rio de janeiro, 1999 universidade do rio de

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rio de janeiro, 1999 universidade do rio de
UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
MESTRADO EM MÚSICA BRASILEIRA
A MÚSICA EXPERIMENTAL DE HERMETO PASCOAL E GRUPO
(1981-1993): CONCEPÇÃO E LINGUAGEM
LUIZ COSTA-LIMA NETO
RIO DE JANEIRO, 1999
A MÚSICA EXPERIMENTAL DE HERMETO PASCOAL E GRUPO
(1981-1993): CONCEPÇÃO E LINGUAGEM
por
Luiz Costa-Lima Neto
Dissertação submetida ao Programa de
Mestrado em Música Brasileira do Centro
de Letras e Artes da UNI-RIO, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre sob a orientação da Profa. Dra.
Martha Tupinambá de Ulhôa.
RIO DE JANEIRO, 1999
RESUMO
Neste estudo buscamos esclarecer a gênese, a concepção dos elementos
experimentais da linguagem ou sistema musical do compositor e instrumentista Hermeto
Pascoal. Tomamos como objeto de análise um determinado repertório gravado entre 1981
e 1993, pelo músico e o grupo que o acompanhou neste período: Itiberê Zwarg, Jovino
Santos Neto, Antônio Luís Santana, Carlos Daltro Malta e Márcio Villa Bahia. Para
elucidar como determinados elementos harmônicos, melódicos, rítmicos e timbrísticos
foram constituídos no nível da linguagem, nos orientamos através do tempo buscando as
raízes da concepção musical de Hermeto desde sua infância, para então acompanharmos o
desenvolvimento do músico, até encontrarmos novamente o período por nós almejado no
início. São de especial importância em nossa busca determinados modelos sonoros não
convencionais que foram incorporados musicalmente por Hermeto desde garoto, como os
sons de ferros percutidos, da natureza e dos animais e da fala humana.
Investigando as fronteiras entre interpretação, improvisação e composição e a
fim de verificar como ocorria a dinâmica de trabalho de Hermeto Pascoal e Grupo,
reconstituímos ainda o processo de criação e ensaio de cada música analisada, até sua
gravação em estúdio.
ABSTRACT
In this study, we looked for the genesis and the conception of the experimental
elements in the musical language of Hermeto Pascoal's composer and instrumentalist.
We take as our object of analysis a certain repertoire recorded between 1981 e 1993 by
the composer and the group that accompanied him in this period: Itiberê Zwarg, Jovino
Santos, Antônio Santana, Carlos Malta and Márcio Bahia. For clarifying how certain
harmonic, melodic, rythmical and timbre elements were constituted, at the level of
language, we searched, through time, the roots of Pascoal's musical conception, since
his childhood. We went on his musical development up to the point we got in touch
again with the period we had stressed, at beginning. In our research, it is of special
relevance, the relationship between sound and image and certain non-conventional
sound patterns, musically merged by Pascoal since a child, such as the sounds of
percussed metals, sounds that belonged to nature, to animal and human voices.
By investigating the borders of interpretation, improvising and composition and
in order to verify Pascoal's and group work dynamics, we still rebuilt the process of
creation and research in each analysed composition, up to its recording at studios.
Costa-Lima Neto, Luiz.
A música experimental de Hermeto Pascoal e Grupo (1981 – 1993): concepção e
linguagem. / Luiz Costa-Lima Neto. – Rio de Janeiro, 1999.
vii, 200p.
Orientadora: Martha Tupinambá de Ulhôa.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Rio de Janeiro. Mestrado em Música
Brasileira.
Bibliografia: p.195-198.
Discografia: p.199-200.
1. Música instrumental. 2. Música Popular. 3. Etnomusicologia. 4. Hermeto Pascoal. I.
Ulhôa, Martha Tupinambá de. II. Universidade do Rio de Janeiro (1979 - ). Programa de
Pós-Graduação em Música. III. Título
DEDICATÓRIA
A meu filho Pedro e a Cristiane, a
Henrique, Zélia, Luiz, Rebeca e
Daniel, minha família.
Pelo apoio, amor e paciência.
A todos os fãs de Hermeto Pascoal,
e mais especialmente aqueles que,
numa noite qualquer entre 1981 e
1993, estiveram nos shows de
Hermeto, Itiberê, Jovino,
Pernambuco, Carlos Malta e
Márcio Bahia.
I
AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –
por minha bolsa de estudos no período 1996 – 1998.
Aos professores José Maria Neves, Elizabeth Travassos Lins, Carol
Gubernikoff, Ricardo Tacuchian e Antônio Guerreiro, aos colegas e funcionários da
UNI-RIO e ao professor Rodolfo Caesar da Escola de Música da UFRJ, pelo auxílio e
rico convívio acadêmico e pessoal.
Aos professores Doutores Elizabeth Travassos Lins e Maurício Alves Loureiro,
que integraram a banca de defesa de minha dissertação apresentando várias
contribuições importantes a meu trabalho.
Ao professor Mauro Wermelinger por ter cedido gentilmente seu arquivo de
reportagens sobre Hermeto Pascoal.
Ao próprio Hermeto Pascoal e aos músicos Jovino Santos Neto, Itiberê Zwarg,
Márcio Villa Bahia e Carlos Malta, pelas entrevistas concedidas e pela amável
colaboração na coleta e correção das partes musicais manuscritas. Sem sua ajuda, este
trabalho não seria possível.
Agradeço especialmente ao pianista e compositor Jovino Santos Neto por sua
disponibilidade solícita nas entrevistas que me concedeu por mais de dois anos
e pela generosidade de colocar à disposição seu arquivo pessoal de partituras
compostas por Hermeto.
O agradecimento final se dirige à minha orientadora, Martha Tupinambá de
Ulhôa, pelas correções, sugestões e incentivo e por ter embarcado comigo numa viagem
tão sedutora quanto imprevisível.
II
SUMÁRIO
PREFÁCIO - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - VII
PREFÁCIO À VERSÃO ONLINE (2010) - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - VIII-X
1. INTRODUÇÃO - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -1
1.1 – A concepção e linguagem de Hermeto Pascoal: primeiras considerações - - - - - - 3
1.2 – A surpreendente versão “nativa” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 6
2. DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - 13
2.1 – De um ponto de vista erudito - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 13
2.2 – Uma perspectiva jazzística - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 17
2.3 – Conclusão dos trabalhos discutidos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 23
2.3.1 – Jazz? - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 24
2.3.2 – Música concreta? - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 25
2.4 – O sonoro e o musical - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 29
2.5 – Sinestesia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 30
3. O PROCESSO CRIATIVO DE HERMETO E GRUPO - - - - - - - - - - - - - - - 36
3.1 – De Lagoa da Canoa aos E.U.A., dos E.U.A. ao mundo - - - - - - - - - - - - - - - - - 36
3.2 – Dados bibliográficos dos integrantes do grupo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 56
3.2.1 – Itiberê Luiz Zwarg - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 56
3.2.2 – Jovino Santos Neto - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 57
3.2.3 – Carlos Alberto Daltro Malta - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 58
3.2.4 – Márcio Villa Bahia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 59
3.3 – Hermeto e Grupo de 1981 a 1993 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 61
3.3.1 – Convivência, metodologia de ensaio e aprendizado - - - - - - - - - - - - - - - - - - 61
3.3.2 – O processo de ensaio e criação musical: composição improvisada e
improvisação escrita? - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 64
3.3.3 – A participação dos músicos no processo de criação - - - - - - - - - - - - - - - - - - 68
3.3.4 – Considerações finais sobre a “escola” de Hermeto e o papel do Grupo na
consolidação da linguagem do alagoano - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 71
3.3.5 – Fim de ciclo/começo de outro - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 73
III
4. CONSIDERAÇÕES SOBRE ACÚSTICA E PSICO-ACÚSTICA - - - - - - - - - 75
4.1 – Um ruído constante - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 75
4.2 – Tipologia espectral - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 80
4.2.1 – Espectros harmônicos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 81
4.2.2 – Espectros inarmônicos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 83
4.3 – Morfologia espectral - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 87
4.4 – O som unitário - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 87
4.5 – A percepção ampliada de Hermeto - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -90
5. ANÁLISES SELECIONADAS - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 99
5.1 – Breve descrição do repertório - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 99
5.2 – Partituras gráficas e convencionais - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 101
5.3 – Análises musicais - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -104
5.3.1 – “Série de Arco” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 104
5.3.2 – “Briguinha de músicos malucos no coreto” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 114
5.3.3 – “Magimani Sagei” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -119
5.3.4 – “Cores” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 127
5.3.5 – “De bandeja e tudo” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 143
5.3.6 – “Papagaio Alegre” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 151
5.3.7 – “Arapuá” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 161
5.3.8 – “Aula de natação” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 174
6. CONCLUSÃO - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 179
6.1 – Síntese das análises musicais - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -179
6.2 – A trajetória de Hermeto e Grupo: considerações finais - - - - - - - - - - - - - - - - 182
6.3 – Uma entrevista final com Hermeto - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 188
7. FONTES - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - ---- -- -- - - - - - - - - - 195
7.1 – Bibliografia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 195
7.1.1 – Revistas e jornais sem entrada por autor ou data - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 198
7.2 – Entrevistas - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 198
7.3 – Discografia - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 199
7.3.1 – Discos solo de Hermeto Pascoal - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 199
7.3.2 – Discos solo como intérprete e arranjador - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 199
7.3.3 – Discos solo dos integrantes do Grupo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 200
7.3.4 – Outros - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 200
IV
Lista de partituras gráficas
“Série de Arco” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 105-106
“Briguinha de músicos malucos no coreto” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 115-116
“Magimani Sagei” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -121-122
“Cores” - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 128-130
“De bandeja e tudo” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -144-145
“Papagaio Alegre” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 153-153
“Aula de natação” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 175
Lista de exemplos em partitura convencional
Ex. 1 – harmonia para o solo de “Ilhas das gaivotas” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -20
Ex. 2 – 2º compasso de “Ilha das Gaivotas” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -21
Ex. 3 – Série harmônica - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 82
Ex. 4 – Espectro do sino da Catedral de Winchester - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 85
Ex. 5 – 1º compasso “ Ferragens” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 91
Ex. 6 – Compasso 1, 1º tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 94
Ex. 7 – Compasso 1, 5º tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 95
Ex. 8 – 2º compasso - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 95
Ex. 9 – Compasso 2, 1º tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 96
Ex. 10 – Compasso 2, 2º tempo - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 96
Ex. 11 – 1º compasso, “Série de Arco” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 107
Ex. 12 – 2º compasso,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 108
Ex. 13 – 4º compasso,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 108
Ex. 14 – 7º compasso,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 109
Ex. 15 – 8º compasso,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 109
Ex. 16 – Compassos 10 e 11, “
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 110
Ex. 17 – 4º compasso,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 110
Ex. 18 – 6º compasso,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 111
Ex. 19 – Compassos 1 e 2,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -112
Ex.”20 – 34º compasso,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -113
Ex. 21 – Tema „a‟ e „b‟ de “Briguinha de músicos malucos no coreto” - - - - - - 117-118
Ex. 22 – Levadas de bateria de “Magimani Sagei” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 123-124
Ex. 23 – Tema de “Magimani Sagei” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 125
Ex. 24 – Flauta “dobrando” bateria “
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 126
V
Ex. 25 – Tema de “Cores” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 132- 133
Ex. 26 – Compasso 5, acorde de dupla cifragem
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - 134
Ex. 27 – Compasso 7, acorde de dupla cifragem
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - -134
Ex. 28 – Compassos 11 e 12 do tema,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -136
Ex. 29 – Ponte dissonante pedal para A‟,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -137
Ex. 30 – Cigarra e piano 1 e 2 do tema,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -138
Ex. 31 – Ritmo do piano em B”,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -139
Ex. 32 – Bateria e piano em B”,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 139
Ex. 33 – Ponte dissonante para A‟‟‟,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - 140
Ex. 34 – Acorde formado a partir dos parciais da placa de ferro,
Ex. 35 – Piano antes do clímax,
Ex. 36 – Clímax,
“
“
“
- - - - - - - -140
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -140
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 141-142
Ex. 37 – Tema, “De bandeja e tudo” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -147 - 147
Ex. 38 – A‟, “diabinhos”,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -149
Ex. 39 – Tema „a‟ de “Papagaio alegre” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 154 - 155
Ex. 40 – Tema „b‟,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 156
Ex. 41 – Escala super-lócria,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -157
Ex. 42 – Tema „c 1‟,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -158
Ex. 43 – Escala simétrica,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -159
Ex. 44 – Tema „c 2‟,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 159-160
Ex. 45 – Linha do sax em „c 2‟,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 161
Ex. 46 – Compassos 1 a 17, “Arapuá” - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -164-166
Ex. 47 – Acorde-base quartal,
“
Ex. 48 – Acorde-zumbido,
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 167
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -167
Ex. 49 – Compassos 23 e 24,
“ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 168
Ex. 50 – Compassos 57 a 60,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -168-169
Ex. 51 - Linha do baixo elétrico para B,
“
Ex. 52 – Harmonia para o solo de berrante,
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -170
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 171
Ex. 53 – Trecho final,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -172-173
Ex. 54 – Poliacorde final,
“
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -173
VI
PREFÁCIO
Desde aproximadamente 1984 até 1992, acompanhamos Hermeto e seu Grupo
em praticamente todos os seus shows e temporadas no Rio de Janeiro. As apresentações
eram extraordinárias e inesquecíveis. Únicas. À frente de um grupo de músicos
excepcionais tínhamos um multi-instrumentista virtuose, criativo e carismático, além de
um entertainer muito bem-humorado: Hermeto Pascoal.
O espetáculo era garantido. Invariavelmente os shows duravam muito além dos
limites convencionais, estendendo-se por três, quatro ou mais horas. É muito difícil
descrever exatamente o que ali ocorria, mas uma coisa era clara: tratava-se de uma
banda fantástica e de um dos maiores músicos da atualidade.
O emprego de superlativos constitui efeito retórico desaconselhável numa
dissertação. Consideremos este pequeno prefácio como uma exceção que Hermeto e
Grupo merecem.
As qualidades de Hermeto não se restringem ao intérprete magnificamente
habilidoso, do ponto de vista técnico e da improvisação. Hermeto é também um
compositor muito singular. Seu repertório oferece um leque de possibilidades estilísticas
variadíssimo, indo do xote e do baião até um experimentalismo só encontrado na
música erudita contemporânea.
Hermeto atraía na mesma medida em que intrigava.
Como, perguntávamo-nos então, Hermeto se transformara naquele fenômeno
genial liderando uma banda tão boa? E que músicas eram aquelas, como foram feitas e
concebidas?
Estas perguntas, formuladas anos atrás em estado de êxtase musical completo, se
devem à perplexidade que a música de Hermeto e Grupo nos provocava.
Esta dissertação é fruto desta perplexidade. Nela, procuramos entender a
concepção e a linguagem de Hermeto Pascoal, sobretudo nos seus aspectos
experimentais.
VII
PREFÁCIO À VERSÃO ONLINE (2010)
Inicialmente gostaria de agradecer a Fernando Ximenes pelo convite e o
privilégio de participar desta Enciclopédia da Música Instrumental Brasileira, uma
iniciativa pioneira importante.
Minha dissertação de mestrado aqui disponibilizada apresenta poucos
acréscimos ou correções com relação à versão original por mim defendida em 29 de
abril de 1999 no Mestrado em Música Brasileira da UNIRIO, sob a orientação da Profa.
Dra. Martha Tupinambá de Ulhôa, a quem muito agradeço. Não modifiquei
substancialmente o texto original de minha dissertação porque acredito que os
resultados nela alcançados hà cerca de dez anos atrás permanecem válidos e atuais,
especialmente no que diz respeito ao modo como a percepção ampliada do auto-didata
Hermeto Pascoal funde o sonoro e o musical em sua estética Universal, tendo como
modelo experimental, desde sua infância, os sons não convencionais dos objetos
sonoros, dos animais e da fala humana.
Aproveito a oportunidade para corrigir duas informações inexatas. Por não
conseguir ter acesso às gravações feitas por Hermeto Pascoal antes do LP Quarteto
Novo (1967), me equivoquei ao sugerir que a música “O Ovo” teria sido sua primeira
composição gravada. Segundo informação concedida gentilmente pelo pesquisador José
Roberto de Barros Torres, que está escrevendo uma biografia de Hermeto Pascoal, as
primeiras composições gravadas de Hermeto datam de 1965: "Coalhada", pelo
Sambrasa Trio e pelo organista Renato Mendes; "Sete Contos", pelos Cinco-pados e
pelo pianista Ely Arcoverde; e, finalmente, "Balanço n°1”, pelo Jongo Trio. Quanto à
primeira gravação do Hermeto Pascoal como instrumentista, ela ocorreu no disco
“Ritmos Alucinantes”, do maestro Clovis Pereira, em Recife, em 1956. O segundo
equívoco foi a grafia do sobrenome de Hermeto, que em minha dissertação registrei
como „Paschoal‟. De acordo com a assinatura do próprio músico registrada em facsímile no Calendário do Som (2000) – publicado após a minha dissertação ter sido
concluída –, e a partir de informação recente da família do músico e de José Roberto de
Barros Torres, seu sobrenome deve ser grafado sem o “h”, isto é, „Pascoal‟.
VIII
É digno de nota o fato de os integrantes do Grupo de Hermeto Pascoal no
período 1981 - 1993, os músicos Antônio Luis Santana, Jovino Santos Neto, Carlos
Malta, Itiberê Zwarg e Márcio Bahia (os dois últimos continuam tocando com Hermeto
Pascoal), terem obtido sucesso em suas carreiras-solo como instrumentistas,
arranjadores e compositores, e que Hermeto Pascoal, por sua vez, prossegue criando e
gravando novos trabalhos excelentes, solo ou em Grupo, após a entrada de dois novos
integrantes, o saxofonista Vinícius Dorin e o pianista André Marques, além do
percussionista Fábio Pascoal, filho de Hermeto.
Sugiro que a leitura de minha dissertação seja enriquecida com o farto material
áudio-visual atualmente disponível na internet sobre Hermeto e Grupo(s). No YouTube
ou em blogs e sites especializados são facilmente encontradas gravações de shows,
ensaios, entrevistas e documentários, que poderão ilustrar e ampliar eficazmente
determinados aspectos abordados em minha dissertação. Menciono, a título de exemplo,
as gravações das „músicas da aura‟ do ator Yves Montand e das Ceguinhas Cantoras da
Paraíba, além dos duos de Hermeto Pascoal com sapos, pássaros e abelhas (disponíveis
no YouTube), bem como os programas criados e apresentados pelo pesquisador e
músico Ricardo Sá Reston no Podcast Miscelânia Vanguardiosa e no blog
Desritmificações. Há ainda as informações levantadas continuamente pelos membros
das comunidades de aficcionados por Hermeto Pascoal no Orkut e, finalmente, outras
dissertações ou teses escritas sobre o compositor alagoano.
Espero que a minha pesquisa de mestrado, disponibilizada aqui em português e
em inglês, graças aos tradutores Laura Coimbra e Tom Moore, aos quais muito
agradeço, possa contribuir para divulgar a música daquele que é, a meu ver, um dos
maiores compositores da atualidade. O fato de Hermeto Pascoal, além de outros
expoentes da música popular no Brasil, como, por exemplo, Pixinguinha ou Antônio
Carlos Jobim (para mencionar apenas três nomes) não figurarem nas listas habituais de
“grandes compositores da história mundial da música” não diminui em nada a
importância dos três artistas, antes revela a precariedade destas listas – devido ao
eurocentrismo que as limita. Ora, as músicas produzidas nos séculos XX e XXI no
Brasil e em outros países das Américas, da África, Ásia e Oceania também fazem parte
IX
da “música moderna e contemporânea”. É necessário ampliar a “história da música
mundial” de maneira a nela incluir o... mundo. Neste sentido, a presente Enciclopédia
da Música Instrumental Brasileira é uma iniciativa pioneira por divulgar pela internet,
numa escala planetária, artistas que até então têm estado à margem da historiografia
brasileira e mundial. Aliás, esta iniciativa parece se harmonizar bem com as propostas
da Música Universal de Hermeto Pascoal.
Luiz Costa-Lima Neto (Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 2010)
X
1
1 - INTRODUÇÃO
Hermeto Pascoal, com cerca de 50 anos de carreira, 13 discos autorais gravados e
31 outros onde atua como produtor, intérprete, arranjador e compositor, 1 é hoje um nome
expressivo no cenário da música nacional e mundial.
Esta pesquisa se debruça sobre alguns aspectos de sua concepção e linguagem e,
para tanto, analisaremos um determinado repertório composto e gravado por Hermeto no
período compreendido entre 1981 e 1993. Neste período, um quinteto de músicos
acompanhou e foi liderado por Hermeto, aliando um excelente padrão de performance
individual à singular concepção estética do compositor alagoano: Itiberê Luis Zwarg
(baixo elétrico, tuba e bombardino), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas),
Antônio Luís Santana - apelidado de Pernambuco - (percussão), Carlos Daltro Malta
(saxes, flauta, flautim) e Márcio Villa Bahia (bateria e percussão).
Empregamos 'linguagem' e 'concepção' no sentido usual dos termos. Linguagem é
o termo geral que engloba os sistemas de signos, i.e., de elementos não naturais (os sons
integrados a uma escala musical naturalmente a ela não pertencem, ou os que formam
uma palavra naturalmente não significam), pelos quais os homens se expressam e se
comunicam. Concepção é o ato de originar, de criar. No caso, trata-se de analisar a
concepção de uma linguagem ou sistema musical.
Duas questões portanto, nos movem. A primeira, de ordem mais geral, diz
respeito à concepção experimental de Hermeto: como ele a elaborou, quais suas origens e
seus traços mais importantes. Para respondê-la, retornamos à infância do compositor para
em seguida acompanhar sua trajetória profissional. A segunda questão se refere a como
esta concepção foi transformada em linguagem musical pelo próprio Hermeto e pelo
quinteto que o acompanhou no período já mencionado. Tentamos responder a esta
segunda questão traçando um pequeno perfil biográfico de cada um dos músicos da banda
e reconstituindo o processo de criação e ensaio das músicas por nós escolhidas, até sua
gravação em estúdio.
1
Dados aproximados apresentados com base na discografia feita pelo amigo de Hermeto e Grupo,
Mauro Wermelinger. Por causa da precariedade da catalogação das obras de determinados músicos
brasileiros, a discografia total de Hermeto carece de pesquisa que escapa aos limites desta dissertação e
certamente é bem maior que a por nós apresentada.
2
O repertório selecionado para análise é uma amostragem do trabalho
desenvolvido por Hermeto Pascoal & Grupo, sendo as músicas escolhidas especialmente
adequadas aos objetivos do presente estudo, por nos terem parecido exemplos ricos em
aspectos experimentais diversos.
A definição de música experimental de que nos servimos, é baseada naquela
apresentada por Paul Griffiths em seu livro Enciclopédia da Música do Sec. XX:2
(...) costuma-se usar a palavra experimental para a música que se afasta significativamente das
expectativas de estilo, forma ou gênero canonizadas pela tradição - exceto a tradição experimental.
Alguns compositores, sobretudo em fins de 60 e início da década de 70, quando a música experimental
estava no auge, faziam uma útil distinção entre a vanguarda, que trabalhava dentro da tradição e dos
canais aceitos de comunicação (casas de óperas, concertos orquestrais, universidades, empresas de
radio-difusão, gravadoras), e os compositores experimentais, que preferiam trabalhar de outras formas.
(...) Na verdade, o trabalho experimental foi muito mais uma característica da música americana e
inglesa do que do continente europeu. (GRIFFITHS, 1995 : 150)3
Griffths está se referindo ao mundo artístico da música erudita, mas sua definição
aplica-se perfeitamente à tradição da música popular. É interessante a distinção entre
experimental e vanguarda, pois como discute Howard Becker, em seu artigo seminal
"Mundos artísticos e tipos sociais", 4 a vanguarda apesar "de enfrentar sérias dificuldades
para ver o seu trabalho realizado", o que às vezes "pode chegar a não ocorrer" (p. 15),
acaba geralmente por ser absorvida pela tradição e seus canais convencionais. Isto
porque, segundo Becker: "os inconformistas vieram de um mundo artístico, foram
treinados nele e, num grau considerável, continuam voltados para ele. A intenção do
inconformista parece ser a de forçar o seu mundo artístico de origem a reconhecê-lo,
exigindo que, em vez dele se adaptar às convenções impostas por esse mundo, seja este
que se adapte às convenções por ele próprio estabelecidas para servir de base a seu
trabalho.
2
São Paulo: Martins Fontes, 1995.
A própria gênese do conceito de "música experimental", tal como este é apresentado por
Griffiths, tem muito a ver com a trajetória de Hermeto. O surgimento deste último como compositor (fato
que se concretiza com o lançamento de seu primeiro disco solo em 1971), ocorre justamente no auge da
música experimental e sintomaticamente, nos E.U.A., onde Griffiths diz ter sido, muito mais do que a
Europa (com a exceção da Inglaterra), o palco principal da música experimental. Cf. Michael Nyman,
Experimental music: Cage and beyond. London : Studio Vista, 1974.
4 In Gilberto Velho (org.), Arte e Sociedade- ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1977, p. 9 - 25.
3
3
Isto porque os inconformistas não renunciam a todas e nem mesmo a muitas das
convenções de sua arte" (idem).
O conceito apresentado por Griffiths nos parece adequado a Hermeto não só
porque ele definitivamente possui um estilo experimental, que se afasta da tradição e do
convencional, mas também porque o meio que elege para atuar não é o meio da
vanguarda erudita, nem popular. A Tropicália, que é um exemplo de vanguarda na
música brasileira popular, foi um movimento com o qual Hermeto manteve poucos elos
de ligação.
Hermeto teve e tem que construir um espaço próprio (o do experimentador autodidata), para a concretização de seu projeto artístico, mesmo no campo da música
instrumental, que inclui ainda o choro, o jazz, etc.5
Analisamos as seguintes músicas: "Série de Arco", "De bandeja e tudo",
"Magimani Sagei", "Briguinha de músicos malucos no coreto", "Cores" do LP Hermeto
Pascoal e Grupo (Som da Gente, 1982); "Papagaio alegre" do LP Lagoa da Canoa,
Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984); "Arapuá", LP Brasil Universo (Som da
Gente, 1987) e "Aula de Natação" do CD Festa dos Deuses (Polygram, 1992) 6.
Estudamos este repertório tanto a partir de seus aspectos estruturais (revelados
pela análise das partituras e gravações), como do ponto de vista de seu processo de
gênese e criação, além das diferentes nuances de interpretação (apreendidas através da
transcrição e descrição das performances gravadas em disco).
1.1 A concepção e linguagem de Hermeto Pascoal: primeiras considerações
Numa posição que desafia rótulos e fronteiras delimitadoras, a linguagem de
Hermeto Pascoal o situa entre a música popular e a erudita. Ora é muito inovador nos
parâmetros formulaicos do popular, ora é demasiadamente popular nos parâmetros
estruturais eruditos. O projeto experimental de Hermeto Pascoal é por isso único.
5
Ver especialmente o capítulo III, para aprofundamento histórico-biográfico.
Além destas músicas, analisamos brevemente no capítulo IV, a peça "Ferragens", para piano
solo. "Ferragens" foi composta, mas não gravada no período estudado.
6
4
(...) Eu não posso dizer qual o tipo de música que eu faço. Eu faço música, isto é tudo. Eu
toco uma infinidade de ritmos, de sons, de harmonias, de gêneros, de estilos... Eu adoro tocar música
"clássica" (eu coloco um rótulo porquê as pessoas gostam disso. Eu detesto!) e de repente mudo para
um frevo do carnaval do Recife ou um baião do nordeste. (HERMETO, Jazz Magazine: 1984)
Hermeto é, de fato, criador de uma linguagem bastante pessoal, no qual às
harmonias dissonantes do jazz, misturam-se ritmos e melodias populares, freqüentemente
do nordeste brasileiro, região onde o músico nasceu, em 1936. No entanto sua linguagem
é multidirecional, contendo também elementos que são comuns à música erudita
contemporânea, como poliacordes, polirritmias, uso não convencional de instrumentos
convencionais e exploração de ruídos e novas possibilidades tímbricas através de um
arsenal percussivo variado, constituído de objetos sonoros os mais diversos.
Outra característica importante na música de Hermeto Pascoal é a improvisação.
É inegável a influência do jazz americano, embora a improvisação praticada por Hermeto
não se limite (tal como ocorre geralmente no jazz tradicional7) à capacidade de
reinvenção melódica sobre uma mesma estrutura harmônica. Ele pode, por exemplo,
(como na música "Magimani Sagei"), sobrepor ostinatos de baixo e bateria, vários
cachorros latindo, uma pessoa falando palavras desconexas, e considerar tudo isso como
sendo a "base harmônica" sobre a qual diversas flautas improvisarão livremente, ao
mesmo tempo fundindo seus timbres aos latidos dos cachorros e às onomatopéias e
grunhidos da voz através de frulatos, glissandos e outros recursos, como cantar dentro das
flautas simultaneamente à emissão de notas.
A fim de tentar verificar como o compositor experimenta e inova em sua
linguagem é necessário perceber também quais são seus limites. Como exemplo,
podemos citar a recusa de Hermeto em "atualizar-se" tecnologicamente, ao recusar os
sintetizadores, computadores, samplers e similares. Apesar de ser um pioneiro na procura
7
Sobre a relação estabelecida por Hermeto com o jazz americano, ver cap. III.
5
de novos timbres e sonoridades, Hermeto age desconfiadamente com relação à
maquinaria sonora, adotando uma posição que poderia ser considerada conservadora, ao
restringir a eletrônica em sua música somente aos instrumentos amplificados como piano
e baixo elétricos.
O que Hermeto parece detestar nos sintetizadores é a possibilidade - perversa - da
criação ser substituída pela padronização, já que na maioria dos teclados eletrônicos, os
timbres são pré-"setados", ou seja, vêm prontos da fábrica. A alternativa possível para
esta limitação imposta pela tecnologia dos teclados, que seria a criação de timbres através
de computadores, não parece ser por sua vez uma opção buscada por Hermeto.
Por outro lado, seu arsenal timbrístico é muitíssimo variado e nem um pouco
conservador. Consiste de objetos sonoros acústicos como panelas, chaleiras, bules,
baldes, bacias, garrafas, máquina de costura, calotas de carro, sinos, berrantes, buzinas,
brinquedos sonoros, etc., etc.
Além do instrumental sonoro sempre renovável, o uso dos sons dos mais diversos
animais, "afinados" com a música, já se tornou uma assinatura estilística de Hermeto.
Como exemplo, podemos mencionar os grunhidos de porcos do LP Slave Mass (WEA,
1977), latidos de cachorros e silvos de cigarras no LP Hermeto Pascoal & Grupo (Som
da Gente, 1982), gritos de papagaios no LP Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca
(Som da Gente, 1984), cacarejar de galos e galinhas no LP Brasil Universo (Som da
Gente, 1985), zumbidos de abelhas e zurros de jumentos no LP8 Só não toca quem não
quer (Som da Gente, 1987),
canto de pássaros diversos no CD Festa dos Deuses
(Polygram, 1993), além de outros. Os limites que Hermeto estabeleceu para si mesmo ao
recusar alguns dos novos recursos tecnológicos não parecem ter afetado sua capacidade
de invenção e experimentação.
Mas como exatamente Hermeto concebeu e consolidou em sua linguagem as
características por nós acima mencionadas de sua música experimental?
8 A partir deste LP de 1985, os discos gravados por Hermeto e Grupo na gravadora Som Da Gente
até Festa dos deuses (Polygram, 1992), passaram a ser lançados simultaneamente em CD.
6
1.2 A surpreendente versão "nativa"
Inicialmente, para explicar as características "anfíbias" de Hermeto, supomos ter
havido um contato íntimo entre este compositor e a música erudita. No entanto, já em
nossa primeira entrevista com um dos músicos de sua banda no período 1981-1993, o
pianista Jovino Santos Neto, esta hipótese foi contestada com veemência:
Não, não, não, não, quer dizer, o que eu sei dessa estória (do contato de Hermeto com a
música erudita contemporânea) é que quando ele tocava na Rádio Jornal do Comércio em Recife,
tinha um pianista que tocava muito bonito música clássica, e ele ficava olhando o cara ensaiar (...)
Quer dizer, uma análise estrutural da música contemporânea ele nunca teve (...) eu sei que quando ele
esteve com o Edu Lobo lá em Los Angeles, o Edu ficava mostrando umas partituras do Stravinsky
para ele, e ele fala sempre: - Ah, eu não tava muito interessado nisso não. (JOVINO, 1997)9
A revelação de Jovino Santos era surpreendente. Imaginávamos o contato de
Hermeto com a música erudita como um fato certo, lógico, que a nós bastaria localizar
em termos de data, pessoas envolvidas, professores, escolas, etc. Estávamos enganados.
Jovino nos sugeriu que antes procurássemos os embriões da concepção de Hermeto em
sua infância em Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, no distante sertão de Alagoas.
É possível que, com a capacidade de percepção e retensão auditiva aguçadas de
Hermeto, estes breves contatos com músicas eruditas contemporâneas tenham sido
suficientes para o músico incorporá-las a seu repertório sonoro. Contudo nossa hipótese
inicial, vinculando a linguagem experimental de Hermeto a um presumível contato com a
música erudita, se tornara, com o depoimento de Jovino, uma possibilidade pouco
consistente. Vejamos então, porque Jovino sublinha a importância de retornarmos à
infância do compositor para entendermos sua concepção musical.
Segundo Jovino, a linguagem harmônica de Hermeto não se resume, mas se
baseia quase totalmente, em estruturas triádicas superpostas de maneira não funcional.
9
Em entrevista posterior, realizada em 06/03/1999, perguntamos a Hermeto sobre esta experiência
com a música de Stravinsky e ele nos falou sobre ela com interesse. A pergunta nos parecia importante
porque, apesar de Jovino ter dito que Hermeto manifestou pouco interesse pela música de Stravinsky, nos
chamava a atenção a semelhança entre alguns acordes presentes na música de Hermeto e na do compositor
russo. Apesar de ter ouvido Stravinsky uma única vez, Hermeto demonstrou ter entendido bem a maneira
como Stravinsky trabalhava superpondo tonalidades e, mesmo admitindo algumas semelhanças
harmônicas, não reconheceu influência alguma do último em sua linguagem.
7
Jovino levanta a possibilidade deste procedimento harmônico ter se originado da sanfona
de oito baixos (também chamada no nordeste de pé-de-bode), que foi o primeiro
instrumento do compositor alagoano depois das flautas de galho de mamona e dos
pedaços de ferro percutido. A pé-de-bode possue dois sistemas de botões. O primeiro
sistema produz notas e serve para o instrumentista executar melodias. O segundo sistema
de botões, produz acordes maiores, menores e dominantes, que servem para o
acompanhamento. Por não ser cromática, a sanfona de oito baixos não possui todos os
tons, sendo por isso um instrumento bastante limitado. Jovino nos relata que, na infância
de Hermeto, este ia para o "monturo" (o ferro-velho) de seu avô ferreiro, e, batendo nos
diferentes pedaços de ferro procurava suas notas fundamentais na sanfona, bem como os
harmônicos que estas produziam.
Então ele pegava aqueles pedaços de ferro e batia neles, fazia (imita o som do ferro), e
buscava os harmônicos daqueles pedaços de ferro na sanfoninha, que notas são aquelas, porque um
sino, um pedaço de ferro quando bate tem várias notas, dá a principal, a fundamental e toda uma série
harmônica que dependendo das características do ferro vão ser totalmente atonais ou não. (JOVINO,
1997)
É necessário que façamos um breve parêntesis para esclarecer alguns problemas
referentes à terminologia acústica.
Um corpo sonoro ao vibrar, produz não apenas uma nota, mas uma série de outros
sons, denominados senóides ou parciais. A nota que ouvimos é apenas a freqüência mais
grave de outras freqüências (as senóides ou parciais).
Parciais harmônicos e inarmônicos são ambos componentes senoidais.
Distinguimos um termo do outro a partir do tipo de espectro sonoro que integram.
Espectro por sua vez, é o nome dado ao conjunto dos componentes sonoros, constituído
da freqüência mais grave e seus parciais harmônicos ou inarmônicos. Usaremos o termo
‘harmônicos’ em se tratando dos sons com o espectro de mesmo nome - espectro
harmônico –, e 'parciais inarmônicos' em relação aos sons de espectro inarmônico.
As senóides são sons que não são harmônicos nem inarmônicos, pois suas ondas
sonoras são desprovidas de parciais. Por isso também, as senóides são chamadas de som
puro. No entanto, tão logo esta onda pura é transformada em vibração atmosférica,
distorções acrescentam-se a ela, provenientes do aparelho difusor, da reflexão do local de
escuta e do próprio órgão auditivo. Ou seja, a simples propagação atmosférica e a
8
recepção auditiva modifica a "pureza senoidal", o que a torna de certa forma, uma
abstração acústica. Por serem sons absolutamente definidos em relação à altura, as
senóides estão numa ponta do continuum sonoro, que tem na outra extremidade, o ruído
branco, o qual explicaremos mais à frente.
A maioria dos instrumentos musicais no Ocidente, com exceção somente de
alguns dos instrumentos de percussão, têm espectro harmônico. Neste tipo de espectro,
os harmônicos mantém com a freqüência fundamental uma distância “igual à
multiplicação desta [fundamental] por um número inteiro” (ver CAESAR). Por isso nos
sons harmônicos, ouvimos a fundamental claramente e com altura bem definida. Os
harmônicos fundem-se nela, apenas modificando sua cor, seu timbre. O timbre de um
som dependerá do material que constitui sua fonte emissora e das formas de ataque, além
da relação entre seus componentes espectrais.
Já nos sons inarmônicos como os produzidos por sinos, pedaços de ferro e objetos
metálicos, os parciais que integram seu espectro não estão numa relação de números
inteiros entre si, tal como nos sons harmônicos. Na multiplicação que os parciais operam
sobre a freqüência mais grave aparecem também números fracionários e, por isso, o
espectro inarmônico é formado de freqüências diferentes do espectro harmônico. O efeito
auditivo, no que diz respeito à clareza absoluta de identificação de uma nota com altura
definida, não é mais possível.
Se o fracionamento na multiplicação dos parciais sobre a freqüência mais grave
for incrementado teremos o que se entende na acústica por ruído. Nos ruídos, os parciais
inarmônicos estão dispostos tão irregularmente, que a identificação de uma única altura
(como ocorre nos espectros harmônicos), ou mesmo a percepção de uma altura
aproximada, combinada a alguns de seus parciais (tal como ocorre nos espectros
inarmônicos de sinos, ferros e objetos metálicos), se torna impossível. Os ruídos por sua
vez, são de diferentes tipos. Quando todas as freqüências audíveis são misturadas
caoticamente ocorre o ruído branco, que, ao ser filtrado de diferentes formas, torna-se
ruído colorido.
9
Assim sendo, podemos compreender o som como um continuum trifásico: os sons
senoidais; aqueles com espectro harmônico; e os com espectro inarmônico. 10
Tentando reproduzir nas tríades e notas isoladas da sanfona de oito baixos, as
sonoridades inarmônicas dos ferros, Hermeto teria assim iniciado, segundo Jovino, sua
linguagem harmônica. Este "idioma" prematuramente experimental, não só combinava
notas e acordes de uma maneira heterodoxa, como aproximava os sons harmônicos (da
sanfona) e os inarmônicos (dos ferros, dos bichos e da natureza).
A partir destas experiências ocorridas na infância de Hermeto, Jovino crê que o
músico desenvolveu e consolidou uma linguagem harmônica parcialmente baseada em
tríades, as quais ele superpõe umas às outras, gerando agrupamentos verticais de maior ou
menor complexidade e tensão intervalar.
Nesse processo, você tem uma elasticidade dos acordes, que você pode pegar um acorde
absolutamente careta, normal, e você [imita o som de algo rasgando] abre ele (...) Você pode alongar
este acorde até ele ficar absolutamente atonal, e voltar. (JOVINO, 1997)
A superposição de estruturas triádicas não é exatamente uma invenção original.
Tanto a música erudita, através da politonalidade, como o jazz, utilizam-se deste
procedimento. Se concordamos com Jovino, porém, o caminho que Hermeto seguiu até
sua descoberta, bem como o uso que dela fez e faz, são parte unicamente de sua trajetória
pessoal.
No jazz, a utilização desta ferramenta harmônica encontra muitos limites
relacionados às tensões disponíveis nas escalas de acordes. As notas proibidas, assim
consideradas por produzirem dissonâncias que descaracterizariam melodia e harmonia,
acabam por reduzir este idioma consideravelmente, como podemos verificar através da
citação abaixo extraída do método de arranjo popular de Ian Guest:
10
De acordo com a terminologia proposta por Dennis Smalley em 'Spectro-morphology and
Structuring Process', The Language of eletroacustic music, Simon Emmerson (editor). London: Macmillan
Press, 1986, p. 69 - 93. Aprofundamos as considerações acústicas e psico-acústicas no cap. IV da presente
dissertação.
10
As escalas de acorde (utilizadas nas tríades) são deduzidas da análise harmônica e das notas
melódicas. (...) É recomendado que o trecho escolhido para TES (tríades de estrutura superior) seja o
clímax do arranjo, e só por tempo limitado. É próprio a momentos de grande riqueza harmônica e
melodia não muito ativa. (GUEST, 1999 : 35/36)11
Já a música erudita fez dela um uso mais amplo desde Debussy e Stravinsky e
sua utilização foi decisiva para a emancipação posterior da dissonância. O famoso acorde
de Petrushka
é a superposição de dois acordes perfeitos maiores, Dó maior e Fá
sustenido maior, e nos "Augúrios Primaveris" da Sagração da Primavera, o acorde de Mi
maior aparece sobreposto ao de Mi bemol maior acrescido de sétima. (Barraud, 1968:
51/53) Se Stravinsky serve-se desta técnica em trechos com vários compassos de duração,
Hermeto entretanto não o faz. Em Hermeto, esta técnica gera superposições constantes
quase tempo a tempo, o que bastaria para defini-la não como politonal, mas antes,
poliacordal. Os acordes individuais destas sobreposições variam tão freqüentemente que
não chegam a estabelecer centros tonais nem politonais. Como explica Persichetti:
A poliharmonia é raramente politonal. A politonalidade está presente somente quando os
acordes individuais que integram a estrutura se aderem a centros tonais separados. Os poliacordes não
politonais são consideravelmente mais flexíveis e versáteis; as áreas harmônicas dos acordes
individuais que os integram variam muito freqüentemente. (PERSICHETTI, 1985 : 138)12
Jovino lançava assim a possibilidade de Hermeto ter construído determinados
elementos musicais de sua linguagem - comuns à música erudita contemporânea - de
maneira autônoma, independentemente de um contato real com escolas e professores
eruditos.
O auto-didatismo de Hermeto, no aprendizado da música, é de fato um dado
concreto, como poderemos constatar ao longo desta dissertação. Este auto-didatismo
encontra sua justificativa em grande parte na deficiência visual determinada pelo
albinismo de Hermeto, que ao lhe impedir desde a infância de estudar leitura musical, ao
mesmo tempo que o afastou dos professores e escolas, o fez, por outro lado, desenvolver
uma concepção e linguagem próprias.
11
Ian Guest está se referindo a uma técnica específica de arranjo, TES, na qual cada nota da
melodia é harmonizada em bloco com tríades. Estas tríades são denominadas 'tríades de estrutura superior'
porque são tocadas pelo naipe de cordas, madeiras ou metais, acima da base harmônica, tocada geralmente
pelo piano. O importante é observar que, de acordo com Ian, as TES são deduzidas das escalas de acorde da
harmonia base, não podendo conter notas estranhas a esta. Esta orientação estabele os limites de seu uso no
jazz e na música popular.
