fertilidade feminina - Biblioteca
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Revista bimestral de ciência e investigação em saúde Nº6 - Ano 2007 - 4€ | Julho/Agosto Criopreservação: Novas soluções para a (in) fertilidade feminina Cod. Barras Células estaminais e o futuro da medicina regenerativa Projecto de intervenção em crianças e adolescentes obesos Campus Académico do ISAVE Quinta de Matos - Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Tel. 253 639 800 Fax. 253 639 801 Email: [email protected] www.isave.pt Licenciaturas em: Enfermagem Fisioterapia Terapêutica da Fala Farmácia Higiene Oral Prótese Dentária Radiologia Análises Clínicas e Saúde Pública Editorial Educar para a saúde começa no nosso querer. Parte de cada um de nós construirmos uma vida sã em nós e nos outros. A Ser Saúde quer criar os laços afectivos da educação em saúde para profissionais, apresentar uma visão diferente e global do que será o futuro em saúde. Unida ao ISAVE, criada num espaço verde, a Ser Saúde fomenta o equilíbrio entre o saber em saúde junto dos profissionais. Não coloca barreiras, abre o caminho, deixa cada texto educar na grandeza do que apresenta e descreve. No aumento contínuo de maus hábitos de saúde, no aumento de doenças que limitam a qualidade de vida das pessoas, são os profissionais que têm de alargar o âmbito de intervenção, saber, procurar, alimentar uma procura diversa em diferentes temas de saúde, criando a unidade entre profissionais em sabedoria que levará a uma intervenção junto das pessoas mais atenta, cuidada, humana. A Ser Saúde, sem ilusões, cria na diversidade a unidade do saber, da sabedoria. Na ciência, a Ser Saúde alimenta os profissionais de saúde que procuram construir a harmonia entre a prática de saúde e todo o ser humano, no fundo, o Ser Saúde… Isabela Vieira 1 10 24 Sandra Morais Cardoso As células estaminais e o futuro da medicina regenerativa 2 As células estaminais são células indiferenciadas com capacidade proliferativa ilimitada que se podem diferenciar em diversos tipos celulares em resposta a diferentes estímulos. A célula estaminal por excelência é o zigoto; este e as células resultantes das duas primeiras divisões são células totipotenciais, isto é, células que podem dar origem a um indivíduo, pois podem diferenciar-se em todos os tipos celulares do organismo e ainda nas células que compõem os tecidos extra-embrionários. Entrevista a Maria Arminda Costa Enfermagem Ajudar os outros a ser competentes A Enfermagem é a arte e a ciência de cuidar pessoas. Actualmente, o enfermeiro é um profissional altamente qualificado, com a qualificação dirigida para a área de cuidar pessoas. O seu atributo profissional inclui aspectos técnicos e humanos e orienta todo o trabalho que faz para que as pessoas os integrem na sua saúde. Tudo aquilo que seja dirigido à construção da saúde pelas pessoas é um trabalho onde o enfermeiro pode e deve estar. 20 38 Maria José Verdasca, Zélia Vaz Obesidade infantil – prevalência em idade pré‑escolar A consulta de vigilância é um espaço privilegiado para esta avaliação; numa perspectiva de prevenção, aos pais pode ser dada informação sobre os hábitos alimentares mais adequados e a necessidade de actividade física, adaptada segundo o interesse de cada criança e com estas tentar negociar medidas correctivas. Raquel Brito, Teresa Almeida Santos, João Ramalho-Santos Criopreservação de ovócitos e tecido ovárico: Implicações para a fertilidade É absolutamente necessário discutir com os doentes oncológicos as opções disponíveis em termos de fertilidade e de possibilidades reprodutivas futuras. Esta realidade é particularmente importante nas mulheres jovens com cancro da mama, antes de proceder a quimioterapia. 90 Fábio Salgado, Carla Xavier 56 Maria Júlia Rodrigues Percepção da qualidade de vida dos idosos maiores de 75 anos no concelho de Vila Nova de Gaia Estratégias educativas para a mudança O envelhecimento populacional constitui uma realidade e um desafio às sociedades modernas. A sociedade portuguesa, à semelhança de outros países, vive alterações demográficas com reflexos profundos no tecido social, familiar, laboral e educativo. 70 Célia Franco O álcool e o homem A relação entre o álcool e o Homem é complexa e ambivalente. O consumo de álcool continuado frequentemente leva ao adoecer de forma lenta e insidiosa, sendo difícil de entender pelo doente e de diagnosticar pelo médico. O diagnóstico atempado de situações de beber nocivo ou de dependências em situação inicial pelos médicos de família é fundamental para prevenir o agravamento das situações e o aparecimento de danos irreversíveis. Próteses parciais removíveis acrílicas funcionais Este trabalho visa dar a conhecer uma técnica simples que vem incrementar a qualidade funcional das próteses parciais acrílicas, que são próteses de baixo custo, ainda hoje muito solicitadas por uma grande maioria da população. 98 Sónia Pereira Projecto de intervenção em crianças e adolescentes obesos A obesidade é um problema de saúde que afecta uma elevada percentagem da população mundial. É considerada um problema grave, com uma prevalência extremamente alta e é reconhecida como um dos maiores problemas de saúde das sociedades modernas civilizadas. 114 Gustavo Afonso, Lara Costa, Marta Miranda Apósitos para tratamento de feridas em meio húmido A selecção do material a utilizar no tratamento local deve ter por base as orientações técnicas existentes e o tratamento de feridas deve ser efectuado em equipa multidisciplinar. Poster Miguel Lopes, Sérgio Tomé Traumatismo dentário O que fazer? Se o dente… 3 Actualidade I Congresso Luso-Galaico de Gerontologia no ISAVE LK Comunicação 4 O ISAVE organizou o I Congresso Luso-Galaico de Gerontologia – Olhar para Intervir, nos dias 19 e 20 de Abril, nas novas e recentes instalações. Este encontro culminou num momento de reflexão e de conhecimento acerca de um fenómeno tão pertinente na actualidade: o Envelhecimento Humano. Foi proporcionado um cruzamento de domínios e saberes na área da Gerontologia que contou com a presença de um conjunto de investigadores nacionais, oriundos de várias instituições/unidades de ensino superior que se destacam pelos trabalhos realizados nesta área (Unidade de Investigação e Formação de Adultos e Idosos – UNIFAI, Universidade de Aveiro, Escola de Enfermagem Calouste Gulbenkian de Braga, Universidade do Minho e Faculdade de Medicina de Lisboa), e internacionais (Universidade de Santiago de Compostela, Universidade da Coruña e Universidade de Vigo). Foram apresentados trabalhos de docentes do ISAVE nas diversas áreas: fisioterapia, prótese dentária, radiologia e farmacologia. O perfil temático do congresso iniciou com uma abordagem introdutória ao estudo e compreensão do envelhecimento biológico, seguindo para uma actualização dos mais recentes avanços na investigação e educação em Gerontologia. No sentido de ir ao encontro de necessidades dos palestrantes, este momento contou com um painel unicamente destinado à Promoção de Saúde da Pessoa Idosa. Por fim, foram abordadas as várias perspectivas no âmbito do envelhecimento psicossocial. Conscientes de que foi um momento bastante proveitoso para todos os participantes, o ISAVE marcou com distinção um dos acontecimentos mais emblemáticos nesta área em registo nacional. Mafalda Duarte, membro da Comissão Organizadora do Congresso Agenda JULHO/AGOSTO 6 V Jornadas de Pneumologia em Medicina Familiar dos Açores e Continente 05 de Julho Angra do Heroísmo I Congresso Internacional de Gerontologia: (Con)vivências do corpo à alma 19 de Julho Lisboa Seminários de Actualização em Farmacoterapia - Métodos Qualitativos na Avaliação da Farmacoterapia: Quais e como Utilizar 06 de Julho Auditório do Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra) II Congresso Nacional da Associação Portuguesa de Podologia 20 de Julho Póvoa de Varzim III Jornadas de Dermatologia de Contacto 07 de Julho Hospital Santa Maria, edifício Egas Moniz, Anfiteatro Egas Moniz Contributo da Avaliação Motora nas Práticas de Intervenção Precoce 20 e 21 de Julho ISAVE, Póvoa de Lanhoso Seminário de Drenagem Linfática 13 de Julho Instalações IPN (Arca D’Água) Seminário de Imagiologia 21 de Julho Instalações IPN (Arca D’Água) 11th EFNS Congress 25 de Agosto Brussels, Belgium I Encontro de Profissionais do ISAVE 2002/2206 14 de Julho ISAVE, Póvoa de Lanhoso Director Eugénio Pinto [email protected] [email protected] Editores Isabela Vieira Rui Castelar Propriedade Ensinave Educação e Ensino Superior do Alto Ave Campus Académico do ISAVE Quinta de Matos – Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso NIF – 504 983 300 Director de arte e grafismo Ângelo Mendes [email protected] Impressão Orgal, impressores Rua do Godim, 272 4300-236 Porto Publicidade Celmira Dias Tiragem 5 mil exemplares / bimestral Nº de Registo na ERC 124994 ISSN 1646-5229 Depósito Legal 246971/06 Contactos Ser Saúde Campus Académico do ISAVE Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Quinta de Matos – Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253 639 800 Fax – 253 639 801 www.isave.pt [email protected] [email protected] _____________________________________ Os artigos publicados nesta edição da Ser Saúde são da responsabilidade dos autores. Proibida a reprodução parcial ou total, sob qualquer forma, sem prévia autorização escrita. Prémio Ser Saúde/ISAVE O ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave, com desejo de contribuir para o desenvolvimento da ciência e investigação em saúde, confere anualmente um prémio denominado Prémio Ser Saúde/ISAVE de ciência e investigação em saúde. O Prémio, no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros), será atribuído ao melhor trabalho ou conjunto de trabalhos publicados durante 2006 e 2007 na Ser Saúde. O vencedor do Prémio Ser Saúde/ISAVE será conhecido até 31 de Março de 2008. O Prémio será entregue a 19 de Abril de 2008. Júri do Prémio: Amílcar Falcão, Daniel Serrão, Maria Júlia Silva Lopes, Rui L. Reis, Susana Magadán Regulamento em www.isave.pt Contactos: ISAVE | Campus de Geraz - Quinta de Matos | Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253.639.800 | Fax – 253.639.801 Email - [email protected] | [email protected] Conselho Científico Ser Saúde 8 Adelino Correia Adília Rebelo Adrian Llerena A. Fernandes da Fonseca Alberto Salgado Alexandre Antunes Alexandre Castro Caldas Alexandre Quintanilha Alves de Matos Amílcar Falcão Ana Preto António Miranda António Paiva António Rosete Armando Almeida Arminda Mendes Costa Artur Manuel Ferreira Berta Nunes Carla Matos Carlos Alberto Bastos Ribeiro Carlos Albuquerque Carlos Pedro Castro Carlos Pereira Alves Carlos Valério Carmen de la Cuesta Catarina Tavares Célia Cruz Célia Franco Constança Paúl Daniel Montanelli Daniel Pereira da Silva Daniel Serrão Delminda Lopes de Magalhães Dinora Fantasia Duarte Pignatelli Elsa Pinto Eurico Monteiro Fátima Francisco Faria Fátima Martel Fernando Azevedo Fernando Schmitt Fernando Ventura Freire Soares Guilherme Macedo Gustavo Afonso Gustavo Valdigem Helena Alves Helena Martins Henrique de Almeida Henrique Lecour Isabela Vieira João Costa João Luís Silva Carvalho João Pedro Marcelino João Queiroz João Ramalho Santos Joaquim Faias Jónatas Pego Jorge Correia Pinto Jorge Delgado Jorge Ferreira Jorge Marques Jorge Soares Manuela Vieira da Silva Marco Oliveira Margarida Soveral Gonçalves Mari Mesquita Maria Júlia Silva Lopes Maria Manuela Rojão Maria Margarida Dias Mário Rui Araújo Mário Simões Marta Marques Marta Pinto Miguel Álvares Pereira Paulo Daniel Mendes Pedro Azevedo Pedro Vendeira Piedade Barros Querubim Ferreira Ramiro Délio Borges de Menezes Ramiro Veríssimo Raquel Andrade Regina Gonçalves Jorge Sousa Pinto José Amarante José Carlos Lemos Machado José Eduardo Cavaco José Eduardo Lima Pinto da Costa José Luís Dória José Manuel Araújo José Matos Cruz José M. Schiappa José Rueff Laura Simão Liliana Osório Lisete Madeira Lucília Norton Luís Basto Luís Cunha Luís Martins Luiza Kent-Smith Manuel Domingos Manuel Mendes Silva Manuel Teixeira Veríssimo Rosa Martins Rui L. Reis Rui de Melo Pato Rui Nunes Sandra Cardoso Sandra Clara Soares Sérgio Branco Sérgio Gonçalves Sérgio Nabais Sónia Magalhães Susana Magadán Tiago Barros Tiago Osório de Barros Wilson Abreu Veloso Gomes Victor Machado Reis Virgílio Alves Tratamentos Domiciliários Aerosolterapia * Oxigenoterapia * Ventiloterapia Screnning Domiciliário * Aspirador de Secreções Ventilação Volumétrica * Apneia de Sono Apneia do Lactente * Pulsoximetria * Coughassist Gasin – Gases Industriais S A Rua do Progresso, 53 4451-801 Leça da Palmeira Tel.: 229998300 Fax.: 229998317 EN 249-3-KM 1,8 –D S. Marcos 2735-307 Cacém Tel.: 214270000 Fax.: 214264656 9 Sandra Morais Cardoso 10 Bióloga, Investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular, Professora Assistente da Faculdade de Medicina de Coimbra AS CÉLULAS ESTAMINAIS e o futuro da medicina regenerativa Da mitologia grega vem a história de Prometeu, filho de Jápeto, um dos doze Titãs filhos dos primitivos senhores do universo, Gaia e Urano. Como castigo por ter enviado o fogo para a Humanidade, Zeus ordenou que Prometeu fosse acorrentado a uma rocha e enviou uma águia para lhe comer um bocado do fígado todos os dias. No entanto, o fígado de Prometeu foi capaz de se regenerar todos os dias, permitindo que este sobrevivesse. Actualmente, cientistas e médicos esperam que este conceito lendário se torne numa realidade através do desenvolvimento de terapias que permitam a substituição de células ou tecidos danificados e/ou envelhecidos no corpo humano. A investigação em células estaminais é hoje uma realidade que irá permitir, num futuro próximo, a utilização destas células em novas terapias humanas que visam a cura ou diminuição da progressão de doenças até agora incuráveis. 11 12 O que são células estaminais? As células estaminais são células indiferenciadas com capacidade proliferativa ilimitada que se podem diferenciar em diversos tipos celulares em resposta a diferentes estímulos. A célula estaminal por excelência é o zigoto; este e as células resultantes das duas primeiras divisões são células totipotenciais, isto é, células que podem dar origem a um indivíduo,pois podem diferenciar-se em todos os tipos celulares do organismo e ainda nas células que compõem os tecidos extra-embrionários (Slack, 2000). Podemos ainda considerar as células pluripotentes, que se podem diferenciar em todos os tipos de células provenientes das três camadas germinativas (ectoderme, mesoderme e endoderme), mas não no indivíduo (Alison et al., 2002; Ulloa-Montoya et al., 2005). As células que só têm a capacidade de se diferenciar num tecido ou camada germinativa específica denominam-se de multipotentes. Uma outra categoria de células são as unipotentes que, embora apresentem elevada capacidade de auto-renovação, só originam um tipo celular específico (Alison et al., 2002). Que tipo de células estaminais se conhecem? Podemos considerar três grupos de células estaminais: células estaminais embrionárias, células estaminais da placenta e do cordão umbilical e células estaminais adultas. As células estaminais embrionárias (células ES, do inglês Embryonic Stem) são células que derivam da massa celular interna do blastocisto (Figura 1). São consideradas células pluripotentes e obtêm-se no quinto dia de desenvolvimento embrionário mesmo antes da implantação do blastocisto à parede do útero (Figura 2). Está descrito que estas células mantêm a capacidade de auto-renovação, mesmo passados muitos meses em cultura, mantendo a habilidade de se diferenciarem desde células de músculo a células nervosas e sanguíneas (Alison et al., 2002; Ulloa-Montoya et al., 2005). Podemos considerar três grupos de células estaminais: células estaminais embrionárias, células estaminais da placenta e do cordão umbilical e células estaminais adultas. 13 Figura 1. Blastocisto humano (crédito fotográfico de M. J. Conoghan). Fotografia de um blastocisto humano préimplantação no útero. Observa-se a massa celular interna da qual se podem obter as células estaminais embrionárias (seta). Figura 2. Obtenção de células estaminais embrionárias (adaptado de Terese Winslow, 2006). Figura representativa da obtenção de uma cultura de células estaminais embrionárias pluripotentes. 14 Emboras as células ES sejam as células estaminais com maior potencial quer na investigação básica, no estudo da diferenciação e função dos tecidos humanos, quer na prática clínica, no tratamento de diversas patologias, o facto de serem obtidas de embriões humanos levanta problemas éticos. Na tentativa de ultrapassar este problema surgiu o interesse de obter células estaminais alternativas às embrionárias. Recentemente têm vindo a ser isoladas células estaminais da placenta e do cordão umbilical que são uma fonte de células estaminais não embrionárias, que possuem uma grande concentração de células estaminais hematopoiéticas, para além de células estaminais mesenquimais e células estaminais progenitoras endoteliais. Desde o início deste milénio algumas empresas em Portugal dedicaram-se à recolha e obtenção deste tipo de células que podem ser colhidas e processadas logo após o nascimento, num processo totalmente seguro e indolor para a mãe e para o recém-nascido. O potencial terapêutico destas células, como a sua utilização mais imediata, e já realizada no tratamento de diferentes cancros do sangue, ou futuramente virem a ser utilizadas em terapêuticas ainda experimentais como no tratamento da diabetes, lúpus, ou nas doenças neurodegenerativas, tem sido um dos argumentos que estas empresas utilizam para cativarem os portugueses. Para além das células estaminais da placenta e do cordão umbilical têm vindo a ser investigadas fontes de células estaminais adultas (neuronais, medula óssea e sangue, progenitoras endoteliais, músculo esquelético, percursoras epiteliais da pele e do sistema digestivo, pâncreas e fígado). Este tipo de células estaminais, embora preencham os critérios atribuídos às células estaminais, têm uma capacidade de auto-renovação e diferenciação mais restrita que as células ES. Contudo, estudos recentes demonstraram que estas células têm a capacidade de se diferenciar nos diferentes tipos celulares das três camadas germinativas após remoção do seu tecido de origem (UlloaMontoya et al., 2005). As células estaminais adultas mais estudadas são as células hemato- Um dos problemas associado à utilização de células estaminais é que estas, teoricamente, podem dar origem a cancro. As células estaminais adultas permanecem no organismo durante um período de tempo alargado, podendo acumular mutações que levam ao desenvolvimento de tumores. poiéticas que dão origem às células do sangue (eritrócitos, plaquetas, linfócitos e granulócitos) e podem ser obtidas pós-natalmente, a partir da medula óssea, ou do sangue periférico mobilizado (Domen et al., 2006). Desde 1956 que três diferentes laboratórios demonstraram que ao injectarem células da medula óssea a ratinhos cujo sistema hematopoiético tinha sido destruido por radiação, ocorria uma regeneração do sistema que forma o sangue (Ford et al., 1956). Um outro tipo de células estaminais adultas que tem vindo a ser muito investigado são as células estaminais neuronais; apresentam as mesmas características de auto-renovação e de diferenciação semelhante a qualquer outro tipo de célula estaminal adulta (Panchision et al., 2006). Estas células têm a capacidade de originar neurónios e células da glia (astrócitos e oligodendrócitos) (Temple, 2001) e podem ser obtidas na zona subventricular do ventrículo lateral e na camada subgranular do giro dentado do hipocampo (Doetsch, 2003). Embora existissem dados desde os anos 60 que apontavam para que novas células nervosas pudessem ser formadas (neurogénese) nos cérebros de mamíferos adultos, só nos anos 90 é que se começou a investigar este facto no contexto da terapêutica de substituição celular aplicada a várias doenças neurodegenerativas (Panchision, 2006). 15 Aplicação da terapia celular na prática clínica Como as células estaminais têm a capacidade de se dividirem por períodos indefenidos, no caso das células estaminais adultas durante a vida do organismo, e porque em determinadas condições, ou devido a diferentes sinais, dão origem às diferentes células do organismo, podem estar na génese da investigação da função dos tecidos humanos. Podem ainda ser utilizadas nos testes de segurança e eficácia de novos medicamentos, como, por exemplo, nos testes de novas drogas cardíacas (Figura 3), podendo também ser utilizadas nos transplantes terapêuticos de doenças degenerativas. 16 Muitas das doenças humanas são causadas pela morte ou disfunção de um ou poucos tipos de células como, por exemplo, as células que produzem insulina, no caso da diabetes, ou os neurónios dopaminérgicos, no caso da doença de Parkinson. A substituição destas células pode oferecer uma cura ou tratamento eficaz que se irá manter ao longo da vida. Embora já se tenham realizados vários ensaios clínicos utilizando o transplante de células estaminais, ainda faltam muitos anos de investigação básica para que esta terapêutica possa ser utilizada como procedimento “standart” na prática clínica. A aplicação de terapias de substituição celular aplicadas às doenças auto-imunes tem sido testada. O sistema imunológico tem como função distinguir os mais variados componentes do próprio organismo dos componentes de organismos invasores, de modo a que possa combater as infecções provocadas por estes. Quando falha no reconhecimento dos componentes celulares do próprio e os ataca e destrói, pode-se desenvolver uma doença auto-imune, por exemplo a esclerose múltipa, a diabetes tipo I, que são doenças que involvem só um orgão ou tecido (mielina ou as células dos ilhéus beta do pâncreas), ou o lúpus, doença que se caracteriza pelo ataque imunitário a diferentes tecidos ou orgãos.Traynor e colegas demonstraram em 2000 que o transplante autólogo de células estaminais hematopoiéticas em sete doentes com lúpus permitiu que a doença permanece-se inactiva durante três anos sem a necessidade de medicamentos imunosupressores. No caso da diabetes, tem sido difícil induzir a diferenciação das células estaminais em células produtoras de insulina.A descoberta dos métodos para isolar e crescer as células ES em 1998 trouxeram novas esperanças a doentes, cientistas e médicos para a cura da doença. Soria e colaboradores conseguiram manipular e diferenciar células ES de ratinho em células produtoras de insulina humana. Estas células foram implantadas em ratinhos diabéticos cujos sintomas da diabetes reverteram. No âmbito da doença de Parkinson, que se caracteriza pela morte dos neurónios dopaminérgicos da substância nigra, têm-se realizado terapias de substituição celular com tecidos neuronais fetais. A utilização destas células acarreta problemas de ordem ética e prática, devido à necessidade de utilizar muitos fetos para se poderem obter células neuronais dopaminérgicas (Lindval et al., 1989; Bjorklund e Lindvall, 2000). Para além dos problemas éticos, temos também de considerar a dificuldade de obter um fenótipo dopaminérgico in vitro, a morte das células transplantadas e a dificuldade com que estas formam sinápses (Panchision, 17 2006). Uma alternativa ao uso de neurónios de mesencéfalo de embriões com seis a nove semanas é a utilização de células estaminais embrionárias ou neuronais adultas.A utilização destas células é bem mais promissora que as de mesencéfalo fetal, pois podem-se ultrapassar as variações no tecido fetal que é sempre limitado e pouco caracterizado e que pode estar na base dos diferentes resultados obtidos em doentes de Parkinson. Figura 3. A promessa da investigação em células estaminais (adaptado de Terese Winslow, 2006). Figura representativa das diferentes áreas de investigação com células estaminais. 