Histórias coloniais em áreas de fronteiras
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Histórias coloniais em áreas de fronteiras
Histórias coloniais em áreas de fronteiras Índios, jesuítas e colonos Universidade Federal de Mato Grosso Reitora Maria Lúcia Cavalli Neder Vice-Reitor Francisco José Dutra Souto Conselho Editorial da EdUFMT (2007-2009) Elizabeth Madureira Siqueira (Presidente)/Alice G. Bottaro de Oliveira/Anna Maria R. F. M. da Costa /Antonio Carlos Maximo/Cássia Virgínia Coelho de Souza/ Célia M. Domingues da Rocha Reis/Eliana Beatriz Nunes Rondon/ Gabriel Francisco de Mattos/Geraldo Lúcio Diniz/Jacqueline Fernandes de Cintra Santos/Joaquim Eduardo de Moura Nicácio/Leny Caselli Anzai/Maria da Anunciação P. Barros Neta/Maria Inês Pagliarini Cox/Mariza Inês da Silva Pinheiro/ Nileide Souza Dourado/Onélia Carmem Rosseto/Paulo Augusto Mário Isáac/Sandra Cristina Moura Bonjour/Suíse Monteiro Leon Bordest/ Telma Cenira Couto da Silva/Terêncio Francisco de Oliveira/Lauro Virgínio de Souza Portela/Geniana dos Santos Universidade do Vale do Rio do Sinos Reitor Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Vice-Reitor Pe. José Ivo Follmann, SJ Conselho Editorial Alfredo Culleton Carlos Alberto Gianotti Pe. Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, SJ Pe. Pedro Gilberto Gomes, SJ Vicente de Paulo Barretto Leny Caselli Anzai Maria Cristina Bohn Martins (Organizadoras) Histórias coloniais em áreas de fronteiras Índios, jesuítas e colonos OI OS EDITORA 2008 © Dos autores – 2008 Capa: Marcelo Garcia dos Santos Editoração: Oikos Revisão: Carlos A. Dreher Arte-finalização: Jair de Oliveira Carlos Impressão: Rotermund S.A. EdUFMT – Editora da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Av. Fernando Corrêa da Costa – Cidade Universitária 78060-900 Cuiabá/MT Tel.: (65) 3615.8325 – Fax: (65) 3615.8322 [email protected] www.ufmt.br/edufmt Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS Av. Unisinos, 950 – Bairro Cristo Rei 93022-000 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3591.1122 [email protected] www.unisinos.br Editora Oikos Ltda. Rua Paraná, 240 – B. Scharlau – Caixa Postal 1081 93121-970 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 – Fax: (51) 3568.7965 [email protected] www.oikoseditora.com.br O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos. H673 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: índios, jesuítas e colonos / organizado por Leny Caselli Anzai e Maria Cristina Bohn Martins. – São Leopoldo, RS: Oikos; Unisinos; Cuiabá, MT: EdUFMT, 2008. 259 p.; 16 x 23cm. ISBN 978-85-7843-064-1 ISBN 978-85-327-0314-9 (EdUFMT) 1. Historiografia regional – nacional. 2. Período colonial sul americano. 3. Índios – Jesuítas – Colonos – História. I. Anzai, Leny Caselli. II. Martins, Maria Cristina Bohn. CDU 930.1 Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184 Sumário Apresentação ......................................................................................... 7 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade no centro da América do Sul (1716-1750) Tiago Kramer de Oliveira .................................................................. 17 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste Alessandra Resende Dias Blau .......................................................... 50 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII Gilian Evaristo França Silva .............................................................. 76 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade (1748-1790) Masília Aparecida da Silva Gomes .................................................. 99 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) Nathália Maria Dorado Rodrigues ................................................. 126 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados. Chiquitania, século XVIII João Ivo Puhl ..................................................................................... 158 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos Luís Alexandre Cerveira ................................................................... 188 Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (século XVII) Fabiana Pinto Pires .......................................................................... 218 Itinerários de viagem pelos confins do território americano: os missionários jesuítas e a expansão para a área ao sul de Buenos Aires Yesica Amaya .................................................................................... 232 6 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Apresentação O presente livro é resultado de esforços de investigação despendidos por professores e alunos dos Programas de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Trata-se de um dos resultados das propostas de trabalho conjunto iniciadas com a aproximação entre colegas das duas instituições, oportunizada pelas periódicas reuniões nacionais do Fórum de Coordenadores dos Programas de Pós-Graduação. Os interesses comuns explicitados durante as discussões sobre a necessidade de intercâmbios entre os programas, no início pessoal e individual, foram institucionalizados com a aprovação pela Capes de um PROCAD, em 2007, proposto pela Universidade Federal de Mato Grosso, que se associou à Universidade do Vale do Rio dos Sinos e à Universidade Federal de Pernambuco, para o desenvolvimento conjunto do projeto: “Territórios diversos, múltiplas fronteiras. Práticas culturais no movimento de ocupação e reocupação dos espaços”1. A proposta do PROCAD levou em consideração o fato de que a ocupação territorial do atual estado de Mato Grosso sofreu intensa influência de grupos humanos advindos da Região Nordeste e da Região Sul do país, e que, portanto, nos beneficiaríamos todos dos trabalhos a serem desenvolvidos, justificando plenamente as parcerias institucionais estabelecidas. A proponente UFMT possui o único curso de mestrado em História do estado de Mato Grosso, e busca sua consolidação; para tanto, envida esforços no sentido de firmar um espaço de reflexão interinstitucional e ampliar suas redes de investigação. Na presente publicação, o compartilhar de esforços com a UNISINOS levou em consideração o fato de ambas contarem com grupos de pesquisa cujas temáticas e questionamentos possuem núcleos comuns, possibilitando uma real 1 Ver um dos resultados de trabalho deste PROCAD em MONTENEGRO, Antonio Torres et al (Orgs.). História: cultura e sentimento. Outras histórias do Brasil. Recife: UFPE; Cuiabá: UFMT, 2008. 510p. 7 Apresentação colaboração entre professores/pesquisadores e estudantes, criando laços de efetiva cooperação interacadêmica. Nos capítulos que compõem este livro estão contidos alguns resultados de atividades acadêmicas concretizadas em dissertações e teses defendidas ou em andamento nas duas IES, nas quais foram problematizadas temáticas referentes ao período colonial sul-americano. Os trabalhos apresentados analisam espaços que, no recorte temporal que lhes é comum, estavam localizados em áreas distantes dos centros dinâmicos da vida política, social e econômica dos domínios ibéricos, espaços de fronteira por excelência. Estas fronteiras são interpretadas em seu sentido mais amplo e complexo, ultrapassando a simples noção de limite, avançando rumo à compreensão da complexidade dos conflitos, das negociações, das análises sobre um lócus no qual se confundiam temporalidades, ambientes e modos de vida distintos, articulados às diversas dimensões relacionadas aos diferentes mecanismos de reterritorializações colocados em prática pelos dois impérios ibéricos coloniais. São fronteiras do sul, do centro-oeste e do norte sul americanos. Cada qual com suas especificidades, os estudos apresentados evidenciam pontos de acordos/atritos/conflitos, entre si, com seus entornos e com suas metrópoles, em ações que movimentavam essas realidades históricas. Ao ler os trabalhos produzidos no âmbito do Programa de Pósgraduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, vislumbramos uma capitania cuja superfície era de 65 mil léguas quadradas, limitando-se ao norte com o Grão-Pará, ao sul com a Capitania de São Paulo e a Capitania de Goiás, e a oeste com as possessões espanholas2. Os estudos apresentados sobre estas realidades ampliam o foco de visão e tomam como objeto práticas em diversos campos, que contemplam o movimento de ocupação e reocupação dos espaços, em território próximo às ainda pouco estudadas missões jesuíticas de Chiquitos e de Moxos. Criada em 1748, com seus limites ultrapassando a linha fronteiriça acordada com a Espanha, a base de sua população era predominantemente indígena, mas contava também com uma presença significativa do escravo negro, trazido para as lavras de ouro. 2 A Capitania de Mato Grosso era composta, no século XVIII, pelos atuais estados brasileiros de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. 8 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Zona de fronteira política em constante alerta, o território da Capitania de Mato Grosso merecia atenção especial da coroa portuguesa, evidenciada no cuidado com que eram escolhidos seus administradores; todos seguiam uma rígida política, traçada para consolidar o poder lusitano na raia oeste, com o objetivo principal de manter os castelhanos além Guaporé. Por conta disto, durante grande parte do século XVIII vigorou uma situação de constante tensão nas mais de quinhentas léguas entre os mal delimitados limites luso-castelhanos na América do Sul. Às questões de política internacional juntavam-se aquelas resultantes das idiossincrasias próprias da necessidade de convivência entre as múltiplas etnias e diferentes culturas que a habitavam. No interior desta multiplicidade, Tiago Kramer de Oliveira, em “Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade no centro da América do Sul (1734-1750)”, analisa o modo pelo qual os colonos luso-americanos se apropriaram de enunciados, que fundamentaram a estratégia da “geografia política” portuguesa, em relação à conquista do centro da América do Sul. O autor considera que, diferentemente das conquistas litorâneas empreendidas entre os séculos XVI e XVII, os súditos da coroa portuguesa que conquistaram os territórios do vale do rio Cuiabá (e depois ampliaram as conquistas para o alto e baixo Paraguai e o vale do Guaporé), invadiram territórios em litígio com domínios coloniais espanhóis e territórios de povos ameríndios, que mantinham relações de comércio, de alianças e de conflito com os exploradores e colonizadores castelhanos desde o século XVI. Além do mais, para Oliveira, a presença espanhola no centro da América do Sul e suas relações com os povos ameríndios, e destes uns com os outros, tiveram implicações determinantes para a formação de ambientes coloniais portugueses nesta região. Alessandra Resende Dias Blau, em “Roubo de índios, fugas e ataques na fronteira luso-espanhola – Capitania de Mato Grosso”, discute a participação de grupos indígenas localizados na repartição do Mato Grosso, na dinâmica de povoamento praticada pelo Estado português na fronteira oeste da América do Sul, no período compreendido desde 1752 até 1798, quando foi extinto o “Diretório dos Índios”. Por considerar que as formações ameríndias, como quaisquer outras, não são imutáveis, Blau, além de analisar o modo pelo qual as diversas sociedades indígenas participaram da dinâmica de povoamento, também buscou desvendar as redes de sociabilidade estabelecidas no entorno dos grupos indígenas da região. Focalizou, primeiramente, as 9 Apresentação estratégias colocadas em ação pelo Estado português, visando garantir para si as sucessivas “conquistas” de territórios indígenas milenares e, em seguida, tratou das tentativas de aldeamento de índios considerados “mansos”, e da política lusitana de inserção de diferentes grupos indígenas na ocupação e na defesa da fronteira. O estudo é beneficiário de documentação manuscrita e de fontes impressas, compostas por correspondências oficiais, em sua maioria, com o cuidado de colher, nas entrelinhas, o modo pelo qual os índios foram representados nessa documentação. Gilian Evaristo França Silva, em “A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII”, nos apresenta as festas e as celebrações promovidas pelo Senado da Câmara de Vila Bela da Santíssima Trindade, ao longo da segunda metade do século XVIII, tanto as ligadas a solenidades religiosas, quanto aquelas realizadas em razão de eventos associados à família real. Considera tais manifestações como práticas constitutivas das representações políticas e culturais vigentes no Império Português, e problematiza a produção de representações de poder no Guaporé, com vista a perceber sua utilização tanto por parte da coroa lusa quanto por parte dos poderes locais. Nos momentos festivos, as hierarquias sociais eram reafirmadas, e, ao mesmo tempo, os laços de pertença a Portugal eram reforçados nos colonos, que participavam de todas as etapas da vida de seus soberanos, assegurando a conquista do território a oeste, reocupando material e simbolicamente o espaço. O autor analisa as representações de poder que funcionaram como produtoras de imagens do monarca, da centralidade do império e dos poderes locais, representados pela câmara. Masília Aparecida da Silva Gomes, em “Os ‘gêneros do país’: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade (17481790)”, discute a constituição de uma paisagem agrícola voltada para a produção de alimentos e as práticas alimentares dos moradores de Vila Bela da Santíssima Trindade e seu termo, entre os anos de 1752 a 1790. Analisa a produção agrícola, articulando-a às demandas do mercado interno em crescimento e ao quadro maior de expansão e definição dos limites luso-americanos na fronteira oeste, na segunda metade do século XVIII. Ao mesmo tempo, baseando-se em documentação que registra a produção agrícola interna e o comércio de gêneros de diferentes categorias, vindos de outras regiões, discute as práticas alimentares em vigor, relacionando-as à produção interna e ao abastecimento 10 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos externo. Em sua análise, Silva Gomes evidencia a constituição de múltiplas paisagens rurais no Mato Grosso, nas quais diferentes agentes sociais trabalhavam na produção e transformação de diversos gêneros, reproduzindo e recriando práticas, movimentando uma complexa cadeia de produção que, de forma direta ou indireta, se interligava a outras atividades e aos mercados internos e externos. Nathália Maria Dorado Rodrigues, em “A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778)”, analisa questões relacionadas ao abastecimento da Capitania de Mato Grosso, cuja principal particularidade era possuir minas auríferas e estar localizada em área de litígio com os domínios hispânicos. Desse modo, medidas relativas à ocupação, à mineração, ao comércio e à agricultura, se orientaram a partir da preocupação com a fronteira. A autora evidencia que a Capitania de Mato Grosso, além de seus recursos internos, contava com duas vias de abastecimento: as monções do norte, que saíam do Pará, e as monções do sul, que saíam de São Paulo. Na via do norte atuava a “Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão”, criada durante a administração do Marquês de Pombal, com o objetivo de desenvolver economicamente a região e consolidar o poder luso. A Companhia de Comércio abastecia a capitania com produtos manufaturados de origem européia, asiática e africana, e os principais comerciantes de Vila Bela, embora atuassem também em outras frentes, estiveram atrelados aos seus interesses. Ao evidenciar os interesses privados e os metropolitanos, a autora demonstra que essas relações originaram diversos conflitos. Em relação aos estudos produzidos no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, o foco centrou-se nas atividades da Companhia de Jesus e em suas missões religiosas. Os estudos desenvolvidos analisam aspectos relacionados à atividade jesuítica em seu trabalho de conversão, observando seus espaços de atuação, seu cotidiano e as intenções políticas que moviam missionários e índios em suas diferentes práticas. Esses textos analisam relatórios pouco conhecidos, produzidos no interior dessas missões, em seus diferentes aspectos, que vão do processo de conversão às práticas de resistência indígena. Desse modo, João Ivo Puhl, em “Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados”, enfocou a situação das re- 11 Apresentação duções chiquitanas, localizadas atualmente no que se configura como oriente boliviano, na fronteira com o estado de Mato Grosso, que viviam uma situação de permanente conflito e tensão, por serem acossadas por colonos espanhóis e portugueses, mas também porque mantinham reunidos, precariamente, grupos de origens culturalmente diversas, um dos elementos característicos das Missões de Chiquitos. Puhl trabalha especialmente com o relato do Padre Julián Knogler, um dos religiosos em missão na área no momento do desterro dos jesuítas das colônias espanholas por determinação do decreto de 1767, de Carlos III. A partir desta fonte, analisa um rico conjunto de temas, entre os quais se destacam os processos de contato e conquista, organizados a partir das chamadas “caçadas espirituais”, expedições promovidas pelos padres, com ajuda de índios convertidos, para atrair outros índios para o interior das reduções, com o objetivo de inseri-los na cristandade européia. Luis Alexandre Cerveira, em “As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos”, aborda um tema que apenas recentemente tem merecido, no Brasil, maior atenção por parte dos especialistas: as chamadas “missões populares” ou campestres. Discutindo especialmente o conceito de “paixão”, termo que encontrou recorrentemente nas Cartas Ânuas do período investigado, isto é, o século XVII, o autor estuda as práticas desenvolvidas pelos padres da Companhia no sentido de disciplinar a moral e os comportamentos das populações (não indígenas) das áreas rurais na região do Rio da Prata. Entre as condutas que encontrou como mais severamente condenadas, e sobre as quais as interdições seriam mais severas, estavam várias que eram da ordem da moral sexual, tais como a luxúria, a sodomia e a bestialidade. Ao lado delas, estavam outras igualmente reprováveis, mas que se situavam em uma esfera diferenciada, como o ócio, a embriaguez, a prática dos jogos de azar, a avareza e a violência das relações interpessoais. De acordo com o autor, os jesuítas se referem, em suas correspondências, ao processo de “reforma” destes costumes, apresentando-o como um dos principais objetivos do trabalho missionário, bem como à sua convicção de que os ambientes rurais, marcados pelo isolamento e pelo afastamento da comunidade cristã, acabavam por brutalizar e “barbarizar” as populações campesinas. Fabiana Pinto Pires, em “Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai”, analisa a “adaptabilidade” que permitiu aos padres da Companhia atuar junto a povos e culturas 12 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos de naturezas variadas. Concentrando sua análise sobre o Paraguai do século XVII, a autora ajuíza sobre a forma pela qual os conhecimentos adquiridos, as reflexões e as práticas de discernimento produzem alterações nos documentos normativos da Ordem, permitindo novas experiências e reflexões. Segundo a autora, as próprias Constituições da Ordem oportunizaram um relativo grau de liberdade que todo o jesuíta deveria estar em condições de delimitar, isto é, dentro de fronteiras aceitáveis pela instituição. Desta forma, a dinâmica entre os regramentos institucionais e o princípio da adaptabilidade da Companhia articulam-se para possibilitar o trabalho missionário em áreas diferenciadas, ou junto a sociedades marcadas por fortes peculiaridades. Sabemos, contudo, que nem sempre a compreensão das características distintivas das sociedades americanas foi suficiente para garantir o sucesso das práticas catequéticas. Muitas vezes, embora percebendo as contradições entre o modo de vida nômade das sociedades de caçadores coletores e sua proposta de “missão por redução”, os jesuítas reafirmavam sua convicção de que a vida “policiada”, isto é, em pólis, era a que melhor representava a condição de humanidade. Daí as notáveis dificuldades que encontraram diante dos grupos do Chaco, ou junto às parcialidades que agregaram nas missões que ficaram conhecidas como “chiquitanas”, no oriente boliviano no século XVIII. Yesica Amaya, em “Itinerários de viagem pelos confins do território americano: os missionários jesuítas e a expansão para a área ao sul de Buenos Aires”, segue na discussão sobre o alargamento destes “limites”. A autora estuda o papel dos missionários jesuítas do Colégio de Buenos Aires no processo de expansão da fronteira sul dos territórios americanos na segunda metade do século XVIII, valendo-se das crônicas e dos diários de viagem de missionários que percorreram estas terras, como os padres Jose Cardiel, Thomas Falkner e Matias Strobel. Desta forma, o trabalho analisa o complexo conjunto de diferentes interesses que entraram em jogo no momento de definição e ocupação destes espaços, interesses estes que diziam respeito tanto aos objetivos da Coroa e da Companhia de Jesus, quanto àqueles particulares dos próprios missionários. A autora reflete, ainda, sobre as estratégias ensaiadas e colocadas em prática pelos atores envolvidos na expansão e exploração dos “confins do território americano”, bem como sobre as diferentes expectativas dos protagonistas destas viagens. 13 Apresentação Destaque-se, em todos os capítulos, o exercício desenvolvido a partir da análise de fontes primárias, manuscritas e impressas, compostas por registros iconográficos, cartas, ofícios, relatórios, processos-crime, relatos de viagens, obras literárias, todas tratadas como fontes historiográficas. Acreditamos que os estudos ora apresentados constituem-se em importantes contribuições a esta temática ainda pouco visitada pela historiografia regional e nacional, ao mesmo tempo que divulga uma rica documentação existente nos arquivos regionais. A perspectiva que norteia todos os trabalhos – e este é o projeto maior – é que estes espaços que não estão diretamente conectados com a “economia atlântica”, embora estejam global e geopoliticamente situados no interior de conexões maiores, não são meros reflexos de um sistema circundante e de seus determinantes. A mediação entre estes condicionantes mais amplos e as respostas locais, os desejos e as ações dos sujeitos que vivem concretamente as experiências que procuramos reconstruir na forma de narrativas historiográficas sugerem que observemos os processos de fronteira de modo a reconhecer suas particularidades. O resultado foram análises que, interconectadas a movimentos espaciais mais amplos, evidenciam movimentos de reconfiguração territorial desde o sul até o centro-norte da colônia, nos séculos XVII e XVIII. Apresentamos, pois, estudos que irão contribuir para o estabelecimento de debates historiográficos sobre uma história do Brasil menos conhecida – a de seus espaços interiores –, e desenvolver reflexões e propostas que contribuam para um redirecionamento das práticas de ensino de pós-graduação, enriquecidas por meio de uma política de efetivo intercâmbio de metodologias de trabalho. Isto certamente irá estimular a produção acadêmica, que será objeto de constante avaliação e interlocução entre os pesquisadores, além de divulgar e valorizar as fontes de pesquisa existentes em diferentes regiões do país, e mesmo fora dele. A aproximação entre alunos e professores proporcionada pelo desenvolvimento do Projeto tem permitido a consecução dos objetivos que foram propostos. Entre eles, devemos destacar os intercâmbios de estágios discentes de estudos e pesquisas, a participação dos professores em bancas de mestrado e doutorado nas instituições conveniadas, a organização de simpósios e mesas, em eventos nacionais e internacionais, além do fortalecimento das relações interinstitucionais 3. 14 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Talvez, um dos resultados mais destacados desta iniciativa se situe na esfera do importante aprendizado que temos experimentado sobre as dificuldades e os ganhos dos trabalhos coletivos, especialmente se considerarmos as distâncias envolvidas, as grandes diferenças regionais, e as particularidades institucionais que nos situam. É especialmente por isto que, como coordenadoras de duas das equipes do projeto, nos sentimos muito estimuladas ao trazer a público este livro. Registramos nossos agradecimentos à CAPES, por haver disponibilizado os recursos que possibilitaram esta experiência; aos colegas gaúchos, pernambucanos e mato-grossenses, que participam deste PROCAD, e especialmente aos alunos, que dão concretude ao que, no plano dos desejos, apresentamos como novos projetos a serem desenvolvidos. Leny Caselli Anzai (UFMT) Maria Cristina Bohn Martins (UNISINOS) Cuiabá-São Leopoldo, novembro de 2008. 3 Entre 22 e 24 de maio de 2008, um grupo de professores e alunos da UFMT e da UNISINOS participou do “I Congreso Internacional Chiquitano. La misión jesuita em territorio de frontera en América” ocorrido em San Ignácio de Velasco, Bolívia. Foram organizadoras do Congreso, pela UFMT, as professoras Leny Caselli Anzai e Tereza Cristina Cardoso de S. Higa, que também organizaram e compartilharam a Mesa “História, territorialidades, prácticas culturales en áreas de frontera”, orientada para o exame da importância das iniciativas missionárias em territórios de fronteira, analisando seus impactos em períodos históricos diferenciados. O Congreso foi organizado pela Universidad Católica Boliviana, Universidad Católica Técnica Particular de Loja( Equador), Universidade Federal de Mato Grosso, e Universidad Autónoma de México. Ver em http://www.utpl.edu.ec/congresochiquitos/ acesso dia 20 de julho de 2008, às 20 horas. 15 Apresentação 16 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade no centro da América do Sul (1716-1750) Tiago Kramer de Oliveira (...) sempre foram estes fidelíssimos e atenuados vassalos de Vossa Majestade, rompendo sertões aspérrimos, talando campanhas estéreis, sulcando caudalosos rios, tolerando constantemente fomes, sedes, calores e frios, tudo a fim de ampliarem os reais domínios de Vossa Majestade, servindo de muralha aos castelhanos, que ambiciosos os pretendem minorar. Oficiais da Câmara de Cuiabá ao rei, 19 de setembro de 1744 A epígrafe deste texto foi extraída de uma correspondência remetida pelos oficiais da câmara da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá ao rei em 1744. No trecho supracitado, os colonos luso-americanos apropriam-se de enunciados que fundamentaram a estratégia da “geografia política” portuguesa em relação à conquista da parte mais central da América do Sul. Anos mais tarde, no parecer sobre a criação da Capitania de Mato Grosso, o Conselho Ultramarino apontou que “se procure fazer a Colônia no Mato Grosso tão poderosa que contenha os vizinhos em respeito, e sirva de ante-mural a todo o interior do Brasil” (apud CANAVARROS, 2004, p.58). Mas, na epígrafe há outra questão importante. Os colonos atribuíam estas conquistas aos seus feitos e sacrifícios heróicos. A expansão territorial da coroa portuguesa no século XVIII em direção ao centro da América do Sul foi construída na memória dos brasileiros, sobretudo a partir do século XIX, como obra de “bandeirantes”, tornados heróis por uma historiografia particularmente paulista. No século XX Tiago Kramer de Oliveira possui Graduação e Mestrado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Foi bolsista Capes, e defendeu, em 2008, a dissertação “Ruralidade na terra da conquista: ambientes rurais luso-americanos no centro da América do Sul”. Atualmente cursa o Doutorado em História Econômica da Universidade de São Paulo, com bolsa Capes. E-mail: [email protected] 17 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira uma contra-memória, alimentada também pela historiografia, transformou estes heróis em vilões, opressores, destruidores de culturas indígenas. Por sorte a historiografia nas últimas décadas rompeu definitivamente com o voluntarismo e o personalismo, procurando entender, sem juízos de valor, o processo de formação de ambientes coloniais no centro do subcontinente americano. Analisamos este processo pelo que ele foi de fato: a desterritorialização de sociedades indígenas e a territorialização de ambientes coloniais. No entanto, este binômio (territorialização/desterritorialização) é insuficiente para entender o processo. Aliás, estas duas forças são anteriores à ação, ou seja, ao se espacializarem, ambas se reterritorializam, se recompõem no jogo das relações sociais. A utilização do termo espacialização (e os verbos derivados) em nossa análise subentende e tenta explicar este processo dialético que se materializa de múltiplas formas na terra da conquista. A conquista dos territórios que formariam a Capitania de Mato Grosso, no centro da América do Sul, não pode ser percebida apenas como avanço da colonização portuguesa para o interior da América. Diferentemente das conquistas litorâneas empreendidas entre os séculos XVI e XVII, os súditos da coroa portuguesa que conquistaram os territórios do vale do rio Cuiabá (e depois ampliaram as conquistas para o alto e baixo Paraguai e o vale do Guaporé) invadiram territórios em litígio com domínios coloniais espanhóis e territórios de povos ameríndios que mantinham relações de comércio, de alianças e de conflito com os exploradores e colonizadores castelhanos desde o século XVI. A presença espanhola no centro da América do Sul e suas relações com os povos ameríndios, e destes uns com os outros, tiveram implicações determinantes para a formação de ambientes coloniais portugueses nesta região. Em 1703, foi composto por Guilhaume de L’Isle uma peça cartográfica intitulada L’Amerique Meridionale. No detalhe deste mapa (Mapa 1), percebemos que muitos territórios não conquistados por espanhóis constam ali como parte das domínios de Castela. Se tomarmos esta representação cartográfica como uma imagem fidedigna dos domínios espanhóis naquele momento, estaremos sendo no mínimo ingênuos. Apesar de os espanhóis terem fundado missões jesuíticas e mantido contato com ameríndios, principalmente nas margens dos rios mais caudalosos, nunca fundaram ambientes coloniais estáveis na porção norte do que no mapa está representado como “Províncias do Rio de la Plata”. 18 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Assim como as outras tipologias documentais, a documentação cartográfica deve ser analisada além do caráter aparentemente descritivo. Mapear e construir representações cartográficas são também práticas de apropriação de espaço. Não é, obviamente, por desconhecimento que o autor incluiu territórios não conquistados efetivamente pela coroa espanhola nesta representação. A “cartografia da conquista” visava legitimar, manter e ampliar territórios, já que o Tratado de Tordesilhas não parecia, principalmente após a União Ibérica1, ser referência para a legitimação de conquistas territoriais. Do lado português (assim como do lado espanhol) o processo de conquista não se devia apenas à ação particular dos colonos, mas estava articulado aos interesses geopolíticos da coroa, que planejava, intervinha e promovia a conquista de territórios na Bacia do Prata. Em 1676, os portugueses fundaram Laguna na costa rio-grandense, e, em 1680, a Nova Colônia de Sacramento. Sobre a colonização portuguesa no extremo sul da América, na primeira metade do século XVIII, Fabrício Prado sintetiza: A fundação de Sacramento, associada ao avanço dos paulistas para o sul, às tentativas frustradas de ocupação de Montevidéu e à fundação do presídio de Jesus Maria José (futura vila de Rio Grande), e os avanços na Banda Oriental (fundação do forte São Miguel no fim de 1737), constituíram etapas de um avanço contínuo para o sul, que partia de duas frentes de colonização: uma desde o Rio de Janeiro, que materializou-se na fundação da Colônia, na tentativa de fundar Montevidéu, e na criação de Rio Grande, e outra desde São Paulo, representada pela fundação de Laguna e pelo avanço para o sul da expedição de João de Magalhães em 1725. Essas duas frentes atendiam a interesses complementares da Coroa e dos grupos locais, interessados em terras e acesso aos rebanhos, motivo principal do avanço desde São Paulo, além do acesso à prata potosina (escoada para a América portuguesa pelo comércio) e aos couros (principais atrativos para a manutenção da Colônia de Sacramento). As duas frentes articuladas constituíram a estratégia luso-americana de avançar sobre as terras do sul durante a primeira metade do século XVIII (PRADO, 2002, p. 35-36). 1 Período entre 1580 e 1640, de dominação espanhola em relação a Portugal e seus domínios. Embora submetidos aos espanhóis, os portugueses permaneceram com governo próprio no âmbito da União Ibérica. Este período foi marcado pela expansão territorial portuguesa na América, desde os territórios ao sul, em Rio Grande de São Pedro, até as costas do extremo norte, além da penetração em territórios além das áreas litorâneas tanto nas capitanias do norte quanto nas capitanias do sul. 19 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira A “frente paulista”, para utilizarmos o mesmo termo de Prado, desde pelo menos 1680, fazia suas incursões na região mais central da América do Sul (ROSA, 2006, p. 4), onde, cerca de 40 anos depois, começaria um processo efetivo de colonização nas “minas do Cuiabá”. Enquanto os colonos paulistas exploravam os rebanhos, aprisionavam ameríndios, também com o objetivo de abastecer um mercado interno em expansão, os fluminenses buscavam consolidar um porto comercial no extremo sul da América portuguesa e desenvolver contrabando com os colonos espanhóis, particularmente através de Buenos Aires. Bem mais ao norte da Colônia de Sacramento, na parte mais central da América do Sul, alguns fatores facilitaram a colonização portuguesa. A Guerra de Sucessão Espanhola, que ocorreu entre 1701 e 1714, diminuiu as ações colonizadoras dos castelhanos na América e os impediu de colocar em prática uma estratégia de conquistas dos territórios a leste das suas minas de prata. O número de navios que deixaram a Espanha com destino à América é um indício da crise espanhola. A “conexão entre a Espanha e suas colônias americanas diminuiu a níveis mínimos: entre 1701 e 1716, somente zarparam de Sevilha com destino às colônias 106 navios, com a média um pouco superior a seis unidades anuais” (AMEGHINO; BIROCCO, 1998, p. 34). Outros fatores que permitiram o avanço português e que nos ajudam a entender a relação entre as dinâmicas imperiais das coroas ibéricas no centro da América do Sul são apontados por Uacury Ribeiro Bastos em “Expansão territorial do Brasil Colônia no Vale do Paraguai (17671801)”. Para Bastos, a presença mbayânica na extensa faixa de terras que se estendia ao norte até o rio Taquari, e ao sul alcançava o rio Mboteteu foi determinante para a colonização portuguesa (BASTOS, 1979, p. 124135). Os principais povos Mbayá citados na documentação da primeira metade do século XVIII eram os Guaikurú e os Payaguá2. As relações que os Mbayá-Guaikurú mantiveram com os espanhóis, com os demais povos ameríndios e posteriormente com os portugueses revelam aspectos singulares da sociedade colonial engendrada no centro da América do Sul. Os Mbayá-Guaikurú, após a conquista da província dos Itatins, tornaram-se senhores de um vasto territó2 Segundo Maria de Fátima Costa, “Os Evuevi-Payaguá eram um povo da família lingüística Mbayá, também oriunda do Chaco. (...) Na chegada dos europeus, já estavam na bacia hidrográfica do Paraguai e se subdividiam em dois grupos intertribais, os Siacuá e os Sigaeco, que habitavam a parte sul, e os Serigué, os que ocupavam as terras inundáveis do Alto Paraguai” (COSTA, 2003, p. 89). 20 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos rio no vale do Paraguai, o que se configurou em uma conquista ameríndia entre as conquistas ibéricas, subjugando vários povos e aliando-se com outros. Com o domínio absoluto sobre a região, os Guaikurú renomearam a geografia do país. Nas “terras mbaiânica”, por exemplo, os rios Corrientes e Piray passaram a ser Apa e Aquidabam; o distrito que correspondia a Pitun, Piray Itati, passou a ser Agaguizo; o monte de San Fernando ganhou o nome de Itapucú-Guazú; o rio Guasarapo tornou-se Guache (COSTA, 1997, p. 37). A renomeação dos topônimos “evidencia a verdadeira supremacia destes índios sobre os territórios ocupados” (COSTA, 1997, p. 37). Com a conquista da província dos Itatins, os Mbayá-Guaikurú tornaram-se detentores de um imenso plantel de gado e de cavalos, fato que foi fundamental para que estes pudessem subjugar outros povos ameríndios e também impor-se aos conquistadores espanhóis e portugueses. Segundo Costa, “durante quase dois séculos estes índios foram senhores absolutos do território compreendido entre o Apa e o Mbotetey” (COSTA, 1997, p. 38). Percebendo a instabilidade das conquistas missionárias, sabendo do avanço de vassalos portugueses, e temerosa com a evasão da prata das minas andinas, a coroa espanhola vedou as comunicações de Assunção com os territórios fronteiriços às possessões portuguesas, o que obrigou os colonos assuncenhos a percorrerem um longo e incômodo caminho para que seus produtos chegassem a Potosí3. Na representação cartográfica (Mapa 2) fica evidente o quanto a medida da coroa espanhola afetou o comércio de Assunção com as regiões mineradoras do Peru, ao obrigar que os assuncenhos transportassem seus produtos via Santa Fé. Além da proibição de comunicações por meio dos territórios fronteiriços à América Portuguesa, a província do Paraguai sofreu sucessivas divisões políticas e administrativas. Entre 1680 e 1727 (ou: entre as incursões de Antonio de Campos Bicudo e Pascoal Moreira Cabral e a fundação da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá), a Província del Paraguay tinha passado por grandes partilhamentos político-administrativos. Desde pelo menos os anos 1560 fora cria- 3 Uacury Bastos destacou, justamente como outro fator determinante para a colonização portuguesa no centro da América do Sul, o “declínio” do “expansionismo assuncenho” (BASTOS, 1979, p. 59-75). 