controle de ansiedade e agitação, é o
único considerado classe C pelo FDA, devido à
ausência de estudos do tipo caso-controle em
humanos, sendo os outros da classe D9. Um estudo com limitações metodológicas observou, em
19 grávidas usuárias de clonazepam, a presença
de malformações em três neonatos26. Desta forma, como verificou-se alguma evidência de relação com malformações, pode estar indicada, em
usuárias de clonazepam, triagem com ecografia
fetal entre 18 e 20 semanas de gestação3.
Os benzodiazepínicos podem causar efeitos
neonatais, incluindo a síndrome floppy infant
(hipotonia, baixo escore de Apgar, hipotermia e baixa
tolerância ao frio), ocorrendo logo após o parto em
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Pheula et al.
Mania e gravidez
lactentes que desenvolveram dependência intra-útero da droga. Além disso, podem ser observados, no
neonato, sintomas de abstinência, que geralmente
ocorrem por até três semanas após o parto. A fim de
diminuir a prevalência dos efeitos neonatais, sugere-se retirada lenta da medicação nas duas semanas
anteriores ao parto, sendo esta retirada mais lenta
quanto mais grave for o transtorno de ansiedade da
paciente, de tal forma que, a pacientes graves ou
com dependência importante da medicação, é recomendada a manutenção da medicação, pelo alto
risco de síndrome de abstinência ou retorno dos sintomas na gestante3.
Não há consenso sobre a ocorrência de alterações neurocomportamentais induzidas por
benzodiazepínicos3. Desta forma, os benzodiazepínicos mais indicados na gestação são os de
meia-vida curta e com ausência de metabólitos
ativos. Preenchem estes critérios o alprazolam e
o lorazepam. Como o primeiro tem maior associação com fenda palatina, além de, pela maior potência, estar associado à síndrome de abstinência
mais intensa, o lorazepam é preferido3. Em pacientes portadores de transtornos de ansiedade, tem
se dado preferência ao uso de antidepressivos
tricíclicos ou inibidores de recaptação de serotonina, os quais não têm demonstrado relação
com a ocorrência de malformações20.
ECT e gravidez
Em virtude do exposto acima, que evidencia
a existência de poucos estudos a respeito do efeito de medicações psicotrópicas em fetos expostos, tem ocorrido uma discussão referente ao uso
de ECT em gestantes em episódio maníaco. Considerando-se a teratogênese, o uso de anestésicos de ação curta para o ECT pode trazer menor
risco ao feto do que o uso de estabilizadores do
humor, podendo ser considerado uma alternativa para o caso de episódios graves de transtorno
do humor na gravidez5.
Em relação às respostas hormonais na gravidez, um relato revelou aumento do nível sérico
de vários hormônios durante ECT, incluindo
ocitocina15. Teoricamente, então, poderia haver
indução de contrações miometriais durante a crise convulsiva. No entanto, em uma revisão de 300
casos de ECT na gestação, houve dois casos de
contrações uterinas iniciadas logo após o ECT, sem
desencadeamento de parto prematuro, além de
cinco casos de arritmias fetais transitórias29. Os
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casos com precipitação de parto ocorreram no
terceiro trimestre: em um, houve hipertensão transitória após o ECT (180 x 90mmHg), com descolamento prematuro de placenta em uma mãe
de 35 anos; no outro, houve contrações uterinas
e sangramento vaginal após o ECT, com parto sendo desencadeado após realização de um enema.
Este último relato data de 1948, quando as técnicas de realização eram diferentes10, 29.
Não existem estudos controlados realizados sobre o assunto, sendo todos relatos de caso, os quais
também não encontraram malformações que possam ter sido relacionadas ao procedimento, considerando a época e o tipo de anomalia. Desta forma,
os relatos são favoráveis ao uso de ECT. Considerando-se os riscos do uso de psicotrópicos e a ausência
de tratamentos que sejam, simultaneamente, seguros e com alta eficácia na gravidez, pode ser um tratamento factível. Assim, a gestação é um fator relevante para a indicação de uso de ECT em episódios
maníacos graves29. Atualmente, considera-se que,
pelo fato de proporcionar uma resposta em curto
prazo, o ECT deve ser considerado em casos de instabilidade importante da doença psiquiátrica, com
risco fetal imediato13.
Em 1990, a Academia Americana de Psiquiatria elaborou uma série de recomendações sobre
o uso de ECT na gestação6, que inclui avaliação
obstétrica prévia para verificação de fatores de risco materno e fetais, inclusão de obstetra na equipe do procedimento, decúbito lateral esquerdo e
elevação do quadril em gestantes acima de 20 semanas (diminui a compressão aortocava, com
menor hipoperfusão uterina), fazer tocodinamometria antes do ECT (para verificar a ocorrência de contrações, em casos de difícil anamnese e
exame físico), monitoração contínua da freqüência cardíaca fetal durante o procedimento, hidratação prévia por via parenteral, realização em sala
de parto (com equipe preparada para desencadeamento de trabalho de parto), administração
de betametasona para maturação pulmonar fetal.
Ressalta, também, que o consentimento informado é essencial, com participação ativa da família
na decisão terapêutica.
Relato de casos ilustrativos
A seguir será relatado um caso da literatura que
evidencia decisão clínica de tratamento de transtorno afetivo na gravidez. Após, dois casos acompanhados em nosso serviço são apresentados.
Pheula et al.
Mania e gravidez
Finnerty et al.14, em 1996, relataram um caso de
uma paciente de 33 anos com diagnóstico de transtorno bipolar do tipo I. A paciente usava, como manutenção, valproato e lorazepam, sendo suspensos
no quarto mês de gestação, quando esta foi descoberta. Tinha história de sete hospitalizações por quadros de mania, dois dos quais se resolveram apenas
com ECT. Logo após a retirada da medicação, começou com insônia e humor exaltado, sendo indicada
hospitalização para manejo. Iniciou com
uso de haloperidol 10mg/dia, sendo aumentado
para 20mg/dia após três dias, juntamente com
clonazepam 2mg/dia. Paciente evoluiu com piora do
quadro, com episódios freqüentes de agitação
psicomotora. Tentou-se a troca do antipsicótico para
clorpromazina 400mg/dia, por boa resposta em episódios anteriores, mas a paciente desenvolveu
hipotensão grave. A dose do haloperidol foi, então,
aumentada até 28mg/dia e trocado o benzodiazepínico para lorazepam 14mg/dia, sem melhora.
Além disso, a paciente era portadora de diabetes
melito e, devido ao padrão irregular de dieta, houve
piora do controle glicêmico. Após dez dias de evolução, foi indicado iniciar ECT, por piora clínica. Decidiu-se que o ECT seria administrado em sala de parto, com equipe obstétrica e neonatal presente, e
administração prévia de betametasona. No entanto
a paciente, antes da primeira sessão, teve ruptura
prematura de membranas e oligoidrâmnio grave, sendo realizada cesariana com 29 semanas de gestação.
No pós-parto imediato, foi iniciado haloperidol 28mg/
dia, valproato 500mg/dia e lorazepam 4mg/dia. Houve piora abrupta do quadro maníaco a partir do segundo dia do puerpério, sendo que na semana seguinte foi aumentado o valproato até 1.000mg/dia,
e trocado o antipsicótico para clorpromazina
2.600mg/dia, em virtude de resposta em episódio
anterior. Como se manteve a piora do quadro, foi iniciado ECT no 12º dia pós-parto. Foi submetida a 17
sessões de ECT, com melhora do quadro. A paciente
reiniciou o uso de valproato após, sendo necessário
aumento da dose até 2.000mg/dia para controle total
do quadro. No seguimento, quatro meses após, a paciente mantinha quadro estável, recebendo tratamento de manutenção com valproato 1.250mg/dia e
lorazepam 2mg/dia.
Casos do serviço da Unicamp
Caso 1
Paciente com 26 anos, casada, do lar, primeiro grau completo, com diagnóstico de transtor-
no afetivo bipolar do tipo I. O diagnóstico foi feito quando a paciente teve um episódio maníaco
com sintomas psicóticos há dois anos e meio, tendo melhora com lítio 600mg/dia, haloperidol
10mg/dia e clonazepam 4mg/dia. Manteve a
mesma dosagem de lítio como tratamento de manutenção. Há um ano e meio, teve um episódio
depressivo moderado, com uso de fluoxetina
20mg/dia por 30 dias. Há seis meses, a paciente
referiu atraso menstrual, sendo feita a retirada imediata do lítio e solicitado teste de gravidez, cujo
resultado foi positivo. A paciente manteve-se
eutímica até 18 semanas de gestação, quando iniciou com quadro de insônia, distratibilidade, mais
comunicativa que o usual, aumento da auto-estima e elação (dizia que falava sete línguas, que
podia curar as pessoas). Foi iniciado haloperidol
3mg/dia e, em 14 dias, aumentado para 5mg/dia
por ausência de resposta. Em nova avaliação após
duas semanas, a paciente mantinha o mesmo quadro, sendo indicada internação. Nesta, a dose de
haloperidol foi aumentada até 10mg/dia, sendo
que após cinco dias a paciente começou a ter
melhora do padrão de sono e melhora da capacidade de concentração. Evoluiu com remissão
completa do quadro, estando, atualmente, com
34 semanas de gestação, com plano de manter a
dose de antipsicótico até o terceiro trimestre de
gravidez (atualmente, usando 2,5mg/dia, com
plano de suspensão em sete dias).
Caso 2
Paciente com 32 anos, casada, nível educacional universitário, secretária executiva, com diagnóstico de transtorno bipolar do tipo I. Apresenta desde a adolescência períodos de apatia,
inapetência e descuido consigo mesma, alternados com períodos de loquacidade, gasto excessivo de dinheiro e redução do sono. Ambos os períodos duravam duas a quatro semanas, com
remissões espontâneas. Desde os 18 anos de idade foi diagnosticado hipotireoidismo, fazendo ela
uso de Puran T4 com controle adequado dos sintomas. Há cinco anos, com 27 anos de idade, apresentou um episódio com diminuição progressiva
e marcante da necessidade de sono, agitação
psicomotora intensa, logorréia, ideação deliróide
(afirmava estar grávida, sem atraso menstrual e
os testes sendo negativos) e ouvia a voz da mãe
morta há um ano. O episódio durou cerca de três
meses e remitiu com o uso de risperidona e
clonazepam. Após o episódio, passou a fazer
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Pheula et al.
Mania e gravidez
psicoterapia de orientação analítica duas vezes por
semana. Foi introduzido o carbonato de lítio, mas
ela não tolerou os efeitos colaterais, nem tolerou
antidepressivos tricíclicos prescritos. Desde há cerca de quatro anos passou então a fazer uso de
carbamazepina (CBZ) 1.200mg/dia, tolerando bem
esta medicação. Há três anos teve um quadro
depressivo leve após a morte de um irmão. Intensificou-se a psicoterapia e o quadro remitiu sem
medicação psiquiátrica. Há um ano e meio manifestou desejo de engravidar e de suspender a medicação, pois afirmava ser extremamente preocupada com possíveis danos da medicação ao bebê.
Foi então retirada gradativamente, em um mês, a
medicação. Engravidou há cerca de um ano. Passou a gestação completamente eutímica, sem o uso
do estabilizador do humor. Cinco dias após o parto passou a sentir-se progressivamente irritada, com
redução do sono, agitação psicomotora, cada vez
mais ansiosa e preocupada. Passou a apresentar
idéias de morte e descuido com o bebê, além de
desinibição social. Nos dias seguintes se intensificou o quadro com ideação paranóide e confusa,
labilidade afetiva e idéias agressivas em relação ao
bebê. Foi suspensa a amamentação
e introduziu-se CBZ 800mg/dia, olanzapina
10mg/dia e clonazepam 1mg/dia. Em um mês a
paciente apresentou remissão completa de seus sintomas e voltou ao estado eutímico. A olanzapina e
o clonazepam foram retirados em um mês e meio
após a remissão. Manifesta nas consultas atuais forte
desejo de voltar a amamentar o bebê. Em acordo
com o pediatra, tentou-se, sem sucesso,
reintroduzir a amamentação com a manutenção
de CBZ.
Proposta de manejo
Resumindo o que foi exposto acima, os autores elaboraram uma proposta de manejo de pacientes portadoras de transtorno bipolar que desejam engravidar, além de diretrizes em relação
ao uso de psicofármacos em episódio maníaco
na gravidez, conforme já feito por outros autores1-4, 8, 19, 23, 31, 37.
Desta forma, os autores elaboraram quadros,
cujo objetivo é servir como guia prático e de consulta rápida, a fim de facilitar o manejo do transQuadros 3 a 99).
torno bipolar na gravidez (Quadros
Quadro 3 – Recomendações para pacientes bipolares que desejam engravidar
1 – Fornecer aconselhamento genético, incluindo esclarecimento sobre a hereditariedade da doença.
2 – Verificar a gravidade da doença e a capacidade de tolerância a sintomas leves com manejo psicoterápico,
a fim de indicar ou não a possibilidade de gravidez.
3 – Reavaliar padrão sazonal da doença, para planejamento da época da concepção.
4 – Iniciar uso de 0,4mg/dia de ácido fólico. Se em uso de carbamazepina ou ácido valpróico ou história de
feto anterior com defeito de tubo neural, aumentar a dose para 4mg/dia.
5 – Discutir, com o paciente e a família, os riscos e benefícios do uso de medicação para gravidez. Enquanto
os benefícios incluem a prevenção de recaída de quadros depressivos e maníacos, os riscos compreendem
a maior probabilidade de intoxicação materno-fetal pelo lítio, além do potencial teratogênico dos estabilizadores
de humor. Desta forma, prefere-se a ausência de medicação ou o uso de medidas alternativas, incluindo o
emprego de antipsicóticos ou ECT.
6 – Em pacientes com transtorno bipolar do tipo II, preferir a suspensão da medicação, pelo baixo risco de recaída
da doença.
Quadro 4 – Recomendações gerais para pacientes bipolares grávidas
1–
2–
3–
4–
5–
Suplemento nutricional adequado.
Orientação sobre risco de álcool, tabagismo e cuidados pré-natais irregulares.
Intensificação de manejo psicoterápico, a fim de abordagem precoce de estressores.
Acompanhamento psiquiátrico com maior proximidade, com retornos ambulatoriais mais freqüentes.
Atenção para a recomendação universal de que, na gravidez, são preferíveis medicações mais antigas, com
maior experiência no uso e conhecimento dos possíveis efeitos no feto.
6 – Também é importante considerar o bom senso de minimizar a exposição, com o uso de menores doses, no
menor tempo possível.
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Mania e gravidez
Quadro 5 – Recomendações quanto à manutenção do uso de estabilizador do humor na gravidez
1 – Em pacientes com períodos longos de eutimia, fazer retirada gradual da medicação, preferentemente no
período pré-concepção.
2 – Em pacientes às quais a retirada de medicação confere um risco alto de recaída, manter sem medicação,
no mínimo, durante o período da embriogênese (entre quatro e 12 semanas). Constitui uma estratégia
continuar a medicação até a ausência do primeiro período menstrual, fazendo retirada gradual da medicação
após a presença de um teste de gravidez positivo.
3 – Em pacientes para as quais a retirada da medicação representa um risco muito alto de recaída, considerar
manutenção, com substituição pelo uso de antipsicóticos de alta potência no período da embriogênese.
Retornar o uso do estabilizador de humor no segundo e terceiro trimestres, no caso do lítio, ou apenas no
terceiro trimestre, no caso dos anticonvulsivantes.
4 – Em pacientes sem medicação e que apresentam recaída do quadro, preferir, para episódios maníacos, o uso
de antipsicóticos e/ou benzodiazepínicos e, para episódios depressivos, o uso de antidepressivos. Em ambos
os casos, considerar o uso de ECT na hipótese de deterioração clínica grave da mãe (como desnutrição ou
extrema recusa à medicação) ou risco grave para o feto.
5 – Não há indicação clínica de retirada abrupta de medicação, pois o elevado risco de recaída, nestes casos,
supera qualquer benefício.
Quadro 6 – Recomendações para pacientes usuárias de lítio na gravidez
1 – Atentar precocemente para sinais de intoxicação por lítio, como tremor, diplopia, náusea, vômitos, diarréia,
disartria e ataxia.
2 – Fazer ecocardiografia fetal entre 16 e 18 semanas de gestação, para triagem de anomalias cardíacas e, se houver
presença de alterações, amniocentese.
3 – Preferir preparações de liberação lenta, com o menor nível sérico possível para controle dos sintomas.
4 – No segundo e terceiro trimestres, monitorizar funções endócrinas materna e fetal (verificar presença de
hipotireoidismo), além de função renal fetal, e realizar ecografia para triagem de poliidrâmnios (relacionados
à ocorrência de diabetes insípido nefrogênico).
5 – No terceiro trimestre, pela maior hemodiluição da gravidez, podem ser necessárias doses mais altas de lítio.
No período periparto, as doses devem ser reduzidas em 30%, pois as perdas de líquido nesta fase predispõem
à intoxicação materno-fetal. Reiniciar em doses terapêuticas no pós-parto imediato, sendo contra-indicada a
amamentação, pelo alto risco de recaída no primeiro ano após o parto.
6 – No neonato, observar sinais de intoxicação e fazer dosagem de função tireoidiana (para verificar ocorrência
de hipotireoidismo).
Quadro 7 – Recomendações para pacientes usuárias de carbamazepina e ácido valpróico na gravidez
1 – Considerar, se houver necessidade de uso de estabilizador de humor, a troca para lítio, caso haja história
de resposta anterior a este, pois já poderia ser utilizado a partir do segundo trimestre, além de evidência
de melhor relação custo/benefício.
2 – Diminuir para a dose mínima necessária, pois o risco de espinha bífida está, no caso do ácido valpróico,
relacionado à dose.
3 – Lembrar que o risco de malformações do sistema nervoso central e do tubo neural ocorre com o uso destas
medicações no primeiro e segundo trimestres. Portanto recomenda-se o uso apenas no terceiro trimestre.
4 – Administrar 4mg/dia de ácido fólico, iniciando quatro semanas antes da concepção até, no mínimo, o final
do primeiro trimestre.
5 – Fazer triagem ultra-sonográfica entre 16 e 19 semanas de gestação, além de dosagem de alfafetoproteína
por volta de 20 semanas, ambas para detecção de defeitos de tubo neural.
6 – Usar vitamina K no neonato, caso haja doença hemorrágica do recém-nascido relacionada ao uso de
carbamazepina.
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Mania e gravidez
Quadro 8 – Recomendações para pacientes usuárias de antipsicóticos na gravidez
1 – Os antipsicóticos são preferidos, em relação ao uso de estabilizadores de humor, em casos de recaída na gravidez,
principalmente no primeiro e segundo trimestres. Tal fato se deve à eficácia no tratamento, principalmente,
de episódios maníacos.
2 – Preferir o uso de antipsicóticos de alta potência (haloperidol, flufenazina e trifluoperazina), pela ausência de
efeitos teratogênicos.
3 – É indicada a retirada no terceiro trimestre, pelo risco de efeitos extrapiramidais no neonato.
4 – Evitar o uso de preparações de depósito.
5 – Existem poucos estudos em relação ao uso de antipsicóticos atípicos na gravidez, sendo considerados de risco
desconhecido, portanto não-indicados.
Quadro 9 – Recomendações para pacientes usuárias de benzodiazepínicos na gravidez
1 – A princípio, não é recomendado o uso no primeiro trimestre, em virtude de alguma evidência de associação
com fenda palatina.
2 – Também é indicado evitar o uso no final do terceiro trimestre, pelo risco de sintomas de abstinência e de síndrome
do lactente frouxo (floppy infant).
3 – A redução da dose na gestante deve ser mais lenta quanto maior for a intensidade dos sintomas de ansiedade
ou da dependência da droga, sendo indicado manter a medicação em casos graves.
4 – Preferir o uso de medicações que tenham meia-vida curta e sem metabólitos ativos, como o lorazepam.
O alprazolam deve ser usado como segunda opção, em virtude do maior risco de fenda palatina e de causar
uma síndrome de abstinência mais intensa.
5 – Se em uso de clonazepam, fazer triagem ecográfica entre 18 e 20 semanas de gestação, em virtude de alguns
relatos demonstrarem associação com malformações.
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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
Endereço para correspondência
Paulo Dalgalarrondo
Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria
Faculdade de Ciências Médicas
Universidade Estadual de Campinas
Caixa Postal 6111
CEP 13081-970 – Campinas-SP
Tel.: (19) 3788-7206
Fax: (19) 3289-4819
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Questionário para detectar potencial
uso de drogas entre adolescentes
(Posit): adaptação brasileira
Questionnaire to detect potential use of drugs among
adolescents (Posit): an adaptation to the Brazilian reality
Leconte de Lisle Coelho Júnior1; Bernard Gontiès2; Valdiney V. Gouveia3
Recebido em: 24.01.03
Aprovado em: 27.01.03
Resumo
A presente pesquisa teve como objetivo a adaptação brasileira do Posit (Problem Oriented Screening Instrument for Teenagers),
que indica a potencialidade do futuro consumo (tendência ao consumo) de bebidas alcoólicas e de outras drogas entre a
população adolescente. Especificamente, pretendeu-se comprovar a validade de construto desta medida. Participaram 1.531
jovens, estudantes do ensino médio de escolas públicas e particulares da cidade de João Pessoa, sendo a maioria do sexo
feminino (59,8%), com uma média de idade de 17 anos. Como era teoricamente esperado, foram encontrados sete fatores de
primeira ordem, os quais explicaram conjuntamente 27,7% da variância total. Seus índices de consistência interna (Alfas de
Cronbach) variaram de 0,65 a 0,8. A extração de um único fator geral permitiu explicar 12,1% da variância total, apresentando
um Alfa de Cronbach de 0,85. Concluiu-se que o Posit pode ser útil na população adolescente brasileira como um instrumento
de triagem, identificando potenciais consumidores de drogas. Recomendam-se, porém, estudos futuros que comprovem outros
parâmetros métricos (por exemplo, validade preditiva) e estabeleçam suas normas diagnósticas.
Unitermos
drogas; álcool; maconha; consumo; adolescência; Posit
Summary
This present research aimed the adaptation of Posit (Problem Oriented Screening Instrument for Teenagers) to the Brazilian reality. This
instrument indicates the future potential (tendency to the consumption) use of alcohol and other drugs among adolescent population. The
specific intention of this study is to confirm the construct validation of this measure. The sample accounted the participation of 1,531 young
students of private and public high schools located in the city of João Pessoa; most of them were women (59.8%) with average age of 17
years old. As it was theoretically expected, seven high order factors which together explained 27.7% of total variance were found. Their
internal consistence index (Cronbach’s Alpha) ranged from .65 to .80. The extraction of a sole factor permitted to explain 12.1% of total
variance, presenting a Cronbach’s Alpha of .85. The conclusion was that the Posit as an assigning instrument may be useful for the Brazilian
adolescent population once it can identify potential drug users. Nonetheless, further studies are recommended to confirm other measures
parameters (e.g.: predictive validation) and to establish its diagnostic norms.
Uniterms
drugs; alcohol; grass; consume; adolescence; Posit
1Mestre
em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); professor do Centro Universitário de João Pessoa (Unipê).
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
3Coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade Federal da Paraíba (UFPB); pesquisador do CNPq, 2B.
O presente artigo corresponde a parte da dissertação do primeiro autor, sob a orientação dos outros dois autores. Contou com apoio da Capes,
através de bolsa de mestrado concedida ao primeiro autor. Os autores agradecem a esta instituição.
2Professor
J . b r a s . p s i q u i a t r.
vol. 52 (2): 109-116, 2003 109
Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes
Considerações gerais acerca
do consumo de drogas entre
adolescentes
As drogas em geral podem ser divididas em
dois grandes grupos: as chamadas lícitas, como o
álcool e o tabaco, por exemplo, e as ilícitas, como
a maconha e a cocaína. As drogas lícitas são mais
aceitas pela sociedade e têm um consumo muito
maior que as ilícitas, pois estas últimas não têm
amparo legal para serem produzidas e seus consumidores geralmente são hostilizados pela sociedade por sustentarem tal hábito2, 12.
