Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB V.9 nº 1

Transcrição

Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB V.9 nº 1
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB | V.9 nº 1 janeiro/junho 2010
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB
V.9 nº 1 janeiro/junho 2010
Brasília
ISSN – 1518-5494
ISSN – 1518-5494
SEMINÁRIOS
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB
V.9 nº 1 janeiro/junho 2010
Brasília
ISSN – 1518-5494
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor
José Geraldo de Sousa Júnior
Vice-Reitor
João Batista de Sousa
INSTITUTO DE ARTES
Diretora
Izabela Costa Brochado
Vice-Diretora
Nivalda Assunção
DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS
Programa de Pós-Graduação em Arte
Coordenador
Nelson Maravalhas Jr.
REVISTA VIS
Editor
Nelson Maravalhas Jr.
Editores Convidados
Geraldo Orthof e Roberta Kumasaka Matsumoto
Editores Colaboradores
Fátima Burgos e Pedro Alvim
Conselho Editorial
Jorge Coli (UNICAMP), Luis Sérgio Oliveira (UFF), Jorge Anthonio e Silva (UNISO), Nelson Maravalhas Jr. (UnB), Maria
Beatriz Medeiros (UnB), Nivalda Assunção (UnB), Roberta Matsumoto (UnB) e Pedro Alvim (UnB)
Projeto Gráfico
Henrique Meuren
Capa
Henrique Meuren
Foto da Capa
Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na improvisação – UnB maio de 2009. Dançam: Eva Maria Maria e Marcos
Menezes
Revisão
Lilian Garcez
V822 Programa de Pós-Graduação em Arte
VIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte – V. 9
nº 1 janeiro/junho 2010, Brasília: Programa de Pós-Graduação
em Arte, 2010
176 p.
Semestral
ISSN 1518-5494
1.Artes Visuais. 2.Arte Contemporânea. 3.Interdisciplinaridade.
4. Artes no Brasil. 5. Processos Artísticos.
CDU 7(05)
Universidade de Brasília
Campus Universitário Darcy Ribeiro
Prédio SG-1
Brasília-DF - 70910-900
Telefone: 55 (61) 3307 1173
Fax: 55 (61) 3274-5370
[email protected]
• Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização de seus autores.
• As imagens de documentação da Universidade de Brasília fazem parte do acervo do Cedoc-UnB.
• Disponível também em: <http://www.vis.ida.unb.br/posgraduacao>
SUMÁRIO
7
11
EDITORAL
TEORIA E HISTÓRIA DA ARTE
A Itinerância dos Artistas: O Olhar Estrangeiro e o Rio de Janeiro do Século XIX
Angélica Madeira
23
A Lógica da Aparência (O Jogo do Sensível Segundo Duchamp)
Walter Romero Menon Junior
41
Matisse, Newman, Bené Fontele:A Paixão como o Re-encontro com a Imagem do Demiurgo
Vera Pugliese
53
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS
Elsewhere in Contemporary Art:Topologies of Artists’ Works, Writings, and Archives
Simone Osthoff
69
A Fragilidade como Potência: Precariedade e Imagem
Luciana Paiva
81
As Sombras dos Cantos: Um Estudo dos Espaços Públicos e Privados da Casa
Cecília Mori Cruz
93
PROCESSOS COMPOSICIONAIS PARA CENA
De Roda Viva a Os Sertões: Aspectos de uma Trajetória Teatral
Marianna Monteiro
103
A Imagem na Improvisação: A Dança do Imprevisto
Carla Sabrina Cunha
111
O Rei Lear, suas Referências e Níveis
Suzi Frankl Sperber
129
ARTE E TECNOLOGIA
Interfaces Computacionais: Perspectivas Poéticas
Cleomar Rocha
139
Senhas para a Apropriação Dissidente da Tecnologia pela Arte_Hackeamento
Daniel Hora
149
Entre o Real e o Imaginário: A Poética de uma Experiência Vivida
Gabrielle Patrícia Augusta Corrêa de Oliveira
159
RESENHAS
Blue Heart
CHURCHILL, Caryl. London: Nick Hern Book, 1997. 96 p.
Laura Alves Moreira
161
Maciej Babinski – Entrevistas
AZEVEDO, Gisel Carriconde. Brasília: CÍRCULO DE BRASÍLIA, 2006, 298 p.
Isabel Candolo
163
What is Dance? Readings in Theory and Criticism
COPELAND, Roger & COHEN Marshal (eds.). New York: Oxford University Press, 1983.
582 p.
Cínthia Nepomuceno
165
Oswaldo Goeldi: Iluminação, Ilustração
RUFINONI, Priscila Rossinetti. São Paulo: COSAC NAIFY e FAPESP, 2006, 316 p.
Fabio Fonseca
167
O Projeto de Rembrand.O Ateliê e o Mercado
ALPERS, Svetlana. São Paulo: Cia das Letras, 2010, 375 p.
Juliana de Souza Silva
169
O Mundo Codificado: por uma Filosofia do Design e da Comunicação
FLUSSER, Vilém. São Paulo: COSAC NAIFY, 2007. 224 p.
Carlos Praude
EDITORAL
Este número da Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília é o
segundo planejado de forma articulada à disciplina Seminário Avançado, estruturado a partir de um
conjunto de falas proferidas por professores e pesquisadores de diversas universidades.
����������������������������������������������������������������������������������������������
O número especial de janeiro/junho de 2008 (v. 7, n° 1) inaugurou a publicação de textos relativos às palestras oferecidas no quadro da disciplina Seminário Avançado. No período em questão,
a disciplina havia estabelecido uma pauta de reflexão sobre “perspectivas para a investigação na
arte”, que funcionou como elo entre os diversos temas escolhidos pelos convidados. O momento
era marcado, além disso, pela abertura do curso de Doutorado em Artes na UnB.
Hoje o PPG-Arte/UnB continua a abrigar as linhas de pesquisa de Arte e Tecnologia, Poéticas
Contemporâneas, Processos Composicionais para a Cena e Teoria e História da Arte, vinculadas
à área de concentração Arte Contemporânea. Durante o primeiro período de 2009, o Seminário Avançado esteve sob a responsabilidade de quatro professores-representantes das linhas de
pesquisa, que, no presente número, ocupam a função de editores convidados. Os palestrantes
convidados pelos professores-representantes tiveram autonomia na escolha dos temas de suas
palestras, não havendo uma definição prévia do eixo temático.
Outra diferença em relação ao momento anterior foi o estabelecimento de um compromisso
com a publicação de textos de estudantes dos cursos de mestrado e doutorado, a partir de uma
seleção feita pelos professores dos trabalhos apresentados ao longo da disciplina. Este número da
revista apresenta, assim, uma amostra das pesquisas realizadas por mestrandos e doutorandos que
cursaram, de forma simultânea, o Seminário Avançado em 2009. Decidiu-se também pela inclusão
de uma seção de resenhas de livros (que pode estender-se, futuramente, a outros tipos de produções, exposições e diferentes formas de intervenção artística), buscando estimular junto aos estudantes a elaboração de textos críticos sobre obras recentemente publicadas e/ou de circulação
restrita no Brasil, que têm servido de referência a pesquisas feitas no PPG-Arte.
Os artigos da revista continuam a exprimir uma diversidade de abordagens e pontos de vista,
o que, como já ocorria, tende a refletir um triplo viés: análise do estado contemporâneo das
artes, desdobramentos críticos do projeto moderno e releitura permanente do legado poético
e teórico da tradição. Este segundo número da revista com textos ligados ao Seminário Avançado
propõe-se a cumprir uma função de registrar e acompanhar os trabalhos de pesquisa teórica e
poética desenvolvidos no PPG-Arte/UnB. Como na edição anterior, buscamos a contribuição de
pesquisadores externos a esse quadro institucional específico, abrindo espaço, contudo, para o
início de um processo de reflexão sobre a produção intelectual e poética que vem sendo aqui
realizada, tendo em vista um aumento do diálogo entre as linhas de pesquisa e um maior conhecimento do direcionamento dos trabalhos realizados em nosso meio acadêmico.
Geraldo Orthof
Roberta Kumasaka Matsumoto
Fátima Burgos
Pedro Alvim
7
TEORIA E HISTÓRIA DA ARTE
A Itinerância dos Artistas:
O Olhar Estrangeiro e o Rio de Janeiro do Século XIX
ANGÉLICA MADEIRA*
Resumo
Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa sobre a constituição e organização do campo das artes nas
cidades-capitais do Brasil, com o foco no Rio de Janeiro do século XIX. Trata-se da expansão de um dos tópicos da palestra
proferida no Instituto de Artes da UnB, em 2009. Ao invés de apresentar toda a pesquisa, como na versão oral, preferi
deter-me sobre a questão da modelagem europeia de todo o processo civilizador pelo qual passaram as cidades brasileiras
no século XIX, particularmente notável no Rio de Janeiro, que representou o papel de cidade-modelo, sendo a capital
política e cultural do país.
Palavras-chave: Campo artístico. Artes visuais. Rio de Janeiro. Século XIX.
Abstract
This article presents the partial results of a research about the constitution and organization of the field of arts in the capitals cities of Brazil, focusing Rio de Janeiro in the XIXth Century. It devellops a topic from the speech given in the Arts Institute of Brasilia
University, in 2009. Instead of present all the research, as in the oral version, I have preferred to focus on the European modelling
of the civilisatory process in which were involved the Brazilian cities in the XIX th Century, especially remarkable in Rio de Janeiro,
which played the role of model city, as the politic and cultural capital of Brazil.
Keywords: Artistic field. Visual arts. Rio de Janeiro. XIXth Century.
Parte-se aqui do pressuposto de que existe um forte elo entre campo artístico e campo político.
A cada mudança de capital e a cada mudança política, há rearranjos de instituições e dos grupos
que definem uma época, seu gosto artístico e o estilo de vida das cidades. A hipótese sobre a
Itinerância dos artistas comporta uma dimensão ao mesmo tempo histórica e sociológica e se
formula com base em documentos e na constatação empírica do fluxo de artistas, de obras e de
modelos de arte que acompanha a migração das capitais. Este texto busca comparar dados e avaliar a pertinência e o rendimento de categorias de análise já testadas sobre Brasília e que, agora,
* Angélica Madeira é Doutora em Semiótica pela Universidade Paris VII, professora e pesquisadora do Departamento de
Sociologia da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco – MRE. Publicou os livros Leituras Brasileiras: Itinerários no
Pensamento Social e na Literatura (Ed. Paz e Terra, 1999) e Descobertas do Brasil (Ed. da UnB, 2001), em parceria com Mariza
Veloso, além de diversos artigos em periódicos nacionais e estrangeiros sobre literatura e cultura urbana. Publicou, em
2005, pela Editora da UnB, o Livro dos Naufrágios – Ensaio Sobre a História Trágico-Marítima, que recebeu o Prêmio Sérgio
Buarque de Holanda da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o Prêmio de melhor obra publicada em Ciências Sociais,
pela Anpocs – Associação Nacional de Pesquisadores em Ciências Sociais, em 2006. Sua pesquisa atual trata da Itinerância
dos artistas nas cidades-capitais.
11
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
orientam os estudos sobre a Itinerância dos artistas no Rio de Janeiro do período imperial. Foram
examinados parte da documentação disponível nos arquivos, obras literárias e relatos de época
para compreender a dinâmica do trabalho intelectual e artístico, assim como os procedimentos
concretos, equipamentos e instituições criadas para o funcionamento da vida artística na capital
do Vice-Reinado e do Império. Examina-se aqui tanto a presença dos artistas – viajantes europeus
no Rio de Janeiro – quanto os estudos dos artistas brasileiros na Europa. As duas posições evidenciam a pertinência do tema: o molde e a moldura do olhar brasileiro, a visibilidade possível na
força do olhar estrangeiro.
O interesse sociológico da Itinerância é evidente. Trata-se de um poderoso conceito mediador
que permite pensar a prática e recobre uma camada semântica densa que inclui a experiência
do exílio, do turismo, da emigração por busca de trabalho ou de refúgio político. Para os artistas,
a Itinerância tanto pode referir-se à prática artística e aos circuitos institucionais nos quais esta
prática está enredada como à atitude existencial exigida dos próprios artistas e que os faz tão
disponíveis para mudanças.
Itinerância ajuda a compreender o quanto o devir profissional de um artista está relacionado
aos circuitos sociais e institucionais que pontuam seu percurso e como ele se desloca dentro
desse circuito, onde se dão os agenciamentos sociais e se estabelecem as regras e as hierarquias.
No interior dos circuitos ou em intersecções entre eles definem-se práticas e habitus, as trocas
possíveis nos espaços destinados ao ensino, à exibição e à consagração da arte. A inserção do
artista nos circuitos, os grupos aos quais está ligado, permite compreender como o poder se
reorganiza internamente ao campo artístico.
As motivações das viagens são diversas. Elas variam de acordo com a inserção nos circuitos,
sempre em um duplo viés: por um lado, mudanças históricas que conduzem a rejeições raciais
ou de credo, perseguições políticas; por outro lado, acontecimentos que propiciam iniciativas,
como missões artísticas e científicas. Embora essas reflexões possam servir para pensar outras
configurações sócio-históricas, elas aqui são chamadas a explicar a situação das artes e dos artistas no Brasil dos oitocentos. Como tornar produtivo um conceito como Itinerância? Como
fazê-lo trabalhar para orientar a pesquisa, tomando como estudo de caso a cidade do Rio de
Janeiro no século XIX?
Rio de Janeiro nos Séculos XVIII e XIX
Sabe-se que, ao longo de todo o período colonial, houve um fluxo considerável de informações e
de modelos, traçados e livros ilustrados, trazidos por padres, arquitetos, músicos, intelectuais e artífices que viajavam pelos raros núcleos urbanos para exercer seu ofício onde houvesse demanda
de arte.
�����������������������������������������������������������������������������������������������
O Rio de Janeiro já era urbano e belo desde o início do século XVIII. Angariara prestígio e autonomia, uma cidade portuária importante, principalmente na gestão de governantes ilustrados. O
aqueduto da Lapa, erguido entre 1719 e 1724, na administração de Aires Saldanha, levava as águas
do rio Carioca até um chafariz, onde desaguava em dezessete bicas1. Ainda no mesmo século
XVIII, D. Luis de Vasconcelos, considerado um vice-rei esteta, foi o responsável por encomendas de
obras públicas que trouxeram grande embelezamento à cidade, como o chafariz do Paço, o projeto paisagístico, as esculturas e o portão do Passeio Público, obras de Valentim da Fonseca e Silva.
Escultor e artífice da pedra, Mestre Valentim foi encarregado de produzir elementos para ornar
muitas outras fontes e praças, pontos da cidade frequentados pelos habitantes e pelos viajantes.
Quando, na segunda metade do século XVIII, o Rio se torna a capital do Brasil, mudanças políticas
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
e um forte terremoto haviam alterado profundamente a Metrópole, que entrava em sua fase mais
iluminista e laica, mais imponente e mais autoritária.
�����������������������������������������������������������������������������������������
A transferência da sede do Governo- Geral de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, encontra numerosas explicações, dentre as quais a de natureza geopolítica: a situação geográfica,
mais central em relação à totalidade do território do que a cidade baiana, o que permitiria ter
maior controle, evitando o desmembramento, como indicavam os conflitos nas zonas de fronteira com as terras sob o domínio espanhol. Também exaustivamente citado é o argumento, de
ordem econômica, da importância crescente que foi ganhando o porto do Rio como portal para
o escoamento do ouro de Minas Gerais, do açúcar e de outras matérias-primas para a Europa. A
atração paisagística parece também ter sido uma forte razão para a transferência da capital: uma
topografia irregular e surpreendente, morros e pântanos, florestas e fontes, altas pedreiras emergindo do mar.
O Rio torna-se capital em um momento de rupturas políticas e estéticas importantes ocorridas
em toda a Europa e, particularmente em Portugal, na passagem do reinado de D. João V (1697 –
1750) para D. José I (1750 – 1777). Neste momento, o poderoso ministro, o marquês de Pombal,
comandou mudanças institucionais importantes, principalmente reformas urbanas em Lisboa, atingida pelo terremoto de 1755.
Definiu-se então um novo gosto artístico, mais classicizante, que se refletiu sobre a capital da
Colônia, promovendo a passagem do Rio barroco para a cidade pombalina do século XVIII, uma
cidade menos católica e mais austera. O centro da produção artística deixa de ser a igreja e os
mosteiros e passa a concentrar-se no Paço, sobretudo após a expulsão dos jesuítas, em 1759, e
a chegada de D. Luis de Vasconcelos, que governou por doze anos e foi responsável por transformações urbanísticas e pelo embelezamento da cidade2. Desde este momento que antecede à
chegada da corte portuguesa, nota-se uma preocupação em dotar a cidade de equipamentos urbanos, espaços públicos que suscitassem a criação de novos hábitos civilizados, como o de passear
nos jardins, espaços adequados e agradáveis para a população mais abastada, que começa, então, a
frequentar locais protegidos, como o Passeio Público, já que as ruas, tomadas pelos escravos, eram
interditadas às pessoas de bem.
A configuração colonial da cidade se rompe com a vinda da Corte Real portuguesa, em 1808
e, mais precisamente, com a elevação do Brasil ao estatuto de Reino-Unido, em 1815. A presença da família real, cuja viagem fora motivada pelas guerras napoleônicas, trouxe consequências
incontestes do ponto de vista civilizacional para a cidade. Com a comitiva de D. João VI, vieram
artistas, arquitetos, cientistas, naturalistas, músicos; objetos de arte como quadros – alguns mestres
quinhentistas e pintores barrocos italianos, origem principal do acervo do Museu de Belas Artes
–, pratarias, esculturas e uma imensa biblioteca, com 70 mil volumes, de que até hoje se orgulha
a cidade do Rio de Janeiro3. Assiste-se então à criação de várias instituições – embora não de
universidades – exigindo intelectuais, naturalistas e artistas. Das instituições criadas, merecem destaque o Horto Real, atual Jardim Botânico; a Escola Naval, em 1808; a Academia Real Militar, em
1811; a Escola médico-cirúrgica, em 1813; a Imprensa Regia e a Escola de Ciências, Artes e Ofícios,
em 1815 (VELOSO, M. e MADEIRA, A., 1999, 64).
A partir daí, o Rio tornou-se definitivamente a capital do século XIX brasileiro, sede da Corte,
com todas as implicações materiais e simbólicas já exploradas por Norbert Elias (1993) em relação à Europa: modelo de civilização e locus do poder.
Indiscutível marco e ruptura na orientação do campo das artes foi a chegada ao Rio de Janeiro,
em 1816, de um número significativo de artistas, o que ficou conhecido como “Missão Francesa”.
2. D. Luís de Vasconcelos (1742-1809) foi o 12º. Vice-Rei e Capitão de Mar e Terra do Estado do Brasil, de 1778 a 1790.
3. A Biblioteca Real, formada a partir das bibliotecas de D.João VI e do Conde da Barca, foi aberta à livre frequência do pú-
12
1. Esse chafariz era localizado onde hoje se encontra o Largo da Carioca.
blico em 1814 e funcionava no hospital da Ordem Terceira dos Carmelitas, atrás da igreja do Carmo, no centro da cidade.
13
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
A partir daí – e tendo que superar fortes impedimentos – redefiniu-se o gosto artístico e a arte
acadêmica adquiriu uma hegemonia que duraria os dois impérios, isto é, todo século XIX. As dificuldades encontradas pelos artistas franceses Taunay, Lebreton, Debret e Hercule Florence no
Brasil eram de ordem política stricto sensu, pois, como artistas acolhidos na Corte, não poderiam
deixar de sofrer as consequências da mudança de regime político acarretadas pelo evento da
Independência, em 1822, que retardou em mais de dez anos a abertura da Academia Imperial
de Belas Artes. As dificuldades eram também internas ao mundo das artes, pois embora rarefeito
e disperso, este era composto por artistas de formação erudita como Manuel da Cunha (17371809) e Manuel Dias de Oliveira, o Brasiliense (1764-1837), ambos de origem humilde, nascidos
no Brasil, mas formados na Europa, o primeiro em Lisboa, o segundo, na Academia de San Lucca
de Roma. Estes artistas dedicavam-se basicamente à pintura religiosa, de forte travo lusitano nas
convenções iconográficas e na palheta sombria, composta de castanhos e vermelhos fechados, e
ficaram conhecidos como Escola Fluminense, segundo a consagradora Memória sobre a Escola Antiga de Pintura Fluminense, lida na sessão de 30 de novembro de 1841 do Instituto Histórico Brasileiro, por Araújo Porto-Alegre. Um artista como Leandro Joaquim, aluno de Manuel da Cunha,
deixou cenas únicas da vida urbana do Rio, uma série de seis medalhões ovais, anteriores a 1792,
representando as lavadeiras no banhado da Lapa, com o aqueduto do rio Carioca já construído,
ou os pescadores na praia da Glória, com a igreja ao fundo4.
Como em todas as partes do mundo ocidental, antes da criação de escolas públicas, o ensino
das artes se dava em estúdios particulares, onde os aprendizes de um ofício se exercitavam em
desenho, pintura, gravura, escultura, fundição ou ciselamento, nos gêneros em voga em cada época.
Viam-se mais como oficiais/ artífices, ou seja, como pessoas que possuíam o domínio técnico de
um ofício, do que como artistas, no sentido que lhes foi atribuído pelo idealismo, de gênios ou
seres excepcionais.
Viagens
Ao longo de todo o século XIX, as viagens tiveram grande importância tanto para a arte europeia
quanto para a arte brasileira. A voga do exotismo, antes concentrada no Oriente, transfere-se
agora para as Américas que, além de paisagens sublimes, possuía também civilizações perdidas, reais ou imaginárias. Ferdinand Denis foi um elo importante. Tendo vivido quatro anos no Rio como
funcionário consular, após seu retorno a Paris publicou um compêndio de literatura portuguesa
e brasileira5 e tornou-se o principal interlocutor dos brasileiros que para lá se dirigiam, como o já
citado Araújo Porto-Alegre, Gonçalves de Magalhães e Torres Homem, intelectuais que tiveram
proeminência nas instituições do Primeiro Reinado.
���������������������������������������������������������������������������������������������
Neste período, o Rio ficou conhecido como a Meca dos artistas estrangeiros. Atraídos ao mesmo tempo pela exuberância da natureza, tão decantada e valorizada pelo Romantismo, e por uma
corte receptiva às artes e ciências em geral, eles chegavam com regularidade, em grupos ou individualmente, instalavam-se na cidade por um tempo mais ou menos longo, dependendo do interesse e das condições que encontravam. Para um grande número deles, o Rio era apenas um ponto
de chegada da Europa e de partida para a exploração de paragens mais exóticas e desconhecidas,
ponto de entrada nos Trópicos. A arquiduquesa da Áustria, a cultivada Dona Leopoldina, perten4. As seis telas ovais foram pintadas para ornamentar um dos pavilhões do Passeio Público. Todas medem 88 X 114 cm e
estão guardadas no Museu Histórico Nacional.
5. Résumé de l’Histoire Littéraire du Portugal Suivie du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil, publicado em Paris, em 1826.
Denis viveu no Rio entre 1816 e 1820. Em Paris, tornou-se diretor da Biblioteca de Sainte Geneviève, onde recebia seus
14
amigos e diplomatas brasileiros.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
cente à casa de Habsburgo, conhecida por seu requinte e sofisticação, atraiu artistas de toda a Europa – alemães, austríacos, suíssos, suecos, espanhóis, italianos, dinamarqueses e russos – em busca
de patronato em uma Corte recentemente instalada e, portanto, com demanda potencial para o
serviço dos artistas, pintores de retratos e pintores históricos para registrar os acontecimentos.
����������������������������������������������������������������������������������������������������
A vida intelectual e artística brasileira ficou, a partir de então, fortemente marcada por duas evidências: a centralização na Corte – o Rio era o ponto de chegada e de partida de todos, onde se
desenvolveu mais rapidamente a civilização de gosto europeu, com a abertura dos portos, a entrada
de mercadorias, o mar, em tudo a cidade era voltada para a Europa – e, em segundo lugar, as viagens
em mão inversa, que punham os artistas brasileiros em contato com ideias e tendências europeias.
Se havia artistas e naturalistas europeus acompanhando missões científicas ou diplomáticas,
como Burchell, Rugendas, Thomas Ender, Lord Chamberlain ou Maria Graham , havia também os
raros artistas brasileiros agraciados com prêmios de viagem nos salões oficiais da Academia, que
seguiam todos os anos para a Europa.
O ano de 1815 é marcante no campo político por ser a data da elevação da autoestima dos
brasileiros, momento em que o Brasil se torna Reino-Unido a Portugal e Algarves. Para o campo
das artes, 1816 foi marco fundamental: data da chegada dos artistas franceses. Não há consenso
entre os historidores sobre o estatuto da “Missão Francesa”. O fato é que a 26 de março de
1816, a bordo do veleiro americano Calphe, desembarcam no Rio de Janeiro artistas de muitas
especialidades, sob o comando de Joachin Lebreton. Grandjean de Montigny, Debret, Taunay e
Pradier são alguns dos que participaram desta expedição, que introduziu uma ruptura em relação
à visualidade e à mentalidade tradicionais. Dela resultou um acervo de documentos importantes
para a compreensão do período e, particularmente, do olhar estrangeiro sobre o Brasil. Segundo
interpretação recente, a vinda dos artistas franceses ocorreu a partir de uma iniciativa deles próprios (SCHWARCZ, 2008): um encontro providencial entre o marquês de Marialva, Lebreton e
Humboldt, que parece ter comentado, entusiasmado, sobre a receptividade da América para as
artes e ciências, a partir de sua observação da vida intelectual da Cidade do México. A hipótese
mais provável é que tenham querido se afastar da corte de Napoleão, já derrotado em Waterloo.
Organizada a viagem e chegados a seu destino, foram necessários outros entendimentos entre o
conde da Barca, o marquês de Aguiar e Lebreton para a fundação da Academia. Ficaram todos tão
envolvidos com os acontecimentos políticos de 1822 que só conseguiram pôr em funcionamento
a Academia em 5 de novembro de 1826, inaugurando uma sede própria dez anos depois, em
prédio cujo projeto era de autoria de Grandjean de Montigny.
Outro fato é que aqueles artistas, acolhidos por D.João VI e seus ministros como pintores e
arquitetos da corte, trouxeram uma redefinição completa das regras, dos temas e dos códigos estéticos vigentes – ainda lusitanos e católicos, herança colonial – e conseguiram, não sem enfrentar
resistências dos pintores e artistas que exerciam suas atividades na cidade, impor a arte acadêmica
como hegemônica durante mais de um século. Há uma enorme literatura sobre a mutação brusca
dos hábitos e práticas sociais acarretados pela presença da Família Real na cidade, tornada modelo
e parâmetro para as classes burguesas e abastadas. Assim também é notada a presença bastante
numerosa de estrangeiros, o que contribui para a modelagem de um habitus urbano no Rio de
Janeiro – o cosmopolitismo, gosto pela adoção de modas – antes que em qualquer outra cidade
brasileira, o que leva Maria Graham a afirmar em seu diário, em 1821, que o Rio era a mais europeia das cidades brasileiras.
A capital do Império apropriava-se do novo, modificava seus hábitos, seus trajes, aumentava o
número de passeios em lajes de granito e de ruas pavimentadas – Ouvidor, Lavradio, Alfândega,
Sacramento, Lampadosa – , onde se instalava o comércio de luxo: modistas, joalheiros, chapeleiros,
alfaiates, sapateiros, confeiteiros e livreiros. No dizer de um viajante que passou por lá em 1836,
o botânico inglês Gardner, a rua do Ouvidor era a “Regent Street”do Rio, encontrando-se nela
quase todos os objetos de luxo europeus ( MELLO-LEITÃO, 1937, 117).
15
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
��������������������������������������������������������������������������������������
A partir da Independência, em 1822, mesmo que dois imperadores portugueses tenham ocupado o trono, os governantes empenharam-se em organizar a nação em outras bases, chamando
os intelectuais a esta tarefa. Nosso Romantismo não foi nenhum vento de revolta, mas um momento de construção de narrativas oficiais sobre a jovem nação livre. Era ainda muito recente a
mudança do estatuto colonial. Lê-se, em tudo, um espírito contemporizador, um conservadorismo
e um aulicismo que impregnaram a literatura, a historiografia, a pintura e a arte oficial que se desenvolvia em torno da Corte e, a partir do II Império, em torno do próprio Imperador, numa associação pouco comum entre liberalismo e monarquia. Quase todos os viajantes, artistas, cientistas e
naturalistas estrangeiros que visitavam o Brasil eram recebidos na Corte, pois era tradição daquela
Casa Real valorizar músicos, escritores, naturalistas, artistas, o que torna possível afirmar que, de
D.João VI aos Imperadores, está em curso um projeto civilizador, um projeto de anexação cultural
do Novo Mundo ao imaginário do continente europeu.
A independência não poderia deixar de ser um marco político com profundas implicações no
campo do ordenamento jurídico e no plano estético. Era necessário implementar instituições que
permitissem estabelecer uma nova ordem jurídica e criar uma elite capaz de assumir postos administrativos e políticos.6 Uma instituição responsável pela pesquisa e pela escrita da história nacional
foi criada em 1836, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB –, que espalhou-se sob
a forma de sucursais nas capitais das províncias e manteve correspondentes em academias científicas de várias partes do mundo, levantando, analisando e repatriando para o Brasil documentos
importantes para a escrita da história nacional.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
nalizantes, voltados para operários, artífices e mulheres. O Lyceu não queria ser um arremedo da
AIBA8. Ministrava-se ali o ensino do desenho e da matemática para aplicá-los às várias ramificações
da indústria fabril e manufatureira. Também eram organizados eventos, concursos e exposições
que incluíam artistas sem espaço na AIBA, considerada um apanágio das elites. De fato, a crer no
depoimento de Porto-Alegre, a AIBA era constituída por um grupo de franceses bastante fechado,
com muita dificuldade de assimilar um novo membro, mesmo quando este havia sido aluno de um
dos mestres mais prestigiados da Academia, como no caso do próprio Porto-Alegre, aluno de JeanBaptiste Debret. Debret veio na Missão de 1816 e ficou no Brasil por 15 anos, ocupando o cargo
de pintor da corte, onde além de imortalizar rituais como a coroação de D. Pedro I, ou a chegada
de Dona Leopoldina, em pinturas a óleo sobre telas de grande dimensão, retocava carruagens e
montava cenários para a aparição dos monarcas. A título de anotações deixou vários cadernos
de aquarelas e desenhos, observando e registrando de forma perspicaz os costumes da rua e os
escravos, em momento de nítida transição histórica. O acervo de imagens-documentos deixado
por ele é de suma importância para o entendimento do Brasil, mais precisamente da passagem do
Brasil colonial ao imperial (NAVES, 1996).
�������������������������������������������������������������������������������������������
Porto-Alegre indignava-se com a arrogância dos franceses e com a pouca clareza de suas premiações e promoções. Dizia sentir-se perseguido pelos colegas estrangeiros que, injustamente,
falavam mal do Brasil e dos brasileiros:
Ressenti-me e repeli com energia tanta ingratidão para com um país que havia acolhido esses estrangeiros,
que os nutria e lhes dava uma posição muito além de seus méritos, e de suas qualidades pessoais. (PORTOALEGRE apud GALVÂO, 1959, p. 63)
Os Pensionistas do Imperador
Artistas brasileiros agraciados com prêmios de viagem tornavam-se “os pensionistas do Imperador”, com direito a estudar na Europa por vários anos. Iam para Roma ou Florença, onde Pedro
Américo ficou oito anos e Victor Meireles, seis. Os bolsistas da segunda geração - Almeida Junior,
Rodolfo Amoedo, Pereira da Silva - preferiam Paris, onde frequentavam os ateliers dos artistas ditos “pompiers”, como Cabanel, Hanoteau, Bouguereau, Gerôme, Bonnat e Baudry, mestres de treino acadêmico eclético e com o gosto pela eloquência, sobretudo no gênero de pintura histórica e
alegórica (MADEIRA, A. 1990). Aquela educação artística – tanto o aprendizado técnico quanto a
modelagem do olhar – toma a Europa como único parâmetro civilizacional para os artistas, o que
lhes provoca, no seu retorno ao Brasil, um profundo mal-estar, sentimentos ambivalentes e um
desconforto diante da estreiteza, ou dos limites, da vida intelectual e artística local, sobretudo após
1850, toda ela girando em torno das instituições oficiais apoiadas pelo Imperador.
Lyceu de Artes e Ofícios
Outra instituição importante para a formação dos artistas foi o Lyceu de Artes e Ofícios7, pelo qual
passaram artistas e artesãos de talento. O Lyceu era sustentado por uma sociedade benemérita,
Sociedade Propagadora das Belas Artes, e voltado para a educação popular. Seu segundo fundador,
o Comendador Francisco Joaquim Bethencourt Silva, embora de origem simples – o pai era um
carpinteiro português – era diplomado arquiteto pela Academia, onde fora aluno de Grandjean
de Montigny. Sua preocupação com a instrução pública levou-o a criar cursos noturnos profissio6. Daí a decisão de criar os cursos jurídicos, implantados em 1827 em Olinda e em São Paulo.
����������������������������������������������������������������������������������������������
Outros modelos estéticos e gêneros pictóricos foram trazidos pelos vários artistas que visitavam e montavam ateliers na cidade. O principal achado desse segmento da pesquisa, até agora,
foi constatar que ao mesmo tempo em que o Lyceu e a Academia, instituições oficiais e de maior
prestígio, congregavam artistas e professores consagrados e recebiam estrangeiros para temporadas, representando a formalização do ensino das artes no Brasil, havia artistas independentes que
mantinham estúdios e ateliers livres na cidade, ensinando, pintando, recebendo encomendas – paisagens, santos, ornatos, retratos – de um mercado incipiente e nem sempre visível.
Artistas estrangeiros como Facchinetti ou Henri-Nicolas Vinet, apesar de ligados ao Imperador
e à AIBA, mantiveram ateliers livres, especializando-se em paisagens, encantados com os horizontes imensos, ressaltando o que havia de grandioso e de sublime na natureza tropical. Assim
também ocorreu com Biard, que passou dois anos e foi muito bem recebido pela corte, ou com
Ferdinand Krumholz, que permaneceu por quatro anos no Brasil como professor da AIBA, entre
1848 e 1852, a convite de Porto-Alegre, que o conhecera em Lisboa, na Academia Real. Abraham
Buvelot, Adolphe Patermont, Edoardo De Martino são alguns dos pintores estrangeiros que passaram pelo Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX e deixaram registros de sua passagem.
Tudo indica que esta prática dos artistas independentes se sustenta ao longo do tempo. Mais
para o fim do século, provavelmente em 1878, chega ao Brasil um pintor alemão chamado Georg
Grimm. Acompanhar seu percurso é um estudo de caso da Itinerância dos artistas.
Grimm tentava escapar do autoritarismo e da perseguição aos católicos que se seguiram ao fim
da guerra entre Prússia e Alemanha, em 1870, motivo, aliás, de significativo êxodo de artistas e intelectuais insatisfeitos com a situação política de seu país. Nascido em Immenstadt e formado pela
Academia de Belas Artes de Munique, Grimm é acolhido no Rio de Janeiro por um conterrâneo,
comerciante abastado, Friedrich Anton Steckel que, juntamente com mais dois irmãos, mantinha
loja de decoração à rua do Lavradio, número 16. Ali se contratavam serviços para pintura de casas
7. O Lyceu de artes e ofícios foi fundado em 1815 por D. João VI, sendo desativado e refundado, em 1856, pelo Comen16
dador Francisco Bethencourt Silva.
8. Academia Imperial de Belas Artes.
17
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
e navios, fingimento, douração, decoração, tabuletas; vendiam-se tintas, vernizes e outros apetrechos de pintura. Grimm trabalha nessa loja até 1882, data em que tem a oportunidade de expor
seus trabalhos em uma mostra grande e importante organizada pela Sociedade Propagadora das
Belas Artes, no Liceu de Artes e Ofícios. Das 418 obras expostas, 128 eram de Grimm. Tamanho
foi o sucesso do pintor que uma semana depois recebeu um convite da parte do Ministério dos
Negócios do Império para integrar o corpo docente da Academia, cujo diretor, à época, era Antonio Nicolau Tolentino. Grimm, de personalidade um pouco rude, severo e franco, vestindo-se com
negligência, segundo seu discípulo Antonio Parreiras, não foi bem recebido pelos colegas. Rompe
com a AIBA e, com ele, afasta-se o grupo considerado o mais talentoso, o que afeta o status do
ensino oficial da instituição. O grupo é formado por Grimm e outros sete artistas, dentre os quais
seu amigo Thomas Georg Driendl, Hipólito Caron, Giambattista Castagneto e Antonio Parreiras9.
No atelier da Boa Viagem, em Niterói, eles iniciam a prática de pintar ao ar livre. O grupo tem seu
apogeu em1884, quando todos os seus membros são premiados em consagradora Exposição da
Sociedade Propagadora das Belas Artes. Em 1887, atingido por uma tuberculose, Grimm volta à
Europa em busca de melhores condições de tratamento. Morre em Palermo, Itália, no mesmo ano.
Neste final de século XIX, no plano das ideias, os interesses voltam-se para ideologias liberais
e progressistas, e tudo o que diga respeito ao passado fica esquecido, considerado como sinônimo de atraso e de desleixo. Esta desvalorização da tradição lusitana segue paralelamente à
valorização da civilização francesa, o que atinge seu ápice na transição do século XIX para o XX,
quando ocorre um fato conhecido como o “bota abaixo” (1900). A urbanização embelezadora e
a consequente mudança nos costumes passam à historiografia como a belle époque carioca. 10 São
demolidos imensos casarões coloniais, bem como sobrados imperiais do centro da cidade ocupados pela população pobre, para dar lugar a novas praças e avenidas, palácios de mármore e cristal,
pontilhados de estátuas importadas diretamente das fundições francesas. Segundo os jornais da
época, eram as “picaretas regeneradoras”, que deixavam para trás a imunda e retrógrada cidade
colonial (SEVCENKO, 1985:30).
Esse momento é tematizado na literatura não como uma abstração, mas por meio de uma
percepção viva, encarnada, dos contemporâneos que assistiam às enormes transformações que
se processavam na cidade, tanto no campo social como na visualidade, na arquitetura,11 onde
dominou o ecletismo; em seguida, o art nouveau e, posteriormente, o art-déco, sucedendo-se,
superpondo-se, sinônimos de bom gosto e de modernidade (SEVCENKO, 1985). Com a República, as elites locais tornam-se mais intolerantes em relação às práticas populares e às tradições
africanas, defendendo, de modo incondicional, a modernização e o reforço de hábitos civilizados, a
julgar pelas crônicas da época. A velha cidade tinha seus dias contados, as casacas e cartolas negras
do Império cediam lugar ao paletó de casemira claro e ao chapéu de palha da Primeira República.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
A primeira metade do século foi o momento de formação de uma intelligentsia e de um novo
impulso no esforço para a implantação de um processo civilizador – e modernizador – na cidade.
O Rio de Janeiro, sede da Corte, palco das transformações urbanas visíveis, tornou-se o principal
modelo dos novos hábitos, dos novos costumes, difundindo-os por todas as capitais das províncias
do Brasil, que passaram a compartilhar o ideal de modernização.
Foi construída uma periodização para marcar os momentos de inflexão ao longo da história
da Itinerância dos artistas: suas razões, sua rede de relações, suas escolhas, estéticas e políticas. Os
recortes temporais buscam criar nexos entre os dois campos, permitem visualizar a dinâmica das
relações sociais em ação no “mundo da arte”.
Em todas as etapas da pesquisa, teóricas ou empíricas, foi levado em consideração o modo de
organização dos grupos, o vínculo entre estética e política, com ênfase no conceito de Itinerância,
confirmando sua utilidade para pensar, do ponto de vista da sociologia da cultura, a produção estética das cidades. Na realidade, se tomarmos o exemplo do grupo de maior prestígio no Rio de
Janeiro dos oitocentos – os artistas ex-alunos da AIBA –, observa-se o quanto a cidade e a instituição atraem os talentos de todas as partes do Brasil, assim como os que chegam da Europa. Victor
Meireles vem de Santa Catarina; Augusto Rodrigues Duarte vem de Portugal, menino, e volta à
Europa para estudar em Paris; Pedro Américo vem de Areias, Paraíba; Rodolfo Amoedo, de Salvador; Almeida Junior, de Itu, São Paulo; Belmiro de Almeida, de Minas Gerais; Lucílio Albuquerque,
do Piauí; José Maria de Medeiros, de Faial, Cabo Verde; Castagnetto é genovês; Modesto y Brocos
é de origem espanhola, como Garcia y Vazquez, natural de Vigo; Eliseu Visconti é de origem italiana;
os irmãos Bernardelli, de origem chilena, vêm da Argentina. Araújo Porto- Alegre (1806-1879),
primeiro filho do Brasil a entrar como professor na Academia, veio do Rio Grande do Sul. Antonio
Parreiras e Pinto Bandeira são de Niterói. Nascidos e criados no Rio de Janeiro, há França Júnior,
Firmino Monteiro, Estevão Silva, Décio Vilares, João e Arthur Timóteo da Costa e João Zeferino
da Costa (1840-1915), que também estudou na Europa e foi professor da Academia. A cidade e
a Academia exerciam grande poder de atração, principalmente sobre os aspirantes a artistas das
regiões mais próximas, como os fluminenses e capixabas.
Considerações finais
No Rio de Janeiro do século XIX, dificilmente se pode falar de campo (em sentido sociológico
estrito), na medida em que toda a vida cultural da cidade estava muito vinculada ao poder político.
Não há autonomia e este segmento erudito da arte conhece demanda e produção bastante reduzidos, poucas escolas e raros espaços expositivos.
9. Os outros membros do grupo são Domingo Garcia y Vasquez, J.J.França Junior e J.F. Gomes Ribeiro.
10. O “bota abaixo”, assim denominado pelos jornais da época, foi o movimento das grandes demolições que antecederam às reformas embelezadoras e higienizadoras do governo de Rodrigues Alves, com Oswaldo Cruz e Pereira Passos à
frente.
18
11. O romance de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, tematiza esta questão de modo patético.
19
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
Referências
ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira. Rio de Janeiro: Graal, 1981
BARROS, A. Paes de. O Liceu de Artes e Ofícios e seu fundador. Rio de Janeiro,1956.
BERGER, Paulo. Bibliografia do Rio de Janeiro. s.r.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1981.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, I, Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto-Alegre: sua influência na Academia Imperial das Belas Artes e no meio artístico
do Rio de Janeiro. Revista SPHAN, n. 14, 1959, pp. 19-120.
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Pref. E ed. De Jacobina Lacombe. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1956.
GRUZINSKI, Serge. La colonisation de l’imaginaire. Paris: Gallimard, Paris, 1988.
FREIRE, Maria L. Imagens da arte brasileira. Rio de Janeiro: Cesgranrio, 2005.
LEITE, José Roberto Teixeira. Os artistas estrangeiros. In: Arte no Brasil. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
LEITE, José Roberto. Negros, pardos e mulatos na Pintura e na Escultura Brasileira do séc. XVIII. In: A mão Afro-brasileira.
São Paulo: Odebrecht, 1988.
MADEIRA, Angélica. Os pensionistas do Imperador. Lusitânia, vol I, no. 3 Avilez Editor, Nova Iorque, 1990.
MELLO-LEITÃO, C. O Brasil visto pelos ingleses. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1937.
MORALES DE LOS RIOS, A. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: Topbooks/ Univer-cidade, 2000.
NAVES, Rodrigo. A forma difícil. São Paulo: Ática, 1996
PARREIRAS, Antonio. História de um pintor, Rio de Janeiro: Niterói Livros, 1999.
PINHEIRO, Maciel. O Rio de Janeiro através das Revistas. IHGB – 1839-1965. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1965.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, 2008.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1985
TAUNAY, Afonso de. Visitantes do Brasil Colonial – sécs XVI-XVIII. São Paulo: Biblioteca Brasiliana, Cia Ed. Nacional, 1936.
URRY, John. Sociology beyond society. Londres: Routledge, 2000.
VELOSO, Mariza e MADEIRA, Angélica. Leituras brasileiras. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
20
A Lógica da Aparência
(O Jogo do Sensível Segundo Duchamp)
WALTER ROMERO MENON JUNIOR *
Resumo
Este texto pretende analisar a articulação intrínseca entre figuração e enunciação, elucidando-a a partir da analogia pressuposta entre três noções básicas: a de paganismo, elaborada por Jean-François Lyotard; a de Mana, observada por Marcel
Mauss; a de Infra-mince, desenvolvida por Marcel Duchamp. Nosso objetivo é evidenciar que a lógica da aparência, segundo a noção de Duchamp, pressupõe necessariamente que a função do enunciado é a da figuração, assim como a da
figuração, a de enunciar. Tal articulação condiciona o uso da linguagem e envolve toda produção de sentido. Tendo em vista
que, no âmbito do uso da linguagem, o pragmático é primordial em relação ao sintático e ao semântico, defenderei que
no ato de enunciar, a linguagem se faz jogo – jogo de linguagem, nos termos de Wittgenstein –, jogo em que aquilo que se
enuncia, o referente, tem sua efetividade, no sentido de Wirklichkeit, como realidade efetiva, em contraposição à realidade
compreendida como potencialidade ou como necessidade. Assim, a efetividade do referente abarca e constitui o que pode
ou o que é necessariamente dito no enunciado como o “isto” que é aí figurado, enquanto figuração de si mesmo. Portanto,
enunciado, referente e conceito, são sinônimos e o enunciar/figurar é o lugar possível da experiência sensível.
Palavras-chave: Infra-mince. Enunciado. Figurar. Mana. Jogos de linguagem.
Abstract
In this paper I analyse and clarify the intrinsic connection between “figuration” and “statement” using an analogy between three
basic notions: the paganism elaborated by Jean-François Lyotard, the Mana studied by Marcel Mauss and the infra-mince developed
by Marcel Duchamp. Our objective is to show that the logic of appearance, according to the notion of Duchamp, inevitably presupposes that the function of a statement is to make a figuration, and equally, that the function of a figuration is to make a statement.
This connection sets the conditions for the use of language and the production of meaning. In language, the pragmatic domain precedes the syntactic and the semantic: the language itself becomes a game: a language game in Wittgenstein’s terms. All statements
are part of a language game. It is in the context of this game that what we say has its effectiveness, in the sense of Wirklichkeit: the
effective reality rather than potential or necessary reality. Therefore, the effectiveness of the referent encompasses and constitutes
what can be, or is necessarily, said in the statement as the “this” that is figured there as its figuration itself.Thus,the statement, the
referent and the concept are synonymous, and the statement / figuration represents the location of sensible experience.
Keywords: Infra-mince. Statement. Figuration. Mana. Language game.
* Doutor em filosofia pela Universidade Paris VIII, Mestre em Comunicação Social pela UnB, Walter Menon é atualmente
pesquisador colaborador no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes UnB e na Faculdade de Comunicação
da mesma universidade. Paralelamente, desenvolve trabalho como artista plástico desde 1998.
23
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
I
Nas Notas, Marcel Duchamp prescreve a fórmula para dar a aparência, “os ares”, de uma demonstração (l’allure d’une démonstration) a um texto que faz referência a uma obra. Ele apresenta esta
fórmula aprofundando sua estrutura prescritiva quanto à composição mesma do texto, a fim de
demonstrar a ligação estreita entre enunciar e tornar visível. Duchamp inventa a noção de lógica da aparência para mostrar a similaridade entre a composição do texto e aquela do quadro,
demonstrando, pela estreita ligação entre enunciar e tornar sensível, que a pintura apenas pode
“aparecer” na condição de analogia entre os diversos eventos plásticos e as formas da lógica do
texto: axiomas, conclusões necessárias e assim por diante.
Dar ao texto os ares de uma demonstração ligando as decisões tomadas por fórmulas convencionais de
raciocínio indutivo em certos casos, dedutivos em outros. Cada decisão ou evento da pintura torna-se ou
um axioma ou uma conclusão necessária, segundo uma lógica da aparência. Essa lógica da aparência será
exprimida somente pelo estilo (fórmulas matemáticas, etc.) e não retirará da pintura seu caráter de mistura
de eventos imaginados plasticamente, pois cada um desses eventos é uma excrescência da pintura original.
Como excrescência o evento permanece somente aparência e não tem outra maneira de se apresentar que
não seja a de significação de imagem (contra a sensibilidade plástica). (DUCHAMP, 1999 : 47)
24
������������������������������������������������������������������������������������������
Na lógica da aparência, a figuração e a enunciação funcionam como um único dispositivo essencial que permite a manifestação de arranjos circunstanciais constitutivos da linguagem. Deixase aparecer, nos enunciados afirmativos e descritivos, a função prescritiva que condiciona os arranjos entre elementos plásticos de uma obra. Deixa-se aparecer, em outros termos, o acordo
entre linguagem e experiência sensível, pelo qual tais formas de enunciados deixam efetivamente
ver o que não pode ser visto fora do enunciado, quer dizer, ver uma obra de arte. Esta fórmula duchampiana para configurar uma obra particular – cuja propriedade é a de representar as
maneiras de “fazer ver” pela linguagem – apresenta-se sempre por um processo de abstração
de suas regras de enunciação em uma figuração singular, cuja universalidade, paradoxalmente, é
incontestável.