21 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira da a Santa Cruz de la Sierra, que desencadeou nova e corrente governación; logo depois, Moxo (ROSA, 2006 p. 4). A mudança de estratégia dos espanhóis em relação a suas conquistas foi um dos fatores que possibilitaram a investida portuguesa no centro da América do Sul. O partilhamento político-administrativo diminuiu o raio de ação dos assuncenhos, principalmente ao norte. É preciso reiterar, todavia, que a “ausência” espanhola não pode ser definida em termos absolutos. O “recuo” espanhol não significou o abandono das pretensões da coroa castelhana em garantir a posse dos territórios que, de acordo com a linha do Tratado de Tordesilhas, pertenceriam ao reino de Castela. As missões jesuíticas espanholas ampliavam-se cada vez mais e estavam bem próximas aos territórios que se constituíram, ao longo da primeira metade do século XVIII, como conquistas portuguesas, inclusive colocando em contato colonizadores de ambas as coroas. Os religiosos da Companhia da Província de Paraguai vão de Buenos Aires pelo rio acima (...) pelo rio Paraguai acima e pelos braços deste visitam as muitas missões (...); isto viram com seus olhos Pascoal Moreira Cabral e outros seus companheiros, primeiros descobridores do ouro de Coxiponé, porque estando na barra do rio Botetei, passaram os padres com bergantim e lhes ofereceram mantimentos que necessitavam; (...) (DEMONSTRAÇÃO, 1961, p. 206). O que motivava a invasão por colonos portugueses, principalmente advindos da Capitania de São Paulo, aos territórios ameríndios no centro da América do Sul era a reprodução de atividades que compunham o que se convencionou denominar de “sertanismo”. O “sertanismo” pode ser definido além da simples execução de atividades, como o aprisionamento e venda de ameríndios como escravos ou a procura e exploração de metais preciosos. As práticas sertanistas devem ser compreendidas articuladas a uma série de relações econômicas e sociais, sendo parte de um “sistema” que, do ponto de vista econômico, possibilitava a mobilização e reprodução de capitais e que, do ponto de vista social, provocou uma série de rupturas e reterritorializações. O próprio termo “sertanismo” tende a mascarar este caráter eminentemente mercantil e moderno destas práticas, encobrindo de rusticidade relações sociais, econômicas e culturais que, embora tenham contornos específicos, podem ser pensadas, ampliando a escala, como parte de um sistema de relações típicas do processo de acumulação de 22 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos capital na época moderna, assim como, guardando as devidas proporções, o tráfico negreiro. As minas do Cuiabá e a formação da ruralidade na terra da conquista O deslocamento das práticas sertanistas para regiões cada vez mais distantes do litoral atlântico ocorria tanto por vias terrestres quanto por vias fluviais. A reprodução destas práticas impulsionou o plantio de “roças” nas margens dos rios e caminhos de terra. Não é possível precisar quando foram formadas as primeiras espacialidades rurais luso-americanas nestes territórios; o que é certo, seguindo os indícios documentais, é que elas garantiram o abastecimento da empresa sertanista, e, ao mesmo tempo, funcionaram como fonte de lucros para os roceiros (DOCUMENTO 1). Muitas dessas roças, como aponta John Manuel Monteiro eram formadas com trabalho ameríndio, seja submetido a regimes de trabalho compulsório, muitas vezes encobertos pela instituição da “administração”, seja aliado aos colonos, de forma relativamente independente (MONTEIRO, 1994, p. 91). O caráter fronteiriço destas relações, entre colonos e povos ameríndios, extrapola o campo das indefinidas fronteiras geopolíticas entre territórios portugueses e espanhóis. Estes ameríndios reproduziam práticas sociais que os inseriam na sociedade colonial em relações de troca com os colonos, com a produção de excedentes, do mesmo modo em que em seus territórios reproduziam práticas locais de longuíssima duração. Ao mesmo tempo em que os ameríndios forneciam aos colonos produtos do seu trabalho, recebiam em troca produtos que modificavam a lógica da produção ameríndia, como as ferramentas de metal, por exemplo. De acordo com Monteiro, (...) a organização do trabalho colonial, ao impor mudanças radicais à divisão do trabalho indígena, também contribuiu para o processo de transformação da população nativa. Nas unidades coloniais, os índios mantinham roças para o seu próprio sustento, o que podia possibilitar a manutenção de um elo entre formas pré-coloniais e coloniais de organização da produção. Mas as exigências da economia colonial muitas vezes alteraram a divisão do trabalho a ponto de romper definitivamente os padrões tradicionais da agricultura de subsistência. (...) Mais ainda a utilização de ferramentas européias aprofundava esta ruptura. O testemunho de Jerônimo de Brito, senhor de um prestigioso plantel de escravos índios, é sugestivo nesta trajetória. Determinando a liberdade para todos os índios, este doou 23 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira a cada homem uma foice, uma enxada e um machado “para fazerem suas roças e sustentarem (...)” (MONTEIRO, 1994, p. 172). As relações entre ameríndios e colonos não se davam apenas pelo escambo, mas também na troca de mercadorias por dinheiro. Estas trocas ocorriam nos pontos de contato entre as sociedades ameríndias e parcelas da sociedade colonial. A repetição das trocas e a conseqüente regularidade destas transformavam parte da produção em excedente e, por conseguinte, em mercadorias, e, concomitantemente, as mercadorias produzidas pela sociedade colonial tornavam-se necessidades entre os povos ameríndios. A produção agrícola de ameríndios relativamente autônomos, possibilitando a expansão da exploração do trabalho ameríndio de forma compulsória, foi apenas uma das características da colonização portuguesa que demonstra a diversidade das relações mantidas entre colonos e povos ameríndios. Estas relações se tornariam ainda mais complexas com o posterior contato com povos como os Payagoá, Caiapó e Mbayá-Guaykurú, que mantinham, desde o século XVI, relações com os espanhóis. Mesmo considerando que práticas coloniais se espacializavam nos interiores da América do Sul, possibilitando a captura e tráfico de “negros da terra” e a procura e exploração de metais preciosos, foi somente após a descoberta de significativos veios auríferos nas regiões próximas ao rio Cuiabá que se espacializaram, de forma estável e interligada, ambientes coloniais fixos. Antes da exploração aurífera de forma sistemática, já se reproduziam, ainda que de forma embrionária, atividades produtivas que visavam o abastecimento. Quando se inicia a exploração de forma ordenada nas minas do rio Coxipó-Mirim, em 1718, percebe-se, por meio da documentação, que, simultaneamente à atividade mineradora, expandem-se atividades agrícolas (SÁ, 1975, p. 11). Mesmo que os indícios apontem para formação de ambientes rurais fixos desde pelo menos 1718, muitos autores construíram suas análises tendo como pressuposto o caráter improvisado e inconstante dos ambientes rurais. Estes pressupostos estão ancorados em uma tradição historiográfica que remete, entre outros autores, a Sérgio Buarque de Holanda. Este afirmou que “os benefícios mais seguros, embora também mais trabalhosos da lavoura, foram logo abandonados pelos do reluzente metal das minas” (HOLANDA, 1994, p. 138). O autor chega a dizer que 24 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos “os primeiros moradores do arraial cuiabano tiveram uma existência comparável à dos índios coletores e caçadores, existência que só se concilia com um modo de vida andejo e inconstante” (HOLANDA, 1994, p. 149). Mas esta tradição tem outras raízes, das quais destacamos: “Anais de Mato Grosso”, de Henrique Beaurepaire-Rohan, escrito em meados do século XIX. Tendo como base relatos de cronistas e documentos do Conselho Ultramarino, este autor afirma: Era tal o afã com que os primeiros colonos se entregavam aos trabalhos nas lavras, que nem sequer tratavam de prover aos meios de subsistência. A lavoura desprezada e as poucas plantações que havia pereciam já por falta de trato, já pelo rigor das estações. Nem lançaram mão da pesca, sendo aliás tão piscoso o rio (BEAUREPAIRE-ROHAN, 2001, p. 149). Argumento análogo ao do engenheiro militar carioca Beaurepaire-Rohan foi o exposto, por volta da década de 30 do século XX, por Washington Luís para explicar o não desenvolvimento da agricultura: A agricultura, tarda na retribuição ao trabalho, não se compactua com o desejo febril de enriquecer rapidamente; definhava, estiolava-se e recebia golpe de morte com a descoberta das minas de ouro, que, excessivamente remuneradoras, apesar dos quintos, absorviam a atividade de todos. O ouro era a única mercadoria de exportação; tudo o mais era importado do reino. O comércio local era mais que insignificante (LUÍS, 1938, p. 22). Nos mesmos documentos que estes autores utilizaram, encontramos indícios para contrapor suas afirmações. Seguindo a crônica de Barbosa de Sá, por exemplo, percebemos que, concomitantemente aos descobertos, os sertanistas “trataram logo de fabricar casas e lavouras pelas margens dos rios Cuiabá e Coxipó; extinguindo uma aldeia de gentio que se achava no lugar chamado hoje porto do Borralho” (SÁ, 1975, p. 11). Ocorreram, a partir de então, vários outros descobertos, o principal deles, no córrego Prainha, afluente do rio Cuiabá, No mês de outubro deste ano (1722) fez Miguel Sutil, natural de Sorocaba, viagem pra uma roça que tinha principiado na borda do Cuiabá. Lugar onde depois foi sítio de Manoel dos Santos Ferreira; chegando plantou o seu roçado e mandou dois carijós ao mel (...) (SÁ, 1975, p. 14). Analisando este trecho da narrativa, percebemos indícios da expansão de atividades rurais ao longo das margens do rio Cuiabá e a exploração de atividades complementares, como a extração de 25 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira mel 4. Do local onde se formaram as roças, nos descobertos do Coxipó, até o córrego do Prainha levava-se por volta de 18 a 20 dias de viagem pelo rio Cuiabá (DOCUMENTO 2). Além do relato de Barbosa de Sá, as cartas de sesmarias também fornecem indícios sobre a formação de ambientes rurais nos primeiros anos de conquista portuguesa no centro da América do Sul. Em muitas das cartas de sesmarias, concedidas partir de 1726, as autoridades foram informadas que os requerentes já ocupavam as terras há alguns anos, além de citar vizinhos não requerentes que também possuíam roças e criações (DOCUMENTO 3). As unidades produtivas multiplicaram-se na região das “minas do Cuiabá”, à beira dos rios (principalmente do Cuiabá), abastecendo os arraiais e povoados e um considerável fluxo de pessoas atraídas pelos descobertos de ouro e por oportunidades de explorar atividades comerciais e produtivas (CAMELO, 1961, p. 135-136). Ao norte, “rio Cuiabá acima”, em direção à Chapada, também percebemos a espacialização de ambientes rurais. Muitas unidades produtivas eram descritas como “roças”. Apesar do termo “roças” aparentemente fazer referência à agricultura, nestas unidades produtivas desenvolvia-se uma série de atividades. Além do plantio, principalmente de milho e de feijão, também havia criações de pequenos animais, como galinhas, porcos e carneiros, e, eventualmente, cabeças de gado; praticava-se ainda a caça, a pesca e outras atividades extrativistas. Esta, inclusive, foi uma das razões por optarmos pelo termo “ruralidade”, e não atividades agrícolas ou agropastoris, para caracterizar as práticas de reprodução social no meio rural. Na margem direita do descobrimento do Prainha, começou a ser edificado, em 1722, o arraial do Senhor Bom Jesus do Cuiabá. A partir de então, percebemos, pela documentação sobre este arraial, que aos poucos se delineou de forma mais concreta uma efetiva fronteira entre o urbano e o rural. Além dos interesses dos colonos, também havia, desde 1718, a intenção formal, do Conselho Ultramarino, em fundar colônia nas Minas do Cuiabá (ROSA, 1996, p. 65). Ainda segundo Carlos Rosa, “em fins de 1721, o bispo do Rio nomeou Vigário da Vara (juiz eclesiástico) para 4 Nos documentos observamos que o mel era ingrediente de vários remédios e bebidas. 26 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Cuiabá. Em 1723, criou freguesia ou comarca eclesiástica no Cuiabá, sediada na Igreja Bom Jesus, elevada a Matriz. Em junho, o rei mandou fundar vila no Cuiabá” (ROSA, 2003, p. 15). A ordem real de “fundar vila” só foi cumprida em 1727, com a vinda a Cuiabá do governador da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de Meneses. Gervásio Leite Rebelo, secretário do governador de São Paulo, construiu um relato sobre a viagem que, juntamente com o governador e mais uma comitiva com cerca de 3 mil pessoas, percorreu de São Paulo às “minas do Cuiabá”. Outro relato que analisaremos foi escrito por Cabral Camelo, que veio a Cuiabá no ano seguinte. A partir da análise destes relatos e de outros documentos, percebemos que no caminho fluvial as espacialidades rurais que abasteciam as monções ampliavam-se ao longo do tempo. No varadouro de Camapuã, Camelo aponta que havia “duas roças povoadas” e acrescenta: Esses dois pobres roceiros vivem como em um presídio, com suas armas sempre nas mãos; para irem buscar água, não obstante o terem-na por perto, vão sempre com guardas: no roçar, plantar e colher os mantimentos levam sempre todas as armas, e enquanto vigiam uns trabalham outros, mas sempre com espingardas à mão; e nem com toda esta cautela se livram de que em várias ocasiões lhes tenham os Caiapós morto a alguns: colhem contudo bastante milho e feijão, e o vendem muito bem; quando eu fui venderam a dezesseis e dezoito oitavas o milho; o feijão a vinte; e as galinhas porcos e cabras, como quiseram. A roça de cima tem já canavial e bananal, e está cercada toda de boa estacada (...) (CAMELO, 1961, p. 134). A territorialização portuguesa no varadouro de Camapuã significou a desterritorialização dos índios Caiapó de parte do seu extenso território, o que fica bastante evidente tanto na documentação quanto na cartografia da época. O fato de Camelo fazer referência a “dois pobres roceiros” que vivem em Camapuã, não deve nos levar a conclusões precipitadas sobre as características das paisagens rurais do varadouro. As roças de Camapuã contavam com a presença de trabalhadores escravos. Não temos uma estimativa do número, mas em 1728 um documento aponta que em “Camapuã como no caminho dos Goiazes, nestes poucos anos passados, tem feito os ditos gentios (Caiapó) muitos danos e hostilidades, porque só aos roceiros têm morto quarenta escravos” (DOCUMENTO 5). Apesar de o documento apontar a morte de “escravos” não sabemos se se tratavam apenas de escravos de origem africana, pois no mesmo documento fica evidente o costume de tomar os índios como 27 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira escravos. Fica claro, por outro lado, a marcante presença de escravos africanos, sendo inclusive estes que carregavam em fileira as cargas e empurravam os carros em que se transportavam as canoas que eram atravessadas de um lado a outro do varadouro, em um percurso que durava de quinze a vinte dias (CAMELO, 1961, p. 134). Além do trabalho escravo, a observação de Camelo de se tratarem de “duas roças povoadas” é sinal de que, além dos dois “roceiros” e de escravos, também outras famílias habitavam o varadouro de Camapuã. Seguindo o relato de Camelo há evidências de que, na medida em que este se aproximava da região das “minas do Cuiabá”, havia uma maior densidade de ambientes coloniais, o que pode ser percebido inclusive pelos elementos narrativos de seu relato. Ao entrar no rio Taquari, ele narra: Abaixo das itaipavas há duas roças, que se lançaram no ano em que eu passei aquelas minas; mas como até aqui chegam os Caiapós, não foram de muita dura: pelo Taquari abaixo se gastam dez ou onze dias, tem vários sangradouros, que formam grandes lagoas no Pantanal. Pantanal chamam os Cuiabanos a umas vargens muito dilatadas, que, começando no meio do Taquari, vão acabar quase junto ao mesmo Rio Cuiabá. Este Rio Taquari até o meio tem alguns matos, o mais tudo são campos; dizem que de uma e outra parte há gentios; mas supõe-se que são restos de algumas nações que os sertanistas conquistaram. Deste vi só três bugres, que traziam em sua companhia um Sargento-mor Paulista e eram agigantados (CAMELO, 1961, p. 135). O topônimo “Pantanal” merece atenção, pois mostra como em suas narrativas os colonos luso-americanos “parecem ignorar a tradição precedente tão imbricada no imaginário ocidental, pelas narrativas espanholas e pelas cartas geográficas universais. Nos seus caminhos nomeiam uma nova geografia” (COSTA, 1997, p. 171). Esta região descrita por Camelo, reconhecida pelos “cuiabanos” como Pantanal, era denominada pelos colonizadores espanhóis do século XVI como mar, lagoa ou terra de Xarayes (BASTOS, 1979, p. 25). Chegando ao rio que emprestara seu nome à Vila Real, Camelo descreve: Da barra deste rio serão vinte ou vinte dois dias de viagem. Ao quarto ou quinto dia se chega ao Arraial Velho, ou registro, que vem a ser uma roça com muito bom bananal: dia e meio acima desta roça está outra também povoada, e desta até os Morrinhos, que serão sete ou oito dias de viagem, a outras duas que dão bastante milho e feijão; porém, dos Morrinhos até a vila, que são seis ou sete dias, quase todo este rio está cercado de roças e 28 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos fazendas, como também quatro ou cinco acima da mesma vila, e em todas se plantam milho e feijão, em dois meses do ano, março e setembro; dão também excelentes mandiocas, de que se faz farinha; há nelas muitas e melhores bananas que as destas minas, e as suas bananas são mais suaves e de melhor gosto: tem já muitas melancias, e quase todo o ano, só os melões não produzem em tanta abundância; as batatas são singulares e não menos o são os fumos para o tabaco e pito (CAMELO, 1961, p. 138139). Camelo aponta que as roças eram plantadas duas vezes ao ano, março e setembro, o que era possível graças à possibilidade de ocupar grandes áreas para o plantio, pois era necessário um conjunto de ambientes com características diferenciadas. Devemos lembrar que nesta época, em Mato Grosso, assim como em todas as áreas de floresta tropical do mundo, o plantio de muitos gêneros era feito por meio de roças coivaradas, que, devido à abundância da terra e à pouca fertilidade dos solos, necessitavam de longos pousios, exceto nas roças de beira-rio, onde, uma vez desmatada a margem, as águas encarregavam-se de renovar anualmente a fertilidade do solo. Este plantio em março dava-se justamente à beira dos rios, aproveitando o adubo natural deixado pelas águas da vazante. A plantação em setembro, logo nas primeiras chuvas, era feita em partes mais altas, para que, quando o milho e o feijão estivessem prontos para serem colhidos, por volta de fevereiro, não estivessem sob as águas. Portanto, além de estar estrategicamente na rota das embarcações, a ocupação das beiras dos rios justifica-se pela fertilidade dos solos e pela possibilidade de plantio em épocas diferenciadas. Além das águas dos rios e dos córregos, também as chuvas eram fundamentais para as atividades agrícolas. Em uma agricultura como a praticada neste período a regularidade destes ciclos entre cheias e vazantes era fundamental. Uma não continuidade das chuvas a partir de setembro obrigaria o replantio das roças (REBELO, 1961, p. 129). Camelo faz referências ao “Arraial Velho, ou registro”, localizando-o cerca de cinco a seis dias de viagem pelo rio Cuiabá, onde também havia o “porto do Borralho”. Era um local importante para os sertanistas se abastecerem para o restante da viagem, mas também era o local do “registro”, ou seja, onde os homens e as mulheres que faziam parte das tropas pagavam tributos sobre os valores, os pesos e as medidas de suas cargas e seus escravos. Os Morrinhos provavelmente fazem referência à área onde atualmente se localiza a cidade de Barão 29 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira de Melgaço, no rio Cuiabá abaixo. Também era outro importante local de abastecimento. Camelo diferencia “roças e fazendas”. Apesar de esta diferenciação estar presente tanto na documentação oficial quanto nos relatos, muitas vezes é difícil distinguir e caracterizar as “roças” e as “fazendas”. Os termos “roça” e “roceiro”, de uma forma geral, caracterizam ambientes rurais de pequena produção, encabeçados por livres pobres. Já vimos, no entanto, que apesar da produção do varadouro de Camapuã ser marcadamente escravista, a forma de espacialização e os senhores destes escravos são descritos por Camelo como “roças” e “roceiros”. Há outras referências que caracterizam o ambiente rural de Camapuã como uma fazenda pertencente a dois sócios (CAMELO, 1961, p. 134). Não percebemos o contrário, ou seja, não há referências de fazendas de pequenos produtores não escravistas. Apesar destas ponderações acerca dos limites de uma caracterização precisa de roças e fazendas, acreditamos ser válida a percepção de uma e outra como ambientes rurais distintos. Esta distinção se constitui em instrumento analítico para as relações entre a produção escravista em larga escala e a produção rural dos livres pobres (que poderiam eventualmente utilizar o trabalho escravo em uma escala menor). Segundo Camelo, os principais produtos agrícolas eram o milho e o feijão, mas, além destes, plantava-se também mandioca, banana, melancia, batata, melão e fumo. Entre estes podemos destacar o fumo como um produto que, ao lado da produção de aguardente, que veremos adiante, alargava as potencialidades do comércio, já que se tratavam de mercadorias de grande circulação não só na América, mas no império português como um todo. A pesca era uma atividade desenvolvida desde o princípio da colonização, reproduzindo práticas portuguesas de longa duração. O peixe, fresco ou salgado, era vendido no mercado local (CAMELO, 1961, p. 139). A leste da Vila Real, nas espacialidades rurais no rio São Lourenço, as roças invadiam cada vez mais as margens dos rios em territórios dos índios Bororo. Ao norte, em território Pareci, os colonos avançavam em direção à Chapada (atual Chapada dos Guimarães), onde se reproduziram, especialmente, lavouras de cana-de-açúcar. Além de invadir os territórios ameríndios para reproduzirem atividades rurais, o aprisionamento/venda de índios era uma lucrativa atividade econô- 30 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos mica. Com a intensificação do processo de colonização, esta atividade não perdeu força. Entre as nações ameríndias que sofreram a violenta ação dos colonos, uma das mais “caçadas” foi a dos Pareci. Mas não foi o fato de serem alvos deste tipo de ação que confere aos Pareci singularidade entre os demais povos ameríndios. Cabral Camelo relata sobre eles: E gentio este (Pareci) que não faz mal a ninguém; são fracos e inábeis para a guerra, mas nem por isso deixam de ser engenhosos, e de rara habilidade para o mais: as fêmeas são como nossas bastardas, e boas para servirem uma casa com limpeza (CAMELO, 1961, p. 137). Muito mais do que descrever como estes índios se organizavam socialmente, o relato de Camelo permite ver a forma como os colonos valorizavam os Pareci como uma mão-de-obra diferenciada dos demais índios. Contudo, as imagens construídas sobre os Pareci não são homogêneas. O ouvidor de Cuiabá escreve ao rei, em 1731, queixando-se das mortes que os Pareci, segundo ele antropófagos, estariam causando aos colonos (DOCUMENTO 6). No entanto, prevaleceram, ao longo do tempo, as referências aos Pareci como “índios pacíficos”5. A relação dos colonos com os Pareci não foram pautadas apenas pelas práticas de aprisionamento. Os mesmos fatores que motivavam os colonos a invadir os territórios Pareci, também serviram de justificativa para as autoridades estabelecerem outras relações com estes ameríndios. Em 1732, Rodrigo César de Meneses escreve ao rei sobre os Pareci: Este habita ao norte da nossa povoação em grande distância, com estabelecimento de aldeias e lavouras para se sustentarem (...) é gentio muito pacífico e fácil de se domesticar (...) E por esta razão alguns sertanistas os vão buscar e trazem por força (...) o que se lhes deve mandar proibir sob graves penas (...) se deve esperar que ordene aos religiosos daquele Estado que mandem missionários (DOCUMENTO 1). Para os planos geopolíticos portugueses, a introdução de ameríndios na sociedade colonial pelo batismo, e a inserção destes nesta sociedade como súditos do rei português era parte do que, curiosa- 5 Sobre a relação entre colonos e índios Pareci, e particularmente a construção da imagem de “índios pacíficos”, ver Canova, 2003. 31 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira mente, se convencionou chamar de “política de povoamento”, o que na verdade se constituiu em política de colonização, já que a densidade demográfica, se levarmos em conta as sociedades indígenas (maioria absoluta da população), diminuiu consideravelmente nas áreas colonizadas. São vários os documentos que apontam na direção de tentar coibir que os sertanistas continuassem escravizando os Pareci. O juiz ordinário de Cuiabá acusa, em 1732, os sertanistas de prender ameríndios Pareci e vendê-los como “cativos” (Documento 5). O Conselho Ultramarino, em 1734, condena o aprisionamento dos Pareci e, seguindo o parecer de Rodrigo César de Meneses, recomenda o envio de missionários (DOCUMENTO 7). É possível inferir, analisando estes documentos, que as tentativas de coibir a ação dos colonos não tiveram êxito. O fato é que os Pareci foram explorados pelos colonos que praticavam o lucrativo “comércio de gentios”, assim como se incorporaram e foram incorporados de outras formas à sociedade colonial. O Conselho Ultramarino é informado sobre a presença de ameríndios Pareci em São Paulo. E também é notório que os índios Pareci, pelo menos aqueles que habitavam “ao norte da Vila Real”, passaram a integrar ambientes coloniais, urbanos e rurais, nestes últimos praticando a agricultura, a pesca e a salga de peixes (DOCUMENTO 1; SÁ, 1975, p. 18; ROSA, 2003, p. 23). A formação de ambientes rurais no centro da América do Sul, nas primeiras décadas de colonização portuguesa, engendrou ambientes diversos, tanto do ponto de vista das paisagens rurais quanto da diversidade de agentes sociais que encontraram nestas atividades possibilidades de reprodução social e econômica. A expansão das conquistas e a consolidação da posição portuguesa iriam cada vez mais inserir esta “ruralidade” no âmbito da América lusitana e do império português como um todo, articulando-se, por exemplo, a geografia política da coroa em relação aos seus territórios ultramarinos. As “minas do Mato Grosso” e a expansão das conquistas portuguesas Durante todo o período de conflito com os Payagoá, a sociedade colonial portuguesa engendrada “nas minas do Cuiabá” não ficou estagnada. Concomitantemente à “guerra justa”, os portugueses continuaram expandindo sua presença no centro da América do Sul. Se ao sul da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá e ao norte de Assunção a 32 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos presença mbaiânica dificultava a colonização tanto portuguesa quanto espanhola, os colonos portugueses avançam a oeste da Vila Real. Saindo de Cuiabá, os sertanistas portugueses aprisionavam índios Pareci e procuravam metais preciosos. A descoberta de ouro no vale do rio Guaporé, em território Pareci, em 1734, deu um novo impulso à colonização portuguesa no centro da América do Sul. A descoberta e conquista dos territórios seguiu o padrão das conquistas portuguesas na região: aprisionamento de índios, procura por metais preciosos, descobertas, conquistas e efetivação da colonização. No entanto, este processo era cada vez melhor planejado pelos colonos, que buscavam garantir as condições necessárias para a sua permanência. Os colonos e autoridades metropolitanas sabiam que a efetivação das conquistas dependia de muito mais que o “reluzente brilho do metal”. Segundo Barbosa de Sá, apesar de, como afirma Canavarros (2004, p. 187), se enganar em relação às datas em que ocorrem os descobertos de Mato Grosso: Partiu em princípio deste ano (1731) o sargento mor Antonio Fernandes de Abreu com os descobridores das Minas de Mato Grosso e outros muitos a lançarem roças nos ditos descobrimentos. Por lá levaram todo este ano examinando as minas e depois de feitas as roças voltarão em dezembro dando notícia miúda daqueles sertões (SÁ, 1975, p. 32). O desencontro das datas entre os autores não nos permite precisar o tempo em que estes colonos permaneceram nas minas do Mato Grosso, mas tudo indica que tenham ficado aproximadamente um ano, tempo suficiente para plantar as roças e criar condições seguras para o retorno. Muitos mineradores que foram de Cuiabá para Mato Grosso levaram suas “mulheres e famílias” (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 15), o que possibilitou e ocasionou não só a consolidação dos ambientes rurais, como também de ambientes urbanos. Observando uma representação cartográfica de 1746 (Mapa 3), podemos ter uma noção aproximada da disposição das espacialidades coloniais portuguesas na “Chapada das Minas do Mato Grosso”, região banhada por vários rios e córregos e de grandes reservar auríferas. O arraial de Santana não está representado na legenda no quadro no alto da imagem, à direita, mas está no corpo da imagem, nas bordas da chapada, próximo de várias lavras de ouro. 33 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira Em 1734, segundo Barboza de Sá, é levantada uma capela em Santa Anna (SÁ, 1975, p. 35). Neste mesmo ano começa a ser formado o arraial de Pilar (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 14), que na figura está representado com a legenda 7 (entre o Arraial de Santa Anna e as lavras do córrego Monjolo), onde foi “edificada outra capela, dedicada à mesma Senhora” (FONSECA, 2001, p. 18). Em 1736, foi edificado o arraial de São Francisco Xavier (FONSECA, 2001, p. 14-15) (que na legenda do Mapa 3 corresponde ao número 2). Localizava-se mais a oeste, em um vale entre as serras da chapada. Em São Francisco Xavier, “as casas são fabricadas de madeira e barro e algumas de pedra insossa, todas térreas e somente uma morada de taipa de pilão com seu sobrado, coberta de telha, e quatro mais têm a mesma cobertura” (FONSECA, 2001, p. 18). Este último era o mais importante dos arraiais, onde se concentravam instrumentos de poder, tanto da coroa quanto da Igreja, Neste ano em 28 de novembro tomou posse da Capelania destas minas, o padre Pedro Leme, provido pelo mesmo Reverendo Vigário da Vara e da Igreja de Cuiabá, acima nomeado, e lha entregou o padre Manoel Antunes de Araújo que desde que se fez a Capela de São Francisco Xavier, se passou para a Chapada a exercer nela o ofício paroquial, por se achar ali junta a maior parte do povo destas Minas6 (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 18). Além dos arraiais, lavras e córregos, o último item da legenda faz referência às “roças que há em circunferência da chapada”, que correspondem aos círculos, desenhados em várias partes do mapa. Fonseca, em suas “Notícias sobre a situação de Mato Grosso e Cuiabá”, escreveu sobre as “minas do Mato Grosso”: Negros da Guiné escravos consta pelo livro da matrícula da capitação, haver o número de mil e cem, dos quais somente seiscentos é que poderão empregar nas faisqueiras e nas lavras, por se ocupar o resto de lavouras de mantimentos; cujas fazendas se acham estabelecidas na planície em circunferência da chapada, entre esta e o Sararé (FONSECA, 2001, p. 16). Na representação cartográfica podemos perceber que o rio Sararé “desenha” esta “circunferência”. A planície banhada, além do rio Sara- 6 É significativo que os cronistas destaquem a construção das capelas como marco da edificação dos arraiais. Em um artigo recente, o historiador Francisco Eduardo de Andrade destacou o papel das capelas no processo de colonização portuguesa em Minas Gerais e sua importância para “o enquadramento social da população” (ANDRADE, 2007, p.151-166). 34 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos ré por vários córregos afluentes, permitiu o plantio dos gêneros agrícolas que eram comercializados localmente. Nos “Anais da Vila Bela” consta que os arraiais de Mato Grosso, em 1736, eram abastecidos de milho pelas “roças e plantas do mesmo descoberto”, assim como dá a entender que os cortes de carne também são de criações locais (ANAIS DA VILA BELA, 2001, 16; FONSECA, 2001, p. 17). Outras mercadorias vinham da produção de Cuiabá, ou via Cuiabá, por meio do comércio monçoeiro. A ligação de Cuiabá às minas do Mato Grosso era feita, nos primeiros dois anos de colonização, por um caminho misto, fluvial e terrestre. Em 1736 foi aberto um caminho por terra, que encurtou o tempo da viagem de Cuiabá a Mato Grosso. Além da agricultura e da pecuária, a pesca exerceu um papel muito importante no abastecimento do mercado local. A exemplo de Cuiabá, desde o princípio da colonização o peixe era vendido seco ou salgado. A pescaria do rio Sararé marcou inclusive a toponímia da região. Em 1738, em uma viagem pelos rios Sararé e Guaporé, Salvador de Espinha deu início às atividades pesqueiras nos rios Guaporé e Corumbiara. Nos “Anais da Vila Bela da Santíssima Trindade” consta: Desta navegação do Espinha que foi o primeiro que fez pescaria neste rio Guaporé, e levou de volta para a Chapada; que seguiram as pescarias por este rio abaixo, não passando porém da barra do rio Verde, por haver noticias que daí para diante tinha o rio muito gentio, e com esta insinuação mandou o brigadeiro Antonio de Almeida Lara a Antonio de Almeida Moraes, homem bastardo, a examinar, com ordem que topando com as aldeias de Castela voltasse, e daqui, se seguiu a abrir esta conquista ao gentio que ao depois seguiram muitos outros; e daqui também se seguiu o conhecimento que no rio Corumbiara (...) que na margem ocidental deságua no Guaporé, tinha ouro, por cujos sertões andaram estes conquistadores sempre na parte do oriente do Guaporé; e alongando-se por ele abaixo, até com a descoberta dos Arinos de que ao diante se fará menção, se deixou esta conquista de descobrimento do Corumbiara, com o qual junto com os sertanistas, se foram também estabelecendo pescadores pelo rio abaixo (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 17-18). Neste trecho fica claro que a atividade pesqueira na região do rio Guaporé e do rio Corumbiara antecedeu outras práticas econômicas, como o aprisionamento de índios e a exploração aurífera, e que a pescaria articulou-se com estas atividades. Pelo mês de abril de 1742, se associaram Tristão da Cunha Gago, João da Borba Gato, Mateus Corrêa Leme, Francisco Leme do Prado, Francisco 35 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira Borges Miranda, Dionísio Bicudo, naturais desta Capitania de São Paulo, com Manuel Felix Lima, Joaquim Ferreira Chaves, Vicente Pereira de Assunção e Manuel de Freitas Machado, naturais do Reino, assistentes todos no arraial da Chapada de São Francisco Xavier do Mato Grosso e suas vizinhanças do distrito desta Comarca do Cuiabá e determinaram seguir todos viagem pelo rio Guaporé Abaixo (...); chegado ao rio Guaporé em sítio chamado da Pescaria, fabricaram mais algumas canoas e com toda cautela e vigilância se prepararam de mantimentos e mais necessário para a viagem (...) (PEREIRA, 2001, p. 11). Os pescadores que se estabeleceram ao longo do rio Guaporé também desenvolveram atividades agropastoris, o que passou a ser muito importante para possibilitar explorações e contatos dos súditos da coroa portuguesa com os castelhanos. Os sócios desta empresa de exploração ambicionavam, sobretudo, fazer contato com as missões jesuíticas e estabelecer relações comerciais com os vizinhos espanhóis. Além do aprisionamento de índios e da exploração aurífera, o comércio do pescado e dos mantimentos garantiu a continuidade da expansão da conquista portuguesa na região de litígio em relação à coroa espanhola. Nos “Anais da Vila Bela”, é apontado que os sertanistas, que adentraram os territórios ao longo do rio Corumbiara, em 1746, antes de fazer o “exame de ouro”, precisaram “primeiro vencer muito gentio que aquela campanha tem e saindo para fora ao rio Guaporé”. Foi o “primeiro ano em que se foram situar em forma de arraial na ilha Comprida”. Neste povoado, uns saíam à pescaria, que seca ou salgada, trazia a vender a estas minas, e outros tomavam aos sertões à conquista do gentio, e ao mesmo tempo entravam os padres Missionários das Índias de Espanha a fundar aldeias que fizeram na margem oriental deste rio, ajudados para isso dos mesmos portugueses a que pediram várias vezes ajuda para domarem o gentio (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 21). Havia uma evidente articulação das atividades extrativistas e agrícolas com outras atividades econômicas e com a geopolítica, inclusive antecedendo e possibilitando estas outras atividades. Os sertanistas encontravam nestas espacialidades rurais os mantimentos que necessitavam, a segurança para descansar e preparar-se para seguir viagem. As autoridades coloniais e metropolitanas também se favoreciam com a formação destas espacialidades rurais que, além de efetivar a conquista de territórios indígenas, possibilitavam o avanço cada vez mais a oeste, próximo dos territórios espanhóis, em relação aos quais podiam ter in- 36 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos formações mais consistentes. Percebemos que a pesca e as atividades agrícolas não têm apenas um caráter acessório e secundário para outras atividades, mas que possuem uma relativa autonomia em relação às atividades econômicas e aos interesses geopolíticos. Embora não apareça na última imagem que analisamos, o Porto Geral do rio Sararé era conhecido como “Porto dos Pescadores” ou “sítio da Pescaria”. Navegando pelo rio Sararé acima, os pescadores estabeleceram-se ao longo do rio Guaporé abaixo, juntamente com sertanistas que exploravam ouro e aprisionavam índios (ANAIS DA VILA BELA, 2001, p. 21). Em outro mapa (Anexo 4), em escala menor, percebemos a ligação entre o rio Sararé e o rio Guaporé. Apesar do mapa ser datado de 1769, percebemos que várias destas espacialidades formaram-se ainda na primeira metade do século XVIII, antes da fundação da Capitania de Mato Grosso e da Vila Bela da Santíssima Trindade. Nota-se que também ao longo do rio Alegre, afluente do Guaporé, formaram-se espacialidades rurais. Até 1736, as “minas do Mato Grosso” e “as minas de Cuiabá”, ambas no âmbito administrativo da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, ligavam-se aos ambientes coloniais portugueses mais próximos do litoral atlântico pelo caminho fluvial percorrido pelas monções. Em 1737, o caminho de terra que ligava Cuiabá a Goiás foi concluído (SÁ, 1975, p. 36-37). A estrada de terra de Cuiabá a Goiás, além de constituir-se em uma via de comércio alternativa às monções, desempenhou um papel fundamental para a conquista de territórios de índios, principalmente dos Caiapó e Bororo, e ainda efetivou, com a edificação de povoados, a conquista de territórios que constituíam uma lacuna entre as conquistas portuguesas no litoral e no extremo oeste. Entre a Vila Boa de Goiás e a Vila Real do Cuiabá, as ligações passaram a ser cada vez mais intensas, preenchendo de roças, engenhos, sítios os caminhos que levavam de uma a outra vila, consolidando cada vez mais a posse portuguesa destes territórios. As “cavalarias e gado” que foram trazidas ao longo dos anos pelo caminho de terra também tiveram impacto sobre a dimensão territorial da conquista. Principalmente a partir da década de 1740, o gado invadiu a porção norte do Pantanal, possibilitando a espacialização de fazendas, que, além de muito gado, contavam também com trabalho escravo, de negros e ameríndios, e com trabalho livre de camaradas e 37 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira agregados. As cartas de sesmarias, principalmente a partir da década de 50, são indícios da espacialização das fazendas nesta região. A colonização portuguesa avançava, espacializando ambientes coloniais articulados em uma diversidade de atividades econômicas: comércio, mineração, agricultura, pecuária, atividades extrativistas. Este avanço aproxima-se cada vez mais das missões jesuítas espanholas de Moxos e Chiquitos. Em 1736, havia 24 missões em Moxos e 10 em Chiquitos, somando ao todo 47 250 índios (CANAVARROS, 2004, p. 292). O primeiro contato de que se tem notícia entre portugueses e as missões jesuíticas espanholas ocorreu em 1740 (CANAVARROS, 2004, p. 216). Outra viagem exploratória para o território espanhol ocorreu em 1742 e partiu do arraial de São Francisco Xavier. Esta viagem foi minuciosamente relatada em uma “Relação” feita pelo ouvidor geral da comarca de Cuiabá, João Gonçalves Pereira (PEREIRA, 2001). Mesmo antes de se explorar a rota Guaporé-Madeira havia ambientes rurais que possibilitavam o abastecimento das embarcações, além de tornarem-se locais estratégicos de contatos entre os súditos das coroas portuguesa e espanhola. Sobre o contato com a missão de São Miguel, se lê: No dia 12 de julho chegaram à missão de São Miguel, na qual foram recebidos pelo padre principal Gaspar do Prado, com grandes júbilos de alegria e com muita caridade (...) se resolveram rodar rio abaixo e subiram pelo rio Itonamas com muito trabalho pela grande correnteza que tem, e chegando a dita missão Santa Maria Madalena, foram recebidos pelo padre principal José Reiter com grande prazer e alegria e com a mesma os hospedou com grandeza; (...) a vista de que resolveram (...) seguir a viagem para a Exaltação de Santa Cruz, na qual foram recebidos pelo padre principal Leonardo de Valdivia com as mesmas demonstrações de alegria (...). Vendo o dito Francisco Leme do Prado e companheiros o bom agasalho que lhe faziam os padres, especialmente o principal da missão da Exaltação no discurso de dezoito dias que nela estiveram, lhe ofertaram algumas coisas que levavam e somente aceitaram alguma (sic) miudezas e um retalho de seda para espaldar do lado de um altar, também prendaram os índios com algumas facas flamengas, pentes, fitas, miçangas ou fio de contas, e os padres lhe remuneraram a oferta com algum, pão de sal, açúcar, cera branca, sabão, vinho, pão de trigo, biscoito, aguardente de cana, pano de algodão, livros espirituais e outras miudezas. (...) Nos fins de fevereiro do presente ano chegaram ao Mato Grosso os ditos Tristão da Cunha Gago, João da Borba Gato e Antonio de Almeida Morais, com as suas tropas com bastante gentio de várias nações que conquistaram, e alguma amostra do ouro que acharam em seis ribeirões pelo discurso do sertão que sulcaram, (...) (PEREIRA, 2001, p. 11-15). 38 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Além de visitar as missões jesuíticas, os sertanistas foram os primeiros, de quem se tem notícia, que empreenderam viagem de Mato Grosso ao Pará, a partir do rio Guaporé (ANAIS DE VILA BELA, 2001, p. 20). Esta aproximação entre colonos portugueses e missões jesuíticas dava-se entre os dois estados da América portuguesa, o Estado do Brasil e do Grão Pará e Maranhão, e com bastante cautela de todos os lados. O extremo oeste não era o único espaço a contar com o interesse dos sertanistas. Em 1746, no curso do rio Arinos, expandia-se a conquista ao norte. José Gonçalves da Fonseca relata com detalhes as experiências dos colonos na região dos Arinos: Só com o pensamento de conquistarem algum gentio: e não achando em que fazer preza, sucedeu que em um ribeirão, (...) viram alguma disposição de haver nele ouro: (...), e acharam com efeito algumas mostras. Recolhida a bandeira ao Cuiabá, não deu o cabo dela conta a ministro algum do sucedido: e somente andava entre os moradores o sussurro de que no Arinos havia ouro, pelo que nesta matéria ficaram os referidos aventureiros. (...) Fizeram logo algumas experiências, e sem entrar no ribeirão dos primeiros descobridores acharam algumas mostras, que fez cômputo de umas quatro oitavas de ouro, que remeteram logo ao dito mestre de campo, o qual sem esperar mais averiguação, as mandou ao ouvidor de Cuiabá, Manoel Antunes Nogueira, dando-lhe conta do sucedido. Com estas notícias se comoveu o povo de Cuiabá, e não menos o do Mato Grosso, que desamparando faisqueiras, roças, e ainda as próprias casas, seguiram em vários ranchos o mestre de campo (...) seguiu viagem à parte mencionada, aonde logo formaram arraial (...). Estabelecido assim o arraial, se ocuparam aqueles novos povoadores em plantar roças de mantimentos, e depois desta operação, se seguiu a diligência a socavar o terreno, sem mais utilidade de que a de acharem algumas poagens, que não faziam conta (...) (FONSECA, 2001, p. 25-26). Tão logo foram descobertas as minas dos Arinos, os comerciantes cuidaram de abastecer a incipiente povoação de ferramentas, sal e outros mantimentos que não se produziam no local. Além de buscar lucros, as práticas comerciais impulsionavam a exploração de novos caminhos, a descobertas de rotas e marcavam territórios, avançavam as fronteiras (FONSECA, 2001, p. 27). A colonização dos Arinos não foi bem-sucedida, não pela característica efêmera do projeto de colonização, mas ao contrário, o que não possibilitou a efetiva colonização destas minas foi a não possibilidade de colocar em funcionamento as engrenagens de sua reprodução social, já que os achados auríferos não 39 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira se mostraram rentáveis e a região não estava no curso de nenhuma importante rota de comércio (FONSECA, 2001, p. 28). Mesmo assim, deve-se tomar com cautela a afirmação de que a região das minas dos Arinos foi completamente abandonada. A busca por novos achados ao norte resultou na descoberta das minas do Alto Paraguai, segundo Joaquim da Costa Siqueira, ainda em 1746, Foi o doutor ouvidor desta vila ao arraial do Paraguai, fez justiça, juízes ordinários e oficiais deles para o regimento do povo, fez partilhas das terras minerais e tudo mais que convinha para o bem comum e retirou-se para esta vila. Chegado que fosse (sic), divulgou-se que havia diamantes nos ditos descobertos, formou um sumário de testemunhas e, achando certo mandou logo despejar o povo e por guardas para que não se lavrassem mais as minas. Retirou-se o povo com outra tal perdição, como a que causou o descobrimento dos Arinos, sobrevindo uma seca que não se viu chuva senão nos fins de 1749, que pôs estas povoações a extrema miséria, que não só padeceram as gentes, com também os animais (SIQUEIRA, 2001, p. 60). A colonização do Alto Paraguai, assim como a dos Arinos, malogrou. A descoberta de diamantes e o monopólio da coroa portuguesa sobre sua exploração, fizeram com que as autoridades metropolitanas ordenassem a evasão da região do Alto Paraguai (SIQUEIRA, 2001, p. 60). O relato de que não só padeceram as pessoas, mas “também os animais”, sugere que se desenvolveram em curto período de tempo atividades agropastoris na região. A rota Arinos-Tapajós não se tornou regular como o trajeto pelo rio Guaporé. Cremos que os principais motivos para este fato foram os descobrimentos de diamantes na região do Alto Paraguai7, os interesses geopolíticos portugueses em avançar a conquista para os territórios em litígio com a coroa espanhola (CANAVARROS, 2004, p. 232) e os interesses dos comerciantes e também da coroa portuguesa em manter relações comerciais com os espanhóis. Em representação cartográfica (Mapa 5) de 1746, além de ser construída uma imagem parcial dos domínios portugueses, podemos perceber que havia um caminho por terra que ligava o arraial de São Francisco Xavier à missão de San Rafael (Mapa 6). 