As substâncias químicas que são aceitas legalmente na sociedade, diferente do que alguns podem pensar, têm um poder acentuado de provocar
danos entre os adolescentes. Isto é especial- mente
válido pela facilidade de acesso desses jovens, tornando social e/ou culturalmente aceito o seu consumo, principalmente em eventos festivos. Contrariamente, quando se trata das drogas ilícitas, parece
haver uma necessidade ímpar de mostrar seu caráter maléfico, sendo destacadas como prejudiciais à
saúde em geral, provocando um estado de decadência psíquica, física e moral. Neste sentido, evidencia-se uma grande guerra pelo mercado de consumo entre os produtores de drogas lícitas e ilícitas,
tendo os adolescentes como personagens principais
no centro deste embate.
Newcomb e Bentler (1989) entendem que a
mídia é uma das principais culpadas pelo aumento do consumo de substâncias psicoativas entre
os jovens, induzindo-os para que façam uso destas. Por exemplo, como assinalam estes autores,
isto é evidente no homem da Marlboro e na mulher do Virgínia Slim, os quais são vistos como
modelos, sendo as drogas lícitas o remédio para
os males que podem sofrer, como o estresse, a
depressão, o cansaço físico, entre outros. Ora,
quando a mídia mostra personagens perfeitos que
assim o são por causa do consumo de substâncias lícitas, evidentemente ela está promovendo este
consumo que tanto condena. Em outras palavras,
os adolescentes ficam, com muita razão, confusos quando a mídia (representando a sociedade)
promove a permissividade para o consumo de
drogas lícitas ao mesmo tempo em que dá uma
enfática negativa com relação às drogas ilícitas.
Hurrelmann e Engel (1992) acentuam que as drogas servem de objeto para uma transcendência das
normas e dos valores que regem a sociedade com a
finalidade de que os adolescentes que consomem
110
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Coelho Júnior et al.
drogas (principalmente as ilícitas) possam tentar vislumbrar uma melhor perspectiva para si, tendo em
vista que a sociedade não lhes dá oportunidades.
Embora possa esta ser uma explicação para o consumo de drogas entre os adolescentes, certamente a
crise de identidade vivenciada nesta fase do desenvolvimento e a orientação ao hedonismo que a caracteriza5 contribuem para fazer este um aspecto crítico. Os adolescentes, embora possa isto parecer
absurdo, apresentariam uma tendência natural ao
consumo de drogas, sendo impedidos ou tolhidos em
função da adesão a valores humanos mais tradicionais (por exemplo, conformidade, tradição)3, 5, 8, 15.
A partir destas considerações gerais sobre o
consumo de substâncias psicoativas na juventude, percebe-se um problema social iminente, cuja
dimensão é especulada, mas raramente delimitada. Um aspecto preponderante para tanto é a escassez de indicadores objetivos de consumo de
drogas entre tais jovens, o que motivou o presente estudo. Seu objetivo principal foi adaptar para
o contexto brasileiro uma medida de potenciais
adolescentes com problemas de consumo de drogas, lembrando-se de que o termo potencial tem
o mesmo significado que tendência a, seguindo
uma perspectiva que entende a importância do
aspecto preventivo do consumo de drogas1-3.
Medidas de potenciais usuários de
drogas: a proposta do Posit
Embora existam medidas adaptadas ao contexto brasileiro sobre o uso de drogas4, 7, estas
compreendem índices simples, com poucos itens,
em geral abaixo de dez, onde se pergunta diretamente sobre o seu consumo. Estes aspectos impõem maior possibilidade de erro na estimação
de potenciais usuários de drogas, fazendo com
que o próprio pesquisador não se sinta seguro
sobre os resultados obtidos. Neste sentido, a avaliação do consumo de drogas tem se fundamentado algumas vezes em entrevistas, procurando
perguntar diretamente se o respondente usa ou
não uma série de drogas6, 10.
Diante deste contexto, parece apropriado contar com uma medida como o Questionário de Triagem de Problema de Adolescentes (Posit). Este foi
originalmente criado pelo National Institute of
Drugs Abuse (Nida), órgão do governo dos Estados Unidos. Nesse momento constava de 139
itens de forma interrogativa, aos quais os
Coelho Júnior et al.
respondentes deveriam dizer sim ou não. Mariño,
González-Forteza, Andrade e Medina-Mora (1998)
realizaram sua adaptação ao contexto mexicano,
procurando eliminar os itens que não discriminavam, de modo estatisticamente satisfatório e na
direção esperada, aqueles jovens adolescentes
com e sem problemas relacionados ao consumo
de drogas. Deste total de itens, 81 foram mantidos por serem satisfatórios.
A versão mexicana avalia sete áreas principais
da vida dos adolescentes, as quais podem indicar
potenciais usuários de drogas. Tais áreas, com exemplos de itens entre parênteses, são identificadas a
seguir: uso e abuso de substâncias (Teve alguma dificuldade porque consome drogas ou bebidas alcoólicas na escola? Tem dificuldade em sua relação com
seus amigos devido às bebidas alcoólicas ou às drogas que consome?), saúde mental (Age impulsivamente sem pensar nas conseqüências dos seus atos?
Sente-se nervoso a maior parte do tempo?), relações
familiares (Seus pais ou responsáveis discutem demasiado? Seus pais ou responsáveis sabem na maioria das vezes onde você está ou o que está fazendo?), relações com os amigos (Seus amigos faltam à
escola sem autorização com muita freqüência? Tem
amigos que roubaram?), nível educativo (Sabe ler
bem? Tem boa ortografia?), interesse vocacional
(Teve algum trabalho eventual com salário? Faltou
ou chegou atrasado ao trabalho com freqüência?),
conduta agressiva e delinqüência (Você é arrogante? Ameaça outras pessoas dizendo que lhes fará
dano?). Como na versão original, os itens apresentam duas alternativas de respostas: sim vs. não, as
quais receberam as pontuações 1 e 2, respectivamente.
Além de demonstrar que os 81 itens do Posit
apresentam poder discriminativo satisfatório, o
estudo de Mariño et al. (1998) revelou índices de
consistência interna (Alfas de Cronbach) aceitáveis para o conjunto de fatores/áreas da vida dos
adolescentes. Estes foram os seguintes: interesse
vocacional (0,64), relações com os amigos (0,64),
conduta agressiva/delinqüência (0,7), nível
educativo (0,73), relações familiares (0,74), saúde mental (0,8) e uso e abuso de substâncias
(0,87). Apesar destes parâmetros métricos, não
se comprovou empiricamente a estrutura fatorial
desta medida; isto poderia auxiliar na avaliação
da sua validade de construto, acrescentando provas de sua adequação.
Considerando os aspectos antes mencionados,
decidiu-se comprovar a viabilidade de extrair os
Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes
sete fatores (áreas temáticas) sugeridos para o
Posit. Se este instrumento apresentasse realmente validade de construto, seria viável esperar que
os seus 81 itens fossem agrupados nestes fatores
teorizados, com Alfas de Cronbach similares aos
apresentados na sua versão mexicana11. A propósito, decidiu-se utilizar esta versão do Posit por
uma presumível maior proximidade cultural entre Brasil e México. Além do mais, os dados específicos sobre os parâmetros desta medida podem
ser encontrados mais facilmente na amostra mexicana. O estudo sobre a adaptação desta medida é descrito a seguir.
Adaptação brasileira do Posit
As bebidas alcoólicas e a maconha estão entre as substâncias psicotrópicas mais consumidas
pelos jovens adolescentes brasileiros2, 16. Apesar
deste aspecto, muito pouco tem sido efetivamente
feito para estimar o seu potencial consumo. Neste contexto, a adaptação do Posit à realidade brasileira pode se constituir num primeiro passo nesta direção. A seguir se descreve o estudo realizado
para a comprovação da sua validade de construto.
Método
Amostra
Participaram do estudo 1.531 alunos de dez
escolas do ensino médio (antigo 2º grau). Estas
foram escolhidas aleatoriamente a partir de uma
lista cedida pela Secretaria de Educação do Estado da Paraíba. Seguindo o critério de proporcionalidade, considerando que em João Pessoa existem 23 escolas públicas e 37 privadas,
selecionaram-se quatro e seis destas escolas, respectivamente. De cada uma foi retirada uma amostra acidental de aproximadamente 150 sujeitos
(de ambos os sexos), sendo que nenhuma das
escolas dos dois grupos foi do mesmo bairro.
Decidiu-se escolher sujeitos do ensino médio
por duas razões: 1) na época da realização do estudo, não havia em João Pessoa instituições próprias para indivíduos adolescentes que tivessem
problemas com bebidas alcoólicas e/ou maconha;
2) devido à complexidade e à extensão do questionário Posit, muito provavelmente os adolescentes que vivem na rua teriam dificuldade de ler e
compreender os seus itens. É importante igualmente frisar que neste nível educacional se enJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
111
Coelho Júnior et al.
Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes
contram as pessoas na faixa etária ou de desenvolvimento que interessa ao presente estudo, isto
é, jovens adolescentes.
Os participantes foram em sua maioria do sexo
feminino (59,8%), com a média de idade de 17
anos (DP = 3,5). Quanto à escola onde estudavam, a maioria dos sujeitos era do turno da manhã (43,4%) e matriculada na rede pública de
ensino (53,2%).
estudantes que a sua participação era voluntária, e
que suas respostas seriam tratadas em seu conjunto,
assegurando o caráter de anonimato do estudo. Era
também enfatizado que as respostas deveriam ser individuais, que não deixassem nenhum item em branco e que respondessem o mais honestamente possível. Uma média de 50 minutos foi suficiente para
concluir sua participação.
Análise de dados
Instrumentos
Os participantes responderam a um bloco de
questionários descritos a seguir.
Questionário de TTriagem
riagem de Pr
oblema de AdoProblema
lescentes (Posit) – Utilizou-se sua versão mexicana11, como antes descrito. Assumiu-se o mesmo conjunto de itens e alternativas de respostas. Sua
tradução foi inicialmente levada a cabo por um psicólogo bilíngüe, sendo posteriormente revisada por
dois professores universitários também bilíngües.
Questionário dos valores básicos – Compõe-se
de 24 valores humanos específicos, cada um dos
quais com etiqueta correspondente e dois itens que
evidenciam o seu conteúdo (por exemplo, Poder:
ter poder para influenciar os outros e controlar decisões; ser o chefe de uma equipe. Tradição: seguir
as normas sociais do seu país; respeitar as tradições
da sua sociedade)8. Inicialmente o respondente precisa considerar cada valor e avaliar o seu grau de
importância como um princípio que guia a sua vida,
utilizando uma escala de sete pontos, com os extremos 1 = nada importante e 7 = muito importante.
Posteriormente, precisa indicar o valor menos e mais
importante de todos, os quais recebem os pesos 0 e
8, respectivamente. Esta medida não será analisada
no presente artigo.
Informações demográficas – Os participantes responderam a uma lista com dez perguntas (por exemplo, sexo, idade, religiosidade, escolaridade dos pais,
etc.). Entre tais perguntas figurava o quanto eles se
sentiam identificados com nove pessoas e/ou grupos
de pertença, a saber: pai, mãe, irmãos, familiares, vizinhos, namorada/esposa, amigos e professores. Suas
respostas eram dadas em uma escala de cinco pontos, com os seguintes extremos: 0 = nada identificado; 4 = totalmente identificado.
Procedimento
Os questionários foram contrabalançados e aplicados coletivamente em sala de aula. Informou-se aos
112
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Utilizou-se o pacote estatístico SPSS para
Windows, versão 10. Foram computadas estatísticas descritivas (média, desvio padrão, freqüência,
etc.), bem como foi efetuada uma análise de componentes principais (PC) com os itens do questionário Posit. Neste caso, decidiu-se adotar uma rotação varimax, estabelecendo o critério de extração
de sete componentes, correspondendo às sete áreas
temáticas teoricamente cobertas por esta medida.
Resultados
No presente estudo se procurou verificar a estrutura fatorial (validade de construto) do Posit.
Inicialmente, comprovou-se a adequação de se
efetuar este tipo de análise estatística, tendo sido
obtidos os seguintes indicadores: KMO = 0,82,
teste de esfericidade de Bartlett, χ2 = 20162,70,
p < 0,001, os quais dão prova de ser esta uma
decisão aceitável. Neste sentido, realizou-se primeiro uma PC, com rotação varimax, sem fixar o
número de fatores a serem extraídos. O resultado
indicou a presença de até 23 fatores ou componentes com valor próprio (eigenvalue) igual ou
superior a 1. Estes explicaram conjuntamente
51,1% da variância total. Considerando os objetivos deste estudo, fixou-se a extração de sete fatores; os resultados a respeito podem ser vistos
na Tabela 11, que compreende um resumo dos
resultados. Nela constam o conteúdo e a carga
fatorial dos três itens que saturaram mais fortemente em cada um dos sete fatores, bem como
os indicadores de adequação destes, isto é, porcentagem de variância total explicada, Alfa de
Cronbach, etc. Uma tabela completa com os resultados desta análise poderá ser obtida mediante solicitação aos autores deste artigo. A identificação de cada um dos fatores é realizada a seguir:
Fator I: Potencial consumo de álcool e maconha – Este fator reúne 18 itens que tocam diretamente a questão do consumo, uso/abuso de dro-
Coelho Júnior et al.
Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes
Tabela 1 – Estrutura fatorial da medida de potencial uso de drogas (Posit)
Itens
I
P57 Pedidos para diminuição
0,56*
P62 Perda de controle
0,53*
P33 Obtenção de efeitos desejados
0,52*
P77 Amigos que roubaram
P67 Amigos que são violentos
P19 Amigos que causam danos
P55 Sente-se triste
P75 Desejo de chorar freqüente
P10 Sente-se só
P31 Tem mau gênio
P30 Briga muito
P40 Impulsivo com freqüência
P32 Atenção dos pais
P52 Pais conversam com os filhos
P71 Os pais concordam com a educação dos filhos
P79 A escola é difícil
P61 Dificuldade com trabalho escrito
P72 Dificuldade em se organizar
P36 Já teve trabalho
P16 Teve trabalho remunerado
P44 Trabalho remunerado por 1 mês
Número de itens:
Eigenvalue
% da variância
Alfa de Cronbach
18
8,66
10,7
0,8
II
III
IV
Fatores
V
VI
VII
0,59*
0,53*
0,51*
0,59*
0,56*
0,54*
0,52*
0,47*
0,47*
0,6*
0,57*
0,56*
0,52*
0,46*
0,45*
0,82*
0,78*
0,72*
10
3,93
4,8
0,71
8
2,29
2,8
0,72
13
2,2
2,7
0,72
8
2,07
2,6
0,66
11
1,71
2,1
0,66
4
1,63
2
0,65
*Saturação considerada satisfatória (ai.t > ± 0,3).
gas pelo respondente (por exemplo: Começou a
consumir maior quantidade de álcool ou droga para
obter o efeito que deseja? Seus familiares ou amigos lhe disseram alguma vez que deve diminuir o
uso de bebidas alcoólicas ou drogas? As bebidas alcoólicas ou as drogas o induziram a fazer algo que
normalmente não faria, como desobedecer a alguma regra ou lei, ou a hora de chegar em casa ou
mesmo a ter relações sexuais com alguém?). Seu
eigenvalue foi 8,66, explicando 10,7% da variância
total das pontuações no questionário; observou-se
uma consistência interna (Alfa de Cronbach) de 0,8.
Fator II: Delinqüência juvenil compartilhada – Um total de dez itens apresentou saturações aceitáveis neste fator, isto é, igual ou maior que ± 0,3 (por exemplo: Tem amigos que
intencionalmente causam danos ou destruição?
Tem amigos que bateram ou ameaçaram alguém sem justificativa? Tem amigos que roubaram?). O eigenvalue deste fator foi de 3,93,
correspondendo à explicação de 4,8% da
variância total, sendo seu Alfa de Cronbach
de 0,71.
Fator III: Desequilíbrio emocional – Neste fator apresentaram-se oito itens com saturações
iguais ou maiores que ± 0,3 (por exemplo: Sentese triste a maior parte do tempo? Sente desejo de
chorar freqüentemente? Sente-se só na maior
parte do tempo?). O eigenvalue deste fator foi de
2,29, explicando 2,8 % da variância total e apresentando um Alfa de Cronbach de 0,72.
Fator IV
IV:: Conduta anti-social – Saturaram com
carga igual ou superior ao preestabelecido 13 dos
81 itens do Posit (por exemplo: Tem mau gênio?
Briga muitas vezes? Age impulsivamente com freqüência?). Seu eigenvalue foi de 2,2, representando a explicação de 2,7% da variância total. O
Alfa de Cronbach deste fator foi de 0,72.
Fator VV:: Dificuldades no rrelacionamento
elacionamento com
os pais/responsáveis – Este fator reuniu oito
itens que possuem saturações aceitáveis (ai.t • ±
0,3) (por exemplo: Seus pais ou responsáveis presJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
113
Coelho Júnior et al.
Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes
compartilhada e fator IV – conduta anti-social). A
única exceção foi o fator VII (trabalho e desempenho), que apresentou correlação significativa unicamente com os fatores I, II e V (dificuldades no relacionamento com os pais/responsáveis); tais
correlações foram, no entanto, baixas, variando de
- 0,09 a 0,15. Este último fator se correlacionou negativamente com todos os demais fatores, reforçando a necessidade de se inverter sua pontuação.
tam atenção quando você fala? Seus pais ou responsáveis gostam de conversar ou de estar com
você? Seus pais ou responsáveis estão de acordo
a respeito da forma que devem lidar com você?).
As pontuações para estes itens são invertidas. O
eigenvalue deste fator foi de 2,07, o que
corresponde à explicação de 2,6% da variância
total, sendo o seu alfa de Cronbach de 0,66.
Fator VI: Dificuldades na apr
endizagem – Tal
aprendizagem
fator reuniu onze itens possuindo saturações que
atendem ao critério previamente estabelecido (por
exemplo: A escola é difícil? Tem dificuldade com
trabalhos escritos? Tem dificuldade de organizar
planos ou atividades?). O eigenvalue deste fator
foi de 1,71, sendo responsável pela explicação de
2,1% da variância total, com um índice de consistência interna de 0,66.
Analisados os resultados acima, parece eminente a presença de um grande fator subjacente
ao Posit. Neste sentido, decidiu-se realizar uma
nova análise de componentes principais, onde
se fixou a extração de um único fator. Com exceção dos itens que saturaram com exclusividade no fator VII, dos quais foram eliminados todos os pertencentes, os demais fatores foram
considerados nesta análise.
Fator VII: TTrabalho
rabalho e desempen
ho – Este fator
desempenho
concentrou quatro itens que apresentam saturações iguais ou maiores que ± 0,3 (por exemplo:
Teve alguma vez ou tem atualmente um trabalho?
Teve algum trabalho eventual com salário? Teve
alguma vez um trabalho remunerado que durou
ao menos um mês?). O eigenvalue de tal fator foi
de 1,63, correspondendo à explicação de 2% da
variância total, sendo seu Alfa de Cronbach de 0,65.
Este fator geral apresentou um eigenvalue de
7,88, explicando 12,1% da variância total das pontuações neste instrumento. Considerando o critério
de carga fatorial igual ou superior a ± 0,3, foram
reunidos neste fator 49 itens. Deste total, a maioria
pertence ao fator I (12 itens), sendo que todos os
demais fatores considerados apontaram pelo menos cinco itens. Tendo em conta as maiores saturações dos itens (referência ait • ± 0,4), tal fator pode
ser denominado Índice de Potencial Uso de Drogas
(por exemplo: o uso de álcool ou das drogas produz em você mudanças repentinas de humor, como
passar de estar contente a estar triste ou vice-versa?
Começou a consumir a maior quantidade de álcool
para obter o efeito que deseja? As bebidas alcoólicas ou as drogas o induziram a fazer algo que normalmente não faria, como desobedecer a alguma
regra ou lei, ou a hora de chegar em casa ou mesmo a ter relações sexuais com alguém?). Seu alfa de
Cronbach, considerando a amostra de 12 itens, foi
de 0,74; com todos os 49 itens, este índice de consistência interna ficou em 0,85.
Conhecida a estrutura fatorial de primeira ordem, decidiu-se comprovar em que medida os fatores resultantes estariam correlacionados entre
si. Neste sentido, procedeu-se ao cálculo de correlações de Pearson para as pontuações totais de
cada um dos fatores do Posit. Os resultados são
apresentados na Tabela 22.
Como é possível observar na tabela anterior, seis
dos sete fatores estão significativamente
correlacionados entre si (p < 0,01), com coeficientes de correlação variando de 0,12 (fator I – potencial consumo de álcool e maconha e desequilíbrio
emocional) a 0,47 (fator II – delinqüência juvenil
Tabela 2 – Correlação entre os fatores de primeira ordem do Posit
II
III
IV
V
VI
VII
I
II
III
0,45**
0,12**
0,27**
- 0,24**
0,24**
0,15**
0,16**
0,47**
- 0,3**
0,29**
0,14**
0,43**
- 0,32**
0,41**
0,02*
*p < 0,01; **p < 0,001 (teste bicaudal, eliminação pairwise de missing).
114
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Fatores
IV
- 0,33**
0,41**
0,05*
V
VI
- 0,23**
- 0,09**
0,03*
Coelho Júnior et al.
Discussão
O objetivo principal do presente estudo, lembrando, foi comprovar a validade de construto
para a medida Posit, utilizada para estimar o potencial consumo de drogas pelos jovens. Este foi
cumprido. Corroborando a classificação de
Mariño et al. (1998), o instrumento em pauta
demonstrou poder ser representado por diferentes áreas da vida dos adolescentes, as quais são
importantes para o estudo dos comportamentos
de risco referentes ao consumo de drogas, como
o álcool e a maconha. Não obstante, comprovouse também que é possível trabalhar com uma
medida unidimensional, correspondendo a um
fator geral de potencial consumo de drogas.
Em termos da estrutura fatorial encontrada no
Brasil e a classificação que Mariño et al.11. realizaram no México, os resultados denotam bastante
correspondência. Uma análise do conteúdo dos sete
fatores e das sete áreas releva o seguinte: o fator I
(potencial consumo de álcool e maconha)
corresponde à primeira área funcional (uso e abuso
de substâncias) do Posit; o fator II (delinqüência juvenil compartilhada) se relaciona com a área funcional relações com os amigos; o fator III (desequilíbrio emocional) é bastante equivalente à área
funcional saúde mental; o fator IV (conduta antisocial) se assemelha à área funcional conduta agressiva/delinqüência; o fator V (dificuldade de relacionamento com os pais/responsáveis) corresponde à
área funcional relacionamento com os familiares; o
fator VI (dificuldade na aprendizagem) representa a
maioria dos itens que figuram na área funcional nível educativo; e, finalmente, o fator VII (trabalho e
desempenho) traduz o significado da área funcional denominada de interesse laboral. Percebe-se,
portanto, bastante similaridade entre as duas classificações, com a diferença de que a aqui apresentada
foi comprovada empiricamente, através das respostas dos jovens.
Quanto aos índices de consistência interna,
alfas de Cronbach (α), os encontrados no presente
estudo também são similares aos que relataram
Mariño et al.11. No Brasil, o fator que demonstrou maior confiabilidade foi potencial consumo
de álcool e maconha (fator I, α = 0, 8),
correspondendo à primeira área funcional no
México, denominada uso e abuso de substâncias, que também apresentou o maior índice de
consistência, α = 0,87. Do mesmo modo, o fator
que apresentou a menor confiabilidade no Brasil
Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes
(fator VII – trabalho e desempenho, α = 0,65)
corresponde àquela área cuja confiabilidade foi a
menor entre as sete áreas funcionais (interesse
laboral, α = 0,64).