18 Cancro: uma doença das células estaminais Um dos problemas associado à utilização de células estaminais é que estas, teoricamente, podem dar origem a cancro. As células estaminais adultas permanecem no organismo durante um período de tempo alargado, podendo acumular mutações que levam ao desenvolvimento de tumores. As células estaminais, por terem a característica de proliferação ilimitada, podem facilmente adquirir um fenótipo tumurogénico. E, por fim, a utilização de células ES em transplantes terapêuticos pode levar ao aparecimento de teratocarcinomas (Figura 4), tumores derivados de células embrionárias pluripotentes. No entanto, não foram encontradas até hoje metástases após transplantes de células ES. Figura 4. Células de teratocarcinoma humano. (A) Células marcadas com Mito Tracker-red, detecção por microscopia de fluorescência; (B) Células detectadas por microscopia de contraste de fase (crédito fotográfico de A. Raquel Esteves). Problemas éticos relacionados com a utilização das células estaminais Embora a utilização de células ES obtidas de embriões com 5 dias possa ser eticamente condenável por alguns, as repercursões da sua utilização na terapia de várias doenças é de extrema importância para o futuro da medicina regenerativa. Portanto, devemos reflectir sobre a questão do que é a vida e se um embrião de 5 dias de desenvolvimento é um ser humano vivo que tem de ser protegido jurídica, ética e moralmente. Muitos cientistas acreditam que a vida humana começa com o desenvolvimento do sistema nervoso. E se pelos critérios de morte cerebral por declaração da Ordem dos Médicos prevista no artigo 12º da Lei nº 12/93 de 22 de Abril, um indivíduo morto é aquele que, entre outros parâmetros, não responde a um estímulo doloroso, não respira espontaneamente, então será cientificamente correcto dizer que um zigoto ou um embrião com 5 dias de gestação não é um indivíduo vivo, mesmo que tenha todo o potencial de vir a ser. Embora a investigação em células estaminais tenha como fim a utilização de células estaminais adultas que têm como vantagem óbvia a não rejeição dos transplantes por parte do doente, a obtenção e estudo das células ES tem-se revelado fundamental. A opinião que devemos formar acerca deste assunto leva-nos concerteza a auscultar aquilo que nós somos a título individual, mas também a descobrir o nosso papel na sociedade, e que, por vezes, uma atitude mais liberal no contexto social permite-nos defender com mais rigor os fundamentos ético/morais que espero que todos tenhamos. Referências bibliográficas Panchision DM, The National Institutes of Health resource for stem cell research, 2006; 35-43. Slack JM, Science, 2000; 287: 1431-3. Soria B, Roche E, Reig JA, Martin F, Novartis Found Symp., 2005; 265: 158-67. Temple S, Nature, 2001; 414: 112-7. Traynor AE, Schroeder J, Rosa RM, Cheng D, Stefka J, Mujais S, Baker S, Burt RK, Lancet, 2000; 356: 701-7. Ulloa-Montoya F, Verfaillie CM, Hum WS, J Biosci Alison MR, Poulsom R, Forbes S, Wright NA, J Pathol., 2002; 197: 419-23. Bjorklund A, Lindvall O, Nat Neurosci., 2000;3: 537-44. Doetsch F, Curr Opin Genet Dev., 2003;13: 543-50. Domen J,Wagers A,Weissman IL,The National Institutes of Health resource for stem cell research, 2006; 13-28. Ford CE, Hamerton JL, Barnes DWH, Louit JF, Nature, 1956; 177: 452-454. Lindvall O, Rehncrona S, Brundin P,Arch Neurol., 1989; 46: 615-631. Bioeng., 2005; 100: 12-27. 19 Maria José Verdasca ([email protected]) Médicas Centro de Saúde Dr. Joaquim Paulino, Rio de Mouro Zélia Vaz ([email protected]) 20 Obesidade infantil prevalência em idade pré-escolar 21 Introdução O Plano Nacional de Saúde 2004/2010 contempla o desenvolvimento de estratégias e intervenções no combate à obesidade. Sabe-se que o ganho de adiposidade na criança entre 5/6 anos é um indicador de risco, predispondo para a obesidade na idade adulta e para o aparecimento de doenças metabólicas. Material e métodos Análise retrospectiva das fichas do exame global de saúde dos 5/6 anos realizados em 2004. Percentil IMC: Foram utilizadas as tabelas de Percentil do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) publicadas em Maio 2000 (figura 1). População – crianças nascidas em 1998, inscritas no Centro de Saúde de Rio de Mouro (CSRM). Definições (segundo Direcção Geral de Saúde): Amostra – crianças que realizaram o exame global de saúde. Obesidade: IMC ≥ P95 Pré-obesidade: IMC ≥ P85 e < P95 Variáveis – sexo e Percentil do Índice Massa Corporal (IMC). 22 Figura 1 Referências 1) Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde 20042010.Volume II – Orientações Estratégicas. 1ªEdição. Lisboa: Direcção Geral de Saúde; 2004. 2) Rodrigo CP. Vigilância nutricional e intervención comunitária [on the internet]. Conferência Internacional de Obesidade Infantil; 2005 Nov 25-26; Coimbra. [cited 2006 Aug 25] http://www.fbb.pt/cioi/ 3) Rolland-Cachera MF, Maillot M, Deherger M, Bellisle F. Growth patterns and the risk of obesity [on the internet]. Conferência Internacional de Obesidade Infantil; 2005 Nov25 -26; Coimbra. [cited 2006 Aug 25] http://www.fbb. pt/cioi/ 4) Ministério da Saúde. Programa Nacional de Combate à Obesidade - Circular normativa nº03/DCDG. Lisboa: Direcção Geral de Saúde; 2005. 5) p://www.cdc.gov/growthcharts/ 6) http://www.who.int/chp/en/ Resultados Foram inscritas no Centro de Saúde 620 crianças em 1998 (306 do sexo feminino e 314 do sexo masculino) e 460 crianças realizaram o exame global em 2004, correspondendo a 74%, o que representa uma amostra significativa. Foram analisados 454 fichas sendo 227 do sexo feminino e masculino; 6 fichas não foram validadas por falta de registos. No quadro 1, apresenta-se a distribuição da obesidade pelo total de crianças e no quadro 2, a distribuição por sexo. Distribuição das Crianças por percentil IMC Quadro 1 Distribuição das Crianças por percentil IMC e Sexo Quadro 2 Conclusões A prevalência da obesidade encontrada foi 15%, sendo mais acentuada no sexo feminino. A pré-obesidade foi de 16%. Face a estes resultados é uma prioridade identificar as crianças obesas e em risco de obesidade,mesmo noutros grupos etários. A consulta de vigilância é um espaço privilegiado para esta avaliação; numa perspectiva de prevenção, aos pais pode ser dada informação sobre os hábitos alimentares mais adequados e a necessidade de actividade física, adaptada segundo o interesse de cada criança e com estas tentar negociar medidas correctivas. Reforçar o papel importante que cabe a toda a família neste processo. Promover acções educativas na escola e na comunidade nas áreas de nutrição e actividade física e implementar medidas preventivas necessárias a promover uma boa saúde. As crianças obesas em risco devem ser referenciadas. 23 Entrevista a Maria Arminda Mendes Costa Sendo a Enfermagem uma profissão que cuida de pessoas, neste cuidar existe um dever de rigor técnico e humano. Consciente de que as profissões não vivem isoladas, é fundamental a pessoa ser o centro dos cuidados e receber 24 o conhecimento para aprender a ter cuidado consigo e com os que a rodeiam. Neste sentido, a sustentabilidade do conhecimento é fundamental para o enfermeiro e para a Enfermagem. Enfermagem Também a formação deve estar centrada no estudante para «que ele aprenda a ver». É este o sentido de Bolonha ao acabar com as disciplinas fechadas e pretender um ensino mais globalizado e abrangente. É fundamental experimentar e, nas múltiplas áreas de investigação, a Enfermagem tem de ter campo onde o conhecimento que é produzido possa ser experimentado. No altruísmo, no conhecimento, na sabedoria, o enfermeiro deve ajudar os outros a ser competentes. Ajudar os 25 outros a ser competentes 26 Maria Arminda Mendes Costa, 57 anos, após seis anos como professora liceal, iniciou a vida profissional como enfermeira de cuidados gerais, no Centro de Medicina de Reabilitação do Alcoitão. «Era um velho sonho: trabalhar com pessoas com deficiência». Especializou-se em enfermagem de reabilitação e, após várias insistências, regressou ao ensino, indo trabalhar para a escola de reabilitação de Alcoitão e, depois, para a ex-Escola de Enfermagem Pós-Básica de Lisboa.Veio, posteriormente, abrir o curso de especialização em enfermagem de reabilitação no Porto, na ex-Escola Superior de Enfermagem Cidade do Porto onde durante 12 anos foi directora e presidente do conselho directivo. Estávamos em 1985. Actualmente, trabalha na Escola Superior de Enfermagem do Porto após processo de fusão daquela escola com as escolas superiores de enfermagem Dona Ana Guedes e S. João. É professora coordenadora com agregação. Durante este percurso, fez mestrado e doutoramento em ciências de educação na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, dedicando-se sempre à investigação sobre os cuidados aos mais velhos e à construção do conhecimento profissional. Foi a primeira enfermeira portuguesa a defender provas de agregação universitária. Estávamos em 2005. As provas foram realizadas no ICBAS, Universidade do Porto, onde coordena o Curso de Mestrado em Ciências de Enfermagem. 27 E como se pode definir Enfermagem? A arte e a ciência de cuidar pessoas. Actualmente, o enfermeiro é um profissional altamente qualificado, com a qualificação dirigida para a área de cuidar pessoas. O seu atributo profissional inclui aspectos técnicos e humanos e orienta todo o trabalho que faz para que as pessoas os integrem na sua saúde. Tudo aquilo que seja dirigido à construção da saúde pelas pessoas é um trabalho onde o enfermeiro pode e deve estar. Ser enfermeiro é… … ser uma pessoa que cuida de pessoas. 28 É uma definição muito genérica. Uma mãe ou um pai também cuida dos filhos. Mas é diferente. O cuidado de Enfermagem é um cuidado profissional, que não tem só a vertente do afecto, da intuição, daquilo que o cidadão comum faz ao cuidar. O cuidado profissional de Enfermagem implica um dever. É encontro (implica relação) entre pessoas (enfermeiro e utilizador dos cuidados), numa transacção intersubjectiva (inerente à finalidade do cuidado) que acontece num tempo e num espaço (cuja percepção é determinada pelo enfermeiro e pelo utilizador) e que tem uma finalidade determinada (bem-estar e actualização) e como entidade finalizante da acção, o bem-estar. Esse dever traz consigo a apreensão cognitiva de um conjunto de competências para cuidar. É isto que distingue o ser profissional do leigo. Os enfermeiros são formados sobre os aspectos técnicos, científicos e relacionais, isto é, aquilo que é preciso fazer para que as pessoas se curem, permaneçam saudáveis ou recuperem a capacidade possível da sua autonomia. O cuidar é uma ciência? Cuidar é um misto de ciência e de arte. O enfermeiro tanto sabe cuidar das pessoas, porque aprendeu a dar injecções, a posicionar, a pôr soros, transfusões, a entubar, algaliar, a fazer coisas complexas como instrumentar num bloco operatório onde os gestos são altamente técnicos, a mexer em máquinas complexas, a trabalhar no seu dia a dia numa unidade altamente sofisticada em termos de engenharia biomédica, como, ao mesmo tempo, também aprendeu a relação de ajuda, a criar empatia… são as duas faces da mesma moeda. O enfermeiro aprendeu como se relacionar e lidar com pessoas em situações de saúde específicas. Um exemplo. Cuidar pessoas com toxicodependência e/ ou pessoas com SIDA, pessoas que normalmente têm mais dificuldade em vir ao sistema de cuidados de saúde. O enfermeiro é preparado para tornar apelativo o cuidado de saúde e atrair estas pessoas para que elas gostem de vir ao sistema e de ser cuidadas. A sua linguagem é percebida pelas pessoas. O importante na Enfermagem é saber que o todo de ser enfermeiro não é só técnico nem só o aspecto humano, é a inclusão dos dois. Qualquer pessoa é capaz de aprender tecnicamente a fazer coisas sofisticadas.Aquilo que interessa no cuidado de Enfermagem é que o enfermeiro tenha um conjunto de competências que lhe permitam realizar a acção técnica, estando ao lado, sabendo lidar com, sabendo estar, sabendo entender pessoas nas suas necessidades de cuidados, realizando os cuidados e criando as condições para que o cuidado aconteça. O enfermeiro aprende e apreende técnicas para estar em situação profissional. Na verdade é isto que o distingue de uma intervenção de senso comum. São os enfermeiros que convivem diariamente com os doentes. Embora os médicos façam as prescrições e ainda sejam vistos, por vezes, como deuses, os enfermeiros cada vez mais assumem um papel global na área da saúde. Hoje não podemos pensar em profissões isoladas. Michel Rocard diz que as profissões que vão vingar no século XXI são aquelas que entenderem a interdisciplinaridade,aquelas que no campo interdisciplinar souberem interagir e ser eficazes em função das necessidades do cliente. O fundamental é que a pessoa tenha os cuidados devidos, uma parte da responsabilidade dos médicos, outra da assistente social, do psicólogo, do terapeuta, do enfermeiro. Durante algum tempo, e mesmo actualmente, tem-se investigado sobre o tribalismo das profissões… e termos como a «balcanização do conhecimento» tiveram o seu tempo. Hoje, na era da globalização, quem tem de estar no centro não é o profissional, é o doente, é a pessoa, saudável ou não. A pessoa é, tem de ser, o centro e alvo da atenção. A Enfermagem é a arte e a ciência de cuidar de pessoas. Actualmente, o enfermeiro é um profissional altamente qualificado, com a qualificação dirigida para a área de cuidar pessoas. O seu atributo profissional inclui aspectos técnicos e humanos e orienta todo o trabalho que faz para que as pessoas os integrem na sua saúde. Tudo aquilo que seja dirigido à construção da saúde pelas pessoas é um trabalho onde o enfermeiro pode e deve estar. Nesse sentido, o diálogo entre os diferentes profissionais é fundamental. Sem dúvida. Por exemplo: um idoso hipertenso. O médico receita a medicação para a hipertensão. Se a situação da prescrição não for coadjuvada de um conjunto de competências informativas e demonstrativas que são transmitidas aquela família e ao doente, a medicação não vai surtir o mesmo efeito. É necessário, naturalmente, ensino, demonstração, parceria com o doente e sua família para que a realidade se altere e o utilizador pense na sua saúde como um bem. As profissões, hoje, têm de entender que vivem num todo, a onde o utilizador tem de ser o centro. São complementares em função dos objectivos e necessidades dos utilizadores. Trabalhar para um fim comum. Sim. Se disser a um idoso que seria bom que fizesse determinada alteração nos seus hábitos de vida, mas não lhe transferir o conjunto das competências para ele perceber e aderir ao cuidado que lhe é prescrito, é evidente que não o coloco no centro dos cuidados. O facto de o doente não ter acesso a mecanismos motivacionais sobre a sua saúde, torna-o menos aderente aos cuidados de saúde; o resultado é menos saúde nas pessoas. É necessário transferir poder para as pessoas, não um poder cognitivo, mas um poder de saber como lidar com as situações, o que lhes potencia a autonomia e decisão. Se pensarmos no enorme poder (e saber…) que hoje os media desenvolvem nos cidadãos damo-nos conta do enorme potencial que podemos mobilizar na saúde das pessoas por esta via. 29 30 Será preciso mudar muitas mentalidades em saúde? Sim. O ensino que se faz é sobretudo informativo. Até se leva um filme, fazem-se cartazes... Mas se não criarmos comunidades dinâmicas para intervir na saúde e que actuem em termos globais… será difícil sermos bem sucedidos. Exemplifico: podemos ensinar o padrão alimentar correcto a um hipertenso mas se não houver intervenção sobre as quantidades de sal que se devem colocar, que tipo de ervas se podem usar para substituir o sal, e se isto lhes for comprovado por actos, tendo ainda como interlocutores o familiar cuidador, a pessoa entende e adere melhor. Assim as pessoas aprendem a fazer alguma coisa por si e terão melhor saúde. No ensino a futuros enfermeiros haveria de existir este processo de educar. Ele existe? É muito mais útil mobilizar os estudantes em torno da construção do conhecimento do que transferir conhecimentos através de situações que os livros descrevem e que eles esquecem rapidamente; os estudantes de enfermagem, tal como os outros, aprendem melhor com situações vivenciadas, que na prática observaram e com as quais vão trabalhar. A transmissão de livros atrás de livros, fotocópias, slides uns após os outros, embora possa ser útil, carece de estar centrado e de ser significativo para o estudante. Sabemos que hoje a informação, com os meios informáticos, com as bases de dados, é incontornável, está ao dispor de todos. A análise que faço sobre a situação do ensino de enfermagem é positiva: o ensino é realizado em contextos de prática num mínimo de 50%. Urge contudo aprofundar os modos de trabalho pedagógico baseando-os mais na análise e menos na transmissão; estabelecendo com o estudante uma relação personalizada e educativa, racional e construtiva, orientadora e simultaneamente libertadora; aprender a gostar e a saber cuidar passa por aqui. E o enfermeiro terá sempre um papel de destaque para que a pessoa seja o centro dos cuidados. A questão do papel de destaque, a meu ver, deve fazer-se com base em critérios de competência e não do perfil profissional. Será um passo importante para a evolução das profissões, para os cuidados aos utentes e para a Enfermagem de um modo particular. Há países onde a direcção dos serviços é da responsabilidade dos enfermeiros; é um caminho. Defendo mais o caminho da interdisciplinaridade, da competência, da transparência de princípios e da participação dos cidadãos. E em Portugal como estão as coisas? Temos assistido a alguma turbulência social no que se refere à organização da rede dos serviços de saúde. Foram as maternidades, as urgências, outras se seguirão. Assistimos à reorganização da rede de cuidados com alguma expectativa. Sou investigadora sobre os cuidados aos idosos. O país começou agora a dar-se conta que tem uma população idosa imensa, com tendência para aumentar rapidamente e que precisa de cuidados específicos. A sociedade, os políticos, dão-se conta da necessidade de reorganização em função da alteração profunda que está a acontecer: falta de emprego para os jovens, inactividade pensionada muito precoce, descontentamento social, pensões de reformados idosos muito baixas, grande aumento do número de pobres e rápido aumento de um reduzido número de ricos. A reorganização da rede de cuidados, nem sempre bem compreendida, se algum defeito tem é o de chegar tarde: o desenvolvimento das unidades de cuidados continuados, das unidades de convalescença, das unidades de saúde familiares, todo um conjunto de respostas que começam a surgir; o país começa a organizar-se com alguns anos de atraso, mas ainda bem que está a acontecer. Creio, designadamente para os idosos, que urge racionalizar a oferta de serviços de qualidade em função do perfil social dos mais velhos. É urgente encontrar respostas adequadas, que, a meu ver, não passam pela proliferação de lares ou de nova cosmética para recriar os asilos; devem antes ser contextualizadas às suas comunidades de pertença.A resposta não pode ser de engenharia, de construção de lares, de unidades de acantonamento dos mais velhos. Cada vez haverá mais pessoas com idade superior a 80 anos, válidas e que não estão em condições de ir para um lar. Onde estão as residências supervisionadas onde as pessoas idosas possam ter o seu quarto, a sua cozinha e possam conviver com outras pessoas? Onde possam exercer o autocuidado e manter o nível desejado de relações sociais? Isto é que é ter a pessoa no centro dos cuidados. Era indispensável que isto acontecesse? A sociedade tem de se organizar de outra forma para pensar os grandes desafios que tem pela frente em termos de saúde, porque a saúde hoje tem novos problemas.As doenças do foro imunitário, o caso da tuberculose por exemplo, colocam desafios e carecem da construção de respostas. Muitos dos novos problemas surgem por termos uma sociedade pobre e com desequilíbrios sociais enormes. A enfermagem não se pode ver isolada do conjunto das situações sociais e de saúde. Preocupam-nos os problemas inerentes a uma sociedade com uma população velha, pobre e onde existem diferenças acentuadas entre quem tem muito e quem tem muito pouco ou quase nada. Isto preocupa as profissões de saúde, pois significa que existem franjas da população com dificuldade de acesso à saúde. A reorganização que se está a introduzir a nível da rede de cuidados é interessante. Não dará frutos a curto prazo, mas vai-se sentir os seus efeitos dentro de algum tempo. Um trabalho nacional e local que urge realizar. Começa a tomar algum corpo a ideia de fazer alguma transferência de poderes para as autarquias na área da saúde. Quem conhece a população da terra? As pessoas que lá estão. São essas que podem organizar grupos, que conhecem os locais, é preciso organizar OTL para os adultos e idosos, não só para as crianças. É necessário ajudar os nossos idosos a continuarem a ser felizes, a ocuparem-se com coisas válidas, coisas que os animem e ajudem a lutar 31 Aquilo que interessa no cuidado de Enfermagem é que o enfermeiro tenha um conjunto de competências que lhe permitam realizar a acção técnica, estando ao lado, sabendo lidar com, sabendo estar, sabendo entender pessoas nas suas necessidades de cuidados, realizando os cuidados e criando as condições para que o cuidado aconteça. 32 contra e a prevenir doenças de que ouvimos falar diariamente. Retardar os efeitos nocivos do envelhecimento é um objectivo a perseguir; ganhar este desafio passa pela organização activa dos grupos sociais. locais, com as comunidades de aldeia, de bairro, de rua, de prédio. É o espaço de liberdade, de esforço e de solidariedade de cada um de nós que está em causa e a quem é colocado o desafio. É aqui que a enfermagem terá de dar uma resposta concreta, propor soluções? Como todas as profissões de saúde.Temos de ajudar e transferir para os cidadãos a capacidade de fazer coisas, coisas simples que se fazem com uma população que se mantém activa e empenhada relativamente aos seus. É necessário haver uma rede de vizinhança que se mova para que a pessoa tenha as suas necessidades de alimentação, de higiene, de conforto, satisfeitas com dignidade. É preciso que se organizem redes, que muitas vezes começam por alguma boa vontade das pessoas, mas que se vão profissionalizando. E que vão tendo cada vez mais uma matriz de natureza cognitiva e profissional que introduz segurança.A sociedade tem de se organizar por causa da mudança demográfica. Não podemos continuar a pensar que estamos todos muito saudáveis e que estamos todos bem. Não estamos. A inactividade dos idosos conduz a patologias que vão pesar muito na sociedade. Claro que muitas decisões estão ligadas à política e aos políticos, mas muitas delas estão relacionadas com as comunidades É preciso agir, criar… Michel Rocard diz que as profissões que vingarão no futuro serão aquelas que forem capazes do melhor, da melhor forma e ao menor custo. Não podemos defender os lóbis profissionais. Se há lóbi que seja o do utilizador. Mas isto não se passa só com os velhos. Portugal tem uma população imigrante numericamente assinalável e que se tornou população residente temporária ou definitivamente. As respostas equacionadas pelo sistema de saúde têm de ser pensadas também em função da multiculturalidade. Daqui a 20 anos o enfermeiro português conviverá lado a lado não só com o espanhol, mas também com o romeno, o búlgaro e (quem sabe?) o indiano, o iraniano...Também o português viajará para outras paragens. Gerir a saúde das pessoas não pode passar por lóbis profissionais, sejam de enfermeiros, de médicos ou outros. E a Enfermagem segue esse caminho? A enfermagem tem trilhado um caminho sólido. Tem desenvolvido cuidados de proximidade com os cidadãos, o que me parece a É necessário ajudar os nossos idosos a continuarem a ser felizes a ocuparem–se com coisas válidas, coisas que os animem e ajudem a lutar contra e a prevenir doenças de que ouvimos falar diariamente. Retardar os efeitos nocivos do envelhecimento é um objectivo a perseguir; ganhar este desafio passa pela organização activa dos grupos sociais. porta mais interessante para as pessoas. Para além de trilhar o caminho de proximidade do cidadão, trilha o caminho de centrar o cuidado no cidadão. Não há trabalhos isolados, são integrados. A enfermagem denota o conjunto de dificuldades que o país atravessa. O ideal futuro para a Enfermagem é este caminho de procura e ajuda directa aos cidadãos? Sim, mas também um caminho organizativo no qual o papel da Ordem dos Enfermeiros é importante. A enfermagem tem de continuar a organizar-se no sentido de dar respostas consistentes e bem sustentadas aos cidadãos. O desenvolvimento da profissão passa pelo aprofundamento científico, pelo enraizamento de práticas de excelência que vão ao encontro dos problemas e necessidades de saúde dos cidadãos, mas simultaneamente permitem a ancoragem científica triangulada; além de que continuar a investir no conhecimento sobre as vivências das pessoas, perceber como se constrói a satisfação dos utilizadores para os cuidados, evoluir no conhecimento dos modos como as pessoas e as famílias lidam com determinadas situações para construir evidência científica e dar as respostas mais adequadas, são outros aspectos a ter em conta. A sustentabilidade do conhecimento e a sua proximidade estratégica dos utilizadores são fundamentais; a sua operacionalização também, tanto a nível hospitalar como a nível da comunidade. As grandes mudanças estão a passar-se nestes dois campos. E caminham no bom sentido? Enfim… como a saúde: caminham. Penso que há um longo caminho a percorrer. O cidadão tem o direito a receber cuidados integrados. O processo será evolutivo e, embora tardiamente, creio que se estão a dar os passos adequados. Os enfermeiros têm um papel importante no sistema de saúde porque todo o trabalho está ligado a um trabalho de equipa. Têm uma posição privilegiada no sistema de saúde, uma posição próxima dos utilizadores. Apesar de existir um longo caminho a fazer, creio que estamos no bom caminho: o das respostas mais condizentes com a natureza dos cuidados humanos destinados a manter e a desenvolver, nas pessoas, saúde e bemestar, capacitando os indivíduos, famílias ou comunidades com competências e serviços personalizados, favorecedores ao desenvolvimento de condições favoráveis de vida e/ou de morte. Os cursos respondem a estes percursos que são fundamentais? Creio que sim, embora as formas de