7 A exploração de diamantes na região do Alto Paraguai foi proibida pela coroa, devido ao monopólio real sobre sua exploração. 40 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Além desta ligação por terra, ao longo do rio Guaporé acima, as missões jesuíticas espacializavam-se, principalmente na margem oriental dos rios amazônicos. Se as relações metropolitanas entre Portugal e Espanha eram tensas, na fronteira entre as duas Américas estreitavam-se os laços entre lusos e hispano-americanos. Além de demonstrar a cooperação entre os súditos das duas coroas ibéricas, percebemos que ambientes de produção rural, como a Ilha Comprida, se consolidaram como espaço da atividade pesqueira e também como produtor de gêneros alimentícios. As espacializações coloniais, tanto portuguesas quanto espanholas, marcavam a posse de territórios que permaneciam sem legitimação oficial desde o Tratado de Tordesilhas, e que só foram delineados com alguma precisão a partir do Tratado de Madri, assinado em 1750. Nos anos que antecederam o Tratado de Madri, a coroa buscava garantir os territórios colonizados pelos luso-americanos e agia estrategicamente para alcançar tal objetivo. De fato, na conjuntura político-administrativa de 1748, muita coisa havia mudado em relação ao Extremo Oeste. Em dezembro de 1745, o papa Bento XIV criava duas Prelazias na região: Vila Boa e Cuiabá. Em agosto de 1746, D. João V, finalmente, enviara a ordem para se fundar uma vila às margens do Guaporé que seria a futura Vila Bela. Enquanto isso, os jesuítas continuaram a instalar missões a oriente daquele rio, como Santa Rosa, na foz do Itonamas, São Miguel e São Simão, ambas rio-acima. Mas o grande acontecimento foi a criação das Capitanias Gerais de Mato Grosso e Goiás, pelo alvará régio de 9 de maio de 1748. Essa iniciativa da Coroa Portuguesa, há muito esperada e até esboçada, visava consolidar as posições lusitanas, não apenas nas conversações sobre limites em Madrid, iniciadas em 1746 após a morte de Felipe V, mas no terreno concreto das fronteiras vivas. Os dois princípios que nortearam os negociadores, balizas naturais e uti possidetis, tinham no Guaporé e no Paraguai seu maior teste, para o qual a política patrimonialista de D. João V vinha se preparando há muito tempo, desde a fundação da vila de Cuiabá (...) (CANAVARROS, 2004, p. 232). Entre 1716 e 1750, os marcos temporais da pesquisa que desenvolvemos, espacializaram-se no centro da América do Sul ambientes coloniais espanhóis e portugueses. Estes últimos, embora alcançassem o centro do subcontinente mais de um século após os primeiros, favoreceram-se da conjuntura da política imperial hispânica e das características espaciais para colonizar as regiões ricas em ouro, primei- 41 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira ro nas “minas do Cuiabá” e depois nas “minas do Mato Grosso”. Percebemos que os ambientes rurais que se espacializaram junto com estas conquistas faziam parte de seu engendramento, garantiam a efetiva conquista da terra, essencial para a posse por meio do uti possidetis, além de garantirem a circulação de mercadorias, fundamentais para a reprodução social e econômica dos colonos. Ao longo do caminho essencialmente fluvial que ligava São Paulo e Cuiabá, formaram-se, ao longo dos rios, roças, sítios e fazendas. No varadouro de Camapuã, consolidaram-se ambientes rurais. Nos rios Paraguai, Taquari, São Lourenço até chegar ao “Arraial Velho”, e ao longo dos afluentes destes rios, espacializaram-se ambientes rurais que forneciam mercadorias à Vila Real e aos comerciantes que transitavam nestes caminhos. No rio Cuiabá, adensava-se cada vez mais a população rural até chegar ao Porto Geral da vila, local de recepção das embarcações e também de comercialização das mercadorias produzidas no meio rural. Ao norte, em direção à Chapada, atual Chapada dos Guimarães, formavam-se também ambientes rurais. Ao longo do caminho de terra aberto entre a Vila Boa de Goiás e a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, colonos espacializaram ambientes rurais em territórios Bororo e Caiapó. Com a descoberta das minas do Mato Grosso, formaram-se ambientes rurais a oeste da Vila Real, bastante próximos das aldeias castelhanas de Moxos. Concomitantemente aos descobertos auríferos, desenvolveram atividades rurais ao longo do rio Sararé, e, a partir deste, os colonos chegaram ao Guaporé, fixando ambientes rurais que marcavam o limite dos domínios portugueses e que se tornaram pontos de contato entre os súditos das duas coroas ibéricas. 42 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Mapa 1 L’Amerique Meridionale, de Guilhaume de L’Isle, 1703. Fonte: BNB (Catálogo Virtual). Detalhe Mapa 2 “Carte du Paraguay et des Pays voisins pour servir a l’Histoire Generale des Voiages”, 1756. Fonte: Biblioteca Virtual del Paraguay, adaptado por ROSA, 2006, p. 4. 43 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira Mapa 3 “Bacia do Médio Guaporé”, 1769. In: GARCIA, 2000. 44 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Mapa 4 “Configuração da Chapada das Minas do Mato Grosso”, 1746. In: GARCIA, 2000, p. 446. Mapa 5 “Territórios do Norte e do Centro do Brasil”. In: GARCIA, 2000, p. 326. 45 46 “Territórios do Norte e do Centro do Brasil”. In: GARCIA, 2000, p. 326. Detalhe. Mapa 6 Entre dois impérios: conquistas portuguesas e ruralidade • Tiago Kramer de Oliveira Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Referências 1 Documentos manuscritos DOCUMENTO 1 - PARECER de Rodrigo César de Meneses ao rei D. João V. Lisboa, 08-01-1732. mss., microfilme Rolo 01, doc. 54, (AHU) – NDIHR/UFMT. DOCUMENTO 2 - AUTO SUMÁRIO, Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, 12-04-1736; mss., microfilme Rolo 01, doc. 84, (AHU) – NDIHR/UFMT. DOCUMENTO 3 - CARTA DE SESMARIAS concedida a Ângelo da Fonseca Leitão – Cuiabá, 08-01-1727 – AESP-Sesmarias – 1720/1736. DOCUMENTO 4 - CARTA do rei D. João V ao governador Antônio da Silva Caldeira Pimentel. Lisboa, 08-10-1730. Registro de Cartas Expedidas Livro C 001, APMT. DOCUMENTO 5 - CARTA do Juiz ordinário da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá ao rei D. João V. Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, 06-1732 mss., microfilme Rolo 01, doc. 57, (AHU) – NDIHR/UFMT. DOCUMENTO 6 - CARTA do ouvidor da Vila de Cuiabá José de Burgos Vila Lobos ao rei D. João V. Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, 07-04-1731. mss., microfilme Rolo 01, doc. 52, (AHU) – NDIHR/UFMT. DOCUMENTO 7 - CONSULTA do Conselho Ultramarino; Lisboa 18-11-1734. mss., microfilme Rolo 01, doc. 70, (AHU) – NDIHR/UFMT. 2 Documentos publicados ANAIS de Vila Bela da Santíssima Trindade. Publicações Avulsas, n. 28. Cuiabá: IHGMT, 2001. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique. Anais de Mato Grosso. Publicações Avulsas, n. 20. Cuiabá: IHGMT, 2001. CAMELO, João Cabral. Notícias práticas das minas do Cuiabá e Goiáses, na Capitania de São Paulo e Cuiabá que dá ao Ver. 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Sr. Rodrigo César de Meneses governador e capitão-general da Capitania de São Paulo e suas minas descobertas no tempo do seu governo, e nele mesmo estabelecidas. In: TAUNAY, Affonso de E. História das bandeiras paulistas. Relatos monçoeiros. Tomo III. 2. ed., São Paulo, 1961. REPERTÓRIO DAS SESMARIAS. São Paulo: Secretária de Cultura. Departamento de Museus e Arquivo do Estado, 1994. SÁ, José Barboza de. Relação das povoações do Cuiabá e Mato Groso de seus princípios até os presentes tempos. Cuiabá: UFMT/Secretária de Educação e Cultura, 1975. SIQUEIRA, Joaquim da Costa. Crônicas do Cuiabá. Publicações Avulsas, n. 53, Cuiabá: IHGMT, 2002. 3 Livros, artigos, dissertações e teses ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial. São Paulo: Publifolha, 2000. AMEGHINO, Eduardo Azcuy; BIROCCO, Carlos María. As colônias do Rio da Prata e o Brasil: geopolítica, poder, economia e sociedade. In: CERVO, Amado Luiz; RAPOPORT, Mario (Orgs.). História do Cone Sul. 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Com a assinatura do Tratado de Madri entre as duas metrópoles ibéricas, as terras da América portuguesa diminuíram no sul, porém aumentaram no norte, em conseqüência dos acordos firmados entre Portugal e Espanha1. No planejamento da área de fronteira, que acontecia tanto no lado espanhol quanto no português, “os índios tiveram uma importância estratégica enquanto meio de implantação do direito de uti possidetis” (DOMINGUES, 2000, p.85 e 213), parte do programa geopolítico e civilizacional previsto pela própria coroa no território, em diferentes fases, durante o Setecentos. A forte presença indígena reduzida – organizada nas missões jesuíticas de Moxos e Chiquitos2 até a expulsão da Ordem de possessões espanholas, em 1767 –, existente na fronteira oeste luso-espanhola, exigia dos portugueses, além da fundação de vilas e arraiais, que também procurassem “regular a liberdade concedida aos índios”, encaminhando-os “para os fins almejados – tornando-os habitantes estáveis das diversas povoações coloniais e agentes produtores das riquezas espera- Alessandra Resende Dias Blau possui Graduação e Mestrado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Foi bolsista SEDUC/MT, e defendeu a dissertação “O ‘ouro vermelho’ e a política de povoamento na capitania de Mato Grosso”, em 2007. Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação do Estado de Mato Grosso. E-mail: [email protected] Além da América, Espanha possuía territórios coloniais também na Ásia e na África, posses negociadas com Portugal durante a elaboração do Tratado de Madri (1750), e do Tratado de Santo Ildefonso (1777). 2 Sobre essas missões ver: MEIRELES,1989; COSTA, 2006; ANZAI, 2005a, ANZAI, 2005b. 1 50 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos das” (COELHO, 2006, p. 119). Após a expulsão dos jesuítas, os grupos de reduções passaram a ser administrados por curas, e conforme Mesa e Gisbert, não se pode negar “el desastroso destino de los pueblos misionales cuando fueron abandonados por los jesuitas, forzados por la expulsión del rey” (DE MESA; GISBERT, 2003, p. 248). O principal objetivo das missões, do ponto de vista espanhol, segundo Denise Maldi Meireles “era o de transformar comunidades ‘sem lei nem governo’ em comunidades que refletissem as concepções de uma sociedade ordenada no século XVIII” (MEIRELES, 1989, p. 85). Além de exercerem funções catequéticas sobre povos indígenas, os missionários também disciplinariam a utilização da mão-de-obra, bastante atingida pela insaciável demanda dos colonizadores (CANAVARROS, 2004, p. 276-278). As missões não foram criadas à revelia do estado espanhol, já que as autoridades coloniais indicavam jesuítas através de ordens reais, e a administração espanhola prestava toda a ajuda necessária para a criação das reduções, situação que se manteve até meados do século XVIII (ANZAI, 2005), pois interessava à administração espanhola o estabelecimento dessas missões em zonas estrategicamente importantes à Espanha. Mesmo com a assinatura do Tratado de Madri, a questão da fronteira ainda não estava totalmente resolvida e consolidada, até mesmo porque muito se consideraram as fronteiras geográficas naturais como demarcação. Não sendo esta a única forma utilizada para demarcar, houve ainda outras questões que se levaram em consideração, como, por exemplo, o próprio interesse político e econômico de ambas as coroas – portuguesa e espanhola – quanto a determinado território. Os jesuítas das missões de Chiquitos e Moxos passaram a armar os índios, fazendo deles verdadeiros “guardiões da fronteira” espanhola. Os confrontos eram inevitáveis: “o encontro entre os portugueses e as missões espanholas assinalou o antagonismo que passou a ser o grande articulador das relações direcionadas dentro da condição inexorável da região: a fronteira” (MEIRELES, 1989, p. 10). Em diversas correspondências, encontramos referências aos índios missioneiros da Província de Chiquitos e da Província de Moxos, assim como informações sobre as providências tomadas por capitães-generais portugueses para incentivar as suas fugas e mantê-los no lado português da fronteira. 51 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau Ricardo Franco de Almeida Serra informava, em uma “memória ou informação” sobre as províncias de Chiquitos e de Moxos: A Província e Governo de Chiquitos, povoada por vinte mil almas, é como uma barreira, que cobre por Sul, e por não pequena extensão, os estabelecimentos portugueses adjacentes a Vila Bela, como a Província de Moxos é outro terreno, que semelhantemente cobre a extrema do forte do Príncipe da Beira, e a navegação portuguesa do Guaporé e rio Madeira, para a cidade do Pará. A Província de Chiquitos é saudável, tem gado vacum e cavalar, belas terras para cultura, sendo os índios que a povoam menos hábeis do que os de Moxos (SERRA, 1840, p. 19-48). O estabelecimento de missões do lado português e mesmo as aldeias de índios “selvagens” auxiliariam os portugueses na luta pela posse do território para a coroa lusa. Em carta enviada por Rolim de Moura ao Padre Nicolas Altogradi, de Moxos, datada de 3 de novembro de 1757, em resposta a uma correspondência enviada pelo missionário reclamando que havia sido hostilizado pelos índios Topoaia, quando havia tentado entrar em suas aldeias, localizadas em terras que considerava espanholas, para catequese, a resposta do governador português não deixava margem a dúvidas sobre a quem pertenciam as terras das aldeias: (...) se o dito gentio Topoaia tivesse feito hostilidades aos portugueses, necessariamente deviam proceder estas diligências; porém, como eles nos não têm feito a nós hostilidades, senão a Vossa Reverendíssima, não tenho eu autoridade para lhe mandar fazer guerra de minha cabeça, e só o posso fazer em virtude do tratamento requerido por Vossa Reverendíssima (PAIVA; SOUSA; GEREMIAS, 1983, p. 81). Desse modo, Rolim marcava a presença do estado luso. Certamente também incentivava os ataques dos Topoaia aos padres espanhóis, barrando suas intenções de acesso ao território ocupado por portugueses. Foram freqüentes as trocas de correspondências deste mesmo teor entre Rolim de Moura e padres das missões espanholas, evidenciando que os roubos de índios das missões era prática comum, conforme podemos observar em carta que Rolim de Moura enviou ao padre Ramon Laines, em 10 de janeiro de 1752, em resposta à carta que havia recebido deste, com data de 22 de julho de 1751: Chegando a este Distrito de Mato Grosso, a dezenove do mês passado, me deram daí alguns dias a carta de vinte e dois de julho de mil setecentos e cinqüenta e um, em que se queixa de que alguns sertanistas portugueses têm roubado vários índios dessas missões trazendo algumas mulheres 52 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos casadas, a quem ficaram nas mesmas missões os maridos. E, asseguro, tenho sentido muito esses distúrbios, tanto pelo dano, que diz recebem as mesmas missões, como também pelas grandes recomendações que tenho de conservar boa harmonia com vossos padres evitando o motivo de escândalo (PAIVA; SOUSA; GEREMIAS, 1982, p. 62). Alguns pontos desta carta se destacam, um dos quais é o fato de os sertanistas terem roubado mulheres. Essa prática era até de certa forma comum, já que nos aldeamentos os padres procuraram seguir a divisão sexual do trabalho presente na maioria das comunidades indígenas, o que significava que às mulheres e às crianças cabiam o plantio e colheita das roças. Porém, no caso de regiões de minas havia outro fator importante: a predominância da população masculina. Na Capitania de Mato Grosso não era diferente. Havia muito mais homens do que mulheres e, provavelmente, os sertanistas roubavam mulheres índias para fazê-las trabalhar nas roças ou em atividades domésticas, ou até mesmo para fazerem delas suas mulheres. Em nome da manutenção da “boa harmonia” com Espanha, a resposta de Rolim ia ao encontro das intenções portuguesas de investigar o modo pelo qual funcionavam as missões jesuíticas e, desse modo utilizou o pretexto diplomático de devolver as índias roubadas, que se encontravam sob domínio de particulares, conforme se pode observar na carta enviada ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real (28 de maio de 1752): Para o fim deste mês mando um dos padres da Companhia que trouxe comigo à dita Aldeia de São Miguel, com o pretexto de os visitar e levarlhes as índias que se acharam pertencentes às missões castelhanas, e juntamente para tomar conhecimento da economia e governo delas, pois é certo excedem nisso muito as nossas (PAIVA; SOUSA; GEREMIAS, 1982, p. 70). O governador ainda esclareceu ao ministro, na mesma correspondência: “Fico na averiguação do que me representa para obrar nisto o que for justo, e quanto às mulheres casadas está já uma em depósito, e outra, assegurou Antonio de Almeida, a ia entregar”. Provavelmente não seriam somente duas mulheres, e quanto a ficar uma “em depósito”, pode dever-se às negociações entre o governador e os padres, uma garantia, talvez uma troca de favores. No outro caso, o da mulher que estava com Antonio de Almeida, embora tenha havido promessa de entrega, não conseguimos confirmação na documentação pesquisada. 53 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau E o roubo de mulheres das missões espanholas continuava. A Aldeia de São Miguel foi alvo de assédio às índias, conforme documento de 1765, no qual o governador da Capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara, informava: A aldeia de São Miguel, composta dos índios que no tempo de guerra passaram para a nossa parte, das minas castelhanas que se queimou, e de outros que fugiram e vinham fugindo das mais desordens, ficou situada a pouca distância deste destacamento, porque naquele tempo se não podia dar outra melhor providência. Quis meu antecessor mudá-la, para evitar os distúrbios que cometiam os soldados desta guarnição com as índias, e os contínuos furtos que faziam nas plantações e criações dos mesmos índios. Porém, alguns obstáculos dilataram tão justo e santo projeto. Eu tenho trabalhado em vencê-los e, com efeito, consegui mudar a referida aldeia para outro sítio rio acima, quatro léguas distante da primeira, de muito bons ares e largueza bastante (1765, dezembro, 16). Não é difícil inferir, baseando-nos nas palavras escritas pelo capitão-general, que índios e índias utilizados como mão-de-obra pelos colonos eram em geral tratados com violência, nisso incluídos os freqüentes abusos sexuais sofridos pelas índias. Os criminosos, quando identificados, eram julgados em tribunal, e as penas impostas consistiam no degredo para fora do termo da povoação ou no trabalho em obras de fortificações que se iam construindo (DOMINGUES, 2000, p. 254-255). Havia motivos também para a fuga consentida. Como aos índios não faziam sentido as fronteiras estabelecidas pelos europeus, poderiam passar para o lado português por seus interesses familiares ou religiosos. Desse modo, podiam lançar mão das estratégias lusas para facilitar sua passagem, em um processo no qual fica claro seu poder de negociação e de decisão, mesmo em um contexto, no geral, desfavorável a ele. Ao adentrar territórios portugueses “acabavam sendo incorporados ao processo colonizador lusitano” (ANZAI, 2005a). Aos portugueses, que necessitavam aumentar a população, de preferência com mão-de-obra especializada das missões, essa era uma prática desejável. Quanto maior fosse a ocupação da fronteira do lado luso, maior também a possibilidade de rechaçar os avanços espanhóis para a parte oriental do Guaporé. Esta estratégia fazia parte “da segunda fase do plano de civilização dos índios contidos no Diretório: a consideração política de seu lugar na colonização” (ALMEIDA, 1997, p. 249). 54 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Aldeia de Santa Rosa Mapa 1: As repartições do Cuiabá e do Mato Grosso – século XVIII Forte N. Srª. da Conceição Fonte: ROSA; JESUS, 2003. p. 64 Havia aldeias espanholas localizadas no lado oriental do rio Guaporé que, com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, passariam a pertencer a Portugal. Desse modo, as aldeias espanholas de São Miguel, São Simão e Santa Rosa seriam portuguesas. Especificamente sobre Santa Rosa, uma Instrução Real ainda de 1749 chamava a atenção para a necessidade de prudência no trato da questão, já que estavam envolvidas minas de ouro: É tão sujeita a produzir contendas, conseqüência gravíssima, que enquanto não se faz amigavelmente a respeito dela alguma transação que as evite para o futuro, ficando os limites das duas monarquias pelo rio Guaporé, deveis pôr todo o cuidado para que ao menos não cresça o mal que dali pode resultar. Por detrás daquela aldeia se descobriram ultimamente as minas dos Arinos, e em um ribeirão que está antes de chegar a ela, na mesma margem oriental, se tinha já há alguns anos feito outro descobrimento, e é provável que naquelas vizinhanças se vão achando minas diversas (INSTRUÇÕES, 2001, p. 14). As orientações reais que Rolim de Moura devia seguir eram precisas: 55 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau Enquanto esta dependência se não ajusta com a corte de Madrid, o remédio que por ora deveis aplicar é persuadir moradores, que vão situar-se no círculo daquela aldeia a não muitas léguas de distância, dando-lhes sesmarias, para assim evitar que os índios da mesma aldeia se alarguem nos seus contornos. E deveis defender eficazmente os sesmeiros de qualquer insulto e moléstia dos mesmos índios (INSTRUÇÕES, 2001, p. 14). Observe-se que conceder sesmarias era visto como estratégia eficaz para evitar que os índios restabelecessem suas territorialidades tradicionais, e, caso houvesse perigo aos sesmeiros, o governador deveria protegê-los. Logo após a assinatura do Tratado de Madri, os padres espanhóis resolveram mudar a Aldeia de Santa Rosa para a outra margem do rio, ou seja, o lado ocidental, espanhol, e tentaram levar consigo os índios que se encontravam aldeados. Esse fato deu início a longas discussões e negociações, pois, segundo o tratado, os padres deveriam deixar a mudança ou não a critério dos índios. Em carta a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 2 de setembro de 1760, Rolim de Moura explicava: Vamos agora mostrar que as mesmas terras em que estiveram fundadas as Aldeias, ou Povoações de Santa Rosa, São Miguel e São Simão, são presentemente do domínio de Portugal, em virtude das cláusulas do Tratado de Limites. Diz este, no artigo 14, que Sua Majestade Católica [Espanha] cede de presente a Aldeia de Santa Rosa, e outra qualquer que se possa ter estabelecido por parte da Espanha, na parte oriental do Rio Guaporé. De onde se vê logo, pelo mesmo Tratado, nos foi conferido jus cederem as ditas aldeias. Isto suposto, vendo os Padres da Companhia que, pelo Artigo 16 se deixa na liberdade dos índios das ditas aldeias passarem para a outra parte ou ficarem nas mesmas aldeias, e sendo certo moralmente que haviam antes escolher o ficar, pelo grande apego que têm às terras, se fossem perguntados pelos comissários, com o que não somente perderiam os índios, mas também os bens que lhes pertencessem; logo, com a primeira notícia do Tratado, entraram a mudar as aldeias; o que concluíram no ano de 1754, deixando-as não somente desertas, mas queimadas (MOURA, Carta 146). Como se viu, os padres espanhóis, diante da cláusula do Tratado colocaram fogo em tudo, acabando com as plantações, e forçaram os índios à mudança. Atravessaram o rio Guaporé e fundaram, em frente à antiga aldeia, uma nova povoação com o mesmo nome, Santa Rosa, que passou a ser denominada “Santa Rosa Nova”, do lado ocidental do rio Guaporé, em contraposição à do lado oriental do rio, portuguesa, “Santa Rosa Velha”. 56 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Não se contentaram os padres da Companhia com passarem violentamente os índios para a outra banda, contra as ordens de Sua Majestade Católica, sendo certo que, nestas mudanças perdem muitos as vidas, e outros fogem para os matos, pelo desgosto que tomam de os tirarem das suas terras; mas também sem escrúpulo nenhum lançaram fogo aos edifícios e às plantas a que a Coroa Portuguesa havia já adquirido jus. E o Padre Medenilha, por aproveitar as portas da igreja, deixou esta exposta a servir de curral de éguas, como, com efeito, esteve servindo enquanto se conservou em pé, o que eu vi com os meus olhos, no ano de 1755, pois querendo-me mostrar o padre Francisco Xavier Pozobonelli, não pudemos passar da porta, por se achar a dita igreja cheia e atestada de esterco (MOURA, Carta 146). No entanto, os índios levados para Santa Rosa Nova quiseram voltar para as suas antigas terras, conforme consta nas correspondências de Rolim de Moura. Ora as cartas de Rolim de Moura parecem estar bem fundamentadas, ora as acusações dos padres das missões espanholas parecem ser verdadeiras quanto aos roubos de índios. Para Rolim, os roubos de índios realizados por portugueses em Santa Rosa Nova eram calúnias lançadas pelos espanhóis, e afirmava que havia presenciado muitos índios manifestarem o desejo de passarem para o lado português, apesar dos esforços dos padres espanhóis. Os mesmos padres sabem muito bem o grande apego que esta gente tem às terras em que nasceram e se criaram, e por conhecer isso é que se mudaram sem esperar pelos Comissários, e queimaram as povoações, para lhes tirarem o sentido de tornar para elas. E como tudo isto foi violentíssimo aos mesmos índios, esta é a causa verdadeira das suas fugas, que os padres agora, sem fundamento algum, como o seu louvável costume, querem atribuir aos portugueses. E se estes trouxeram para a nossa banda os índios por força, que é que lhes embaraça o tornarem para lá? Não estão vivendo fora, e longe da Guarda? Não saem a pescar cada vez que lhes parece? Pois que embaraço têm para fugir de cá? Que portugueses obrigaram os muitos que haviam fugido para o mato, como acima disse? Com também os de São Pedro o fizeram para a Guarda? O que suposto, e ser a intenção de Sua Majestade Católica, que fique na liberdade dos índios passarem para a banda de Espanha ou ficarem nos domínios de Portugal, como se vê no Artigo 16. É contra a dita intenção do mesmo Senhor, e contra a determinação do Tratado entregá-los eu contra sua vontade. Além de que, quando eu cheguei a este Mato Grosso, remeti aos padres todos os índios que aqui se achavam, de que tive notícia pertencerem às suas missões, mandando vir, para esse efeito, até do Cuiabá, um índio. Porém, sucedendo, depois disso, fugirem de cá alguns índios, 57 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau e escravos para lá, nem uma nem outra coisa quiseram entregar (MOURA, Carta 146). A aldeia de Santa Rosa Nova rapidamente se despovoava, obrigando mais uma vez os padres jesuítas a mudarem rapidamente os poucos índios que restavam para São Pedro (MOURA, Carta 172). Quanto aos índios que passaram para o lado oriental do rio Guaporé, Rolim de Moura explicou o modo como procedeu: Aos ditos índios que para cá passaram, mandei situar cousa de uma légua distante deste Destacamento, na mesma paragem em que lhes haviam plantado, quando aqui vim no ano de sessenta. E ordenei equipassem sempre com algumas canoas que andam na condução do mantimento de Vila Bela para cá, e este trabalho se lhes paga com baetas, principalmente encarnadas, bombachas e chapéus, de que eles gostam muito, ao que se acrescentem algumas quinquilharias ou ferramentas, se eles as necessitam. Isto sai mais barato do que os pretos de aluguel, e serve-lhes para se vestirem e plantarem. Mas, a maior utilidade que daqui se tira é tê-los contentes, pelo apreço que fazem destas cousas, e vendo-lhes os índios das missões de Castela com os quais se comunicam, quando por aqui passam ou pelos padres ou encontrando-se no rio, quando vão às suas pescarias, se movem a passar para nós (MOURA, Carta 172). Porém, os padres insistiam nas acusações de roubo de índios das missões espanholas por portugueses. Em carta a Tomé Francisco da Costa Corte Real, em 26 de agosto de 1760, Rolim de Moura respondeu às acusações de que os portugueses foram buscar violentamente as mulheres dos índios: Tudo quanto nela lhe digo é a mesma verdade. Como também é calúnia manifesta, a que o padre superior nos quer atribuir, de que foram à Aldeia de Santa Rosa os portugueses buscar violentamente as mulheres dos índios, pois, além do que, na mesma carta lhe digo da filha do Canavarro. O que mais houve foi que, depois de se haverem passado para a nossa banda, alguns, voluntariamente, querendo ultimamente vir um lote maior de índios, passaram a uma ilha, e daí avisaram a guarda que os fossem buscar, por não terem canoas para virem, o que assim se fez, segundo a parte que me deu o alferes de dragões, que havia ficado para comboiar a canoa que trouxe apetechos do Pará (1760, agosto, 26). Nesta correspondência, o governador da Capitania de Mato Grosso diz que “alguns” índios passaram voluntariamente, o que significa dizer que não foram todos. E os que não passaram “voluntariamente”? Teriam passado à força? A justificativa que Rolim de Moura deu para 58 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos a “passagem voluntária” dos índios espanhóis para o lado luso consta no ofício que se segue: Com que estão naquele sítio presentemente alguns noventa índios, que eram da Missão de Santa Rosa, e os padres, para que os outros lhes não fugissem, os passaram muito depressa para São Pedro, para onde entendo mais ou enganados ou violentados do que por sua vontade. Pois, estando eu ainda em Santa Rosa Velha, diziam eles muitas vezes quando aí vinha, que o padre os queria mudar, mas que em querendo dar princípio a isso, que eles todos haviam de vir gritar da outra banda do rio que os fossem logo buscar. E todos eles andavam bastantemente abalados, e já alguns haviam passado para a nossa banda antes que eu me retirasse, assim pela inclinação natural que têm às suas terras, como por algum jeito que se lhes deu, pretendendo-os algumas das coisas de que eles gostam, como verônicas e outras semelhantes (MOURA, Carta 141; 1760, agosto, 26). A devolução ou não de índios e escravos que se encontrassem na parte portuguesa ou espanhola da América dependia muito de acordos e obrigações mútuas. Se uma das partes não cumpria o acordo, a outra também se sentia no direito de não cumprir, como consta do ofício a seguir: (...) tenho mostrado bem patentemente, desde que aqui estou, o quanto procurei fazer boa vizinhança; porém, tem-me isso sido tão mal correspondido, que não somente vários padres, como o padre Medenilha, antecessor de Vossa Reverendíssima, e o padre Ramos Laynes, se ficaram com os índios que da parte de Portugal passaram para as suas missões, mais nelas, e nas mais se lhe está francamente dando couto a todos os escravos fugidos de Mato Grosso, nem sendo lhes requerido, por várias vezes, se têm entregue nenhum. E havendo eu escrito já há mais de um ano uma carta de ofício sobre esta matéria, ao padre vice superior, até agora ainda não tive resposta dela. O que tudo me parece, essa me desobrigaria de mandar entregar a índia, em que Vossa Reverendíssima me fala, ainda que não houvesse a razão primeiramente apontada (1760, agosto, 7). Rolim de Moura deixa claro que, como não havia sido atendido na devolução de índios e escravos que fugiam do lado português, julgava que não tinha o dever de devolver os que haviam fugido do lado espanhol. Além disso, no caso da índia casada, conforme veremos a seguir, justificava que a mesma gostaria que trouxessem o seu marido, que havia ficado na missão espanhola de San Nicolas, o que era muito cômodo para a política portuguesa, um casal especializado para aumentar a população de Mato Grosso: 59 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau (...) logo que cheguei a Mato Grosso mandei ajuntar todos os índios de que tive notícia pertencerem às missões espanholas, e os remeti pelo padre Agostinho Lourenço que, segundo a minha lembrança foram nove, que alguns sertanistas tinham conduzido para Mato Grosso, segundo eles diziam, e só depois me constou, não sem faculdade e insinuação de um religioso da mesma religião de Vossa Reverendíssima, o qual se achava na Missão do Patrocínio, quando os índios dela se levantavam contra os seus padres, e fugiram para o Mato Grosso, o que insinuou o dito Padre aos ditos sertanistas os fossem abalroar, como fizeram. Não só remeti estes, não havendo obrigação disso, pelo que fica dito, mas ainda achava [uma índia] na Missão de S. Ana, por me dizerem pertencia a Missão de S. Nicolas, espanhola, e que era lá casada, sendo que era mais natural, como a mesma índia requeria, que o marido fosse para onde ela estava, pois podia fazer aquela viagem com menos descômodo, e risco; e também era governada por um jesuíta: mas como o padre Magi [sic] não quis convir nisto, a mandei entregar remetendo-a mesmo dentro das missões espanholas (1760, agosto, 7). Para a maioria dos índios pouco importavam as fronteiras políticas, interessava a eles seus territórios tradicionais, e esse fato influía na política ibérica relacionada aos grupos indígenas da área em litígio. Caso não houvesse tratamento adequado, muitos grupos empreenderiam fuga e, de acordo com Ângela Domingues, a indefinição das fronteiras estava relacionada às hesitações de cada coroa em relação à política a ser adotada. As definições estabelecidas pelas duas coroas nada significavam aos índios, “que tinham familiares, amigos e trocas comerciais em áreas pertencentes à potência rival e que facilmente transitavam para cada lado da divisão convencionada” (DOMINGUES, 2000, p. 244). No início do mês de fevereiro de 1754, logo após a conclusão da retirada dos índios da Aldeia de Santa Rosa Velha, Rolim de Moura estabeleceu uma guarda na região para tentar evitar a fundação de novas aldeias espanholas do lado português, e também para evitar a captura de “índios portugueses” pelos espanhóis. Havia também a preocupação de prevenir contra a fuga de escravos negros para o lado espanhol. Em 1761, o Tratado de Madri foi substituído pelo de El Pardo, que, em relação à demarcação de fronteiras, anulou o de Madri (APMT, 1759-1764). Voltaram a vigorar, então, as disposições do Tratado de Tordesilhas e, desse modo, as repartições do Cuiabá e do Mato Grosso ficavam novamente pertencendo a Sua Majestade Católica, promovendo, 60 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos desta forma, a possibilidade de guerra entre as duas coroas, o que veio a acontecer a partir de 1763. Em 1777 foi assinado o Tratado de Santo Ildefonso. No entanto, a questão das fronteiras ainda não estava bem definida, conforme fica explícito nas colocações do tenente-coronel Ricardo Franco: A capital da Capitania de Mato Grosso ficaria do domínio espanhol, e da mesma forma Cazal Vasco e outros antigos estabelecimentos, mandados conservar pelo artigo 16°; sendo estes terrenos, com os cultivados da margem do Guaporé, fronteira a Vila Bela, e os dos rios, Alegre e Barbados, com as minas de Santa Bárbara ou Aguapeí; e quanto ocupa a Coroa de Portugal no distrito de Mato Grosso, e dele para Oriente, terrenos, que a Coroa de Espanha, pelo artigo 20° cede, renuncia, e traspassa toda a posse e direito que possa ter ou alegar a eles; e de outra sorte, admitindose esta implicatória linha, ficaria a Coroa de Espanha de melhor partido no mesmo terreno que expressamente cede, e os espanhóis nunca viram, nem povoaram (SERRA, 1840, p. 19-48). Desde 1762, a guarda estabelecida em Santa Rosa Velha havia se transformado em presídio. O de Nossa Senhora da Conceição (consultar Mapa 1) deveria, segundo Rolim de Moura, se transformar em um forte, pretensão materializada seis anos após, no Forte de Bragança, construído durante o governo de João Pedro da Câmara. Fazia parte da política lusa a criação, nessas fronteiras, de referências alusivas ao Reino. Desse modo, “a autoridade da coroa sobre o território exerce-se através de uma presença efetiva e por referências simbólicas” (DOMINGUES, 2000, p. 78), o que podemos observar nos Anais de Vila Bela do ano de 1769: Em 15 de março se deram às aldeias de índios deste Estado, por um bando público, as denominações das povoações do Reino, em conformidade com as ordens de Sua Majestade, apelidando-se o forte da Conceição, Bragança; Aldeia de São João, Lugar de Lamego; Destacamento das Pedras, Palmela; o Lugar de São José, Leomil; e o de Santa Ana, no distrito do Cuiabá, Lugar de Guimarães (AMADO; ANZAI, 2006, p. 133). O Forte de Bragança desabou em 1771, em conseqüência de uma enchente, e teve parte do seu material aproveitado na construção do Forte do Príncipe da Beira. O Forte de Bragança, em larga medida, tornou-se um pólo de atração de índios migrados de Mojos. Pelos dados oficiais dos capitães-generais, os maiores contingentes vinham das missões de San Martin, San Nicolas, Santa Magdalena e Exaltación. Como essas migrações tiveram lugar sobretudo entre os anos 61 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau de 1770-1780, esses contingentes devem ter sido formados principalmente de índios Txapakura, Baure, Itonama e Cajubaba (MEIRELES, 1989, p. 173). Sobre o estado civil da população do Forte de Bragança, no ano de 1773, temos as seguintes informações: Tabela 1: Distrito do Forte de Bragança – Capitania de Mato Grosso3 Mapa do estado civil da povoação do distrito – janeiro de 1773 Casamentos no ano de 1772 ............................................ 7 Mortos no dito ano ........................................................ 25 Nascimentos no dito ano ............................................... 11 Homens de 50 anos para cima ....................................... 27 De 16 até 50 ................................................................. 164 Rapazes de 8 até 15 ....................................................... 20 Meninos de 1 até 7 ........................................................ 16 Mulheres de 40 anos para cima ..................................... 16 De 15 até 40 ................................................................... 62 Raparigas de 8 até 14 ..................................................... 11 Meninas de 1 até 7 ......................................................... 14 Somas totais ................................................................. 330 Escravos compreendidos na soma total ....................... 127 Famílias ou fogos das povoações ................................... 52 Fonte: 1773, Janeiro. MAPA do estado civil da povoação do distrito do Forte de Bragança. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc.1015. Analisando os dados apresentados na tabela acima, observa-se que a quantidade de mulheres era bem inferior à de homens, no Forte. O número de mulheres que já poderiam constituir família, isto é, entre 15 e 40 anos, é bem inferior em relação aos homens na faixa etária de 16 a 50 anos. Estas mulheres que ocupavam o Forte, provavelmente trabalhavam em serviços domésticos, além da tecelagem ou produção de roças. Podiam, também, servir de mulheres para esses homens. Segundo Denise Maldi Meireles, não havia dúvida quanto ao maior gosto dos portugueses no acolhimento dos índios fugidos das missões, “familiarizados com o trabalho, do que os índios que vinham 3 Optamos por transcrever somente o distrito de Bragança, porém o Mapa apresenta também a população de outros locais, como Lugar de Lamego, Lugar de Leomil, Destacamento de Palmela, e Lugar de Balsemão. 