O conjunto dos resultados apresentados sugere que o Posit apresenta validade de construto
no Brasil, tendo demonstrado estrutura fatorial e
índices de consistência interna que corroboram
os achados com amostras mexicanas 11. Não
obstante, é impossível deixar de assinalar duas das
principais limitações desta medida:
Amostra de itens utilizados – O Posit é composto por muitos itens, 81 no total, inviabilizando
estudos de triagem que poderiam ser feitos tanto
no âmbito ambulatorial como no clínico, ou mesmo no educacional. Alguns dos itens que o compõem são também extensos (por exemplo: O uso
do álcool ou das drogas produz em você mudanças repentinas de humor, como passar de estar
contente a estar triste, e vice-versa? As bebidas
alcoólicas ou as drogas o induziram a fazer algo
que normalmente não faria, como desobedecer a
alguma regra ou lei, ou a hora de chegar em casa,
ou mesmo a manter relações sexuais com alguém?). Isto dificulta a compreensão dos jovens
e torna praticamente inviável sua aplicação em
populações com baixa escolaridade.
Natureza do conteúdo abordado – Embora
outros estudos nesta área considerem de modo
indiferenciado as drogas lícitas e ilícitas, tendo em
vista que estas podem igualmente causar um mal
de saúde nos jovens adolescentes3, 14, em termos
de uma medida de triagem de potencial consumidores, pareceria fundamental não misturar os
diferentes tipos de drogas. Certamente seria mais
apropriada uma medida que tratasse separadamente o álcool e a maconha e outros tipos de
drogas. Não necessariamente o consumo de uma
está atrelado ao consumo da outra, sendo que
sua junção em um mesmo item pode produzir
ambigüidade nas respostas dos jovens.
Apesar do que antes se comentou, Mariño et
al.11 apresentam suficientes provas de que o Posit
permite eficazmente diferenciar não-usuários de
usuários de drogas. No caso da população brasileira, será preciso comprovar este aspecto no futuro. A propósito de estudos que deveriam ser realizados, além do que já foi sugerido, seria interessante averiguar em que medida as pontuações no
Posit estariam correlacionadas aos valores humanos adotados pelos jovens ou mesmo à sua idenJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
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Questionário para detectar potencial uso de drogas entre adolescentes
tificação com os diversos grupos que os cercam.
Segundo Petraitis, Fly e Miller (1995), o compromisso com os valores convencionais, que garantem a manutenção do status quo, e o apego à
família são fatores preponderantes que inibem a
possibilidade de uso de substâncias psicoativas.
Finalmente, procurou-se considerar aqui uma
amostra representativa de jovens escolarizados da
cidade de João Pessoa. O tamanho da amostra foi
suficientemente grande (n = 1.531), considerando
o tamanho da população, que se situa em aproximadamente 500 mil habitantes. Contudo deve-se
reconhecer que este número não torna possível generalizar os resultados para além dos limites
amostrais. Portanto novos estudos deverão ser empreendidos, considerando sujeitos de outras cidades e fazendo um esforço por incluir aqueles que
não estão atualmente em sala de aula ou com um
trabalho fixo. Sobre este aspecto é importante lem-
Coelho Júnior et al.
brar que duas áreas funcionais que definem o potencial usuário de drogas, como estimado por
Mariño et al.11, são nível educativo e interesse laboral.
Possivelmente só então se poderiam estabelecer
normas diagnósticas de aplicação mais ampla.
Finalizando, tentou-se neste espaço trazer uma
contribuição ao tema das drogas, porém de uma
maneira mais preventiva, lançando vistas a uma
explicitação da tendência ao consumo de drogas
na faixa etária da adolescência. Tal tendência não
deve ser assumida como tabu; deve, sim, ser discutida a fim de que se otimizem os esforços de
triagem no que concerne aos problemas vividos
pelos jovens adolescentes.
Na medida do possível, tal estudo se caracteriza pela tentativa de lançar luz sobre a necessidade de se trabalhar mais ainda na prevenção do
consumo a fim de que os esforços sobre a cessação da dependência sejam minimizados.
Referências
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Porto Alegre: Artes Médicas; 1991.
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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
Endereço para correspondência
Leconte de Lisle Coelho Júnior
Av. Tabelião José Ramalho Leite 1.212/403
Cabo Branco
CEP 58045-230 – João Pessoa-PB
e-mail: [email protected]
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J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Hepatite C, interferon e depressão:
uma revisão (da série Depressão
Induzida por Substâncias)
Hepatitis C, interferon and depression: a review (from the
Substance-Induced Depression series)
Marco Antônio Brasil1; Julieta Mejia-Guevara2
Recebido em: 16.12.02
Aprovado em: 05.01.03
Resumo
Objetivo: Numa revisão bibliográfica sobre hepatite C foi feita uma avaliação dos critérios utilizados para o diagnóstico de
depressão em cada artigo revisado. Método: A pesquisa inicial no Silver Platter Medline, para os idiomas inglês, espanhol e
francês no período compreendido entre 1991 e 2001 forneceu dados e permitiu a seleção de artigos. Usamos as palavras:
depressão e interferon. Cada artigo foi lido procurando-se o número de pacientes que participaram, o método de diagnóstico, as
escalas de intensidade dos sintomas usadas e qual o profissional que fez a avaliação psíquica. Resultados: Inicialmente, na década
de 1980, foram descritos sintomas depressivos, como relatos de casos, em pacientes utilizando interferon. Posteriormente, foram
descritos casos de suicídio entre estes pacientes, motivo pelo qual se procurou fazer uma pesquisa sistematizada para determinar
dados que permitissem estabelecer quais pacientes poderiam vir a desenvolver depressão ou ideação suicida. O resultado foi a
exclusão dos pacientes com histórico psiquiátrico do tratamento, já que não valeria a pena correr o risco, levando-se em conta
que a resposta terapêutica ao interferon seria de apenas 20% (considerando resposta virológica mantida como: nível indetectável
de vírus C, RNA – menos de cem cópias/ml). Quando se adicionou ao tratamento um nucleosídeo análogo sintético, a ribavirina,
o índice de resultados positivos do tratamento aumentou (aproximadamente 50%); com a melhora da resposta a longo prazo,
uma tentativa de tratamento para estes pacientes passou a ser justificada. Os artigos mais recentes relatam que é possível
monitorar estes pacientes e incluí-los em protocolos de tratamento usando medicação antidepressiva. Atualmente, trabalha-se
com a sugestão de que estes pacientes deveriam ser avaliados por equipe psiquiátrica para acompanhar e tratar, se for o caso,
para, assim, não os excluir do uso de interferon. Conclusão: A incidência de depressão para pacientes em uso de interferon varia
entre valores de 3% até 57%. Poderíamos atribuir esta oscilação à seleção da população, como, por exemplo, quando incluímos
usuários de drogas, ou, dependendo de qual doença em estudo, já que a incidência de depressão é maior na hepatite C e na
esclerose múltipla, mesmo sem tratamento. O método de estudo, a sensibilidade do instrumento empregado e o treinamento do
entrevistador também explicariam números tão divergentes. Os estudos comparativos entre os diversos tipos de interferon
mostram que há uma diferença de incidência de depressão entre eles.
Unitermos
interferon; depressão; hepatite C
Summary
Objective: A bibliographical review on hepatitis C, evaluating the diagnostic criteria for depression in each of the articles. Method: A
search of the Silver Platter Medline, 1991-2001, for English, Spanish and French furnished the data from which the articles were selected.
The key-words used were depression and interferon. Each article was read to find how many patients were studied, which diagnostic
methodology and scales of symptom intensity were used, and the name of the professional responsible for the psychiatric evaluation.
1Doutor
2Mestre
em Psiquiatria; professor-adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
em Psiquiatria.
J . b r a s . p s i q u i a t r.
vol. 52 (2): 117-126, 2003
117
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
Results: Initial data from the eighties describe depressive symptons as part of the case histories of patients using interferon. After that, cases
of suicide within this patient group were seen. This led to more systematic research to identify factors which might predict which patients
could eventually develop depression or suicidal ideation. Consequently, patients with prior psychiatric histories were removed from the study.
This considers a therapeutic response to interferon as barely 20% (defining an undetectable viral response as maintenance of fewer than
100 copies/ml of virus C, RNA). When ribavirin, an analog nucleoside, was added to the treatment, the rate of positive results from the
treatment increased by approximately 50%; this improvement in the long-term response justified its use as a viable treatment option for
these patients. More recent articles report that it is now possible to monitor these patients and include them in treatment protocols using
antidepressant medication. To avoid ruling out interferon as a treatment option, patients should be evaluated by a psychiatry before
initiating treatment. This allows for follow-up and treatment, when necessary. Conclusion: The incidence of depression in patients treated
with interferon varies from 3% to 57%. We can attribute these variations to several factors, including the selection of the population, when
drug-users were included in the studies, the disease being studied (the incidence of depression is greater in hepatitis C than in multiple
sclerosis, even when untreated). The method of study, differing sensitivities of the instruments used and variations in interviewer training
also help to explain the divergent numbers reported. Comparative studies between varying types of interferon show that variations in the
incidence of depression among them do exist.
Uniterms
interferon; depression; hepatitis C
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Introdução
Este artigo revisa a relação entre a hepatite C,
seu tratamento e a depressão. Uma prevalência
maior de depressão tem sido encontrada em
pacientes com hepatite C6, 18, 33. O porquê desta
relação e a natureza da mesma estão sendo
pesquisados. Quando as citocinas, como o
interferon, começaram a ser usadas na hepatite,
os relatos de caso na literatura sobre um aumento da incidência de transtorno do humor
depressivo e de sintomas relacionados se fizeram
mais freqüentes. A depressão é freqüentemente
apontada como causa de exclusão para pacientes
candidatos a usar interferon alfa ou de suspensão
em relação àqueles que já o usavam.
As terapias imunomoduladoras que usam
citocinas como interleucinas ou interferon estão
aumentando sua freqüência de uso. A toxicidade
psiquiátrica destes agentes é ainda pouco compreendida, e o diagnóstico correto do transtorno
psíquico detectado e o seu tratamento se fazem
cada vez mais necessários. As citocinas, mediadoras solúveis secretadas pelo tecido imune, são promissoras para o tratamento de uma ampla variedade de neoplasias, doenças infecciosas e
neurodegenerativas. São usadas com sucesso em
câncer de células renais, melanoma maligno e
leucemias, promovendo resposta imune contra as
células neoplásicas via alteração de eventos
bioquímicos no ciclo de replicação celular. Em in118
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fecções virais, interrompem vias essenciais para a
replicação viral15. O interferon é uma citocina que
pode pertencer a três famílias de moléculas
proteínicas: alfa, beta e gama. A maioria das células no corpo pode ser estimulada para produzir
estas proteínas. Estas moléculas unem-se aos receptores de superfície nas células-alvo e induzem
a síntese de proteínas intracelulares ou para modificar vias de replicação viral ou para prolongar
o ciclo de multiplicação de células neoplásicas porque depletam a célula de metabólitos essenciais,
como o triptofano, ou porque promovem a lise
de células tumorais por meio da ativação de resposta imune.
Os tipos de interferons alfa avaliados em pacientes infectados com hepatite C incluem interferon alfa
2-b, alfa 2-a, alfa n-1 (interferon alphan 1 ou
linfoblastóide), interferon consensual alfacon 1
(C-interferon) e o interferon pegilado (Peg IFN alfa
2-a) que, na realidade, é um interferon ao qual foi
agregada uma molécula de polietilenoglicol, conferindo-lhe uma média de vida maior com administração permitida uma vez por semana11, 35.
Mesmo com as diferenças de cada um dos anteriores, todos foram incluídos com eficácia comparável para o tratamento da hepatite C crônica
pela conferência do National Institutes of Health1.
Além do interferon alfa, existe o beta, usado
para esclerose múltipla desde 1995 e, ainda, o
gama, aprovado em 1990 para doença granulo-
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
Tabela 1 – Doses aprovadas pelo FDA para a terapia com interferon na hepatite C crônica
Nome da substância
Laboratório
Dose aprovada
Schering Plough
3MU 3x/semana x 18-24 meses
IFN alfa 2-a (Roferon A )
Roche
3MU 3x/semana x 12 meses
IFN alfacon 1 (Infergen®)
C IFN
Amgem
9-15MU 3x/semana x 6 meses
IFN alpha n-1 (Wellferon®)
Linfoblastóide
Glaxo-Wellcome
Feito por subtipos múltiplos de IFN alfa
IFN alfa 2-b (Intron A®)
®
IFN alfa 2-b + ribavirina (Rebetron®) Schering Plough
Peg IFN alfa 2-a (Peg Intron)
Schering Plough
IFN 3MU 3x/semana +
ribavirina 1.000-1.200mg/dia x 12 meses
180µg SC 1x/semana22
FDA: Food and Drug Administration; MU: million units; IFN: interferon.
Ahmed A, Keeffe E. Clinics in Liver Disease, 1999.
matosa crônica. A terapia com interferon ocasiona
sintomas depressivos, mas o quadro depressivo
maior com tentativa de suicídio ou suicídio completo seria apenas de 4% do total dos relatos de
reação adversa à medicação18. Em um estudo, onde
se compararam dois diferentes tipos de interferon
na mesma população de pacientes de hepatite C,
detectou-se que os sintomas depressivos foram
mais freqüentes no subtipo alfa em comparação
ao beta18. O estudo de Malaguarnera et al.17 apontou que o interferon alfa, derivado dos leucócitos,
seria o que menos produziria sintomas depressivos,
comparado a outras citocinas de origem diferente,
administradas na mesma dose por seis meses.
Existem várias teorias a respeito de como poderia ser produzida a depressão quando uma
citocina está sendo usada. Uma delas é a
desregulação do eixo hipotálamo-hipófise15 (aumentando a secreção de hormônio liberador de
corticotropina); a outra se refere ao interferon alfa,
que pode alterar a regulação do sistema de
dopamina fronto-subcortical através do mecanismo associado a opiáceos, quando se une a receptores opiáceos cerebrais18, 32,. Sua ação no sistema nervoso central pode ser revertida pelo
antagonista opióide naltrexona. Existe alguma
evidência pré-clínica de que o óxido nítrico poderia mediar a toxicidade em nível central.
A síndrome clínica observada na neurotoxicidade do interferon alfa (lentidão
psicomotora, disfunção cognitiva e disforia) é semelhante à clínica de algumas doenças associadas à depleção de dopamina6, 15, 18. O transtorno
do humor permanece como uma das causas mais
freqüentes para a suspensão do tratamento com
interferon, e não é sempre resolvido com a sus-
pensão do mesmo. Infelizmente, a maioria das
depressões não é reconhecida nem tratada por
médicos não-especializados em psiquiatria.
As indicações mais freqüentes para o
interferon são a esclerose múltipla cujas exacerbações estejam sendo freqüentes, ou a esclerose,
onde se faz necessário tornar o processo de progressão da doença mais lento, nas diversas neoplasias e
na hepatite C. Nos dois grupos, o interferon é apontado como causador da depressão. Por este motivo,
os pacientes com algum histórico de depressão vêm
sendo excluídos deste tipo de tratamento. Desde o
início da década de 1990, diversas referências foram feitas em forma de relato de caso pelas equipes
de gastroenterologistas. Nesta época, a única opção de tratamento era suspender o interferon.
Os estudos conjuntos com psiquiatras são mais
freqüentes a partir de 1997, quando se iniciou a
aplicação de instrumentos e entrevistas semiestruturadas na avaliação da alteração do humor,
pensando-se em esquematizar, a fim de buscar
uma forma de tratamento. Introduzir a citocina
junto à terapia com antidepressivos foi uma opção lógica. Foram usados diversos antidepressivos
nesses grupos de pacientes10, 16, 34. Faremos uma
revisão do material publicado recentemente a respeito.
Revisão histórica
Levenson e Fallon16, em 1993, publicaram um
relato de caso de um paciente de 40 anos tratado
com fluoxetina 20mg/dia para depressão. Fizeram
também uma breve revisão bibliográfica onde apontaram que a incidência média para efeito colateral
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
119
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
psiquiátrico foi de 17% nos pacientes tratados com
interferon alfa. Neste caso em particular, tratava-se
de um paciente com longo histórico de abuso de
álcool, cuja anamnese nega depressão ou tratamento
psiquiátrico anterior, exceto por vários meses de
aconselhamento matrimonial. Na sua família havia
casos de transtorno do humor e alcoolismo. A dose
de fluoxetina teve uma redução para 20mg três vezes por semana, porque apresentou leve discinesia
oral e anorexia importante. Os pesquisadores agruparam os efeitos psiquiátricos produzidos pelo
interferon em três: depressão, delirium e mudança
orgânica da personalidade.
Dusheiko8 publica uma revisão, em 1997, sobre os efeitos colaterais do interferon alfa, na qual
faz referência aos efeitos colaterais neuropsiquiátricos como sendo imprevisíveis. Compara o
interferon alfacon (um composto sintético que foi
formado pela combinação das posições de
aminoácidos mais comuns em vários subtipos nãoalélicos do interferon alfa para originar uma seqüência consensual, por isso é dado o nome de alfacon1)
nas doses de 3µg e 9µg ao interferon alfa 2-b em
dose de 15µg. Foi relatado maior número de casos
de depressão, nervosismo, fadiga, ansiedade e
labilidade emocional para as doses maiores do
alfacon. O próprio Dusheiko recomenda administrar a dose à noite para reduzir a freqüência destes
efeitos. Ele considera grave a depressão, e, diante
da ideação suicida, recomenda que o tratamento
deva ser suspenso. O autor levanta a possibilidade
de que a ideação suicida possa ser mais freqüente
em pacientes com histórico positivo para depressão; mostra também que foi reportada em pacientes sem história psiquiátrica anterior. Não existe referência no artigo se foi feito um acompanhamento
psiquiátrico destes pacientes durante ou depois do
tratamento com interferon.
Nesse mesmo ano, foi apresentada uma revisão sobre o uso de interferon beta em pacientes
com esclerose múltipla 24, comparando-se os
subtipos beta 1-a e beta 1-b. A própria doença
tem sido freqüentemente vinculada à depressão,
mas o grupo de pacientes que usou o interferon
beta 1-b mostrou maior incidência de depressão
em relação ao grupo do subtipo 1-a. Os autores
associam ao tratamento da depressão uma satisfação maior do paciente no seu tratamento com
interferon. É mencionado dentro do artigo o uso
do inventário de Beck para os dois grupos de
pacientes, mas não determinam os métodos diagnósticos usados.
120
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Numa carta publicada em dezembro de 1998,
Monji e Yoshida22 relataram o caso de um homem
de 40 anos sem história pessoal ou familiar
psiquiátrica que desenvolveu sintomas diagnosticados como transtorno bipolar quando usou
interferon alfa para hepatite C. O tratamento foi
iniciado em maio de 1993, sendo suspenso em
março de l994, pouco antes de ser internado na
vigência de crise maníaca. Estabilizou-se em 1997
com lítio e amitriptilina. Não existem dados suficientes dentro deste relato para determinar se não
é uma co-morbidade na qual o paciente de qualquer maneira iria desenvolver a oscilação do humor compatível com o diagnóstico acima. É um
caso onde se sugere uma relação de causalidade
entre mania e interferon. Nas publicações do início da década de 1990, associavam-se delirium e
encefalopatia15, 16, 18 com doses altas de interferon.
Posteriormente começaram a aparecer os artigos com relatos de transtorno orgânico do humor em doses mais baixas do mesmo10, 33, 34. Yates
e Gleason34, dois dos autores que mais publicam
sobre o assunto, num artigo sobre cinco casos
onde usaram diferentes antidepressivos junto ao
tratamento da citocina, empregaram sertralina,
imipramina e paroxetina com bom resultado em
três dos pacientes que precisaram de medicação.
Acompanharam 72 pacientes com hepatite C, dos
quais 14 estavam recebendo interferon e 7 chegaram já deprimidos na primeira entrevista. Neste artigo, eles não fazem referência a materiais e
a métodos empregados na avaliação do quadro
depressivo, como também não excluem abuso de
drogas recente e só um dos cinco não tinha história pessoal para problemas psiquiátricos. Ao longo da discussão os autores fazem referência a uma
incidência de depressão de 24% na população de
pacientes com hepatite C.
Apresentaram um pôster no congresso americano da Associação Americana em 2000 onde
avaliaram a qualidade de vida, a depressão e a melhora após introdução do antidepressivo em 11 pacientes em um estudo aberto de quatro semanas10.
Borras e Rio2, na unidade de neuroimunologia
em Barcelona, avaliaram pacientes com esclerose
múltipla e uso de interferon beta 1-b. Usaram a
escala Hamilton e o inventário Beck junto a outro
inventário para ansiedade e traço de ansiedade.
Questionaram a exclusão de pacientes deprimidos
da oportunidade de usar interferon e, por considerar que faria falta uma avaliação longitudinal, fizeram dois anos e meio de seguimento. As entrevis-
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
tas foram feitas pelo neuropsicólogo da unidade
no dia anterior à primeira dose, no final do primeiro ano e um ano depois (24 meses). Oito por cento dos pacientes não retornaram no primeiro ano
e 64% de 90 pacientes forneceram dados psicológicos. Mencionaram dois pacientes que foram incluídos usando fluoxetina e amitriptilina, medicações que foram mantidas até o final do estudo. A
pontuação obtida para a escala Hamilton em 97,8%
dos pacientes foi de menos de 18 pontos usandose a escala de 23 itens.
Para o questionário auto-administrado de
Beck, com 21 perguntas, consideraram depressão mínima (pontuação de 10-15); leve (pontuação de 16-19); moderada (20-29) e severa (3063). Dentro destes parâmetros, deduziram que
18% teriam sinais de depressão mínima; 6,7%
corresponderiam à depressão leve e 4,4%, à moderada. Na escala de ansiedade, apontaram que
as mulheres tiveram pontuação maior que a dos
homens. Esta escala considera ansiedade e traço
de ansiedade, sendo maior a percentagem para
traço do que para ansiedade propriamente dita.
Após a análise estatística, não observaram piora
no estado emocional e, pelo contrário, relataram
uma melhora significante durante o tratamento.
Na discussão, consideraram que deveriam ter usado controles, mas optaram por não ferir a ética
incluindo pacientes sem tratamento. Finalizaram
considerando que os sintomas físicos poderiam
influir na avaliação subjetiva dos pacientes, sendo que, no início do tratamento, eles usaram
esteróide para evitar o mal-estar físico ocasionado pelo interferon. Os autores analisaram os dados do segundo ano encontrando uma percentagem de 22,6% na ansiedade do grupo feminino
em comparação a 15,1% relatados no primeiro
dia. O estudo não prosseguiu após este tempo, e
não foi determinado o método pelo qual foi estabelecido o diagnóstico do estado mental. Brasil34,
em uma revisão sobre efeitos psiquiátricos das medicações clínicas, comenta o efeito estimulante
que o corticóide pode ter em alguns pacientes.
Este poderia ser um fator contribuinte para não
encontrar maior incidência de depressão moderada a grave.
O estudo de Mohr21, realizado em 1997, usou
um questionário de quatro perguntas,
contactando os pacientes pelo correio num ensaio clínico realizado em pacientes com esclerose
múltipla. Observaram um aumento da adesão ao
tratamento com interferon beta naqueles pacien-
tes com queixas depressivas que receberam tratamento antidepressivo, terapia de suporte ou
ambos. No comentário final, apontaram que a
depressão encontrada na esclerose múltipla quase nunca preenche critérios para o diagnóstico de
transtorno depressivo maior do DSM-IV. Eles esclareceram que seu estudo não foi desenhado para
determinar se os sintomas depressivos refletem a
história natural da esclerose múltipla ou uma reação ao interferon beta-1b ou, talvez, um desapontamento nas expectativas criadas antecipadamente ao tratamento. Os resultados sugerem que
a adesão ao tratamento com a citocina pode ser
melhorado com a identificação e tratamento dos
pacientes com sintomas subjetivos de depressão.
Mohr acompanha os pacientes que não completaram o tratamento de um estudo e pesquisa o
porquê. Em 1998, aponta novamente a depressão como causa de descontinuação do interferon
beta 1-a20.