Evento singular de atualização de um arranjo de elementos plásticos, derivados de um conjunto
de arranjos possíveis de enunciados, a arte torna visível a dinâmica de tornar visível esta dinâmica
e, por conseguinte, expõe (torna visível) a presentificação do arranjo de elementos linguísticos,
como o “tornar visível” da articulação estrutural da figuração. É um bricolage, um trabalho de
montagem que se faz sem bricoleur, sem o montador; um arranjo que obedece às regras de
associação de ideias, semelhantes àquelas que regem a magia, segundo observou Marcel Mauss.
Este trabalho pode-se denominar associação entre signos por regras de afinidade, de simpatia,
sendo que estas regras mesmas podem ser consideradas signos de ligação entre signos. Signos
que têm por função principal significar as propriedades específicas de cada signo nos contextos
de suas articulações e, assim, promover-lhes o aparecer nas formas “sintéticas” que caracterizam
o que Charles Sanders Peirce chama de signos-pensamento (PEIRCE, 1995: 269). Uma lógica dos
significantes que se produz no interior mesmo da estrutura dialógica da linguagem. Nesta lógica,
desprovida de todo controle lógico por parte dos interlocutores e na qual a diferença subjetiva
que existe entre eles nada inclui, os interlocutores são reduzidos a signos, cujo significado é o de
serem meras instâncias implicadas no jogo de “se deixar falar pela linguagem” e cuja função é a de
promover a comunicação entre estas múltiplas instâncias. Assim, as associações, as combinações
dos significantes, concretizam-se por afinidade em uma composição; tornam-se, pela afinidade de
suas formas fonéticas, figurações das “ações” que evocam eventos no processo de concretização
do fluxo contingente da vida. A afinidade que ordena a linguagem é a mesma que comanda a
magia. A fórmula de Duchamp se aproxima, desta maneira, daquela da magia pensada por Marcel
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Mauss e que, acreditamos, encontra-se na raiz da forma performativa de enunciação (AUSTIN,
1990)1. À medida que todo enunciado demonstrativo, afirmativo, etc. pode ser reduzido à sua
forma performativa, e se esta se comporta como uma formulação mágica, então, todo enunciado
traz em seu bojo um poder de encantamento, isto é, de fazer compreender e sentir, de maneira
inelutável, o que nele está dito.
O encantamento se faz pela palavra que atravessa o locutor e atinge o auditor. Para a magia
funcionar, basta que cada um assuma a posição ideal daquele que crê no poder da palavra de criar
eventos unicamente ao ser pronunciada conforme uma formulação precisa. Eis aí a razão pela
qual as posições no circuito comunicacional são estruturalmente equivalentes; e eis aí, também,
porque este circuito constitui, basicamente, uma experiência comum compartilhada na palavra, independentemente dos indivíduos, quer dizer, independentemente de uma expressão qualquer de
sua singularidade. A repetição ritualizada da palavra implica a possessão pela palavra que impõe
um único e mesmo lugar de fala a todos os interlocutores. Este é um jogo que ocorre sem a participação dos jogadores, pois o jogo estético da linguagem consiste em realizar a experiência de
se deixar jogar pelo jogo. Os jogadores introjetam as regras representadas no lugar de fala ideal
como forma de vida autônoma, livre de toda coação, salvo a de “gozar” da liberdade de escolher
fazer parte do jogo, “gozo” imposto pelo fato de que não há vida “autêntica” fora da experiência
estética primordial de criar mundos no compartilhar da linguagem.2
�������������������������������������������������������������������������������������������
Podemos observar o mesmo, a mesma estrutura performativa e seus efeitos, tanto na arte abstrata, na poesia concreta ou nas experiências fonéticas de Duchamp e dos dadaístas, como nos
gestos e materiais improvisados de Jackson Pollock, nas assemblages surrealistas, nas instalações, na
arte computacional, etc. Os exemplos são intermináveis, visto que a regra é a mesma para todos:
não há regras externas ao jogo e estas se fazem sozinhas à medida que o jogo é jogado.
II
Quero, a partir de agora, analisar este tipo específico de jogo de linguagem, em que criar regras
faz parte do jogo, em termos de uma narrativa que narra a si mesma, isto é, cuja essência consiste
em contar a sua própria história. A cada atualização da magia da palavra no ritual da fala, não é
somente o auditor que sofre o encantamento, o mágico/locutor também é tomado pela fórmula
mágica, ele também é um “canal”, um médium pelo qual atravessam os significantes que se articulam em narrativas, nas quais se fazem figurar pela dramaturgia de personagens emblemáticos. Estes personagens são a evocação da maneira correta, paradigmática, de contar o relato, quer dizer,
de deixar as regras do jogo de linguagem jogarem o jogo da narrativa a cada situação de narração.
Tal dramaturgia reproduz, a cada vez, segundo um ritual estrito, o papel de um único e mesmo
personagem como o “diferente” que encarna as regras do jogo, isto é, da narrativa, intrínsecas ao
ritual da palavra que faz aparecer o mundo. Seguindo o relato no sentido do seu fim último, que é
o de reproduzir as regras da narrativa a cada narração, o narrador aponta tais regras como as leis
intrínsecas ao mundo que ele quer figurado na narrativa.
Encontra-se aqui a noção de “paganismo”, desenvolvida por Jean-François Lyotard. Este autor
pensa que, no paganismo, a narrativa se caracteriza por uma ausência de autonomia em relação
1. Originalmente, performativo designa um tipo de enunciado no qual o que se diz realiza-se como uma ação. Entretanto,
Austin pensa todos os outros casos de enunciado: declarativos, constatativos, etc, como tipos de performativos. Desta
forma, todo enunciado seria um ato de fala.
2. A ideia de uma pluralidade de mundos possíveis remonta a Leibnitz, entretanto é o filosofo Nelson Goodman que
desenvolve esta noção no sentido do pragmatismo contemporâneo, no qual não há um mundo original com suas versões,
mas somente as versões (ver versões e visões in GOODMAN, 1995: 38).
25
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
aos papéis que devem ser representados na narração, e o narrador, segundo este modelo, figura
invariavelmente inscrito na narração. Ele é “narrado” como parte da narrativa, enquanto esta é
narrada por ele da maneira que ela lhe foi transmitida: narrador e personagens da narrativa se
confundem. O narrador é, portanto, um ponto de passagem (point de relais) por onde transcorre
a narrativa, intrínseco ao narrado e, ao mesmo tempo, atravessado por este.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
contrário, relatos profanos que são contados a partir de um pedido e o seu narrador multiplica os contornos
retóricos para que eles ganhem ainda mais relevo. Existem, então, os dois extremos. Porém, em todos os
casos, cada vez que uma historia é contada nesta etnia, o narrador começa sempre dizendo “eu vou contar
a historia de X (e aqui consta o nome próprio do herói da história) tal qual eu sempre a escutei”. “E agora,
acrescenta ele: escutai-a.” Por conseguinte ele se apresenta sem dizer seu próprio nome, ele não faz mais que
relançar a narrativa, ele se apresenta ele mesmo como tendo sido, primeiro, o narrado de uma historia, da
[...] Pelo contrário, no paganismo, existe a intuição, a ideia (se eu posso dizer, no sentido quase kantiano do
qual, ele é atualmente o narrador.
termo) inversa. Isto é, a ideia de que nenhum enunciador não é nunca autônomo. Que todo enunciador é
Todo narrador se apresenta como tendo sido um narrado: não como autônomo, mas pelo contrário, como
sempre ao contrário alguém que é primeiramente um destinatário, e eu diria: um destinado. Eu quero dizer
heterônomo. A lei de sua narrativa, se eu posso falar de lei neste caso, é uma lei que ele recebeu. É somente
com isso que é alguém que, antes de ser enunciador de uma prescrição, foi ele mesmo o receptor de uma
no fim da narrativa – que ele acabará sempre dizendo: “aqui acaba a história de X; aquele que vo-la contou
prescrição, da qual ele é simplesmente o relais, e que foi também o objeto de uma prescrição. (LYOTARD e
é Y –, que son nom est donné, ou plutôt son double nome: seu nome cashinahua e seu nome em português ou
THÉBAUD, 1979: 78)
espanhol a depender se ele tiver sido registrado no Brasil ou no Peru, pois o território está sobre a fronteira.
É somente neste momento que seu nome de narrador, seu nome próprio, será dado. Após, mas não antes. E
Entretanto, se seguirmos esta descrição de Lyotard do paganismo, chegaremos a identificar uma
noção de liberdade que se encontra na aderência intencional do narrador face à narrativa que o
narra. O narrador está completamente livre da responsabilidade de sua posição. Ele se liberta da
tarefa de se representar na origem do narrado, tornando-se autônomo em relação à própria intencionalidade de fazer do ato de narrar o significado da expressão de sua individualidade. Ocupar
o lugar do narrador significa, em última instância, delegar ao “outro”, de palavra, o trabalho que
lhe é próprio, isto é, o trabalho de narrar. Ao introduzir a narrativa, o narrador apresenta-se como
aquele que repete a intenção de um “outro” narrador originário. O narrador atual identifica-se,
desta maneira, com aquele “outro”. Ele hipostasia-se em uma origem que, para ser a origem do
narrado, não pode estar contida na narrativa, mas que, entretanto, não pode deixar, ao mesmo
tempo, de nela estar contida. Assim sendo, o nomear do narrador originário acontece efetivamente dentro da narrativa: “um tal que contou esta história, etc.” Assumir a posição do narrador
significa, portanto, “tornar-se” o “outro” pelo qual o narrado foi transmitido no transcorrer da
narração. O testemunho original dos eventos, seu primeiro narrador, desaparece incorporado
na narrativa para dar lugar a uma origem mítica. Consequentemente, o narrador é o destinatário
de sua própria palavra, ele é sempre e antes de tudo destinatário dele mesmo. A prescrição da
maneira de contar os eventos – a “lei” da narrativa – vem de outro lugar, do “outro”, e ela é incorporada pelo narrador como sua própria voz, porque este aceita ser seu destinatário. Ele não pode
fazer de maneira diferente, sendo que, para que possa ser o narrador, deve estar necessariamente
identificado ao “outro” ao qual a narrativa foi contada na origem, e que, por conseguinte, é o narrador originário. Ele se identifica, porém, sem que seja preciso um movimento intencional para se
colocar no lugar do “outro”, simplesmente porque há apenas o “outro” como posição possível na
narrativa. Tendo que necessariamente assumir a posição de destinatário da palavra do “outro”, o
narrador torna-se o “outro da fala”, que não é, de maneira nenhuma, o “outro que fala”. Dito de
outra forma, o narrador torna-se simplesmente o ponto de passagem da temporalidade intrínseca
à dinâmica da linguagem que se conta ela mesma.
Neste sentido, a descrição da maneira dos Cashinahua narrar, feita pelo antropólogo André
Marcel d’Ans e comentada por Lyotard, é exemplar. Ao situar a estrutura pagã da narrativa em
uma coletividade não ocidental e que, portanto, não concebe uma noção de narrativa que privilegia o polo do narrador – no nosso esquema dialógico, aquele do enunciador – como sendo o
polo da “autoridade de fala”, Lyotard reencontra a possibilidade de um modelo de utilização da
linguagem não “intencional” e não “utilitária”.
Eu tomarei como exemplo o caso dos Cashinahua que são os índios do alto Amazonas dos quais trata André
Marcel d’Ans em o Dit des vrais hommes. É uma coleção de relatos que são de vários tipos, uns são de cunho
26
sagrado, transmitidos com uma grande rigidez e de uma maneira cantada e ritualizada. Os outros são, pelo
o que é surpreendente é que quando um dos seus auditores retomar, na sua vez, novamente, esta narrativa,
ele “esquecerá” o nome do precedente narrador, pois o nome do narrador que o precede não é mencionado. “Ouviu-se sempre dizer”. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 79-80)
��������������������������������������������������������������������������������������������
Ora, seguindo o comentário de Lyotard, verifica-se que não há, portanto, polarização do discurso na narrativa pagã. Se, por um lado, a linguagem é um jogo que se joga a dois, por outro,
parece claro não existir nenhuma posição exterior ao jogo a partir da qual se poderia fazer considerações a seu respeito a fim de ditar, segundo critérios universais, quais seriam as boas regras e
se elas estariam sendo, efetivamente, aplicadas corretamente. Este “olhar” privilegiado é um efeito
da utilização da linguagem. Por sua própria natureza de linguagem, ele é apenas uma das versões
possíveis produzidas pela utilização das variáveis intrínsecas às regras do jogo de linguagem. O
relato se faz independentemente da intenção subjetiva dos diferentes narradores, cuja função é,
unicamente, a de manter a narrativa em movimento. Os sujeitos estão desde sempre sujeitos à
linguagem, à sua passagem. Eles são os médiuns pelos quais a fala se faz modular na encarnação
das variáveis de suas regras. Assim, no ato de sua pronunciação, a fala fixa as formas distintas de
prescrever sua própria utilização: faz-se necessário contar a história de um outro – o herói – tal
qual ela foi contada por um outro a mim; aquele que conta a história é aquele a quem a história
foi contada. O “aquele” é sempre o “outro”. Faz-se necessário que seja um outro e não eu que
conte a história, porque o “outro” que fala por “mim” é sempre a fala ela mesma, isto é, a linguagem na sua forma dialógica que fala, a cada vez, através de um “outro” que é o “eu” que pode
apenas falar por “outro”. Estabelece-se, assim, a heteronomia estrutural da linguagem. Ora, esta
voz “diferente”, da diferença que se faz a cada vez que se dá o narrar, esta “lei” da narrativa pagã,
consiste, com efeito, em ser a dinâmica mesma da linguagem: dinâmica de enunciação e, portanto,
de autonomia de fala, de uma fala livre de limites impostos pela subjetividade dos interlocutores e
que faz com que a linguagem “fale” por eles.
Ao deixar-se falar pelo “outro” hipostasiado da linguagem, o destinatário torna-se o modelo da
autonomia, exatamente da maneira pretendida pela forma de vida teorizada pela arte desde o
século XIX, encarnada primeiramente na figura do gênio romântico e, depois, na sociedade idealizada das vanguardas. Esta forma de autonomia, entretanto, é a atualização daquela outra – mais
fundamental no que concerne ao uso da linguagem – representada pela figura emblemática do
mago, cujo gesto originário da criação de um mundo à imagem da sua palavra é o gesto fundamental de todo jogo de linguagem. Este ato de autoengendramento do mundo pela fala reflete a
ordem de associações por uma afinidade entre signos que se transformam em lei universal pela
força de sua repetição encantatória. “Compreender que as leis são apenas o fundamento comum
da natureza e da arte”, como diz Klee (1985: 51), ecoa a ideia de que na articulação de signos a
“norma”, a “lei” ou as “leis” intrínsecas a esta articulação refletem certa ordem comum ao mundo
27
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
e à linguagem. O mundo, entendido como o conjunto de referentes possíveis de serem enunciados, implica a maneira pela qual a linguagem é utilizada, isto é, a sua função produtiva, ou melhor,
construtiva, no sentido da poiesis grega.
Se, por um lado, a produção de significação resulta sempre de uma experiência comum da
linguagem, faz-se necessário, por outro, que os interlocutores aceitem a lei da pragmática da linguagem como norma interna a cada interlocutor. É necessário que eles aceitem a heteronomia,
o “outro” da linguagem, como única forma de autonomia. Assim, pensar a utilização da linguagem
como ação heterônoma ou autônoma resulta no mesmo. O polo do sujeito da enunciação permanece presente no discurso apenas através da intencionalidade de sua reivindicação de pertença
ao polo do destinatário, ou seja, ao polo do que Lyotard denomina tradição.
[...] Estamos em um modo de transmissão dos discursos que se faz insistindo sobre o polo da referência
(aquele que fala é alguém que foi “falado”) e sobre o polo do narratário (narrataire) (aquele que fala é aquele
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
da narrativa em produzir tal crença. Faz-se necessário, então, que aquele que ocupa a posição de
destinatário aceite ser o dispositivo de transformação de enunciados prescritivos em enunciados
afirmativos, nomeando-se a si mesmo como o destinatário do poder intrínseco à narrativa de se
contar, ela mesma, por intermédio de “sujeitos/relais”. O “artista”, por conseguinte, encontra-se
na posição prototípica do destinatário, concebido como o dispositivo de transformação de enunciados performativos em enunciados assertivos, transformação cujo efeito “mágico” é a criação
da experiência sensível de si mesmo, do outro e do mundo, pela ação da palavra. O destinatário,
“fazendo ver” (figurar) o que o narrado deve fazer crer que ele pode “fazer ver”, deixa aparecer
a dinâmica de enunciação como dinâmica de criação de um lugar de partilha narrado. Este lugar,
vivido como o único real possível, renova-se permanentemente em novas fórmulas de narrar, em
novas versões deste real. O destinatário/artista inventa a partilha do real no ato de narrar pela
repetição de fórmulas de dizer, no sentido da tradição de Lyotard, que são modos de fazer, isto é,
de produzir a diferença.
à quem se falou). O sujeito da enunciação não espera de nenhuma maneira reivindicar sua autonomia em
relação ao seu discurso, ele reivindica, muito pelo contrário, pelo seu nome próprio e pela história que ele
[...] Eu considero que esta tradição não significa de forma alguma, como se diz geralmente, uma relação com
conta, seu pertencimento à tradição. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 81)
o tempo que seria uma relação de conservação, na qual o que seria importante seria guardar as coisas para
preservá-las de uma usura temporal e de recusar o que é novo. De fato (André Marcel d’Ans insiste), o na-
28
������������������������������������������������������������������������������������������������
Para que a narrativa possa se transmitir, o enunciador deve, necessariamente, reduzir seus desejos a um só: o de pertencer a uma tradição. Logo, pode-se dizer que há um ato de vontade, uma
escolha. Isto é, a escolha de submeter seu papel de enunciador à força do desejo de ser o destinatário, o herdeiro de uma história, na qual ele está inserido como enunciador. O que ele enuncia, no
momento em que conta a história, é que sua posição de enunciador sempre foi legitimada pelo
fato de que ele é o destinatário da narrativa e, logo, destinado a ocupar, a representar o papel de
narrador. Ele é o destinatário porque ele mesmo se enuncia, e se anuncia, nesta posição, a cada
vez que narra a história. Sendo os polos do enunciador e do auditor transformados pela força da
narrativa em pontos de passagem, pontos de relais, não há possibilidade de julgar verdadeiro ou
falso o que é narrado. É completamente impossível encontrar alguma relação de correspondência
com o mundo externo ao narrado para tentar fazê-lo corroborar a narrativa, assim como não
há critérios externos para julgar a maneira mesma desta ser narrada; o mundo, na sua essência,
confunde-se com a narrativa, não podendo existir fora da sua lógica. Posto que o narrado é “possuído” por sua destinação, determinado por sua “lógica interna”, de se dizer por si só, as diversas
instâncias do narrado, os destinatários que estão concernidos por esta “lógica”, ou seja, que devem
fazer viver o narrado são e estão, por sua vez, simultaneamente, “possuídos” e “em possessão” de
sua força de transmissão.
A “lei” interna da narrativa, sua força de transmissão, caracteriza-se por ser um conjunto de
prescrições de modos de se narrar. Este conjunto de prescrições tem por finalidade reduzir todos os sujeitos de fala à única instância do destinatário. As prescrições tornam-se “leis” internas à
narrativa pelo efeito da crença necessária na coesão do conteúdo narrado, reiterada pela forma
ritualizada da narrativa. Faz-se necessário crer que os referentes articulam-se entre si, obedecendo
às “leis” da narrativa, inscritas aí como em sua própria “natureza”. Na maneira de narrar os referentes, no modo em que estes aparecem na narrativa, encontram-se reproduzidas as tais “leis” que
regem a “natureza” dos referentes. Todavia, a maneira de reunir os referentes, articulando o narrado na narrativa, é, por definição, a imagem mesma do princípio de autonomia na sua autogênese,
à qual os destinatários são incorporados ao incorporarem a crença nesta. Na maneira de contar, o
narrado se fixa na crença de sua eficácia, à medida que ela se reproduz como “lei”, a despeito de
variáveis mais ou menos circunstanciais de transmissão.
Se o efeito da narrativa é, portanto, o de produzir no destinatário a crença em sua condição
de destinatário das “leis” de transmissão do narrado – entendidas como “leis” estruturais da ordem na qual os referentes se articulam – não é menos verdade que seja preciso crer na eficácia
rrador dispensa tesouros de invenção retórica e poética indo, claro, até os jogos de palavras, aos traits d’esprit,
e mesmo até a mímica, para animar sua narração. Neste nível, quer dizer, a um nível que nós chamaremos
“artista”, estes indígenas são extraordinariamente produtivos e eles são perfeitamente capazes de distinguir
os bons narradores dos medíocres. O traço pertinente não é a fidelidade, não é porque o narrado está bem
conservado que se é um bom narrador, pelo menos para as narrativas profanas. Pelo contrário, porque o
narrado se restabelece, porque ele se inventa, porque nele se introduzem episódios diferentes que delineiam
o motivo sobre uma trama narrativa, é que ela permanece estável. Quando nós dizemos tradição, nós pensamos identidade sem diferença. Ora, de fato, existe evidentemente diferença, os relatos se repetem, mas não
são jamais idênticos. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 82)
������������������������������������������������������������������������������������������������
Não se trata, por conseguinte, de conservar os relatos da tradição pela repetição. Trata-se, antes, de fixá-los, cada vez sob uma fórmula diferente, em uma figuração derivada de um conjunto
completamente plausível de variações do mesmo conteúdo. Este conjunto de variações – que
poderia caracterizar a deformação do relato em função dos aspectos subjetivos que aí são adicionados – adquire sua verossimilhança pelo fato de se encontrar, ele mesmo, previsto na dinâmica
de narração que estrutura o relato. O relato tem por finalidade dar vida à partilha da experiência
estética de suas versões como forma de vida coletiva de produção de identidade.
Uso aqui o termo “forma de vida”, conservando e ampliando a noção de Lebensform de Wittgenstein (2001: § 23). Uma forma de vida é, neste sentido, o falar uma língua, mas também – no
contexto de nosso trabalho – as prescrições de como o narrador deve narrar tal passagem, ou,
ainda, a decisão sobre se esta passagem deve ou não fazer parte do relato. Tais prescrições que,
em última instância, derivam da maneira pessoal de narrar, do “estilo” ao qual o narrador deve
permanecer fiel para poder fazer o narrataire, o narrador potencial, crer que a sua maneira de
narrar é intrinsecamente essencial ao desenrolar do relato.
O “traço pertinente” mencionado por Lyotard parece ser o “como” a fidelidade à tarefa de
narrador se mantém intacta pela sua inscrição na ação do relato através do papel do narrataire,
a saber, do destinatário, revelando, assim, a trama narrativa na destinação do narrador. Esta trama
urde-se à medida do desenrolar do relato. O “traço” se impõe pela coerência estrutural e estruturante do relato como o relato da legitimidade daquele que ocupa o lugar do narrador, pois este
estava destinado à tarefa de narrar. O relato, o narrado, consiste, portanto, em “narrar-se a si mesmo” a partir do lugar do narrador, pois o relato não se pode fazer sem um destinatário que conta
a história de sua destinação. Paradoxalmente, o estilo, a maneira de dar forma ao relato, instaura
29
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
a linha de coesão entre a diversidade de versões possíveis. O narrador imprime sua marca no
relato, mas somente para conservar-se como traço de união entre o relato e o destinatário que
o narrador tem sido, desde sempre. O narrador repete, assim, o esquema fonoauditivo intrínseco
aos atos de fala, pelo qual o sujeito da enunciação e o sujeito auditor são unidos. A estrutura aqui
realçada é a da prosopopéia original, apontada por Humboldt e atualizada na antropologia filosófica de Jacques Poulain (2001: 80-91). Todo ato de fala, toda enunciação, conserva e se articula
a partir da estrutura audiofônica originária da linguagem: o fato de que falar, em última instância,
significa projeção e recepção de sons simultaneamente, que nosso cérebro interpreta sempre na
forma de diálogo. Elimina-se a diferença entre a experiência de contar e aquela outra de escutar o relato. O relato é narrado através da experimentação destes dois polos como uma única
forma de vida compartilhada, visto que são intercambiáveis. Em consequência, o “traço”, o estilo,
torna-se forma de vida no movimento circular de sua afirmação – a tautologia fundamental que
determina todo ato de fala – escandido pela repetição de suas modulações.
O “deixar fazer” de uma articulação, de um rearranjo contínuo das formas de presentificação
do relato, transforma-se em sua lei de transmissão e, ao mesmo tempo, em procedimento de
transmissão da lei. O “traço” que circula do destinador ao destinatário torna-se, por sua vez, o
“traço” que faz circular o relato deste para aquele, reduzindo-os ao trabalho de relayers, de “recolocadores” do relato em movimento. Compartilha-se, assim, a legitimidade do relato como o
relato da partilha do seu “Don”, isto é, o “traço”. Sua pertinência se transmite por formas variadas de reiteração da identidade de cada individuo (envolvido em narrar e escutar o relato) com
o próprio relato. O ato de contar a história é também o ato de esquecer sua posição de destinador, identificando sua maneira de contar a história à história contada, no momento mesmo
em que se conta a história. Como um “Don”, cujo destinador é o destinatário, o “traço” que o
caracteriza, seu estilo, torna-se o “traço” da narrativa que o atravessa. A força performativa da fala
do destinador, o que dá sua força de verdade, consiste em se fazer esquecer, fazendo esquecer
a diferença entre recursos retóricos, formais, empregados para atualizar a narrativa, e a narrativa
ela mesma. O “Don” do relato consiste, desta maneira, na possibilidade que este tem em comunicar-se, isto é, em relançar-se (relayer) através dos diversos destinatários. Quando o narrador/
destinatário deixa-se atravessar pela narrativa e, por isso, afirma sua posição de narrador dentro
da narrativa, ele vive este atravessar-se como a experiência estética de sua significação: a de ser
forma de vida da linguagem. Forma de vida à qual adere naturalizando-a pela ritualização das
variantes formais que cria, vividas como possibilidades únicas de existência. Sem a identificação
plena com a linguagem, o narrador deixa de ser destinatário e, portanto, desaparece. Neste sentido, criar é experimentar novas formas de narrativa de um mesmo relato. Contar é apresentar
a narrativa como a única forma de existência possível daquele que narra. A experiência estética
do narrar-se ao narrar qualquer relato – de deixar-se atravessar pela lógica simpática da cadeia
de significantes na dinâmica de transmissão de uma tradição – torna-se o cerne de toda forma
de vida legítima.
É um fenômeno de entropia ou uma experimentação? Eu tenho uma tendência a pensar que se trata antes
de uma experimentação. A- demais, que sejam as mesmas tramas narrativas que retornam, o que isto pode
querer dizer? Os relatos populares, se eles podem tornar-se extremamente simples, provérbios, moralidades, tornar-se quase um problema de ritmo do discurso, de gênero; tal pai, tal filho, (pedra que rola não cria
limo) Pierre qui roule n’amasse pas mousse, etc. (vê-se claramente a proximidade com a música, não somente
por que há rima, frequentemente, mas também porque são fenômenos rítmicos da língua, que fazem com
frequência pensar ao Sprechgesang), isto não se faz por acaso: na transmissão desses relatos, na repetição
de seus rótulos, o que é importante, é contar a história servindo de “relais”, é ser o “traditor” (traditeur) do
relato, porque no simples fato de relayer esquece-se, justamente, de algo. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 83)
30
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
������������������������������������������������������������������������������������������
Deve-se ressaltar que a experimentação dos fenômenos rítmicos da linguagem, aos quais Lyotard faz referência, é a essência mesma da sua dinâmica marcada pela temporalidade individual de
cada destinador, que é transformada, pelo exercício da narração, na temporalidade característica
do destinatário do relato. A maneira de o destinador imprimir seu próprio ritmo, sua própria
modulação à partilha do relato, instaura, na diferença, a ausência de diferença entre o que destinador conta e sua maneira de contar. Esta identidade, consequentemente legitimada pela fala do
destinador, faz com que, no transcorrer da narrativa, compartilhe-se um “metarrelato” que lhe é
intrínseco. “Metarrelato” que conta que o destinador é também o destinatário. Verifica-se, então,
que o objetivo do relato é a partilha da condição de destinatário e a finalidade da partilha, por sua
vez, o relato ele mesmo. Deste circuito deriva a autonomia do relato. Nele reside a possibilidade
de todo processo de criação que, no meu entender, funda o fazer artístico na sua generalidade: o
de fazer aparecer o que é da ordem de um relato compartilhado como forma de vida de uma comunidade, como sendo criação individual, fazendo, assim, crer que a criação individual é contida no
relato como seu corolário necessário. Como a noção de ressonância em Kandinsky, ou a de mana
da magia estudada por Mauss, a linguagem é alguma coisa que se partilha e, ao mesmo tempo, é
aquilo que permite e constitui a partilha: a heteronímia, a alteridade. A linguagem se constrói construindo o referente, em uma relação dialógica, com quem o “outro” que eu sou, enquanto auditor
de mim mesmo, deve estar em concordância. A estrutura dialógica da linguagem e, portanto, da
arte, é pagã, isto é, construída através de afinidades entre elementos formais que, basicamente, são
elementos de um circuito de estímulo e resposta fonoauditivos, que determinam, entretanto, toda
forma de experiência sensível.
Eu creio que este traço é profundamente pagão. Esta relação ao tempo, que é tão surpreendente que ela nos
faz dizer as piores besteiras sobre a sociedade sem história, se traduz em uma pragmática que tem por efeito
que nenhum discurso possa se apresentar como autônomo, mas ao contrário, sempre como um discurso
recebido. O que tem por consequência que os relatos com seu ritmo próprio são narrativas que se veiculam,
por assim dizer, independentemente na boca e através das orelhas dos indivíduos destes povos, e que se
esquecem à medida que a narrativa transcorre, e que, então, repetem-se como essas músicas repetitivas, sua
repetição marcando o batimento proteron/usteron, um dois, um dois, que é a díade, quer dizer, o elemento
métrico o mais simples. Eu diria, mais genericamente, no nível que os linguistas chamam a pragmática do
discurso, em particular a propósito daquele dos discursos narrativos, sobre os quais eu penso, de mais a mais,
que eles são a forma popular do discurso, que os indivíduos são introduzidos na linguagem, não falando, mas
escutando, e que o que as crianças escutam, são histórias. Primeiramente a delas próprias, pois elas são aí
nomeadas. Isto implica o contrário da autonomia, a heteronomia. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 84)
A forma dialógica, pragmática, reflete simplesmente aquela outra da lógica rítmica da linguagem,
a da sua musicalidade, quer dizer, da materialidade lógico-estrutural da dinâmica de construção do
sentido. Não obstante, na perspectiva que venho desenvolvendo aqui, não há, efetivamente, no
modelo pagão, uma predominância da heteronomia em relação à autonomia, pois a heteronomia
pressupõe a autonomia da linguagem e tal autonomia concretiza-se tão somente pelo exercício
da narração, logo pela heteronomia. Ao compartilharem-se as regras de linguagem na narração,
estas se tornam a voz dos destinatários. Autonomia e heteronomia constroem-se no processo e
na temporalidade da narrativa, de maneira unívoca. Nesta univocidade, quer dizer, na identificação
essencial entre o falante e a linguagem falada, funda-se toda experiência sensível, estética. Sentir
é sentir o referente em uma experiência que só é possível pela identificação plena deste com o
seu enunciado, do enunciado com o enunciador e deste com o auditor. Nesse sentido, não há um
enunciado e um referente ao qual o enunciado se refere, algo fora da linguagem posto aí, no mundo, ao qual o enunciado faz menção ao referir-se a um referente qualquer. Referente e enunciado
são um só e têm sua efetividade na dinâmica dialógica da linguagem. Uso o termo efetividade, aqui,
31
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
em uma aproximação com o termo alemão Wirklichkeit: o real que não é nem o que está dado no
mundo e pode-se descobrir, nem o que está sintetizado em um conceito. Porém, efetividade significa, aqui, algo mais abrangente: que o necessário é uma possibilidade e, portanto, apenas possível
no contingente, mas que, da mesma maneira, o contingente só pode dar-se no necessário.
III
No projeto abstracionista da arte, a linguagem constitui o agenciamento de elementos formais e
plásticos, conforme as leis de afinidade, dos quais o artista é apenas um médium, o meio pelo qual
as configurações deste agenciamento se produzem. Como afirma Deleuze, o agenciamento tem
duas faces: ele é o agenciamento coletivo do enunciado e o agenciamento maquínico do desejo.
Tomo aqui a expressão “maquínico do desejo” no sentido daquilo que, no decorrer da narrativa,
confunde-se com o próprio relato, isto é, com a própria dinâmica dos atos de fala. Deleuze dirá
que não há agenciamento maquínico social do desejo que não seja agenciamento coletivo da
enunciação (DELEUZE e GUATTARI, 1975: 145-147). Assim, se analisarmos o espiritual teorizado por Kandinsky, por exemplo, veremos que ele consiste em uma pura articulação associativa,
um agenciamento, dos elementos da linguagem em uma dinâmica de partilha do enunciado. O
espiritual, antes de tudo, abriga esta capacidade de produzir a experiência da efetividade do referente no enunciado: ao utilizar a linguagem, agencia-se coletivamente a significação do enunciado
enquanto experiência sensível do que nele está referido. O espiritual na arte abstrata se perpetua,
portanto, nas suas formulações não visuais, não retinianas, da arte contemporânea. Ao mesmo
tempo, justamente porque a arte permanece sempre a configuração múltipla do princípio pragmático da linguagem, é que uma obra dita abstrata, uma pintura de Kandinky, por exemplo, está
sempre sujeita ao mesmo princípio normatizador da dinâmica enunciativa. Mesmo uma obra visual abstrata, aparentemente desprovida de todo elo com enunciados verbais, só encontra lastro
porque o espiritual é uma figuração do agenciamento da dinâmica de linguagem. O espiritual se
autodetermina como o campo específico de experimentação do sensível, possível apenas como
experiência da partilha coletiva do enunciado.
O espiritual, nesta perspectiva, encontra-se no centro da tendência à fragmentação do discurso
da grande narrativa do saber, tal qual ela foi pensada e diagnosticada por Lyotard. A disposição à
descentralização do discurso conserva, com efeito, o espiritual nos procedimentos utilizados para
determinar o fim da absolutização do relato do saber, cuja raiz especulativa caracterizou o século
XIX e que serviu de modelo para o século XX. O espiritual, identificado ao principio pragmático
da linguagem, conservou-se no seio de cada jogo de linguagem, de cada discurso, como o saber
totalizante que se engendra sozinho pela sua própria lógica interna. Como ressalta Lyotard, o espírito especulativo estabeleceu a essência criativa do discurso científico e esta lógica especulativa
contém, ela mesma, o germe da sua não legitimação como discurso hegemônico. Isto porque a
exigência de legitimação que o enunciado especulativo contém deve, ela também, ser necessariamente legitimada no interior de sua própria lógica do espírito especulativo. O enunciado especulativo torna-se, desta maneira, parte de um jogo de linguagem que podemos denominar de jogo de
linguagem especulativo. (LYOTARD, 1979: 64-65)
IV
32
A noção de autoengendramento se conserva no modelo dos jogos de linguagem pela atualização, em cada partida jogada, das regras necessárias à legitimação da sua autonomia. Esta noção
sobrevive na forma germinal do diálogo entre linguagem e os seus destinatários impondo, assim,
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
as leis da pragmática dos enunciados como o único real possível. O modelo da narrativa pagã de
Lyotard passa a ser o paradigma de todo processo de emancipação do discurso que se pretende
igualitário, no qual todas as instâncias da narrativa são reduzidas àquela do destinatário. Os narradores são atravessados pela palavra que se fala a ela mesma, obedecendo às suas próprias leis,
exatamente como no modelo peirciano de semiose. Os três modelos: o do paganismo, o da semiose e o dos atos de fala, todos estruturados de acordo com a prosopopéia original que regula o
jogo de linguagem, se equivalem. O mesmo ocorre com os jogos de linguagem – e o relato pagão
é um caso de jogo de linguagem –, quando estes se fazem de maneira autônoma. A autonomia
de um jogo de linguagem se mede pela simples aplicação consensual das regras performativas de
enunciação, com o intuito de determiná-las como lei interna da linguagem. Consequentemente,
em um único jogo de linguagem, as regras se confundem com a utilização das mesmas, exatamente como se verifica no caso da abstração pictórica. O lugar de fala da linguagem, o Tertius3,
quer seja o Deus das religiões monoteístas, o Espírito hegeliano, o espiritual na arte, ou, ainda, o
conceito como obra de arte, trata-se sempre de um resíduo tardio da dinâmica de sensibilização
audiofônica, característica dos relatos das sociedades ditas primitivas, ou sem história linear, cujo
funcionamento consiste em deixar as instâncias da “minha fala”, a instância do eu, e da “sua fala”, a
do outro, aparecerem como “a fala dela”, isto é, da linguagem.
Podemos afirmar, então, que a forma de vida original da arte é engendrada pela prosopopéia
original e análoga àquela da narrativa pagã. Este modelo de vida pode corresponder, efetivamente,
àquele do individualismo liberal do capitalismo tardio, pois no experimentalismo perpétuo das novas formas de sensibilidade, trata-se de experimentar novas maneiras de contar o mesmo relato,
no qual não há mais posição privilegiada do discurso, quer dizer, no qual o locutor e o auditor desaparecem para assumirem o papel de simples legatários, destinatários da linguagem. Estabelecese, portanto, no seio da pragmática de linguagem, um campo onde qualquer experiência encontra
sua legitimação. O relato pagão é, portanto, o horizonte ideal de utilização da linguagem, para o
qual tende toda pragmática de linguagem. Na narrativa pagã, toda e qualquer experiência singular
– por ser da ordem do destinador/destinatário da narrativa, que encarna o Tertius de linguagem
– tende a ser vivida como experiência coletiva da linguagem. Este é o tipo de experiência que
constitui a base de todo consenso.
Ora, pode ser que a alteridade absoluta da linguagem, o Tertius, seja simplesmente uma das
versões de um ideal de consenso, imposto pela utilização das regras de enunciação à comunidade
de locutores como única forma de vida possível. Neste sentido, podemos dizer que há um relato
primeiro legitimador do consenso, que o apresenta sob a forma de vida autônoma da linguagem
e que engendra, por sua força performativa, todos os outros relatos nos quais os locutores são
apenas destinatários. O consenso detém, por conseguinte, o lugar de um poder de fala única, a
do Tertius. Posto que hegemônico, na sua maneira de se autoengendrar como a única instância
possível de experiência, o consenso é o metarrelato que se conta a si mesmo como o lugar de
emancipação da fala que acontece em cada contar específico.
V
Nas práticas e instituições representativas das sociedades capitalistas avançadas, a experiência total do real, no consenso produzido pelo uso da linguagem, torna-se a forma de vida pela qual o
valor de verdade dos relatos é sempre o mesmo. Porque justamente tais relatos contam todos
3. Noção apresentada por Jacques Poulain como o Tiers de linguagem, literalmente o “terceiro” de linguagem, que significa
a linguagem como um lugar de fala, ela mesma autônoma. Preferimos substituir “terceiro” pelo termo latim Tertius. Para
conhecer o desenvolvimento detalhado desta concepção, ver POULAIN, 2001, capítulo III.
33
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
fundamentalmente a mesma história – a do poder de verdade da fala compartilhada de maneira
consensual – mesmo os relatos contraditórios encontram aí sua legitimidade. Este tipo de lógica se
assemelha àquela analisada por Marcel Mauss, característica das sociedades nas quais reina a ordem
mágica da afinidade. Determinada por afinidades associativas entre elementos concebidos a partir
de uma mesma “substância”, esta seria uma lógica metafísica e metalógica. Ela se resumiria a uma
“capacidade”, um “atributo” de linguagem pelo qual os membros da comunidade de falantes são
“possuídos”, uma “qualidade mágica” cujo poder de transformar tudo em mana – o agente, o ritual,
o objeto mana, etc, – é analogo àquele outro poder, da pragmática da linguagem, que é o de tudo
transformar em linguagem. Da mesma maneira que o Espírito especulativo encarnava-se no grande
relato do Saber, os jogos de linguagem são o lugar de possessão deste outro espírito, o “outro absoluto” da linguagem, que guarda uma proximidade radical com o mana. Marcel Mauss apresenta
os significados de“o ser que é o mana” e dos múltiplos modos que este tem de se transmitir e se
presentificar.
A mana não é simplesmente uma força, um ser, é, sim, uma ação, uma qualidade e um estado. Em outros
termos, a palavra é, ao mesmo tempo, um substantivo, um adjetivo e um verbo. Diz-se de um objeto que ele
é mana, para dizer que ele tem esta qualidade; e neste caso, a palavra é um tipo de adjetivo (não se pode
dizê-lo de um homem). Diz-se de um ser, espírito, homem, pedra ou rito, que ele tem mana, o “mana de fazer
isso ou aquilo”. Emprega-se a palavra mana em diversas formas de diversas conjugações, ela significa, então, ter
mana, dar mana, etc. Em suma, esta palavra subsume um monte de idéias que nos designaríamos por: poder de
feiticeiro, qualidade mágica de alguma coisa, coisa mágica, ser mágico, ter poder mágico, ser encantado, agir magicamente; ele nos apresenta, reunidos sob um vocábulo único, uma série de noções, das quais, nos entrevimos
o parentesco, mas que estavam alheias a nós, dadas à parte. Ele realiza esta confusão de agente, rito e coisas
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
A linguagem, a entidade compartilhada e o próprio partilhar, explica a onipresença do mana,
na qual não há separação entre o concreto e o abstrato. O mana é falado e fala; é o objeto da
descrição e é, ele mesmo, o descrito; diz o verdadeiro porque a linguagem tem e é o mana. Ter e
ser mana determina sempre um enunciado verdadeiro. Pode-se, portanto, dizer que o enunciado
é a constatação do mana pelo mana, primeiramente porque é o mana que julga no enunciado e,
em seguida, porque o objeto de julgamento é o mana ele mesmo, visto que não se pode construir
juízos fora do mana.
Se, à época do capitalismo contemporâneo, a ausência do absoluto torna-se o Absoluto pela
“transcendentalização” do múltiplo, isto se dá, a meu ver, em uma relação direta com a sobrevivência do esquematismo e do mecanismo de agenciamento típico do mana no uso da linguagem,
portanto, nos usos, nas práticas sociais e nas construções teóricas. O mana permanece fundamentalmente a articulação dinâmica da linguagem e suas múltiplas configurações nos jogos de
linguagem. Encarnado no corpo social, bem como no corpo individual, o mana é o “outro” da linguagem pelo qual os seres de fala são possuídos; o “outro” que fala por eles, para que possam, efetivamente, fazer uso da palavra. Em seu diálogo perpétuo com ele mesmo, o mana determina aos
falantes, em ultima instância, a função de serem pontos de passagem (relais), pontos de aceleração,
de mudança de temporalidade na transmissão do mana. O mana faz da linguagem uma forma de
vida onipresente. O sujeito falante permanece, por conseguinte, o médium pelo qual a linguagem
torna-se experimentação estética de si mesma. Se representar tudo o que não é linguagem na experimentação da palavra constitui, portanto, o mana da linguagem, não é menos verdade que este
representar é a linguagem do mana. Esta representação é o único real possível, ela é a efetividade
daquilo que pode ser experimentado no enunciado. O mana instaura e é instaurado pela operação de dar passagem ao relato, fundamento de todo ato de fala.
que nos pareceu ser fundamental em magia. (MAUSS, 1995: 101)
O mana é, então, justamente esta função da linguagem de ser o transcendente absoluto, isto é,
de ser, ao mesmo tempo, o referente, suas propriedades (o que faz com que ele seja isso e não outra coisa) e a ação de indicá-lo pelo enunciado e, desta maneira, constituir a sua especificidade. Em
outros termos, a linguagem e a partilha da linguagem constituem o mana no capitalismo avançado: a
forma do mana de se manifestar e de ser o lugar do aparecer do mundo se conserva na hipóstase
da linguagem. A linguagem/mana abarca tudo através das múltiplas versões de construção do real
na partilha comum da linguagem. Cada jogo de linguagem é mana e tem mana. Aquele que joga
o jogo da linguagem e que conta o “fazer isto ou aquilo”, conforme as leis do mana, é, ou possui,
também, o mana. O mana concentra, simultaneamente, o poder ilocutório de fazer com que se realize o que é dito no enunciado, pelo simples fato de o dizer, assim como o poder de fazer ver que
o que é dito no enunciado. Concentra o poder apodítico e apofântico do referente na efetividade
do enunciado. A linguagem/mana é a linguagem e a coisa agenciada (o referente). Ela é também o
agenciamento (o ato de fala) e o protocolo do agenciamento (as regras do jogo de linguagem).
A idéia de mana é uma das idéias confusas, da qual nós nos cremos estar desembaraçados, e que, por conseguinte, temos dificuldade de conceber. Ela é obscura e vaga e, entretanto, de um emprego estranhamente
determinado. Ela é arbitrária e geral e, entretanto, plena do concreto. Sua natureza primitiva, quer dizer complexa e confusa, nos proíbe fazer uma análise lógica, devemos nos contentar de apenas poder descrevê-la. Para
M. Codrington, ela se estende ao conjunto de ritos mágicos e religiosos, ao conjunto de espíritos mágicos e
religiosos, à totalidade das pessoas e das coisas intervindo na totalidade dos ritos. O mana é propriamente o
VI
Gostaria de introduzir aqui a noção de infra-mince, elaborada por Marcel Duchamp, para melhor
entendermos a extensão e a força estética contida na hipóstase da linguagem, intrínseca à dinâmica pragmática e identificada ao mana. No mana encontra-se, por assim dizer, um funcionamento
equivalente àquele de infra-mince. O infra-mince deve ser identificado, a meu ver, simultaneamente,
ao funcionamento próprio dos jogos de linguagem e à articulação essencial entre propriedades
formais e/ou físicas de objetos. Na perspectiva pragmática, falar de signos e objetos resulta no
mesmo. Duchamp trabalhara vários anos sobre a noção de infra-mince, na tentativa de verificá-la
em uma série de situações de transformação de signos. Dos quarenta e seis itens das Notas que
representam o desenvolvimento da noção de infra-mince, ressalto os itens de um a sete, porque
neles encontra-se a evidência do que estou chamando de mana: o traço de uma passagem, isto
é, de qualquer coisa que passou, que não é mais, mas que persiste na ação de passar e de deixar
passar outra coisa. O infra-mince integra as noções de possível, de devir, de alegoria, de analogia, de
reciprocidade, de associação, de atributo (o infra-mince não é um substantivo), de similaridade, de
múltiplo, em uma dinâmica relacional na qual os elementos implicados seriam os pontos de passagem do relato pagão. Tais pontos são intervalos, são pausas que relançam a dinâmica de articulação entre as noções acima elencadas, a fim de dar passagem, em seu fluxo contínuo, a esta coisa
que passa, que é a própria linguagem. Encontramos no infra-mince o mesmo tipo de articulação
característica do mana:
que faz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, valor religioso e mesmo valor social. A posição social dos
34
indivíduos está na razão direta da importância de seu mana, particularmente a posição na sociedade secreta; a
1. o possível é um infra-mince.
importância e a inviolabilidade dos tabus de propriedade do mana do individuo que os impõe. A riqueza deve
A possibilidade de vários tubos de cor tornarem-se um
ser efeito do mana; em certas ilhas, a palavra mana designa mesmo o dinheiro. (MAUSS, 1995: 102)
Seurat é “a explicação” concreta do possível como infra-mince.
35
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
O possível implicando o devir – a passagem de um a outro
tem lugar no infra-mince.
Alegoria sobre o “esquecimento”
2. analogia infra-mince
3. “portador de sombra”
sociedade anônima dos portadores de sombra representada por todas
as fontes de luz (sol, lua, estrelas, velas, fogo -)
incidentemente:
diferentes aspectos da reciprocidade – associação fogo-luz
(luz negra, fogo-sem-fumaça = certas fontes de luz)
os portadores de sombra trabalham no infra-mince
4. “ o calor de uma poltrona (que acaba de ser deixada) é um infra-mince.”
5. infra-mince (adject.) não nome – nunca fazer deste um substantivo
O olho fixa fenômeno infra-mince
6. “ a alegoria (em geral) é uma aplicação do infra-mince.”
7. semelhança/similaridade
O mesmo (fabricado em série)
Aproximação prática da similaridade.
No tempo um objeto não é o mesmo no 1 segundo
De intervalo.