62 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos das aldeias ‘selvagens’. Os espanhóis reagiram a essas acolhidas recebendo os escravos fugidos da margem direita” (1989, p. 177). Nessas acusações de roubo de mulheres e índios que, segundo informações portuguesas, passaram voluntariamente para as terras lusitanas, temos um dado novo que é o caso da “filha do Canavarro”, já citado por Rolim de Moura. É possível obter em outra correspondência maior informação sobre esse assunto. Em carta ao padre Nicolas Sarmento, de 27 de março de 1760, Rolim de Moura informa: Recebi a carta de Vossa Reverendíssima, escrita no dia de hoje, na Missão de Santa Rosa Nova, na qual me faz Vossa Reverendíssima duas queixas da comitiva que aqui se acha neste sítio: a primeira de haver ela colhido algum mantimento e cana que se achava plantado pelos índios dessa missão; e a segunda de haver apanhado uma rapariga da mesma missão. Começando por esta última, me consta que a dita rapariga é filha de Manoel José Canavarro, que aqui se acha e a tem em seu poder. E como ela é já de 8 anos, conforme o direito, pertence a seu pai. E assim, contra sua vontade, nem devo nem posso obrigá-lo a largá-la (1760, agosto, 7). Em outra carta, ao padre Juan de Beingoolea, de 18 de agosto de 1760, Rolim de Moura descreveu o caso da filha de Canavarro. Apesar de ser uma citação longa, vale a pena conhecer o documento: E enquanto a Vossa Reverendíssima disser que os índios de Santa Rosa passavam para a nossa banda porque os portugueses lhes foram buscar violentamente as mulheres, posso assegurar a Vossa Reverendíssima não só que o informaram nisso falsamente, senão com grande cavilação. É de saber que Manoel José Canavarro, hoje soldado aventureiro no destacamento de Santa Rosa Velha, assistiu muito tempo naquela mesma paragem, no princípio do estabelecimento da dita Missão de Santa Rosa, em companhia do padre Amâncio, cura da mesma missão, e por mandado do dito padre recolheu ele a maior parte dos índios com que ela se achava, que não foram catequizados com o Cristo na mão, mas, sim, tirados das suas terras violentamente e à força de armas. Na dita assistência, teve o dito Manoel José Canavarro uma filha, de uma índia da missão, o que é notório, e os índios da mesma missão o confessavam, como eu presenciei, e mais o padre capelão do Destacamento, e a sua vista dela, pela cor e pelo cabelo, dá a conhecer ser filha de mulato, e não índia pura, pois sabem todos os que têm algum uso e experiência de índios, que não há nenhum que seja puramente índio com o cabelo crespo, como ela é. Pelo que, indo o dito Manoel José Canavarro buscar madeira para os quartéis, lhe trouxeram a falar com ele os mesmos índios, e ele, com o direito de pai pegou ela e a trouxe consigo, em que me parece obrou o que tinha 63 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau de obrigação, por ela se achar com 8 anos, e ser certo e sem dúvida, que o padre Nicolas Sarmento lhe não havia de nunca entregar, por mais manifesto que fosse o seu jus, para a haver a si. Excelência, aqui as mulheres todas que os portugueses tiraram da Aldeia de Santa Rosa, que consistem em uma rapariga de 8 anos, que seu pai houve a si, de forma que fica dito o que posso assegurar com todas [ilegível] por haver passado isto ao tempo que eu me achava em Santa Rosa Velha, e tanto nessa ocasião como depois disso, nunca português algum tirou por força índios nenhum, macho nem fêmea da dita missão; mas todos os que dela passaram para a nossa banda foi muito por sua livre vontade. Nem isso deve fazer admiração, pois se Vossa Reverendíssima quiser informar-se há de conhecer a grande repugnância que tiveram todos os índios que se achavam nas três missões de S. Simão, S. Miguel, e Santa Rosa, para passarem para a outra banda, e que foi preciso valerem-se os padres que as administravam de portugueses, pelo meio dos quais obrigavam violentamente os índios para a dita passagem (MOURA, Carta 140). O fato de a menina ser filha de pai negro e de mãe índia, da missão espanhola, levantou certa polêmica, pois ambos os lados reivindicavam sua posse. Segundo Antonio Manuel Hespanha, o direito português só se aplicou aos naturais, e, conforme as Ordenações Filipinas, os nativos foram regidos por direitos específicos (HESPANHA, 2001, p. 173). Hespanha esclarece que, no século XVII, com base no Regimento das aldeias e capitães das aldeias, “no Brasil, os capitães das aldeias decidiam as questões das comunidades índias, segundo um modelo de justiça patriarcal” (2001, p. 173, nota 14). É possível que Rolim tenha se baseado neste modelo de justiça, ao justificar a permanência da menina com o pai, pois, além do mais, o Diretório não previa essa questão. Também é possível que a menina tenha nascido em Santa Rosa Velha, portanto, à época, território luso, despertando em Rolim um sentimento de “posse” pelos nascidos em território português. Bruna Sirtori, com objetivo de pesquisar as relações econômicas e sobretudo sociais estabelecidas no Aldeamento de Nossa Senhora dos Anjos, no Rio Grande de São Pedro, às margens do Rio Gravataí, chama a atenção para a “transcrição de registros batismais pelo Padre Bernardo Lopes da Silva e sua concepção de ‘índio’ (1765-1783)”. Nos registros de batismo que este padre elaborou, onde havia somente um antepassado nomeado como indígena, os batizados foram considerados “não-índios” (SIRTORI, 2006, p. 2). Entendemos que pode 64 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos também ter sido este o mesmo princípio utilizado para a filha do Canavarro, em que o filho mestiço de índio não é índio, é mestiço, logo, um tipo mais adaptado para a região, e também mais um vassalo real sendo incorporado à sociedade colonial. Entretanto, temos que considerar também que, se a mãe da menina pertencesse a um grupo de descendência matrilinear, a criança deveria ficar com ela. Se entendermos pelo viés de que filha de índia, independente do pai ser índio, é índia, Rolim de Moura acobertou o roubo da menina. Manoel José Canavarro deveria ser mulato ou negro em melhor situação do que outros de sua mesma condição. Além disso, há na mesma correspondência informações sobre o seu papel como administrador de índios: (...) porém aqueles que livremente passassem para a nossa parte os recolhesse, o que não somente é conforme ao que determina o Tratado de Limites, mas também ao que Vossa Reverendíssima mesmo tem praticado comigo; porque, fugindo para a Missão de Santa Rosa [Nova?] uns índios que estavam na administração de Manoel José Canavarro, nunca o padre Nicolas de Medenilha os quis mais entregar (MOURA, Carta 140). Alguns dados chamam a atenção. Em 1760, os jesuítas já haviam sido expulsos dos domínios lusitanos (1759), porém, a expulsão dos territórios espanhóis só aconteceu em 1767. O Diretório era o que regulamentava as ações entre índios e portugueses. Outra questão que se coloca é a situação da mãe da criança: teria ela passado da missão de Santa Rosa Velha para a missão de Santa Rosa Nova? E, se isso realmente aconteceu, qual teria sido o motivo da fuga, já que Rolim de Moura dizia que os índios espanhóis eram muito bem tratados no lado português? Considerando que o Diretório já estava em vigor, o mais razoável é que Manoel José Canavarro tenha roubado a menina. A confirmação da paternidade da filha de Canavarro deu-se por intermédio de pistas, evidências, como a cor da pele e o tipo de cabelo. Não sendo, portanto, “índia pura”, era mestiça. De acordo com Rolim de Moura, o mestiço provindo da mistura de negros com índios era o tipo mais adequado para povoar a região. A filha de Manoel Canavarro se enquadrava nesta característica. No caso da região da missão de Santa Rosa Velha, depois Forte de Bragança, as acusações feitas pelos espanhóis de que os portugue65 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau ses roubavam as mulheres dos índios deve ter procedência, se analisarmos pelo viés de que, na falta de mulheres, iam buscá-las onde as havia em abundância, ou seja, do lado espanhol. Porém, apesar das investidas em roubos, as mulheres continuaram sendo minoria. As fugas São mútuas as acusações de roubo de índios, tanto os do domínio espanhol quanto os do domínio português. Nas correspondências de Rolim de Moura há diversas reclamações sobre padres espanhóis que adentravam as terras lusitanas em busca de índios para suas missões. Também são recorrentes as acusações dos padres espanhóis sobre portugueses que retiravam violentamente índios das missões espanholas. Há também informações sobre escravos negros que fugiam do lado português e recebiam abrigo do lado espanhol e que, mesmo exigidos, não eram devolvidos pelos padres espanhóis. Da mesma maneira, portugueses não devolviam os índios espanhóis que haviam fugidos das missões e que se encontravam em seu poder. Chegaram presos do registro do Jauru, em 18 do mesmo mês [janeiro de 1779], um Pedro Taques, com alguns pardos, bastardos e escravos, em que entravam umas mulheres, que tendo fugido de Vila Maria do Paraguai, se encaminhavam para os domínios de Espanha, dentro dos quais já foram apanhados. Foram aqui castigados com açoites e galés (AMADO; ANZAI, 2006, p. 219). Foi no governo de Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1772 a 1789), o capitão-general que mais tempo permaneceu na Capitania de Mato Grosso, que houve maior incentivo ao desenvolvimento de aldeias, lugares e vilas com a população nativa, em período pós-jesuítico, dando continuidade à política iniciada no governo de Antonio Rolim de Moura. Em relação aos índios das missões espanholas, já não mais jesuíticas, segundo Meireles, seu governo “foi marcado por uma política que, seguindo instruções reais, difere fundamentalmente dos governos anteriores, sobretudo no que se refere às relações com os espanhóis” (1989, p.165). No período da administração de Luiz Albuquerque, muitos índios fugiram das missões de Moxos e Chiquitos e se estabeleceram em terras da Capitania de Mato Grosso. Utilizando-se desses índios, Luiz de Albuquerque fundou, 66 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos por exemplo, Vila Maria do Paraguai4, sobre a qual os Anais de Vila Bela nos dão as seguintes informações: Em 31 de agosto [de 1778] mandou Sua Excelência a esta Câmara o termo de fundação de Vila Maria do Paraguai; e que, por ordem e direção sua, havia feito, a 6 de agosto, o tenente-de-dragões Antônio Pinto do Rego o caminho na margem esquerda e oriental do rio Paraguai, onde há o registro do ouro. Foi posto o seu nome em obséquio da nossa augusta soberana. Na dita povoação se acham 161 pessoas de ambos os sexos, em que entram [ilegível]... perto de cem índios de ambos os sexos que haviam desertado este ano, por várias vezes, da missão de São João, da província de Chiquitos, pela porta do Jauru. Fica a povoação no meio do caminho desta Vila para a de Cuiabá e [ilegível]... de muito cômodo para o comércio e correspondência de ambas as vilas (AMADO; ANZAI, 2006, p. 216-217). A partir do governo de Luiz de Albuquerque, o Forte de Bragança tornou-se um pólo para atração de índios vindos de Moxos, e os capitães-generais receberam com muito gosto estes migrantes. Porém, com as vindas cada vez mais constantes, criaram-se novos problemas, sendo o mais grave a falta de mantimentos. Segundo Meireles, chegavam em canoas, sem qualquer outro bem, e recebiam no forte aquilo de que necessitavam, em geral, roupas e ferramentas. No entanto, tornavam-se “devedores da Fazenda Real. A dívida era posteriormente descontada do seu ‘produto’ e, em alguns casos, passaram a ser credores, saldada a dívida inicial” (1989, p. 173-175). Esses índios eram vistos com bons olhos pelos portugueses: Nos fins desse mês [novembro de 1775] entraram nesta Capitania 12 índios pelo Registro do Jauru, fugindo da missão de São João de Chiquitos. Foram eles os primeiros que entraram por aquela parte. Pouco depois vieram outros índios. Sendo uns e outros recebidos com agasalho, foram mandados por sábia providência de Sua Excelência para a aldeia da Chapada do Cuiabá, em que há índios portugueses e também castelhanos vindos da missão de Exaltação e de outras, a fim de que não dêm tão facilmente execução à variedade de sentimentos que faz o seu caráter (AMADO; ANZAI, 2006, p. 201). No entanto, muitos deles fugiam novamente para o lado espanhol. O fato de se tornarem devedores da Fazenda Real poderia leválos para prisão, o que fazia com que fugissem novamente. 4 Para maiores informações sobre a fundação da Vila, consultar MORAES, 2003. 67 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau Os ataques Apesar de todas as medidas tomadas pelos portugueses sobre a necessidade dos índios se civilizarem, aumentando assim a população desejada pela coroa lusa, muitos deles resistiram. Nesse mesmo mês [março] chegou a infausta notícia de que nele repetiram os índios Caiapós, vizinhos da Vila do Cuiabá, os seus cruciantes insultos, matando 12 pessoas nas imediações da mesma vila, havendo, aliás, também a notícia de que os mesmos, em menos de dois anos, haviam proximamente morto perto de duzentas pessoas por aquelas vizinhanças (AMADO; ANZAI, 2006, p. 187-188) . Contudo, não era apenas os Caiapó que cometiam ataques aos demais moradores. Os Paiaguá, os Mura, além de outros, também eram considerados hostis pelo mesmo motivo: A nação do gentio Mura, que habita as margens do rio Madeira faz um grande mal ao desenvolvimento do comércio e impossibilita a regularidade dos correios. Porém, este impedimento, só a Capitania do Pará o pode remover, estabelecendo uma povoação presidida junto à foz do rio Jamariz, e afugentando aquele gentio indomável com uma expedição de guerra (INSTRUÇÕES, 2001, p. 39). Em 1775, os Paiaguá atacaram novamente: Ao mesmo mês [maio de 1775] entrou gentio Paiaguá no sítio de passagem do Paraguai e matou oito pessoas brancas e vinte escravos. Degolaram alguns e deixaram as cabeças em pontas de pau; roubaram e queimaram as casas dos mesmos sítios (AMADO; ANZAI, 2006, p. 197). Como se verifica, havia resistência acirrada dos grupos indígenas à entrada do colonizador, e à sua insistência em civilizá-los. O fato de alguns grupos aceitarem sua integração nos aldeamentos coloniais, pode ter sido uma tática de resistência: através da condição de “índios aldeados”, tais grupos poderiam pleitear os direitos outorgados aos “súditos reais”, buscando assim negociar, de forma mais vantajosa, as perdas sofridas. Aqui se diz se haverá de fazer uma povoação para cômodo dos que viajam por este rio Guaporé, ficando em meia viagem da fortaleza da Conceição. Quando Sua Excelência passou pela cachoeira da Bananeira, apareceu na margem ocidental do rio Mamoré um lote de quarenta índios silvestres, chamados Pacanauas. Nesse número entraram algumas mulheres e crianças. Como mostravam vontade de admitir civilização, Sua Excelência os mandou convidar e socorrer com algum mantimento e gêneros da sua 68 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos inclinação; consistia em ferramentas e quinquilharias de todos os índios. Vieram em 4 de maio [de 1774] para a fortaleza e ali foram vestidos com as competentes roupas (AMADO; ANZAI, 2006, p. 193). Segundo Rita Heloísa de Almeida, “é preciso saber que o Diretório, regulamentando as condições em que se fazia legítima a liberdade dos índios, ainda deu margem à continuidade de certas práticas de escravidão” (1997, p. 15). Pequenas ou grandes seriam as punições aos índios que não agissem conforme impunha o governo português. Diz o Diretório: (...) e aos Principais, no caso de haver neles alguma negligência ou descuido, a indispensável obrigação que têm por conta dos seus empregos, de castigar os delitos públicos com a severidade que pedir a deformidade do insulto, e a circunstância do escândalo, persuadindo-lhes, que na igualdade do prêmio, e do castigo, consiste o equilíbrio da Justiça e bom governo das Repúblicas. Vendo porém, os Diretores, que são infrutuosas as suas advertências, e que não basta a eficácia da sua direção para que os ditos Juízes Ordinários, e Principais, castiguem exemplarmente os culpados; para que não aconteça, como regularmente sucede, que a dissimulação dos delitos pequenos seja a causa de se cometerem culpas maiores, o participarão logo ao Governador do Estado, e Ministro da Justiça, que procederão nesta matéria na forma das Reais Leis de Sua Majestade, nas quais recomenda o mesmo Senhor, que nos castigos das referidas culpas se pratique toda aquela suavidade e brandura que as mesmas Leis permitirem, para que o horror do castigo os não obrigue a desamparar as suas povoações, tornando para os escandalosos erros da gentilidade (ALMEIDA, 1997, Apêndice, p. 2). O descumprimento do Diretório A presença do Diretório foi constante durante todo o período estudado. Ele visava normatizar a relação do colonizador com as populações indígenas envolvidas na definição de fronteiras. Os índios, considerados “livres”, “vassalos” da coroa, deveriam ficar concentrados em povoações sob o controle de um administrador, que deveria zelar por seus interesses. Nessas aldeias havia imposição da língua portuguesa e se organizava o trabalho dos índios. Os administradores eram remunerados com a sexta parte da produção indígena, o que levou a excessos na exploração da mão-de-obra, provocando muitas fugas e levantes. Os índios também eram alugados a particulares, mediante diárias. Podiam trabalhar em expedições, como remeiros, e em 69 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau obras públicas. Esses aldeamentos localizavam-se em lugares estratégicos, ao longo do Madeira e do Guaporé, e serviam como ponto de apoio para os viajantes. O Diretório incentivava a distribuição dos índios por lavouras familiares, nas quais deviam plantar mandioca, feijão, milho, arroz, algodão e o tabaco, explorar os “negócios do sertão”, que consistiam na coleta de raízes, folhagens, sementes, cascas, etc., além de retirar do trabalho seu sustento e um excedente comerciável. Tudo deveria ser desenvolvido próximo às “povoações”; cada uma delas contava com um diretor, um pároco e um principal, e muitos deles utilizavam o trabalho dos índios em benefício próprio. Os índios respondiam a essa exploração com fugas constantes, não estando satisfeitos com as condições impostas pelos diretores, o que anunciava a futura falência da lei. D. Francisco de Souza Coutinho denunciava as atitudes dos diretores e o descumprimento do Diretório: (...) no pé atual a que os diretores reduziram os índios e as povoações deles, isto é, no pé de considerarem os índios como servos ou escravos, e a povoação como curral deles, no de nem respeitarem a sua vontade, o seu interesse, a sua propriedade, a sua vida, pode ser que os viajantes encontrassem sabendo cometer ao diretor bons partidos. Mas, se esta povoação se reduzisse aos termos que prescrevem as leis; se fosse possível haver um diretor que não abusasse das suas disposições e da confiança que fazem dele, reconhecer-se-á por mui incerta outra vantagem aos viajantes mais que a de acharem descanso, víveres e reforço, e muito por acaso uma vez ou outra alguns indivíduos, que por conveniência própria os queiram servir largando o seu estabelecimento, grande ou pequeno, e a sua família, para empreenderem uma viagem, que ainda daquela situação para diante é dilatada, ou mesmo para somente se arriscarem a violentíssimos trabalhos na passagem das cachoeiras, sendo de mais a mais, tais trabalhos e tais viagens em climas tão funestos aos mesmos índios (COUTINHO, 1840, p. 281-304). As manifestações de insatisfação com a aplicação do Diretório eram cada vez mais constantes, como no caso da Povoação de Casalvasco: Os índios moradores desta povoação, depois de aqui estar bastante tempo, os conheci mais hábeis e satisfeitos, e agora cada vez mais mal satisfeitos, não obstante tratarem-se com menos sujeição. Sucede que quando os mando avisar para a equipação desta igarité, que precisamente anda na Câmara desta povoação, para se a fazer, olham muito, dizendo que não são cativos, e que se lhes não pagam. O mesmo sucede com os que estão empregados no serviço do gado, que sempre mandam requerendo que os 70 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos tire dele, porque [ilegível] lição que tem o sábado e o domingo, e os dias de serviço que trabalham como querem. É que o sábado são obrigados ir para onde o fazendeiro os mandar, seja a hora que for, sem ganhar nada (APMT, Fundo: Defesa, Ano: 1795). Esses documentos demonstram bem o descumprimento do Diretório. Apesar da “garantida” liberdade dos índios, ainda continuavam sendo tratados como cativos, e, mais, a regularização do trabalho e do pagamento dos índios foi algo que praticamente não se cumpriu. Para Ângela Domingues, “o estatuto dos vassalos ameríndios do monarca português era contrastante com a situação que, de fato, ocupavam, sendo um procedimento corrente a infração dos direitos básicos estipulados na lei da liberdade”. Além do mais, segundo Domingues, os diretores eram acusados de explorar os índios em benefício próprio “ou em benefício dos seus amigos e apaniguados, não lhes pagando os salários devidos e fazendo-os trabalhar nos serviços de moradores mais tempo do que aquele prescrito por lei” (DOMINGUES, 2000, p. 49-50). O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira denunciou, em seus registros, o descumprimento da legislação contida no “Diretório dos Índios”, não concordando com o tratamento que lhes era prestado. O naturalista criticava em especial os diretores de aldeia, “por considerar que não aplicavam as leis como deviam. Na realidade, Ferreira não era contrário à utilização da mão-de-obra indígena, mas ao modo pela qual era aplicada a lei” (ANZAI, 2005, p. 273). A lei previa que esse trabalho não poderia exceder a seis meses, já que os mesmos índios deveriam cuidar de suas roças e famílias. Mas isso dificilmente era obedecido, o que levava a que os índios praticamente abandonassem suas famílias, promovendo desequilíbrio na divisão das tarefas das aldeias. O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira foi um dos que mais denunciou esta situação. Ferreira registrou em seus escritos, que os índios eram requisitados como remeiros para expedições diversas, e que, apesar da existência de portarias definindo que deveriam permanecer em suas casas por seis meses após executar um trabalho, para trabalhar em suas roças, quando cumpriam uma tarefa eram imediatamente convocados para a próxima (ANZAI, 2005, p. 276). Ferreira observou que o excesso de trabalho deixava os índios doentes, e oferece o exemplo dos índios remeiros, que sofriam com as picadas de insetos, que infeccionavam, além de doenças como obstrução, apople71 Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste • Alessandra Resende Dias Blau xia, hidropisia, asma, febres, e a “corrupção”, esta última a mais temida, e para cuja cura levavam sempre um estoque de pimenta, considerada um dos medicamentos preventivos da doença (ANZAI, 2004. p. 117). Para o naturalista, além do excesso de trabalho, também contribuíam para deixá-los doentes a falta de agasalhos, e a alimentação deficiente. Em agosto de 1797, D. Francisco de Souza Coutinho, governador da Capitania do Grão-Pará e Maranhão, enviou a Portugal seu “Plano para a Civilização dos Índios”. Coutinho denunciou os baixos índices de produção agrícola, a instabilidade demográfica dos povoados, a “rudeza e a ociosidade contumaz dos índios”, debitando tudo na conta dos excessos cometidos por diretores e demais funcionários. Esses problemas seriam os responsáveis pelo fracasso do Diretório enquanto projeto de civilização (SAMPAIO, 2003, p. 127-128). Devemos observar que o Diretório foi uma lei que se baseou, em grande medida, nas diretrizes básicas do Regimento das Missões, de 1686, corrigindo-as em alguns pontos, inovando em outros, de modo que melhor se adaptasse às necessidades daquele momento histórico em que foi implantado. Do mesmo modo o “Plano para a Civilização dos Índios” utilizou-se de princípios previstos no Diretório, e que também buscou corrigir as falhas, principalmente no que dizia respeito à utilização da mão-de-obra indígena, que, segundo Coutinho, não atendia às necessidades da época. Dessa forma, entendemos que nem o Diretório nem o “Plano” foram leis totalmente inovadoras. Buscavam corrigir as falhas observadas, permanecendo, em ambos, aqueles princípios que julgavam ter sido exitosos. Um exemplo disso é que, apesar das críticas de Coutinho ao Diretório dos Índios, alguns de seus princípios permaneceram, como os incentivos aos casamentos interétnicos que, no caso da capitania de Mato Grosso, contribuiu com um dos objetivos da coroa lusa para a segurança de suas fronteiras na América, ao promover o aumento de uma população que pudesse defender o território luso dos avanços dos colonos da Espanha. 72 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Referências 1 Livros e artigos ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. AMADO, Janaína; ANZAI, Leny Caselli. Anais de Vila Bela 1743-1789. Cuiabá: EdUFMT/Carlini & Caniato, 2006. ANZAI, Leny Caselli. Chiquitanos em Mato Grosso nos séculos XVIII e XIX – ANPUH 1999. In: XX Simpósio Nacional de História – História, fronteiras – ANPUH 1999. Florianópolis. Anais do Simpósio Nacional de História, 1999. v. 1. p. 1-8. ______. Capitania de Mato Grosso e missões jesuíticas de Chiquitos: práticas fronteiriças no Setecentos. Texto apresentado no Seminário Internacional Identidades, representações e narrativas no mundo Atlântico. Brasília, UnB, 2005 (2005a). ______. Demarcação de fronteira na América Meridional no Setecentos, exploração do trabalho indígena e doenças. In. SALOMON, Marlon; SILVA, Joana Fernandes; ROCHA, Leandro Mendes (Orgs.). Processo de territorialização: entre a História e a Antropologia. Goiânia: Editora da UCG, 2005 (2005b). ______. A capitania de Mato Grosso e suas relações com as missões jesuíticas de Chiquitos no século XVIII. In: XXIII Simpósio Nacional da ANPUH – História – Guerra e Paz. Londrina: Editorial Mídia, 2005, v. 01 (2005c). CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: Editora UFMT, 2004. COELHO, Mauro Cezar. O Diretório dos Índios e as chefias indígenas: uma inflexão. 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Guardiães da fronteira: Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis: Vozes, 1989. PRIORE, Mary Del; GOMES, Flávio (Orgs.). Os senhores dos rios: Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria (Orgs.). A terra da conquista. História de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Adriana, 2003. SIRTORI, Bruna. Às margens do Rio Gravataí: a transcrição de registros batismais pelo Padre Bernardo Lopes da Silva e sua concepção de “índio” (17651783). In: 25ª Reunião Brasileira de Antropologia. GT48 – Saberes coloniais sobre os indígenas em exame: relatos de viagem, mapas, censos e iconografia. Goiânia, 11-14 de junho de 2006. 2 Dissertações e teses ANZAI, Leny Caselli. Doenças e práticas de cura na Capitania de Mato Grosso: o olhar de Alexandre Rodrigues Ferreira. Tese (Doutorado em História). Brasília, UNB, 2004. MORAES, Maria de Fátima Mendes Lima de. Vila Maria do Paraguai: um espaço planejado para consolidar a fronteira oeste (1778-1801). Dissertação (Mestrado em História). Cuiabá, Universidade Federal de Mato Grosso, ICHS, 2003. 3 Fontes manuscritas e impressas APMT, Fundo: Defesa, Ano: 1795, Data: 12/01/1975, Doc.: 57, Lata: B. APMT. Governo: Antonio Rolim de Moura; Ano: 1759-1764; Lata: 02; Fundo: Defesa, 1761, doc. 78. 1760, Agosto, 7, Vila Bela. OFÍCIO do [governador e capitão general da Capitania de Mato Grosso] Antonio Rolim de Moura Tavares ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Tomé Joaquim da Costa Corte Real. Anexo: 8 cópias de ofício e 2ª vias. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 11, Doc. 621. 1760, Agosto, 26, Vila Bela. OFÍCIO do [governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso] Antonio Rolim de Moura Tavares ao [Secretário de Estado da Marinha e Ultramar] Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a carta do superior das missões de Moxos [Juan de Beingoolea]. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 11, Doc. 622. 1765, Dezembro, 16, Nossa Senhora da Conceição. OFÍCIO do [governador e capital general da capitania de MT], João Pedro da Câmara Coutinho ao [secretario de estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1773, Janeiro. MAPA do estado civil da povoação do distrito do Forte de Bragança. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc.1015. INSTRUÇÕES aos Capitães-Generais. Publicações Avulsas, n. 27. Cuiabá: IHGMT, 2001. 74 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos MOURA, Antonio Rolim de. Correspondências. v. 4. PAIVA, Ana Mesquita Martins de.; SOUSA, Maria Cecília Guerreiro de.; GEREMIAS, Nyl-Iza Valadão Freitas. D. Antonio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja (correspondências). Compilação, transcrição e indexação. (Coleção Documentos Ibéricos – Série: Capitães-Generais, 2). v. 1. Cuiabá: NDIHR, Imprensa Universitária, 1982. ______. D. Antonio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja (correspondências). Compilação, transcrição e indexação. (Coleção Documentos Ibéricos – Série: Capitães-Generais, 4). v. III. Cuiabá: NDIHR, Imprensa Universitária, 1983. 4 Páginas da internet consultadas COUTINHO, Francisco de Souza. Informações sobre a navegação Pará-Mato Grosso. In: RIHGB, n. 7, outubro de 1840. p. 281-304. Disponível em: <http:// documenta.incubadora.fapesp.br>. Acesso em: 8 mar. 2006. SERRA, Ricardo Franco de Almeida. Memória sobre a Capitania de Mato Grosso. In: RIHGB, n. 5, 1840, p. 19-48. Disponível em: <http://documenta. incubadora.fapesp.br>. Acesso em: 27 jan. 2006. 75 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII Gilian Evaristo França Silva No percurso de levantamento e análise de fontes documentais relativas à Capitania de Mato Grosso encontramos muitos indícios sobre festas e celebrações. No século XVIII, a vila capital, Vila Bela da Santíssima Trindade foi palco de muitas solenidades ligadas às ocasiões religiosas católicas, conforme explicitaremos neste texto, na discussão de práticas constitutivas das representações políticas e culturais vigentes no império português, presentes na Capitania. As terras constituintes da Capitania de Mato Grosso, criada por desmembramento da capitania paulista em 1748, situadas a oeste, eram espacialidades pluriétnicas, assim como todas as que Portugal conquistou na extensão de seu império colonial, nas quais se movimentavam diferenciados atores sociais, muitos deles advindos da repercussão das notícias de achados auríferos. Isto significou importante elemento motivador dos deslocamentos populacionais no território da América portuguesa. Esse movimento deu-se também em outras capitanias mineiras, como em Minas Gerais e Goiás. Era preciso garantir a efetiva ocupação desses territórios mineiros situados em territorialidade espanhola, estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas de 1494, sendo que esse processo de avanço territorial ocorreu principalmente pela busca de riquezas minerais, como ouro e diamante, e também de indígenas para escravização. Nesse contexto, os paulistas foram protagonistas dessas ações, fundamentais para a conquista desses territórios para Portugal. Os achados auríferos deram vi- Gilian Evaristo França Silva é Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Foi bolsista CNPq, e defendeu a dissertação “Festas e celebrações em Vila Bela da Santíssima Trindade no século XVIII”, em 2008. Atualmente é professor da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Mato Grosso – CEFET/MT. E-mail: [email protected]. 76 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos sibilidade a essas investidas da coroa lusa, que logo tratou de providenciar maior controle sobre esses espaços que posteriormente configurariam as duas repartições da capitania, a do Cuiabá e a do Mato Grosso. Os avanços sobre as terras pertencentes à Espanha envolveram embates entre os que para lá se dirigiam e os que ali já estavam. Os diversos grupos étnico-culturais produziam e reproduziam seus modos de vida nessas espacialidades, com suas lógicas próprias de uso do espaço, perpassadas pelas representações que orientavam suas práticas sociais; muito antes da chegada dos primeiros conquistadores ao interior da América do Sul, sociedades ameríndias já ocupavam essas terras. Existia, portanto, uma pluralidade de características culturais, com as quais se depararam os conquistadores portugueses. Resistentes ao avanço luso-paulista, grupos indígenas como os Paiaguá e os Guaicurú, promoveram diversas investidas contra as monções que transportavam pessoas e mercadorias para os núcleos populacionais e mineradores da Capitania de Mato Grosso. Com esse processo de avanço territorial sobre terras já habitadas, iniciou-se o povoamento de Cuiabá, tendo Pascoal Moreira Cabral explorado ouro nas margens do rio Coxipó, em 1719. A descoberta de novas jazidas junto ao córrego da Prainha, por Miguel Sutil, em 1722, fez com que o povoamento fosse transferido para as proximidades do morro do Rosário, e aquela localidade foi elevada à categoria de vila – a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá –, em 1727, por ato de Rodrigo César de Meneses (VOLPATO, 1987, p. 30-31). A fundação da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, num primeiro momento, pode ser entendida como manobra fiscal da coroa portuguesa, o que é válido. No entanto, não foi o único fator motivador dessa iniciativa, pois desde anos anteriores já eram cobrados tributos sobre sua população. A criação da vila deve ser compreendida como produtora de condições básicas de governabilidade, no interior de um sistema comum a outros domínios portugueses nos quatro cantos do mundo (ROSA, 2003, p.16). Por outro lado, a categoria de vila estabelecia uma ligação maior do núcleo com a sede da Capitania de São Paulo, da qual o arraial do Cuiabá fazia parte. Na medida em que o arraial assumia a condição de vila, eram transmitidas aos seus habitantes perspectivas de estabilidade, de durabilidade do povoado, tanto assim que já havia merecido a atenção das autoridades coloniais, que a haviam transformado em município (VOLPATO, 1987, p.31). 77 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva No momento de fundação de uma vila, explicitavam-se os elementos dessa governabilidade, tais como levantar pelourinho, criar Câmara municipal e cadeia, com eleições, estatutos e posturas municipais, normatização da edificação, da higienização, da saúde, da alimentação e das manifestações públicas (ROSA, 2003, p.16). Além dos veios auríferos setecentistas cuiabanos, outros importantes foram sendo encontrados na repartição do Mato Grosso, no vale do rio Guaporé (AMADO; ANZAI, 2006). No entanto, mesmo sendo uma importante prática impulsionadora dos deslocamentos populacionais no século XVIII, a mineração não foi a única atividade econômica desenvolvida na Capitania de Mato Grosso. Não podemos deixar de evidenciar também as rotas comerciais de abastecimento da região com produtos vindos pelo sul e pelo norte, além, é claro, das práticas agrícolas e da atividade criatória interna. A Capitania de Mato Grosso, por outro lado, também era uma capitania “fronteira”, situada nos limites com territorialidades ocupadas pelos agentes colonizadores espanhóis, num momento em que as fronteiras geopolíticas entre as colônias ibéricas na América ainda estavam sendo definidas ao longo do século XVIII. Foi intenso o fluxo de pessoas para as lavras situadas no vale do Guaporé, formando-se nesses espaços muitos arraiais e povoações, a exemplo de São Francisco Xavier, Santana, Pilar, Ouro Fino, São Vicente, Casalvasco. A ocupação do vale do rio Guaporé é tributária do Cuiabá; foi a partir do Cuiabá que se descobriu o ouro nas mediações do Guaporé, e se deu início aos núcleos de povoamento em seu derredor (LUCÍDIO, 2004, p. 3). Entre essas espacialidades, foi criada outra vila, a Vila Bela da Santíssima Trindade, em 19 de março de 1752, vila capital da então recém-criada Capitania de Mato Grosso (1748), anteriormente parte constituinte da Capitania de São Paulo. Desse modo, Vila Bela da Santíssima Trindade serviu de ponto referencial, juntamente com a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, para a consolidação do domínio de Portugal sobre as terras luso-americanas situadas a Oeste (ROSA, 2003, p. 41). Observa-se, pois, que as duas vilas foram edificações urbanas fundamentais na conquista territorial lusa. Na manutenção do controle militar e burocrático em suas terras coloniais, o domínio da coroa contaria, em larga medida, com uma série de símbolos e rituais importantes para a transmissão de valores culturais a serem considerados comuns a todos que faziam parte do império. Assim, as festividades, sem aparente uso da coerção, consti78 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos tuíam-se em um sofisticado instrumento persuasivo. As cerimônias públicas, explicitadas em diversos tipos de festejos, sagrados e profanos, estiveram presentes na formação dos núcleos de povoamento, tanto em arraiais quanto em vilas, conforme observamos em Vila Bela da Santíssima Trindade. Não eram poupados esforços para atrair público para esses eventos. No dia marcado para a festa ou celebração pública, logo em seguida às procissões que abriam as festas levantava-se um mastro comemorativo relacionado aos santos católicos, momento em que eram evidenciados os oragos das vilas coloniais. Nessas celebrações, os elementos de caráter litúrgico confundiam-se com o profano, em um espetáculo de intenso colorido rítmico, pleno de explicações simbólicas (FERNANDES, 2002, p. 94). Esses eventos diminuíam tensões e conferiam sentido ao viver nos espaços urbanos que agregavam os representantes do poder metropolitano, sendo um dos momentos demonstrativos desse significado aos demais colonos. As festas devocionais católicas contavam com a atuação das irmandades religiosas, responsáveis que eram também por sua promoção e organização, juntamente com a Câmara, que aproveitava esses momentos para exibir as insígnias do poder metropolitano e dos poderes locais. Essas oportunidades agregavam os fiéis e a todos os grupos dessa sociedade colonial, reunida em torno da montagem e dos enfeites dos andores, ricamente adornados com as cores de cada entidade religiosa homenageada. Essas manifestações, dedicadas aos oragos católicos, tinham sua data fixada segundo o calendário litúrgico, e, por isso, eram denominadas “festas ordinárias”. Muitas delas marcaram o cenário vilabelense. Essas manifestações religiosas proporcionavam momentos de pausa ao movimento regular e tenso do trabalho diário. Nas vilas coloniais, o centro das festividades eram as igrejas, locais onde se realizavam os ofícios litúrgicos, se recitavam ladainhas e se entoavam cânticos. Na dinâmica colonizadora colonial, quando da instalação dos povoados, fossem arraiais, vilas, roças, sítios ou fortificações, construíam-se também igrejas e capelas, que marcavam e nomeavam territórios, colocando-os sob a invocação de um santo ou de uma santa, que passavam a exercer a função de guardiões nomeadores dos novos agrupamentos. Esses santos e essas santas desempenharam um significativo papel na vida desses grupos colonizadores, servindo a eles de protetores, por meio das potencialidades que cada um trazia consigo, 79 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva fosse proteção contra doenças ou contra males provocados por fenômenos naturais, a exemplo dos trovões e das ventanias. As igrejas eram centros irradiadores da cultura européia no Novo Mundo, pois congregavam os moradores dos povoados na promoção de eventos religiosos ou políticos, em que era comum o uso do seu espaço por parte das autoridades políticas metropolitanas e dos poderes locais. Isso ocorria pela dificuldade de estabelecer uma fronteira rígida e bem delimitada entre o político e o cultural, ou ainda entre o sagrado e o profano, pois ambas as esferas estavam inseridas em um mesmo movimento de apropriações diversas, estabelecendo empréstimos culturais mútuos em seus campos de ação. Dessa forma, a utilização do espaço da igreja exemplificaria muito bem, nesse período, o intenso intercâmbio e as conexões estabelecidas entre as diferenciadas esferas do poder. Na tabela abaixo, constam as igrejas destacadas nos registros dos Anais de Vila Bela, no período de 1734 a 1789, com suas denominações, localizações e datas de fundação. Igrejas registradas nos “Anais de Vila Bela da Santíssima Trindade” (1734-1789) Localidade Entidade religiosa nomeadora Período Vila Bela – porto Santo Antônio Anterior à fundação da da vila até fins de 1752 Vila Bela – praça Santo Antônio 1752 - 1753 Arraial de São Francisco Xavier São Francisco Xavier da Chapada Anterior à fundação de Vila Bela Vila Bela Capela Nossa Senhora Mãe dos Homens 1753-1754 Arraial de Santa Ana Capela de Santa Ana Anterior à fundação de Vila Bela Arraial do Pilar Capela Nossa Senhora do Pilar Anterior à fundação de Vila Bela Vila Bela Matriz da Santíssima Trindade 1755 Vila Bela Nossa Senhora Mãe dos Homens 1755 Vila Bela Pedra fundamental da igreja Santo Antônio de Lisboa 1779 Vila Bela Início da construção da capelinha dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo 1781 Casalvasco Nossa Senhora da Esperança 1785 Fonte: AMADO; ANZAI, 2006. 80 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos As festas de Vila Bela da Santíssima Trindade seguiam o previsto nas “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, legislação eclesiástica que era referência para as ações religiosas e laicas na Capitania de Mato Grosso. Eram as seguintes, conforme tabela abaixo: Dias santos fixos no calendário litúrgico MESES JANEIRO DATAS COMEMORATIVAS 1 Circuncisão de Nosso Senhor Jesus Cristo 6 Epifania (Dia de Reis) FEVEREIRO 2 Purificação de Nossa Senhora 24 São Matias Apóstolo, e no ano bissexto, 25 MARÇO 19 São José, esposo da Virgem Nossa Senhora 25 Anunciação de Nossa Senhora MAIO 1 São Felipe e Santiago Apóstolos 3 Invenção da Santa Cruz JUNHO 13 Santo Antônio, “por ser natural do nosso Reino” 24 Nascimento de São João Batista 29 São Pedro e São Paulo Apóstolos JULHO 25 Santiago Apóstolo 26 Santa Ana, Mãe da Virgem Nossa Senhora AGOSTO 10 São Lourenço Mártir 15 Assunção da Virgem Nossa Senhora 24 São Bartolomeu Apóstolo SETEMBRO 8 Nascimento da Virgem Nossa Senhora 21 São Mateus Apóstolo 29 Dedicação de São Miguel Arcanjo OUTUBRO 28 São Simão e São Judas Apóstolos. NOVEMBRO 1 Festa de todos os Santos. 30 Santo André Apóstolo DEZEMBRO 8 Conceição da Virgem Nossa Senhora, “Padroeira do nosso Reino” 3 São Francisco Xavier 21 São Thomé Apóstolo 25 Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo 26 Santo Estevão Protomártir 27 São João Apóstolo e Evangelista 28 Santos Inocentes 31 São Silvestre Papa Fonte: NDIHR-UFMT. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1720. 