Lerner15, em um artigo sobre a toxicidade das
citocinas, aponta que o hipotireoidismo acontece com freqüência duas a três vezes maior que o
hipertireoidismo. Vincula a depressão à alteração
da tireóide, apontando como obrigatório avaliar
função tireoidiana, porque a citocina induz autoanticorpos por volta do segundo ao quarto mês
de tratamento.
Okanue et al.25, num estudo usando-se altas
doses de interferon para hepatite C crônica, durante um percurso de três anos (1992-1995), estudaram 987 pacientes, sendo que um terço dos
pacientes (310) teve a dose reduzida por causa
de efeitos colaterais como: leucopenia, trombocitopenia, diabetes melito e problemas
tireoidianos. Concluíram que a severidade dos sintomas é diretamente relacionada à dose e à freqüência da administração, mas existe uma acentuada variabilidade individual. Neste estudo, 23
pacientes apresentaram sintomas depressivos; seis
deles receberam diagnóstico de depressão. Não
foi especificado o tratamento, mas consta no relato que se recuperaram de seu transtorno psicológico. Dois dos pacientes tentaram suicídio e na
discussão os pesquisadores enfatizaram a necessidade de monitorar cuidadosamente este aspecto entre os efeitos colaterais. Consideraram que a
toxicidade do interferon para o sistema nervoso
central foi relacionada à dose e aumentou junto
com a duração do tratamento. Também observaram uma freqüência mais alta em pessoas da terceira idade.
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
121
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
Em um artigo sobre hepatite C, em um hospital de nível III, com 500 pacientes, Lee et al.14 encontraram uma incidência de 24% para sintomas
depressivos em pacientes com hepatite C sem tratamento. Sugeriram como assunto para uma pesquisa futura que as manifestações extra-hepáticas são dependentes do genótipo da doença –
atualmente se considera que a progressão para
cirrose e a falha hepática são mais freqüentes no
genótipo 1a do que no 1b. Trata-se de um estudo
retrospectivo onde 60% dos pacientes que apresentaram sintomas estavam recebendo tratamento antidepressivo quando foram vistos pela primeira vez. Consideram que a alta aparição de
sintomas depressivos poderia ser atribuída à reação depressiva porque estavam lidando com um
nível de fadiga incomum e/ou preocupados com
a saúde. Na discussão final apontam que fadiga e
depressão são comuns em hepatite C e poderiam
ser variáveis dependentes. Avaliaram casos de pacientes, de 1975 a 1995, revisando seus prontuários médicos. Este é um dos estudos, cuja revisão
abrange um prazo mais longo, no qual sugerem
que a hepatite C sozinha poderia ter uma incidência maior de sintomas depressivos14, 29. Não
encontraram relação entre idade e depressão, nem
os pacientes com histórico de dependência química apresentaram uma incidência maior de sintomas depressivos. Não mencionaram os métodos usados para o diagnóstico da depressão nem
como estabeleceram a diferença entre a mesma e
a reação depressiva.
A relação entre usuários de droga, interferon
e hepatite C foi revisada por Johnson e Fisher13
em um artigo realizado no Departamento de Psicologia da Universidade de Alaska. Na introdução do artigo, os autores comentaram que a literatura deveria avaliar se a depressão é preexistente
à introdução do interferon ou se é um efeito
colateral do mesmo ou ainda seria uma característica comum a usuários de drogas. Examinaram
310 usuários de drogas com pelo menos 30 dias
de abstinência comprovada por exame físico e
análise em urina de metabólitos para morfina,
cocaína ou anfetamina. O objetivo do estudo era
determinar o tipo de intervenção que ajudaria os
usuários de drogas a prevenir a disseminação do
vírus do HIV e, como parte de sua participação,
deveriam preencher o questionário CES-D: escala
do centro para estudos epidemiológicos de depressão. Este instrumento, preenchido pelos próprios pacientes, consta de 20 itens, cada um com
122
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
quatro opções, oscilando entre zero – nunca – até
três – quase todo o tempo. Avalia também quatro subescalas: somática/retardo na atividade; afeto deprimido; afeto positivo e interpessoal. Dentro dos resultados, não encontraram diferença
estatística na pontuação para depressão entre
pacientes com o vírus C e aqueles sem ele. Quando aplicaram Manova, usando as subescalas do
CES-D como variáveis dependentes e a hepatite
C como variável independente, encontraram alguma diferença nas duas primeiras subescalas
(qualidade deprimida do afeto e retardo na atividade/somática). Devemos levar em conta que a
hepatite C produz fadiga como sintoma. Na discussão, colocaram uma série de dúvidas sobre a
complexa relação existente entre a depressão, a
hepatite C e o uso de drogas mesmo sem o uso
do interferon.
Em uma carta aos editores, Capuron e Ravaud4
relataram que em dez pacientes com melanoma
em uso de interferon alfa como terapia coadjuvante à imunoterapia, três aumentaram a pontuação da escala Montgomery Asberg Rating Scale
(Madrs) após quatro semanas de uso da citocina,
entre os que apresentaram pontuação maior na
escala no primeiro dia do estudo. Postularam que
o estado do humor no início do tratamento poderia nos predizer como o mesmo evoluiria junto
ao tratamento com interferon. Excluíram pacientes com histórico positivo para depressão e acompanharam o grupo por quatro semanas.
Segundo a mesma linha de raciocínio, Cotler
e Wartelle5 mencionaram que os efeitos colaterais
podem ser uma exacerbação de sintomas
preexistentes. Numa tentativa de predizer a resposta ao tratamento com interferon, acompanharam 222 pacientes avaliados na linha de base e,
seis meses depois, para sintomas como fadiga,
mialgia, artralgia, depressão, febre, náusea, calafrios, vômito e cefaléia. Acompanharam pacientes na França e nos Estados Unidos. Propuseram
aumentar a dose do interferon no quarto mês caso
a prova para detecção do vírus C (RNA) no soro
pelo PCR ( polimerase chain reaction ) fosse
detectável. Consideraram que a piora dos sintomas estava relacionada à quantidade do
interferon, mas não ao regime de administração.
No uso diário, os pacientes toleravam-no melhor
do que na administração de três vezes por semana. Não aplicaram escalas de acompanhamento
da intensidade da depressão; usaram medicação
antidepressiva apoiada nos sintomas relatados
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
pelos pacientes e na avaliação clínica dos investigadores. Perguntaram sobre o uso atual de drogas ou álcool, mas não o padrão de uso anterior.
Mulder e Ang23 seguiram 63 pacientes em seis
meses de tratamento, os quais, na primeira entrevista, foram avaliados pela psiquiatria, usando SCID pelo
DSM III-R. Posteriormente, foram vistos mensalmente pela enfermagem, receberam uma escala para preenchimento (SCL-90: Hopkins Symptom Checklist),
que foi respondida por 49 pacientes. Relataram ainda que 75% dos pacientes da amostra teriam feito
uso de drogas endovenosas. Avaliaram depressão,
ansiedade e raiva, não encontrando um aumento significativo até o final do estudo. Naqueles que tiveram
pontuação alta nos sintomas depressivos no início do
estudo, a pontuação continuou alta, mas não mudou
significativamente. Os dez pacientes que apresentaram sintomas depressivos ou depressão não foram
relacionados diretamente com o tratamento com
interferon. Cinco dos pacientes foram tratados para
depressão sem ser especificado com qual medicamento. Não existe referência a nenhum seguimento psiquiátrico posterior.
Miyaoka e Otsubo19 compararam dois tipos
diferentes de interferon em 66 pacientes pelo espaço de um ano. Fizeram avaliação psiquiátrica
ao ingressar no estudo, antes de iniciar qualquer
tratamento e depois, no final do primeiro mês,
após um ano e dois anos. Usaram os critérios do
DSM III-R e a escala Hamilton, encontrando que:
27,1% dos pacientes satisfaziam critérios para
episódio depressivo; dois dos pacientes apresentaram ideação suicida, mas nenhum tentou de fato
o suicídio.
Sobre o interferon pegilado, Zeuzem e Feinman35
publicaram um artigo recente onde 531 pacientes
terminaram o acompanhamento demonstrando
uma eficácia superior ao interferon alfa 2-a sozinho,
com incidência de 16% de depressão. Deste grupo,
os autores consideraram que seis tiveram efeito adverso psiquiátrico grave: quatro com depressão grave, um com psicose e outro que morreu de overdose
de heroína, porém, como já tinha histórico de uso
EV de drogas, foi uma morte considerada não-relacionada à citocina.
Taruschio30, 31 apresentou um trabalho no congresso de gastroenterologia, em 1996, onde analisou 30 pacientes com hepatite C aplicando as
seguintes escalas BDI, Madrs, Stai, Hama, BPRS,
Staxi, CGI. Encontrou que 20% teriam diagnóstico de ansiedade generalizada e 10%, de transtor-
no do humor. Considerou que a astenia, a cefaléia,
a dor muscular, as dificuldades de concentração
e as alterações da libido poderiam ser sintomas
da depressão não-diagnosticada. No resumo não
determinaram o tempo do estudo nem se foi feito algum seguimento depois.
Já Taruschio, Sica e Migliorini31, do departamento de psiquiatria de Bologna, publicaram uma
referência aos efeitos psiquiátricos do interferon
como sendo mais freqüentes em idosos com neoplasias após uso endovenoso de doses altas. Sobre a terapia para o vírus da hepatite C fazem três
relatos de caso onde foram feitos os diagnósticos
de: psicose, pânico e depressão. Não relataram o
uso de nenhuma entrevista semi-estruturada nem
determinaram se essas manifestações teriam aparecido antes da entrada da citocina.
Em outro estudo, os italianos Fattovich e
Giustina 9 fizeram uma retrospectiva usando
interferon alfa, dividindo sua toxicidade em hepática e extra-hepática. Em uma amostra de
11.241 pacientes de 73 centros italianos, mencionam dois casos onde detectaram depressão que
levou a tentativa de suicídio. Dez pacientes desenvolveram psicose, não especificando o tratamento utilizado para a remissão do quadro. Concluem que os efeitos colaterais do interferon
tiveram uma incidência considerada baixa (0,04%
para efeitos fatais e 0,07% para efeitos colaterais
de longo prazo).
Heeringa e Honkoop12 relatam seis casos psiquiátricos de depressão e de psicose ou delirium
desenvolvidos após o começo do interferon alfa
2b. Dois dos pacientes teriam tido sintomas descritos como psíquicos previamente. Depois de parar a medicação, quatro se recuperaram. Um
paciente cometeu suicídio e outro não foi possível acompanhar.
Em outro estudo com interferon alfa para 18
pacientes com uveíte auto-imune, Sanchez Roman
e Pulido Aguilera 27 colocaram depressão
endógena entre os critérios de exclusão. Mesmo
assim, encontraram depressão em três casos, a
qual melhorou após a suspensão do tratamento
com a citocina. O tempo de tratamento foi de
um ano. Não mencionaram acompanhamento
posterior nem se os pacientes foram avaliados
antes pela psiquiatria.
Dieperink, Willenbring e Ho6, em um artigo
sobre sintomas neuropsiquiátricos, em pacientes
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
123
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
com uso de interferon em hepatite C, fizeram uma
revisão da doença, da história natural, do tratamento, da qualidade de vida e dos efeitos
colaterais. Focalizaram os mecanismos das mudanças neuropsiquiátricas associadas ao interferon
e propuseram tratamentos a partir de cuidadosa
revisão bibliográfica. Apontaram que os sintomas
neurológicos associados à citocina seriam:
parestesias, confusão, afasias, cegueira cortical,
delirium, síndromes extrapiramidais como ataxias
e acatisias. Fizeram referência a dois artigos que
documentam ondas lentas na atividade
eletrofisiológica do EEG e estes sintomas seriam
mais comuns na velhice e nos pacientes
oncológicos. Documentam, numa tabela, os estudos, o instrumento usado e os achados quanto
à depressão ou ansiedade (TTabela 22).
Dentro do corpo do artigo fazem uma divisão
dos sintomas produzidos pelo interferon como:
cognitivos, afetivos e o componente comportamental.
Rifflet26 reportou cinco casos de efeitos psiquiátricos em pacientes tratados com interferon alfa para
Tabela 2 – Alterações psiquiátricas em pacientes com hepatite C, com ou sem interferon alfa
Estudo
Ano
n
Instrumentos
Tratamento
Renault et al.
1987
58
IFN-α
Davis et al.
1989
166
SCL-90-R
Cons. psiquiátrica
Relato subjetivo
Placebo/IFN-α
Poynard et al.
Okanue et al.
1996
1996
303
677
Relato subjetivo
Relato subjetivo
IFN-α
IFN-α
Fattovich et al.
Lee et al.
1996
1997
11.241
359
Otsubo et al.
1998
85
Entrevista retrospectiva
IFN-α
Medical Chart Review Dados iniciais
DSM-III-R, HDRS (1)
Dados iniciais
IFN-α
Malaguarnera et al. 1998
114 Zung Self Rating Dep. Scale
Maunder et al.
Davis et al.
1998
1998
3
345
Série de casos
Relato subjetivo
McHutchinson et al. 1998
912
Relato subjetivo
IFN-α
IFN-α
IFN-α
IFN-α/ribavirina
IFN-α
IFN-α/ribavirina
Pariante et al.
1999
50
SCID for DSM-III-R (2)
Dados iniciais
IFN-α
Singh et al.
1997
82
Beck Dep.
Inventory (BDI)
Sem tratamento
Hunt et al.
1997
38
BDI, HADS (3)
Sem tratamento
Johnson et al.
1998
309
CES-D Scale (4)
Sem tratamento
Resultados
Efeito colateral neuropsiquiátrico em 17%
Sem diferenças entre os grupos quanto a depressão, fadiga
e irritabilidade: depressão em 8%-14%
Astenia em 50%, depressão em 9%
Desordens psicológicas em 24 (3,5%), tentativa de suicídio
em dois (0,3%)
Psicose em dez pacientes, tentativa de suicídio em dois
Depressão em 24% dos pacientes não-tratados; dois terços
precisaram de antidepressivos
Depressão maior em dois; média da Hadrs: 3
Pontuação da HADRS e 37,3% (31 dos 83)
desenvolveram depressão
Média de pontuação > 50 (depressão moderada)
Aumentou a pontuação para todo o grupo tratado com IFN
Originou sintomas de PTSD (5)
Depressão em 11%, insônia em 23%
Depressão em 16%, insônia em 20%
Ansiedade em 13%, piora da concentração em 14%,
depressão em 37%, labilidade emocional em 8%, insônia
em 27%, irritabilidade em 32% e fadiga em 70%
Ansiedade em 18%, piora na concentração em 14%,
depressão em 36%, labilidade emocional em 11%,
fadiga em 70%, insônia em 39% e irritabilidade em 32%
Diagnóstico psiquiátrico atual em 16 (32%)
Dos pacientes com hepatite B e/ou C, 11 (22%)
desenvolveram condições psiquiátricas: depressão (n = 5),
depressão sem especificação (n = 3), severa disforia (n = 2),
t. de ansiedade generalizada (1)
Pacientes na fila do transplante com hepatite C
apresentaram níveis de depressão significativamente
maiores do que aqueles sem o vírus C
HADS: 7% (2 de 28) possivelmente deprimidos, 4%
(1 de 28) deprimidos BDI: 30% (9 de 28) moderadamente
deprimidos
Sintomas depressivos em 57,2% dos usuários de drogas
com hepatite C e em 48,2% daqueles sem hepatite C
(1) Hamilton Depression Rating Scale; (2) Structural Clinical Interview for DSM-III-R non patient edition; (3) Hospital Anxiety and Depression Scale; (4) Center for Epidemiological
Studies Depression Scale; (5) Posttraumatic Stress Disorder.
Dieperink E, Willenbring M, Ho S. American Journal of Psychiatry, 2000.
124
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Brasil et al.
Hepatite C, interferon e depressão
hepatite viral C. No primeiro dos casos, em um paciente com ideação suicida, ainda sem tentativa, foi
possível retornar ao tratamento com interferon. No
segundo e no terceiro caso, a depressão aconteceu
durante o tratamento com a citocina, mas não desapareceu depois da parada do interferon. No total,
houve duas mortes em quatro tentativas de suicídio
depois da retirada do interferon. A prevalência de tentativas de suicídio nos primeiros seis a 12 meses de
tratamento com interferon foi zero comparada a 1,3%
durante os seis meses após a terapia em 306 pacientes com hepatite C crônica. Concluiu-se que a depressão não desaparece após a retirada do interferon,
justificando um seguimento clínico especializado até
mais freqüente após a suspensão do tratamento.
Durelli e Bongioanni7 apontaram a depressão
como efeito colateral de interferon alfa 2-a
(Roferon-A da Roche) num total de 46 pacientes com
diagnóstico de esclerose múltipla. Schwid28, em outro estudo feito por neurologistas sobre o interferon
beta 1-b em esclerose múltipla, enfatiza a aparição
de hipertireoidismo sintomático em dois dos casos,
os quais já faziam uso de imipramina, sem apontar
no comentário porque foi indicado o tricíclico.
Discussão
Quando se relacionam sintomas depressivos
com a hepatite C, devemos nos lembrar de que a
principal via de contaminação é o uso de drogas
endovenosas. Entre os usuários de drogas, incluindo álcool, existe uma grande co-morbidade com
transtornos do humor. A contaminação com vírus do HIV dar-nos-ia particularidades diferentes
da população exposta ao risco, assim como das
medicações necessárias para o seu tratamento,
sem contar as infecções oportunistas às quais os
portadores do vírus já estão expostos.
Dependendo da população em estudo, estabelece-se um viés de seleção quando focalizamos
no interferon, já que a esclerose múltipla e a hepatite C foram relacionadas, mesmo sem medicação com a depressão, fazendo-se necessário es-
tabelecer um grupo de controle, sem usar
interferon, para determinar a incidência do transtorno afetivo na doença de base. O paciente que
recebe um diagnóstico de neoplasia pode fazer
uma reação depressiva que só será diferenciada
de um episódio depressivo maior por um especialista da área. Um outro médico pode nem notar
a mudança de humor. A depressão induzida pelo
interferon começou a ser mais intensamente
pesquisada após os relatos de suicídio que apareceram na literatura. Todos os artigos são unânimes em afirmar a necessidade de um trabalho
conjunto para melhor avaliação. Anteriormente,
as recomendações para pacientes com histórico
de transtorno psiquiátrico eram as de suspender
o tratamento ou excluir pacientes com anamnese
positiva para depressão da terapia com a citocina.
Trata-se de um problema complexo, mas não é
por isso que não poderá ser tentado um atendimento conjunto para o benefício de todos os pacientes. Na literatura mais recente, são comuns
os relatos de tratamentos simultâneos da citocina
com antidepressivo, obtendo-se bons resultados.
É importante o subtipo do interferon a ser usado no estudo, e sua comparação com outro seria
de valor, para ver se faz diferença na aparição de
depressão ou não. Alguns dos estudos comparando as diversas classes de interferon mostram
prevalência diferente para o transtorno afetivo,
sendo que o tipo alfa é o mais vinculado à depressão. Finalmente, o desenho do estudo, caso
seja prospectivo, poderá definir as ferramentas
usadas para coletar a informação. Por exemplo,
uma entrevista semi-estruturada para padronizar
os dados, mesmo com entrevistador experiente,
aumentará a confiabilidade no diagnóstico do sintoma observado dentro do estudo. As escalas determinam só a intensidade da depressão. Se o estudo for retrospectivo, não se tem nenhum
controle sobre as variáveis a serem analisadas. Só
poderá ser um estudo descritivo, confiando que
o quadro diagnosticado como depressivo venha
a se confirmar caso seja feito um acompanhamento depois do estudo.
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Hepatite C, interferon e depressão
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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
Endereço para correspondência
Marco Antônio Brasil
R. Voluntários da Pátria 455 – Botafogo
CEP 22270-000 – Rio de Janeiro-RJ
Tel.: (21) 2527-3996
e-mail: [email protected]
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Doença mental e comportamento
violento: novas evidências
da pesquisa
Mental disease and violent behavior: new evidence from
research
Flavio Jozef1; Jorge Adelino Rodrigues da Silva2
Recebido em: 04.02.03
Aprovado em: 10.03.03
Resumo
Foi efetuada uma revisão crítica da literatura pertinente, distribuindo-se os estudos por suas três vertentes principais: os de
prevalência de comportamento violento em doentes mentais, os de prevalência de doenças mentais em populações violentas e
estudos baseados na comunidade. Independentemente da linha de investigação, boa parte dos estudos atuais aponta para a
presença de uma associação significativa entre doença mental e comportamento violento. Há, portanto, evidências de uma
importante associação entre doença mental e comportamento violento, comparativamente a populações normais, qualquer que
seja a vertente estudada. A presença de co-morbidade com uso/abuso de álcool/drogas aumenta o risco de tais comportamentos.
Unitermos
doença mental; comportamento violento; criminosos; homicídio
Summary
A critical review of the literature was conducted on this subject and studies were divided in three categories: studies on the prevalence
rate of violent behavior among psychiatric patients, studies of psychiatric illness among violent populations, and also community-based
studies. Irrespective of the line of investigation, the review of the literature suggests that violent behavior is significantly associated with
mental illness. So, there is evidence that a strong association exists between mental illness and violent behavior. Comorbidity with substance/
alcohol use/abuse raises significantly the risk of violence.
Uniterms
mental disease; violent behavior; offenders; homicide
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Introdução
Freqüentemente, quando ocorrem episódios
de violência com grande repercussão na mídia
envolvendo pacientes psiquiátricos, coloca-se em
questão a relação entre violência e doença mental. Assim se passou com o recente homicídio de
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um médico, no Rio de Janeiro, cometido por um
paciente seu, doente mental, bem como com fatos posteriores, ocorridos em São Paulo, envolvendo um estudante de medicina, então sob tratamento psiquiátrico, e que se revelou um mass
murder. Como acontece nestas ocasiões, estabeleceu-se o debate sobre a questão da (eventual)
1Doutor em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Estudo e Assistência em Psiquiatria Forense, Instituto de
Psiquiatria da UFRJ.
2Professor-adjunto de Psiquiatria, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Este artigo foi elaborado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) (processo E-26/ 170.129/2001) e faz
parte do Projeto de Estudo da Violência Criminal e Psicopatia na Cidade do Rio de Janeiro.
J . b r a s . p s i q u i a t r.
vol. 52 (2): 127-135, 2003
127
Doença mental e comportamento violento
periculosidade dos doentes mentais. Assim, pensamos ser adequado tentar contribuir para o esclarecimento da questão empreendendo uma revisão da pesquisa relevante ao tema.
Nos últimos anos, porém, qualquer que seja a
definição empregada para comportamento violento*, sofreu uma radical modificação a visão, antes
amplamente difundida e aceita, de que doença mental não está relacionada a qualquer aumento no risco de comportamento violento34. Os principais arautos desta opinião foram Monahan e Steadman30,
considerados os decanos da epidemiologia criminal.
Em seu clássico estudo, de 1983, estes autores,
tranqüilizadoramente, asseguravam que, uma vez
ajustados estatisticamente, com relação às características demográficas, dados que já apontavam para
uma maior prevalência de criminalidade em doentes mentais tenderiam, então, a nivelá-los à população geral. Eles concluíam “não haver evidência consistente de que a prevalência real de comportamento
criminoso entre ex-pacientes psiquiátricos” excedesse tal “prevalência na população geral, pareada para
fatores demográficos e criminalidade prévia”. Porém esta opinião chocava-se com a de inúmeros psiquiatras, que se baseavam em sua prática clínica.
Posteriormente, Monahan28 retificou sua posição,
considerando-a prematura e incorreta, ao concluir
que estabelecer controles para classe social e
institucionalização seria um equívoco, pois, sendo
estes fatores altamente relacionados a doença mental, atenuar-se-ia, artificialmente, esta relação.
Efetivamente, com o passar do tempo, em fenômeno raro na história da medicina, não só esta
visão prévia foi perdendo apoio, como foi-se consolidando outra, diametralmente oposta: a de que,
de fato, existe uma ligação entre grandes psicoses e comportamento violento. A respeito,
Marzuk25 considerou cegueira** a dificuldade de
muitos psiquiatras em aceitar a existência desta
relação, lembrando que, para o público em geral, este fato há muito já havia sido reconhecido.