Qual relação com o princípio de identidade? (DUCHAMP, 1999: 21)
36
No infra-mince se discerne o “falar outro” do “outro”, que é a persistência de uma função, o
índice de um funcionamento: o fazer passar o “isto” a “aquilo”. O infra-mince, todavia, também é o
índice de alguma coisa que passa: o traço, a marca do relato que passa de um a outro destinatário e que, ao passar, torna-se outro relato. Portador de uma dupla condição de signo indicial, ele
indica não somente a passagem, mas também o que passa, como dois momentos principais do
funcionamento da linguagem, quer dizer, do infra-mince ele mesmo. E posto que, pelo princípio de
autonomia da linguagem (a alteridade que se autoengendra), não possa haver predeterminação
no funcionamento da linguagem, o infra-mince determina o acaso como estrutura e origem do
relato. Por isso Duchamp pode dizer que Seurat é a explicação concreta do infra-mince. Seurat
torna-se médium, ponto de passagem e de associação contingente entre os tubos de cor, cujo
efeito é a imagem da pintura de Seurat. Ao mesmo tempo, Seurat é o nome da metanarrativa da
transformação dos tubos de cor (“isto”) em pintura (“aquilo”) e, também, o nome do que é contado, narrado no quadro, isto é, que “aquilo” é um Seurat. Considerando-se que a possibilidade de
transformação se transmite como virtude mágica, como mana, e que o ato mesmo de transmitir
esta possibilidade é mana, a transmissão do mana e a maneira de transmiti-lo (o que deixa traço)
podem ser considerados infra-mince. Neste sentido, o infra-mince indica também o protocolo, o
procedimento utilizado para que tal pintura seja uma obra de Seurat. O nome “Seurat” torna-se
também infra-mince, isto é, um atributo, um modo de funcionar da transformação, da passagem de
tubos de cor, o “isto”, a uma obra de arte reconhecida como um “Seurat”, o “aquilo”.
O fato de o infra-mince apresentar uma imprecisão estrutural – o acaso é que determina as
suas articulações – indica que esta imprecisão encontra-se na raiz mesma das dinâmicas arcaicas
da linguagem que se mantêm vigentes, cujo fim é reduzir a linguagem à sua forma performativa. O
infra-mince tem um papel essencial na representação e na transmissão dos diversos efeitos comportamentais dos atos de fala. No infra-mince objetiva-se um campo de experimentação do real
como dinâmica de recepção e de doação espontânea de significação que nos atinge sem que sejamos obrigados a elaborar um juízo sobre sua validez. Uma vez que esta dinâmica é compartilhada
simultaneamente como entidade transcendental (a linguagem hipostasiada, o Tertius) e como a
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
partilha ela mesma, os efeitos sobre os interlocutores aparecem como signos da presença mágica
de uma essência comum, o mana. Ainda que tal essência, o mana, seja o resultado das várias experiências “moleculares” de utilização da linguagem – os jogos de linguagem – ela permanece esta
instância absoluta que determina a maneira de utilização da linguagem e, portanto, as experiências
sensíveis dos interlocutores.
��������������������������������������������������������������������������������������������
No encantamento provocado por sua própria fala, cada interlocutor sente e faz sentir sua experiência sensível, contida na partilha do enunciado, conforme os modos de iteração do “outro”
da linguagem. Se seguirmos as descrições dos itens um, seis e sete da definição de infra-mince,
perceberemos que esta iteração manifesta-se sempre como alegoria. Entretanto, na alegoria reside a figuração do mesmo no outro, a encarnação do “outro” absoluto da linguagem, visto que a
linguagem é sempre um terceiro, o Tertius que fala no lugar do locutor e do auditor. Na alegoria,
insistimos, encontra-se condensada a noção da alteridade constitutiva da narrativa pagã que é o
modelo da instância pragmática da linguagem. A alegoria, a partir das observações de Duchamp,
abriga as bases para um tipo de relação de analogia intrínseca a todo jogo de linguagem e que define a relação de equivalência entre os diferentes polos do diálogo. Visto que no infra-mince o determinante é o acaso, cada ponto de passagem (o interlocutor/narrador) equivale a outro ponto,
pois cada um é a alegoria de si mesmo como o outro. Da mesma maneira, cada referente equivale
a outro. Tudo pode se substituir a tudo e cada enunciado é tão verdadeiro quanto o seu contrário,
com a condição de pertencer a falas diferentes, a jogos de linguagem diferentes. A analogia inframince resume, portanto, a associação entre signos, cuja semelhança deriva de forças simpáticas
convergentes, as mesmas das relações mágicas. Tal analogia é uma ação que mimetiza, no ato de
fala, o ato mágico do destinador/locutor de se fazer incorporar pela linguagem/mana. Por este
motivo, tendo em vista que o saber é sempre construído por e na experimentação estética, e que
esta é experimentação de e na linguagem, o ato de fala constitui o protótipo da ação artística.
37
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
Referências
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer, palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Kafka pour une littérature mineure, Paris : Les éditions de Minuit, 1975.
DUCHAMP, M. Notes. Paris: Flammarion, 1999.
GOODMAN, N. Modos de fazer mundos. Porto:Asa Argumentos, 1995.
KLEE, P. Théorie de l’art moderne. Paris : Denoël, 1985.
LYOTARD, J. –F. La condition postmoderne. Paris, Les éditions de Minuit, 1979.
LYOTARD, J. –F. e THEBAUD, J. –F. Au Juste. Lonrai : Christian Bourgois, 1979.
MAUSS, M. Esquisse d’une théorie générale de la magie. In : Sociologie et anthropologie. Paris : PUF, 1995.
PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
POULAIN, J. De l’Homme, éléments d’anthropobiologie philosophique du langage. Paris : Cerf, 2001.
WITTGENSTEIN, L. Philosophical investigations. Oxford: Blackwell, 2001.
38
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Matisse, Newman, Bené Fonteles:
A Paixão como o Re-encontro com a Imagem do Demiurgo
VERA PUGLIESE *
Resumo
O presente artigo se baseia na pesquisa de Doutorado, cujo objeto é a associação de três séries de obras – o Chemin de
la Croix, de Henri Matisse (1948-51); as Stations of the Cross, de Barnett Newman (1958-66) e os Sudários, de Bené Fonteles
(2001-04) – frente às relações projetivas formadas na espessura do olhar do historiador da arte diante das imagens. Este
texto apresenta o estudo preliminar para o recorte desse objeto, que suscitou questões teóricas impostas pela categoria
de identificação “autoimpingida” desses artistas com a Paixão de Cristo. A análise de seus discursos conduziu à percepção
do processo de criação como um constrangimento pela vontade do tema (Matisse), pela vontade da forma (Newman) e
pela vontade do processo que tomou forma (Bené). A investigação da natureza da vontade formal transfigurada sintomaticamente em imagem, alterando suas intenções, levou à indagação sobre a polêmica da conceituação de estilo e como ela
caberia, hoje, na História da Arte.
Palavras-chave: Historiografia da Arte. Didi-Huberman. Estilo. Formalismo. Vontade da forma.
Abstract
The subject of this PhD research project is the association of three series of works: Henri Matisse’s Chemin de la Croix (1948-51),
Barnett Newman’s Stations of the Cross (1958-66) and Bené Fonteles’ Sudários (2001-04) in view of the projective relations
formed in the dense perception experienced by an art historian before images. The paper features a preliminary study aimed at
addressing a subject that has raised theoretical questions stemming from these artists’ self-inflicted identification (category) with the
Passion. An analysis of their discourses led to a perception of the creation process as constrained by thematic will (Matisse); formal
will (Newman); process will, in which process has gained form (Bené). An investigation of the nature of formal will – symptomatically
transfigured into image that itself changes intentions – in turn led to an inquiry into the controversy surrounding the conceptual
formulation of style and its place in art history today.
Keywords: Historiography of Art. Didi-Huberman. Style. Formalism. Will of Form.
I. Introdução
Este estudo inicial que visa situar o objeto de minha dissertação de Doutorado se debruça sobre a
espessura do olhar entre aquele que vê a obra de arte e a própria obra, porque trata do espaçotempo em que sua percepção se abre a uma rede de relações. Diante da obra, nos desfiguramos
* Doutoranda e Mestre (2005) na Linha de Pesquisa “Teoria e História da Arte” do Programa de Pós-Graduação em
Arte da Universidade de Brasília; Bacharel em Filosofia pela USP, 1997; Licenciada em Educação Artística pela FASM, SP,
1991. Lecionou no Curso de Especialização em História da Arte - FADM/BSB (2008-2009), na Universidade Mackenzie/SP
(1993-98) e na FAAP/SP (1993-99). É professora do Departamento de Artes Visuais da UnB.
40
[email protected]
41
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
enquanto sua imagem se modifica. Mas quando a obra concerne a uma transformação exemplar,
como a tragédia expressa pela Paixão na cultura cristã ocidental, esses conteúdos se desdobram.
A Paixão progride como um caminho marcado por etapas fundamentais da transfiguração do
Jesus terreno em Cristo celeste, emblematizada pela crucificação, símbolo da morte e da ressurreição. Em outra instância, é o reencontro do indivíduo com a totalidade da qual foi cindido, o que
tange à questão do sublime. O escopo desta pesquisa é compreender como o tema foi assumido
por três artistas que se tornaram sujeito e objeto de seu próprio processo de criação por meio
da identificação com Cristo, e suas implicações formais e filosóficas para a teoria e história da arte.
A primeira obra é o Chemin de la Croix (Fig. 1), painel cerâmico da Capela do Rosário que Henri
Matisse realizou entre 1948 e 1951, em Vence. A segunda é a série The Stations of the Cross, que
Barnett Newman pintou entre 1958 e 1966, hoje na National Gallery of Art, de Washington. E,
finalmente, os Sudários, que Bené Fonteles criou entre 2001 e 2004, expostos em Brasília e em
São Paulo (2003-2004).
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
bém ocorre porque a imagem que se faz a partir do humano poder de criá-la se projeta no Criador, assumido, em alguma instância, como o próprio artista.
O problema suscitado pela abordagem do processo de criação desses artistas é o da expressão
plástica do conflito inerente ao tema, já que essas três séries pertencem a campos plástico-conceituais diferentes. Se é possível verificar, malgrado suas diferenças, todo um conjunto de elementos,
fatores de conexão, funções sintáticas, dispositivos simbólicos, interesses, características recorrentes ao Expressionismo Abstrato e ao Informal com o qual Matisse teve contato no final da década
de 1940, a obra de Bené provém de outro sistema.
Por outro lado, a riqueza da associação entre essas obras talvez permita verificar a relação entre
sujeito/objeto, segundo a categoria de relação figura/fundo na Modernidade, e o problema da
linguagem indicial, da abstração formal e expressiva, bem como as operações sintático-conceituais
contemporâneas, relacionando o sujeito da obra a seu próprio meio. A metáfora do artista como
demiurgo faz a mediação dessa associação, que instiga a pesquisa sobre a expressão formal e conceitual de tal metáfora em suas implicações.
Para que este mortal possa alçar a categoria de demiurgo, o artista precisa ingressar em um rito
de passagem, um caminho exemplar de purificação. Este processo exige um pathos de sofrimento,
de sacrifício. Urge verificar se as imagens criadas por Matisse, Newman (Fig. 2) e Bené, com vistas
a esse thelos, expressam ou encarnam tal processo, e se seria possível relacionar os modos e as
naturezas dos agenciamentos da imagem nas três séries.
Figura 1:
Henri Matisse, Chemin de la Croix, 1948 e 51, Chapelle du Rosaire, Vence.
O interesse por essas séries foi motivado pela investigação da relação entre o artista e sua obra,
desdobrada na relação sujeito/objeto como projeção do artista sobre sua obra. É, ainda, possível
interpolar o olhar – elemento principal dessa relação – para pensar na relação de outros indivíduos, seja o fruidor, o crítico ou o historiador da arte, com a imagem. Daí a questão da categorização
do sujeito à qual esse indivíduo se refere metodologicamente.
��������������������������������������������������������������������������������������������
A escolha dessas obras se impôs devido à sua expressa identificação com a categoria “autoimpingida”, que envolve a relação do artista com o tema, com o pathos de processo de criação
como purgação em direção a uma ascese espiritual que possui outra natureza, passível de se relacionar com uma espécie de constrangimento formal pela Darstellbarkeit (figurabilidade).
Se essa identificação diz respeito à dupla natureza de Cristo, dela deriva o enfrentamento ao
próprio Deus devido à tomada para si da Paixão pelo artista, como deificação do processo de
criação artística e não como sua humanização. A desobediência ao Segundo Mandamento1 tam1. “Não fará para ti imagem de escultura, figura alguma do que há em cima, nos céus, e abaixo, na terra, nem nas águas,
debaixo da terra” Ex 20, 4. Outras referências a essa proibição existem em: Ex 23,024; Ex 32, 1-4 e 28; Ex 34, 12-14; Lv 26,
1; Nm 25,-1-13; Dt 4, 15-20; Dt 27, 15; 2Mc 12, 40; Is 37, 19, além das alusões a sinais visuais de transferência da imagem
42
divina para suportes naturais que concernem à possibilidade da própria imagem de Deus. (BESANÇON, 1997, 106-21).
Figura 2:
Barnett Newman, The Stations of the Cross, 1958-66, National Gallery of Art de Washington
���������������������������������������������������������������������������������������������������
Inicialmente, pode-se suspeitar que os registros de identificação sejam o intelectual, hipótese reforçada pelos depoimentos dos artistas, ou o visceral, concernente à sua experimentação pessoal,
verificada no contexto dos dados biográficos contemporâneos aos respectivos contextos poéticos dos processos de criação dessas obras. Não se pode esquecer, contudo, o que se poderia
chamar de registro simbólico, referente ao sistema de crenças de cada artista. É forçoso investigar
também o nível dos desenvolvimentos plástico-formais, no qual se buscou imagens que fossem
eficazes nos registros acima elencados, respondendo a demandas de diferentes naturezas. Mas
o que seria a eficácia da imagem relativamente à questão do olhar e da projeção em diferentes
campos plástico-conceituais?
A partir do inventário dos dados para iniciar essa investigação, suspeita-se que o problema da
forma seja crucial, já que a dupla transgressão que ele envolve se refere a dar forma à condição
43
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
humana: ao homem como imagem de Deus. Nos três casos, de modos diferentes e em poéticas
diversas, houve também a negação da conformação plástica da imagem de Cristo, visto que os
artistas buscaram aludir à sua natureza divina, impalpável e poderosa por meios indiretos nos
procedimentos utilizados, mas de forma coerente com seus repertórios e linguagens individuais.
Some-se a isso a rejeição ao conceito da forma como designação da figura: a Vorstellung (representação), nos depoimentos dos três artistas. Esta rejeição se faz pelo deslocamento da linguagem
icônica para uma linguagem indicial, em Matisse; pela depuração simbólica da imagem como duas
forças em paralelismo, em Newman; pela transposição da imagem como dado para o processo
conceitual transtextual, segundo o dispositivo da apropriação, em Bené (Fig. 3).
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
II. O Processo de Criação a o Ato Formador da Imagem
No plano metodológico, é possível indagar se a eficácia simbólica das imagens assim formadas
pode se abrir a uma investigação da ordem epistemológica do ato de Darstellbarkeit. É necessário
verificar que conceitos permitiriam relacionar o plano formal à Darstellbarkeit, em busca da especificidade da obra de arte, e quais seriam as suas implicações.
Ao investigar a relação entre o olhar e a imagem na especificidade da obra de arte em minha
pesquisa de Mestrado (PUGLIESE, 2005), o quadro teórico aberto por Georges Didi-Huberman
(1992) para o estudo do Chemin, de Matisse, apontou para a questão da constituição do conceito operacional de estilo na historiografia da arte. Buscou-se compreender o alargamento do
campo fenomenal da história da arte crítica proposta por Aby Warburg (1999), que deslocou o
sujeito em relação ao seu objeto de estudo, abrindo as imagens e suas poéticas à complexidade
de subdeterminações e colocando em pauta o problema do estilo e do agenciamento das eficácias
formais operados historicamente pelo conceito de Pathosformeln (fórmulas de pathos).
Para compreender o Darstellbarkeit como trabalho da imagem, seria necessário recorrer a conceitos de Erwin Panosfky (1979), para quem a história dos estilos seria o princípio controlador
do método iconográfico vinculado ao conceito de Gestaltungswillen (vontade da forma), de Aloïs
Riegl, para o qual o estilo seria uma decorrência do Kunstwollen (querer artístico).
A pesquisa do Mestrado abriu campo para novas associações e indagações, que demandaram
um novo estudo, a ser desenvolvido no Doutorado, a partir da associação entre o Chemin, as
Stations e os Sudários, cujos agenciamentos trazem à baila os dispositivos de norma e forma
(GOMBRICH, 1988), em confronto com os poderes da imagem (MARIN, 1992). A questão
da tragédia da Paixão no interior de uma história da arte que se vê como crítica problematiza
duplamente a criação da imagem.
III. Um Problema Historiográfico
Figura 3:
Bené Fonteles, Sudário, 2001-04, Estação Pinacoteca, São Paulo
44
Esses três procedimentos, que talvez visassem ao evitamento da própria imagem, como desvios
do peso da transgressão ao Segundo Mandamento, são reverberados pelos discursos dos três artistas, que despistam a autoria da forma para um terceiro sujeito: a própria forma. De modos diferentes, a realização artística aparece como um constrangimento: pela “vontade” do tema, no caso
de Matisse; por uma “vontade” da forma, para Newman; pela “vontade” do processo de criação
que tomou forma, em Bené. As figuras que surgiram pelas mãos dos artistas teriam sido, de certo
modo, contingências de uma vontade além deles. Qual a natureza dessa vontade da forma que se
transfigura sintomaticamente em imagem, alterando suas intenções e propostas conscientes?
�����������������������������������������������������������������������������������������
Embora os três artistas tenham desenvolvido suas séries mediante poéticas e recortes temporais tão diversos, é possível cogitar que os desenvolvimentos dessas obras comportassem dispositivos da mesma natureza, coerentes com a problematização do tema pelos próprios artistas,
expedientes que remetem à triangulação artista/obra/referente, interceptados pela lógica da projeção do artista sobre o referente que, tomando para si o tema, procurou encarná-lo na obra
como sua própria ressurreição. Poderia o vestígio do artista na imagem formada ser aquele do
processo de formação da imagem como ato criador de sua própria restituição como imagem?
Seria esta indagação destinada à ordem plástica ou à ordem simbólica do processo de criação?
A necessidade de adotar como objeto de estudo a associação entre as três séries de obras
mencionadas concerne ao seu desenvolvimento projetivo em relação à Divindade, que reverbera
de modo sintomático o indivíduo-artista em seu processo de criação, cuja imagem se replica,
antropomorfizada, remetendo à própria fratura temporal do indivíduo diante da voracidade
do tempo.
O escopo da investigação dessas séries, cujos repertórios e sintaxes pertencem a diferentes
momentos do Moderno e do Contemporâneo, refere-se à noção da origem repetida e à demanda
de uma imagem-fênix (ou imagem-Cristo), que morre para renascer (DIDI-HUBERMAN, 1990).
Este objeto comporta a duplicidade da mortalidade e da imortalidade da arte – e do homem
– no símbolo da Ressurreição ou na busca do arquétipo da matriz e se relaciona ao mergulho
fantasmático e crente do recalque da perda . Paralelamente, a nova teoria da arte francesa assume
metodologicamente a fratura do tempo histórico por meio do conceito de anacronismo. A
reivindicação de Didi-Huberman (1990) ao historiador da arte é que não se ignore o aspecto
sintomatal da disciplina e que se faça uso do deslocamento causado por ele como sujeito, ao
invés de remeter o trauma da cisão para o inconsciente, sob o risco de perder-se novamente em
uma história da arte dogmática. Nas respostas de Matisse e Newman às críticas sobre a pretensa
literalidade de suas obras, eles se remeteram conscientemente à busca da sutura, da ritualização
da perda por meio do deslocamento epistemológico assumido por eles ao longo da criação das
suas séries. Daí a necessidade da apreensão da estrutura simbólica do tema das três séries de
obras estudadas, que toca tanto a dupla natureza do protagonista da Paixão, como a ameaça
frente à proibição da criação da imagem.
45
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
46
Pretende-se verificar se nessas três séries de obras o Darstellbarkeit, que remete ao trabalho
do sonho de Sigmund Freud (2001), realizou-se munido de preocupações estéticas e de questões
formais, assim como se a plasticidade desse trabalho teria sido assumida como um incarnat da
própria Darstellbarkeit: uma encarnação ao mesmo tempo da forma e do processo no qual a forma
foi plasmada. Essa proposta se estabelece simultaneamente na espessura do olhar, projetando tal
espessura na própria encarnação do olhar na matéria da obra, a partir da escolha do tema, num
discurso visual desdobrado sobre si próprio e que se redobra na questão da identificação.
A escolha dessas obras se pretende como uma dobra que transgride a linearidade de uma
narrativa histórica, inserindo-se na própria fratura da história da arte, na fratura da imagem e do
sujeito que produz história da arte, em busca de uma imagem-síntese. Trata-se da história da arte
como imagem dialética, que se oferece como ponte fulgurante, como o acesso patológico de
reconhecimento do indivíduo frente ao universal para permitir a emersão da consciência sobre o
próprio processo de construção histórica, consciente de suas fissuras.
O deslocamento proposto pela estratégia da montagem deve permitir ao sujeito reconhecer-se
diante do simbólico e não diante de uma realidade objetiva. A intenção não é a de perceber alguma
sorte de objetividade histórica, mas o nexo entre forma e conteúdo, sem descosê-lo.
Warburg (1999) pressupunha tal nexo no conceito de Pathosformeln, apreendendo a ambiguidade
que a figuração comporta. Para evitar o paradoxo e subsumir a forma ao conteúdo, Panofsky (1979)
tomou emprestado o sentido dos “sintomas culturais” de Ernst Cassirer para a constituição de seu
Gestaltungswillen. Carlo Guinsburg (1991) vê nessa atitude uma rejeição ao formalismo e, até mesmo,
ao ato formador da imagem ligado ao inconsciente do artista, entendido aqui como Darstellbarkeit.
Didi-Huberman (2000) compreende o sujeito diante da imagem como o eixo da produção
historiográfica. Esta formulação é tanto problemática quanto problematizadora da própria disciplina,
pois o historiador da arte, como sujeito, deve se deslocar em função das categorias do visível, do
legível e do invisível, conforme o objeto de estudo lhe exija. Baseado em Hubert Damisch, ele
inverte a ordem iconográfica, partindo do legível e utilizando recursos tanto da iconografia quanto
da semiótica, principalmente a de Louis Marin. Ainda no âmbito do legível, o autor busca também
a forma na apreensão do visível, deslocando-se para o campo estrutural de forças que animam a
imagem. O campo formal, contudo, abre-se para a questão do ato formador, causando um novo
deslocamento do sujeito que, utilizando recursos da fenomenologia merleau-pontyana, transfigurase quando passa a perceber a espessura entre ele e a obra.
O deslocamento epistemológico que se pretende compreender tem como centro funcional o
trabalho de Darstellbarkeit como formação da imagem no inconsciente, que produz deslocamentos
de conteúdos para seus substitutos figurados. Diferentemente da Vorstellung, o visível da imagem
inerte em relação ao sujeito cognitivo, o Darstellung (figuração) é a imagem constituída pelo
inconsciente do sujeito no trabalho do sonho como ato de recognição mnemônica, como “função
do desejo” que anseia pela reatualização da origem como primeira presença, daí o componente de
repetição da série (PUGLIESE, 2005, 295).
É necessário investigar se o Darstellung como “quase-presença” pode ser relacionado ao problema
do nexo forma/conteúdo nas diferentes poéticas do Chemin, das Stations e dos Sudários, a fim de
atingir tanto a eficácia simbólica da imagem quanto a atividade dinâmica do sujeito diante dela.
Essa noção se refere ao questionamento de Jean-François Lyotard (1979), Damisch (1992) e DidiHuberman (2002) sobre a “presenciabilidade” das imagens com as quais o historiador da arte entra
em contato no trabalho constitutivo do discurso histórico, colocado diante das imagens e criando
cadeias associativas entre elas. Tais associações fugiriam ao seu controle consciente, num trabalho de
Darstellbarkeit como formação de imagens sintéticas por meio dos dispositivos da condensação e
do deslocamento.
Baseada no conceito de história de Walter Benjamin (BUCK-MORSS, 2002), esta proposta é
expressa mediante a montagem de um processo análogo ao da recognição mnemônica, mas que
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
leva em conta fatores importantes, como o das diferentes temporalidades presentes na memória
do historiador da arte e o das diferentes temporalidades presentes na própria imagem diante da
qual o sujeito se coloca (PUGLIESE, 2005, 296-7).
IV. A Imagem e sua Eficácia Simbólica
Este tema é um ponto nevrálgico da cisão entre o formalismo e a iconologia, justamente no
tocante à relação entre a eficácia da imagem e o conceito de estilo. Ao criticar as antinomias
formais de Heinrich Wölfflin, Panofsky (1979) criou o conceito da Gestaltungswillen, que seria
intrínseco a um determinado Zeitgeist, já que o olhar necessariamente cultural do artista estaria
subsumido a uma certa Weltanschauung, rejeitando a esfera das volições inconscientes do artista
e a psicologia da arte. Esse conceito foi aproximado aos outillages mentaux dos Annales na
investigação iconográfica, tanto na história da arte como na história.
O problema do estilo envolve o conceito de Kunstwollen, de Riegl (1978), que seria uma força
inerente ao homem em manifestar a Weltanschauung de um Zeitgeist, mas ligada inconscientemente
à configuração estrutural das formas que se impõem à criação artística independentemente da
intenção consciente do artista. Ao negar a taxonomia de matriz biológica dos estilos, regida pela
sequência temporal de Johann Winckelman, e o determinismo da Gestaltungswillen, a noção de
Kunstwollen pode ser aproximada do conceito de vie des formes de Henri Focillon (1988), que
recusou os estilos como provenientes das modificações históricas ou das necessidades de seus
conteúdos literários.
As formas, assim, obedeceriam apenas às suas leis imanentes. Se essa questão se relaciona com
o formalismo, ela está intimamente ligada à da projeção do artista na imagem por meio do seu
próprio ato formador, o que também interessou a Lyotard: “o segredo talvez resida nesse poder
do sensível que consiste em atrair a si o signo segundo o eixo da designação. Porém este poder
não é mais que o da fantasmática que aspira a realizar o desejo em imagens.” (1979, 24).
Antes disso, porém, haveria uma crítica interna da Iconologia por parte de Ernst Gombrich
(1990), que não admitia substituir um modelo classificatório operacional pela formação
morfogenética dos estilos, mal-entendido talvez gerado pela indistinção dos conceitos de norma e
forma. Assim, o que seria assimilado como “características estilísticas” deveria ser percebido como
“termos de exclusão”, que seriam utilizados conscientemente pelo artista.
A noção de concatenação temporal dos estilos e seu determinismo ainda entram em conflito
com as formulações sobre o tempo em Warburg, mediante o conceito de sobrevivência da imagem
(DIDI-HUBERMAN, 2002). Isso permite a Didi-Huberman (2000) perceber o anacronismo de
diferentes modelos de tempo por meio do deslocamento epistemológico do sujeito diante da
obra de arte, compreendendo o tempo complexo da obra que dialoga com a sobredeterminação
do próprio sujeito. Essa desterritorialização da imagem e do tempo histórico combate o cunho
evolucionista que impregna a noção tradicional de estilo.
Além disso, o conceito de Pathosformeln deriva do conceito de “participação mística” de Lucien
Levy-Bruhl (2008), assentado na relação de indivisibilidade entre sujeito e objeto. O sujeito
participaria das propriedades do mundo por meio da similaridade ou contiguidade de imagens,
que se manifestariam em uma latência que seria sua própria eficácia simbólica.
O problema dessa eficácia revelaria a noção dos poderes da imagem, que não seriam fruto de
um determinismo histórico ou estilístico, mas marcados por uma condensação da cultura em um
momento histórico de modo particularmente significativo na temporalidade. Ambas as noções se
tornariam inteligíveis por meio da noção de pujança mitopoética, não sendo a eficácia uma mera
convencionalização de tipos, mas a revelação de certas Pathosformeln. Estas fórmulas sobreviveriam
no tempo mediante sobredeterminações culturais na memória coletiva.
47
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Quanto ao olhar do historiador da arte sobre a obra, este deveria assumir a categoria cognitiva
do sujeito capaz de dar conta do paradigma perceptual de sentido/pathos e, para tal, ele deveria se
permitir sofrer um deslocamento epistemológico homólogo. Este deslizamento joga dialeticamente
com a categoria do sujeito analítico que investiga as categorias do visível e do legível da imagem e
se deve à compreensão da presença do indivíduo diante da imagem. A imagem, por sua vez, passa
a ser entendida como dialética e sobredeterminada, portadora do paradoxo visual do legível,
percebida em sua relação com o mundo do qual o próprio sujeito participa. Didi-Huberman
(1995) nomeou dois paradigmas de apreensão do objeto artístico, o sentido-sema e o sentidoaisthésis, respectivamente às categorias do visível e do legível da imagem.
No que toca o sentido-aisthésis, a necessidade da investigação formal que leva ao problema
dos campos plástico-conceituais a partir dos quais o artista dá forma à imagem – conduzindo à
questão do estilo – visa a estabelecer parâmetros conceituais e metodológicos que se relacionam
com a investigação da visibilidade e legibilidade da imagem.
Damisch (1985) e Didi-Huberman (2000) compreendem o conceito da imagem como sintoma
da memória, imiscuindo o presente no passado anacrônica e criticamente, já que esta opera
um jogo de presentes reminiscentes. O conceito de sintoma presente no invisível da imagem
demanda um terceiro paradigma da História da Arte, o sentido-pathos, e diz respeito à relação
sintomatal de Lyotard (1979), que questiona o postulado linguístico da arbitrariedade entre signo
e significante.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Referências
BESANÇON, A. Imagem proibida. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG /
Chapecó, Argos, 2002.
DAMISCH, H. Le Jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992.
DIDI-HUBERMAN, G. La peinture incarnné. Paris: Minuit, 1985.
______. Devant l´image. Paris: de Minuit, 1990.
______. Devant le temps, Paris: Minuit, 2000.
______. L´image survivante. Paris: Minuit, 2002.
FOCILLON, H. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 1988.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
GOMBRICH, E. H. Norma e forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
V. Considerações
GUINSBURG, C. Mitos emblemas sinais. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
A necessidade de associar o Chemin e as Stations aos Sudários de Bené Fonteles surgiu da
conscientização de sua estrutura de duplo fantasmático do artista, que pode ser análoga ao
conceito-função do sintoma e que opera as categorias do visível, do invisível e do legível, embora
suas respectivas imagens atravessem deslizamentos do conceito de imagem em discussões teóricas
e plásticas. O sintoma, esse poder da imagem, não é transcendente ou numinoso, mas revela o
desejo do sublime e da potência transcendental da imagem mediante os conceitos de origem e da
imagem como restituição de um “outro” pelo artista, e a negação desse mesmo desejo.
Com base em Benjamin, Didi-Huberman (2000) acusa a postura do historiador da arte que
busca uma “restituição” do passado como um recalque sintomatizado pela “grande narrativa”, pelo
rigor do método e pela doutrina da certeza, partindo de dogmas obsedantes tomados como
axiomas, acusados como sintomas da cegueira funcional de uma historiografia evolucionista e,
portanto, teleológica. Ele prevê o caminho da problematização da história da arte estruturada
como montagem por meio de uma heurística negativa que dialetize os dois sentidos dessa
disciplina: o genitivo objetivo e o genitivo subjetivo.
Além desse desafio, resta a dificuldade que reside em associar essas duas Via Crucis de
Matisse e Newman aos Sudários de Bené. Esta recente série de obras se vincula a um campo
plástico-conceitual bastante diverso do moderno, envolvendo operações de conceptualização
e apropriação de diferentes naturezas, que se referem a outros conceitos e a outras poéticas.
Interessa justamente assumir metodologicamente essa dificuldade na pesquisa.
48
LÉVY-BRUHL, Lucien. A mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus, 2008.
LYOTARD, J.-F. Discurso, figura. Barcelona: Gustavo Gilli, 1979.
MARIN, L. Pouvoirs de l´image. Paris: Seuil, 1992.
PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979.
PUGLIESE DE CASTRO, V. M. Entre o anônimo La Vierge Enfant e o São Domingos, de Matisse: imagem e olhar na historiografia da arte. 2005. 324p. Dissertação (Mestrado em Arte) -Instituto de Artes, Universidade de Brasília.
RIEGL, A. Grammaire historique des Arts Plastiques.Volonté artistique et vision du monde. Paris: Klincksieck, 1978.
WARBURG, A. The renewal of pagan antiquity: contributions to the cultural History of the European Renaissance (texts
& documents). Los Angeles: Getty Foundation for the History of Art and the Humanities, 1999.
49
POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS
Elsewhere in Contemporary Art:
Topologies of Artists’ Works, Writings, and Archives
SIMONE OSTHOFF *
Resumo
O artigo aponta para as relações cada vez mais fluidas entre arte, mídia e documentação na arte contemporânea, que
tanto requerem quanto sugerem novas metodologias e proximidades com a história da arte, a teoria e a crítica. A autora
emprega o conceito de topologia como uma possibilidade ao examinar duas obras de 2004: o estúdio-arquivo de Paulo
Bruscky, em que verifica-se a passagem de um arquivo de obras de arte para o arquivo enquanto obra de arte, e a exposição Rabbit Remix de Eduardo Kac, na qual o artista emprega a mídia como meio.
Palavras-chave: Topologia. Arquivo. Arte contemporânea. Paulo Bruscky. Eduardo Kac. Mídia. História da arte. Teoria.
Crítica.
Abstract
This article calls attention to the increasingly fluid relations between art, media and documentation in contemporary art, which
simultaneously urge and suggest new methodological approaches from and to art history, theory and criticism. The author puts
forward the concept of topology as one such approach by examining two artworks from 2004: Paulo Bruscky’s studio-archive as
it changes function from an archive of art works to the archive as artwork, and Eduardo Kac’s Rabbit Remix, in which the artist
employed the media as medium.
Keywords: Topology. Archives. Contemporary art. Paulo Bruscky. Eduardo Kac. Media. Art history. Theory. Criticism.
* Simone Osthoff é professora adjunta de estudos críticos na Escola de Artes Visuais da Pennsylvania State University. Seus
numerosos ensaios, entrevistas e resenhas sobre arte e mídia, com foco na práticas Latino-Americanas e nas questões que
elas levantam, foram publicados internacionalmente e traduzidos para oito idiomas. Ela é autora do livro Performing the
Archive: The Transformation of the Archive in Contemporary Art From Repository of Documents to Art Medium [Performances
de arquivo: a transformação do arquivo na arte contemporânea de repositório de documentos à meio de arte] (Atropos
Press, 2009).
* Assistant professor of critical studies in the School of Visual Arts at Penn State University, is a Brazilian-born artist and writer centering her research on the institutionalization of experimental practices and on contested histories of contemporary
art. Her new book about art, design, and media explores the Jornal do Brasil Sunday supplement during the utopian years
between 1956 and 1961.
53
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Figure 1:
Digital street clock in Copacabana beach with image of Eduardo Kac’s 2000 GFP Bunny, a public intervention in Rio de
Janeiro as part of his solo show Rabbit Remix at the gallery Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, Brazil, 2004
(artwork © Eduardo Kac; photograph by Nelson Pataro, provided by the artist).
On September 2004, when I arrived in Rio de Janeiro on my way to the 26th São Paulo Bienal, images
of Eduardo Kac’s GFP Bunny – his transgenic rabbit created in 20001 – were strategically placed
throughout the city on three types of advertising displays: illuminated advertising signs mounted
above digital clocks/thermometers put on view the enigmatic, fluorescent-green bunny; panels at
bus stops announced Kac’s solo exhibition at Laura Marsiaj Contemporary Arts in Ipanema; and
constantly rotating displays in kiosks showed images of cultural events in the city, among them Kac’s
GFP Bunny and Bebel Gilberto’s new CD album cover. A week later, at the São Paulo Bienal, Kac
presented a transgenic installation entitled Move 36, which along with Paulo Bruscky’s apartment/
studio/archive – one of the biennial’s eight special rooms – was identified by the media as a “mustsee” presentation among the event’s 135 works by artists from 62 countries. Interviews with both
artists and images of their installations appeared in the major newspapers and magazines of Rio
de Janeiro and São Paulo prior to, during, and after the opening of the exhibition.2 I have explored
aspects of Kac’s and Bruscky’s multifaceted works elsewhere, and in this article I focus on the issues
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
raised by Bruscky’s archive and by Kac’s new books, as well as the unsettled place of this theoretical
and archival material within their own work and in art institutions, including the writing of art history
and criticism.3
A classic mathematical joke states that “a topologist is a person who doesn’t know the difference
between a coffee cup and a doughnut,” as both forms belong to the same class of round objects
with a hole in them – topologically called a torus – and can theoretically be transformed into one
another. The use in art history of such a broad and uncommon term as topology allows one to
go beyond the “vanishing point” and the habit of thinking about art in terms of the “projections”
of perspective theory. “Points of view come packed with a full kit of ready-made subjects and
objects, planes of representation, and radiating ‘cones of vision.’ ” (KUNZE, 2005). Topology allows
for linking near and far, up with down, in with out, in a paradoxical continuous space most easily
understood by the classic example of the Möbius strip. Furthermore, topology underlines a
reader-response theory. In a participatory paradigm, the artwork often unfolds in real time, and
the viewer-reader must complete the work’s meaning. As the boundaries between art’s inside
and outside become less clear, meaning and authorship become more collective and distributed.
In a participatory paradigm, for instance, completeness is no longer possible, desirable, or taken
for granted. The artist’s role as theoretician and archivist further disrupts boundaries between art
production and its documentation, and therefore the traditional hierarchies between artists, critics,
and art historians. Bruscky’s and Kac’s simultaneous practices of art making, archiving, and writing,
as they move through various media, sites, institutions, and fields of knowledge, put into practice
topological approaches to art.
Since the beginnings of their careers in the 1970s and 1980s respectively, Bruscky (born 1949)
and Kac (born 1962) have often performed outside traditional art institutions and practices, forging
complex relations between word and image, concept and medium, performance and documentation.
Approaching art and life without regard for national borders or the categorical boundaries of
traditional media, they have eschewed traditional venues, opting instead to invent new ones. While
both artists were born in Brazil, Bruscky has always been based in that country. Kac, however, spent
only the first nine years of his career in Brazil (1980–88) and emerged in the subsequent years
with the international art scene and the internet as his natural environments. Like other artists who
engaged art with sites and knowledge from elsewhere in the cultural field, such as Robert Smithson
and Hélio Oiticica, Bruscky and Kac have continuously drawn elements from art, technology, science,
visual poetry, philosophy, and popular culture, promoting the blurring of distinctions among the artist
and the theorist, the curator, the archivist, the historian, and the cultural critic.4 (OLEA, 2004)
critical articles and historical highlights of all twenty-six biennials beginning in 1951. See also Maria Hirszman, “Bruscky leva
seu ateliê a Bienal,” O Estado de São Paulo (Caderno 2/Especial), September 23, 2004, H-14; Caroline Menezes, “Uma nova
genética para a arte: Eduardo Kac usa genes para discutir relação entre ser vivo e tecnologia,” Jornal do Brasil (Caderno B),
September 30, 2004, B4; Giselle Beiguelman, “O xeque-mate cibernético,” Folha de São Paulo (Caderno Mais!), September
19, 2004, 14-15; and “A Coelha Transgênica,” Veja Rio, September 22, 2004, 43
54
1. GFP Bunny was Kac’s second transgenic work, created in February 2000 with the birth of the hybrid albino rabbit “Alba”
3. Simone Osthoff, “Object Lessons,” World Art, Spring 1996, 18–23, was my first article about Kac’s work. My most recent
in a laboratory in Jouy-en-Josas, France. Alba contained the GFP (green fluorescent protein) gene of a jellyfish. She is
is “From Mail Art to Telepresence: Communication at a Distance in the Works of Paulo Bruscky and Eduardo Kac,” in At a
normally white and glows green only when illuminated with a special blue light. Kac originally envisioned GFP Bunny as a
Distance: Precursors to Art and Activism on the Internet, ed. Annmarie Chandler and Norie Neumark (Cambridge, MA: MIT
three-phase project: the first was the creation of a new being through molecular biology; the second its public presentation
Press, 2005), 260–80.
in a gallery exhibition; and the third was the integration of the animal into the artist’s family home in Chicago. However,
4. In this essay Olea underlines the importance of the theoretical production of Latin American avant-garde artists
after the French lab refused to release the rabbit as previously agreed, a worldwide media controversy followed, and Kac
throughout the twentieth century from Mexico to Argentina. Many of these seminal writings and manifestos are translated
employed the media frenzy as material in the new phase of GFP Bunny, as exemplified in the photographs, drawings, and
in the comprehensive catalogue’s appendix. The exhibition Panaroma da Arte Brasileira 2001, curated by three artists – Ri-
other works in his exhibition Rabbit Remix.
cardo Basbaum, Paulo Reis, and Ricardo Resende – showcased Bruscky as an example of the artist-curator. See Ricardo
2. Among many others, see Fabio Cypriano, “O Ateliê faz o artista,” and Alfons Hug, “Mundo conceitual reflete crise da pin-
Basbaum, “O Artista Como Curador” [The Artist as Curator], in Panaroma da Arte Brasileira 2001, (São Paulo: Museu de
tura,” both in Folha da São Paulo (Folha Ilustrada), December 22, 2003, E6. BRAVO!, September 2004, featured a number of
Arte Moderna de São Paulo, 2001), 35–40.
55
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Figures 2 and 3:
Paulo Bruscky’s archives in Torreão neighborhood, Recife, Brazil (photographs by Léo Caldas, provided by the artist).
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
the first time in May of 2002 to interview Bruscky. Another visitor was Alfons Hug, the curator of
the 26th São Paulo Bienal. “When he visited the studio,” Bruscky recalled, “he came in, looked at
every room without saying a word, came back into the living room, and proposed to exhibit the
whole studio exactly as it was in the biennial. I did not expect that reaction, but I agreed, since my
art and life have always been inseparable, and the studio-archive is clearly an expression of that.
How do we give form to knowledge? In this space I make no difference between my works and
everything else here, the archive, my library, my life. I spend more time here than at home.”5
Bruscky was interested in research from an early age, but in the 1970s his interest acquired
an added social and political dimension, a sense of personal responsibility toward history
and the preservation of a collective memory. “Each era has its own stories and histories. I
was a victim of the dictatorship and had works destroyed by the police. Not only was my
personal testimony important to preserve but also that of other artists involved in the Mail
Art movement.”6 When Bruscky emerged in the art scene in the late 1960s and early 1970s,
censorship and repression were commonly imposed by a military dictatorship responsible for
one of Brazil’s darkest periods of state political oppression, which began in 1968 and extended
through the 1970s. (This era witnessed a wave of militarized regimes across Latin America, not
just in Brazil, generally supported by the US government.) During this time, the practice of
making art – especially experimental art – was a difficult and dangerous proposition. In spite
of this climate, artists continued to resist authoritarian structures by pushing the boundaries of
experimentation and the limits of public freedom. Bruscky participated in this and became a
curator, creating in Recife a hub for the Mail Art movement. He later became a pioneer of fax
art and xerox art (the name photocopy art received in Brazil). Not used to relying on public
or official institutions for support, he developed instead a strong artists’ network: “After all, the
documentation of works made in the 1970s is in the hands of the artists.” He exchanged letters
and works with Gutai and Fluxus artists, among them Saburo Murakami, George Maciunas,
and Dick Higgins, and learned about these movements from articles sent to him by the artists
alongside letters and works.7 He created a number of international events in Recife such as the
Artdoor exhibition (on billboards across the city) with the participation of Christo, among other
well-known artists.
Bruscky’s archive is not only a seven-thousand-book library and information retrieval system
containing extensive correspondence with artists, such as Meret Oppenheim. The collections of
sound poetry and taped interview range from Dada artists to an unpublished conversation with
Hélio Oiticica. Bruscky has give the archive’s large collection of comic books to his son, who is
working with the medium. “Humor, puns, and word play are always present in my work. Humor
is antityranny, antiauthoritarian,” comments Bruscky, who has always taken the sliding meaning
of signifiers seriously and, as part of the process, in bohemian fashion, hosts in his studio every
Saturday a group of artists who join him in conversation and the drinking of a good cachaça.
5. Paulo Bruscky, interview with the author during the installation of the São Paulo Bienal, September 23, 2004. Translation
From Archive of Artworks to Archive as Artwork
mine. All further quotes from the artist are from this interview.
6. Bruscky was jailed three times, in 1968, 1973, and 1976. After 1976 he received death threats over a period of six
56
Bruscky’s studio, located in a two-bedroom apartment in the Torreão neighborhood of Recife,
on Brazil’s Northeast coast, has for eighteen years housed one of the most important collection
of Mail Art in the country – fifteen thousand works – along with the artist’s own oeuvre, books,
newspaper articles, and other works ranging from artists’ books and sound poems to films and
videos. Packed to the ceiling with papers, files, and all kinds of objects from brushes to kitchen
utensils, this impressive studio-archive left Recife for the first time to be exhibited as an installation
at the 26th São Paulo Bienal (September 26 – December 19, 2004). Over the years Bruscky has
made the archive available to artists, students writing theses, critics, and journalists. I went there for
months and was constantly followed by the police until he denounced this situation in a solo show at a Recife art gallery,
making public the threats he had been, up to that point, undergoing privately. He was never associated with a political party,
and his militancy was first and foremost cultural and artistic.
7. The Gutai group, founded in Osaka in 1954, included Jiro Yoshihara, Kazuo Shiraga, and Saburo Murakami. With an emphasis on performance, they reinterpreted Abstract Expressionism, then propagating through the media, thus creatively
misreading modernism. A similar creative response is found among Neoconcerte artists in Rio de Janiero in the late 1950s
in relation to geometric abstraction. See Yve-Alain Bois’s entry for the year 1955 in Art since 1900, ed. Hal Foster, Rosalind
Krauss, Yve-Alain Bois, and Benjamin H. D. Buchloh (London: Thames and Hudson, 2004), 373.
57
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
An important cultural activist working outside the hegemony of Brazil’s major cultural centers
(Rio de Janeiro and São Paulo), Bruscky, who has never sold a work in his life, is experiencing a
new wave of recognition from major museums and cultural institutions in Brazil.8 Despite all the
exposure and attention his work is receiving, being part of the biennial was for him not new, nor
did it excite him nearly as much as the precious rare books and catalogues he found on incursions
into used-book stores during his daily walks between the hotel and the Ibirapuera park, where the
biennial pavilion is located.9 A few days prior to the opening of the biennial, I asked Bruscky what
might happen to the contents of the archive when it is exhibited primarily for its formal, personal,
and idiosyncratic qualities, as a type of Merzbau. He didn’t seem concerned with either the possible
loss of content or the meanings the archive might acquire in this new context. He told me that,
for one thing, the biennial docents were carefully instructed by the art historian who knows his
work best – Cristina Freire – to address the content of the work as well as his working process.
Bruscky’s long experience with institutions, curators, and critics, as well as with their limitations, led
him to work with the certainty that time will tell.
The question of the institutional location of the archive – physical, ontological, and historical
– has become increasingly relevant to the writing of contemporary art history. As a powerful
mediator between memory and writing, the archive constitutes a fertile territory for historical and
theoretical scrutiny, especially for those engaged in writing the history of post-1960s art. In Archive
Fever, Jacques Derrida, focusing on Sigmund Freud’s archive, raised questions that foreground what
Derrida sees as the inherent instability of representational processes. Probing which data belonged
inside the archive and which outside, Derrida asked, for instance, which letters and documents
belonged to Freud’s personal family history and which to his professional life and to the history
of psychology. The deconstruction of the clear boundaries between personal and public spheres
performed by Derrida in relation to Freud’s archives slowly undermined common assumptions
about origins, genealogy, authority, power, legality, and legitimacy. Archival Fever was prompted, as
was my interest in Bruscky’s archives, by the process of transforming the subject’s house into a
museum, and thus by “the passage from one institution into another.” (DERRIDA, 1996, p.3)
Besides Derrida’s important examination of the archive, two other books have broadened issues
of history, memory, and representation, offering useful alternative methodologies and approaches
to archives. The first is Ann Reynolds’s original approach to Robert Smithson’s archive, which used
a morphological methodology not very common among historians, but employed by Smithson
himself as his working method. These morphological connections of eclectic material, such as
images and written texts, diverse authors, disciplines, and concepts from popular and erudite
culture, are “categories of thought and images that remain invisible to established hierarchies of
interpretation.” (REYNOLDS, 2003, p.XV). The second book, written from the point of view of
performance studies and focusing on inter-American cultural relations, is Diana Taylor’s The Archive
and the Repertoire, in which Taylor examines the hegemonic power of text-based archival sources
over performative, oral, and other ephemeral forms of knowledge. (TAYLOR, 2003).
The experimental, concept-based, and often ephemeral aspects of contemporary art, which
have only increased since the 1960s, producing fluid lines between work and documentation,
certainly benefit from the issues raised by all three books, which pose relevant methodological
challenges to more positivist approaches to documentation in art history and criticism. Bruscky’s
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
and Kac’s works, writings, and archives put into play logical topologies that often escape the
chronological and medium-based analytical methods of art history and criticism.
Figures 4 and 5:
8. Bruscky’s first large retrospective exhibition was held at the Observatório Cultural Malakoff, Recife, in 2001. In 2002
Paulo Bruscky’s archives at the 26th São Paulo Bienal, 2004 (photograph by the author).