12 Salvo quando mencionado, todas as traduções são nossas.
11
De qualquer forma, é necessário ponderar que a "virgindade" das primeiras
experiências musicais ocorridas na infância de Hermeto e sua inegável importância para
entendermos a futura concepção musical deste compositor, devem ter sido consolidadas e
ampliadas ao longo do tempo, durante a trajetória profissional de Hermeto, depois de
Lagoa da Canoa. Por isso, faremos no capítulo III, uma pequena biografia de Hermeto (e
dos integrantes do Grupo que o acompanhou de 1981 a 1993), a fim de perceber como
sua concepção musical se constituiu ao longo das fases de sua carreira, até à gravação do
repertório que analisaremos em seguida.
Antes de fazê-lo, porém, iniciemos a discussão bibliográfica dos aspectos que nos
interessam em relação a Hermeto, com o intuito de enriquecer e ampliar os pontos
levantados inicialmente. Voltaremos à entrevista com Jovino durante a discussão que se
segue.
Nesta, comentamos as dissertações de mestrado: Música de Invenção, defendida
na UNI-RIO em 1998 por Pretextato Taborda, e Um estudo da improvisação na música
de Hermeto Pascoal: transcrições e solos improvisados, defendida em 1996 na
UNICAMP por José Carlos Prandini. Dialogamos simultaneamente com diversas
reportagens e matérias feitas com Hermeto, para finalmente voltarmos à entrevista feita
com Jovino, a fim de ampliar a discussão.
Os três capítulos seguintes constituem-se na verdade de um grande e único
capítulo analítico, que tenta perspectivizar o objeto de maneiras complementares:
No capítulo III, abordamos nosso objeto com base em informacões collhidas
através de entrevistas realizadas por nós e apresentamos uma rápida biografia de
Hermeto13 e Grupo até o início da formação estudada (1981). Descrevemos o processo de
criação das músicas selecionadas para análise e verificamos a relação entre escrita e
improvisação em Hermeto Pascoal.
O capítulo IV introduz o capítulo seguinte. Neste capítulo consideramos mais
aprofundadamente algumas noções acústicas que utilizaremos na análise. O ruído é
tratado por nós como uma metáfora social, além de um fenômeno acústico. Analisamos
13
Com o auxílio de algumas fontes bibliográficas que citaremos oportunamente.
12
brevemente a peça "Ferragens", para exemplificar como Hermeto dialoga com os
espectros sonoros harmônicos e inarmônicos em sua linguagem musical.
No capítulo V, as informações obtidas nas entrevistas relativas ao processo de
criação de cada uma das músicas escolhidas para análise, são comparadas com suas
partituras, transcrições e gravações. As análises que fazemos visam perceber a estrutura
musical do repertório escolhido por nós (sua forma, instrumentação, linguagem rítmicoharmônica, etc.), mas sem perder de vista os aspectos biográficos e conceituais
relacionados.
Depois de fazermos entrevistas com o compositor e o grupo, discutirmos a
bibliografia pertinente ao tema presente em dissertações de mestrado, reportagens e
matérias, culminando na análise das partituras e gravações das músicas selecionadas, no
capítulo VI apresentaremos nossas respostas às questões lançadas na introdução.
13
2 - DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA
Os trabalhos acadêmicos sobre Hermeto Pascoal são escassos e pode-se dizer que
sua extensa obra é um objeto ainda inexplorado pela musicologia. 14 Já na imprensa
nacional e internacional, a quantidade de artigos, reportagens e matérias sobre Hermeto é
bem mais numerosa.
No entanto, o interesse sobre o compositor alagoano gradativamente aumenta nos
círculos acadêmicos, fato que pode ser comprovado através de algumas dissertações de
mestrado recentes.
Passemos à discussão desta produção acadêmica recente, dialogando ao mesmo
tempo com jornais e revistas, apresentando trechos de diversas entrevistas feitas com o
compositor.
2.1 De um ponto de vista erudito
Na dissertação de mestrado, Música de Invenção, defendida na UNI-RIO em
1998, Tato Taborda analisa a produção de alguns artistas brasileiros, a fim de ilustrar sua
hipótese em relação à formação de um território híbrido (o território que Tato denomina
de música de invenção), constituído principalmente a partir do contato entre o universo
erudito e o popular.
Tato relaciona alguns aspectos da concepção e linguagem do compositor Hermeto
Pascoal ao ruidismo futurista de Luigi Russolo e à música concreta de Pierre Schaeffer. O
pesquisador aponta várias características comuns em Hermeto e Schaeffer: a pesquisa
feita com diversos objetos sonoros cotidianos, a abertura a novas sonoridades, a atração
pelos ruídos, etc.
14
O volume exato é uma incógnita. O pianista e compositor Jovino Santos Neto possui cerca de
1200 músicas compostas por Hermeto. Porém desde 1993, quando o pianista saiu da banda, Hermeto já
compôs mais quantas músicas? Em 1997 por exemplo, Hermeto realizou seu projeto de compor uma
música por dia para homenagear todos os aniversariantes do planeta. Mencionamos este projeto não pelo
seu lado pitoresco, mas apenas para ilustrar nossa impossibilidade em avaliar o volume real da produção do
músico alagoano.
14
A comparação feita pelo pesquisador, entre Hermeto e Schaeffer serve
eficazmente para realçar alguns traços da concepção do músico alagoano.
Uma semelhança importante entre a "Musique Concrète" de Schaeffer e Hermeto,
corretamente observada por Taborda, é a recusa do som sintetizado. De fato, no período
em que se baseia nosso estudo (1981-1993), Hermeto restringirá o elétrico em sua banda
ao piano e ao baixo. Um sampler com sons pré-gravados de porcos, galinhas, cachorros e
outros bichos foi testado pelo músico alagoano, mas sem muito êxito.
Estou experimentando o instrumento (o sampler), mas ele não está aprovando. Só funciona
como gravador de sons de animais, já gravei o bode, o carneiro, o boi. Mas, na hora de gravar um som
mais agudo, o sampler reproduz aquele som de sintetizador horrível, que não sintetiza coisa nenhuma.
(...) Eu não chamo isso de sampler, mas de gravador de teclados. Eu até usei o gravador de teclados
em algumas faixas do disco que estou fazendo, mas não ponho o nome nos créditos porque ele não faz
nada, só grava o som. Se é um instrumento é pra eu usá-lo, e não para eu ser usado por ele. Não vou
fazer propaganda da fábrica. (HERMETO, O Globo: 19/05/98)
Em outro trecho de sua dissertação e a partir de uma citação de Schaeffer, Tato
faz um paralelelo interessante entre o compositor francês e Hermeto:
Março - Voltando a Paris, eu começo a colecionar objetos. Vou ao Serviço de Sonoplastia da
Radio Francesa e encontro claquetes, cascas de côco, bombas para encher pneus de bicicleta. Eu
organizo uma escala de bombas. (...) Saio de lá com a alegria de uma criança, com os braços cheios de
bugigangas .
4 de Abril - Brusca iluminação: fundir um elemento de som ao ruído ou seja: associar a
elementos de percussão o elemento melódico. Daí, a idéia de madeiras cortadas em diferentes
comprimentos e de tubos mais ou menos afinados em uma escala. Primeiras tentativas. (Schaeffer in
TABORDA, 1998)
O ludismo de Schaeffer à cata de objetos sonoros ("saio de lá com com a alegria
de uma criança, com o braço cheio de bugigangas "), de fato pode ser relacionado a
Hermeto, comprovado ladrão dos brinquedos sonoros de seus netos e das panelas e bacias
da cozinha de Dona Ilza, sua mulher.
O pianista Jovino já havia sugerido, como mencionado no capítulo I, que as raízes
da concepção musical de Hermeto devem inicialmente ser procuradas em sua infância, na
experiência inarmônica com os sons dos ferros do avô ferreiro, nas flautas feitas de galho
15
de mamona, nos sons dos pássaros e dos bichos, na música nordestina de seu pai
sanfoneiro, etc.
Como bem assinala Tato, o experimentalismo em Hermeto está bastante
relacionado à espontaneidade e ao prazer. A nosso ver, isso se deve ao fato da exploração
sonora de Hermeto estar associada fortemente ao brincar. A música, desde Lagoa da
Canoa, sempre foi para Hermeto seu maior brinquedo. Privado das brincadeiras sobre o
sol com as outras crianças, Hermeto parece ter canalizado seu ludismo totalmente para as
brincadeiras sonoras . Ainda hoje, a busca de Hermeto pelo inusitado é alegre e não tem a
seriedade de algumas correntes contemporâneas, que racionalizam muito o experimento.
No verso da capa do LP Cérebro Magnético (WEA Brasil, 1980), que é um
desenho feito por Hermeto, o compositor escreve:
(...) Após o término das gravações deste Lp, todas as coisas ficaram em minha mente, som,
cores, luzes, notas musicais, caroços de milho, couro de tambor, chifre de boi, pedras, água, vozes,
teclas, cordas, botões, sustenidos e fisionomias (...) Então resolvi desenhar o que fotografei da minha
mente, que é a capa deste LP. (HERMETO)
Misturando figuras que sugerem trenzinhos coloridos, peixes, pipas e bandeiras, o
desenho de Hermeto reúne brincadeira e fantasia. A posição destes e outros elementos
flutuando livremente no espaço, o uso de cores vivas e luminosas parecem sugerir a
leveza, o movimento e a graça de um desenho infantil. Neste desenho aparecem notas
escritas num sistema de sete linhas cuja ausência de clave impede que precisemos suas
alturas. As notas estão dispostas sempre em intervalos de 3ª. 15
A paisagem mental pintada por Hermeto tentando representar os sons e imagens
do LP recém-gravado, sinaliza também para outro importante aspecto de sua concepção:
a relação entre o som e a escrita.
A atitude de Hermeto para com a escrita é mencionada por Tato como semelhante
à praticada por Schaeffer:
15
Sobre o uso melódico-harmônico das tríades na música de Hermeto, ver cap. IV e V.
16
Na composição musical tradicional, parte-se de uma configuração mental do som,
representado posteriormente em um suporte gráfico através de uma partitura ou diagrama, para
finalmente se materializar em som através do processo de execução. Já a Música Concreta faz o
percurso oposto, partindo de uma materialidade sonora dita "concreta", coletada diretamente da
realidade através de microfones e posteriormente manipulada, através de um processo nitidamente
experimental, até finalmente chegar à sua forma sonora definitiva, sem o auxílio imprescindível da
representação gráfica. O discurso sonoro de Hermeto também é um discurso musical dos objetos,
destacados de suas atribuições originais e cotidianas através da mesma ferramenta que, no conjunto de
valores gerados por Schaeffer também ocupa posição privilegiada: L'oreille . Esses objetos são
selecionados e individuados, através de características únicas e insubstituíveis, que tornam aquela
panela específica, aquela máquina de costura, aquele par de tamancos, aquele trem elétrico ou aquele
determinado porco um objeto sonoro absolutamente único. (TABORDA, 1998 : 105).
Taborda está correto quando compara o processo schaefferiano de coleta e criação
com objetos sonoros à pesquisa e uso que Hermeto faz de determinados sons. É
interessante verificar no entanto, que motivações teve a intenção de escuta de Hermeto
para se dirigir tão espontaneamente ao não-convencional, pois não encontramos nenhuma
evidência de que tenha havido um contato efetivo seu com a música de Schaeffer.
Verificamos através de diversas entrevistas com o compositor e o grupo, que em
virtude da já mencionada deficiência visual causada pelo albinismo e da conseqüente
recusa (ocorrida desde sua infância em Lagoa da Canoa) dos professores em ensinar
música a um garoto que só podia ler com bastante dificuldade, Hermeto, ao invés de
desistir da música, tomou a situação desfavorável como estímulo e auto-didataticamente
tornou-se um multi-instrumentista virtuose, além de compositor e arranjador. Dessa
maneira, não só Hermeto provaria para aqueles que não acreditaram na sua capacidade
que ele podia tocar tão bem ou melhor que outro qualquer, como também passaria a
questionar desde então, as fronteiras daquela música escrita, cujas portas lhe foram
fechadas.
Em entrevista recente, muitos anos depois de ser recusado por professores que
consideravam aptos para a música apenas aqueles que podiam lê-la, Hermeto ainda
parece estar se dirigindo a músicos com idéias semelhantes, quando diz: "Música não é
teoria. Teoria é uma escrita. Se você não tiver música na sua cabeça, não consegue
escrever música, música não é para entender, é para sentir. Como é que você vai entender
o vento?" (Backstage, 1998).
17
Esse incorformismo quanto à convenção e ao padrão, faz com que Hermeto
busque os sons e timbres mais diversos, explorando os instrumentos convencionais de
forma não convencional (por exemplo tocando o sax barítono junto da esteira da caixa ou
a flauta debaixo d'água) ou o inverso (afinando acondicionadores plásticos de alimentos,
tocando berrante com bocal de bombardino), sem esquecer dos sons de animais.
Recentemente, ele passou a usar a fala humana como matéria-prima musical,
considerando-a uma melodia a ser devidamente harmonizada e arranjada pelo
compositor. Este tipo de composição foi denominado por Hermeto de "música da aura",
sendo que uma das primeiras tentativas feitas por Hermeto, a música "Tiruliluli" do LP
Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), Tato analisa em sua
dissertação. A simplicidade aparente do procedimento que caracteriza a "música da
aura", no entanto, revela muito sobre a concepção de Hermeto. Com a "música da aura",
ele demonstra onde chegaram os limites sonoros de seu território estético: ao falarmos
cantamos e, por isso, todos nós fazemos música o tempo todo.
O estudo de Tato resulta bastante proveitoso, pois através de paralelos com a
música (pré) concreta de Pierre Schaeffer e o ruidismo de Luigi Russolo, o pesquisador
faz um perfil estético de Hermeto Pascoal, pondo em relevo importantes traços do
compositor. Antes de aprofundarmos nossas conclusões sobre a dissertação do
pesquisador carioca, passemos à dissertação seguinte.
2.2 Uma perspectiva jazzística
A dissertação de mestrado, Um estudo da improvisação na música de Hermeto
Pascoal: transcrição de solos improvisados, defendida na Unicamp em 1996 por José
Carlos Prandini, analisa alguns solos improvisados por Hermeto. A metodologia analítica
utilizada pelo pesquisador pretende não apenas transcrever estes solos ou considerá-los
somente a partir da relação harmonia-melodia (solo), como também analisá-los de modo
a verificar a "construção e estruturação de elementos internos, motivos ou unidades ainda
menores de texto" (Prandini, 1996: 18). Ou seja, o pesquisador busca tratar do improviso
não se contentando em meramente transcrevê-lo, ou ainda em analisá-lo utilizando
18
somente ferramentas do tipo escalas de acorde, (vide harmonia funcional), mas antes
considerando-o como uma composição com motivos específicos, variações, repetições
modificadas, desenvolvimentos, etc.
A proposta é sem dúvida interessante, apresentando a noção de improvisação
como uma composição não escrita. Embora não queiramos criticar tal noção
detidamente, mas antes ampliar seus limites, visando a melhor compreender o significado
do conceito improvisação em relação a Hermeto Pascoal, ainda assim, poderíamos a
questionar, perguntando até que ponto a improvisação, tal como é entendida por Prandini,
pode e deve ser considerada uma estrutura semelhante ou igual à estrutura musical
elaborada através da escrita. A nosso ver, a escrita é um medium que afeta a construção
de uma obra, pois possibilita diversos tipos de manipulação do material musical, (como
variações, retrogradações, condensações, seqüenciamentos, repetições, etc.) os quais são
menos facilmente utilizados quando o compositor-intérprete depende unicamente de sua
memória, tal como ocorre durante a improvisação.
No texto, Escuta e eletroacústica: composição e análise,16 Carole Gubernikoff
parece concordar com nossa linha de raciocínio, ao tratar do papel da escrita na música
ocidental:
A civilização que se autodenominou ocidental, a partir de um certo momento, na Idade
Média, acreditou que fosse necessário encontrar uma forma de grafar a memória sonora, por natureza
evanescente. (...) Não apenas foi necessário discretizar um contínuo, mas também definir medidas e
distâncias, transformar um sensível sonoro, sem imagem e sem conceito, numa representação gráfica
que introduziu um novo percurso no pensamento musical. Em vez de passar do ouvido para a boca
através da memória, que poderíamos chamar de vocalidade, a intermediação dos olhos e das mãos
inventou novas dimensões, curiosidades, jogos intelectuais. (...) A própria idéia de forma musical ,
certamente baseada na reiteração de elementos auditivos, no reconhecimento de configurações através
da memória, mas também na manipulação dos elementos musicais observados através da notação,
possibilitou a idéia de desenvolvimento, [...] e o aparecimento das grandes formas. (os grifos em
itálico são nossos) (GUBERNIKOFF, 1997 : 29)
Por isso acreditamos ser apenas parcialmente proveitosa uma análise que
considerará um tipo de discurso musical - oral - somente com as mesmas ferramentas
utilizadas na avaliação da notação. A nosso ver, a eficácia desse tipo de análise dependerá
do músico - ou seja, de como as improvisações são desenvolvidas por cada intérprete;
bem como do tempo de duração da improvisação - que afetará por sua vez, a capacidade
16 Em Debates, Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música, Iº número. Rio de Janeiro:
Centro de Letras e Artes UNI-RIO, 1997.
19
de memorização do intérprete e a utilização de elementos musicais recorrentes; o espaço
onde foi feito o solo improvisado e a participação do público (com gritos, assobios,
palmas, etc.) - que pode sugerir para o músico materiais inteiramente imprevistos de
início e etc. Porém esta não é a questão que nos interessa no momento.
Vejamos como Prandini inicialmente distingue a improvisação na música popular
moderna (leia-se, no jazz), em relação à praticada no período barroco, clássico e
romântico:
Nas consultas bibliográficas ao verbete improvisação encontramos referências ao assunto
relacionadas aos períodos barroco, clássico e romântico. Tais referências tratam o termo como um
conjunto de técnicas de construção musical voltado basicamente para o que se convencionou chamar
de ornamentação. Nesse tipo de improvisação, a criação do intérprete é bastante circunscrita à
modificação (variação) de um texto melódico conhecido. Por outro lado, no panorama da música
popular improvisada moderna, observamos que esse enfoque é apenas uma das técnicas possíveis na
criação de um solo improvisado, sendo utilizado raramente ou em pequenos trechos no decorrer da
obra. (...) Muito mais frequente é a criação de melodias inteiramente novas, através da invenção de
toda uma coleção de novos motivos, variações e desenvolvimentos. Esse conjunto de procedimentos
[praticados atualmente na música popular] vai alguns passos além do procedimento anterior.
(PRANDINI, 1996 : 10/13)
Assim, tentando tratar a improvisação de Hermeto como "a criação de uma
melodia interamente nova", José Carlos transcreve e analisa solos de quatro músicas
gravadas por Hermeto Pascoal & Grupo no período 1985 - 1992: "Ilha das gaivotas", "O
tocador quer beber", "Ginga carioca" e "Surpresa".
Em "Ilha das gaivotas", Prandini transcreve o solo analisando-o como uma
composição e da maneira já descrita por nós. Nele identifica seis motivos, determinadas
repetições e desenvolvimentos, nos quais não nos detemos, pois a análise harmônica que
o pesquisador faz será mais útil para entendermos os limites de sua abordagem.
Prandini se restringe em sua análise aos modelos da harmonia funcional e seus
cruzamentos com a concepção de melodia como um desdobramento das bases
harmônicas, perspectiva adotada pelas escolas americanas de jazz.
20
Por exemplo, o motivo ostinato que serve como base harmônica para o solo em
"Ilha das gaivotas", é equivocadamente analisado pelo pesquisador como: "um único
acorde, com função tônica: Fá sustenido menor com 7ª, 9ª e 11ª" (Prandini, 1996: 31).
Ex. 1: "Ilha das Gaivotas" (harmonia para o solo)
Limitado pelas fórmulas harmônicas tradicionais, Prandini percebe apenas uma
sugestão de cadência à dominante no fraseado do baixo (comp. 4), mas na verdade a
situação harmônica sugere uma interpretação adicional. O ostinato permanece inalterado
na mão direita com as notas la2, si2, mi 3, sol#3, mas o baixo caminha cromática e
dissonantemente 'entortando' o acorde da mão direita. 17 Além do acorde mencionado por
Prandini, temos assim um outro no segundo compasso, usado por Hermeto também em
outras músicas como "Cores", "Briguinha de músicos malucos no coreto" e "Ferragens".
Em "Ilha das gaivotas", o acorde está anotado no pentagrama, mas nas outras peças
aparece cifrado como
. 18
17 No vocabulário utilizado por músicos populares, 'entortar' significa introduzir notas estranhas a
um determinado contexto harmônico ou melódico.
18 A estrutura interválica deste acorde é mantida nas outras peças através de transposições. Cf.
capítulo V.
21
Ex. 2: "Ilha das gaivotas" (2º compasso)
Este tipo de cifragem utilizado por Hermeto, com dois acordes superpostos,
ocorre em situações harmônicas não convencionais e tem a vantagem de indicar um
posicionamento exato das notas na cifra.
, uma estrutura interválica idiomática
em Hermeto Pascoal, consiste nas notas Fá e Ré no grave (mão esquerda do piano) e lá,
si, mi, e sol# na mão direita. Poderíamos pensar num poliacorde, Ré menor (com baixo
em Fá) + Mi maior, ou ainda num único acorde, Fá maior com 6ª, 7ª maior, 9ª e 11ª
aumentadas.
Como podemos constatar, Prandini não considerou a ambiguidade da harmonia
em ostinato, do riff19 criado por Hermeto:
(...) Restrita a apenas um acorde (...), a peça oferece possibilidades limitadas de construção
melódica (...), e fica evidente, ao longo de toda a peça (o solo improvisado), a intenção francamente
diatônica e horizontal, da composição, pelo uso constante das três escalas menores de Fa#m. (O grifo
e a explicação em parêntesis são nossos). (PRANDINI, 1996 : 31)
O pesquisador não identifica o constante jogo de tensão, dissonância e
relaxamento proporcionado pela relação das três escalas menores (natural, harmônica e
melódica) de Fa#m usadas no solo, seguidamente harmonizadas por F#m 7 9 11 e F/6 +
A2 5 7M no acompanhamento. Ao nosso ver, todo o solo deveria ser analisado a partir
desta relação
"luz-sombra", "claro-escuro", sugerida pela harmonia, que Prandini
desconsiderou. A concepção dita jazzística de Hermeto é complicada pelo fato de ele
"caminhar" por uma base harmônica movediça, que ultrapassa os limites do jazz
convencional.
19
'Riff' é um termo do rock e jazz adotado pela música popular, que denomina um determinado
desenho rítmico-melódico curto, executado geralmente por bateria e baixo ou ainda por bateria, baixo e
guitarra elétrica.
22
Em "O tocador quer beber", o pesquisador paulista faz uma boa análise do solo de
Hermeto na sanfona, apontando a unidade de seus "motivos", as características modais de
melodia e harmonia, etc. Porém a análise do solo de Hermeto será interrompida
justamente no melhor da festa, quando o músico resolve tornar dissonante a harmonia
simples (IV7 - I) de seu forró, ao mesmo tempo que fala: "Isso é um sanfoneiro metido à
besta, querendo tocar moderno, olha a mão esquerda dele, sanfoneiro muito besta"
(Hermeto, 1985)20.
Nesse ponto, Prandini infelizmente interrompe sua análise, mas sem o solo ter
terminado. Hermeto continuará improvisando acompanhado por diversos galos e
galinhas, segundo ele, "afinados com os instrumentos".21 Inicialmente, manterá a mesma
escala mixolídia em cima da nova harmonia e depois 'entortará' o próprio solo,
introduzindo glissandos, resfolegados da sanfona em clusters, rapídissimos desenhos
rítmico-melódicos cromáticos e em 4as., etc. O forró virara free jazz, e o "sanfoneiro
metido a besta" terminará seu solo em duo atonal com as galinhas e galos.
Apesar de Prandini ter analisado satisfatoriamente a maior parte do solo de
Hermeto, ao interromper sua análise justamente quando o solo sai do esquema estilístico
do forró, o pesquisador deixa de observar uma importante característica dos solos, bem
como da concepção de Hermeto: a maneira como elementos da linguagem popular
brasileira e nordestina (modalismo, instrumentação com sonoridade regional), combinamse com elementos do jazz (rearmonizações dissonantes) e free jazz (aleatorismo,
atonalismo) americanos. O uso de sons de animais como galos e galinhas "afinados com
os instrumentos", por sua vez constitui, como dissemos no capítulo anterior, uma
assinatura estilística de Hermeto, somando-se aos outros sons de animais já utilizados
pelo compositor alagoano.
É necessário questionar o conceito de improvisação utilizado por Prandini,
estendendo-o para além da capacidade de um intérprete criar novas melodias a partir de
um esquema harmônico pré-estabelecido. E quando não há esquema harmônico préestabelecido (como no caso do forró free jazz)? Ou quando o esquema harmônico é ele
mesmo movediço, constituído de poliacordes (como no caso de "Ilha das Gaivotas")? A
20
21
LP Brasil Universo, faixa "O tocador quer beber", Som da Gente 1985.
Cf. o encarte do cd Brasil Universo.
23
improvisação praticada por Hermeto ultrapassa em ambos os exemplos acima citados, os
limites traçados pelo próprio pesquisador paulista.
A nosso ver, a improvisação em Hermeto deve ser compreendida não apenas no
contexto da interpretação, mas também no nível composicional e estético. 22 Pois Hermeto
é um músico que tem, conforme Tato Taborda bem observou, como uma de suas
principais características, a busca sistemática e alegre do inusitado, da surpresa. E essa
característica marcante vai se refletir tanto na sua atuação como intérprete, como
também, na de compositor.
Como dizia aos seus músicos: "é necessário compor e escrever como se fosse
improviso, e tocar improvisado como se fosse escrito" (Jovino, 1997). Mais do que a
capacidade de criar novas melodias a partir de um esquema harmônico x, y ou z, a
improvisação para Hermeto é garantia de organicidade e fluidez musical, e mais do que
um recurso estilístico, tem status existencial.23
2. 3 Conclusão dos trabalhos acima discutidos
Nossa conclusão em relação às duas dissertações de mestrado, em certa medida é
uma só: a concepção e linguagem de Hermeto é realmente desafiadora, porque múltipla.
Questionando ao mesmo tempo os rótulos da indústria cultural e os limites do universo
erudito e popular, Hermeto desafia aqueles que querem estudá-lo, pondo em dúvida sua
própria capacidade de explicar-se e definir-se, (embora na citação abaixo, acabe
parcialmente por fazê-lo):
Sou um músico versátil e não dá para ninguém me definir. Nem eu mesmo consigo explicar o
trabalho que faço. Porque não faço um só tipo de coisa. (...) Uma apresentação minha é a
possibilidade de encontro com várias músicas, da clássica ao coco, de todos os universos. Nada
premeditado. (HERMETO, Revista Manchete: 1985)
22 Para maiores aprofundamentos sobre a relação entre improvisação e escrita em Hermeto
Pachoal, ver capítulo seguinte.
23 Idem anterior.
24
Ao combinar signos de códigos distintos, Hermeto cria uma linguagem que
permanentemente
instaura
um
ruído24
na
comunicação
de
sua
mensagem,
problematizando conseqüentemente o fenômeno de sua interpretação. Vejamos quais os
problemas que a concepção e linguagem de Hermeto Pascoal engendram.
2.3.1 Jazz?
O trabalho de Prandini cumpre o que promete apenas parcialmente, tanto do ponto
de vista da relação solo-harmonia, como no que diz respeito à análise dos solos
improvisados por Hermeto com as mesmas ferramentas usadas para a análise dos motivos
de composições escritas.
Os solos de Hermeto são transcritos do disco pelo pesquisador, para depois serem
analisados seus motivos específicos, desenvolvimentos, a relação entre melodia e
harmonia, etc. Porém, as dificuldades encontradas na análise são muitas. Começam na
análise harmônica de, por exemplo, "Ilha das gaivotas", e continuam nos solos atonais,
free ("O tocador quer beber"), onde a utilidade das escalas de acorde simplesmente deixa
de existir, o que faz com que o pesquisador abandone a análise do solo sem este ter
terminado, ao invés de ampliar suas próprias ferramentas analíticas.
Uma outra observação que podíamos fazer sobre o trabalho de Prandini é sobre a
propriedade do repertório por ele escolhido para análise. Por que não foram escolhidos
para análise solos sobre esquemas harmônicos mais dissonantes ou mesmo atonais (como
por exemplo, o de "Arapuá"), ou ainda solos gravados ao vivo (e não no estúdio)? 25 O
próprio Hermeto já afirmou que preferiu enfatizar o arranjo à improvisação nas gravações
que fez em estúdio no período escolhido pelo pesquisador paulista.26 Sem dúvida, os
solos improvisados por Hermeto ao vivo, são bem diferentes dos gravados em estúdio,
começando pelo (maior) tempo de duração, a maior espontaneidade do próprio Hermeto,
24
Ver a noção de ruído em Jacques Attali no capítulo seguinte.
O único disco ao vivo de Hermeto foi gravado no Festival de Jazz de Montreux. Talvez por
Hermeto estar acompanhado de uma outra formação de músicos, parcialmente diferente do período 19811993, Prandini não tenha querido usar os solos gravados neste disco, o que de qualquer forma é uma pena,
porque Hermeto e os músicos apresentam uma performance verdadeiramente histórica e com improvisos
memoráveis. Em Montreux, os músicos Jovino Santos, Itiberê Zwarg e Antônio Santana que integram
também a formação que estudamos (1981-1993), já faziam parte da banda de Hermeto. Ver discografia.
26 O que não era comum no início de sua carreira, quando os discos eram bem mais improvisados.
Ver capítulo III.
25
25
inclusive explorando a voz simultaneamente com o instrumento, solando alternadamente
em instrumentos diferentes, os sons do ambiente e as interferências e reações eventuais
do público influenciando o solo, etc. Estas circunstâncias e características tão peculiares
ao universo popular, ao mesmo tempo que dificultariam, certamente poderiam enriquecer
o estudo de Prandini, ampliando sua abordagem e interpretação.
A impressão final do trabalho do pesquisador paulista é que ele tenta encaixar
Hermeto numa perspectiva semelhante às praticadas por determinadas escolas americanas
de jazz, mas os elementos harmônico-melódicos da linguagem do músico alagoano
resistem a esta perspectiva como a uma camisa de força, sempre parecendo escapar aos
limites por ela impostos.
2.3.2 Música concreta?
A dissertação Música de Invenção, de Tato Taborda, faz um perfil bastante
interessante de Hermeto, sublinhando como já dissemos, traços significativos do músico
alagoano. A dificuldade parece estar no como Hermeto alcançou, através de sua música,
um grau de experimentalismo semelhante ao encontrado na música erudita, sem ter
dependido de um contato efetivo com correntes eruditas, como a música concreta ou o
ruidismo futurista.
A principal vertente formadora do território da música de invenção, é segundo
Tato, o contato entre músicos populares e eruditos.
A intervenção de músicos eruditos contemporâneos, subsidiando músicos populares com
técnicas e conceitos, é o vetor mais importante na formação desse território fronteiriço, aqui chamado
música de invenção. [TABORDA, 1998 : 119-120]
O quarteto de agentes influenciadores: H.J. Koellreutter, concretistas paulistas,
Hélio Oiticica e Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea, é, segundo o
pequisador, a "árvore genealógica" principal da qual descendem vários artistas, dentre os
quais, aqueles que Tato abordará.
26
Entretanto, Hermeto é o único dos quatro músicos escolhidos - Caetano Veloso
(na Tropicália e em Araçá Azul), Jards Macalé e Chico Mello - que representa uma
exceção neste "vetor mais importante" da música de invenção.
Caetano encontra a música erudita primeiramente através dos Seminários da
Bahia, e das figuras de H. J. Koellreuter e Walter Smetak. Mais tarde, durante a
Tropicália, o contato erudito-popular se dá com o envolvimento de Caetano com os
irmãos Campos, a poesia concreta e músicos de formação erudita como Rogério Duprat,
Damiano Cozzela, etc.
Macalé, paralelamente às influências rockeiras da década de 60, teve "aulas com
os compositores Edino Krieger e Esther Scliar, ex-membros do grupo Música Viva, com
quem aprofundou seus conhecimentos da linguagem musical erudita, especialmente a
contemporânea." (p. 73).
Em Chico Mello, "a formação erudita vem das aulas de composição com José
Penalva, dos Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea e, principalmente, do
extenso contato com H.J.Koellreutter" (p. 90).
Mas e Hermeto, foi aluno de quem? Sua formação autodidata e popular, ao
contrário dos outros músicos acima citados, não parece estar relacionada ao contato com
H. J. Koellreuter, os Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea, o grupo
Música Viva, os irmãos Campos e, menos ainda, à Tropicália. Estas pessoas, grupos e
movimentos não tiveram uma influência direta em Hermeto. Por isso, para não fugir
totalmente da principal vertente formadora do território da música de invenção, que é o
contato de músicos eruditos "subsidiando músicos populares com técnicas e conceitos",
Tato relaciona Hermeto a Pierre Schaeffer, especialmente, e a Luigi Russolo.
27
Ao realizar um encontro interessante, mas não justificado biograficamente, entre a
música de Schaeffer, iniciando as pesquisas que o levariam à música concreta e o (não
menos) brincalhão Hermeto, o trabalho de Tato adquire uma feição hipotética. Mesmo
que o pesquisador carioca ressalte que as comparações feitas por ele "não significarão
estabelecer entre a obra estudada e a de referência uma causalidade direta", e que,
"servirão, principalmente, para exemplificar que a atitude de disponibilidade criada pela
experimentação pode levar criadores de ambientes diferentes a gerar resultados sonoros
muito próximos, ainda que obtidos por métodos e percursos bastante diversos" (p. 7), não
seria mais apropriado se Taborda fosse buscar - como fez em relação a Caetano Veloso,
Jards Macalé e Chico Mello - em algo próximo a Hermeto, as influências para sua
linguagem inventiva ? Como, por exemplo, no universo da música popular, através da
atividade de arranjador, ou ainda no free jazz, que por ser "o segmento mais experimental
do jazz" (p. 17), é incluído pelo próprio Tato dentro do espaço da música de invenção,
como um de seus "territórios análogos" (idem).
Contudo, o pesquisador não aposta na relação fundamentada biograficamente,
entre Hermeto e o (free) jazz preferindo relacionar o compositor alagoano à música
concreta. Apesar da escolha de Tato não ter sido gratuita, pois o paralelo entre Schaeffer
e Hermeto resulta proveitoso, por que não incluir neste campo de possibilidades outros
compositores com os quais Hermeto apresenta determinadas semelhanças, como o
iconoclasta Charles Ives (que na infância teve experiências com os sons inarmônicos de
objetos metálicos), Béla Bartok (influenciado pelos ritmos, melodias e harmonias da
música popular húngara), Scriabin (a relação sinestésica entre sons e cores), Stravinsky (a
politonalidade), Messiaen (o uso de sons de animais) e outros?
Porque, se há semelhanças entre Schaeffer e Hermeto, há também diferenças
marcantes, como, por exemplo, a recusa do último em processar eletronicamente os
objetos sonoro-musicais, além de não isolar os ruídos da maneira schaefferiana,
combinando-os aos sons instrumentais.
A concepção musical de Hermeto é tão contemporânea que permite as
aproximações mais diversas. É necessário porém, que sua especificidade seja
corretamente compreendida para que as aproximações feitas não reduzam as
28
características intrínsecas ao próprio Hermeto, mas revelem, através da comparação, o
que estas características possuem de particular.
As características do free jazz, que serão aprofundadas no capítulo seguinte
foram: a livre incursão na atonalidade; a dissolução do metro, do beat ; a pesquisa com
timbres e ruídos; a improvisação extásica e coletiva; a abolição da forma; etc. Hermeto
assimilou alguns dos procedimentos relacionados acima, senão todos, na década de 70,
quando viajou e morou nos E.U.A. Sem perder no entanto, as referências da música
brasileira e da música nordestina de sua infância especialmente, Hermeto parece ter
encontrado no efervescente mundo do jazz americano experimental, um território onde
pôde desenvolver sua própria linguagem.
Mas as conexões coincidentes ou não com técnicas e conceitos experimentais não
se resumiram ao free jazz. Assim como o pioneiro do free jazz, o saxofonista Ornette
Coleman, que já tinha uma maneira e linguagem próprias antes de encontrar-se com o
músico erudito Günter Schuller, o qual passaria a influenciar e ser influenciado por
Coleman, também Hermeto trazia consigo toda uma gama de informações musicais,
assimiladas desde muito antes do contato com o jazz e o free jazz americanos. Foi
justamente esta bagagem musical que Hermeto levou para os E.U.A., que possibilitou um
rico diálogo entre sua música e a de importantíssimos jazzmen americanos. A viagem de
Hermeto para os E.U.A e sua relação com o jazz, serão abordadas de forma mais
completa no capítulo seguinte.
Voltemos então à entrevista com Jovino, brevemente comentada na introdução,
para abordar outros dois aspectos correlacionados à concepção e linguagem de Hermeto
Pascoal e anteriores à sua viagem aos E.U.A. Estaremos assim ampliando a discussão
bibliográfica antes iniciada. O primeiro aspecto é sua abertura para o mundo sonoro não
considerado tradicionalmente musical, e o segundo, sua busca de inspiração musical
através de correspondências sinestésicas com os outros sentidos, mais particularmente, a
visão.
29
2.4 O sonoro e o musical.
Então tudo isso (o som daquele sino batendo, rede rangendo, passarinho cantando, pessoa
falando ou até um padre rezando), são elementos que inspiraram, inspiram ele (Hermeto) ainda para
criar uma coisa musical, ao contrário de outros músicos que se inspiram para a música pela música.
Então ele sempre compara o fato de um pintor que quer fazer um quadro, e ao invés do cara ir numa
paisagem linda, num bosque, no rio, no mar, e pintar, ele olha para uma outra pintura e pinta o que vê
de uma outra pintura. E na música é a mesma coisa, se tudo que te inspira para a música é a música,
então você está muito limitado, porque a música é um retrato de tudo que "rola" no mundo, na vida de
todos nós, e cada um com sua experiência. (JOVINO : 1997)
A música está em todo o lugar, tudo é música. Uma porta que bate, a faca que espalha a
manteiga sobre um biscoito, um golpe na mesa. Isso não significa que basta fazer barulho para fazer
música. Ser músico é saber utilizar estes ruídos. (HERMETO, Jazz Magazine: 1984)
De acordo com Jovino, a atitude de Hermeto extrair do universo sonoro cotidiano
materiais para sua linguagem musical, o leva ao desenvolvimento de uma concepção que,
partindo do popular, confunde-se com a música erudita contemporânea. Segundo Jovino,
o conhecimento que Hermeto tinha desta última era pouco ou nenhum, antes dele chegar
a determinados procedimentos comuns ao universo erudito. É através da abertura
(precoce) para o universo sonoro, que Jovino explica a concepção harmônica poliacordal
e sua notação em cifras.27 Da mesma forma, as pesquisas de ritmos e timbres nãoconvencionais inspirados na fala, nos sons de animais e no universo sonoro cotidiano.
Ele sempre fala, e eu já ouvi ele falar várias vezes, que o desenvolvimento harmônico dele
foi formado por essa busca de sons nas coisas que já existiam naturalmente.
(...) Então este tipo de coisa faz com que ritmicamente você seja livre e ele passa a utilizar
inclusive elementos rítmicos da voz humana e de outras coisas como carros, máquinas e bichos.
(JOVINO, 1997)
Como exemplo, Jovino menciona uma música do disco Zabumbê-bum-á (WEA
Brasil, 1978) denominada "Rede", que o pianista havia estudado durante meses, sem se
dar conta que Hermeto havia utilizado os andamentos, ritmos e as notas da rede rangendo
para os instrumentos e, por isso, a música possuía aquele título.
Muitos outros exemplos ainda, podem ser acrescidos a este. Uma narração de uma
partida de futebol pelo locutor Osmar Santos, uma fala do ex-presidente Collor, uma aula
de natação e um poema declamado por Mário Lago, já serviram de inspiração para
Hermeto criar estruturas musicais que tentavam melodizar as diferentes alturas
27
Ver Cap. IV para aprofundamentos.
30
produzidas pela fala e, ao mesmo tempo, seguir suas durações diferentes e irregulares. E,
como já havíamos mencionado, sons de animais como cachorros, galinhas, pássaros,
cigarras, jumentos, abelhas, também são uma constante nas músicas de Hermeto.
Importante é notar que a abertura de Hermeto para o reino dos sons não
considerados tradicionalmente musicais, inclui também uma relação musical com a
imagem. A transposição visão-audição, além de ser um dado esteticamente importante,
sinaliza ainda para interessantes possibilidades sinestésicas, que analisaremos a seguir.
2.5 Sinestesia
Hermeto, apesar de ter a visão muito prejudicada pelo albinismo, se expressa
freqüentemente em termos visuais quando fala de sua música, e diz se inspirar, para o
fazer musical, não só a partir da música, mas também, das imagens:
Sou um pintor sem preferência por uma cor, como o Van Gogh gostava do amarelo. (...)
Eu não consigo dizer uma cor só, quando digo que meu som tem cor e querem saber qual é a
cor dele. Porque essas cores variam muito rapidamente. (HERMETO, Revista Manchete: 1985)28
Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. Eu não escutei música para compor.
(...) Não. Eu me inspiro mais na pintura, no timbre de uma voz. (HERMETO, Rádio MEC: 1998)29
Para avaliarmos o papel que a inter-relação som-imagem tem na linguagem de
Hermeto, é necessário que tratemos da sinestesia. Sinestesia é uma condição na qual um
estímulo de um sentido provoca automaticamente uma percepção correspondente em
outro. Como por exemplo ocorre quando alguém ouve o som de um instrumento e
imediatamente vê uma cor.
No texto, On colored-hearing Synesthesia,30 o estudioso Lawrence Marks
apresenta os resultados de pesquisas recentes sobre a sinestesia audição-visão,
comparando-os aos de outras pesquisas como as feitas por Köhler (1910), Hornbostel
(1931), Karwosky (1942), Bruner (1964), Paivio's (1971) e outros, bem como a farto
material bibliográfico relacionado ao tema.
28
Em entrevista com Renato Sérgio.
Em entrevista com Luiz Carlos Saroldi.
30 Lawrence E. Marks. "On colored-hearing synesthesia" in Simon Baron-Cohen and John E.
Harrison, Synesthesia: classic and contemporary readings. Massachusets: Blackwell Publishers, 1997, p.
49 - 98.
29
31
Em linhas gerais, Lawrence chegará às seguintes conclusões sobre a sinestesia,
envolvendo os sentidos visão e audição:
a) A percepção de altura está relacionada à sensação de brilho e luminosidade.
Quanto mais aguda for a nota, mais ela será percebida como luminosa e vice-versa,
quanto mais grave for, mais escura ela parecerá.
b) No entanto, a dinâmica do som, sua amplitude, influenciará também na
percepção da cor de um som: sons fortes, independentemente do fato de serem graves ou
agudos, freqüentemente foram percebidos como mais brilhantes que sons com baixa
amplitude. Uma mesma nota em crescendo terá assim seu brilho intensificado, e sua cor
alterada.31
c) A sinestesia audição-visão ocorre também em relação à textura, à massa do
som: sons graves foram relacionados freqüentemente à maior ou menor espessura e
largura, enquanto que sons agudos aparecem relacionados à transparência.