Para este novo consenso concorreram, basicamente, recentes pesquisas epidemiológicas, que vieram coroar uma série de estudos, analisados a
seguir.
Jozef & da Silva
Método
Na presente revisão foram incluídos trabalhos
representativos de diversas fases da pesquisa sobre o tema, selecionados por sua relevância, de
autores universalmente considerados referência
sobre o tema, com artigos publicados em revistas
importantes e de grande repercussão. Adicionalmente, foi consultada a base de dados eletrônica
Medline, que forneceu 258 trabalhos, empregando as palavras-chave violence e mental disease.
Detenção de pacientes
psiquiátricos
Uma das primeiras estratégias empregadas no
estudo da questão foi a avaliação das taxas de detenção policial de ex-pacientes psiquiátricos. Na
década de 1970, Steadman et al.37 apontaram,
pela primeira vez, para um incremento nos números, apesar de equivocarem-se nas explicações
para este achado. Segundo Asnis et al.4, a maioria
dos estudos revela taxas (de detenção de ex-pacientes) muito maiores do que as da população geral, variando entre 1,2 e 29 vezes. Para Rabkin35,
adicionalmente, esta diferença se acentuaria ao
estudarmos especificamente as detenções policiais por crimes violentos.
Um problema destes estudos, especialmente
os iniciais, dizia respeito ao não-pareamento,
quanto às características sociodemográficas, de
pacientes psiquiátricos e população geral. Estudos posteriores23, 50 preocuparam-se em corrigir
esta deficiência, confirmando a presença de taxas
de detenção policial significativamente mais elevadas para ex-pacientes psiquiátricos.
Exemplificando, Wessely et al.50 identificaram
os pacientes com diagnóstico de esquizofrenia,
parafrenia e outras psicoses não-orgânicas
(n = 583), residentes na área de Camberwell, Londres, atendidos pelo Maudsley Hospital, entre
1975 e 1984. Eles foram comparados a grupocontrole de pacientes não-esquizofrênicos (n =
583), pareado por idade, sexo e data da primeira
consulta. Todos os diagnósticos foram revistos,
*Definimos comportamento violento como o uso intencional de força ou ação física contra uma pessoa, seja como coação, seja
como um fim em si, provocando dano físico ou moral na vítima, sendo que, necessariamente, este comportamento será criminoso.
**“Ironically, it is only in recent years that we, mental health professionals and advocates for the mentally ill, have begun to appreciate
the association between violence and mental illness, a link that has been recognized by the general public for centuries. What took us
so long? Why were we so blind?” (Marzuk PM, op. cit., p. 481).
128
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Jozef & da Silva
Doença mental e comportamento violento
empregando-se critérios do DSM-III-R. O período
de tempo sob risco de detenção criminal foi calculado subtraindo-se os períodos sob internação
psiquiátrica. Não houve diferenças entre os dois
grupos no que diz respeito às taxas de detenção
em geral. Porém, quanto a detenções por agressão e outras formas de violência graves, homens
com esquizofrenia obtiveram taxas três vezes
maiores do que o grupo controle. Para mulheres
com esquizofrenia, tanto as taxas de detenção em
geral quanto as por violência foram maiores. Os
índices do grupo-controle foram similares aos da
população geral. Uma limitação, porém, que pode
ser apontada neste estudo, é o fato de considerar
apenas crimes que levaram a detenções. Porém
ele tem a vantagem de, controlando gênero, idade e data da primeira consulta, afastar fatores
generacionais, que influenciam sabidamente a
conduta.
Uma crítica que tem sido feita a tais estudos
diz respeito à chamada criminalização dos doentes mentais, que consistiria em uma tendência do
aparato jurídico-policial no sentido de deter mais
doentes mentais29. Ocorre que, inúmeras vezes,
tais pacientes seriam internados em hospitais psiquiátricos, ao invés de detidos, ao cometer atos
violentos. Na realidade, há indicações de que a
polícia, na maior parte dos casos, estaria pouco
inclinada a deter doentes mentais, especialmente
sendo os delitos cometidos de pequena gravidade 8. Também, argumenta-se, ocorreria uma
psiquiatrização do comportamento criminal27, ou
seja, uma tendência a um maior influxo de indivíduos com passado criminal para os hospitais psiquiátricos.
Assim, gradativamente, tornou-se claro que a
melhor forma de a pesquisa escapar dos sofismas
inerentes a tais críticas, bem como de vieses causados por processos de seleção, seria a realização
de estudos epidemiológicos mais amplos,
especialmente os baseados na comunidade.
Doença mental em prisões
Outra abordagem da questão foi o estudo da
proporção de doentes mentais nas chamadas populações violentas, como, por exemplo, criminosos detidos por crimes violentos. Guze et al.13, em
seu estudo pioneiro, de 1969, examinou criminosos detidos, encontrando grande prevalência
de sociopatia, alcoolismo e drogadicção, bem
superior à população geral, achado que foi con-
firmado em nosso meio por Silva36, pesquisando
delinqüentes juvenis. A visão de Guze e de seu
grupo, de St. Louis, era a tradicional, ou seja, a
de que não haveria entre os criminosos detidos
qualquer excesso de doentes mentais.
Novamente, porém, isto não é o que parece
ser observado usualmente na prática. Importantes estudos foram empreendidos a partir da década de 1980 por Pamela Taylor, na Prisão de
Brixton, Grã-Bretanha. Dos indivíduos para lá
transferidos, 9% apresentavam algum quadro
psicótico e 6%, esquizofrenia, que estava, portanto, super-representada nesta amostra. Entre
os homicidas, particularmente, 8% apresentavam esquizofrenia43.
Com viés algo diverso, na mesma época outros autores avaliaram o aumento relatado nas
detenções de doentes mentais. Para Teplin44, o alto
índice de detenções de ex-pacientes psiquiátricos
verificado em uma grande cidade norte-americana envolveria, freqüentemente, situações de risco para os pacientes (como perambular por vias
expressas, exposição, enfim, a situações perigosas). Porém estudo posterior da mesma autora,
em 199045, avaliou, por meio do DIS, uma amostra de 627 detidos em fase de pré-julgamento, na
Cook County Jail, comparada a dados da população geral, obtidos na pesquisa da ECA
(Epidemiological Catchment Area Study), e demonstrou prevalência duas a três vezes maior para
depressão maior, mania e esquizofrenia entre os
detidos. À medida que neste estudo foram controladas as diferenças demográficas entre os dois
grupos, afastaram-se quaisquer dúvidas sobre a
efetiva ocorrência do fenômeno. Andersen et al.2,
estudando 228 presos na Dinamarca, com emprego do PSE, PCL-R e DIS (Diagnostic Interview
Schedule), encontraram as presenças elevadas de
8% de espectro esquizofrênico, 11% de transtornos afetivos, 18% de transtornos psiquiátricos
menores e 53% de abuso de substâncias. Sessenta e seis indivíduos receberam mais de um diagnóstico, abuso de substâncias era co-mórbido em
61 casos e personalidade anti-social foi encontrada em 26. Investigações recentes de amostras representativas de presos canadenses e norte-americanos6, 31 também revelaram taxas de prevalência
de doença mental, particularmente esquizofrenia
e transtornos afetivos maiores, mais elevadas que
na população geral. Este último estudo, de
Hodgins e Côté16, avaliou, por meio do DIS, amostra de 456 presos de uma penitenciária de
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Doença mental e comportamento violento
Quebec. Destes, 107 receberam diagnóstico de
doença mental grave (major mental disease –
MMD) e 71 também foram diagnosticados como
sofrendo de transtorno de personalidade anti-social. A prevalência para transtornos squizofrênicos
foi sete vezes maior do que a da população geral
e, para depressão maior, duas vezes. Outro estudo, realizado com mulheres detidas31, encontrou
uma prevalência significativamente maior de
esquizofrenia e depressão maior, diversamente de
transtornos ansiosos. Em nosso meio, estudo com
homicidas normais (em princípio, isentos de doença mental), detidos em delegacia policial no Rio
de Janeiro, indicou a presença, em 79,3% dos indivíduos, de diagnósticos psiquiátricos, sendo
55% de transtornos de personalidade e 53% de
diagnósticos ligados a álcool/drogas (31% possuíam mais de um diagnóstico)21.
Questiona-se, porém, o chamado viés de seleção, mecanismo pelo qual o aparelho jurídico-criminal promoveria a chamada criminalização dos
doentes mentais. Pode-se ponderar ser pouco provável que tanto as estruturas policiais quanto as penais em diferentes países (lembrando-se que ambas
são, geralmente, bastante independentes entre si)
sofressem deste viés em comum. Para Hodgins et
al.17, tal possibilidade seria “possível, embora altamente improvável”. Ademais, os números evidenciados em estudos mais recentes não dão margem a
dúvidas. Para Wessely49, é incontestável o fato de
que indivíduos psicóticos, na realidade, tendem a
ser menos detidos, processados e aprisionados, apesar de serem os mesmos mais fáceis de apreender,
no sentido literal da expressão. Ele considera tal fato
desejável, evidentemente, do ponto de vista humanitário, mas problemático no que tange à realização
de estudos epide- miológicos fidedignos.
Outra forma de enfocar o problema foi o exame do seguimento de ex-pacientes psiquiátricos,
ou, ainda, do passado criminal violento de
pacientes internados. Hodgins et al.17 afirmam
que, revendo 12 estudos norte-americanos e
escandinavos de seguimento de pacientes psiquiátricos após alta, comparados a pessoas da
comunidade, todos apontavam para uma proporção maior de ex-pacientes sendo condenados por crimes violentos.
Jozef & da Silva
Grossman et al.11 investigaram o passado criminal de 172 pacientes internados com doenças
mentais graves. Destes, 27% haviam cometido crimes violentos. Comportamento violento associouse, de forma decrescente, aos diagnósticos de
transtorno esquizoafetivo (40%), esquizofrenia
(28%), transtorno bipolar (24%), transtorno unipolar (12,5%). Pacientes com psicose em atividade eram mais inclinados a possuir um histórico
de crimes violentos do que os demais.
Modestin et al.26 examinaram um universo de
282 esquizofrênicos hospitalizados em um período de três anos, em Berna, comparados a grupo
controle, pareado por idade, sexo, situação marital e status social. Trinta e quatro por cento dos
pacientes e 35% dos controles possuíam registros criminais, comparados a 15% da população
geral masculina. Os pacientes masculinos possuíam uma maior proporção de detenções por crimes violentos que os controles. Separadamente,
os resultados para esquizofrenia e transtornos
afetivos não alcançaram significância estatística,
mas, ao se somarem, o risco (odds ratio) para detenções por violência atingiu 4,53 comparativamente aos controles.
Estudos na comunidade
Empregando outra estratégia, epidemiológica,
pesquisadores tentaram verificar, na comunidade, a
ocorrência comum de violência e transtornos mentais. De forma pioneira, Swanson40 utilizou dados
da ECA nesta investigação. Por influência de Lee
Robins, um dos coordenadores da ECA, haviam sido
incluídas no mesmo questões relativas a comportamento violento. Das pessoas saudáveis entrevistadas, 2% admitiram ter se comportado violentamente no ano anterior, contra 12% dos esquizofrênicos.
Surpreendentemente, também houve uma associação importante entre mania/depressão e violência,
mas a associação mais forte foi para abuso de álcool/drogas. Tais dados levaram Swanson à conclusão
de que haveria uma associação entre doença mental e comportamento violento maior do que a esperada. Para Swanson, doença mental adquiria o valor
de fator significativo para a ocorrência de violência*. Segundo Volavka48, este estudo, particularmen-
*“...Several important findings emerge here. First, people who assaulted others were indeed significantly more likely to have psychiatric
disorders, with odds ratio typically in the range of 2.5 to 4. This pattern held up irrespective of which index was used
to identify violence or mental illness” (Swanson JW. op. cit., p. 109).
130
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Jozef & da Silva
Doença mental e comportamento violento
te, foi responsável por uma ruptura, na medida em
que demonstrou, pela primeira vez, que a associação
entre doença mental e comportamento violento não
era um mero artefato, criado por vieses envolvidos
na seleção de amostras ou em procedimentos policiais*. Isto se deu, como ressalta Hodgins15, apesar de
limitações que têm sido atrubuídas ao estudo da ECA,
tais como o emprego de um instrumento diagnóstico,
o DIS, que subestima a prevalência dos grandes transtornos mentais, bem como a sub-representação de
indivíduos com sintomas paranóides, menos inclinados a participar da entrevista diagnóstica, ou ainda o sub-registro dos sem- teto. Também, como
mostram Eronen et al.8, pessoas oriundas da comunidade mas residindo em instituições no momento
do estudo ficam excluídas, o que pode ter descartado
justamente doentes e indivíduos violentos de forma
grave. Já os estudos citados a seguir contornaram este
problema baseando-se em registros de nascimento e
incluindo tanto indivíduos em residências particulares quanto em instituições como prisões ou hospitais.
Exemplificando, Link et al.23 compararam uma
amostra de moradores de um bairro de Nova York,
Washington Heights, com um grupo de pacientes
psiquiátricos em tratamento ambulatorial na mesma localidade. Foram controlados fatores sociodemográficos, tais como situação econômica e educacional, bem como os étnicos, mantendo-se, ainda
assim, o grupo de pacientes como bem mais inclinado a cometer violências do que o grupo-controle, resultando significativamente em mais detenções por crimes violentos. Foram examinados
dados oficiais, bem como informações de auto-relato, tais como participação em disputas físicas,
emprego de armas ou provocação de lesões. Em
todas as medidas de violência os pacientes psiquiátricos apresentavam, consistentemente, participação maior – em alguns casos, duas ou três vezes
maior. A presença de atividade delirante, especialmente delírio de cunho persecutório, de controle
ou de inserção de pensamentos, correlacionava-se
positivamente com comportamento violento, independentemente de diagnóstico ou vinculação a
tratamento. O fato de pacientes mais psicóticos serem os mais perigosos significou uma confirmação adicional da hipótese de que esta
periculosidade devia-se a sintomas psicóticos, e não
a quaisquer outros fatores, como idade, classe social ou gênero.
Estudo posterior utilizando a mesma metodologia foi realizado em Israel39. Os transtornos
psiquiátricos foram divididos em cinco categorias:
1) transtornos psicóticos incluindo esquizofrenia,
transtorno esquizoafetivo ou psicose funcional inespecífica e depressão maior com psicose; 2) transtorno bipolar; 3) depressão maior sem psicose; 4)
transtorno de ansiedade generalizada; 5) fobias.
Encontrou-se que o risco relativo de comportamento violento para indivíduos apresentando transtorno psicótico de qualquer tipo, após ser feito controle para abuso de substâncias, transtorno de
personalidade anti-social e características demográficas, era de 3,3 para disputas físicas e de 6,6
para emprego de armas. De forma contrastante,
entre os diagnosticados com depressão nãopsicótica, transtorno de ansiedade generalizada ou
fobias não houve aumento discernível do risco para
violência, em comparação à população geral.
Finalmente, o clássico estudo levado a efeito
por Hodgins et al.17 examinou a prevalência e
distribuição de criminalidade e doenças mentais
em uma coorte de nascimentos, não-selecionada, na Dinamarca, grupo este seguido do nascimento até a idade de 43 anos e incluindo
358.180 indivíduos. O grande número de indivíduos envolvidos e a faixa etária ampla, englobando as faixas de risco para criminalidade e para
as grandes psicoses, mas excluindo as enfermidades envolvidas no envelhecimento, foram algumas das vantagens do desenho deste estudo,
realizado em um país com detalhados registros,
tanto criminais quanto de saúde da população.
Este estudo indicou que os indivíduos com história de hospitalização psiquiátrica e com diagnóstico de transtorno mental maior, tanto homens quanto mulheres, estavam mais inclinados
a terem uma condenação por crime. Já mulheres com um transtorno mental maior apresentavam um risco para violência especificamente,
maior do que para criminalidade em sentido amplo. Com relação à faixa etária, chamou a atenção dos autores o fato de que 34% dos pacientes masculinos e 67% dos femininos com
transtorno mental maior que delinqüiram fizeram-no pela primeira vez entre 30 e 46 anos, o
que indicaria uma subestimação da violência em
estudos voltados para populações jovens (a
*Volavka J. Neurobiology of violence. Washington: Am Psychiatric Press; 1995. p. 224.
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
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Doença mental e comportamento violento
exemplo de Eronen et al.9), abarcando a faixa
até 25 anos. Adicionalmente, os autores comentaram haver um bom número de delitos não
conduzindo a processo ou prisão devidos ao estado psicótico dos perpetradores.
Posteriormente, Hodgins15 especulou, com relação aos cinco grandes estudos epidemiológicos
com coorte de nascimentos pós-Segunda Guerra
Mundial, que o maior risco de comportamento
criminal, violento ou não, apontado por todos
estes estudos, para pessoas com transtorno mental maior aplicar-se-ia apenas às gerações estudadas, indivíduos nascidos entre o final da década
de 1940 e as décadas de 1950 e 1960, especulando que tais pacientes teriam recebido cuidados psiquiátricos inadequados e inapropriados e
que incluiriam indivíduos com comportamento
anti-social constante, desde a infância até a maturidade, de uma forma inédita, tanto em relação
às gerações prévias quanto às posteriores.
Homicídio e doença mental
Uma estratégia que tem a vantagem de permitir uma focalização mais precisa do problema
é o estudo da relação entre homicídio e doença
mental19. Homicídio, neste contexto, torna-se um
paradigma de comportamento violento, sua forma mais visível e grave, a ponta do iceberg do
montante de violência de uma dada sociedade.
Seu grande impacto psicológico e social faz com
que as estatísticas que a ele se referem tendam a
ser as mais precisas, com conseqüências inestimáveis para a pesquisa.
Diversos autores têm defendido a presença de
uma associação entre esquizofrenia e comportamento violento5, 33, 41. O estudo clássico de Hafner e
Boker14, de 1973, avaliou os registros de todas as
tentativas de homicídio por doentes mentais em um
período de dez anos na então República Federal Alemã. Eles concluíram de forma otimista que as doenças mentais maiores e esquizofrenia não aumentavam o risco de criminalidade violenta. Contudo, uma
reanálise de seus dados14 demonstrou que os
esquizofrênicos efetivamente possuíam um maior
risco para o cometimento de violência criminal.
Eronen et al.9 reviram dados relativos a todos
os homicídios cometidos na Finlândia entre 1984
e 1991, sendo os 693 homicidas avaliados e acompanhados por oito anos. Estatisticamente ajustado para idade, este grupo continha oito vezes mais
132
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Jozef & da Silva
esquizofrênicos do que a população geral. Concluíram os autores que esquizofrenia aumentava
a taxa de risco (odds ratio) para o cometimento
de violência homicida em oito vezes para homens
e 6,5 vezes para mulheres. A realização deste estudo foi facilitada pela elevada taxa de esclarecimento de homicídios por parte da polícia daquele país, bem como pela realização rotineira de
exame psiquiátrico em homicidas detidos. Para
os autores, os dados encontrados apoiavam os
resultados de um estudo preliminar51, com amostra de um ano, de homicidas finlandeses.
O mesmo grupo avaliou o risco para o cometimento de homicídios em um grupo de 281 expacientes psiquiátrico-forenses47. Para os esquizofrênicos, o risco detectado foi 50 vezes maior do
que para a população geral.
A avaliação de 21 homicidas recidivistas suecos1 demonstrou que a maioria apresentava transtornos de personalidade, muitos possuíam diagnósticos ligados a álcool/drogas e 10% sofriam
de esquizofrenia. Estudo similar realizado na Finlândia46 (n = 13) demonstrou que todos sofriam
de transtornos mentais, 11 apresentavam transtornos de personalidade associados a alcoolismo
e dois eram esquizofrênicos.
Para Gottlieb et al.10, a taxa para o aumento
do risco (odds ratio for the risk increase) em homicídio cometido por psicóticos foi de seis para
homens e de 16 para mulheres.
Naturalmente, a etapa seguinte da pesquisa
seria a investigação dos mecanismos que mediariam este maior risco. Os estudos apontam para os
sintomas delirantes42, especialmente os relacionados a vivências de ameaça (sintomas persecutórios) ou de perda de controle24 (idéias de controle ou inserção de pensamentos, por exemplo)..
Nestor et al.32 delinearam o perfil clínico de homicidas internados em manicômio judiciário. Uma
grande proporção de tais pacientes possuía convicções delirantes sistematizadas, relacionadas a
pessoas específicas, como, por exemplo, familiares. Outra revisão do tema22 confirmou a grande
proporção de atos violentos cometidos por pacientes psiquiátricos motivados por crenças delirantes voltadas para alvos específicos. Com efeito, já
o estudo de Hafner e Boker14 apontava para o fato
de que mais de dois terços dos homens e 71% das
mulheres que mataram (ou quase) haviam estabelecido uma relação delirante com suas vítimas na
ocasião do crime.
Jozef & da Silva
Doença mental e comportamento violento
Discussão
Assim, número crescente de autores foi sendo levado a aceitar a existência de uma relação consistente entre comportamento violento e doença mental.
Justapondo-se os achados de diferentes estudos,
malgrado os diferentes procedimentos ou estratégias
metodológicas, surge quadro similar com resultados
surpreendentemente semelhantes. A hipótese negativa foi contraditada, especialmente pelos estudos mais
recentes, com menos falhas metodológicas e
conceituais, referentes tanto à abrangência das amostras estudadas quanto aos grupos-controle e à
operacionalização de variáveis-chave38. Alguns autores são taxativos, afirmando, por exemplo, que “há
evidências convincentes de que comportamento violento/homicida está associado, de forma significativa, à doença mental”23 ou ainda que “a relação entre
violência e doença mental existe”*.
homicídio (termômetro da violência universalmente adotado), descrito na década de 1980, na
Dinamarca 10, é fato preocupante, por deixar
transparecer as repercussões que uma sociedade
globalmente violenta poderia produzir em seus
doentes mentais desinstitucionalizados. Afinal, eles
seriam submetidos aos mesmos fatores
socioculturais que os seus concidadãos saudáveis.
Analisando esta questão, Gudjonsson12 apontou
diretamente a desinstitucionalização como responsável por um incremento na violência por
expor pacientes a um maior número de situações
de risco. Sendo este um fenômeno recente e em
curso, abre-se a possibilidade de evoluções desfavoráveis. Sociedades mais violentas tenderiam
a expor os seus doentes mentais a mais situações
de risco, e isto, em um país sabidamente violento
como o nosso18, merece cuidadosa reflexão.
Podemos citar revisão empreendida por
Arboleda-Flórez3, que integrou as três categorias
de estudos (estudos de comportamento violento
e criminoso entre pacientes psiquiátricos, estudos
sobre a incidência de doença mental em criminosos e estudos epidemiológicos, baseados na comunidade, correlacionando doença mental e violência). Malgrado seu viés diverso, este autor
também se viu forçado a admitir a existência de
uma associação entre doença mental e violência,
ressaltando, porém, as incertezas quanto à sua
previsibilidade, devido às inúmeras co-variáveis
que interfeririam na equação.
A valorização do fator doença mental, no que
diz respeito à violência, é fato que deve ser enfrentado pela psiquiatria. Isto não significa que
qualquer doente mental esteja inclinado a cometer crimes violentos: a vasta maioria não o fará.
Lem- bremos, também, que outros grupos existem bem mais perigosos para a sociedade, como
os psicopatas violentos20. E nunca é demais repetir que o grande problema de saúde pública da
atualidade, envolvendo psiquiatria e violência, diz
respeito ao abuso de álcool.
No entanto coloca-se a questão da efetiva participação dos doentes mentais na violência global em uma dada sociedade. Para Link et al.23, esta
contribuição seria trivial, quase irrelevante.