Bruscky’s videos were screened at the Fundação Joaquim Nabuco, Recife, at the Cinemateca de Curitiba, Curitiba, and at
the Agora art center in Rio de Janeiro, accompanied by roundtable discussions. A comprehensive book about Bruscky’s
multifaceted oeuvre, written by Cristina Freire, curator of the Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, is forthcoming.
9. Bruscky’s work had been showcased in the São Paulo Bienal twice before, in 1981 and in 1989, when he was also invited
58
to exhibited heliografias (works created with the technique commonly employed to print architectural blueprints).
59
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
The Artist as Theorist: Art Writing as Topology
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
but also create dialogue with other artists and radical thinkers, often across time and space, who
like him seek or have sought art’s meaning in nontraditional places and fields of knowledge.
In September 2004, while Laura Marsiaj Contemporary Arts in Rio de Janeiro showcased Kac’s
solo show, his work was simultaneously exhibited at the Gwangju Biennale and the São Paulo
Bienal, as well as in group shows in Chicago, Lima, and other cities. On top of this busy exhibition
schedule, Kac was also finishing the production of two books, each collecting writings from a
different period of his career. The first, Luz & Letra (thus far available in Portuguese only), is an
anthology of his articles and essays written between 1981 and 1988 and published in the most
important newspapers in Rio de Janeiro and São Paulo, along with an appendix of projects and
sketches of the period. (KAC, 2004) Examining the broad field of visual culture in the 1980s, these
articles have had a lasting impact. In their visionary originality, they were early critical probes at
the intersection of art, literature, technology, and popular culture. Written in an elegant, direct,
and informative style, from a perspective both Brazilian and international, Kac’s essays challenged
established artistic values and venues, while opposing the label of the 1980s generation in Brazil
as primarily a “return to painting” movement. In the preface to Luz & Letra, the art critic Paulo
Herkenhoff, a former curator at the Museum of Modern Art in New York, stresses the importance
of Kac as theoretician: “This book is a document of Brazil, which retrieves the decade of the 1980s
– a period thought to have been lived under the tyranny of painting – as a moment of gestation of
new ideas. Eduardo Kac is a precursor among precursors of media art theory […] his action was
always characterized by an intention to alter a system of hierarchies through the rescuing of artists
and experiences.” (HERKENHOFF, 2004, p.18)
Kac’s second book, with selected essays from 1992 to 2002 was published in 2005 by University
of Michigan Press and titled Telepresence and Bio Art: Networking Humans, Rabbits, and Robots. In the
foreword, James Elkins points out:
This is an unusual book, because Kac has participated in the movements he discusses. He is an artist and also,
at times, an historian. The combination is rare. A comparison might be made to Robert Motherwell, except
that as an historian he was more concerned with surrealism than the art of his own generation: he separated
documentation from creation in a way that Kac does not. Eugène Fromentin might be another example, and
among near-contemporaries there are Meyer Schapiro, Leo Steinberg, and David Summers. It’s a short list. The
closest comparisons may be to Moholy-Nagy, or to Paul Signac, who wrote a history of French painting up to
and including his own generation, or, though he’s not much of an historian, Frank Stella. (ELKINS, 2005, p.vi)
Elkins is right in positioning Kac as a historian “at times,” because most of the time, the artist is a
theoretician. In his writings, the historical research is at the service of his theoretical argumentation.10
Kac’s book articulates several new concepts he has introduced, such as telepresence art, telempathy,
and performative ethics. Kac’s work and essays about a new art based on the networking of humans,
plants, animals, and machines not only examine current issues in science, technology, and culture,
10. Among Kac’s contributions as a historian is the Leonardo editorial project titled “A Radical Intervention: Brazilian Electronic Art.” For the most recent article of this ongoing series, Kac invited scholar Ruy Moreira Leite to write a paper about
what Kac saw as the artist Flávio de Carvalho’s pioneering use of the media. In 1956 the São Paulo artist and provocateur
de Carvalho introduced his summer garment New Look in now-legendary Experiences for the press and on the streets of
São Paulo. In 1957 he introduced it on TV. Carvalho’s garment consisted of a short pleated skirt, a blouse with puffy short
sleeves, a hat made of semitransparent fabric, and fishnet tights. See Rui Moreira Leite, “Flávio de Carvalho: Media Artist
Avant la Lettre,” Leonardo 37, no. 2 (April 2004): 150–57, available online at http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/
isast/spec.projects/brazil.html. Further editorial projects by Kac are: Signs of Life: Bio Art and Beyond (Cambridge, MA: MIT
Press, 2006); and Media Poetry: Poetic Innovation and New Technologies (Bristol: Intellect, 2006), first published as a special
60
issue of the journal Visible Language 30, no. 2 (1996).
61
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
photographs the artist exhibited in Rio de Janeiro continued the discussion of bio art in relation
to science, ethics, religion, and family, issues Kac addresses in many forms beyond the gallery, such
as articles and interviews, lectures and debates, and public interventions. Kac’s remixing of the GFP
Bunny icon, which includes the reappropriation of the media response to his work, both verbal and
visual, employs the media as a medium.
A Topological Approach to Art and the Crisis of Criticism
Figures 6, 7, 8, 9, 10 and 11:
Eduardo Kac, Free Alba!, 2001, series of six color photographs mounted on aluminum with Plexiglas, each 36 x 46-1/2 in.
(91.4 x 118.1 cm), edition of 5, shown in the exhibition Rabbit Remix at Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro,
Brazil, 2004 (artwork © Eduardo Kac). Media coverage of Kac’s GFP Bunny included articles in the Washington Post, Folha de
São Paulo, Le Monde, Ann Arbor News, Boston Globe, and Die Woche. Kac incorporated the coverage in Free Alba!
The meaning Kac gives the word aesthetics, for instance, can be understood as both a topos
(a theme) and also as a topology (either physical or logical). In the case of information networks,
processes of communication can differ depending upon whether one is referring to a physical
topology (e.g., the shape of a local area network) or a logical topology (e.g., the protocols that allow
data flow within the networks). Kac’s topological aesthetics emphasizes communication processes
in real-time events and, since his employment of biotechnology as a medium, in the creation and
social integration of new life forms. Didier Ottinger, the chief curator of the Centre Georges
Pompidou, Musée National d’art moderne, Paris, compared the impact of Kac’s redefinition of
aesthetics to that of Marcel Duchamp’s:
Eduardo Kac’s GFP Bunny set off shockwaves in the field of art comparable to those caused by Marcel Duchamp’s urinal. Following the example of its sanitary forerunner, the rabbit’s “prestige” grows in proportion to
its invisibility. The animal, “created” by a French laboratory (the INRA at Jouy-en-Josas), was never exhibited in
the public space for which it was conceived. On the other hand, its photograph did make the front page of
the world’s most important newspapers. Like the urinal, the fluorescent rabbit raises questions that prompt
us to redefine our own ideas and aesthetic criteria. (OTTINGER, 2004, p. 66-68)
There is indeed an uncanny juxtaposition between the publications of Kac’s writings from the
1980s and his 2004 solo exhibition Rabbit Remix.11 The show orchestrated the presence of GFP
Bunny in the global media and a further intervention in the public space of Rio de Janeiro – the
scene where the artist first started reclaiming public space in the early 1980s, while contributing
to the erosion of censorship and the return of a democratic regime. The drawings and large
In the course of the several decades that their trajectories span, Bruscky and Kac have forged
through their practices the very space in which their work takes place. Unlike contemporaries who
have relied on established media (such as painting) and whose work is embraced and circulated
freely in acknowledged institutions (such as museums), Bruscky and Kac have often worked with
new technologies and remote communication, short-circuiting the effects of institutional and
market validation as well as physical distance in the circulation of their works. In their case the
communicative act itself often constitutes the work. Thus, it is clear that the artists have taken
a position that is critical of the institutional and discursive limitations that have not been able to
incorporate and engage with their practices. This critique, which is often implicit in the material
manifestation of their works, at times becomes explicit, as in the case of Bruscky’s exhibition of his
archive and Kac’s books – both of which have I sought to highlight here.
Whether Bruscky and Kac perform criticism as an art practice or art as a critical practice, their
multiple roles as artists, researchers, archivists, and theoreticians offer new topological approaches
to the historicization of art since the 1960s. If there is a common agreement in current discussions
of art criticism, it is the recognition of a general crisis as foregrounded by the 2002 October
group roundtable “The Present Conditions of Art Criticism,” by James Elkins’s 2003 booklet What
Happened to Art Criticism?, by Raphael Rubinstein’s 2003 article “A Quiet Crisis,” and by Nancy
Princenthal’s 2006 article “Art Criticism, Bound to Fail.” (KRAUSS et alii. 2006, p. 43-47). Other
critics have also called attention to the apparent paradox between the vibrant expansion of the
global art market and the simultaneous demise of criticism in recent decades, pointing to the
increased inability of contemporary critics to make value judgments, as art criticism becomes ever
more informative and promotional than critical.12 The relationships among art history, art criticism,
critical theory, and literary criticism are more fluid than ever.
Judgment, in the sense of keeping up standards of “quality,” however important in the past, no
longer seems to be the most important function of the art critic. Whether critics write in a more
subjective and impressionistic literary style or base their work on more rigorous theories such as
semiotics, psychoanalysis, and Marxism, art’s meaning and interpretation are increasingly an ongoing,
largely “collaborative” process negotiated among multiple readers-viewers-participants and
institutions, including those in the cultural industry. The role of the mass media and the art market
in imposing the cultural value of an artist is paramount but seldom if ever analyzed or critiqued.
It is not uncommon for critics to collaborate with avant-garde projects; examples include
Clement Greenberg in relation to Abstract Expressionism, Ferreira Gullar and Mario Pedrosa
within the Neoconcrete movement, Lucy Lippard in relation to Conceptual art and the women’s
12. Barry Gewen, “State of the Art,” New York Times, December 11, 2005. Gewen underlined the bleak state of contemporary art criticism by mentioning critics from Clement Greenberg and Michael Fried to Harold Rosenberg, Hilton Kramer,
and, more recently, Donald Kuspit, who have lamented the gratuitous excesses and lack of restraint in art from the second
half of the twentieth century. Even when enlisting more sympathetic critics of contemporary art, such as James Elkins, Ar-
62
11. In Rabbit Remix Kac exhibited a series of photographs, drawings, a flag, a web piece, and a limited-edition artist’s book
thur Danto, and the October group, Gewen observed they have not offered very positive answers to the question “Is the
entitled It’s not easy being green!
avant-garde running out of steam?”
63
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
art movement, Rosalind Krauss in relation to Minimalism and Postminimalism, Guy Brett in relation
to the kinetic and participatory works of artists such Hélio Oiticica and Lygia Clark, and Frank
Popper in relation to new media art. For Krauss, an important function of criticism is “scanning the
horizon for some new blip appearing on it.”13 Her statement can be understood in relation to the
present and future of art, but also in relation to the past, which is always written from the present,
as previously overlooked contributions are found and old legacies reinterpreted anew.
In these discussions, however, there is rarely a reference to the vibrant expansion and the formal
or intellectual innovations of new media art, perhaps because the new media embrace a temporality
and spatiality produced by the constant acceleration, overload, and complication of our natural and
cultural environments. This development may be perceived to be at odds with the traditional focus
of the humanities – but certainly not with the routine experiences of using cell phones, iPods,
DVDs, ATM machines, e-mail, web searching and online commerce, to name a few common uses
of contemporary technology that may be combined with watching TV and listening to the radio. Is
this growing complexity good? What does “good” mean? Understanding the heterogeneous values
and truths of our denser information environment and making sense of the paradoxical, unforeseen
relations among these elements are in large part what art and critical theory do best, especially
when working together. Elsewhere in contemporary art, less-examined histories also suggest that
art since the 1960s has continuously thrived in direct dialogue with criticism.
As with other artists who archive and write about the movements they participate in, the first
impetus for Bruscky and Kac to document, to identify predecessors, and to cultivate a network
of collaborators might have been prompted by the need to create a critical space for their work
to develop.14 As Bruscky’s studio-archive has exemplified – changing its function from an archive
of artworks to the archive as artwork – art and documentation may easily change places in his
practice according to the institutional context in which they appear. And as we saw with Kac’s
Rabbit Remix, the artist has transformed the media and public reception of his GFP Bunny into the
material for a new series of artworks.
The subtitle of Kac’s 2005 book – Networking Humans, Rabbits, and Robots – highlights a radical
and hybrid connectivity in which, I argue, his books are themselves a constitutive element, as
network hub.15 Kac has often approached art institutions less as containers of culture and more as
interface – as one more node of his networked ecologies. Such was the case of his telepresence
installation Rara Avis (1996), in which the artist brought the internet into his gallery for the first
time, to connect local and remote participants in the experience of a large aviary from the point of
view of a telerobotic macaw.16 Likewise, Kac’s writings connect hybrid aesthetic elements such as
language, light, and life, but can at the same time be seen at the crossroads of multiple institutional
contexts such as the studio, the internet, the museum, the art market, scholarly research, and the
mass media.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
The juxtaposition of the publication of Kac’s Luz & Letra with his exhibition Rabbit Remix reveals
a direct relationship from the beginning of his career among his work, his critical writings, the
gallery space, and the space of the mass media. In September of 2004 these multiples arenas were
occupied simultaneously by the glowing rabbit icon, which also appeared throughout the city of Rio,
continuing its four-year rapid propagation along with a controversy of unforeseen scale and speed.
Bruscky’s archives and Kac’s new books are more than collections of objects or texts to be
consulted at a later time by an isolated researcher. The active and public diffusion of these artists’
archives and books plays a direct role in the kind of art these artists make and the space in
which the works circulate, as the works engage multiple institutional spaces topologically. The
unique relations created between Bruscky’s archives and Kac’s writings and their respective artistic
productions – which for the most part have privileged real-time events, indexical processes, live
interventions, and (in Kac’s case) life creations – are examples of the complex issues involved
in writing the history of contemporary art, in which the boundaries between work, writing,
documentation, and reception are often fluid and include the multiple institutional spaces the
artists help transform.17
13. Krauss, October 100, 216.
14. Other examples in the United States, besides Kac’s Telepresence & Bio Art, include Donald Judd, Complete Writings
Figure 12:
1959–1975 (Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 2005); Andrea Fraser, Museum Highlights: The Writings of
Paulo Bruscky, Mail Art envelope with an X-ray of the artist’s face, 1976, dimensions TKTK (artwork © Paulo Bruscky).
Andrea Fraser (Cambridge, MA: MIT Press, 2005); Martha Rosler, Decoys and Disruptions: Selected Writings, 1975–2001 (Cambridge, MA: MIT Press, 2004); Robert Smithson, The Collected Writings, ed. Jack Flam (Berkeley: University of California Press,
1996); and Joseph Kosuth, Art after Philosophy and After: Collected Writings, 1996–1990 (Cambridge, MA: MIT Press, 1991).
This essay was originally published in Art Journal (Winter 2006): 6-17.
15. Simone Osthoff, “Eduardo Kac: Networks as Medium and Trope,” in Ecosee, ed. Sid Dobrin and Sean Morey (State University of New York Press, forthcoming).
16. Rara Avis premiered as part of the exhibition Out of Bounds: New Work by Eight Southeast Artists, curated by Annette
64
Carlozzi and Julia Fenton at Atlanta’s Nexus Contemporary Art Center, June 28 – August 24, 1996. In 1997, Rara Avis trav-
17. See Cristina Freire, Poéticas do Processo (São Paulo: Iluminuras, 1999), in which the Brazilian curator and art historian
eled to three other venues: the Jack Blanton Museum of Art, Austin, Texas; the Centro Cultural de Belém, Liston, Portugal;
explores the uncertain place, both physically and conceptually, of the 1970s artistic production within the archives of the
and the Casa de Cultura Mario Quintana, Porto Alegre, Brazil, as part of the Bienal de Artes Visuais do Mercosul.
Museu de Arte Contemporânea of São Paulo, Brazil, which contains works by both Bruscky and Kac, among others.
65
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
References
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Cambridge, MA: MIT Press, 2005, 260–80.
BASBAUM, Ricardo. O Artista Como Curador [The Artist as Curator]. in Panaroma da Arte Brasileira 2001. São Paulo:
Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2001, 35–40.
OTTINGER, Didier. Eduardo Kac in Wonderland. in Rabbit remix, exh. cat. Rio de Janeiro: Laura Marsiaj Arte
Contemporânea, 2004.
BEIGUELMAN, Giselle. O xeque-mate cibernético. Folha de São Paulo (Caderno Mais!), September 19, 2004, 14-15.
REYNOLDS, Ann. Robert Smithson: learning from New Jersey and Elsewhere. Cambridge, MA: MIT Press, 2003, xv.
____________________. A Coelha Transgênica. Veja Rio, September 22, 2004, 43.
TAYLOR, Diana. The archive and the repertoire. Durham: Duke University Press, 2003.
BOIS, Yve-Alain. Art since 1900, ed. Hal Foster, Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois, and Benjamin H. D. Buchloh. London: Thames
and Hudson, 2004, 373.
CYPRIANO, Fabio. O Ateliê faz o artista. Folha da São Paulo (Folha Ilustrada), December 22, 2003.
DERRIDA, Jacques. Archive fever: a freudian impression. Chicago: University of Chicago Press, 1996, 3.
ELKINS, James, Foreword. In KAC, Eduardo. Telepresence and bio art: networking humans, rabbits, and robots. Ann Arbor:
University of Michigan Press, 2005, vi.
FREIRE, Cristina. Poéticas do processo. São Paulo: Iluminuras, 1999.
GEWEN, Barry. State of the Art. New York Times, December 11, 2005.
HERKENHOFF, Paulo. Preface to Luz & Letra, 18. Luz & Letra: ensaios de arte, literatura e comunicação [Light & Letter:
Essays in Art, Literature, and Communication]. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.
HIRSZMAN, Maria. Bruscky leva seu ateliê a Bienal. O Estado de São Paulo (Caderno 2/Especial), September 23, 2004.
HUG, Alfons. Mundo conceitual reflete crise da pintura. Folha da São Paulo (Folha Ilustrada), December 22, 2003.
KAC, Eduardo. Luz & Letra: ensaios de arte, literatura e comunicação [Light & Letter: Essays in Art, Literature, and
Communication]. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.
KUNZE, Donald. A Topological Approach to the Uses and Conceptions of Space, in Art, Architecture, and Everyday Life.
Unpublished paper, 2005, available online at http:art3idea.psu.edu/topology/index.html.
LEITE, Rui Moreira. Flávio de Carvalho: Media Artist Avant la Lettre. Leonardo 37, no. 2, April 2004: 150–57. Available online
at http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/isast/spec.projects/brazil.html.
MENEZES, Caroline. Uma nova genética para a arte: Eduardo Kac usa genes para discutir relação entre ser vivo e
tecnologia. Jornal do Brasil (Caderno B), September 30, 2004.
OLEA, Héctor. Versions, Inversions, Subversions: The Artist as Theoretician. in Inverted Utopias: Avant-Garde Art in Latin
America, ed. Mari Carmen Ramiréz and Héctor Olea. Houston: Museum of Fine Arts, 2004, 443–52.
OSTHOFF, Simone. Object Lessons. World Art, Spring 1996, 18–23.
________________. From Mail Art to Telepresence: Communication at a Distance in the Works of Paulo Bruscky and
Eduardo Kac,” in At a Distance: Precursors to Art and Activism on the Internet, ed. Annmarie Chandler and Norie Neumark.
66
67
A Fragilidade como Potência:
Precariedade e Imagem
LUCIANA PAIVA *
Resumo
Certas propostas poéticas parecem potencializar-se a partir de sua própria indeterminação e fragilidade. A redução, o
deslocamento e a metáfora do deserto apresentam-se aqui como noções que nos conduzem a pensar sobre os limites da
própria experiência visual. A instalação All, desenvolvida entre 2008 e 2009, é apresentada como o ponto de partida e de
convergência das questões abordadas.
Palavras-chave: Artes visuais. Instalação. Redução. Fragilidade.
Abstract
Some poetic propositions seem to be enhanced by means of their own fragility and indetermination. Strategies such as reduction,
displacement and the evocation of the desert as a metaphor are presented in this essay as notions that enable us to reflect onto
the boundaries of visual experience itself. The installation All, developed throughout 2008 and 2009, is presented both as a starting
point, as well as a point of convergence to the themes developed.
.Keywords: Visual arts. Installation art. Reduction. Fragility.
Sou partidário do movimento mínimo,
da menor alteração que provoca a maior
revolução na percepção da realidade.
Jorge Macchi
As considerações a seguir integram a pesquisa realizada durante o curso de Mestrado em Arte
e partem de questões que perpassam a produção poética realizada a partir do ano de 2005. Entretanto, a instalação All [Figs. 1 e 2], elaborada durante o curso, apresenta-se como o ponto de
convergência da abordagem realizada na presente pesquisa. A instalação consiste na apropriação
de papéis laminados utilizados para embalar chocolate Alpino e na disposição dos mesmos na
parede, com focos de luz em alguns pontos, sob os papéis. Cada embalagem, cuidadosamente
esticada para que fique no formato quadrado, é disposta com a face dourada virada para a
parede, de modo a produzir um reflexo amarelado nas áreas iluminadas. Além disso, é possível entrever alguns focos de luz por pequenos furos provocados pela manipulação dos papéis,
* Artista Visual e pesquisadora. Possui mestrado em Arte na linha de Poéticas Contemporâneas pela Universidade de
Brasília (2010), sob orientação do Prof. Dr. Geraldo Orthof, e bacharelado em Artes Plásticas (2006) pela mesma instituição. Realiza exposições regulares desde 2004 e tem interesse nos seguintes temas de pesquisa: palavra e imagem, livro de
artista, animação e instalação.
69
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
sendo que a visualização deste detalhe ocorre somente com a aproximação em direção a cada
módulo específico.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
tísticas. Procura-se estabelecer relações com artistas contemporâneos, como Jorge Macchi (1963)
e Francis Alÿs (1959), cujas estratégias utilizadas aproximam-se da realizada em All, bem como realizar pontes através da História da Arte que auxiliem a abordagem das questões levantadas. Para
tanto, optou-se pela escolha de uma temática comum que conecte essas propostas, identificada na
noção de “precariedade” que, ao longo da pesquisa, é desmembrada em quatro possibilidades de
investigação: a vertigem, a noção de redução, a efemeridade e a apropriação de materiais ordinários em propostas artísticas, subvertendo seu uso cotidiano1.
O sentido de precário pode ser compreendido em sua acepção etimológica como “aquele que
pede ou suplica”2. Nesse sentido, a imagem precária que desejamos evocar é um convite, que
convoca nosso olhar e reivindica nossos afetos. Tal imagem não se impõe ao olhar, mas precisa de
disponibilidade e atenção para que esse encontro se realize. O movimento proposto é, portanto, o
de atentar-se para esta experiência afetiva e particular propiciada por uma relação de cumplicidade entre obra e observador, que nos parece essencial nesta investigação.
A arte apresenta-se como um local de refúgio não por gerar um conforto superficial e aparente,
como o evocado, por exemplo, nas imagens publicitárias; mas, justamente, por opor-se a isto, sendo
um campo de incerteza, onde a visão converte-se em imprecisão de limites e contornos, os materiais podem reivindicar sua desintegração e a obra em si adquire uma pluralidade de sentidos possíveis. Em suma, um espaço de constante questionamento onde é possível “(...) esburacar o véu de
cegueira que a racionalização e o tecnicismo contemporâneo nos impõem” (SOUZA, 2007, 35).
As propostas artísticas tornam-se uma passagem, uma abertura para um espaço não acabado,
vertiginoso e incerto; um espaço potencial que nos permite reconsiderar certezas, firmando-se
como um campo onde ainda é possível assumir o risco de sonhar.
Movimento Mínimo: O Deserto é Mais
Ao falar sobre sua produção, o artista argentino Jorge Macchi resume, em parte, a relação que
deseja que o espectador mantenha com seus trabalhos: íntima ou individual, próxima daquela
estabelecida com um livro3. Para o artista, essa e outras estratégias, como lidar com mínimos deslocamentos, pequenos acasos cotidianos e alterações quase imperceptíveis no espaço expositivo
potencializa a percepção em um sentido praticamente oposto ao da espetacularização.
Segundo Barbara Rose, a ideia de “mínimo irredutível” na arte é iniciada pelas questões lançadas
por Kasemir Maliévitch e Marcel Duchamp, que irão influenciar toda uma geração de artistas preocupada com a simplicidade da redução e com uma aproximação ao mundo das coisas:
It`s important to keep in mind that both Duchamp`s and Malevich`s decisions were renunciations – on Duchamp`s
part, of the notion of the uniqueness of the art object and its differentiation from common objects, and on Malevich`s
part, a renunciation of the notion that art must be complex.4 (ROSE, 1965, 277).
1. Iremos privilegiar aqui algumas questões relativas à abordagem sobre a redução e suas implicações no contexto
dessa pesquisa.
2. PRECARIOUS In: Merriam-Webster Online. Disponível em: <http://www.merriam-webster.com/>
Figuras 1 e 2:
3. “Con respecto a la escala de las obras, en general no trabajo con la espectacularidad, tiendo a una arte íntimo, que logre una
All, Luciana Paiva, 2009, detalhes da instalação.
conexión fuerte, casi individual con el espectador. No tengo muy claro el por qué, pero me gustaría que el espectador tuviera con
algunas de mis obras la relación que podría establecer con un libro”.
70
����������������������������������������������������������������������������������������������
A utilização de um material industrial reaproveitado, o deslocamento deste material para o espaço da galeria e sua reconfiguração poética no contexto da instalação suscita o levantamento de
considerações a respeito da valorização de instâncias efêmeras, banais e frágeis em propostas ar-
Entrevista concedida pelo artista à Ana Paula Cohen na ocasião da XXVI Bienal de São Paulo. (MACCHI, 2004). Disponível
em: <http://www.jorgemacchi.com/cast/tex01.htm>
4. “É importante manter em mente que tanto a decisão de Duchamp quanto a de Malevich foram renúncias – por parte
71
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
A influência dessas decisões reverbera na produção de um grupo de artistas da década de 60,
chamado de Minimalista,5 fundamental para chegarmos ao conceito de “mínimo” que queremos
utilizar aqui, principalmente pela busca em estabelecer outra forma de relação entre o espectador e o objeto fundada, essencialmente, na relação entre o corpo e a percepção do espaço
que o circunda.6 Além disso, havia a necessidade, por parte desses artistas, de contrapor-se ao
expressionismo abstrato, propondo uma arte que se apresentasse de maneira impessoal e que,
de certo modo, neutralizasse o “eu” do artista, acentuando, assim, a experiência do espectador.
Deste modo, a repetição, a horizontalidade e a ideia de uma percepção do objeto desvencilhada
da emoção biográfica do autor são algumas estratégias utilizadas por eles e incorporadas por toda
uma geração posterior que vem “(...) declarar a excentricidade da posição que ocupamos relativamente a nossos centros físicos e psicológicos” (KRAUSS, 1998, 334).
O “movimento mínimo” proposto por Macchi segue esta vertente, que aposta em uma força
equivalente e oposta à do expressionismo abstrato ou à ideia de uma arte grandiosa e imponente.
Entretanto, para Macchi, o que está em questão é fundamentalmente uma carga afetiva atribuída
ao material. Não existe neutralidade, mas também não se deseja exaltar o gesto do artista. O
gesto é sintético, reduz-se a uma escolha, e o afeto contido em cada escolha potencializa-se por
implicar em várias renúncias:
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
perceberemos que elas sugerem uma situação constelar própria, inventada a partir da percepção
de um cotidiano banal, mas secretamente fantástico.
Mirar y seleccionar, ese es mi trabajo. En la medida en que el objeto está cambiado de contexto, de función, de escala y hay una oscuridad alrededor, uno centra la atención inmediatamente en él y tiene otra significación. Por supuesto
que no es un método mío: desde Duchamp eso es moneda corriente en el arte contemporáneo. El trabajo de todo
artista es un trabajo de selección: un pintor que está delante de su tela elige constantemente colores. A mí no me
gusta elegir colores, prefiero elegir determinadas formas u objetos que me llamen la atención.7 (MACCHI, 2004).
A instalação All, realizada durante o curso de Mestrado em Arte, parte dessa mesma noção
de seleção proposta por Macchi. Os módulos quadrados que compõem o trabalho são papéis
laminados reutilizados. A busca de variação na repetição, a utilização de um material produzido
de forma industrial e a ocupação do espaço da galeria são algumas das características que podem
ser mencionadas em relação ao legado minimalista. Porém, em All o gesto é potencializado como
escolha afetiva. Por ser uma maneira pouco virtuosa e quase infantil de lidar com o material, o
gesto que nos interessa é trivial, capturado no horizonte efêmero do cotidiano. A precariedade do
papel laminado reaproveitado torna-se necessária para sua potencialização, para a passagem do
ordinário uso de embalagem à invenção deste papel como retalho de um céu, embalagem de luz
que forma suas próprias constelações. Não se trata, portanto, apenas de evidenciar as variações
visuais de cada módulo, os rasgos e amassados de sua superfície frágil. O irresistível das propriedades que o material apresenta é que, se formos capazes de seguir suas marcas, de ler suas “digitais”,
de Duchamp, do caráter único do objeto de arte e sua diferenciação dos objetos comuns, e por parte de Malevich, uma
renúncia da noção de que a arte deve ser complexa.” (tradução livre).
5. “Minimalismo” ou “Arte Literalista” era a nominação dada por teóricos da época à produção de um grupo composto principalmente por Donald Judd, Robert Morris, Dan Flavin e Carl Andre, que, durante a década de 60, realizava trabalhos com
características comuns. Os artistas não se consideravam um grupo, tanto que cada um desenvolveu suas próprias teorias.
6. Rosalind Krauss nos aponta a forte influência das ideias de Merleau-Ponty e de sua Fenomenologia da percepção (1945)
na elaboração deste pensamento. (KRAUSS, 1998, 319)
Figuras 3 e 4:
Horizonte, Jorge Macchi, 2002.
�����������������������������������������������������������������������������������������
A repetição do quadrado como superfície, rearranjado no espaço expositivo, também nos remete à busca de uma simplicidade da forma, sendo que, como nos aponta Robert Morris, “simplicity of shape does not necessarily equate with simplicity of experience.”8 (MORRIS, 2003, 830). Desde
Maliévitch, a forma quadrada surge como símbolo de máxima redução, sendo que, para o pensamento suprematista9 é justamente essa representação não objetiva, quase didaticamente encontrada na forma do quadrado (que se contrapõe às formas orgânicas encontradas na natureza), que
livra a arte de uma representação ilusionista e permite a percepção do que é realmente essencial:
o sentimento. Posteriormente, como o próprio Maliévitch já apontava, a simplicidade do quadrado
salta do plano pictórico e suas possibilidades continuam a ser exploradas de várias formas.
7. “Olhar e selecionar, esse é o meu trabalho. Na medida em que o objeto está fora de contexto, de função, de escala e
72
existe uma obscuridade ao redor, pode-se imediatamente centrar a atenção nele e ter outra significação. Certamente, este
8. “Simplicidade da forma não se iguala necessariamente à simplicidade da experiência.” (tradução livre)
não é um método meu: desde Duchamp isso é moeda corrente na arte contemporânea. O trabalho de todo artista é um
9. “Suprematismo” ou “novo realismo pictórico” são as denominações do movimento criado por Maliévich, Olga Rózanova
trabalho de seleção: um pintor diante de sua tela elege constantemente as cores. Eu não gosto de eleger cores, prefiro
e Ivan Kliun em 1915. As composições suprematistas propõem um distanciamento da pintura figurativa, baseando-se, prin-
eleger determinadas formas ou objetos que me chamem a atenção.” (tradução livre).
cipalmente, na ideia de “economia” e “não objetividade”. (MALIÉVITCH, 2007).
73
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Para esclarecer sua ideia de não objetividade, Maliévitch utiliza a imagem do “(...) ‘deserto’, no
qual nada além do sentimento pode ser reconhecido” (MALIÉVICH 1999, 345). Nesse momento
o deserto representa um esvaziamento necessário para o surgimento de novas possibilidades
pictóricas a serem exploradas. A imagem do deserto (que será posteriormente reutilizada inúmeras vezes por outros artistas como metáfora e como espaço de produção) carrega o conteúdo
almejado, pois parte do princípio de um espaço teoricamente vazio, ou ainda, “cheio de ausências”
(MARQUES, 2001, 22). Uma imagem que, por sua eficácia, pode conter qualquer outra.
Para nós, é importante resgatar o deserto como espaço potencial onde ainda cabe produzir
imagens, sem a interferência dos excessos de um mundo dominado por imagens esvaziadas. O artista Helio Fervenza apresenta as condições deste esvaziamento atual, pensando na desertificação
como nestes “espaços de grande adversidade e aridez” que vinculariam a produção de arte a um
tipo de produção econômica ligada ao capital multinacional (FERVENZA, 2003). Fervenza utiliza a
metáfora do deserto, resgatando o sentido de adversidade mencionado por Hélio Oiticica (19371980) para indicar a condição da vanguarda brasileira, bem como sua proposta de reconfiguração.
Essas imagens acrescentam, portanto, o sentido de resgatar o deserto como imagem utópica,
como uma paisagem “inacabada”10. Porém, não mais como uma metáfora da tabula rasa e sim
como paisagem receptora que se reapresenta a cada nova experiência11.
�����������������������������������������������������������������������������������������
Nesse sentido, aproximamo-nos das considerações de Gaston Bachelard, que apresenta na noção de deserto a medida da expansão de um universo íntimo. Uma “interiorização do deserto”
não corresponderia a um vazio interior ou a uma escassez de recursos, ao contrário, a imensidão
contida nesta imagem remeteria à nossa “consciência imaginante”12. O deserto seria, portanto, um
espaço vazio em potencial para aquele que se arrisca a imaginá-lo.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Mira Schendel utiliza-se muito bem dessa noção de um vazio potencial e de um espaço não
objetivo e não figurativo, noção aberta por Maliévich, tempos atrás. Embora a artista recusasse ser
enquadrada nos grupos de sua época, sua obra parte de uma linha formal construtiva explorada
pelos concretistas brasileiros, mas “(...) em lugar da positividade concreta há um certo ceticismo
difuso, talvez um pessimismo sutil. Seus trabalhos são densos, austeros, preservam o sujeito no limite de sua expressividade mínima” (MARQUES, 2001, 21). Assim, acaba por aproximar-se de uma
organicidade não racional e espiritual, que despontava como oposição ao pensamento concretista,
apontando para afinidades com o Neoconcretismo13.
Figuras 6:
Figuras 7:
Sem título, Mira Schendel, 1964.
1st wire bridge, Richard Tuttle, 1971.
Ao marcar o quadrado na superfície pictórica emplastada de tinta [Fig. 6], a artista resgata, por
meio de uma alteração sutil, um espaço de intimidade dentro do próprio quadro, pois seu traço
trêmulo é fronteira, demarca um limite que não precisa mais remeter-se ao da tela, mas que reverbera na intimidade da própria artista. Em seus trabalhos o “(...) vazio que evoca o absoluto, o
tempo imanente e eterno, contrasta com a efemeridade do gesto inacabado” (MARQUES, 2001,
29). Trata-se, portanto, de acrescentar um ponto de vista mais despretensioso em relação ao gesto
e à intencionalidade do artista.
Neste sentido, a “ponte” de Richard Tuttle [Fig. 7] conecta-se intimamente com isto que “(...) na
aparente fragilidade consegue garantir uma sustentação arquitetônica”, presente na obra de Mira
Schendel (2001, 29). A delicadeza de First Wire Bridge atenta justamente para um espaço intermediário entre objeto e sombra projetada. O vazio delimitado pelo arame já não importa tanto quanto o espaço criado pela ponte invisível que conecta as duas partes do trabalho. Além disso, a disposição quase imperceptível do trabalho no espaço expositivo exige um olhar extremamente atento.
�����������������������������������������������������������������������������������������������
A estratégia de Tuttle acaba por transformar o próprio espaço de exposição neste local esvaziado, onde o espectador é convocado a estar atento à mínima alteração, correndo o risco, caso não
esteja realmente disponível, de perder seus referenciais.14 Isso se dá não apenas pela simplicidade
74
10. “(...) toda obra de arte teve e ainda tem uma janela utópica por onde podemos ver uma paisagem no processo de
13. “A ruptura neoconcreta na arte brasileira data de março de 1959, com a publicação do Manifesto Neoconcreto pelo
constituição.” (SOUZA, 2007, 33)
grupo de mesmo nome, e deve ser compreendida a partir do movimento concreto no país, que remonta ao início da
11. Aqui, também podemos pensar no deserto como em um espaço acolhedor de todas as utopias, heterotópico, portan-
década de 1950 e aos artistas do Grupo Frente, no Rio de Janeiro, e do Grupo Ruptura, em São Paulo”. NEOCONCRE-
to, no sentido definido por Foucault. FOUCAUT, Michael. Of other Spaces (1967), Heterotopias. Disponível:
TISMO In: Enciclopédia Itaú Cultural de artes visuais. Disponível em: <www.itaucultural.org.br/>.
<http://foucault.info/documents/heteroTopia/foucault.heteroTopia.en.html>
14. Na ocasião da 25º Bienal de São Paulo (2003), a artista Ana Miguel também falava do deserto como este espaço extre-
12. “A imensidão do deserto vivido repercute numa intensidade do ser íntimo” (BACHELARD, 2003, 209.)
mamente extenso, onde é necessário o máximo da nossa atenção para que o mínimo detalhe seja percebido.
75
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
da estrutura em questão, mas, principalmente, pela escala reduzida do trabalho, que acaba por
ampliar o espaço ao redor. O observador converte-se, portanto, neste ser atento que observa os
detalhes e que precisa estabelecer uma relação de proximidade com o que observa.
Em All, assim como em outros trabalhos produzidos anteriormente ao curso de Mestrado, essa
proximidade também é convocada. Se, à primeira vista, uma visão distanciada sugere uma composição constelar geometrizada pelo formato quadrado e repetitivo da embalagem e pelo reflexo
produzido em alguns pontos, com a aproximação percebe-se que cada embalagem iluminada
também se revela enquanto um pequeno nicho estrelado. A ideia de repetição, evidente na disposição modular dos papéis, reaparece na imagem de pequenos nichos contidos em outro, maior. De
certo modo, o detalhe acaba por conter o todo, tornando a alternância entre próximo e distante
um jogo circular e reafirmando a necessidade de atenção ao detalhe e ao ínfimo. Pois, “(...) apenas
ao concentrarmos o olhar sobre algo que parece insignificante, é que o seu significado cósmico e
sua capacidade de desestabilizar expectativas ganham vida.”. (PÉREZ-BARREIRO, 2007, 36)
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Esthétique de l’ephémère. Galilée, 2003.
CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo. Mallarmé. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
CAUQUELIN, Anne. Frequentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São Paulo: Martins, 2008.
MALIÉVICH, Kasemir. Suprematismo In. CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; trad. Estela dos Santos Abreu – RJ: Contraponto, 1997.
“Por Que Isto não é Nada?”
FERVENZA, Hélio. O + é deserto. São Paulo: Escrituras Editora, 2003.
O olhar atento é como uma ponte que pode nos conduzir ao segredo escondido nas superfícies
que nos cercam. O deslocamento desses detalhes para o contexto da galeria gera um caminho de
mão dupla, pois acabamos por transportar essa nova relação estabelecida com as coisas de volta
para o cotidiano.
Ao encontrar em seu caminho uma estrutura que parece um aglomerado de materiais, sem
sentido lógico no sistema dos objetos que têm propósitos funcionais, Richard Tuttle pergunta-se:
“por que isto não é nada?” 15. O que existe naquela superfície que captura o olhar? O que falta
para que o olhar lançado sobre isto que nomeamos de nada pela simples falta de habilidade, ou
de necessidade de um nome, possa concretizar-se como um ato artístico?
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LOPES, Denilson. A Delicadeza: estética, experiência e paisagens. Editora da Universidade de Brasília: Finatec, 2007.
MALIÉVITCH, Kazímir. Dos novos sistemas da arte. [trad. Cristina Dunaeva] São Paulo: Hedra, 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
MORRIS. Notes on sculpture 1-3, 1966. In. HARRISON, Charles. WOOD, Paul. Art in theory, 1900-2000: an anthology of
changing ideas. Malden, MA: Blackwell, 2003.
Um grande artista pode fazer arte simplesmente ao lançar um olhar. Uma série de olhares poderia ser tão
sólida quanto qualquer coisa ou lugar, mas a sociedade continua a privar o artista de sua “arte de ver”. (SMI-
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
THSON, 2006, 197.)
SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. In COTRIM, Cecília. FERREIRA, Glória. [orgs.]. Escritos
A arte nos surge, portanto, como a possibilidade de manter os segredos em suspensão, como a
resistência a uma comercialização da intimidade, pois mesmo que toda proposta possa ser institucionalizada e abarcada por sistemas sociais que tentem compreendê-la e atribuir-lhe uma função
(social, cultural, comercial), o que ocorre de fato é que todo trabalho oferece uma resistência.
Existe algo que escapa e que não é facilmente capturável. Algo que conduz toda tentativa de explicação elucidativa a um ponto de vista, pois “todo olhar sobre a obra é um olhar com cicatrizes”
(PANITZ, 2001, 41).
Podemos, portanto, pensar que qualquer proposta artística surge como aparição efêmera do
ponto de vista do observador. Para além da materialidade física proposta, nenhum trabalho existe,
de fato, fora do que articulamos como versão sobre ele. Nenhum trabalho exclui a memória, o
instante em que o vemos e a construção individual que somos. O que fazemos é apenas compartilhar as mesmas superfícies e aferir as marcas que possibilitam redescobrir o cotidiano e dotá-lo
de novas possibilidades.
de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
SOUZA, Edson Luiz André. Uma invenção da utopia. SP: Lumme Editor, 2007.
Dissertações
PANITZ, Marília As escritas da imagem em arte: da obra ao olhar, do olhar à obra. 2001. Dissertação (Mestrado em Arte)
– Instituto de Artes Visuais, UnB.
Artigos
ROSE, Barbara. A B C ART. October, 1965.
SOUZA, Edson Luiz André. Escrita das utopias: litoral, literal, lutoral. Colóquio Internacional de Escrita e Psicanálise – UERJ,
2006.
Catálogos
MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
76
15. Fala do artista, retirada do vídeo Richard Tuttle: Never Not an Artist. 2005.
PÉREZ-BARREIRO, Gabriel. Jorge Macchi: exposição monográfica. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2007.
77
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
DIAS, Geraldo de Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Vídeos
Representação Brasileira - 25ª Bienal de São Paulo: Iconografias Metropolitanas. Dir: Cacá Vicalvi. 2003. 96 min.
Richard Tuttle: Never Not an Artist. Dir: Chris Maybach. Twelve Films, 2005. 32 minutos.
Sites
MACCHI, Jorge. “Mais por menos” (entrevista concedida pelo artista à Ana Paula Cohen na ocasião da XXIV Bienal de São
Paulo. Dez., 2004. Disponível em: <http://www.jorgemacchi.com/>
Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais.
Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/>
78
As Sombras dos Cantos:
Um Estudo dos Espaços Públicos e Privados da Casa
CECILIA MORI CRUZ *
Resumo
O presente texto configura-se como um estudo teórico-poético da casa como espaço que compõe as dimensões do
público e do privado. Para tanto, foram feitos alguns levantamentos a partir de minha produção recente de ateliê que, em
seguida, foram relacionados com estudos teóricos e históricos sobre os espaços da casa, suas funções e seus significados,
cruzando alguns conceitos como sombra (em Tanizaki), sfumato (em da Vinci), limite (em Halbwachs e em Paul-Lévy e
Segaud) e abjeção (em Bataille e em Kristeva).
Palavras-chave: Sombra. Casa. Limite. Público e Privado. Canto.
Abstract
The present article was made on the purpose on initiating a theoretical-poetical study of the house as a space that composes
the public and the private dimensions. Therefore, some surveys from my recent artistic production were made, then followed by
theoretical and historical studies on spaces of the house, its functions and its meanings in order to cross them with concepts such
as shadow (according to Tanizaki), sfumato (‘s da Vinci), limits (according to Halbwachs and Paul-Lévy and Segaud) and abjection
(according to Bataille and Kristeva).
Keywords: Shadow. House. Limit. Public and Private. Corner.
Sem homenagear nenhum deus, uma peça de arquitetura
doméstica, não menos do que uma mesquita ou capela, pode nos
ajudar na celebração do nosso eu genuíno.
Alain de Botton1
As conexões a seguir integram o projeto, na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, do
Doutorado em Arte. Essas reflexões partem das experiências de ateliê do ano de 2009 aliadas a conceitos da história e da teoria da arte, bem como de outras áreas do conhecimento,
gerando um trânsito ininterrupto entre teoria e prática. Maria Beatriz de Medeiros, a partir de
* Doutoranda em Poéticas Contemporâneas do PPG-Arte/UnB, sob orientação do Prof. Dr. Geraldo Orthof. Artista
visual, ganhadora do prêmio Artista Revelação do Salão de Artes Visuais do MAB (2001). Bacharel pelo VIS, UnB (2003).
Bolsista (CNPq) do PIP - Itinerâncias Urbanas (SOL, UnB), orientada por Angélica Madeira (2000-2003). Mestre em Poéticas Contemporâneas (2007) pelo PPG-Arte, UnB, orientada por Geraldo Orthof, com bolsa CAPES.
[email protected]
1. BOTTON, Alain de. A Arquitetura da Felicidade. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 119.
81
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
sua leitura de Heidegger, indica que as investigações artísticas concebem o questionado: “... [a
investigação em arte] não define, não determina, mas concebe. Faz nascer o processo/produto
artístico da própria pesquisa para, assim fazendo, concebê-lo. […] Determinar, do nosso ponto
de vista, só seria possível no instante do sublime, ou melhor, seria impossível, já que esse é indizível” (MEDEIROS, 2004, p. 4).
A instalação Vestígios de Sombras é construída de fios de lã branca com nós aleatórios e de
tamanhos diversos em seu comprimento, fixados às paredes de um canto da casa por agulhas
de máquina de costura industrial. Sendo as paredes da casa de cor branca e estando os fios
presos em paredes que se tocam a 90º, a forma de visibilidade da obra se dá pela projeção de
sua sombra nas paredes.
Essas sombras das linhas e seus nós são imagens distorcidas com relação às linhas materiais,
devido ao ângulo de inclinação dessas linhas nas paredes e ao ângulo formado entre o ponto
de luz e as mesmas linhas, como pode ser visto na figura 1. As imagens das sombras, porém,
mesmo distorcidas, tornam-se as formas mais visíveis da obra e, consequentemente, a demonstração do real, seu vestígio. Esse índice de que há algo ali, um algo não visto, dá-se no espaço
sensível do monocromo, na sobreposição do branco no branco. Os vértices das paredes revelam as linhas, mas a revelação não deixa de velar. Pensar em uma revelação que vela acaba por
nos apresentar uma ambiguidade dialética, tal como é pensar em uma topologia dos espaços ao
mesmo tempo públicos e privados de uma casa.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
desses grupos. As sociedades “estão situadas no espaço, em um espaço que elas particularizam
e que as particulariza” (PAUL-LÉVY e SEGAUD, 1983, p. 28, tradução nossa).
Na visão de Paul-Lévy e Segaud, a delimitação espacial ocorre tanto no âmbito individual
quanto no coletivo. Esta delimitação formaria tanto os espaços de habitação (como as casas)
como os de convivência (como os bairros, as cidades e os territórios nacionais). Assim, as autoras consideram a elaboração do limite físico como um elemento fundamental na constituição e
na representação dos sistemas espaciais das sociedades, uma vez que será apenas com a percepção dos contornos, e das consequentes identidades, que os indivíduos e grupos desejarão
criar laços sociais com outros indivíduos e/ou grupos.
Diante da mesma noção, porém do ponto de vista de outra disciplina, a psicanálise considera
a percepção do limite, da fronteira entre o eu e o Outro, um fundamento na constituição da
personalidade. Para essa corrente do pensamento, o eu vai até o ponto de enfrentamento com
o Outro. No início da constituição do sujeito, fase autoerótica, este não reconhece o Outro e,
por isso, ainda se encontra em fase de formação, sob o olhar da psicanálise. Seria apenas com as
frustrações geradas pelo reconhecimento da alteridade que as esferas psíquicas se constituiriam
(Cf. Freud, 1930 [1961]).
��������������������������������������������������������������������������������������
Maurice Halbwachs também relaciona o espaço de vivência dos seres humanos com sua própria constituição enquanto indivíduo e/ou grupo, declarando que as imagens do mundo exterior
são inseparáveis do sujeito. Para o autor, essa relação não é uma simples harmonia, ou uma
correspondência física entre as aparências dos lugares e das pessoas. Ao contrário, afirma que:
Nosso entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a
maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lembram-nos nossa família e
os amigos que víamos geralmente nesse quadro (HALBWACHS, 2006, p. 137).
Figura 1:
Cecilia Mori, Vestígios de Sombras, projeto Moradas do Íntimo, 2009.
82
A casa, entendida como o espaço delimitado de habitação dos seres humanos, surge junto
com a linguagem, segundo as antropólogas Françoise Paul-Lévy e Marion Segaud (1983). Para
as autoras, não se sabe ao certo se foi com o surgimento da linguagem que os seres humanos
sentiram a necessidade de dividir o mesmo espaço físico, ou se, na própria coabitação, formouse a linguagem.