Segundo Lawrence, a sinestesia é mais comum na infância do que na idade adulta.
Muitos adultos se lembram de experiências sinestéticas na infância, mas que, a partir de
certo momento, pararam de ocorrer. Assim, o autor analisa, especialmente, a hipótese da
sinestesia ser um processo de cognição pré-verbal, que com o crescimento é substituído
por um outro modo de cognição mais flexível: a linguagem abstrata e verbal. Bruner
(1964) viu neste processo uma transição entre o icônico e o simbólico.32 A sinestesia seria
justamente um modo de representação icônico (o qual poderia ser classificado
genericamente de imagético),33 que diminui à medida que a representação abstrata da
linguagem cresce, e Paivio's, em 1971,34 estudará como os processos imagéticos que
precedem a linguagem continuam a desempenhar um importante papel na cognição
adulta.
Lawrence distinguirá, então, duas formas de expressão de relações intersensoriais: a metafórica e a poética. A primeira sinaliza para a sinestesia sensorial e
31
O que é perfeitamente condizente com a acústica, pois num crescendo a ativação dos parciais
harmônicos é diferenciada a cada momento, mais e mais parciais harmônicos agudos vão sendo vibrados à
medida que a amplitude sonora cresce, daí a conseqüente modificação do timbre, da cor deste som.
32 Citado por Lawrence E. Marks, op. cit. p. 89.
33 No original, imagery.
34 Idem, p. 89.
32
expressa relações inter-sensoriais intrínsecas,35 o que não ocorre na maneira poética, que
cria correspondências sensoriais originais e de forma extrínseca às sensações imediatas.
Assim o autor distingue correspondências verdadeiramente sinestésicas das não
sinestésicas. As primeiras tendem a ser fixas e inflexíveis (observando um padrão de
associações recorrentes), enquanto as segundas são muito mais relativas e flexíveis.
Concluindo, as correspondências sinestésicas remeteriam a uma origem primitiva
contendo relações fixas, a um modo de cognição pré-verbal, que a linguagem abstrata
modificará, flexibilizando o ícone sinestético ("metafórico), ao símbolo
linguístico
("poético").
Se Lawrence, respaldado por outros pesquisadores, estiver correto sobre a
possibilidade de todos nós termos sido sinestésicos quando crianças, os sinestésicos
adultos são simplesmente aqueles que não perderam com o crescimento, a condição
perceptiva que tinham antes da representação abstrata da linguagem ter se imposto sobre
a percepção sinestética.
Esta hipótese mereceria uma discussão cujo aprofundamento escapa aos nossos
objetivos. Ela, no entanto, parece em vários aspectos adequada a Hermeto e sua
concepção musical. Por que é que Hermeto (e os músicos que com ele tocaram), se
referem tanto à sua infância, sublinhando a importância que esta teve para sua linguagem
musical? E por que ele insiste com tanta veemência que música não é nem a escrita, nem
a teoria, apesar de que estas têm sua importância?
O depoimento abaixo, além de exemplificar o que dizemos a respeito de Hermeto,
é em certa medida, auto-biográfico:
35
Idem, p. 90.
33
(...) Quando falo em música, não estou falando de teoria. Teoria eu acho que tem que se
aprender sim. Mas não as crianças. (...) Para mim, ensinar teoria para uma criança é a mesma coisa
que ensinar inglês a uma criança brasileira vivendo aqui no Brasil. Não. Tem que deixar a criança
falar errado. Errado porque a gente chama de errado, porque não tem nada de errado. Existe apenas o
não convencional, o não padronizado. (...) Deixa a criança tocar. Ensina a criança a tocar fisicamente.
Não dê nada para ela ler. Ela vai ler e aprender. De repente, para o instrumento, [com a leitura] vai
aprender até mais rápido. Mas o sentir ela vai perder. (O grifo é nosso) (HERMETO, Backstage :
1998)
Poderíamos fazer um paralelo entre a sensibilidade sinestésica pré-verbal que é
perdida (ou transformada segundo Paivio's), e o aparecimento da linguagem abstrata de
um lado, e a tradição musical oral (e popular) - que Carole Gubernikoff assinalou como
marcada pela vocalidade - e a tradição escrita (ou "culta", "erudita"), de outro. Mais
adiante (p. 31), Carole pergunta-se se "não sacrificamos a escuta neste processo", ou seja,
no processo da representação escrita do som.
O caso de Hermeto nos parece muito adequado para discutirmos o relacionamento
dos aspectos sensíveis e intelígiveis os quais, segundo Carole, são os dois pólos presentes
em todo processo de representação e criação (Gubernikoff, 1997: 28).
Devido à já mencionada deficiência de sua visão, causada pelo albinismo,
Hermeto adotou uma postura francamente favorável à esfera do sensível. Já que os
professores de música não tinham paciência em ensinar um garoto albino com muitas
dificuldades em ler música, Hermeto elaborou sua linguagem independentemente da
tradição erudita, privilegiando a intuição ao conhecimento e a prática à teoria.
Sua concepção sonora parece responder afirmativamente à pergunta lançada por
Carole, sobre se não haveríamos perdido algo ao confinarmos e condicionarmos nossa
percepção aos domínios da escrita.36 Desconfiando de uma certa pretensão etnocêntrica,
que considera a tradição culta do Ocidente superior ou mais evoluída que outras culturas
musicais orais, Carole insinua uma pergunta que Hermeto parece responder de maneira
ferozmente bem-humorada: "quem não improvisa neste mundo, no outro será
improvisado".37 Para Hermeto, a improvisação será o alfa e o ômega de todo o seu
36
Cf. Carole Gubernikoff, texto citado, p. 31.
Conforme depoimento do compositor alagoano a Luiz Carlos Saroldi em entrevista realizada na
Rádio MEC, 1997.
37
34
processo de criação, antecedendo e sucedendo a escrita musical, que ele domina e utiliza,
mas que nunca é tomada como ponto de partida.38
A concepção de Hermeto é ternária: parte inicialmente da livre exploração do
som (seja este harmônico ou inarmônico 39), para somente depois representá-lo através da
escrita, que será tornada por sua vez, uma estrutura-base para outras improvisações, num
ritornello infinito.
Este ritornello é experimentado pelo próprio compositor com relação à sua
concepção musical lúdica, bem como à sua própria vida. Não por acaso, Hermeto
escolheu o distante bairro do Jabour na Zona Oeste da capital carioca para morar. Bem
próximo a Bangu, onde se verificam as temperaturas máximas de todo o estado, o Jabour
de certa forma lembra o quente sertão alagoano da infância do compositor. Cercado pelo
som das cigarras, cachorros, galinhas e galos que conseguem sobreviver ao rápido
crescimento do bairro, Hermeto mantém ainda algo da paisagem sonora de sua infância,
que ele permanentemente transpõe para sua linguagem musical, ao sobrepor os sons dos
animais aos sons instrumentais do Grupo.
Desta maneira, a sinestesia som-imagem é mais um "departamento" da
personalidade de Hermeto Pascoal. Além de manter vivo o universo sonoro, cultural e
geográfico de sua infância, ele parece ter podido conservar, ao longo da sua vida madura,
algumas características de sua percepção ampliada, que Lawrence Marks denomina de
cognição pré-verbal .
As músicas de Hermeto que analisamos não por acaso têm títulos como "Arapuá"
(uma música feita para o sax barítono, cujo timbre e textura foram associados à abelha
com esse nome, de zumbido também grave), "Cores" (na qual Hermeto une os
instrumentos convencionais aos silvos das cigarras e a chapas de ferro percutido), "Série
de Arco" (uma música originalmente feita para uma coreografia de ginástica olímpica) e
"Aula de Natação" (uma "música da aura", tipo de composição criada por Hermeto e que
ele define como uma fotografia do som).
38
39
Para maiores aprofundamentos sobre a improvisacão e a escrita em Hermeto, ver o capítulo seguinte.
Para maiores aprofundamentos sobre os espectros sonoros harmônicos e inarmônicos ver cap. IV.
35
Da concepção de sinestesia apresentada, o que parece mais pertinente no caso de
Hermeto é a percepção ampliada de tudo à sua volta. A relação imagem-som em Hermeto
não se resume e nem sempre se configura como sinestésica, de acordo com as definições
apresentadas. Em "Série de arco" por exemplo, a transposição do ritmo do movimento
coreográfico nos parece uma atitude deliberada e não uma reação sensorial sinestésica.
Contudo, a relação imagem-som, entendida de maneira ampla, parece de fato ter
um importante papel na linguagem de Hermeto Pascoal, por trazer para o plano sonoro,
referências visuais estranhas à ele, assim fazendo com que sua linguagem musical seja
transformada pelo contágio imagético. Examinamos mais detidamente, nos capítulos
seguintes, as implicações desta inter-relação e da abertura para o universo sonoro
considerado não-musical.
36
3 - O PROCESSO CRIATIVO DE HERMETO E GRUPO
3.1 De Lagoa da Canoa aos E.U.A., dos E.U.A. ao mundo: uma pequena biografia
de Hermeto Pascoal em busca de sua concepção musical
Hermeto Pascoal, alagoano de Olho D'água, um pequeno povoado perto da cidade
de Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, nasceu em 22 de junho de 1936. Desde
menino, seu pendor musical se revela. Suas primeiras experiências musicais são tocar
pifes (pífanos), feitos pelo próprio garoto com folha de mamona e abóbora e compor
pequenas músicas percutindo os pedaços de ferros de seu avô ferreiro:
Pequenininho, com meus 7 anos, já estava em contato com a música. (...) Meu pai tocava
harmônico de oito baixos, o pé de bode, um tipo de sanfona, e eu tocava pife (pífano) que eu mesmo
fazia, lá no mato, com cano de mamona. Por ser albino, eu não podia pegar sol. Eu era teimoso, sumia
no mato, quando meu pai ia para a roça trabalhar. Eu era assim como os índios, mas um índio
diferente. (...) Como eu tinha musicalidade, sentia aquela vontade de tocar. E queria saber se os
passarinhos gostavam disso ou não. Quando meu pai me levava para a roça, no carro de boi, eu tratava
de fazer umas flautinhas para tocar com os passarinhos. E quando ele voltava, via a árvore cheia de
aves. Até hoje, quando toco num lugar que tenha passarinho, consigo me comunicar com eles.
(HERMETO, O Globo, 1998)
Os sapos... Os sapos eram um público maravilhoso. O público mais fiel e sensível que existe
é o sapo. Eles são muito inteligentes. Os sapos de beira de estrada já estão acostumados ao barulho do
motor, mas, mesmo que você desligue o motor e ande na direção deles, eles vão perceber que tem
alguém indo para o lado deles. Um sapo pode servir para dar um aviso. Ele sente tudo. Eles já me
conheciam porque eu ia sempre à mesma lagoa. Os sapos tem orquestras perfeitas. (HERMETO,
Backstage: 1998)
(...) Todos os pedaços de ferro que ele [o avô de Hermeto] cortava, eu escondia. (...) Eu batia
um de encontro ao outro e achava bonitinho o som. Os meus brinquedos eram no campo, os
passarinhos, os animais e lá em Lagoa da Canoa, os ferrinhos. (...) Aí tinha a dispensa, que era onde
guardava carnes, comidas ... (neste momento, Hermeto esbarra no microfone da Rádio onde concedia
a entrevista e desculpando-se aos ouvintes, compara o barulho do esbarrão aos sons dos animais de
sua infância:) Quem escutou o barulho em casa, pense num sapinho cantando na lagoa. [continuando]
Aí minha mãe chamou meu avô e disse: Papai, que que está acontecendo que o quarto lá da dispensa
está cheio de ferro? E meu avô: - É que o Hermeto pega todos os pedaços de ferro e está escondendo
lá. Aí eles ficaram desgostosos porque pensaram que eu tivesse ficando louco com alguma coisa, isso
com oito anos de idade. Aí me chamaram, eu peguei os pedacinhos de ferro, eu já tinha juntado, já
tinha feito uma, duas músicas batendo nos ferros (...) Quando eu bati nos pedaços de ferro meu amigo,
minha mãe chorou, meu avô chorou, foi todo mundo de emoção, de alegria, né? (...) Aí sabe o que
acontece, meu avô me deu tanto ferro para eu guardar, que não tinha mais lugar para botar.
(HERMETO, Rádio MEC: 1997)40
Com aproximadamente 8 anos de idade, começa a tocar a sanfona de oito baixos
de seu pai, (também chamada no nordeste brasileiro de pé de bode) e a partir dos 12, a
40
Em entrevista já citada realizada por Luiz Carlos Saroldi.
37
sanfona de 32 baixos. A pé-de-bode tem um sistema de duas colunas de botões. A
primeira coluna é formada de oito "baixos" que produzem um pequeno número de
acordes maiores, menores e dominantes, usados no acompanhamento. O outro sistema de
botões contém notas isoladas, usadas nas melodias. A pé-de-bode não é cromática, ao
contrário de suas irmãs mais velhas, as sanfonas de 32 e 80 baixos. Com o pai e o irmão,
Hermeto passa então a tocar em festas de casamento e forrós em Alagoas.
Desde a infância, o universo sonoro foi para Hermeto fonte constante de prazer e
um forte estímulo tanto para a brincadeira como para a criação. Sua concepção harmônica
e sua linguagem devem muito a estas primeiras experiências musicais, quando o garoto
buscava reproduzir na sanfona pé-de-bode, as sonoridades inarmônicas dos ferros
percutidos na oficina do avô. Misturando e superpondo as diferentes tríades dos oito
baixos da sanfona às notas isoladas do outro sistema de botões, assim Hermeto
prematuramente iniciava suas experiências sonoras.
O pianista Jovino, que acompanhou Hermeto durante 15 anos, sugeriu a
interessante hipótese, por nós já comentada, da linguagem harmônica de Hermeto ter sido
influenciada precocemente no contato com os espectros sonoros inarmônicos. Segundo
Jovino, Hermeto continuaria ainda hoje "combinando as tríades e notas isoladas da
sanfona de oito baixos" a partir de modelos sonoros naturais. Questionando as fronteiras
entre os sons ditos "musicais" (os sons harmônicos), os sons inarmônicos dos ferros, da
natureza e dos bichos, Hermeto organizaria estas tríades e notas "arquetípicas" de sua
infância, de forma não funcional e, por isso, as sonoridades harmônicas e melódicas por
ele obtidas fugiriam do convencional.
38
O albinismo e a conseqüente deficiência visual, tornaram o contato de Hermeto
com o universo sonoro ainda mais intenso, pois um sentido era parcialmente compensado
através de outro. Como já dissemos anteriormente, Hermeto afirmará repetidas vezes que
não compõe música só através da música, mas que se inspira também nas imagens para
criar música, além dos sons cotidianos e da natureza. Isso parece esclarecer muito sobre
sua concepção musical, pois, ao traduzir sua percepção visual em termos sonoros,
Hermeto sinaliza para o fato de sua música ser afetada pelas características algo difusas
das imagens percebidas por sua visão.
Em 1950, a família Pascoal transferiu-se para Recife PE. Com José Neto, seu
irmão, Hermeto passa a tocar na Rádio Tamandaré. O músico Sivuca, também albino e
amigo de Hermeto, tocava na Rádio Jornal do Comércio. Os três amigos costumavam
unir suas sanfonas e tocar juntos, e um dia, o dono da Rádio Jornal do Comércio os viu e
vislumbrando um potencial comercial no estranho conjunto albino, resolveu contratar
Hermeto e o irmão, batizando o trio de "O mundo pegando fogo", por causa da cor
avermelhada dos três músicos.
Apesar de sua pouca familiaridade com a sanfona - "o Sivuca carregava a gente
nas costas"
41
- os frevos e baiões de "O mundo pegando fogo" conseguem o suficiente
para Hermeto comprar uma outra sanfona, agora de 80 baixos, permanecendo nesta Rádio
mais 2 anos. Nas rádios em Recife, Hermeto vê e ouve pela primeira vez as orquestras de
rádio regidas pelo maestro Clóvis Pereira e por Guerra-Peixe. Apesar de ter visto apenas
poucos ensaios, Hermeto se refere às orquestras de rádio de Recife muito elogiosamente:
"Era quase uma sinfônica, tinha cordas, metais, percussão, uma maravilha. Estas
sonoridades orquestrais foram registradas por Hermeto "porque minha mente é como um
gravador infinito."42
Em Recife, Hermeto começa também a tocar piano nas boates, convidado por seu
amigo e violonista Heraldo do Monte, o qual integrava o Regional da Rádio Jornal do
Comércio. Preocupado por causa do fato da técnica da mão esquerda no piano ser
bastante diferente da sanfona, Hermeto foi no entanto estimulado por Heraldo que não só
41 De acordo com afirmação do próprio compositor em entrevista a nós concedida, querendo dizer
que nesta época, ele e o irmão não tocavam bem a sanfona, diferentemente de Sivuca, que um pouco mais
velho que Hermeto, já tinha mais desenvoltura neste instrumento.
42 Em entrevista conosco realizada em 06/03/1999.
39
o tranquilizou dizendo que o baixista daria conta do que a ainda inábil mão esquerda de
Hermeto não conseguisse fazer, como também que via em Hermeto um potencial técnicoestético que certamente o faria suplantar aquelas dificuldades. Cerca de 40 anos depois,
podemos afirmar que Heraldo estava duplamente certo. O aprendizado técnico de
Hermeto em diversos instrumentos foi de lá para cá espantosamente rápido e o "potencial
estético" que Heraldo vislumbrou em Hermeto, efetivamente tornou aquele garoto
instrumentista inexperiente em um compositor original.
Nas boates recifenses, Hermeto tocava entre outros estilos, jazz e na Rádio, além
de música nordestina, choro e seresta, acompanhando ao acordeon, calouros e cantores
famosos como Nélson Gonçalves e Orlando Silva. A experiência no Regional da Rádio (e
na noite), teve o mérito de obrigar Hermeto a se desenvolver harmonicamente:
O cara que toca em regional, (...) você acompanha em Fá e o cantor diz: hoje eu estou
gripado, então toca meio tom abaixo, (...) e você não pode dizer que não, porque os programas eram
ao vivo, (...) quando era meio-tom até dava para "enrolar", mas eu, como queria aprender, fazia
questão de dar o tom pro cara, justamente para me desenvolver. (HERMETO, 1997) 43
Terminado o contrato, a Rádio dispensa o trio albino argumentando "que eles não
davam para música"... Em 1952, Hermeto, então com 16 anos de idade, vai para Caruaru
PE, Sivuca para Garanhuns, e José Neto, para o Rio de Janeiro. Em Caruaru, depois da
demissão por "incompetência", Hermeto resolve se desenvolver e começa a estudar
leitura e teoria musical por conta própria, porque devido à deficiência de sua visão, os
professores e amigos músicos não tinham paciência para ensinar-lhe.
Os breves contatos com os maestros e músicos das orquestras de rádio
conscientizaram Hermeto que seu ouvido era absoluto, porém, a curiosidade com que
Hermeto foi tratado inicialmente pelos músicos eruditos, não foi suficiente para que lhe
ensinassem teoria. Com 16 anos de idade, Hermeto foi apresentado por um colega ao
maestro Laranjeiras da rádio Difusora de Caruarú, para que com ele tivesse aulas de
teoria musical. Porém, quando o maestro percebeu a deficiência visual de Hermeto,
desistiu da tarefa de ensinar-lhe argumentando que não poderia colocá-lo numa classe de
50 alunos, porque teria que conceder atenção especial a Hermeto. Diante da negativa do
maestro, Hermeto comprou o método de acordeon e teoria musical de Alencar Terra.
43
Em entrevista conosco realizada em 10/11/1997.
40
Durante um ano Hermeto levou este método para todos os lugares onde ia. Como
Pascoal só conseguia enxergar o que era escrito em letras grandes, depois de aprender as
notas musicais, as figuras rítmicas e outras noções básicas, o músico largou o método e
começou a pôr em prática uma maneira própria de abordar a música que o acompanharia
durante sua carreira: "minha vida toda foi deduzir." Os primeiros estudos teóricos eram
complementados pela intensa prática musical dos regionais das rádios e na noite.
A deficiência visual foi uma das motivações para o auto-didatismo de Hermeto,
bem como um estímulo constante - porque resultante de um dano permanente - para a
elaboração de uma concepção sonora e composicional que, sistematicamente, privilegia a
prática à teoria, o sentir ao saber, a intuição à lógica. Por outro lado, a experiência de ter
sido empregado numa importante Rádio de Recife, para depois ser demitido "porque ele
não dava para a música", fará com que Hermeto tome o julgamento e a condenação de
seu patrão como estímulos extras para desenvolver-se autodidaticamente no estudo da
música.
A demissão é também um importante antecedente de sua conhecida ojeriza à
sudordinação exercida por patrões tão diferentes como donos de Rádios, casas noturnas, e
posteriormente, das gravadoras dos discos em que gravou ao longo de sua carreira. O
desejo de emancipação da condição subalterna de intérprete contratado, terá, como
veremos mais à frente, implicações na própria linguagem de Hermeto e na maneira como
as mais diversas influências - do forró ao free jazz, da música erudita ao côco - nela são
combinadas. Sem pertencer a nenhuma escola específica e a nenhum patrão, o território
estético traçado por Hermeto tem propositadamente limites movediços.
Em 1956, Hermeto retorna para Recife e em 1958, vem para o Rio de Janeiro. Um
ano após, junta-se ao irmão José Neto para tocar acordeon na Rádio Mauá carioca, com o
regional de Pernambuco do Pandeiro e com os conjuntos de Fafá Lemos e Copinha. 44 Em
1961, vai para São Paulo, onde permanece aproximadamente até 1967, ganhando a vida
como pianista de boates e casas noturnas (Chicote, Stardust e outras), tocando entre
outros estilos, choro, bossa-nova, samba, e jazz.
44
Segundo o pianista Jovino, há gravações raras de Hermeto com o regional de Pernambuco do
Pandeiro, e com o conjunto de José Pascoal Neto, além do Sambrasa Trio e Som quatro. Não possuímos os
dados referentes às gravadoras destes discos, códigos fonográficos, nem a data exata das gravações.
41
Em São Paulo, começa também a praticar flauta e sax, integrando o conjunto Som
Quatro, com Papudinho (piston), Dilson (bateria) e Azeitona (contra-baixo), e em 1964, o
Sambrasa Trio, com Claiber (contra-baixo) e Airto Moreira (bateria),45 este último, um
músico e amigo que terá grande importância para o início da carreira de Hermeto como
compositor, arranjador e instrumentista, fato que ocorrerá mais tarde, em 1971, nos
E.U.A.. Em 1965, Hermeto participa como instrumentista no LP Caminho, do cantor
Walter Santos.46
O aprendizado de vários instrumentos por Hermeto foi possível não apenas por
seu talento, mas por sua dedicação intensa ao estudo e prática. Como podemos verificar
através do relato abaixo:
(...) Eu estudava flauta no banheiro da boate, no oitão da Igreja da Consolação, eu subornava
o guardador de carros pra ele me deixar estudar ali, porque tinha uns vizinhos chatos. (...) Mais tarde
eu me trancava no quarto estudando e falava pra dona da pensão que era pra ninguém me chamar e
subornava o vigia da Rádio pra ficar no estúdio tocando. (HERMETO, Pipoca Moderna)47
A noite e os Regionais das Rádios serão para Hermeto uma importantíssima
escola, na qual ele aprenderá oralmente um vocabulário musical variadíssimo, da música
nordestina, passando pelas serestas, choros, sambas, música cigana e bossa-nova, aos
standards do jazz.
Das roças de Lagoa da Canoa às casas noturnas e hóteis de Rio e São Paulo, a
intuição, a desenvoltura técnica, o ouvido (absoluto) e a sensibilidade, parecem ter sido
de fato, os guias primordiais de Hermeto. Hermeto tinha origem social humilde e não
podia contar com eventuais ajudas paternas. Sua deficiência visual adiava o domínio da
escrita musical. Estando desde a infância mais próximo de Hermeto, o universo popular
pôde servir como meio de sobrevivência do músico, além de constituir uma escola onde
se forjaria parte do estilo de Hermeto como instrumentista, arranjador e compositor.
45
Idem anterior.
Parte dos dados sobre Hermeto foram coletados em entrevistas com o músico e os integrantes e
ex-integrantes de seu Grupo. Outros dados podem ser encontrados na edição atualizada da Enciclopédia da
Música Brasileira, erudita, folclórica e popular. São Paulo: PubliFolha, 1998, p. 606/607. Os dados
apresentados na Enciclopédia no entanto devem ser verificados, pois algumas informações são inexatas.
Por exemplo, segundo a Enciclopédia , o LP com Walter Santos teria sido o primeiro disco no qual
Hermeto figura como instrumentista, quando as primeiras gravações que Hermeto fez em disco são
anteriores a este LP.
47 Em entrevista com Mauro Dias, não sabemos a data exata da publicação.
46
42
A trajetória de Hermeto desde quando saiu de Lagoa da Canoa acompanhou estas
três etapas; instrumentista, arranjador e compositor.48 Durante o período 1950-1966,
Hermeto tinha sido um músico instrumentista, contratado por Rádios e boates. A partir de
1964, começa paralelamente a integrar algumas bandas fora do esquema Rádio-boate
(Som Quatro e Sambrasa Trio). Lentamente, Hermeto começava a se libertar dos limites
econômicos que lhe eram impostos, bem como dos limites estéticos estabelecidos pela
ótica dos patrões que o contratavam. Neste sentido, podemos dizer que a necessidade de
tornar-se arranjador e compositor para Hermeto, foi não só uma tendência natural de sua
personalidade musical, como também, um caminho de ascensão profissional e social.
Contudo não foi um caminho fácil. Hermeto não teria se tornado o que é hoje,
sem um comportamento minimamente aguerrido, combinado à forte personalidade que o
caracteriza. Ele ensaiou a libertação de sua condição de intérprete contratado,
gradativamente, negociando e ao mesmo tempo assustando o poder, através de uma
linguagem musical que já insistia em fugir às convenções.
No livro Noise: The Political Economy of Music,49 Jacques Attali apresenta
algumas premissas adequadas para ilustrar muito brevemente, o paralelo que fazemos
entre a linguagem musical e a trajetória profissional de Hermeto.
1) A música para Attali, pode tornar-se um espelho do tempo em que foi
produzida e da relação entre homem e sociedade. Como espelho da sociedade, a música é
mais que um objeto de estudo em si mesma, é um meio de perceber o mundo, um
instrumento de conhecimento.
2) Para a música cumprir plenamente sua função comunicadora, é imprescindível
no entanto, que nos tornemos conscientes de suas entrelinhas, e que ouçamos também os
seus ruídos e diferenças (sua ação crítica), bem como o que ela não diz, seu silêncio.
48
Com certeza Hermeto não concorda com a ordem que apresentamos. Em nossa última entrevista
com o músico, ele nos disse que sua primeira composição musical foi o choro ao sair da barriga da mãe.
Aparentemente fazendo uma piada, este comentário de Hermeto é coerente com sua própria concepção
musical. Ver no cap. V e VI, a definição apresentada pelo músico para a "música da aura". Mantemos a
ordem acima; instrumentista, arranjador e compositor, apenas como orientação cronológica geral.
49 University of Minnesota Press, 1985.
43
3) A música é também um atributo do poder político e religioso, possuindo por
outro lado, uma ação potencialmente subversiva, porque sendo concebida como
ordenação do ruído (em outras palavras, como controle da desordem), possui em si
mesma o germe da revolta.
A abertura para o não-escrito, o intuitivo, fazia com que Hermeto inventasse
acordes, ritmos e melodias que constantemente surpreendiam os músicos com quem
tocava. Esta surpresa causada por Hermeto, e o ruído por ela causado ou era motivo de
susto e desdém para os donos das Rádios e boates e para músicos "bem-comportados" ou
de admiração, para os mais abertos. O reconhecimento tornou amigos vários dos músicos
que tocaram com Hermeto, alguns dos quais desempenharam sem dúvida, papel
importante na carreira do compositor alagoano. Assim foi com Sivuca e Heraldo do
Monte em Recife, e depois, com o percussionista Airto Moreira e a cantora Flora Purim,
que fizeram a "ponte" para Hermeto ir para os E.U.A..
Antes de ir para os Estados Unidos, Hermeto viverá sua primeira experiência
(oficial) simultaneamente como compositor e arranjador, entrando no Trio Novo em
1966, que com sua entrada, torna-se Quarteto Novo. O Quarteto Novo será na trajetória
de Hermeto, o meio do caminho entre o músico instrumentista contratado de Rádios e
boates, e o arranjador e compositor com fama internacional. Do Quarteto Novo faziam
parte, além do próprio Hermeto (flauta e piano), os músicos Heraldo do Monte (viola
caipira e guitarra), Téo Barros (violão e baixo), e Airto Moreira (bateria). Em 1967, o
conjunto grava pela Odeon o importante LP Quarteto Novo (Odeon, 1967), no qual
aparece uma das primeiras composições gravadas do compositor alagoano, O ovo, um
baião para o qual Hermeto faria mais tarde uma letra que remete a tradição popular
poética da natureza encantada e abundante, de fartura hiperbólica, como observou a profª
Dra. Elizabeth Travassos na defesa dessa dissertação:
44
"Tenho uma galinha que põe cem ovo por mês,
mas não consigo entender, porquê vem três de cada vez. [bis]
No meu quintal tinha cinqüenta mil galinhas,
vendi tudo pra vizinha Mariquinha.
Agora só fiquei com um pintinho novo,
começei tudo de novo,
com um ovo."
Em 1969, o grupo se dissolve. Apesar de sua meteórica carreira, o Quarteto Novo
afetou toda uma geração de músicos, de Edu Lobo50 a Tom Jobim, ao combinar
percussão, viola caipira, violão, flauta, bateria, piano e guitarra. A proposta original do
Quarteto Novo veio de Geraldo Vandré. Segundo ela, o Quarteto deveria trabalhar
exclusivamente com a música brasileira. Segundo Hermeto, a proposta nacionalista de
Vandré foi um dos motivos para que o Quarteto durasse tão pouco tempo: "Quando eu
dava um acorde bem moderno, as pessoas falavam criticando: acorde de jazz não pode.
Mas não era acorde de jazz, era minha cabeça que estava querendo. A música é do
mundo. Nós não somos donos dela. Querer que a música do Brasil seja só do Brasil, é
como ensacar o vento e ninguém consegue ensacar o som."
De 1966 até 1970, Hermeto terá uma importantíssima escola de arranjo com os
Festivais da Canção. Nesta época, Hermeto já sabia as notas e figuras rítmicas, mas como
não sabia fazer grades de arranjo, escrevia, já transpondo, instrumento por instrumento a
partir da harmonia. É importante observar que Hermeto tinha e tem um ouvido harmônico
muito acurado, que já o permitiu compor para uma orquestra sinfônica por exemplo, sem
instrumentos:"Eu posso estar escrevendo uma nota aqui e estou com quatro caras tocando
e eu escutando e escrevendo sobre aqueles quatro instrumentos." 51
50 Compositor que o Quarteto Novo acompanhou em 1967, no III FMPB, realizado na TV Record,
São Paulo SP, com a música Ponteio (de Edu Lobo e Capinam), vitoriosa no mesmo Festival. Cf.
Enciclopédia da Música Brasileira.
51 Segundo o próprio Hermeto nos disse em entrevista, isto ocorreu quando ele compôs para a
orquestra sinfônica de Berlim. A composição foi feita nesta cidade alemã em apenas 32 horas e Pascoal
usou o piano em apenas 16 destas 32 horas, ou seja, compôs aproximadamente metade da partitura
orquestral sem instrumento algum que o auxiliasse. O músico brasileiro teve que passar para o maestro o
papel de fabricação alemã no qual escrevera a música, pois o regente não acreditou que ele havia composto
tão rápido e sem instrumento algum, dias apenas antes do concerto. Convencido e impressionado com a
habilidade de Hermeto, o regente pediu a este último que o fato fosse relatado ao público antes das
apresentações, porque, segundo o maestro, era digno de nota.
45
Em 1970, Airto e Flora Purim levam Hermeto para os E.U.A., para arranjar as
músicas dos discos Natural Feelings e Seeds on the ground (Buddah Records, 1971).
Neste último disco, Hermeto grava e arranja uma música criada por seus pais
aproximadamente em 1941, em Alagoas, enquanto trabalhavam na lavoura. 52 O "Gaio da
roseira", foi considerada uma das melhores músicas do ano pela crítica inglesa. 53
Os anos de 1970 e 1971 seriam bastante intensos para Hermeto. Além dois dois
LPs com Airto e Flora como compositor, arranjador e multi-instrumentista, Hermeto faria
ainda o LP Cantiga de Longe (Elenco, 1970) com Edu Lobo, como arranjador e
instrumentista, o LP Live Evil (Sony, 197254) com Miles Davis como compositor e
instrumentista e um solo de flauta no disco Tide (A&M, 1970) de Tom Jobim.
A experiência nos E.U.A. parece ter tido de fato importância no desenvolvimento
tanto da carreira como da concepção de Hermeto. Foi lá que a concepção e o lado
experimental de Hermeto puderam aflorar mais totalmente. Misturando o "Gaio da
roseira" de sua infância às experimentações aparentemente influenciadas pelo free jazz
americano, em Seeds on the Ground,
Hermeto foi pela primeira vez reconhecido
internacionalmente.
Façamos um parêntesis para esclarecer o termo free jazz. Este apareceu pela
primeira vez intitulando o disco de 1960 de Ornette Coleman, e a partir daí "passou a ser
utilizado para denominar uma nova forma que alguns jazzmen norte-americanos já
vinham experimentando hà algum tempo, como Cecil Taylor, Albert Ayler, ou mesmo
Charles Mingus e Sonny Rollins." (Callado, 1990). Revolucionando totalmente a
linguagem do jazz, as características básicas do free jazz foram assim resumidas pelo
crítico alemão Joachim - E. Berendt:
52
Pascoal José da Costa e Divina Eulália Oliveira.
Cf. Enciclopédia da Música Brasileira.
54 Lançado em 1972, mas gravado em 1970, segundo consta no encarte do CD. Ver discografia.
53
46
1. entrada no campo livre da atonalidade;
2. dissolução da simetria rítmica, do "metro" e do beat ;
3. incorporação de elementos musicais de diversas culturas internacionais;
4. maior intensidade na execução instrumental, chegando ao "êxtase"
improvisatório e;
5. o ruído passa a fazer parte do som musical" 55
Dez anos depois do disco de Coleman, as características acima citadas se
assemelham de fato às encontradas em algumas músicas compostas e arranjadas por
Hermeto na década de 70 (como por exemplo, o "Gaio da roseira" em Seeds on the
Ground, ou "Velório" em Hermeto Pascoal: Brazilian Adventure (CBS, 1971) e é
possível supor que o músico as tenha absorvido durante sua estada na Califórnia e em
Nova York, com o casal Airto e Flora Purim. O pesquisador Carlos Callado verificou
como nós, resultados bem próximos na música e linguagem de Hermeto, com o free jazz :
É curioso como estruturando seu trabalho musical a partir de ritmos brasileiros tradicionais
como o frevo, o baião e o choro, jamais abrindo mão do recurso da improvisação, Hermeto chega em
vários momentos a resultados bem próximos do free jazz - especialmente quando rompe o andamento
regular e ingressa na atonalidade. Recusando sempre as qualificações de jazz, free ou mesmo "música
popular brasileira", ele prefere o termo "música livre" ("música universal" é ainda um outro termo que
Hermeto utiliza para definir sua música). (CALLADO, 1990 : 249)
Salvo menções biográficas que nos sejam desconhecidas, talvez seja mais
pertinente
supor o aparecimento na linguagem de Hermeto a partir de alguns
procedimentos composicionais - como a atonalidade, o rompimento com a regularidade
do andamento, a improvisação "extásica", o uso musical dos ruídos, etc. - mais pela via
free jazz, do que pela da música erudita contemporânea.
De qualquer forma, o free jazz constitui apenas uma das várias facetas da
linguagem de Hermeto na década de 70. Pois como Callado observou, o compositor
alagoano recusa este rótulo (free jazz), assim como todos os outros já utilizados para
definir o tipo de música que faz. O que, de alguma forma, parece justo, já que a
linguagem de Hermeto é realmente múltipla, integrando e ultrapassando o próprio
55
Joachim E. Berendt, O Jazz: do Rag ao Rock. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 36.
47
modelo experimental do free jazz, ao combiná-lo com a música brasileira folclórica ou
alternando na mesma música trechos improvisados a la free jazz, com outros totalmente
convencionados e arranjados.
Em relação às origens do free jazz, faríamos uma leitura parcialmente diferente da
realizada por Tato Taborda,56 que nos será útil para tratarmos da relação que Hermeto
parece ter tido com a música americana e com diferentes estilos do jazz. Vejamos por
exemplo quando Tato cita um trecho do livro de Júlio Medaglia, Música Impopular,57
tentando ilustrar a importância do contato do saxofonista Ornette Coleman, com o
músico erudito Günter Schuller, para o surgimento do free jazz:
Coleman vinha de uma família paupérrima do sul do Texas, que nem sequer dinheiro para a
compra de um instrumento possuía. Por fim, conseguiu ganhar um velho saxofone todo quebrado e, se
identificando com ele, começou a tirar sons que nada tinham a ver com o que se chamava música na
época. Ele apitava, grunhia, sussurrava ao instrumento mas ninguém queria ouvi-lo, muito menos os
band leaders engajá-lo em suas orquestras. Aquele som primitivo e anárquico que tinha a ver com a
sua própria vida nos slums do fim do mundo onde nascera, foi detectado e valorizado pela primeira
vez quando Coleman, um simples ascensorista de Nova Iorque, cria coragem e apresenta-se para
Günther Schuller, o diretor da Lenox School of Jazz. Schuller o aceita em sua escola e passa a orientálo, mostrando-lhe que atrás daquela anarquia e agressividade sonora havia uma grande sensibilidade
que motivaria o surgimento de um novo estilo jazzistico (Medaglia in TABORDA, 1998: 119/120).
O episódio acima mencionado, traz duas informações que se sucedem. A
primeira, refere-se à linguagem incomum desenvolvida por um músico de origem
bastante humilde, Coleman, linguagem esta concebida autodidaticamente num saxofone
quebrado, e a segunda, o contato posterior de Coleman com Günter Schuller. É através
deste último e do contato com a música erudita contemporânea que o saxofonista
encontraria ecos de sua própria linguagem experimental. A partir do relato acima parece
incontestável que o contato e a amizade com o músico erudito devem ter influenciado
Coleman em alguma medida, mas o(s) detalhe(s) é que não só este contato foi uma via de
mão dupla, pois Coleman influenciaria o próprio Schuller, 58 mas também que o
saxofonista já tinha muito antes de seu contato com o músico erudito, uma maneira
própria de tocar e de conceber música.
56
Ver Tato Taborda, Música de Invenção, p. 17.
Cf. Taborda, op. cit.
58 Cf. Taborda, op. cit., p. 17.
57
48
Os relatos a seguir mostram até que ponto a concepção experimental de Coleman,
não dependeu de um contato com a música erudita contemporânea apresentada ao
saxofonista por Günter Schuller em 1959:
Eu me lembro da primeira vez que eu peguei em meu saxofone. [com aproximadamente 15
anos de idade, ou seja em 1945] Me lembro de ter pensado então, como estava escrito no livro, que as
primeiras sete letras do alfabeto eram as primeiras sete letras da música, ABCDEFG. Então eu pensei
que o dó que eu estava tocando no saxofone era A. Mais tarde eu percebi que isto ocorria porque no
sax alto em Mi bemol, quando você toca o la natural, soa dó (transposto). Então eu estava certo de
uma maneira e errado de outra - quero dizer do ponto de vista sonoro, eu estava certo. Então eu
comecei a analisar porque as coisas existem da maneira que existem e, desde esse dia, eu percebi mais
e mais que todas as coisas que são construídas segundo uma lógica estrita somente são aplicadas se
forem contra alguma outra coisa; ou seja, a lógica não é a única maneira de fazer as coisas. Em outras
palavras, se você pega um instrumento e encontra uma maneira de expressar seu próprio sentimento,
esta maneira se torna sua própria lei. (...) Eu costumava tocar uma nota durante o dia todo, tentando
encontrar quantos sons eu poderia obter usando somente a embocadura. (...) (Ainda estou procurando
por essa "mágica" da embocadura). (...) Eu ouvia tantas notas e sons... (Coleman in LITWEILER,
1984 : 31/32)
Por volta de 1957, ou seja, dois anos antes do encontro com Günter Schuller,
Coleman encontra alguns dos músicos (Don Cherry, Billy Higgins e Charlie Haden) com
quem gravaria seus primeiros discos, e assim descreve algumas experiências que ele
próprio liderava :
Então, quando nós estávamos juntos, a parte mais interessante era: O que você irá tocar
depois da melodia, se esta não tiver nada a acompanhando? (...) Usualmente, quando você toca uma
melodia, você tem padrões pré-estabelecidos para saber o quê você pode fazer enquanto as outras
pessoas estão fazendo outra coisa. Mas neste caso, quando nós tocávamos a melodia, ninguém sabia
para onde ir ou o que fazer para mostrar que sabia para onde estava indo. Eu já tinha desenvolvido
uma maneira de tocar assim naturalmente. [o grifo é nosso] (Coleman in LITWEILER, 1984 : 34)
Em 1958, Coleman grava seu primeiro disco, Something Else! No texto da
contra-capa, o saxofonista já apresenta de forma completa o que dois anos após seria
conhecido como free jazz:
49
Eu creio que um dia a música será um pouco mais livre. Então, o padrão59 para um tema, por
exemplo, será esquecido e o próprio tema será o padrão e não terá que ser forçado dentro de modelos
convencionais. A criação da música é tão natural como o ar que respiramos. Eu acredito que a música
é realmente livre e você pode gostar dela da maneira que for. (Coleman in LITWEILER, 1984 : 34)
Somente em 1959, Coleman irá conhecer John Lewis e Günter Schuller,
professores da Lenox Jazz School, em Lenox, Massachussets, quando o saxofonista já
havia consolidado tanto sua concepção como sua linguagem musical. Para não parecer
que estamos diminuindo a importância do contato de Coleman com os músicos acima
citados, vejamos o que John Lewis, professor da Lenox School
e integrante do
importante grupo Modern Jazz Quartet, disse a respeito de Coleman, apenas poucas
semanas após a entrada deste último na Lenox School , na qual lecionavam ainda, outros
jazzmen de destaque como Milt Jackson, Max Roach e Bill Russo, além do próprio Lewis
e Günter Schuller:
Ornette Coleman é a primeira pessoa a realizar algo de novo no jazz desde Charlie Parker e
Dizzy Gilespie em meados dos anos 40 e desde Thelonius Monk" (John Lewis in E. BERENDT,
1987: 106)
Neste ponto, podemos relacionar a trajetória autodidata e solitária de Ornette
Coleman até a consagração e absorção de sua música nos círculos jazzísticos (via John
Lewis) e eruditos (via Günter Schuller), à experiência que o também autodidata Hermeto
Pascoal teve nos E.U.A. O fato de futuramente Coleman ter passado a compor para
formações eruditas - o que efetivamente ocorreu, demonstrando que foi influenciado por
Schuller - esta influência além de ser tardia (após 1960), parece ser uma questão menor, e
a nosso ver super-enfatizada por Tato, porque na verdade: "Ornette Coleman (...) só teve
conhecimento das experiências atonais da música erudita por volta de 1959/1960, época
em que conheceu John Lewis e Günther Sculler; nessa ocasião a sua contribuição musical
já estava dada e era conhecida internacionalmente. (E. Berendt, 1987: 38).60
59
No original pattern. A tradução literal significaria modelo ou padrão. Coleman parece estar se
referindo tanto ao contexto harmônico, como ao formal, ambos pré-estabelecidos tradicionalmente. É esta
pré-determinação que o saxofonista quer abolir. O novo modelo-padrão proposto por Coleman é um antimodelo, aberto continuamente à mudanças harmônico-melódicas imprevistas e desconhecidas pelos
próprios intérpretes.