Swanson40 estimou que somente 3% da violência
na comunidade seria produzida por doentes mentais. Afinal, mesmo sendo mais violentos, eles são
relativamente poucos. Por outro lado, devido à
incidência constante das principais psicoses através das diversas sociedades (o que contrasta com
a forma como a violência se distribui), seria de se
esperar uma maior participação relativa da violência produzida por doentes mentais nas sociedades menos violentas. Porém o aumento na participação de doentes mentais nos índices de
Devemos também lembrar que a resposta para
os riscos de comportamento violento no âmbito
das doenças mentais não está no retorno a práticas antigas, ao isolamento ou estigmatização, mas
na melhoria do cuidado, em apoio e tratamentos
dispensados, sendo que a atenção prioritária deve
se voltar para aqueles de alto risco, os pacientes
psiquiátricos avaliados como potencialmente violentos. Aí, abordagens clínicas, socioambientais,
bem como técnicas atuariais de previsão, devem
ser empregadas de uma forma integrada. Estes
pacientes devem receber, prioritariamente, manejo amplo e intensivo7, sob pena de vir a sofrer
conseqüências indesejáveis como uma maior carga de violência a ser suportada pela sociedade.
Conclusão
*“... Since epidemiological methods have improved, more reliable and scientifically valid data on the possible association between
violence and mental illness have been obtained, indicating that such a relationship exists” (Eronen M, Hakola P, Tihonen J. Mental
disorders and homicidal behavior in Finland. Arch Gen Psychiatry 1996; 53: 497-501).
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Doença mental e comportamento violento
Jozef & da Silva
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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
Endereço para correspondência
Flávio Jozef
Instituto de Psiquiatria da UFRJ
Avenida Venceslau Brás 71 – Fundos
CEP 22290-140 – Rio de Janeiro-RJ
Tel.: (21) 2295-2549
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
135
Interações medicamentosas dos
antidepressivos noradrenérgicos/
serotoninérgicos
Drug interactions of noradrenergic/serotonergic antidepressants
Douglas Dogol Sucar1; Ewerton Botelho Sougey2; Amaury Cantilino3; Riane Marinho4
Recebido em: 07.10.02
Aprovado em: 19.12.02
Resumo
O objetivo do presente estudo foi identificar, descrever e correlacionar com o quadro clínico as principais interações medicamentosas da venlafaxina, da mirtazapina e do milnaciprano, antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos mais específicos
comercializados no Brasil. Com esta finalidade, foi realizada uma revisão da literatura baseada em relatos de casos bem documentados e em estudos farmacológicos selecionados a partir das monografias dos produtos. Uma tabela contendo as principais
interações e os seus mecanismos, elaborada para permitir consultas rápidas, reforça a importância desta revisão, no sentido de
permitir ao clínico uma maior segurança e um melhor manuseio desta nova classe de antidepressivos, principalmente quando
estes forem utilizados em associação com outros medicamentos da clínica médica. As interações mais importantes foram com os
anti-hipertensivos, antianginosos, metildopa, depressores do sistema nervoso central e com a digoxina. As interações
medicamentosas ainda não são suficientemente valorizadas pelos clínicos no momento do planejamento terapêutico, devendo o
médico estar atento, principalmente em relação a esta nova classe de antidepressivos, pela possibilidade de provocarem interações
com graves efeitos indesejáveis, que poderão causar conseqüências clínicas danosas ao paciente.
Unitermos
interação medicamentosa; venlafaxina; mirtazapina; milnaciprano
Summary
This study intended to identify the principal possibilities of drug interactions of venlafaxine, mirtazapine and milnacipran, the main
selective serotonin/noradrenaline antidepressants traded in Brazil. For this purpose, a bibliographical review was made based on
pharmacological studies selected from the monographs of the products and from good case reports. A table for quick consultation that
contains the drug interactions and their mechanisms was prepared. This table permits a safer and better use of these antidepressants by the
physician, especially when they are used in association with other drugs of internal medicine. The most important interactions were with
antihypertensives, drugs used to angina, metildopa, digoxin and central nervous system depressants. Drug interactions aren’t enough
appraised by physicians when they plan their treatment. Physicians must be aware that this new group of drugs can have interactions with
harmful outcomes.
Uniterms
drug interactions; venlafaxine; mirtazapine; milnacipran
1Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), Utad/Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); mestre em Neuropsiquiatria pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
2Departamento de Neuropsiquiatria; mestrado em Neuropsiquiatria pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
3Mestre em Neuropsiquiatria pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
4Residência em Psiquiatria pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
J . b r a s . p s i q u i a t r . vol. 52 (2): 137-142 , 2003
137
Sucar et al.
Interações medicamentosas dos antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos
Introdução
Há uma grande preocupação, no momento
atual, em se descobrirem novos medicamentos
antidepressivos que combinem o máximo de eficácia com um mínimo de efeitos adversos. Tal fato
se justifica pelo motivo de a depressão ser uma
doença de alta incidência e prevalência, além de
se constituir em fator significativo de morbidade,
que vem acometendo uma população cada vez
mais jovem e em fase produtiva4.
Nesta perspectiva foram sintetizados os
antidepressivos com atuação simultânea e mais
seletiva
sobre
dois
sistemas
de
neurotransmissão: o serotoninérgico e o
noradrenérgico, uma vez que os conhecimentos mais recentes indicavam uma interligação
dos dois sistemas na constituição dos transtornos depressivos26, 35. Entretanto até o momento nenhuma teoria baseada exclusivamente nos
neurotransmissores foi capaz de abranger e justificar os vários achados clínicos e farmacológicos. Os três principais representantes desta
classe de antidepressivos noradrenérgicos/
serotoninérgicos comercializados no Brasil são
a venlafaxina, a mirtazapina e o milnaciprano.
A venlafaxina é muito bem absorvida por via
oral, principalmente na sua formulação de liberação controlada, uma vez que proporciona uma
menor velocidade de absorção, diminuindo tanto a incidência quanto a intensidade da náusea
comumente vista com o comprimido de liberação imediata, além de permitir uma maior estabilidade em suas concentrações plasmáticas, tendo
como resultante uma melhor tolerabilidade e uma
melhor eficácia clínica21, 34. Sua ligação às proteínas plasmáticas é muito baixa, em torno de 30%.
Sofre intenso metabolismo logo após sua absorção. Seu principal metabólito ativo é a O-desmetilvenlafaxina (ODV), que tem perfil semelhante à
venlafaxina, embora tenha menor potência. A
venlafaxina é metabolizada pelo sistema
citocromo P450, preferencialmente pela
isoenzima 2D6, e o seu metabólito ODV, pela 34A.
Sua rota primária de excreção é a via renal18, 20.
Seu principal mecanismo de ação consiste na
inibição seletiva da recaptação de serotonina
(5-HT) e de noradrenalina (NA), podendo, principalmente em função de suas concentrações mais
elevadas, inibir a recaptação de dopamina (DA),
não apresentando efeito farmacológico significa138
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
tivo sobre receptores colinérgicos, histaminérgicos
e alfadrenérgicos. Apresenta, de um modo geral,
uma eficácia clínica bem diferenciada em função
de uma resposta clínica mais precoce e proporcional à dose empregada3, 17.
A mirtazapina é bem absorvida por via oral, ligando-se em torno de 85% às proteínas
plasmáticas; é intensamente metabolizada no fígado através do sistema CP450, preferencialmente
pela isoenzima 2D6, seguida pela 1A2 e 3A4, e o
seu principal metabólito, a desmetilmirtazapina,
praticamente não apresenta efeito biológico e é
excretada por via renal11, 16.
Seu principal mecanismo de ação consiste em
aumentar de modo específico a neurotransmissão
noradrenérgica através do bloqueio dos auto-receptores alfa-2. O aumento da transmissão noradrenérgica conduz à estimulação, pela NA, dos
receptores alfa-1 pós-sinápticos dos neurônios
serotoninérgicos, produzindo aumento na liberação de serotonina, que é potencializada ainda
mais, pela capacidade da mirtazapina de bloquear os heterorreceptores alfa-1, e com isto inibir a
recaptação da serotonina. A mirtazapina, como
parte do seu efeito terapêutico, bloqueia os receptores 5HT2 e 5HT3 pós-sinápticos8.
Apresenta baixa afinidade pelos receptores
alfadrenérgicos, colinérgicos e dopaminérgicos,
não apresentando efeito farmacológico significativo, porém possui alta afinidade pelos receptores histaminérgicos H110. De um modo geral, se
mostra eficaz no tratamento da depressão, principalmente em doses mais elevadas, provavelmente pelo aumento da transmissão noradrenérgica
superar o efeito sedativo H116, 26, 36.
O milnaciprano é muito bem absorvido por
via oral, com uma biodisponibilidade em torno
de 90%. Sua concentração plasmática de equilíbrio é alcançada em torno do terceiro dia de uso
e apresenta uma meia-vida plasmática em torno
de oito horas. Apresenta um excelente perfil para
associações com outros medicamentos, por apresentar uma baixa ligação às proteínas plasmáticas,
em torno de 13%, e não ter metabólitos ativos25.
Aproximadamente 60% da dose ingerida são
excretados na urina sem nenhuma alteração; o
restante sofre um processo de conjugação e de
N-desalquilação.
Apresenta potente ação inibidora da recaptação de noradrenalina e serotonina, aparentemente de forma equivalente. Não apresenta, em
Sucar et al.
Interações medicamentosas dos antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos
Principais possibilidades
de interações
doses usuais, nenhum efeito clinicamente significativo em outros receptores15.
O fato de o clínico, no seu planejamento terapêutico, ainda não valorizar o suficiente as
interações medicamentosas propicia com maior
freqüência associações incompatíveis ou pouco
adequadas de medicamentos, que terminam por
conduzir ao aparecimento de efeitos indesejáveis
que poderão causar danos ao paciente e, em alguns casos, até conduzir ao óbito.
Neste sentido, o objetivo deste estudo foi o de
identificar, descrever e estabelecer correlações com
o quadro clínico das principais interações medicamentosas desta nova classe de antidepressivos
com outros medicamentos da clínica médica (TTabela
bela). Para atender a este objetivo, foi realizada
uma revisão da literatura fundamentada em relatos de casos e em estudos farmacológicos que foram selecionados a partir das monografias destes
produtos. Tal conhecimento torna-se um importante instrumento de referência para que o clínico
possa utilizar estes antidepressivos de forma mais
segura e mais eficaz.
Sítio de absorção
A venlafaxina e o milnaciprano, mais raramente, e a mirtazapina, de forma mais constante e intensa, produzem, através de um mecanismo ainda não conhecido, ressecamento da cavidade
oral9, 16. Muito embora não haja nenhum relato
na literatura, o clínico deve estar atento, pois é
possível que o ressecamento da cavidade oral diminua a velocidade de absorção de medicamentos administrados por via sublingual, como é o
caso dos nitratos, da nifedipina e do captopril.
Tal fato poderá retardar o início do efeito
farmacológico destes medicamentos em uma situação clínica que exija um rápido início de ação,
principalmente nas crises de angina pectoris.
Sítio de ligação às proteínas
Este é um sítio que praticamente não apresenta
nenhuma possibilidade de interação medica-
Tabela – Interações medicamentosas dos antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos mais específicos
Medicamento A
Medicamento B
Desfecho da interação
Milnaciprano (+)
Mirtazapina (+++)
Venlafaxina (+)
Nitratos
Nifedipina
Captopril
A resseca a cavidade oral e retarda a absorção de B
Milnaciprano (++)
Mirtazapina (++)
Venlafaxina (+++)
Anti-hipertensivos
Milnaciprano (++)
Mirtazapina (++)
Venlafaxina (+)
ISRSs
Sibutramina
acentuado de serotonina poderá
ocorrer síndrome serotoninérgica
Mirtazapina (+++)
Clozapina
Somação dos efeitos sedativos
Venlafaxina
Clozapina
Potencialização dos efeitos antipsicóticos de B
Mirtazapina
Clonidina
Metildopa
A bloqueia os receptores alfa-2 pré-sinápticos e
antagoniza os efeitos de B
Simpatomiméticos
A potencializa os efeitos pressores de B
Mirtazapina
Levodopa
Aumento da probabilidade de surto psicótico
Venlafaxina (+)
Cimetidina
Milnaciprano (++)
Mirtazapina (++)
Venlafaxina (++)
Mirtazapina
Tabaco
Milnaciprano (+++)
Digitálicos
Milnaciprano
Diuréticos
+ Pequena intensidade; ++ média intensidade; +++ alta intensidade;
ISRSs: inibidores seletivos da recaptação de serotonina.
aumenta; ¬ diminui.
A
neurotransmissão noradrenérgica e antagoniza B
recíproco de suas concentrações plasmáticas
B
o metabolismo de A e ¬ seu efeito terapêutico
hipotensão ortostática
B excreção de A e ¬ seu efeito terapêutico
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139
Sucar et al.
Interações medicamentosas dos antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos
mentosa, uma vez que a venlafaxina, o milnaciprano
e a mirtazapina se ligam pouco às proteínas
plasmáticas: a venlafaxina em torno de 30%, o
milnaciprano, 13%, e a mirtazapina, um pouco mais,
em torno de 85%. Não é esperado, em condições
usuais, que estes medicamentos desloquem outros
dos seus pontos de ligação às proteínas e, ao contrário de serem deslocados por outros medicamentos, o aumento de suas concentrações livres nestas
condições praticamente não teria importância clínica, em função da margem de concentração/ligação
permitir um suficiente equilíbrio, uma vez que haveria também um aumento do metabolismo,
excreção e distribuição.
Sítio de ação
A venlafaxina, apesar de não apresentar praticamente nenhum risco de efeito cardiotóxico indesejável, pelo menos nas doses usuais recomendadas, entre
75mg/dia e 150mg/dia, poderá elevar a tensão arterial
e até antagonizar o efeito hipotensor dos medicamentos anti-hipertensivos. Sua ação farmacológica de inibir principalmente a recaptação de noradrenalina aumenta acentuadamente e de forma crescente, com a
dose utilizada, a neurotransmissão noradrenérgica central, com anulação do principal mecanismo de sua
regulação, que é a recaptação22, 29.
Na literatura especializada, os relatos sobre as
possibilidades de esta interação vir a ocorrer indicam
a necessidade de doses elevadas de venlafaxina, em
torno de 300mg/dia7, 13; entretanto documentamos
no nosso serviço a antagonização do efeito hipotensor
do captopril pela venlafaxina, com doses em torno
de 100mg/dia29, 30. Deve-se evitar o uso da venlafaxina
em associação com os antidepressivos inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRSs), outros
medicamentos que também possam elevar os níveis
de serotonina na fenda sináptica, e os IMAOs, pela
possibilidade de ocorrer a síndrome serotoninérgica,
convulsões e picos hipertensivos23, 24, 28.
Numa situação clínica específica, e estando o
paciente acometido por um transtorno depressivo
grave, resistente aos tratamentos usuais, uma associação com um ISRS poderá ser feita, de preferência com o paciente internado em um hospital
geral, iniciando-se com as menores doses possíveis, principalmente de venlafaxina, já que os
ISRSs poderão diminuir seu metabolismo. Fazer,
quando necessário, aumentos gradativos das doses e manter rigoroso controle das funções vitais.
Uma outra associação que poderia ser benéfica
seria com a clozapina, pelo fato de se produzir um
140
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incremento na neurotransmissão noradrenérgica
através de dois mecanismos diferentes: a clozapina
pelo bloqueio do receptor alfa-2 pré-sináptico, e a
venlafaxina pelo bloqueio de recaptação da
noradrenalina, com possibilidade de acentuar a
melhora dos sintomas negativos e a socialização do
paciente. Entretanto os cuidados com as doses empregadas e a monitorização dos sinais vitais deverão
ser rigorosos, pela possibilidade de elevação da TA,
que poderia ser compensada pelo efeito alfa-1
adrenérgico da clozapina e pelo risco aumentado
para ocorrer agranulocitose.
A mirtazapina teoricamente poderá também
antagonizar o efeito hipotensor dos anti-hipertensivos de um modo geral; entretanto haverá
menor possibilidade de este fato ocorrer, uma vez
que não interfere no mecanismo de recaptação da
noradrenalina e tem algum efeito bloqueador alfa-1
adrenérgico9, 26. Por bloquear o receptor alfa-2 présináptico, poderá antagonizar o efeito hipotensor
da metildopa e da clonidina, que atuam estimulando estes receptores10, 16. De um modo geral, deverá
ser evitada ou administrada sob rigorosa supervisão
e monitoramento dos valores pressóricos.
A mirtazapina, quando associada com a
clozapina ou com outros medicamentos que tenham ação depressora sobre o sistema nervoso
central, poderá apresentar somação dos efeitos
sedativos por conta do seu fortíssimo efeito
bloqueador histaminérgico H1. Entretanto o seu
efeito sedativo poderá ser suprimido pelo efeito
estimulante de doses mais elevadas8, 16, 26, desde
que o paciente possa tolerar. Além do mais, do
ponto de vista farmacológico, o mais provável é
que se mantenha ou se eleve ainda mais o efeito
sedativo, em função do maior bloqueio H1.
Assim como a venlafaxina e o milnaciprano, a
mirtazapina não deve ser associada com a sibutramina, pela possibilidade de se elevarem acentuadamente as concentrações sinápticas de noradrenalina e serotonina, com risco de ocorrer síndrome
serotoninérgica, convulsão e psicoses, entre outros
efeitos5, 6, 27, 31. Ainda em relação ao sítio de ação, é
provável que a mirtazapina, a venlafaxina e o
milnaciprano potencializem os efeitos pressores dos
simpatomiméticos, com possibilidade de
vasoconstrição acentuada no cérebro, diversos órgãos e taquicardia, podendo conduzir a conseqüências clínicas graves, com risco de vida.
Abo-Zena et al.1 relataram um caso de urgência
hipertensiva que ocorreu quando um paciente, com
seu quadro clínico estabilizado com o uso da
Sucar et al.
Interações medicamentosas dos antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos
clonidina, começou a fazer uso da mirtazapina. Os
autores concluíram que provavelmente o bloqueio
dos receptores alfa-2 pré-sinápticos pela mirtazapina,
com conseqüente aumento de liberação da
noradrenalina na fenda sináptica, angonizou o efeito hipotensor da clonidina, por impedir ou diminuir
a sua ligação e estimulação destes receptores.
Em outro relato de caso, Norman et al.19 descrevem a ocorrência de um transtorno psicótico
em um paciente logo após a mirtazapina ter sido
adicionado ao seu tratamento, que constava anteriormente do uso crônico de levodopa. Segundo os autores, este parecia ter sido, até então, o
primeiro caso publicado sobre a interação medicamentosa da mirtazapina com a levodopa, e o segundo caso relatado de psicose induzida por um
antidepressivo desta classe. Os autores concluíram que este fenômeno provavelmente ocorreu
em decorrência da hipersensibilização dos receptores serotoninérgicos pós-sinápticos em pacientes com doença de Parkinson em tratamento.
Entretanto Kunsman et al.14 relataram o caso
de uma mulher de 52 anos com história prévia
de ameaças e tentativas de suicídio por monóxido
de carbono e corte dos pulsos, tendo sua última
tentativa êxito letal, através da ingesta de uma
overdose de verapamil e venlafaxina. A morte, segundo os autores, foi atribuída em última instância aos efeitos tóxicos do verapamil sobre o aparelho cardiovascular, levando a um infarto da
parede posterior do ventrículo esquerdo. Ainda
segundo os autores, a gravidade do verapamil foi
provavelmente agravada pela associação com altas doses de venlafaxina, que nesta situação especial seria capaz de inibir a isoenzima CP450 –
3A3/4, responsável pela metabolização do
verapamil.
e o da mirtazapina possam ser diminuídos por
quinidina, verapamil, diltiazem e ISRSs, com aumento de suas concentrações e possibilidades maiores para
ocorrer efeitos indesejáveis35. Deve ser lembrado que
o cigarro, por estimular a isoenzima 1A2, poderá aumentar o metabolismo da mirtazapina e diminuir seu
efeito terapêutico; entretanto o fato de ser
metabolizada por várias isoenzimas, quase que na
mesma intensidade, poderá fazer com que não se tenha nenhuma repercussão clínica importante2, 11, 20.
A utilização conjunta de venlafaxina e cimetidina conduziu ao aumento recíproco de suas
concentrações plasmáticas, pela inibição mútua
dos seus metabolismos, com a potencialização dos
seus efeitos terapêuticos e tóxicos12.
Sítio de excreção
Até o presente momento não é possível estabelecer possibilidades de interações medicamentosas,
neste sítio, com a venlafaxina e a mirtazapina. Sendo a via renal um importante meio de excreção, o
clínico deverá estar atento, pois diminuições no volume excretado poderão elevar as concentrações
plasmáticas destes antidepressivos. O principal cuidado deverá ser com o milnaciprano, que é totalmente excretado pela via renal, sendo 60% de forma inalterada. É provável que os diuréticos possam
aumentar sua excreção e, por conseguinte, diminuir
sua concentração plasmática e efeito terapêutico.
Conclusão
Sítio de metabolismo
A venlafaxina, a mirtazapina e o milnaciprano
apresentam um bom perfil em relação às interações
medicamentosas, podendo ser associados com segurança a diversos outros medicamentos. Entretanto
algumas associações devem ser evitadas, entre as
quais se destacam: venlafaxina com antihipertensivos, IMAOs e cimetidina; a mirtazapina
com antianginosos administrados por via sublingual,
metildopa, clonidina, medicamentos depressores do
sistema nervoso central e levodopa. E o
milnaciprano, apesar de ainda carecer de mais estudos, deverá ser evitado com anti-hipertensivos,
simpatomiméticos, digitálicos e diuréticos.
De um modo geral não parece haver possibilidades, em condições usuais, de interações medicamentosas de significado clínico no nível deste sítio. A venlafaxina, mais do que a mirtazapina, pode
inibir o metabolismo mediado pela isoenzima 2D6;
entretanto este efeito não parece ser significativo33.
O mais provável é que o metabolismo da venlafaxina
Deve ser considerado ainda que os estudos sobre as possibilidades de interações medicamentosas
com estes antidepressivos ainda são bastante escassos, e a sua fundamentação ainda é, na sua maior
parte, teórico-hipotética, carecendo ainda de um
conteúdo prático fundamentado em um maior número de relatos bem documentados.
Ainda em relação ao sítio de ação, há uma recomendação na monografia do produto no sentido
de não se fazer uso do milnaciprano nos pacientes
em tratamento com digitálicos, pela possibilidade
de ocorrer acentuada hipotensão ortostática32.
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141
Sucar et al.
Interações medicamentosas dos antidepressivos noradrenérgicos/serotoninérgicos
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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
Endereço para correspondência
Douglas Dogol Sucar
Rua Açu 419 – Tirol
CEP 59020-110 – Natal-RN
Tel./fax: (84) 217-2696
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Validação transcultural do Inventário
de Habilidades de Vida
Independente (ILSS-BR) para
pacientes psiquiátricos
Transcultural validation of the Independent Living Skills Survey
(ILSS-BR) for psychiatric patients
Lúcia Abelha Lima, Ph.D.1; Marina Bandeira, Ph.D.2; Sylvia Gonçalves3
Recebido em: 28.09.02
Aprovado em: 24.01.03
Resumo
Este artigo apresenta os resultados referentes à análise psicométrica da versão brasileira da escala Independent Living Skills
Survey (ILSS), que avalia a autonomia de pacientes crônicos em diversas áreas do funcionamento social. O estudo de tradução e
adaptação dos questionários foi realizado pelo Núcleo de Pesquisa do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira
(IMASJM), no Rio de Janeiro, e a coleta de dados foi feita nas unidades assistenciais do IMASJM. A análise das qualidades
psicométricas das escalas foi realizada pelo Laboratório de Pesquisa em Saúde Mental da Universidade Federal de São João delRei (Funrei/MG). O Inventário de Habilidades de Vida Independente foi submetido a uma tradução e a uma retrotradução, assim
como um estudo piloto, e foi avaliado por uma comissão de especialistas, a fim de adaptá-lo ao contexto brasileiro. O ILSS-BR se
mostrou uma escala com qualidades psicométricas de validade e fidedignidade satisfatórias no que se refere à consistência
interna das suas subescalas, assim como à sua validade discriminante e validade de construto. A validade concomitante só
poderá ser verificada após a validação, para o Brasil, de uma escala que avalie um construto semelhante ao do ILSS. Estudos
futuros deverão aprofundar a investigação das qualidades psicométricas da presente escala no que se refere à sua estabilidade
temporal, assim como à consistência interna da escala global e à estrutura fatorial dos seus itens, embora estas análises não
tenham sido realizadas para a versão original. A escala ILSS-BR é um instrumento de medida que poderá ser importante para o
planejamento e a avaliação de programas relacionados à reabilitação psicossocial de pacientes psiquiátricos.