No texto La Notion de Limite, Paul-Lévy e Segaud relacionam o desenvolvimento do neocórtex, nos ancestrais diretos do homo sapiens, com o aparecimento da dimensão simbólica, em
função de uma delimitação do lugar de convivência de um grupo. Com isso, segundo as autoras,
a relação de interdependência entre o espaço e os grupos sociais forma e constitui a identidade
�����������������������������������������������������������������������������������
O autor complementa, afirmando que “quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas
materiais que a ele resistem” (Ibid, p. 139). Desta forma, entendemos que o lugar marca o grupo
e/ou indivíduo, ao mesmo tempo em que é marcado por ele. Então, as ações do grupo podem
se traduzir em termos espaciais, evidenciando que cada aspecto de um lugar tem um sentido
que é inteligível apenas aos membros do grupo.
�����������������������������������������������������������������������������������������
Os grupos estão ligados a um lugar e é o fato de estarem próximos no espaço que cria, entre seus membros, relações sociais. Para Halbwachs, uma família ou um casal pode ser definido
como um conjunto de pessoas que vivem na mesma casa, sob o mesmo teto. Assim, se os habitantes de uma cidade ou de um país formam uma sociedade, é porque estão reunidos numa
mesma região do espaço. Com isso entendemos o espaço como mais do que uma porção de
terra, como uma condição clara da existência desses grupos.
Esses lugares, uma vez que definem e são definidos pelos indivíduos e pelos grupos sociais,
são tanto os espaços públicos quanto os privados, tanto as cidades quanto as casas. Segundo
Gaston Bachelard, “a casa e o universo não são simplesmente dois espaços justapostos. No
reino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente em devaneios opostos” (BACHELARD,
1989, p. 59). As casas, dessa forma, poderiam ser pensadas como uma célula social, ou seja, uma
pequena representação de um grande grupo social. Nelas teríamos indivíduos que se relacionam. Como resultado desse relacionamento, eles constroem laços afetivos, mas também têm
conflitos éticos, morais e políticos.
A casa, mesmo quando abriga grandes famílias, é a morada do eu. Ao mesmo tempo em que
ela é o espaço da coletividade, é o espaço da individualidade. Ela é público-privada. Mesmo na
casa de pessoas que moram sós, ela não é apenas o espaço da intimidade, este poderia ser o
quarto. A casa tem espaços desenhados para o grupo e para o indivíduo, tem sala de estar e
83
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
banheiro. Mesmo os espaços da casa que foram pensados para a convivência do grupo são,
também, muitas vezes utilizados pelo indivíduo. Com isso a casa, por ter esses dois tipos de espaço, promove a experimentação dos limites entre o espaço público e o privado. É um e outro;
é um ou outro.
Pensar a casa como espaço entre público e privado não se faz apenas na relação que seus
habitantes têm com o espaço, mas também na relação que o indivíduo tem com a cidade ou
com a sociedade. A casa não é tão pessoal quanto o corpo do ser, como também não é tão
exterior ao ser. Paradoxalmente, ela é tão pessoal quanto o ser, como é também exterior ao ser.
A exterioridade e a interioridade da casa podem ser pensadas tanto em relação ao corpo do
ser que a habita quanto em relação ao espaço social em que ela se encontra. Em uma cidade,
a casa é o núcleo do particular e, para o sujeito que vive em grupo, ela é o primeiro ponto de
encontro com os outros.
Assim, se a casa possui espaços que são coletivos ou individuais, e outros que são ao mesmo
tempo coletivos e individuais, a própria casa se configura como uma combinação do coletivo
com o indivíduo. Esta percepção de uma ambiguidade dos espaços constitutivos da casa faz dela
um tema a ser estudado para além de seus aspectos mais subjetivos, como a interpretação e
os sentimentos adquiridos com o tempo de vivência no local. Esta seria uma investigação do
lar. Pesquisar a casa implica na junção do lar a seu espaço físico, do mensurável ao imensurável.
Na Merzbau, de Schwitters, as funções dos espaços e das coisas da casa foram repensadas,
quando não subvertidas. As paredes não eram mais divisórias, tinham buracos e passagens, além
de volumes das colagens, tão valorizadas pelos dadaístas. Muitos quartos e salas da casa, que o
próprio artista habitava com sua família, tinham seu aspecto interior mais parecido com uma
fachada externa de um prédio público (pelos detalhes em seu acabamento) do que com um
ambiente interno, promovendo uma inversão entre o interior e o exterior e, muitas vezes, uma
coexistência entre eles.
Figura 2:
Kurt Schwitters, Merzbau (Hanover), 1933.
84
De acordo com os sete princípios de Leonardo da Vinci, em seu Tratado sobre a Pintura, – Curiosità, Dimostrazione, Sfumato, Arte/Scienza, Corporalità e Connessione – o sfumato consistiria, além da
técnica de esfumaçar as linhas de uma pintura para uma maior ilusão de profundidade, na capacidade de aceitar a ambiguidade e o paradoxo. Esta ambiguidade visa estudar a união entre os dois
opostos, sem que isso resulte em uma anulação de um desses contrários.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Além do concreto e do sensível, do público e do privado, do exterior e do interior, da cidade e
do corpo, do coletivo e do individual, a casa apresenta outras relações paradoxais, que fazem dela
a própria imensidão íntima, de Bachelard (Op. Cit.): o interior que vai para o além (e não que está
no além) do interno e se funde, adquirindo a imensidão, com o externo. A casa, na sua imensidão
íntima, é o próprio limite entre o dentro e o fora. A casa, então, causa abjeção.
Em Powers of Horror (1982), Julia Kristeva desenvolveu a noção de abjeção como uma operação
psíquica pela qual a identidade subjetiva e a de grupo se constituem ao se estabelecerem nos espaços entre o indivíduo e o Outro. A abjeção é o estado de fusão com o Outro, o que se encontra
fora do ser com o ser. O sentimento de abjeção emana do sentido das pessoas de ordem biológica, social ou espiritual. “Podemos chamá-la de fronteira; abjeção é, sobretudo, ambiguidade. Porque,
ao passo que libera a apreensão, não corta radicalmente fora o sujeito/assunto que o ameaça – ao
contrário, a abjeção reconhece-o como em estado de constante perigo” (KRISTEVA, 1982, p. 9,
tradução nossa).
A abjeção, então, é um estado de crise, de autodesgosto e desgosto com relação aos outros.
Não é a repulsa física ou a falta de limpeza que causa a abjeção, mas o que perturba a identidade,
ao mesmo tempo em que a constitui: “é algo que simultaneamente fascina e repele, aflige e alivia.
Não existe fora do ser e, mesmo assim, o ameaça” (Ibid, p. 4, tradução nossa).
O abrangente mundo da abjeção completa o eu com um simultâneo sentimento de horror e
paz. Assim o eu reconhece que nunca poderá conter o abjeto, e que o fato de ele estar dentro do
eu incentiva a busca por ele. É da própria natureza do abjeto apontar a permanente cisão ou crise
que residem na vida do indivíduo: “eu experimento a abjeção somente se o Outro se estabeleceu
e substituiu o que será ‘eu’. Não apenas um outro com quem eu me identifico e que incorporo,
mas um Outro que me precede e me possui, e, por tal possessão, me causa/faz ser” (Ibidem, p. 10,
tradução nossa).
A ligação da abjeção com o estranhamento, cunhado por Freud, foi ressaltada por Kristeva. Para
ela, porém, o que distingue esses dois conceitos é a situação limítrofe presente na abjeção, que é
elaborada pela falha em reconhecer seus familiares. Nada é familiar, nem mesmo a sombra de uma
memória.
A abjeção, assim como o estranhamento, é uma sensação de espanto sofrida pelo sujeito, mas,
no estranho, essa sensação ocorre quando o sujeito se identifica no Outro e, na abjeção, há uma
sensação de desgosto e ameaça pelo que é excluído, por não saber que o que é expelido é parte
constituinte do seu ser. Nas palavras de Julia Kristeva: “uma ameaça que parece emanar de um
exorbitante exterior ou interior, descartado além do espaço do possível, do tolerável, do pensável.
Ele permanece aqui, bem perto, mas não pode ser assimilado.” (Ibid., p. 1, tradução nossa). No caso
do abjeto, sua causa é também sua consequência.
No caso da casa, como dito anteriormente, os espaços e as relações estabelecidas por quem
habita a casa configuram-se como limítrofes. Tanto as relações familiares ou de grupo quanto
os lugares em que se dão essas relações lidam com as dificuldades e conflitos em fixar seus
limites. Especificamente pensando seus espaços físicos, os corredores, as portas, os canos e os
ralos seriam exemplos dos abjetos da casa, pois ao mesmo tempo em que demonstram o limite
entre os espaços circundantes, são o próprio ponto de contato entre eles, são espaços que “não
respeita(m) fronteiras, posições e regras. O entre, o ambíguo, o composto” (KRISTEVA, 1982, p. 4,
tradução nossa).
A dificuldade em lidar com o abjeto – com o entre – se dá, segundo alguns pensadores, como
Georges Bataille (Cf. Bataille, 2006), com o fato de que nossa civilização ocidental, ainda hoje, se vê
calcada em na concepção de um mundo cindido, dualista, formado por infinitas relações ambivalentes como céu e inferno, bem e mal, vida e morte, belo e feio, homem e mulher, sublime e grotesco.
Em suas topologias analíticas, Bachelard percebe o canto como o espaço de recolhimento e de
solidão: “todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gosta-
85
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
mos de nos encolher, de nos recolher em nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja,
o germe de um quarto, o germe de uma casa” (Ibid, p. 145).
Ainda sobre o canto, o filósofo o relaciona com o silêncio. Para ele, “sob muitos aspectos, o
canto ‘vivido’ rejeita a vida, restringe a vida, oculta a vida” (Ibid, p. 145-6). Assim, o ato de recolherse em um canto traria um aspecto de proteção, não apenas por ser o canto um espaço fechado e
que evoca a intimidade, mas também por ser o canto o local mais distante da iluminação central,
como nos lembra Junchiro Tanizaki. Para o pensador japonês, o excesso de luz, tão valorizada por
nós ocidentais, tem como a única função “espantar todo e qualquer resquício de penumbra que
porventura se formasse pelos cantos” (TANIZAKI, 2007, p. 57).
Com isso podemos pensar que, no canto, habita a sombra. No caso do canto da obra abaixo, a
sombra não só está presente como é aprisionada pelas várias linhas, que criam diversas manchas
de linhas, que, por sua vez, as eliminam. Esse labirinto de linhas e sombras evoca a imobilidade
das teias de aranha, mas, paradoxalmente, não a permanência. Para Tanizaki, a beleza inexiste na
própria matéria, ela é apenas um jogo de sombras e de claro-escuro surgido entre matérias. Ela
inexiste sem a sombra.
A série Canto (da qual as obras Vestígios de Sombra e Ponto e Linha sobre Canto fazem parte)
elabora um estudo poético e topológico do canto. Em Ponto e Linha sobre Canto, a precisão das
linhas pretas horizontais é posta em xeque pela deformação dessas mesmas linhas, causada pelas
suas sombras. Triângulos são formados nas sombras completando e, ao mesmo tempo, desestabilizando a plenitude das linhas horizontais. Os pontos, bem marcados na obra (imagem 4, em detalhe ao lado), ainda potencializam a sensação de desequilíbrio da instalação, mesmo esta tendo
sido construída de forma centralizada, a partir do centro do canto da parede. A soma dos pontos/
nós às linhas intensifica essa situação de ambiguidade, que chama a atenção para o momento limítrofe, mas que não limita os contrários sem, com isso, promover a exclusão de um lado pelo outro.
Figura 3:
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Figura 4:
Cecilia Mori, Ponto e Linha sobre Canto (detalhe), da série Canto, 2009.
A criação objetivando a valorização da sensação, a aisthesis (MEDEIROS, 2005), é uma das
bases principais do ato artístico. Assim, é no espaço da arte, e não no da ciência, que é permitido – para não dizer recomendado – pecar, distorcer conceitos, forçar uma coexistência de
ações e sentimentos contrários e contraditórios, enfim, abordar a ambiguidade e o paradoxo,
que são presentes nos seres humanos, no mundo, na vida.
�������������������������������������������������������������������������������������������
A arte, dentre outras características, pode ser pensada o como campo do artifício e das incertezas, por não acreditar que a razão e sua estrutura lógica de pensamento seja a única forma
de experimentação possível da realidade. Então, a arte pode operar de acordo com o princípio
da penumbra, que não é nem claro nem escuro, pois ela é tanto da ordem do irracional (se
pensamos nas dimensões da arte que dizem respeito ao artista e à sua sensibilidade) quanto do
racional (se pensamos nas suas técnicas, teorias, História, linguagens...). A arte pode promover
ela mesma a abjeção.
�����������������������������������������������������������������������������������������
O debate sobre os espaços público e privado atravessam a história da humanidade, pois estão intimamente ligados à formação da espécie humana. A casa, célula social das cidades, representa essas relações que o indivíduo constrói com o coletivo. Assim, para estudar a casa, deve-se
estudar o ser e o mundo.
Ao relacionar os espaços limítrofes da casa com a noção de sombra, com o sfumato de da
Vinci, com as ideias de limite e de abjeção, o que é público torna-se privado, e vice-versa Ao
pensarmos na casa como espaço de abjeção, podemos integrar todos os espaços da casa, os
públicos e os privados, íntimos, possibilitando com isso uma nova forma de convivência entre o
sujeito e o Outro, como também propor uma outra/nova relação entre o indivíduo e seu espaço, tornando-o mais fluido e ilimitado: da linha do desenho à mancha da pintura.
Cecilia Mori, Ponto e Linha sobre Canto, da série Canto, 2009.
86
87
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BATAILLE, Georges. Visions of excess: selected writings, 1927-1939. Translated by Allan Stoekl. Minneapolis: University of
Minnesota Press. 11ª edição, 2006. (Theory and History of Literature). Volume 14
BOIS, Yve-Alain e KRAUSS, Rosalind. Formless: a user’s guide. New York: Zone Books, 1997.
BOTTON, Alain de. A arquitetura da felicidade. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
CLARK, Kenneth. Leonardo da Vinci. Londres: Penguin Books, 1988.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos. Rio
de Janeiro: Imago, 1930[1961].
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva e o espaço. In: A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006;
KRISTEVA, Julia. Powers of horror: an essay on abjection. Nova Iorque: Columbia University Press, 1982.
MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis: estética, educação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005.
________________________. Introdução: arte em pesquisa: especificidades. In:ANPAP, 13º, 2004, Brasília. Anais. Brasília:
Anpap/UnB, 2004.
PAUL-LÉVY, Françoise e SEGAUD, Marion. La Notion de Limite. In: L’Anthropologie de l’Espace. Paris: Centre Georges
Pompidou, CCI, 1983. pp. 27-99;
TANIZAKI, Junichiro. Em louvor da sombra; tradução de Leiko Gotoda. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
88
PROCESSOS COMPOSICIONAIS PARA CENA
De Roda Viva a Os Sertões:
Aspectos de uma Trajetória Teatral
MARIANNA MONTEIRO *
Resumo
Nesse artigo trago algumas reflexões sobre a encenação de Os Sertões pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona, resultantes do
acompanhamento dos ensaios no ano de 2005. A trajetória do grupo Oficina vem configurando, a partir da década de
70 do século XX, uma proposta teatral que tem como característica essencial ampliação e consolidação do coro, que
funciona como detonador da participação e interação com o público, permitindo que o trabalho circule livremente entre
o teatro, o ritual e o drama social.
Palavras-chave: Teatro Oficina. Performance. Drama social. Contracultura.Teatro político.
Abstract
This essay is about the staging of Os Sertões by Teatro Oficina Uzina Uzona, the reflections resulting from my watching the rehearsals in 2005. By contextualizing José Celso Martinez Corrêa’s staging of Os Sertões in the history of the Oficina group, I demonstrate
the construction of a dramatic proposal which has been elaborated since the 1970’s with recurring topics. The necessity of understanding the practice of the Oficina group from these elements is clear; however, the chorus, with its increasing role, stands out as an
essential characteristic of the history of the group. It acts as a detonator of the participation and interaction with the public, allowing
the work to combine play with ritual and social drama.
Keywords: Oficina group. Performance. Social drama. Counterculture. Political theatre.
Nas considerações abaixo, estão em foco alguns aspectos da montagem e adaptação teatral da
obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, pelo grupo Oficina. Apresento algumas reflexões surgidas
ao longo do acompanhamento de ensaios no ano de 2005, durante aproximadamente dois meses,
quando pude observar a natureza dos processos criativos do grupo, que vou analisar levando em
consideração a preponderância paulatina e crescente do coro em suas montagens.
Muito antes de pensar em tornar-me uma pesquisadora de artes cênicas, o Teatro Oficina já
ocupava um lugar central nas minhas considerações e na minha própria formação teatral e política.
Acompanhei os seus trabalhos desde as remontagens de Pequenos Burgueses e Andorra. Conheci
o prédio do teatro antes e depois da reforma de Flávio Império e Rodrigo Lefèvre e foi ali que,
pela primeira vez, dei-me conta da existência de diversos tipos de palco: arena, italiano, “sanduíche”
* Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP, autora de Noverre:
Cartas sobre a Dança ( Edusp, 1998), A Dança na Festa Colonial (Hucitec/Edusp/Imprensa Oficial, 2001) e Dança Afro: uma
Dança Moderna Brasileira (no prelo). Dirigiu os vídeos Lambe Sujo, uma Ópera dos Quilombos e Balé de Pé no Chão, a Dança
Afro de Mercedes Baptista. É pesquisadora de performance, teatro e cultura popular.
[email protected]
93
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
(com plateia dos dois lados do palco), etc., percebendo que a variedade de espaços cênicos, bem
como a opção por um ou outro tipo de dispositivo, consistia em uma das questões centrais da
linguagem teatral moderna.
������������������������������������������������������������������������������������������
Assisti à volta do Oficina para seu espaço, depois do incêndio de 1966, com a montagem antológica de O Rei da Vela e, logo a seguir, as montagens de Roda Viva e Galileu Galilei, que serviram
para colocar-me diante de outras tantas questões relativas à linguagem teatral.
O teatro brasileiro, desde a década de 60, estava profundamente vinculado aos movimentos
sociais. No caso do Oficina e do Arena, o sentido de uma militância social e política sobrepujava
o de mero entretenimento e lazer. O desenvolvimento do teatro brasileiro pós Teatro Brasileiro
de Comédia (TBC) foi progressivamente afirmando uma vocação política da arte a serviço de
transformações sociais. O golpe de 64 mudou totalmente os percursos possíveis desta arte engajada: impedida de associar-se claramente aos movimentos sociais, agora reprimidos e colocados na
clandestinidade, esta arte pública, no entanto, continuava extrapolando o sentido de mero entretenimento. Para a classe média e o público estudantil, frequentar determinados teatros implicava
em identificar-se com questões sociais e nutrir esperança de transformações e rupturas sociais. Ir
ao teatro, no caso do Arena e do Oficina, representava, por si, uma tomada de posição política
contra a ditadura.
No caso do Oficina, podemos dizer que as encenações de O Rei da Vela e, na sequência, de Roda
Viva e Galileu Galilei, configuraram um caminho muito particular em termos artísticos, que inaugurou novos parâmetros de criação teatral. Para atender às novas condições sociais e políticas, o Oficina acabou modificando profundamente a concepção de arte engajada, conferindo ao coro uma
importância emblemática e significativa desta transformação na maior parte de sua dramaturgia.
O primeiro espetáculo que atribui um papel tão fundamental ao coro é Roda Viva, em 1968,
seguido de Galileu Galilei, no mesmo ano. Nos dois casos, o coro era recrutado em meios juvenis,
composto de atores com pouquíssima experiência tanto teatral quanto política. O que era novo
nesta fórmula não era a convivência no interior de um mesmo espetáculo entre atores mais ou
menos experientes e sim o protagonismo do coro, que passou a ter muito mais importância e
prestígio que os antigos atores e os seus respectivos papéis. No novo contexto histórico, era através do coro que a função política e social dos espetáculos mantinha-se de pé.
Com a montagem de O Rei da Vela, o sentido da atividade teatral do Oficina transformara-se
profundamente, e havia espaço para uma nova geração entrar em cena. Sua primeira aparição foi
como coro na peça Roda Viva, um coro agressivo que desafiava a passividade habitual do público
teatral burguês.
Durante a temporada de Roda Viva, a invasão do teatro pelo Comando de Caça aos Comunistas
(CCC)1 explicitou ainda mais o sentido político da performance teatral do grupo. Mobilizaram-se
grupos de estudantes de esquerda para garantir a segurança do público e do elenco, assim como a
continuidade da temporada, que passou a ter um sentido muito evidente de resistência e de oposição à ditadura e às forças de direita. Não se tratava mais de um teatro político, no sentido de uma
abordagem de temas políticos representáveis sobre o palco; o que ocorria neste espetáculo era
uma conjuração de forças, no aqui e agora, que acirrava conflitos entre interesses sociais divergentes.
Depois de Roda Viva, o Oficina já não era o mesmo. Um novo grupo de jovens atores havia
se integrado à companhia, vindo a constituir, na montagem seguinte, o coro de Galileu Galilei. A
partir da cena O Carnaval do Povo, de Galileu Galilei, José Celso Martinez Corrêa reedita o coro de
Roda Viva, que havia se tornado símbolo de resistência, irreverência, além de propulsor de novas
relações entre palco e plateia e transgressor de valores morais e comportamentais. A permanên1. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) foi uma organização direitista anticomunista brasileira, composta por
estudantes e intelectuais, os quais, durante o Regime Militar no Brasil, agiram em favor do mesmo, denunciando e atacando
94
atividades e pessoas contrárias ao governo.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
cia do coro com as mesmas características, tanto em Roda Viva como em Galileu Galilei, mostrava
que sua função dramatúrgica ia muito além do plano ficcional. Não se tratava mais de representar
uma determinada força social, mas sim de constituir-se enquanto tal, de fato. Vem daí a substituição
da palavra teatro pela palavra “te(ato)”, proposta pelo grupo, logo a seguir, quando montaram o
espetáculo intitulado Gracias Señor. “Te(ato)” e coro são realidades que se articulam e aparecem, a
partir de então, como uma tópica recorrente no percurso artístico do Oficina.
O Carnaval do Povo tornou-se uma fórmula dramatúrgico-política muito eficiente, que passou a
ser usada em diversas circunstâncias e contextos. A partir de uma cena da peça de Bertolt Brecht, instaura-se um momento anárquico de quebra das hierarquias aprisionadoras do teatro e da
sociedade. Trata-se da ruptura de normas cotidianas estabelecidas, por meio da mobilização de
pulsões e da eliminação de comportamentos reprimidos.
Acompanhei, como público fiel, essas transformações do grupo naquele pós-64, uma sucessão
de propostas em busca de um teatro capaz de responder aos impasses criados pela derrota dos
projetos da esquerda brasileira com o golpe de 64. Esse processo culminou com a encenação de
Gracias Señor, uma guinada definitiva na forma do Oficina fazer teatro.
Gracias Señor ou Trabalho Novo, como inicialmente foi chamado, estreou em 15 de maio de
1971, em Brasília. Foi primeiramente apresentado como uma grande performance realizada no
campus da Universidade de Brasília, congregando uma multidão de estudantes para uma atuação
em grupo nos espaços externos da Universidade. Numa época em que qualquer manifestação de
rua estava absolutamente proibida, em nome do combate à subversão, por meio dessa espécie
de “happening” (pelo menos esta era a referência que tínhamos quando nos defrontávamos com
esse tipo de intervenção teatral) o Oficina buscava desenvolver o que já não era bem um espetáculo teatral, mas alguma coisa que ocupava o lugar de entrecruzamento entre um drama social,
um rito e o teatro propriamente dito.
Depois de tentativas de trabalho com o Living Theater e com o grupo argentino Os Lobos, o
Oficina, seguindo a tendência internacional, transforma-se numa comunidade de trabalho e de
vida, renegando a forma empresarial de organização da produção teatral e propondo-se a viajar
pelo país e pela América Latina, recolhendo “experiências” em busca de novas formas de atuação
e funcionamento. Nesta viagem de redescoberta do Brasil, o grupo chegou a pensar em encenar
ou filmar a obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, o que revela a constância de certas abordagens
do grupo em meio a tantas transformações. A montagem posterior da obra de Euclides da Cunha
retoma, então, propostas muito mais antigas.
As experiências teatrais realizadas Brasil afora, que atingiram seu clímax em Brasília, estão na
origem da encenação de Gracias Señor em São Paulo, logo a seguir, que representou uma verdadeira “refundação” do grupo de teatro Oficina.
Roda Viva, Galileu Galilei e Gracias Señor marcam, na trajetória do Oficina, o advento do coro
como uma força coletiva, transformadora da própria realidade do trabalho cênico. A relação hierárquica entre coro e protagonistas se inverte, gerando uma grave cisão interna no grupo, de um
lado a nova geração de atores e, de outro, os atores mais antigos e experimentados, que não
aceitam a importância cada vez maior desses “recém-chegados”.
Para o elenco mais antigo, também convulsionado pela experiência antropofágica de O Rei da
Vela e pela radicalidade da proposta de encenação de A Selva na Cidade, não havia caminho de
volta: viam-se comprimidos entre a opção de serem engolidos pela indústria cultural (provavelmente a televisão, em momento de grande expansão no país) e a de enfrentarem um caminho
que, para muitos, parecia absolutamente suicida. O preço a pagar pela inversão da hierarquia entre
coro e protagonistas era altíssimo, pois implicava em aceitar o que parecia ser um retrocesso na
qualidade artística do trabalho.
A montagem de Gracias Señor, além de garantir um papel central para o coro, acabava por
questionar outras tantas separações: atores e público, teatro e ritual, teatro e vida, marginal e herói,
95
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
96
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
etc. O teatro deixava de ser exclusivamente o locus de uma representação, ainda que a metaforização de temas políticos, para tornar-se o palco de uma ação efetiva, cujo caráter, balbuciado em
seus primeiros momentos, o público era chamado a definir em conjunto com os atores. Saía-se
do quadro das luta de classe para o quadro de uma revolução cultural e comportamental, que
pedia uma nova relação com o corpo, com o sexo, entre os gêneros, uma ressignificação de nossa
existência social e individual.
Gracias Señor despertou muita polêmica; antigos aliados do Oficina deixaram de apoiá-lo, considerando que as novas propostas eram alienadas, pequeno-burguesas e politicamente equivocadas.
Lembro-me de tomar o partido do Teatro Oficina nessas polarizações ideológicas. Mais afeita às
experiências de renovação teatral que o grupo propunha com suas montagens do que preocupada com os rumos do pensamento e da cultura de esquerda no país, eu, naquele instante, fazia
parte de uma juventude atraída pela contracultura, parte integrante de uma não muito nobre
“geração da ditadura” e, por conta disso, muito próxima daqueles elementos que compunham o
coro do Oficina. Isto explica o fato de que em 1975, ao iniciar uma carreira de atriz, tenha acabado por integrar o grupo Oficina, que, na ocasião, reagrupava-se em Lisboa, depois de sofrer uma
repressão multifacetada no Brasil2: política, moral e criminal.
�������������������������������������������������������������������������������������
Em Portugal, com o nome de Oficina Samba, apoiado pelo governo português e pelo Movimento das Forças Armadas – MFA, o grupo buscava fazer um teatro político engajado na chamada
Revolução dos Cravos. O Oficina Samba propunha a vida em comunidade, ao mesmo tempo
em que reencenava o Carnaval do Povo nas ruas, praças e fábricas de um Portugal em estado de
ebulição. Esta cena representava a continuidade do caminho iniciado com Roda Viva, o da “desmimetização” da ação teatral, pela atuação do coro, que se convertia em força social e em modelo
utópico de vida comunitária possível.
��������������������������������������������������������������������������������������������
Para integrar-se na Comunidade Oficina Samba, era necessária a imersão em códigos e referências bastante complexos e específicos que, de alguma forma, alimentavam os processos identitários do grupo e das pessoas dentro do grupo. Era preciso compreender o impasse criado com a
mudança política no país através do golpe de 64, assumir a derrota das esquerdas e estar disposto
a defender uma nova possibilidade de criação, atuação e comunicação com o público para “iniciarse” no Oficina. O trabalho adquiria um sentido forte de resistência, a partir de polarizações tanto
estéticas quanto políticas, o que se dava por meio da consolidação e elaboração da experiência
passada do grupo.
O ponto de partida era a morte do teatro convencional, aquele que sacraliza a divisão palcoplateia, teatro e vida, cultivando a passividade do espectador. Desde 1971, o Oficina convertera-se
em laboratório de procedimentos teatrais aliados a estratégias de sobrevivência, e a continuidade
desses laboratórios era a referência comum, unificadora do grupo de “atores-comunicadores”
reunidos em Portugal, já que muitos nem se conheciam, por terem sido integrantes do Oficina em
momentos diversos da trajetória do grupo.
Em Portugal, no entanto, embora o coro já estivesse “no poder”, a transição ainda estava a
caminho e revelava-se difícil. Uma dualidade se mantinha quando o grupo optava por atuar tanto
no teatro convencional quanto em espaços não convencionais: comunidades, teatros de fábrica,
universidades, praças públicas. O grupo trabalhava em Lisboa, com os dois referenciais simultaneamente: no palco, a apresentação da “peça do século” (sic), Galileu Galilei, enquanto a cena do
Carnaval do Povo, protagonizada pelo coro, expandia-se e adquiria independência nas intervenções fora dos teatros. A decisão de remontar Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, repetia uma antiga
estratégia do Oficina: a volta temporária para o teatro de palco e plateia como uma espécie de
recuo estratégico.
Continuava, contudo, a busca por uma nova forma de teatro. De fato, o trabalho do Oficina em
Portugal caracterizava-se por uma certa ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que encenava
Galileu Galilei num dos principais teatros públicos de Lisboa, em meio a veludos e dourados, abria
o espetáculo com uma “gira” de pontos de umbanda: um Ogã de Candomblé tinha a função
de conjurar as forças espirituais do candomblé e da umbanda para favorecer as “incorporações”
dos personagens nos “atores-cavalos”. Um “texto” paralelo corria ao lado do texto de Brecht. O
percurso do grupo se fazia na intersecção entre uma tradição teatral consolidada e o trabalho
coletivo e inovador já iniciado no Brasil.
2. Em 1974, o teatro Oficina foi tomado pela polícia e vários membros do grupo foram presos, acusados de tráfico e
Figura 2:
consumo de drogas.
Carnaval do Povo, nas ruas de Lisboa,1975.
Figura 1:
Carnaval do Povo, no Teatro São Luis- Lisboa, 1975.
97
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
98
Já de volta ao Brasil, na condição de público e fora do grupo, continuei acompanhando a luta do
Oficina até que o grupo encontrasse a forma de intervenção teatral que, nos anos oitenta/noventa, permitiu-lhe renascer, dando os primeiros sinais de novamente ocupar um espaço importante
na cena político-cultural e, o que é mais importante, mostrar-se capaz de constituir um público
próprio e de estabelecer um verdadeiro diálogo com amplas esferas da sociedade.
Sabendo estar fora do âmbito desse texto traçar os detalhes dessa trajetória, passo a descrever
o trabalho do grupo já em 2005, quando volto a acompanhar os ensaios da adaptação de Os Sertões, na qualidade de observadora, intrigada e querendo compreender o sentido dessa nova fase.
Meu interesse é estimulado pela suposição de que a trajetória do Oficina é capaz de revelar conexões fundamentais entre os dramas sociais e as performances estéticas, o que me leva a analisar
sua trajetória fora dos parâmetros da crítica teatral, ou mesmo da história do teatro, e a tentar
compreender sua experiência teatral enquanto performance, entendida aqui como lugar onde o
ritual, o teatro e o drama social convergem, conversam e interagem.
��������������������������������������������������������������������������������������������
Com esse breve e parcial histórico do grupo, tive apenas a intenção de evidenciar uma mudança irreversível de eixo no trabalho do Oficina, constituída pela emergência e centralidade do coro,
processo que até hoje marca o trabalho do grupo. Reconhecida a sua importância no percurso
do Teatro Oficina, interessei-me por compreender como o grupo iria operar no caso específico
da encenação do texto de Euclides da Cunha.
��������������������������������������������������������������������������������������
O trabalho de campo consistiu basicamente no acompanhamento dos ensaios. Mal conhecendo os atuais integrantes do grupo, pude assumir um papel de observadora, todavia sem conseguir
deixar de ser afetada por um turbilhão de memórias, significados e lembranças corporais. Comecei a fazer um caderno de anotações, onde registrava as derivações ou concentrações de sentido
que a própria encenação ia me propondo no confronto com as memórias pessoais.
�������������������������������������������������������������������������������������������
Apesar da heterogeneidade dos materiais observados – soluções cênicas, metodologias de trabalho de voz e de corpo, interpretação do texto, adaptação da obra literária, relação entre as pessoas, os conflitos entre elas, as identidades, as tensões, o processo de escolha de elenco, a atuação
junto à mídia, ao governo e à sociedade civil, a composição do público, suas formas de participação etc. –, percebia que a encenação de Os Sertões mobilizava antigas fidelidades, “reatualizava”
identidades e sentidos, como se o Oficina construísse um sistema de códigos passíveis de combinações diversas, combinando e recombinando elementos já trabalhados em outras encenações.
Seria, então, possível perceber focos originários e multiplicadores dessas miríades de significados?
Haveria um legado das experiências passadas do grupo, passível de ser circunscrito e identificado?
Contrariando certas interpretações da história do grupo, acredito que o Teatro Oficina, longe de
acabar em 1974, prosseguiu em suas experiências até transformar-se no Oficina Uzyna Uzona
dos dias de hoje. Dessa trajetória ininterrupta origina-se uma forma nova de conceber a atuação
teatral, tanto no que diz respeito aos meios quanto aos fins. Podemos identificar na proeminência
progressiva do coro a recusa em separar a eficácia do entretenimento; a relativização da representação em nome do “te-ato”, da celebração e do ritual; a abertura à praça pública, à efetividade
das ruas.
����������������������������������������������������������������������������������������������
Os significados das encenações, das intervenções no espaço, das ações ritualizadas seriam múltiplos e móveis, adaptar-se-iam aos diversos contextos e propostas do grupo, mas teriam como
eixo um tipo de relação definido entre a cena e o drama social e, o que me parece de grande
interesse, esta parece ter sido uma condição meticulosamente construída e aperfeiçoada em cada
fase do Oficina, um trabalho lento de elaboração de uma atuação cênica que estivesse no limiar
entre o teatro, o ritual e o drama social.
Absolutamente singular e específico daquele momento era a opção pela adaptação da obra
de Euclides da Cunha. A princípio, fiquei totalmente absorvida pela observação da “leitura” que o
grupo fazia do texto de Euclides da Cunha. Não se tratava do tradicional “trabalho de mesa”, da
tradicional leitura conjunta do texto pelos atores. Cada ator possuía um exemplar da adaptação,
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
um xerox encadernado, que pendia com barbante dos ombros de todos eles. O texto era objeto
de cena, passível de contrarregragem, um adereço fundamental com o qual o ator performava a
sua “leitura”.
O que não posso deixar de observar é que, embora o procedimento se apresentasse como
inicial e provisório, já que os atores nem tinham ainda decorado o texto, ele se movia num terreno previamente preparado. Os atores podiam manipular o texto em cena porque a cena já
nascia dupla: era a expressão de significados construídos a partir do texto de Euclides da Cunha,
mas, simultaneamente, a expressão pública das próprias atuações: “leituras” de Os Sertões por
adolescentes e crianças do Projeto Bixigão3, atores negros “lendo” a obra de Euclides da Cunha, o
próprio Zé Celso (um diretor-ator e sua dança-combate) na cidade, “lendo” episódios marcantes
para a constituição de identidades brasileiras, era isso que o “coro-grupo” falava nas margens do
texto de Euclides.
Não era casual a importância do texto nos ensaios, pois era sua construção que possibilitava
o trânsito horizontal do coro às personagens e vice-versa, sem que uma hierarquia viesse a se
estabelecer entre os dois polos. O texto euclidiano ora aparecia na boca de algum personagem,
ora de outro, ora aparecia na voz dos diversos coros: coro dos jagunços, coro de soldados, “coroplantas”, “coro-topografias”, “coro-entidades abstratas” (república, teatro), “coro-seres mitológicos”
(Penteu, Mandrágoras). A redistribuição do texto entre os mais diversos sujeitos, nem sempre
humanos, nem sempre minerais, nem sempre definidos sexualmente, permitia que o jogo cênico
se estabelecesse a partir de um único ponto fixo, o aqui e agora da performance, o preciso lugar
onde se encontravam teatro e ritual.
Na montagem de Os Sertões, o texto de Euclides é vocalizado quase integralmente através de
deslocamentos importantes na passagem para a situação performática. A configuração de um
protagonista possibilita que público e atores reencarnem entidades introjetadas e passíveis de
serem restauradas reflexivamente, retomando a postura crítica, debochada e livre inaugurada com
O Rei da Vela. Os personagens de Os Sertões, Floriano Peixoto, Moreira Cezar, Tamarindo, Pageú,
equivalem a Heloisa de Lesbos, Abelardo I e II, em O Rei da Vela, personagens sem nenhum valor
transcendente, mas portadores de uma carga reflexiva intensa.
O texto de Os Sertões presta-se, no Oficina, a vocalizações rimadas que dão origem a composições musicais de um caráter muito específico, poemas musicados, decerto inspirados em Oswald
de Andrade que, no livro Poesias Reunidas, parodiando as “Indústrias Reunidas Matarazzo”, diz
que suas poesias eram mais poderosas do que as megaindústrias de São Paulo. O Oficina acredita
inteiramente que, com a poesia, é possível derrubar paredes , construir teatros e encaminhar-se
para o poder maior, “o poder de Presença Humana diante da Presença do Poder Maquínico, o
poder das máquinas de desejo como as do Teatro Oficina diante das máquinas castradoras e de
especulação do capitalismo” (Corrêa, José Celso, 2006)
Como bem apontou José da Costa,
(...) ao vocalizar o texto de Euclides e incorporá-lo teatralmente, o elenco do Teatro Oficina não tem pruridos de fender aquele texto, de mostrar, ao lado da obra original, a si próprio (suas visões e posicionamentos)
como um outro texto paralelo e interagente, contrapontual em relação ao texto lido (2006, p. 5).
Essa leitura de Os Sertões abre novas possibilidades semânticas às margens do texto euclidiano,
construindo uma dramaticidade capaz de purgar a derrota de Canudos e todos os outros massacres, atuais ou passados, através da instauração de um pulmão criativo e livre no meio do bairro
do Bexiga. A meu ver, constitui-se, neste momento, o elo que faltava: o deslocamento fatal do lugar
3. Projeto de atuação social que consiste em oficinas gratuitas para crianças e adolescentes do bairro do Bexiga, ministradas por componentes do Oficina. Os participantes dessas oficinas participam do elenco da peça..
99
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
do teatro para a praça pública, para a Ágora, com a proposta de construção de um “teatro de
estádio”, bandeira levantada por Oswald de Andrade que, latente por muitos anos, converte-se,
agora, em proposta central do Oficina.
�������������������������������������������������������������������������������������������
O choque com interesses contrários é imediato, justamente os interesses da indústria do entretenimento, representados pelo Grupo Silvio Santos, que planeja fazer um shopping center na
mesma área que o Oficina pretende erigir o seu teatro de Estádio. A partir de então um novo
texto performático se impõe, no qual os “personagens” são advogados, arquitetos, moradores
de rua, membros da escola de samba Vai-Vai, da comunidade judaica, da prefeitura, urbanistas, o
ministro da cultura, os órgãos de proteção ao patrimônio. O “desmassacre” deve ser tão amplo
quanto o massacre.
A dissolução dos protagonistas clássicos permite um mergulho no aqui e agora da performance a partir de um corpo previamente desconstruído pelo ritual báquico. De posse de um novo
esqueleto, o “trans-homem”, atualiza o poder de intervenção do teatro no drama social. A luta
pelo espaço do teatro, uma constante na trajetória do Oficina, toma a forma da proposta atual de
construção de um teatro para as multidões.
O processo de montagem de Os Sertões durou anos, alternando ensaios fechados e ensaiosmanifestações, abertos. Alguns destes ensaios abertos constroem grandes cenas, que só se realizam com o público. O que define a abertura do ensaio é a natureza do ritual a ser realizado,
e o ritual é sempre conjuração de forças em torno de um projeto coletivo de transformação. A
atuação política e a atuação cênica unem-se em um ritual desmascarador e “desmassacrador”.
Mais uma vez, a tradição do Oficina é posta em ação e confunde-se com o movimento do mundo.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
Referências
ARTAUD, Antonin. Le théatre et son double. Paris: Gallimard, 1964.
COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1996.
COSTA, José da. Zé Celso e Euclides da Cunha: Os Sertões do Teatro Oficina.
Disponível em: http://www2.uol.com.br/teatroficina/roteiros. Acessado em: 2006.
Depoimento de José Celso, Renato Borghi e Henrique. “Sobre Gracias Señor”. Bondinho. Jornalivro n. 4 s/d.
Entrevista com Zé Celso. Disponível em
http://www2.uol.com.br/teatroficina/novosite/arquivo/rei%20da%20vela/reidavela.htm. Acessado em: 2006
MOSTÁCIO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982,
PEIXOTO, Fernando. “A Fascinante e Imprevisível Trajetória do Oficina ( 1958-1980)”. Revista Dionysos, Ministério da Educação e Cultura- MEC / Serviço Nacional de Teatro-SNT, nº. 26. Edição especial: Teatro Oficina.
PEIXOTO, Fernando. Teatro Oficina (1958-1982). Trajetória de uma rebeldia cultural. São Paulo: Brasiliense, 1982.
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1985.
SCHECHNER, Richard. Performance theory. New York, London: Routledge, 1988.
SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
SILVA, Armando Sérgio da. Oficina do teatro ao te-ato. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.
STAAL, Ana Helena Camargo de. (org). Primeiro Ato: cadernos, depoimentos e entrevistas (1958-1974) de José Celso
Martinez Corrêa. São Paulo: Editora 34, 1998.
TURNER, Victor. From ritual to theatre. The human seriousness of play. Nova Iorque: PAJ Publications, 1982.
TURNER, Victor. The anthropology of performance. Nova Iorque: PAJ Publications, 1987.
De Roda Viva a Os Sertões: Aspectos de uma Trajetória Teatral
100
101
A Imagem na Improvisação:
A Dança do Imprevisto
CARLA SABRINA CUNHA *
Resumo
O artigo propõe uma reflexão sobre a improvisação na dança a partir do Butoh e sua relação com a imagem sômatosensitiva do organismo do ator/dançarino segundo a neurologia, delineando aspectos do teatro contemporâneo. O texto
apresenta, ainda, o relato de parte do processo criativo utilizado na pesquisa de doutorado “Corpo/Imagem na Improvisação”, em andamento na linha de pesquisa Processos Composicionais para a Cena, do PPG – Arte da UnB.
Palavras-chave: Dança. Improvisação. Butoh. Imagem.
Abstract
The article proposes a reflection on improvisation in dance from Butoh and its relationship with the somatosensory image of the
body of the performer according to neurology, outlining aspects of contemporary theater. The text also presents the report of part
of the creative process used for the ongoing doctoral research Body/Image in Improvisation, in the line of research of Compositional
Processes for the Stage at PPG – Arte/UnB.
Keywords: Dance. Improvisation. Butoh. Image
… e era meu avô já surdo querendo ouvir os pássaros pintados no
céu da igreja.
(Carlos Drumond de Andrade)
1 – As inquietações
A sala vazia e a sensação de fluidez e confiança na condução da aula para os movimentos que
estão por existir no espaço. Uma aula aparentemente não preparada.
���������������������������������������������������������������������������������������
Como preparar uma aula de improvisação? A partir do uso de imagens; um corpo que traduza imagens. Como propor este tema dignificando o processo criativo implícito na improvisação,
tornando-a a própria dança? Quais são os segredos da improvisação? Qual é, finalmente, a técnica
* A autora graduou-se em Interpretação Teatral pela Escola de Comunicações e Artes da USP, onde também obteve seu
título de Mestre em Artes Cênicas. Na Itália, trabalhou junto a cooperativas sociais e à Danceability. Estudou Butoh com
grandes mestres, entre eles Yoshito Ohno, e participou da Cia Jinen Group de Butoh de Atsushi Takenouchi. Atualmente é
doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, sob a orientação da Profª Drª Soraia
Silva, e professora do curso de Licenciatura em Dança no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília
(IFB). Seu trabalho recente (2010) pode ser visto e comentado no site: www.perpetuailusao.com.br.
[email protected].
103
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
escondida da dança do imprevisto? Talvez a vida nos dê respostas.
O quanto é possível viver o cotidiano de forma programada? Será possível? Será que a maioria
das pessoas acredita ser possível tal programação?
������������������������������������������������������������������������������������������
Se os dois elementos mais importantes da vida, nascimento e morte, não podem ser totalmente programados, o que dirá o decorrer do tempo existente entre eles.
A dança não existe dissociada da vida. Os corpos são os mesmos, aquele que vive, aquele que
se expressa através de movimentos. Só dança realmente quem isso compreende. Não se trata de
produzir passos, mas de abrir espaço para novos passos a cada dia, a cada dança.
Seria o significado da dança inerente ao significado de improvisação? Supomos que a dança
contemporânea seja assim representada: dança > improvisação. A dança contém a improvisação,
mesmo se não claramente expressa. O primeiro movimento é sempre inédito, ainda que mais
tarde venha a ser coreografado, mas o seu nascimento teve origem no cérebro do dançarino e,
nesse exato momento, era já improviso, era já vida, era já imagem.
2 – A Imagem na Neurologia e no Butoh
Segundo o neurologista António Damásio (2000), temos a seguinte definição de imagem:
(…) imagens como padrões mentais com uma estrutura construída com os sinais provenientes de cada uma
das modalidades sensoriais – visual, auditiva, olfativa, gustatória e sômato-sensitiva. A modalidade sômatosensitiva (a palavra provém do grego e significa “corpo”) inclui várias formas de percepção: tato, temperatura,
dor, e muscular, visceral e vestibular (sic). A palava imagem não se refere apenas a imagem visual, e também
não há nada de estático nas imagens (…) As imagens de todas as modalidades “retratam” processos e entidades de todos os tipos, concretos e abstratos. As imagens também “retratam” as propriedades físicas das
entidades, bem como as ações destas. (p. 402)
Partindo das proposições acima e de minha experiência em dança Butoh, dei início à pesquisa
da imagem na improvisação e comecei o Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação no antigo
Núcleo de Dança da UnB, atual centro de vivência.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Os encontros aconteceram uma vez por semana, com duas horas de duração, os participantes
foram tanto alunos da UnB como pessoas da comunidade. Interessa notar que o grupo era multidisciplinar, pois agregava alunos de artes plásticas, estudantes de psicologia, atores e dançarinos:
um campo formado de corpos e linguagens artísticas variadas, possibilitando maior riqueza de
informações para o estudo da improvisação, partindo da dança Butoh.
O Butoh, que se consagrou na década de 60 com Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, propõe uma
dança cujo movimento parta de impulsos internos do dançarino/ator, um reconhecimento do
corpo japonês em meio a uma sociedade marcada por guerras e por mudanças de costumes
influenciadas pelo ocidente. A negação de Hijikata da dança clássica ocidental e da dança tradicional japonesa, que se traduzia em uma repetição de símbolos através das gerações, resultou
no Butoh, em que “(...) forma indica uma qualidade e uma quantidade de energia provenientes
de modelos naturais, que provocam no corpo uma transformação sensorial percebida externamente como uma imagem capaz de invocar no ator e no público um correspondente conteúdo
emotivo” (D’ORAZI, 2001, p.119, tradução nossa).
Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno trabalhavam com o uso da imagem na dança. Segundo D’Orazi,
o primeiro enfatizou “que o trabalho corporal torna possível a materialização da imagem”, enquanto o segundo “privilegiou o conteúdo emotivo”. “Para Hijikata é o trabalho físico o produtor da imagem; Ohno acreditava que a mudança mental produzia também a mudança física”
(D’ORAZI, 2001, p. 119, tradução nossa).
Assim, deu-se o nascimento de uma nova linguagem, também chamada de body revolution (revolução do corpo), em que o movimento é proveniente de impulsos interiores, como se cada
parte do corpo constituísse um universo à parte do organismo, adquirindo vida própria através
das imagens que permeiam o corpo, como pregam alguns dançarinos de Butoh, um deles Atsushi
Takenouchi1, para quem dançar a morte é uma forma de oração, sobretudo dançar em espaços
marcados por acontecimentos trágicos, na busca de redenção e purificação do local2.
Na aula de Butoh conduzida por Takenouchi a presença da imagem é uma constante para
o estímulo da dança no corpo do intérprete. Aqui, esbarramos no conceito fundamental de ser
dançado, que significa ser dançado por um elemento estranho ao corpo, neste caso as imagens
sugeridas através da fala de Takenouchi durante toda a improvisação.