60 Op. cit., ver também Mark C. Gridley, Jazz Styles: history and analysis. New Jersey: PrenticeHall, Inc., 1985 (2ª edição), ps. 226-234 e W. Royal Stokes, The Jazz Scene: an informal history from New
Orleans to 1990. New York: Oxford University Press, 1991.
50
Se a década de 70, quando o free jazz estava no auge, parece ter de fato
influenciado a linguagem de Hermeto, contudo esta influência não deve ser
compreendida uniteralmente. Assim como o contato com Günter Schuller apenas um ano
antes de Coleman gravar o disco Free Jazz (Atlantic-WEA, 1960), não pode explicar
totalmente a linguagem não-convencional do saxofonista, o contato de Hermeto com a
música americana, também apenas um ano antes dele gravar nos E.U.A. o seu primeiro
disco autoral, não explica suficientemente o experimentalismo praticado por Hermeto.
Isto porque tanto Hermeto como Coleman, já tinham linguagens próprias, desenvolvidas
autodidaticamente, e autônomas em relação aos universos do jazz e da música erudita
contemporânea, respectivamente, antes de serem afetadas por estes.
Assim como a música de Coleman seria legitimada por Lewis e Schuller, as
experiências musicais de Hermeto também o foram nos E.U.A., encontrando na
vanguarda do jazz americano, um território propício e fecundo para sua consolidação
artística e comercial. Assim, o músico-intérprete somente de outros artistas, contratado
por Rádios e boates, aos poucos conquistou um lugar somente seu, dentro da indústria
cultural da música popular.
Isto ocorreu mais completamente - o "Gaio da roseira" foi o ponto de partida quando da gravação do primeiro disco autoral de Hermeto, o LP Hermeto Pascoal:
Brazilian adventure (Coblestone, 1971), produzido pelos amigos Flora Purim e Airto
Moreira. Neste LP, Hermeto aproveita ao máximo o orçamento apertado da gravadora
Buddah Records, escrevendo para orquestra de cordas, madeiras e metais e contando
ainda com a participação de Ron Carter no baixo e Airto Moreira na bateria e percussão.
O próprio Hermeto completava a "cozinha", 61 tocando piano elétrico e flautas.
61 "Cozinha" é um termo usado na música popular e se refere a formação instrumental básica
constituída geralmente de baixo, bateria e percussão.
51
Além de ser um marco na carreira de Hermeto, a gravação do disco proporcionou
um certo
"retorno
de mídia"
para o
compositor
estreante.
Voluntária ou
involuntariamente, Hermeto provocou um certo alvoroço no meio musical nova-iorquino,
ao presentear com garrafas, músicos como Hubert Laws, Art Farmer e Ron Carter, no
início de uma das sessões de gravação no estúdio. O motivo para tal recepção é que
Hermeto compusera uma música62 para 40 garrafas afinadas, que seriam tocadas pelos
músicos da big-band. Em outro momento da gravação do disco, na primeira vez que uma
orquestra tocava uma música sua, Hermeto interrompeu a regência logo nos primeiros
acordes, "não sabia mais o que fazer com as mãos. Elas ficaram paradas no ar. Depois
baixei as mãos, (...) estava tão bonito que fiquei sem ação." (A gazeta, Vitória ES, 1990).
Após alguns segundos de silêncio e hesitação, os músicos pediram finalmente que
Hermeto continuasse regendo, mas, ao invés disso e para o susto de todos, o músico
jogou as partituras para o alto, e rolando com elas pelo o chão, ria sem parar. Sem saber
se chamavam a ambulância, e enquanto Hermeto ainda rolava sobre as partituras, os
músicos americanos tiveram que ser tranqüilizados por alguém que disse que aquele
comportamento era comum no Brasil. "Que aqui rolávamos no chão quando estávamos
contentes". (Idem).
A fama de músico criativo e excêntrico, talvez tenha começado de fato nestes
episódios em 1971. Outros fatores ainda, somavam-se ao comportamento do brasileiro na
composição de sua fama. A figura de Hermeto, albino, branco, de estatura baixa e cabelos
muito compridos e avermelhados, já então parecido com um "bruxo" (termo que a
imprensa nacional adotoria anos depois para denominá-lo), deve provavelmente ter
contribuído para aumentar a curiosidade dos americanos sobre o músico alagoano,
triplamente impressionados com sua linguagem musical, comportamento e figura algo
exóticas.
Aspectos menos importantes, como a aparência e o comportamento de Hermeto,
podem ser considerado totalmente irrelevantes para alguns, porém não para nós. Neste
momento, é a gênese do "experimentador carismático", do "bruxo" Hermeto Pascoal, que
nos interessa. Por isso, não descartamos o papel que o visual particular de Hermeto
62
A faixa 'Velório".
52
desempenhou junto aos americanos (e à mídia atual) e que contribuiu na construção de
sua imagem pública de criador irreverente e experimental. "Louco".
Referindo-se ao episódio comentado acima, quando jogou as partituras para o
alto na frente de uma orquestra atônita, Hermeto diz simplesmente: "Eu não dei uma de
louco. Na verdade eu sou louco mesmo! Sempre fui!" (idem). Hermeto não parece fugir
da fama inspirada por seu comportamento, e nega que este tenha sido, ou seja ainda hoje,
um artifício construído e manipulado visando a fins sensacionalistas e comerciais. Não
seria necessário dizê-lo, pois a rapidíssima projeção de Hermeto no exterior só pode ser
explicada realmente através do talento e capacidade do próprio músico. Se levarmos em
conta que o recém-chegado Hermeto Pascoal era totalmente desconhecido nos E.U.A. e
não tinha gravadoras, mecenas, nem padrinhos, podemos constatar que seu
reconhecimento nos círculos musicais americanos ocorreu numa velocidade realmente
vertiginosa, que somente o "exotismo" não pode explicar. Airto conhecia - via Miles
Davis - importantes jazzmen norte-americanos e aparentemente abriu de fato algumas
"portas" profissionais importantes para Hermeto, mas estas nada teriam sido se Hermeto
não conquistasse efetivamente os músicos americanos com sua música. O que de fato
ocorreu.
No mesmo ano da gravação de seu disco, Hermeto conhece e toca com jazzistas
americanos de renome como Chick Corea, Herbie Hancock, Joe Zawinul, Wayne Shorter
e John McLaughlin, entre outros, além de um dos mais importantes músicos populares
americanos do século: o trumpetista Miles Davis.
Airto tocava com Miles nessa época e foi através dele que Miles e Hermeto se
conheceram:
(...) As músicas que eu gravei com ele, (Miles Davis) eu mostrei pra ele no violão, cantando
e tocando violão. (...) Aí bicho, eu toquei um monte de música para ele, umas 9 ou 10 músicas, e ele
sentado, e o Airto ficava naquela tensão né... (...) Eu nem tava olhando para ele (para Miles), estava
ligado no meu som, porque quando eu tava tocando para ele escutar, eu não estava tocando pensando
em arrumar trabalho, porque eu já tinha ido para lá com trabalho. (...) Aí ele disse assim: "ah, se eu
pudesse gravar estas músicas todas, pena que não dá para gravar todas num disco", olha o papo dele...
Quando o Airto traduziu para mim, eu disse, agora vamos ver como ele é. [Airto] fala para ele que eu
vim (para os E.U.A) também gravar, para fazer meu disco e que se ele acha que eu vou dar estas
músicas todas para ele gravar, quê é isso ? Aí virou brincadeira cara, porque foi de brincadeira que eu
falei. E ele sacou isso. (...) A partir deste dia, aí que ficou bonita aquela simpatia que nós tínhamos um
pelo outro. (HERMETO, 1997) 63
63
Em entrevista por nós realizada.
53
Os dois passam a nutrir uma forte admiração mútua e a parceria consolida-se na
participação de Hermeto como compositor e instrumentista em duas faixas do disco Live
Evil (Sony, 1972) de Miles Davis: "Igrejinha" e "Nem um talvez". 64 Hermeto chegou a
ser convidado por Miles para substiuir o tecladista Chick Corea, que não podia viajar para
uma tournée no Japão com a banda de Miles. A burocracia brasileira no entanto, atrasou
os documentos de Hermeto e quando ele enfim chegou à Nova York, Miles e banda já
tinham seguido viagem. 65 A experiência com o consagrado trumpetista Miles Davis e os
músicos ligados a ele, além de Airto e Flora Purim, teve o mérito de começar a divulgar o
nome de Hermeto no meio jazzístico americano e internacional, além de certamente ter
incentivado o músico alagoano, aumentando-lhe a auto-confiança no desenvolvimento de
seu próprio trabalho e carreira.
Tom Jobim falava anos atrás, que, infelizmente, o melhor caminho para o músico
brasileiro era o aeroporto. Não parece ter sido diferente com Hermeto. Porém, mais do
que tudo, os E.U.A. foram um ritual de passagem, um importante turning point
consagrador na carreira de Hermeto. Lá, este consolida sua habilidade como arranjador
escrevendo para big-bands, ao mesmo tempo em que é legitimado por músicos com
renome internacional, afirmando-se rapidamente nos cenários musicais americano e
europeu como um improvisador virtuoso no piano, flauta e sax e como arranjador e
compositor de concepção original.
É importante observar que na época que Hermeto tocou com Miles no disco Live
Evil (Sony, 1972), o estilo que Miles vinha trabalhando era o fusion, combinando o jazz
com o rock. O fusion nada tinha a ver com as duas músicas compostas por Hermeto e
gravadas no disco de Miles. Por que então este gravou as músicas de Hermeto num disco
que seguia outra linha completamente diferente? O depoimento aparentemente pouco
modesto de Hermeto sobre sua ida aos E.U.A., talvez não o seja de todo:
64 As quais foram lançadas curiosamente como sendo de autoria do pistonista norte-americano.
Ver o encarte do CD, no qual não consta o nome de Hermeto como compositor em nenhuma das duas
faixas mencionadas.
65 Em entrevista por nós realizada em 10/11/1997.
54
Acredito que influenciei todas estas pessoas [Miles Davis, Chick Corea, Herbie Hancock,
Wayne Shorter e Joe Zawinul]. Por exemplo, quando eu gravei meu primeiro disco solo nos E.U.A.,
havia na orquestra 40 garrafas com partitura especialmente criada para elas. Isso impressionou muito
Herbie Hancock. Logo depois ele também gravou com garrafas. Mas ele fez isso com espírito
sensacionalista. As pessoas ouviam seu disco e exclamavam: "Oh, as garrafas". Para mim, as garrafas
eram como os outros instrumentos, nem mais nem menos importantes que as flautas ou a guitarra. Fui
aos E.U.A. com o meu jeito de trabalhar e a vontade de mudar o hábito que obrigava os brasileiros a
irem lá para aprender com os músicos norte-americanos. No Brasil, a tendência é achar que só é bom
o que vem dos E.U.A.. Os músicos brasileiros vão lá, ouvem jazz, depois voltam ao Brasil e fazem um
disco que é cópia de um dos seus ídolos. Eu quis mostrar outra coisa que não é jazz, nem samba, nem
bossa-nova, pois tudo isso me cansa! (...) Sim eu faço música e sou brasileiro. Que entendam como
quiserem. (HERMETO, Jazz Magazine, 1984)
Realmente, apesar de indiscutivelmente influenciado pelo jazz - embora no trecho
acima citado, não assuma - Hermeto não confinou sua linguagem, nos discos gravados
nos E.U.A. e mesmo fora dele, em nenhum estilo específico, nem no jazz. 66 Foi
justamente a heterogênea mistura de E.U.A. com nordeste brasileiro, (ocorrida desde o
"Gaio da Roseira"), e da música "clássica com o côco", somadas ao
virtuosismo
interpretativo, que reservaram a Hermeto um lugar singular nos círculos musicais
americanos e europeus. Ele não pegou "carona" num dos muitos rótulos da indústria
cultural, ele criou o seu próprio, um anti-rótulo, que, à maneira de uma pistola giratória,
afirma não pretender respeitar limites nem de gênero, nem de estilo, em seu projeto
experimental.
Em 1972, excursiona pelos E.U.A. e México, e em 1973, grava no Brasil seu
segundo disco autoral, A música livre de Hermeto Pascoal (CBS, 1973). Voltando aos
E.U.A., grava em seguida o terceiro disco, Slave Mass (CBS, 1977), onde pela primeira
vez utiliza animais em suas composições. Um duo de porcos "afinados" e com registros
vocais diferenciados: um animal grunhia agudo e o outro, grave.
A partir de Slave Mass, alternando Rio de Janeiro e Nova York, Hermeto fará um
disco por ano: os LPs Zabumbê-bum-á (WEA Brasil, 1978), Hermeto Pascoal ao vivo
em Montreux (WEA Brasil, 1979), e Cérebro magnético (WEA Brasil, 1980).
66
Em nossa última entrevista com Hermeto (06/03/1999), ele nos disse que o jazz influenciou sua
música harmonicamente, mas que do ponto de vista rítmico, se comparado à rítmica brasileira, este estilo é
muito pobre. Quanto a improvisação jazzística, Hermeto lembra que há outros modelos que o influenciaram
igualmente, como por exemplo os cantadores de embolada e os repentistas nordestinos.
55
Em 1980, com 44 anos de idade, depois de muitas idas e vindas internacionais,
Hermeto retorna de vez ao Brasil. E de 1981 até 1993, constitui, após algumas tentativas
frustradas, um grupo permanente de músicos que se apresenta inúmeras vezes no Brasil e
no exterior, gravando seis LPs e alcançando reconhecimento internacional. Nossa
dissertação trata justamente deste período de Hermeto Pascoal & Grupo, escolhendo para
análise um determinado repertório por eles gravado.
Com este grupo, Hermeto desenvolveria um estilo diferente em sua carreira. Se
até o Quarteto Novo, Hermeto trabalhava essencialmente com o universo popular
brasileiro (com ênfase na música nordestina), com algumas poucas influências do jazz - a
improvisação tradicional deste estilo por exemplo, com solos estruturados sobre uma
harmonia pré-estabelecida, além das (re-)harmonizações dissonantes - as influências
jazzísticas seriam, a partir dos E.U.A., mais fortememente assimiladas em sua linguagem,
na forma de longas improvisações atonais, dissolução do metro, pesquisa de timbres e
com ruídos, etc.
No período que estudamos contudo, Hermeto reserva a improvisação para o
processo de criação, para os shows e bem menos para os discos, que passaram a ter uma
ênfase maior na escrita. Os discos com longas improvisações coletivas ou solo, haviam
cedido lugar a uma outra concepção, que manteria no entanto algumas das características
dos períodos anteriores, como por exemplo, as harmonizações dissonantes e mesmo
atonais e a pesquisa com timbres obtidos não convencionalmente e ruídos, a exploração
de sons de animais, etc. O papel da escrita torna-se então mais importante que antes de
1981, conferindo a essa formação de Hermeto Pascoal & Grupo determinadas
características camerísticas.
É com este grupo de músicos ainda, que Hermeto aos poucos abandona o papel de
intérprete e solista de seu próprio trabalho, passando a se dedicar mais ao arranjo e à
composição, inclusive de obras sinfônicas. 67
67
Já executaram obras orquestrais de Hermeto, por ele chamadas de "arranjos para sinfônica", as
orquestras sinfônicas de Nova Iorque, Dinamarca, França e Berlim. Em Macedo Rodrigues, "Uma música
por dia". Rio de Janeiro: O Globo, 18/09/1990.
56
Os músicos que o integraram foram: Itiberê Luis Zwarg (baixo elétrico, tuba e
bombardino), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas), Antônio Luís Santana apelidado de Pernambuco - (percussão),68 Carlos Daltro Malta (saxes, flauta, flautim) e
Márcio Villa Bahia (bateria e percussão).
3.2. Dados biográficos dos integrantes do grupo
3.2.1 Itiberê Luiz Zwarg: nascido em 24 de janeiro de 1950 em São Paulo,
capital. Filho de família de músicos populares, os primeiros estudos foram iniciados aos 7
anos de idade em piano clássico. Troca de professor aos 10 anos, e aos 14, inicia o estudo
do violão, que é o instrumento que realmente "fisga" o músico, pois até então, os
professores de piano queriam ensinar-lhe leitura e teoria musical, das quais ele não
decididamente não gostava: "eu queria tocar" (Itiberê, 1998). O pai lhe mostra então os
primeiros acordes no violão, ao mesmo tempo que Itiberê sente-se atraído pela bossanova e suas harmonias dissonantes, cujo repertório passa a aprender. Com 16 anos,
ganha um exótico baixo acústico de 3 cordas (lá - 1, ré 1, sol 1) que seu irmão, também
músico (pianista), comprara no Morro do S na Freguesia do Ó,69 para presenteá-lo.
Contra-baixo e piano, Itiberê e irmão passam então a tocar em duo, pois essa tinha sido a
finalidade do presente. Cerca de 8 meses depois, o próprio Itiberê compra um baixo de 4
cordas.
Logo em seguida, o músico começa a tocar em bailes com o pai, e a partir dos 18,
na noite paulista. Em 1975, conhece e trabalha com Hermeto numa gravação de um jingle
em um estúdio em São Paulo, que havia contratado Hermeto como arranjador. 70
Dois anos depois, em 1977, Hermeto encontrava-se sem baixista em sua banda e
uma amiga comum lembrou então de Itiberê, que imediatamente foi contactado por
telofone por Hermeto. Itiberê não só aceitou como disse: "daqui a pouquinho estou aí".
Dito e feito, pegou uma ponte aérea e três horas depois do telefonema de Hermeto, já
68
Infelizmente não pudemos entrevistar o percussionista.
Apenas como curiosidade, anos depois de ter ganho o baixo de seu irmão, Itiberê comporia um
choro chamado justamente, "Morro do S, Freguesia do Ó", explorando o S e o Ó desta localidade como
sinais musicais de repetição.
70 Este estúdio era dos mesmos donos da futura gravadora de Hermeto e Grupo: a gravadora Som
da Gente.
69
57
estava no Rio de Janeiro, bairro do Jabour. Isto ocorreu há 21 anos e nunca mais Itiberê
voltou.
É o integrante mais antigo do grupo, tendo entrado 5 anos antes da formação que
pretendemos estudar. Nestes 5 anos, Itiberê (juntamente com o pianista Jovino Santos
Neto e o percussionista Pernambuco) gravou com Hermeto os discos Zabumbê-bum-á
(WEA Brasil, 1978). Hermeto Pascoal ao vivo em Montreux (WEA Brasil, 1979) e
Cérebro Magnético (WEA Brasil, 1980).
Permanece como baixista da banda de Hermeto até hoje.
3.2.2 Jovino Santos Neto: Nasceu em 18 de setembro de 1954, no Rio de Janeiro.
Aos 12 anos, seu pai compra um piano para a irmã de Jovino praticar. Jovino passa então
a ter aulas de piano clássico com a mesma professora da irmã. Este aprendizado durará no
entanto somente seis meses, pois Jovino se aborrecerá com a metodologia e o repertório
da professora.
Estimulado pelos bailes dos anos 70, e ao som dos Beatles e Rolling Stones,
Jovino passa a tentar reproduzir as harmonias rockeiras no velho piano. De ouvido
grudado no gravador de rolo que seu pai (rádio-amador) havia comprado, Jovino aprende
rock, blues, baladas, etc.
Em 1974, vai para o Canadá fazer faculdade de biologia. Lá conhece e toca com
músicos de jazz e integra uma banda progressiva. Em 1977, ao se formar, volta ao Brasil
querendo dar continuidade à sua carreira de biólogo. Quase indo para Manaus fazer o
mestrado e já com bolsa e moradia garantidas, conhece então Hermeto, que o chama para
dar uma canja num show. 71
71
"Canja" é uma participação musical com caráter esporádico. Pode ocorrer por exemplo, quando
um músico é convidado para tocar uma ou duas músicas num show de outro artista ou ainda num disco,
como convidado especial.
58
Talvez nem seja necessário dizer que Jovino não só não foi para Manaus, como
também que gostou tanto da canja que resolveu repetir a dose por mais 15 anos. Somente
em 1992, desliga-se do grupo para iniciar carreira solo nos E.U.A.. 72
3.2.3 Carlos Alberto Daltro Malta: nascido no Rio de Janeiro em 25 de
fevereiro de 1960. Por volta de 1972, na casa de um amigo, Carlos Malta abriu uma
revista teen-age chamada Pop, numa reportagem intitulada "Leve a vida na flauta", que
curiosamente tinha a foto de Hermeto Pascoal dentre a de outros músicos. A maneira
como a flauta era descrita na reportagem, um instrumento extremamente portátil, ideal
para ser tocado no mato e na natureza, atraíram o garoto Malta, que pediu então à sua avó
uma flauta doce de presente.
Presente atendido, pouco tempo depois Malta compra um pífano de plástico
marca Yamaha que foi devidamente reafinado depois de um polimento artesanal feito a
faca pelo próprio garoto. E em 6 de setembro de 1975, aos 15 anos de idade, o músico
será presenteado com sua primeira flauta transversa.
A partir daí, começa a tocar em diversas bandas, e em 1977 compra um flautim,
também Yamaha, com o dinheiro ganho profissionalmente com a flauta transversa. Em
1979, já tocando com Maria Creuza, Antonio Carlos e Jocafi e um pouco depois com
Johnny Alf, tirará enfim a carteira de músico profissional da Ordem dos Músicos.
Com Johnny Alf, Malta viaja no projeto Pixinguinha tocando flauta e seu primeiro
sax, o soprano. Depois de um rápido e frustrado ingresso na Faculdade de Comunicação,
Malta faz o vestibular para a Escola de Música, e passa numa das três vagas oferecidas
para o curso de flauta. Fica seis meses na Escola, dos quais se lembra mais especialmente
das aulas com o flautista Celso Wotzenlogel, e das práticas de orquestra, do que das aulas
de teoria, das quais gostava bem menos. Algum tempo depois, ingressará na Escola de
Música Villa-Lobos para ter aulas de saxofone com Paulo Moura.
Durante as férias, os alunos pediram que Paulo Moura continuasse se possível a
dar aulas. Assim num dia de janeiro de 1981, depois de uma visita à casa de Hermeto,
72 Segundo informação de Márcio Bahia, o percussionista Pernambuco entrou no grupo no mesmo
ano que Jovino.
59
Paulo Moura comentava com os alunos sua surpresa com o que tinha visto, ouvido e
tocado no Jabour. Coincidentemente, alguns dias depois o próprio Malta será levado por
Virgínia Carvalho - uma amiga comum a ele e a Jovino - à casa de Hermeto, onde passará
a tarde tocando. Daí em diante, durante 11 anos, Malta integrará a banda de Hermeto. Em
1993, desliga-se do grupo para iniciar carreira solo.
3.2.4 Márcio Villa Bahia: nascido em Niterói - RJ, em 18 de dezembro de 1958.
Em 1976 ingressa na Escola de Música Villa-Lobos dirigida então por Aílton Escobar.
Inicialmente Márcio pretendia estudar bateria, mas o curso ministrado pelo famoso
mestre Bituca, era de percussão orquestral. Destacando-se bem no curso, em 1977 Márcio
ingressará na Orquestra do Teatro Municipal como estagiário e, em 1978, será efetivado.
Participa da Orquestra durante dois anos, atuando também no grupo de percussão da
Escola de Música Villa-Lobos em diversos concertos e como solista em concursos.
Ainda em 1978, Márcio foi convidado pelos professores para integrar o grupo de
percussão da Rádio MEC num concerto da série "Concertos da Juventude". O programa
seria contituído de uma peça de Marlos Nobre, Ritmetron, executada pelo conjunto de
percussão da Rádio MEC, e na 2ª parte, Hermeto Pascoal & Grupo.
Para este concerto, Hermeto escolhera um repertório propositadamente mais
erudito, constituído entre outras músicas, de duas suítes; a Suíte Paulistana, e a Suíte
Norte-Sul-Leste-Oeste. Na ocasião, Márcio conhece pessoalmente Itiberê, Jovino,
Hermeto e Pernambuco, além do baterista da época, Nenê, de quem Márcio depois
comprará alguns pratos de bateria.
Em dezembro de 1980, Márcio se desliga da Orquestra do Teatro Municipal, para
se dedicar mais à bateria. O grupo de Hermeto estava sem baterista na época, pois Nenê
havia saído, e Alfredo Dias Gomes, que o sucedera, chegando a gravar o Lp Cérebro
Magnético, permanecera somente cerca de onze meses na banda. Assim, em janeiro de
1981, o percussionista Pernambuco com quem Márcio havia travado amizade desde o
"Concerto da Juventude", liga para Márcio convidando-o informalmente para vir tocar
com o grupo e dar uma canja, sem compromisso nenhum. Na verdade, Pernambuco
queria que o amigo Márcio entrasse na banda, mas tudo dependeria da avaliação final de
Hermeto. O baterista pensou duas vezes antes de aceitar o convite, pois não se
60
considerava apto para tocar com um músico como Hermeto, nem numa canja, mas
finalmente topou.
Coincidindo com a segunda visita de Carlos Malta, de quem Márcio era amigo,
durante três dias seguidos a formação que estudamos em nossa dissertação, se reuniu
tocando junta pela primeira vez. Era janeiro de 1981. Ao fim do quarto dia, Hermeto
perguntou a Márcio e ao saxofonista Carlos Malta se eles queriam entrar na banda.
Hermeto ainda tentou ponderar que, dada à grande distância que eles teriam que percorrer
até o bairro do Jabour, bastaria que viessem três vezes por semana, ao que Márcio e
Malta responderam em uníssono: "não, a gente quer todo dia".
Com seis meses de banda, a fim de amenizar a distância, baterista e saxofonista
passaram a repartir uma casa no Jabour, para tornar mais confortável a rotina diária de
ensaio, de segunda a sexta, seis horas por dia. Rotina que foi iniciada duas semanas após
terem entrado na banda.
61
3.3 Hermeto e Grupo de 1981 a 1993
3.3.1 Convivência, metodologia de ensaio e aprendizado
Durante 12 anos (1981-1993), esse foi o padrão de trabalho desenvolvido por
Hermeto Pascoal & Grupo.73 Podemos perguntar se houve neste período, no panorama da
música brasileira, popular ou erudita, exemplo comparável ao desta formação, no tocante
à forma como dedicação e seriedade profissionais se traduziram em disciplina de ensaio.
A rotina diária consistia de ensaios das 14:00 às 20:00 hs., precedidos de trabalho
matinal, quando cada músico estudava suas partes individuais.
De todas as formações que trabalharam com Hermeto, esta decididamente foi a
que mais ensaiou. Excelentes músicos, como Mauro Senise, Zeca Assumpção, Nenê,74
Márcio Montarroyos, Cacau, Alfredo Dias Gomes, Zabelê e outros, já haviam tocado
com Hermeto em suas bandas anteriores, mas se em nenhum deles faltava habilidade ou
talento, muito pelo contrário, o mesmo não se pode dizer da disponibilidade e tempo que
possuíam para ensaiar, viajar, gravar, etc.75
Com Itiberê, Jovino, Pernambuco, Carlos Malta e Márcio, Hermeto teve pela
primeira vez um grupo de intérpretes trabalhando diariamente juntos, durante anos. Em
1981, Itiberê tinha 31 anos de idade, Jovino, 27, Carlos Malta, 21, Márcio, 23. Se estes
jovens músicos não tinham a experiência dos outros músicos que tocaram com Hermeto,
possuíam em contrapartida, uma capacidade de doação que transcendeu todas as
formações anteriores a 1981. Essa dedicação foi fruto sem dúvida da admiração
despertada nos jovens músicos por Hermeto Pascoal76 e a possibilidade de tocar em sua
banda representou não só uma excelente oportunidade de aprendizagem e autodesenvolvimento, como também, o real início de suas carreiras. O relato do baixista
Itiberê é esclarecedor:
73 E apesar de Itiberê e Márcio Bahia tocarem com Hermeto até hoje, essa dinâmica de ensaio
praticada de 1981 à 1993, não mais se realiza, porque os dois novos integrantes da banda residem em São
Paulo.
74 Estes três músicos integrariam mais tarde a banda de outra figura importante da música
instrumental brasileira: Egberto Gismonti.
75 Com exceção do baterista Nenê, que tocou com Hermeto por cerca de 10 anos.
76 O qual em 1981, tinha 45 anos de idade, e já possuía uma considerável experiência nacional e
internacional tendo tocado com músicos como Miles Davis, Ron Carter, Chick Corea, Herbie Hancock e
outros.
62
O Hermeto poderia ter tocado com medalhões desde o começo da carreira dele. (...) Ele sabia
que se tocasse com um Tony Williams, um Ron Carter, Herbie Hancock, Miles Davis, ou não sei
quem mais, ia ficar bonito é claro. (...) Mas é um monte de medalhões entende? Cada um ia puxar
para um lado e de repente o Hermeto não ia ter a liberdade nem a facilidade de colocar, porque ele
tinha uma coisa para dizer, uma linguagem e ele precisava dizer esta linguagem musical fazendo a
cabeça devagarinho de cada músico da banda, um por um. (...) Então isso aí é um trabalho muito
sério, e vingou, tanto é que tá eu aqui, o Malta, o Jovino, tá o Márcio Bahia, quer dizer cada um de
nós aqui está mostrando que é verdade e no futuro vai dizer mais ainda, porque a gente está
começando, como eles dizem, nosso trabalho solo. Que é uma coisa que eu discuto, porque meu
trabalho solo é dentro do grupo também. Eu não desvinculo isso aí. (...) Mas o pessoal acha que você
tem que ter um nome grandão com letras piscantes, pra poder dizer que este é teu trabalho solo. São
chavões da mídia. (ITIBERÊ, 1998)77
Como mais um exemplo de dedicação ao trabalho que abraçaram com unhas e
dentes, todos os integrantes da banda passaram a morar próximo à casa de Hermeto no
distante bairro do Jabour, somente para não perderem tempo nas idas e vindas diárias.
Além de serem membros do mesmo grupo, passaram também a ser vizinhos e dois deles,
Itiberê e Márcio, chegaram a constituir laços familiares com Hermeto. O primeiro elegeu
Hermeto e sua mulher Ilza, como padrinho e madrinha de seus filhos e o segundo, casou
com uma das filhas do compositor.
A estreita convivência entre os músicos da banda e o compositor, proporcionou
além de fortes laços de amizade e uniões familiares, uma intimidade com a composição
criada para aqueles músicos. Não que Hermeto simplificasse de alguma forma as
dificuldades técnicas dos intérpretes. Ao contrário, seu padrão de exigência foi altíssimo
desde o início. Desde o primeiro disco gravado por Hermeto Pascoal & Grupo
(Gravadora Som da Gente, 1981), encontramos as peças "Série de Arco", e "Briguinha de
músicos malucos no coreto", ambas extremamente difíceis.
Um exemplo de como o conhecimento musical mútuo e a amizade partilhada
entre Hermeto e seus músicos era transformada em música, ocorreu quando o baixista
Itiberê teve que se ausentar por algumas semanas da banda, para fazer companhia à sua
mulher que estava adoentada em São Paulo. Ao voltar de viagem, Itiberê foi presenteado
com uma (difícil) linha de baixo, que Hermeto compôs tentando se por no lugar do
baixista, e imaginando o tipo de técnica, toque, articulação e fraseado que caracterizavam
o estilo de seu músico e amigo.78
77
78
1992.
Em entrevista conosco realizada em 04/10/1998.
Esta linha de baixo está registrada na faixa "Irmãos Latinos", Festa dos Deuses, CD. Polygram,
63
A intimidade a que nos referimos, facilitou sem dúvida que Hermeto desse vazão
à sua linguagem e assim, o compositor pôde levar os músicos a um patamar musical
progressivamente mais alto, fazendo de cada composição um estudo técnico-pessoal.
A rapidez com que os resultados foram sendo obtidos por Hermeto Pascoal &
Grupo resultava destes três fatores: a intensa convivência entre compositor e grupo, a
aplicação e auto-superação contínua dos intérpretes e o desenvolvimento de uma
metodologia de ensaio que tentava combinar disciplina e prazer.
Pode parecer que toda esta "rotina" fosse sentida pelos músicos pesadamente,
como algo árduo que infelizmente eles tinham que se conformar, aceitar e conviver
durante anos. Mas não é verdade. Esta triste imagem, este "vale de lágrimas", não existiu
absolutamente. Hermeto era carinhosa e respeitosamente chamado pelos músicos, de
"Campeão". Multi-instrumentista e virtuose, compositor e arranjador, possuíndo o
carisma natural de líder, que exercia de forma amigável, Hermeto condensava em si todas
as capacidades de um grande professor e mestre (apesar dele negar estes "títulos"),
completadas por uma metodologia muito interessante:
A gente tinha uma metodologia muito legal (...), fomos aprendendo esta metodologia, o
Campeão sempre orientando. De manhã todo mundo limpar as partes individuais em casa e à tarde,
depois do almoço lá no ensaio, pra juntar. Então ele ensinou a gente a fazer só piano e baixo, todo
mundo olhando de fora entende (...), todo mundo marcando para ver se a polirritmia está perfeita, ou
se está pegando (se está errada), se tem nota suja, se não tem (...) depois piano e bateria, piano, bateria
e baixo, agora linha de saxofone, agora entra percussão... (ITIBERÊ, 1998)79
Uma das grandes coisas que eu aprendi lá, foi que eu aprendi a estudar. E apesar de tocar
uma música tão difícil porque era uma música rápida, uma música ligeira e tal, eu justamente aprendi
o quanto é importante você trabalhar devagar. Estas foi uma das grandes lições que eu tive lá no
Jabour, (...) como é que você aprende a chegar num brrrrrrrrrrr (imita o som de semifusas) que nem
o vento. Você tem que saber cada centímetro que você passou, cada nota, o som de cada nota, a
emissão de cada nota, como é que ela soa dentro de um compasso, dentro da frase, dentro de uma
parte da música, e nela inteira. (...) Você aprender a ver devagar uma coisa que vai passar em dois
minutos, você conseguir ter uma visão panorâmica daquilo alí, durante uma manhã inteira. (...) Então
eu acho que para você fazer qualquer coisa bem feita, você tem que ter esta calma, esta tranqüilidade
[...] e esta necessidade de você vencer todas as dificuldades, até mesmo "pô", você suando, 42º
(graus) alí na "mufa" (cabeça), você suando, mas falando (para si mesmo): enquanto eu não tocar este
pedaço direito eu não paro. (Carlos MALTA, 1998)80.
Eu estudava tanto os arranjos, as passagens difíceis, que aquilo ia ficando na cabeça. (...)
Chegou uma época que eu estudava a minha parte de percussão sozinho e cantarolava o arranjo
todinho. (...) Eu tocava a minha parte e sabia o que cada um estava fazendo em relação aquela minha
79
80
Em entrevista realizada por nós em 04/10/1998.
Em entrevista realizada por nós em 26/03/1998.
64
parte, o que o baixo fazia, o que o piano fazia, o que o saxofone fazia. (...) Eu desenvolvi isso no
grupo. (Márcio BAHIA, 1998)81
Ao invés de cansar, o processo de estudo e ensaio individual das músicas
possibilitava uma contínua realimentação das energias envolvidas no trabalho. O fato dos
ensaios serem diários conferia, sem dúvida, um sentido prático para o estudo solitário de
cada músico. Com Hermeto diariamente orientando, tocando junto com eles, criando para
eles, com os shows e as apresentações em Festivais nacionais e internacionais de jazz, os
discos, etc., é difícil imaginar que o tempo e esforço gastos no estudo do difícil repertório
não fossem recompensados de alguma forma.
Mesmo assim, a metodologia de trabalho de Hermeto Pascoal & Grupo foi
realmente única e muitíssimo diferente da normalmente encontrada em formações
eruditas ou nos conjuntos populares de música instrumental. Talvez apenas através de
subvenções e patrocínios, um grupo no Brasil atual pudesse manter uma metodologia de
trabalho como foi a desta formação de Hermeto Pascoal & Grupo durante doze anos.
Porém, não havia subvenções e patrocínios de qualquer tipo, o sustento vinha unicamente
dos discos, das temporadas no Brasil e no exterior principalmente. Mas a moeda que
recompensava todo este trabalho não era exatamente o dinheiro.
3.3.2 O processo de ensaio e criação das músicas: composição improvisada e
improvisação escrita ?
Todo mundo, papel e lápis. (...) Ele (Hermeto) já subia a escada com uma idéia na cabeça. Aí
ele sentava no piano e, (se dirigindo ao saxofonista) Malta toca isso aqui, aí o Malta tocava. Agora
fica tocando que eu vou fazer um negócio em cima. Aí, páááá, punha um negócio no piano em cima
daquilo, agora eu vou fazer o baixo, segura vocês dois (pianista e saxofonista fiquem repetindo o que
Hermeto tinha acabado de compor) (...) Aí ele chegava e tocava no grave do piano, ou do teclado, ou
no que fosse, aí eu pegava a minha linha. Tá bom... Por último ele sempre fazia bateria e percussão.
Agora escreve isso aí, e todo mundo escrevia, agora vamos para frente. E ia de pedaço em pedaço.
Chegava no final do dia ele tinha feito um tremendo dum arranjo. Ele compunha a música e já fazia o
arranjo de uma vez só. (o grifo é nosso) (ITIBERÊ, 1998).
81
Em entrevista realizada por nós em 12/02/1998.
65
O mesmo espaço que servia aos ensaios do repertório do grupo, era dividido com
a criação e o arranjo de novas músicas. Não cremos que esta "coabitação" ocorresse à toa.
De acordo com o que o baixista Itiberê narra acima, podemos concluir que mesmo
que Hermeto eventualmente "já subisse a escada (que levava ao 2º andar de sua casa,
onde se realizavam os ensaios) com idéias na cabeça", estas eram apenas gérmes iniciais
cujo desenvolvimento era sempre inesperado. O saxofonista Carlos Malta disse em
entrevista à nós concedida, referindo-se à maneira como Hermeto compunha e arranjava:
"nós fomos seqüenciadores vivos para ele". Malta quis dizer que, parcialmente, os
músicos da banda funcionavam como gravadores (seqüenciadores) que reproduziam
aquilo que tinha acabado de ser criado por Hermeto. Instrumento por instrumento,
seqüencialmente, as músicas iam assim sendo feitas em tempo real. Com ou sem uma
idéia inicial pré-estabelecida, a criação partia improvisadamente. Neste caso, intérprete,
compositor e arranjador fundiam-se em um só indivíduo.
A improvisação ocorre no agora e tem como destino desaparecer ou permanecer
viva através do registro da partitura, de recursos audio-visuais, ou ainda, na memória.
O que distingue no caso de Hermeto, o território do improvisado em relação ao
composto à primeira vista parece ser somente a escrita. Ao ser "congelado" em partitura
pelos músicos, o devir improvisatório passava a ser composição. E a composição feita por
Hermeto para cada instrumento e depois anotada e executada pelos músicos, era por sua
vez tornada uma estrutura sobre a qual Hermeto e os músicos novamente improvisariam.
Porém, talvez seja mais próprio pensar num território distinto entre improvisação
e composição, a partir do papel que a escrita tem no processo criador. Ao registrar o que
era espontaneamente criado por Hermeto, seja para que instrumento fosse, a partitura
permitia um certo jogo formal, oferecendo uma gama de possibilidades no trato e
manipulação do material anotado, inclusive de modificações posteriores, que a
improvisação pura e simples dificilmente proporcionaria. Quem faz a distinção é o
próprio Hermeto:
- Porque eu faço na minha vida (...) praticamente uma música por dia, escrita. Então isso não
é improviso. Justamente para eu poder improvisar quando eu for tocar.
- Então a música que você toca está escrita?
- Não, a que eu toco não. A que o grupo toca, a que eles tocam está escrita, mas eles
improvisam muito também. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)
66
Por isso dissemos acima que a coabitação no mesmo espaço entre a criação e a
improvisação por um lado e a repetição do já feito, por outro, não ocorria por acaso. Pois
se a composição e o arranjo não eram estruturados de antemão pelo compositor, mas sim
criados improvisadamente durante os ensaios para depois serem grafados e se mesmo as
músicas depois de escritas, servirão por sua vez para futuras improvisações, tanto por
Hermeto como pelos outros músicos, o processo como um todo é caracterizado por uma
tendência constante e consciente ao inesperado e à surpresa.
Mesmo sofrendo a influência da escrita e destinando-se à técnica de um
instrumento específico, no processo de criação de Hermeto a improvisação será o alfa e o
ômega, sempre antecedendo e sucedendo o escrita.
Talvez agora fique mais clara a diferença entre o conceito de improvisação como
é entendido por Hermeto, em relação àquele praticado pelas escolas jazzísticas
americanas, da qual a dissertação de José Carlos Prandini, por nós comentada no cap. II, é
exemplo:
Porque a improvisação é uma coisa gozada. (...) O americano acha que a improvisação é
uma coisa preparada. E não é. É liberdade. (...) Eu gosto de improvisar, eu gosto de criar na hora. Eu
gosto de me surpreender para surpreender as pessoas. (...) Você sabe o que é novidade para mim? É
acreditar em si, acreditar sem medo. Não precisa premeditar. Se você cria não precisa premeditar.
Quem é um criador médio premedite, e quem é um criador solto não premedite. Tenha coragem, tenha
vontade de fazer. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)
A improvisação para Hermeto não se limita à construção de novas melodias sobre
um esquema harmônico pré-estabelecido, "o americano acha que a improvisação é uma
coisa preparada. E não é." A improvisação é um ato de coragem mais total que a mera
reinvenção melódica fazendo uso de escalas de acorde, é antes, um mergulho no
desconhecido. É ela ainda, que distinguiria para Hermeto, o "criador médio do criador
solto".
Dessa maneira, já numa das primeiras apresentações do baterista Márcio Bahia
com a banda, Hermeto pediu que o baterista simplesmente entrasse no palco e solasse
livremente usando somente a caixa da bateria... Em todos os shows de que participamos
neste período não houve um que não fosse pedido ao baterista praticamente o mesmo. E
não só a ele como também a todos os demais integrantes do grupo, pois os músicos se
alternavam improvisando tanto sem acompanhamento como acompanhados, neste último
67
caso, freqüentemente em "chorus" bastante longos. Neste sentido, é de se lamentar que
não haja um só disco ao vivo desta banda com Hermeto (como por exemplo, Hermeto
Pascoal ao vivo em Montreux, WEA, 1979) pois sua performance ao vivo era
completamente diferente da do estúdio de gravação. Ao vivo, o repertório gravado era
acrescido constantemente de improvisações criadas no calor do contato com o público. O
espaço para a improvisação individual dos músicos, bem como do próprio Hermeto, era
sem dúvida, mais plenamente exercido ao vivo que no estúdio de gravação.
