O lar da Nakba ou ver as fotografias de Ahlam Shibli

Transcrição

O lar da Nakba ou ver as fotografias de Ahlam Shibli
O lar da Nakba ou ver as fotografias de Ahlam Shibli Ana da Palma Capa do catálogo da exposição. ©2013
Museu d’Art Contemporani de Barcelona;
Jeu de Paume, Paris; Fundação de Serralves,
Porto; hatje Cantz Verlag, Ostfildern com
pormenor da série Death nº48 – Centro
Histórico, Bairro de al-Kasaba, Nablus, 5 de
Fevereiro de 2012 © Ahlam Shibli.[Cortesia
da Fotógrafa]
A
exposição
intitulada
Phantom Home (Lar Fantasma),
uma retrospectiva de nove séries
fotográficas da artista palestiniana,
Ahlam Shibli, percorreu três países,
entre 2013 e 2014. Passou pelo
Museu d’Art Contemporani de
Barcelona; o Jeu de Paume, em Paris;
e Serralves, no Porto. A retrospectiva
Lar Fantasma apresenta as séries:
auto-retrato de 2000, Palestina;
Goter de 2002-2003, Al-Naqab;
Batedores de 2005, Palestina/Israel;
LGBT do Oriente de 2004-2006,
vários países; Arab al-Sbaih de 2007,
Jordânia; O vale de 2007-2008, Arab
al-Shibli; Dom Dziecka. A casa
morre de fome quando estás fora de
2008, Polónia; Trauma de 20082009, França; e a mais recente
intitulada Morte de 2011-2012,
Palestina.
A exposição no Jeu de Paume
provocou o descontentamento de
associações judaicas levando o CRIF
(Conselho
representativo
das
organizações judaicas em França) a
acusar a exposição de fazer a
«apologia do terrorismo» 1. A última série é composta por 68 provas cromógenas de
vários tamanhos e poderá ter sido a série que mais incomodou pelo conteúdo, dado que
este questiona directamente os limites entre a arte e o documento, apresentando-se como
representações de representações cujo tema se centra na memória do que está ausente.
Enquanto espectadora, o título dado à exposição re-situou-me no discurso
acerca da fotografia no campo da teoria, questionando a obra de arte e o registo
documental, misturando as suas respectivas sintaxes. Morte, o título da última série,
1
Artigo do jornal Le Monde de 11/06/2013 consultado em:
http://www.lemonde.fr/culture/article/2013/06/11/protestations-contre-une-exposition-de-lapalestinienne-ahlam-shibli-au-jeu-de-paume_3427976_3246.html
ecoa no título da exposição Lar Fantasma, tanto pelas palavras como pelo que é
representado. Concentrando-me nas palavras «fantasma» e «morte» é fácil e óbvio
regressar aos primórdios da fotografia como retrato exacto do real, contudo, apesar de
todos os espectros indexados ao carácter deíctico da fotografia, aqui o retrato em pose
inserido no quotidiano é vida, sobretudo na última série: Morte. Não é o retrato de uma
pequena vida qualquer. É o rasto fantasma destas vidas mortas ou encarceradas a bater
no rosto da minha humanidade. Sendo uma humanidade partilhada, as noções de arte e
identidade que muitas vezes, no campo da arte palestiniana, se têm confinado a aspectos
regionalistas, são ultrapassadas pela mise en abîme, a narrativa visual encaixada, em
cada fotografia. É-me dado a ver o que é visto no espaço do quotidiano palestiniano. A
linguagem deíctica é ligeiramente deslocada, tornando-se refugiada da sua própria
sintaxe.
Uma casa, um lar, é um espaço íntimo, mas nestas fotografias a noção de lar é
alargada ao espaço social. O espaço colectivo palestiniano encaixa nos seis princípios
adiantados por Michel Foucault 2 e, na actualidade, tendo em conta as circunstâncias
criadas no terreno, parece-me acertado dizer que o espaço colectivo palestiniano tornouse a heterotopia por excelência 3. As fotografias de Ahlam Shibli levam-me a percorrer
ruas, lojas e lares povoados pelas pessoas que os habitam. Entre interiores de casas e
ruas do campo de refugiados de Nablus, o espaço íntimo é o espaço colectivo onde o
corpo palestiniano ausente resiste ao ser exposto à memória e ao ser continuadamente
actualizado.