81 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva A orientação eclesiástica era para que em cada igreja paroquial da jurisdição do arcebispado baiano se guardasse o dia da festa principal do orago que dava nome à localidade, e acrescentava que nenhum pároco ou prelado poderia conceder outros dias santos de guarda que não constassem da relação do calendário litúrgico ou da relação das datas cristãs móveis. Os párocos deveriam também divulgar, durante as celebrações litúrgicas dominicais, os dias santos da semana que entrava, anunciando a todos que deveriam abster-se de trabalho, dedicando-se a orações e missas. No calendário litúrgico, além dos dias santos fixos, havia os móveis, que deveriam, igualmente, ser considerados pelos fiéis: Dias santos móveis Todos os Domingos do ano Domingo de Páscoa da Ressurreição, a segunda e a terça-feira seguintes Quinta-feira da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo Dia do Espírito Santo, com os dois dias imediatamente seguintes Quinta-feira em que a Igreja universal celebra a festa do Corpo de Deus Fonte: NDIHR-UFMT. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1720. Desse modo, diversos elementos da religião oficial do império lusitano começaram a fazer parte do cotidiano dos moradores do território a oeste da América portuguesa, que vinha sendo esquadrinhado e reconfigurado ao longo de todo o século XVIII. As santas festas Na festa, o sagrado e o profano caminhavam juntos, “como se dentro de cada festa religiosa existisse uma profana e vice-versa”(DEL PRIORE, 2000, p.19). Repleta de rituais que não se encerravam nos atos, no próprio ritual, mas no que eles sinalizavam, a festa tornava-se espaço de manifestação pública para diversos setores sociais (AMARAL, 2001, p. 36). Nesse sentido, ela organizava espaços de sociabilidades dos grupos em questão (JANCSÓ; KANTOR, 2001, p. 3), a exemplo da chegada da imagem do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, em 1729, quando ocorreram muitos festejos organizados pelos moradores da Vila Real. A imagem foi trazida em procissão do Porto Geral, e, em 82 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos seguida, levada à igreja matriz, onde ficou alojada em um altar. Houve missa cantada e sermão pregado pelo padre José Angola, religioso franciscano. As manifestações profanas foram compostas por representações de duas comédias, banquetes e fogos de artifício, que duraram quatro dias, por conta das “pessoas principais” da vila (SUZUKI, 2007, p. 61-62). Já em 1753, houve uma festa concorrida em Vila Bela, em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, registrada nos Anais de Vila Bela, quando da chegada da imagem em um barco vindo das monções do norte, e que provocou muita alegria e devoção. A imagem de Nossa Senhora do Rosário foi colocada na capela de Santo Antônio, que servia provisoriamente de matriz da vila capital. Todas essas manifestações colocavam em movimento pessoas, idéias, objetos, símbolos, autoridades políticas e clericais da repartição do Mato Grosso. Contamos também com descrições de outras festas concorridas, como aquela em louvor a Nossa Senhora Mãe dos Homens, realizada no dia 21 de novembro de 1754, quando aconteceu a bênção da capela na qual seria entronizada a santa. Os registros indicam que, após a bênção, deu-se início ao tríduo, e em seguida à novena, sempre com festividades que agregavam a população de Vila Bela e de seu entorno. No dia da bênção, houve a exibição de três companhias de milícia: a dos brancos, capitão Antônio da Silva Fagundes Borges; a dos pardos, capitão Baltazar de Brito Rocha; e a dos pretos, capitão Henrique Ribeiro Cavaco, “as quais, circulando a capela em roda na função da bênção, a concluíram com as suas três descargas” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 56). Este ato lembrava em muito os rituais pagãos antigos de encanto do mastro votivo, sempre feito em círculo, como uma etapa feiticeira elaborada pelos homens em prol de alguma graça ou benção (DEL PRIORE, 2000, p. 34). Festas religiosas – Repartição do Mato Grosso (1734-1789) LOCALIDADE Vila Bela Vila Bela Vila Bela ENTIDADE RELIGIOSA Santo Antônio Santo Antônio Nossa Senhora do Rosário Vila Bela Solenidade da Semana Santa Repartição do Desobrigas Mato Grosso PERÍODO Junho Junho Chegada da imagem em 12 de julho Data móvel ANO 1752 1752/1753 - 1789 1753 Quaresma e Páscoa do Espírito Santo Móvel 1754 83 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva Vila Bela Nossa Senhora Mãe dos Homens Arraial de Santa Ana Santa Ana Vila Bela Santo Antônio com trezenas (restauração dos cultos ao protetor) Pedra fundamental da igreja de Santo Antônio de Lisboa Santo Antônio de Lisboa Santo Antônio Santo Antônio (nova capela) Chegada da imagem de Nossa Senhora Monte do Carmo Santo Antônio Nossa Senhora Monte do Carmo (primeira vez de sua realização) Santo Antônio Santo Antônio Nossa Senhora da Esperança Santo Antônio de Lisboa Nossa Senhora da Esperança Santo Antônio de Lisboa Santa Ana Vila Bela Bênção – lançamento 1754 da pedra fundamental 21 de novembro Julho Anterior à fundação de Vila Bela Junho 1777 1º de junho 1779 13 de junho Junho Junho 1779 1781 1782 26 de dezembro 1782 Junho 16 de julho 1783 1783 Junho Junho Setembro Junho Setembro 1784 1785 Desde a fundação 1785 1786 1786 Junho Julho 1787 1787 Sagrada Eucaristia – procissão e luto pelo roubo da partícula Julho - agosto 1787 Setembro 1787 Casalvasco Nossa Senhora da Esperança São Lourenço 9 de setembro Vila Bela Vila Bela Santo Antônio de Lisboa Santo Antônio de Lisboa Junho Junho 1787 (indícios de sua realização em anos anteriores) 1788 1789 Vila Bela Vila Bela Vila Bela Vila Bela Vila Bela Vila Bela Vila Bela Vila Bela Casalvasco Vila Bela Casalvasco Vila Bela Arraial de Santa Ana Repartição do Mato Grosso – Vila Bela Casalvasco Fonte: AMADO; ANZAI, 2006. 84 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Uma das festas mais prestigiadas era aquela em honra ao “Glorioso Santo Antônio de Lisboa”, realizada nas primeiras semanas do mês de junho. Conhecido como Santo Antônio de Pádua, este santo nasceu em Lisboa no ano de 1195, e foi canonizado em 1232. Até a idade de vinte e cinco anos, Antônio foi cônego regular em Portugal, prosseguindo seus estudos em Coimbra. Tornou-se missionário e uniu-se depois aos frades franciscanos, sendo enviado para trabalhar entre os muçulmanos de Marrocos. Santo Antônio era um dos principais santos nomeadores das igrejas em Portugal, e recebeu homenagens de várias vilas e cidades do império luso, assim como outros santos e santas de devoção da realeza portuguesa, tais como Nossa Senhora da Esperança, São Pedro, São Paulo, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora do Rosário, entre outros. Durante o tempo de edificação de Vila Bela da Santíssima Trindade, em vários momentos os ofícios litúrgicos foram efetuados em “altar portátil”, pela falta de lugar único e fixo para as celebrações litúrgicas. Mas, em breve, foi construída uma capelinha coberta de palha, dedicada a Santo Antônio, e já no ano de 1752 há registros de realização de festividades em homenagem a esse santo em Vila Bela da Santíssima Trindade, como as cavalhadas (AMADO; ANZAI, 2006, p. 52). Com o aumento da população de Vila Bela, o local de edificação dessa igreja foi transferido, passando do porto para a praça central, lugar destinado à matriz da Santíssima Trindade (AMADO; ANZAI, 2006, p. 53). Desse modo, a capela de Santo Antônio passou a ser a matriz de Vila Bela, até que a igreja dedicada à Santíssima Trindade fosse construída e definitivamente ocupasse o espaço principal e central, temporariamente ocupado pela igreja de Santo Antônio. Como matriz provisória, a igreja de Santo Antônio agregava a população em torno dos rituais litúrgicos católicos, de acordo com o calendário cristão vigente. Em 1754, realizou-se pela primeira vez a solenidade da Semana Santa nessa capela, que servia de matriz, por ordem do Bispo D. Antônio do Desterro, vinda do Rio de Janeiro (AMADO; ANZAI, 2006, p. 55). No ano de 1755, a capela de Santo Antônio foi demolida por ordem do juiz-de-fora, para que no local pudesse ser construída, de modo definitivo a igreja matriz da Santíssima Trindade. Durante o tempo dessa construção, ficou a capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens servindo provisoriamente como matriz de Vila Bela (AMADO; ANZAI, 2006, p. 59-60). 85 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva As festividades em honra a Santo Antônio de Lisboa eram iniciadas com uma trezena, desde o dia primeiro de junho até o dia 13, dia do santo. Nesse período de orações e cantos participavam os moradores da vila, arraiais, sítios e fazendas, e conforme os Anais de Vila Bela do ano 1777 “(...) de forma que em todas as festividades a trezena se encheu de povo esta Capital, que jamais teve dias tão alegres e cheios de divertimentos, publicados por um bando de máscaras no dia 22 de maio” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 210). Na véspera do dia de Santo Antonio do ano de 1777, os céus de Vila Bela da Santíssima Trindade ficaram iluminados por fogos de artifício por quase três horas. No dia seguinte, houve cavalhadas, com vinte cavaleiros que formavam duas alas, uma composta por homens vestidos de azul, e outra de homens vestidos de vermelho. Foi um dia de muito festejo, durante o qual foram apresentadas também “óperas, comédias”, e que, com as outras festividades, foram cheios de “farsas, de muitas máscaras” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 211). O público da festa era diversificado, com destaque para a participação do governador e das famílias mais abastadas, vestindo suas melhores roupas. No palácio do capitão-general “houve um grande panegírico”, e em seguida “deu Sua Excelência jantar com a costumada grandeza, como também ceia, fazendo-se todo o festejo do dia seis; e repetindo-se, em ambas, várias poesias” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 211). Em 1779, quando do lançamento da primeira pedra da capela em honra a Santo Antônio de Lisboa, que contou com o auxílio financeiro da “nobreza da terra” e contribuições do povo, “no alicerce de um ângulo da capela-mor”, o governador e capitão-general Luís de Albuquerque lançou “algumas marcas de prata, que mandou lavrar com as armas reais, e uma esfera com declaração do ano 1779, mandando repartir outras muitas pela nobreza” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 219-220). A capela dedicada a Santo Antonio estava localizada junto ao rio Guaporé, (...) no fim da rua que já se denominava de Santo Antônio. Vai principiada com tanta segurança que se não pode temer que as inundações lhe causem alguma ruína. Para ela deu Sua Excelência uma grande esmola, seguindo esse exemplo de devoção os oficiais da provedoria e todo corpo militar, do qual se presume que o mesmo santo fica sendo protetor e patrono (AMADO; ANZAI, 2006, p. 219-220). 86 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Aos poucos, os lugares passam de pontos de referência, de organização social, para uma ampla rede de significados, que lhes eram atribuídos no transcorrer da vida cotidiana. Os agentes metropolitanos, bem como religiosos, luso-brasileiros reocupavam esse território, reterritorializando suas devoções, construindo pertencimentos. Construir uma capela em homenagem a Santo Antonio, protetor de Lisboa, reforçava laços com Portugal e com a religião. Ao nomear espaços e prestar homenagem aos santos, instaurava-se outra temporalidade, aquela advinda da interrupção das atividades cotidianas, da celebração religiosa da memória de um santo, do festejar, do momento de congraçamento, mesmo que efêmero. A imagem de Santo Antônio foi entronizada em sua capela apenas em 1781, e houve trezena em sua homenagem. A imagem foi carregada em procissão pelas principais ruas da vila, percorrendo e demarcando territórios. Na procissão, houve a participação dos principais representantes do poder metropolitano, da Capitania de Mato Grosso e da Igreja Católica. Nesse cortejo, os poderes se explicitavam: [houve] uma luzida procissão, dando Sua Excelência a mais exemplar edificação em pegar no andor do mesmo santo, com os ministros e oficiais militares mais graduados [...] Continuou a festividade com a maior magnificência e luzimento, mandando Sua Excelência distribuir grande quantidade de medalhas ou verônicas de ouro e prata por toda a nobreza e militares, que as puseram muito gostosamente nos peitos, como insígnias da irmandade, e quase como de uma ordem militar, que tem no santo um grande general e o mais famoso protetor (AMADO; ANZAI, 2006, p. 227). Além da procissão, fogos de artifício e luminárias clareavam as ruas, e nos dias da trezena apresentaram-se quatro óperas. No pátio em frente à capela de Santo Antônio de Lisboa, a guarnição de dragões e auxiliares postou-se solenemente com duas peças de artilharia, e no pórtico da capela-mor havia elogios escritos ao santo, com mensagens devotas dos moradores e do governador e capitão-general Luís de Albuquerque, principal devoto e responsável pelo dístico colocado em homenagem ao santo. Em seguida a essas festividades, houve jantar no palácio dos governadores, oferecido às famílias mais abastadas e demais representantes da coroa lusa (AMADO; ANZAI, 2006, p. 227-228). As festas em homenagem a Santo Antônio eram muito concorridas, e para seu brilho contribuíam o governador, ministros, militares, “nobreza da terra”, sob a coordenação da Irmandade de Santo Antônio de Lisboa, que congregava em sua maioria homens provenientes das 87 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva tropas militares. Pelo fato de o santo ser patrono dos militares, a tropa ficava sempre apostada diante da capela e dava salva real. Logo após os ritos e as funções religiosas, como era comum acontecer, no ano de 1782 foi oferecido “um suntuoso e magnífico jantar, na forma dos mesmos anos antecedentes, tudo com muito júbilo, alegria e animação” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 232). Os registros sobre a festa em homenagem a Santo Antônio variam de acordo com o escrevente. Nos anos de 1787 e 1788, contamos com detalhes sobre os festejos que são bastante elucidativos: No dia 13 de junho celebrou-se, na capela de Santo Antônio, a festividade ao mesmo santo, com a maior solenidade e grandeza, precedendo a sua trezena, da mesma sorte. Assim sendo, Sua Excelência saiu do palácio na sua carruagem, pelas 9 horas da manhã, acompanhado da sua guarda militar. Foi recebido, apostada na mesma capela, com as conveniências devidas ao mesmo militar, e de todas as irmandades do mesmo santo, de que é protetor, e o mais exemplar devoto; também dos ministros, oficiais militares e nobreza, ministrando água benta o padre vigário, paramentado de capa e asperge, e a [ilegível]... de todos os mais, havendo na mesma o mais primoroso concurso de ambos os sexos, uma festa com solene procissão ao redor da capela. E no ato dela se deu uma salva de artilharia, com as mais continências devidas. [...] Recebendo Sua Excelência, em seu palácio deu um magnífico e bem ordenado jantar a todos os ministros, oficiais e nobreza que para isso tenha feito convidar. [...] Foi juiz nessa festa, no presente ano, Vitoriano Lopes de Macedo, natural de Vila Bela, que Sua Excelência nomeou tenente ajudante-de-ordens, sendo servido com boa satisfação os postos de alferes e de tenente dos dragões e outros, nos corpos de ordenação a auxiliares do mesmo juiz, tanto na ação de pôr o mastro, como nos dias da trezena e tarde do dia do santo. Celebrou a festividade com várias danças e comédias e com vistosa iluminação e fogo de cor, com grande despesa sua (AMADO; ANZAI, 2006, p. 266-267). As festas religiosas foram momentos privilegiados para a exibição dos símbolos sociais de distinção no espaço da vila capital. A procissão aparece como o principal símbolo a produzir a diferenciação entre os grupos sociais, pois era organizada e fragmentada por situação sócio-econômica, de acordo com a posição que cada indivíduo ocupava naquela sociedade colonial. Quando do momento de circularem a capela de Santo Antônio, os ocupantes de cargos políticoadministrativos seguiam sempre à frente, junto ao governador e capitão-general, que, inclusive, ajudava a carregar o andor do santo. 88 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Seguiam-se as irmandades religiosas, famílias abastadas da vila capital e dos arraiais e povoações próximas e, nas últimas posições, apareciam livres pobres, alforriados, escravos e indígenas. Este esquema organizativo era comumente seguido nas demais “santas festas” dos oragos católicos. Outra festa bastante significativa era aquela em homenagem a Nossa Senhora da Esperança, em Casalvasco. Construída para receber os comissários da Terceira Partida de Limites, que tinha como intuito reconhecer as terras que serviriam de fronteira entre as colônias de Portugal e Espanha, Casalvasco foi fundada no extremo oeste da América portuguesa. Nesse contexto de definição de fronteiras geopolíticas, a povoação regular foi concebida tendo como parâmetro o Tratado Preliminar de Santo Ildefonso (1777). Havia o questionamento, por parte dos portugueses, da raia proposta por esse tratado, especificamente o artigo X, que traçava a linha demarcatória desde o Marco do Jauru até o rio Galera. Com a instalação de Casalvasco, essa linha demarcatória chegaria até o rio dos Barbados, ficando a povoação distante oito léguas da vila capital, território assegurado aos interesses portugueses. Mesmo assim, a povoação regular de Casalvasco não serviu exclusivamente de cenário para as demarcações de limites, tampouco como casa de veraneio dos governadores e capitães-generais da Capitania de Mato Grosso, sobretudo de Luís de Albuquerque, que a fundou; Casalvasco representava também a defesa das terras onde nasciam alguns dos principais rios que formam as bacias hidrográficas amazônica e do Paraguai. Além disso, essas terras seriam garantidas à coroa portuguesa pelo uti possidetis, que assegurava o domínio pela ocupação humana e uso do espaço, fosse através da concessão de sesmarias na localidade, pela edificação desse espaço urbano ou no emprego de outras atividades econômicas. Edevamilton de Lima Oliveira discute essas questões (OLIVEIRA, 2003), ressaltando, sobretudo, o planejamento, a instalação e a fundação dessa povoação regular por Luís de Albuquerque. Para Oliveira, Luís de Albuquerque teve a sagacidade de perceber uma inteligente forma de assegurar as terras situadas a oeste aos portugueses, com a edificação de um espaço urbano nos limites com os territórios espanhóis, garantindo até mesmo a instalação de Vila Bela, ameaçada com as linhas demarcadoras determinadas pelo Tratado Preliminar de Santo Ildefonso, de 1777. Casalvasco agregou relações significativas com os domínios espanhóis, pela prática do contrabando controlado e até mesmo pela 89 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva espionagem relacionada a questões internas da vizinha colônia ibérica. A povoação está inserida no contexto da atuação política de Luís de Albuquerque, cujas ações legitimaram a reocupação portuguesa na região, como a instalação de fortalezas, povoados e vilas. A povoação regular surgia em planta no ano de 1782, importante projeto geopolítico para a demarcação dos limites coloniais. Oliveira (2003) trabalhou com a hipótese de que o desenho da povoação tenha sido realizado por Luís de Albuquerque, com a ajuda dos engenheiros demarcadores, em Vila Bela. As primeiras edificações eram de palha, e os edifícios projetados na planta foram executados com regularidade. Depois de limpo o terreno, e à medida que as casas eram construídas, o governador Luís de Albuquerque determinava a introdução de pessoas para habitar a povoação, como ocorreu durante os primeiros meses de sua fundação. Indígenas das missões jesuíticas espanholas de Moxos foram enviados para lá, e eram dadas a eles ramas de algodão para cultivarem e tecerem para os moradores da localidade. As visitas de Luís de Albuquerque à “povoação regular” eram freqüentes, e são ricas as descrições das festas que lá eram promovidas. Em 1785, no dia 2 de setembro, Luís de Albuquerque partiu de Vila Bela rumo a Casalvasco, com o objetivo de regular o novo destacamento (AMADO; ANZAI, 2006, p. 252). Chegou à povoação por volta das seis horas da tarde, e foi recebido pelo capitão-comandante, engenheiro Joaquim José de Morais, juntamente com o corpo militar ali presente, que deu salva de três descargas, em demonstração de regozijo e contentamento por sua presença. A partir daquela noite e das duas seguintes, “ficou toda aquela povoação iluminada em demonstração do caráter festivo e celebrativo de sua chegada” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 252). Desde o dia 6 de setembro de 1785 chegavam pessoas a Casalvasco, como o Provedor da Fazenda Real, Felipe José Nogueira Coelho, “acompanhado dos oficiais da provedoria e intendência, mais algumas pessoas”, e o movimento, segundo os registros, lembrava “as festividades da vizinhança das Cortes de Lisboa”. Em seis canoas, pessoas “saíam, lançando fogo no ar, dando tiros de bacamarte, tocando flautas e outros instrumentos, tendo iluminada a canoa em que ia a bandeira da Senhora da Esperança”. Uma vez em terra, formaram-se alas, que precediam a bandeira, “levando todos velas e laços de fita encarnadas no chapéu, para insígnia de festeiros do círio do ouro, em diferença da prata”. Em seguida, entraram todos na capela para rezar, “largaram a 90 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos bandeira e foram depois beijar a mão à Sua Excelência, em cuja presença se repetiu um poema, e se continuou no fogo de vários artifícios” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 252-253). Dando continuidade aos festejos, no dia 7 de setembro de 1785, o reverendo Estevão Ferro, vigário da vara e da igreja, realizou bênção da capela, e aspergiu água benta na igreja e nas pessoas presentes. Contribuíram financeiramente para a festa o capitão-general Luís de Albuquerque, ministros, ajudantes-de-ordens, secretários do governo, oficiais das demarcações, militares e a “nobreza da terra”. Nessa ocasião foram distribuídas às autoridades presentes, a pedido de Luís de Albuquerque, “grandes medalhas ou verônicas de prata, com a imagem da Senhora da Esperança, que com laços de boa fita puseram todos ao peito” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 253). Em 8 de setembro, dia de Nossa Senhora da Esperança, muitos foram cumprimentar Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, desde militares, religiosos e pessoas provenientes das famílias abastadas, que estavam em Casalvasco para participar da festa em homenagem à santa. Durante a festa, houve missa e exposição do Santíssimo Sacramento, além de procissão. O culto contou com a atuação do mestre da capela e de músicos da vila capital, e “a tropa militar formada diante da capela deu carga de três descargas, continuando sempre os instrumentos musicais e alegres toques dos sinos, o que tudo infundia um regozijo e alegria visível” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 253-254). Como em todas as ocasiões festivas, o governador ofereceu (...) um jantar público com toda a grandeza e magnificência. Houve depois dela uma boa orquestra de músicos e instrumentos. Nessa noite e na do dia seguinte se representaram, em teatro, óperas com várias danças e outros divertimentos festivos (AMADO; ANZAI, 2006, p. 253-254). Em setembro de 1787, para a festa em homenagem à mesma Nossa Senhora da Esperança, o capitão-general Luís de Albuquerque havia chegado à povoação regular na tarde do dia 3 de setembro, sendo recepcionado à beira do rio pelo capitão-comandante Joaquim José Ferreira e pela Companhia de Dragões, que lhe fez as devidas continências. Em seguida, no percurso que fez até o palácio, foram “matizando o caminho com flores as índias espanholas que ali se acham, caminhando formadas em duas alas, de um e outro lado, diante de Sua Excelência” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 209). 91 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva Os Anais de Vila Bela descrevem esses festejos também nos anos de 1786 e 1787, sempre seguindo as mesmas etapas rituais. Contudo, chama a atenção um relato sobre a festa de 1787, por relacionar, além dos nomes dos organizadores, também as etapas do evento: No dia 8 de setembro celebrou-se, na capela real de Casalvasco, a festividade de Nossa Senhora da Esperança, sua padroeira, ornada a capela com a magnificência possível. Foi a missa cantada pelo Reverendo Vigário da vila, assistindo à mesma festividade e procissão, Sua Excelência, o doutor Ouvidor-Geral e sua mulher, Dona Ana Isabel da Purificação, muitas pessoas da nobreza e grande concurso de gente. No ato da procissão se deram 21 tiros de [ilegível]... e deu Sua Excelência às pessoas que o acompanharam um jantar, com todo o asseio e grandeza. Na noite desse dia se representou a ópera “O Alecrim e Mangerona”. Houve luminárias, por conta da festividade de São Lourenço, que no dia seguinte se celebrou, por estar transferida do dia próprio em que os moradores desta povoação há muitos anos festejam esse santo, e, à mesma festividade assistiu Sua Excelência, com as mais pessoas que o costumam acompanhar (AMADO; ANZAI, 206, p. 270). Observe-se, no registro, a presença de peças teatrais, clara demonstração da circulação de produções culturais da Europa para a América portuguesa. As canoas que chegavam à Capitania de Mato Grosso traziam, além de “fazendas” diversas, também as gazetas e almanaques que registravam a vida cultural do reino. Essas encenações públicas eram relatadas em variadas ocasiões festivas, com grande aceitação do público pelas representações de tragédias, óperas e comédias. É possível percebê-las desde 1729 nos Anais do Senado da Câmara do Cuiabá, que registrou, durante as festividades em homenagem à chegada da imagem do Senhor Bom Jesus a Cuiabá, duas comédias. Outros registros ainda aparecem sobre as peças teatrais, como as ocorridas no ano de 1763, em homenagem ao nascimento do Príncipe da Beira em festas que duraram um mês, “com comédias, cavalhadas, danças e outras mostras de alegria”; também em 1769, nas cerimônias de posse do governador Luís Pinto de Souza Coutinho, houve “cinco comédias, e duas óperas”, apresentações feitas “em tablado público na rua”, além de “outras danças e folguedos” (SUZUKI, 2007). Ainda conforme os Anais do Cuiabá, no dia 12 de fevereiro “se representou em tablado público, com toda a magnificência e maior ostentação que permitiu o país, a comédia intitulada “O capitão Belizário”. Consta ainda, nos mesmos Anais, que, nos dias que se segui- 92 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos ram, foram apresentadas “outras comédias e óperas, cujos títulos foram: Os triunfos de São Francisco; Demofonte em Pracia; Artaxerxes; Dido abandonada; Filinto perseguido e exaltado” (SUZUKI, 2007). A partir da análise dos relatos dos cronistas José Barboza de Sá e de Joaquim da Costa Siqueira, registrou-se a informação de que na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, durante as festividades em homenagem ao nascimento do neto de D. José, no ano de 1775, houve apresentações de comédias, óperas, danças, carros triunfantes, cavalhadas, com muitos fogos de artifício na praça principal e nos tablados públicos. Também no ano de 1794, em homenagem ao nascimento da Princesa da Beira, o governador João de Albuquerque ordenou a realização de algumas óperas, comédias e danças, em sinal de alegria pelo acontecido. Ainda nesse ano, os comerciantes de Cuiabá concordaram em mandar construir dois navios de madeira, “pintados e bem armados”, dentro dos quais haveria danças e representações de duas óperas, cuja despesa seria dividida por todos, e seriam representadas no teatro que o senado da Câmara montaria em praça pública. Nesse mesmo evento, os alfaiates ofereceriam uma comédia e os sapateiros outra, juntamente com o professor de gramática latina, José Zeferino Monteiro de Mendonça, que ofereceu três (ANZAI, 2007). Carlos Francisco Moura levantou documentação sobre apresentações teatrais em Cuiabá no século XVIII, e destacou as seguintes peças: Aspásia na Síria; Eurene perseguida e triunfante; Saloio cidadão; Zenóbia no oriente; Tragédia de dona Inês de Castro; Amor e obrigação; O conde de Alarcos; Tamerlão na Pérsia; Zaíra; O tutor namorado ou a indústria das mulheres; Ézio em Roma; Tragédia de focas; Esganarelo ou o casamento por força; Emira em Susa, e fugir à tirania para imitar a clemência; Sesóstris no Egito (MOURA, 1976). As representações teatrais foram significativas na vida dos moradores da Capitania de Mato Grosso, no século XVIII, ao ocupar o espaço público, transmitindo códigos de conduta e no reforço da socialização, aspectos importantes para garantir a governabilidade e a manutenção dessas terras conquistadas por Portugal. Em 16 de julho de 1783, aconteceu em Vila Bela, pela primeira vez, a festa em homenagem a Nossa Senhora do Carmo, na capela construída em homenagem à santa. Houve missa cantada e sermão, “assistindo Sua Excelência, doutor provedor, nobreza e grande concurso de povo, que assistiu debaixo de toldos, como em tabernáculos ordena- 93 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva dos no campo nas primitivas festividades” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 239-240). Santa Ana também mereceu concorridas manifestações, principalmente no arraial que levava seu nome, para cuja festa participaram as principais autoridades políticas da repartição do Mato Grosso e de outros locais da Capitania, conforme o relato sobre a festa de julho de 1787: No dia 20 partiu Sua Excelência para o arraial de Santa Ana, a visitar e assistir à festividade da mesma Senhora, na capela no mesmo arraial, sendo acompanhado do ajudante-de-ordens, secretários do governo e capitães engenheiros, doutor astrônomo e outros oficiais de sua guarda militar, de dragões e pessoas de sua família. [...] Foram juízes da dita festividade o capitão José Ferreira de Araújo e Dona Ana Isabel da Purificação e Morais, mulher do doutor ouvidor-geral. E se fez a festa com toda a grandeza e solenidade, havendo, nas noites antecedentes ao dia da festa, duas óperas e duas comédias, havendo também, na mesma noite da festa, um baile em casa do ministro, em que dançou Sua Excelência [ilegível]... e outras senhoras e pessoas que ali se achavam (AMADO; ANZAI, 2006, p. 267). Espaços de múltiplos usos, as festas religiosas em homenagem aos santos do catolicismo foram mostradas aqui apenas em frestas, em fragmentos das apropriações operadas, sobretudo pelas autoridades políticas e religiosas. Todavia, é preciso ressaltar, que os ritos que começavam nos altares terminavam, na maioria das vezes, nas praças, onde os homens representavam seus diversos papéis. No papel festivo estiveram presentes em sua organização as Irmandades das Ordens Terceiras, constituídas por leigos devotos responsáveis pela assistência material e espiritual da população (TIRAPELI, 2005, p. 10; SILVA, 2001), de cada igreja presente nesses espaços coloniais, somadas à Câmara municipal, representando a poder da coroa lusitana, juntamente com a figura do governador e capitão-general. Além das festas religiosas mais freqüentes, registradas nos Anais de Vila Bela, havia outras comemorações votivas na repartição do Mato Grosso, conforme indícios existentes na documentação a respeito de outros festejos, sobretudo ao tomarmos como referência os diferentes e numerosos santos nomeadores de localidades ao longo da fronteira com os domínios espanhóis, bem como aquelas fixadas nos Estatutos Municipais ou Posturas da Câmara de Vila Bela. Quando a Câmara comparecia nesses festejos religiosos com as insígnias do poder metropolitano, encontrava-se em “Corpo de Câma94 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos ra”, sinal demonstrativo da presença das autoridades políticas, locais e metropolitanas, pois cada um dos que ocupavam cargos públicos, sobretudo os mais importantes, posicionavam-se em lugares distintos durante as procissões, segurando andores, bem como nos lugares mais próximos ao altar-mor da igreja matriz da vila. Segundo os Estatutos Municipais de Vila Bela da Santíssima Trindade (ROSA, 2003, p. 195-212), a Câmara deveria assistir com o “Real estandarte” às festas “ordinárias” do mártir São Sebastião, à ladainha de São Marcos, às três ladainhas de maio, à Festa do Corpo de Deus, à do Santo Custódio, da Visitação de Nossa Senhora à Santa Isabel, à Festa de Nossa Senhora Monte do Carmo, à Festa de Nossa Senhora da Conceição, do Te Deum Laudamus, em dia de São Silvestre, e à publicação da Bula da Santa Cruzada, além da festa da Santíssima Trindade, padroeira da vila capital. Sobre os gastos com essas festividades, apontam os Estatutos Municipais: (...) deve a Câmara fazer à custa dos bens do Concelho, as festividades da visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, a do Anjo da Guarda e a Solenidade do Corpo de Deus, pelo que: Acordaram seria a Cera do altar e a que se desse ao corpo da Câmara de meia libra, como também se daria aos cavalheiros da ordem de Cristo que no dia de Corpo de Deus assistissem e acompanhassem a procissão com Mantos, e aos sacerdotes nesse mesmo dia e ato, se daria vela de 4° e da mesma qualidade seria a do Trono do Santíssimo exposto, seguindo-se a Constituição, assim no número de Luzes, como em ficar ao Reverendo vigário a que lhe tocar ou pertencer por direito, e se não daria Cera a pessoa mais alguma, sob pena de a pagarem os camaristas pelos seus bens. E que para a festividade do Mártir São Sebastião, bem necessário nestas Minas do Mato Grosso por advogado da Peste, que por isso pertence a todos, obrigaria a Câmara aos mercadores, oficiais mecânicos, vendas, cortes de carne e Boticas a pagar Cera, música, sacerdotes e mais despesas que houvesse rateada por eles , e o mesmo se observaria na festividade de N. Sra. da Conceição, como Padroeira do Reino (ROSA, 2003, p. 196-197). Para a festa da Santíssima Trindade, padroeira e nomeadora da vila capital, deveria a Câmara nomear, um ano antes, na véspera do dia festivo, três festeiros dos “homens bons”, que possuíssem sangue, linhagem, ocupação e privilégio que os fizessem pertencer a um estrato social distinto o bastante, dentre os que possuíam mais posses. Os festeiros ficariam responsáveis pelos gastos: o mais velho com a cera, o segundo com a música e os sacerdotes, e o terceiro com o pregador. 95 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva Ao pregador cabia explicar o mistério da Santíssima Trindade (ROSA, 2003, p. 197). Contudo, muitas vezes as condições socioeconômicas da vila não permitiram que essas determinações fossem seguidas à risca. Requereram os oficiais da Câmara e mais “nobreza da terra e povo” a revogação do parágrafo sexto do capítulo primeiro dos estatutos, que determinava: (...) que fizessem a festa da Santíssima Trindade, padroeira da igreja matriz desta vila três homens bons e de mais posses dos da terra, que seriam nomeados para fazer a dita festa, a sua custa, por eleição que esta Câmara faria em cada um ano; por quanto ainda que a dita festividade seja muito do agrado de Deus e por ela se assinala esta terra no zelo da religião que fervorosamente tem a este respeito, contudo, suposta a pobreza da terra e impossibilidade de se acharem em cada ano três festeiros para fazerem a dita festa, se fazia o dito Estatuto inobservável, e que por tal se devia declarar, pelo prejuízo grave que dele resultava (APMT, Câmara de Vila Bela 1770-1779, 21 de agosto de 1762). Apesar de formalizada a declaração de impossibilidade de realização dos festejos conforme orientavam os estatutos ou posturas municipais vilabelenses, ordenou o ouvidor geral e corregedor, Manoel José Soares, que os oficiais camarários observassem os mesmos estatutos para realização dos festejos em que a Câmara de Vila Bela deveria comparecer em “Corpo de Câmara”. Ressaltou Manoel José Soares que essa era uma determinação real, cabendo a todos cumprir o que desejava Sua Majestade, até segunda ordem. Outra saída apontada por Manoel José Soares foi a de que os oficiais camarários procurassem dividir as despesas desses festejos com os oficiais mecânicos e artesãos de Vila Bela da Santíssima Trindade, e da própria repartição do Mato Grosso, a exemplo do que já faziam os que moravam na repartição do Cuiabá (APMT, Câmara de Vila Bela 1770-1779, 21 de agosto de 1762). Procuramos delinear os cenários festivos da vila capital, elaborados a partir de relatos colhidos na documentação sobre o período, em especial nos Anais de Vila Bela. Essas festas esboçaram um cotidiano fronteiriço marcado pela crença nos elementos católicos trazidos junto com a ação colonizadora portuguesa na América. Elas significaram espaços de circulação de símbolos, alegorias, pessoas. Além disso, as festas ocultaram conflitos entre os grupos sociais nos espaços por onde os santos e santas desfilaram em seus andores, levados pelos representantes do poder metropolitano e religioso na repartição 96 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos do Mato Grosso, denunciando os silêncios presentes nos registros documentais acerca dessas festividades. As festas votivas aqui apresentadas constituíram-se em uma das formas de trocas culturais presentes na sociedade colonial da Capitania de Mato Grosso. Outros aspectos da dinâmica urbana expõem outras sociabilidades que se formaram nesse período, montando o tecido social multicolorido de práticas e representações sociais, que reforçam os vínculos entre os grupos de uma dada sociedade. Referências 1 Fontes manuscritas e impressas NDIHR-UFMT. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. APMT – Fundo: Câmara de Vila Bela, 1770 a 1779 – Alteração dos capítulos 5°, 6°, 7°, 9°, 12°, 13°, 14º, 15°, 16° do livro das Correições e Audiências Gerais que serve na Ouvidoria. Vila Bela, 21 de agosto de 1762. AMADO, Janaína; ANZAI, Leny Caselli. Anais de Vila Bela 1734-1789. Cuiabá: EdUFMT/Carlini & Caniato, 2006. ROSA, Carlos A.; JESUS, Nauk Maria de (Orgs.). Estatutos Municipais ou Posturas da Câmara da Vila Bela da Santíssima Trindade para o Regimento da República nos casos em que não há lei expressa segundo o Estado do País. Territórios e Fronteiras. 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Cuiabá: SEDUCMT, 2004. 97 A Santíssima Vila Bela nas festas devocionais do século XVIII • Gilian Evaristo França Silva MOURA, Carlos Francisco. O teatro em Mato Grosso no século XVIII. Cuiabá: Edições UFMT, 1976. ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de (Orgs.). A terra da conquista: história de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Adriana, 2003. TIRAPELI, Percival. Patrimônio religioso na formação das cidades do vale do Paraíba, São Paulo. In: TIRAPELI, Percival (Org.). Arte sacra: barroco memória viva. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: editora UNESP, 2005, p. 14-26. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil, 1719-1819. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987. 3 Dissertações e teses AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Festa à brasileira: significados do festejar, no país que “não é sério”. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2001. Tese de doutorado. OLIVEIRA, Edevamilton de Lima. A Povoação Regular de Cazal Vasco e a fronteira Oeste do Brasil Colônia (1783-1802). Dissertação de Mestrado. Cuiabá, UFMT, 2003. SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, irmãos no poder: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). Dissertação de Mestrado. Cuiabá, UFMT, 2001. 98 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade (1748-1790) Masília Aparecida da Silva Gomes A constituição da paisagem agrícola no Vale do Guaporé, nas terras onde, a partir de 1748, se constitui o termo do Mato Grosso, se deu concomitantemente aos descobrimentos auríferos (1734), iniciando sua espacialização ainda no final dos anos trinta dos Setecentos. A princípio, a produção de alimentos oriundos dos diversos ambientes agrários que compunham essa paisagem, tais como sítios, roças, engenhos e fazendas, estava ligada às necessidades de abastecimento do grande contingente de pessoas que se deslocaram para essa região, atraídas pelo ouro. Contudo, aos poucos, somaram-se a essas necessidades as preocupações com a defesa do território. Desse modo, desde a segunda metade da década de 1740, a coroa portuguesa colocou em prática um arrojado projeto que congregava ações econômicas, políticas e culturais, cujo objetivo era assegurar para Portugal a posse efetiva das terras tomadas aos índios e aos espanhóis, na fronteira oeste. A criação da Capitania de Mato Grosso (1748) – com seus dois termos, o Cuiabá e o Mato Grosso –, a fundação de Vila Bela (1752), a espacialização de uma rede formada por vilas e arraiais na linha de fronteira luso-espanhola e a implementação de uma política de povoamento foram algumas das estratégias lusas para alcançar seus objetivos e garantir as vitórias alcançadas com o Tratado de Madri (1750). É nesse contexto que o presente texto tem como objetivo analisar quais foram os principais gêneros alimentícios cultivados nos diversos ambientes agrários que compunham a paisagem agrícola de Vila Masília Aparecida da Silva Gomes é Graduada e Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Foi bolsista Capes, e defendeu, em 2008, a dissertação “Produção agrícola e práticas alimentares na fronteira oeste. Vila Bela da Santíssima Trindade (1752- 1790)”. E-mail: [email protected]. 