Esse disco novo eu escrevi praticamente ele todo, escrevi as partes de cada um dos
instrumentos pro grupo todo. O espaço prás improvisações existe, mas é muito pouco. Eu acho que o
arranjo funciona mais no caso do disco. Quer dizer, eu penso isso agora. Antigamente não,
antigamente eu improvisava demais nos discos. Aí fui vendo, fui vendo, que pra improvisar é muito
melhor ao vivo. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1989)
No estúdio, Hermeto Pascoal & Grupo improvisarão menos e o compositor
trabalhará mais sua veia de arranjador, aproveitando as possibilidades proporcionadas por
recursos de gravação como o play-back, que o permite superpor um número maior de
instrumentos e vozes que ao vivo. Por isso, nos discos gravados desta fase, o band-leader
Hermeto será sempre o principal improvisador e solista, diferentemente do que ocorria ao
vivo. O pouco espaço para improvisações nos discos não pareceu contudo, ter
desestimulado os músicos. Por que?
68
3. 3. 3 A participação dos músicos no processo de criação
Talvez a verdadeira chave do total envolvimento dos músicos no processo de
ensaio e criação, esteja no próprio Hermeto e na sua maneira de ensinar, convidando o
intérprete a participar da música como um co-criador.
Eu não sou bem um professor do pessoal do grupo, porque eu também aprendo com eles. Por
exemplo, se eu ensino um negócio pro músico, eu não imponho a ele uma condição de fazer como eu
faço. Eu faço e digo "toca aí pra ver como é que você toca, como é que você sente isso". Aí eu dou
uma rebarbadinha em qualquer problema rítmico, uma coisa assim. Mas o sentimento do cara, esse eu
não quero mexer, interferir. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1989]
Por isso, os músicos da banda não eram somente "seqüenciadores", reproduzindo
como gravadores sem personalidade e sentimento as idéias de Hermeto, mas eram por
Hermeto encorajados a não só improvisarem como a buscarem seu próprio estilo:
Estar juntos, criar juntos, não quer dizer criar igual. Andar juntos sim, para criar, para formar
coisas. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1992)
Hermeto estimulava não a reprodução ou cópia de um modelo que podia ser ele
mesmo ou outro músico qualquer, mas a auto-descoberta estilística individual.
Mas, já que o processo de criação ocorria num espaço comum a compositor e
intérprete, até que ponto os músicos contribuíam com idéias para a criação ou
interpretação da música?
O baixista Itiberê resume a participação dos músicos e sua interação com
Hermeto, como um processo que exigia responsabilidade e maturidade por parte dos
intérpretes e que esse espaço foi sendo conquistado lentamente, à medida que cada
músico se desenvolvia. Hermeto era o líder, e a relação do grupo com ele marcava-se
naturalmente por um certo respeito somado à admiração. Nem por isso, devemos
imaginar um cenário estático constituído de dois diferentes patamares dispostos
verticalmente: o criativo (representado pelo compositor), e o meramente reprodutor
(constituído pelos músicos):
Não existe ninguém que toca e deixa tocar mais que o Hermeto. Ele é um criador, e um
criador só pode se dar bem com quem cria também. Agora, criar é sinônimo de responsabilidade. É
muito fácil você ser irresponsável tocando uma música livre. (...) Difícil é você tocar livre, ouvindo
69
todo mundo, procurando os espaços vazios para colocar as suas coisas, ouvindo harmonicamente, se
inspirando, conseguindo estimular quem está tocando do seu lado e ser estimulado pelo que você está
ouvindo. (...) A coisa veio acontecendo gradualmente, eu vim a ter responsabilidade, mas sem deixar
de criar. Então a cada disco que eu fazia eu ficava mais solto. Ele (Hermeto) em vez de escrever tudo
para mim, passou a escrever somente a cifra e assim foi com os outros também (os demais integrantes
da banda). (ITIBERÊ, 1998)
De acordo com o depoimento acima citado, podemos notar que ao longo dos anos,
os músicos foram ganhando espaço para a criação individual, traduzida em improvisação.
Pode-se notar esse aumento de espaço parcialmente através dos próprios discos. Se no
primeiro disco, o de 1981, nenhum dos músicos (com exceção de Hermeto) improvisa, a
partir do disco de 1984, o espaço e os "chorus" (trechos com determinado número de
compassos e harmonia pré-estabelecida), para algumas improvisações individuais
aparecerão. Porém, como já dissemos, este espaço foi sempre pequeno.
Na verdade, isso importa pouco, pois de acordo com o que foi exposto acima por
Itiberê, a própria performance, o ato de tocar em grupo era uma atividade criadora. A
prática de conjunto de Hermeto solicitava do intérprete bem mais que o simples
cumprimento de diretrizes estabelecidas a priori. Se determinados limites necessários à
manutenção da estrutura musical concebida por Hermeto eram mantidos, estes limites
não significavam, contudo, a exclusão das contribuições individuais de cada intérprete e
de sua participação performática e improvisada como co-criador. Neste sentido, o espaço
para os solos do grupo nos discos gravados no período por nós estudado parece ser
limitado somente em aparência. É a concepção de solo que parece inadequada.
Convencionalmente, solo significa um único instrumentista criando uma melodia sobre
uma base harmônica pré-estabelecida. No entanto, de disco em disco, os músicos da
banda de Hermeto adquiriram liberdade para interpretar as partes escritas por Hermeto
como se fossem elas mesmas, solos. Assim, a interpretação individual se integrava
organicamente a uma estrutura musical coesa, mas ao mesmo tempo aberta e permeável à
contribuição de cada músico.
Podemos pensar que sempre houve espaço para a criação individual na banda de
Hermeto também no que diz respeito aos arranjos das músicas. Como as partituras
revelam, há sempre um maior ou menor grau de criação dos músicos nas composições de
Hermeto. Em determinados trechos das partes, há somente a indicação de um estilo
(frevo, baião, marcha, etc.), cujas levadas e desenhos rítmicos seriam criados à vontade
70
do baterista. Na 2ª parte da música "Arapuá" por exemplo, enquanto piano, sax barítono
e baixo lêem as partes, o baterista está improvisando livremente na bateria.
Em todas as partes manuscritas que coletamos para baixo, piano, sax ou flauta e
bateria, raramente aparecem sinais de dinâmica. Ao anotar as idéias que Hermeto ia
ditando, os músicos se preocupavam mais em registrar os dados referentes à altura e
duração do que outros como dinâmica, articulação, fraseado, etc. Como, obviamente, os
músicos não tocavam na mesma dinâmica todo o tempo, o acabamento posterior destas
partes era em grande parte realizado pelos próprios músicos em ensaios, que podiam ou
não contar com a presença de Hermeto. Por sinal, tornou-se comum que, com o passar
dos anos, Hermeto subisse cada vez menos para ensaiar os músicos, à medida que estes já
possuíam uma metodologia, uma prática de conjunto eficiente e um repertório vasto para
trabalhar:
Esse grupo para mim é tudo que eu estou fazendo agora. É um pessoal que não mede vontade
de trabalhar, de tocar, de estudar. É uma família, e eu poderia falar sem parar sobre todos eles, todos
eles estão aqui no meu coração. Nós ensaiamos todos os dias de duas da tarde até oito, nove horas da
noite, menos sábados e domingos. Mesmo quando eu saio fica tudo programado, certinho. Agora por
exemplo, eu estou aqui e o ensaio tá rolando lá. (HERMETO, Jornal Catacumba, 1989)
Enquanto os músicos ensaiavam no segundo, as novas músicas eram compostas
(sem instrumentos) por Hermeto no primeiro andar. Assim, diariamente, novas partituras
chegavam para os músicos, silenciosamente postas por debaixo da porta do segundo andar.
Hermeto não subia porque queria improvisar e compor, mas os músicos estavam ensaiando.
Isso fez com que algumas vezes os músicos falassem entre si, em tom de brincadeira, ao
vê-lo chegando, "ih, lá vem o chefe atrapalhar nosso trabalho" (Malta, 1998).
71
Por outro lado, a manutenção constante de um repertório de muitas músicas, que
passou a independer da presença de seu criador, possibilitou que Hermeto abrisse uma
frente para si mesmo. Data daí, o início mais sistemático de composições para orquestra,
possibilitado pelo diminuição do tempo de trabalho com o grupo.
3.3.4 Considerações finais sobre a "escola" de Hermeto e o papel do Grupo na
consolidação da linguagem deste último
É importante observar que o aprendizado destes grupo de músicos não se restringiu
ao desenvolvimento estritamente técnico-instrumental. Hermeto queria ter ao seu lado não
só músicos que simplesmente executassem bem um difícil repertório, mas também
improvisadores e criadores. Do ponto de vista técnico, os integrantes da banda sem dúvida
aprenderam algo do Hermeto multi-instrumentista, pois ao longo dos anos a paleta sonora
do grupo será acrescida de novos instrumentos que os músicos foram somando aos que
tocavam inicialmente. Itiberê tocará além do baixo elétrico, tuba e piano. Malta, todos os
saxes e flautas. Jovino, além do piano e diversos teclados, flauta e flautim. Márcio irá
incorporar à sua bateria conjuntos variados de percussões como o jererê (um naipe de
tupperware82), campanas (címbalos) e pequenos sinos com diversas notas.
A "escola" não se resumiu a isso. O convite à criação por sua vez, frutificou
durante estes onze anos de convivência e estes intérpretes não só evoluíram nos
instrumentos que tocavam ao entrar no grupo, como aprenderam outros instrumentos,
além de se tornarem também, compositores e arranjadores. 83
Quando um músico entra no meu grupo, geralmente ele sabe tocar um instrumento. Pouco a
pouco, eu lhe encorajo a pegar outros, o que pode levar a trocar totalmente de instrumento. Em todo o
caso, isso só vai enriquecer sua criatividade. Praticar música implica em pesquisa e aprendizado
permanentes. Quando um músico integra meu grupo, eu quero que ele saiba bastante sobre música e
rapidamente ele perceberá que, na verdade, sabe muito pouco e tem muito a aprender. Ele não é
obrigatoriamente um compositor quando chega no grupo, mas em 2 ou 3 anos, ele será capaz de
escrever uma partitura de nosso repertório e, sobretudo, de voar com suas próprias asas, fazer um
disco solo. (HERMETO, Revista Jazz Magazine, 1984)
82
83
Acondicionadores de alimentos feitos de plástico.
Ver na discografia, os trabalhos-solo de Jovino Santos e Carlos Malta.
72
É necessário que façamos justiça ao papel que estes músicos tiveram para a
carreira do próprio Hermeto. Pois foi através destes aplicadíssimos músicos que Hermeto
pôde projetar-se definitivamente no cenário nacional e internacional da música popular,
consolidando e expandindo o lugar conquistado lentamente desde o "Gaio da Roseira"
em 1971. Além disso, acreditamos que Itiberê, Jovino, Pernambuco, Carlos Malta e
Márcio Bahia, não só possibilitaram que Hermeto realizasse sua concepção de forma
mais completa que antes, como também que estes mesmos músicos contribuíram com
suas bagagens individuais para a elaboração e realização das músicas do repertório.
Além do tempo diariamente dedicado ao ensaio de um repertório difícil - fator que
é sem dúvida um diferenciador desta formação em relação às anteriores à 1981, pois é
lógico supor uma certa proporção entre o aprimoramento técnico-interpretativo e o tempo
investido na prática e estudo - todos os integrantes do grupo (com exceção do
percussionista Pernambuco), além da formação popular, tinham pelo menos passagens
pela música erudita. Márcio Bahia foi percussionista de orquestra antes de ser baterista de
Hermeto e o saxofonista e flautista Carlos Malta tinha estudado com Celso Wotzenlogel
na Escola de Música da U.F.R.J. e com Paulo Moura na Escola de Música Villa-Lobos.
Itiberê e Jovino tiveram aulas de piano clássico e todos abandonaram a erudição para se
concentrar na música popular.
Este dado é importante, pois foi justamente a capacidade de ler e escrever música
fluentemente, somada, como já dissemos, ao talento e aplicação de cada um dos
integrantes da banda, à convivência diária e "semi-tribal" de compositor e grupo, etc.,
que os ajudou a manterem seu lugar na banda. A maneira como Hermeto compunha,
improvisando e depois pedindo que os músicos escrevessem o que ele acabara de criar,
exigia de fato uma escrita bastante rápida.
O fato de Márcio Bahia ter sido percussionista de orquestra antes de ser baterista
do grupo de Hermeto, tornou possível que Hermeto criasse as partes de bateria da
maneira erudita. A leitura fluente de Márcio somada à sua dedicação ao estudo, fez com
que Hermeto pudesse criar ritmos complexíssimos, como por exemplo um desenho "em
que o chimbáu está em tercina, o bumbo em semicolcheia e o prato em colcheia" (Jovino,
73
1997).84 As possibilidades que o novo baterista com formação popular e erudita pôs à
disposição de Hermeto, contribuíu sem dúvida, para a cozinha (baixo-bateria-percussão)
do grupo de Hermeto ter uma "cara" diferente das bandas anteriores à 1981.
Carlos Malta por sua vez, já tocava na época de sua entrada na banda, flauta e sax
soprano, o que, somado ao aprendizado posterior de outros instrumentos, permitiu que
Hermeto fosse aos poucos cedendo o lugar dos instrumentos de sopro da banda para
Malta, ao mesmo tempo que dedicava-se mais à composição.
Através deste grupo de multi-instrumentistas e com uma variada paleta sonora à
sua disposição, Hermeto pôde exercitar como nunca sua veia de arranjador. O trabalho
constante
nos
arranjos
instrumentais
do
Grupo
parece
ter
encontrado
um
desenvolvimento nas composições para orquestra. Esta nova frente na carreira do próprio
Hermeto, ocorreu simultaneamente à seu trabalho com o Grupo.
Concluindo, Hermeto Pascoal & Grupo, compositor e intérpretes, concepção e
realização, não podem ser entendidos satisfatoriamente se não verificarmos que sua
trajetória 1981-1993 foi uma via de mão dupla, cujo dinamismo alimentou trocas
recíprocas.
3.3.5 Fim de ciclo/começo de outro
Em 1993 se encerra o período que estudamos, com a saída de dois integrantes, o
pianista Jovino e o saxofonista Carlos Malta, que deixam o grupo de Hermeto para iniciar
carreira solo. Vemos suas saídas como uma conseqüência natural do crescimento
individual dos dois músicos. Mesmo que suas saídas tenham marcado o fim de uma fase,
para nós histórica na música brasileira, após respectivamente quinze e doze anos de
intensa convivência, troca e aprendizado com Hermeto, era justificável que Jovino e
Carlos Malta tenham sentido necessidade de construírem um espaço pessoal e comercial
próprios. Afinal, essa foi a luta do próprio Hermeto, desde as Rádios, passando pelas
boates e as gravadoras multi-nacionais, até alcançar merecido renome internacional.
84
Ver as análises no cap. V.
74
Em 1997, Jovino Santos grava nos E.U.A. com um quarteto instrumental seu
primeiro disco autoral, o CD Caboclo (Liquid City, 1997), ao mesmo tempo que divulga
a obra de Hermeto Pascoal, para duos, trios, quartetos, grupos de câmara, conjuntos
instrumentais acústico-eletrônicos85 e orquestras. Carlos Malta já gravou três discos solo
desde 1993, atuando ainda como intérprete com outros artistas brasileiros. 86
Ambos foram substituídos por outros músicos (André Marques - piano e Vinícius
Dorim - sax)87 e os demais intérpretes continuam tocando com Hermeto até hoje,
desenvolvendo paralelamente diversos projetos solo, onde atuam como intrumentistas
(Márcio Bahia) e arranjadores e compositores (Itiberê Zwarg).
85 Como por exemplo o grupo americano Bang on the Can, que gravou a música "Arapuá" de
Hermeto no disco, Cheating, Lying, Stealing. SONY, 1996, SNY 62254-2.
86 Ver discografia.
87 O flho de Hermeto, Fábio Pascoal, passou a integrar o grupo como percussionista a partir de
cerca de 1990.
75
4 - CONSIDERAÇÕES SOBRE ACÚSTICA E PSICO-ACÚSTICA
4.1 Um ruído constante
Vimos no capítulo anterior como a trajetória de Hermeto Pascoal - de Lagoa da
Canoa, passando por rádios do nordeste, regionais e casas noturnas no Rio de Janeiro e
São Paulo, até o Quarteto Novo e os discos no exterior - permitiu que o músico tivesse
diversas experiências profissionais, incorporando vários estilos e elementos musicais em
sua linguagem: música nordestina folclórica e popular (1936 - 1949); serestas, choro e
jazz (1950 - 1960); bossa-nova, samba, swing e música cigana (1961 - 1969).88 Vimos
também que Hermeto começou a ser reconhecido internacionalmente e a se legitimar
como instrumentista, arranjador e compositor, a partir de sua estadia nos E.U.A. em
1970/71.
Conforme verificamos, a linguagem de Hermeto sempre apresentava alguma
diferença na maneira como combinava códigos musicais e na inovação que operava sobre
eles. Desde o LP Quarteto Novo (1967), passando por Seeds on the ground (1970), até
seu primeiro disco solo, Brazilian Adventure (1971), o músico alagoano se destacava
permanentemente como um artista que já tinha uma maneira própria de tocar e conceber
música.
Se a linguagem de Hermeto, tal como foi apresentada desde seu primeiro disco
solo em 1971 não se limitava aos estilos com que o músico travou contato antes desta
data, nem a outros, como o jazz americano por exemplo, onde então devemos buscar as
fontes da concepção da linguagem constantemente transgressora de Hermeto?
Entendendo a diferença ou ruído como uma ruptura ocorrida tanto no nível
musical como no sócio-econômico,89 pudemos verificar na condição que Hermeto
ocupava como intérprete contratado por Rádios e boates, certos limites profissionais, que
o músico rompeu se tornando arranjador e compositor, além de instrumentista. Assim
sendo, a diferença da linguagem musical de Hermeto encontrava uma correspondência na
relação estabelecida por ele com a sociedade.
88
89
Esta lista é bastante abreviada
Ver Jacques Attali, op. cit.
76
Como bem observou a profª Dra. Elizabeth Travassos na defesa dessa dissertação,
"a rebeldia de Hermeto encontra uma justificativa nas tradições sócio-culturais de sua
própria vida, sobre as quais o músico exerce a experimentação. A tradição popular
nordestina da música como uma atividade artesanal e autônoma, com base nas unidades
familiares, parece explicar parcialmente a desconfiança de Hermeto com a tecnologia
("não vou fazer propaganda da fábrica de sampler", diz ele) e, principalmente, a rebeldia
constante frente aos donos de rádio, casas noturnas e gravadoras. Como resquício da
autonomia do sanfoneiro agricultor que não se enquadra como músico empregado,
Hermeto recusa ser mão-de-obra fácil para a indústria cultural. Da mesma forma ele
retoma a tradição de fazer música em família, opondo ao anonimato da mão-de-obra
empregada pela indústria, a formação de uma comunidade constituída através de laços de
vizinhança e parentesco com os músicos do grupo". Segundo Elizabeth Travassos, dessa
maneira o ruído da linguagem musical de Hermeto encontra uma correspondência na
relação estabelecida pelo músico com a sociedade: seria o espelho de um embate entre
modos de produção diferenciados, i.e., o artesanal e rural por um lado, e o industrial e
urbano, por outro. 90
Como um simulacro desta relação, o território musical traçado por Hermeto
adquire limites só aparentemente pouco claros, por não se filiar com exclusividade a
nenhuma escola, tendência ou estilo específicos, e nem a nenhum patrão. Mas não é por
isso mesmo que Hermeto define sua música como "música livre", ou ainda, "música
universal"? Como pudemos observar no capítulo anterior, a liberdade que ele reinvidica é
tanto estética como profissional:
Hoje em dia entendo que a mídia não alcança o trabalho sério. E isso no mundo todo. Por
isso grandes músicos se desesperam, como Herbie Hancock, Chick Corea, todos meus amigos, o
próprio Miles Davis. (...) Eles foram na onda. Como se o povo não estivesse gostando do que eles
faziam. Eu penso justamente o contrário. (...) estou com o povo que me quer. O povo que me quer é
aquele que não está procurando saber o que vai querer. É o povo que está querendo querer.
(HERMETO, Backstage, 1998)
90
Elizabeth Travassos lembra ainda de outra tradição que Hermeto parece dar continuidade: a dos
deficientes visuais músicos do Nordeste, como por exemplo os rabequistas, repentistas e cantadores como
Cego Oliveira, Cego Aderaldo, etc.
77
A retomada de tradições artesanais e rurais, mesmo que entendida num sentido
amplo - pois segundo Elizabeth T., Hermeto faz desta retomada um gesto de rebeldia
diante da indústria musical - não esclarece suficientemente, do ponto de vista musical, a
diferença de sua linguagem. Pois se por um lado ele continua sendo um artesão, ligado às
tradições sócio-econômicas do nordeste, por outro lado, no entanto, sua música não se
resume às influências da música popular de tradição oral. Sua insubmissão e rebeldia não
significaram, por exemplo, a opção musical pelo regionalismo de inspiração
nacionalista.91 No seu projeto de música "livre" e/ou "universal", o público-alvo é, como
diz Hermeto, "aquele que está querendo querer."
A abordagem marxista sugerida pelo texto de Attalli, que estabelece a luta de
classes como modelo geral de interpretação teórica, nos foi útil para verificarmos como
as tensões econômicas ocorridas dentro das hierarquias músico-profissionais serviram de
pano de fundo na trajetória de Hermeto. As atividades de intérprete, arranjador e
compositor (poderíamos acrescentar ainda, a figura do regente), constituem níveis
hierárquicos de legitimação dentro da música popular instrumental. Contudo, no que diz
respeito à remuneração na música popular em geral, o mais comum é que a situação
anterior se inverta. Ou seja, o intérprete passa a ocupar o alto da hierarquia econômica e o
compositor, a base, a não ser que este acumule também a função de intérprete de suas
próprias composições, o que ocorre com freqüência.
O caminho que Hermeto percorreu profissionalmente, acumulando as funções de
intérprete, arranjador e compositor, marcou-se por um conflito constante com seus
patrões, fossem eles donos de Rádios, boates ou gravadoras. O músico galgou estes três
níveis movido por uma contingência interna de ordem muito mais estética do que sócioeconômica, pois o caminho mais promissor do ponto de vista comercial não foi o
escolhido por Hermeto. Apesar de ser reconhecido internacionalmente e de ter tido várias
chances de morar no exterior e ganhar muito dinheiro - tocando com Miles Davis (!) por
exemplo - Hermeto sempre abriu mão do "estrelato subalterno", preferindo a via mais
difícil, mas que era a única que lhe satisfazia. Desenvolver seu próprio trabalho, sem
91 Já mencionamos anteriormente a posição crítica de Hermeto com relação à orientação
nacionalista de Geraldo Vandré durante o Quarteto Novo.
78
fazer concessões comerciais, que, ao mesmo tempo, lhe trariam status econômico e
social, lhe privariam de liberdade.
Novamente perguntamos então: a que se deve a constante diferença na linguagem
musical de Hermeto, verificada desde o início de sua carreira? Os estilos que o músico
tocou e assimilou antes de seu primeiro disco solo foram incorporados à sua linguagem,
mas esta sempre apresentava uma diferença que ultrapassava estes estilos. Por outro lado
seria absurdo lado achatar o projeto artístico de Hermeto, tomando-o como resultado de
uma ambição de ascensão social e ganho pecuniário, pois está claro que o
experimentalismo de sua linguagem musical anda na contra-mão do sucesso fácil e bem
remunerado.
Se não encontramos nos estilos que Hermeto tocou ao longo de sua carreira, nem
na dinâmica estabelecida pelo músico com a sociedade, justificativas que esclareçam
suficientemente sua linguagem musical, como então e onde, poderemos encontrar a
resposta para seu ruído e diferença?
Todos os integrantes do Grupo e o próprio Hermeto, apontam numa direção fixa:
a infância do músico alagoano.92
Como eu fazia? Na primeira vez [com 7 anos de idade] amarrei com barbante, e através de
um buraquinho, um ferrinho no outro. Só que não tinha som. De repente a imaginação me diz: Olha,
amarre com um arame fininho, porque ele não abafa o som. Segui a intuicão e comecei a bater os
ferrinho uns de encontro aos outros. Depois começei a descobrir música, fazer melodias.
(HERMETO, Backstage, 1998)
Quando eu era pequenininho tocando a oito-baixos, com 8, 9 anos de idade eu tava tocando
forró e era assim: meu irmão tocava e eu tocava pandeiro, depois agente revezava. Tocava para dançar
em baile, casamento e quando eu pegava na oito-baixos eu já "entortava" a oito-baixos. Aí muita
gente chegava correndo e dizia: tira esse galego aí, deixa o irmão dele tocar e ele toca pandeiro porque
ele (Hermeto) está tocando umas músicas muito doidas. Eu extraía dos ferros, das pancadas que eu
dava nos ferros, aquelas harmonias. (HERMETO)93
92
Todos os músicos são unânimes neste ponto. O baixista Itiberê acrescentou à busca de modelos
musicais nos sons da natureza e do cotidiano, a criação musical a partir de imagens, lugares e ambientes.
Como exemplo citou a música "Montreux" gravada no LP com o mesmo nome. Esta música foi feita por
Hermeto horas antes de ser tocada (e gravada) no Festival de Jazz de Montreux na Suíça. Hermeto estava
sentado de frente à janela de seu quarto olhando para o lago em frente ao hotel, e escreveu sem
instrumentos, em guardanapos que estavam sobre a mesa do quarto, a música que à noite seria tocada e lida
nos mesmos guardanapos, por Hermeto (na flauta transversa), Jovino (no piano) e Itiberê (no baixo
elétrico).
93 Em entrevista conosco realizada em 06/03/1999.
79
(...) Até os 14 anos fiquei em Lagoa da Canoa, (Alagoas) minha terra, em contato com a
natureza. Todo mundo acha que a natureza é só isso. Não é. Ela pode estar até mesmo dentro de um
carro, na Avenida Brasil, em hora de trânsito, com chuva. A natureza pra mim é tudo o que você vê
pela frente. É o cotidiano. (HERMETO, Backstage, 1998)
De fato, estas experiências combinando os sons harmônicos (da sanfona e das
flautinhas feitas de galho de mamona) e inarmônicos (dos ferros percutidos, dos bichos e
da natureza), parecem ter constituído modelos composicionais para a linguagem de
Hermeto, que são refletidos musicalmente de maneira consciente através de várias
"citações sonoras auto-biográficas". Ver por exemplo, a lista apresentada por nós no Cap.
I contendo a relação de vários sons de animais que Hermeto já utilizou em suas músicas.
Em relação aos sons de ferros percutidos, Hermeto já fez referência à eles diretamente na
música "Cores", que analisaremos mais à frente, além de compôr músicas, como a peça
"Ferragens", na qual as harmonias tentam reproduzir as sonoridades inarmônicas dos
ferros.
O pianista Jovino sugeriu no Cap. I, que a linguagem harmônica de Hermeto
freqüentemente superpõe tríades e outros elementos harmônicos de maneira não
funcional, por causa do mecanismo da sanfona de oito baixos que Hermeto utilizava para
tocar os sons inarmônicos de sua infância. Assim, segundo o pianista, Hermeto teria
desenvolvido uma linguagem harmônica própria, independente de escolas ou estilos
musicais, com que o músico só teria contato posteriormente durante sua carreira.
Verifiquemos então de que maneira determinadas experiências sonoras ocorridas
na infância de Hermeto podem ter influenciado sua linguagem harmônica e sua
concepção musical como um todo. É necessário que, antes de iniciarmos as análises,
aprofundemos algumas noções acústicas apresentadas brevemente no capítulo I, a
respeito dos sons harmônicos e inarmônicos. Estas noções serão utilizadas em diferentes
momentos das análises que faremos em seguida. Consideremos o fenômeno sonoro
acusticamente para depois relacioná-lo à música de Hermeto.
80
4.2 Tipologia espectral 94
No cap. I, dizíamos que a tipologia espectral do som pode ser compreendida
acusticamente de maneira tripartite: sons senoidais, harmônicos e inarmônicos. Com
exceção dos sons senoidais95 que não geram (pelo menos não teoricamente)96 parciais, os
espectros são definidos de acordo com a relação entre seus componentes, ou seja, a
freqüência mais grave e os parciais harmônicos e inarmônicos. Parciais são os termos que
denominam os componentes senoidais, de acordo com o tipo de espectro sonoro que
integram. Usaremos o termo 'harmônicos' em relação aos componentes senoidais dos
espectros sonoros harmônicos, e 'parciais inarmônicos' quando estivermos tratando dos
componentes senoidais dos espectros sonoros inarmônicos.
Da senóide até a massa indistinta dos ruídos, há uma gama grande de sons. Estes
integram um continuum sonoro, no qual em uma das pontas está o som senoidal - a
freqüência absolutamente definida do ponto de vista da altura (porque desprovida de
parciais) - e na outra ponta, o denominado ruído branco. O ruído branco ocorre quando
todas as freqüências que integram nosso âmbito auditivo estão misturadas muito
irregularmente. O ruído colorido corresponde a uma determinada banda ou região
frequencial filtrada do ruído branco. Assim, pode-se dizer que o som senoidal consiste no
menor segmento de um ruído branco ou num ruído de colorido extremamente estreito. 97
94 Ver Dennis Smalley em Simon Emmerson (editor). 'Spectro-morphology and structuring
process', The language of Eletroacustic music. London: Mcmillan Press, 1986, ps. 61 - 96.
95 Na tipologia espectral de Dennis Smalley, note proper. Op. cit.
96 A "pureza" senoidal tem um caráter algo abstrato, porque do ponto de vista de nossa percepção,
logo que as senóides vibram na atmosfera, elas são modificadas pelos meios de difusão sonora, as
condições acústicas do espaço e pelo nosso próprio aparelho auditivo.
97 Ver Stockhausen in Menezes (org.). Música Eletroacústica: história e estética. São Paulo:
Edusp, 1996. p. 63.
81
O Continuum senóide-ruído branco
/------------------------------/-----------------------------------/------------------------/
(som senoidal)
Senóides
(ruído branco)
Espectros
harmônicos
(ondas sonoras despro- (presentes na maioria
vidas de parciais
dos instrumentos musicais
obtidas apenas em
do Ocidente)
laboratório)
Espectros
inarmônicos
(instrumentos de
percussão, ruídos
orgânicos, da natureza e
cotidianos, 98 ou ainda
produzidos eletroni-camente, ruído colorido
e branco)
4.2.1 Espectros harmônicos
Os sons de espectro harmônico são aqueles em que os harmônicos relacionados a
uma determinada freqüência fundamental obedecem a uma mesma proporcionalidade.
Todos são múltiplos inteiros do som mais grave. A maioria dos instrumentos musicais do
Ocidente apresenta este tipo de espectro e a própria noção de som "musical" que vigorava
absoluta até o início do sec. XX, está intimamente relacionada às características
espectrais harmônicas. Estas características possibilitaram tanto o sistema modal como o
tonal, ao fornecerem a matéria sonora ideal para um discurso musical baseado
prioritariamente nas alturas.
No exemplo abaixo, o som nº 1 é a freqüência fundamental, e os demais números
são os harmônicos a ela relacionados: 99
98
Exemplos de ruídos orgânicos podem ser encontrados no som da respiração e do batimento
cardíaco. Na natureza, o som do vento, das ondas do mar, o farfalhar das folhas, os trovões e relâmpagos,
etc. Os ruídos cotidianos também são variados: o som dos carros, aviões, eletrodomésticos, o chiado da
televisão etc. Alguns dos sons de animais, máquinas e eletrodomésticos são harmônicos ou mesclas de
ruído e de sons com alturas definidas.
99 Pesquisas feitas em estúdio comprovaram que se retirarmos a freqüência fundamental de um
determinado espectro sonoro harmônico, mas mantermos os seus harmônicos, continuaremos a ouvi-la,
mesmo sem esta estar efetivamente presente.
82
Ex. 3: A Série harmônica
(a)
(b)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
131 262 393 524 655 786 917 1048 1179
Do2 Do3 Sol3 Do4 Mi4 Sol4 Sib4 Do5 Re5
131 262 392 523 659 784 923 1046 1175
10 11 12
13 14
15 16
1310 1441 1572 1703 1834 1965 2096
Mi5 Fa#5 Sol5 La5 Sib5 Si5 Do6
1319 1430 1568 1760 1855 1976 2093
A linha (a) mostra as freqüências dos harmônicos de Dó2 (a frequência fundamental), que
são obtidos multiplicando 131 (a freqüência em Hertz de Dó 2), por 1, 2, 3, 4 etc, até 16 (números
inteiros). Para fins de comparação a linha (b) lista as freqüências das notas próximas à estes
harmônicos no sistema temperado. Os harmônicos sublinhados em negrito tem afinação
imprecisa.100
Todos os sons de espectro harmônico estão baseados nas relações intervalares do
exemplo acima. O dó 2 fundamental (som 1), tem como harmônicos na seqüência: sua
oitava (harm. 2, Do3); depois sua 5ª
101
(harm. 3, Sol3); sua oitava (harm. 4, Do4); sua 3ª
maior (harm. 5, Mi4); sua 5ª (harm. 6, Sol4); 7ª abaixada (harm. 7, Sib4); oitava (harm. 8,
Do5); nona (harm. 9, Re5), e assim por diante.
Percebemos o som com espectro harmônico com uma altura definida,
correspondente à freqüência fundamental. Os harmônicos fundem-se nela apenas
modificando sua cor e timbre, que será claro ou escuro conforme o espectro sonoro tenha
mais ou menos harmônicos agudos.102
100
Exemplo retirado de Robert Cogan, Sonic Design. New Jersey: Prentice-Hall, 1976, p. 438.
A partir do 3º harmônico, os intervalos entre eles e o som gerador passam a ser compostos.
102 É a maior ou menor presença de harmônicos agudos, além de outros fatores que
mencionaremos, que distingue por exemplo, o timbre de uma flauta e o de um violino. No espectro sonoro
da flauta, os harmônicos agudos tem menos amplitude que os mais graves, ao contrário do que ocorre no
violino. Isto faz com que este último seja percebido como mais brilhante, e a flauta mais escura. Cf.
Menezes (org.) e Cogan, op. cit. p. 347 - 400.
101
83
4.2.2 Espectros inarmônicos
Nos sons inarmônicos, como os de sinos, carrilhões, ferros, objetos metálicos,
ruídos naturais e de máquinas, instrumentos de percussão etc., os parciais não mais
obedecem à proporcionalidade dos sons harmônicos, multiplicando a freqüência mais
grave não somente por números inteiros, mas também por números fracionários. Como
veremos a seguir, os parciais dos sinos não se fundem à freqüência mais grave da maneira
que ocorre nos sons harmônicos. Por isso, as alturas percebidas e o timbre ou cor do som
dos sinos são qualidades mais dinâmicas e mutáveis que no outro tipo de espectro.
No sec. XX, a estética hegemônica das alturas, prioritária dos sons harmônicos,
passou a ser questionada por diversas correntes, do ruidismo futurista de Luigi Russolo à
música concreta de Pierre Schaeffer, passando pela música eletrônica dos compositores
ligados ao Estúdio de Colônia, até a música eletroacústica e espectral. Contudo o uso
musical do ruído não foi um fenômeno restrito à experimentações ocorridas dentro da
música erudita contemporânea. A ruidificação da paisagem sonora foi um processo
verificado na sociedade moderna industrializada como um todo e na música popular
conseqüentemente, através do chiado do dial das rádios, agulhas de toca-discos e
televisão fora do ar, das transformações sonoras por síntese e digitalização postas à
disposição do público com a comercialização dos teclados eletrônicos, 103 dos pedais e
câmeras de eco, filtragem e distorção do som, do zumbido amplificado da guitarra
elétrica, das baterias de Escolas de samba, uivos roucos dos bluesmen, dos overtones
arranhados dos trumpetistas e saxofonistas, etc., etc., etc.
Antes de analisarmos como os sons inarmônicos foram incorporados à música de
Hermeto Pascoal, vejamos quais as características dos espectros sonoros de objetos
metálicos, tais como os sinos. Estas características nos serão úteis quando considerarmos
as experiências que Hermeto teve com os sons de ferros percutidos bem como suas
implicações estéticas.
103
O teclado sintetizador pioneiro foi o Yamaha DX-7 na década de 70.
84
Abaixo, os resultados da análise do espectro inarmônico de um sino Hemony,
fabricado em meados do séc. XVII na Holanda, apresentados por Pierce: 104
__________________________________________________________
Parcial
Relação com f p, ou freqüência percebida
Parcial residual
0.5 f p (uma oitava abaixo)
Primeiro
f p (freqüência percebida)
Terceiro
1.2 f p (uma terça menor composta)
Quinto
1.5 f p (uma 5ª composta)
Oitavo
2 f p (uma 8va. composta)
Nono
2.5 f p (uma 8va. composta mais uma terça maior)
O espectro acima é um pouco diferente daquele apresentado no exemplo 1 (o
espectro harmônico). Além de conter um parcial residual uma 8va. abaixo da freqüência
percebida (0.5 da f p), o espectro inarmônico do Hemony Bell apresenta também a terça
menor (3º parcial) e a terça maior (9º parcial) da f p. Apesar da distância entre os dois
parciais, o efeito de sua superposição pode ser percebido claramente. 105
Outro pesquisador a trabalhar com sons de sinos foi o compositor espectral
Jonathan Harvey. Harvey estudou o grande sino tenor da Catedral de Winchester que
emite uma poderosa nota secundária em 347 Hz (o Fá 3), com um forte elemento de
batimento.106 "Batimentos" resultam de duas ondas sonoras simultâneas com freqüências
ligeiramente diferentes.107 Os batimentos do som do grande sino tenor fazem com que
"suas vibrações possam ser ouvidas mesmo longe da catedral através de um efeito
trêmulo e pertubador" (Harvey, 1986). Este efeito ocorre como resultado da superposição
104
John R. Pierce.The Science of music sound. New York: W. H. Freeman and Company, 1983, p.
204. Não colocamos o exemplo em partitura porque o autor não especifica as freqüências envolvidas,
apenas a relação entre elas.
105 Esta característica dos espectros dos sinos fez durante muito tempo que os fabricantes
tentassem construir sinos que produzissem, como nos espectros dos sons harmônicos, a 3ª maior ao invés
da menor, ou das duas juntas, o que era ainda pior. Isto só se tornou possível muito recentemente, através
de pesquisas sobre a relação do formato do sino e seu espectro sonoro. Para detalhes ver The Science of
music sound, p. 203.
106 Cf. Jonathan Harvey em Simon Emerson, op. cit. p. 175 - 190.
107 Os batimentos são efeitos psico-acústicos que ocorrem diferentemente em cada registro
sonoro, dependendo ainda dos instrumentos ou fontes sonoras que estiverem os produzindo. Sobre
"batimentos" e efeito de "máscara", ver Cogan, op. cit. p. 370 - 385.
85
inarmônica dos parciais de Dó (a freqüência mais grave) somados aos de Fá (a nota
secundária de ataque), e dos batimentos ocorridos nesta superposição, como podemos
verificar no exemplo abaixo.
Ex. 4: Espectro do sino tenor da Catedral de Winchester108
No exemplo acima, os parciais de Dó 2 (freqüência mais grave) estão sobrepostos
aos de Fá 3 (nota secundária de ataque). Estes últimos estão assinalados no exemplo
dentro de quadrados.
Mais uma vez podemos notar nesta segunda análise espectral dos parciais
inarmônicos
dos sinos, a presença da 3ª menor e maior, 109 a primeira com maior
amplitude (volume). O espectro sonoro da nota secudária atacada (347 Hz ou Fá 3), se
sobrepõe ao da freqüência mais grave (Dó 2), proporcinando um efeito ainda mais
dissonante que o do Hemony Bell. Os módulos de oscilação dos parciais inarmônicos
tornam-se muito complexos no momento do ataque e somente à medida que o som
decresce e os parciais mais agudos diminuem em amplitude, podemos ouvir com clareza
a freqüência mais grave do espectro (a nota Dó 2), que é a última a extinguir-se. Este
efeito comum nos sons de sinos, címbalos, gongos e objetos metálicos em geral,
denomina-se efeito de "máscara" e consiste no ocultamento momentâneo da freqüência
mais grave por parciais com mais amplitude que ela mesma. Se nos espectros harmônicos
108
109
Ver Harvey, op. cit. p. 182.
A 3ª maior com altura aproximada.
86
a altura da freqüência fundamental é percebida clara e definidamente, nos sons
inarmônicos dos sinos, por sua vez, os componentes espectrais se distendem
diferentemente no tempo dificultando ou impossibilitando a percepção de alturas
definidas.
Por causa do tipo de envelope sonoro característico dos sinos (ataque seguido de
decrescendo longo110), as freqüências percebidas variam durante a extinção do som
(devido ao fracionamento inarmônico dos parciais e ao efeito de "máscara"), variando
por isso, consequentemente, a cor e timbre. O momento de maior luminosidade e
densidade textural ocorre justamente no ataque do som do sino e durante o decrescer
sonoro esta luminosidade pouco a pouco será escurecida, e sua massa compacta se
tornará mais transparente,111 até o "desmascaramento" completo do componente mais
grave daquele espectro.
Observe-se ainda que a inarmonicidade e o temperamento acentuadamente
imprecisos dos parciais do espectro do sino da Catedral de Winchester, ocorrem como já
dissemos, por que eles não estão numa relação de números inteiros. Assim, a "escala"
formada pelos parciais deste espectro inarmônico é diferente e muito menos temperada
que a encontrada nos espectros harmônicos (ver exemplos anteriores). Isto explica
também porque os sons harmônicos foram considerados até o início do sec. XX como os
sons "musicais" por excelência. Como a ênfase no sistema modal e tonal recaía sobre as
alturas era necessário um material sonoro que pudesse ser moldado e controlado pelo
compositor de acordo com o idioma musical vigente. Este material sonoro foi constituído
como já dissemos, prioritariamente por sons harmônicos, com altura precisa, cujas
exceções eram os intrumentos de percussão.
110
111
som.
"Open attack decay". Ver Smalley, op. cit., p. 69.
Ver a discussão sobre 'sinestesia' no cap. II, especialmente as implicações táteis-visuais do
87
4.3 Morfologia espectral 112
Dennis Smalley estabelece além da tipologia espectral acima apresentada, uma
morfologia correspondente, a partir das formas de ataque do som, que integram um
continuum temporal semelhante ao apresentado em relação às alturas (o continuum
senóide-ruído branco):
No primeiro estado, os ataques dos sons estão separados por pausas. No segundo,
estes ataques se comprimem e os sons passam a constituir um "objeto" único, sem
interrupções. Quando os ataques-impulsos tornam-se ainda mais compactos, passamos da
iteração para a percepção de grão, onde os ataques perdem quaisquer vestígios de
identidade separada. No estágio final deste contínuo temporal, a compressão é tão
extrema que as qualidades sonoras granulares adquirem outra morfologia, dando lugar ao
que Smalley chamou de estado eflúvio. 113
A tipologia espectral e a morfologia acima apresentadas integram um só termo espectromorfologia. As duas partes deste termo se referem aos espectros sonoros
harmônicos ou inarmônicos e as formas que estes adquirem no transcorrer do tempo morfologia.
4.4 O som unitário
A velocidade das vibrações, a multiplicação por números inteiros e fracionários
que os parciais harmônicos e inarmônicos operam sobre a freqüência mais grave, a maior
ou menor densidade com que os impulsos sonoros chegam ao ouvido são relações
temporais, que possibilitam à nossa percepção identificar tanto as diferentes alturas,
112
113
Ver Smalley, op. cit, p. 68 - 73.
"Effluvial state".