O deixar-se conduzir por tais imagens, que num primeiro momento são imagens vindas do
exterior do corpo dançante – a voz do proponente –, requer do dançarino o que Soraia Maria
Silva (2007) chamou de dansintersemiotização, que seria a tradução corporal feita pelo artista da
dança ao entrar em contato com outras artes como literatura, música, imagem, escultura. Silva
(2007) indica o início deste processo no ocidente:
(...)com o aparecimento da dança/teatro na Alemanha, surgida a patir dos estudos de Laban (início do século XX) e de outras grandes personalidades da dança e do teatro, como Isadora Duncan, Stanislávsky, Mary
Wigmam, Kurt Jooss, Nijinsky, Oscar Sclemer e outros. Na nova estética, a organização cênica espaço – temporal por meio do movimento passou a priorizar a teatralidade corporal. Essa teatralidade corporal procura
evidenciar o gesto expressivo que busca, na figura metafórica cênica criada, uma resposta corporal (mais
concreta ou abstrata, ligada à sensação, ao sentimento ou à emoção) provocada pela interação imagética
com outras linguagens. (p. 93)
A dansintersemiotização e o ser dançado representam elementos fundamentais que caracterizam a improvisação no âmbito da presente pesquisa.
104
Figura 1:
1. Atsushi Takenouchi, dançarino e professor de Butoh, realiza seminários pelo mundo e foi discípulo de Kasuo Ohno. Tive
Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009. Dançam: Eva Maria Maria e
meu primeiro contato com aulas de Butoh com A. Takenouchi, o que me permitiu reunir um vasto material sob a forma de
Marcos Menezes.
anotações durante os anos em que morei na Europa, experiência que estou usando na presente pesquisa.
2. Por exemplo, quando Takenouchi dança em espaços que, na época do nazismo, serviram de campo de concentração na
Polônia, ou no ex- presídio medieval de Vicopisano, performance da qual fiz parte, na província de Pisa, Itália.
105
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
3 – Improvisação e Imagem
A escolha do Butoh para pesquisar a imagem na improvisação foi de fundamental importância
por tratar-se de uma dança de improvisação por excelência, em que o uso da imagem enquanto
propulsora do movimento e criadora da atmosfera respeita a individualidade de cada corpo em
seu modo de expressão.
Encontramos em Giorgio Salerno (1998) o depoimento da dançarina Yomiko Yoshioka sobre
o seu percurso de aprendizagem no Butoh. Em suas palavras, o movimento não pode ser apenas determinado pela vontade e pela consciência; são múltiplos os elementos que influenciam
o agir, por isso “mais do que dançar, se é dançado; mais do que mostrar algo, transforma-se
nesse algo”(p.165, tradução nossa). Não se trata de anular a razão, mas de afirmar “(...) a própria identidade e, ao mesmo tempo, ser capaz de negá-la” (Kazuo Ohno, apud SALERNO, 1998,
p.166, tradução nossa).
O conceito de ser dançado3 nos remete à ideia de um corpo-recipiente, de um objeto que
contém, que abriga vários outros objetos ou possibilidades, de um corpo que, além de abrigar,
possui a capacidade de transformar-se no ente abrigado.
������������������������������������������������������������������������������������������
Assim, partimos para a execução de exercícios específicos visando à reflexão constante sobre o comportamento do ator/dançarino. Cada movimento é integrado ao fluxo de pensamento e às construções imagéticas que se dão durante todo o tempo: uma demanda física de
concentração absoluta.
4 – Processo
Na improvisação através da imagem temos:
4.1 – A imagem proposta
�����������������������������������������������������������������������������������������
Chamamos a imagem proposta, seja através da fala ou da fotografia, de imagem contemplativa, aquela que exerce uma sensação, emoção ou sentimento como primeiro impacto no corpo
do ator/dançarino.
4.2 – A apropriação da imagem pelo corpo
Chamamos a apropriação da imagem que se dá pelo reconhecimento e localização desta no
corpo, envolvendo pele, ossos, nervos e musculatura, de imagem afetiva.
4.3 – A tradução da imagem no espaço (dansintersemiotização) e o ser dançado
Chamamos a tradução da imagem no espaço e a capacidade de ser dançado de imagem invisível. Esta compreende e, ao mesmo tempo, transcende a expressão do corpo e seus desenhos
no espaço, atingindo um estado poético. Aqui, o improvisador está em cena. O que se vê resulta
da imagem que dança o ator/dançarino, unido à percepção do público.
A imagem invisível é silenciosa e muitas vezes de difícil explicação por meio de palavras, está
na atmosfera criada e faz a conexão entre o ator/ dançarino e o público. Por não se tratar de
uma linguagem escrita ou de uma narrativa corporal que dê indicações para que o público possa entender uma mensagem específica, situamos o trabalho realizado no referido laboratório
como pertencente às formulações do teatro pós-dramático, que, segundo Lehmann (2007),
considera que a recepção “manifesta a exigência de substituir à percepção uniformizante e excludente uma percepção aberta e fragmentada” (p.138). O público compreende, sim, mas talvez
não como está acostumado, a partir de uma narrativa linear: a hierarquia dos recursos teatrais
sofre alterações, o texto não ocupa lugar central, os elementos cênicos utilizados se alternam
em sua sobrevalência. (LEHMANN, 2007)
106
3. Esta conclusão surge a partir do trabalho prático que venho desenvolvendo junto aos participantes no Laboratório
Corpo/Imagem na Improvisação.
Figura 2
Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009. Dança: Sabrina Cunha
A imagem invisível que estamos experimentando como elemento resultante da improvisação
nas aulas do laboratório identifica-se com o tipo de recepção proposta por Lehmann (2007,
p.140), chamada de imagem de sonho, e indica não uma reação coletiva comum, mas uma liberdade e uma reação arbitrária, uma comunidade do diferente. Ainda que o público esteja diante
de uma mesma improvisação, as perspectivas de cada um não estão fundidas em um todo
comum, e a compreensão disso transforma a necessidade de entender o que se vê em necessidade de compartilhar diferentes percepções do que foi visto.
Jerzy Grotowiski (2001), na fase de sua pesquisa do teatro como veículo, aprofunda-se na
questão da importância da recepção quando o espectador torna-se testemunha; a partir de
então, o trabalho deixa de ter um caráter espetacular para ocupar um território mais íntimo e
humano, em que previlegia-se a troca, o compartilhar um momento, o encontro entre ator e
testemunhas. Neste ponto encontramos uma semelhança com o Butoh, que também toca um
território íntimo de quem o pratica e, por consequência, de quem o assiste, expondo em cena
uma humanidade muitas vezes bizarra e de grande força expressiva, criando uma atmosfera
comum habitada por várias possibilidades imagéticas.
107
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
5 – Por Enquanto...
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Referências
CAUQUELIN, Anne. Frequentar os incorporais. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
O improvisador concentra em si, em seu corpo, as possibilidades de construção da sua dança,
o lugar primeiro de sua criação é seu corpo: “uma obra in situ produz o lugar que ela mesma
ocupa e se confunde com ele” (CAUQUELIN, 2008, p.74).
Improvisar, tocar o sutil, dançar improvisando uma sensibilidade que transcende os olhares
cotidianos que habitam a nossa vida, significa encontrar um lugar adequado dentro do corpo.
Este lugar é indeterminado e móvel, respeita uma lei instável que abriga os estados mentais, sensoriais e de humor, influenciando na qualidade expressiva dos movimentos. Importa saber que
este lugar, apesar de ser influenciável, é independente, portanto uma vez nele, pode-se exercer
escolhas. Encontrar o lugar é o primeiro passo para a improvisação.
DAMASIO, Antonio. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
D’ORAZI, Maria Pia. Kazuo Ono. Palermo: L’Epos, 2001.
GROTOWSKI, Jerzy. Il Teatro laboratorium di Jerzy Grotowski 1959-1969. Pontedera: Fondazione Pontedera Teatro, 2001.
LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós dramático. São Paulo: Cosac Nayf, 2007.
SALERNO, Giorgio. Suoni del corpo segni del cuore. Milano: Costa&Nolan, 1998.
SILVA, Soraia. Poemadançando: Gilka Machado e Eros Volúsia. Brasília: UnB Editora, 2007.
Figura 1:
Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009. Dançam: as mãos.
Dentro deste lugar que supomos ser o corpo, elemento vasto, ainda há que se encontrar o
lugar de estar no momento da improvisação com a imagem, em uma busca do lugar dentro do
lugar. Seria uma espécie de lugar certo onde concentrar a atenção para abandonar-se ao movimento recôndito, deixando emergir o movimento acordado pela imagem e ser por ela dançado.
Estamos no caminho, no por enquanto, investigando a dança do imprevisto que sabemos situada entre o nascimento e a morte.
108
109
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
O Rei Lear, suas Referências e Níveis
SUZI FRANKL SPERBER *
Resumo
O artigo analisa o Rei Lear, de William Shakespeare, a partir da noção de teatro pós-dramático, com o intuito de ressaltar
as novidades introduzidas pelo teatro elisabetano, especialmente aquelas que surgem no Rei Lear, tais como: os sentidos do
título e suas origens; as relações com o Eclesiastes, tomando como tópicos “as ilusões da vida humana”, “precariedade da
vida humana, sabedoria e insensatez”, “as vicissitudes do presente”, “justiça e retribuição”,“exploração e concorrência desleal”, “a solidão e seus inconvenientes”, “o poder político e seus riscos”, “sábio e as arbitrariedades da corte” e “as previsões
da adversidade”. Ao longo do texto, haverá referências ao tema da loucura1 e a períodos históricos.
Palavras-chave: Rei Lear. William Shakespeare. Eclesiastes. Criação a partir de um mote. Loucura. História.
Abstract
An analysis of King Lear by William Shakespeare, departing from the concept of post-dramatic theater, in order to assert the originality of Elizabethan drama, more specifically as introduced in King Lear, the senses of the title and its origins and the relations with
Ecclesiastes, taking as topics “illusions of human life”; “precariousness of human life, wisdom and folly”; “vicissitudes of the present”;
“justice and retribution”; “exploitation and unfair competition”; “loneliness and its drawbacks”; “political power and its risks”; “the
wise man and the arbitrariness in the court” and “predictions of adversity”. The analysis will include the theme of madness, as found
in Erasmus of Rotterdam, as well as referential approaches to History.
Keywords: King Lear. William Shakespeare. Ecclesiastes. Creation of a play from a motto. Madness. History.
* Mestre e Doutora em Teoria Literária, USP. Livre-docente em Teoria Literária junto ao DTL-UNICAMP. Publicou 8 prefácios; 160 artigos, alguns traduzidos p. japonês, alemão, espanhol e francês; 20 livros, dentre os quais Língua e Literatura: o
professor pede a palavra. São Paulo: Cortez, 1981; Sperber (org.) Re-edição de Natalika, de Guilherme de Almeida, Campinas:
Editora Unicamp, 1993 ; Sperber (org.) Re-edição de Guilherme de Almeida. Encantamento. Acaso. Você. Campinas: Editora
UNICAMP, 1997; Adna Candido de Paula e Suzi Frankl Sperber. Teoria Literária e Hermenêutica Ricœuriana. Um diálogo possível. Dourados-MS: Editora UFGD, 2010; Sperber, S.F. (org.). Presença do sagrado na literatura. Campinas: IEL-UNICAMP, 2011
(no prelo); traduções de poesia. Docente por três semestres de cursos na Universidade de Colônia - Alemanha. Bolsa Produtividade Pesquisa – CNPq. Coordenadora e pesquisadora do Projeto Temático “Memória(s) e pequenas percepções”.
Coordenadora do GT Literatura e Sagrado-ANPOLL. Líder Círculo de Estudos Avançados em Dramaturgia – CNPq.
110
1. cf. Erasmo de Rotterdam.
111
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Introdução
A referência ao olhar de Lehmann parecerá estar completamente fora de lugar num estudo do
Rei Lear, de William Shakespeare. O grande Autor trabalha com totalidade, ilusão e reprodução
do mundo, que constituem o modelo do teatro dramático elisabetano por excelência. Em que
medida, porém, poderíamos considerar que existe uma (muitas, provavelmente) leitura (leituras)
possível(eis) de Lear em que o triângulo drama/ação/imitação cede espaço para uma comunicação diferenciada, que mescla linguagens advindas de referências muito diferentes entre si, situadas
para além do que se aceita e se entende como teatro elizabetano? Uma leitura que incorpore
pelo menos uma arte dentro da arte (o teatro), incluindo dialogismos, diferentes vozes, com uma
estratégia cênica e dramática cuja tônica resida na relação com o público, na mescla de influências
e em uma costura que pareça histórica, mas que passeie entre a magia da poesia, criadora de
imagens, e a crueza da realidade, no contraponto gerador de outra coisa, outro sentido, ancestral
e, ao mesmo tempo, moderno?
A análise que se propõe caminhará a partir da compreensão do Rei Lear. Só então, com todas
as referências necessárias, voltarei à reflexão sobre a hipótese de Lehmann (Lehmann, 1999).
A cena teatral caracterizou-se, durante o chamado teatro dramático, por interpretar textos
pré-escritos. Segundo a crítica contemporânea que revê os clássicos, os textos pré-escritos seriam de difícil interpretação justamente por não contarem com a encenação, que corresponde a
uma leitura e interpretação. Daí textos pré-escritos e não improvisados serem vistos por alguns
como menos tangíveis, compreensíveis, por objetivarem conflitos psicológicos e morais entre as
personagens, conflitos que sempre contêm não ditos e interstícios que afundam no insconsciente.
Este seria, a meu parecer, um quadro temático narrativo que serviria mais ao cinema e à televisão
que ao teatro. As noções de tragédia e de comédia, aparentemente separadas, já começam a se
mesclar tanto na Idade Média, nas festas carnavalescas, como nos Autos de Gil Vicente e no teatro
shakespeareano e elisabetano. Em qualquer pesquisa que se faça, encontramos a indicação das
mesclas entre tragédia e comédia e o comentário sobre a ironia shakespeareana. Portanto, neste
universo teatral, os princípios da mímesis e da catarse não vigoram3. O cômico do Rei Lear, com a
loucura do rei caído em desgraça pela traição de suas filhas, a quem, por afeto, havia presenteado
com todo seu patrimônio, proporcionava o alívio cômico ao público, fazendo ressaltar, como pelo
efeito do chiaroscuro, a tragédia pessoal de Lear, e a nacional, da Inglaterra maltrapilha por causa
da guerra civil. Já teríamos aí um dado que afetaria a hipótese do teatro pós-dramático. Sem incorporação de TV, tela, projeções, o teatro shakespeareano incorpora o teatro dentro do teatro
e, dependendo da encenação, elementos circenses propostos pelo Bobo. A poesia materializa a
magia, sem deixar de incorporar, em encenações contemporâneas, projeções que caracterizam a
modernidade, ou, por relações associativas, a poesia mágica desperta imagens no receptor, que vê
aquilo que é sugerido pela palavra.
O pequeno grupo de estudos campineiro “Literatura e Dramaturgia” reuniu-se diversas vezes
para discutir a peça Rei Lear, de William Shakespeare. Muitos aspectos foram levantados, muitas
análises foram propostas. Dentre elas, sugeri que Shakespeare, ao redigir e encenar o Rei Lear,
possivelmente teve, no horizonte de provocações ou de estímulos, dois textos relevantes: o Eclesiastes (ou Coélet), do Velho Testamento, e o Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam. As referências reconhecidas como contemporâneas a Shakespeare incluem a história da Grã Bretanha,
especialmente aquela encontrada nas Crônicas de Raphael Holinshed (1587) e na Historia Regum
Britanniae, de Geoffrey de Monmouth, de 1135.
Shakespeare cria, nesta tragédia, personagens que serão atingidos seja pela cobiça, prepotência,
orgulho, inveja, ganância, traição, indiferença, antiética, seja por outros atributos do gênero. Seria
uma punição? As personagens reúnem mais de uma destas características, sempre combinadas
com outros vícios, contrapostos a variações do que seria o Bom e o Bem.
Em ata da reunião inicial do grupo de estudos acima referido apareceram os seguintes temas:
• Divisão das personagens em três modalidades ou grupos: aquele que parece ser aquilo que
não é (Edmundo); aquele que age segundo aquilo que de fato é (Cordélia); aquele que parece ser
outro para conseguir o que quer (Kent).
• O papel do “desaparecimento” do Bobo na obra.
���������������������������������������������������������������������������������������������
• A densidade da obra que, por seu caráter moderno, engloba temáticas metalinguísticas, filosóficas, sociais, etnológicas, históricas, políticas, psicológicas, psicanalíticas e religiosas. Há o teatro
2. “Para sintetizar melhor seu conceito, Lehmann observa que totalidade, ilusão e reprodução do mundo constituem o
3. O teatro elizabetano tem seu auge de 1562 a 1642. As peças caracterizam-se pela mistura sistemática do sério e do
modelo do teatro dramático. E que a realidade do novo teatro começa exatamente com a desaparição do triângulo dra-
cômico, da ironia e da realidade, dos gêneros; pelo abandono das unidades aristotélicas clássicas; pela variedade na escolha
ma, ação, imitação, o que acontece em escala considerável apenas nas décadas finais do século XX.” (GUINSBURG, Jacó e
dos temas, tirados da mitologia, das literaturas medieval e renascentista e da história; por uma linguagem que mistura o
FERNANDES, Silvia [orgs.]. O Pós-dramatico: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 13).
verso mais refinado à prosa mais descontraída.
Um Salto no Tempo
Em sua obra Postdramatisches Theater, publicada em 1999, na Alemanha, Hans-Thies Lehmann
retoma antigas teses teatrais e afirma que, do teatro elisabetano ao teatro burguês do final do
século XX, a cena tem funcionado sempre dentro dos princípios da mímesis e da catharsis aristotélica2. Apesar de vir sustentando a função de porta-voz da esfera crítica pública desde o século
XX, no século XXI o teatro estaria à procura de si mesmo, tentando reconstruir um diálogo com
o seu público.
Lehmann pondera que, se o teatro perdeu seu fascínio frente aos grandes meios de comunicação de massa, por outro lado surgem, ao final do século XX, formas de ação teatral que
pesquisam novas possibilidades de comunicação contrárias ao poder absoluto das pseudoesferas
públicas na mídia, estabelecendo espaços próprios de comunicação diferenciada. Disto decorre o
surgimento de uma mescla de linguagens, a incorporação de diferentes artes e a tônica na relação
com o público.
Esta nova forma teatral não procura suscitar a adesão do espectador, mas provocar sua percepção ou emoção significativa. Os aspectos fragmentários destes textos, ou destas montagens,
permeiam uma reescritura cênica que engloba os aspectos textuais, cenográficos e os problemas
propostos por um jogo não necessariamente psicológico.
Esta é a teoria do teatro pós-dramático. De fato, as pesquisas no teatro pós-dramático dão
ênfase a situações e não a ações. Isto tem levado a uma recepção difícil, quando não perturbada.
Considero que tanto o rótulo para estas novas pesquisas – o teatro pós-dramático – como as
próprias situações postas em cena guardam algo do que está no nome: o drama (mesmo sendo
pós-drama). Portanto, a novidade, mesmo negando o drama (ou a tragédia) ou procurando autonomia em meio ao entrelaçamento de diferentes artes, não perde as referências fundamentais da
tragédia e do drama, fundadas na existência humana, que poderão ser chamadas de miméticas e
catárticas, ou que estão a ela associadas: vida e morte, nostalgia do encontro e da relação amorosa. Por este motivo estão presentes referências das grandes peças teatrais do passado, que trabalharam com uma proposta de totalidade, com a ilusão e com a reprodução do mundo.
O Rei Lear em Análise
112
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
113
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
dentro do teatro. Uma das personagens da peça é sacrificada: Cordelia. O nome Cordelia proviria,
presumivelmente, da peça The Faerie Queene (1590) de Edmund Spenser, em que também há uma
personagem chamada Cordelia, que morre enforcada, como no Rei Lear.
• A existência de um possível anagrama, no qual LEAR seria uma variação de REAL.
O Título e o Nome da Personagem
Começo pelo nome da personagem-título da peça. A personagem histórica na qual a peça está
baseada seria o legendário Leir of Britain, um rei céltico mitológico pré-romano. A grafia do nome
deste rei céltico é LEIR. Diz-se, também, que existe uma relação entre Leir e os deuses marinhos
galeses e irlandeses Llyr e Ler (derivado do Céltico Leros, que quer dizer mar)4. Segundo Geoffrey
of Monmouth, estudioso da obra, Leir é o epônimo do fundador de Leicester (Legra-ceaster ou
Ligora-ceaster, em anglo-saxão), conhecido como Cair Leir, em galês, sendo Leir um hidrônimo
derivado do celta Ligera ou Ligora. A que vêm tais considerações? Apesar destas referências quer
históricas, quer mitológicas, o nome grafado por Shakespeare é diferente das três variantes encontradas. Proponho que esta grafia diferente – LEAR – pode corresponder a uma prática retórica
dos sécs. XV e XVI (desde cerca de 1430 até cerca de 1530), usada por poetas menores (chamados de rhétoriqueurs), que produziram suas obras no período compreendido entre as de François
Villon e as de Clément Marot. A poesia dos rhétoriqueurs se caracterizava pelo uso de artifícios
como as metáforas, jogos poéticos como acrósticos, palíndromos, rimas equivocadas, a aliteração,
a annominatio, a amplificatio e a anáfora, forçados que eram a usar formas congeladas, fixas. A fim
de conseguir transmitir alguma nuança, tais poetas usavam anagramas que indiciavam um sentido
importante para o texto. Considero que, se Shakespeare não grafou Leir, ou Llyr, ou Ler, é porque
queria que seu leitor (do programa, por exemplo) percebesse que LEAR era anagrama de REAL.
João Guimarães Rosa usa práticas paralelas em Grande Sertão: Veredas (“Rosmes!” é anagrama de
“Semsor”).
O nome de Cordelia também é referência histórica. Segundo Geoffrey of Monmouth, a rainha
Cordelia foi uma legendária rainha dos Bretãos. Era a filha mais nova e preferida do já referido Leir
e a segunda na sucessão da Bretanha, irmã mais nova de Goneril e Regan. Quando Leir decidiu
dividir seu reino entre suas filhas e seus maridos, Cordelia recusou-se a bajulá-lo. Decepcionado e
indignado, visto que acostumado à bajulação na Corte, Leir a puniu, não lhe dando nenhuma porção
de seu reino, portanto retirando o seu dote e negando-lhe, inclusive, as suas bênçãos a qualquer
eventual marido. Aganippus, o rei dos Francos, quis casar-se com Cordelia apesar da atitude de Leir,
manifestando seu apreço pelo caráter da princesa. Segundo os dados históricos levantados, Cordelia mudou-se com seu marido para a Gália (que poderia ser um território abrangendo a França,
Luxemburgo e a Bélgica), onde teria vivido por muitos anos. Leir teria sido exilado da Bretanha e
fugido para a Gália. Procurou, então, restaurar seu trono, com a ajuda do exército gaulês. Foram bem
sucedidos e Leir pôde reinar. Três anos depois da morte de Leir, Aganippus morreu. Cordelia voltou,
então, para a Bretanha e foi coroada rainha. Ela reinou durante cinco anos. Neste período, seus sobrinhos tornaram-se maiores de idade e decidiram derrubá-la do trono. Ela lutou pessoalmente em diversas batalhas, acabou sendo capturada e presa pelos sobrinhos, suicidando-se pela decepção e dor.
����������������������������������������������������������������������������������������
O levantamento histórico, normalmente apresentado como fonte para a criação de Shakespeare, interessa-me para analisar as diferenças entre o relato histórico e o ficcional: a personagem
Cordelia da peça teria reagido de forma semelhante à Cordelia histórica, mas o desenlace de cada
história difere. Talvez este desenlace guarde conexões com o REAL indiciado por Lear. O que
significa este REAL?
114
4. Os nomes não estão etimologicamente relacionados.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
A Vítima Sacrificial
Observei que Cordelia, a preferida, a amada, a invejada, é sacrificada. Por que Cordelia se torna
um bode expiatório? Trata-se da vítima sacrificial, necessária, segundo René Girard (GIRARD, 1961,
11-12), para estancar a violência paroxística e indiscriminada desencadeada pela indireta e anterior
manifestação de amor e apreço de Lear por Cordelia – e pelo erro trágico da mesma, ao comentar
que seu amor pelo pai não seria extraordinário, mas correspondente ao esperado de um amor
filial. A verdade corresponde ao real, ao bom, ao bem. A verdade é desejável. As irmãs de Cordelia,
contudo, já se haviam manifestado – e bajulado o rei. Imitá-la levaria ao desastre de suas ambições.
Era necessário, portanto, que as irmãs desqualificassem os valores de Cordelia. A verdade é caracterizada como correspondente à falta de amor. A hipocrisia e a mentira se apresentam como o real.
Neste jogo de inversões, também são atingidos os súditos leais. A lealdade precisa ser sacrificada,
antes que revelada. “O desejo adulto não difere em nada do desejo infantil, salvo que o adulto, em
particular em nosso contexto cultural, normalmente tem vergonha de se modelar por outro; ele
tem medo de revelar sua falta de ser. Declara-se altamente satisfeito consigo mesmo; apresenta-se
como modelo para os outros; cada um repete: “imitai-me”, a fim de dissimular sua própria imitação”
(GIRARD, 1972, 204-205). A imitação deveria proceder do valor ético de Cordelia. Como os valores foram invertidos, a temática corresponderá ao “mundo às avessas”, estudado inicialmente por
Ernst Robert Curtius e, depois, por Mikhail Bakhtin. O avesso da verdade, da lealdade, da honestidade corresponderá à imitação invertida, às avessas, consistindo na mentira, traição, deslealdade,
lisonja, desonestidade.
���������������������������������������������������������������������������������������������
Há outro objeto do desejo, mais forte e de outra natureza: é o poder. As irmãs e Edmund desejam o poder absoluto. Segundo Girard (GIRARD, 2000, 84), caso sujeito e modelo se encontrem
em um mesmo mundo, o objeto desejado pelo sujeito está ao alcance do modelo, e instaura-se a
rivalidade. Esta rivalidade é tal que se reforça por si mesma:
Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica; pois, à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitálo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo; imitador de
seu imitador.(GIRARD, 2000, 87).
À medida que esse mecanismo se desenvolve, os dois tornam-se cada vez mais semelhantes e
indiferenciados e o conflito torna-se cada vez maior, chegando a um ponto em que o objeto do
desejo desaparece e resta a rivalidade.
Nesse jogo mimético entre os rivais,
[...] caminha-se sempre para uma simetria maior e, consequentemente, para mais conflito, já que a simetria só
pode produzir duplos. Os duplos surgem com o desaparecimento do objeto, e, no calor da rivalidade, os rivais
se tornam cada vez mais indiferenciados, idênticos... Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções...(GIRARD, 2000, 87).
��������������������������������������������������������������������������������������
O desencadeamento desse mecanismo mimético torna-se cada vez mais atraente para os observadores: a disputa pelo objeto valoriza-o, provocando a cobiça, até que, com o crescimento da
disputa, o objeto sai do campo da consciência, desaparecendo “dilacerado e destruído no conflito”,
diz Girard (GIRARD, 2000, 87).
������������������������������������������������������������������������������������������
A proliferação de duplos é acompanhada de um aumento crescente de violência.Todos os membros da comunidade são envolvidos no jogo mimético, que desemboca no que o autor denomina
de “crise sacrificial”: a luta de todos contra todos, o mergulho de toda a sociedade numa situação
caótica e indiferenciada, o desaparecimento da ordem cultural.
115
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
O que estanca essa violência indiscriminada é a canalização gradual das energias conflituosas
sobre um único indivíduo, o bode expiatório, sobre quem a comunidade inteira deposita a responsabilidade da desordem. Na peça, há dois causadores da desordem: Lear e Cordelia. Lear, por
dividir o reino, o que o enfraquece e o leva a ser expulso, exilado. O reino passa a ser regido pelos
genros, mais do que pela filhas de Lear. Emasculado por lhe ser negada a guarda de direito a um
rei, Lear enlouquece. Sobram, ainda, os três ambiciosos: Goneril, Reagan e Edmund, que lutarão
entre si, desqualificando um ao outro, armando embustes para eliminar o rival. Restam, também,
os súditos fiéis, que procuram preservar o poder de Lear. Estes têm o seu modelo de legislador,
de rei justo, que é o mesmo, Lear. Como eles não são Lear e como seu modelo precisa de sua
ajuda, ele não precisa ser desejado por eles. Daí ser desnecessária a competição entre os súditos
leais. Estes serão ameaçados, ainda, pelos súditos desleais e rivais. Os súditos fiéis são o Conde
de Kent, o Conde de Gloucester e Edgar, filho legítimo de Gloucester, que também serão bodes
expiatórios. Logo, aos olhos dos invejosos e desejosos do objeto cobiçado – o Bem e a Justiça,
encarnados, sobretudo, em Cordelia –, os súditos fiéis também precisarão ser punidos. Gloucester
é expulso, depois de ser cegado. Kent é expulso e decide submergir na corte, vestindo-se como
mendigo, a fim de proteger seu rei. Edgar precisa fugir, porque é acusado pelo meio-irmão de querer envenenar o pai. A própria Cordelia menciona seu erro (no sentido de hamartía):
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
ela adquire um poder sobre-humano aos olhos de Lear – e a nossos olhos de espectadores –, já
que não só foi capaz de provocar a derrocada de todo um sistema social como, uma vez morta,
poderá haver um novo pacto e uma nova ordem social. Tanto em Shakespeare como em Coélet, a
mulher, mesmo tendo coração, é suspensa e questionada por sua falta de força, sendo entendida
como unidade só quando relacionada a um parceiro, a um homem. Por este motivo, Cordélia não
poderá ser salva. Tal aspecto relaciona-se a uma nova consciência da noção de família em uma
sociedade aparentemente monárquica, noção essa que aparece em Shakespeare avant la lettre. A
noção de família como núcleo central e molecular da sociedade provém de Hobbes7, cujo Leviatã
(obra publicada em 1651) é posterior a Shakespeare. O núcleo da sociedade deveria ser ocupado
pela figura masculina – o pater familias – análoga às noções de “cidadão” e de “urbs”, que provêm
do Iluminismo e do conceito de Citoyen (HOBBES8). Na obra shakespeareana, especialmente no
Rei Lear, o poder é estruturado de tal forma que é preciso haver um pater famílias. Este, porém, é
Lear, anagrama de Real, portanto seu avesso, caracterizado como ingênuo, vaidoso, frívolo e presunçoso: isto é, louco. Lemos no Elogio da Loucura:
Oh! como os homens seriam lastimáveis sem mim (Loucura), no fim dos seus dias! Mas, tenho pena deles e
estendo-lhes a mão. Não raro, as divindades poéticas socorrem piedosamente, com o divino segredo da metamorfose, os que estão prestes a morrer: Fetonte transforma-se em cisne, Alcion em pássaro, etc. Também
Cordelia: We are not the first
eu, até certo ponto, imito essas benéficas divindades. Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da
Who, with best meaning, have incurr’d the worst.
sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos. De onde o provérbio:
For thee, oppressed king, am I cast down;
Os velhos são duas vezes crianças. (ROTTERDAM, 2002, 8)
Myself could else out-frown false fortune’s frown. 5(SHAKESPEARE, 1955, 938 – KingLear, Ato V, Cena III, 3-6)
Como Cordelia voltou ao reino, ela será o último bode expiatório de Edmund, que mandará
matá-la e tentará apresentar o assassinato como suicídio (esta parte do enredo imaginário de
Edmund corresponde à história real da Cordelia histórica, porém só o suicídio seria semelhante e
não as demais circunstâncias). Edmund precisava fazê-lo para garantir seu poder. Quando este se
arrepende, porque sabe que morrerá, portanto não se beneficiará do assassinato, já é tarde.
Ilusão
A ação de Cordelia sublinha o ilusório do mundo. Seria o REAL a VERDADE? Seria a loucura? A
ação do Rei Lear poderia indiciar a ilusão de desejar a manifestação absoluta de amor, que não
lhe basta e que o leva à loucura. Poderíamos pensar que o erro trágico foi cometido por Lear,
mas o erro trágico é mesmo a ilusão, a vida como ilusão. O conceito barroco de ilusão, um tanto
inesperado em Shakespeare, é temático, por exemplo, em Calderón de la Barca (La vida es sueño).
A canalização gradual das energias conflituosas sobre uma única pessoa, bode expiatório, sobre
quem toda a comunidade deposita a responsabilidade da desordem, leva a violências outras e
à criação de bodes expiatórios intermediários, numa multiplicação indicativa de que cada gesto,
cada ganância, cada jogo pelo poder é ilusório. O assassinato de cada bode expiatório reforça,
na comunidade, a sensação de que a ordem e a paz voltam a reinar e a crença de que existem
responsáveis por aquele estado de coisas – um de cada vez – o bode expiatório da hora. Como
Cordelia é a culpada máxima, aquela que é sagrada e que poderá ser morta sem julgamento6,
“Os velhos são duas vezes crianças” é um provérbio que se aplica fundamentalmente a Lear,
que se veste de trapos e se coroa com flores. Esta imagem é graciosa em dois sentidos: tem graça,
sendo engraçada, irônica, ao mesmo tempo em que tem graça, numa acepção teológica, enraizada
tanto no Judaísmo como no Cristianismo. Nessa última acepção, o termo é definido como um
dom gratuito e sobrenatural concedido por Deus à humanidade, que consiste em prover todos
os bens necessários à sua existência e à sua salvação. Esta dádiva é motivada unicamente pela misericórdia e pelo amor de Deus à humanidade, logo, movida por Sua iniciativa própria, ainda que
em resposta a algum pedido a Ele dirigido. A Graça de Lear tem conotação sagrada, ainda que de
maneira “torta”: misto de Graça e de riso, ironia, a figura de Lear não chega a ser trágica. Sua força
vem de uma grandeza metafísica, mística, e, ao mesmo tempo, francamente Humana.
Em outro nível, a loucura de Lear e a cegueira de Gloucester dão-se as mãos. A culpa narcísica
de ambos explica porque foram enganados – e maltratados. A culpa narcísica é o elo entre a caracterização das personagens do Rei Lear, o Eclesiastes e o sentido patriarcal, dilacerado na sociedade descrita na tragédia. A noção protetora da família, da comunidade e, por extensão, do mundo
político, é suspensa, destruída. Shakespeare, mesmo apresentando a monarquia, já critica a moral
burguesa. Esta, forjada a partir dos séculos XVI-XVII, considera a família como correspondente ao
7. A propriedade, para Hobbes (1995), é uma espécie de prescrição de regras ditadas pela soberania, através das quais o
homem deve saber quais os bens de que pode gozar, e quais as atitudes que pode tomar para com os outros. A propriedade, portanto, é uma lei civil e, como tal, uma segurança para o cidadão. Mas essa esperança (salus populi) nasce a partir
de uma demarcação dos limites da propriedade privada: os valores entendidos como meum e tuum. A limitação do “meu”
e do “teu” faz com que o que exista além do “meu” seja o estranho, que não deve desfazer a harmonia da composição
fechada. O meum torna-se valor sublime, quase um extremo de maniqueísmo incontido. “Essas regras da propriedade (ou
116
5. CORDÉLIA — Os primeiros não somos a ficar sobre braseiros com boas intenções. Rei oprimido, por ti, somente, falta-
meum e tuum), tal como o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis” (HOBBES, 1995,
me o sentido, que eu, por mim, poderia, carrancuda, enfrentar as carrancas da Fortuna.
cap. XVII)
6. Refiro-me, neste ponto, ao conceito do homo sacer, de Giorgio Agamben, que se encontra na obra de mesmo nome
8. HOBBES, Thomas. Leviathan. Chapter xx: “Of dominion paternal and despotical”. In http://www.infidels.org/library/historical/
(2002).
thomas_hobbes/leviathan.html. Acesso em fevereiro 2010.
117
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
menor núcleo detentor e definidor de propriedade, núcleo que precisa ser conservado devido ao
valor conservador da propriedade – o que, desde o século XVI, é atribuído ao papel indispensável
da mulher, nos tratados de casamento9. Ora, tudo o que venha a perturbar ou comprometer esta
segurança e harmonia é loucura, ou disparate, merecendo censura. Um “outro” que perturbe a
autonomia absoluta deste substituto do estado político deve ser, pelo menos, criticado. Para a moral burguesa, a noção de perda de identidade está fortemente vinculada ao papel social e político
do indivíduo. Diz o Eclesiastes, mais recentemente nomeado segundo seu nome hebraico, Coélet,
acerca da sabedoria e da insensatez: “Depois examinei a sabedoria, a tolice e a insensatez, pensando: ‘O que fará o rei que virá depois de mim?’ Fará o que já foi feito” (Eclesiastes 2.12, 2002).
Neste ponto, retomo a hipótese de Coélet (O Eclesiastes) como ponto de partida para a criação do Rei Lear. Observei que a sabedoria leva vantagem sobre a insensatez, como a luz sobre as
trevas. A peça apresenta Lear louco e Gloucester cego. Edmund levará vantagem sobre a insensatez do rei, e sobre a cegueira do pai, que só quer morrer.
13
Então percebi que a vantagem da sabedoria sobre a insensatez é a vantagem da luz sobre as trevas. 14 O
sábio tem os olhos abertos, e o insensato caminha na escuridão. Mas logo notei que ambos têm o mesmo
destino.
15
Então pensei: «Vou ter o mesmo destino que o insensato! Para que me tornei sábio?» E concluí que tam-
bém isso é fugaz (ilusão). 16 De fato, a lembrança do sábio desaparece para sempre, como a do insensato.
Bem logo tudo ficará esquecido: o sábio morre da mesma forma que o insensato. (Eclesiastes 2.13-16, 2002)
É o caso de Cordelia, que morrerá, apesar de sábia, assim como do Bobo – nada bobo –, que
também é assassinado, enforcado.
Diversos outros trechos são aplicáveis ao Rei Lear:
3.16 Observei outra coisa debaixo do sol: Em lugar do direito, encontra-se a injustiça; e, em lugar do justo,
encontra-se o injusto. 17 E concluí que o justo e o injusto estão debaixo do julgamento de Deus, porque
existe um tempo para cada coisa e um julgamento para cada ação. (Eclesiastes 3.16-17, 2002)
4.13 Mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei velho e insensato, que não aceita mais conselho, 14 mesmo que o jovem tenha saído da prisão para reinar, e ainda que tenha nascido mendigo no reino. (Eclesiastes
4.13-14, 2002)
8. 5 Quem obedece às ordens, não incorre em pena alguma. A mente do sábio conhece o tempo e o julgamento, 6 porque para cada coisa há um tempo e um julgamento. Sobre o homem pesa um grande mal: 7
ninguém sabe qual será o seu futuro. De fato, quem pode saber o que vai acontecer? 8 Ninguém é capaz de
dominar sua própria respiração: o dia da morte está fora do nosso domínio. Da luta na vida ninguém pode
fugir; nem a maldade salva aquele que a comete. (Eclesiastes 8.5-8, 2002)
Edmund, o mau, de fato também morre.
4.2 Todos têm o mesmo destino, tanto o justo como o injusto, o bom e o mau, o puro e o impuro, quem
sacrifica e quem não sacrifica. O bom é tal qual o pecador, e quem jura é igual a quem evita o juramento. 3
O mal que existe em tudo o que se faz debaixo do sol é que todos têm o mesmo destino. Além disso, o coração dos homens está cheio de maldade, e a insensatez se abriga no coração deles durante todo o tempo
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
10.16 Ai de você, país governado por um jovem, e cujos príncipes se banqueteiam desde o amanhecer. 17 Feliz
de você, país governado por um rei nobre, e cujos príncipes comem na hora certa para se refazerem, e não
para se banquetearem. 20 Não fale mal do rei, nem mesmo em pensamento, e não fale mal do poderoso, nem
dentro do seu próprio quarto: um passarinho poderá ouvir, e um ser alado qualquer poderia contar o que
você falou. (Eclesiastes 10.16-17; 20, 2002)
A roda da ambição, que gera vítimas e algozes, revela que tanto elas como os sábios vivem em
ilusão. Ser mau para obter bens e poder é ilusão, assim como ser bom e sábio leva ao mesmo fim,
sendo ilusão também: “1.8Toda explicação fica pela metade, pois o homem não consegue terminála. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se farta de ouvir” (Eclesiastes 1.8, 2002).
No Eclesiastes, lemos ainda: “19 O que aconteceu, de novo acontecerá; e o que se fez, de novo
será feito: debaixo do sol não há nenhuma novidade” (Eclesiastes 1.9, 2002).
O que vemos no Rei Lear foi teorizado por René Girard (Girard, 1961): o desejo mimético e a
vítima sacrificial não são novidades. Ao mesmo tempo, o argumento de “o que aconteceu, de novo
acontecerá” presta-se a justificar referências históricas diversas (há outras mais, além das expostas),
tão frequentemente usadas por Shakespeare: “1.10 Às vezes, ouvimos dizer: ‘Veja: esta é uma coisa
nova!’ Mas ela já existiu em outros tempos, muito antes de nós” (Eclesiastes 1.9-10, 2002).
Perguntaram-me se o Eclesiastes não poderia ser aplicado a toda a obra de Shakespeare. No
Rei Lear, observamos a abordagem de diferentes tópicos do Eclesiastes, como “as ilusões da vida
humana”; a “precariedade da vida humana, sabedoria e insensatez”; “as vicissitudes do presente”; o
tema da “justiça e retribuição”; “a exploração e a concorrência desleal”; “a solidão e seus inconvenientes”; “o poder político e seus riscos”; “o sábio e as arbitrariedades da corte” e “as previsões da
adversidade”. Em outras obras shakespeareanas não observo a frequência de temas paralelos. Em
Hamlet, a personagem-título passa por vicissitudes que poderiam ser entendidas como provindas
da ambição e da cobiça, portanto da ilusão. Mas, sem dúvida, o tema forte da peça é a culpa.
Minha hipótese é a de que o Eclesiastes10 teria fornecido uma espécie de mote, inspirando a
escrita do Rei Lear: “1 Palavras de Coélet, filho de Davi, rei de Jerusalém”.2 “Ó suprema fugacidade”,
diz Coélet, “ó suprema fugacidade! Tudo é fugaz!” (Eclesiastes 1.1-2, 2002)11. Outras forças culturais
ou históricas do tempo de Shakespeare teriam reforçado o mote e a inspiração, inclusive na busca do Real – oposto à Ilusão e à fugacidade. Por isso a criação shakespeareana provoca emoção
significativa no público e, sem dúvida, mesmo tendo sido criada e apresentada na primeira década
do séc. XVII, constitui-se como uma arte total, transversal, inspirada por universos diferentes e
por recursos plurais. Cada cena tem uma ligação com a anterior e com a posterior, mas a cena da
tempestade tem uma força e uma autonomia vinculadas ao sagrado, à Graça, distinguindo-a das
demais. Mesmo a cena da morte de Lear, que sublinha a sua transformação, também marca uma
distinção em relação ao luxo e ao poder ambicionados em toda a peça.
Volto, assim, a Lehmann. É óbvio que o Rei Lear não é atravessado pelas artes da imagem, pelo
cinema, pelas artes pláticas e pelo circo, como ocorre no teatro pós-dramático. Se levarmos em
conta a caracterização de Erich Auerbach do teatro elisabetano, veremos que nele se observa
uma consciência mais livre: as desgraças transcendem o herói e devastam toda a sociedade; existe
uma multiplicidade de temas (como, no Rei Lear, a ambição e a inveja, a desobediência civil e o
seu contrário, a crítica explícita e a loucura, tudo com notável liberdade de movimentos e girando
em torno do mote da ilusão); além da história nacional, outros gêneros estão presentes, como
histórias fabulosas, novelas e contos de fadas. Assim, neste mundo diversificado, há espaço para a
fantasia e a magia, que se manifestam pela poesia, ação e encenação livre não mimética, como, por
que vivem. Depois eles se dirigem para junto dos mortos. (Eclesiastes 4.2-3, 2002)
10. Sem dúvida, Shakespeare cria a partir de diversos estímulos. Ele não deixa de ter como base para os dramas históricos
118
9. Em verdade, o papel da mulher de mantenedora dos bens familiares existe desde um dos textos ancestrais de nosso
as crônicas de Edward Hall (1548) e Raphael Holinshed (1587).
mundo ocidental: na Odisséia, este é um dos papéis de Penélope.
11. Há traduções do Eclesiastes, como a presente, que usa o conceito da fugacidade. Outras, repisam o da ilusão.
119
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
exemplo, na extraordinária cena em que Gloucester é guiado pelo filho até a borda de um precipício – conforme o projeto de Gloucester, mas inventado por Edgar, seu filho legítimo –, numa
cena mágica e quase trágica.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
GLOUCESTER — Let go my hand. Here, friend’s, another
EDGAR — Dai-me a mão; só um passo vos separa da
purse; in it a jewel well worth a poor man’s taking: fairies
borda extrema. Por quanto há debaixo da lua, eu não
and gods prosper it with thee! Go thou farther off; bid me
saltara dessa altura.
farewell, and let me hear thee going.
Act 4. Scene VI
Ato 4, Cena VI
SCENE VI. Fields near Dover.
Região perto de Dover. Entram Gloster e Edgar vestido
Enter GLOUCESTER, and EDGAR dressed like a peasant.
de camponês.
GLOUCESTER — When shall we come to the top of that
dentro dela há uma joia que merece ficar com algum pobre.
Os deuses todos e as fadas te protejam. Vai-te embora; dize
GLOUCESTER — With all my heart.
adeus, pois desejo ouvir teus passos.
EDGAR — Why I do trifle thus with his despair is done
EDGAR — Passai bem, bom senhor.
GLOSTER — Quando chegaremos ao topo desta colina?
same hill?
EDGAR — Já a estás escalando. Vê, vê como nos dá
EDGAR — You do climb up it now: look, how we labour.
GLOSTER — Solta-me a mão; recebe esta outra bolsa;
EDGAR — Now fare you well, good sir.
to cure it.
GLOSTER — Agradecido de todo coração.
trabalho.
GLOUCESTER — [Kneeling] O you mighty gods! This
GLOUCESTER — Methinks the ground is even.
EDGAR — Horrible steep. Hark, do you hear the sea?
GLOSTER — Tenho a impressão de que o terreno é plano.
world I do renounce, and, in your sights, shake patiently
EDGAR (à parte) — A brincadeira que faço com a
my great affliction off: if I could bear it longer, and not fall
desgraça dele, visa, tão-somente, curá-lo.
EDGAR — Horrivelmente abrupto. Não ouves o barulho
to quarrel with your great opposeless wills, my snuff and
do mar?
loathed part of nature should burn itself out. If Edgar live, O,
GLOSTER — Ó deuses grandes, renuncio a este mundo
bless him! Now, fellow, fare thee well. He falls forward
e, em vossa vista, paciente, me despojo do meu grande
GLOUCESTER — No, truly.
GLOSTER — Em verdade, não.
EDGAR — Why, then, your other senses grow imperfect
by your eyes’ anguish.
sofrimento! Pudesse eu suportá-lo por mais tempo, sem
EDGAR — Gone, sir: farewell. And yet I know not how
luta abrir com vossa vontade irresistível, este abjeto morrão
EDGAR — Então é porque os teus outros sentidos
conceit may rob the treasury of life, when life itself yields
da natureza se deixara consumir até ao fim. Se ainda com
ficaram imperfeitos devido à angústia dos olhos.
to the theft: had he been where he thought, by this, had
vida estiver meu Edgar, oh! abençoai-o! E agora, amigo,
thought been past. Alive or dead? Ho, you sir! friend! Hear
adeus. (Cai para a frente).
GLOUCESTER — So may it be, indeed: methinks thy voice
is alter’d; and thou speak’st in better phrase and matter
GLOSTER — É possível. Parece-me que tens a voz mudada
you, sir! speak! Thus might he pass indeed: yet he revives.
than thou didst.
e que falas agora com mais sentido e melhor expressão.
What are you, sir?
EDGAR — You’re much deceived: in nothing am I changed
EDGAR — É puro engano de tua parte; em nada estou
GLOUCESTER — Away, and let me die.
but in my garments.
mudado, a não ser por estas vestes.
EDGAR — Adeus, senhor; já fui embora. (À parte)
Conceber não posso como a imaginação roubar consegue
GLOUCESTER — Methinks you’re better spoken.
GLOSTER — Não; parece-me que te exprimes melhor.
roubo. Se se achasse onde pensava estar, neste momento
EDGAR — Hadst thou been aught but gossamer, feath-
pensar já não pudera. Vivo ou morto? (A Gloster) Então,
ers, air, so many fathom down precipitating, thou’dst shiver’d
senhor! Amigo! Estais me ouvindo? Poderia morrer... Mas
like an egg: but thou dost breathe; hast heavy substance;
não; revive. Que sois, senhor? Dizei-me.