acesso à profissão sejam muito despersonalizadas, tal 33 34 como acontece em todo o ensino superior público. Creio que as profissões de saúde justificariam um acesso mais adequado ao munus profissional. Justificava-se que um candidato a enfermeiro ou a outra profissão da saúde tivesse algum tempo em preparação, tipo estágio, algum tempo de proximidade com as situações de saúde, não propriamente as situações técnicas, mas situações de cuidados, de modo a que percepcionassem a realidade, o que anteciparia o confronto com uma realidade inesperada. A actual formação é adequada aos novos tempos, às mudanças? A formação inicial, os 4 anos de licenciatura, tem vindo a dar uma boa resposta em termos das necessidades do desenvolvimento do curso de Enfermagem. O desenrolar do curso, na maior parte das escolas, tem uma estruturação em torno quer dos cuidados hospitalares quer dos cuidados de saúde primários, uns mais virados para a pessoa em situação de doença, outros mais virados para a situação da pessoa saudável mas a exigir cuidados para que não adoeça e se mantenha saudável. A questão do desenvolvimento do saber especializado em Enfermagem parece-me outra das áreas em que é fundamental seriedade no processo de construção. Faz sentido pensar que o desenvolvimento das especialidades de Enfermagem possa estar agregado à existência de cursos A investigação vai continuar a investir em áreas diversificadas muito de acordo com os contextos sociais e fenómenos com eles relacionados, mas é provável que seja dada prioridade à questão dos fenómenos demográficos e migratórios, às questões culturais e adaptativas do ser humano. O contexto de cuidados é o palco onde os desenvolvimentos de cuidados e teorias devem ser experimentados. É importante que estas investigações que geram conhecimento não fiquem circunscritas às prateleiras das universidades. de mestrado profissionalizante, isto é, que o enfermeiro possa desenvolver e aprofundar perícias especializadas que estejam alicerçadas em processos cognitivos e de investigação e se dirijam a situações complexas dos cuidados e da saúde das pessoas. Bolonha muda a Enfermagem? Não creio que mude; poderá constranger os desenvolvimentos que se venham a fazer… mas a enfermagem, como profissão, tem uma identidade própria. Não há uma posição política sobre o assunto; há um decreto-lei que define as balizas dos vários graus e… as coisas têm sido deixadas correr. Provavelmente haverá desenvolvimentos interessantes… É preciso entender Bolonha para que não se transforme num fim em si… urge pensar o ensino com uma maior intervenção dos estudantes; a sua actividade é fundamental. Bolonha a nível do trabalho dos professores do ensino superior é uma revolução. A diminuição das horas de contacto com os estudantes significa o aumento qualitativo dessas mesmas horas de contacto e, simultaneamente, o trabalho mais personalizado no sentido do desenvolvimento de competências dos estudantes, uma vez que o ensino é centrado no seu projecto: de aprendizagem, de formação, de profissão. O aluno tem de ser cuidado pelo professor como cuidará, futuramente, pessoas. O fundamental é que a formação seja correcta, centrada no estudante para que ele aprenda a experiência de ser cuidado. É aqui que está o segredo da profissão de Enfermagem. Sendo Enfermagem uma profissão de cuidar, o estudante deve ser o primeiro que se sente cuidado pelos professores, pelos tutores e supervisores. É aqui que está um campo experimental de desenvolvimento que o estudante exercitará, para depois o transferir para o cidadão, com o qual ele também vai continuar a aprender a cuidar. Não se pode continuar a ensinar cuidados de enfermagem como se ensina matemática, em salas de aulas com 50, 80, 100 alunos. Sei que a pressão económica é muito grande mas as profissões de cuidar têm de fazer um percurso no sentido mais interrogativo e apropriativo das suas próprias práticas. A capacidade e competência para ajudar as pessoas a serem mais saudáveis também se faz nos bancos da escola. Porque o estudante, se se sentiu cuidado, se se sentiu ajudado a ser saudável, se sentiu as disciplinas interligadas entre si para ele perceber o conjunto de cuidados que deve dar a nível da cura às pessoas, se viu a integração, será um profissional mais humano e cientificamente completo. Creio que Bolonha, também a nível metodológico, irá dar os seus frutos, assim o contexto docente permaneça aberto à mudança. 35 36 A nível futuro, na enfermagem, que áreas de investigação? Processos familiares, as questões das parcerias nos cuidados, as questões dos cuidados aos mais velhos, processos de envelhecimento, vivências do ser idoso, como lidar com os idosos sós, a questão dos cuidadores homens, construção do papel profissional, empowerment dos utilizadores, genética e enfermagem. Estou convencida de que o desenvolvimento dos cuidados de enfermagem se vai continuar a fazer muito pela via da pesquisa de natureza compreensiva e construtivista. Ao mesmo tempo, a Enfermagem carece de desenvolver estudos de natureza experimental e quase-experimental, longitudinal e muita investigação comprovativa do real papel dos enfermeiros nos ganhos em saúde e na construção de respostas mais saudáveis pelos cidadãos.A investigação vai continuar a investir em áreas diversificadas muito de acordo com os contextos sociais e fenómenos com eles relacionados, mas é provável que seja dada prioridade à questão dos fenómenos demográficos e migratórios, às questões culturais e adaptativas do ser humano. O contexto de cuidados é o palco onde os desenvolvimentos de cuidados e teorias devem ser experimentados. É importante que estas investigações que geram conhecimento não fiquem circunscritas às prateleiras das universidades. Que palavras dizer a enfermeiros? Solidariedade, altruísmo, conhecimento, risco, empenho, sabedoria, gosto, saber, alma. Capacidade de ajudar as pessoas, famílias e comunidades a serem mais competentes no cuidado da sua saúde no dia-a-dia.Competentes para se curarem, autocuidarem, prevenirem doenças, para que os filhos nasçam saudáveis. Se há algum segredo na enfermagem este devia terminar no infinito: ajudar, capacitar, curar, melhorar, acompanhar, ajudar, desenvolver… e quando os meios não permitirem a continuidade da vida: permanecer! 38 Raquel Brito Teresa Almeida Santos Departamento de Medicina Materno-Fetal, Genética e Reprodução Humana dos Hospitais da Universidade de Coimbra João Ramalho-Santos Departamento de Zoologia e Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Departamento de Medicina Materno-Fetal, Genética e Reprodução Humana dos Hospitais da Universidade de Coimbra Criopreservação de ovócitos e tecido ovárico: Implicações para a fertilidade 1. Introdução teórica Os ovários são órgãos pares, situados um de cada lado do útero, tendo uma forma oval achatada, com 3 a 5 cm na sua maior dimensão. É neles que se processa a ovogénese. Os ovários têm também uma função endócrina, produzindo estrogénios e progesterona que sincronizam a actividade do tracto genital e da glândula mamária com o ciclo ovulatório. No ovário identifica-se uma zona periférica designada córtex e uma central denominada medula. No córtex há numerosos folículos em diversos estádios de desenvolvimento, bem como folículos pós-ovulatórios, chamados corpus luteum e corpus albicans (o segundo forma-se por regressão do primeiro) (Fig.1). Figura 1 Esquema do ovário humano mostrando os diferentes estádios do desenvolvimento do ovócito. 1-Folículos primordiais; 2-Folículos primários; 3-Folículos antrais; 4-Folículo Maduro; 5-Ovulação; 6-Corpus luteum; 7-Corpus albicans. 39 40 No ovário de uma mulher jovem os folículos primordiais são os mais numerosos, constituindo a população a partir da qual uma coorte inicia o processo de maturação. O folículo primordial é composto por um ovócito primário envolvido por uma camada de células foliculares achatadas. O ovócito primário tem, aproximadamente, 25μm de diâmetro, apresentando um núcleo volumoso e um citoplasma relativamente reduzido em relação ao volume total da célula. Quando estimulado pelas hormonas hipofisárias o folículo primordial aumenta de volume e transforma-se num folículo primário. Neste, o ovócito já tem maiores dimensões e as células foliculares aumentam o seu tamanho e número originando as células da granulosa, algumas das quais acompanham o ovócito após a ovulação, formando o cumulus oophorus (cúmulo). Entre o ovócito e as células foliculares desenvolve-se uma camada protectora de natureza glicoproteica denominada zona pelúcida. Os folículos primários desenvolvemse e originam os folículos secundários, que se encontram localizados mais profundamente no córtex ovárico. O córtex de um ovário humano apresenta um número finito de células germinativas primordiais, número este que vai decrescendo ao longo da vida da mulher, como consequência das ovulações e atrésia (Fig.2). No momento do nascimento, o número de ovócitos primários é de cerca de dois milhões, tendo a população de células germinativas atingido um máximo de sete milhões a meio da gestação. Por altura da menarca existem apenas 300.000 folículos (Lobo, 2003). Figura 2 Zona cortical do ovário humano. Folículos primordiais (F); Epitélio germinativo (Ep) e Túnica albugínea (Ta). (Gonçalves e Bairos, 2006). A “perda “ de folículos aumenta consideravelmente por volta dos 37,5 anos, existindo, nessa altura, cerca de 1000 folículos. Inicia-se, É absolutamente necessário discutir com os doentes oncológicos as opções disponíveis em termos de fertilidade e de possibilidades reprodutivas futuras. Esta realidade é particularmente importante nas mulheres jovens com cancro da mama, antes de proceder a quimioterapia. então, um decréscimo da função endócrina, começando a mulher a entrar no climatério (Faddy et al., 1992). Associado a este processo ocorre também uma redução da qualidade ovocitária que poderá estar associada a uma disfunção mitocondrial (Almeida Santos, 2003). A data exacta da menopausa é determinada, quer pela quantidade inicial de células germinativas quer pela sua depleção ao longo da vida. No mundo ocidental a idade média em que ocorre a menopausa situa-se nos 51 anos (Faddy et al.,1992). Nas mulheres submetidas a tratamentos de quimioterapia e/ou radioterapia por doença neoplásica pode surgir uma menopausa precoce, dado que estes tratamentos afectam as células em divisão, comprometendo assim a gametogénese, e mesmo a função endócrina do ovário. Este efeito gonadotóxico tem particular importância na medida em que a sobrevida das mulheres após estas terapêuticas ter tido um aumento significativo nos últimos anos, particularmente nas pacientes mais jovens (Boring et al., 1994). Usando um modelo matemático estima-se que uma redução de 90% da população de células germinativas, que ocorra por volta dos 14 anos, origine falência ovárica precoce permanente (menopausa) por volta dos 27 anos de idade (Faddy et al., 1992). A criopreservação de espermatozóides é uma realidade actualmente e não envolve tecnologias muito complexas. Mas a preservação de gâmetas femininos implica grandes dificuldades de índole diversa, nomeadamente na sua obtenção e na conservação a longo prazo. É absolutamente necessário discutir com os doentes oncológicos as opções disponíveis em termos de fertilidade e de possibilidades reprodutivas futuras. Esta realidade é particularmente importante nas mulheres jovens com cancro da mama, antes de proceder a quimioterapia. Acresce que se verifica em todo o mundo desenvolvido uma tendência generalizada para adiar o casamento e protelar a primeira gravidez, o que torna esta situação mais premente já que, se não forem tomadas medidas para preservar a fertilidade antes de iniciar o tratamento, a lesão ovárica e a subsequente menopausa prematura poderão impedir uma gravidez no futuro. 41 42 1.1. Estratégias para a preservação da fertilidade Existem actualmente três métodos possíveis para a preservação da fertilidade nas pacientes portadoras de neoplasias em risco de falência ovárica permanente: 1) Criopreservação de embriões; 2) Criopreservação de ovócitos; 3) Criopreservação de tecido ovárico. O processo de criopreservação requer, primeiramente, a escolha do crioprotector ideal em consonância com um protocolo de congelação e descongelação adaptados às células que se pretendem criopreservar. No caso dos gâmetas femininos, a maior problemática reside na formação de cristais de gelo intracelular originando lesões que podem levar à lise da célula. Outra dificuldade é a questão da toxicidade dos crioprotectores utilizados e, consequentemente, o tempo de exposição das células aos mesmos. Alguns dos crioprotectores mais utilizados incluem propileno glicol/propanodiol (PROH), dimetilsufóxido (DMSO), glicerol, etileno-glicol e sacarose, utilizando-se por vezes combinações de várias substâncias. 43 1.1.1. Criopreservação de embriões No trabalho de rotina de um laboratório de biologia da reprodução é difícil prever e controlar a resposta de uma paciente à estimulação ovárica. Existe o “mito” de que quanto maior o número de embriões transferidos, maior a taxa de gravidez, esquecendo-se, por vezes, o risco materno e fetal associado às gravidezes múltiplas. Foram por isto impostos limites legais ao número de embriões a transferir por ciclo de estimulação em muitos países. Ao possibilitar a manutenção de embriões congelados, permite-se que sejam realizadas transferências de embriões sem recorrer a nova estimulação hormonal com gonadotrofinas. Em 1985 foi descrito o primeiro caso, na espécie humana, de um nascimento após transferência de embriões congelados (Mohr e Trounson, 1985). Actualmente esta técnica encontra-se amplamente difundida e com elevadas taxas de sucesso. As pacientes portadoras de doenças oncológicas podem recorrer à estimulação ovárica e à punção folicular e posterior inseminação por fertilização in vitro (FIV) ou por microinjecção de espematozóides (ICSI) antes de iniciar a terapêutica ou durante um intervalo nos tratamentos (Brown et al., 1996). Infelizmente esta técnica não é aplicável a todas as doentes com cancro sendo, por exemplo, inadequada em raparigas antes da puberdade e pouco aceitável para mulheres solteiras que não desejem o uso de esperma de um dador. Para além disto, todo o processo de estimulação hormonal pode necessitar de, aproximadamente, 6 semanas, podendo representar um atraso considerável nos tratamento oncológicos. Há ainda o caso de doentes com tumores estrogeno-sensíveis (ex: cancro da mama) para as quais a exposição a elevados níveis de estrogénios pode ter um efeito negativo. Quando lidamos com doentes com cancro, o armazenamento de embriões congelados cria também alguns problemas éticos e legais específicos. Nomeadamente, se ocorrer a morte de uma mulher que tenha previamente congelado embriões, teremos “embriões-orfãos”. 44 1.1.2. Criopreservação de Ovócitos A criopreservação de ovócitos é, teoricamente, uma alternativa interessante ao congelamento de embriões. No entanto, apesar de os resultados terem sido bastante animadores em animais (Whittingham, 1977; Fuku et al., 1992) o processo de congelação de ovócitos humanos tem-se revelado pouco eficaz, e até mesmo frustrante. As taxas de sobrevivência e fecundação pós-descongelação descritas, são muito variáveis apresentando valores desde 25 a 69% (Trounson, 1986; Gook et al.,1993), por outro lado, tal como na criopreservação de embriões, também é requerida estimulação hormonal dos ovários. A criopreservação de ovócitos maduros é, teoricamente, uma técnica bastante exigente – curiosamente muito mais exigente do que em embriões – uma vez que estas células são muito sensíveis a alterações de temperatura e apresentam dificuldades na capacidade de recuperação de lesões citoplasmáticas (Baka et al., 1995 e Pickering et al., 1990). Os ovócitos humanos podem ser criopreservados no estadio de Metafase II ou emVesícula Germinativa (Profase I). No trabalho de rotina de um laboratório de biologia da reprodução é difícil prever e controlar a resposta de uma paciente à estimulação ovárica. Existe o “mito” de que quanto maior o número de embriões transferidos, maior a taxa de gravidez, esquecendo-se, por vezes, o risco materno e fetal associado às gravidezes múltiplas. Foram por isto impostos limites legais ao número de embriões a transferir por ciclo de estimulação em muitos países. A B Figura 3 Ovócitos humanos maduros (Metafase II). A) Ovócito rodeado pelas células do cumulus; B) Ovócito depois de desnudado com a zona pellucida e o globo polar, no espaço perivitelínico, bem visíveis. 1.1.2.1. Ovócitos maduros (Metafase II) Os ovócito maduros encontram-se em metafase II. Nesta fase, a célula encontra-se altamente organizada, com zona pelúcida, fuso acromático e grânulos corticais (Fig.3). Qualquer dano que possa ocorrer em alguma destas estruturas poderá produzir efeitos negativos na viabilidade e funcionalidade após a descongelação. Na metafase II os cromossomas do ovócito encontram-se alinhados ao longo dos microtúbulos do fuso acromático, que são sensíveis à temperatura e às soluções crioprotectoras. Os microtúbulos são responsáveis pela separação dos cromatídeos irmãos que ocorre na 2ª fase da meiose. Logo, qualquer alteração nestas estruturas pode levar a processos de não-disjunção e, consequentemente, a um risco aumentado de poliploidias ou aneuploidias (Al-Hasani et al., 1987; Bos-Mikich e Whitttingham, 1995). A criopreservação de ovócitos maduros apresenta-se como uma opção bastante atractiva no campo da Reprodução Medicamente Assistida. No entanto, as taxas de viabilidade e fertilização pós-congelação são bastante variáveis, assim como as gravidezes documentadas (Borini et al., 2004; Borini et al., 2006; Levi Setti et al., 2006). Estes resultados poderão estar intimamente relacionados com as lesões resultantes dos processos de congelação/descongelação, dada a elevada sensibilidade destas células. As principais alterações associadas à congelação/ descongelação podem afectar diferentes sistemas celulares sendo exemplos as rupturas na membrana citoplasmática do ovócito, alterações na configuração do fuso acromático e, consequentemente, alterações nos cromossomas (Shaw et al., 2000). As variações nas taxas de sobrevivência dos ovócitos descongelados estão relacionadas com factores morfológicos e biofísicos. O principal factor biofísico que afecta a taxa de sobrevivência pós-congelação é a formação de gelo intra-celular que pode levar à lise da célula (Fabbri et al., 2001). Por outro lado, a presença do cumulus oophorus parece desempenhar um papel muito importante na protecção do ovócito contra os efeitos adversos dos crioprotectores e da temperatura. Ultimamente têm sido descritos protocolos que incluem o uso de elevadas concentrações de sacarose juntamente com PROH. Os protocolos mais antigos referenciam concentrações na ordem de 0,1M de sacarose, não se tendo revelado eficazes no processo de desidratação do ovócito pré-congelação e, 45 46 consequentemente, originando gelo intracelular. Por outro lado, concentrações mais elevadas de sacarose (0,3M) parecem ser as ideais para atingir os níveis de desidratação que impedem a formação de gelo intracelular (Coticchio et al., 2006). Com estas concentrações são alcançadas boas taxas elevadas de sobrevivência pós-congelação (74% vs 35%) e de fecundação. Ficam no entanto por explicar as baixas taxas de implantação obtidas (Borini et al., 2006; Levi Setti et al., 2006). Figura 4 Ovócito em Profase I. Observe-se a presença da vesícula germinativa. Quando lidamos com doentes com cancro, o armazenamento de embriões congelados cria também alguns problemas éticos e legais específicos. Nomeadamente, se ocorrer a morte de uma mulher que tenha previamente congelado embriões, teremos “embriões-orfãos”. 1.1.2.2. Ovócitos imaturos – vesícula germinativa Uma alternativa à congelação de ovócitos em metafase II parece ser a utilização de ovócitos em fase de vesícula germinativa (VG). Os ovócitos nesta fase de VG já apresentam o seu tamanho máximo (Fig.4), no entanto a cromatina encontra-se em diplóteno na Profase I e, como tal, não existe fuso acromático. Mas, ao contrário do ovócitos em MII, os ovócitos colhidos neste estadio requerem um período de maturação in vitro pós-descongelação, antes do processo de fecundação (Gosden et al., 1998). O processo de maturação in vitro de ovócitos imaturos foi primeiramente descrito em animais de onde se concluiu que ovócitos imaturos de coelho removidos do ovário, apresentavam a capacidade de atingirem espontaneamente um estado de maturação in vitro (Pincus e Enzmann, 1935). Já em 1965 foram obtidos resultados semelhantes na espécie humana (Edwards, 1965). Esta técnica é muitas vezes utilizada na tentativa de amadurecimento (“rescue technique”) de ovócitos imaturos colhidos para fertilização in vitro (FIV). No entanto, na maioria dos casos estes ovócitos foram previamente desnudados (isolados das células da granulosa) para uma melhor visualização do seu estado de matu- ração e, consequentemente, são colocados em cultura sem o seu “invólucro” natural. Vários estudos revelaram que esta técnica induz a formação de ovócitos com potencial de fecundação reduzido. Este desenvolvimento leva a crer que estes ovócitos imaturos terão à partida alterações do processo de maturação. Isto é, se mesmo tendo sido submetidos a elevados níveis exógenos de gonadotrofinas in vivo estas células não tiveram capacidade de amadurecer, será então pouco provável que a maturação ocorra de forma fisiológica in vitro. A tendência para utilização de ovócitos imaturos retirados de folículos que não tenham sofrido qualquer tipo de estimulação hormonal poderá ser uma alternativa a considerar (Jurema e Nogueira, 2006). No entanto, os processos de maturação in vitro ainda requerem optimização ao nível da constituição ideal dos meios de maturação e da melhor técnica de fecundação a utilizar (Fertilização in vitro vs Microinjecção de espematozóides). Ou seja, o uso destas células implica duas incógnitas: uma relacionada com a congelação em si, a outra com a maturação. 47 Antes da terapia anti-neoplástica 48 Ooforectomia Estimulação Ovárica Punção Folicular Preparação Tecido Ovárico FIV / ICSI Criopreservação Embrião Criopreservação Ovócito Criopreservação Tecido Ovárico Depois da terapia anti-neoplástica Descongelação Transferência Embrião FIV / ICSI Transplante Autotransplante Transferência Embrião Heterotópico FVI / ICSI Ortotópico Concepção Natural ou FIV / ICSI Transferência Embrião Figura 5 Estratégias para preservar a fertilidade feminina na sequência de terapia anti-neoplásica Maturação in vitro FIV ou ICSI Transferência Embrião 1.1.3. Criopreservação de Tecido Ovárico A criopreservação de tecido do córtex ovárico parece ser uma aposta bastante promissora para a preservação da fertilidade da mulher (Wood et al., 1997), podendo amostras de tecido do córtex ser colhidas da paciente em qualquer fase do ciclo menstrual, através de laparoscopia. O córtex do ovário alberga uma enorme quantidade de folículos primordiais que, por serem pequenos e pouco diferenciados, sem zona pelúcida e sem células da granulosa, apresentam uma maior tolerância à criopreservação e posterior descongelação. O tecido ovárico depois de descongelado deverá repor a função endócrina e a fertilidade. Desta forma poderão ser evitados inúmeros problemas éticos e morais.Também é bom notar que não é necessária estimulação hormonal, nem o atraso consequente no início da terapêutica anti-neoplásica (Fig.5). Existe, no entanto, um risco potencial: a possibilidade de criopreservar tecido ovárico com células neoplásicas. É por isso premente efectuar, por rotina, uma avaliação histológica dos fragmentos do tecido colhido antes de realizar a criopreservação. A criopreservação de tecido ovárico começou por ser realizada em ratinhos, ratazanas e hamsters (Deanesley, 1954; Green et al., 1956; Parkes, 1958) e o tecido ovárico, foi agrafado sob a pele dos animais, após descongelação, originando gravidezes e descendência. Nestas circunstâncias o crioprotector utilizado foi o glicerol. Mais tarde, em carneiros e utilizando o DMSO como crioprotector, em conjugação com a técnica de slow-freezing, o transplante do tecido pós-congelação resultou em actividade cíclica dos ovários e em gravidezes, estando documentado o nascimento de um carneiro vivo (Gosden et al., 1994). Desde então, têm sido descritos vários casos de sucesso em diferentes espécies animais, incluindo um primata não humano, embora neste caso o implante de tecido tenha sido feito sem congelação (Lee et al., 2004). Os primeiros casos descritos de criopreservação de tecido ovárico na espécie humana remontam ao ano de 1996 (Hovatta et al., 1996; Newton et al., 1996). Os crioprotectores utilizados foram,inicialmente,PROH-sacarose e DMSO.O grupo de Hovatta et al., (1996), efectuou um estudo comparativo entre o uso de PROH-sacarose e o DMSO como crioprotectores com diferentes protocolos de congelação. Os resultados foram positivos, 49 50 aparentando o tecido boa morfologia ao microscópio óptico não se observando nos folículos alterações aparentes, tendo permanecido funcionais depois de transplantados em ratos imunodeprimidos (debaixo da pele ou da cápsula renal). Não se observaram diferenças significativas entre os dois crioprotectores. Newton et al., (1996), realizaram um estudo comparativo entre quatro crioprotectores: PROH, DMSO, glicerol e etileno-glicol. Os resultados sugeriram que o etileno-glicol seria o crioprotector que originou as melhores taxas de viabilidade dos folículos, sem alterações aparentes, enquanto o glicerol se revelou muito pouco eficaz. Foram também realizados estudos comparativos entre as técnicas de slowfreezing e rapid-freezing tendo-se concluído que a primeira seria a mais eficaz. Após o descongelamento, o tecido pode ser recolocado no ovário de origem – transplante ortotópico, ou ser transplantado, por exemplo, debaixo da pele – transplante heterotópico. Existem inúmeros casos descritos de restauração da função ovárica após transplantes ortotópicos e heterotópicos (Oktay, 2006). Após o transplante é premente que ocorra o mais rapidamente possível o processo de angiogénese para evitar que o tecido entre em isquémia. Alguns autores defendem que o transplante heterotópico promove a neovascularização mais rapidamente do que o transplante ortotópico podendo no entanto comprometer a qualidade ovocitária devido às diferenças na temperatura e no fluxo sanguíneo (Oktay et al., 2004). Após descongelação, o tecido pode ainda sofrer maturação in vitro, e proceder-se depois a técnicas de reprodução medicamente assistida para a obtenção de embriões viáveis para transferência uterina (Fig.5). A criopreservação de tecido ovárico humano parece, assim, ser um método eficaz e eticamente aceitável da preservação da fertilidade em mulheres que necessitem de ser submetidas a tratamentos agressivos, susceptíveis de originar uma menopausa precoce. É, no entanto, prematuro avaliar os verdadeiros benefícios deste procedimento, uma vez que ainda só estão descritos alguns casos de gravidez e nascimento pós-transplante de tecido ovárico criopreservado (Donnez et al., 2004, Oktay et al., 2006). A criopreservação de tecido ovárico e possível transplante apresenta-se como uma alternativa promissora para a preservação da fertilidade em mulheres com doença neoplásica. No entanto, é necessário acautelar determinadas questões como sendo a isquémia (por deficiente neovascularização do tecido) e o possível risco de transmissão de células neoplásicas. 