88
durações, timbres e intensidades, como a multiplicidade dos sons harmônicos e
inarmônicos. Como afirma Karlheinz Stockhausen no texto 'A unidade do tempo
musical':
(...) as diferenças da percepção acústica são todas no fundo reconduzíveis a diferenças nas
estruturas temporais das vibrações. (...) Às relações de vibrações aperiódicas que denominamos por
"ruído", correspondem (...) ritmos aperiódicos sem uma métrica reconhecível. Por isso, a assim
chamada dissonância no âmbito das vibrações corresponde à síncopa no âmbito das durações [os
grifos são nossos]. (STOCKHAUSEN em Menezes, 1996 : p. 142)
O que K. Stockhausen quer sublinhar é que a divisão tradicional dos quatro
parâmetros sonoros como entidades isoladas e estanques é arbitrária, já que psicoacusticamente os parâmetros são fenômenos inter-relacionados. O timbre está ligado à
altura, que está, por sua vez, relacionada à duração e esta à dinâmica ou intensidade.
Na tabela abaixo, consideramos os espectros e parâmetros sonoros vistos pela
lente comum do tempo:
89
Tabela de correspondências
Periodicidade
Aperiodicidade
Senóides e sons harmônicos
Sons inarmônicos
Ruídos orgânicos, da natureza, do
cotidiano e eletrônicos. Sons de sinos e
ferros percutidos, sons de animais, etc...
Sons com altura precisa
Instrumentos de sopro, cordas e metais
Padrões rítmicos binários, ternários,
quaternários, etc... (metro)
Instrumentos de percusão
Modelos poliritmicos, sincopes,
configurações ritmicas sem uma métrica
reconhecivel.
Predomínio de consonâncias e intervalos
temperados.
Predomínio de dissonâncias e intervlos
não-temperados.
Timbre e cor dos sons harmônicos
(os hamônicos multiplicam a frequencia
fundamental por números inteiros,
se fundindo a ela e apenas modificando
sua cor)
Timbre dos sons inarmônicos (os parciais
multiplicam a frequência mais grave por
números inteiros e fracionários resistindo à
fusão)
Dimensão harmônico-melódica
Dimensão coloristica
Dessa maneira, podemos interligar um fenômeno sonoro específico, por exemplo
o grão, com os diferentes parâmetros e espectros sonoros.
Do ponto de vista do timbre, o grão foi relacionado por Pierre Schaeffer à
aspereza e aos sons obtidos através do raspar e friccionar. 114
Do ponto de vista da altura, a noção de grão pode ser relacionada à aperiodicidade
(dissonância) das freqüências que constituem determinadas combinações harmônicomelódicas, bem como à disposição também aperiódica (fracionária), dos parciais dos
espectros sonoros inarmônicos.
Do ponto de vista da duração, o grão é percebido quando os ataques sonoros são
produzidos numa tal velocidade que os sons individuais perdem sua identidade, deixando
de ser impulsos separados ou quando os impulsos sonoros não possuem uma métrica
reconhecível estando combinados de forma muito irregular e compacta.
114
Pierre Schaeffer, Tratado dos objetos musicais. Brasília: Edunb, 1993.
90
O envelope sonoro da dinâmica de um som pode por sua vez contribuir para a
percepção de grão, como por exemplo no momento exato do ataque dos sons dos sinos,
quando os parciais inarmônicos ativados têm mais amplitude e o timbre é texturalmente
mais espesso.
A percepção de grão pode ainda ocorrer através de recursos instrumentais como
trinados, trêmulos, frulatos, rulos de percussão, figurações rítmicas rápidas (ataquesimpulos sem interrupção) e combinações texturais densas com saturação decorrente de
amplitude forte.
É a partir desta perspectiva sonora que consideramos a seguir a concepção e
linguagem de Hermeto.
4.5 A percepção ampliada de Hermeto
A terminologia acústica citada acima e as pesquisas sonoras feitas em laboratório
por compositores eruditos com sons de sinos, senóides e ruídos, provavelmente são
estranhas e desconhecidas por Hermeto, pois como já dissemos, a trajetória que o músico
seguiu até à descoberta dos ruídos dos animais e da natureza e dos complexos sonoros
inarmônicos dos ferros percutidos, bem como o uso musical que deles fez, não dependeu
do contato com correntes eruditas como a música concreta, eletrônica, eletroacústica e
espectral. Abordamos a terminologia acústica e as pesquisas de laboratório unicamente
com o intuito de nos aprofundarmos no universo sonoro percebido por Hermeto.
Dotado de uma audição acuradíssima, com ouvido absoluto, o músico alagoano
não só é capaz de relacionar com precisão as diferentes freqüências sonoras aos nomes de
suas notas musicais correspondentes, como também consegue ouvir dentro do som,
fazendo aproximadamente o que as análises espectrais acima apresentadas realizaram
através de equipamentos. É esta percepção ampliada que parece ter transformado as
experiências sonoras ocorridas na infância de Hermeto em modelos harmônicos,
melódicos, rítmicos e timbrísticos que o inspiram ao longo de sua vida madura e
influenciam constantemente sua linguagem musical.
91
Vejamos por exemplo, o início do 1º movimento da música "Ferragens" 115 feita
para piano-solo, na qual Hermeto tenta reconstituir a ambiência sonora dos ferros.
Ex. 5: "Ferragens" (1º compasso)
Note-se na mão direita, uma melodia que é uma série de dez notas diferentes,
harmonizadas por sua vez por acordes com 2as. ajuntadas, indefinidos do ponto de vista
tonal e com os quais as notas da melodia não configuram relação de funcionalidade. Ao
contrário, as relações entre harmonia e melodia neste primeiro compasso se aproximam
do grão e do ruído colorido.
Como já nos detemos suficientemente sobre a noção de grão, consideremos
brevemente o ruído colorido. Este é filtrado do ruído branco, no qual todas as freqüências
que integram o âmbito de nossa percepção, estão misturadas de maneira extremamente
irregular. A percepção de cor nos ruídos coloridos se dá porque os parciais que integram
seus espectros estão compreendidos numa determinada banda ou região freqüencial
(filtrada do ruído branco) e, apesar de estarem nela dispostos muito irregularmente e com
amplitudes diferentes, ainda assim podem ser percebidos como cor.
Relacionamos os complexos sonoros inarmônicos de "Ferragens" ao ruído
colorido, pois os espectros sonoros dos sinos e, dos ferros percutidos estão na fronteira
entre o som harmônico e o ruído. Como K. Stockhausen expõe a seguir:
115
Composta, mas não gravada no período que estudamos.
92
Cada som complexo [ou inarmônico] pode então, ser considerado de duas maneiras: por um
lado, como uma composição de sons parciais e, por outro lado, como um "ruído colorido".
(STOCKHAUSEN em Menezes, 1996 : 63/66)
O perfil harmônico constituído de 2as. maiores e menores ajuntadas (clusters) e
outros intervalos dissonantes de "Ferragens", a nosso ver se aproxima da
espectromorfologia do grão e dos ruídos coloridos, por causa dos batimentos provocados
por estes intervalos no momento do ataque dos acordes. Nestes "batimentos", as
freqüências estão próximas umas às outras e oscilam rápida e desigualmente,
ocasionando um efeito "trêmulo" semelhante ao som do sino da Catedral de Winchester.
A percepção de uma freqüência fundamental, por assim dizer, harmônica - do ponto de
vista acústico - que corresponderia às funções hierarquizantes da tônica no sistema tonal,
cede lugar em "Ferragens" à colorística dos espectros ruidosos e à morfologia dos grãos.
O envelope sonoro característico dos sinos (ataque seguido de queda longa)
também está presente em "Ferragens" pois os acordes da mão esquerda são arpejados
(atacados) uma única vez somando-se às notas da mão direita, também tocadas uma única
vez. O tempo de duração da última das três notas de cada grupo de tercinas será
prolongado à vontade do intérprete (fermata), assim como o acorde arpegiado pela mão
direita. Ambos soarão simultaneamente durante o decrescendo sonoro. O pedal do piano,
por sua vez, estará abaixado até o instrumentista passar para o tempo seguinte, de
maneira a garantir a sustentação e o prolongamento do som atacado pelas duas mãos.
Como vimos nos exemplos dos sons de sinos, os parciais multiplicam a freqüência
mais grave por números inteiros e fracionários, o que faz com que seus espectros sonoros
contenham a 3ª menor e maior e os intervalos entre os parciais sejam diferentes e muito
menos temperados que os dos espectros harmônicos. A presença simultânea da 3ª menor
e maior da freqüência mais grave por si só já abala a noção de tonalidade, pois é o 3ª grau
que define o estado dos acordes maiores e menores. O choque ou batimento de parciais é
incrementado ainda pelas das notas secundárias de ataque, que geram elas mesmas outra
série de parciais que se sobrepõe à da freqüência mais grave.
Algumas destas características podem ser constatadas em "Ferragens",
especialmente através dos complexos sonoros verticais presentes na peça, formados por
segundas maiores e menores e outros intervalos dissonantes, sobrepostos às notas
93
melódicas da mão direita, as quais, por sistematicamente não dobrarem as notas dos
acordes (da mão esquerda), parecem delas independer totalmente, assim como as notas
secundárias de ataque do som dos sinos. As tercinas fermatadas reforçam ainda mais este
efeito simulando o ritmo oscilante da freqüência mais grave somado às notas secundárias
de ataque. A primeira nota de cada grupo de tercinas corresponderia à nota mais grave
produzida o momento do ataque do som do sino e as outras duas seriam as notas
secudárias, que passam a reverberar ondulantemente depois do primeiro ataque. 116
"Ferragens" é um bom exemplo de como Hermeto percorre o contínuo senóideruído, combinando os sons inarmônicos aos sons de instrumentos convencionais e
criando um diálogo permanente entre os diferentes espectros. Neste caso, e em muitos
outros semelhantes, Hermeto realizará uma interseção, uma fusão entre os diferentes
espectros sonoros. Em "Ferragens" contudo, esta fusão é realizada apenas pelo piano. No
repertório que analisamos em seguida, o modelo de "Ferragens" é desenvolvido para os
outros instrumentos do Grupo.
Neste momento, a hipótese lançada por Jovino no Cap. 1, que serviu de pista em
nossa pesquisa ao mesmo tempo que sofria diversos acréscimos, será ainda mais
ampliada. O pianista sugeriu que a concepção harmônica de Hermeto encontra suas raízes
na infância do compositor, quando ele combinava as tríades e notas isoladas da sanfona
aos sons dos ferros percutidos. Vejamos como esta ferramenta harmônica específica foi
utilizada em "Ferragens".
Abaixo exemplificamos os poliacordes encontrados no primeiro e último tempo
do 1º compasso de "Ferragens".
116
O efeito de superposição inarmônica que os sinos exemplificam, se tornou possível a Hermeto
graças ao pequeno "carrilhão" de ferros pendurados em fila num arame, instrumento construído e tocado
pelo próprio músico quando garoto. Cf. entrevista citada no início do capítulo III.
94
Ex. 6: "Ferragens" (1º comp., primeiro tempo)
La 2, Do 3, Fa 3
e 4 (Fa m aior)
Re b 2, Sib 2 (Sib
m e nor inve rtido)
Neste exemplo, as duas tríades que integram o poliacorde se entrecruzam na
região média do piano (la 2, sib 2, do 3). Os clusters serão idiomáticos nesta peça,
fazendo o duplo papel de "máscara" sonora dificultando a percepção das alturas e de
sonoridades-limite entre harmonia e timbre.
Já no exemplo seguinte (1º comp., quinto tempo), as duas tríades que integram o
poliacorde estão mais separadas. O acorde formado pelas notas da mão esquerda sugere
Si menor com 7ª no baixo e 9ª menor (si, re, fa#, la, do) ou ainda Re maior com 7ª e 6ª.
Interessante notar que a terça maior de Si está na tríade da mão direita (a nota mib - ou
re# enarmônico), da mesma maneira que ocorre nos espectros sonoros de sinos, nos quais
a presença da 3ª menor e maior da freqüência mais grave é uma constante.
95
Ex. 7: "Ferragens" (1º comp., quinto tempo)
sol 3, sib 3 e m ib 4
(Mib m a ior)
si 2, re 3, fa# 2, la
1, do 3 (Si m enor
com 7ª e 9ª m e nor )
No primeiro, segundo e quarto tempos do compasso seguinte, podemos notar
diferentes tríades arpegiadas melodicamente.
Ex. 8:
Como estas tríades (Mi menor, Solb maior e Do maior) não estabelecem nenhuma
relação tonal entre si, nem com os acordes da mão esquerda, pode-se dizer que elas estão
em alguma medida camufladas na densa textura harmônica. Contribui ainda para a
descaracterização da sonoridade triádica as notas estranhas assinaladas dentro de
96
quadrados no exemplo acima, que são articuladas depois ou entre as tríades, soando
conjuntamente a elas.
Podemos perceber nos (poli)acordes da mão esquerda, algumas tríades
superpostas em posição cerrada. Nos dois exemplos abaixo, separamos as tríades e
enarmonizamos algumas de suas notas.
Ex. 9: (compasso 2, 1º tempo)
Ré m aior
+
Reb m a ior
(tétrade )
Ex. 10: (compasso 2, 2º tempo)
+
Fá dim inuto
(tétrade )
Dó m a ior
(com baixo e m m i)
O resultado destas superposições triádicas (e tetrádicas) na harmonia e melodia é:
no 1º tempo do 2º compasso, Ré maior + Réb maior (harmonia) + Mi menor (melodia) e,
no tempo seguinte do mesmo compasso; Dó maior + Fá diminuto (harmonia) + Solb
maior (melodia).
Quando Jovino se refere à presença constante de tríades superpostas na linguagem
harmônica de Hermeto, é difícil pensar como o resultado sonoro obtido pelo músico
alagoano pode ser não-convencional, já que as tríades são estruturas-modelo do sistema
tonal. No entanto, Hermeto não usa as tríades tonalmente, pois, inspirado nas sonoridades
inarmônicas dos ferros, batimentos provenientes das notas secundárias de ataque e
destemperamento acentuado, Hermeto combina as tríades de forma não-funcional, junto a
outras combinações interválicas como os acordes e fragmentos melódicos em 4as. e
97
trítonos, com segundas acrescentadas e suas inversões, sextas e etc., presentes em
"Ferragens".
Pode-se dizer que os espectros inarmônicos dos sons dos ferros e dos bichos, são
filtrados culturalmente pelo músico alagoano através das tríades. O fascinante é o
paradoxo da situação: elementos harmônicos simples como as tríades irão constituir
combinações harmônicas complexas, nas quais perdemos de vista seus elementos
originários. Estas combinações harmônicas formam um véu, uma máscara sonora que
desenha um tênue limite entre a linguagem e a concepção de Hermeto.
Concordando com o próprio compositor, Jovino reconhece determinadas
influências que as experiências sonoras com os ferros tiveram na linguagem harmônica
do músico alagoano. Devemos acrescentar a esta observação importante do pianista que
as influências das experiências com os sons inarmônicos não parecem ter se limitado à
maneira como tríades e outras combinações intervalares ocorrem na harmonia de
Hermeto. A nosso ver, as influências destas sonoridades podem ser verificadas também
nos aspectos timbrísticos-texturais, melódicos, dinâmicos e rítmicos da música de
Hermeto, pois a forma articulada pelos diferentes elementos de sua linguagem musical
está subordinada a uma concepção que engloba estes elementos.
O som é concebido por Hermeto de forma integrada. Os espectros e parâmetros se
relacionam como se fossem correspondências sinestésicas e espelhos uns dos outros.
Hermeto solfeja os ruídos e outros sons inarmônicos com seu ouvido absoluto,
classificando-os e utilizando-os como se fossem sons com altura precisa. Dessa maneira
ele filtra o grão do grito de um papagaio, dos latidos dos cachorros ou zurros de um
jumento, nele percebendo alturas exatas, que estavam no entanto ocultas na massa
"indistinta" daqueles sons de animais. Da mesma forma, Hermeto poderá fazer uma
música para naipe de tamancos, caçarolas com areia, conjunto de canos metálicos, água
percutida com as mãos, etc.
Pelo caminho oposto, o músico alagoano fará os instrumentos convencionais
serem eles mesmos produtores de mesclas de ruído e sons com altura definida - fazendo
por exemplo, o sax barítono tocar junto à esteira da caixa da bateria, tocando flauta e
berrante debaixo d'água, cantando dentro de uma chaleira, envolvendo as cordas do piano
com fita crepe e jornal, etc.
98
Apesar dos gérmes da concepção de Hermeto, bem como do ruído e diferença de
sua linguagem, serem encontrados primeiramente na infância do músico, é importante
ressaltar que as experiências sonoras ocorridas há décadas atrás em Lagoa da Canoa, são
permanentementes atualizadas por Hermeto nas cidades grandes. O ouvido absoluto, a
capacidade de percepção dos sons inarmônicos, ou seja, a percepção ampliada que se
evidenciou já na infância do músico alagoano, o acompanha onde ele estiver. Como
Hermeto afirmou na citação feita no começo deste capítulo: "Até os 14 anos fiquei em
Lagoa da Canoa, minha terra, em contato com a natureza. Todo mundo acha que a
natureza é só isso. Não é. Ela pode estar até mesmo dentro de um carro, na Avenida
Brasil, em hora de trânsito, com chuva. A natureza pra mim é tudo o que você vê pela
frente. É o cotidiano. (Hermeto, Backstage, 1998)
99
5. ANÁLISES SELECIONADAS
5.1 Breve descrição do repertório
Os diferentes aspectos que abordamos anteriormente em relação à concepção e
linguagem de Hermeto - como por exemplo a sinestesia, a abertura para o universo
sonoro inarmônico considerado tradicionalmente não-musical, as polirritmias e
assimetrias inspiradas no ritmo da fala e dos animais, as pesquisas com timbres e ruídos,
a linguagem harmônica poliacordal, a influência da música nordestina, a importância da
improvisação no processo criador, a irreverência e o lúdico, etc, aparecem em diferentes
momentos das análises que fazemos a seguir.
As primeiras cinco músicas que analisamos, foram gravadas no disco inicial de
Hermeto Pascoal & Grupo, intitulado Hermeto Pascoal & Grupo (Som da Gente, 1982).
Menos de um ano após a entrada de Carlos Malta e Márcio Bahia no grupo, o
repertório apresentado neste primeiro disco já revela um alto grau de coesão e nível
técnico-interpretativo. Verdadeiras tours de force são as músicas "Série de Arco" e
"Briguinha de músicos malucos no coreto". Na primeira, o músico mais exigido sem
dúvida, é o pianista Jovino Santos, seguido do baterista Márcio Bahia, mas em
"Briguinha", Hermeto não poupa nenhum membro do grupo.
"De bandeja e tudo" tem harmonia modal sobre um baixo ostinato em mi,
combinados à levada117 também sincopada e polirrítmica da bateria. Os acordes
construídos à maneira dos organa medievais, causam uma impressão solene e mística,
que se dissolve no solo virtuosístico de flauta de Hermeto, na parte central.
"Cores" é uma melodia tocada alternadamente e depois em uníssono, por sax,
violão flauta transversa e bombardino, em diversos andamentos, do lento ao andante.
Hermeto combinará os sons instrumentais aos sons de cigarras e uma placa de ferro
percutido, cujo espectro inarmônico o compositor transcreve para o piano no final da
peça. O título da música ("Cores") sinaliza ainda para a sinestesia som-imagem, por causa
117
'Levada' é um termo usado na música popular para denominar um determinado desenho
rítmico ou rítmico-harmônico que se repete durante trechos da música, servindo de base para temas e/ou
solos improvisados.
100
da dimensão colorística aberta pelo uso dos sons inarmônicos do ferro percutido e das
cigarras combinados aos instrumentos da banda.
"Magimani Sagei", ao contrário das outras músicas acima citadas, foi uma peça
feita na bateria, explorando este instrumento percussivo como se fosse melódico. As
peças do instrumento foram livremente reafinadas e a partir das notas obtidas, sete
levadas rítmico-melódicas foram criadas por Hermeto. O uso melódico de um
instrumento essencialmente rítmico, como ocorre na música "Magimani Sagei" é mais
um indicador de como Hermeto transita entre os diferentes parâmetros e espectros
sonoros, fazendo constantemente a travessia entre eles e os fundindo.
A música "Papagaio Alegre" foi composta em 1981 e gravada no LP Lagoa da
Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), o segundo de Hermeto Pascoal &
Grupo. "Papagaio Alegre" foi feita por Hermeto em um só dia, durante o ensaio com o
Grupo. Com linguagem harmônico-melódica modal e rítmica nordestina, depois de
gravada a música, Hermeto acrescenta o som do papagaio em ritmo de Coco.
( ca. 120)
"Arapuá" é do LP Brasil Universo (Som da Gente, 1985) e foi feita depois de uma
viagem à Europa, na qual foram adquiridos o sax barítono e o teclado DX-7. Hermeto
compôs esta música explorando os sons dos novos instrumentos, que conferiu à "Arapuá"
um caráter de estudo para sax e todos os outros instrumentos da banda. Por causa da
exploração dos registros graves, a música foi intitulada "Arapuá", uma abelha de
zumbido também grave.
"Aula de natação", do CD Festa dos Deuses (Polygram, 1992), é um exemplo do
que Hermeto chama de "música da aura". Esta consiste basicamente na noção de que a
fala é uma melodia não convencional, na qual o músico da aura percebe as alturas e
durações (a "melodia"), harmonizando-as à vontade. A "música da aura" seria a foto
sonora de uma imagem invisível aos olhos. Só a sensibilidade poderia captá-la.
101
5. 2 Partituras gráficas e convencionais
Nenhuma das músicas que analisamos, com exceção apenas de "Arapuá" e
"Papagaio Alegre" tiveram seus arranjos escritos em grades. 118 Isto se deve ao processo
de criação de Hermeto Pascoal & Grupo, em que as partes instrumentais eram compostas
seqüencialmente, uma após a outra, com cada músico anotando apenas sua própria parte.
Geralmente, Hermeto começava pelo piano ou pelos instrumentos de sopro, para depois
fazer baixo, bateria e percussão.
Determinadas partes instrumentais deste repertório não foram encontradas no
arquivo do compositor e mesmo as que o foram são, na maioria das vezes, esquemáticas.
Estas contêm, além das indicações relativas à altura e duração, outras rabiscadas nos
cantos de página geralmente fazendo referência às diferentes seções musicais, suas
respectivas convenções rítmico-harmônicas, etc. Escritas ou simplesmente anotadas, as
partes acabavam sendo decoradas por cada músico.
Por causa da oralidade que caracterizava o processo de criação de Hermeto Pascoal
& Grupo,
optamos por fazer partituras gráficas das oito músicas escolhidas para
análise.119 Estas representarão, aproximadamente, o resultado sonoro gravado em disco.
Nelas estabelecemos um eixo temporal de cada parte ou seção musical, sob o qual as
entradas instrumentais são assinaladas.
Usaremos os sinais abaixo retirados de Smalley (1986), para representar a
morfologia dos diferentes tipos de ataque sonoro:
118
As grades de "Arapuá" e "Papagaio Alegre" foram escritas pelo pianista Jovino Santos depois
deste ter saído da banda.
119 Por ser "Arapuá" uma música longa, e por termos a grade de seu arranjo (feita pelo pianista
Jovino), não fizemos sua partitura gráfica. Visando diminuir as lacunas deixadas abertas pela falta das
partes de todos os instrumentistas, além das partituras gráficas realizamos também algumas transcrições.
Listamos, no início de cada música analisada, as partes manuscritas originais coletadas com os músicos e
com o compositor.
102
Estes quatro estados morfológicos podem aparecer combinados ou ainda com
ligeiras variações. Como o tempo de duração da queda de um som varia de acordo com o
instrumento e com a intensidade do ataque, os ataques-impulsos separados podem
aparecer de diferentes maneiras, como por exemplo:
Além disso, nos sons sustentados como os dos instrumentos de sopro, a queda e o
perfil sonoro serão controlados pelo músico de forma diferente que nas cordas
dedilhadas, piano e a bateria. Diversas representações poderão ocorrer dependendo da
dinâmica empregada pelo intérprete:
Muito úteis para a análise das combinações texturais e timbrísticas, estes sinais
apresentam como desvantagem, no caso da música de Hermeto, a imprecisão na notação
das alturas. Apesar disso, através das partituras gráficas podemos verificar, ainda que
aproximadamente, como os parâmetros sonoros estão relacionados entre si. Esta relação
será completada, comparando as partituras gráficas às convencionais e extraindo das
103
últimas, exemplos musicais manuscritos por Hermeto e pelos músicos durante o período
estudado.120
As partituras gráficas assinalam ainda as improvisações feitas na gravação e não
registradas anteriormente pelos músicos.
Nestas partituras, indicamos verticalmente os instrumentos que participam da
música. Acima deles, temos o eixo do tempo que contém três informações principais: a
duração total das partes ou seções da peça; de segmentos menores e membros auxiliares
de forma; a mudança de uma parte para outra, ou outros eventos sonoros.
Exemplo:
Título da Música: "Série de Arco"
Duração total: 3.52 (Três minutos e cinquenta e dois segundos)
Forma: Ternária (A B A')
____________________ A _______________
____________________1.39 (tempo de duração da parte ou seção da música - A)
------------------- 0.16 ------------ (assinala a duração de partes menores da música)
0.00
0.16 (assinala o começo e final das partes e subpartes e membros
auxiliares de forma ou ainda indicações da partitura original e outras de interesse).
Abaixo das informações relativas aos tempos da música, temos um eixo
correspondente de dinâmica, que assinala as intensidades produzidas conjuntamente por
Hermeto Pascoal & Grupo durante a performance. Os sinais de dinâmica e acento podem
ainda ocorrer nas linhas individuais dos instrumentos, quando estes estiverem numa
intensidade diferente do todo.
Utilizamos ainda as seguintes abreviações:
120
Grupo.
Ver também o CD em anexo com as músicas utilizadas na análise gravadas por Hermeto e
104
. U.T. - Unidade de tempo
. c.
- Compasso
. c.1
- Compasso 1 ou 1º compasso
. c.1.1 - 1º compasso, primeiro tempo
. c. 1.1.1 - 1º compasso, 1º tempo, 1ª metade de tempo
. m.d., m.e - Mão direita e mão esquerda
5.3 - Análises musicais selecionadas
5.3.1 "Série de Arco", LP Hermeto Pascoal & Grupo (Som da Gente, 1982)121
Processo de criação: A música foi inicialmente feita para piano solo. A irmã do
pianista Jovino era ginasta olímpica e tinha que executar uma série coreográfica com
arco. De Jovino partiu a idéia de Hermeto compor a música para esta série de sua irmã.
Os dois foram para o ginásio ver a coreografia e Hermeto pediu que Jovino fosse
cronometrando o tempo de cada seqüência de movimentos. Com a duração de cada
seqüência dentro da série olímpica, Hermeto compôs depois em casa a 1ª versão de "Série
de Arco", para piano solo, peça-estudo que Jovino tocaria e gravaria para a coreografia de
sua irmã.
A partitura manuscrita de Hermeto mostra bem a sincronia desejada entre a
composição musical e a coreografia olímpica. As diferentes seções musicais são
indicadas na partitura por letras minúsculas (de 'a' até 'e') que sugerem uma
correspondência entre os tempos musicais e os coreográficos, anotados durante a ida ao
estádio. Esta correspondência é ainda importante para compreendermos a elasticidade de
sua construção rítmica e harmônica.
Os outros integrantes do grupo sugeriram ampliar a música em um arranjo para
todos e assim foi feito; a flauta foi o primeiro instrumento a ser acrescentado à parte de
piano solo, baixo e bateria foram os últimos.
121
CD SDG- 010/92.
105
Dados registrados em partitura: As partes de piano e bateria que Jovino e
Márcio ainda possuíam. As demais partes não foram encontradas no arquivo do
compositor.
Não tem armadura de clave, a exemplo das outras músicas de Hermeto que
analisamos, o que indica, no caso de "Série de Arco", que o idioma harmônico utilizado
pelo compositor não é tonal.
Forma esquemática: Ternária (A B A')
(U.T. ca. 40 em A)
Duração Total : 3.53
Instrumentação: Flauta, flautim, sax soprano, piano, harmônio, baixo elétrico,
bateria e percussão.
Partitura gráfica da música gravada:
p
mp
f
mf
106
mp
mf
f
mf
f
rrr...
"Série de arco" é praticamente toda escrita. Não há solos, no sentido atribuído ao
termo no jazz tradicional, ou seja, a criação (improvisação) melódica feita por um
instrumentista a partir de uma base harmônica pré-estabelecida. As dinâmicas das
diferentes partes da música não estão escritas e devem ter sido convencionadas oralmente
durante os ensaios que antecederam a gravação.
Os sons percussivos são utilizados com parcimônia nesta música e aparecem
relacionados a diferentes momentos de sua construção. Por exemplo, nos cs. 10 e 11 (ver
exemplo 16), enquanto a flauta executa trinados (em 2a. menor) em sua região mais
aguda, e o piano faz clusters também na região aguda e em trinados, a voz é usada
percussivamente com um som de "erres" (rrrrr), produzido na região aguda com a língua
107
tremulando rapidamente no céu da boca. O grão tímbrico destes sons frulados se combina
com os clusters do piano e trinados cromáticos da flauta (c.10 e 11), confirmando a
relação que fizemos anteriormente entre timbre, altura, duração, e intensidade, e de como
a percepção de grão ocorre nestes diferentes parâmetros.
Como podemos perceber claramente através da partitura gráfica, a forma textural
desta composição é crescente, o clímax ocorrendo na última parte (A'), de maneira
semelhante à maioria das músicas do repertório que analisamos.
"Série de arco" é um ótimo exemplo de como Hermeto trabalha com tríades e
poliacordes, pois eles estão presentes em quase toda a peça. Tal como a definição de
Persichetti, citada no Cap. I,
havia mencionado em relação à mudança rápida dos
poliacordes não politonais, os poliacordes de "Série de Arco", se modificam quase tempo
a tempo, gerando um ambiente harmônico extremamente fluido e movediço, relacionado
aos movimentos e ritmos coreográficos.
Podemos notar em A, já no c.1.3.1, em pedal em Láb (em desenho ostinato em
5as., lab, mib, sib na mão esquerda do piano + Sol maior e, em 1.3.2, Lá b + Do maior.
Em 1.4.1, Lab (lab, mib, fa, sol)+ Re maior (enarmonizando a nota solb) e, em 1.4.2, Lab
+ Dob maior:
Ex. 11: 1º compasso, trecho de 'a' (0'.00'' - 0'.05'')
O fator complicador da superposição triádica de "Série de arco" é a dificuldade
em se precisarem os acordes de cada combinação. Em determinadas situações
harmônicas, várias leituras são possíveis. Por exemplo, no terceiro tempo do 2º compasso
108
podemos considerar a nota si na mão direita como a terça do acorde de Sol maior, assim
como podemos também considerar a nota sol como a terça invertida de Mib maior. No
primeiro caso, o acorde de Sol maior estaria sobreposto ao de Ré maior (arpejado e
assinalado no exemplo em feixes), e, no segundo caso, teríamos Mib maior (com a terça
no baixo) na mão esquerda + Si menor com 7ª na mão direita. Preferimos esta segunda
possibilidade. No tempo seguinte do mesmo compasso (c. 2.4), o acorde na mão esquerda
(Mib maior invertido) permanecerá inalterado, enquanto a mão direita arpejará fa#, la, do,
re, fa bequadro.
Ex. 12: 2º compasso, continuação de 'a' (0'.6" - 0'.11")
O intervalo de 4ª acrescido de 2ª é usado melodicamente nos exemplos acima
(motivos assinalados em círculos). Nos exemplos a seguir, os intervalos de 4ª estarão
dispostos verticalmente:
Ex. 13: trecho de 'b' (0'.16" - 0'.19")
109
Ex. 14: trecho de 'c' (0'.32" - 0'.37")
No exemplo abaixo, os acordes quartais com 2ª ajuntada da mão direita são
transpostos uma 7ª maior descendente na mão esquerda, resultando um crescendo em
direção ao clímax de tensão de A com os clusters (tocados em trêmulos) da mão direita
no c. 10 e 11, exemplo 16.
Ex. 15: 8º compasso, continuação de 'c' (0'.37 - 0'.42")
110
Ex. 16: 10º e 11º compasso, trecho de 'd' (0'.47" - 0'.56")
O processo de criação de Hermeto se caracteriza pela adição sucessiva de
"camadas" instrumentais. Consideremos então, o segundo instrumento a ser feito em
"Série de arco", a flauta em do.
Na 1ª parte, este instrumento inicia em uníssono com a melodia do piano (c. 1 a
3). No c. 4 adquire maior independência rítmico-melódica com uma frase modal em sol
dórico.
Ex. 17: 4º compasso (0'.16" - 0'.19")
No c. 5, a flauta volta a ter o mesmo ritmo do piano, mas com outras notas e no c.
6 ocorre uma citação da música nordestina da juventude de Hermeto, com a escala de lá
mixolídio com 11ª aumentada, um modo "nordestino". A harmonia que acompanha o
fraseado modal da flauta, é poliacordal e estabelece uma relação bastante dissonante com
a melodia tocada pela flauta. Mi b maior com 2a. ajuntada na mão direita + Lab M
111
invertido (c. 6.1 e 6.3) e Mib maior + Sib M também invertido na mão esquerda (c. 6.2 e
6.4).
Ex. 18: 6º compasso (0'.27" - 0'.32")
O flautim é usado esporadicamente, dobrando a flauta 8va. acima.
Na 2ª parte, a flauta é substituída pelo sax soprano. A 2ª parte de "Série de arco" é
o momento de maior contraste rítmico-melódico entre sopros e piano. Os procedimentos
polirrítmicos ocorrerão entre piano, cujo ritmo o baixo geralmente dobra, sax e bateria. O
contraste timbrístico, com a substituição da flauta pelo sax, e a entrada de baixo e bateria,
e o tensionamento rítmico desta parte intermediária é sublinhado ainda pela maior
dinâmica sonora.
A 3ª parte é uma reexposição da 1ª, modificada pela entrada de baixo e bateria e
pelo aumento de velocidade do andamento. A música é finalizada com uma pequena coda
em estilo free jazz.
A correspondência desejada entre música e coreografia é um indicador da relação
imagem-som em Hermeto, que faz surgir em "Série de arco", uma escrita que tenta
representar a agilidade, fluidez e contrastes constantes da coreografia olímpica. Por isso,
os poliacordes varíam tão freqüentemente, assim como se alternam de maneira
igualmente rápida, as figurações rítmicas que subdividem a unidade de tempo (semínima
ca. 40) em 2, 3, 4, 6, 8, 12 e 16 partes.
112
Aos contrastes rítmicos correspondem determinados contrastes de altura. Por
exemplo, já nos dois primeiros compassos da música, o motivo em semicolcheias do
piano é constituído, como dissemos, de intervalos de quarta com 2ª ajuntada e tem
direção descendente, enquanto que as fusas do c. 1.3 e 1.4 e as quiálteras de doze tempos
do c.2.3 e 2.4, são estruturas poliacordais e tem direção ascendente (c.1) e alternada (c.2).
As direções dos motivos estão assinaladas com setas no exemplo abaixo:
Ex. 19: 1º e 2º compassos (0'.00" - 0'.10")
Assim, o diálogo que se estabelece entre motivos com diferentes direções passa a
ser um dos pontos focais da peça, diálogo este que encontra sua inspiração na alternância
e exploração coreográfica dos planos baixo, médio e alto.
Como o próprio modelo rítmico do piano, que foi o primeiro instrumento a ser
feito, é polirrítmico (ver por exemplo já nos primeiros dois compassos, o padrão em
semicolcheias na mão esquerda combinado a fusas e seisquiálteras na mão direita), os
113
outros instrumentos partilham e incrementam esta polirritmia. Principalmente a bateria, a
partir de sua entrada em B, ora executa simultaneamente os mesmos padrões rítmicos do
piano, ora faz um contra-ponto a estes, superpondo polirritmicamente divisões binárias e
ternárias. Observe-se que no exemplo a seguir, a acentuação no surdo ocorre de quatro
em quatro seisquiáteras, o que torna o desenho não apenas polirrítmico, mas também
polimétrico, por causa da superposição defasada dos quartos e oitavos de tempo de piano
e flauta, com os sextos de tempo - acentuados a cada quatro sextos - da bateria.
Ex. 20: A', 34º compasso (2'.26" - 2'.28")
A polirritmia em "Série de arco" faz com que os apoios rítmicos incidam
sistematicamente sobre diferentes partes de tempos dentro do compasso. As rápidas
mudanças harmônicas, os movimentos melódicos contrastantes e a polifonia polirrítmica
e polimétrica parecem estar relacionados à gestualidade elástica dos movimentos de
contração e expansão, ascensão e descida do solo coreográfico da irmã de Jovino.
114
5.3.2 "Briguinha de músicos malucos no coreto", LP Hermeto Pascoal & Grupo
(Som da Gente, 1982)
Processo de criação: Feita inicialmente para bombardino e acompanhamento,
com fraseado adequado ao instrumento. A primeira partitura manuscrita é para piano, a
mão direita fazendo a melodia, e, a esquerda, as cifras com divisão rítmica indicada.
Posteriormente Hermeto fez várias variações. Uma das variações é a 2ª parte canônica, e
a 3ª parte frevada.
Segundo o saxofonista Carlos Malta, a idéia desta 2ª parte surgiu durante os
ensaios, quando os músicos diminuíam o andamento para estudar mais lentamente as
difíceis partes individuais. A melodia composta originalmente em semicolcheias com
andamento rápido (U.T. ca. 100), ficava descaracterizada de sua vivacidade natural, pois
tinha que ser executada muito mais lentamente que em seu andamento original. Malta nos
relatou em entrevista que assim teria surgido a idéia de tocar a música em diferentes
velocidades. Hermeto teria gostado da idéia e assim concebeu a 2ª parte da música onde
cada integrante entraria tocando um depois do outro e as entradas sucessivas produziriam
uma espécie de stretto cujo efeito musical sugeriu finalmente o título da música.
Dados registrados em partitura: A partitura original de Hermeto consiste como
já foi dito, de harmonia com divisão rítmica indicada e melodia. Uma outra partitura para
piano, manuscrita pelo próprio pianista, com o desenho rítmico-harmônico da 1ª e 3ª
partes da música foi conseguida com o próprio instrumentista. Não temos a parte do
baixo, mas, na gravação, este instrumento acompanha os acordes do piano baseado nas
notas mais graves indicadas nas cifras. A bateria da 2ª parte está totalmente escrita,
enquanto que a 3ª parte é indicada na partitura do baterista apenas com a denominação
estilística FREVO. Segundo esta indicação, o baterista improvisa uma levada neste estilo.
Como dissemos no capítulo três, à medida que os discos se sucediam, indicações como
essa passaram a aparecer com mais freqüência para todos os integrantes do grupo.122
122
Márcio Bahia nos revelou em entrevista que durante os anos em que tocou com Hermeto, ele
(Márcio) foi gradativamente registrando levadas dos mais diversos ritmos. Estas levadas anotadas pelo
baterista passaram a integrar seu próprio repertório sonoro, constituindo um vocabulário partilhado por
compositor e intérprete.
115
Forma esquemática: Ternária (A A' A'')
Duração total: 4.48
Instrumentação: Bombardino, sax soprano, piano(s) acústico(s), baixo elétrico,
bateria, percussão (pandeiro, reco-reco), e voz.
Partitura gráfica da música gravada:
mp
116
mp
mf
mf
f
p
pp
Podemos verificar pela partitura gráfica que o grau de densidade tímbrico-textural
causada pela maior proximidade dos ataques sonoros instrumentais de A é diluída em A'
e incrementada em A". Isto ocorre porque na 2ª parte da música (A'), o tema é variado
por aumentação no bombardino.
As entradas sucessivas do mesmo tema à maneira de uma "fuga", deslocam as
linhas que em A eram simultâneas e paralelas e que, por isso, produziam textura
homofônica. Em A', as entradas em "fugato", defasadas umas quanto às outras por curtas
117
pausas, produzem uma
imagem trêmula com contornos que se entrelaçam
polifonicamente no tempo de maneira não convencional.
A parte A é executada por piano solo, bombardino e sax soprano na melodia e
outro piano no acompanhamento. O tema é constituído de duas partes:
Ex. 21: (0'.00" -1'.01")
118
Na 2ª parte, a mais extensa da peça, entra a bateria com desenho rítmico bastante
sincopado, juntando-se ao "cânone" com entradas individuais em stretto. Esta 2ª parte é
dificílima, pois os músicos têm que executar durante aproximadamente dois minutos
partes individuais complicadas ao mesmo tempo ouvindo cada um dos outros músicos, à
frente ou atrás do que estão fazendo. O resultado é uma polirritmia total cujo efeito
sonoro foi associado ao título da música: "Briguinha de músicos malucos no coreto".
Após esta 2ª parte, há uma breve 'convenção instrumental' 123 antes da reexposição
modificada do frevo da 1ª parte, agora acrescido de bateria e percussão (pandeiro), e
tocado em andamento ainda mais rápido que no início (U.T.= 120/130), num tutti
virtuosístico.
A parte original manuscrita por Hermeto, contém uma harmonia que só será
executada na 2ª parte da música. Na 1ª e 3ª partes, a harmonia gravada no LP é uma
variação desta parte manuscrita, e foi feita posteriormente pelo compositor. Dessa forma
123
'Convenção' é um termo usado na música popular para indicar um determinado trecho musical
geralmente curto, pré-determinado (convencionado) e executado por um ou mais intérpretes. A 'convenção'
funciona como abertura ou ligação entre as seções musicais.
119
podemos verificar que o resultado final registrado na gravação não era sequer imaginado
por Hermeto no início da composição de "Briguinha". O processo de criação e elaboração
musical de Hermeto Pascoal & Grupo, como verificamos no capítulo III, era sempre
dinâmico. Por isso, as partes das músicas que analisamos são esboços de um "desenho"
movediço e sempre defasado em relação ao que ocorria depois de serem escritas. Em
suma, o resultado final de "Briguinha" depende inteiramente de um processo dinâmico,
onde os músicos sugerem idéias às inicialmente lançadas por Hermeto, desta
comunicação surgindo a estrutura musical ternária e os arranjos gravados no LP.
5.3.3 "Magimani Sagei" LP Hermeto Pascoal & Grupo (Som da Gente, 1982)
Processo de criação: Ao contrário das outras músicas, "Magimani Sagei" foi
feita na bateria, explorando o instrumento melodicamente. O compositor e o baterista
afinaram as peças do instrumento, bumbo, ton-tons e caixa, em diferentes notas - do
registro grave ao médio. Sem preconceber as alturas desejadas, obtiveram uma
determinada seqüência "agradável aos ouvidos de ambos". 124 Em seguida, o compositor
sentou-se ao instrumento e começou a criar diferentes frases, que o baterista Márcio
Bahia ia anotando na partitura. Foram feitas ao todo sete frases rítmico-melódicas que
foram utilizadas como levadas. 125 O passo seguinte foi a transcrição das notas da bateria
para o baixo, que passa a tocar em uníssono com a bateria ou em outros momentos
respondendo a ela. Por último, foram compostos os sopros (flauta em dó e flautim), os
chocalhos e guizos da percussão e as convenções onde os músicos gritam
"selvagemente". No estúdio, foram acrescentadas as palavras "indígenas" inventadas pelo
técnico de gravação e os latidos dos cachorros foram gravados na casa de Hermeto,
depois da gravação feita em estúdio.
Dados registrados em partitura: Existem partes do baterista, da flauta e do
flautim. A estrutura geral da peça está representada em partitura com as diferentes
seqüências da bateria dispostas, como já dissemos, em riffs com o baixo. A melodia da
flauta se combina à estes riffs, num diálogo que ora os reforça ritmicamente, ora silencia
124
125
Conforme o baterista Márcio Bahia nos relatou em entrevista.
Estas levadas tornam-se 'riffs' a partir da parte A'.