EDGAR — Come on, sir; here’s the place: stand still. How
EDGAR — Vamos, senhor; eis o lugar. Chegamos. Fica
bleed’st not; speak’st; art sound. Ten masts at each make not
fearful and dizzy ‘tis, to cast one’s eyes so low! The crows
quieto. Como é terrível! É de dar vertigens olhar para
the altitude which thou hast perpendicularly fell: thy life’s a
and choughs that wing the midway air show scarce so
baixo desta distância. Como os corvos e as gralhas que
miracle. Speak yet again.
gross as beetles: half way down hangs one that gathers
voam neste espaço intermediário ficam pequeninos como
samphire, dreadful trade! Methinks he seems no bigger
besouros! Vê-se à meia altura, suspenso, um homem que
than his head: the fishermen, that walk upon the beach,
procura funcho. Profissão arriscada! Tenho a impressão
appear like mice; and yond tall anchoring bark, diminish’d
de que ele é do tamanho da cabeça. Os pescadores que
EDGAR — From the dread summit of this chalky bourn.
corpo, não perdes sangue, estás inteiro, filas. Dez mastros
to her cock; her cock, a buoy almost too small for sight:
andam pela praia parecem ratos; a barcaça, ali ancorada,
Look up a-height; the shrill-gorged lark so far Cannot be
superpostos não bastaram para medir a altura de onde
the murmuring surge, that on the unnumber’d idle pebbles
parece tão pequena como o próprio escaler, e o barquinho
seen or heard: do but look up.
caíste perpendicularmente. Verdadeiro milagre é tua vida.
chafes, cannot be heard so high. I’ll look no more; lest my
ficou parecendo uma boia, pequenina demais para ser
brain turn, and the deficient sight topple down headlong.
vista. As ondas agitadas, que batem nas inumeráveis e
preguiçosas pedras, não se fazem ouvir, tal é esta altura.
GLOUCESTER — Set me where you stand.
EDGAR — Give me your hand: you are now within a foot
leap upright.
GLOSTER — Vai-te embora e deixa-me morrer.
EDGAR — Se algo mais fosses do que ar, teia de aranha,
GLOUCESTER — But have I fall’n, or no?
leve pluma, caindo assim de tantas braças do alto, partido
já estarias como um ovo. Mas respiras, possuis pesado
Vamos, fala!
GLOSTER — Mas eu caí ou não?
Não consigo olhar assim por mais tempo: tenho medo de
ter vertigens, e temo perder o equilíbrio e cair de cabeça
EDGAR — Sim, lá do pico desta penha calcária. Olha
para baixo.
para o alto; ver e ouvir não se pode a cotovia de garganta
of the extreme verge: for all beneath the moon would I not
120
da vida a rara joia, quando a própria vida se presta ao
estridente. Olha para o alto!
GLOSTER — Coloca-me no ponto em que te encontras.
(SHAKESPEARE, 1955, 933-34).
121
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
��������������������������������������������������������������������������������������������������
Edgar inventa o local da perdição, criação poética, cênica, fantástica, para que não exista a perdição. Gloucester, cego, não vê por onde anda e acredita nas palavras que ouve. Nós, receptores,
apesar de sabermos que se trata de uma fantasia, construímos mentalmente, magicamente, as
imagens suscitadas pelas palavras.
A loucura é sabedoria e criação. Este é o REAL. Fruto de um evento dissociativo, a loucura
desvela o quanto a cobiça, a ambição, os esforços, a luta pelo poder – aparentemente “normais”,
são inúteis, porque ilusórios. Verdade e honestidade, também elas são ilusões, e a reestruturação
da sociedade só será possível a partir de uma transformação, de uma purificação, de uma ascese
que renove os quadros e elimine das bordas do poder aqueles cuja ação é nefasta. Nesta peça, é
preciso que a loucura corresponda a uma trajetória de ascese e que a vítima sacrificial não seja
poupada, a fim de que se instaure um novo tempo. Este novo tempo indiciado não depende de
catarse: é expresso no texto. É projeção para o futuro. Entre magia, poesia, ironia, sacrifício, paixão
e ascese, a mimese reúne o alto e o baixo e vai além, de modo que o receptor não pode viver
a catarse. A relação com o público dá-se na surpresa, em certo temor diante do sagrado que
humaniza o rei e na lamentação diante da imperfeição humana. A conclusão da peça sublinha expressamente as novas perspectivas:
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília:
Edunb: 1999.
COSTA GADELHA, Larissa Maria Avelar e LUNA Sandra. Às avessas: a loucura racional de Shakespeare e Erasmo de
Rotterdam. Anais XI Encontro de Iniciação à Docência. João Pessoa: UFPB-PRG 4CCHLADELEMMT02, s/d.
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura europeia e Idade Média latina (Europäische Literatur und lateinishes Mittelalter).
São Paulo: EDUSP e HUCITEC, 1994.
Eclesiastes. Bíblia Sagrada – Edição Pastoral IntraText Èulogos. São Paulo: Paulus, 2002.
Disponível em: http://www.paulus.com.br/BP/_PKW.HT. Acesso em: fevereiro de 2010.
GIRARD, René. La violence et le sacré. Paris: Éditions Bernard Grasset, 1972, cap. VI, «Du désir mimétique au double
monstrueux».
ALBANY: The weight of this sad time we must obey; / Speak what we feel, not what we ought to say./The
oldest hath borne most: we that are young / Shall never see so much, nor live so long. (King Lear, Ato V, cena
GIRARD, René. Mensonge romantique et vérité romanesque. Paris: Éditions Bernard Grasset, 1961.
III. SHAKESPEARE, 1955, 942).
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio do fim – diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo
�����������������������������������������������������������������������������������������
Os novos limites precisam ser obedecidos, correspondem ao REAL, mas um real feito de emoção e sem conveniências, diferente, apesar de tudo, daquele dos mais velhos, que viveram mais
tempo.
Antonello.Tradução de Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
GUINSBURG, Jacó e FERNANDES, Silvia (orgs.). O Pós-dramático: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva,
2009.
11
As palavras dos sábios são como ferrões, e as sentenças coletadas são como estacas fincadas. Umas e
outras provêm do mesmo pastor. 12 Além disso, meu filho, preste atenção: escrever livros é um trabalho sem
HOBBES, Thomas. Leviathan. Chapter xx: “Of dominion paternal and despotical”.
fim, e muito estudo. 13 Fim do discurso. De tudo o que se ouviu o resumo é este: Tema a Deus e observe
Disponível em: http://www.infidels.org/library/historical/thomas_hobbes/leviathan.html. Acessado em: fevereiro de 2010.
seus mandamentos, porque esse é o dever de todo homem. 14 Deus julgará toda obra, até mesmo a que
estiver escondida, seja boa, seja má. (Eclesiastes 12, 11-14, 2002)
HOBBES Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Morais
e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2.ª Ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda (“Estudos Gerais”), 1995.
Retomo Lehmann, para quem a totalidade, a ilusão e a reprodução do mundo constituem o
modelo do teatro dramático. Shakespeare, em Rei Lear, ao por em discussão a ilusão, a concepção
do mundo e os seus “valores” como ilusão também, revê a imitação, propõe o fim de um tempo e
o começo de uma nova era, formada por seres de outro calibre. O que parece ser dramático, ou
trágico, corresponde à trajetória iniciática de Lear. Entendo que, de algum modo, certo tratamento
dado à trama e às personagens, à poesia e à palavra, suspendem o triângulo drama/ação/imitação
no Rei Lear, revelando que o novíssimo tem ecos e radículas no passado, até num passado de 400
anos atrás.
Disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/leviata_18cap.html. Acessado em: fevereiro de 2010.
LEHMANN, Hans-Thies: Postdramatisches theater. Frankfurt am Main: Verlag der Autoren, 1999.
MILWARD Peter S. J. Biblical influences in Shakespeare’s Great Tragedies. Bloomington, IN: Indiana University Press,
1987.
MONMOUTH, Geoffrey of. The history of the kings of Britain. Edited and translated by Michael Faletra. Broadview
Books: Peterborough, Ontario, 2008.
ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura (Encomium Moriae). Tradução base Paulo M. Oliveira. Versão para eBook.
eBooksBrasil.com. Fonte Digital. Digitalização de edição em papel. Atena Editora, s.d. © 2002 — Desiderius Erasmo.
Disponível em: http://bandapoetica.files.wordpress.com/2008/02/erasmo_de_rotterdam_elogio_da_loucura.pdf. Acessado
em: fevereiro de 2010.
SHAKESPEARE, William. The Complete Works of William Shakespeare. With thirty-two full page plates from modern
122
12. ALBÂNIA — Do tempo triste somos os arrimos; digamos tão-somente o que sentimos. Muito o velho sofreu; mais
stage productions. London, New York, Toronto: Geoffrey Cumberlege – Oxford University Press, 1955.
desgraçada nossa velhice não será em nada
Disponível em: http://www.cems.ox.ac.uk/holinshed/handbook.shtml. Acessado em: fevereiro 2010.
123
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
SHAKESPEARE, William. Rei Lear.
Diponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/lear.html#lr46. Acessado em: fevereiro 2010.
SHAKESPEARE, William. King Lear.
Disponível em: http://www.online-literature.com/shakespeare/kinglear/. Acessado em: fevereiro 2010.
124
ARTE E TECNOLOGIA
Interfaces Computacionais:
Perspectivas Poéticas
CLEOMAR ROCHA *
Resumo
O texto discute as poéticas das interfaces, a partir da caracterização das interfaces computacionais, e analisa alguns trabalhos em arte tecnológica, buscando esclarecer de que modo a poética é instaurada.
Palavras-chave: Poética.Interfaces computacionais. Arte tecnológica.
Abstract
The paper discusses the poetics of interfaces, the characterization of computer interfaces, and it examines some works of technological art and how the poetic is established.
Keywords: Poetic. Computer interface. Technological art.
Interfaces Computacionais
A despeito dos vários usos do termo interface, que por vezes significa articulação, intersecção, desdobramento, suporte, fronteira, abrangência, e tantos outros, admite-se que o vocábulo, muito em
voga e quase um coringa, tome assento aqui como interface computacional, cujo sentido mais aceito
é de ser a parte de um sistema computacional e seu software que as pessoas podem ver, ouvir, tocar
e com que podem conversar, direta ou indiretamente, sendo composto por dois componentes: entrada e saída de dados (GALITZ, 2002). Mas, não raro, como apontado, deparamo-nos com sentidos
diversos para o termo, quase sempre com base na relação etimológica: inter (entre) + face (superfície), aquilo que se encontra entre duas superfícies. Noutras tantas acepções, interface é um lugar ou
ambiente onde elementos se encontram (LAUREL, 1990; SANTAELLA, 2003; ROCHA, 2003), em
clara referência ao processo interativo, admitindo-se que usuário e sistema agem na interface.
Contudo, as interfaces computacionais não se configuram como lugar, embora a metáfora de
espaço-informação possa conduzir a este pensamento. Aliás, metáfora talvez seja o principal recurso de linguagem nos ambientes computacionais, sendo acompanhado de perto pela metonímia
(ROCHA, 2009). A questão que emerge, neste contexto, é de como somos levados a crer na metáfora não a compreendendo enquanto tal. A utilização de verbos como navegar, imergir e tantos
* Possui graduação em Letras pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iporá (1991), mestrado em Artes pela
Universidade de Brasília (1997), doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da
Bahia (2004) e pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Goiás e pós-doutorando em Estudos Culturais pelo Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ. Tem experiência nas áreas de Artes, Comunicação e Design, atuando principalmente nos seguintes
temas: design de interfaces, comunicação mediada por computador, educação a distância e arte tecnológica.
129
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
outros, é reflexo da metáfora da cibernética – de origem grega, que significa timoneiro, governador (EPSTEIN, 1986). “Mar de informação” atende ao mesmo princípio.
Ocorre, entretanto, que o exercício poético é, desde Aristóteles (1999), o conhecimento que
se tem para construir efeitos, ou, melhor dito, o reconhecimento das estratégias de produção do
encantamento. É a técnica utilizada para a criação do círculo mágico, ou da magia das artes, que
causam, alcançam o encantamento. Se assim o é, a metáfora é recurso da poética, por esta instaurar aquela, reconhecendo seus efeitos. Criar a magia de uma imagem estereoscópica não significa
crer em sua profundidade, como somos conduzidos a crer pela percepção visual. Nisto consiste a
magia: fazer crer no que de fato não é. São os recursos técnicos e de linguagem que concretizam
a ilusão, conduzindo os leitores, agentes fruidores, interatores, usuários, enfim, a uma condição de
entrega, de aceitação.
Isto faz com que uma tela renascentista pareça possuir a profundidade que meus olhos são
levados a crer existir, mas minha mente sabe inexistente. Isto faz com que uma tela LCD, uma projeção ou uma TV me faça crer que sou eu ali, quando de fato tenho uma representação, um signo.
O que há neste espaço que continua sendo bidimensional, mesmo com recursos estereoscópicos,
são pontos de luz, emitida ou projetada, ainda que sua modificação no tempo seja conduzida por
minhas ações.
Então a interface computacional é algo que se posta à minha frente, ou a meus lados, invadindo
meu olho com sua luminosidade, prendendo minha atenção com suas respostas automáticas, por
vezes estando ao meu redor, na forma de sensores, por vezes me olhando, por meio de câmeras.
A interface computacional se converte em várias formas e meios, pois é mecanismo de entrada
e saída de dados dos sistemas computacionais. E se é nestes mecanismos que percebo o sistema,
sua existência, e mesmo minha representação, então me deixo levar pelo pensamento de que é
na interface que eu me encontro com o sistema. Cria-se a ilusão.
Interface de usuário, ponto de contato para o intercâmbio entre humanos e máquinas, pode assumir muitas
formas. É na interface, a ser usada pelo observador ativo de acordo com as regras do mundo particular de
ilusão, que as estruturas de simulação projetadas para comunicação encontram-se com os sentidos humanos.
(GRAU, 2007, 220)
Talvez pudéssemos dizer que é na linha telefônica que eu encontro o amigo com quem eu falo,
ao longe. Mas não, apesar de objetivamente esta aproximação ser possível, no campo da experiência não o é. Definitivamente, a experiência com um simples telefone não se compara com o
uso do Skype. Ao menos não no que se refere a metáforas das interfaces. Objetivamente, porém,
a correspondência faz sentido. Igualmente faria sentido identificar a bandeira da Presidência da
República hasteada no Planalto, indicando a presença do Presidente, e um ponto de luz verde no
Gtalk, indicando que estou disponível para bate-papo. Trata-se de experiências muito diferentes,
embora o recurso simbólico aja de modo similar em ambos os exemplos. A poética cria as experiências, distinguindo-as, ainda que objetivamente os recursos sejam similares.
Voltemos às interfaces computacionais, com vistas a caracterizá-las, uma vez que elas parecem
de difícil delimitação, como se observou. É possível caracterizar as interfaces a partir de observações específicas, como apontado:
Caracterização das interfaces
Vínculo a sistemas computacionais
Pertencimento a um sistema computacional
Tratamento lógico de informação
130
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
As interfaces computacionais são parte de um sistema computacional, de modo a cumprir com
a função básica de entrada e saída de dados, no fluxo usuário-sistema, o que atende aos dois
primeiros itens de sua caracterização. Aqui não se confunde interface com suporte, como, por
exemplo, quando se usa cartões com inscrições para visualização de elementos em Realidade
Aumentada. Se assim o fosse, cores também passariam a ser interfaces, com o uso do Processing,
e mesmo a mão que clica o mouse seria interface. Contudo, ou se admite a visão de Weibel, que
afirma que “[n]o interactuamos con el mundo, sólo con la interfaz del mundo” (1996, 25), em que
tudo é interface, ou se aceita que interfaces são elementos específicos, como apontado.
������������������������������������������������������������������������������������������������
Acerca do terceiro ponto de caracterização, o tratamento lógico da informação, a defesa argumenta que a interface não apenas conduz uma informação, comportando-se como meio ou suporte, em
um ato físico, mas trata a informação de um modelo semiótico a outro, em uma espécie de tradução:
...a palavra [interface] se refere a softwares que dão forma à interação entre usuário e computador. A interface atua como uma espécie de tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra.
(JOHNSON, 2001, 17)
Neste contexto a interface diz do compartilhamento de informações entre usuário e sistema,
sem que, no entanto, as partes usem o mesmo código.
Interfaz – Conexión entre dos dispositivos de hardware, entre dos aplicationes o entre un usuario y una
aplicación que falicita el intercambio de dados, mediante la adoción de reglas comnes, físicas o lógicas. Este
dispositivo permite paliar los problemas de incompatibilidad entre do sistemas, actuando como un conversor
que permite la conexión. (GIANNETTI, 2002, 195)
É justamente na tradução do código de máquina, digital, que a ilusão se constrói na e pela
interface, a partir de vários procedimentos, com destaque para a metáfora. As línguas naturais, a
metáfora visual, os sons, tudo contribui para produção do encantamento, principalmente com a vivacidade tida na cor-luz e no feedback instantâneo do sistema, via interatividade, que forja a crença
na manipulação direta, no lidar com os próprios signos e não com as interfaces. É neste universo
mágico que se estabelecem as poéticas das interfaces, que, per se, já deveriam ser consideradas
como tal, mas alcançam aprimoramento no campo artístico, resultando em trabalhos sedutores,
instigantes, incômodos, estranhos, belos, em toda a gama de adjetivos que é própria da arte, como
campo mágico de construção da experiência sensível.
De Encantamentos
Em um exercício taxionômico, arbitrário por natureza, e não uma verdade incontestável,é possível
classificar as interfaces em três categorias, a saber:
Categorias Modo de acionamento
Físicas
Acionamento físico-motor
Perceptivas Acionamento via exteroceptores
– sensações/percepções
Exemplo
Mouse, teclado, joysticks, volantes
Interface gráfica - GUI
Interface sonora – entrada e saída
Marcação – touchscreen
Cognitivas
Telas de toques múltiplos, câmeras, sensores de movimento, de gestos, de posição do equipamento e/ou do usuário…
Acionamento por
reconhecimento
131
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Considerada a particularidade de a interface ter por função a entrada e saída de dados do sistema
ao qual pertence, importa observar que o sistema lança mão de várias interfaces simultaneamente, como do teclado para entrada e da tela (GUI – Graphic User Interface) para saída, ou mesmo
do mouse ou câmera para entrada e dos sons e imagens projetadas para saída. Isto quer dizer que
os sistemas mais complexos adotam as três categorias de interface como padrão. É justamente
neste conjunto que se têm as mais exitosas experiências na arte tecnológica, certamente em função da ilusão tida, uma verdadeira experiência. Alcança-se, com todas as categorias, o pretendido
por Normam:
The real problem with the interface is that it is an interface. Interfaces get in the way. I don’t want to focus my energies on an interface. I want to focus on the job. . . . An interface is an obstacle: it stands between a person and the
system being used. . . . If I were to have my way, we would not see computer interfaces. In fact, we would not see
computers: both the interface and the computer would be invisible, subservient to the task the person was attempting to accomplish. (NORMAM, 1999, 219)
��������������������������������������������������������������������������������������������
As poéticas das interfaces ultrapassam justamente esta barreira, fazendo crer que não há interfaces ou computadores, somente nós e as informações. É o que ocorre, por exemplo, em Text
Rain, de Camille Utterback & Romy Achituv: a experiência sensível diz que nosso corpo se converte em obstáculo, de fato, para as letras que caem na forma chuva de palavras. E, aos barrá-las,
formamos palavras.
Figura 2:
Robotic Sculptires, de Ken Ribaldo
O encantamento se faz notar também nas imagens “manipuláveis”, com a rápida resposta do
sistema, que recebe a informação de uma interface, processa esta informação e a devolve na forma de mudança da imagem ou de elementos desta, como ocorre em Op-Era, de Rejane Cantoni
e Daniela Kutschat, uma fascinante experiência de manipulação da imagem-luz, com ilusão de
estereoscopia, ou imersão perceptiva na imagem.
Figura 1:
Text Rain, de Camille Utterback & Romy Achituv
Ou Robotic Sculptires, de Ken Ribaldo, que, poeticamente, usa estruturas de bambu (que parecem mais próximas, orgânicas, naturais), para compor seus braços mecânicos articulados, em cujas
extremidades sustenta câmeras e sensores, fazendo os braços se moverem quando estamos próximos, buscando nossos corpos e projetando as imagens nas paredes laterais. O estranhamento é
claro, e o encantamento, idem, visto que não estamos diante de padrões numéricos ou de equipamentos cheios de fios e placas. São braços que se movem e tentam nos tocar. Lindos braços de
bambu que buscam o contato e captam nossa imagem.
132
Figura 3:
Op-Era, de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat
133
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Os jogos poéticos de criação de encantamento seriam, por assim dizer, um percurso na história
das linguagens (verbais, visuais, sonoras) como um todo, não apenas das Artes, embora ali eles
floresçam mais, certamente com a contribuição de um preparo receptivo. E eis que este preparo
também ocorre nas interfaces computacionais, que podem ser tidas como um novo aspecto das
linguagens – alguns pesquisadores identificam tratar-se de uma nova linguagem, no que tenho minhas reservas – em função de não serem regidas pelo signo da representação, mas da simulação,
embora em vários casos haja, de fato, a primeira. Não é de se estranhar que as poéticas contemporâneas encontrem nas interfaces um quinhão para seu labor, o que por um lado fascina com
maior facilidade o usuário/interator; de outro, porém, exige experiências sensíveis mais interessantes e fundantes do que as interfaces de dispositivos como o iPad podem oferecer.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
analisou nossos passos para criar uma correspondência entre o ritmo e nossas músicas mais ouvidas,
alcançando como resultado talvez a música que pensávamos ou outra próxima, parecerá mágica.
Poderemos conversar com os sistemas dotados dos recursos de ASR (Automatic speech recognition – reconhecimento automático da fala) e de NLU (Natural language understanding – compreensão da linguagem natural) (WHITE, 1995) e, mesmo sabendo que são máquinas, preferiremos
tratá-las como iguais ou melhores que nós, visto que não apenas a aprovamos no teste de Turing,
mas a consideramos uma poderosa ilusão, na qual repousamos nosso mais profundo desejo de
sermos o centro do universo, do universo pessoal do qual somos, efetiva e fenomenologicamente,
o centro.
Perspectivas
As recentes pesquisas para dispositivos computacionais, inclusive nas Artes, observam alguns interessantes aspectos a serem implementados nas interfaces, notadamente na categoria das interfaces cognitivas, ainda que não se restrinjam a estas. Se a condução evidente é para a manipulação
direta, conceito usado por Engelbart desde os anos 1960, é certo que a liberação do corpo humano de elementos físicos para a alimentação do sistema é caminho seguro. Nada mais de teclado ou mouse: as telas, agora sensíveis a múltiplos toques, podem até prescindir do toque. Câmeras
e sensores assegurarão que o sistema receba a ordem e processe as informações, em respostas
cada vez mais automáticas. Passaremos do toque ao gesto, tendo como resultado experiências
interativas mais sedutoras e simples.
De outro lado, deixaremos de ver e acionar botões para sermos vistos por estes sensores, por
estas câmeras, que reconhecerão variações e quase vontades, o que parecerá mágica. O sistema
nos oferecerá água quando observar que temos sede, ao reconhecer aspectos específicos, como
a imagem de nossos lábios secos, a mudança sutil de nosso timbre de voz ou o tilintar da língua
em uma boca seca. Mas parecerá mágica.
Figura 4:
Telas com manipulação a partir de tecnologia multi-touch
Fonte: http://www.smashingmagazine.com/2007/11/26/monday-inspiration-user-experience-of-the-future/
134
Poderemos manipular imagens à vontade, via gestos. Ao ensaiar passos de dança, o sistema poderá
reconhecer nosso desejo de dançar e nos oferecer a música certa. E, mesmo sabendo que o sistema
135
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
Referências
ARISTÓTELES. Poética, organon, política, constituição de Atenas. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores)
EPSTEIN, Isaac. Cibernética. São Paulo: Ática, 1986. (Série Princípios)
GALITZ, Wilbert O. The essential guide to user interface design. New York: Wisley, 2002.
GRAU, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: UNESP, SENAC, 2007.
GIANNETTI, Claudia. Estética digital – sintopía del arte, la ciencia y la tecnología. Barcelona: Associació de Cultura Contemporània L´Angelot, 2002.
JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Trad.
Maria Luísa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
LAUREL, Brenda (ed.) The art of human-computer interface design. Massachusetts: Addison-Wesley, 1990.
NORMAN, Donald A. The design of everyday things. London: The MIT Press, 1999. (original: NORMAN, Donald A. The
Psychology of Everyday Things. New York: Basic Books, 1988.)
ROCHA, Cleomar. Estéticas tecnológicas e Interfaces Computacionais. In VENTURELLI, Suzete (org.) Arte e tecnologia: para
compreender o momento atual e pensar o contexto futuro da arte. Brasília: PPG em Arte, 2008.
______. Interfaces computacionais. In Anais do 17º Encontro Nacional da ANPAP – Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Florianópolis: UDESC, 2008. (1651-1662)
______. O imanente e o inacabado: entre as dimensões sensível e pragmática da experiência estética em arte tecnológica. In
SANTAELLA, Lucia; ARANTES, Priscila (orgs.) Estéticas tecnológicas – novos modos de sentir. São Paulo: EDUC, 2008.
(127-132)
______. Pontes, janelas e peles: compreensão e experiência com interfaces computacionais. In Anais do 6º SOPCOM / 4º
IBERICO. Portugal: Universidade Lusófona, 2009.
______. Pontes, janelas e peles: contexto e perspectivas taxionômicas das interfaces computacionais. Relatório de estágio pósdoutoral realizado no PEPG em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, PUC-SP. São Paulo, 2009.
ROCHA, Heloisa Vieira da; BARANAUSKAS, Maria Cecília C. Design e avaliação de interfaces humano-computador.
Campinas, SP: NIED/UNICAMP, 2003.
SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
WEIBEL, Peter. The World as Interface: toward the construction of context-controlled event-worlds. In DRUCKREY, Timothy (org.)
Electronic culture: technology and visual representation. New York: Aperture Foundation, 1996.
WHITE, George M. Natural Language Understanding and Speech Recognition. In BAECKER, Ronald et all. Readings in humancomputer interaction: toward the year 2000. 2th edition. San Francisco, CA: Morgan Kaufmann, 1995. (554-563)
136
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
Senhas para a Apropriação Dissidente da Tecnologia
pela Arte_Hackeamento
DANIEL HORA *
Resumo
As articulações entre a arte e as práticas e valores da cultura hacker estabelecem um fenômeno histórico para a reflexão
crítica sobre o uso das tecnologias de comunicação contemporâneas. Adotado como conceito de produção da diferença,
o hackeamento pode ser identificado em operações de trabalho colaborativo, de apropriação e de intervenção nas mídias
promovidas por artistas e coletivos interessados nas oportunidades de resistência e construção de subjetividades dissidentes que escapam aos meios tecnológicos de poder.
Palavras-chave: Estética. Arte e tecnologia. Cultura hacker.
Abstract
The connections between art and the practices and values of hacker culture provide a historical phenomenon for critical reflection
on the use of contemporary communication technologies. Adopted as a concept of difference production, hacking can be observed
in the operations of collaborative work, appropriation and intervention in the media, promoted by artists and collectives interested
in the chances of resilience and construction of dissenting subjectivities that escape technological instruments of power.
Keywords: Aesthetic. Art and technology. Hacker culture.
Sistemas Instáveis
A produção artística constitui um território de abordagens complexas, com capacidade para incitar
e sustentar a apropriação social (e a) crítica dos saberes e das práticas da tecnologia na contemporaneidade. Com esta afirmação, não almejamos um fechar de olhos condescendente para a eventual captura da arte em benefício de interesses político-econômicos codificados e redistribuídos pelo
maquinário do mundo. Em lugar disso, optamos pela observação das correntes de resistência contra
a dominação e por uma investigação sobre os fluxos de emergência de antídotos, paradoxalmente
inerentes, depuradores e impulsionadores do próprio processo de desenvolvimento tecnocientífico.
A arte que se manifesta assim, no cenário da cultura digital, deve ser pensada em suas afinidades
e articulações com as táticas de hackeamento1, entendidas aqui como formas de produção de dife* Pesquisador na área de artes, tecnologia e comunicação. Ganhador do prêmio Rumos Itaú Cultural Arte Cibernética 2009.
Bacharel em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo, especialista em Crítica de Arte pela Universidade Complutense de Madrid e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.
[email protected]
1. O substantivo hackeamento é um neologismo que adotamos para traduzir para o português o duplo sentido da palavra
138
hacking, que no inglês indica tanto a ação de um hacker quanto o seu efeito.
139
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
renças na tecnologia e pela tecnologia (JORDAN, 2008; WARK, 2004). Essa produção artística e
hacker 2 promove subversão, interferência e expansão da operacionalidade dos dispositivos abordados por arranjos de ativismo e colaboracionismo. Esses arranjos são agenciamentos de defesa
da liberdade e do compartilhamento da informação, da descentralização e da descrença em autoridades unidimensionais, das possibilidades de criação e de benefício da vida pela tecnologia e do
próprio princípio de autopropagação dessa mesma ética (RAYMOND, 2003).
Segundo a perspectiva mais operacional, estamos tratando da artemídia, aquela que se caracteriza
pelo desvio do projeto industrial por meio da apropriação e da intervenção nos canais tecnológicos
de difusão e de entretenimento (MACHADO, 2007). Por outro lado, se adotamos o ponto de vista
comunitário de produção da diferença, assumimos a via das poéticas relacionais, que se especificam
pela capacidade de estabelecer formas em decorrência de relações intersubjetivas, resultantes da
associação, por retomada e descaminho ou por embate aleatório, de objetos, imagens, ideias, processos e situações (BOURRIAUD, 2002). A arte_hackeamento3 afeta, portanto, tanto as técnicas
quanto as lógicas, de modo recíproco.
Conforme indica Boaventura de Sousa Santos (2000), todo conhecimento é uma prática social
que dá sentido e ajuda a transformar outras práticas. Se as sociedades complexas são configurações de conhecimentos e se a verdade de cada saber reside em sua adequação à prática que visa
constituir, a crítica da teoria implica a crítica da prática social a que ela se adapta. Nessa avaliação,
o dissenso se expressa como reverberação das senhas tomadas e rompidas pela produção da
diferença no hackeamento.
Para enfrentar a questão de uma arte que transita por ilicitudes conveniadas de restrição do
fazer e do pensamento, recorremos à hipótese de legitimação pela paralogia de Lyotard (2002,
111-120). Assim como nesse modelo de valoração, a arte_hackeamento é um “lance de importância” desconhecida, “feito na pragmática dos saberes”, porém distinto da inovação, a serviço do
aprimoramento da eficiência do sistema vigente. Vale aqui o dissenso, a determinação de regras
particulares e a negação dos modelos de sistemas estáveis da ciência, ilusoriamente imune a influências da práxis.
A arte_hackeamento é aquela que possibilita a recomposição de circuitos e de rotinas de comunicação produtiva e reflexiva. É uma arte tecnológica, que se faz pela técnica, no sentido da
habilidade (τέχνη – tékhne), mas também se conjuga com a lógica da ciência (επιστήμη – episteme).
Por essa via, converte-se em instrumento para reação contra a profusão de estímulos sensoriais
difundidos e acumulados nas diversas camadas de sentido do mundo codificado. Afirma-se, assim,
como ruptura dos códigos da caixa-preta dos aparelhos que transformam seus usuários em meros operadores de programas predeterminados (FLUSSER, 2002, 2007).
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
grupos, mas sim contínuas combinações entre seus interesses e meios de realização, bem como
agenciamentos com outras possibilidades para além de seus limites.
���������������������������������������������������������������������������������������������
Em primeiro lugar, estabelecemos a ligação das poéticas colaborativas, relacionais, com o paradigma do copyleft, forma de licenciamento que permite ao usuário a modificação e cópia do
software ou outro conteúdo, desde que o resultado seja compartilhado com outros interessados.
Em projetos como Free Beer (figura 1), de 2005, e Guaraná Power4, de 2003, o coletivo Superflex
subverte a tecnologia econômica da indústria de bebidas. No primeiro caso, coloca em circulação
uma cerveja de código aberto, passível de adaptações, aprimoramentos, e partilha de novas receitas. Já com Guaraná Power, apropria-se da linguagem visual da marca Antarctica, que é adaptada
para utilização em um produto alternativo, feito em parceria com uma cooperativa de guaranaicultores do Amazonas.
Figura 1:
Aplicativos da Dissidência na Arte_Hackeamento
Rótulo com a receita de uma das versões da Free Beer.
Fonte: http://freebeer.org/blog/label/
Abertura à participação e compartilhamento, táticas do “faça-você-mesmo” e interferências nas
mídias são alguns dos traços que podemos considerar recorrentes na arte_hackeamento. Estes
traços estabelecem dimensões híbridas que não promovem especificidades de correntes e sub2. Admitimos que o hacker é aquele que se deleita com a exploração e expansão comunitária das capacidades da tecnologia (RAYMOND, 2003), sobretudo no que se refere aos programas e à montagem de componentes da informática. Essa
definição é adotada pelos próprios hackers, que demarcam uma ética própria para se diferenciar daqueles que utilizam a
tecnologia para invadir sistemas, programar vírus e promover roubos e destruição de dados – os chamados crackers.
Os trabalhos do Superflex orientam-se, notadamente, pelos conceitos derivados do software livre
e do código aberto (FLOSS5), segundo os quais o que interessa é a disponibilidade dos dados de
um programa para a alteração e aprimoramento de um produto dentro de uma comunidade de
interessados. Representam, ainda, interferências em circuitos de promoção, um deles baseado na exclusividade do aparato de fabricação e da própria receita; o outro, acomodado sobre o apelo visual
dos elementos de publicidade. Por fim, são exemplos da abordagem imediata e direta – do arregaçar de mangas para a ação autônoma em searas inicialmente consideradas alheias ao mero usuário.
3. Para a grafia do termo arte_hackeamento, em lugar do hífen, sinal com valor de união, preferimos o uso do traço inferior,
140
caractere largamente utilizado na informática para substituição do espaço em branco em aplicações e sistemas que não o
4. Os projetos podem ser conhecidos nos endereços da internet www.freebeer.org e www.guaranapower.org.
suportam – a exemplo dos endereços de internet ou de correios eletrônicos.
5. Sigla para Free/Libre Open Source Software.
141
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
�������������������������������������������������������������������������������������������
Passemos a outros exemplos, mais voltados à intervenção nos dispositivos e redes de comunicação. Com o projeto Radio Bikes, de 2000, o coletivo Critical Art Ensemble coloca em circulação
bicicletas transformadas em rádios nômades, que emitem notícias fascistas alteradas, em uma iniciativa de mídia tática. O coletivo etoy6, por sua vez, realiza projetos como o “sequestro” de mecanismos de busca – Digital Hijack, de 1996 – e a batalha eletrônica pelo direito de uso do domínio
etoy.com na internet, em resposta ao processo judicial aberto contra o grupo pela loja virtual de
brinquedos norte-americana eToys – TOYWAR (figura 2), de 1999 a 2000.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
que o levam à página do projeto Digital Hijack, repleta de mensagens sobre a subversão dos fluxos
de informação na rede. No segundo caso, encontramos a realização de uma campanha eletrônica,
que envolve vários ativistas, hackers, jornalistas, DJs, artistas e intelectuais em ações de difamação e
ataques remotos para a derrubada do site comercial da eToys. Após a retirada da ação da justiça,
o coletivo etoy adota a perda de valor acionário da empresa reclamante durante o período de
disputa como indicativo para considerar a mobilização promovida como a performance mais cara
da História da Arte.
Por fim, o “faça-você-mesmo” (do it yourself), conceito identificado com a cultura punk, está expresso em modalidades de bricolagem da arte_hackeamento, que ecoam a atitude dos clubes de
hackers dos anos 70, que se formavam com o propósito de desenvolver computadores caseiros
– o chamado hackeamento de hardware (LEVY, S., 2001). Entre os trabalhos de arte relacionados
ao “faça-você-mesmo”, pensamos na instalação Spio (figuras 3 e 4), de 2004 a 2005, de Lucas
Bambozzi. O trabalho é constituído por um ambiente onde um aspirador de pó robótico rodeia o
público, captando sua imagem pelas câmeras de vigilância instaladas sobre ele, para projetá-las em
uma das paredes. Deste modo, um eletrodoméstico hackeado com sistema de vídeo passa a desempenhar a função de espião das reações daqueles que visitam e exploram o espaço montado.
Figura 1:
Página do site do coletivo etoy sobre o projeto TOYWAR.
Fonte: http://history.etoy.com/
Nesses exemplos, as tecnologias de comunicação são hackeadas, ou seja, passam por um processo de produção de diferenças, com a finalidade da paródia e do protesto. As bicicletas do Critical Art Ensemble são emissoras ambulantes que difundem a deturpação das mensagens de uma
filosofia política autoritária. Sugerem a contaminação e o desvio cotidianos, das ruas, como modo
de resistência.
O sequestro digital e a TOYWAR do etoy ressaltam o caráter político da internet. No primeiro
caso, a intervenção em mecanismos de busca transforma o internauta em “refém” de resultados
Figura 3 e 4:
Vista do ambiente e do robô da instalação Spio.
Fonte: http://bambozzi.wordpress.com/
6. A documentação sobre os projetos está disponível nos sites dos coletivos, nos endereços www.critical-art.net e www.
142
etoy.com, respectivamente.
143
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
(Re)programabilidade como Fato Artístico e Atitude Política
144
A hibridização das artes e das mídias ocorrida desde o advento da fotografia (MACHADO,
2007; SANTAELLA, 2005) implica que a reflexão artística esteja atenta ao papel legitimador do
poder cumprido pela tecnologia. Para Santaella, a questão é saber quais são as reações possíveis
ante a hegemonia da mídia e que papel a arte pode desempenhar em um período de contiguidade e sobreposição de diferentes culturas ligadas aos meios da comunicação oral, escrita,
impressa, de massa, midiática e digital.
Se a fotografia é o ponto de partida para a hibridização mencionada, cabe então rever o
pensamento de Walter Benjamin (1994) sobre a reprodutibilidade técnica da arte e seus efeitos na política. Nesse sentido, devemos considerar que contexto atual das mídias digitais nos
impõe a ampliação dos termos usados por Benjamin com a proposição da ideia de (re)programabilidade tecnológica.
Não estamos mais lidando com o fenômeno artístico intercalado por técnicas fotográficas (de
registro da luz) ou por técnicas precedentes e subsequentes. Em lugar disso, tratamos agora da
incorporação de conhecimentos e de programas tecnológicos na máquina de fotografia e nas
mídias híbridas sucessoras, que absorvem procedimentos dos meios de comunicação anteriores.
Devemos considerar – ainda – que a digitalização institui uma condição em que as imagens
são sistemas dinâmicos mutáveis, passíveis da interação coletiva por meio dos algoritmos (SANTAELLA, 2003). Em vez da dispersão do belo pela distribuição de réplicas autênticas extraídas do
negativo, conforme a reprodutibilidade analisada por Benjamin, alcançamos a condição em que
códigos de origem são destinados à recombinação, pós-produção ou reprogramação.
��������������������������������������������������������������������������������������������
As consequências dessa transição parecem acentuar os impactos prévios. Em Benjamin, a técnica surgia para emancipar a arte do ritual e do mito. Deste modo, ela passaria a exercer um papel
cada vez mais importante, exercitando-nos em novas percepções, mas abrindo caminho para a
estetização da política pelo fascismo. Com a reprogramabilidade tecnológica, o efeito colateral da
captura pelos mecanismos de dominação segue presente, porque embora haja uma difusão mais
ampla dos dispositivos de produção e difusão, o que torna mais nivelado e complexo o jogo entre
subjugadores e rebeldes, certos códigos de acesso, de acionamento e de transmissão são ainda
privilégio dos conglomerados de poder.
���������������������������������������������������������������������������������������������
A politização da estética indicada por Benjamin como antídoto à estetização fascista da política deve então ser trabalhada de uma nova maneira. Como ponto de partida, talvez possamos
recorrer à provocação de Lev Manovich (2005) que, ao identificar a materialização e superação
dos projetos da arte moderna pela tecnologia telemática, arrisca-se a identificar o software como
a atual vanguarda, as novas mídias como a própria arte e os cientistas de computadores como os
artistas de nossa época.
Para reverter o projeto de realização de rotinas predestinadas ao aprimoramento tecnológico
por meio da retroalimentação humana, Flusser, por sua vez, sugere o contrabando de elementos
não previstos no programa dos dispositivos. A arte seria, então, um caminho para experimentar,
vencer, enganar, desviar, jogar contra o aparelho. Uma visão crítica atenta à ambiguidade velada das
intenções codificadoras “do fotógrafo” (e, por extensão, de todo aquele que produz arte) e da
máquina (FLUSSER, 2002, p. 42-43 e 51).
A proposta de Flusser é semelhante à de Stiegler, no ponto em que este ressalta a importância
da singularidade incalculável e consistente da diferença vivenciada nas experiências artísticas. Ante
o ímpeto do capitalismo hiperindustrial de levar ao esgotamento do desejo pela oferta excessiva
de produtos para o consumismo gregário (a dessingularização e hipersincronização das condutas
pelo condicionamento estético), Stiegler defende a necessidade (il faut) do defeito (défaut), cuja
manifestação se daria no trabalho artístico de dilatação do sensível e de socialização expansiva da
diversidade diacrônica (STIEGLER, 2007, p. 21-22, 23-29 e 38).
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
A essa altura, retomamos o hackeamento como senha conceitual para a apropriação dissente da
tecnologia na arte. Pois, conforme os exemplos de artistas e coletivos citados acima nos apontam,
a aproximação entre a produção artística e ação hacker nos oferece, graças a essa abordagem, a
oportunidade de recordar que há um grau de vulnerabilidade da maioria ante ao uso da máquina,
mas que a ameaça de uma ditadura cibernética encontra resistência na capacidade de subversão
e ruptura (TAYLOR, 1999).
Na conjuntura política das senhas e códigos que resguardam o poder da indústria, o hackeamento se coloca como tática fluida de exploração e interferência nos fluxos de acomodação da
cultura movidos pelas forças socioeconômicas que se sobrepõem às demais (THOMAS, 2003).
Na conjugação da arte_hackeamento, abrem-se espaços de ocupação coletivista, desenvolvimento
de sociabilidade e reprogramação tanto dos meios e finalidades das tecnologias de comunicação,
quanto das próprias subjetividades construídas a partir dos agenciamentos que são impulsionados
pelas mídias.
145
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
Referências
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In ______. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
BOURRIAUD, Nicolas. Relational Aesthetics. Dijon: Les Presses du Réel, 2002.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa-Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Relume Dumará, 2002.
FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Organizador: Rafael Cardoso. São
Paulo: Cosacnaify, 2007.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970.
6. ed. São Paulo: Loyola, 2000.
JORDAN, Tim. Hacking: Digital Media and Technological Determinism. Cambridge, UK: Polity, 2008.
MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e ideia: dez definições. In: LEÃO, Lucia (org.). O chip e o caleidoscópio:
reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Senac-SP, 2005. p. 23-50
LEVY, Steven. Hackers: Heroes of Computer Revolution. New York: Penguin, 2001.
LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. São Paulo: Jorge Zahar, 2007.
NETARTCOMMONS. Open Source Art Hack. 2 May 2002. Available at: http://netartcommons.org/index.pl. Retrieved on:
6th April 2008.
RAYMOND, Eric S. Jargon File.Version 4.4.7. 29 Dec 2003. Available at: www.catb.org/~esr/jargon. Retrieved on: 6th April 2008.
SAMUEL, Alexandra Whitney. Hacktivism and the Future of Political Participation. Thesis, Harvard University, Cambridge,
Massachusetts, September 2004.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. Coordenação: Valdir José de
Castro. São Paulo: Paulus, 2003.
______. Por que as comunicações e as artes estão convergindo?. São Paulo: Paulus, 2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
STIEGLER, Bernard. Bernard Stiegler: reflexões (não) contemporâneas. Tradução e Organização Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.
TAYLOR, Paul A. Hackers: Crime in the Digital Sublime. London: Routledge, 1999.
THOMAS, Douglas. Hacker Culture. Minnesota [USA]: University of Minnesota, 2003.
146
Entre o Real e o Imaginário:
A Poética de uma Experiência Vivida
GABRIELLE PATRÍCIA AUGUSTA CORRÊA DE OLIVEIRA *
Resumo
O texto parte da observação de uma experiência concreta da realidade para confrontá-la com formulações conceituais de
autores provenientes de diferentes campos do conhecimento e com algumas linguagens artísticas já existentes, visando à
elaboração de uma proposta de experimentação artística cuja dramaticidade apoie-se predominantemente na visualidade.
Busca-se, desta forma, um entrelaçamento entre a pesquisa empírica, a reflexão teórica e a construção de uma poética.
Palavras-chave: Real. Imaginário. Experimentação artística.
Abstract
The text proposes an intertwining of empirical research, theoretical reflection and the construction of a poetic. From the observation of a specific and concrete experience of reality, and compare this experience with certain conceptual propositions of authors
located in different fields of knowledge, we seek to present a proposed experiment whose artistic composition elements originate
both from the concrete fact as the theoretical propositions and also some existing artistic languages.
Keywords: Real. Imaginary. Artistic experimentation.
Entre o Real e a Representação Teórica
Este artigo propõe um entrelaçamento entre a pesquisa empírica, a reflexão teórica e a construção de uma poética. A partir da observação de uma experiência concreta e específica da
realidade, e da confrontação desta experiência com determinadas proposições conceituais de
autores situados em diferentes campos de conhecimento, tenho buscado elaborar um experimento artístico cujos elementos de composição sejam originários tanto do fato concreto quanto das
proposições teóricas e também de algumas linguagens artísticas existentes.
���������������������������������������������������������������������������������������
O que hoje se tornou uma pesquisa em arte começou a se esboçar alguns anos atrás, quando conheci Luciana1, um ser humano que vivia no agitado mundo das ruas da Vila Buarque,
* Bacharel em Sociologia e Política, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Mestre em Arte na linha de pesquisa Arte e Tecnologia, onde defendeu a dissertação Lucian@: cartografia artística e afetiva em contexto ciber-urbano, sob
orientação da professora doutora Maria Luiza Fragoso. Em busca de uma poética do tempo em que vive, tem realizado
experimentações a partir da mistura de elementos da performance artística, da hipermídia, das ciências sociais, da filosofia
da diferença e do espaço urbano.
1. Para não ocupar o espaço restrito deste artigo e por ter já feito, alhures, a descrição mais detalhada de Luciana, indico
ao leitor a leitura do texto A poética do corpo transgressivo no espaço urbano, que pode ser acessado pelo endereço eletrônico http://arte.unb.br/7art/textos/gabriellecorrea.pdf. Indico também os vídeos Registrávicos e Luciana Avelino da Silva,
ambos com a participação de Luciana e que podem ser acessados no site www.youtube.com.
149
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
bairro situado na região central da cidade de São Paulo. A partir desse encontro tenho buscado
engendrar um emaranhado de multiplicidade de conexões, tanto reflexivas quanto estéticas,
partindo de uma constatação: a presença do corpo vivo e repleto de significados no espaço
complexo da metrópole. Tomo como premissa que esta presença é pura potência de produção
de afetos.
Uso o termo afetos no sentido atribuído por Espinosa , de afecções:
...por afetos, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse mesmo corpo é aumentada
ou diminuída, favorecida ou impedida... Um afeto, que chamamos paixão da alma, é uma ideia confusa pela
qual o espírito afirma uma força de existir maior ou menor que antes” (apud DELEUZE, 2002, p. 33).
Perceber a presença de Luciana na cidade é ser afetado por suas afecções e pela sua capacidade de penetrar em nossos sentidos e produzir novas ações, que, por sua vez, potencializam uma
vida que doravante se configura como “um composto de afectos e de perceptos” (DELEUZE E
GUATTARI, 1992: 213). Perceber Luciana implica também perceber a cidade, em toda sua ordem
e em sua desordem, em suas dimensões públicas e privadas, em seu individual e em seu coletivo. A
carne do corpo em relação ao corpo de pedra da cidade sugere, insinua e deflagra uma profusão
de perceptos e de afectos plausíveis.
Dizem Deleuze e Guattari (ibidem, p. 213) que “os perceptos não são mais as percepções... os
afetos não são mais sentimentos ou afecções...as sensações, perceptos e afectos são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido”.
��������������������������������������������������������������������������������������������
Busco, nesta pesquisa, tomar esta potência de vida que a presença de Luciana no espaço urbano é capaz de provocar e deslocá-la para o campo dos processos criativos, a partir do rearranjo
de conceitos e de suportes técnicos. Esta presença permite pensar três categorias, as quais seriam
o eixo de sustentação do experimento artístico: corpo, espaço e movimento. O corpo em contato com outros corpos; o espaço compartilhado e conflitante; o movimento dissonante e aleatório.
Leon Kossovitch (2004, p. 162) favorece uma leitura do pensamento de Nietzsche que nos
importa reproduzir aqui; diz ele: “a vida da diferença é a criação e dissolução de formas. Poder não
só criar, mas também destruir, exige um excesso: encontrar prazer e embriagar-se onde as intensidades inferiores sofrem, isto é, na destruição.”
Luciana desapareceu das ruas da Vila Buarque em 2005. Diz a população local que ela morreu.