51 1.2. Exposição aos Crioprotectores A primeira etapa em qualquer protocolo de criopreservação é tentar atingir um equilíbrio entre as células e o crioprotector. Todos os crioprotectores apresentam características comuns, nomeadamente o facto de serem completamente miscíveis em água e a capacidade de facilmente serem incorporados pelas membranas celulares (com excepção da sacarose). Existe uma enorme variedade de crioprotectores, sendo a sua principal função proteger as células dos efeitos da exposição ao frio, estabilizando a estrutura celular e evitando a formação de cristais de gelo, principais causadores de danos na célula (Mazur, 1963). O factor que mais influencia a resposta da célula à congelação é a relação entre a área de superfície da célula e o volume da mesma. Isto é, quanto maior a célula, mais lento deve ser o arrefecimento no processo de congelação (Tabela I). 52 Comparando os tamanhos e volumes dos gâmetas humanos vemos que o ovócito tem, em média, um diâmetro de 120 μm, um volume de 9,05x105 μm3, e uma área de superfície com 4,5x104 μm2, o que é enorme em comparação com o espermatozóide, que tem 28 μm3 de volume e uma área de superfície de 120μm2 (Gilmore et al., 1997). Consequentemente no espermatozóide a razão área de superfície/ volume é igual a 4,3 enquanto no ovócito esta razão passa para, apenas 0,05. Esta é a justificação para o facto do ovócito requerer mais tempo para que o equilíbrio osmótico seja antigido quando entra em contacto com o crioprotector (Leibo e Bradley, 1999), o que está na base das dificuldades evidenciadas na criopreservação dos gâmetas femininos. Tabela I Comparação de características que influenciam a criosensibilidade a adequabilidade para o crio-armazenamento, entre ovócitos em diferente estádios de desenvolvimento. (Adaptado de Shaw et al.,). Material Tecido Ovárico Disponibilidade Inúmeros;Sempre presentes Obtenção Fácil (biópsia) Tamanho (μm) <50μm Células Suporte Poucas; Pequenas Fase Nuclear Profase I; Membrana nuclear Zona Não Grânulos Corticais Não Lípidos Intracelulares Poucos Taxa Metabólica Baixa Superfície/Volume Alta Ovócito Imaturo(VG) Ovócito Maduro(MII) Escassos; Apenas nos folículos antrais Escassos Punção ovocitária Punção ovócitária 80-300 μm (depende espécie) 80-300 μm (depende espécie) Muita. Corona/cumulus Muita. Corona/cumulus VG: Membrana nuclear Metafase II; sem membrana nuclear Sim Sim Centrais Periféricos Podem ser abundantes Podem ser abundantes Baixa Baixa Baixa Baixa 1.3. Directrizes clínicas para a criopreservação de tecido ovárico Devido ao crescente interesse que existe na criopreservação de tecido ovárico, é necessário que sejam traçadas directrizes clínicas de procedimentos. Em primeiro lugar, a criopreservação de tecido ovárico deve ser realizada como procedimento laboratorial, a título experimental tendo em consideração os aspectos mencionados na RAFT (Regulatory Authority for Fertility and Tissue). As pacientes devem ser informadas acerca das opções que existem para a preservação da sua fertilidade e devem ser devidamente orientadas e aconselhadas acerca do aspecto experimental do procedimento em questão (ASRM, 2005). A Criopreservação de Tecido ovárico só deverá ser oferecida a mulheres que estejam em risco perder a sua fertilidade e que apresentem um prognóstico favorável pós-terapia oncológica (American Society of Clinical Oncology - ASCO). 53 1.4. Desafios na criopreservação de tecido ovárico A criopreservação de tecido ovárico e possível transplante apresenta-se como uma alternativa promissora para a preservação da fertilidade em mulheres com doença neoplásica. No entanto, é necessário acautelar determinadas questões como sendo a isquémia (por deficiente neovascularização do tecido) e o possível risco de transmissão de células neoplásicas. Referências bibliográficas: 54 Al-Hasani S, Diedrich K,Van der Ven H, Reineke A, Hartje M and Krebs D (1987) Cryopreservation of human oocytes. Hum Reprod 2,695–700. 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O avanço das ciências, associado à melhoria das condições de vida, trouxe uma maior esperança de vida e, consequentemente, um aumento da taxa de longevidade que, associada a uma menor taxa de natalidade, tem levado a uma crescente inversão da pirâmide demográfica pelo aumento das pessoas com idades superiores a 65 anos. No entanto, não basta acrescentar anos de vida, é preciso fazer algo mais para a proporcionar com melhor qualidade. Percepção da qualidade de vida dos idosos maiores de 75 anos no concelho de Vila Nova de Gaia Estratégias educativas para a mudança 57 Objectivos - Conhecer a evolução da população idosa no concelho de Vila Nova de Gaia; - Identificar os recursos e equipamentos no concelho de Vila Nova de Gaia; - Conhecer as percepções dos sujeitos acerca do seu estado sanitário, qualidade de vida e projectos; - Conhecer as percepções dos autarcas acerca do processo de envelhecimento e actividades programadas para este grupo social; 58 - Propor estratégias de intervenção. Este estudo parte da hipótese geral de que com o passar dos anos, sobretudo acima dos 75 anos, os sinais e sintomas de desgaste orgânico surgem, bem como as perdas afectivas e sociais, que podem conduzir à maior ou menor perda de autonomia. Estes factores, associados às condições sócio-económicas e contextos em que vivem os idosos, vão influenciar a sua percepção de qualidade de vida. Sendo a qualidade de vida relacionada não só com factores biológicos mas também com factores de carácter afectivo, social, educativo, etc., o desenvolvimento de intervenções de tipo médico, afectivo, social e educativo fundamentalmente, contribuirá para melhorar as suas vidas. O envelhecimento populacional constitui uma realidade e um desafio às sociedades modernas. A sociedade portuguesa, à semelhança de outros países, vive alterações demográficas com reflexos profundos no tecido social, familiar, laboral e educativo. Estrutura e metodologia A Parte I apresenta dois capítulos, onde desenvolvemos um quadro teórico que sustentou a investigação. A preocupação principal do capítulo I consistiu na revisão de um conjunto de temas que nos ajudassem a enquadrar a temática.Assim, analisamos sumariamente os aspectos demográficos ligados ao desenvolvimento humano e reflectimos sobre o processo e teorias de envelhecimento. Enquadramos a velhice como uma construção social e abordamos as políticas de apoio ao idoso. No capítulo II analisamos os conceitos de saúde, qualidade de vida e seus determinantes. A temática da educação e da formação ao longo da vida foram os temas centrais deste estudo, reconhecendo-se a urgência de uma pedagogia promotora de qualidade de vida. Este capítulo evidenciou os conceitos estruturantes que sustentam o campo de análise. 75 anos, e o grupo constituído pelos autarcas do concelho para conhecer a rede de apoio existente e as suas percepções e significados atribuídos a este grupo social. A Parte II foi dedicada ao estudo empírico no concelho de Vila Nova de Gaia, sustentado nos paradigmas qualitativo e quantitativo, o que nos permitiu uma reflexão do real e uma confrontação entre o desejável e o possível, tendo em vista o encontro de propostas de intervenção nesta área. Para além da identificação do idoso, esta escala permitiu-nos conhecer o seu sistema de saúde, com quem vivem, a rede de apoio de que beneficiam, a sua situação de escolaridade, a profissão e idade em que deixaram o trabalho remunerado. Permitiu-nos um aprofundamento das suas opiniões ao acrescentar duas questões abertas acerca das formas de melhorar as suas vidas, bem como os objectivos que têm e prazos para a sua concretização. Como contexto de implementação do estudo elegeu-se o concelho de Vila Nova de Gaia, onde foram estudados dois grupos: o dos idosos com idade igual ou superior a Relativamente ao grupo de idosos, pretendíamos contactar com a realidade desse grupo social, saber quem são, como estão a viver esta fase, como ocupam o seu tempo, o que fazem e o que gostariam de fazer. Foi nossa intenção avaliar as necessidades do idoso a partir das suas percepções de bem-estar físico, mental e social, numa perspectiva de valorização das suas vivências, experiências de vida e capacidades, ou seja, na linha do envelhecimento positivo. Adoptamos o EASY care como instrumento de avaliação de qualidade de vida por reunir as dimensões físicas, mentais e sociais e estar centrado nas capacidades do idoso e não na doença. Resultados/conclusões 59 Resultados/conclusões 1 60 - Os idosos da nossa amostra são, numa maioria esmagadora, utentes do Serviço Nacional de Saúde; prevalece o sexo feminino; são idosos com idades compreendidas entre os 75 e os 101 anos; o grupo mais frequente é o dos idosos dos 75-79 anos. É no seio familiar que vive a maior parte deles, mas esse número é ultrapassado pelos idosos que vivem em lares e que vivem sozinhos. Uma primeira constatação que ressalta destes dados é o facto de cerca de metade desta população referir não ter qualquer tipo de apoio. Parte dos idosos da amostra frequenta o centro de dia e o centro de convívio e poucos são os que beneficiam de apoio domiciliário. A maior parte é analfabeta, seguindo-se o grupo dos que concluíram apenas a 4ª classe, com a idade entre os 11 e os 14 anos. Relativamente aos dados referentes ao mundo do trabalho, conclui-se que a maior parte destes idosos deixou de ter um trabalho remunerado a partir dos 56 anos. As mulheres desenvolveram, na sua maioria, actividades de tipo doméstico e os homens foram maioritariamente operários. 2 - No item incapacidade física, concluímos que a maioria dos idosos ouve bem, mastiga bem os alimentos e acha que os outros não têm dificuldade em compreendê-los, no entanto, apresentam dificuldades ao nível da visão. 3 - A percepção de qualidade de vida dos sujeitos da nossa amostra é maioritariamente avaliada por níveis de saúde razoáveis e fracos, com ausência ou situações raras de solidão e consideram ter uma boa habitação. 4 - Relativamente à avaliação da área funcional, mais de metade da amostra é completamente incapaz de realizar o trabalho doméstico ou necessita de alguma ajuda, maioritariamente assegurada pelas instituições públicas.No parâmetro preparação de refeições, constatamos que é próxima a percentagem dos que preparam as refeições e dos que se acham ser completamente incapazes de o fazer recebendo, na maior parte dos casos, ajuda pública. Já no que concerne às compras, os idosos são, em grande número, autónomos; caso contrário, recorrem à ajuda de familiares. Administrar o dinheiro é uma das tarefas realizadas sem ajuda por mais de metade dos nossos inquiridos que, em casos de necessidade, têm preferencialmente a ajuda de familiares. Usar o telefone não constitui dificuldade e, se existe, recorrem maioritariamente à ajuda pública, seguindo-se a ajuda familiar.Também na toma de medicamentos, a maioria basta-se a si própria, o que nos merece alguma preocupação, na medida em que muitos referiram dificuldades de visão. Também a este nível, é a ajuda pública que funciona em primeiro lugar. A saúde é considerada o bem mais precioso e constitui uma preocupação individual, extensível aos membros da família, com especial destaque para o cônjuge. Perder a saúde é perder autonomia, é diminuir ainda mais a capacidade financeira, é ganhar dependência com todas as suas consequências. 5 - Na avaliação da mobilidade, concluímos que existe uma distribuição aproximada entre o grupo de idosos que sobe e desce escadas sem ajuda e os que necessitam de alguma ajuda ou são incapazes de o fazer. Neste caso, desenvolvem algumas estratégias que assegurem a mobilidade possível na manutenção da sua própria autonomia e que indicam ser: o uso de bengalas, agarrar-se às paredes, aos corrimões, ajudas de colegas de quarto, etc. Apesar dos aspectos positivos da sua determinação, pensamos ser importante ter presente os acidentes frequentes neste grupo etário e as formas da sua prevenção. Além disso, segundo os discursos dos idosos, existem muitos receios de quedas e das suas consequências. Deslocarse da cama para a cadeira, usar a sanita ou cadeira sanitária, usar a banheira ou chuveiro, são actividades de vida realizadas pela maior parte dos idosos da amostra.As dificuldades ou impossibilidades de realização são compensadas pela ajuda pública. 6 - Quanto aos cuidados pessoais, os idosos, maioritariamente, conseguem tratar da sua aparência pessoal, vestir-se, alimentar-se e, se necessário, recorrem preferencialmente à ajuda pública. 7 - No que diz respeito ao controle esfincteriano, a maioria dos idosos afirma não ter problemas com a bexiga e com os intestinos. 8 - Ao avaliarmos o estado depressivo dos idosos, concluímos que a maioria está satisfeita com a vida que tem, não sente a vida como um vazio e sente-se feliz a maior parte do tempo. No entanto, distribuem-se em valores aproximados os que têm e os que não têm medo que algo lhes aconteça. Como razões de medo apontaram: as quedas, o abandono, as doenças, a solidão e a insegurança na rua. Os dados obtidos indicam a existência de situações que merecem uma observação mais cuidada e uma possível intervenção já que, cerca de metade da população idosa apresenta, pelo menos, um ou dois sinais de alerta de síndroma depressivo. 61 9 62 - No que respeita à avaliação cognitiva, concluímos que a maior parte dos idosos, embora localizada no tempo e no espaço, sentiu dificuldades na realização da tarefa de memorização. Os resultados finais revelaram que cerca de um quarto dos idosos realizaram o teste sem qualquer erro, apesar dos níveis baixos de escolaridade que possuem, e cerca de metade apresentam testes cognitivos normais ou com uma diminuição ligeira. Estes dados confirmam que os idosos desenvolveram estratégias de aprendizagem que os ajudaram a resolver as situações do dia-a-dia e que, conforme nos confidenciaram, conseguiram até aprender a ler e a escrever, embora muito mal. 10 - Os idosos consideram que a melhoria da sua qualidade de vida passa por questões relacionadas com a saúde, situação financeira, sentimentos de bem-estar, situações ligadas aos seus contextos de vida e ocupação de tempos livres. 11 - A saúde é considerada o bem mais precioso e constitui uma preocupação individual, extensível aos membros da família, com especial destaque para o cônjuge. Perder a saúde é perder autonomia, é diminuir ainda mais a capacidade financeira, é ganhar dependência com todas as suas consequências. 12 - Os idosos não poupam críticas aos serviços de saúde e ao seu funcionamento, bem como às faltas de apoio económico na doença. As suas fragilidades são, em grande parte, compensadas pela vivência de uma religiosidade que lhes confere espírito de resignação, conformismo e desejo de morte como libertação do sofrimento em que vivem. 13 - A situação financeira da maior parte dos idosos é muito má e, por isso, emergiram frequentemente dos seus discursos as dificuldades económicas que se repercutem no dia-a-dia e nas necessidades mais elementares, tais como: melhorar a alimentação, comprar medicamentos e pagar uma hora de vez em quando para limpar a casa. Ter mais dinheiro significaria ter uma vida mais digna, ou seja, melhorar as condições da habitação, dar uns passeios e ajudar os outros. Também a este nível pudemos constatar as preocupações dos idosos com os seus familiares pelos problemas de desemprego ou emprego precário e consequente falta de dinheiro para poder cumprir os compromissos assumidos.Apesar dos baixos rendimentos, são os idosos que, muitas vezes, estão a ajudar filhos e netos. Talvez por tudo isto, alguns sentem-se inseguros e receosos de perder o pouco que recebem e aproveitaram a oportunidade para tecer algumas críticas ao sistema político. 14 - A vivência de envelhecimento bem sucedido foi encontrada num número reduzido de idosos, sendo muito mais visíveis os desânimos e o desejo de segurança, de companhia, de mais alegria, paz e sossego. 15 - Permanecer na sua casa, sentir-se amado e apoiado pela família, são os requisitos para o idoso atingir a tão desejada qualidade de vida. Os seus discursos são claros quanto à vontade de viver em família, especialmente com o cônjuge, filhos e netos. No entanto, são frequentes as expressões ligadas aos sentimentos que vivem de abandono, de solidão, de desânimo e de resignação. Por vezes, sentem de tal forma esse abandono que anseiam a entrada no lar para não aborrecer os outros. A maior parte dos idosos que reside nos lares, mostrou-se contrariado por lá permanecer e os idosos que estão adaptados não deixaram de referir a importância das visitas dos familiares e o abandono a que muitos estão votados. Estas vivências fazem com que os seus discursos estejam imbuídos de sentimentos de amargura, de desilusão e de revolta, acompanhados de muitas lágrimas de quem, quantas vezes, só anseia a morte por entender que já não está cá a fazer nada. A espiritualidade constitui um refúgio para muitos. 16 - Quanto à existência de objectivos e de prazos para a sua concretização, concluímos que os seus discursos são, quase sempre, repetitivos das respostas dadas acerca dos factores que poderiam melhorar a sua qualidade de vida. Achar que está tudo feito, que já cumpriram a sua missão ou que já nada vale a pena, são posturas assumidas que confirmam, uma vez mais, que os idosos vivem ou permanecem muitas vezes em espaços pouco educativos e pouco estimulantes. 17 - Deparamo-nos frequentemente com idosos adaptados a esta vida parada, diante de uma televisão que funciona mas que ninguém vê, sentados lado a lado sem comunicar, esperando a passagem do tempo, dos dias, sempre igual. Esta monotonia conduz à aprendizagem da desilusão, do desânimo, da tristeza, da falta de sentido para a vida e o desejo da morte. Convivemos também com idosos que planeiam ler, fazer a 4ª classe, ensinar, pintar, contar histórias, fazer um terço, continuar a tratar dos seus quintais, desenvolver actividades de ajuda aos outros, fazer trabalhos manuais, viajar e assistir a eventos familiares. 63 Do trabalho desenvolvido com os autarcas, concluímos que: - Os equipamentos e apoios no concelho de V.N. de Gaia são insuficientes para as necessidades existentes. - A maior parte dos autarcas sente a incapacidade de responder aos problemas, defende a permanência do idoso no seu contexto natural e, por isso, reconhece a necessidade de mais centros de dia, de mais serviços de apoio domiciliário e de cuidados continuados. 64 - Como programa de intervenção na área dos idosos, os autarcas defendem actividades de lazer em que predominam os passeios, as actividades de apoio social e económico e, quase sem expressão, surgem as actividades relacionadas com a saúde. - A maioria dos autarcas define a pessoa idosa tendo em conta características da dimensão social, seguindo-se as dimensões físicas, psicoafectiva e, finalmente, idade cronológica. - Na caracterização do idoso, prevalecem as respostas que conferem uma visão negativa ao envelhecimento. - Questionados sobre o que consideram ser as necessidades do idoso, a maioria refere ser o apoio social e económico seguindo-se, em igual percentagem, a saúde e a rede de apoio. Apenas um autarca refere a maior participação. - A maioria dos autarcas afirma que os desejos dos idosos são o apoio social, seguindo-se o apoio na saúde/doença, a maior participação e o desenvolvimento de actividades de cultura e lazer. A maior parte dos autarcas sente a incapacidade de responder aos problemas, defende a permanência do idoso no seu contexto natural e, por isso, reconhece a necessidade de mais centros de dia, de mais serviços de apoio domiciliário e de cuidados continuados. 65 Ao compararmos os discursos dos idosos com os dos autarcas, encontramos muitos pontos comuns mas, na prática, parece-nos existir alguma dissonância. Se não vejamos: A - É verdade que os autarcas, tal como os idosos, atribuem grande importância à saúde, o que é visível nas suas palavras; no entanto, nos seus programas de intervenção dão prioridade aos passeios e actividades de convívio. Reconhecemos a sua utilidade, o que representam para os idosos e o seu contributo para a saúde mental dos mesmos, mas defendemos o investimento em áreas que acompanhem o idoso no seu dia-a-dia e não apenas que lhe proporcionem o passeio anual e o calendário de festividades. B - Os discursos dos idosos estão mais centrados na saúde individual e dos seus familiares, enquanto que os dos autarcas são mais teóricos ao enunciarem medidas de melhoria assistencial e de funcionamento de serviços. C - Melhorar a qualidade de vida através da melhoria financeira é das medidas em que existe grande coincidência nos discursos dos dois grupos estudados. D - Sobre a forma de contribuir para o bem-estar, do ponto de vista dos autarcas, emergem discursos promotores da participação dos idosos na comunidade em que vivem enquanto que, nos idosos, foi mais emergente o desânimo aprendido. As preocupações com a segurança física expressas pelos idosos nunca foram referidas pelos autarcas. E - Tanto idosos como autarcas afirmaram ter o desejo de permanência do idoso no seu habitat natural, emergindo do discurso dos idosos o apoio familiar, enquanto os autarcas defendem o apoio domiciliário. F - Muitos idosos manifestaram o desejo de continuar a trabalhar, ajudar os outros, pintar, aprender a ler, etc., aspectos ausentes nos discursos dos autarcas, que continuam mais centrados nas actividades de viagens e almoços de Natal. 