120
enquanto bateria e baixo continuam. As partes contêm ainda "breques" instrumentais para
todo o conjunto, nos quais aparece a indicação "gritos".
Forma esquemática: Binária (A A')
(U.T. ca. 80)
Duração total: 4.46
Instrumentação: Flauta baixo, flauta transversa em Dó, flautim, flautas de
bambú, ocarina, cavaquinho, baixo, bateria, percussão (flecha, guizos, chocalhos, apitos),
voz, cachorros)
121
Partitura gráfica da música gravada:
e7
mp
mf
e4
mf
f
122
e7
mf
f
cre sce pouco
Essa é a música mais improvisada de todo o disco de 1982. A estrutura escrita
consiste somente de bateria, baixo, flauta e flautim. Todo o resto foi criado no estúdio.
Em trechos alternados da música, Hermeto sobrepõe aos ostinatos de baixo e bateria, três
cachorros latindo, o técnico Zé Luiz imitando um índio falando e considera tudo isso
como sendo a "base harmônica" sobre a qual as flautas de bambu, a flauta baixo e as
ocarinas estabelecem um diálogo improvisado. O timbre granulado dos latidos dos
cachorros Spock, Princesa e Bolão, as onomatopéias e gritos dos integrantes do Grupo
combinam-se com os frulatos, trinados e glissandos das flautas, num crescendo rítmicotextural que alcança o clímax no final da música com o desenho rítmico-melódico das
levadas 6 e 7.
Antes de apresentarmos as sete frases rítmico melódicas da bateria
(levadas), convém explicar a notação do instrumento empregada por Márcio Bahia:
123
Ex. 22
124
125
O tema de A' tem caráter percussivo e pontua as frases rítmico-melódicas da
bateria e baixo elétrico apresentadas em A (ver exemplos acima). As pausas constantes da
flauta e cavaquinho possibilitam o diálogo com baixo e bateria:
Ex. 23: A', (1'.44" - 2'.24" e 2'.54" - 3'.12")
Estes vinte compassos do tema ocorrem durante as quatro primeiras levadas da
bateria em A'. As notas pedais tocadas por baixo e bateria serão sib, fa, lab, sib. Somadas
ao modo de sib dórico (c. 1 a 11) e à escala de tons inteiros a partir de sib, tocada pela
flauta e terçada pelo cavaquinho (c. 15 a 20), teremos uma gama escalar mista e
126
alternada, onde à maior tensão intervalar - da escala de tons inteiros - corresponde uma
maior compressão rítmica (c. 15 a 20). A partir do c. 20, a flauta reforça os ostinatos
rítmicos da bateria, como podemos verificar no exemplo abaixo, quando a flauta reproduz
o desenho da levada 7:
Ex. 24: (4'.03" - 4'.31")
A estrutura formal binária de "Magimani Sagei" é construída por semelhança e
derivação. Na Parte A, as sete levadas da bateria são expostas seguidamente, mas na Parte
A', as levadas são dispostas em três grandes grupos: o primeiro é constituído pelas
levadas 1, 2, 3 e 4, acompanhadas pelo tema da flauta (exemplo 2). Depois do breque
instrumental, o segundo grupo é um ritornello do primeiro, para então, após novo breque
instrumental, termos o grupo final, com as levadas 5, 6 e 7, acompanhadas pela flauta em
desenhos rítmicos-melódicos ostinatos cada vez mais compactados (exemplo 3).
A flauta baixo, as diversas flautas de bambu, as ocarinas, os latidos dos cachorros,
os gritos e as palavras "indígenas", foram acrescentados em play-back pelo compositor e
músicos no estúdio. Os cachorros ou "cães vocalistas" (como são denominados no encarte
do LP), Spock, Bolão, e Princesa, foram gravados na casa de Hermeto e acrescentados
aos instrumentos depois de feita a gravação. As palavras "indígenas" (oirê, ôgorecotara,
tanajura, etc.) foram inventadas pelo técnico de estúdio Zé Luiz a pedido de Hermeto.
Todos os integrantes do grupo tocam apitos e eventualmente falam palavras desconexas,
fazendo sons onomatopaicos e gritando. O resultado alude ao tribal, ao ambiente e à
paisagem sonora da índia e cabocla Magimani Sagei, que dá nome à música. A cabocla
"Magimani Sagei" é um alter-ego de Hermeto e a ambiência sonora indígena da música
se relaciona, no imaginário do compositor, à sua infância em Lagoa da Canoa.
127
Porém o mais interessante é verificar como esta transferência ou projeção, para
usar o jargão psicanalítico, ocorre musicalmente. A rica exploração tímbrica presente em
"Magimani Sagei", que as partituras gráficas ilustram de maneira aproximada, demonstra
como as sonoridades harmônicas e inarmônicas convivem na linguagem musical de
Hermeto. O uso de sons de animais pelo músico alagoano representa um rompimento dos
limites convencionais do material sonoro harmônico, dito "musical". Mais que pitoresca,
a inclusão feita por Hermeto de sons de animais e outros sons não convencionais dentro
dos territórios musicais, representa ao mesmo tempo uma transgressão violenta e uma
reimersão prazerosa do particular - a música - no universal - o som. Em "Magimani
Sagei", esta reunião é alcançada através da festa dionisíaca, na qual o corpo é solicitado
para o movimento crescente da dança tribal que a música sugere.
5.3.4 "Cores", LP Hermeto Pascoal & Grupo (Som da Gente, 1982)
Processo de criação: Esta música foi encontrada casualmente no verso da
partitura de outra música de Hermeto. Foi inicialmente tocada por sax soprano e piano,
depois juntaram-se baixo e bateria. Progressivamente, diversas convenções instrumentais
foram criadas com base nesta partitura primeira, assim como as diferentes levadas de
cada parte. Depois de gravados os instrumentos, Hermeto acrescentou o som da cigarra
gravada no jardim de sua casa.
Dados registrados em partitura: Melodia, harmonia e ritmo antes da Parte final
(A’’’). Na parte do pianista, além de melodia e harmonia há indicações para cada parte da
música com divisão rítmica (B') ou, à maneira da bateria, apenas a indicação de um estilo,
no caso, o baião (B''). Ainda na parte do piano há um acorde que foi escrito por Hermeto,
a fim de reproduzir os parciais inarmônicos do ferro que é percutido em A’’’. A parte de
bateria é a mais detalhada de todas.
128
Forma esquemática: A B A' B' A'' B'' A’’’
(U.T. ?)
Duração total da música: 5.27
Instrumentação: Cigarra, bombardino, sax soprano, baixo, violão ovation, piano
acústico e elétrico, percussão e bateria.
Partitura gráfica da música gravada:
p
mp p
mp
p
mp
129
f
mf
mp
mf
f
130
Como podemos verificar pela partitura gráfica, o som da cigarra gravado por
Hermeto é complexo e percorre quase toda a gama dos tipos morfológicos que antes
abordamos. Inicia com ataques-impulsos separados por pausas curtas, passando pela
iteração até o grão, para finalmente se estender num som sustentado de altura perceptível.
O som da cigarra de "Cores" percorre o contínuo senóide-ruído de trás para frente, ou
seja, principia como ruído para depois tornar-se som harmônico.
A própria música no entanto seguirá o caminho oposto, i.e., estará mais próxima
do ruído na Parte final que é o momento de maior complexidade textural, timbrística e
harmônica. Hermeto nos disse em entrevista que gravou a cigarra por que seu silvo agudo
se parecia com o som produzido pelos amoladores de faca. A música foi finalmente
denominada "Cores", porque, segundo Hermeto, "o arco-íris tem a ver com o som da
cigarra, o arco-íris como visual e a cigarra como som. Cada cor tem várias tonalidades.
Quem tem a percepção de alcançar os sons da cigarra, os harmônicos", vê um arco-íris
sonoro "que passa pelas comas dividindo os semitons". Hermeto compara a percepção
auditiva dos harmônicos e parciais do som da cigarra (e do amolador de faca) às camadas
coloridas do arco-íris.
131
As seções gravadas em disco são variações da parte original encontrada pelos
músicos. A estrutura musical sugere a forma rondó, ao som da cigarra se seguirá sempre
o tema instrumental, que, a cada repetição, aparece variado.
A parte A (0'.0" - 0'.10"), introduz o som ligeiramente destemperado de uma
cigarra em la4 (aproximadamente), acompanhado por piano acústico. A cigarra foi
gravada por Hermeto em sua casa depois da música ter sido registrada no estúdio de
gravação. Interessante observar que a nota da cigarra é a 5ª do acorde de Re maior com 7ª
maior e 9ª, um pedal agudo que se choca com a nota lab do sax, que dá início à melodia.
Dissonâncias de 2ª aparecem em "Cores" sempre relacionadas às intervenções da cigarra.
Estas intervenções são acompanhadas ainda dos sons inarmônicos de sinos chacoalhados,
apitos e da placa de ferro percutida na Parte final. Contudo como a sensação de
dissonância depende em grande parte do contexto harmônico-melódico que ela se insere para não falar do contexto cultural - em "Cores", a reiteração constante do som da cigarra
e dos acordes dissonantes e sons percussivos inarmônicos que a acompanham, criará uma
ambiência harmônica bastante não convencional, mas que Hermeto faz parecer natural e
cotidiana.
A parte B tem andamento lento, sendo acompanhada por piano e solada
alternadamente por sax soprano (c. 1 a 3 - 0'. 11" - 0'.33" - e c. 10 - 1'.15" - 1'.22"), violão
ovation (c. 4 a 5 - 0'.35" - 0'.45" e c. 8 a 9 - 1'.03" - 1'.11" ) e flauta baixo (c. 6 a 7 0'.48" - 1'.01"). O tema é desmembrado coloristicamente (as entradas instrumentais
alternadas estão indicadas na partitura gráfica com setas), e a sucessão de timbres e
articulações instrumentais passa a constituir um dos ponto focais de interesse. A melodia
escrita é ornamentada com apogiaturas e bordaduras, em andamento lento e tempo
bastante flexível. A textura rarefeita se torna homofônica no c. 11 (1'.23'') com os
instrumentos tocando o fim do tema em uníssono. A harmonia do piano reforça o
contraste textural com acordes ricos em dissonâncias.
No exemplo abaixo, o tema tem caráter tonal. A 1ª frase apresentada nos cs. 1 a 3
servirá de material para a construção de todo o tema e está em Reb maior. O 2º c. da 1 ª
frase ligeiramente modificado em seu ritmo, é condensado e sequenciado nos cs.4 a c.7
durante a 2ª frase. A 4ª e última frase do tema (c. 14 a 16) apresenta como material novo
132
o ritmo em semicolcheias e o perfil angular e ascendente dos cs. 15 e 16 contrastando
com o perfil ondulado anterior.
A harmonia do tema não sublinha seu caráter tonal e foi escrita em cifras
encimadas pelo ritmo em que deverão ser tocadas. Explicaremos a notação não
convencional de algumas das cifras de "Cores" depois do exemplo a seguir:
Ex. 25: (0'.11" - 2'.08")
133
"Cores" cita sonoramente os germes da concepção musical de Hermeto - o som
dos animais e dos ferros percutidos (só faltou a música da aura, como veremos mais à
frente) - e demonstra como esta concepção foi traduzida em linguagem musical por
Hermeto Pascoal & Grupo.
Em vários momentos do tema (c. 2.3, 3.3, 5.4.1, 7.2 e c. 11 a 13), as cifras
aparecem dispostas umas sobre às outras. Este tipo de notação, que não existe na música
popular, nem no jazz, foi inventado pelo próprio Hermeto:
134
Ex. 26
c. 5.4.1
D
G5+
7
Ex. 27
A
F7
Nestas cifragens, o acorde inferior da cifra tocado pela m.e. conterá apenas uma
nota grave a partir da qual os intervalos assinalados são superpostos. Por exemplo, na
cifragem convencional, a cifra G indica a tríade de Sol maior, mas na cifragem utilizada
por Hermeto nos exemplos acima, 'G', se estivesse, como já dissemos, na parte inferior da
cifra, seria simplesmente a nota sol na mão esquerda. Se esta mesma letra 'G' estivesse
acompanhada de números (2, 4, 5-, 7+, 9-, etc.) ao lado, acima ou abaixo dela, estes
números constituiriam determinados intervalos a partir da nota sol. Já a parte superior da
cifra tocada pela mão direita pode ser anotada por Hermeto tanto da maneira
convencional como de acordo com a notação criada pelo músico.
135
No exemplo 26,
significa, na mão direita, a tríade de Re maior (re, fa#,la)
e, na mão esquerda, as notas Sol (o baixo), re# (a 5ª+ de sol) e fa (a 7ª menor). Importante
observar que estas combinações interválicas nem sempre são poliacordais, pois, em
alguns casos, Hermeto omite a 3ª do(s) acorde(s), o que não impede no entanto, que
caracterizemos tais combinações como
resultantes de superposições tríadicas
incompletas.
A razão destes tipos de combinação harmônica não serem comuns nos universos
da música popular brasileira e do jazz, pode ser encontrada nas relações interválicas
dissonantes das notas dentro dos próprios acordes e destas em relação às notas da
melodia. Os acordes dos exemplos 26 e 27 contém a sétima maior e menor
respectivamente dos baixos sol e fá, separadas por intervalo de nona menor. A presença
simultânea da sétima maior e menor e a dissonância provocada pelo intervalo de nona
menor que as separa no interior de cada acorde, são mais que suficientes para contrariar a
linguagem harmônica popular que considera convencionalmente tais combinações como
"erros" de harmonia.
Em passagens como a do exemplo a seguir, Hermeto, primeiro transpõe a mesma
estrutura interválica (c. 11), para depois escrever ambas as cifras de acordo com a
notação por ele inventada (c. 12). Note-se que a partir deste trecho, a melodia será
propositadamente tocado em uníssono por sax soprano, bombardino, flauta e violão,
depois de estes instrumentos terem se alternado, com exceção do bombardino, tocando
trechos do tema nos cs. 1 a 10. Ao constraste instrumental, ou seja, de timbre,
corresponde o contraste harmônico. Se nos cs. 1 a 10 as cifras não convencionais eram
esporádicas, no trecho abaixo elas ocorrerão a cada tempo:
136
Ex. 28: c. 11 e 12 do tema (1'.22" - 1'.44")
P oli-a cordes
transpostos
Cifra gem não conve ncional
tanto na s c ifra s infe riores
com o na s superiore s
Ide m
Depois de apresentado o tema, segue-se um trecho harmônico-melódico breve
que tem o caráter duplo de extensão da última frase do tema e ponte para 'A'. 126 Esta
passagem é importante porque apresenta parte do material harmônico que será utilizado
na Parte final, quando o som da cigarra e de uma placa de ferro, cujos parciais serão
transpostos para o piano, são sobrepostos ao tutti instrumental.
126
Na partitura manuscrita por Hermeto, este trecho aparece indicado simplesmente como 'Ponte'.
137
Ex. 29: (2'.08" - 2'.17")
Neste trecho, o sax soprano encabeça o naipe em bloco formado por violão,
bombardino, além de outro sax acrescentado em play-back, todos os instrumentos na
região grave. A melodia executada pelo sax 1 e dobrado pelo violão uma 8va. abaixo se
caracteriza pelo cromatismo e está, assim como as outras notas do naipe em bloco, numa
relação bastante dissonante com a harmonia de dupla cifragem.
A textura densa dessa ponte se dissolve em A', quando ouvimos novamente a
cigarra do início, com seu silvo agudo em la4 (aproximadamente). Sinos chacoalhados e
apitos somam-se aos acordes executados pelo primeiro e segundo pianos, tocados
respectivamente por Jovino e pelo baixista Itiberê. O piano elétrico toca a mesma
harmonia do exemplo anterior uma oitava acima, em síncopes, com o piano acústico que
toca em mínimas:
138
Ex. 30: (2'.18" - 2'.25")
B' tem andamento um pouco mais rápido que B e, nesta parte, entram bateria e
baixo. Bateria fazendo ritmo em fusas na caixa com o bumbo em contra-tempo. O baixo
em semínimas e colcheias (o mesmo ritmo do piano). Continua também o piano elétrico
que entrou na ponte para A', fazendo inversões da harmonia do piano acústico, sempre
em síncopes. O ritmo criado pelos dois pianos lembra o galope nordestino, e vira frevo no
final desta parte da música. A melodia é executada por sax soprano e dobrada à oitava
pelo violão do convidado Heraldo do Monte, e pelo bombardino de Hermeto. Novamente
um outro breque instrumental (A''), constituído do som da cigarra e acompanhado
somente de percussão e flauta baixo em stacatto, separa uma seção musical da outra.
Num crescendo rítmico contínuo, em B'', o baixo executa desenhos rítmicos mais
subdivididos que em B e B' e o piano acústico está em ritmo de baião.
139
Ex. 31
Em contra-ponto ao ritmo do piano, a bateria executa o desenho a seguir:
Ex. 32: (3'.32" - 4'.07")
O tema é tocado em uníssono por sax, violão e bombardino tal qual em B'.
Com andamento mais rápido que na parte anterior, e intensidade também mais
forte, a música chegará ao clímax e relaxamento subseqüentes na Parte final, o ponto de
maior complexidade harmônica, textural e timbrística de toda a música. Nesta parte,
ouvimos seguidas vezes o som da cigarra, que torna-se um pedal agudo em la4, sobre o
solo de bombardino improvisado por Hermeto. Inicialmente a harmonia possui o mesmo
material harmônico de A' (exemplo 5), uma seqüência de quatro acordes cifrados não
convencionalmente e com baixo pedal em do#:
140
Ex. 33: (4'.29" - 4'.36")
Em seguida, o primeiro destes quatro acordes é repetido uma 8va. acima durante
quatro compassos (4'.36" - 4'.50"). O acorde que o sucede foi escrito por Hermeto
transpondo para o piano os parciais do espectro sonoro inarmônico da placa de ferro que
é percutida em toda a Parte final e que Hermeto distinguiu com sua audição acurada.
Ex. 34
Este acorde é tocado com o seguinte ritmo, preparando o clímax posterior:
Ex. 35
f orte
141
Sobre esse ostinato do piano 1, reforçado pelo ritmo subdividido de frevo da
bateria improvisado por Márcio Bahia, ocorre o clímax de toda a peça. Todos os
instrumentos estão em dinâmica f ou ff, o sax acima da cigarra combina-se ao acorde do
piano 2 que é o mesmo do piano 1, transportado uma 8va. acima na mão esquerda e uma
8va. abaixo na mão esquerda. Note-se o deslocamento na acentuação natural dos tempos
que as síncopes instauram na linha do sax, do piano 2 e da placa de ferro.
Ex. 36: (4'.57" - 5'.10")
142
A música finaliza com um fade-out geral a partir do último acorde do exemplo
acima, quando ouvimos, pela última vez, o silvo da cigarra a capella.
"Cores" é um excelente exemplo de como Hermeto transita entre a harmonicidade
e a inarmonicidade espectral. As intervenções breves e repetidas da cigarra são
apresentadas durante a música somente com acompanhamento de piano (ou ainda de
instrumentos de percussão), como se Hermeto quisesse por em relevo o som e o timbre da
cigarra, em contraste com os timbres instrumentais.
Na Parte final, Hermeto finalmente unirá o silvo agudo e destemperado da cigarra
com os outros instrumentos. O não-temperamento da cigarra funciona como uma porta
para a inarmonicidade e ruidosidade finais. "Cores" é por isso, uma música em corrosão
contínua. O som da cigarra parece infiltrar progressivamente a irregularidade inarmônica
no tecido harmônico instrumental. E, importante observar, a escolha dos sons de animais
que Hermeto grava depois das músicas estarem prontas, não é gratuita. Cada som
produzido por um animal específico, se relaciona a uma música em particular, que guarda
143
com este som relações de similaridade e contraste. Esta relação em "Cores" é
exemplificada especialmente na maneira como Hermeto manipula o material harmônico e inarmônico - cifrado não convencionalmente. A mescla de nota e ruído da cigarra põe
em relevo o que ocorre na própria música.
5.3.5 "De bandeja e tudo", LP Hermeto Pascoal & Grupo (Som da Gente, 1982)
Processo de criação: Como a música "Cores", "De bandeja e tudo" é uma
composição feita por Hermeto anos antes e retrabalhada para o disco de 1982.
Originalmente era tocada no harmônio ao invés do piano. Na nova versão, baixo, melodia
e acompanhamento já estavam compostos anteriormente e a bateria foi o último
instrumento a ser utilizado.
Durante anos, esta música passeou pelo repertório de Hermeto, e o pianista Jovino
Santos foi guardando as partes dos diversos arranjos feitos. Uma destas partes é
justamente a variação que ouvimos no final da reexposição, da qual Hermeto já nem se
recordava mais. Com toda a música já gravada durante uma sessão no estúdio, Jovino
lembrou a Hermeto da antiga variação que os músicos apelidaram de "diabinhos", que foi
então acrescentada em play-back por piano, flauta e flautim.
Dados registrados em partitura: A parte de piano, em compasso 7/4, contendo
melodia e baixo na mão esquerda (tema com 16 compassos) e a parte de bateria. Não há
registro da harmonia da ponte entre os temas ou da harmonia sobre a qual Hermeto
improvisa na flauta baixo.
Forma esquemática: Ternária (A B A')
(U.T. ca. 110)
Duração total: 5.48
Instrumentação:
Sax soprano, flauta baixo, flauta em dó e flautim,, voz, piano acústico, clavinetes
(Jovino e Hermeto), guitarra, baixo, bateria, percussão
144
Partitura gráfica da música gravada:
p
p
mp
mp
mp
p
mf
mp
f
145
p
mp
mp
mf
mf
f
f
p
f
A introdução de quase um minuto de duração foi improvisada pelo amigo
nordestino Heraldo do Monte na guitarra e por Hermeto nas percussões. Esta introdução
tem três partes; a 1ª (0'.00'' - 0'.15'') e a 3ª (0'.55'' - 1'.03'') exploram um cromatismo
acentuado (cuja unidade mínima - o intervalo de 2ª menor - caracterizará também o início
do tema em Mi frígio de A e A'), enquanto que a 2ª parte desta introdução (0'.36'' - 0'.54'')
fará uma citação breve do nordeste através de escala mixolídia com a 11ª aumentada. O
ambiente cromático alterna diferentes dinâmicas e o suspense que inspira é
146
complementado por sons percussivos granulados produzidos pelo prato de bateria, apitos
e risadas guturais.
Construída parcialmente com material derivado do tema, a introdução criará o
clima para a entrada deste último, com o baixo oitavando a mão esquerda do piano, e
melodia no piano, guitarra e sax soprano.
Ex. 37: Tema, c.1 a 8 (1'.15" - 1'.45" e 2'.02" - 2'.32")
147
O tema (c. 1 a 4 e ritornello) tem inicialmente característica modal (mi frígio), e
cada nota, neste início e durante todo o tema (c. 1 a 8), é harmonizada por um acorde
cujas notas extremas são oitavadas, acrescidas da 4ª e 5ª justas (que Hermeto chamará de
1-4-5-8). Este acorde tem grande força, pois as notas que o constituem são harmônicos
bastante próximos (a 8º, a 5º, e como conseqüência de sua inversão, a 4º) da nota mais
grave (a freqüência fundamental). Sua sonoridade parece ter efeito imponente, solene e
místico, provavelmente por este acorde ter uma história longa dentro do vocabulário
148
musical do Ocidente. Ele se assemelha aos dos primeiros organa medievais, onde a voz
principal era dobrada à 5ª ou 4ª pela voz organal (vox organalis). Posteriormente as 5as.
seguidas foram consideradas erros no encadeamento harmônico renascentista, barroco e
clássico. Apenas na música moderna reapareceriam, com C. Debussy (em "La Cathédrale
Engloutie" por exemplo) e Erik Satie. Desde então, sua sonoridade típica e algo pesada
foi incorporada pelo jazz, e mais especialmente pelo rock, nos assim denominados,
"power chords".
Nos compassos 5 e 6, o baixo pedal permanece em mi (mi - si -mi), porém a mão
direita está em ré frígio, e nos compassos 7 e 8, em fá dórico. A superposição, mi -si
(baixo pedal na mão esquerda) + ré frígio e fá dórico (na mão direita), reforça a
tendência do idioma harmônico de Hermeto em trabalhar simultaneamente com pólos
distintos, neste caso modais.
A mão esquerda no piano é dobrada à oitava inferior pelo baixo elétrico, sempre
com desenho rítmico bastante sincopado e como já dissemos, tendo a nota mi como pedal
ostinato. A bateria acompanha piano e baixo com um único desenho rítmico em colcheias
no bumbo, caixa e contra-tempo, que se repete durante todo o tema, em contraponto com
os outros instrumentos. O tema é ouvido duas vezes na primeira e segunda partes, sempre
separado por uma ponte breve (não anotada no exemplo acima).
A seção central (B), a mais longa de toda a música, é um improviso de Hermeto
na flauta baixo, com harmonia simples e ritmo ainda em 7/4. Hermeto explora sua
habilidade na flauta, usando frulatos, trinados e diversos recursos multifônicos como
produzir notas com a boca e tocar simultaneamente.
Finalmente é reexposta a parte A, com andamento ligeiramente mais rápido e com
a superposição da já mencionada variação melódica no final, tocada pela flauta (os
"diabinhos"). O trecho abaixo é o momento texturalmente mais denso de toda a música,
reforçado pelas dinâmicas em mf e f além das tensões e dissonâncias harmônicomelódicas:
149
Ex. 38: (5'.14" - 5'.43")
150
Durante a música, Hermeto incrementa progressivamente a textura do tema,
adicionando em play-back, outras vozes que o dobram, à 5ª e 8va. Era comum por
exemplo Hermeto pedir para Carlos Malta, que depois de gravada a melodia escrita para
um instrumento transpositor, que o saxofonista tocasse e gravasse a mesma melodia sem
transposição, recurso que produz uma textura bastante densa, além de combinações
harmônicas não convencionais.
151
5.3.6 "Papagaio Alegre", LP Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da
Gente, 1984)127
Processo de criação: "Papagaio Alegre" foi feita em 1981, logo depois da entrada
de Carlos Malta e Márcio Bahia na banda. Foi composta e arranjada num só dia durante
um ensaio que durou até tarde da noite. Seu título original era, "Está bom de acabar, já
são dez horas", que foi o que Ilza, a mulher de Hermeto falou, pois o marido e os músicos
tinham se alongado no horário normal de ensaio. O papagaio foi gravado na casa de
Hermeto e acrescentado depois da gravação feita.
Dados registrados em partitura: As partes de cada músico foram dispostas em
grade, pelo pianista Jovino Santos. Na grade feita por Jovino aparece uma linha para
bombardino não gravada no disco.
Forma esquemática: Ternária (A B A')
(U.T. ca. 80)
Duração total: 5.29
Instrumentação: Sax tenor, bombardino, piano CP 80, baixo elétrico, jererê e
triângulo.
127
CDSDG- 011/92.
152
Partitura gráfica da música gravada:
mf
pa pa pa pa pa ga io
f
(idem )
(ide m )
mf
cres ce
f
(sons va ria dos de papa gaio)
153
f
p
A música se inicia com o som do papagaio de Hermeto aproximadamente na nota
si3, cuja célula rítmica sincopada (3 colcheias pontuadas, uma colcheia, uma
semicolcheia e duas colcheias) recorda o côco nordestino. (0'.00" - 0'.02"):
Os acentos ritmados do som do papagaio combinam-se com os instrumentos do
Grupo durante a música, como a partitura gráfica acima exemplifica.
O tema 'a' tem característica modal e Hermeto utiliza o modo (nordestino)
mixolídio de Sol com 11ª aumentada, cuja estrutura interválica também apareceu em
"Série de arco" (c. 6) e "De bandeja e tudo" (introdução 2). Note-se o contraponto que a
linha do baixo faz com a melodia principal tocada pelo sax tenor e oitavada pelo flautim:
154
Ex. 39: (0'.10" - 0'.26")
155
O tema 'b' é constituído das mesmas notas que 'a', mas o pólo escalar incide sobre
a 4ª aumentada de sol, ou seja, a nota dó #. Passamos de um modo nordestino para a
escala superlócria, uma escala exótica. 128
128
Ver Vicent Persichetti, op. cit., p. 42.
156
Ex. 40: (0'.26" - 0'.42")
Note-se no 2º tetracorde (a partir da última nota do 1º tetracorde) da escala
superlócria, os intervalos consecutivos de 2a. maior que conferem à esta gama intervalar
uma sonoridade semelhante à escala de tons inteiros.
157
Ex. 41
'B' contrasta com 'a' não apenas do ponto de vista da altura (das diferentes escalas
que contituem estas seções do tema), mas também no tocante ao ritmo e ao timbre. Em 'b'
o ritmo do flautim, sax e piano é contituído basicamente de colcheias, enquanto que, em
'a', as semicolcheias estão mais presentes. A partir de 'b' e reforçando a atmosfera
"exótica" estabelecida pela escala super-lócria, o baterista Márcio Bahia toca o jererê,
com desenhos rítmicos ostinatos em semicolcheias.129
Em 'c1', o contexto harmônico novamente é modificado. O baixo encontra-se em
Do mixolídio com a 11ª aumentada, enquanto o piano acrescenta à gama mixolídia em
Do, a 9ª menor e a 9ª aumentada (reb e mib). Este trecho é o auge da compactação rítmica
do tema. O piano dobra o desenho rítmico do flautim e do sax soprano enquanto que o
baixo tem maior liberdade rítmico-melódica, mudando ainda seu registro para uma 8va.
acima.
129 "Papagaio alegre" é a primeira das músicas que analisamos que utiliza sonoramente os
domésticos tupperware, acondicionadores de alimento feitos de plástico. Ao levar camarão dentro dos
tupperware para a casa de Hermeto, um dia, o baterista Márcio estava casualmente conversando e
batucando nas embalagens já esvaziadas de seu conteúdo. Hermeto gostou do som e assim um conjunto de
tupperware de diversos tamanhos foi constituído. Márcio chegou a ter vários destes pendurados ao lado de
sua bateria durante o período 1982-1992, incorporando-os definitivamente à sua bateria combinada com
arsenal percussivo. O instrumento foi batizado de jererê. Exemplificaremos a sua escrita na música a
seguir, "Arapuá", onde este instrumento também foi utilizado por Hermeto.
158
Ex. 42: (0'.43" - 0'.58")
159
A escala formada pelas notas de piano e baixo em 'c1' é denominada simétrica ou
simplesmente semi-tom, tom, semi-tom:
Ex. 43
'C2' será o clímax textural de todo o tema com quatro camadas distintas, enquanto
que do ponto de vista rítmico representa um afrouxamento de 'c1', apresentando
figurações também em colcheias, além de semi-colcheias. As notas de baixo e piano (m.d
e m.e.) permanecem relacionadas à escala simétrica de 'c1', mas o sax tenor apresenta um
desenho triádico e ascendente muito interessante:
Ex. 44: (0'.59" - 1'.15")
160
O contexto harmônico do exemplo acima é o mais dissonante de todo o tema. O
baixo está em Do mixolídio com 11ª aumentada, o piano na escala simétrica de Do,
enquanto que o sax tenor sobe em arpejos de tríades sucessivas (que se originam da nota
la; la, do, mi, sol, sib, re, fa#, la) e desce na escala simétrica. Os arpejos sucessivos do sax
161
introduzem as tensões de 9ª e 13ª em relação ao baixo em Do mixolídio com 11+,
enquanto que a escala simétrica, contém a 9ª menor e aumentada de Do, além da 13ª:
Ex. 45: (0'.59" 1'.07")
La m enor
Sol m e nor
Re m aior
Separada de A por uma rápida convenção instrumental antes apresentada na
introdução, onde destacam-se os ataques do som do papagaio em ritmo de côco e na nota
si, a seção central (B) de "Papagaio alegre" é um improviso de Hermeto na flauta
transversa sobre uma harmonia simples e levada de forró. Depois do improviso, a parte A
é reexposta de maneira abreviada (sem a repetição de 'c1' e 'c2'), e na coda ouvimos
novamente o som do papagaio a capella.
5.3.7 "Arapuá", LP Brasil Universo (Som da Gente, 1986)130
Processo de criação: Feita para os instrumentos recém-comprados - dentre
outros, o teclado DX-7 e o sax barítono - após viagem em turnê para a Europa. Hermeto
pretendia com "Arapuá" explorar os recursos e sonoridades destes instrumentos. O
compositor, no entanto, acabou preferindo o piano acústico ao teclado eletrônico, mas o
sax barítono foi mantido. O piano e o sax barítono foram os primeiros a serem feitos,
durante os ensaios coletivos. Logo em seguida vieram o baixo e finalmente, percussão e
bateria.
Essa é uma das composições mais atonais de Hermeto. Segundo o pianista Jovino
as notas de sax, piano e baixo não estão numa relação de funcionalidade, mas de
130
CDSDG- 012/93.
162
complementaridade textural. Segundo Jovino, Hermeto foi formando os acordes iniciais
de "Arapuá" com sonoridade quartal, pensando em cada nota como um complemento
tímbrico à textura do todo e não do ponto de vista funcional.
É importante ressaltar o caráter de estudo que "Arapuá" tem. Ao escrever uma
música especialmente para o sax barítono, Hermeto fez dela um exercício técnico
explorando toda a tessitura do instrumento e mais especialmente, a região grave.
Mas não só a parte do saxofonista Carlos Malta era difícil. Na 1ª parte por
exemplo, o baterista Márcio Bahia substitue as peças da bateria pelo jererê, instrumento
criado por Hermeto com acondicionadores plásticos de alimento de diferentes tamanhos.
Depois de gravada a música, a textura de piano, sax barítono e baixo, todos na
região grave, foi associada por Hermeto à abelha Arapuá, de zumbido também grave, que
acabou por emprestar seu nome à música.
Dados registrados em partitura: Toda a grade do arranjo,131 a transcrição do
solo improvisado de sax soprano, as partes de jererê e bateria.
Forma esquemática: Ternária (A B A') / U.T. ca. 160
Duração total: 6.38
Instrumentação: Piano, sax barítono, sax soprano, berrante, baixo, bateria,
percussão (jererê) .
Descrição do resultado gravado:
131
Reconstituída pelo pianista Jovino Santos.
163
A
B
A'
_______________________7.35______________________________
------3.30 ----0.00 - 03.30
Sax soprano
Sax barítono
Harmônio
Piano
Baixo
Percussão (jererê)
----- 1.37 -----3.31 - 5.06
Solo de berrante
Sax barítono
Piano
Baixo
Bateria
----- 2.28 ---5.07 - 7.35
Sax soprano
Sax barítono
Harmônio
Piano
Baixo
Bateria
A música consiste basicamente de três grandes seções. A 3ª é uma reexposição da
1ª variada pela substuição do jererê pela bateria, e a seção central é uma levada em 6/4,
na qual Hermeto improvisará um solo no berrante de boi tocado debaixo d'água.
Esta forma ternária com a seção central improvisada, ocorre também em outras
músicas que analisamos, como por exemplo "Série de Arco", "De bandeja e tudo" e
"Papagaio alegre". Em "Arapuá" no entanto, Hermeto não se contentará em improvisar no
berrante somente na 2ª parte, improvisando virtuosisticamente no sax soprano também
durante a 1ª e 3ª partes.
O jererê é de uma dificuldade extrema, por causa do andamento rapidíssimo e da
sincopação. As diferentes configurações rítmicas estão distribuídas nas diferentes peças
do instrumento, como se este fosse um instrumento melódico. Esta aspecto da escrita de
Hermeto para percussão e bateria é fundamental para a compreensão da particularidade
do estilo do compositor e tem como exemplos não só "Arapuá", mas também "Série de
Arco", "Briguinha de músicos malucos no coreto", e, principalmente, "Magimani Sagei",
além de outras composições de Hermeto. Sempre questionando as fronteiras entre os sons
harmônicos e os inarmônicos, Hermeto pensará a bateria rítmica e também
melodicamente.
Do ponto de vista da textura, esta música alterna trechos monofônicos, polifônicos
e heterofônicos. O início da 1ª parte tem textura monofônica, piano, baixo e sax barítono,
estão em bloco na região grave em movimento paralelo, iniciando uma longa subida em
arpejos, à maneira dos estudos técnicos. O acorde com sonoridade quartal produzido por
sax barítono, baixo e piano permanece inalterado em suas notas mais graves, enquanto
suas pontas vão se abrindo progressivamente em direção ao agudo:
164
Ex. 46: cs. 1 a 17 (0'.00" - 0'.23")
165
166
Durante este trecho, Hermeto improvisa no harmônio acompanhando a subida
instrumental com acordes sustentados que mudam a cada dois compassos, formados por
dois trítonos (nos cs.1 e 2 por exemplo, si2 e fa3 na m.e e sol3 e do#4 na m.d.).
Como em vários outros trechos de "Arapuá", o sax barítono e a voz mais aguda do
piano estão numa relação de 9ª menor. O acorde-base com sonoridade quartal do exemplo
acima é:
167
Ex. 47: c. 1
m.d . piano
m.e. piano
baixo elét.
sax baríto no
Se formarmos um acorde por condensação das notas pedais arpejadas nos cs. 1 a
16, perceberemos porque Hermeto relacionou esta música ao zumbido grave da abelha
arapuá. A justaposição das notas na região grave dificulta a percepção das alturas
envolvidas, ao mesmo tempo que produz uma massa sonora entre o som harmônico e o
ruído grave produzido pelas abelhas:
Ex. 48: c. 1 - 16
Após a subida inicial, do compasso 18 a 22 (0'.24" - 0'.34") os instrumentos
executam frase com tendência descendente ainda baseados no acorde do ex. 47, para
depois alternarem momentos de maior ou menor sincopação e polirritmia.
Note-se no exemplo a seguir, as quatro camadas texturais constituídas
respectivamente pela mão direita e esquerda do piano, a terceira pelo baixo elét. e o sax
com quase o mesmo ritmo e a quarta pelo jererê. A polirritmia ocorre em cada linha, a
mão direita do piano em quiálteras e a esquerda em colcheias pontuadas, enquanto sax e
baixo têm figurações rítmicas menos rápidas e estão construídos predominantemente por
movimento contrário.
168
Ex. 49: c. 23 e 24 (0'.35" - 0'.38")
No exemplo a seguir, a polifonia é acentuada e cada linha tem um desenho
rítmico-melódico próprio. Observe-se como Hermeto superpõe notas estranhas à
harmonia simples da m.e. do piano:
Ex. 50: c. 57 a 60 (1'.28" - 1'.34")
169
O baixo é tratado nesta música melodicamente e como uma das vozes do naipe
formado por sax barítono e piano. Isto é importante porque evidencia uma exploração não
convencional do instrumento pelo compositor. Ao contrário de "Cores" ou "Briguinha de
músicos malucos no coreto", onde o baixo caminha preferencialmente sobre as
"cabeças"132 dos acordes cifrados, em "Arapuá" o baixo participará ativamente da trama
monofônica e polifônica, como um instrumento melódico.
O início da parte B exemplifica bem o uso que Hermeto faz deste instrumento. Os
quatro compassos abaixo são na verdade um pequeno solo de baixo de Itiberê e, apesar
do andamento ser a metade do inicial (U.T. ca. 88), as figurações rápidas em
semicolcheias e seisquiálteras na região aguda do instrumento são de dificílima execução:
132
"Cabeças" dos acordes, ou seja, as notas mais graves indicadas nas cifras.
170
Ex. 51, B, c. 99 a 102 (2'.31" - 2'.43")
A segunda parte de "Arapuá" é basicamente uma levada em 6/4, sobre a qual
Hermeto improvisará no berrante. A harmonia desta levada é construída com material de
A - acordes de sonoridade quartal -
sempre articulados sincopadamente. Os dois
171
compassos abaixo são tocados durante um minuto aproximadamente enquanto Hermeto
sola no berrante:
Ex. 52: 'B', c. 108 e 109 (3'.00" -
O uso que Hermeto faz do berrante de boi, transformará este típico objeto da
cultura popular, em um instrumento com duas oitavas (sol 2 a sol 4), graças ao bocal de
bombardino. A harmonia está em do mixolídio (cifra C7) e Hermeto está em sol dórico
explorando este modo nordestinamente. Com um timbre rascante e granulado e com as
alturas semi-temperadas, o berrante é usado por Hermeto como um instrumento de sopro,
com frulatos, diversos recursos multifônicos como por exemplo cantar e tocar
simultaneamente e ainda percussivamente, com glissandos, etc, etc. O timbre natural do
berrante é modificado, pois Hermeto o toca dentro de um balde cheio d'água, da mesma
forma que o sax barítono tocado por Carlos Malta próximo à esteira da caixa da bateria,
fazendo-a vibrar com as notas do sax, assim modificando o timbre do instrumento,
rebatizado como "Baricaixa".
A 3ª parte é, como já dissemos, uma reexposição da 1ª, em andamento mais
rápido. Na reexposição, o baterista, que havia tocado o jererê na 1ª parte, não segue
partitura alguma, sendo deixado à vontade para criar livremente. O desafio será no fim
das contas, duplo: tocar uma dificílima parte para tupperware na 1ª parte, e na
reexposição, improvisar na bateria.
O exemplo seguinte é o final da música. Sax e baixo estão em suas regiões mais
graves. O sax é tocado com uma sonoridade rascante e "buzzing", literalmente fazendo o
172
instrumento zumbir.133 Note-se que o acorde do piano (Fa# ou Mi maior com 6ª, 9ª e 11ª
E
aumentada), é transportado seguidamente meio-tom acima e abaixo e está sobre as notas
do sax e do baixo:
Ex. 53: A', c. 84 a 97, (6'.17" - 6'.35")
133
"Buzzing" é um termo do jazz que se refere a um tipo de articulação e emissão sonora própria
dos metais e mais especialmente do saxofone. A sonoridade 'buzinada' ou 'zumbida' deste instrumento foi
um recurso muito apreciado por jazzmen como o contra-baixista, arranjador e compositor Charles Mingus
por exemplo, para não falar de Ornette Coleman e John Coltrane. A sonoridade agressiva, "buzzing", foi
empregada por estes e outros saxofonistas como uma alternativa ao som macio e flautado que o sax tinha
no jazz tradicional.
173
FIM
O acorde complexo formado pela sobreposição das notas dos três instrumentos no
exemplo acima, nos remete novamente ao espectro inarmônico dos sinos, pois contém a
3ª (e a 7ª) menor e maior, além da 5ª aumentada e da 9ª menor. Pode-se dizer que este
acorde é resultado de um procedimento sistemático da linguagem harmônica de Hermeto,
resultado da superposição de tríades simples (no exemplo abaixo as tríades foram obtidas
por enarmonização):
Ex. 54
Fa # m aior
Mi m aior
Do m e nor
Mi m aior com
6ª, 9ª e 11ª+
+
Do m e nor
Do m e nor-m aior
com 5+ , 7 e 7M, 9e
11+
"Arapuá" pode ser considerada um grande estudo, uma música em que todas as
partes são bastante difícieis e foi junto com "Briguinha de músicos", uma das peças que
mais deram trabalho para todos integrantes do grupo. Com 7 minutos e meio de duração,
174
U.T. a 165 na 1ª e 3ª partes, harmonia atonal, freqüente uso de polirritmos e sincopação
variada, "Arapuá" é uma verdadeira tour de force, com certeza um dos ápices do período
que estudamos, onde composição e interpretação se equilibram em dificuldade, riqueza e
virtuosismo.
5.3.8 "Aula de natação", CD Festa dos deuses (Polygram, 1992)134
Processo de criação: Dando seguimento ao que denominou "música da aura",
cujos exemplos registrados anteriormente em disco foram feitos com trechos de narrações
radialísticas de futebol, 135 em "aula de natação" Hermeto gravou uma aula de sua filha
Fabíola, professora de natação, na piscina de sua casa no bairro do Jabour em janeiro de
1992.