Unitermos
ILSS; validade e fidedignidade; habilidades de vida independente; avaliação de serviços de saúde mental; pacientes psiquiátricos
Summary
This article describes the psychometric properties of the Brazilian version of the Independent Living Skills Survey (ILSS) scale, developed
to provide global assessments of functional living skills in chronically mentally ill individuals. The Instituto Municipal de Assistência à Saúde
Juliano Moreira/RJ (IMASJM) has conducted the questionnaires translation and adaptation and the data collection took place in the health
1Psiquiatra; pesquisadora do Núcleo de Pesquisa do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM); doutora em Saúde
Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).
2Psicóloga; pesquisadora e docente da Universidade Federal de São João del-Rei (Funrei); doutora pela Université de Montréal; pós-doutora pelo
Psychosocial Research Centre da McGill University e pelo Centre de Recherche Fernand Séguin, Canadá.
3Psicóloga; pesquisadora do Núcleo de Pesquisa do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM); especialista em Saúde
Mental pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).
J . b r a s . p s i q u i a t r.
vol. 52 (2): 143-158, 2003 143
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
care units of IMASJM. The Laboratório de Pesquisa em Saúde Mental of Funrei/MG has conducted the analysis assessing the scale psychometric
properties. The scale was submitted to a translation, a backtranslation and was evaluated by an expert committee. A pilot study was made
in order to implement its adaptation to the Brazilian context. The results showed good psychometric properties of reliability and validity in
terms of the internal consistency of the sub-scales, construct validity of the scale and its discriminant validity. The concomitant validity will
only be assessed after the validation, in Brazil, of a scale with a similar construct. Future studies should investigate the temporal stability, the
internal consistency of the global scale and the scale factorial structure, although this analysis has not been done in the original version. The
ILSS-BR scale is an important instrument for planning and evaluating psychosocial rehabilitation programs for psychiatric patients.
Uniterms
ILSS; validity and reliability; independent living skills; evaluation of mental health services; psychiatric patients
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Introdução
A partir da década de 1960, com o movimento de desinstitucionalização psiquiátrica, vários
países passaram por uma reforma no setor de saúde mental, dando prioridade ao tratamento na
comunidade. Apesar dos avanços obtidos com a
reforma psiquiátrica, no que diz respeito à reintegração do paciente na comunidade, às melhorias
na qualidade de vida e aos direitos de cidadania,
o tratamento do paciente crônico ainda representa
um dos maiores desafios da reforma, pois, devido às suas deficiências persistentes, estes pacientes necessitam de suporte social, assim como de
assistência e acompanhamento intensivos e constantes2, 3, 8, 10, 13. A saída dos pacientes graves do
hospital demanda a existência de residências terapêuticas na comunidade, com diversos níveis de
proteção. A qualidade e a intensidade da assistência fornecida aos pacientes nestas residências
contribui para sua reinserção social e diminui suas
reospitalizações1. Além disso, estes pacientes precisam de programas de reabilitação psicossocial
através do treinamento das habilidades da vida
diária, principalmente nas áreas em que apresentem maior dificuldade11.
Esta mudança no local de tratamento vem
exigindo uma avaliação do impacto das intervenções, ao mesmo tempo em que a avaliação
da autonomia passa a ter um papel fundamental, não só na escolha do nível de proteção que
a moradia deverá oferecer ao paciente mas também nas decisões sobre o tipo de programa de
reabilitação psicossocial em que ele deverá ser
inserido. O aumento de oportunidades no am144
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biente, a diminuição do estresse, acrescidos do
estímulo à aprendizagem das habilidades individuais, podem contribuir para um melhor funcionamento dos pacientes12.
Um número considerável de instrumentos de
medida foi desenvolvido para avaliar o funcionamento dos pacientes, a maioria deles destinada a pacientes agudos23. Dentre as escalas desenvolvidas para avaliar pacientes crônicos, a
Independent Living Skills Survey (ILSS)20, 21 foi
criada para medir as habilidades de vida independente dos pacientes com doença mental grave e persistente, em diversas áreas do seu funcionamento na vida cotidiana.
Há uma escassez de instrumentos de medida
validados no Brasil para avaliar a autonomia dos
pacientes. A adaptação de instrumentos
internacionais à nossa cultura e à nossa realidade
é de fundamental importância para subsidiar a
saída dos pacientes do hospital para alternativas
de atendimento na comunidade e para a comparação de estudos brasileiros com estudos feitos
em outros países.
Método
Local de estudo
O Instituto Municipal de Assistência à Saúde
Juliano Moreira (IMASJM) é um hospital psiquiátrico localizado em Jacarepaguá, RJ, fundado em
1924, e tem como clientela 905 pacientes institucionalizados por muitos anos e que perderam seus
vínculos familiares e sociais devido aos longos
anos de institucionalização. O IMASJM tem a ca-
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
racterística de um pequeno bairro, pois atualmente residem no seu perímetro cerca de 20 mil moradores, fruto de invasões das terras da antiga
Colônia Juliano Moreira6.
O instituto é composto por seis unidades
assistenciais: 173 (19%) pacientes no Núcleo Franco da Rocha (NFR); 169 (19%) no Núcleo Ulisses
Viana (NUV); 344 (38%) no Núcleo Teixeira
Brandão; 102 (11%) no Núcleo Rodrigues Caldas e 64 (7%) no Pavilhão Agrícola (PA) e 53 (6%)
no Centro de Reabilitação e Integração Social
(Cris). As diversas unidades do IMASJM oferecem
atividades em oficinas, atendimento terapêutico,
acompanhamento no Programa de Recursos Individuais, Residências Terapêuticas e Lares de Acolhimento e atividades de lazer.
População
Os pacientes participantes da presente pesquisa consistem na população total do IMASJM. Esta
população é constituída de 530 (58,6%) mulheres
e 375 homens (41,4%), com idades que variam
de 24 a 98 anos, sendo a média de idade de 65,6
anos e o tempo médio de internação de 36,9 anos.
O nível de escolaridade é baixo, com 342 (38,3%)
pacientes analfabetos e 202 (22,6%) apenas alfabetizados. A maior parte da clientela não recebe
visitas e não possui vínculo empregatício, embora
391 (43,4%) tenham renda fixa proveniente de
bolsa auxílio do IMASJM e previdência social.
Quanto ao perfil diagnóstico, 568 (63%) têm
diagnóstico de esquizofrenia, transtornos esquizotípicos ou transtornos delirantes; 173 (19%)
têm retardo mental e 55 (6%) têm epilepsia; 109
(12%) têm outros diagnósticos.
Instrumento de medida original
A versão original da escala Independent Living
Skills Survey (ILSS) foi elaborada por Wallace,
Kochanowicz e Wallace (1985) e relatada por
Wallace (1986). Esta escala foi feita para avaliar
as habilidades de vida independente de pacientes
psiquiátricos com distúrbios graves e persistentes. A escala possui duas versões: uma delas foi
construída para ser aplicada diretamente aos próprios pacientes e a outra para ser aplicada a um
informante, seja ele um membro da equipe de
saúde mental envolvido no atendimento ao paciente ou um membro da família do paciente. A
versão analisada no presente trabalho foi aquela
a ser aplicada ao informante.
A escala original contém 112 itens que avaliam o funcionamento dos pacientes psiquiátricos em nove áreas da vida cotidiana, em termos
da freqüência em que eles apresentam as habilidades básicas para funcionar de forma independente na comunidade. As nove áreas avaliadas
pelo ILSS se referem a atividades relacionadas a:
alimentação, cuidados pessoais, atividades domésticas, preparo e armazenamento dos alimentos, saúde, lazer, transporte e emprego. Estas áreas foram selecionadas pelos autores com base
na avaliação de 15 escalas de medida do funcionamento de pacientes psiquiátricos e na informação obtida através de entrevistas realizadas
por cinco assistentes sociais e cinco coordenadores de residências comunitárias21.
O ILSS avalia, em uma escala do tipo Likert de 5
pontos (nunca, algumas vezes, com freqüência, na
maioria das vezes, sempre), a freqüência com que o
paciente realizou, no último mês, as atividades cotidianas necessárias ao seu funcionamento independente na comunidade. Quando o paciente não teve
oportunidade de apresentar a habilidade em questão, marca-se NO (nenhuma oportunidade).
A escala original na língua inglesa apresenta propriedades psicométricas adequadas de consistência
interna, uma vez que os coeficientes alfa de
Cronbach variaram de 0,67 a 0,84. A avaliação da
fidedignidade pelo método da correlação entre as
duas metades das subescalas apresentou coeficientes de correlação entre 0,63 e 0,89. A escala original
apresenta igualmente resultados positivos no que
se refere à sua validade concomitante, tendo sido
correlacionada positivamente com as subescalas de
funcionamento social da escala Nosie9, a qual avalia
o funcionamento e sintomatologia de pacientes psiquiátricos21.
Procedimento
Esta pesquisa envolveu duas etapas visando à
validação transcultural da escala ILSS-BR. A primeira etapa da pesquisa incluiu a tradução e a
adaptação das questões da escala original para o
contexto brasileiro, assim como um estudo piloto visando a ajustar a formulação das questões à
popu- lação-alvo. A segunda etapa envolveu o estudo das propriedades psicométricas da versão
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Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
adaptada para o contexto brasileiro e o reajuste
final da escala em função das análises estatísticas.
A primeira versão da escala adaptada brasileira
ficou com 108 itens.
Etapa I: adaptação transcultural da escala
Estudo piloto
Foi utilizada a versão original de língua inglesa da escala ILSS para se fazer a tradução para o
português e a retrotradução (backtranslation), visando a obter uma primeira versão brasileira da
escala. No processo de adaptação das questões
para o contexto brasileiro foi igualmente consultada a versão franco-canadense do ILSS1, 4.
O estudo piloto visou a ajustar a formulação
das questões da versão preliminar do ILSS-BR, em
função da população-alvo para a qual a escala seria aplicada, a fim de se assegurar uma boa compreensão e precisão do texto.
A adaptação transcultural da presente escala para
o contexto cultural brasileiro foi realizada segundo
os procedimentos recomendados pela OMS (1996)
e por Vallerand (1989) para a adaptação transcultural
de instrumentos de medidas. Este procedimento
consta das seguintes etapas: 1) tradução; 2) revisão
da tradução por um grupo bilíngüe; 3)
retrotradução; 4) avaliação da retrotradução; 5) estudo piloto I; 6) revisão das questões a partir do estudo piloto; 7) teste de campo ou estudo piloto II.
Tradução, retrotradução e adaptação para o
contexto brasileiro
O primeiro procedimento realizado foi a tradução da escala, revisada por dois psiquiatras e um
psicólogo bilíngües. A retrotradução da escala foi
feita por um epidemiologista bilíngüe, tendo sido
avaliada em seguida por um grupo de profissionais
bilíngües com experiência na área: quatro psiquiatras, três psicólogos e um antropólogo.
Na discussão de avaliação da retrotradução
da escala, quatro itens foram suprimidos: na
subescala relacionada à saúde, foi eliminado o
item que dizia respeito ao uso adequado de planos ou seguros saúde pelo paciente; na subescala
relacionada à administração do dinheiro, foi retirado o item que dizia respeito à requisição de título de eleitor pelo paciente; na subescala relativa a transporte, foi retirado o item relativo a
contatos do paciente com companhias de ônibus
para perguntar sobre itinerários; e na subescala
relativa a lazer, foi retirado um item relativo a leitura de livros e revistas. Os itens foram suprimidos por não se ajustarem à nossa realidade
sociocultural. Houve ainda uma modificação na
subescala relativa a cuidados pessoais, no item que
diz respeito ao banho: a freqüência foi modificada de duas vezes por semana para todos os dias.
146
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
Este estudo foi feito com uma amostra de 20
pacientes, sendo dez homens e dez mulheres de
duas diferentes unidades do IMASJM. As entrevistas foram realizadas por uma psiquiatra e uma psicóloga que participaram dos grupos de revisão da
tradução e avaliação da retrotradução da escala.
Foram entrevistados técnicos das unidades que conheciam bem a rotina de vida diária dos pacientes.
A partir do estudo piloto, realizou-se uma
reunião com representantes dos técnicos das
unidades e um representante da associação de
familiares dos pacientes, onde foram discutidas
modificações na redação e em alguns termos da
escala que facilitassem sua compreensão. As modificações feitas foram as seguintes: na subescala
relativa a atividades domésticas, os três itens que
diziam respeito a usar aspirador de pó, tirar poeira
de superfícies e usar esfregão no chão foram transformados em um único item relativo à arrumação
de sua moradia; na subescala relativa a atividades
domésticas, nos itens que dizem respeito à
colocação de roupas sujas na máquina de lavar
foi acrescentado o tanque. Na subescala relativa
a lazer, no item que diz respeito a jogos, o boliche
foi substituído por futebol. A escala utilizada na
segunda etapa da pesquisa continha 106 itens.
Etapa II: estudo das propriedades psicométricas
da escala
A segunda etapa desta pesquisa envolveu a
aplicação da versão adaptada da escala em toda
a população do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM), com o objetivo de verificar suas propriedades psicométricas
e de reajustar a escala em função dos resultados
das análises estatísticas.
O procedimento de aplicação da escala foi iniciado após o projeto ter sido aprovado pela comissão de ética em pesquisa do IMASJM, garantindo-se o consentimento, o sigilo e o anonimato
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
das respostas. A aplicação da escala foi realizada
no período de um mês por dez pesquisadores graduados em psicologia, contratados pela Secretaria Municipal de Saúde para essa atividade e treinados por uma psiquiatra e uma psicóloga, co-autoras deste estudo. O treinamento foi constituído
de três módulos e teve a duração de 12 horas:
1) discussão da escala, 2) aplicação piloto da escala; 3) painéis de discussão.
Os entrevistadores foram alocados nas seis
unidades do IMASJM e supervisionados pela mesma equipe do treinamento. Em cada unidade, as
entrevistas foram realizadas com os técnicos da
unidade que mais conheciam os pacientes nas suas
atividades diárias. As instruções sobre as respostas (constantes no início do questionário) e cada
um dos itens foram lidos pelo entrevistador para
cada respondente e as respostas foram anotadas
pelo entrevistador no próprio questionário.
Resultados
Freqüência das habilidades de vida
independente
O nível de habilidades de vida independente
apresentado pelos pacientes pode ser avaliado
através dos seus escores médios obtidos em cada
subescala do ILLS-BR e através do seu escore médio global. A Tabela 1 apresenta as médias e desvios padrões obtidos na presente amostra.
Pode-se observar, na Tabela 1, que o nível de
funcionamento independente dos pacientes nas
nove áreas da vida cotidiana variou de uma área
para a outra. As médias mais baixas obtidas nas
subescalas se referem às habilidades relacionadas ao
trabalho (0,29) e ao lazer (0,67). Por outro lado, as
médias mais elevadas se referem às habilidades relacionadas à alimentação (3,09) e à saúde (2,07). O
escore médio global obtido pelos sujeitos foi bastante baixo (1,51), considerando-se que a escala de
classificação varia de 0 a 4, o que indica uma baixa
freqüência das habilidades de vida independente.
Os valores de n variaram de uma subescala
para a outra, devido à eliminação de sujeitos, em
função do excesso de respostas em branco, que
foi diferente entre as diversas subescalas.
Consistência interna
A fidedignidade da presente escala foi avaliada a partir da análise da consistência interna de
suas nove subescalas. Para isto, foi feita a análise
estatística do coeficiente alfa de Cronbach para
cada subescala. A Tabela 2 apresenta os dados
referentes aos coeficientes alfa e às correlações
item/total obtidas.
Os resultados da Tabela 2 mostram que todas
as subescalas do ILSS-BR apresentaram coeficientes elevados de alfa de Cronbach. Os valores variaram de 0,753 a 0,959, o que indica uma boa
homogeneidade e consistência dos itens de cada
subescala, pois estes valores se situaram acima do
critério estabelecido (critério mínimo = 0,7) para
escalas contendo mais de dez itens, tal como sugerido por Gullikesen3 e por Martinez Arias5. As
subescalas que apresentaram os coeficientes mais
elevados de consistência interna foram as de cuidados pessoais, atividades domésticas, preparo e
manutenção de alimentos, transporte e administração do dinheiro. As demais apresentaram valores de alfa abaixo de 0,9.
Estes resultados demonstram que a consistência interna da escala ILSS-BR é satisfatória. Devido a este resultado, todas as nove subescalas originais foram retidas, indicando assim que os nove
aspectos da vida cotidiana avaliados na escala original são igualmente relevantes no contexto brasileiro e que contribuem, portanto, para a avaliação do nível de habilidades de vida independente
de pacientes psiquiátricos.
A consistência interna da subescala cuidados
pessoais foi calculada separadamente para os sujeitos dos sexos masculino e feminino, devido ao
fato de que os itens respondidos por estes dois subgrupos não eram os mesmos nesta subescala em
particular.
Tabela 1 – Médias e desvios padrões dos escores dos sujeitos nas
nove subescalas e na escala global do ILSS-BR
Média
Desvio padrão
n
Alimentação
Cuidados pessoais
Atividades domésticas
Preparo de alimentos
Saúde
Administração do dinheiro
Transporte
Lazer
Emprego
3,09
1,98
1,63
1,29
2,07
1,16
1,13
0,67
0,29
0,95
1,38
1,51
1,41
0,89
1,25
1,16
0,66
0,69
887
893
628
649
779
421
722
876
724
Escala global
1,51
0,76
873
Subescala
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
147
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
Tabela 2 – Consistência interna do ILSS-BR: valores dos coeficientes alfa de Cronbach, correlações item/total,
número de itens e número de sujeitos para cada subescala
Valor de alfa
Número de itens
Correlação item/total
n
Alimentação
0,836
8
0,35-0,69
832
Cuidados pessoais (homem)
0,959
13
0,36-0,89
145
Cuidados pessoais (mulher)
0,918
13
0,34-0,84
278
Atividades domésticas
0,946
12
0,63-0,8
193
Preparo de alimentos
0,917
7
0,68-0,8
153
Saúde
0,675
8
0,2-0,69
260
Administração do dinheiro
0,949
12
0,36-0,89
227
Transporte
0,943
7
0,43-0,89
153
Lazer
0,753
9
0,28-0,57
222
Emprego
0,895
8
0,63-0,65
128
Subescala
Para se fazer a análise do coeficiente alfa de
Cronbach foi necessário eliminar os itens que apresentavam excesso de respostas em branco, de forma que a estatística pudesse ser calculada pelo menos com uma amostra acima de 100 sujeitos, o que
resultou em valores variados de n nas subescalas.
Outros itens foram eliminados em cada subescala
como resultado da análise estatística de consistência interna, quando suas correlações item/total se
situavam abaixo do critério mínimo requerido (r =
0,2) para uma consistência interna adequada, tal
como sugerido por Gullikesen7 e por Martinez Arias14.
Itens que não atingiram este critério não eram
congruentes com os demais itens da sua subescala
e, portanto, não estavam contribuindo para a medida do conceito de habilidades de vida independente daquela subescala. Apresentaremos abaixo o conteúdo de todos os itens que foram eliminados na
análise de Cronbach, devido aos motivos expostos
acima.
Na subescala relacionada à alimentação foi eliminado apenas um item que visava a avaliar se o
paciente usava guardanapo, quando necessário, ao
fazer suas refeições. Na subescala de cuidados pessoais foram eliminados, para o sexo masculino, quatro itens que visavam a avaliar se o paciente trocava
a roupa de baixo todos os dias, se não usava as roupas combinadas de modo grotesco, se não trocava
excessivamente as roupas e se não usava roupas em
excesso umas sobre as outras. Estes três últimos itens
foram igualmente eliminados no caso das mulheres, além de dois outros itens que visavam a avaliar
148
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
se elas usavam maquiagem apropriada, sem excesso e se cuidavam de sua higiene íntima durante a
menstruação. Na subescala de atividades domésticas foi eliminado apenas um item relacionado à utilização adequada da máquina de lavar. Na subescala
referente ao preparo de alimentos foi eliminado o
item que visava a avaliar se o paciente não usava
inapropriadamente as coisas dos outros. Na
subescala referente à saúde foram eliminados dois
itens que visavam a avaliar se o paciente contatava
as pessoas apropriadas para renovar a receita de seu
medicamento e se fumava apenas em locais apropriados.
Na subescala de administração do dinheiro,
foram eliminados seis itens, visando a avaliar se o
paciente comprava os medicamentos receitados,
levava documentação apropriada para descontar
cheque, descontava cheques apropriadamente,
pagava contas com ordens de pagamento, fazia
depósitos e saques em bancos e não usava inapropriadamente o telefone. Na subescala relacionada ao transporte foi eliminado apenas um item
que visava a avaliar se o paciente possuía carteira
de habilitação válida. Na subescala de lazer foram eliminados quatro itens visando a avaliar se
o paciente freqüentava cultos religiosos e se se
comportava adequadamente nestes locais, se ia
sozinho ao cinema ou teatro e se praticava esportes. Na subescala referente às atividades de trabalho não foi necessário eliminar nenhum item.
Os itens eliminados pelas razões descritas acima em geral se referiam a situações que não eram
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
pertinentes à realidade cotidiana dos pacientes,
ao contexto brasileiro ou às condições de vida do
meio institucional onde os pacientes viviam.
tintas, compartilham um construto subjacente
comum, presente na escala global de habilidades de vida independente.
Validade de construto
Validade discriminante
A validade de construto da escala ILSS-BR pode
ser avaliada constatando-se a presença de um
construto comum subjacente às nove subescalas.
A presença de um construto comum se observa
quando a correlação obtida entre cada subescala
e o escore total é mais elevada do que a correlação observada entre as subescalas. Para efetuar
esta comparação foram calculadas as correlações
de Pearson entre as nove subescalas, assim como
suas correlações respectivas com o escore global.
A Tabela 3 apresenta os coeficientes de correlação obtidos entre as subescalas e a escala global.
A validade discriminante da escala ILSS-BR foi
verificada comparando-se os escores obtidos pelos pacientes das seis diferentes unidades existentes no instituto psiquiátrico estudado. Uma vez
que estas unidades abrigavam grupos de pacientes que diferem em termos de seu grau de autonomia, a presente escala deveria ser sensível para
detectar diferenças entre eles, em termos de suas
habilidades de vida independente, o que atestaria a validade discriminante do ILSS-BR. Esta comparação foi feita através da análise de variância
(Anova). A Tabela 4 apresenta as médias e desvios padrões obtidos pelos seis grupos em cada
subescala do ILSS-BR e no escore total.
Os resultados da Tabela 3 mostram primeiramente que as nove subescalas apresentam correlações entre si altamente significativas (p = 0). Este
resultado indica que, embora avaliem aspectos
distintos das habilidades de vida cotidiana, as diversas subescalas do ILSS-BR apresentam uma relação entre elas. Além disso, os resultados mostram também que houve, em geral, correlações
significativas mais elevadas de cada subescala com
a escala global, variando de r = 0,519 a r = 0,869,
do que das subescalas entre si. A única exceção
se refere à subescala referente ao trabalho.