66 Propostas de intervenção O aumento da esperança de vida tem de estar associado a uma melhoria de qualidade da mesma o que, e de acordo com este estudo, está bem longe de ser conseguida. É urgente acrescentar a este prolongamento de vida, a educação dos idosos “...uma vez que, por um lado, são cada vez mais acentuadas as suas necessidades de educação e, por outro, é muito fraco o seu nível de participação na educação de adultos, comparado ao dos outros grupos etários” (Simões, 1999, pág. 7). rimos a incrementação de uma verdadeira rede de apoio domiciliário, onde equipas de saúde constituídas por médicos, enfermeiros e técnicos intermédios, actuem perante os casos em presença. Fundamental também será a formação destes profissionais nas dimensões científica, técnica, humana e o desenvolvimento de um trabalho directo com as famílias elaborando, entre outros, programas para a sua formação, já que é imprescindível para a conquista de uma vida digna nesta fase do desenvolvimento humano. Tendo em conta estes pressupostos e as conclusões a que este estudo conduziu, é agora o momento de apresentarmos algumas propostas educativas de intervenção, que deverão ser operacionalizadas em programas concretos: III - Tal como sugeriram alguns autarcas, também defendemos a existência de pequenas residências comunitárias, apenas para casos excepcionais e que permitam ao idoso continuar ligado às suas raízes. I - Investir na área de educação para a saúde será melhorar a assistência na saúde, assegurar mais cuidados na doença e garantir equidade na utilização de serviços. Estas medidas constituem formas de elevar o bem-estar físico e psicológico das pessoas idosas, minimizando as dependências já instaladas e os estados depressivos associados. II - Tendo em conta as preferências do idoso em permanecer na sua habitação, suge- IV - Recriar o tempo livre que possui este grupo, desenvolvendo actividades que estimulem as suas capacidades afectivas, motoras, sociais e cognitivas, em que se sintam úteis e realizados, tais como: jardinagem, quintal, culinária, experiências de convivência intergeracional, exercício físico, danças e cantares tradicionais, recolha de histórias de vida, dramatização, visitas culturais, levantamento de provérbios e de tradições, partilha de experiências vividas, excursões, bailes, organização de festas, aprender a ler e a escrever, pintar, etc. Incrementar actividades que estimulem as capacidades cognitivas e a convivialidade parece-nos uma das estratégias a desenvolver. V - A passagem dos discursos políticos à concretização de medidas políticas e sociais mais justas é um imperativo à melhoria da qualidade de vida de grande parte dos idosos que vivem em grande isolamento e abandono familiar e social. VI - Incrementar uma maior participação dos idosos nas associações de carácter recreativo e cultural, bem como nas instituições em que se integram. VII - Possibilitar ao idoso continuar a trabalhar quando o deseja, nas instituições onde permanece, podendo ser no quintal, jardinagem, actividades domésticas, etc. VIII - Elaborar programas de educação intergeracional em que os idosos sejam propagadores de tradições, fazendo com que participem na educação das novas gerações dando assistência nas escolas para ensinar os jogos tradicionais, contos populares e, ao mesmo tempo, a sua experiência de vida. Investir na área de educação para a saúde será melhorar a assistência na saúde, assegurar mais cuidados na doença e garantir equidade na utilização de serviços. Estas medidas constituem formas de elevar o bem-estar físico e psicológico das pessoas idosas, minimizando as dependências já instaladas e os estados depressivos associados. 67 Referências bibliográficas 68 CARDOSO, F. A. 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Assumir uma verdadeira política dos mais velhos, prevenir desequilíbrios e situações de injustiça social geradores de tensões e conflitos sociais, tornando a vida destas pessoas mais feliz, mais justa, mais produtiva e menos dependente, constitui um desafio das sociedades modernas. O quadro teórico iniciado e o trabalho empírico desenvolvido permitiram-nos proble- matizar e compreender um pouco melhor a realidade estudada, o que nos leva a reafirmar que ser velho não equivale a ser doente, decrépito, inútil, sem objectivos ou interesses e ser dependente. Os verdadeiros problemas dos idosos são a imobilidade, a instabilidade, o isolamento, a rejeição, a doença, a insegurança, entre outros, por implicarem prejuízos na independência funcional e no exercício de actividades alimentares, higiénicas e sociais. Intervir a nível da promoção e prevenção, estimular e promover formas de participação e não cair nos extremos de hostilidade inconsciente ou ternura e super-protecção excessivas, são estratégias a desenvolver, por forma a alcançar uma melhor qualidade de vida. Ao longo desta investigação, a nossa preocupação centrou-se mais na avaliação personalizada das potencialidades de cada idoso e na descoberta do que poderia melhorar a sua qualidade de vida, do que quantificar a mesma. Pensamos ter conseguido identificar algumas áreas que justificam uma intervenção que envolva os idosos, as suas famílias e os responsáveis dos concelhos portugueses na construção de uma verdadeira sociedade educativa. 69 Célia Franco Assistente Graduada de Psiquiatria Serviço de Tratamento de Alcoolismos, Hospital Sobral Cid 0 – Introdução A utilização de bebidas alcoólicas pelo homem é tão antiga que se confunde com o aparecimento da própria humanidade.As complicações associadas ao seu consumo regular são inúmeras e incluem problemas orgânicos, psíquicos, familiares, laborais, sociais e judiciais. O tratamento é complexo, pelo que ainda não se conseguiu encontrar um protocolo terapêutico que responda de forma completa e adequada a todas as situações. As propostas terapêuticas são múltiplas, incluindo farmacoterapia, psicoterapias, intervenções sociais, grupos de apoio, bem como a associação destas várias abordagens. A verdade é que cada doente representa um novo desafio de detecção das áreas da sua vida lesadas pela doença e uma procura das abordagens que o possam ajudar a ultrapassar as suas dificuldades e problemas. 72 1 – Aspectos históricos O início do consumo de bebidas alcoólicas pelo Homem perde-se no tempo. Marques, (1997), refere que cerca de 30.000 anos aC, por altura do período Neolítico e do aparecimento do Homem de Cromagnon (início do “Homo Sapiens”), já se utilizariam bebidas fermentadas com efeitos inebriantes e embriagantes. A produção regular de bebidas fermentadas terá surgido com a passagem do nomadismo ao sedentarismo e a organização da agricultura, por volta de 8.000 anos aC. Desde esses tempos que se encontram referências aos efeitos agudos destas substâncias, bem como avisos contra o seu consumo excessivo, quer entre os egípcios quer entre os outros povos, incluindo Ásia Ocidental e Austrália (ibidem). dos países de África, América e Oriente, por holandeses, portugueses, espanhóis e ingleses, estendeu o consumo de bebidas alcoólicas a todo o mundo. No século XVIII, com a industrialização, o consumo de álcool começou a ser associado ao stress, à pressão da vida, bem como ao sucesso e à riqueza. Com a romanização do Ocidente desenvolveu-se o culto do vinho e a implementação da cultura da vinha na França e Península Ibérica. No século XIII surgiu o alambique e as bebidas destiladas começaram a ser utilizadas como medicamento. No século XVI a colonização Em 1970 surgiram os primeiros dados alarmantes sobre a prevalência destes problemas. Em 1980 a Organização Mundial de Saúde (OMS) manifestou séria preocupação sobre o problema do alcoolismo. No século XIX surgiu pela primeira vez o termo alcoolismo, quando Hauss descreveu uma doença causada pelo consumo excessivo de álcool. Em 1849 foi publicada a obra Alcoolismus Cronicus, onde se descrevia esta nova doença. Em 1923 começou a falar-se em Alcoologia como uma nova ciência. Contudo, só em 1958 com Santo Domingo e, mais tarde, em 1966, com Fouquet, surgiram as primeiras propostas de tratamento da doença (ibidem). 2 – Epidemiologia Em 1970, a OMS referiu haver «40 milhões de doentes alcoólicos na URSS, 18 milhões nos EUA, 5 milhões na França e perto de 1 milhão em Portugal» (Marques, 1997). Por essa altura calculava-se que na Grã-Bretanha os doentes alcoólicos custavam 1700 milhões de libras, 20% das hospitalizações e 25.000 óbitos/ano (ibidem). Rehn (2001, citado por Gomes, 2006), referiu que o consumo de álcool na União Europeia se relaciona com «20 a 40% das admissões psiquiátricas, 20 a 40% dos suicídios masculinos, 40 a 60% dos incidentes violentos e com cerca de 30% dos acidentes de viação». Relativamente à situação em Portugal, Gameiro (1998), referia a existência de 750.000 consumidores excessivos (cerca de 9,4% da população nacional) e 580.000 doentes com síndrome de dependência alcoólica (cerca de 7% da população nacional). Gomes (2006), refere que os Problemas Ligados ao Álcool (PLA) «constituem um importante problema de Saúde Pública e interferem com variados aspectos da vida do indivíduo, desde os problemas de saúde individual e familiar, a nível laboral e social, sendo causa frequente de problemas judiciais». 73 74 3 – Etiopatogenia Os mecanismos pelos quais se produzem alterações orgânicas, psicológicas e sociais que levam à instalação e ao perpetuar das dependências são complexos e multifactoriais. As teorias propostas para explicar o seu desenvolvimento têm sido múltiplas. As teorias psicodinâmicas mais actuais consideram as dependências como tentativas adaptativas para aliviar o sofrimento emocional e reparar deficiências de auto-regulação (Brehm; Khantzian in Lowinson, 1997). Os estudos moleculares genéticos sugerem a existência de genes associados à susceptibilidade para o alcoolismo. Do ponto de vista biológico o álcool altera o funcionamento do cérebro modificando os mecanismos de regulação dos neurotransmissores cerebrais, nomeadamente o glutamato (efeitos excitatórios) o GABA (efeitos inibitórios) e a dopamina (reforço do consumo). As teorias cognitivo-comportamentais, consideram o desenvolvimento das dependências relacionados com os mecanismos do reforço. O craving é considerado como importante na manutenção e recaída da dependência. Também os factores sócioculturais são considerados importantes na instalação e perpetuação da doença. O mais provável é que todos estes factores possam estar envolvidos, variando a sua importância com o tipo de dependência, o indivíduo, e o meio em que este vive. No entanto, a doença alcoólica tem algumas particularidades, na medida em que o álcool faz parte integrante das nossas culturas, sendo o seu consumo incentivado em todos os meios sociais, tendo, portanto, os factores sociais um peso maior na sua instalação, perpetuação e recaída do que nas outras dependências. 4 – Prevenção Uma perturbação com a implantação e impacto como a dos PLA, exige da sociedade uma atenta e firme atitude de prevenção. Ferreira-Borges (2004) referem que as estratégias de prevenção das dependências assentam em três princípios, que poderão ser mobilizados isoladamente ou em articulação: a redução da oferta, a redução da procura e a redução das condições sociais associadas ao fenómeno. Relativamente à redução da oferta têm sido tomadas algumas medidas tímidas, como proibir a venda a menores e a doentes portadores de anomalia psíquica. A redução da procura também não tem sido muito eficaz até ao momento, e por isso temos verificado um incremento do consumo entre os jovens. Quanto às condições sociais associadas, têmse notado algumas diferenças.As novas medidas legislativas e a maior firmeza na fiscalização do consumo de álcool em condutores de veículos automóveis, bem como uma atitude mais assertiva por parte das entidades empregadoras e a intervenção dos tribunais nos casos de violência doméstica, têm tido alguns resultados dissuasores do consumo e são incentivadores para o tratamento de pessoas com doença. Os mecanismos pelos quais se produzem alterações orgânicas, psicológicas e sociais que levam à instalação e ao perpetuar das dependências são complexos e multifactoriais. As teorias propostas para explicar o seu desenvolvimento têm sido múltiplas. 75 5 – Bebidas alcoólicas O álcool etílico ou etanol (CH3 CH2 OH) é uma substância química que resulta da fermentação de frutos ou cereais. É um líquido incolor, volátil, que se encontra diluído em certas bebidas, chamadas de bebidas alcoólicas. Chama-se graduação alcoólica duma bebida à percentagem volumétrica de álcool puro nela contido. Esta é referida em graus (°) e representa a quantidade de álcool dissolvido num litro da bebida. Através da destilação é possível aumentar a graduação das bebidas alcoólicas, obtendo-se as bebidas chamadas de destiladas (Mello, et al, 1988). No quadro 1 referem-se as bebidas e suas graduações. Para se poder estudar e comparar dados, foi necessário criar uma unidade de medida padrão para medir de forma simples a quantidade de álcool ingerida por um indivíduo. Apesar da dose de álcool presente em cada bebida variar com a respectiva graduação, como estas são consumidas em copos de diferentes tamanhos, as quantidades padronizadas para consumo têm dose idêntica de álcool. Assim sendo, assume-se como unidade de bebida padrão o copo entendido como o recipiente habitualmente utilizado para aquele tipo de bebida e que contém cerca de 10 a 12 g de álcool puro. O quadro 2 descreve as quantidades de álcool do copo de diferentes bebidas (ibidem). 76 Quadro 1 – Bebidas alcoólicas e suas graduações Tipo Bebidas Fermentadas Grupo Bebida Cervejas Cerveja sem álcool Cereais 1,2 a 2° Cidra Maçã 4 a 5° Cervejas Cerveja Cereais 4 a 6° Vinhos Vinho Uva 8 a 13° Madeira Porto Vinhos Licorosos Aniz Licores Vinho 15 a 20° Cognac Vinho Bebidas Destiladas Origem Graduação Aguardente de figo Frutos Aguardentes Whisky Vodka Gin Sementes Rhum Melaço Cana sacarina 45° 6 – Álcool no organismo Durante o consumo de bebidas alcoólicas, o álcool contido nestas é ingerido pela boca e chegado ao tubo digestivo é inteiramente absorvido para a circulação sanguínea (15 a 20 minutos em jejum e 30 minutos com a presença de alimentos), sem sofrer processos de digestão. É rapidamente distribuído a todos os órgãos. Atravessa sem qualquer dificuldade a barreira hemato-encefálica e a placenta. Atinge primeiro e em maiores quantidades os órgãos mais vascularizados (fígado, cérebro, rins, coração e músculos). Os efeitos agudos da presença de álcool no organismo relacionamse com a quantidade de substância circulante, a alcoolémia. Esta é definida como a taxa de álcool no sangue num determinado momento (em gramas de álcool por litro de sangue g/l). O cálculo da taxa de alcoolémia é feito através duma fórmula, conforme o quadro 3 (ibidem). A alcoolémia varia ao longo do tempo, atingindo o seu máximo cerca de 1,5 horas após o consumo. Depois vai diminuindo de acordo com a velocidade de degradação do álcool no organismo, sendo mais rápida numa primeira fase e mais lenta nas fases subsequentes. A sua representação gráfica é uma curva chamada curva de alcoolémia. 77 Quadro 2 – Quantidades de álcool do copo de diferentes bebidas In Mello, 1988 Cerveja Vinho Aperitivo Aguardente Capacidade do copo 3dl 1,65dl 0,5dl 0,5dl Conteúdo em álcool puro 12g 12 a 13g 10 a 12g 14 a 16g Quadro 3 – Fórmula para cálculo da alcoolémia In Mello, 1988 Alcoolémia= Peso do álcool puro consumido (em gramas) Peso corporal (em kg) × Coeficiente (0,7 nos homens) (0,6 nas mulheres) (1,1 com as refeições 7 – Diagnóstico A variedade de sintomas iniciais possíveis pode tornar o diagnóstico difícil. Muitas vezes as primeiras queixas são do aparelho gastrointestinal, desde a dispepsia às úlceras. Frequentes são também os traumatismos, acidentes de trabalho, necessidade frequente de baixas médicas. Mais complicado é quando os primeiros sintomas estão relacionados com o funcionamento psicológico do indivíduo. Muitas vezes são medicados sintomaticamente, demorando muito tempo até que seja feito o diagnóstico. 78 Os cuidados de saúde primários são o local de eleição para a detecção dos consumos de risco e o diagnóstico precoce dos consumos nocivos e dos doentes dependentes. Uma correcta história dos hábitos alimentares e de consumo é fundamental. Contudo, muitas vezes perguntar ao doente o que bebe ou se bebe bebidas alcoólicas não é indicador fiável. Especialmente em presença dum consumidor nocivo ou dum dependente que terão tendência a desvalorizar o consumo. As próprias famílias, muitas vezes, não são muito precisas nas informações, considerando normais consumos francamente exagerados. Para obter dados mais fiáveis convém diluir as perguntas relativas aos consumos nas dos hábitos alimentares, perguntando o que ingere ao longo do dia. O quadro 4 poderá servir de orientação para estas perguntas. Para facilitar o rastreio dos consumos nocivos e dos doentes com dependência alcoólica, poderão ser utilizados questionários e meios laboratoriais. Entre os questionários, o AUDIT, o Cage e o Five-shot, têm-se revelado eficazes na detecção de bebedores excessivos e dependentes, e de utilização fácil e rápida. Quanto aos exames laboratoriais, o volume globular médio (VGM), a gama glutamil transpeptidase (Gama GT), e a deficiência de carbohidrato de transferrina (CDT), embora não servindo como meio de diagnóstico, são bons indicadores de lesão hepática ou para acompanhar a evolução dos doentes. A alteração de outros valores como fosfatase alcalina e as transaminases está geralmente associada a situações mais graves, com maior lesão hepática. Quadro 4 – Hábitos alimentares e de consumo de bebidas alcoólicas O que bebe O que bebe Total de copos por semana (copos por dia x 7 dias ) Nº copos (copos/dia) (copos/dia) (copos/semana) Nos dias de semana Hora Ao levantar Durante a manhã Ao almoço Durante a tarde Jantar À noite TOTAL O que come Aos fins-desemana 8 – Clínica As manifestações clínicas associadas aos efeitos do consumo de bebidas alcoólicas podem ser agudas ou crónicas. O álcool etílico ou etanol é uma substância química que resulta da fermentação de frutos ou cereais. É um líquido incolor, volátil, que se encontra diluído em certas bebidas, chamadas de bebidas alcoólicas. Chama-se graduação alcoólica duma bebida à percentagem volumétrica de álcool puro nela contido. 8.1 – Quadros agudos O Etilismo Agudo (embriaguês) surge na sequência de uma ingestão abundante de bebidas alcoólicas num curto período de tempo e relaciona-se com a acção directa do álcool sobre o sistema nervoso central (SNC). É classificado pela 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (ICD-10) como intoxicação aguda e definido como «uma condição transitória, resultante do consumo de álcool traduzida por alterações no nível de consciência, cognição, percepção, afectos e comportamento, ou outras funções e respostas psicofisiológicas» (ICD-10, 1992). Esta classificação considera que este diagnóstico só deve ser utilizado se não existirem previamente outros problemas relacionados com o álcool. Na presença destes deverá ser utilizado o diagnóstico de uso nocivo, síndrome de dependência ou perturbação psicótica. A gravidade da intoxicação depende do valor da alcoolémia. Como indicador podemos considerar os valores referidos no quadro 5. Quadro 5 – Perturbações associadas às quantidades de álcool ingeridas e alcoolémia In Mello, 1988 Quantidade ingerida Alcoolémia Perturbações Associadas 0,75l de vinho 0,5 a 0,8g/l Tempos de reacção aumentados; Reacções motoras alteradas; Euforia. 1,5l de vinho 0,8 a 1,5g/l Reflexos mais alterados; Sinais de embriaguês; Perigo no trabalho e condução. 2l de vinho 1,5 a 3g/l Perturbação da marcha; Diplopia; Embriaguês nítida; Condução e trabalho muito perigosos. 3l de vinho 3 a 5g/l Embriaguês profunda; Condução impossível. Mais de 3l de vinho Mais de 5g/l Coma; Morte. 79 Contudo, nas pessoas com hábitos excessivos ou com dependência alcoólica, estes valores não têm significado. À medida que o organismo vai desenvolvendo tolerância ao álcool a sua resposta vai sendo diferente. Assim, é frequente encontrarmos indivíduos com elevadas taxas de alcoolémia sem qualquer sintoma aparente desse consumo. Isto obriga os técnicos a estarem muito atentos e a proceder a análises laboratoriais sempre que se justifique. 80 Clinicamente, estes doentes apresentam desinibição, agitação e combatividade, podendo com muita facilidade passar a agressivos. O discurso é muitas vezes desadequado e com frequência utilizam termos grosseiros, que não usam habitualmente. Com o agravamento da intoxicação começam a surgir os sintomas de sedação podendo evoluir para a prostração e coma. Simultaneamente, é frequente a instalação de hipoglicémia que, por sua vez, também pode condicionar o aparecimento de obnubiliação da consciência. Como complicação podem surgir convulsões. A vigilância dos sinais vitais é fundamental, o fornecimento de soros glicosados bem como as terapêuticas adequadas para prevenir e tratar a agitação psicomotora e o aparecimento de convulsões. A embriaguês patológica é referida pela ICD-10 como o aparecimento repentino de agressão e comportamentos violentos, não habituais no indivíduo quando sóbrio, após ingestão de pequenas quantidades de álcool, que noutras pessoas não costumam provocar intoxicação. 8.2 – Quadros crónicos O consumo regular e continuado de bebidas alcoólicas origina processos de doença. Estes relacionam-se com as doses ingeridas, o tempo de exposição, o padrão de consumo bem como a vulnerabilidade individual. Por outro lado, estes não têm só a ver com doença física, como implicam doenças mentais, problemas de comportamento e ainda problemas familiares, laborais, sociais e judiciais. A OMS classifica os consumos de bebidas alcoólicas de baixo risco, risco, nocivo e dependência (Babour, 2001, citado por Gomes, 2006). O consumo de baixo risco é definido como o padrão de consumo do qual não resultarão PLA (ibidem). Os valores indicados neste grupo são referidos no quadro 6. Contudo, existem situações especiais, em que os indivíduos devem manter abstinência total de consumo de álcool, como sejam as mulheres grávidas e a amamentar, pessoas a tomar medicamentos, em situação de doença e doentes com dependência alcoólica. Consumo de risco é definido como um padrão de consumo que, se persistir, pode vir a implicar dano físico ou mental (ibidem). Consumo nocivo é definido pela ICD-10 como um padrão de utilização de uma substância psicoactiva que está a causar danos à saúde (físico ou mental). A Síndrome de Dependência Alcoólica, Alcoolismo ou Doença Alcoólica, é descrita pela ICD-10 como o conjunto de fenómenos psicológicos, comportamentais e cognitivos, em que o consumo de uma substância ou classe de substâncias assume uma prioridade muito superior para o indivíduo relativamente aos restantes comportamentos que costumavam ser prioritários. Os critérios de diagnóstico incluem: A variedade de sintomas iniciais possíveis pode tornar o diagnóstico difícil. Muitas vezes as primeiras queixas são do aparelho gastrointestinal, desde a dispepsia às úlceras. Frequentes são também os traumatismos, acidentes de trabalho, necessidade frequente de baixas médicas. Mais complicado é quando os primeiros sintomas estão relacionados com o funcionamento psicológico do indivíduo. Muitas vezes são medicados sintomaticamente, demorando muito tempo até que seja feito o diagnóstico. Quadro 6 – Valores referidos pela OMS como de consumo de baixo risco Consumo baixo risco Homem Até 2 bebidas (copos) /dia Mulher Até 1 bebida (copo) /dia ou Até 2 unidades/dia e não beber pelo menos 2 dias/semana Forte desejo, ou mesmo compulsão, para o consumo; Dificuldades em controlar o comportamento de consumo do álcool, em termos de início, términos e níveis de consumo; Estado de privação quando o consumo pára ou é reduzido; Aparecimento de tolerância; Negligência progressiva ou alteração dos interesses por causa do álcool, aumentando o tempo para o obter e para recuperar do seu consumo; Manutenção do consumo, apesar das evidências claras da existência de consequências prejudiciais. As manifestações clínicas da doença alcoólica são muito variáveis e podem afectar todos os órgãos. Entre os primeiros sintomas encontram-se a falta de forças, anedonia, desinteresse, cansaço fácil, insónia, irritabilidade, agressividade, ansiedade e depressão. Com frequência aparecem queixas psicossomáticas múltiplas e relacionadas com diversos sistemas. Progressivamente pode surgir desnutrição, agravando-se com a evolução da doença. Com esta surgem também os sinais de impregnação alcoólica (fácies característico, aranhas vasculares nas faces,tremores dos membros superiores). Contudo, a maioria das alterações encontradas não se deve ao efeito directo do álcool mas às lesões que este provoca nos vários órgãos e serão descritas nas complicações. 81 8.3 – Síndrome de privação alcoólica É descrito pela ICD-10 como um grupo de sintomas e sinais de severidade variável, associado à suspensão abrupta ou redução rápida da dose do consumo de álcool. Surge com frequência no início da desintoxicação alcoólica ou quando os doentes dependentes tentam parar de beber sem tratamento. No quadro 7 resumem-se os sintomas mais frequentes. 82 Nos casos mais graves pode surgir o delirium tremens. Trata-se dum estado de privação alcoólica grave, caracterizado por intensa hiperactividade do Sistema Nervoso Autónomo (SNA), taquicardia (≥120 p/ minuto), aumento da frequência respiratória, elevação da tensão arterial, elevação da temperatura (com frequência acima de 38,4° C), tremores acentuados dos membros superiores, desorientação, confusão, discurso desconexo e por fim, agitação psicomotora.Acompanha-se de quadro de alucinações visuais ou tácteis, frequentemente com animais (zoopsias). É uma situação de emergência podendo originar a morte por exaustão, se não for devidamente tratada. O consumo regular e continuado de bebidas alcoólicas origina processos de doença. Estes relacionam-se com as doses ingeridas, o tempo de exposição, o padrão de consumo bem como a vulnerabilidade individual. Por outro lado, estes não têm só a ver com doença física, como implicam doenças mentais, problemas de comportamento e ainda problemas familiares, laborais, sociais e judiciais. Quadro 7 – Sintomas frequentes na Síndrome de Privação Alcoólica Disfunção de SNA Sistema Motor Aparelho Gastrointestinal SNC Sintomas Suores; Pulso acelerado; Frequência respiratória acelerada; Ligeira subida da temperatura; Ligeira elevação da Tensão Arterial. Tremores dos membros superiores. Anorexia; Náuseas; Vómitos. Alterações emocionais; Inquietação; Irritabilidade; Convulsões; Agitação; Delirium Tremens. 