Ainda neste disco de 1992, Hermeto fará a "música da aura" de um discurso do
ex-presidente Fernando Collor de Mello e de um poema com autoria de Mário Lago,
declamado pelo próprio autor. No poema de Mário Lago, Hermeto sobrepõe às alturas da
voz falada, melodias modais nordestinas acompanhadas no harmônio. A zabumba e o
triângulo lembrarão o trio típico do forró, se somando ao harmônio para seguir a métrica
do poema, alternando os diferentes andamentos que o poeta utiliza em sua interpretação.
Em "Aula de Natação", Hermeto transpõe as diferentes durações e alturas da voz
falada em prosa para o piano, resultando uma melodia totalmente atonal e de ritmo
assimétrico.
Dados registrados em partitura: Não possuímos a partitura, pois, apesar de ter
sido Jovino o intérprete da música no disco, ele não possuía a partitura. Segundo o
pianista nos relatou, o próprio Hermeto não considera a "música da aura" como sendo de
sua autoria, mas de quem fala, daí ele não ter passado a parte para o pianista. A parte
também não foi encontrada no arquivo pessoal do compositor.
Forma esquemática: Binária (A A')
134
135
PLGBR 510407-2.
Ver Tiruliluli e Vai mais garotinho em "Brasil Universo", Som da Gente, 1984.
175
Duração total: 0.56
Instrumentação: Voz da professora e dos alunos, harmônio, sampler, som de
água.
Partitura gráfica da música gravada:
mf
mf
f
f
mf
mf
f mf
f mf
Esta música foi gravada durante noites seguidas por Jovino e Hermeto num
sampler. Em um canal estava a voz gravada e, nos outros, os teclados que a
acompanharam. O trabalho em estúdio foi nenhum, pois o material sonoro já havia sido
todo gravado e mixado na casa de Hermeto. O local e a maneira como "Aula de natação"
foi gravada, constituem exceção no repertório que analisamos, pois conforme
verificamos, nenhuma das demais músicas foi gravada fora do estúdio. Como esta música
176
requeria apenas um intérprete e por causa da dificuldade de sua execução, Hermeto e
Jovino preferiram trabalhar sozinhos.
Depois de Hermeto ter escrito as notas da fala da professora de natação (a sua
filha Fabíola), esta melodia foi dividida em quatro segmentos, cujas durações anotadas na
partitura funcionavam apenas como um guia aproximado dos ritmos aperiódicos da voz
falada. Por causa da liberdade rítmica da fala dificilmente grafável em partitura
convencional e da rapidez com que a melodia atonal se sucedia, Jovino diz ter sido muito
trabalhosa a perfeita sincronia da música com a fala. A solução, segundo ele, foi seguir a
notação de maneira intuitiva.
Durante a música, ouvimos inicialmente a aula de natação com a voz da
professora, das crianças e o som de água na piscina (0'.00" - 0'.27"). Depois, o mesmo
trecho é repetido com o piano tocando cada nota falada e o harmônio harmonizando-as. O
resultado é completamente atonal, e assimétrico ritmicamente. "Aula de natação" é
bastante diferente do poema "Três coisas", declamado por Mário Lago no mesmo cd e
também auralizado por Hermeto. O fato do resultado sonoro de "Aula de natação" diferir
de "Três coisas", ocorre porque se o poema de Mário Lago obedece uma certa métrica
rimada e as alturas permanecem num âmbito restrito, em "Aula de natação" a fala é
coloquial, e por isso, os ritmos não são passíveis de metrificação, além das alturas
variarem de forma muito mais irregular que num poema. Dessa maneira, Hermeto mais
uma vez demonstra como sua linguagem musical incorpora elementos não convencionais
extraídos do cotidiano e da natureza.
A denominação "música da aura" foi criada por Hermeto e representa um
importante desdobramento na linguagem do compositor, além de explicitar muito
claramente sua concepção musical. Em entrevistas recentes, o compositor se referiu à
"música da aura" como sendo a "música do futuro", assim reconhecendo a importância
que esta tem para ele. Consideramos a "música da aura" como um desdobramento lógico
da concepção de Hermeto, cujos esboços podem ser encontrados em algumas das peças
que analisamos compostas no período 1982-1992.136
136 E mesmo muito antes deste período. Ver por exemplo, o 1º disco de Hermeto como
compositor, Brazilian adventure (toda a big-band tocando com garrafinhas), o disco Slave Mass (com a
177
A "música da aura" revela como Hermeto, com seu ouvido absoluto, recebe os
fenômenos sonoros cotidianos. O familiar é tornado exótico e vice-versa, num jogo que é
fonte constante de criação e deleite estético. A "música da aura" é um outro exemplo de
transição de som inarmônico para harmônico, pois se baseia na noção de que quando
falamos, estamos na verdade cantando de forma não convencional.
O cantar das pessoas, na minha concepção, o cantar de cada um de nos, é o que chamamos de
fala. Assim como os pássaros, nós somos pássaros também. (PASCOAL, 1998) 137
Mas que espécie de pássaros seríamos nós? E porque Hermeto considera tão
importante a "música da aura"? Talvez a resposta para estas duas perguntas seja uma só:
para Hermeto, somos pássaros da percepção, ou melhor, nos tornamos pássaros através da
percepção. Mas como?
Segundo Hermeto, a "música da aura" funciona como uma máquina fotográfica
que registra a imagem do som. No entanto, esta imagem não é um mero registro. Assim
como a revelação do negativo fotográfico depende da sensibilidade e técnica do fotógrafo
e por isso nem todos revelam igual, o músico sempre criará algo ao revelar sua
"sonofotografia". Na própria dimensão horizontal e melódica da fala-canto, está
espalhada a harmonia - para usar uma metáfora do próprio Hermeto - como se cada nota
melódica fosse uma uva de um cacho de uvas, harmônico e virtual, que cabe ao
compositor reconhecer e reorganizar criativamente. O fator complicador é que este
"cacho virtual" é constituído não apenas das notas da fala, como também dos parciais por
elas produzidos, que raramente são percebidos pela maioria das pessoas. O mesmo se
pode dizer em relação ao ritmo, ou seja, na própria fala-melodia podemos deduzir um ou
vários padrões rítmicos periódicos e aperiódicos.
participação dos famosos porcos), a experimental "O galho da roseira", no disco Seeds on the ground, com
Airto Moreira e Flora Purim. Ver conclusão.
137 Em entrevista já citada com Luiz Carlos Saroldi.
178
O músico da aura é ao mesmo tempo o fotógrafo, o revelador, e o criador. É
aquele que captura o momento sonoro através da gravação, revela o negativo do som
capturado - decodificando as alturas, durações, timbres e intensidades da fala - e aquele
que cria, transforma, filtra e modifica a imagem sonora revelada, imprimindo sua própria
imaginação no resultado final.
179
6. CONCLUSÃO
6.1 - Síntese das análises musicais
No capítulo anterior, identificamos alguns dos elementos que integram a
linguagem musical de Hermeto Pascoal. Estes elementos foram no entanto apresentados
isoladamente, em cada uma das oito músicas analisadas. Antes de respondermos às
questões lançadas no capítulo I, a respeito da concepção da linguagem musical de
Hermeto Pascoal, é necessário que compreendamos conjuntamente os elementos e os
signos desta linguagem, que apareceram dispersos no capítulo anterior.
Relacionamos a seguir os aspectos musicais levantados nas análises, agrupandoos em cada parâmetro sonoro. O procedimento que adotamos ao agrupar separadamente
fenômenos sonoros integrados, é uma estratégia metodológica que visa apenas fornecer
um esquema geral dos signos musicais que Hermeto utiliza. É imprescindível lembrar que
os parâmetros estão relacionados e, por isso, não são entidades isoladas, nem autônomas
umas em relação às outras. Assim, o atonalismo de "Arapuá" e da Parte final de "Cores" incluídos no parâmetro 'altura' - se relaciona tanto à polirritmia (de "Arapuá") e à arritmia
(do final de "Cores") - incluídos no parâmetro 'duração' - como também, no parâmetro
'timbre', à exploração não convencional de instrumentos convencionais (em "Arapuá") e
ao uso de fontes sonoras não convencionais (a cigarra e a placa de ferro percutida de
"Cores").138
Altura
. Melodias tonais rearmonizadas dissonantemente: "Cores (B, B' e B") e
"Briguinha de músicos no coreto maluco".
. Modalismo: "Série de arco" (apenas uma citação breve com a escala mixolídia
com b7 e #11), "Magimani Sagei" (mixolídia), "Papagaio alegre" (mixolídia com b7 e
#11), "Arapuá" (sol dórico no solo de berrante).
138
Os conceitos de periodicidade e aperiodicidade por nós apresentados no capítulo IV, visam
justamente superar os limites da abordagem tradicional, compreendendo os parâmetros unitariamente,
como emanações do tempo. Cf. Karlheinz Stockhausen em Menezes (org.), op. cit.
180
. Polimodalismo: "De bandeja e tudo".
. Escalas "exóticas": "Magimani Sagei" (escala de tons inteiros), "Arapuá",
(idem), "Papagaio alegre" (escala superlócria e simétrica).
. Gamas pentatônicas: "Série de arco".
. Atonalismo: "Arapuá" (A e A'), "Série de arco", "Aula de natação", "De bandeja
e tudo" (intro. 1 e 3 e coda), "Magimani Sagei "(na coda free), "Cores" (nas pontes e na
Parte final).
. Sons não temperados: Sons de animais, sons percussivos, voz falada de
"Magimani Sagei" e, "Aula de natação".
. Poliacordes e poliacordes com 2as. ajuntadas: "Série de arco", "Cores",
"Briguinha de músicos malucos no coreto" e "Arapuá".
. Acordes quartais e acordes quartais com 2as. ajuntadas: "Arapuá", "Série de
arco", "De bandeja e tudo" (acordes 1, 4, 5, 8).
. Clusters: "Série de arco"
Duração
. Ritmos brasileiros nordestinos; frevo, baião, maracatú, galope, côco e embolada,
em "Briguinha de músicos", "Cores", "Magimani Sagei" e "Papagaio alegre".
. Polirritmia e polimetria: "Série de arco", "Briguinha de músicos malucos no
coreto", "De bandeja e tudo", "Papagaio alegre" e "Arapuá".
. Arritmia: nas codas a la free jazz em "Série de arco", "Magimani Sagei", na
Parte final de "Cores", e na voz coloquial de "Aula de natação".
Timbre
. Uso não convencional de instrumentos convencionais:
- bateria afinada, flauta e ocarinas imitando sons de animais em "Magimani
Sagei"
181
- sax barítono tocado junto a esteira da caixa ("baricaixa") em "Arapuá".
- flauta em C, G e flauta baixo; sons produzidos pelos dedos percutindo os
buracos das flautas, soprando sem produzir notas, em glissandos curtos com ou sem
frulatos, harmônicos simples e simultâneos produzidos pela embocadura e digitações não
usuais do instrumento: em "Magimani Sagei", "De bandeja e tudo (solo)" e "Papagaio
Alegre (solo)".
. Uso de fontes sonoras não convencionais:
- Jererê: "Papagaio alegre" e "Arapuá".
- Ferros percutidos: "Cores".
- Berrante com bocal de bombardino tocado dentro d'água: "Arapuá".
- Animais: cachorros em "Magimani Sagei", cigarra em "Cores", papagaio em
"Papagaio alegre". "Arapuá" é uma música que não contém nenhum som de animal, mas
o título faz referência ao zumbido grave da abelha arapuá. A associação ocorreu por
causa do timbre do sax barítono e pela textura produzida pelos instrumentos na região
grave. "Arapuá" é uma música construída a partir da textura e do timbre.
- Voz usada percussivamente fazendo uso de encontros consonantais, sons
soprados, palavras desconexas emitidas guturalmente, risos, gritos, notas emitidas em
falsetes ao mesmo tempo tremulando a língua no céu da boca, alterando a emissão sonora
com o auxílio das mãos, etc.: em "Série de arco", "De bandeja e tudo" (introdução) e
"Magimani Sagei".
- Voz falada/cantada, música da aura: "Aula de natação".
Outros aspectos
. Relação imagem-som: "Série de arco", "Cores", "Arapuá" e "Aula de natação".
. Participação dos músicos no processo de criação: "Briguinha de músicos
malucos no coreto". De acordo com o que mencionamos no capítulo três, é difícil precisar
quais exatamente foram as contribuições de cada músico para o arranjo final das músicas
analisadas. A partir da música "Papagaio alegre" e "Arapuá", o Grupo adquirira tal
182
dinâmica de ensaio que a presença constante de Hermeto não se fazia tão necessária
como no início. Enquanto Hermeto compunha, o Grupo ensaiava em outro espaço e
nestes ensaios, aspectos não escritos em partitura, relativos à dinâmica, articulação
sonora, levadas e convenções musicais, eram criados pelos músicos. Obviamente
Hermeto daria a opinião final. "Briguinha de músicos" é um exemplo único no repertório
analisado porque, segundo o que Carlos Malta nos relatou, a idéia de tocar o tema na
parte B - a mais extensa de toda a música, cujo efeito musical inspirou o próprio título com as diferentes entradas separadas por pausas curtas, teria surgido dos músicos do
grupo.
Estes elementos musicais compreendidos conjuntamente demonstram porque
Hermeto é considerado um músico com uma linguagem original. O uso de material
modal, polimodal, tonal e atonal, freqüentemente combinando mais de um desses idiomas
numa mesma música, somado à rítmica variada, à exploração de fontes sonoras não
convencionais e exploração não convencional de instrumentos convencionais, fazem de
Hermeto um compositor com estilo próprio. O fato do músico ser multi-instrumentista e
dos elementos do Grupo passarem a tocar mais de um instrumento ao longo dos anos,
garantiu combinações instrumentais diversificadas às músicas que analisamos, que
contribuíram, por sua vez, para a riqueza dos arranjos. A desenvoltura técnica e a
interpretação virtuosística de Hermeto Pascoal & Grupo se conjugam aos fatores acima
mencionados e, desta forma, composição, improvisação e interpretação, se equiparam
entre si, garantindo um resultado que consideramos único na música instrumental
brasileira deste século.
6.2 - A trajetória de Hermeto Pascoal & Grupo: considerações finais
"O ato criador é misterioso... É um ato tão complexo, motivado por tantos impulsos - tão
remoto e impessoal como a teia de toda a história conhecida e tão remoto e intensamente pessoal
quanto a soma de toda a experiência de um homem - que as evidências materiais são pouco mais que
relances ocasionais de um profundo, contínuo processo." (Kramer in Sloboda, 1985)
Esta dissertação segue o rumo apontado por Kramer, ou seja, considera o produto
final - no nosso caso, as gravações das músicas que analisamos no último capítulo - como
183
o ponto de chegada de um processo anterior. Para analisar um determinado corpus
musical gravado entre 1981 e 1993 por Hermeto Pascoal & Grupo, nos orientamos em
marcha-a-ré através do tempo à infância de Hermeto Pascoal, para então acompanharmos
o desenvolvimento do músico, até encontrarmos novamente o período por nós almejado
no início. Além disso, fizemos uma pequena biografia dos músicos do Grupo e
reconstituímos o processo de criação de Hermeto Pascoal & Grupo e de cada uma das
músicas que analisamos.
Não acreditamos que a trajetória que percorremos seja imprescindível a toda e
qualquer análise musical. Assim fizemos unicamente porque nosso objeto de estudo
apontou este caminho como indispensável para sua compreensão. Em nosso caso, a
análise musical pura e simples (formal, harmônica, rítmica, etc.), não esclarecia nem no
nível da concepção, nem no da linguagem, uma música intrigante e hermética pela
carência de estudos e bibliografia.
A falta de bibliografia sobre nosso objeto contribuíu sem dúvida para que a
pesquisa de campo se revelasse como indispensável na tarefa analítica. Sem esta frente de
trabalho, não teríamos informações suficientes, nem subsídios, que nos permitissem
analisar as músicas que escolhemos. A perspectiva de nos movimentarmos apenas no
nível do signos e não dos significados, prometia como fim não mais que uma descrição
das obras analisadas. Porém, queríamos passar da descrição superficial para a densa, e,
para tanto, não nos restava outra alternativa senão a de conhecer as versões 'nativas' sobre
as questões por nós levantadas no capítulo I, para depois interpretarmos estes relatos.139
Mais do que criar uma alternativa à carência de bibliografia, era necessário nos prevenir
em relação a determinados riscos previstos tanto por Carole Gubernikoff em A pretexto
de Claude Debussy,140 como por Umberto Eco em Interpretação e Superinterpretação.141
Enquanto Carole critica algumas correntes da análise musical contemporânea,
especialmente quando nelas "o método se substitui às trocas ou ao 'encontro' com a obra,
139
Clifford Geertz, tomando emprestado noções apresentadas por Gilbert Ryle, estabelece dois
tipos de descrição etnográfica: a superficial - que simplesmente narra os fatos tal qual eles se apresentam, e
a densa - que interpreta o que eles significam. Cf. Clifford Geertz, A interpretacão das culturas. Rio de
Janeiro: LTC, 1989.
140 Carole Gubernikoff, A pretexto de Claude Debussy, um dos capítulos da tese de doutorado
defendida pela analista musical na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. In
Cadernos de Estudo: Análise Musical 8/9. São Paulo: Atravez, p. 83
141 Umberto Eco. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (2ª tiragem).
184
ou, mais grave ainda, quando a mediação substitui o objeto," (Gubernikoff, 1993), Eco
insiste em que podemos reconhecer a superinterpretação de um texto sem
necessariamente conseguirmos provar que uma determinada interpretação é a correta ou
nem mesmo aderir à crença de que deve existir uma leitura correta. Segundo Eco, "a
intenção da obra é fonte de significados que não se reduzem à intenção pré-textual do
autor, mas mesmo assim estabelece determinados limites à liberdade do leitor" (Eco,
10/11) e do analista por conseqüência.
Como a
ausência de bibliografia sobre nosso objeto implicava uma grande
margem de erro para a nossa interpretação, buscamos estabelecer como ponto de partida
da análise, as informações nativas, pois a rigor, "somente um 'nativo' faz a interpretação
de primeira mão: é a sua cultura" (Geertz, 1989).
A trajetória analítica que percorremos é deste ponto de vista, bastante simples.
Através de entrevistas com os integrantes do Grupo e com Hermeto, buscamos esclarecer
a gênese e a concepção de uma linguagem musical, espelhada num determinado
repertório, gravado entre 1981 e 1993, para o qual influenciaram ainda, os músicos do
Grupo que com Hermeto tocavam. Apresentamos os resultados de tal procura a seguir.
Hermeto começa na música cedo. Aos 7 anos, em Lagoa da Canoa, brinca
tocando flautas com os animais e percutindo pedacinhos de ferro. Aos 8 anos, começa a
tocar sanfona de oito baixos e pandeiro com seu irmão nas festas de casamento e forrós.
Seria impossível entender como a concepção musical de Hermeto se originou, sem voltar
à sua infância. Pois as primeiras experiências musicais ocorridas dos 7 aos 14 anos de
idade, foram absorvidas profundamente por Hermeto, lhe fornecendo modelos sonoros e
composicionais que apareceriam novamente a partir dos 35 anos de idade, quando o
músico começa sua carreira solo.
185
Entre 14 e 35 anos de idade, ou seja, durante 21 anos, Hermeto forma sua
linguagem musical e se desenvolve autodidaticamente como intérprete e arranjador, ao
mesmo tempo que trava contato com formações instrumentais como conjuntos, regionais,
big bands e orquestras de rádio, além de aprender diversos estilos tocando nas rádios e
casas noturnas de Recife, Rio e São Paulo.
Entre 35 e 45 anos de idade, Hermeto lança-se em carreira solo acumulando as
funções de compositor, arranjador e intérprete, gravando sete discos no Brasil e no
exterior.
Os doze anos seguintes, 1981 a 1993, são um período de maturidade na carreira
do músico. Hermeto, então com 45 anos de idade, sete discos gravados e já conhecido
internacionalmente, lidera o grupo formado por Itiberê Zwarg, Jovino Santos,
Pernambuco (Antônio Luís), Carlos Malta e Márcio Bahia. Neste período, Hermeto
resgata todos os aspectos relacionados à concepção musical que apareceram
primeiramente em sua infância em Lagoa da Canoa. Representemos graficamente a
trajetória que acabamos de descrever:
186
Dos 14 aos 31 anos (1950 - 1967)
O período de aquisição e desenvolvimento da linguagem
- Sanfona de 32 e de 80 baixos, piano
- sons
flauta, sax, percussão e bateria,etc.
cotidianos
urbanos.
- conhece e/ou toca com regionais,
orquestras de rádio, trios e quartetos
de jazz, etc.)
- rudimentos da teoria musical (localização
das notas, figuras rítmicas, agógica, etc..),
aprendidos auto-didaticamente.
- música nordestina (+ frevo), música
clássica, choro, seresta, jazz, samba,
bossa-nova, swing, música cigana, etc.
- toca em regionais das rádios e com
conjuntos instrumentais na noite em
Recife, Caruarú, Rio e São Paulo.
- intérprete (primeiras composições gravadas).
Dos 31 aos 35 anos (1967 - 1971)
A escola de arranjo e o desenvolvimento da escrita
- instrumentos anteriores (mais trumpete, violão?)
- integra o Som Quatro e o Sambrasa
Trio.
- desenvolve a escrita musical nos arranjos
dos Festivais da canção.
- Festivais da canção e Quarteto Novo.
- intérprete e arranjador.
Dos 35 aos 45 anos(1971 - 1981)
O início da carreira solo
- estilos anteriores + free jazz e fusion e
breve contato com a música erudita
contemporânea de I. Stravinsky, ouvida
- inicia a recuperar aspectos
relacionados à concepção;
sonoridades dos animais
187
via Edu Lobo em Los Angeles.
- Como arranjador nos discos de Airto
e Flora Purim
- O primeiro disco solo, The Brazilian Adventure.
- No disco Slave Mass.
dos ferros percutidos e
elementos iniciais da
linguagem (música popular
e folclórica nordestina)
- "O gaio da roseira"
- combina música nordestina
com jazz e free jazz.
- pela primeira vez utiliza
sons de animais (porcos) em
sua música.
- Outros discos solo. Entrada de Itiberê,
Jovino e Pernambuco no Grupo.
Dos 45 aos 57 anos (1981 - 1993)
Maturidade
- O Grupo se completa com a entrada de
Carlos Malta e Márcio Bahia.
- seis discos solo.
- intérprete, arranjador e compositor.
- primeiras composições para orquestra
("arranjos sinfônicos).
- recupera todos os aspectos
da concepção, inclusive a
"música da aura", superpondo
o universo sonoro-cultural
de sua infância, aos outros
estilos e informações de
fases posteriores de sua
carreira.
Pelo esquema apresentado acima, podemos verificar que no período que
estudamos (1981 - 1993), Hermeto gozava de uma relativa maturidade em sua carreira.
Em 1981, sua carreira solo já tinha dez anos, e Hermeto já era um músico bem conhecido
na Europa e nos E.U.A.. Porém a formação constituída por Itiberê, Jovino, Pernambuco,
Malta e Bahia, foi única na carreira de Hermeto, por causa da convivência de 12 anos
com um mesmo grupo, inédita em sua carreira. Hermeto foi antes de tudo um professor
para todos eles, mas é inegável, como já dissemos no capítulo III, que "os meninos da
banda" (como Hermeto às vezes os chamava carinhosamente), não só proporcionaram
uma certa tranqüilidade e segurança a Hermeto, como também contribuíram para a
linguagem musical do último. A dinâmica de ensaios diários estabelecida neste doze anos
188
possibilitou o aprimoramento técnico-interpretativo dos jovens músicos do Grupo e, a
Hermeto, a possibilidade de compor e arranjar mais, pois sua presença nos ensaios passou
a não ser indispensável, já que o Grupo adquirira uma metodologia de ensaio eficiente,
além de ter um repertório extenso a ser trabalhado. A autonomia do Grupo liberou
relativamente Hermeto da função de intérprete e solista, o fazendo incrementar sua
produção como compositor de obras para o Grupo e para formações diversas chegando
até a compor obras para orquestra sinfônica, enquanto os integrantes do Grupo se
desenvolviam como arranjadores e compositores.
Contudo, a manutenção de uma metodologia de trabalho bastante produtiva,
infelizmente não foi traduzida em gravações comerciais. A maior parte do repertório
ensaiado e apresentado publicamente durante estes doze anos não foi lançado
comercialmente. Lembramos que Hermeto Pascoal & Grupo geralmente gravavam bem
mais do que cabia num Lp, por isso, a extinta gravadora Som da Gente tinha em seu
arquivo músicas inéditas deste período. Onde está este material precioso e por que não
lançá-lo?
O trabalho desenvolvido nestes doze anos representou para os integrantes do
Grupo o início real de suas carreiras profissionais, enquanto que para Hermeto foi um
período de consolidação de sua posição no Brasil e no exterior. Juntos gravam seis
discos, participando anualmente em Festivais e excursionando pela América Latina,
E.U.A, Canadá e diversos países europeus.
Tanto pelo nível técnico dos músicos como pela singularidade da concepção
musical de Hermeto Pascoal, a formação de Hermeto Pascoal & Grupo entre 1981 e 1993
teve um caráter que reafirmamos histórico na música instrumental brasileira.
6.3 Uma entrevista final com Hermeto Pascoal
Realizamos em 6 de março de 1999, uma entrevista final com Hermeto para
verificarmos alguns dos resultados a que havíamos chegado em nossa pesquisa, bem
como para complementarmos determinados dados e informações biográficas colhidos nas
entrevistas com os músicos ou através da pesquisa do material bibliográfico publicado na
imprensa.
189
Discutimos abaixo apenas alguns trechos desta entrevista a fim de concluir nosso
trabalho, lançando eventualmente luzes e/ou complementando aspectos anteriormente
abordados relacionados à trajetória de Hermeto e, principalmente, à sua concepção e
linguagem musicais.
Começemos pelo controvertido aspecto do autodidatismo de Hermeto.
Verificamos nesta entrevista com o músico que a nossa perplexidade inicial e mesmo
incredulidade quanto à sua trajetória autodidata, já tinha sido partilhada por muitas
pessoas. É interessante observar como Hermeto lidou com este fato:
Todo mundo me elogia como multi-instrumentista autodidata no mundo todo e eu vi que
tinha gente que não tava acreditando nisso. Que eu poderia ter algum professor. Foi nessa época (com
aproximadamente 40 anos de idade) que eu me senti órfão. Porque eu acho tão legal você dizer... pô,
se eu tivesse aprendido com algum professor ou escola, eu teria o maior prazer de falar e eu bem que
tentei (...) Às vezes o pai é um bandido e o filho cresce e quer conhecer o pai. Pois mesmo que meu
professor de música fosse um bandido eu queria conhecê-lo. (...) Aí eu sempre dizia, que com meu
nome aparecendo muito nos jornais, quem é que não gostaria de ser meu professor, chegar agora e me
desmentir, de dizer que me ensinou alguma coisa? (HERMETO)142
Hermeto tem razão, ele tornou-se autodidata não por vontade própria, mas porque
sua deficiência visual desestimulava os professores. Se por um lado seu desenvolvimento
é motivo natural de orgulho para o músico, por outro, isto lhe causa problemas junto às
pessoas que não acreditam nele, além de causar-lhe também, certa dor, porque sua
trajetória foi vitoriosa, mas solitária.
Temos no entanto que ter cuidado com este ponto. Pois Hermeto, apesar de não
ter passado por nenhuma instituição de ensino musical, ou pela mão de professores, foi
um músico que viveu cercado de outros músicos e absorveu intensamente as diversas
experiências musicais que teve ao longo de sua vida. Auxiliado por sua percepção
acurada, que ele já definiu como "um gravador infinito", a escola de Hermeto foi
eminentemente prática, as rádios, a noite, os Festivais da canção, etc. e muito de sua
linguagem se deve às experiências profissionais que o músico teve durante 1950 e 1971.
O próprio Hermeto nos disse que não acredita que exista algo na música que não
tenha sofrido influência de alguma outra coisa. Os regionais, conjuntos, big bands e
orquestras, contribuíram sem dúvida para a formação do Hermeto arranjador e
142 Todas os trechos citados neste capítulo, são transcrições da entrevista que fizemos com
Hermeto em 06/03/1999.
190
compositor. Inclusive ele se refere às suas composições para orquestra como "arranjos
sinfônicos", talvez porque na música popular das rádios de Recife, Caruaru e Rio de
Janeiro, as orquestras regidas por músicos importantes como Guerra-Peixe143 tocavam
principalmente arranjos de músicas populares. Perguntado por nós sobre a experiência
com as orquestras de rádio, Hermeto falou delas com prazer e lembrou dos ensaios que
assistiu em 1950, na rádio Jornal do Comércio em Recife com a orquestra da rádio regida
por Guerra-Peixe:
Ele não me ensinou nada diretamente, mas eu com 14 anos de idade estava no auditório lá,
ninguém me conhecia e eu não conhecia ninguém, acanhado, tímido, lá na última cadeira, o auditório
vazio e a orquestra ensaiando. (...) Tinha quase uma sinfônica lá, era uma maravilha, cordas, era
misturado cordas com metais, além da big band que tinha lá. (...) Então eu não preocupava em não me
esquecer daquele ensaio, porque eu sabia que tinha uma coisa na minha mente gravando, eu não
precisava me preocupar. Eu acredito muito nisso, aquilo que a gente se lembra mais é o que a gente
sabe menos, sobre aquilo que a gente está se lembrando. (HERMETO)
Desta maneira, as sonoridades orquestrais ficaram guardadas por Hermeto no seu
inconsciente, constituindo uma camada subterrânea de sua formação, que ele resgataria a
partir de 1971, em seu primeiro disco solo e mais especialmente a partir de1981, ao
compor com mais regularidade para orquestras.
Perguntado sobre os espectros sonoros dos pedacinhos de ferro com que brincava
em sua infância, Hermeto definiu de maneira muito interessante sua concepção de
tonalidade e atonalidade:
O que chamam de música atonal, porque eles dão uns nomes que só funcionam na palavra,
mas não funcionam na prática. A música chamada de atonal chega a ser quase a música que eu chamo
de som da aura. Mas a música atonal, na minha maneira de ver, nenhum instrumento convencional
está capacitado para tocar, eles falam, mas está errado (...). Tem muita gente que acha que do, mi, sol,
do é natural, mas não, é apenas o convencional. Porque o atonal é a coisa mais natural que existe. (...)
Eu sou o inverso de muitas escolas, a maioria das coisas que eles chamam tonal, eu chamo atonal, eu
chamo o contrário. Para minha percepção se você fizer: [canta] sib1, mi3, lab2, mi2, sib1, la2, isso é
natural, para isso tem o som da aura. (HERMETO)
O trecho acima é esclarecedor. O acorde de dó maior seria exótico e a melodia
atonal do Uirapuru, familiar e natural. O conceito de atonalidade, como é entendido por
Hermeto, revela uma posição contrária à tradicional. À denominação 'série harmônica' é
acrescentada com freqüência, a palavra 'natural', como se a série harmônica e os sons
143
Em 1950 na Rádio Jornal do Comércio.
191
musicais fossem 'naturais', e os sons inarmônicos fossem "artificiais" ou diferentes do
"natural". Esta é uma inversão construída e manipulada historicamente, pois na verdade,
os sons musicais não são 'naturais', tanto é que tiveram que ser temperados num sistema
preciso de alturas. A maioria dos sons que nos cercam cotidianamente no campo ou na
cidade, são inarmônicos ou mistos - como o som da cigarra da música "Cores" por
exemplo. Por isso, ambos os espectros são naturais. Invertendo essa distinção equivocada,
Hermeto faz com que as mais complexas e dissonantes combinações harmônicas de suas
músicas nos pareçam familiares, pois "o atonal é a coisa mais natural que existe".
Na resposta acima, Hermeto passa do som atonal dos ferros para a noção de
"música da aura", uma estrela de primeira grandeza no universo de signos do músico
alagoano. Na verdade, até esta entrevista não entendíamos porque Hermeto atribuía tanta
importância a ela. A música da aura surgiu ao mesmo tempo que os sons dos ferros e dos
bichos. Ela integra junto com eles um conjunto de eventos sonoros relacionados, atonais:
Os ferrinhos já tinham a ver com a música da aura. A minha mãe estava conversando com
uma amiga dela e de repente eu dizia: "mãe, ela está cantando" e minha mãe, "meu filho quê isso, tá
aluado" (maluco)? Então, entre 45 e 50 anos de idade eu fiquei preocupado achando que tinha um
problema de audição. Será que esse som da aura que eu acho desde pequenininho que as pessoas
cantam invés de falar, será que é só a minha cabeça que acha isso?" (HERMETO)
A "música da aura", primeiramente gravada em 1984,144 foi o último resgate que
Hermeto fez do universo sonoro de sua infância e este resgate significou também a
superação de dúvidas antigas a respeito de sua capacidade auditiva (!). Desde pequeno, a
percepção de Hermeto foi motivo de preocupação para seus parentes, que chegaram a
temer por sua sanidade mental. Hermeto foi chamado de "louco" pela primeira vez por
sua própria família, obviamente porque a mesma percepção que o faz distinguir os sons
com tanta precisão, eventualmente também lhe causa problemas junto àqueles que não
partilham de tal capacidade. O trecho abaixo ilustra bem outras dificuldades encontradas
por Hermeto, causadas neste caso, pela mudança constante de diapasão permitida pela
tecnologia dos teclados eletrônicos:
Com estes teclados eletrônicos, o cara que tem ouvido absoluto sofre, porque dependendo do
la diapasão, o sib é quase si natural ou lá. Por isso eu digo, se for la diapasão 440 é isso e se for 442 é
aquilo. (HERMETO)
144
A faixa "Tiruliluli" do lp Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (Som da Gente, 1984), na
qual Hermeto faz a "música da aura" de uma narração futebolística. Ver a análise feita por Tato Taborda,
op. cit.
192
Em nossa última entrevista com Hermeto tivemos a oportunidade de comprovar a
capacidade auditiva do músico alagoano. Levamos para a entrevista um pequeno sino "de
mesa", de tamanho pequeno, que produzia a nota Fa#5, além de uma freqüência
secundária de ataque em aproximadamente Sol5. O batimento das duas freqüências
próximas e agudas era claro e perceptível, apesar das amplitudes distintas pois o Fa#5
tinha maior intensidade. Solicitado por nós que identificasse as freqüências do sininho,
Hermeto, sentado em frente ao seu piano elétrico, pôs imediatamente o dedo sobre o
Fá#5, dizendo que era aquela nota que ele estava ouvindo no sino. O interessante é que
ele apertou a tecla umas cinco vezes, mas esta não produzia som algum porque o piano
(elétrico) estava desligado. Depois de rirmos, Hermeto ligou o piano e rapidamente
identificou o Sol5, precisando porém que este não era exatamente um Sol5, mas uma
freqüência entre o Fa#5 e o Sol5 do sistema temperado...
Voltando à "música da aura", a fala que é tão familiar a todas as pessoas, é
percebida pelo músico em seu contorno rítmico-melódico. As alturas não temperadas da
voz e sua complexidade rítmica, fazem das melodias da "aura" estruturas não
convencionais do ponto de vista musical, uma espécie de "canto dado" atonal. Apesar do
material ser não convencional do ponto de vista melódico e rítmico, o tratamento dado
por Hermeto é tradicional, ou seja, o músico não renuncia à noção de melodia
acompanhada instrumentalmente.
O "som da aura" coincidiu com a época em que Hermeto se tornou consciente de
determinadas fronteiras entre o sonoro e o musical, ou, usando suas palavras, entre a
"música e a teoria":
Foi por volta dos 45 anos de idade, que eu descobri que a teoria, não a música, tem doze
notas. (...) Mas como é que eu descobri isso? Eu tenho uma bandola que é um instrumento com seis
cordas duplas, não é uma corda grave e outra aguda, tipo a viola que tem uma corda grossa e outra
fina. (...) Eu afinei aquelas doze cordas cada uma numa nota, e aí cadê mais nota? Deu a oitava de
novo. Eu fiquei preso. Aí eu me decepcionei e por um momento me deu um branco na cabeça. Meu
Deus, quer dizer que tudo que eu faço é com essas doze notas? Eu me esqueci de pensar que nas cores
você tem o azul claro, o azul escuro, você tem a areia branca, a areia vermelha e nessa hora não me
veio que na música eu tenho as oitavas, tenho as quartas, as quintas, para me tranquilizar. Mas de
qualquer forma são doze notas, a não ser botando as comas e aí é que eu te falo, as doze é porquê é
convencional, se não não seria doze só. (...) Mas ficou chato naquela noite porque eu queria fazer uma
composição e na minha cabeça tinha notas que não tinha na [notação] convencional. (...) Foi uma
peste eu saber disso e eu não quis mais. O que eu faço não depende dessas doze notas só. Depende da
minha imaginação. (...) Tem coisas que não dá para botar num instrumento convencional. Porque que
tem a percussão, os sons dos bichos? É por isso. Na música erudita eles separam as coisas, como se
193
fosse um preconceito, mas na minha música não, eles tem lugar, o percussionista também é um
solista. (HERMETO)
A "música da aura", os sons de animais, dos ferros e percussivos, são gamas não
temperadas que Hermeto utiliza ao lado de instrumentos convencionais intencionalmente.
O fato "da música atonal não poder ser tocada com instrumentos convencionais", não
impede que Hermeto transite ludicamente do som harmônico para o inarmônico e viceversa.
Alguns exemplos de transição de som inarmônico para harmônico, são a bateria
tratada como um instrumento melódico em "Magimani Sagei", os sons "afinados" dos
cachorros de "Magimani Sagei", cigarras de "Cores" e papagaios em "Papagaio alegre".
A linguagem harmônica de Hermeto, constituída de poliacordes, tríades
superpostas ajuntadas de 2as., acordes de sonoridade quartal, pedais e harmonias
dissonantes, clusters, será o melhor exemplo de transição de som harmônico para
inarmônico. Incorporando sistematicamente complexos verticais não-funcionais, a
harmonia de Hermeto é um território movediço, entre a altura e o timbre.
As propriedades táteis-visuais do som somadas à percepção dos espectros sonoros
confundem não só os limites entre altura e timbre, como também os limites entre os
sentidos físicos. Assim, uma das justificativas para um acorde "errado" do ponto de vista
da teoria tradicional, mas que soa bem para os ouvidos de Hermeto, pode ser encontrada
no fato de este acorde ser não só escutado como também visto pelo músico. Por isso,
determinadas características sonoras que só raramente são objeto de atenção na escuta,
como a massa dos sons, a maior ou menor luminosidade dos timbres instrumentais e dos
sons da natureza e do cotidiano, suas cores, etc, influenciam ou até determinam a escolha
e elaboração do material que será utilizado musicalmente por Hermeto. A "música da
aura" não parece se resumir às melodias que Hermeto percebe na fala e nos sons de
animais. A "música da aura" sinaliza ainda para a relação audição-visão e, mais
fundamentalmente, para a percepção aural do próprio som, em seu contínuo senóideruído.
A desterritorialização promovida pelo músico faz também com que ele misture os
estilos que conheceu ao longo da carreira, pois, assim como sua concepção, a linguagem
musical de Hermeto é múltipla e não linear. A mesma lógica que rege sua concepção -
194
evidenciada no diálogo entre o sonoro e o musical e com as propriedades táteis-visuais do
som, diálogo este possibilitado pela percepção ampliada e imagética de Hermeto - ocorre
também no nível da linguagem. Um repente, côco, frevo, maracatú ou baião pode
misturar-se, experimentalmente, ao choro, jazz, free jazz e à música "erudita", da mesma
maneira que um ruído pode ser utilizado como uma nota de altura definida, ou o
contrário. Tudo depende da percepção, imaginação e técnica daqueles que criam.
Hermeto Pascoal, Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Antônio Santana, Carlos Malta e
Márcio Bahia as tiveram de sobra.
195
7. FONTES
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7.1.1 - Revistas e jornais sem entrada por autor ou data
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Jornal Catacumba, 1992.
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fev./1998, p. 46 - 59.
Jornal do Brasil, "As máximas do mago", 19/05/1998.
7.2 - Entrevistas
BAHIA, Márcio Villa. 12/02/1998 e 02/10/1998.
MALTA, Carlos Daltro. 26/03/1998.
NETO, Jovino Santos. 10/06/1997 e 18/08/1998.
PASCOAL, Hermeto. 10/11/1997 e 06/03/1999.
ZWARG, Itiberê Luis. 04/10/1998.
E entrevista realizada por Luís Carlos Saroldi com Hermeto Pascoal no programa "Ao
vivo entre amigos" na rádio M.E.C. do Rio de Janeiro em 1997, gentilmente cedida por
Murilo Reis Saroldi.
199
7.3 - Discografia
7.3.1 - Discos solo de Hermeto Pascoal
Hermeto Pascoal: Brazilian Adventure. CD. Muse Records, MCD 6006, 1971.
A música livre de Hermeto Pascoal. LP. Polygram, PLG BR 8246211, 1973.
Slave Mass. CBS, 1977.
Zabumbê-bum-á , grav. WEA Brasil, 1978.
Hermeto Pascoal ao vivo em Montreux. LP. WEA Brasil, 20.052/53, 1979.
Cérebro Magnético. LP. WEA Brasil, 30.127, 1980.
Hermeto Pascoal & Grupo. CD. Som da Gente, SDG 010/92, 1982.*
Lagoa da Canoa - Município de Arapiraca. CD. Som da Gente, SDG 011/92, 1984.*
Brasil Universo. CD. Som da Gente, SDG 012/93, 1985.*
Só não toca quem não quer. CD. Som da Gente, SDG 001/87, 1987.*
Mundo Verde Esperança. Som da Gente, não lançado comercialmente, 1989.*
Festa dos Deuses. CD. Polygram, PLGBR 510 407-2, 1992. *
Por diferentes caminhos, LP. Som da Gente, 1994.
* Todos os CDs assim assinalados foram gravados no período contemplado nesta
pesquisa.
7.3.2 - Discos como intérprete e arranjador
Walter Santos. Caminho. LP. 1965.
200
Edu Lobo. Cantiga de Longe. LP.
Quarteto Novo. Quarteto Novo. CD. EMI, "Série dois em um", EMIBR 827 497 -2, 1993.
Airto e Flora Purim. Natural Feelings. Skye Records.
Tom Jobim. Tide. LP. A&M, 1970.
Airto e Flora Purim. Seeds on the ground. CD. One way Records, OW 30006, 1971.
Miles Davis. Live Evil. CD. Sony, SCRS 5715-6, 1972.
* A partir do LP com o Quarteto Novo, Hermeto atua também como compositor.
7.3.3 - Discos solo dos integrantes do Grupo
Carlos Malta e Daniel Pezzotti. Rainbow. CD. Produção independente, fabricação Sony,
107.592, 1993.
Carlos Malta. O Escultor do Vento. CD. Produção Independente, fabricação
Microservice,
AJA7. 172/473833, 1998.
____ . Carlos Malta e Pife Muderno. CD. Rob digital, RD 017, 1999.
Jovino Santos Neto. Caboclo. CD. Liquid City, LC 344512, 1997.
7.3.4 Outros
Ornette Coleman. Something else! CD. Fantasy, OJC 163-2, 1958.
____ . Free Jazz. CD. Atlantic-WEA, ATL 1364-2, 1960.
Bang on the Can. Cheating, Lying, Stealing. CD. Sony, SNY 62254-2, 1996.

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