Em 2008, quando realizava a pesquisa de campo sobre a vida de Luciana naquele bairro, busquei
informações sobre o que poderia ter acontecido com ela, em diferentes locais – hospitais, entidades sociais, instituto médico-legal, albergues – e a única coisa que pude descobrir é que é praticamente impossível saber sobre o seu paradeiro. Mas sua presença permanece, agora de modos
distintos, permitindo-nos refletir e também criar.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
�������������������������������������������������������������������������������������������
Deslocar esta presença de Luciana não para os discursos estéticos, mas para as práticas poéticas, significa potencializar o que esta vida lhe ofereceu em termos de formas de negação da
sociabilidade comum. Luciana se associou à comunidade pela sua transgressão e não por meio
das regras impostas e seguidas por seus membros. Uma vez assim estabelecida a relação do
corpo de Luciana com o espaço ao seu redor, quanto mais se explora sua potência de afetar,
mais se evidencia o quanto este corpo e todas as ideias que lhe são agregadas são passíveis de
sofrer alterações e, por conseguinte, de também alterar nossa capacidade de sentir, refletir e nos
embriagar em meio ao caos da existência.
O termo potência utilizado aqui está contaminado pelo pensamento de Espinosa (Apud Deleuze, 2002, p. 103), quando este lhe confere o seguinte significado: “toda potência é inseparável
de um poder de ser afetado, e esse poder de ser afetado encontra-se constante e necessariamente preenchido por afecções que o efetuam”. E, quanto ao termo embriaguez, é mister que
o reportemos ao pensamento de Nietzsche, quando este, segundo Kossovitch (2004), entende
que “a repetição afirmada, implícita num aumento de intensidade, desencadeia o comportamento cujo princípio é o prazer, ou, ainda, o estado de embriaguez.” (KOSSOVITCH, 2004: 162).
��������������������������������������������������������������������������������������������
Assim, esta pesquisa começa a fazer sentido quando o processo deflagrado, primeiro pela percepção, depois pelo pensamento e a ação, passa a operar um sistema de classificação, ou melhor,
de significação de Luciana. Em princípio, minha observação era contaminada pelo discurso do
senso comum: uma louca de rua, um pária social; depois, busquei encaixá-la nos discursos filosóficos, sociológicos e antropológicos: uma máquina de guerra, um outsider, um sujeito liminal2; por
fim, alcancei as categorias dos discursos3 estéticos, chegando ao limite de afirmar que Luciana é
uma obra de arte, performática, conceitual e efêmera.
Trilhar estes caminhos possibilitou, ao menos, urdir uma espécie de malha comunicativa, capaz
de produzir uma intensa circulação de mensagens em diferentes mídias e em variados espaços
de discursos4. O desafio, agora, é fazer com que esta malha, este complexo sistema de classificação, seja submetido a um segundo modo de produção de afectos e de perceptos5, isto é, a
processos que possibilitem a realização de um experimento artístico, inspirado na experiência
de vida de Luciana, a partir da mistura de diferentes linguagens poéticas.
A presença de Luciana no espaço da rua é algo que se repete no cotidiano da cidade. Desde
que as cidades foram criadas, pode-se perceber a presença de pessoas que, numa espécie de
nomadismo urbano, vagam pelas ruas. Esta presença permanece, mesmo depois que a sociedade ocidental criou instituições de controle e confinamento dessas pessoas – hospitais, prisões,
hospícios. Devido à sua potência simbólica, este personagem citadino adentra a memória da
população, impregnando o imaginário coletivo.
��������������������������������������������������������������������������������������������
Flávio Ferraz de Carvalho (2000), em seu estudo sobre os loucos de rua, faz a seguinte afirmação a propósito dessa presença e do seu poder de afetar a população:
Tendo vivido tanto tempo na cidade, vagando pelas ruas e expondo publicamente sua experiência de
Entre a Representação Teórica e a Construção de uma Poética
loucura, é natural que essas pessoas tivessem aguçado a curiosidade e a imaginação populares. Daí o aparecimento de uma série de histórias que versavam sobre a vida dessas pessoas e que se foram tornando
150
A presença de Luciana revela a diferença, embora sua conduta possa ser percebida como uma
repetição de padrão. Em relação à cidade, porém, percebemos sua diferença, porque o comportamento e as práticas cotidianas de Luciana são inversas àquelas da maioria dos citadinos. Luciana, em sua experiência última de vida, encontrava-se livre em relação às redes sociais, ou seja,
não vivia ao abrigo de um lar, não convivia com familiares, não trabalhava, enfim, não estava ligada
a nenhum tipo de processo produtivo. Desse modo, podemos inferir que Luciana está numa
relação inversa à realidade da cidade, uma vez que a cidade é o espaço por excelência da sociabilidade entre os indivíduos, que, por meio do trabalho, promovem as condições de existência
coletiva, ainda que estas condições sejam desiguais para a maioria dos cidadãos.
2. Estes conceitos são elaborados , respectivamente, por Deleuze-Guattari, Norbert Elias e Victor Turner.
3. Utilizo o termo discurso na acepção que Michel Foucault lhe atribui, isto é, de algo que investe os seres humanos de
desejo e de poder.
4. Estou considerando a variedade de atividades produzidas em razão desta pesquisa: a pesquisa de campo sobre Luciana e
sua relação com o bairro Vila Buarque, que possibilitou o contato com pessoas e instituições; a participação em congressos,
encontros e debates; a publicação de artigo; a produção de vídeos; a exposição, em espaços artísticos, de experimentos
poéticos com a utilização de equipamentos tecnológicos, como câmera de vídeo, aparelho de TV e computador.
5. Os conceitos de afectos e de perceptos serão articulados mais adiante neste artigo.
151
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
parte do repertório da narrativa oral comunitária, sendo transmitidas de pessoa a pessoa oralmente e atravessando as gerações que as conheceram. Essas histórias, algumas vezes, ganhavam um colorido fantástico,
como que impregnadas pela própria “desrazão” inerente a seu protagonista. (229).
Quando realizei a pesquisa de campo no bairro onde Luciana viveu, pude constatar que, três
anos após seu desparecimento das ruas, sua presença permanecia viva na memória da população local. Frases como “ela era uma louca”, “uma pessoa muito inteligente”, “falava muita coisa
interessante, mas sem muito sentido”, “ela marcou a Vila Buarque”, contribuem para a afirmação
de que pessoas como Luciana têm o poder de penetrar no imaginário coletivo e de ter sua experiência de vida reelaborada pela capacidade humana.
���������������������������������������������������������������������������������������������
Ao deslocar esta experiência de vida para o campo da criação poética, meu intento é multiplicar o sentimento de potência do fato real e, como um vírus pestífero, contaminar o público com
esta experiência, transmutada pelos movimentos do corpo, pela presença das narrativas orais
registradas em vídeo, por efeitos de projeção imagética e pela manipulação sonora dos ruídos
urbanos. Antes de descrever esta proposta de experimento artístico, gostaria de me deter um
pouco mais nas ideias de Antonin Artaud, e em sua proposta de realização de um teatro da
crueldade.
Para além das propostas de um teatro de estados de alma, psicológico e racionalista, Artaud
(1999) propunha uma arte cênica que pudesse afetar o público como quem é afetado por uma
peste. Sobre o termo crueldade, assim o autor definiu seu sentido:
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
podemos chamá-lo, será construído não apenas com palavras escritas, mas contará com a inserção de relatos das impressões suscitadas pela realidade de vida de Luciana. Outro elemento que
será explorado na composição visual do trabalho são os desenhos produzidos por ela.
����������������������������������������������������������������������������������������
Por fim, gostaria de destacar que este experimento terá como elemento plástico preponderante a visualidade. Mais do que as palavras refletidas e organizadas no discurso, importa neste
experimento o impacto que a presença viva do indivíduo é capaz de deflagrar e ativar no outro:
a emoção, o sentimento e o pensamento.
Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no
sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor, fora de cuja necessidade
inelutável a vida não consegue se manter: o bem é desejado, é o resultado de um ato, o mal é permanente.
(119)
152
Tais proposições deste autor contribuem para a formulação de uma poética que, acredito,
tenha uma sintonia com a experiência de vida de Luciana e com o que esta experiência pode
nos oferecer em termos de reflexão sobre a realidade em que estamos inseridos. Retomar esta
experiência comum, cotidiana e pública numa proposta de experimento artístico tem o significado de potencializar a própria vida no que ela possa ter de cruel, sim, mas também de afetivo, de
cômico, de jogo e de estratégia de sobrevivência. A experiência de vida de Luciana no espaço
da rua revela a repetição da tragédia humana e também seus mecanismos de defesa contra as
mazelas de uma sociedade que, para além de seus procedimentos de controle e de disciplina,
torna a existência do indivíduo uma luta pela garantia de sua vida, esta vida que, em si, já é puro
poder.
������������������������������������������������������������������������������������������
A proposta de experimento artístico que tenho desenvolvido nesta pesquisa, a partir da experiência de vida de Luciana, é uma mistura entre a linguagem do teatro, da dança e do audiovisual. Com o repertório tanto imagético quanto das narrativas colhidas na pesquisa de campo,
tenho investigado as possibilidades de uma composição cênica entre o mundo real e o espaço
da representação artificial. Trazer para a cena a presença de Luciana em vídeo, e também na oralidade das narrativas gravadas, e com ela contracenar, por meio do movimento corporal e vocal,
utilizando também o recurso de projeção de vídeo em tecido transparente.
�������������������������������������������������������������������������������������������
Após a realização de experimentos utilizando a projeção em tecido transparente, pude explorar a visualidade plástica desta técnica. Entre elas, destaco a relação entre a imagem videográfica
e o corpo em ação, formando uma silhueta em movimento capaz de causar grande impacto
visual.
Os processos que envolvem a construção dramatúrgica deste experimento serão mediados
por vídeos, mas também por ruídos captados na região onde viveu Luciana. O texto, se assim
153
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. tradução Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
FERRAZ, Flávio Carvalho. Andarilhos da imaginação: um estudo sobre os loucos de rua. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1992.
KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.
154
RESENHAS
Blue Heart
CHURCHILL, Caryl. London: Nick Hern Book, 1997. 96 p.
LAURA ALVES MOREIRA *
Depois da longa tradição que declarava a supremacia do texto em detrimento do espetáculo, o
“revide” aconteceu e talvez não tenha ainda terminado1. O teatro tem criado e pensado outros
conceitos de dramaturgia que não se baseiam na palavra, mas no movimento, na imagem, na
sonoplastia e em tantos outros elementos.
Neste contexto a dramaturga Caryl Churchill, dona de uma vasta obra que, infelizmente, não
possui tradução em português, mostra que a contemporaneidade tem – sim – espaço para
dramaturgos que sabem pensar o teatro de modo ousado, ora se despedindo das convenções
tradicionais de dramaturgia, ora dialogando com essas convenções.
Com vinte e oito livros publicados em língua inglesa e mais de dez premiações por sua dramaturgia e espetáculos, a dramaturga mostra também que engajamento social e experimentação teatral não morreram após o teatro de Bertholt Brecht. Aliada às mais novas tendências
do teatro contemporâneo e às formulações do teatro pós-dramático, do alemão Hans-Thies
Lehmann2, Churchill se caracteriza por um modo diferente de usar os signos teatrais e por uma
tendência à autorreflexão e à “autotematização”.
Blue Heart foi publicada em 1997 e tem muitos elementos interessantes a serem observados.
Composta por duas partes, surpreende pelo fato de não configurar dois atos em uma peça,
mas, praticamente, duas peças dentro de uma: Heart´s Desire e The Blue Kettle, dois diferentes
enredos que são apresentados em duas estruturas completamente diversas.
A primeira parte, Heart’s Desire, apresenta a situação de uma família inglesa (pai-Brian, mãeAlice, tia-Maise e filho-Lewis), em sua sala de jantar, à espera da chegada da filha que mora na
Austrália. A familiaridade gerada pela temática é rapidamente dissolvida, pois logo no início a
ação da peça, que gira em torno da espera da filha e sua chegada, é continuamente interrompida,
para logo depois ser retomada em algum ponto anterior. A técnica da interrupção e o contínuo
retorno ao ponto de partida ou a outros tantos pontos anteriores à interrupção marcam o
espetáculo e formam uma estrutura labiríntica, cheia de circulares retornos, paralelismos e
repetições, que compreendemos tratar de futuros latentes, de desejos que podem ou não
se realizar a todo o instante, desejos e expectativas dos personagens que se misturam e se
confundem, até mesmo com finalidade de nos desconcertar. A fragmentação do tempo, da ação
e da linguagem são características marcantes na parte Heart’s Desire.
* Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, a autora é poeta, atriz e integrante do grupo de teatro
BR-SA. Atualmente está elaborando sua dissertação de mestrado, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Arte da
Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Mota.
[email protected]
1. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
2. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Tradução de Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
159
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
O foco, então, não está mais no enredo, mas em sua estrutura, sendo metateatral. O tratamento da palavra aparece também na sua materialidade, saindo da dimensão pura do diálogo
para tornar-se matéria independente a ser manipulada em seu aspecto plástico, seu aspecto
de palavra e de letra. Terá sua velocidade acelerada, será ocultada, terá frases faladas de forma
incompleta: primeiro somente o seu início, depois somente o seu final. Este tratamento acentua
o caráter satírico e lúdico da peça.
A segunda parte da peça, The blue kettle, apresenta a situação de um homem de trinta e nove
anos que procura senhoras que, em algum período de suas vidas, tenham entregado uma criança para a adoção e, em as encontrando, diz a elas que ele é seu filho perdido que retorna, na
tentativa de conseguir algum dinheiro.
O aspecto inovador se encontra no fato de que, ao longo da peça, as palavras (substantivos,
adjetivos, verbos) vão, lentamente, sendo substituídas pelas palavras kettle e blue, até que, de
fato, a atenção se desloque do significado das mesmas e enfatize os sentidos que esta técnica
possibilita. Assim, a autora desloca o foco do enredo para a estrutura teatral e o dirige à linguagem, à performance verbal do espetáculo.
Essa substituição gradual que ocorre ao longo do espetáculo produz, novamente, uma assimetria entre palco e plateia, pois o entendimento não é alterado entre os personagens. É
curioso notar que, mesmo com a substituição de palavras, fato que causa certo desconforto,
a intenção não é o distanciamento total. O recurso, que explicita o caráter teatral e estrutural
desta parte, não deve afastar o aspecto afetivo estabelecido com a plateia e seu foco no enredo.
Ao saturar os diálogos finais, o espectador está assistindo a um filme estrangeiro sem legendas,
mas acompanha até o final a marcação emocional. Existe, aí, uma manipulação dos afetos.
Assim, temos na figura de Churchill uma dramaturga capaz de renovar os conceitos de dramaturgia e de abrir novos horizontes, descortinando novas técnicas para o fazer teatral.
Maciej Babinski – Entrevistas
AZEVEDO, Gisel Carriconde. Brasília: CÍRCULO DE BRASÍLIA, 2006, 298 p.
ISABEL CANDOLO *
Escrito por Gisel Carriconde de Azevedo, Maciej Babinski – entrevistas busca reconstruir através
de uma série de entrevistas a trajetória do artista Babinski que, em seus depoimentos, fala de si,
de seu fazer artístico e reflete sobre arte. Resultado de um projeto iniciado em 2004 e patrocinado pelo Fundo de Apoio à Arte e Cultura do DF, a autora reproduz em livro quarenta horas de
material colhido no período de setembro de 2004 a agosto de 2006, entre entrevistas gravadas
em Brasília e no Ceará, no sítio do artista. O livro foi publicado pela editora Círculo de Brasília, em
2006, traçando um retrato múltiplo do pintor, gravador e desenhista Babinski, artista nascido na
Polônia e naturalizado brasileiro.
O trunfo do livro é costurar nas entrevistas as passagens mais marcantes da vida pessoal do
artista, com depoimentos e incursões no universo da arte, alinhavando fragmentos da memória
cultural da arte moderna no Brasil. Os assuntos vão se sucedendo de acordo com a conversa e
em função dela; o encadeamento das ideias gera um fundo narrativo que permite a nós, leitores,
entrarmos no texto como ouvintes privilegiados, como se estivéssemos em uma visita ao ateliê
do artista. Com o desenrolar das perguntas e respostas, vamos, aos poucos, entrando no universo
de Babinski, que compartilha generosamente sua visão de mundo, suas reflexões e experiências
artísticas, revelando sua vida pessoal e seu processo criativo.
Assim, acompanhamos Babinski em seu itinerário da Polônia ao Brasil, passando pela França,
Inglaterra e Canadá, onde cursou Artes e teve contato com pintores de paisagens e com o grupo
vanguardista Os Automatistas, que muito influenciou sua produção artística. No Brasil, morou no
Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Ceará e Brasília. Atualmente divide-se entre Brasília – onde
se alimenta intelectualmente – e o sítio no Ceará - onde a paisagem agreste o alimenta sensorialmente. No Rio e em São Paulo, conviveu com grupos artísticos ligados ao Modernismo brasileiro,
onde pôde conhecer pessoalmente e trocar ideias com artistas exponenciais da arte brasileira,
como Goeldi, Iberê Camargo e Volpi. Babinski foi professor na Universidade de Brasília, entre
outras instituições. Aprendeu a gostar de dar aulas, mesmo sem ter formação específica, pois, à
medida que foi se construindo como artista, desenvolveu também a capacidade de transmitir seu
conhecimento e experiência. Aprendeu a amar o Brasil, país adotado por ele como escolha pessoal; conseguiu se integrar ao país pintando, desenhando e gravando nossas paisagens. Considera-se
hoje um artista contemporâneo brasileiro, mesmo não sendo aprovado pelo establishment artístico local.
���������������������������������������������������������������������������������������������
Ao longo do livro são apresentadas questões estéticas, às quais Babinski não se furta em responder, expressando, com clareza e sinceridade, sua opinião e sua visão a respeito da arte e
falando sobre arte contemporânea e suas novas linguagens. Em suas formulações sobre arte e
em sua produção pode-se notar a influência exercida pelo modo de pensar dos automatistas e
* Mestranda na linha de pesquisa Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade
160
de Brasília.
161
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
surrealistas, pensamento esse que marcou a geração do conturbado período da Segunda Guerra
Mundial. Em Babinski, tal influência se mostra na importância dada à gestualidade e sua velocidade
na confecção da pintura e ao considerar nociva a presença de uma racionalização excessiva no
ato de criação. Contudo, essa aparente desvalorização da racionalidade parece ser o contraponto
necessário à busca de equilíbrio entre o visceral e o cerebral na realização do feito artístico, pois,
segundo Babinski, é nesse equilíbrio que a grande arte aparece. Babinski não prescinde do desenho, o que se constata em suas gravuras.
������������������������������������������������������������������������������������������
Há que se considerar que a arte concretiza-se por vários caminhos. Ao se olhar para a tradição vê-se que, no caminhar do homem pela história, espaços e tempos diversos apresentam
diferentes formas de expressão artística. O que Babinski faz é escolher seu caminho e, ao refletir
sobre suas escolhas, consegue defendê-las bem. Atento à qualidade do que produz, não segue
modismos, escolhendo as linguagens às quais se afeiçoou e que desenvolveu, capacitando-se, assim,
a executá-las com mestria. Para Babinski “ser artista significa, acima de tudo, desejar; sem desejo
não existe arte”.
What is Dance?
Readings in Theory and Criticism
COPELAND, Roger & COHEN Marshal (eds.). New York: Oxford University Press, 1983. 582 p.
CÍNTHIA NEPOMUCENO *
Vinte e sete anos após sua primeira edição, a antologia What is Dance? – editada por Roger
Copeland e Marshall Cohen – apresenta a seus leitores um conteúdo que resistiu à passagem
do tempo e, por isso, merece destaque como fonte de pesquisa para a dança. Concebida com o
propósito de reunir os melhores textos disponíveis sobre dança na língua inglesa, a coleção é organizada de modo a contemplar as mais variadas discussões e problemas relacionados a essa arte.
O prefácio do livro aponta a resistência de dançarinos, coreógrafos, críticos e historiadores da
dança à teorização, considerada irrelevante e/ou impertinente. Uma das causas dessa resistência seria
a ideia de que a dança deveria ter a função de nos proteger da alienação do pensamento, mantendo
nossos pés no chão. Ainda segundo os editores, as lacunas deixadas por esse tipo de crença fizeram
com que a dança pagasse um alto preço ao permanecer à margem dos discursos acadêmicos.
É interessante observar que a realidade descrita no prefácio do livro, referente aos Estados
Unidos da década de 1980, assemelha-se ao contexto da dança acadêmica brasileira no início do
século XXI: havia maior interesse da população pelos estudos de dança, ampliação da oferta dos
cursos em nível superior, debates sobre a vinculação acadêmica da dança às áreas de artes ou de
educação física, escassez de produção bibliográfica e notória complexidade dos temas relacionados
à pesquisa. Tendo em vista a realidade da época, a coleção reuniu artigos selecionados não apenas
por seus méritos, mas por sua representatividade e pela relevância das questões levantadas por
seus autores.
A apresentação dos textos confere à leitura uma sensação de deslocamento no tempo e no
espaço, em ruptura com a linearidade cronológica. Divididos em sete partes, os artigos trazem
ideias, conceitos, descrições, personagens, criadores, intérpretes e estudos, pinceladas de vários
aspectos da arte de dançar. Desse modo, iniciamos a jornada com as cartas de Jean-Georges
Noverre, escritas em 1760, e, na mesma parte, encontramos Susanne K. Langer falando sobre
sentimentos e formas, apresentando noções de “poderes virtuais” e do “círculo mágico”. André
Levinson nos presenteia com um artigo em que discute conceitos e ideias sobre a dança, de Aristóteles a Mallarmé. Em seguida, Paul Valéry nos traz o artigo Filosofia da Dança. Tudo isso ainda na
primeira parte, cujo título é o mesmo que o do livro: What is Dance?
A segunda parte – The dance medium – discute a importância do intérprete em seis textos que
tratam do formalismo de Balanchine, da importância de Diaghilev e do teatro de formas animadas,
bem como do primitivismo, do modernismo, do balé clássico e suas dissidências. Já a parte três,
Dance and the other arts, faz a relação entre dança e demais artes com textos de Richard Wagner,
Eric Bentley, Constant Lambert, Bernard Shaw e Theodore Reff.
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB, sob a orientação da Profª Drª Roberta K. Matsumoto;
Mestre em Arte (UnB); Bacharel e Licenciada em Dança (UNICAMP). É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB) no curso de Licenciatura em Dança.
162
[email protected]
163
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
A quarta parte do livro é dedicada aos estilos e gêneros de dança, subdividindo-se em quatro
capítulos: Ballet; Modern Dance; Post Modern Dance; Style. Em destaque estão os textos de autoria
de Michel Fokine, Isadora Duncan e Mary Wigman. Parece-nos importante ressaltar que o
livro reproduz concepções hegemônicas sobre a dança, excluindo as produções artísticas afroamericanas, latinas e indígenas, entre tantas outras. Nesta mesma parte, todavia, há o artigo de
Anna Kisselgoff – There is Nothing “National” about Ballet Styles – que, em poucas palavras, tece
críticas à estereotipia e nega a existência de um estilo “americano” de ballet, referindo-se ao balé
clássico praticado e difundido pelos estadunidenses, convidando-nos à reflexão e à desconstrução
de ideias cristalizadas sobre os estilos e gêneros.
A quinta parte trata de linguagem, notação e identidade. São cinco artigos que discutem a
importância do registro escrito das danças e aprofundam o conceito de dança como linguagem
estética. Já na parte seis, estão reunidos artigos sobre crítica de dança. Tendo em conta que a
maior parte da historiografia disponível sobre dança foi compilada por críticos especializados
nessa arte, torna-se imprescindível ler com atenção tais artigos. Entre outros, estão sob a mira dos
críticos Ana Pavlowa, Martha Graham, Fanny Elssler, Balanchine e Isadora Duncan.
A sétima e última parte do livro fala sobre dança e sociedade. Traz uma riqueza de abordagens,
apresentando estudos antropológicos, além de um interessante artigo de Roland Barthes sobre
striptease. Para os pesquisadores, uma fonte de inspiração!
Obviamente, as quase seiscentas páginas do livro não dão conta de todos os temas relacionados à dança, mas conseguem apresentar um pouco de quase tudo que é necessário para, no
mínimo, instigar quem se interessa pelo assunto. É uma obra de referência, pois permite uma
visão global e, ao mesmo tempo, específica sobre determinados aspectos da dança, estimulando
e abrindo caminhos para o aprofundamento em questões diversas. A obra merece uma tradução
para a língua portuguesa devido a sua relevância e para que possa atingir um público amplo e diversificado, constituído por leigos interessados sobre o tema, estudantes dos cursos de graduação
em dança, pesquisadores e profissionais que buscam estímulos e referenciais para seus trabalhos.
Oswaldo Goeldi:
Iluminação, Ilustração
RUFINONI, Priscila Rossinetti. São Paulo: COSAC NAIFY e FAPESP, 2006, 316 p.
FABIO FONSECA *
A partir de leitura que Priscila Rufinoni faz das obras de Oswaldo Goeldi, pode-se entender o
desenhista, gravador e ilustrador como um dos principais artistas modernistas brasileiros, senão o
principal. A autora apresenta um artista à margem do grupo da Semana de 22, porém próximo à
poética modernista, participando da busca de afirmação da bidimensionalidade e da autonomia da
obra de arte visual e mantendo uma independência em relação ao mercado de arte de sua época,
associado ao aparato estatal. Também foi um artista que acompanhou de perto a transformação
dos processos de industrialização, sendo afetado pela relação com a indústria editorial e com a
cultura de massa. Ao ilustrar revistas e jornais, sua arte pode ser pensada tanto a partir de um
vínculo com os temas, quanto com a visualidade da fotografia e do cinema.
���������������������������������������������������������������������������������������
Sem pensar em uma sucessão evolutiva, mas estabelecendo um diálogo com “blocos de experiências estéticas”, como simbolismo e expressionismo, Rufinoni inicia sua análise desta parcela da
obra de Goeldi com as ilustrações para o conto O Gato Preto, de Poe, publicadas na revista Leitura
Para Todos. Seus desenhos se aproximam do simbolismo e da linha caligráfica de Alfred Kubin pelo
aspecto da construção do espaço, formando densos arabescos, no entanto mantêm certa distância do aspecto imagético marcadamente onírico do universo do artista simbolista. Com o uso
da xilogravura, sua obra passa do desenho nervoso e simbolista para a demarcação de espaços
cheios e vazios e de áreas de luz e sombra. Nas gravuras produzidas para ilustrar Canaã, de Graça
Aranha, Goeldi afasta-se das fisionomias e da dramaticidade, dando à narrativa uma interpretação
lacônica.
Para Rufinoni, o artista utiliza o jornal como campo de experimentação de novas soluções.
Em suas representações urbanas, aparecem os “tipos” criados pelo artista, imagens alegóricas do
homem comum, com chapéus, casacos e guarda-chuvas, a cidade com seus postes e lampiões. Por
meio de um humor irônico e sutil, Goeldi capta, com seu traço rápido, o dado efêmero, o passante anônimo. Ao analisar o artista a partir de sua realidade, a autora observa as soluções plásticas
dos artistas alemães da Nova Objetividade, utilizando-os para problematizar a obra de Goeldi. A
referência da gravura alemã dá apoio a uma figuração sem profundidade, afastada da perspectiva,
embasada por um geometrismo planificador.
���������������������������������������������������������������������������������������������
A autora aponta, nas gravuras de Goeldi, tanto a presença de figuras arquetípicas da modernidade quanto temas de cunho antropofágico ou nativista. As ilustrações produzidas para as obras
modernistas Cobra Norato, Martim Cererê, Cheiro de Terra e Poranduba Amazonense geram uma
interpretação da fauna e da flora pelo viés primitivista, uma dialogicidade entre o universal e o
particular, representados, respectivamente, pelo eixo Rio/São Paulo e Belém. As representações
da fauna e da flora, bem como de “tipos étnicos”, passa pela iconografia dos naturalistas, revisitada
através do contato com a obra de seu pai, o zoólogo Emílio Goeldi. No entanto, a autora aponta
* Mestrando na linha de pesquisa Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade
164
de Brasília.
165
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 2
que, mesmo produzindo trabalhos sob encomenda, o artista não apenas ilustra os textos, mas os
interpreta, estabelecendo uma relação de autonomia em seu processo criativo. Os livros de arte,
por tomarem parte em um mercado editorial incipiente, constituem também um campo experimental para Goeldi, que produz uma reinterpretação mítico-simbólica das formas naturais, usando
a cor em várias matrizes e realizando um embaralhamento dos planos.
Suas ilustrações para as obras de Dostoievski reaproximam o artista do universo simbolista/
expressionista, ora sombrio, ora cômico. Nesses ambientes, os lampiões assumem uma importância fundamental, transformados em ícones ou fornecendo pretextos para pesquisar fontes de luz
que possibilitarão soluções diversas para a iluminação das cenas, aproximando-se, por vezes, da
luz bruxuleante de Goya. Outros ícones repetidamente trabalhados em suas ilustrações são os
peixes – alegorias míticas –, o lampião, a casa, o urubu e o chapéu-e-casaco, sinais do misterioso,
do sublime inserido, de forma discreta, no cotidiano.
O Projeto de Rembrand
O Ateliê e o Mercado
ALPERS, Svetlana. São Paulo: Cia das Letras, 2010, 375 p.
JULIANA DE SOUZA SILVA *
Mesmo após tantos estudos focados nas obras de Rembrandt, ou nos escritos sobre ele, ou mesmo na vida social do artista holandês, Svetlana Alpers entende que a história da arte é um campo
em evolução e, assim, parte das lacunas advindas com os estudos modernos sobre Rembrandt a
partir da década de 1960 (incluindo o Rembrandt Research Project) para propor uma análise que
agrega o lado artístico, social e econômico da prática de ateliê do artista.
Ao longo dos quatro capítulos, Alpers analisa as intenções de Rembrandt na produção dentro
e fora do ateliê, ou seja, na criação e na comercialização das obras. Sua análise de Rembrandt
vincula o artista às circunstâncias do meio artístico da Holanda do século XVII, ao contrário de
corroborar a noção do gênio isolado que influenciou muitos estudiosos desde o século XIX. Estudar a prática de ateliê é, segundo a autora, esmiuçar a maneira de pintar (e desenhar, e gravar) de
Rembrandt, aproximar-se da idiossincrasia do artista que não só estimulava a criação, mas também
o impelia a organizar a produção de sua equipe dentro do mercado de arte holandês.
A maneira peculiar de Rembrandt é examinada, no primeiro capítulo, sob o ângulo do tratamento da tinta. Observando e comparando algumas de suas pinturas com a de outros artistas
contemporâneos, bem como analisando citações de especialistas e referências biográficas sobre
Rembrandt (incluindo a descrição feita por alguns de seus aprendizes), Alpers chama a atenção
para a presença visual da tinta na obra do artista. Interpreta o uso do empasto como sendo, mais
do que uma característica formal, a afirmação do ofício do pintor, uma intenção de ir além do
efeito óptico da cor, cunhando um trabalho com a matéria pictórica.
Referências teóricas anteriores ou da época de Rembrandt são usadas por Alpers para criar um
panorama de como o pensamento sobre a arte se consolidava na Europa desde o Renascimento,
e em que medida esse pensamento permeava o mundo de Rembrandt. Cita, como exemplo, o
entendimento de Giorgio Vasari de que a pintura de fatura rugosa necessitava de uma apreciação
à distância, justificando a distinção social entre os connaisseurs, capazes de fruir o estilo rugoso, e o
restante da sociedade, habituada à tradição da fatura lisa. Mas Alpers destaca que a materialidade
da tinta em Rembrandt não se baseava no propósito de satisfazer um público seleto e esclarecido,
mas em um meio de dar visibilidade ao próprio ofício, de afirmar um tipo de habilidade pictórica.
No ato de escavar a superfície úmida de tinta com a ponta do pincel ou do tento, Rembrandt
indicava, desde o início da carreira, a associação da visão com o tato, sugerindo qualidades táteis
para sua pintura. As mãos seriam o instrumento fundamental do pintor, e seu tratamento da tinta
revelaria o domínio desse ofício, a ponto de Rembrandt inventar uma maneira peculiar de pintar.
Alpers desenvolve, no segundo e no terceiro capítulos, a hipótese de que Rembrandt criou um
estilo pessoal ao adotar também o modelo teatral, em vez da arte do passado. Embora não fosse
o único a ser inspirado pelo teatro, visto que artistas contemporâneos adaptavam imagens de
cortejos públicos, de tableaux vivants, dentre outros espetáculos, em pinturas, desenhos e gravuras,
166
* Mestre em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília. Pesquisadora Colaboradora Júnior do PPG-Arte/UnB.
167
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
Rembrandt levou para o ateliê os jogos teatrais como um recurso pedagógico para o estudo da
natureza humana. Tanto as encenações teatrais quanto a realização dos desenhos eram dirigidos
por Rembrandt, que possuía incontestável autoridade sobre o ateliê. Esse método contribuiu, segundo a autora, para que o artista aperfeiçoasse a reconstrução teatral dos sentimentos humanos,
sobretudo por meio da experiência de pintar autorretratos – diante de um espelho, o artista se
tornava um ator testando diferentes expressões em si mesmo.
Alpers examina os interesses e ambições de Rembrandt no mundo da arte. O último capítulo
mostra em que medida o artista partilhava dos novos valores éticos da economia de mercado
holandesa, afirmando sua liberdade ao separar o ambiente doméstico do ateliê, ao distanciar-se
dos cânones da tradição (até mesmo em seu método de ensino, substituindo a cópia de obras
do passado por obras de sua autoria, inclusive autorretratos) e ao emancipar-se da figura do mecenas, adotando o sistema mercantil para propor preços para suas obras. Em uma interessante
análise da noção da individualidade do pintor, Alpers afirma que o verdadeiro propósito de Rembrandt era a “prosperidade econômica de sua arte”, como profissional consciente da singularidade
e do valor de sua obra. Recorrendo a outros campos da cultura, com os quais concilia o conhecimento artístico, Alpers explica como o idiossincrático Rembrandt, ao incentivar a proliferação
do estilo Rembrandt, contribuiu para o sistema da arte e, de certo modo, para o estado atual de
“desatribuições” de autoria.
168
O Mundo Codificado:
por uma Filosofia do Design e da Comunicação
FLUSSER, Vilém. São Paulo: COSAC NAIFY, 2007. 224 p.
CARLOS PRAUDE *
Apresentado como essencial à formação de qualquer designer ou profissional da comunicação,
compreendo que o livro O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, de Vilém
Flusser, é uma obra preciosa para artistas programadores por esboçar questões pertinentes ao
campo da arte computacional sob um prisma filosófico. Neste sentido, pretendo destacar alguns
pontos que chamaram minha atenção.
������������������������������������������������������������������������������������������
Com tradução de Raquel Abi-Sâmara, o livro é uma compilação de diversos textos curtos, rápidos e incisivos, que foram estruturados pelo organizador Rafael Cardoso em três seções: Coisas,
Códigos e Construções. Os textos se complementam e enfatizam, de forma bastante clara, a reflexão
filosófica que o autor articula sobre temas relacionados com a tecnologia da informação, como os
artefatos de software e a codificação dos objetos com que lidamos em nossa vida cotidiana.
Flusser observa que “hoje em dia, sob o impacto da informática, começamos a retornar ao
conceito original de matéria como um preenchimento transitório de formas atemporais” (p.24).
Para o autor, a ideia da mudança dos estados da matéria proporcionou o surgimento de uma nova
imagem do mundo onde a matéria se realiza em campos energéticos de possibilidades que se
entrecruzam. Neste cenário, o autor postula que há um despropósito no abuso do conceito de
“imaterial” e uma compreensão inadequada do termo informar. Informar corresponde ao processo de dar forma a algo, o que significa impor formas à matéria. O autor assinala que isso é de uma
atualidade abrasadora e que o que está em jogo são os equipamentos técnicos que permitem
apresentar, nas telas, algoritmos em forma de imagens em movimentos.
����������������������������������������������������������������������������������������
Para Flusser, se antes o que importava era uma ordenação formal do mundo aparente da matéria, o que está em questão hoje é como tornar aparente um mundo altamente codificado em
números, um mundo de formas que se multiplicam incontrolavelmente. A aparência do material
é a forma e, para Flusser, “no sentido estrito, a forma, é precisamente aquilo que faz o material
aparecer” (p.32).
Considerando as formas não mais como descobertas ou ficções e sim como modelos, Flusser
articula uma reflexão onde a questão já não se foca no real, mas sim no que é conveniente, verificando que as formas são recipientes, são modelos construídos especialmente para os fenômenos.
O design é um dos métodos de dar forma à matéria. O design mostra que a matéria não é aparente, a menos que seja informada, que é quando começa a manifestar-se, ou seja, a tornar-se fenômeno. Para o autor, existem dois modos distintos de projetar: o material e o formal. O primeiro
resulta em representações, enquanto o outro produz modelos. O modo material enfatiza aquilo
que aparece na forma, enquanto a maneira formal realça as características daquilo que aparece.
Flusser considera que “as fábricas são lugares onde sempre são produzidas novas formas de
homens: primeiro o homem-mão, depois, o homem-ferramenta, em seguida, o homem-máquina
e, finalmente, o homem aparelho-eletrônico” (p.37). “Quanto mais complexas se tornam as ferra* Mestre em Arte e Tecnologia pela Universidade de Brasília.
169
VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1
170
mentas, mais abstratas são as suas funções” (p.42). Para o autor, os aparelhos eletrônicos exigem
um processo de aprendizagem ainda mais abstrato e o desenvolvimento de disciplinas que, de
modo geral, ainda não se encontram acessíveis. A fábrica do futuro deverá assemelhar-se mais a
laboratórios científicos, academias de arte, bibliotecas e discotecas do que às fábricas atuais. O
homem-aparelho do futuro deverá ser pensado mais como um acadêmico do que como um
operário, um trabalhador ou um engenheiro. Na fábrica do futuro, o homem “reconhecerá que fabricar significa o mesmo que aprender, isto é, adquirir informações, produzi-las e divulgá-las” (p.43).
Para o filósofo, com o surgimento dos aparelhos eletrônicos e da Tecnologia da Informação,
deparamos com “não coisas” denominadas “informações”, que se encontram por todos os lados.
Todas as coisas contêm informações. Nosso interesse desloca-se das coisas para as informações.
A sociedade ocupa-se cada vez mais da produção de informações, serviços e sistemas. Os valores
são transferidos para as informações, configurando um imperialismo onde a humanidade é dominada por grupos que dispõem de informações privilegiadas.
Flusser esboça o pensamento de que “entenderemos que se pode viver de forma diferente
e talvez até melhor” (p. 57). Para o autor, a vida entre as coisas pode não ser excepcionalmente
maravilhosa como se pensava antes, e teremos que imaginar essa nova vida com as “não coisas”
(p. 58). Na visão de Flusser, o homem não lida mais com as coisas, por isso não pode mais falar
de suas ações concretas. O que lhe resta de suas mãos são as pontas dos dedos para operar símbolos que lidam com informações. Por não estar interessado nas coisas, no lugar de problemas o
homem tem programas. Para o autor, o surgimento da “não coisa” não atingirá a disposição básica
da existência humana, o ser para a morte.
�����������������������������������������������������������������������������������������
O autor considera que as coisas estão se tornando cada vez menores, enquanto as “não coisas” ao nosso redor estão inflando, como é o caso da informática. Neste cenário, a produção de
informações é um jogo de permutação de símbolos. Para jogar com os símbolos, para programar,
é necessário pressionar teclas. As pontas dos dedos são órgãos de uma escolha que se realiza de
acordo com prescrições programadas, configurando decisões que desencadeiam processos. Para
o filósofo, é como se a sociedade do futuro se dividisse em duas classes: a dos programadores
e a dos programados. A primeira seria constituída por aqueles que produzem programas e a segunda, por aqueles que se comportam segundo o programa. Como os programadores realizam
o mesmo movimento de dedos que é feito pelos programados e tomam decisões dentro de um
metaprograma, em um ciclo onde se revela o infinito, Flusser conclui que a sociedade do futuro
será uma sociedade sem classes, uma sociedade de programados programadores: “Somos talvez
a última geração que pode ver com clareza o que vem acontecendo por aqui”. Para compreendermos esse momento, Flusser chama a atenção para o que se entende por “programa” – “esse
conceito fundamental dos tempos atuais e futuros” (p.65).
Para Flusser, além do mundo computado pelo nosso sistema nervoso central, “somos capazes
de criar percepções, sentimentos, desejos e pensamentos distintos, alternativos” (p.78).
Nesse cenário aparece a comunicação humana, com o propósito de desviar a atenção da falta
de sentido de uma vida destinada à morte. É onde se “estabelece um mundo codificado, construído a partir de símbolos ordenados, no qual se represam as informações adquiridas” (p.96). Para
o autor, a comunicação atinge seu objetivo (dar significado à vida) quando há um equilíbrio entre
discurso e diálogo.
Flusser ilustra nossa capacidade de comunicação e percepção ao discorrer sobre a importância
das superfícies no nosso dia a dia. Para o autor, “o pensamento imagético está se tornando capaz
de pensar conceitos” (p.118). Códigos imagéticos, por depender de pontos de vista predeterminados, são subjetivos, enquanto os códigos conceituais, que não dependem de um ponto de vista,
são objetivos. Em sua visão, a mídia linear poderá unir-se à da superfície numa relação criativa,
favorecendo o surgimento de novos tipos de mídias, abrindo novos campos de percepção e pensamento. Se “o significado geral do mundo e da vida em si mudou sob o impacto da revolução na
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
comunicação” (p.127), Flusser analisa o papel dos códigos e das cores nas superfícies (portadores
de mensagens), para argumentar que devemos aprender os códigos tecnológicos, sob o risco de
nos tornarmos “condenados a prolongar uma existência sem sentido em um mundo que se tornou codificado pela imaginação tecnológica” (p.137).
Se durante quase toda a história ocidental o código numérico permaneceu preso ao código
alfabético, Flusser aponta para uma situação diferenciada onde o “código numérico evadiu-se do
código alfabético, e, com isso, pôde livrar-se da obrigação de linearidade e passar dos números
para as informações digitais” (p.170). Esse ato possibilitou o surgimento de um gesto diferenciado
de criação de imagens, proporcionando uma imaginação que se mostra como um ajuntamento
de algo calculado para a formação de imagens. Analisando esse gesto, Flusser constata que tais
imagens são criadas para que se busque o inesperado em um campo de possibilidades onde se
revela uma estética pura. Para o autor, quando as imagens são criadas a partir de cálculos e não de
circunstâncias, a experiência estética favorece ao Homo faber a libertação do Homo ludens.
Diante da atualidade implícita nos textos do filósofo, o livro apresenta-se como uma preciosa
obra para artistas computacionais e para a arte que se realiza por meio da Tecnologia da Informação, no sentido de proporcionar um olhar crítico sobre a sociedade midiática em que vivemos.
171
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPG-ARTE NO PERÍODO 1º/2010
BARBOSA, Larissa Ferreira Regis – AMC: Afecção mediada por computar em coletivos performáticos desterritorializados. 01/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Maria Beatriz de Medeiros
CAETANO, Alexandra Cristina Moreira – Interface: Processos criativos em arte computacional. 03/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Suzete Venturelli
GUIMARÃES, Marta Mencarini – Mesa de luz: Colagem-composição. 05/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Maria Luiza Pinheiro Guimarães Fragoso
RIBEIRO, Kaise Helena Teixeira – A dialogicidade no Mamulengo Riso do Povo. 12/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Izabela Costa Brochado
DE OLIVEIRA, Gabrielle Patrícia Augusta Corrêa – Lucian@ cartografia afetiva e artística em contexto ciberurbano. 16/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Maria Luiza Pinheiro Guimarães Fragoso
DE VASCONCELOS, Adriana Santos – A relação de troca artístico-criativa entre preparador de atores, ator e diretor em Bicho de Sete Cabeças (2000) de Laís Bodansky e O Céu de Suely (2006) de Karim Aïnouz. 22/03/2010.
Orientador: Profº Dr. Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz
HORA, Daniel de Souza Neves – / arte_hackeamento / diferença, dissenso e reprogramabilidade tecnológica.
24/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Maria de Fátima Borges Burgos
NUNES, Francisco Pereira – Platéia ou plateia? A progressiva perda do assento nos teatros de Brecht, Moreno e
Boal. 25/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Soraia Maria Silva
DE BRITO, Alessandra Araújo – Dança e dissonância: Poéticas de esculpir o tempo. 26/03/2010.
Orientadora: Profª Dra. Soraia Maria Silva
AMARO, André de Borba – O espetáculo cênico e o espírito caleidoscópico. 29/03/2010.
Orientador: Profº Dr. Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz
PRAUDE, Carlos Corrêa – Arte computacional e experiência estética. 18/06/2010.
Orientadora: Profª Dra. Maria de Fátima Borges Burgos
PINHEIRO, Luciana Paiva – Precário: fragilidade e instabilidade na imagem. 30/06/2010.
Orientador: Profº Dr. Geraldo Orthof Pereira Lima
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB
NORMAS PARA COLABORADORES
1. A revista VIS aceita colaborações de trabalhos originais e inéditos, de autoria individual ou coletiva, sob a
forma de artigos, ensaios, entrevistas e resenhas, submetidos à apreciação de seu Conselho Editorial. Artigos
não originais, isto é, já publicados, só serão aceitos em caso de edição esgotada ou de tradução para uma
língua diferente da original.
2. Os textos devem:
a) ser gravados em editor de texto Word for Windows 6.0 ou superior, em formato A4, exclusivamente em
fonte Times New Roman;
b) ter de 20 a 25 páginas, corpo 12, com espaço entrelinhas duplo, alinhado à esquerda;
c) conter título, identificação do autor, resumo/abstract, palavras-chave/keywords e referências bibliográficas.
3. Os textos e as imagens que os acompanharem devem ser submetidos em duas vias impressas idênticas e
em arquivo(s) gravado(s) em um disquete ou CD.
4. O Título dos textos deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, em caixa alta e baixa (só
as iniciais maiúsculas), ter no máximo 85 caracteres, não ter palavras ou expressões sublinhadas. Usar itálico
somente para a grafia de palavras estrangeiras. O título e o subtítulo, se houver, devem ser separados por
dois pontos (:).
5. A identificação do(s) autor(es) deve:
a) ser digitada em fonte Times New Roman, corpo 12;
b) conter, na linha abaixo do(s) seu(s) nome(s), o nome da(s) instituição(ões) a que está vinculado(s)
como docente(s); pesquiador(es) ou aluno(s), digitado em fonte Times New Roman;
c) em caso de aluno de programa de pós-graduação, especificarse é mestrando ou doutorando;
d) conter o endereço eletrônico do(s) autor(es) em fonte Times New Roman, corpo 12;
e) conter, em um único parágrafo, dados biográficos do autor com no máximo 50 palavras, em fonte
Times New Roman, corpo 12.
6. O Resumo deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço entrelinhas 1,5. O Resumo
deve ser digitado em um único parágrafo com o mínimo de 400 e o máximo de 800 caracteres, tanto na
versão em português quanto na versão em inglês (Abstract).
7. As Palavras-Chave devem ser digitadas em fonte Times New Roman, corpo 12, em sequência na mesma
linha, separadas por ponto (.) e finalizadas também por ponto. Podem ser inseridas de três a cinco PalavrasChave, seguidas, na linha abaixo, pela versão de cada uma para o inglês (Keywords).
8. O Corpo do texto deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, com espaço entrelinhas duplo, alinhamento à esquerda, com o máximo de 25 laudas, incluindo referências bibliográficas.
9. Todas as imagens devem ser fornecidas em arquivos separados, em formato .jpg, sua localização no texto
deve ser indicada pela inserção de legenda e o número de cada arquivo deve corresponder ao número de
ordem de ocorrência da figura ou tabela no texto.
10. A identificação de cada imagem no texto aparece na parte inferior, precedida da palavra designativa,
seguida de seu número de ordem de ocorrência no texto, em algarismos arábicos, do respectivo título e/ou
legenda explicativa de forma breve e clara. A imagem deve ser inserida o mais próximo possível do trecho a
que se refere, conforme o projeto gráfico.
11. A obtenção de direitos de reprodução das imagens utilizadas em cada texto, caso não sejam de domínio
público, é de inteira responsabilidade do autor.
12. A numeração das notas explicativas é feita em algarismos arábicos, devendo ser única e consecutiva para
cada artigo.
13. Para elaboração de referências, elemento obrigatório, recomendamos a norma ABNT NBR6023.
14. Para elaboração de citações, recomendamos a norma ABNT NBR10520.
15. As citações com mais de três linhas devem ser digitadas em parágrafo separado, com espaço entrelinhas
simples, corpo 10 e sem aspas. As citações devem ser listadas no final do texto com Referências. Os dados
bibliográficos completos das citações não devem ser inseridos no corpo do texto (ver norma citada no item
14).
16. As notas de rodapé devem conter apenas comentários imprescindíveis para a compreensão do texto e
não os dados bibliográficos.
17. A editora da revista VIS poderá realizar modificações que visem à correção gramatical, à adequação às
normas da ABNT e à formatação dos originais de acordo com o projeto gráfico.
18. As colaborações devem ser enviadas para o endereço: Conselho Editorial da Revista VIS; Programa de
Pós-Graduação em Arte; Instituto de Artes; Universidade de Brasília; Prédio SG-1, Campus Universitário
Darcy Ribeiro; Brasília; DF. CEP 70910-900
19. A revista VIS não se compromete com a devolução dos trabalhos recusados pelo Conselho Editorial.