9 – Complicações As complicações podem afectar o corpo, o psíquico e toda a vida do indivíduo. 9.1 – Complicações orgânicas As complicações orgânicas são frequentes e muito variadas. Dependem sobretudo da constituição individual. No quadro 8 apresentamos as complicações de acordo com os sistemas afectados. 9.2 – Complicações psiquiátricas Muitas vezes os sintomas psiquiátricos são o primeiro sinal de doença alcoólica, embora frequentemente não sejam valorizados como tal. Os doentes podem apresentar como primeiros sintomas inquietação, ansiedade, insónia, irritabilidade fácil, humor deprimido, angústia, sem que se encontre uma causa que justifique este quadro. Podem ainda apresentar inúmeras queixas psicossomáticas, desde dispepsia, dores generalizadas, palpitações, dispneia. Progressivamente vão-se instalando as alterações mais específicas e mais graves, como agressividade, alterações de comportamento e perturbações delirantes de ciúme ou paranóide. Com muita frequência surgem perturbações mnésicas de gravidade variável, sendo frequente o aparecimento de Demências Alcoólicas em indivíduos ainda novos (45 a 65 anos). É muito frequente a comorbilidade entre alcoolismo e patologia psiquiátrica. Por um lado, os doentes com doença mental, como esquizofrenia ou perturbações afectivas, frequentemente utilizam o álcool para aliviar ansiedade e angústia,acabando por ficar dependentes. Por outro lado, os doentes alcoólicos frequentemente desenvolvem perturbações psíquicas secundárias, como depressões e psicoses. Em certos doentes pode ser difícil saber qual das perturbações surgiu primeiro, de tal forma a sua evolução é paralela. Complexa é também a situação da comorbilidade entre alcoolismo e dependência de substâncias ilícitas. Esta é muito frequente entre os doentes mais jovens. Muitos começam por ser dependentes de outras substâncias e, após desintoxicação, acabam por ficar dependentes do álcool. 9.3 – Complicações familiares O doente com doença alcoólica geralmente adoece integrado na família e mantém-se nela durante o agravamento do seu estado clínico. Todas as alterações psíquicas, de comportamento por que passa, viram-se em primeiro lugar contra os familiares mais próximos, geralmente, o cônjuge, os filhos, e depois os pais e outros familiares. As situações de forte conflitualidade, agressões e violência doméstica, violação, por que muitas destas famílias passam, são graves, continuadas e provocam patologia 83 Quadro 8 – Complicações orgânicas do consumo de álcool 84 Aparelho Gastrointestinal Neurológicas Gerais Complicações Esofagites; Hérnias do hiato; Gastrites; Úlceras gastroduodenais; Esteatose hepática; Cirrose hepática; Pancreatites. Neuropatias periféricas (carência de vitamina B); Neuropatia retrobulbar (carências vitaminicas); Doença degenerativa do lobo cerebelar anterior; Síndroma de Wernicke-Korsakof; Deterioração cognitiva; Sintomas extra-piramidais; Disquinésias tardias; Epilepsia. Diabetes Mellitus; Desidratação e desnutrição graves; Desequilíbrios iónicos e metabólicos; Encefalopatia hepática; Morte súbita. Hematológicas Anemia; Trombocitopenia. Cardíacas Cardiomiopatia. Musculares Miopatia. Carcinoma do pulmão; Carcinoma da orofarínge; Neoplasias gastroduodenais; Neoplasias hepáticas; Neoplasia pancreática. Neoplásicas Sexuais Diminuição da libido; Impotência sexual. nos familiares mais próximos. Assim, estes chegam à consulta de psiquiatria, muitas vezes, primeiro do que o próprio doente, com perturbações da adaptação e funcionamentos desadequados. Esta é uma situação de tal forma frequente e grave que já se definiu o conceito de Codependência. Este refere-se ao conjunto de comportamentos maladaptativos aprendidos pela(s) pessoa(s) que convivem de forma directa com alguém que tem uma dependência química, nomeadamente do álcool. Esta aprendizagem tem por objectivo resistir a uma situação de stress intenso e prolongado associado a profundo sofrimento psíquico (Zampieri, 2004). 9.4 – Complicações laborais Sendo a falta de forças, o desinteresse e o cansaço fácil dos primeiros sintomas a surgir, a taxa de absentismo destes doentes é muito alta. Começam por faltar ao trabalho, ter dificuldade no cumprimento das suas obrigações, piorar o desempenho e aumentar o risco de sinistralidade no trabalho. Aumenta também a conflituosidade com colegas e superiores hierárquicos. Seguem-se longos períodos de baixa e despedimento (pela entidade empregadora ou pelo próprio devido a momentos de impulsividade). Os níveis de desemprego são muito elevados. Finalmente, com o desenvolvimento de hepatopatias ou demências precoces, surgem reformas por incapacidade em indivíduos muito novos e que deveriam estar na plenitude da sua idade produtiva. 9.5 – Complicações jurídicas Com frequência estes doentes têm problemas legais associados à condução sob efeito de álcool, sinistralidade rodoviária, crimes de violência doméstica, violação, agressão e homicídios. Muitas vezes o primeiro contacto com os serviços de saúde é por ordem do tribunal. Estes doentes são particularmente difíceis de tratar, na medida em que a critica para a doença é geralmente nula, bem como a motivação para o tratamento. No entanto, após a desintoxicação alcoólica e ao longo do trabalho psicoterapêutico que se vai desenvolvendo, muitas vezes a atitude do doente muda, desenvolvendo critica para a doença e a motivação para o tratamento e a abstinência. 9.6 – Complicações sociais Com a evolução da doença a situação social do doente e da sua família vai sendo progressivamente cada vez mais grave, chegando a níveis de pobreza e desinserção social. Muitas vezes os doentes chegam à situação de sem abrigo. Por outro lado, a deterioração mental e cognitiva que esta doença pode originar, leva a que, com alguma frequência, doentes ainda novos (entre os 45 e os 60 anos), desenvolvam processos que os incapacitam para desenvolver actividade ou recuperar uma vida autónoma, não podendo os cônjuges ser os seus cuidadores, por ainda terem de cuidar de filhos menores. Os equipamentos sociais não estavam até há pouco tempo sensíveis a este tipo de situação, não sendo possível integrar nos centros de dia e lares pessoas com menos de 65 anos, ainda que irreversivelmente incapacitadas. Felizmente começamos a encontrar alguma sensibilidade para estes problemas em algumas instituições, mas o problema está longe de estar ultrapassado. 85 Quadro 9 – Condições que é necessário reunir para fazer desintoxicação em ambulatório Condições para poder fazer a desintoxicação em ambulatório Bom estado geral; Boa critica e motivação para tratamento; Bom suporte familiar; Ausência de complicações orgânicas; 86 Ausência de complicações psiquiátricas; Ausência de complicações familiares, sociais ou judiciais; Não ter antecedentes da Síndrome de Privação grave; Não ter antecedentes de crises convulsivas. Quadro 10 – Fármacos mais utilizados durante a desintoxicação Ambulatório Internamento Hidratação Hidratação oral abundante (água, sumos açucarados). Dextrose em água a 5%, 1000 cc id; Hiratação oral. Vitaminoterapia Vitamina B oral 1 id Tiamina 1 ampola IM id Sedação Tiapride oral 6 comprimidos id; Diazepam 10 mg ½ + ½+ 1 ou Lorazepam 2,5 mg ½ + ½ + 1. Tiapride oral 6 comprimidos id; Diazepam 10 mg ½ + ½+ 1 ou Lorazepam 2,5 mg ½ + ½ + 1. Sintomas de Privação ------------------- Haloperidol 2 mg 2 id Quadro 11 – Fármacos utilizados durante a manutenção Sintomas Anedonia, desinteresse Humor deprimido Ambulatório Antidepressivos Serotoninérgicos e/ou Amissulpiride 50 mg 2 id Ansiedade Alprazolam 0,5 3 id Perturbações do sono Lorazepam 2,5 mg 1id ou Estazolam 1 id Deficits cognitivos/Demência Inibidores da Acetilcolinesterase Prevenir a recaída Acamprosato, 6 comprimidos id Naltrexona 25 mg id Topiramato 50 2 id 10 – Tratamento O tratamento do doente alcoólico passa por três vertentes fundamentais: desintoxicação, manutenção e reinserção. 10.1 – Desintoxicação O tratamento de qualquer dependência, e do álcool em particular, passa, em primeiro lugar, pela desintoxicação. Esta pode ser feita em ambulatório ou em internamento. Para que seja possível fazê-la em ambulatório têm de estar reunidas as condições que apresentamos no quadro 9. Os doentes em ambulatório têm consulta de psiquiatria semanal nas três primeiras semanas. No caso de internamento a desintoxicação dura 10 dias, dos 15 previstos para o internamento. Durante a desintoxicação a intervenção é sobretudo farmacológica, tendo por objectivo a hidratação, vitaminoterapia e sedação. No quadro 10 apresentam-se os fármacos utilizados neste período, quer em ambulatório quer no internamento. 11.2 – Manutenção Após a desintoxicação é necessário que o doente consiga manter-se sem beber. No caso dos doentes em ambulatório, a consulta passa a ser mensal. No caso dos doentes internados, fazem mais uma semana de internamento, durante a qual se desenvolve o processo psicoterapêutico que visa consolidar a motivação para a abstinência e aumentar a auto-confiança. A psicoterapia desenvolve-se ao longo de entrevistas individuais com o psiquiatra e de reuniões psicopedagógicas desenvolvidas pela equipa multidisciplinar. Durante esta fase o doente é informado sobre a sua doença, ensinado a identificar e lidar com situações de risco de recaída, e é trabalhada a motivação. Após a alta é mantido em consulta mensal ou bimensal durante um a dois anos, findos os quais, se não tiver havido recaídas e não houver psicopatologia subjacente, o doente tem alta da consulta e é orientado para seguimento pelo seu médico de família. O grande objectivo desta fase do tratamento é evitar a ocorrência da recaída (recorrência do padrão de comportamento de dependente de substância psicoactiva, num indivíduo que tenha previamente conseguido manter a abstinência durante um período significativo de tempo após a desintoxicação).A medicação nesta fase tem por objectivo diminuir o craving, tratar a psicopatologia subjacente e proteger da recaída. No quadro 11, apresentam-se alguns dos fármacos utilizados nesta fase. As complicações familiares são trabalhadas na consulta, em reuniões de famílias e, se necessário, em terapia familiar.A psicoterapia é importante nesta fase para consolidar a motivação, desenvolver a autoestima, o autocontrole, a capacidade em lidar com as emoções bem como desenvolvimento de competências de interrelação. O tipo de psicoterapia deverá ser acordado entre o doente e médico. O psicodrama e a terapia cognitivo comportamental têm mostrado bons resultados. Os grupos de 87 auto-ajuda são também um recurso importante. A recaída deve ser entendida como uma fase da doença, nunca como o fim do tratamento. O doente, familiares e instituições cuidadoras devem ser avisadas de que, caso esta situação ocorra, devem contactar o serviço. O doente deve ser consultado, avaliando-se as causas da recaída e reajustando-se o plano terapêutico, que poderá passar por reinternamento se necessário. 88 11.3 – Reinserção O objectivo do tratamento é conseguir que o doente recupere os níveis de funcionamento pessoal e social que tinha antes de adoecer. Contudo, se isto é possível nas situações menos graves, outras há em que tal situação já não é fácil. Nos casos mais complexos ou quando se mantenha patologia psiquiátrica subjacente, o doente tem de se manter em consulta e têm de se procurar as soluções adequadas a cada caso. Alguns doentes com doença alcoólica Bibliografia Brehm, N.; Khantzian, E. Psychodynamics. in Lowinson et al. Substance Abuse: A comprehensive Textbook. 3ª edição. Maryland:Williams & Wilkins, 1997: 90 – 30. Ferreira-Borges, C.; Filho, H. Alcoolismo e Toxicodependência, Lisboa: Climepsi, 2004. Gameiro, A. Hábitos de consumo de bebidas alcoólicas em Portugal (1985-1991-1997). Lisboa: Editorial Hospitalidade, 1998. Gomes, C. Papel do médico de família na detecção e intervenção nos Problemas ligados ao álcool a nível dos Cuidados de Saúde Primários. Texto de apoio do Curso de Formação da Direcção de Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental e Divisão e Formação. Lisboa: Direcção Geral de Saúde, 2006. ICD-10. The ICD-10 Classification of Mental and Behavioural Disorders: Clinical descriptions and diagnostic guidlenes. Geneva: World Health Organization, 1992. Lowinson, J. et al. Substance Abuse:A comprehensive Textbook, 3ª edição, Maryland:Williams & Wilkins, 1997. grave ficam, após tratamento, com sequelas e deficits que obrigam a desenvolver inúmeras acções no sentido da optimização da recuperação. Frequentemente torna-se necessário a integração em projectos de terapia ocupacional para recuperação de capacidades e treino de aptidões, integração em projectos de formação e de reinserção social. Muitas vezes há necessidade de articular com os Centros de Saúde, Segurança Social, Institutos de Reinserção Social, Comissões de Protecção de Jovens e Menores, Instituições Privadas de Solidariedade Social e outras entidades, de forma a permitir o acompanhamento das situações em colaboração com as restantes entidades. Alguns doentes que fazem recaídas sucessivas podem necessitar de integração em comunidade terapêutica, ou, se apresentarem deterioração cognitiva grave, em Centros de Dia ou mesmo na Rede de Cuidados Continuados. Marques, M. Marcos Transhistóricos do Álcool, L. Lepori, 1997. Mello, M. et al. Manual de Alcoologia para o Clínico Geral. Coimbra, 1988. Neto, D. (1997) – Etapas de tratamento de doentes alcoólicos. Psiquiatria e Saúde Mental, ano 3, nº 1-2: 9-14. Steindler, E.: Addiction Terminology. in Principles of Addiction Medicine. Maryland: American Society of Addiction Medicine, 1994. Vaillant, G.; Milofsky, E. Natural history of male alcoholism. Arch Gen Psychiatry. 39/2. 1982: 127-133. Wilde, M. Management of alcohol dependence after detoxification, Alcoscope International Review of Alcoholism Management, vol. 2: Issue 3. 1999: 10 - 15. Zampieri, M.: Codependência: O transtorno e a intervenção em rede. São Paulo: Editora Agora, S. Paulo, 2004: 1-11. 89 12 – Conclusões A relação entre o álcool e o Homem é complexa e ambivalente. O consumo de álcool continuado frequentemente leva ao adoecer de forma lenta e insidiosa, sendo difícil de entender pelo doente e de diagnosticar pelo médico. O diagnóstico atempado de situações de beber nocivo ou de dependências em situação inicial pelos médicos de família é fundamental para prevenir o agravamento das situações e o aparecimento de danos irreversíveis. A doença alcoólica é um processo grave, com inúmeras complicações orgânicas, psíquicas e sociais, implicando sérios problemas para os doentes, suas famílias e sociedade em geral. Impõe-se uma atitude concertada de todos, implementando a prevenção, detecção precoce de consumidores de risco e dependentes, motivar para a modificação de comportamentos de risco e o tratamento tão precoce quanto possível dos doentes dependentes, bem como a minimização dos danos. Cabe a cada um de nós, cidadão, familiar, doente ou técnico de saúde, desempenhar o seu papel para melhorar esta situação. Fábio Salgado Licenciatura em Prótese Dentária, docente do ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Carla Xavier Licenciatura em Prótese Dentária, docente do ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Palavras-chave: lesões da mucosa oral, prótese acrílica, apoios oclusais e suporte/sustentação 90 Próteses parciais removíveis acrílicas funcionais Introdução As soluções protéticas têm sofrido um enorme progresso a nível estético e funcional nos últimos anos. Com o aparecimento de técnicas como confecção de dentes em cerâmica pura, ou seja, livres de metal,“metal free”, associadas a técnicas de leitura e confecção de coifas através de scaners “cad-cam”, as próteses de hoje apresentam-se avançadas a nível tecnológico, funcional e estético. Acontece porém, que a grande maioria destas técnicas são desenvolvidas a pensar nas próteses fixas,ou próteses sobre implantes.Estes tipos de próteses requerem um tratamento e preparo “à priori” de dentes remanescentes. Estes tratamentos e preparos são dispendiosos, o que os torna inacessíveis para a grande maioria da população. Este trabalho visa dar a conhecer uma técnica simples que vem incrementar a qualidade funcional das próteses parciais acrílicas, que são próteses de baixo custo, ainda hoje muito solicitadas por uma grande maioria da população. Esta técnica pretende acrescentar às próteses acrílicas os conceitos pré-estabelecidos que 91 Resumo Neste trabalho, propomo-nos explicar de forma sucinta o desenvolvimento de uma técnica simples para a prevenção de lesões da mucosa oral, causadas pelo uso de próteses parciais removíveis acrílicas mal confeccionadas, tendo como base os princípios que regem uma prótese parcial removível: suporte, estabilidade, reciprocidade e retenção. regem a prótese parcial removível esquelética, cuja diferença em relação às próteses acrílicas prende-se, para a maioria das pessoas, apenas por possuírem uma armação metálica e por isso serem mais resistentes. Este conceito é errado! A prótese parcial removível esquelética tem que obedecer, antes da rigidez da sua constituição, a alguns factores essenciais para a manutenção da saúde oral dos pacientes. São eles: o suporte, a estabilidade, a reciprocidade e a retenção, que fazem parte da biomecânica das próteses parciais removíveis. Conceitos básicos cobre biomecânica das próteses parciais removíveis Suporte: O sistema de suporte é um sistema complexo, composto por estruturas vivas que estarão em íntimo contacto com a prótese e compõe-se pelos seguintes elementos: - Dentes remanescentes; - Tecidos periodontais; - Fibromucosa; - Tecido ósseo alveolar. 1. Quanto aos dentes deve-se ter em conta a quantidade e qualidade dos dentes que servirão como suporte. 92 Deve-se verificar a integridade das coroas e raízes dos dentes. No que respeita as coroas dentárias, devem estar isentas de cáries ou zonas com predisposição para a cárie. Deve-se ainda ponderar a possibilidade de colocação de ganchos em coroas dentárias que já sofreram restaurações. Em relação às raízes, espera-se que esteja bem implantada no tecido ósseo e que apresente uma polpa saudável ou então que esteja desvitalizada e bem obturada; casos de endodontia. 2. Os tecidos periodontais são constituídos, fundamentalmente, por fibras de cologênio e células (osteoblastos,cementoblastos,osteoclastos, fibroblastos etc.) substâncias intercelulares e líquidos. O tecido ósseo suporta mal as cargas de compressão, diante das quais reage com um processo de reabsorção (osteólise). Por outro lado, o mesmo tecido ósseo aceita de modo saudável as forças de tracção, estas estimulam o processo de osteossíntese. As fibras de cologênio apresentam uma propriedade especial quando submetidas a forças de compressão; estas fibras passam a exercer sobre o osso alveolar uma força de tracção; sua função então é de transformar cargas de compressão exercidas sobre as coroas, em cargas de tracção, que são bem toleradas pelo tecido ósseo. Este trabalho visa dar a conhecer uma técnica simples que vem incrementar a qualidade funcional das próteses parciais acrílicas, que são próteses de baixo custo, ainda hoje muito solicitadas por uma grande maioria da população. 3. A participação da fibromucosa no sistema de suporte de próteses parciais removíveis cresce de importância à medida em que a quantidade de dentes diminui em ambas as extremidades do arco, constituindo casos de extremos livre ou de alavanca posterior. A fibromucosa é constituída por: Epitélio: recobre a estrutura do tecido conjuntivo subjacente, forra toda a extensão do rebordo residual e do processo alveolar. É permanentemente banhada pela saliva. O epitélio é formado por células cilíndricas, do tipo pavimentoso estratificado e recoberto por uma fina camada de queratina. Esta tem por função manter a integridade da estrutura protegendo-a contra as agressões mecânicas, bacterianas ou químicas. Córion: constituído por tecido conjuntivo fibroso, tendo como principal componente as fibras de cologênio. Este tecido encontra-se ligado ao osso alveolar subjacente, através da sua face interna e ao epitélio que o recobre, através da superfície externa. A função da fibromucosa prende-se portanto pela sua propriedade elástica, que tem por objectivo absorver as cargas mastigatórias e transmiti-las de maneira fisiológica ao osso alveolar. 4. No tecido ósseo alveolar destacam-se duas partes: - Compacta ou cortical (osso denso); - Esponjosa alveolar. O estímulo de uma prótese, adequadamente construída, colocada sobre um espaço alveolar, funciona como factor positivo no sentido da sua conservação. Este tecido está estruturado para responder à acção das forças que actuam nos dentes naturais e mais tarde sobre a fibromucosa, chegando a ser considerado como o único e verdadeiro suporte da prótese. Os dentes, periodonto e fibromucosa – são considerados como vias de transmissão de cargas ao tecido ósseo. De acordo com o veículo de transmissão de cargas ao tecido ósseo, podemos distinguir três tipos de suporte: Suporte Fisiológico, a força é transmitida ao osso por via dental corresponde às próteses dento-suportadas. Suporte Semi-Fisiológico, a força é transmitida pelos dentes e pela fibromucosa adjacente, corresponde às próteses dentomuco-suportadas. Suporte Afisiológico, carga total transmitida ao osso pela mucosa, corresponde às próteses muco-suportadas. 93 Juntamente com os braços de retenção e de oposição constituintes de um mesmo gancho fica, então, completo o panorama ideal, ou seja, a prótese cumpre os parâmetros de suporte, estabilidade, retenção e reciprocidade desejados. 94 Estabilidade, retenção e reciprocidade 1. A estabilidade é a propriedade que a prótese deve ter para permanecer imóvel tanto em repouso como sob acção de cargas. 2. Retenção é a propriedade que a prótese tem de resistir às forças que tendem a deslocala da sua posição, segundo o eixo de inserção determinado. 