99 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes Bela e seu termo, entre os anos de 1752 e 1790, buscando identificar o por quê da preferência no cultivo de determinados produtos em detrimento de outros. A espacialização da produção na fronteira oeste Plantar roças pelos caminhos por onde passavam em suas andanças era um hábito bandeirante. Desde o início da ocupação não índia no Vale do Guaporé, iniciou-se a implementação de unidades agrícolas voltadas para a produção e o abastecimento alimentar, nas quais se plantavam milho, feijão e mandioca. Também foi iniciada a criação de animais de pequeno porte, como galinhas e porcos. Esses sítios dedicados ao abastecimento de alimentos seguiam a rota dos novos descobertos auríferos, ao longo do caminho de terra que ligava a Vila Real ao Mato Grosso. Em novembro de 1751, após alguns meses de estadia na Vila Real, o primeiro governador Antônio Rolim de Moura Tavares, em viagem aos arraiais do Vale do Guaporé, encontrou, ao passar pelas imediações do rio Jaurú, (...) quatro sítios em distância de duas léguas em que vivem poucos moradores pobres. Um, que pertence a Antônio da Silveira Fagundes, assistente nestas minas, é maior, e tem uma boa fazenda de gado, que é o que aqui se gasta. Atendendo a isso, lhe mandei passar várias sesmarias das mesmas terras que está cultivando, e de que se está servindo, ficando ele obrigado não somente a aumentar a mesma fazenda de gado, mas também nela bastantes éguas, para o que as terras têm excelentes pastos (NDIHR, 1982; v. I, p. 64). Observa-se, na expressão “é o que aqui se gasta”, que parte da carne produzida por seus animais era destinada a abastecer os viajantes daquela rota, e também os arraiais localizados nas imediações da Chapada. Pelos relatos de José Gonçalves da Fonseca, constatamos a existência de outra fazenda de gado na região do Jaurú, de propriedade de Antônio Francisco, na qual, além de se dedicar à lavoura, criavase gado vacum, com o qual se socorria muitas vezes os arraiais do Mato Grosso (FONSECA, 2001, p. 20). A trilha de expansão de estabelecimentos agrícolas voltados para o plantio de alimentos e abastecimento do mercado local acompanhou de perto o itinerário dos veios auríferos. Além das roças espalhadas ao longo dos caminhos, outras foram se constituindo nas imediações da planície da Chapada de São Francisco Xavier, no entorno das pri- 100 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos meiras minas localizadas na Chapada. A documentação nos fornece indícios de que a formação dessas primeiras unidades de produção agrícola ocorreu simultaneamente ao descobrimento e início das extrações auríferas no Mato Grosso. Nos “Annaes do Sennado da Câmara do Cuiabá”, nas primeiras narrativas referentes às minas do Mato Grosso, ressaltam informações sobre o plantio de roças: “... chegaram neste ano, de Mato Grosso, o sargento-mor Abreu e outros, deixando já roças plantadas”, ou, “quiseram muitas pessoas fazer viagem para Mato Grosso, a colher as roças que haviam deixado do ano antecedente” (SUSUKI, 2007, p. 67). Encontramos informações semelhantes nos “Anais de Vila Bela”, como o registro de que, no ano de 1736, “valia um alqueire de milho seis oitavas”, milho este “produto das roças e plantas do mesmo descoberto” (AMADO & ANZAI, 2006, p. 42). Após a criação de Vila Bela, outras unidades de produção agrícola foram se formando próximo às vilas e povoações e aos fortes. Vila Bela da Santíssima Trindade era a principal vila do Mato Grosso, criada em 1752, para sediar a recém-criada Capitania de Mato Grosso. Sua edificação visava ser a representação maior da posse da coroa portuguesa na fronteira oeste. Logo após criar a vila, o governador Rolim de Moura envidou esforços no sentido de incentivar a plantação de roças nas suas vizinhanças, medida que visava combater a falta e a carestia dos alimentos na vila. Em carta ao rei de Portugal, D. José I, datada de 22 de outubro de 1752, o capitão-general informava que “havia dez roças plantadas na borda do rio Guaporé e perto da vila, com a planta que basta para fazer a abundância grande para o tempo da colheita” (NDIHR, 1982; v. I, p. 100). Segundo Rolim de Moura incentivar a formação de uma base produtiva no entorno da vila seria muito útil para atrair novos moradores, haja vista que a falta de alimentos e os preços exorbitantes eram grandes obstáculos para se atrair novos moradores para a vila capital. Ao que tudo indica, os esforços despendidos pelo primeiro capitão-general não demoraram a apresentar seus primeiros resultados. Três anos após a criação da vila, Rolim de Moura informava a Diogo de Mendonça Corte Real que Vila Bela havia crescido, que já contava com “mais de quarenta casas” em seu espaço urbano e que, pelas suas vizinhanças, à borda do rio havia “vários lavradores estabelecidos que fabricavam os mantimentos necessários para seus moradores”. O capitão-general informava ainda, que em “uns campos contíguos aos da vila em maior distância” havia dado início à criação de fazendas, ten101 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes do começado “com bastante número de cabeças de gado”, e que havia iniciado também a criação de éguas (NDIHR, 1983; v. II, p. 56). Se, na década de 1750, a paz entre Portugal e Espanha e o constante estímulo à produção agrícola contribuíram para que a produção de alimentos na vila capital e no termo se tornasse cada vez mais “independente de outras povoações e colônias mais antigas”, na década seguinte a produção sofreu uma considerável queda. Isso porque, com a assinatura do Tratado de El Pardo, em 1761, que anulou o Tratado de Madri, aumentou o clima de tensão, e a constante disputa territorial resultou em conflito armado entre portugueses e espanhóis, no ano de 1763. Embora o conflito militar tenha sido breve, o clima de tensão e instabilidade política nessa área fronteiriça levou à necessidade de aumentar o contingente militar no termo do Mato Grosso, e chegaram a Vila Bela militares vindos do Cuiabá, de Goiás e do Pará (AMADO; ANZAI, 2006, p. 107-109), aumentando assim o número de pessoas a serem alimentadas. Além disso, as freqüentes secas que ocorreram nessa década, contribuíram para a queda na produção de víveres na vila e em seu distrito. Ao assumir a capitania, em fins de 1768, Luís Pinto de Sousa Coutinho deparou-se com vários sítios abandonados no termo do Mato Grosso. Para fazer frente à situação preocupante, o terceiro capitãogeneral, no ano seguinte, ordenou aos seus subordinados que fizessem um levantamento completo da situação da capitania, com o objetivo de conhecer suas reais condições e potencialidades econômicas, que auxiliassem na montagem de um plano de ação visando sua recuperação, crescimento, e aumento da capacidade produtiva de alimentos. Em 4 de fevereiro de 1770, Luís Pinto de Sousa Coutinho escreveu a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, expondo as razões do levantamento e seus resultados. Sousa Coutinho relatou que, após ter o estudo em mãos, fez “convocar uma assembléia dos seus moradores” exortando-os a “tornarem a restabelecer a cultura das terras desamparadas”, apontando para a existência de “certo número de escravos conducentes que podiam aplicar” para este fim, “sem prejuízo da atual cultura das minas” (PR – MT, 1770, cx. 14, doc. n. 876). O governador encerrou a carta argumentando com Mendonça Furtado que seu “apelo” daria os resultados esperados se fossem concedidos certos estímulos, tais como “perdoar direitos de sua Real Fazenda”, e para isso pedia o apoio de Mendonça Furtado, para que in102 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos tercedesse junto ao rei. No teor dessa correspondência percebe-se que Sousa Coutinho considerava a agricultura como fundamental para o sucesso do empreendimento português na região. Aliás, a preocupação com o desenvolvimento da agricultura na capitania parece ter sido uma de suas maiores preocupações no governo; para ele, da agricultura dependiam todos os outros setores da economia, e até mesmo o futuro do povoamento da capitania, pois: (...) sem a abundância das primeiras produções naturais eram ruinosas todas as mais empresas e manufaturas; se acrescentava excessivamente o valor de todas as fazendas que o comércio introduz; o preço do salário e, finalmente, se derramava a infelicidade e o descômodo por todas as classes de pessoas, a destruir, por último, a povoação e o próprio trabalho das minas (PR – MT, 1770, cx. 14, doc. n. 876). Quanto ao total de sítios levantados no termo, o capitão-general informava a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário da Marinha e Ultramar, que em Vila Bela e seu distrito, no ano de 1770, haviam sido identificados oitenta e quatro sítios, sendo dez de fundação recente, e onze que se encontravam abandonados. Portanto, no ano de 1771, do total de oitenta e quatro sítios identificados na repartição do Mato Grosso, setenta e três estavam em plena atividade, haja vista que dos vinte e um sítios que haviam sidos abandonados, dez haviam sido restabelecidos, e apenas onze continuavam em abandono. Nas observações anexadas a esse mapa econômico, Sousa Coutinho esclareceu que dos dez sítios fundados de novo, nove se destinavam à criação de gado vacum e um era de engenho de cana, localizado próximo à vila capital. Quanto aos engenhos, segundo o governador, sua produção estava organizada da seguinte forma: “cinco de farinha, dezesseis de aguardente de cana, quatro de mandioca, e dois de açúcar” (PR – MT, 1771, cx. 15, doc. n. 972). No ano seguinte, ao passar instruções a Luís de Albuquerque, seu sucessor na administração da capitania, Sousa Coutinho esboçou suas preocupações em garantir o aumento da agricultura. De acordo com o governador, para assegurar o bom andamento no abastecimento de alimentos, seria necessário que Luís de Albuquerque não perdesse de vista a relação entre a quantidade de sementes que os lavradores lançavam à terra e sua produção média, a demanda gerada pelas vilas e tropas da capitania e as reservas que a capitania deveria manter para suprir os casos de necessidade. A partir da observação desses três 103 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes itens, segundo Sousa Coutinho, o governo poderia “prescrever a quantidade das monções que devem lançar à terra, em proporção ao que devem produzir nos anos médios” (INSTRUÇÕES AOS CAPITÃESGENERAIS, 2001, p. 43). Pouco tempo após assumir o comando da capitania, em 1772, Luís de Albuquerque demonstrava preocupação com a produção agrícola e com a distribuição de alimentos básicos à população, ao recomendar à câmara da vila que: (...) aplicasse todo o cuidado em promover e facilitar a agricultura, como tão indispensável para a subsistência da república e como objeto por muitas vezes recomendado por Sua Majestade; e que, igualmente, vigiassem atentamente sobre os oficiais mecânicos e mais pessoas que dão comestíveis ao povo, a fim de conter uns e outros dentro dos limites de um regimento prudente bem econômico (AMADO; ANZAI, 2006, p. 189). Ao que tudo indica, Luís de Albuquerque deu continuidade às medidas tomadas por seu antecessor para fomentar e florescer a agricultura, seguindo de perto as recomendações deixadas por Luís Pinto. Esse fato certamente foi decisivo para aumentar a capacidade de cultivo da capitania. Nos anos subseqüentes a 1773, a documentação analisada indica que a produção de gêneros alimentícios na vila capital e seu termo floresceu, garantindo aos moradores certa regularidade no abastecimento alimentar e estabilidade nos preços. Quatro gêneros principais cultivados nas roças constituíam a base da dieta alimentar cotidiana dos habitantes de Vila Bela e seu termo: o milho, o feijão, a mandioca e o arroz. Desses quatro produtos, sem dúvida, o milho e o feijão foram os mais cultivados, seguidos de perto por cana-de-açúcar, mandioca, arroz, além de frutas e verduras. Os “gêneros do país” Caio Prado Júnior, ao analisar o que denominou cultura de “subsistência” no Brasil colônia, dividiu a América portuguesa em duas áreas distintas: “área do milho” e “área da mandioca”. De acordo com as análises de Prado Júnior, o Mato Grosso faria parte da “área do milho”, composta pelas regiões colonizadas por paulistas (PRADO JÚNIOR, 1942, p. 166). Nessa mesma trilha, Sérgio Buarque de Holanda sugere que nos locais colonizados pelos paulistas fora se formando uma verdadeira “civilização do milho”, e que a predominância no cultivo desse cereal teria assegurado aos moradores dessas áreas a 104 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos mobilidade de que necessitavam (HOLANDA, 1975, p. 217). Corrobora essa idéia a afirmação do terceiro capitão-general Luís Pinto de Sousa Coutinho, registrada nas observações anexadas ao “Mapa econômico da capitania tirada no ano de 1770”, no qual afirmava que os gêneros alimentícios mais cultivados pelos moradores de Vila Bela e seu termo eram o milho, o feijão e a cana-de-açúcar, embora se produzisse “pouco arroz e pouca mandioca” (PR – MT. cx. 15, doc. n. 927). Na farta documentação consultada, encontramos diversos indícios que apontam ser bem provável que o capitão-general estivesse correto na especificação dos gêneros mais cultivados no Mato Grosso. Em novembro de 1781, ao passar pela quinta cachoeira do rio Madeira, denominada “Salto do Girau”, com destino a Vila Bela, o astrônomo e demarcador Antônio Pires da Silva Pontes diz ter encontrado, por aquelas paragens, “grande roça”, na qual se cultivavam “o aipim, que é uma espécie de mandioca, e muito milho” (PONTES, 1781, p. 161). Dois anos depois, Joaquim José Ferreira, comandante da povoação de Casalvasco, informava a Luís de Albuquerque que já se ia “principiando a roça para feijão” (APMT – Lata: 1785, doc. n. 08). Em 1785, o comandante do Forte do Príncipe da Beira, José Pinheiro de Lacerda, comunicava a Luís de Albuquerque, que (...) o soldado José Rodrigues, com outros vários, se acha estabelecido presentemente no dito curral da estância, com (...) uma boa roça de milho e mandioca, seus pés de bananeiras e algumas canas de açúcar, que tudo pode servir para plantar, em ordem ao aumento do dito estabelecimento, e muito mais se poderá ir adiantando (APMT – Lata: 1785, doc. n. 114B). As referências a esses gêneros também podem ser encontradas nos mapas dos armazéns dos fortes enviados aos capitães-generais, como podemos observar pelo relato a seguir: Remeto a vossa excelência os mapas do mês de julho, a saber: um de toda a guarnição, e outro do mantimento existente nestes armazéns, e além do mantimento que dele consta, recebeu-se para eles mais neste mês quarenta e oito alqueires de feijão, e dezesseis alqueires de farinha (APMT – Lata: 1773, doc. n. 08). Portanto, considerando os indícios que a documentação aponta, confirma-se a afirmação de Sousa Coutinho, de que os dois gêneros alimentícios mais cultivados no Mato Grosso, que entravam na alimentação cotidiana da população, eram o milho e o feijão. O milho era destinado a satisfazer as necessidades alimentares não só dos mora- 105 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes dores e de seus animais domésticos, como porcos e galinhas, mas também de mulas e cavalos, utilizados na locomoção de pessoas e transporte de mercadorias. Nas minas do Mato Grosso, cada vez que se pretendia deslocar tropas de animais de um lugar ao outro, as autoridades requeriam junto aos moradores quantidades significativas desse cereal para garantir a alimentação dos animais. Em outubro de 1769, o ajudante de ordens Antônio Felipe da Cunha Ponte comunicou a Sousa Coutinho que frei José havia lhe entregado (...) uma ordem de vossa excelência para os moradores do Paraguai, Jaurú, e Lavrinha do Guaporé, terem pronto o milho que fosse necessário para cinqüenta cavalos, que até vinte deste mês partiriam dessa para esta vila. E me disse que a todos a tinha apresentado, e que todos lhe responderam a executariam. Além disto, mandei chamar uma preta, chamada Maria Tereza, que mora nesta vila, e é casada com um preto assistente na dita Lavrinha, e dos que têm mais posses, e lhe perguntei se seu marido poderia ter nela pronto quinze alqueires de milho para os referidos cavalos, até dez de novembro. E segurando-me ela que sim, e que desde já se encarregava desta assistência, me escusa mandar eu desta vila o dito milho para aquele sítio (APMT – Lata: 1769, doc. n. 221). Sérgio Buarque de Holanda identifica o cultivo da tríade milho, feijão e abóbora nas roças em Cuiabá desde os primeiros anos de ocupação lusitana na região, e afirma que fatores como a facilidade no transporte, aliado a um tempo de produção mais curto, foram elementos importantes na escolha desse cereal pelos paulistas, em detrimento da mandioca. O milho, em relação à mandioca, apresentava a vantagem de poder ser transportado em grãos por longas distâncias, sem que isso comprometesse sua capacidade de germinação, e, enquanto que a mandioca levava cerca de um ano ou mais para produzir, o milho tinha um tempo de produção relativamente curto, cerca de cinco a seis meses, entre plantio e colheita (HOLANDA, 1785, p. 108-175). O desenvolvimento das lavouras de milho e de feijão se estendeu também ao termo do Mato Grosso, já nos anos iniciais de sua reterritorialização. Quanto ao rendimento desses cereais, Sousa Coutinho afirmara em relatório enviado ao Secretário da Marinha e Ultramar Martinho de Mello e Castro, em 1º de maio de 1771, que a produção do milho “neste país é prodigiosa”, pois cada quantia de milho lançado à terra não deixava de “render 200”, nos anos regulares, e “20 a 25 o feijão” (PR – MT, cx. 15, doc. N. 927). O que significa que, para cada quatro ou cinco grãos de milho lançados à terra (CARRARA, 2006, 106 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos p. 115), obtinha-se um rendimento equivalente a 200 grãos em anos normais, o que dá uma média de 40 grãos por um, e de quatro ou cinco grãos de feijão conseguia-se um rendimento de 20 a 25 grãos, o que dá a média de cinco grãos por um. Ao analisar o rendimento desses gêneros nas Minas Gerais, no século XVIII, Ângelo Alves Carrara aponta um rendimento para o milho de no mínimo 40, e no máximo 75 por um, e, para o feijão, uma média de dez por um. Porém, em lugares de mato virgem, a sementeira do milho alcançava um rendimento de quinhentos por um, chegando o feijão a render sessenta por um (CARRARA, 2006, p. 207). Evidentemente as condições da terra influenciavam no rendimento desses grãos, mas outros fatores também interferiam, como práticas de plantio mais adequadas. É o que se constata no relato do diretor do Forte do Príncipe da Beira, informando a Luís de Albuquerque que havia mandado (...) a relação do milho, que com boa regularidade se acha plantado em distância ou intervalo de seis para sete palmos, cujo arbítrio fiz este ano praticar, a bem dos mesmos lavradores, que costumavam plantar o seu milho com feijão, e por isso colhiam espigas de restolho, e tão pouco, que a menos de cento por um correspondia de ordinário (APMT – Lata: 1785, doc. n. 146). Além disso, a proporção de duzentos por um, relatada por Sousa Coutinho, só era alcançada em anos de boa safra. Porém, é interessante observar que Sousa Coutinho não fez qualquer menção a esses cuidados em seu relatório, limitando-se a dizer que o alto rendimento do milho e do feijão era devido ao maior “empenho” dos agricultores e à boa qualidade das sementes (PR – MT; cx. 15, doc. n. 927). Mas qual seria a razão desse maior “empenho” dos moradores de Vila Bela com o cultivo do milho? Luce Giard, em “Cozinhar”, afirma que os alimentos que compõem o prato cotidiano fazem parte de um complexo sistema simbólico pelo qual uma cultura ordena o mundo sensível; no entanto, é preciso reconhecer que esse jogo de diferenças e preferências pode ser condicionado não só por fatores culturais e simbólicos, mas também por fatores ligados à história natural (espécies vegetais e animais disponíveis, natureza dos solos cultivados, condições climáticas), à história material e técnica e, finalmente, por fatores ligados à história econômica e social (GIARD, 1996, p. 234-238). Seguindo o raciocínio de Giard, observamos que o “empenho” dos lavradores do termo do 107 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes Mato Grosso no cultivo do milho e do feijão ligava-se não só a fatores culturais, mas também a fatores técnicos, pois milho e feijão eram dois produtos que alcançavam bom rendimento e eram de fácil cultivo e beneficiamento. O processo de limpeza, preparação da terra, semeadura e colheita do milho e do feijão não ocupava mais que alguns meses e não requeria por parte dos lavradores cuidados contínuos, já que no período entre a semeadura e a colheita desse gênero não se exigiam mais que duas capinas, liberando a mão-de-obra para o desenvolvimento de outras atividades. Em princípios de fevereiro, tinha início o processo de limpeza da terra para a primeira semeadura do feijão. Quando limpa, a terra era dividida em colunas, que continham entre cinco e sete palmos de distância uma da outra (APMT – Lata: 1785, doc. n. 146); vencida essa etapa, abriam-se covas onde se lançavam ao solo os grãos de feijão, estocados da colheita anterior (MENESES, 2000, p. 184). Como milho e feijão eram cultivados de forma consorciada, todo o processo de preparo da terra para a sementeira do milho implicava seu aproveitamento concomitante para a semeadura do feijão; no entanto, a colheita se dava em períodos diferentes. Três meses depois da semeadura, o feijão já estava pronto para ser colhido. Já o milho demorava ainda em torno de um mês e meio, mais ou menos, para chegar no ponto de colheita. Câmara Cascudo afirma que na região norte, assim como o plantio da mandioca, a semeadura do milho ocorria no mês de janeiro, sendo sua colheita em junho (CASCUDO, 2004, p. 111), dando uma colheita por ano. Já no Mato Grosso, tudo indica que a semeadura do milho ocorresse duas vezes no ano, pois, nas correspondências dos comandantes dos fortes enviadas para Luís de Albuquerque, encontramos expressões como “está acabado o milho velho, e será conveniente prosseguir-se a moer o novo à proporção que ele for secando, por estar plantado em três quartéis”. Essa informação nos fornece indícios para afirmar que o plantio de milho no termo do Mato Grosso ocorria mais de uma vez ao ano, provavelmente fosse lançado à terra duas vezes no ano, oferecendo duas colheitas (APMT – Lata: 1785, doc. n. 115). Ainda de acordo com os indícios apresentados por essa documentação, é bem provável que a primeira semeadura ocorresse por volta do final de fevereiro e no mês de março, e a segunda, em fins de setembro e em todo o outubro (APMT – Latas 1773 e 1785). 108 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos As técnicas agrícolas na segunda metade do século XVIII eram ainda bastante rudimentares. O processo de lavrar a terra consistia em derrubar a mata e as capoeiras com machados, aproveitando troncos e galhos como lenha. Após a secagem da mata derrubada, ateavase fogo à área desmatada, e, em seguida, destocavam-se, com enxadões e picaretas, troncos e raízes. Feito isso, a terra já estava pronta para ser coveada e semeada. Não há evidências, na documentação analisada, sobre o uso do arado, nem tampouco menção a qualquer processo de fertilização da terra, como uso de estrume de animais. Portanto, fatores de ordem cultural, econômica, técnicos e geográficos fizeram com que as culturas do milho e do feijão reinassem soberanas, no período estudado, no Cuiabá e no Mato Grosso. O milho era base de alimentos e bebidas consumidos na capitania, tais como: canjica, cuscuz, biscoitos, pipocas, catimpuera, aluá, aguardente, vinagre, entre outros (HOLANDA, 1975, p. 216-217). Uma das bebidas derivadas do milho mais apreciadas pelos povos da nação Paresi era a chicha, largamente utilizada em suas festas e rituais1. A chicha era preparada através da maceração do milho verde. Mastigado por mulheres, era posteriormente cuspido em recipientes de madeira para fermentar, ganhando um gosto adocicado. Após esse processo, a massa de milho macerado era guardada em um recipiente tirado do buritizal, ao qual as mulheres acrescentavam água até encher. Dessa mistura derivava a chicha. No entanto, embora importante base alimentar, o milho não podia suprir a todas as necessidades dos moradores da capitania. Ainda verde e em espigas, o milho poderia ser consumido tanto assado em brasas quanto cozido em água. Do milho verde fazia-se ainda o curau e a pamonha. Contudo, o consumo do milho na repartição do Mato Grosso se dava, sobretudo, sob a forma de fubá e de farinha. Esses dois produtos eram fabricados em engenhos d’água. Embora fosse considerada mais indigesta, tinha-se a farinha de milho como mais nutritiva que a farinha de mandioca, e, segundo Sérgio Buarque de Holanda, parece ter sido a maior contribuição oferecida pelo milho à dieta alimentar cotidiana dos habitantes das minas (HOLANDA, 1975, p. 216-217), tanto nas Gerais quanto em Mato Grosso. 1 A chicha ainda hoje pode ser encontrada no comércio de Vila Bela. 109 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes A preferência pela farinha de milho parece ter sido mais acentuada nos fortes, fator que certamente contribuiu, e muito, para o aumento da demanda por esse alimento no termo. Essa alta demanda aliada à queda na safra de milho fez com que em determinadas ocasiões os comandantes dos fortes fossem obrigados a ordenar aos lavradores donos de engenho que moessem o milho ainda meio verde para se fabricar a farinha, como podemos observar no relato abaixo: (...) está faltando aqui a farinha para suprir as datas, de sorte que me vi obrigado a mandar aos donos dos engenhos que fizessem quarenta alqueires dela cada um deles, com algum prejuízo, por estar o milho ainda verde (APMT – Lata: 17777, doc. n. 64). Em épocas de falta de milho, substituía-se a farinha de milho pela de mandioca. Em 1785, o comandante do Forte do Príncipe da Beira informou a Luís de Albuquerque que era preciso prevenir, ( ...) fazendo esforçar os três engenhos do falecido Rocha, Ignácio Ferreira Marinho e Domingos Francisco dos Santos, os monjolos de João Cardoso dos Santos, na fabricação unicamente de farinha, evitando o desperdício de tempo que se costumam divertir com as cachaças, enquanto os ditos fabricantes se não esforçassem com maior número de escravaturas, pois em tempo desperdiçado com tal manobra se podia aproveitar em fazer farinha de mandioca, em ordem a suprir a falta de milho, e não seria menos proveito e lucro que a mencionada cachaça (APMT – Lata: 1785; Fundo: defesa; doc. n. 115). A mandioca foi outra fonte importante de alimento cultivada pelos moradores de Vila Bela e região. Conhecida dos povos ameríndios antes da chegada dos europeus, a mandioca dominou facilmente o paladar português, tornando-se alimento indispensável no uso cotidiano dos colonos americanos (CASCUDO, 2004, p. 92). Em 1799, ao discorrer sobre a utilidade de se ter plantações de alimentos próximas às lavouras de café, frei José Mariano da Conceição Veloso, autor de “O fazendeiro do Brasil”, argumentava: A mandioca é outra raiz muito útil, e de muita serventia, mas raras vezes vem bem nos distritos chuvosos. De mais não vegeta bem à sombra, e conseguinte se não deve plantar entre as bananeiras, mas em lugar separado. A preparação desta raiz é matéria de alguma delicadeza, porque seu suco é mortal. A mandioca doce não tem esse inconveniente, e pode-se comer cozida ou assada, como os inhames e outras raízes (VELOSO, 1799). 110 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Vimos, pois, pelas palavras de Veloso, que havia no Brasil duas espécies de mandioca bem distintas: uma brava (amarga), e outra doce, de sabor suave. A brava continha uma forte concentração de ácido cianídrico, substância tóxica, o que inviabilizava seu consumo em estado natural; já a mandioca doce não era venenosa, e podia ser consumida cozida, assada ou em forma de farinha. Quanto à denominação, Manihot utilíssima é usada para designar as amargas, e Manihot palmata é a designação das mandiocas doces (ALENCAR, 2003, p. 91). Observase ainda, pelas palavras de Veloso, que a mandioca requeria alguns cuidados, que, a depender da situação, poderiam ser considerados inconvenientes para o seu cultivo constante e sistemático. Segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, a mandioca, quando deixada de molho, desprendia um suco cru que era “um mortal veneno para a maior parte dos animais” que o bebiam (ANZAI, 2004, p. 177). Freqüentemente cultivada pelos moradores das minas do Mato Grosso, a mandioca parece não ter disputado com o milho espaço em área cultivada. As explicações para ter sido plantada em menor escala que o milho podem estar associadas a fatores tais como: tempo de produção mais longo; ser um alimento restrito à alimentação de pessoas, não servindo de alimento para animais, como era o caso do milho; não possibilitar certas combinações na produção consorciada, além de apresentar dificuldade no transporte das ramas utilizadas para plantio. Contudo, isso não significa que a mandioca e seus derivados não tivessem um papel importante na alimentação da população de Vila Bela e região. Enfatize-se que grande parcela da população de Vila Bela era composta por indígenas e seus descendentes, habituados ao consumo dessa raiz. Na documentação consultada, é freqüente a referência a roças de mandioca, que aparece sob a denominação de macaxeira, aipim ou simplesmente mandioca. Tubérculo rico em carboidrato, a mandioca poderia ser consumida cozida, assada, em forma de polvilho para a confecção de biscoitos, em caldos misturada à verduras, em forma de beijus, mas, sobretudo, sob a forma de farinha. Fabricada em engenhos destinados a esse fim, a farinha de mandioca era item de presença garantida nas listas de mantimentos destinados a abastecer os viajantes que trafegavam pelos caminhos da capitania. Pelos idos de 1770, foram identificados quatro engenhos de mandioca em plena atividade no termo de Vila Bela (PR – MT, cx. 15, doc. n. 927). 111 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes Trazido pelos portugueses para o Brasil, desde as primeiras décadas de ocupação lusitana, o arroz2 foi, na opinião de Armesto, o segundo produto agrícola mais importante transplantado para a América (ARMESTO, 2004, p. 260). Esse cereal figura entre os produtos cultivados em São Paulo já em meados do século XVI. No entanto, ao que tudo indica, seu cultivo foi preterido em benefício de outras culturas durante mais de um século, só reaparecendo na pauta dos produtos cultivados naquela capitania em fins do século XVII (HOLANDA, 1975, p. 237-240). As capitanias do Maranhão, Grão-Pará e Rio de Janeiro se destacaram como grandes produtoras de arroz no período colonial, e há registros de que, em 1781, parcela considerável do “arroz consumido em Portugal era proveniente do Brasil” (MARIN, 2005, p. 81). Por volta dos anos setenta dos Setecentos, o arroz era um cereal ainda pouco cultivado na Capitania de Mato Grosso. As explicações para esse baixo cultivo não estavam na qualidade das terras ou no baixo rendimento desse gênero, mas, sim, na má qualidade das sementes e na falta de máquinas adequadas para descascá-lo, de forma a deixar os grãos totalmente limpos sem quebrá-los demasiadamente. Visando resolver esse problema e fomentar o cultivo desse cereal na capitania, em 1770, Sousa Coutinho “mandou vir do Pará melhor qualidade de semente, e um modelo para se fabricarem nesta capitania as referidas máquinas auxiliares” (PR – MT, cx. 15, doc. 927). O arroz foi por algumas vezes o substituto providencial de outros alimentos básicos, como a farinha, e até mesmo o feijão. Em 1773, o comandante do Forte da Conceição avisava Luís de Albuquerque de que havia recebido (...) quarenta e oito alqueires de feijão, e dezesseis alqueires de farinha de mandioca. Do fumo e arroz, consta do mapa, supre muito bem a falta de feijão, dando-se por cada quarta de feijão uma vara de fumo, e uma quarta de arroz em casca em lugar de meia de feijão, na forma do costume, por onde julgue o não ser preciso vir feijão para a guarnição, que existe neste ano (APMT – Lata: 1773, doc. n. 08). 2 Originário dos vales secos da Ásia Central, onde surgiu há cerca de 5 mil anos a.C., o arroz transformou-se depois em uma planta semi-aquática, o que lhe assegurou o seu alto rendimento. Cf. BRAUDEL, 1995, p. 127. No entanto, somente nos séculos XVII e XVIII houve expansão de espécies agricultáveis. Cf. MARIN, 2005. Disponível em: <http://www.naeaufpa.org/revistaNCN/ojs/viewarticle.php?id=7&layout=html>. Acesso em: 16 fev. 2008. 112 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Duas espécies de arroz poderiam ser encontradas em Vila Bela: o arroz branco e o arroz vermelho, ou arroz nativo, como também era conhecido. O arroz vermelho brotava naturalmente pelos espaços alagados da capitania e, associado ao peixe ou à carne de caça, serviu de sustento para os novos habitantes das minas desde os primeiros anos de ocupação do território, como podemos constatar pelo relato de um autor anônimo, que esteve nas minas do Cuiabá entre os anos de 1720 a 1722: (...) [passava] só com peixe do rio que um negro pescava no Cuiabá com fisga e rede trançada de cipó e palmito de aguaçú, que tirava do mato, comia com capim arroz das beiradas [dos rios], que pilava, e do pilado comia tudo misturado, só com toucinho de caça gorda, com pouco sal (...) mel das [abelhas] europa que tirava dos paus, que tudo o tempo ardentíssimo estragava e consumia (SILVA, 2005, p. 88). Durante todo o século XVIII, o arroz vermelho foi largamente utilizado como alimento pela população da capitania. Essa espécie de arroz foi registrada nos documentos produzidos pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira. Quando seguia viagem de Vila Bela em direção à Vila Real, o naturalista Ferreira registrou: “Todos os rios e ribeiros que se atravessam, continuando a jornada até o Cuiabá, são mais ou menos bordados de palmares, tabocais e diversos arvoredos, assim como as lagoas e as várzeas, semeadas de arroz vermelho” (ANZAI, 2004, p. 186). A cana-de-açúcar foi outra planta que fez parte da paisagem agrícola de Vila Bela desde os primeiros anos de ocupação lusitana na região. Largamente cultivada nos sítios de Vila Bela, a cana deu origem a vários produtos consumidos por sua população, tais como a rapadura, o melado, o açúcar e, sobretudo, a aguardente. A construção de engenhos em áreas de extração mineral fora proibida pela coroa portuguesa desde 1715, e tinha como objetivo conter a proliferação de engenhos nas Minas Gerais, fato que vinha ocorrendo desde o início do século XVIII. No entanto, apesar da proibição, Zemella constata, através das constantes reiterações da legislação portuguesa a respeito dos engenhos, que tal proibição não surtiu os efeitos esperados, e a construção de engenhos nas áreas de mineração continuara a se expandir durante todo o século XVIII (ANZAI, p. 212-213). A construção dos primeiros engenhos no Mato Grosso parece ter iniciado logo após a descoberta de ouro nas margens dos rios que 113 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes compunham a bacia do Guaporé. A esse respeito, o primeiro documento de que temos notícia é de autoria de Tomé Gouveia e Sá Queiroga, que no ano de 1735, após receber licença do governador de São Paulo, o Conde de Sarzedas, para construir engenho nas minas do Mato Grosso, pedia ao rei a confirmação de sua licença, como podemos constatar pelo documento abaixo: Diz Tomé Gouvêa e Sá Queiroga, assistente nas minas de Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá, aonde assiste, (...), a Vossa Majestade, como também ser ele suplente o motor do descobrimento do sítio do Mato Grosso do sertão Parecizes, donde se espera haver umas minas continuadas de grande rendimento, e pela sua boa inteligência, zelo e verdade, o proveu o governo na ocupação de Provedor da Fazenda Real, o qual exercitou com muito zelo do real serviço, e por ser muito consciente haver naquele sítio novamente descoberto do Mato Grosso, e um engenho que se possam fabricar aguardentes e melados, para se acudir com eles o façam, por não haver um naquele sítio, recorreu ao governador conde de Sarzedas para lhe dar licença para poder levantar engenho, que com efeito senhor governador lhe concedeu (...), e pede a Vossa Majestade lhe faça mercê, em atenção ao referido mandar ao suplente se lhe passe carta de confirmação da licença que lhe deu o dito governador, para poder levantar um engenho de aguardente, de melados, no novo sítio do Mato Grosso, tudo a custa do suplente (NDIHR/UFMT. Rolo 1, MT, cx. 1, doc. 68). Quase três anos depois, em fins de 1738, Queiroga finalmente recebia a resposta do rei, que, além de negar a confirmação de sua licença, ordenou que “no caso de se haver erigido engenho o mandais demolir, e não consintas se estabeleçam engenhos de novo” (NDIHR/ UFMT. Rolo 1, MT, cx. 1, doc. 68). Naquele período, Cuiabá já havia se constituído como verdadeiro entreposto comercial para o Mato Grosso, e as intenções de Queiroga e de outros homens de posses interessados na construção de tais engenhos no Mato Grosso não agradaram aos proprietários de engenhos do Cuiabá, que, interessados nas oportunidades de comércio abertas por aquele novo mercado, se articularam em torno da câmara da Vila Real para se manifestarem ao rei e pedirem que (...) no novo descobrimento do Mato Grosso se não plantasse cana, nem fabricasse engenho algum de novo. Sem embargo do que tenho notícia que já destas Minas foram alguns instrumentos para se fabricar um engenho no dito descobrimento, que se conservem os que estão feitos nestas Minas parece justo, para não perder de todo os donos deles de se fabricarem de novo, e principalmente em descoberto é divertir do exercício de 114 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos minerar vinte ou trinta escravos, que em cada um se ocupam, e buscar meio para se perderem muitos homens com bebidas, como aqui se experimenta, e será justíssimo que Vossa Majestade proíba com penas graves que se não façam para o futuro semelhantes engenhos. E assim o praticou o general desta capitania, Antonio da Silva Caldeira, na criação das minas dos Goiases, por experiência ter mostrado o prejuízo que causam os ditos engenhos (CANAVARROS et al., 2007, volume II, p. 78). Importante notar que os oficiais camarários de Cuiabá, além de pedirem para que não se levantassem novos engenhos no Mato Grosso, pediam ainda que não se demolissem os engenhos já existentes na Vila Real, como estabelecia a ordem régia de 1715, ordem que aparece reiterada na negativa a Tomé Gouveia e Sá Queiroga. A brecha deixada pela legislação através do recurso às licenças foi um espaço por onde atuaram diversos interesses, sendo ao mesmo tempo espaço de disputa, mas também de negociação. Esse caso mostra o quão complexas eram as relações entre a metrópole e a colônia. A provisão régia de 12 de outubro de 1737 não só proibiu a construção de novos engenhos, como também extinguiu o recurso à licença, numa tentativa de fechar as brechas deixadas pela legislação anterior. Quase seis anos depois, uma nova lei foi editada pelo rei, e estabelecia que, (...) sendo-lhe também presente que sem embargo das ditas reais ordens se tinham fabricado nestas minas alguns daqueles engenhos de que resultaram vários inconvenientes, e detrimento grande aos moradores sendo mui prejudiciais a conservação das ditas minas, era servida que desde logo se fizessem demolir todos os que se achassem proibindo a sua reedificação ou nova construção, debaixo da pena de dois mil cruzados que pagaria cada transgressor, a metade para a sua Real Fazenda e a outra metade para o denunciante, e de cinco anos de degredo para o Rio Grande de São Pedro, além da perda dos escravos e mais fábrica dos ditos engenhos mandando que esta real ordem se publicasse e registrasse nesta dita secretaria, e aonde mais conviesse (APMT – Lata: Bandos, doc. n. 47). Apesar da lei de 1743 ter estabelecido duras penas para os transgressores, os engenhos continuaram a prosperar, tanto em Cuiabá quanto em Mato Grosso. Em 1751, ano em que D. Antônio Rolim de Moura Tavares chegara à recém-criada Capitania do Mato Grosso, o distrito de Vila Bela contava com treze engenhos de aguardente e três de açúcar e rapadura, e em Cuiabá existiam vinte e quatro engenhos de aguardente e vinte e dois de açúcar e rapadura (CORRÊA FILHO, 1994, p. 115 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes 694). Após quase vinte anos, em 1770, Vila Bela contava com dezoito engenhos de aguardente e três de açúcar e rapadura em pleno funcionamento, enquanto a Vila Real contava com vinte e um engenhos de aguardente e dois de açúcar (PR –(AHU) – MT; cx. 15, doc. 927). Analisando essas informações, observa-se que, por um período de aproximadamente dezenove anos, o total de engenhos destinados a fabricar aguardente aumentou na vila capital, e continuou praticamente estável na Vila Real; já os engenhos de açúcar mantiveram-se estáveis em Vila Bela, e apresentaram uma queda vertiginosa em Cuiabá, passando de vinte e dois, em 1751, para apenas dois, em 1770. Em novembro de 1782, Luís de Albuquerque baixou um novo bando, no qual esclarecia que, através da provisão régia de 9 de outubro de 1749, o rei deixara a cargo dos capitães-generais a decisão de se demolir ou não os engenhos erguidos em áreas mineradoras. Vários moradores se animaram a multiplicar semelhantes engenhos, e com grave prejuízo público, depois de haverem merecido a real contemplação e providência que deixo referido, sem nem ao menos me pedirem a necessária licença, que deverão para isso nos ponderados termos, pelo que tudo, usando do poder expresso, que a mesma Senhora me tem concedido para conservar ou demolir as ditas fábricas, regulando ao meu arbítrio a sua existência, enquanto não tomo uma resolução mais positiva e oportuna às circunstâncias políticas que me incumbe não perder de vistas, sou servido proibir inteiramente a nova construção ou reedificação de qualquer dos engenhos ou engenhocas, expressados debaixo das mesmas penas que Sua Majestade se dignou estabelecer contra os transgressores, pela dita real ordem de 12 de junho de 1743, se pagarem dois mil cruzados, que se aplicarão na forma específica, e de perderem todos os escravos e bens da fábrica, além do dito degredo de cinco anos a que ficam sujeitos (APMT – Lata: bandos; Fundo: bandos; doc. n. 47). Três anos depois, em abril de 1785, Luís de Albuquerque baixou uma nova portaria, na qual mandou apreender “nos alambiques quaisquer outros instrumentos de destilar e fabricar cachaças” (APMT – Lata: 1785; Fundo: defesa; doc. n. 134). No mês seguinte, o escrivão da Fazenda Real do Forte do Príncipe da Beira, Antônio Ferreira Coelho, lavrou um auto de apreensão, e registrou que: Em virtude da portaria do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador e capitão general desta capitania, expedida em 24 de abril do corrente ano, fui por mandado do ajudante engenheiro comandante José Pinheiro de Lacerda aos enge- 116 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos nhos abaixo mencionados, e lhe fiz apreensão nos [alambiques] que achei haver nos mesmos engenhos, que são os seguintes: A Domingos Francisco dos Santos Um alambique de cobre, grande ............ 