Reposicionar-me diante da última série de fotografias de Ahlam Shibli? Como
me hei-de posicionar sem interromper o pensamento múltiplo - aquele que me leva a
objectar o tratamento visual e político veiculado pelos media dominantes; aquele que
me leva a relembrar a realidade contemplada no terreno, na Cisjordânia, em 2011;
aquele que me leva a interligar a História do Médio Oriente, a História do Ocidente, as
culturas, as vidas das pessoas – ou a simples percepção diante da recepção destas
imagens? Impossível. O olhar é múltiplo e já vem contaminado, carregado de vidas,
representações e pequenas percepções. Não quero ver as imagens de Morte apenas
como a expressão artística e política de uma identidade. Não quero? Mas não posso
descontextualizá-las, porque a realidade palestiniana é esse corpo colectivo em contínua
Nakba e porque o metatexto que acompanha cada uma das imagens me impede de não
ver neste trabalho o olho de uma artista, mulher, palestiniana. Três aspectos que a
cultura e o pensamento ocidental defendem como sendo «minorias» e que ora
descentram todo um trabalho artístico, ora o confinam ao particular como uma
excrescência rara. Entro e saio, entro e saio destes pensamentos, porque afinal de contas
o pensamento é rizomático.
O meu olhar é confrontado com um mapa do espaço íntimo do corpo colectivo
palestiniano. Partindo de uma contextualização panorâmica sobre os campos de
refugiados em Nablus, percorro espaços onde se repetem os gestos do quotidiano; quer
seja em casa, na sala, onde há sempre uma vida a arrumar, um espanador a repartir o pó;
quer seja na rua, onde os passos traçam caminhos, distâncias ou percursos; na loja, no
2
Michel Foucault (2009). Le corps utopique. Les Heterotopies. Europe: Nouvelles Éditions Lignes.
Consultar a primeira e próxima publicação da Casa Viva: a tradução colectiva do texto Le corps
utopique. Les Heterotopies de Michel Foucault.
3
café, onde o cheiro a cardamomo ou a salva emana de uma chávena; quer à entrada do
cemitério, ou no cemitério. E, é nesses espaços que o eidolon surge acompanhando o
caminho dos vivos, as suas rotinas ou os seus desvios. Na série Morte vejo a arte
comprometida do registo do corpo colectivo da Nakba em curso.
© Ahlam Shibli, Death nº1 – Campo de refugiados de Ala’in na parte ocidental de Nablus, 26
de Outubro de 2011.
«Durante a Segunda Intifada, Nablus foi um centro da resistência palestiniana
às forças de ocupação israelita. Na cidade situam-se quatro campos de
refugiados sob administração da Agência das Nações Unidas de Assistência
aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNWRA): Balata, Askar
Antigo, Askar novo e Ala’in. A UNWRA designou este último Campo nº1. A
população local chama-lhe contudo Ala’in, numa referência a uma fonte de
água que abastecia os refugiados quando o campo foi criado. Ala’in é
conhecido pelo apoio à marxista-leninista Frente Popular para a Libertação da
Palestina (FPLP), fundada por George Habash em 1967. Durante a Segunda
Intifada, as forças de ocupação israelita mataram mais de 500 residentes em
Nablus e nos seus campos de refugiados e feriram mais de 3000. Cerca de
sessenta casas foram destruídas.» © Phantom Home (2013:212) [Cortesia da
Fotógrafa]
A vida é assim, feita por golpes de pequenas solidões4, escreveu Roland Barthes,
entre parêntesis, no seu texto sobre fotografia, La Chambre Claire. E, estas palavras, na
distância do tempo de um texto com mais de trinta anos, mas à luz das imagens desta
exposição, soam como um manto de solidão sobre o povo palestiniano, porque foi e é
4
Roland Barthes (2002:791). Oeuvres Complètes, V. Seuil: Paris. Tradução minha do original «La vie est
ainsi faite à coups de petites solitudes».
uma história sempre adiada que nunca transita para lá do tempo histórico. Passado mais
de um século, para alguns desde 1881, ou revogados 66 anos, se partirmos de um marco
histórico amplamente documentado e registado nos anais das nações, o povo
palestiniano continua numa solidão premente. Está murado numa imensa solidão
mundial espelhando-se nos olhos mudos pasmados diante da nudez das imagens que nos
chegam e a mudez inculcada pela força da palavra retórica em que os argumentos se
nutrem de paradoxos, ou de lógicas retorcidas. Então a nudez desta linguagem deíctica é
como uma pedra aos olhos da humanidade e a imagem muda do ausente é povoada
pelos gestos e os sons do quotidiano.