3.Reciprocidade é o princípio que estabiliza o dente frente as forças horizontais que tendem a deslocá-lo no acto da inserção ou retirada da próteses parcial removível, bem como durante a função. Estes três factores são considerados de extrema importância na biomecânica das próteses parciais removíveis. A estabilidade é conferida à prótese através de seu conector maior e de seus apoios oclusais. A retenção e reciprocidade são conseguidas pelos braços de retenção e de oposição, respectivamente, e são ambos constituintes de um mesmo retentor (gancho). O problema As próteses parciais removíveis esqueléticas são planeadas e construídas segundo critérios rigorosos que cumprem e fazem cumprir os princípios biomecânicos anteriormente referidos. Nestes critérios, o problema do suporte remete-nos à classificação supracitada do tipo de suporte conseguido. Assim, os apoios oclusais são de extrema importância, porque sua função primária consiste em ser um transmissor de cargas mastigatórias exercidas sobre os dentes artificiais e dente pilar para o tecido ósseo. Ao cumprir esta função, facilmente se percebe que o apoio impedirá o deslocamento ocluso-gengival da prótese, garantindo a efectivação do seu princípio fundamental, passando de um suporte mucoso para um suporte dentário, ou seja, fazendo com que o suporte conseguido seja efectivamente mais fisiológico. Juntamente com os braços de retenção e de oposição constituintes de um mesmo gancho fica, então, completo o panorama ideal, ou seja, a prótese cumpre os parâmetros de suporte, estabilidade, retenção e reciprocidade desejados. Ora, esta situação ideal é em tudo desprezada nas próteses parciais acrílicas. Este tipo de próteses na sua enorme maioria, se não mesmo na totalidade, são confeccionadas sem o mínimo de preocupação com a biomecânica das próteses parciais. São feitas normalmente de modo a cumprir, e mal, apenas o requisito da retenção. Os retentores aqui são feitos com arame de aço inox, adaptados com alicates de ortodontia, de modo a abraçar apenas a face vestibular dos dentes. Consegue-se retenção mas o suporte e a reciprocidade são negligenciados. O suporte é totalmente feito sobre a mucosa, podendo causar danos sérios e irreversíveis com o uso prolongado deste tipo de próteses. A pressão mastigatória é elevadíssima e a fibromucosa não suporta durante muito tempo sem se defender destas agressões. Ela defende-se aumentando a quantidade de queratina que a protege. Acontece, porém, que isto não é fisiológico, as células deixam de ser irrigadas e enervadas correctamente; a mucosa fica como que calejada, aumentando por exemplo o limiar da dor, ou seja, o paciente deixa de sentir a dor que seria um sintoma indicador de que algo não está bem com aquela mucosa, além de perder a cor rósea/avermelhada característica de mucosas orais saudáveis. A simples solução A técnica aqui proposta como solução é muito simples. Não nos propomos a fazer algo de extraordinário ou de muito novo. Pensamos apenas em conciliar e manter o baixo custo e acessibilidade de uma prótese parcial removível acrílica, com a funcionalidade de uma prótese parcial removível esquelética. Basta para isto que todos os profissionais da área tomem consciência dos perigos resultantes do uso prolongado de próteses acrílicas convencionais e se proponham a tornar viável uma técnica simples sem que isto se transfira em elevados custos para o paciente. A técnica propriamente dita é a inclusão de retentores fundidos com apoios oclusais, feitos à medida de cada dente usado como pilar, em Por fim, alguns estudiosos revelam que o uso prolongado de próteses acrílicas sem apoios oclusais podem produzir lesões agudas (úlceras) ou crónicas (hiperplasias gengivais ou mucosas) que podem colaborar na instalação de agentes carcinogênicos que produzem mutações celulares, fenómenos algumas vezes iniciadores de um cancro na boca. Vista lateral da prótese com ganchos fundidos 95 96 conectores maiores feitos na mesma, apenas com material acrílico. Isto implica, como é lógico, um processo de fundição de metal que a prótese acrílica não usa. Assim, o gancho deve ser feito em cera, obedecendo aos critérios de retenção, estabilização, reciprocidade (dados pelos braços de retenção e estabilização), e principalmente de suporte, (conseguido pela presença de um apoio oclusal). Depois, devem ser incluídos num cilindro com revestimento, pré-aquecido em forno próprio, fundido e tratado, de modo a ficar adaptado e justo ao dente pilar. Todos os ganchos feitos com esta técnica devem ter um prolongamento de modo a se Fotografia de uma prótese parcial acrílica funcional pronta. poder fixar na resina acrílica. Este prolongamento pode ficar orientado por cima da crista alveolar, de maneira a que os dentes artificiais sejam montados sobre ele, ou então em situação interdentária, servindo assim também como estabilizador horizontal, funcionando como conector menor, como mostra a fotografia seguinte. Note-se que o prolongamento não deve manter contacto com a mucosa, deve portanto ficar envolto pela resina acrílica. Assim conseguimos uma prótese parcial removível acrílica, com todas as características biomecânicas inerentes a prótese parcial removível esquelética. A qualidade aumenta, assim como a funcionalidade da prótese em repouso e em carga mastigatória. E não será este o nosso objectivo? Melhorar cada vez mais o bem-estar e a saúde dos nossos pacientes. Como conclusão, queremos apenas deixar clara a nossa opinião de que com poucos recursos podemos fazer muito em prol da saúde e bem-estar dos nossos pacientes. A realidade da prótese dentária está a evoluir cientificamente em estética e em função, mas apenas evolui para trabalhos muito dispendiosos e inacessíveis para a maioria das bolsas Conclusão Como conclusão, queremos apenas deixar clara a nossa opinião de que com poucos recursos podemos fazer muito em prol da saúde e bem-estar dos nossos pacientes. A realidade da prótese dentária está a evoluir cientificamente em estética e em função, mas apenas evolui para trabalhos muito dispendiosos e inacessíveis para a maioria das bolsas. No Brasil, por exemplo, próteses parciais acrílicas sem apoios oclusais apenas são usadas com carácter provisório, apenas enquanto não se proporciona um trabalho melhor a título definitivo. Com esta técnica, os pacientes menos favorecidos, ou seja, os utentes de próteses acrílicas, passam também eles a desfrutar de melhores condições de utilização de suas próteses e quem sabe até mesmo prevenir doenças mais ou menos graves. Assim, se todos nós, profissionais e utentes de próteses, tomarmos consciência do perigo do uso de próteses parciais acrílicas mal confeccionadas, ajudaremos, com esta e com outras possíveis técnicas, a melhorar um panorama preocupante para todos nós. Bibliografia Todescan, Reynaldo et al, Atlas de Prótese Parcial Removível, Santos – Livraria Editora. www.saudevidaonline.com.br/odontonline www.unioeste.br/projetos/unisol/projeto/c_odonto/p_ odo0nto_cancer_bucal.htm 97 Sónia Pereira Psicóloga Clínica Palavras-chave: Obesidade, adolescência, alimentação saudável, nutrição, exercício, depressão, auto-estima, autonomia 98 Resumo O Projecto de Intervenção Psicológica em Crianças e Adolescentes tem como objectivo ajudar os jovens obesos a perder de peso, promovendo estilos de vida saudáveis e realizando psicoterapia de apoio, de modo a intervir em variáveis psicológicas que frequentemente estão associadas à obesidade. Foram incluídos no projecto 15 jovens com vários graus de excesso ponderal. Em comparação com os valores do IMC (Índice de Massa Corporal) obtidos na primeira consulta, verificou-se uma descida do IMC ao longo do tratamento. No que diz respeito aos aspectos mais qualitativos, podemos referir que maior parte dos jovens modificou os seus hábitos alimentares, mais de metade dos jovens aumentou a actividade física, muitos destes jovens melhoraram a relação com os pares e aumentaram a sua autonomia em relação à família. 99 100 Introdução A palavra obesidade é composta por ob (excesso) e edere (comer). Significa, portanto, comer em excesso. O excesso de gordura resulta de sucessivos balanços energéticos positivos, em que a energia ingerida é maior do que a energia gasta (DGS, 2004). A etiologia da obesidade é ainda desconhecida mas é, sem dúvida, multifactorial. A obesidade é influenciada por factores biológicos, sociais e comportamentais (Brownell & Wadden, 1992 cit. por Marcus, 1997). A obesidade é um problema de saúde que afecta uma elevada percentagem da população mundial. É considerada um problema grave, com uma prevalência extremamente alta e é reconhecida como um dos maiores problemas de saúde das sociedades modernas civilizadas (Blundell & Hill, 1986). A obesidade é reconhecida como um problema de saúde pública que tende a agravar-se (DGS, 2004). Alguns estudos mostram que a incidência e prevalência da obesidade nas crianças e adolescentes tem aumentado significativamente (Barth et al. 1997, cit. por Davies, 1998). O impacto psicológico que a obesidade tem nestas faixas etárias pode ser determinante no aparecimento de perturbações que podem afectar estes indivíduos durante toda a sua vida (Dietz, 1995). Os jovens obesos vivem em permanente sofrimento psicológico, o que é atestado pelo fraco rendimento escolar e enurese, que ocor- re em alguns casos (Ajuniaguerra & Marcelli, 1991). A obesidade impede as crianças e os adolescentes de participar nas mesmas actividades dos seus pares, não só porque por vezes são incapazes de as realizar (como no futebol ou no atletismo), mas também porque são frequentemente alvo de chacota (na praia, nos balneários, na piscina, no ginásio ou nas festas). Estes jovens procuram isolar-se, considerando esta a única forma de se afastarem do tipo de humilhações a que estão sujeitos. Desta forma, e afastados do grupo de pares, os jovens obesos perdem uma boa parte das experiências que estão associadas ao crescimento mental saudável da adolescência (Bruch, 1973). Quando uma criança é obesa é provável que venha a tornar-se num adulto obeso. Os maiores factores de risco para o desenvolvimento da obesidade são o IMC elevado na infância, a predisposição genética e o estatuto socioeconómico baixo (Dietz, 1995; Linscheid & Fleming, 1995). A prevenção da obesidade o mais precocemente possível é essencial. A obesidade está associada a inúmeras complicações físicas, tais como diabetes tipo II, neoplasias, hipertensão, disfunções do sistema circulatório, hiperlipidemia, doenças da vesícula (Adexo, 2003). A obesidade encontra-se também associada a perturbações psicológicas. A busca da magreza é uma característica comum nas sociedades ocidentais, pois o excesso de peso está associado à falta de beleza física. Os obesos são discriminados e sofrem frequentemente de falta de auto-confiança e de falta de autoestima (Apfeldorfer, 1995; Blundell, 1987). Perturbações emocionais como a ansiedade ou a depressão aparecem frequentemente associadas à ingestão excessiva de alimentos. Alguns autores defendem também que os obesos são incapazes de identificar e reflectir sobre as suas próprias emoções, utilizando a comida como estratégia para ultrapassar os momentos mais difíceis. São incapazes de ter comportamentos assertivos, utilizando a comida como uma estratégia adaptativa para evitar a tomada de posição face aos outros (Apfeldorfer, 1997). Tratar e investigar a obesidade antes da idade adulta é extremamente importante, pois os hábitos e estilos de vida da criança e do jovem são mais fáceis de mudar do que os hábitos e estilos de vida do adulto. Além disso, os jovens sofrem mais a pressão da sociedade para que fiquem magros e a preocupação com o peso é maior, pois a gordura impede que os jovens se sintam integrados no seu grupo de pares (Gavino, 1992). Apesar de ser evidente a importância de um tratamento eficaz, a maior parte dos tratamentos tem tido poucos resultados positivos a longo prazo, além da elevada taxa de abandono. A terapêutica da obesidade constitui um permanente desafio e é muitas vezes decepcionante. Ajudar um obeso a perder peso é difícil e manter a perda de peso mais difícil ainda (Torres, Reis & Medina, 1991). Ao longo dos anos numerosos tratamentos têm sido empregues para combater a obesidade. A maior parte dos tratamentos médicos para a obesidade não tem tido bons resultados: a perda de peso é difícil e as recaídas são muito comuns (Blundell & Hill, 1986), provavelmente porque o tratamento da obesidade não se limita apenas à área puramente médica ou dietética. Por esta razão, é importante que o tratamento tenha uma visão multidisciplinar, que combine a educação nutricional, a actividade física e também a avaliação e o trabalho de variáveis psicológicas associadas ao excesso de peso. O delineamento de um projecto de intervenção na obesidade deve ter em conta uma ampla gama de variáveis: hábitos alimentares, psicopatologia associada, apoio familiar, auto-conceito, pensamentos distorcidos relacionados com o peso, etc. No presente estudo procurámos criar um projecto de intervenção psicológica que tem como objectivo a perda de peso, mas também tem em conta outras variáveis, tais como a modificação dos hábitos alimentares, o aumento da actividade física, as modificações ao nível do auto-conceito, das relações interpessoais e dos resultados escolares. 101 Método 102 Distibuição dos utentes por sexo Sujeitos Foram enviados ao Centro de Saúde de Oeiras 31 jovens obesos e, após terem sido informados sobre as etapas do tratamento na primeira consulta de psicologia, 13 desses jovens não aderiram ao projecto. Após avaliação psicológica, 3 jovens foram excluídos do projecto por apresentarem sintomatologia psiquiátrica grave, tendo sido encaminhados para a consulta de Pedopsiquiatria. Assim, foram integrados no projecto 15 doentes obesos. Tal como se pode observar no gráfico 73% são raparigas e 27% são rapazes. Distribuição dos utentes por idade Tal como se pode observar no gráfico, as idades dos alunos incluídos no projecto variam entre os 9 e os 19 anos. A maior parte dos alunos tem entre os 11 e os 12 anos de idade. Instrumentos Como instrumentos de avaliação psicológica foram utilizados: Entrevista Diagnóstica, Inventário de Perturbações do Comportamento Alimentar,Escala deAuto - Conceito,Inventário Depressivo de Beck e Diários Alimentares. A Entrevista Diagnóstica foi utilizada com o objectivo de conhecer a história clínica, elucidar os problemas, conhecer a psicodinâmica e a psicopatologia do sujeito. O Inventário de Perturbações do Compor tamento Alimentar (Eating Disorders Inventory – EDI) foi criado em 1983 por Garner, Olmsted e Polivy. O EDI estabelece o perfil psicológico e o grau de perturbação alimentar na população normal, nos sujeitos que sofrem de anorexia nervosa, bulimia nervosa e obesidade (Carmo 2001). A Escala de Auto-Conceito (Piers-Harris Self Concept Scale) foi criada por Piers-Harris em 1969, com manual revisto em 1988. É um dos instrumentos de medida do auto-conceito mais utilizados em Portugal (Veiga, 1989). O Inventário Depressivo de Beck (Beck Depression Inventory) foi apresentado pela primeira vez em 1961 por Aaron Beck. O objectivo deste inventário é avaliar a depressão e a sua severidade (Beck & Steer, 1993). O Diário Alimentar foi elaborado para a realização deste estudo e foi baseado em diários alimentares criados por diversos autores (Bruch, 1973; 1974; Clark & Goldstein, 1995; Lacocque, 1991; Seidell, 1998; Wardle, 1989; Wardle & Rapoport, 1998). Consiste num quadro, em que o obeso regista diariamente quais os alimentos que ingeriu, os sentimentos associados à ingestão de certos alimentos, a actividade associada, o grau de fome, etc. Regista também a frequência com que pratica uma modalidade desportiva e a actividade física não estruturada. Além de ajudar o técnico a investigar o comportamento alimentar do doente, o que permite um tratamento mais personalizado, o diário ajuda o paciente a ter uma maior consciência dos alimentos ingeridos (Wardle, 1989;Wardle & Rapoport, 1998). 103 Tratar e investigar a obesidade antes da idade adulta é extremamente importante, pois os hábitos e estilos de vida da criança e do jovem são mais fáceis de mudar do que os hábitos e estilos de vida do adulto. 104 Procedimento Este estudo é classificado como exploratório-qualitativo, que procura apoiar-se numa análise qualitativa para desenvolver hipóteses para a realização de uma pesquisa futura mais precisa. O estudo foi realizado no Centro de Saúde de Oeiras (CSO) e decorreu entre Maio de 2003 e Agosto de 2004. As escolas do Concelho de Oeiras foram informadas sobre a existência deste projecto e foram convidadas a enviar para a Consulta de Psicologia do CSO os alunos que consideravam ter indicações para o projecto (obesidade associada a perturbação do comportamento alimentar). Como método de classificação da obesidade foi utilizada a tabela da Organização Mundial de Saúde (Genebra), que se refere ao IMC (Índice de Massa Corporal). O IMC obtémse através da seguinte fórmula: Peso (Kgs)/ Altura2 (m2). O peso considerado normal varia entre 18,5 e 24,9. O Excesso de Peso varia entre 25 e 29,9; a Obesidade grau I entre 30 e 34,9; a Obesidade Grau II entre 35 e 39,9 e a Obesidade Grau III acima de 40. Os professores preencheram uma folha de referenciação com os dados do aluno, que era enviada à Equipa de Saúde Escolar do CSO. Após ser contactado pela enfermeira da Saúde Escolar, o aluno dirigia-se à primeira Consulta de Psicologia com os pais. Nesta primeira consulta foi feita a anamnese e o cálculo do IMC. A avaliação psicológica foi realizada nas 3 consultas seguintes. No caso de ter indicação para participar no projecto, o aluno e os pais foram informados sobre os objectivos do projecto, os instrumentos utilizados e os procedimentos a realizar nas consultas seguintes. As consultas de psicoterapia de apoio foram marcadas quinzenalmente, com a duração de cerca de 45 minutos. A psicoterapia de apoio procurou trabalhar variáveis que têm sido consideradas importantes no tratamento psicológico da obesidade: Promoção de estilos de vida saudáveis: hábitos alimentares e exercício físico Tal como defende Summerbell (1998), o técnico de saúde que trata o doente obeso deve facultar-lhe informações nutricionais pois, independentemente do tipo de dieta que está a seguir, há sempre alimentos que devem ser evitados e alimentos cuja quantidade ingerida deve ser aumentada. Informámos os jovens e as suas famílias sobre as regras básicas de uma alimentação saudável e facultámos diversos folhetos sobre É importante que o tratamento tenha uma visão multidisciplinar, que combine a educação nutricional, a actividade física e também a avaliação e o trabalho de variáveis psicológicas associadas ao excesso de peso. O delineamento de um projecto de intervenção na obesidade deve ter em conta uma ampla gama de variáveis: hábitos alimentares, psicopatologia associada, apoio familiar, auto-conceito, pensamentos distorcidos relacionados com o peso, etc. o tema. Sugerimos aos jovens que aprendessem a fazer sopa, que inventassem receitas de sopa e recolhessem receitas em livros ou na Internet. Sugerimos que aprendessem a fazer sumos naturais, para substituir os sumos de pacote, combinações de fruta fresca com iogurte natural, batidos de leite com fruta, etc. Desta forma procurámos introduzir a procura e confecção de receitas naturais e saudáveis de forma lúdica, que pudessem substituir os habituais snacks (batatas fritas, sumos de pacote, sobremesas calóricas). Informámos também sobre a importância do exercício físico, sugerindo que iniciassem uma modalidade desportiva ou que aumentassem os níveis de actividade física. Foi realizada uma pesquisa sobre ginásios e locais na zona onde era possível fazer exercício físico. Foi dada essa informação aos pais e ao utente nas primeiras consultas. Algumas famílias não se mostraram disponíveis para a realização de uma actividade física estruturada, por dificuldades económicas, por falta de tempo ou por não haver nenhum ginásio perto de casa. Foram então sugeridas diversas actividades não estruturadas, como por exemplo andar no passeio marítimo, saltar à corda, nadar na piscina, subir pelas escadas em vez de elevador, andar de bicicleta, jogar à bola com os amigos, dançar vigorosamente em casa como se estivesse numa discoteca. Contratos A utilização de contratos pode contribuir para a prevenção do abandono do tratamento (Jeffrey, Thompson e Wing, 1978 cit. por Matos, 1990). No início do acompanhamento terapêutico, o jovem era informado sobre o seu peso actual e sobre qual seria o peso aceitável para a sua altura. Em todas as consultas era realizado um pequeno contrato escrito, que continha as regras a cumprir até à consulta seguinte, que era assinado pelo jovem e era depois levado para casa e entregue aos pais para que eles também pudessem assinar. Estes contratos permitiam, não só mostrar ao jovem que ele era responsável e participante activo no seu tratamento, mas também permitia que a família fosse encarada como parte integrante em todo o processo. As regras foram negociadas em conjunto com o jovem, sendo sempre dele a decisão final. 105 106 Criar objectivos Alguns autores defendem que a criação de objectivos é fundamental para o tratamento de perda de peso (Wardle & Rapoport, 1998). No início do tratamento procurámos investigar qual era o peso desejado por cada um dos jovens obesos.Verificámos que as expectativas destes jovens eram demasiado elevadas, o que poderia levar à desistência do tratamento caso os resultados não fossem de encontro às expectativas anteriormente estabelecidas. Procurámos então negociar com estes jovens metas mais realistas e explicar que a perda de peso deve acontecer lentamente. Criámos também sub-objectivos, que foram actualizados quinzenalmente. Auto-controlo A falta de auto-controlo contribui muitas vezes para o insucesso do tratamento da obesidade. Consideramos que o doente consegue aumentar o controlo do seu comportamento alimentar se tiver maior consciência da quantidade de alimentos que ingere e das situações que o levam a comer mais. Ao monitorizarem o seu comportamento, os doentes envolvem-se num processo de auto-avaliação (Apfeldorfer, 1997). Sugerimos então aos jovens que registassem em folhas próprias (diário alimentar) todos os alimentos ingeridos. Este registo era realizado todos os dias e era pedido no início do tratamento e sempre que considerássemos necessário. O diário alimentar procurou avaliar os hábitos alimentares dos jovens, assim como graus de fome, locais preferidos para fazer refeições, estados emocionais, duração das refeições. Foi também avaliada a actividade física, através do mesmo sistema de registo diário. 107 Apoio social O apoio social é uma peça fundamental no tratamento da obesidade. O doente não pode ver-se sozinho na tentativa de perder peso (Perpiña & Baños, 1989). Durante a avaliação foi feito um levantamento de quais as pessoas que poderiam participar activamente no tratamento. Procurámos que os obesos saíssem mais com outros jovens da mesma idade, que procurassem companheiros para fazer exercício físico e para sair para passear ao fim-de-semana. Os padrões de comportamento da família também foram trabalhados, tal como as crenças que por vezes apresentavam, como a ideia de que determinados alimentos não engordavam ou a ideia de que estavam a fazer mal ao filho se não o levassem várias vezes por semana a restaurantes de fast-food ou se não lhe dessem doces para lanchar na escola. Foi também explicada a importância de reforçarem positivamente os sucessos, ainda que fossem pequenas perdas de peso. Aumentar a autonomia As modalidades de tratamento da obesidade devem conduzir à procura da autonomia. O obeso deve aprender a encontrar autonomia face à alimentação e face aos outros (Gonthier & Longerai, 1980). Explicámos também aos pais que era importante estimular a autonomia destes jovens e estimulámos estes jovens a procurar autonomia face aos pais. Procurámos ajudar os obesos a perceber que a perda de peso dependia principalmente deles. 108 Cuidados com a imagem Muitos obesos sofrem de uma perturbação da imagem corporal, fazendo um evitamento fóbico do corpo, esquecendo cuidados com o corpo e desvalorizam-se permanentemente (Apfeldorfer, 1997; Wardle & Rapoport, 1998). Uma pobre imagem corporal resulta numa pobre auto-estima e numa auto-eficácia negativa. O doente sente que não controla o seu corpo e que não consegue participar activamente na sua perda de peso, desistindo precocemente. Procurámos reverter este problema, tentando recuperar a auto-estima, mesmo antes de eles começarem a perder peso. Procurámos reforçar as habilidades destes jovens, como a pintura, a escrita, o teatro, etc. À medida que iam perdendo peso foram sendo sugeridas mudanças no visual, como a compra de roupas mais justas e coloridas, a utilização de mais acessórios e maquilhagem, mudanças de penteado, etc. Estratégias de coping Para muitos obesos, a comida é utilizada para se sentirem menos deprimidos (Apfeldorfer, 1997) ou menos ansiosos (Wardle & Rapoport, 1998). A comida permite o esquecimento das dificuldades. Procurámos então mostrar aos doentes que existia uma relação entre as dificuldades que atravessavam no dia a dia e a hiperfagia. Ajudámo-los depois a desenvolver estratégias de coping para enfrentar o mundo e os problemas, em vez de evitar as dificuldades e refugiar-se na comida. Foram ensinadas técnicas de relaxamento e sugeridas actividades incompatíveis com o acto de comer (dar um passeio, ver montras, fazer desporto, etc.). Resultados Evolução do IMC-Médias 109 Conhecimento e afirmação de si É importante ajudar o obeso a conhecerse melhor e a saber quais as situações que o levam a comer mais (Apfeldorfer, 1997). Utilizámos o diário alimentar para aumentar este auto-conhecimento e para verificar que, por exemplo, o peso aumentava em época de testes, em que a ansiedade aumentava, e consequentemente o excesso de ingestão de alimentos calóricos; e em tempo de férias, em que a actividade física diminuía. Ajudámos os doentes a identificar e diferenciar sentimentos, a falar sobre a sua personalidade e a admitir que não têm só defeitos, mas também qualidades. Ajudámos também a enfrentar os conflitos e a perceber sensações de agressividade e zanga. A afirmação de si passa também pela assertividade, pela aprendizagem que podemos dizer “não” e que podemos ter uma opinião discordante da maioria sem corrermos o risco de os outros gostarem menos de nós. A aprendizagem da assertividade passa também por recusar educadamente um alimento num jantar ou numa festa. Como se pode observar no gráfico, o IMC médio dos sujeitos na primeira consulta era de 30,5. A média do IMC mais baixo atingido durante o decorrer do projecto foi de 28,7 o que indica que, em média, os sujeitos perderam peso. O IMC médio na última consulta foi 29, o que sugere que os sujeitos recuperaram algum do peso perdido, mas sem voltar ao peso inicial. Os resultados sugerem que os sujeitos perderam algum peso, tendo havido manutenção dessa perda de peso. Hábitos Alimentares A análise dos hábitos alimentares dos sujeitos no final do tratamento sugere que decorreram algumas mudanças, em comparação com os hábitos alimentares que os sujeitos tinham antes do tratamento.A redução de doces ocorreu em quase 90% dos sujeitos, o aumento de ingestão de sopa em cerca de 70% dos sujeitos. A redução de refrigerantes ocorreu em quase 50% dos sujeitos. Os hábitos que foram mais difíceis de implementar foram: o aumento de grelhados e cozidos (menos de 10%), o aumento de legumes (20%) e a diminuição de fritos (20%). Actividade Física 110 Como se pode observar no gráfico, a decisão de iniciar a prática de uma modalidade desportiva foi tomada por pouco mais de 30% dos sujeitos que faziam parte do projecto. A sugestão de aumentar a actividade física de forma menos estruturada parece ter tido mais sucesso, tendo sido adoptada por quase 70% dos sujeitos. Comportamento No que diz respeito ao comportamento e ao trabalho de factores psicológicos, podemos salientar que a melhoria na relação com os pares e o aumento da busca pela autonomia foram os factores que originaram maior mudança: 40% dos sujeitos melhoraram as relações com jovens da mesma idade e 40% procuraram maior autonomia em relação à família. As melhorias no comportamento em casa e na escola ocorreram em 27% dos sujeitos.A maior preocupação com o aspecto físico e o aumento de sucesso escolar ocorreu em 20% dos jovens. Discussão Verificámos que, na generalidade, os jovens que fazem parte deste projecto vivem em permanente sofrimento psicológico, apresentam baixo rendimento escolar, baixo auto-conceito, tendência para afastamento de outros jovens da mesma idade, excessiva dependência em relação à família e pouca confiança nas suas capacidades, especialmente na capacidade de perder peso. Todos estes jovens tinham estilos de vida pouco saudáveis, com hábitos alimentares errados, associados ao sedentarismo. Quase todos têm familiares próximos obesos, o que poderá prever que a associação de todos estes factores vai provavelmente originar uma obesidade na idade adulta. Com o objectivo de ajudar a prevenir que isso aconteça, procurámos criar um projecto de intervenção psicológica que pudesse contribuir para a mudança no estilo de vida, para a perda de peso e para a melhoria de problemas psicológicos associados à obesidade. Pensamos que grande parte dos objectivos deste projecto de intervenção foi alcançada. Observámos que a média do IMC dos jovens teve um decréscimo durante o acompanhamento psicológico. Observámos ainda que, no momento em que foram recolhidos os últimos dados, a média do IMC destes jovens tinha um ligeiro aumento em relação aos valores mais baixos obtidos, mas sem nunca se aproximar do IMC inicial. Estes dados sugerem que os jovens que foram submetidos ao acompanhamento psicoterapêutico conseguiram perder peso, tendo conseguido também a manutenção dessa perda de peso. No que diz respeito aos hábitos alimentares, verificou-se que mais de metade dos jovens diminuiu a quantidade de ingestão de doces e aumentou a quantidade de sopa. Alguns jovens aumentaram a ingestão de salada e fruta e diminuíram a quantidade de refrigerantes. 