1} Dois ditos mais pequenos ...................... 2}=3 A Manoel José da Rocha Um alambique grande ............................ 1} Dois mais pequenos ............................... 2}=3 E por ter com efeito executado tudo quanto se me ordenou a este respeito, relativo à referida apreensão, passo o presente. Forte do Príncipe da Beira a 14 de maio de 1785. O escrivão da Fazenda Real, Antônio Ferreira Coelho (APMT – Lata: 1785, doc. n. 134). Não há informações na documentação levantada sobre mais apreensões, além dos seis alambiques citados. De qualquer forma, tal medida nos parece ter tido mais a finalidade de intimidar e desacelerar a proliferação dos engenhos de aguardente do que necessariamente acabar de vez com eles no termo, pois o cultivo da cana e a produção de seus derivados continuou a ser atividade econômica importante em Vila Bela. Apesar da importância do açúcar e de outros derivados da cana, como o melado e a rapadura, a aguardente foi, sem dúvida, o produto mais consumido nas regiões de minas. Além de ser presença garantida em reuniões e festas, a aguardente fazia parte do consumo cotidiano dos mineiros, que creditavam a ela também dons terapêuticos. Essa associação é perfeitamente explicável, segundo Leila Mezan Algranti, com a difusão cada vez mais acentuada do açúcar, e o valor terapêutico creditado a ele desde Hipócrates, que “acabou sendo associado também aos demais produtos derivados da cana-de-açúcar, como o melaço e a aguardente, bem como aos alimentos fabricados com açúcar: os confeitos e os doces de frutas” (ALGRANTI, 2005, p. 34). Soma-se a isso o fato de muitos medicamentos serem, naquele período, preparados com aguardente, para não estragar. A aguardente era muito utilizada no tratamento de dores, inflamações, feridas e outros males. No tratamento aplicado aos doentes de “disenteria bacilar, doença grave que geralmente degenerava em ulceração do intestino e gangrena retal, recomendava-se, além da limpeza corporal, uma dose de aguardente pela manhã em jejum” (SILVA, 2002, p. 189). No termo do Mato Grosso, a utilização de aguardente e outros derivados da cana, como o açúcar e a rapadura, foram largamente utilizadas nas práticas de cura aplicadas aos doentes acometi117 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes dos de febres e sezões. Tal prática foi identificada pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira e registrada no documento que produziu sobre as doenças que acometiam os moradores da Capitania de Mato Grosso, denominado de “Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso”. Ao elencar as práticas de cura americanas aplicadas às febres cotidianas e terçãs, Ferreira diz que entre outros tratamentos a “gente popular” costumava tomar “eméticos do sumo de dois ou até três limões azedos, em uma chávena de aguardente da terra a que chamam cachaça”. Usava-se ainda adicionar em “uma pequena quantidade de cachaça a dois ovos batidos” para provocar vômitos, práticas que o naturalista classificou como “as mais extravagantes” que havia visto (ANZAI, 2004, p. 216; 2008). De modo geral, a fabricação da aguardente ou cachaça, como também era chamada, se dava associada à produção de açúcar, ou até mesmo a outras atividades, como a cultura e fabricação de farinha de mandioca e milho (APMT – Lata: 1784, microficha 783). Seu processo de fabricação foi registrado em um documento anônimo da Capitania de Minas Gerais. Certamente no século XVIII esse processo não apresentava diferenças nas regiões auríferas, sendo, portanto, aplicável ao Mato Grosso. O processo descrito seguia as seguintes etapas: primeiro, a cana era moída no engenho para se extrair o caldo ou garapa, que era armazenado em um recipiente de madeira, onde permanecia por cerca de vinte e quatro horas; em seguida, o caldo era fervido e fermentado, após o que era levado para o alambique, “onde com o fogo por baixo fervia até que destilava a aguardente, e dali ia para as pipas e se podia beber logo” (SILVA, 2002, p. 74). O cultivo de frutas e verduras marcou a paisagem rural e até mesmo a urbana de Vila Bela, acrescentando novas cores e formas. Seja nos amplos quintais da casas de Vila Bela e seus arraiais ou nos pomares e hortas dos sítios espalhados pelo distrito, o cultivo de frutas e verduras prosperou desde os anos iniciais de fundação da vilacapital, contribuindo para a diversificação da alimentação de seus moradores. Os “Anais de Vila Bela” nos informam que em 1758 já era possível encontrar na vila frutas de diversas espécies, tais como “figos, uvas, laranjas, limas, limões, bananas, mamões, melancias” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 70) e melões (SERRA, 1790, p. 427), além de frutas da terra como o cacau, o ananás e a baunilha. Vale destacar que, dentre as frutas elencadas acima, várias são originárias de outras regiões do mundo, como melancias, uvas e figos. 118 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Com o aumento do número de moradores da vila-capital, a demanda por esses produtos aumentou consideravelmente, criando a necessidade de se ampliar seu cultivo para abastecer o florescente mercado. Nas vilas coloniais, as câmaras municipais tinham o poder de disciplinar o bem-viver de seus moradores. No que tange à alimentação, as câmaras tiveram amplos poderes de editar normas que abrangiam desde o controle do comércio e o incentivo de determinada rota de navegação até medidas que interferiam diretamente nas práticas agrícolas, tais como o incentivo ao plantio de determinados tipos de produtos e alimentos ou até mesmo a adoção de outras práticas agrícolas. Em Vila Bela da Santíssima Trindade, assim como em outras vilas coloniais, isso ocorreu com certa freqüência. Visando ampliar a oferta de frutas e verduras na vila, o Senado da Câmara de Vila Bela ditou normas para que (...) os moradores dos subúrbios desta vila pusessem cuidado na agricultura de frutas e hortaliças (...) para que a ela mandassem vender. E o mesmo entendem os lavradores circunvizinhos a este meio, uns dez bastaria para abundar a vila de compradores, na certeza de que podem nesta vila dar gasto diariamente às hortaliças.3 Dentre os legumes e verduras cultivados em Vila Bela, os mais citados nos documentos analisados foram o cará, a batata (LACERDA E ALMEIDA, 1841, p. 24), e verduras, como couve, repolhos (APMT – Lata: 1787 A, doc. n. 906), cebolas (PONTES, 1781, p. 169) e quiabo (Idem, p. 177), além de diversas hortaliças, que Ricardo Franco afirmava “tinham abundante cultura” (SERRA, 1790, p. 427). O quiabo, planta africana da família das malvas, “que no Rio de Janeiro era conhecida como “quincambó” [Quinganbô]” (PONTES, 1781, p. 177), servia não só como fonte de alimento, mas também para a fabricação de medicamentos. Silva Pontes, ao identificar o cultivo dessa planta na capitania, ressaltou suas propriedades medicinais: “na medicina pode ser do maior socorro, em todas as indicações de remediar a acrimônia”4. Do quiabo também se faziam xaropes, sendo 3 CARTA do Senado da Câmara de Vila Bela a Luís Pinto de Sousa Coutinho. Vila Bela, 03/02/ 1770. APMT – Lata: 1770; Fundo: câmara; doc. n. 72. Nesta mesma reunião, atendendo a uma solicitação de Sousa Coutinho, os vereadores criaram normas para incentivar o cultivo do algodão e do tabaco na capitania. 119 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes muito eficientes no tratamento de pacientes com “tosses ferinas”. Era remédio utilizado não só nos caminhos dos sertões, mas também em Portugal, inclusive por pessoas ilustres: “Em Lisboa a uma pessoa muito ilustre reconheci que deveu a este remédio, incógnito na farmácia européia, o salvar-se de uma tosse que o conduzia ao túmulo” (BLUTEAU, 1720). O tabaco e o algodão foram dois produtos agrícolas que, embora não destinados à alimentação, constituiram-se em gêneros importantes na manutenção da vida material dos habitantes de Vila Bela no período estudado. Planta nativa da América, o tabaco começou a ser cultivado na Bahia, por volta do começo do século XVII. Um século depois, já era o segundo produto da pauta de exportação da América, tornando-se, inclusive, moeda de troca para a compra de escravos africanos (CARNEIRO, 2005, p. 86). Na Capitania de Mato Grosso, o cultivo do tabaco teve seu início no termo do Cuiabá, cuja produção, além de guarnecer o mercado local, era enviada para outras regiões do termo. Em Vila Bela e seu distrito, a cultura do tabaco principiou por volta de 1770 (PR – MT, cx. 15, doc. 927), e até então era comprado da Vila do Cuiabá. Quanto ao algodão, até 1770 não era cultivado no termo do Mato Grosso. Aliás, datam deste ano as ordens emitidas por Luis Pinto de Sousa Coutinho para que se promovesse no termo a cultura do algodão (PR – MT, cx. 14, doc. 876). Em Cuiabá, a cultura desse gênero já se encontrava mais adiantada, sendo que parte de sua produção abastecia a vila-capital (PR – MT, cx. 15, doc. 927). Mesmo a despeito dessas ordens, não encontramos evidências na documentação consultada de que a cultura do algodão tenha se desenvolvido em Vila Bela, embora tenhamos identificado na documentação a prática da tecelagem em algumas povoações, como Lamego e Casalvasco. Ao passar por Lamego, em 1782, Antônio da Silva Pontes registrou em seu diário que ali havia poucos casais de índios, que viviam “com grande descanso e felicidade, porque o que trabalham é para si, fazendo seus tecidos de algodão por um método muito simples, à maneira dos índios das missões espanholas, que é como quem tece uma esteira sobre uma grade de quatro paus” (PONTES, 1781, p. 170). 4 Idem, p. 177. Segundo Bluteau “acrimônia” é um termo médico que significa “agudeza de humor picante que ofende as partes do corpo em que se acha”. (BLUTEAU, 1720) 120 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Em fevereiro de 1785, dois anos após a criação da povoação de Casalvasco, iniciou-se ali a implantação de pequena fábrica de tecelagem. A fábrica iniciou suas atividades com alguns índios (APMT – Lata: 1785, doc. n. 07), práticos na arte de tecer, que Luís de Albuquerque mandou para a povoação aos cuidados de seu comandante, Joaquim José Ferreira. Cinco dias após sua chegada, os índios já estavam “fiando não só para os tecidos finos, mas também para algum rolo de pano grosso”, que, segundo Joaquim José Ferreira, “desejo com brevidade remeter a vossa excelência as amostras” (APMT – Lata: 1785, doc. n. 08). No termo do Mato Grosso, boa parte dessas atividades era exercida por índios, atraídos para as povoações localizadas ao longo das margens dos rios Madeira, Guaporé e Barbados, muitas vezes índios que haviam fugido das missões espanholas de Moxos e de Chiquitos, atraídos pelas autoridades portuguesas. Esses índios, sob administração portuguesa passavam a desempenhar atividades importantes, como a fiação, o trabalho nas lavouras e na criação de gado. O fato desses índios “espanhóis” já serem treinados para trabalhos especializados foi, certamente, um fator decisivo para a adoção dessa prática de atração por parte das autoridades lusas na fronteira oeste5. Referências 1. Fontes Manuscritas Arquivo Público do Estado de Mato Grosso – APMT APMT – Lata: 1785; Fundo – defesa; doc. n. 134. AUTO de apreensão feito por Antônio Ferreira Coelho, escrivão da Fazenda Real do Forte do Príncipe da Beira. 14/05/1785. APMT – Lata: bandos; Fundo: bandos; doc. n. 47. BANDO expedido por Luís de Albuquerque Pereira e Cáceres. Vila Bela, 06/11/1782. APMT – Lata: 1769; Fundo: Governadoria. Lata, 1769; doc. n.221. CARTA de Antônio Felipe da Cunha a Luís Pinto de Sousa Coutinho. Vila Bela, 12/10/ 1769. APMT – Lata: 1785; Fundo: Governadoria; doc. n. 08. CARTA de Joaquim José Ferreira a Luís de Albuquerque Casalvasco, 02/02/1785. 5 Para uma análise mais aprofundada da utilização do trabalho indígena no termo do Mato Grosso ver: BLAU, 2007. 121 Os “gêneros do país”: a produção de alimentos em Vila Bela da Santíssima Trindade • Masília A. da S. Gomes APMT – Lata: 1785; Fundo: Governadoria; doc. n. 09CARTA de Joaquim José Ferreira a Luís de Albuquerque. Casalvasco, 26/02/1785. APMT – Lata: 1785; Fundo: governadoria; doc. n. 07. CARTA de Joaquim José Ferreira a Luís de Albuquerque. Casalvasco, 15/02/1785. APMT – Lata: 1785; Fundo: governadoria; doc. n. 08. CARTA de Joaquim José Ferreira a Luís de Albuquerque. Casalvasco, 20/02/1785. APMT - Lata: 1785; Fundo: Governadoria, doc. n. 10. CARTA de Joaquim José Ferreira. Casalvasco, 02/03/1785. APMT – Lata: 1785; Fundo Defesa; doc. n. 146. CARTA de José Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque de Melo Pereira de Cáceres. Forte do Príncipe da Beira, 11/11/1785. APMT – Lata: 1785; Fundo: Defesa; doc. n. 134. CARTA de José Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Forte do Príncipe da Beira; 15/5/1785. APMT – Lata: 1785; Fundo: Defesa, doc. n. 114B. CARTA de José Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1785. APMT – Lata: 1785; Fundo: defesa; doc. n. 115. CARTA de José Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1785. APMT – Lata: 1777; Fundo: defesa; doc. n. 64. CARTA de Joseph Manoel Cardoso da Cunha a Luís de Albuquerque. Forte da Conceição, 30/03/ 1777. APMT – Lata: 1773; Fundo: Governadoria; doc. n. 08. CARTA de Manoel Caetano da Silva a Luís de Albuquerque. Forte da Conceição, 22/08/1773. APMT – Lata: 1773; Fundo: defesa; doc. n. 84. CARTA de Manoel Caetano da Silva a Luís de Albuquerque. Forte da Conceição, 24/10/1773. APMT – Lata: 1770; Fundo: câmara; doc. n. 72. CARTA do Senado da Câmara de Vila Bela a Luís Pinto de Sousa Coutinho. Vila Bela, 03/02/1770. APMT – Lata:1785; Fundo: defesa; doc. n. 115. OFÍCIO de José Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1785. APMT – Lata: 1784; Fundo: defesa, microficha 783. OFÍCIO de José Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 14/02/1784. APMT – Lata: 1787 A; Fundo: defesa; doc. n. 906. OFÍCIO de José Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque. Forte do Príncipe da Beira, 28/09/1787. Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional – NDIHR/UFMT CARTA de Antônio Rolim de Moura a Diogo de Mendonça Corte Real. 28/05/ 1752. In: UFMT – NDIHR, 1982; v. I, p. 64. CARTA de Antônio Rolim de Moura a Diogo de Mendonça Corte Real. Vila Bela, 31/01/ 1755. In: UFMT – NDIHR, 1983; v. II, p. 56. 122 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos CARTA de Antônio Rolim de Moura ao rei de Portugal D. José. Vila Bela, 22/10/ 1752. In: UFMT – NDIHR, 1982; v. I, p. 100. CARTA do ouvidor João Gonçalves Pereira ao rei D. João V. MF.14, doc. 176(AHU). Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727-1746). NDIHR/ UFMT. PETIÇÃO de Tomé Gouvêa e Sá Queiroga enviada ao Conde de Sarzelas. Vila do Cuiabá, 21/01/1736. NDIHR/ UFMT. Rolo 1, microfilme, CTA–(AHU) – Mato Grosso; cx. 1, doc. 68; CT-(AHU)– ACL – CU – 010, cx. 1, doc. 81. Projeto Resgate – PR OFÍCIO de Luís Pinto de Sousa Coutinho a Francisco de Mendonça Furtado. Vila Bela, 04/02/1770. PROJETO RESGATE – AHU – cx.14; doc. n. 876. OFÍCIO de Luís Pinto de Sousa Coutinho à Martinho de Mello e Castro. Vila Bela, 01/5/1771. PROJETO RESGATE – AHU. 1771, cx. 15, doc. 927. 2. Fontes Impressas AMADO, Janaína; ANZAI, Leny Caselli. 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Acesso em: 20 de novembro de 2006. 125 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) Nathália Maria Dorado Rodrigues Na segunda metade do século XVIII, a Capitania de Mato Grosso1, localizada a oeste da América lusa, em fronteira com os domínios hispânicos, esteve marcada por políticas metropolitanas que tinham por objetivo desenvolver a agricultura, o comércio, a defesa e o povoamento. Desse modo, os portugueses buscavam afirmar sua posição em importante região de fronteira e assegurar a posse sobre terras que também eram áreas de mineração. A partir da criação de Vila Bela da Santíssima Trindade em 1752, os portugueses se dedicaram à ocupação de áreas ainda não colonizadas, fundando vilas, arraiais, povoações e construindo fortes. A partir de 1755, a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão2, criada com um monopólio de navegação, comércio e tráfico de escravos destinados ao Estado do Grão-Pará e Maranhão durante vinte anos, incluiu também a Capitania de Mato Grosso em suas negociações, tornando-se fornecedora de produtos manufaturados diversos e de mão-de-obra escrava africana. A articulação desta companhia com a Capitania de Mato Grosso, colocando em constante comu- Nathália Maria Dorado Rodrigues possui Graduação e Mestrado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Foi bolsista Capes, e defendeu, em 2008, a dissertação “A Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão e os homens de negócio de Vila Bela (1752-1778)”. O “Mato Grosso” era como se chamava a região de minas e arraiais onde se descobriu ouro em 1734, e foi espacializado como distrito do termo da Vila Real do Cuiabá, pertencente à Capitania de São Paulo. Criada capitania em 1748, esta se chamou Mato Grosso, com capital Vila Bela da Santíssima Trindade, fundada estrategicamente em 1752 às margens do Rio Guaporé, região de fronteira com os domínios hispânicos. Assim, dois distritos a compunham: Cuiabá e Mato Grosso (ROSA, 2003, p. 40-42). 2 Neste texto, vamos utilizar o termo Companhia do Pará para nos referir à Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. 1 126 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos nicação o Estado do Brasil e o Estado do Grão-Pará e Maranhão, auxiliaria não só no abastecimento de produtos manufaturados, como também desempenharia um importante papel na ocupação dos territórios localizados no norte e no extremo oeste da América portuguesa. Esses territórios estavam ligados por extensa fronteira que dividia domínios hispânicos e portugueses, e as medidas de Sebastião de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, contribuíram para ocupá-los efetivamente, em um momento decisivo para as negociações e a definição de áreas de litígio entre os impérios ibéricos na América nos Setecentos3. Nesse contexto, buscamos analisar no presente texto as relações comerciais estabelecidas entre a Companhia do Grão-Pará e Maranhão e a Capitania de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII, tratando também dos negociantes residentes em Vila Bela que mantinham negócios com a Companhia, isto é, aqueles que estavam ligados à “carreira do Pará”, entre 1755, ano de criação da companhia, e 1778, ano de sua extinção oficial. Os caminhos do sertão: as rotas comerciais A extração de ouro não se constituiu na única atividade econômica praticada nas minas de Cuiabá e Mato Grosso. Durante os primeiros anos de ocupação portuguesa, observamos uma produção inicial, principalmente de milho, feijão, abóbora, melão, melancia, banana, mandioca, e também a criação de galinhas, porcos, cabras, e tempos depois, de gado vacum e cavalar. O milho constituía-se em um dos principais alimentos na dieta dos sertões, tanto para seus moradores quanto para as criações de animais que dele se alimentavam (OLIVEIRA, 2008, p. 25). A pesca também constituiu importante atividade e supria parte das necessidades de alimentos. Deste modo, o abastecimento vindo de fora tinha por objetivo prover os moradores com diferentes tipos de mercadorias, tais como tecidos, ferramentas, armas, pólvora, utensílios domésticos, azeite, vinagre, vinho, alimentos finos (queijos flamengos, presuntos, chocolates, chás), sal e escravos africanos. Para se chegar às minas, era preciso percorrer árduos caminhos fluviais ou terrestres. Aos viajantes que desejavam atingir o “extremo oeste” era necessário também sobreviver aos obstáculos naturais e às 3 Neste sentido, nos referimos aqui à necessidade dos portugueses de garantir as vitórias alcançadas no Tratado de Madrid de 1750. 127 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues dificuldades do trânsito, aos ataques de índios e animais, às doenças ou ainda à má alimentação, em alguns casos. O terceiro governador e capitão-general da Capitania de Mato Grosso, Luís Pinto de Souza Coutinho, assim se referiu às rotas comerciais: Os dois principais estabelecimentos desta Capitania, situados sobre as margens dos rios Cuiabá e Guaporé, oferecem de sua natureza diferentes direções para a freqüentação do comércio. O primeiro facilita a comunicação desta Capitania por via de São Paulo, com as praças do Rio de Janeiro e Santos, o segundo com a cidade do Pará. Pelo sertão do Cuiabá, se liga a nossa Capitania com a de Goiás, e se tem aberto a poucos anos uma boa correspondência com a praça da Bahia, pelo que toca ao comércio de escravos (IHGMT, Instruções aos Capitães Generais, 2001, p. 37). Os caminhos fluviais eram percorridos pelas monções do sul e do norte. A palavra “monção” possuía mais de um significado; porém, para os colonos do século XVIII, servia para designar os comboios, isto é, o conjunto de canoas que cumpriam certa periodicidade, e chegavam às minas carregadas de produtos, mão-de-obra escrava africana e demais pessoas livres motivadas pelas mais diversas razões (LAPA, 1973, p. 57). Sérgio Buarque de Holanda nos informa que, no seu significado inicial, “monção” designava os ventos alternados que marcavam as épocas de navegação no Oceano Índico, havendo um ponto comum entre as monções do Brasil e as do oriente: ambas estavam sujeitas a uma periodicidade regular, mas o que determinava essa periodicidade no Brasil era o regime das águas, e não dos ventos (HOLANDA, 1975, p. 162-163). As monções que chegavam ao Cuiabá, também conhecidas na historiografia como “monções de povoado”, por vezes eram compostas por cerca de trezentas a quatrocentas canoas, para abastecer Cuiabá e regiões circunvizinhas, surgidas a partir da expansão cuiabana. As monções partiam de Araritaguaba, ultrapassando trechos de difícil navegação até chegar a Cuiabá. As monções destinadas a Cuiabá chegavam após percorrer caminhos perigosos e rios caudalosos4. Os viajantes dos primeiros empreendimentos das monções percorriam 4 Para chegar a Cuiabá, as monções de povoado contaram com dois roteiros. No primeiro roteiro, partia-se do Tietê e depois se navegava pelos rios Grande, Pardo, Anhandui, travessia por terra pelos Campos da Vacaria, rios Mboteteu, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá. No segundo roteiro, partia-se do Tietê e depois se navegava pelos rios Grande, Pardo, travessia por terra pelo Varadouro do Camapuã, rios Cochim, Taquari, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá. 128 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos um trajeto difícil e cheio de obstáculos. Após tempos de experiência, a rota das monções ficou estabelecida de modo que os viajantes pudessem ter uma estrutura capaz de atendê-los razoavelmente. Com a utilização do Varadouro do Camapuã, os viajantes contavam com maior comodidade, podendo consertar as canoas, alimentar-se melhor e reabastecer seus estoques de alimentos, por haver, em Camapuã, produção agrícola e criatória suficiente para isso. Um dos principais obstáculos encontrado pelos viajantes das monções dizia respeito aos ataques dos povos indígenas durante o percurso. Ferozes opositores à invasão de suas terras pelo colonizador, os Payagua e os Guaykuru atacavam as monções do sul. Vários relatos podem ser tomados como exemplo para se ter uma idéia das lutas travadas entre os Payagua e os paulistas que vinham nas monções, na região do rio Paraguai. Entretanto, o caminho pelas águas não foi o único que dava acesso a Cuiabá. O caminho terrestre São Paulo-Goiás-Cuiabá, freqüentado e aberto desde 1737, também foi utilizado, pois este trajeto servia para passar o gado. As demais cargas seguiam por vias fluviais. A abertura desse caminho possibilitou, entre outros resultados, a “formação de fazendas e currais nas redondezas de Cuiabá” e a diminuição de preços de mercadorias diversas, até então exorbitantes (CANAVARROS, 2004, p. 211). As descrições das transações comerciais dos tropeiros em Cuiabá, segundo Canavarros são pouco minuciosas, mas, de fato, muitos escravos chegaram até a Vila Real do Cuiabá por este trajeto (idem, 2004, p. 214). Embora o caminho de terra tivesse duzentas léguas a menos que a rota das monções de povoado e fosse mais seguro, a atividade dos tropeiros não substituiu a das monções, constituindo apenas mais uma rota de acesso às minas cuiabanas. As monções do norte percorriam os rios Madeira-Mamoré-Guaporé, trajeto que ligava a Capitania de Mato Grosso ao Estado do GrãoPará e Maranhão. As canoas chegavam em menor número, porém eram maiores, o que aumentava sua capacidade de carga. Enquanto as embarcações do sul possuíam capacidade para transportar de 300 a 400 arrobas de mercadorias, as canoas do norte, que navegaram o rio Madeira, também denominadas ubás, eram bem maiores, com capacidade para transportar 20 homens e até 3000 arrobas de mercadorias, que, se comparadas com a capacidade de carga das embarcações empregadas nas monções de povoado, eram bem superiores (HOLANDA, 1990, p. 30). 129 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues A primeira navegação pela rota Madeira-Mamoré-Guaporé data de 1742, muito antes da abertura oficial da navegação por esses rios (1752), e da permissão da coroa para realizar o comércio com o Pará. A rota utilizada pelas monções do norte foi percorrida primeiramente em 1742, por Manuel Félix de Lima. Segundo José Barbosa de Sá, cronista do século XVIII, Félix de Lima era um negociante falido, morador do arraial de São Francisco Xavier, que receava ir ao Cuiabá, onde tinha alguns credores. Juntou-se, então, a alguns aventureiros, e navegaram pelo rio Guaporé abaixo, à procura de povoações de castelhanos para onde pudessem passar. Barbosa de Sá nos relata: Rodaram estes em uma canoa sem notícia alguma da navegação nem aonde aquele rio ia surgir, tiveram encontros de gentios, passaram as cachoeiras, viram o que gentes católicas não tinham ainda visto, deram consigo na cidade de Belém do Grão-Pará, sem mais para a corrente das águas que os levaram às cegas, foram na dita cidade presos e remetidos à corte aonde dando notícias da sua viagem e de tudo o que tinham visto e passado foram soltos (SÁ, 1975, p. 41). Mas foi no ano de 1749 que chegava João de Sousa Azevedo à Capitania de Mato Grosso, com “a primeira carregação de negócio que nestas minas entrou vindo do Pará”. Consta que entrou pelo rio Sararé, até o porto chamado dos “Pescadores” ou “Porto Geral”, e que lá colocou parte das cargas em cavalos, e seguiu em direção à Chapada; outra parte conduziu em canoas, pelo rio Sararé, até chegar ao porto do Mombeca, localizado no interior das minas (AMADO; ANZAI, 2006, p. 48-49). Sobre a navegação pelos rios Madeira-Mamoré-Guaporé, o capitão-general Luís Pinto de Souza Coutinho, durante sua viagem em direção à Capitania de Mato Grosso, em 1769, registrou latitudes, a direção geral dos rios, seu encontro com as populações nativas, a situação das produções, e tudo aquilo que considerava vantajoso conhecer. O governador registrou que a região das cachoeiras do rio Madeira possuía terreno elevado abundante em cacau, salsa, baunilha, jalapa, resinas e outras drogas medicinais, produtos com boas possibilidades de serem comercializados (PR – AHU/MT, 1769, cx. 13, doc. n. 829). Um dos problemas enfrentados pelos navegantes desta rota dizia respeito à alimentação. A dieta alimentar dos navegantes consistia em farinha, toucinho, feijão e demais alimentos fornecidos pela natureza durante o percurso. Alimentavam-se dos peixes do rio Madeira, e caçavam antas, veados, porcos do mato, pacas, patos silvestres e tarta130 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos rugas, das quais aproveitavam os ovos para fazer manteiga e a banha para fazer azeite, utilizado na iluminação. Era freqüente os navegantes não contarem com bons alimentos à disposição. Com a umidade e o mau acondicionamento, os alimentos poderiam apodrecer. Também ficavam “as carnes e peixes mal salgados, amontoados nos porões das canoas, meio apodrecidos” (ANZAI, 2004, p. 162), contribuindo para o aparecimento de doenças, outro agravante para os viajantes das monções. O reabastecimento era feito nas aldeias, feitorias, fortalezas e povoações estabelecidas ao longo do trajeto fluvial, locais nos quais conseguiam legumes, milho, arroz, bananas, mamões, galinhas, etc. (LAPA, 1973, p. 70-75). As povoações existentes no percurso dos comboios de canoas foram muito importantes, pois garantiram não só a assistência aos comerciantes e demais viajantes, como a posse da região ocupada para a coroa lusa. Nas feitorias5 erigidas no caminho, seriam construídos armazéns para estocar as mercadorias necessárias ao comércio. Estas seriam levantadas com o apoio da Companhia de Comércio do Grão-Pará, já que iam ao encontro de seus interesses. O abastecimento de produtos importados em Vila Bela e suas imediações era praticamente dependente das praças do Rio de Janeiro e de São Paulo, até o efetivo estabelecimento da Companhia do Pará, quando as transações comerciais pela rota norte ficaram mais intensas. As monções de povoado, quando chegavam carregadas de mercadorias, aportavam umas em Cuiabá e outras seguiam pelo rio Jauru, em direção ao Mato Grosso, para abastecer a vila-capital e suas imediações. Contudo, mesmo com a atuação da Companhia do Pará, Vila Bela e seu termo continuaram sendo abastecidas pelas monções do sul durante o século XVIII. Todas as carregações trazidas nas monções tinham que pagar o tributo das entradas nos postos de registro, nos quais se anotavam e se pesavam todas as cargas que entravam na capitania; isso fazia com 5 As feitorias, em geral, constituíam-se em um entreposto fortificado que, na fase inicial da colonização dos domínios ultramarinos portugueses negociava com os nativos e recolhia e armazenava os produtos que deviam ser transportados para a metrópole. Inúmeras foram as feitorias estabelecidas pelos portugueses em seu vasto império colonial ultramarino, erigidas em lugares comercialmente e politicamente estratégicos. 131 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues que o preço final se alterasse, e se refletia na diminuição do poder de compra dos moradores. A cobrança das entradas em Cuiabá foi realizada pela primeira vez em 1724, quando se estabeleceu um valor a ser pago pela entrada de fazendas e negros (ARRUDA, 1987, p. 51). A partir da abertura da navegação pelos rios Madeira e Guaporé, os gêneros trazidos para Mato Grosso por essa rota pagavam as entradas, “na mesma quantia e forma que se pagam nas Minas Gerais”, excetuando-se os escravos (PR – AHU/MT, 1754, cx. 07, doc. n. 438). No ano de 1754, Francisco Xavier de Mendonça Furtado informava ao Rei D. José o estabelecimento de um registro na Cachoeira do Aroaia, localizada no Rio Madeira, limite norte da Capitania de Mato Grosso pelo Contratador das Entradas Afonso Ginabel (PR – AHU/ MT, 1754, cx. 07, doc. n. 444). Quando o comércio com o Pará já estava bem estabelecido, os produtos que entravam na Capitania de Mato Grosso eram pesados em dois registros, “do Forte e Jauru, e há todo o cuidado em cobrar, de sorte que há mais de seis anos não houve uma oitava de caducas nem se executou ninguém” (APMT, Fundo Fazenda, 1774, doc. n. 33). O forte aqui mencionado provavelmente é o Forte de Bragança, também chamado da Conceição. Encontramos relato que nos leva a supor que este local fosse parada de monção para abastecimento de artilharias, tecidos e outros produtos para as tropas que lá estavam fixadas, pois no ano de 1765 chegava monção “toda a salvamento” naquele forte. (NDIHR – AHU/MT, 1765, MF, Rolo 12, cx. 13, doc. n. 763). A tabela abaixo foi construída a partir dos Anais de Vila Bela, e procura oferecer uma idéia geral das monções que ali aportaram de 1749 a 1776. Devemos considerar que esses dados não são finais, e que o número de monções conduzidas para a capitania pode ter sido superior. 132 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Tabela 1 – Monções e carregações de fazendas que chegaram em Vila Bela no período de 1749 a 1776 Ano Mês Descrição 1749 Julho Carregação de fazendas de João de Souza Azevedo 1752 Março Monção vinda do Pará conduzida por José dos Santos Branco, Calixto de Rego Souza, Antonio Francisco Serra e João Antunes da Costa 1754 Janeiro Carregação de fazendas de João de Moura Colasso 1757 ––– Monção vinda do Pará 1758 Julho Monção vinda do Rio de Janeiro conduzida por José da Silva e José Afonso Branco 1760 ––– Monção vinda do Pará 1761 ––– Monção vinda do Pará 1762 Agosto Monção vinda do Rio de Janeiro 1762 Outubro Monção vinda do Pará com três canoas 1765 Dezembro Monção vinda do Pará com trinta embarcações 1765 Setembro Monção vinda do Rio de Janeiro com dezessete canoas para Mato Grosso 1770 Novembro Monção vinda do Pará composta de 18 embarcações entre ubás e botes 1772 Janeiro Monção vinda do Pará composta de 24 embarcações entre botes, igarités e canoas ordinárias 1773 Fevereiro Monção vinda do Pará conduzida por Flavio Antônio de Almeida Pessoa e Manoel da Silva Barata 1774 ––– Carregação de escravos e gêneros do Pará e Rio de Janeiro composta por José da Silva Pena e outros cinco comerciantes 1775 Março Correio trazido por Carlos Daniel com botes de fazendas para os Armazéns Reais e um particular para as viagens de Sua Excelência 1776 Janeiro Monção composta por oito comerciantes carregadas de fazendas secas e molhadas Fonte: NDIHR – AHU/MT, 1765, MF, Rolo 12, cx. 13, doc. n. 763; AMADO; ANZAI, 2006. 133 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues Negócios com a Companhia do Pará Em 1751, quatro anos antes do início do funcionamento da companhia, a já existente ligação comercial com o Pará oferecia a Rolim de Moura a possibilidade de solucionar problemas de abastecimento, além de efetivar para Portugal a conquista desses caminhos. Rolim enumerou as vantagens: A primeira, que do Pará hão de concorrer naturalmente muitas pessoas para aquelas minas. A segunda, que as fazendas e mantimentos do reino vindos por ali hão de ser mais baratos, o que facilitará a subsistência dos seus moradores. A terceira, que por aquela parte fica muito mais breve a comunicação com a corte, donde pode ser socorrida esta capitania com grande brevidade. E quarta, fazermo-nos senhores daquela navegação (NDIHR – UFMT, 1982, v. 1, p. 32). Esses motivos eram considerados fundamentais para a conservação desse comércio, que, apesar dos riscos, não poderia ser dispensado, ainda que existissem outras rotas de abastecimento. Apesar de opiniões contrárias, além dos motivos já expostos por Rolim de Moura, essa comunicação incrementaria o comércio e traria maior arrecadação, da mesma forma que a concorrência com as monções do sul conteriam a especulação dos preços (LAPA, 1973, p. 30). Na recémcriada capitania, havia não só a necessidade de um abastecimento de produtos importados, como também um aumento do número de mãode-obra escrava africana que, a partir de 1755, ficaria também a cargo da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Dela se esperava a introdução de muitos escravos africanos, que substituiriam o trabalho escravo dos índios, os quais, desde 1755, eram considerados vassalos do rei, e não deveriam ser escravizados, embora tal proibição não funcionasse na prática. Para Diogo de Mendonça Corte-Real, eram claros os benefícios da atuação da companhia em relação ao abastecimento de escravos: Como se tem estabelecido, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o grande fim que se propõe é de introduzir muitos negros; espero que a abundância deles possa chegar a esse país, para que se continue em novos descobertos de minas, em que não cuidam os mineiros que atualmente estão nesse país, que por falta deles se acham sós nas faisqueiras, entretidos a passar a vida, e sem cuidarem na sua utilidade, nem da Real Fazenda (APMT, 1756, Fundo Governadoria, doc. n. 62). A utilização da mão-de-obra escrava indígena e africana não estava circunscrita apenas às minas, sendo também encontrados negros 134 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos e índios6 nas lavouras, e ainda no desempenho de outras funções, como a de remeiros, no beneficiamento de alimentos, bem como em atividades manufatureiras, como a fiação e a tecelagem. Umas das razões pelas quais se criaram expectativas quanto ao comércio praticado com o Pará foram os preços dos gêneros secos e molhados que entravam pelas minas, vindos do Rio de Janeiro, e que eram absurdamente caros. Um alqueire de sal, por exemplo, que em sua origem custava 2.200 réis, chegava em Mato Grosso acrescido dos custos com a despesa, custando 30.440 réis, quase quatorze vezes mais caro (CANAVARROS, 2004, p. 212). Em correspondência de Rolim de Moura enviada a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em 1756, o governador se mostrava esperançoso em relação ao aumento das transações comerciais com a companhia e com a concorrência entre os comerciantes do norte e do sul, apesar das dificuldades apresentadas no princípio do empreendimento: Daqui é natural se aumente o interesse à nova Companhia de Comércio; pois pelas dificuldades que ainda experimentam os viandantes deste caminho, como sucede a todas as coisas nos seus princípios, não tem agora podido dar um tal preço, principalmente as fazendas secas, que tire o lucro as que vêm do Rio de Janeiro, o que faz que para aquela cidade se divirta a maior parte do ouro que se tira destas minas, o que é certo há de diminuir, à proporção que o comércio com o Pará se for franqueando e facilitando mais (NDIHR – UFMT, 1982, v. 3, p. 23). Assim como ocorria em outras regiões que contavam com a atuação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, uma de suas atribuições consistia em oferecer assistência financeira ou fornecer produtos diversos, como tecidos destinados ao fardamento das tropas, armas, munições e outros equipamentos, bem como auxiliar na construção de fortalezas ou feitorias para a segurança de seu comércio e das regiões em que estava estabelecida, embora fosse embolsada depois pela Fazenda Real. Os empréstimos de dinheiro feitos pelo Estado do Grão-Pará e Maranhão à Companhia do Grão-Pará e Maranhão serviam para pagar despesas diversas, das quais podemos citar, para a década de 1770, gastos com a fortificação da Vila de São José do Macapá, pagamento das tropas, pagamento das côngruas, madeiras para o arsenal, ou ainda com as charruas de Sua Majestade 6 Sobre a utilização da mão-de-obra indígena na Capitania de Mato Grosso ver: BLAU, 2007. 135 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues (PR – AHU/PA, 1769, cd 07, cx. 64, doc. n. 5527). As despesas da capitania de Mato Grosso para com a Companhia se referiam basicamente a munições, ferramentas, mantimentos e quinquilharias, medicamentos, jornais e soldos, e outros empréstimos (APMT, Fundo Fazenda, 1768, doc. n. 119). Entre 1756 e 1760, o comércio com a Companhia e Mato Grosso foi insatisfatório pelas condições em que se encontravam as mercadorias, ou mesmo pela falta delas. Durante a década de 1760, houve um estímulo à produção paraense, e os fazendeiros do Pará tinham prioridade sobre as vendas, ficando aos comerciantes de Mato Grosso, segundo Davidson, com as sobras. Notadamente esse foi um período complicado, em que as reclamações dos comerciantes de Mato Grosso se fizeram ouvir (DAVIDSON, 1970, p. 141-142). A partir da década de 1760, a atuação dos homens de negócio com a Companhia aparece com maior regularidade na documentação oficial registrada pelos capitães-generais e demais funcionários da coroa. João Pedro da Câmara comentou positivamente a atuação dos comerciantes: Os homens de negócio vêm muito satisfeitos do bom tratamento e franqueza que acharam na Companhia, por cujo motivo julgo que não só estes, mas outros que negociam para o Rio e Bahia, freqüentarão o comércio por esta parte, com grande utilidade da mesma companhia (NDIHR – AHU/MT, 1765, MF Rolo 12, cx. 13, doc. n. 763). Era o que se esperava e o que de fato ocorreu no início das atividades comerciais entre Mato Grosso e Pará. Segundo Lapa, havia negociantes de Mato Grosso que atuavam nas duas rotas, do norte e do sul. Os conflitos com a Companhia em relação à má qualidade dos produtos, principalmente no que se refere à mão-de-obra escrava foram um dos motivos para que alguns preferissem comercializar com o Rio de Janeiro e Bahia, causando grande preocupação aos capitãesgenerais, uma vez que o comércio com a Companhia não poderia deixar de ser realizado. Ainda segundo Lapa, transcorridos cinco anos da atuação da Companhia, os comerciantes alegavam que “o rígido monopólio sobre o comércio entre as duas capitanias, os obrigara a apenas se dirigirem para o norte, chegando a proibir o trânsito pelo caminho fluvial para São Paulo, além de outras medidas coercitivas para forçar as transações com o Pará” (LAPA, 1973, p. 91), medida revogada por Rolim de Moura. Nos anos seguintes, as relações comerciais com 136 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos a Companhia primavam pela estabilidade. Os Anais de Vila Bela registraram, para o ano de 1760, a continuidade do comércio com o GrãoPará, assim como com o que vinha pelas monções do sul, que também abasteciam Vila Bela e seus arredores. Segundo os Anais de Vila Bela, neste ano (1760) “não tem sido com muita abundância pelas faltas da fazenda que tem havido pelos povoados ou portos de mar” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 81). Nos momentos em que ocorria o atraso das monções, os mantimentos disponíveis eram vendidos a preços elevados. Quando chegavam os barcos, os produtos eram vendidos “pelo costumado preço” (SUZUKI, 2007, p. 91). Nos Anais do Cuiabá encontramos o registro para o ano de 1765, em que consta relato do atraso da monção, que provocou a falta de alguns víveres do Reino, como o sal e o vinho, que “se chegou a vender a medida a três oitavas de ouro de 1500, que corresponde a quatro mil e quinhentos, cuja vasilha muito pouco excede de um prato de estanho fundo, e este a oito oitavas de ouro do mesmo valor, que corresponde a doze mil réis” (SUZUKI, 2007, p. 91). A partir do governo de Luís Pinto de Souza Coutinho, o trânsito pelo Madeira e as relações comerciais com a companhia tornaram-se mais intensas. Estes anos foram o auge do desenvolvimento do comércio, cujas dificuldades já estavam relativamente sanadas, se considerarmos os esforços empreendidos pelas autoridades metropolitanas na manutenção desse comércio. Para Davidson, alguns fatores contribuíram para que fosse alcançado esse desenvolvimento, tais como um maior envolvimento da Companhia do Pará, nas transações públicas e privadas, a proliferação das operações da coroa no oeste, e a expansão da mineração em Mato Grosso, a qual acrescentou poder de demanda e aquisição, contribuindo para o florescimento do comércio e da navegação entre Belém e Vila Bela” (DAVIDSON, 1970, p. 157). Tão logo iniciou seu governo, o capitão-general organizou uma assembléia dos comerciantes de Mato Grosso tentando convencê-los a não se desviarem do caminho do Pará, prometendo-lhes numerosas mercadorias e crédito junto à companhia, sugestão essa que foi bem recebida por uns, e recusada por outros (DAVIDSON, 1970, p. 166167). O capitão-general tentou ao máximo persuadir os “negociantes destas minas à freqüentação do comércio do Pará, como o mais vantajoso aos seus verdadeiros interesses, e para que os mesmos tinham a mais decidida repugnância” (PR – AHU/MT, 1770, cx. 15, doc. n. 893). 