Estes resultados confirmam, portanto, a hipótese inicial, demonstrando que as subescalas
do ILSS-BR, embora representem dimensões dis-
Os resultados indicaram que os grupos de pacientes das seis unidades do instituto apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre elas no escore total (F = 32,962; p = 0) e em
todas as nove subescalas do ILSS-BR, sendo esta
diferença maior em oito subescalas: administração do dinheiro (F = 32,25; p = 0), atividades domésticas (F = 13,63; p = 0), preparo e manutenção dos alimentos (F = 10,09; p = 0), cuidados
pessoais (F = 21,97; p = 0), emprego (F = 113,82;
p = 0), lazer (F = 30,33; p = 0) e transporte (F =
41,45; p = 0). A menor diferença entre os grupos
foi observada para as atividades referentes à
subescala de alimentação (F = 3,058; p = 0,01).
Tabela 3 – Coeficientes de correlação de Pearson entre as nove subescalas e a escala global do ILSS-BR
Subescala
A
B
C
D
E
F
G
H
I
J
A
B
C
D
E
F
G
H
I
1
0,413*
0,362*
0,341*
0,364*
0,249*
0,237*
0,122*
0,112*
0,519*
1
0,714*
0,661*
0,622*
0,484*
0,487*
0,497*
0,359*
0,808*
1
0,826*
0,599*
0,656*
0,54*
0,498*
0,413*
0,869*
1
0,567*
0,633*
0,596*
0,471*
0,422*
0,845*
1
0,581*
0,522*
0,495*
0,412*
0,76*
1
0,67*
0,554*
0,53*
0,808*
1
0,602*
0,601*
0,764*
1
0,385*
0,656*
1
0,589*
A: alimentação; B: cuidados pessoais; C: atividades domésticas; D: preparo de alimentos, E: saúde; F: administração do dinheiro, G: transporte; H:
lazer; I: trabalho; J: global.
*p = 0.
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
149
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
A Tabela 4 mostra que o grupo de pacientes
do Cris apresentou os resultados mais elevados
na maioria das áreas da vida cotidiana, com exceção da subescala que se refere às atividades de
alimentação. Ao contrário, os pacientes do NTB
apresentaram os escores mais baixos em quatro
áreas da vida cotidiana, relacionadas às subescalas
de administração do dinheiro, atividades domésticas, lazer e transporte. Os pacientes do NRC apresentaram os escores mais baixos nas duas
subescalas de cuidados pessoais e emprego. Para
a subescala de preparo e manutenção dos alimentos o grupo do NUV apresentou os escores mais
baixos. Na subescala alimentação os resultados
foram menos divergentes entre os grupos, o escore mais elevado sendo observado no NUV e o
menos elevado, no Cris. O escore total mais elevado de habilidades da vida independente (2,44)
foi o dos pacientes que habitavam no Cris, e o
escore menos elevado (1,25) foi o do NTB.
Foi feita, em seguida, uma análise discriminante
das seis unidades de pacientes, a fim de se identificar as subescalas que mais discriminavam os grupos. Esta análise evidenciou uma função significativa diferenciando os grupos (qui-quadrado =
385,713; p = 0; lambda = 0,235; eigenvalue = 1,35),
o que explicava 66% da variância dos dados. As correlações mais elevadas encontradas entre as
subescalas e a função discriminante canônica padronizada foram referentes às atividades de emprego,
transporte, administração e lazer (respectivamente
855, 587, 544, 455). Este resultado indica que foram estas quatro subescalas do ILSS-BR que mais
diferenciaram os grupos de pacientes das várias unidades da amostra.
Os resultados descritos acima são coerentes com
as diferenças de nível de autonomia apresentadas
pelos seis grupos de pacientes na sua vida cotidiana
na instituição. Os resultados obtidos aqui indicam
que a escala ILSS-BR apresenta validade discriminante
adequada, uma vez que foi sensível para detectar
diferenças significativas nos diversos grupos de pacientes da presente amostra.
Avaliação do nível de habilidades da vida
cotidiana independente
Ao se utilizar o ILSS-BR para avaliar os pacientes de um dado serviço de saúde mental, deve-se
seguir o procedimento de aplicação descrito neste artigo. Assim, a aplicação da escala deve ser
feita em entrevista com a pessoa que mais conhece as atividades cotidianas do paciente, e o entrevistador deve ler as instruções e as questões da
escala para esta pessoa e anotar as suas respostas
no questionário, segundo as instruções que constam no início do questionário.
Na correção dos resultados, para se avaliar o
nível de funcionamento dos pacientes em relação às nove áreas de habilidades da vida cotidiana independente, calcula-se o escore médio das
respostas obtidas em cada uma das nove
subescalas do ILSS-BR. Esta média, que pode variar de 0 a 4, indicará um nível mais elevado de
habilidades de vida independente quanto mais
próxima ela estiver do valor máximo 4.
O nível de funcionamento global dos pacientes nas habilidades da vida cotidiana pode ser estimado calculando-se a média das respostas obtidas nos 84 itens que compõem a escala ILSS-BR.
Tabela 4 – Médias e desvios padrões dos escores de habilidades de vida independente apresentados pelos seis
grupos de pacientes da amostra em cada subescala e no escore global do ILSS-BR
Grupo
Subescala
150
NFR
NUV
NTB
NRC
CRIS
PA
p
Administração do dinheiro
Alimentação
Atividades domésticas
Preparo de alimentos
Cuidados pessoais
Emprego
Lazer
Transporte
1,78 (1,2)
3,02 (0,89)
1,98 (1,65)
1,23 (1,36)
2,37 (1,2)
0,21 (0,44)
0,81 (0,68)
1,03 (1,03)
1,53 (1,15) 0,56 (1,02)
3,33 (0,86) 3,05 (1,07)
1,32 (1,39) 1,31 (1,45)
1,08 (1,23) 1,14 (1,49)
1,88 (1,36) 1,89 (1,32)
0,45 (0,69) 0,004 (0,18)
0,93 (0,66) 0,42 (0,56)
1,5 (1,19) 0,81 (0,95)
1,37 (1,44)
2,98 (0,93)
2,66 (1,25)
1,45 (1,37)
1,02 (1,47)
0,008 (0,34)
0,54 (0,69)
0,84 (1,03)
2,34 (0,93)
2,92 (0,67)
2,7 (1,07)
2,43 (1,03)
3,02 (0,76)
1,91 (1,35)
1,32 (0,55)
2,89 (0,85)
0,71(0,85)
3,12 (0,82)
1,55 (1,41)
2,26 (1,33)
2,28 (1,44)
0,87 (0,65)
0,59 (0,54)
0,89 (1,01)
0
0,01
0
0
0
0
0
0
Global
1,64 (0,66)
1,65 (0,8)
1,28 (0,77)
2,44 (0,64)
1,65 (0,68)
0
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
1,25 (0,64)
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
Antes de se calcular a média dos escores de cada
subescala e a média global, é necessário inverter os
escores de alguns itens cujo sentido difere dos demais itens da escala, de modo que todos os escores
da escala possam ser indicativos de maior independência dos sujeitos quanto maior o escore médio for
próximo de 4. Os escores a serem invertidos se referem aos seguintes itens: os itens 5 e 8 da subescala
alimentação; o item 13 da subescala de cuidados pessoais e o item 8 da escala de saúde. Nas demais
subescalas não há itens a serem invertidos.
Discussão
O Inventário de Habilidades de Vida Independente, adaptado para o contexto brasileiro (ILSSBR), se mostrou uma escala com qualidades psicométricas de validade e fidedignidade satisfatórias
no que se refere à consistência interna das suas
subescalas, assim como a sua validade discriminante e validade de construto. Sua elevada consistência interna (a = 0,753 a 0,959), acima do
critério requerido, indica um índice de fidedignidade ainda superior ao obtido para a versão original do ILSS (a = 0, 67 a 0,84). Devido a estes
índices adequados todas as nove subescalas da
versão original foram retidas na versão brasileira,
que poderá, portanto, avaliar as habilidades de
vida independente dos pacientes nas mesmas áreas de atividades cotidianas da versão original.
Os resultados positivos obtidos para a validade discriminante desta escala indicam também
que ela é sensível para discriminar grupos distintos de pacientes psiquiátricos. Como na versão
original da escala este tipo de análise não foi efetuada21, não podemos fazer uma comparação dos
presentes resultados com o estudo original para
este aspecto em particular.
A adaptação transcultural do ILSS-BR, tendo
seguido as recomendações estabelecidas na literatura para este tipo de procedimento, através da
participação de um grupo de especialistas e da
aplicação de um estudo piloto na população-alvo,
favoreceu a obtenção de itens cuja formulação
fosse mais clara e de fácil entendimento e cujo
conteúdo garantisse uma equivalência com a versão original, assegurando entretanto sua
pertinência para o contexto cultural brasileiro.
Estudos futuros deverão aprofundar a investigação das qualidades psicométricas da presente
escala no que se refere à sua estabilidade temporal, assim como a consistência interna da escala
global e a estrutura fatorial dos seus itens, embora estas análises não tenham sido realizadas para
a versão original. Estas duas últimas análises requerem amostras que não forneçam excesso de
respostas em branco ou não-aplicáveis, as quais
inviabilizam as análises estatísticas, razão pela qual
não foram realizadas no presente trabalho.
A análise da estrutura dimensional da presente escala foi feita através da análise de consistência interna dos itens das subescalas identificadas
no estudo original, desta forma retendo apenas
os itens que se mostraram consistentes em relação às subescalas. Além disso, a análise comparativa das correlações das subescalas como o escore total e suas intercorrelações nos forneceu um
bom indício da validade de construto desta escala. Quanto à validade concomitante da presente
escala, ela só poderá ser verificada após a validação, para o Brasil, de uma escala que avalie um
construto semelhantes ao do ILSS. No caso da versão original do ILSS21, a validade concomitante foi
analisada através de sua correlação com uma
subescala da escala Nosie, que ainda não foi validada para o Brasil.
A escala ILSS-BR é um instrumento de medida
que poderá ser importante para o planejamento
e a avaliação de programas relacionados à reinserção social de pacientes psiquiátricos. Uma avaliação prévia dos pacientes com esta escala poderá fornecer informações básicas sobre seu nível
de funcionamento cotidiano que são relevantes
para o planejamento dos recursos necessários para
sua reinserção na comunidade, tanto em termos
de tipo de moradia e tipo de suporte social necessário quanto das intervenções e atividades a
serem implementadas para a sua integração social. Além disso, avaliações posteriores dos pacientes com esta escala poderão servir para monitorar
a sua evolução quanto ao nível de funcionamento cotidiano, evidenciando assim seu grau de
adaptação aos programas de reinserção social
implementados1.
Do mesmo modo, esta escala poderá ser útil
também em ensaios clínicos, visando a avaliar os
efeitos de novos tratamentos medicamentosos,
uma vez que ela poderá fornecer informações sobre o impacto dos medicamentos no nível de funcionamento dos pacientes nas atividades cotidiaJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
151
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
nas, de modo a indicar em quais áreas de habilidades da vida cotidiana eles apresentam uma
melhora com a introdução de um determinado
medicamento e também se algumas delas sofrem
uma deterioração em função de efeitos colaterais.
A concepção sobre a avaliação dos efeitos de tratamentos medicamentosos tem se ampliado nos últimos anos, de modo a incluir não somente uma
avaliação da redução dos sintomas mas também
do impacto dos medicamentos em diversos aspectos da vida dos pacientes, entre outros, o seu nível
de funcionamento independente na vida cotidiana, que contribui para sua qualidade de vida15, 16.
A presente escala poderá ser relevante igualmente para fornecer informações pertinentes à avaliação
de serviços de saúde mental, evidenciando o impacto
destes serviços no nível de habilidades de vida independente dos pacientes. Os próprios objetivos dos
serviços de saúde mental devem incluir, segundo
Mercier (1994), não só responder às necessidades
dos pacientes mas também desenvolver suas habili-
dades de modo a aumentar sua funcionalidade no
seu meio ambiente.
A Organização Mundial de Saúde tem estimulado a prática da avaliação contínua dos serviços de
saúde mental com o objetivo de promover uma melhor qualidade destes serviços22. Entretanto uma tal
avaliação requer o desenvolvimento de instrumentos
de medida válidos e fidedignos, capazes de fornecer
informações confiáveis e pertinentes. Alguns autores
têm questionado a generalidade e validade dos resultados de avaliações de serviços que utilizaram questionários não-validados, muitas vezes apenas traduzidos, cujas propriedades psicométricas não foram
investigadas e que não foram submetidos a procedimentos padronizados de adaptação transcultural17, 18.
No nosso contexto há uma carência de instrumentos de medida válidos e fidedignos para avaliar
o impacto dos serviços, em particular no nível de
funcionamento dos pacientes psiquiátricos com distúrbios graves e persistentes. A escala ILSS-BR certamente servirá para preencher esta lacuna.
Referências
1. Bandeira M, Lesage A, Morissete R. Desinstitucionalização: importância da infra-estrutura comunitária de saúde mental.
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5. Fleck M, Louzada S, Xavier M, Chachamovich E, Vieira G, Santos L, Pinzon V. Desenvolvimento da versão em português
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Psychiatry 1998; 155: 1087-91.
13. Lima LA, Lovisi G, Morgado AF. Questões da bioética no contexto
da reforma psiquiátrica. J Bras Psiquiatr 1999; 48(1): 21-27.
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vie subjective en psychiatrie. In: Terra JL, editor. Qualité de
vie subjective et santé mentale: Aspects conceptuels et
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Psychiatrie. Paris: Economica; 1994.
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Jornal Brasileiro de Psiquiatria
Endereço para correspondência
Lúcia Abelha Lima
Núcleo de Pesquisa – Centro de Estudos
Instituto Municipal de Assistência
à Saúde Juliano Moreira
Estrada Rodrigues Caldas 3.400
CEP 22713-370 – Rio de Janeiro-RJ
e-mail: [email protected]
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153
Lima et al.
Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
Anexo – Inventário de Habilidades de Vida
Independente (ILSS-BR)
Este questionário tem como finalidade obter seu ponto de vista sobre o ajustamento social de seu filho, parente ou residente em sua casa
ou em serviços assistenciais. O ajustamento social pode ser avaliado pela maior ou menor capacidade de uma pessoa cuidar de si mesma e de
seus interesses, como, por exemplo, alimentar-se, arrumar-se, realizar atividades domésticas e cuidados com a saúde, gerenciar suas finanças,
utilizar transporte, realizar atividades de lazer e trabalhar. Este questionário abrange todas essas áreas de vida independente.
Por favor, utilize a escala abaixo para marcar cada item. Observe com atenção enquanto você realiza sua classificação de cada um dos
84 itens listados neste questionário. Classifique cada um dos 84 itens de acordo com a freqüência de ocorrência deste comportamento,
em particular durante o último mês.
Cada item escolhido será mar
cado no questionário pelo entr
evistador
marcado
entrevistador
evistador..
Nome da pessoa que está sendo avaliada
Nome da pessoa entrevistada
Relação entre o entrevistado e a pessoa que está sendo avaliada
Data
Escala: Freqüência da ocorrência do comportamento
Para cada item deste questionário, por favor, registre na coluna à direita do questionário a freqüência da ocorrência de cada comportamento durante o último mês, segundo a escala abaixo. Se não houve oportunidade para o indivíduo se comportar de determinada
forma (por exemplo, utilizar o ônibus quando não houve disponibilidade desse serviço), registre NA (não se aplica). Se não houve
necessidade de que o indivíduo se comportasse desta forma (isto é, o parente ou encarregado das instalações, por exemplo, realiza as
tarefas domésticas), também registre NA.
0_____________________1_____________________2_____________________3_____________________4
nunca
algumas vezes
com freqüência na maioria das vezes
sempre
I. Alimentação
Freqüência do co
mp
ortamento no último mês
comp
mportamento
154
1.
Alimenta-se asseadamente (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
2.
Usa utensílios adequados para se alimentar
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Alimenta-se em ritmo normal, sem engolir às pressas nem
demorar demais (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
4.
Mastiga com a boca fechada (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Tira comida dos pratos de outras pessoas sem permissão
0
1
2
3
4
6.
Come a quantidade de alimento apropriada
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
7.
Demonstra ter bons hábitos nutricionais (isto é, tem uma dieta
bem equilibrada – não vive de doces e refrigerantes)
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
8.
Come comida que foi descartada (por exemplo,
do chão ou do lixo)
0
1
2
3
4
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Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
II. Cuidados pessoais
1.
Toma banho usando sabonete todos os dias
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
2.
Lava os cabelos pelo menos uma vez por semana
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Usa desodorante diariamente (sem supervisão)
0
1
2
3
4
4.
Escova ou penteia os cabelos diariamente
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Homem: barbeia-se quando necessário ou mantém
sua barba aparada (sem supervisão)
0
1
2
3
4
6.
Providencia o corte ou o penteado dos cabelos quando
necessário (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
7.
Escova os dentes ou dentadura ou faz higiene bucal pelo menos
uma vez ao dia (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
8.
Despe-se em horas e locais apropriados
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
9.
Veste-se em horas e locais apropriados
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
10. Conserva-se limpo(a) e arrumado(a) o dia todo
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
11. Separa apropriadamente roupas sujas para serem lavadas por
ele (ela) ou por outras pessoas (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
12. Veste-se apropriadamente quanto ao clima ou eventos
sociais (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
13. Quebra a etiqueta social em geral (por exemplo, coça partes
inadequadas do corpo em público, arrota em público
sem se desculpar)
0
1
2
3
4
III. Atividades domésticas
1.
Arruma sua cama diariamente (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
2.
Mantém o quarto ou espaço individual limpo
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Troca a roupa de cama sempre que necessário
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
4.
Recolhe objetos que caem no chão
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Limpa líquidos derramados (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
6.
Ocupa-se da arrumação de sua moradia quando necessário
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
7.
Realiza tarefas domésticas que lhe foram atribuídas
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
8.
Coloca a roupa suja no tanque ou na máquina de lavar
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
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Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
9.
Usa a quantidade correta de sabão para lavar a roupa
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
10. Coloca as roupas para secar (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
11. Guarda as roupas limpas (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
12. Dobra e/ou pendura as roupas (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
IV. Preparo e armazenamento dos alimentos
1.
Prepara refeições simples que não precisem ser misturadas
ou cozidas (por exemplo, sanduíches, saladas ou cereal com leite)
0
1
2
3
4
2.
Prepara e cozinha refeições simples (por exemplo, ovos fritos,
macarrão, etc.) (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Guarda os alimentos apropriadamente
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
4.
Pode identificar e jogar fora alimentos estragados
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Limpa a mesa (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
6.
Lava e enxuga a louça e os utensílios de cozinha (caneca, prato, etc.)
ou usa máquina de lavar louça (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
7.
Guarda os utensílios de cozinha (caneca, prato, etc.)
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
V. Saúde
156
1.
Relata apropriadamente seus problemas físicos
(sem exagerar ou omitir)
0
1
2
3
4
2.
Cuida de seus próprios problemas físicos mais leves
de forma apropriada
0
1
2
3
4
3.
Consegue ajuda de serviços públicos adequados (INSS, bombeiros,
polícia, vigilância ou outros recursos), assistente social, médico,
dentista, família, quando necessário
0
1
2
3
4
4.
Segue a orientação dos serviços acima citados
0
1
2
3
4
5.
Fuma respeitando as regras de segurança
0
1
2
3
4
6.
Aceita tomar a medicação que lhe é administrada
0
1
2
3
4
7.
Toma seu medicamento sem supervisão (horários e dosagens)
0
1
2
3
4
8.
Contata serviços públicos (por exemplo, polícia, bombeiros,
instituições para desabrigados) para fazer queixas ou pedidos
impróprios (por exemplo, entra na delegacia para pedir uma carona
para casa, telefona diariamente para instituições para desabrigados
para relatar variados problemas sem importância)
0
1
2
3
4
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Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
VI. Administração do dinheiro
1.
Compra a quantidade adequada de mercadorias
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
2.
Compra suas próprias roupas (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Compra objetos de uso pessoal (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
4.
Providencia o conserto de roupas e objetos
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Paga contas (inclusive aluguel, alimentos, roupas, transporte,
atividades de lazer e bens pessoais) (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
6.
Administra adequadamente seu orçamento (isto é, planeja suas
despesas de acordo com seus recursos financeiros)
0
1
2
3
4
7.
Procura ajuda ou informação, quando necessário, para planificação
de seu orçamento (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
8.
Compreende os termos tutela ou curadoria (se for aplicável ao caso)
0
1
2
3
4
9.
Compra itens essenciais antes de gastar dinheiro com supérfluos
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
10. Utiliza o relógio para organizar sua programação diária
0
1
2
3
4
11. Devolve material defeituoso ou troca mercadorias em lojas
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
12. Confere troco em lojas (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
VII. Transporte
1.
Anda de ônibus (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
2.
Lê itinerários de ônibus (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Vai a pé a locais da vizinhança (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
4.
Respeita as normas para pedestres (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Informa-se e segue as indicações de um trajeto
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
6.
Faz viagens de longa distância (de ônibus, trem ou avião)
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
7.
Comporta-se apropriadamente em ônibus, trens ou aviões
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
VIII. Lazer
1.
Ocupa-se regularmente com um passatempo
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
2.
Passeia fora de seu local de residência
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Cuida do jardim ou quintal (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
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4.
Ouve rádio ou vê televisão (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Escreve cartas (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
6.
Assiste a atividades esportivas (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
7.
Joga cartas ou outros jogos de mesa (sem necessidade de orientação) 0
1
2
3
4
8.
Lê jornais habitualmente (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
9.
Vai a reuniões de organizações cívicas ou outras
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
IX. Emprego
158
1.
Procura emprego através de anúncios classificados
0
1
2
3
4
2.
Contata empregadores em potencial para avaliar possíveis
oportunidades de trabalho (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
3.
Contata amigos/outros pacientes/assistente social/agência para
indicações de empregos (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
4.
Participa de entrevistas de seleção para obter emprego
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
5.
Tem aspirações realísticas de emprego
0
1
2
3
4
6.
Sai na hora certa para os compromissos
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
7.
Sai na hora certa para o emprego
(sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
8.
Chega na hora certa em seu emprego e respeita o horário
de almoço (sem necessidade de orientação)
0
1
2
3
4
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Validação transcultural do Inventário de Habilidades de Vida Independente para pacientes psiquiátricos
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ou da lista de Descritores de Ciências da Saúde, publicada
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Modelo
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devidamente credenciado.” (incluir nome completo, endereço postal, telefone, fax, e-mail e assinatura de todos os autores).
Avaliação por pareceristas
(peer review)
• Todos os manuscritos submetidos ao JBP serão avaliados
Referências
Devem ser numeradas e apresentadas em ordem alfabética. Deve ser usado o estilo dos exemplos que se seguem:
Artigos
• Akiskal HS, Maser JD, Zeller PJ, Endicott J, Coryell W, Keller
M, Warshaw M, Clayton P, Goodwin F. Switching from
‘unipolar’ to bipolar II. An 11-year prospective study of
clinical and temperamental predictors in 559 patients. Arch
Gen Psychiatry 1995; 52:114-23.
Livro
• Goodwin FK, Jamison KR. Manic-Depressive Illness. New
York: Oxford University Press; 1990.
Capítulo de livro
• Heimberg RG, Juster HR. Cognitive-behavioral treatments:
literature review. In: Heimberg RG, Liebowitz MR, Hope
DA, Schneier FR, editors. Social phobia – Diagnosis
assessment and treatment. New York: The Guilford Press;
1995, p. 261-309.
J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 2 • 2003
159
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160
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References
Should be numbered and listed in alphabetical order. The
following styles for the references should be employed.
Articles
Akiskal HS, Maser JD, Zeller PJ, Endicott J, Coryell W, Keller
M, Warshaw M, Clayton P, Goodwin F. Switching from
‘unipolar’ to bipolar II. An 11-year prospective study of
clinical and temperamental predictors in 559 patients. Arch
Gen Psychiatry 1995; 52:114-23.
Book
Goodwin FK, Jamison KR. Manic-Depressive Illness. New
York: Oxford University Press; 1990.
Book chapter
Heimberg RG, Juster HR. Cognitive-behavioral treatments:
literature review. In: Heimberg RG, Liebowitz MR, Hope
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assessment and treatment. New York: The Guilford Press;
1995, p. 261-309.