111 112 Notou-se alguma dificuldade na diminuição de ingestão de fritos e no aumento da ingestão de alimentos cozidos, alimentos grelhados e de legumes. Consideramos que a participação da família neste caso é bastante importante e que a motivação do jovem para mudar os seus hábitos alimentares não é suficiente. Pensamos que a modificação na forma de confeccionar os alimentos deve ser feita para toda a família e não apenas para o jovem que está a ser tratado. O trabalho das famílias nesse sentido poderia originar melhores resultados. Consideramos ainda que o trabalho com as escolas também poderia ser vantajoso para melhorar esta intervenção, pois nem sempre as ementas das cantinas respeitam as regras de uma alimentação saudável. O facto de terem disponíveis Referências Adexo (2003). Proposta ao Ministro da Saúde para Tratamento da Obesidade em Portugal. Ajuniaguerra & Marcelli (1991). Manual de psicopatologia infantil (tradução portuguesa) (2ª ed.). Porto Alegre: Masson (Original publicado em 1986). Apfeldorfer (1995). Como, logo existo (tradução portuguesa). Lisboa: Instututo Piaget (Original publicado em 1991). Apfeldorfer (1997). Anorexia, bulimia e obesidade (tradução portuguesa). Lisboa: Instituto Piaget (Original publicado em 1995). Beck, A. & Steer, R. (1993). Beck depression inventoryManual. San Antonio: Psychological Corporation. Blundell, J. E. & Hill, A. J. (1986). Biopsychological interactions underlying the study and treatment of obesity. In nas máquinas automáticas e no buffet apenas alimentos calóricos, sem muitas alternativas saudáveis, também deveria ser modificado. No que diz respeito à actividade física, verificou-se que foram poucos os jovens que decidiram inscrever-se numa modalidade desportiva, devido principalmente a razões económicas. Pensamos que seria benéfico que, tanto a escola como as autarquias, optassem por promover mais o exercício físico criando mais espaços com modalidades desportivas que estes jovens pudessem frequentar sem contrapartidas económicas. O aumento da actividade física não estruturada, isto é, a adopção de comportamentos menos sedentários, ocorreu em mais de metade dos jovens. M. J. Christie & P. G. Mellett (Eds.), The Psychosomatic Approach: Contemporary Practice of Whole-Personal Care (pp. 115-135): Chichester. John Wiley & Sons. Blundell, J. (1987). Évolucion de la psychologie physiologique: Des causes aux interactions. Essai sur la biopsychologie de l’álimentation et de l’obesité. Bulletin de Psychologie, XLI, 383, 201-215. Bruch, H. (1973). Eating disorders. Obesity, anorexia nervosa, and the person within: New York. Basic Books. Bruch, H. (1974).Eating disturbances in adolescence. In American Handbook of Psychiatry: New York. Basic Books. Carmo, I. (2001). Doenças do comportamento alimentar. Lisboa: ISPA. Clark, M. & Goldstein, M. (1995). Obesity.A health psychology perspective. In A. Goreezny (Ed.), Handbook of health and rehabilitation psychology (pp.157-173): New York. No que diz respeito aos factores psicológicos, os resultados do estudo sugerem que as mudanças ocorreram mais lentamente. Quase metade dos jovens melhorou a relação com pares e aumentou a busca pela autonomia. Consideramos que a aceitação por parte das famílias de uma maior aproximação aos pares e de uma maior busca de autonomia nem sempre é fácil. As famílias foram ajudadas a entender que a adolescência é uma fase importante de crescimento, que passa por um certo afastamento do jovem em relação aos pais. É de salientar a enorme aderência dos jovens à consulta de psicologia e do interesse crescente de familiares, professores e técnicos de saúde. Pensamos que se justifica Plenum Press. Davies, P. (1998). Obesity in childhood. In Koppelman & Stock (Eds.), Clinical Obesity. (pp. 290-304). Oxford. Blackwell. DGS (2004). Circular Informativa nº 9. Gonthier, G. & Longerai, M. (1980). L’Obesité à l’adolescence: Les effects psychologiques de l’emaigrissement chez les adolescents obeses traités en centre specialisé. Bulletin de Psychologie, XXXIV, 352, 869-876. Lacocque, P. (1991). Obesidade. In R. Craig (Ed.). Entrevista Clínica e Diagnóstica (pp. 249-281). Porto Alegre: Artes Médicas. Linscheid, T. & Fleming, C. (1995). Anorexia nervosa, bulimia nervosa and obesity. In. M. Roberts (Ed.), Handbook of Paediatric Psychology (pp. 676-700). New York: Guilford Press. Matos, A. (1990).Abordagem comportamental da obesidade. o alargamento desta intervenção a uma maior população, de modo desenvolver mais investigação sobre este tema e de modo a ajudar mais jovens obesos a conseguir a difícil tarefa de perder peso. Nota:Artigo científico publicado nos Arquivos de Medicina e apresentado sob forma de poster no XI Curso Pós-Graduação de Endocrinologia, Diabetologia e Metabolismo e Curso Básico de Alimentação e Nutrição Clínica, organizados pelo Serviço de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Hospital de São João. Revista Portuguesa de Pedagogia, 209-229. Perpiña, C. & Baños, R. (1989). Historia del tratamiento conductual de la obesidad: uma historia de excusas. Boletín de Psicología, 25, 101-122. Seidell, J. C. (1998). Epidemiology and classification of obesity. In Kopleman & Stock (Ed.), Clinical Obesity (pp. 1-17): Oxford. Blackwell. Veiga (1989). Escala de auto-conceito, adaptação portuguesa da “Piers-Harris Self-Concept Scale”, Psicologia, 7 (3): 275-284. Wardle, J. (1989). Management of obesity. In S. Pierce & J. Wardle (Ed.), The practice of behavioural medicine (pp. 131-159): Oxford. Blackwell. Wardle J. & Rapoport, L. (1998). Cognitive-behavioural treatment of obesity. In Kopleman & Stock (Ed.), Clinical Obesity (pp. 1-17): Oxford. Blackwell. 113 Gustavo Afonso Enfermeiro graduado. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá. Responsável pela Assistência Domiciliária de Enfermagem ([email protected]) Lara Costa Enfermeira graduada. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá Marta Miranda Enfermeira graduada. Pós-Graduação em Enfermagem de Emergência. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá 114 Introdução A acompanhar o desenvolvimento técnico e científico da Medicina e da Enfermagem, a abordagem das feridas e os produtos para o seu tratamento e prevenção têm vindo também a evoluir. Relativamente ao tratamento de feridas, existe um primeiro registo da execução de pensos em 1600 a.C. Desde tempos remotos, o tratamento de feridas foi feito com produtos hoje em dia impensáveis mas, em diferentes eras, com preocupações e objectivos ainda actuais. Na antiga Mesopotâmia, a título de exemplo, as feridas eram lavadas com água e leite e cobertas com resina e mel. Os primeiros princípios de assépsia foram introduzidos por Hipócrates na antiga Grécia, continuando porém, a serem utilizados produtos do quotidiano das pessoas como era o caso do vinho, ovo e óleo de rosas. A evolução a nível da indústria de pensos desencadeou-se apenas a partir do século XVIII. No século XIX, devido a vários acontecimentos históricos como a Guerra da Crimeia, a Revolução Industrial e diversas descobertas científicas (invenção do microscópio, anestesiologia, pasteurização, esterilização, implementação do uso de luvas e máscaras e a descoberta dos antibióticos), desencadearamse grandes progressos na área do material de penso e tratamento de feridas. No entanto, foi nos anos 60, com os estudos de George Winter, que surgiu o conceito de cicatrização e tratamento de feridas em meio 115 húmido, método a partir do qual é criado um ambiente com condições de humidade e temperatura ideais para o processo de cicatrização. Na década de 80,Turner definiu os critérios aos quais deveria obedecer um penso ideal: Manter ambiente húmido; Remover o excesso de humidade; Permitir trocas gasosas; Manter isolamento térmico; Proteger a ferida de agressões externas (microbianas e físicas); Ser livre de partículas tóxicas; Permitir a sua remoção sem causar traumatismo ou dor. É com base nestes pressupostos que a indústria de pensos elabora materiais para o tratamento de feridas. Hoje em dia temos ao nosso dispor uma variedade enorme de produtos para o tratamento e prevenção de feridas cujos efeitos terapêuticos se baseiam em princípios favorecedores da cicatrização com menos efeitos secundários e maior qualidade. De forma a dar a melhor utilização a esses produtos, prestando cuidados com qualidade e atingindo ganhos em saúde, o seu conhecimento deve ser o mais completo possível, aliado ao conhecimento integral da fisiopatogenia da cicatrização e a uma abordagem holística da pessoa portadora de uma ferida. Neste artigo pretendemos a apresentação, de uma forma clara, do material de penso mais utilizado e disponível no mercado. 116 Hidrogéis Os Hidrogéis são compostos essencialmente por água (70% a 90%) e outros sistemas cristalinos de polissacarídeos e polímeros sintéticos.3,8 Promovem a hidratação dos tecidos, favorecendo o desbridamento autolítico e contribuindo para a angiogénese, granulação e epitelização. A sua utilização combinada com a colagenase potencia o efeito desbridante enzimático da última. Pela sua acção hidratante, contribui para a diminuição da dor, uma vez que não adere ao leito da ferida permitindo a sua remoção atraumática. Foto 1: Exemplos de hidrogéis sob a forma de gel amorfo. Indicados particularmente para feridas com necrose, podem ser utilizados em tecidos de granulação e epitelização. Existem várias apresentações: gel amorfo, malha e placa. Sob a forma de gel e/ou malha é necessária a utilização de um apósito secundário (hidrocolóide ou hidropolímero, de acordo com a quantidade de exsudado).6 A mudança de penso pode ser efectuada de 3 em 3 dias. Foto 2: Aplicação de hidrogel em úlcera de pressão com tecido desvitalizado. 117 Hidrocolóides Apresentam-se sob a forma de placa e hidrofibras. As placas são constituídas por duas camadas: uma interna composta por carboximetilcelulose (CMC) sódica, pectinas e gelatina; e outra externa, composta por uma lâmina de poliuretano. Em contacto com o exsudado da ferida, é formado um gel, de cor e odor característicos (e algo desagradáveis) que promove o desbridamento autolítico. Possuem uma baixa a moderada capacidade de absorção do exsudado. Por serem oclusivos constituem uma barreira mecânica à contaminação bacteriana mas, pela mesma razão estão contra-indicadas em feridas com infecção prévia.1,4 Foto 3: Exemplos de hidrocolóides. Têm também indicação como método preventivo em áreas sujeitas a fricção. Existem em várias dimensões e formatos anatómicos específicos (como por exemplo, região sacrococcígea) com e sem rebordo. As hidrofibras gelificam em contacto com o exsudado, tendo grande capacidade de absorção (mecanismo de absorção vertical que impede a maceração dos tecidos peri-lesionais). São úteis para feridas moderada a extremamente exsudativas e feridas cavitárias.2,4 Foto 4:Aplicação de hidrocolóide (hidrofibra) em deiscência de ferida cirúrgica. Hidropolímeros Compostos por espumas hidrocelulares com substâncias hidrofílicas. 118 Têm grande capacidade de absorção do exsudado (mesmo sob compressão elástica) diminuindo o risco de maceração da pele peri-lesional, uma vez que não gelificam em contacto com o exsudado.3,8 Estão indicados como apósitos primários em feridas em granulação e epitelização e como apósitos secundários associados a outro material de penso como por exemplo os hidrogéis nas feridas com necrose. Foto 5: Exemplos de hidropolímeros. Têm também indicação para prevenção de úlceras de pressão por actuarem no alívio da pressão.4 Apresentam-se com e sem rebordo adesivo, com vários formatos anatómicos específicos (por exemplo, zona sacrococcígea e calcâneos) e sob a forma de estruturas esféricas para feridas cavitárias. Podem permanecer na ferida até um tempo máximo de 7 dias e a sua frequência de mudança está dependente da quantidade de exsudado.7 São também úteis para aplicação em feridas em hipergranulação. A sua utilização está desaconselhada nas feridas infectadas. Foto 6: Aplicação de hidropolímero em ferida em granulação. Apósitos com Prata Apósitos impregnados com prata em diferentes percentagens e associada a diferentes materiais (hidrocolóides, poliuretano, carvão activado, hidrofibras e alginatos) adequados às condições do leito da ferida e à quantidade de exsudado. A prata tem acção bactericida uma vez que actua provocando alterações estruturais na parede e membranas celulares bacterianas, sem danificar as células humanas. É eficaz em infecções provocadas por um grande espectro de microorganismos incluindo os multiresistentes nomeadamente Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus aureus e Candida albicans. Não lhe são conhecidos efeitos secundários e produz escassas resistências.5,7 Por estas razões está indicada para feridas criticamente colonizadas e/ou infectadas. Este diagnóstico deve ser devidamente comprovado e poderá ser necessário a associação de antibioterapia sistémica. A maioria dos apósitos liberta a prata, na sua forma iónica, de forma controlada e gradual, para o leito da ferida, com excepção do penso de carvão activado com prata que adsorve o exsudado e inactiva as bactérias em contacto com o penso.6 119 Foto 7: Exemplos de apósitos com prata. Foto 8: Aplicação de apósito com prata em úlcera venosa infectada. O colagénio comercializado é derivado da cartilagem da traqueia de bovinos. É uma proteína presente na pele, com funções importantes no processo de cicatrização uma vez que estimula o crescimento do tecido de granulação por estimulação da angiogénese e desenvolvimento dos fibroblastos. 120 Alginatos Os alginatos são polissacarídeos naturais derivados do ácido algínico extraído de algas marinhas. Actuam por troca iónica entre iões cálcio do alginato e os iões sódio do exsudado da ferida. Em contacto com este, forma um gel que cria um ambiente húmido favorecendo a cicatrização, promove o desbridamento autolítico e o alívio da dor (por humedecimento das terminações nervosas). Tem ainda efeito hemostático pela acção dos iões cálcio.1,4 Foto 9: Exemplo de alginato. São úteis em feridas infectadas uma vez que têm algum efeito bacteriostático por retenção de microorganismos na sua estrutura. Estão indicados em feridas extremamente exsudativas visto terem capacidade de absorção de 10 a 20 vezes o seu peso. Não são de utilidade na presença de necrose seca ou feridas pouco exsudativas.3,7 É a quantidade de exsudado que indica o tempo de permanência na ferida que pode ser de 7 dias. Apresentam-se sob a forma de apósitos e tiras. As tiras são indicadas para feridas cavitárias e profundas. Foto 10:Aplicação de tira de alginato em deiscência de ferida cirúrgica. 121 Material de Penso Impregnado Existe material de penso impregnado com gordura (sem efeitos terapêuticos) e impregnado com fármaco (com efeitos terapêuticos). Material de penso impregnado com gordura O principal efeito destes apósitos impregnados com vaselina, parafina ou lanolina, é proteger a ferida da aderência das compressas de modo a evitar a destruição dos tecidos neoformados.Tem especial indicação em feridas pouco exsudativas e em fase de granulação e/ou epitelização.2,5 A frequência de mudança do penso varia entre 1 a 3 dias. Foto 11: Exemplos de material de penso impregnado com gordura. 122 Material de penso impregnado com fármaco Existe material de penso impregnado com clorohexidina a 0,5% e com iodo (compressa impregnada com iodopovidona a 10% e gaze impregnada com cadexómero de iodo). Foto 12: Aplicação de compressa primária impregnada com gordura em ferida cirúrgica. São úteis como antisépticos e, por isso, estão indicados para feridas infectadas. Os pensos impregnados com iodo têm espectro de acção mais alargado visto actuarem sobre fungos,vírus,esporos e protozoários,além de bactérias Gram positivas e Gram negativas. Têm, no entanto, contra-indicação nos casos de hipersensibilidade ao iodo e iodopovidona, em doentes com história de doença da tiróide ou com graves alterações da função renal, em mulheres grávidas e a amamentar e em feridas muito extensas devido ao risco de absorção sistémica.2,5 Foto 13: Exemplo de material de penso impregnado com fármaco (iodo). Foto 14: Aplicação de compressa impregnada de iodo em ferida infectada. 123 Apósitos com Silicone São compostos maioritariamente por silicone. A sua principal característica é a não aderência ao leito da ferida, não interferindo negativamente no processo de cicatrização. Permitem a sua remoção sem traumatizar os tecidos neoformados e sem provocar dor.4 Foto 15: Exemplos de apósitos com silicone. A selecção do material a utilizar no tratamento local deve ter por base as orientações técnicas existentes e o tratamento de feridas deve ser efectuado em equipa multidisciplinar. Estão indicados em feridas em fase de granulação, feridas em que se verifique grande aderência de outros apósitos e em feridas cujo tecido peri-lesional esteja fragilizado. Existem em forma de tule, placa e em associação a espumas de poliuretano. As placas são úteis para evitar colóides e melhorar os resultados estéticos da cicatrização. Apósitos de Colagénio O colagénio comercializado é derivado da cartilagem da traqueia de bovinos. É uma proteína presente na pele, com funções importantes no processo de cicatrização uma vez que estimula o crescimento do tecido de granulação por estimulação da angiogénese e desenvolvimento dos fibroblastos.1,4 Está indicado para feridas crónicas sem evolução, idealmente sem necrose e/ou infecção. 124 Devem utilizar-se com apósito secundário (ex.: espumas). Filmes ou Películas de Poliuretano Formados por uma lâmina de poliuretano transparente e semipermeável – permeável ao vapor de água e gases, e impermeável à água e microorganismos. Não têm capacidade de absorção.6 Estão indicados como apósitos primários em feridas em epitelização e sem exsudado ou para prevenção em pele sujeita a fricção. Estão indicados ainda como apósitos secundários para fixação de outro material de penso, como por exemplo, hidrogéis.7,8 Estão contra-indicados em feridas infectadas. Apresentam-se sob a forma de pó ou grânulos. Foto 16: Exemplo de apósito de colagénio. Foto 17: Exemplos de filmes ou películas de poliuretano. Ácidos Gordos Hiperoxigenados Compostos por ácidos gordos essenciais (ex.: ácido linoléico). Actuam por aumentar a hidratação da pele e a microcirculação sanguínea. Estão indicados na prevenção de úlceras de pressão e tratamento de úlceras de pressão de grau I.4 Apresentam-se sob a forma de spray e cápsulas. Aplicam-se sobre a pele íntegra devendo efectuar-se uma massagem suave até à absorção total do produto, devendo repetir-se este procedimento 2 a 3 vezes por dia. Foto 18: Exemplos de ácidos gordos hiperoxigenados. 125 Foto 19: Aplicação de ácidos gordos hiperoxigenados em zona de pressão. 126 Conclusão As necessidades das pessoas portadoras de feridas não se compadecem com lacunas no conhecimento relativo a esta temática, assim como as políticas de saúde não permitem procedimentos que não respeitem a relação custo/benefício dos produtos disponíveis e utilizados. Actualmente existe material de penso capaz de estabelecer uma interacção com o leito da ferida e capaz de promover a sua cicatrização em tempo útil e com qualidade, optimizando recursos materiais e humanos. A selecção do material a utilizar no tratamento local deve ter por base as orientações técnicas existentes e o tratamento de feridas deve ser efectuado em equipa multidisciplinar. Bibliografia 1. BARANOSKI, S., AYELLO, E., (2004). O essencial sobre o tratamento de feridas. Lusodidacta. Loures, Portugal. ISBN 972-8930-03-8. 2. DEALEY, C. (1996) The care of wounds. A guide of nurses. Blackwell Science. 3. GRUPO DE TRABAJO SOBRE ÚLCERAS VASCULARES DE LA A. E. E.V.VALENZUELA, A. R. (coord). (2004). Consenso sobre úlceras vasculares y pie diabético de la Asociación Española de Enfermería Vascular (A.E.E.V.). Espanha. 4. GRUPO NACIONAL PARA EL ESTUDIO Y ASESORAMIENTO EN ÚLCERAS POR PRESIÓN Y HERIDAS CRÓNICAS. TORRA I BOU e SOLDEVILLA (coord). (2004). 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A diabetes caracteriza-se por hiperglicemia associada à insuficiência de insulina ou alterações no seu modo de acção e afecta vários sistemas orgânicos, incluindo o sistema cardiovascular, excretor, visual e nervoso. Um dos resultados do atingimento do sistema nervoso é a neuropatia diabética. 128 Jó Eduardo Esteves de Andrade A avaliação da pressão intraabdominal como factor de prevenção da síndroma compartimental abdominal A síndroma compartimental abdominal apenas recentemente recebeu atenção considerável. Esta pode ser definida como um conjunto de consequências fisiológicas adversas, que ocorrem como resultado de uma persistente elevação da pressão intra-abdominal. As causas mais comuns da síndroma compartimental abdominal são: hemorragia, edema visceral, pancreatite, distensão intestinal, obstrução da mesentérica, ascite, peritonite e tumor. Adriano Rockland, Janieny Vieira, Wagner Teobaldo Lopes de Andrade, Silvia Damasceno Benevides, Antônio Figueiredo Caubi Tratamento miofuncional numa criança com fractura de côndilo mandibular e sucção digital A fractura de côndilo em crianças é um factor que potencializa o surgimento de alterações no crescimento facial e a associação a hábitos nocivos pode aumentar, ainda mais, a possibilidade de ocorrência de deformidades. Mário Reis Medicina Basedada na Evidência Evidence Based Medicine (EBM) é o nome original dado a um método de prática clínica traduzido para português como Medicina Baseada na Evidência. A tradução não foi feliz porque o significado correcto da palavra inglesa Evidence é prova, e o termo português evidência, bem pelo contrário, implica não haver necessidade de prova. Porém, a tradução inicial generalizou-se e hoje faz parte do vocabulário correntemente utilizado na Medicina. A Medicina Baseada na Evidência define-se como uso o consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência actual no processo de tomada de decisão clínica, particularizando o doente. Antunes A, Botelho MF, Gomes CM, de Lima JJP, Silva ML, Moreira JN, Simões S, Gonçalves L Desenvolvimento de liposomas com afinidade para áreas miocárdicas isquémicas –resultados preliminares … Para além do seu papel como modelo de membrana biológica, os liposomas começaram mais recentemente a ser encarados como possíveis vesículas transportadoras de fármacos… Desde então a ideia estendeu-se a várias outras aplicações clínicas como o tratamento de neoplasias através do encapsulamento de fármacos para quimioterapia, encapsulamento de agentes quelantes para tratamento de intoxicações por metais pesados e também, mais recentemente, o uso de liposomas para o diagnóstico e tratamento de situações de isquémia mesentérica e miocárdica (estudos com experimentação animal). Campus Académico do ISAVE Quinta de Matos - Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Tel. 253 639 800 Fax. 253 639 801 Email: [email protected] www.isave.pt Licenciaturas em: Enfermagem Fisioterapia Terapêutica da Fala Farmácia Higiene Oral Prótese Dentária Radiologia Análises Clínicas e Saúde Pública Pós-graduação em Motricidade Oro-Facial Candidaturas de 02 de Julho de 2007 a 20 de Julho de 2007 14 de Julho de 2007 I Encontro de Profissionais do ISAVE - 2002/2006 20 e 21 de Julho de 2007 Contributo da Avaliação Motora nas Práticas de Intervenção Precoce Campus Académico do ISAVE Quinta de Matos Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone - 253 639 800 Fax - 253 639 801 Email - [email protected] www.isave.pt
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