137 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues A relutância mencionada se dava também pela recusa dos comboieiros em mudarem suas rotas comerciais. Entre 1769 e 1770, Luís Pinto de Sousa Coutinho, após persuadir e convencer os comerciantes a não abandonarem a rota norte, conseguiu “gerar condições econômicas em Mato Grosso que tenderam a um comércio florescente”, e, além do mais, “sua promoção da mineração e agricultura foram instrumentais em criar demanda e liberar capital necessários para o comércio do Madeira” (DAVIDSON, 1970, p. 167-168). Garantir a posse das terras devidamente ocupadas pela coroa portuguesa significava fixar sua população, aumentar o número de povoações, bem como oferecer os meios necessários para sua sobrevivência. Como prioridades para o aumento da povoação da capitania, segundo o governador, estavam: conceder a maior liberdade possível ao comércio, fomentar a agricultura, animar os descobrimentos das minas, promover casamentos e atrair novas famílias (IHGMT. Instruções aos Capitães-Generais, 2001, p. 36). As quatro questões apontadas pelo governador constituem o que era essencial para concretizar seus objetivos. Para realizar seu propósito em relação ao comércio, em especial o da rota norte, Luís Pinto tomou algumas medidas, tais como: facilitar aos homens de negócio a liberdade de partirem em todo o tempo da capitania, “quase soltos”; não negar licença a qualquer pessoa que quisesse se dedicar ao comércio independente de grandes cabedais; ser menos austero em dar baixa aos soldados que a requeressem e possuíssem algum ouro para empreender em qualquer negócio (IHGMT. Instruções aos Capitães-Generais, 2001, p. 35). Era de interesse metropolitano a manutenção da rota comercial pelo norte, fruto de constantes inquietações, uma vez que os negociantes preferiam o comércio do Rio de Janeiro, não obstante as maiores despesas e as incomparáveis dificuldades do trânsito. Em 18 de setembro de 1769, o capitão-general publicou um bando no qual estabelecia a liberdade de partida das monções: Atendendo a ser a liberdade do comércio o primeiro princípio, em que consiste a sua estabilidade, sou servido declarar a todas as pessoas, em como daqui em diante não fica existindo para a partida das monções tempo algum pré fixo de meses certos determinados, como até agora se tinha estabelecido, mas a todos será lícito freqüentarem as suas viagens, tanto deste porto, como do sítio do Camapuã, em todo tempo que se ajuntar um competente número de embarcações, que possam fazer con- 138 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos serva e resistir com segurança a qualquer acontecimento, ficando em tudo o mais sujeitas as ditas expedições, a polícia estabelecida pelos meus antecessores, para a boa ordem de sua navegação, e para não levarem outras algumas pessoas nas suas comitivas, mais do que aquelas que derem em relações, sob pena de serem incursos nos castigos que pelas mesmas ordens se acham prescritos (...) (ACBM. Acesso Pasta 95, doc. n. 1459). O abastecimento pelas monções do norte, ao longo da segunda metade do século XVIII, nem sempre foi regular, fosse pela falta de produtos nos armazéns de seus fornecedores ou pela falta de remeiros; ou ainda pela época do ano em que os monçoeiros se dirigiam aos portos para buscar os produtos para serem revendidos na capitania, pois se chegassem em tempo errado, não coincidiariam com a chegada dos navios da Europa. As irregularidades da monções contribuíram para o atraso do abastecimento e pela falta de mercadorias, ocasionando, por algumas vezes, carência de mantimentos na capitania. Em correspondência enviada pelos agentes administrativos da Companhia ao governador e capitão-general Luís Pinto de Souza Coutinho, registraram-se os motivos de tal carestia. Longe de ser uma conseqüência da liberdade de tempo para a partida das monções concedida aos comerciantes, essa correspondência expressava os problemas enfrentados nas transações comerciais com a Companhia, e seus administradores no Pará ofereciam sugestões para assegurar um negócio regular e periódico. Na correspondência datada de 4 de junho de 1769, os agentes argumentavam sobre a inconstância dos negociantes e o prejuízo que isso acarretava à Companhia, relatando: Há muitos anos que esta Companhia deseja fazer para essa capitania um comércio sólido e avultado, sem lhe ter sido possível consegui-lo até o presente por encontrar uma grande inconstância nos negociantes, e não terem estes exigido monções certas de virem a esta cidade fazerem o seu comércio, e como se pratica nas mais partes, esta incerteza é o motivo principal se não encontrarem os gêneros que necessitam para bem formar e surtirem as suas carregações (APMT, Fundo Governadoria, 1769, doc. n. 208). E continuavam justificando que devido à irregularidade das monções dispunham somente dos gêneros que consideravam serem mais consumidos, deixando claro que seria “conseqüência infalível que a metê-los a Companhia forçosamente os há de perder, como o tem experimentado em várias ocasiões” (APMT, Fundo Governadoria, 1769, doc. n. 208). Por conta disso, para contornar a situação, 139 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues sugeriam que os comerciantes deveriam ir ao Pará todos os anos, mas dividindo-se em dois corpos, sendo que uns em um ano, e outros no seguinte, de modo a se estabelecerem na cidade até o início do mês de agosto, quando encontrariam todos os gêneros de que precisassem (APMT, Fundo Governadoria, 1769, doc. n. 208). Os administradores da Companhia reforçavam a inconstância dos comerciantes, e estes, a má qualidade dos produtos disponíveis, os preços e juros. Resolver tais questões e problemas a respeito do trânsito no Madeira era o objetivo de Luís Pinto, que buscou justa medida para convencer os comerciantes das vantagens desse empreendimento, e os administradores da Companhia da necessidade de fornecer abundantes produtos importados e crédito (DAVIDSON, 1970, p. 168). Mas as reclamações que chegavam da parte dos comerciantes ao governador era justamente o fato de que eles “não encontram na Companhia provimentos alguns competentes para fornecerem as suas carregações, e pouquíssimos escravos para se proverem e juntamente facilitarem o trânsito daquela navegação” (PR – AHU/MT, 1770, cx. 15, doc. n. 893). Quanto aos administradores, estes foram informados das decisões tomadas a respeito da regularidade das monções. Em reunião convocada com os homens de negócio, eles mesmos buscaram uma organização das monções: (...) pelo que toca a regularidade das monções, já se acha completamente estabelecida pelo acordo unânime dos homens de negócio, que para isso fiz convocar, assim como também sobre a partida de todos aqueles que aqui tem por hora melhor estabelecimento, de sorte que a respeito destes dois portos ficam removidas todas as dificuldades (PR – AHU/MT, 1770, cx. 15, doc. n. 893). As transações comerciais com a Companhia deveriam se dar pela boa correspondência entre os comerciantes e administradores com vistas à satisfação de ambos em seus negócios e interesses. Uma questão fundamental foi observada pelo governador: as desculpas dos administradores pela falta de mercadorias em seus armazéns e as queixas da falta delas pelos comerciantes. Tais desculpas só contribuíram para mais empates nos negócios que da parte dos comerciantes a falta de provimentos servia como justificativa para deixarem de praticar a navegação em direção ao Pará. Mas nem sempre tais razões podem ser consideradas como motivadoras para a mudança na direção dos negó- 140 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos cios pessoais, uma vez que alguns que permaneceram nesse empreendimento obtiveram algum tipo de êxito, como veremos adiante. A busca pela estabilidade comercial e pela regularidade do comércio com o Pará foi perseguida pelas autoridades metropolitanas durante quase toda a segunda metade do século XVIII. Um grupo de comerciantes não se abalou diante dos empecilhos e se aventurou nessa empreitada comercial. Entre 1774 e 1778, cinqüenta e sete comerciantes navegaram e realizaram negócios com a Companhia, muitos dos quais eram militares, lavradores, oficiais da câmara, entre outros (APMT, Fundo Governadoria, 1774, doc. n. 02; APMT, Fundo Fazenda, 1778, doc. n. 33). Ao final do governo de Luís Pinto, alguns entraves no comércio com o Pará ainda permaneciam, como: a falta de fazendas sortidas, de escravos considerados “bons” e de preços justos. Em relação à Companhia do Grão-Pará, os principais empecilhos que resultaram na preferência dos negociantes pelo comércio com os portos de São Paulo e Rio de Janeiro eram os seguintes: 1° A falta de provimentos sortidos nos armazéns da Companhia; 2° A penúria dos escravos com que a mesma Companhia dirigia as suas especulações, e na carestia e na qualidade deles; 3° A rigorosa obrigação em que constituía aos negociantes de se abonarem cada um de per si, e um por todos, contra a prática estabelecida nos mais portos de mar; 4° Em não dar a Companhia espera alguma de juros, quando se efetua a venda, ao mesmo tempo em que nas mais praças se lhes faculta ao menos; 5° Finalmente, nos grandes empates que muitas vezes sofrem as monções naquele porto, assim por falta dos sobreditos escravos, como pela dificuldade em lhe aprontarem índios para a sua navegação, por parte do governo (IHGMT. Instruções aos Capitães-Generais, 2001, p. 38). Em relação às transações comerciais com a Companhia, concedia-se aos comerciantes créditos que variavam de seis meses a um ano, o que era prática comum nas minas. As compras dos gêneros pela Companhia eram asseguradas pelas parcelas que deveriam pagar os comerciantes devedores. Pagando-se as dívidas, o crédito para novas compras estava garantido. Embora os negócios fossem permeados de queixas e acusações de ambos os lados, gerando tensões que deveriam ser controladas, os capitães-generais intervinham para garantir a assistência contínua de mercadorias. As decisões tomadas em Mato Grosso estavam em consonância com os interesses portugueses não só no plano das relações políticas entre Portugal e Espanha pelos territórios na América, como também pela existência e pelo funcionamento da 141 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues própria Companhia, envolvida numa rede comercial de distribuição de produtos e de mão-de-obra escrava que abrangiam a Europa, África e América. Foi durante o governo de Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres que um ambicioso plano de comércio deveria ser posto em prática. Em instrução chamada “secretíssima”, esse plano, cujas ordens deveriam ser executadas no mais absoluto segredo, tinha por objetivo ampliar o comércio da Companhia do Grão-Pará com as “capitanias de Mato Grosso, de Cuiabá e todas as mais regiões confinantes com as referidas capitanias e a de São José do Rio Negro”, com a justificativa de que todos ficassem bem supridos com os gêneros de que careciam (PR – AHU/PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919). Além de outras capitanias do Brasil, pretendia-se com este plano incluir nos negócios da Companhia do Grão-Pará “parte das vastas províncias espanholas do Orinoco, Quito e Peru” (PR – AHU/PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919). Os avanços dos espanhóis sobre território português partindo do Orinoco eram observados rigorosamente pelas autoridades do Estado do Grão-Pará e de Mato Grosso. Com bastante cautela, buscavam os lusitanos resguardar também seus territórios ao norte. Em 1761, Rolim de Moura foi informado dos planos para proteger o Rio Negro das incursões espanholas. Nas cachoeiras deste rio, estabelecer-se-ia uma escolta com o pretexto de se fundar povoação, informando ao governador de Mato Grosso para “mandar até a cachoeira Grande, a descobrir alguma notícia dos seus movimentos, sem que eles de nenhum modo possam vir no conhecimento desse projeto” (APMT, Fundo Governadoria, 1761, doc. n. 84). Contudo, as relações comerciais no norte eram mantidas não só com os espanhóis do Orinoco, mas também com os franceses de Caiena. Para animar ainda mais esse comércio, o plano propunha a criação de novos estabelecimentos, como as feitorias. Estava expresso na instrução até o roteiro de navegação e, portanto, a localização das feitorias, que deveriam estar dispostas no caminho da Vila de Barcelos até Vila Bela (PR – AHU/ PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919). A duração das viagens e o elevado preço decorrente das dificuldades de transporte, que atingiam os escravos africanos e gêneros secos e molhados em Mato Grosso vindos tanto do Pará quanto do Rio de Janeiro e da Bahia, impulsionaram a criação destas instruções. Outro motivador foram as relações comerciais mantidas com os vizinhos hispânicos que compravam os mais variados gêneros comercializa142 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos dos na Capitania de Mato Grosso, permitindo-se a entrada de prata em domínios portugueses. Essas mercadorias chegavam aos espanhóis pelos caminhos de terra, considerados mais árduos que aqueles percorridos até o Rio de Janeiro e a Bahia. O comércio com o Pará, de acordo com essas ordens, deveria assumir papel principal na distribuição de mercadorias para as referidas regiões, suplantando inclusive outras praças mercantis: Para que isto assim se efetue é necessário que o novo comércio seja dirigido com uma prudência tal, e tão bem regulada, que inteiramente desterre o abuso dos excessivos preços, a que até agora se venderam os negros e as ditas fazendas que vêm do Rio de Janeiro e da Bahia: é necessário que a relação delas não [ilegível] de exemplo, mas tão somente de argumento, para se concluir dela o meio que ministra para o comércio do Pará suplantar todos os comércios que até agora houve é necessário que se degrade toda a idéia de cobiça insaciável, entendendo-se por uma parte que o barateamento das mercadorias do Pará há de ser a espada aguda com que se cortem todos os referidos comércios, que até agora se fizeram; e entendendo-se pela outra parte, que quanto mais baratos chegarem os gêneros ao Mato Grosso, tanto mais se propagará e dilatará a introdução deles por todas as regiões vizinhas, para se virem a colher na maior extensão dos consumos os avultados lucros, que não permitem as pequenas quantidades vendidas. (PR – AHU/PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919). Estas ordens foram enviadas em 1772, e, depois de passados dezessete anos da instituição da Companhia, os mesmos problemas ainda vigoravam, apesar do comércio com o Pará ter se solidificado, mesmo que para isso pesasse a mão do Estado. Aos “mercadores d’água”, assim referidos na secreta instrução, cabia se dirigirem ao Pará instruídos de que as vendas dos produtos, acrescentando-se os preços de transportes pelos rios, não excedessem os lucros em 12% (PR – AHU/ PA, 1772, cd. 07, cx. 69, doc. n. 5919). Portanto, nisso consistia a “espada que cortaria todos os outros comércios”. Davidson menciona que, em 1773, Pombal ordenou a João Pereira Caldas que remetesse em cada monção com destino a Mato Grosso uma lista exata de produtos e seus preços, para permitir que Luiz de Albuquerque ajustasse a margem de lucro em não mais que 12%. Pereira Caldas cumpriu as ordens e mandou listas paras os carregamentos de 1774 e 1775 (DAVIDSON, 1970, p. 170). Essas atitudes foram os primeiros reflexos da Instrução Secretíssima de 1772. Com base nas ordens que recebeu, Luiz de Albuquerque baixou uma portaria em 143 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues 1775 fixando o preço dos produtos vendidos na capitania. Alegava o capitão-general que os exorbitantes preços dificultavam a manutenção das pessoas comuns, impossibilitando que adquirissem os gêneros mais necessários ao seu sustento (PR – AHU/MT, 1775, cx. 17, doc. n. 1093). Luiz de Albuquerque argumentava também que essa ordem diminuiria a dívida que se prolongava por anos da maior parte das pessoas que compravam fiado dos comerciantes. Devidamente informado sobre os custos das fazendas secas e molhadas nos portos do Pará, Bahia e Rio de Janeiro, o governador estabeleceu a pauta de preços. Essa prática de se vender a crédito propiciava que as mercadorias alcançassem, com o passar do tempo, valor altíssimo, questão que em muito preocupava Luiz de Albuquerque, em especial o que chegava a custar os escravos. Sendo assim, foi estabelecido que as vendas a crédito só se realizariam por tempo determinado, cujo débito não ultrapassasse um ano, limitando os juros em 5% anualmente sobre o valor da venda a crédito (PR – AHU/MT, 1775, cx. 17, doc. n. 1093). Assim como seus antecessores, Luiz de Albuquerque reconhecia que a ordem que executava se dava em benefício das três bases que sustentavam o Estado: “o comércio, a agricultura e a população”, segundo suas próprias palavras. A severa portaria previa ainda, para os comerciantes que não respeitassem a taxação dos preços, a prisão em cadeia por dois meses, multa e o confisco das fazendas vendidas, que seriam utilizadas em benefício do governo, conforme se achasse conveniente (PR – AHU/MT, 1775, cx. 17, doc. n. 1093). Os Anais de Vila Bela registraram para o ano de 1776 nova decisão do Marquês de Pombal em relação à Companhia de Comércio. Dessa vez, a Companhia faria o abastecimento diretamente pelos seus administradores: No princípio do presente ano de 1776 se esperava uma grande revolução no comércio desta capitania, porque vulgarmente se daria que a Companhia Geral do Pará introduziria aqui, diretamente por seus administradores, todos os gêneros de que a costumam fornecer os comerciantes particulares. Mas, pareceu ficarem desvanecidos os fundamentos da presunção, por entrarem nesta vila, a 28 do mês de janeiro e em fevereiro, oito comerciantes providos com toda a abundância dos gêneros costumados pelos administradores da mesma companhia na cidade do Pará (AMADO; ANZAI, 2006, p. 203). 144 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Em janeiro de 1777, Luiz de Albuquerque comunicava o Marquês de Pombal sobre a escassez do comércio com o Grão-Pará em decorrência da execução das ordens reais que regularam as tarifas de bens no ano de 1775. A situação estava cada vez mais complicada, uma vez que os comerciantes relutavam em descer ao Pará para continuar os negócios com a Companhia. Sugeriu Luiz de Albuquerque que, para dar prosseguimento ao plano de comércio, era primordial que a Companhia assumisse o mais rápido possível a condução das “provisões ordinárias do mesmo comércio, na proporção e consumo deste país”, estabelecendo feitores para administrar as fazendas nas feitorias que seriam erguidas. Caso não se procedesse desta maneira, argumentava o governador, em pouco tempo faltariam produtos essenciais na capitania e informava que os armazéns da Fortaleza da Conceição já estavam prontos para “logo terem exercício os dois administradores” (PR – AHU/MT, 1777, cx. 18, doc. n. 1143). Ainda em 1777, Luiz de Albuquerque reclamava da má qualidade dos gêneros disponíveis na capitania, que não animavam o comércio com os vizinhos hispânicos (PR – AHU/MT, 1777, cx. 18, doc. n. 1145). No entanto, em 1777 ainda havia expectativas em relação à atuação direta da Companhia do Pará na Capitania de Mato Grosso. O registro apresentado pelo vereador Francisco de Paula Correa informava: Agora se fez público que, com efeito, intentará a Companhia Geral introduzir aqui, imediatamente, o comércio, para o que se esperavam as divididas carregações que unicamente faltavam. É certo, porém, que arruinava a Capitania, pois que ela tem sido povoada, na maior parte, pelos homens de negócios, e os mesmos mineiros atuais o tinham sido antecedentemente. Não havendo comerciantes, esta Vila viria a ser uma povoação de negros e mulatos, sendo igualmente certo que a mesma Companhia contraísse muitas dívidas, pois que, de ordinário se vende fiado, do que se faz uma grande parte incobrável e falida (AMADO; ANZAI, 2006, p. 213). Esse registro expressa, além dos intentos da empresa, a importância que havia assumido o grupo mercantil na Capitania de Mato Grosso. Os comerciantes, ao se sentirem lesados com a possível presença da Companhia para realizar negociações diretas, direcionaram seus capitais à mineração. Durante o período em que vigorou a taxação dos preços de produtos a partir do bando de 1775, parte dos comerciantes havia aplicado seu capital em outras atividades, em razão dos lucros que julgavam diminutos nos negócios com a Companhia. 145 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues Entretanto, em dezembro de 1777, por ordem régia, revogava-se a pauta que havia estabelecido o preço dos gêneros na capitania em 1775, ficando “sem efeito algum, livre aos comerciantes, a convenção de preços, como em todas as praças dos negócios” (AMADO; ANZAI, 2006, p. 213). Não sendo mais necessário o fornecimento direto de gêneros pela companhia, Luiz de Albuquerque se aproximou dos comerciantes da Capitania de Mato Grosso tentando convencê-los a retomar o comércio e dirigirem-se aos portos marítimos, obtendo êxito nesse propósito: Intimei, persuadi, e capacitei com grande eficácia a todos estes povos e negociantes, de que lhes ficava sendo perfeitamente livre todo o gênero de comércio, grande ou pequeno, ativo ou passivo, que desejassem fazer, assim de umas para outras capitanias, como daqui para qualquer dos portos do Brasil (PR – AHU/MT, 1777, cx. 19, doc. n. 1177). Durante o período em que vigorou o “plano de comércio”, o contrabando com os espanhóis foi promovido ainda mais. Esse “contrabando oficial”, permitido e reforçado pelas ordens reais, continuou sendo prática corrente controlada pelo governador. Em 1778, Luiz de Albuquerque informava a Martinho de Melo e Castro sua dúvida em relação ao comércio clandestino com os espanhóis. Luiz de Albuquerque não sabia se deveria continuar ou parar com as transações mercantis clandestinas após o cancelamento do “plano de comércio” secretíssimo; informava também que, enquanto não obtivesse resposta, continuaria a “favorecer sempre o dito comércio clandestino, ainda que não supõe umas tão expressas, tão vivas e árduas diligências como as que prescreviam o referido plano hoje suprimido” (PR – AHU/MT, 1778, cx. 19, doc. n. 1183). Os castelhanos tinham especial interesse por escravos negros e, ávidos por adquiri-los, negavam-se a qualquer outro “gênero de tráfico considerável”, e o capitão-general tinha dúvidas se deveria fornecê-los. A ordem que dissolveu a Companhia de Comércio, em janeiro de 1778, veio de D. Maria I, em razão das muitas críticas sofridas principalmente pelos opositores de Pombal, resultado também dos problemas gerados com a execução do plano de comércio. As preocupações do novo governo centravam-se na definição do destino que dariam às companhias de comércio criadas durante a administração pombalina. Não obstante a defesa dos dirigentes da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, que argumentavam sobre os êxitos alcançados 146 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos por esta na diminuição da dependência do comércio britânico, a empresa monopolista foi extinta (MAXWELL, 1996, p. 94). No ano de 1779, chegou um correio do Pará informando ao governador que, por ordem real, deveria convocar uma junta que determinasse o tempo necessário para que os comerciantes da Capitania de Mato Grosso pagassem suas dívidas à Companhia do Comércio do Pará, que se achava extinta. A junta foi composta por Luiz de Albuquerque, Felipe José Nogueira Coelho, Manoel Cardoso da Cunha e Antônio Felipe da Cunha Ponte. Os sobreditos devedores pagariam, a semestres, apenas dívidas de vulto, de dois, três, quatro e seis anos, atendendo a maior e menor quantia. Que os mesmos semestres se pagarão em barras de ouro, na Provedoria da Fazenda, para do seu cofre serem remetidos, por conta e risco dos mesmos devedores, na forma de suas obrigações, que eles usarão da mesma moratória com quem lhes devessem, passando crédito da quantia de cem oitavas, e não havendo perigo na arrecadação. E que, finalmente, enquanto não completassem os seus pagamentos, não fariam comércio algum, interior e exterior (AMADO; ANZAI, 2006, p. 219). Nos dois anos seguintes, remessas de pagamentos das dívidas dos comerciantes saíram de Vila Bela em direção ao Pará com certa regularidade7. Se considerarmos que a extinta companhia continuou sendo fornecedora de produtos, é possível que não fosse vantajoso dever a ela. A extinção da companhia, segundo Maxwell, foi um triunfo do velho grupo de comerciantes livres, do velho sistema e dos devedores brasileiros das companhias, porém isso não afetou por completo o privilegiado grupo de comerciantes ricos que surgiram e se fortaleceram durante o governo pombalino. Para Maxwell, “os colaboradores de Pombal estavam por demais incrustados na estrutura social e associados à arrecadação de tributos e às repartições públicas, para desaparecerem com a simples abolição de privilégios das companhias brasileiras” (1996, p. 95). Em Mato Grosso, tornava-se livre o comércio com o Pará, mas a extinta companhia assegurou remessas de mercadorias durante a década de 1780, convencendo os comerciantes de que seus armazéns 7 Os Anais de Vila Bela registram para os anos de 1779 remessa correspondente ao primeiro semestre das dívidas dos comerciantes no valor de 18:478$431 réis, e, no ano de 1780, o valor correspondente ao segundo semestre dos devedores foi de 12:619$309 réis (AMADO & ANZAI, 2006, p. 220-223). 147 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues estavam cheios de produtos. Apesar de ser um número pouco expressivo, Davidson estimou que, entre 1780 e 1788, apenas nove expedições de comércio saíram de Belém em direção a Vila Bela, isto é, apenas a metade do número de comboios que fizeram o mesmo percurso entre 1769 e 1778 (DAVIDSON, 1970, p. 190). Provavelmente, a diminuição de monções deveu-se à pauta de preços estabelecida em 1775. Quatro anos após a referida pauta, em 1779, a câmara dos vereadores havia registrado a “diminuição da entrada das monções”, que provocou menor entrada de dinheiro e aumento de despesas, dificultando a realização total dos pagamentos, situação que já se mantinha há cerca de três anos (APMT, Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1779, doc. n. 105). Contudo, o declínio do comércio com a Companhia de Comércio entre 1788 e 1808 coincide com a perda de importância estratégica e econômica do Madeira e quando se acentuaram os problemas relativos ao transporte e à mão-de-obra indígena necessária às viagens. Aos poucos, o comércio com o Pará perdia espaço para aquele realizado com os portos costeiros do Rio de Janeiro e de São Paulo (DAVIDSON, 1970, p. 204). Os homens de negócio de Vila Bela Era comum encontrar na capitania três tipos principais responsáveis pelo desempenho das atividades econômicas mais importantes na sociedade colonial: o lavrador, o mineiro e o comerciante. Ao tratar do comerciante, é preciso destacar o caráter versátil de suas atividades econômicas, pois encontramos aqueles que se dedicavam, concomitantemente, à agricultura, à mineração e ainda às atividades administrativas, não se podendo falar em poder local, defesa e economia, sem considerar sua presença. Durante nossa investigação, listamos 57 comerciantes devedores da Companhia do Grão-Pará e Maranhão nos anos de 1774 e 1778 (APMT, Fundo Governadoria, 1774, doc. n. 02; APMT, Fundo Fazenda, 1778, doc. n. 33), dos quais obtivemos algumas informações sobre 30 deles; do restante, sabemos apenas que deviam à Companhia do GrãoPará. Desses 30 homens, 18 possuíam duas coisas em comum: o fato de se dedicarem ao comércio do Pará e de terem exercido em algum momento funções administrativas na Câmara de Vila Bela da Santíssima Trindade. Em determinada época, outros comerciantes também partilharam de experiências comuns, ao se dedicarem a outras atividades 148 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos econômicas, seja como donos de engenhos ou de propriedades agropastoris, seja como possuidores de minas auríferas ou ainda por terem feito parte das companhias militares da vila-capital almejando aumentar suas patentes e obter privilégios. Porém, daremos destaque a apenas alguns desse comerciantes neste texto. Essa tendência à diversificação de atividades econômicas, sabemos, não é prerrogativa da Capitania de Mato Grosso; entretanto, consideramos que, assim como ocorria em Minas Gerais, o enriquecimento, por exemplo, não se dava somente pela mineração, mas também pelo comércio e pela agricultura ou por uma junção dessas atividades, situação esta que também pode ser percebida na Capitania de Mato Grosso, apesar de suas particularidades. Deste modo, destacamos alguns aspectos socioeconômicos dos comerciantes que nos levaram a concluir que alguns deles fossem efetivamente ricos, baseados no modo pelo qual ampliavam seus negócios ou ainda pelo modo como sustentavam sua posição de “principais da terra” através do assento nas câmaras, aspecto presente em todo império ultramarino português. Os comerciantes envolvidos na Carreira do Pará ocuparam cargos militares com patentes que variavam de soldado a sargento-mor, dos dragões às ordenanças, como Antônio da Cruz Leitão; Antônio Gonçalves dos Santos; Francisco Pedro de Melo; Francisco Pinheiro da Costa; Hilário Antônio de Almeida Pessoa; José Adão; José Antônio Gonçalves Prego; José Vieira Passos; Manoel Pedro (PR – AHU/ MT, 1765, cx. 12, doc. n. 739). Durante o governo de Luís Pinto de Souza Coutinho, foi permitido aos militares, mesmo os de baixas patentes, aplicar no comércio o ouro que possuíssem, sendo-lhes concedida também dispensa para poderem se dedicar exclusivamente à atividade mercantil. Aos mais abastados, a ocupação dos altos cargos militares significava a possibilidade de alcançar honrarias, títulos e mercês. Comerciante e devedor da Companhia, José Antônio Gonçalves Prego também era militar e, em 1776, foi procurador da coroa em Vila Bela (APMT, Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1776, doc. n. 70). No ano de 1803, requereu à coroa a confirmação de sua patente no posto de sargento-mor do Terço das Ordenanças de Vila Bela, um dos postos mais altos dessa companhia militar. A 16 de dezembro de 1821, foi eleito procurador junto à Assembléia da Corte pelo distrito de Vila Bela, mesmo estando em Lisboa (SILVA, 2005, p. 198-199). 149 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues Em 1765, também Manoel da Silva Barata fazia parte do corpo de soldados da Companhia de Ordenanças de Vila Bela, e até 1778 ainda era membro dela, quando almejou um posto mais alto e ficou em terceiro lugar na eleição para ocupar o posto de Capitão das Ordenanças em Vila Bela, em substituição a Francisco Aranha de Godoy que se dirigiu ao Reino (APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1778, doc. n. 95). Apesar de não sabermos se ele conseguiu ou não o posto, Manoel da Silva Barata também ocupou lugar como oficial da Câmara de Vila Bela. Dentro do quadro dos oficiais da câmara estavam juízes, vereadores, procuradores, escrivães e tesoureiros, e quase todos eram eleitos. Havia também outros cargos inferiores que dependiam de nomeações ou provisões, como os de escrivão da almotaçaria, alcaide, quadrilheiros e carcereiros. Faziam parte também do oficialato da câmara os tabeliães notários e do judicial, distribuidores, contadores, inquiridores e outros mais especializados, como escrivão dos órfãos (CANAVARROS, 2004, p. 119-120). Alberto Nunes de Freitas, Alexandre Henriques, Dionizio Leite Ribeiro, Joaquim Geraldo Tavares, Manoel da Silva Barata e Marcelino Ribeiro atuaram como oficiais da câmara entre 1770 e 1780, exercendo diferentes funções, que foram de escrivão a juiz ordinário. A vida desses homens não estava circunscrita a uma única participação na Câmara; desde que lhes fosse permitido, almejavam postos superiores na governança. Alberto Nunes de Freitas, nas eleições de 1778 ficou em segundo lugar para ocupar o cargo de almoxarife do Real Armazém de Vila Bela (APMT, Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1778, doc. n. 85), mas nesse mesmo ano conseguiu ser eleito para o posto de fiscal da Casa de Fundição (APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1778, doc. n. 89); entretanto, sua participação na governança local nos anos seguintes saltou de escrivão para a vereança, e culminou com sua eleição para juiz ordinário nos anos de 1786 e 1788 (SILVA, 2005, p. 103). Outro juiz ordinário foi Antônio Leite Guimarães, eleito em 1789 (AMADO; ANZAI, 2006, p. 287), que também havia sido vereador de Vila Bela em 1787 (AMADO; ANZAI, 2006, p. 265). Dentre os comerciantes que se destacaram no cargo de vereador, constam Alberto Nunes de Freitas, Antônio Caetano Bragança, Antônio Leite Guimarães, Jerônimo Martins Fernandes, Joaquim da Fonseca Freitas, Joaquim Geraldo Tavares, Manoel da Silva Barata, Manoel José de Azevedo e Marcelino Ribeiro. Aos vereadores da câmara, cabia elaborar os “códigos de posturas” e zelar por seu cumprimento, exer150 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos cendo, portanto, o papel de “legisladores e administradores das questões relacionadas ao bem-comum do concelho” (CANAVARROS, 2004, p. 117). Dos proprietários de terras, temos Joaquim Geraldo Tavares, José Caetano da Fonseca, Alexandre Henriques e Manoel da Silva Barata. Joaquim Geraldo Tavares era proprietário de terra na Vila Real e foi requerente de sesmaria8 na região do Rio Manso e do Rio da Casca (APMT, Fundo Sesmaria, 1789, doc. n. 247). Fez parte da câmara da vila-capital em 1783. Segundo Paulo Pitaluga Costa e Silva, no ano de 1780 Joaquim Geraldo Tavares exercia a função de escrivão da ouvidoria e solicitou, no dia 31 de janeiro desse ano, sua nomeação para outro cargo em Goiás, não sendo atendido. Em 1796, era segundo vereador no Senado da Câmara de Cuiabá, onde redigiu os registros para o ano de 1796 (SILVA, 2005, p. 245). É provável que Joaquim Geraldo Tavares residisse na Vila Real e de lá mantivesse negócios na carreira do Pará, de quem era devedor, em 1778, de 487$835 réis (APMT, Fundo Fazenda, 1778, doc. n. 33). Alexandre Henriques era dono de engenho e foi requerente de terras na região do Rio Barbado (1/2 légua) (APMT, Fundo Sesmaria, 1782, doc. n. 155). Atuava na Câmara de Vila Bela em 1780, como provedor tesoureiro, recebendo para os cofres das câmaras quantias relativas aos contratos de arrematação, aferição e outros. Em outubro de 1780, Alexandre Henriques pagava à Câmara os subsídios de seus engenhos. Manoel da Silva Barata, além de vereador, comerciante e militar, era dono de mineração e de propriedades agrícolas. Requereu sesmarias na região do Rio Alegre (1 légua) e Paragem do Porto Velho – Rio Guaporé (3/4 légua) destinadas à agricultura (APMT, Fundo Sesmaria,1776, doc. n. 90). Manoel da Silva Barata abarcou todas as frentes que pôde para ampliar seus negócios e seu lucro. Segundo Paulo Pitaluga Costa e Silva, este comerciante fazia a rota do Pará e distribuía mercadorias para o comércio em Vila Bela e em Cuiabá. Em 1783, já morando em Cuiabá, teve a sua casa arbitrariamente invadida pelo tesoureiro da Provedoria dos Defuntos e Ausentes de Cuiabá, João de Souza Pinto, para cobrança de dívida e, por isso relatou este fato ao 8 Para mais informações sobre concessão de sesmarias na Capitania de Mato Grosso ver: SILVA, 2008. 151 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues ouvidor-geral da capitania requerendo providência (SILVA, 2005, p. 38). João de Souza Pinto foi processado pela invasão. Evidentemente que para o desempenho de suas atividades agrícolas era imprescindível que possuíssem um considerável número de escravos, e da mesma maneira isso se dava em relação aos serviços da mineração. Se considerarmos que cada engenho contava, em média, com a quantia de 20 a 30 escravos (PR – AHU/MT, MF, 14, doc. n. 176), são poucos os que se dedicavam a esta atividade. Segundo Masília Gomes, era comum as terras compreenderem os dois setores de produção: A unidade produtiva escravista, ou seja, sítios ou fazendas cujo caráter do processo de produção seguia o modelo escravista eram, geralmente, propriedades extensas, que contavam com um grande número de escravos para o trabalho. Em áreas de mineração, como no Mato Grosso, a maioria dessas unidades compreendia os dois setores, minerador e agrário, sendo, portanto, as responsáveis pela produção de boa parcela dos excedentes voltados para o atendimento das demandas geradas pelo mercado intra-capitania (GOMES, 2008, p. 51). Alguns comerciantes, já no findar do Setecentos ocuparam lugar na Câmara de Vila Real do Cuiabá, como foi o caso de Marcelino Ribeiro, que no ano de 1796 foi mencionado nos Anais do Cuiabá como o “vereador mais velho” da câmara (MORGADO et al., 2007, p. 151), e com a morte do capitão-general João de Albuquerque fez parte da Junta Governativa assumindo o governo da capitania juntamente com o ouvidor-geral Antonio da Silva do Amaral e o tenente-coronel de engenheiros Ricardo Franco de Almeida Serra (SILVA, 2005, p. 207). Marcelino Ribeiro havia sido escrivão das forjas em 1776 (APMT, Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, 1776, doc. n. 70), e fez parte da Câmara de Vereadores de Vila Bela em 1781 e 1782 (JESUS, 2006, p. 430). O comerciante Antônio Caetano Bragança era proprietário de um dos imóveis mais ricos de Vila Bela. A sua casa foi destruída pela enchente do Guaporé, no ano de 1784 (JESUS, 2006, p. 245). Em comparação com os demais habitantes da vila, que não possuíam condições de habitar casas confortáveis ou de se vestir com os tecidos mais finos e de se alimentar com os alimentos mais caros, esse privilegiado grupo sempre aparecerá no topo da hierarquia social, e seus membros estavam aptos a exercerem funções administrativas a serviço da coroa portuguesa. 152 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Segundo Almeida, as solicitações mais freqüentes de mercês e graças em Minas Gerais referiam-se à confirmação de carta de sesmaria, confirmação de patente militar, pedido de provimento em cargos públicos, pedidos de licença para passarem ao Reino, e até mesmo solicitações para que fizessem valer os privilégios cabíveis a seus postos. Os homens mais ricos solicitavam permissão para ingressar no Hábito da Ordem de Cristo (ALMEIDA, 2005, p. 374). Os pedidos de mercês e privilégios para os “homens bons” da Capitania de Mato Grosso eram semelhantes aos de Minas Gerais. Entretanto, raros foram os casos que encontramos de comerciantes que solicitaram a mercê do Hábito da Ordem de Cristo. O único que parece ter adquirido tal graça foi João de Souza Azevedo, um dos primeiros comerciantes a realizar negócios com o Pará e considerado pelo capitão-general D. Antônio Rolim de Moura um dos melhores sertanistas daqueles tempos. A participação desses “homens bons” nas câmaras, além das possibilidades de obtenção de privilégios e mercês, acesso a títulos nobiliárquicos e ascensão política e social, significou também que, ao ocuparem lugar na câmara, interesses pessoais poderiam estar envolvidos, principalmente os de ordem econômica, em especial por se tratar de um canal de negociação entre os poderes local e central. Os comerciantes foram aos poucos ocupando lugar e posição privilegiada na vila capital, e consideramos que os negócios realizados com a Companhia do Pará foi uma alternativa para obterem lucros. Evidentemente que neste percurso esses comerciantes vão trilhando caminhos diferenciados, diversificando seus empreendimentos, tentando sobreviver motivados pelas mais diversas razões. Até 1778, ainda eram devedores da extinta companhia e ainda pela década de 1780, os mais proeminentes continuaram envolvidos nas malhas administrativas do poder local, sendo possível perceber que alguns não abandonaram os negócios com o Pará e com a própria companhia. 153 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues Referências 1 Documentos manuscritos Arquivo Casa Barão de Melgaço – ACBM ACBM. Acesso Pasta 95, doc. n. 1459. Bando de Luís Pinto de Souza Coutinho publicado em 18/set/1769. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso - APMT APMT. Lata 1756 A, Fundo Governadoria, doc. n. 62, Belém, 19/fev/1756. Correspondência de Diogo de Mendonça Corte Real a D. Antônio Rolim de Moura. APMT. Lata 1765-1768, Fundo Governadoria, doc. n 84, Barcelos, 10/fev/1761. Correspondência de Gabriel de Souza a D. Antônio Rolim de Moura. APMT. Lata 1765-1768, Fundo Fazenda, doc. n. 119. Pará, 18/fev/1768. Resumo do que deve a Provedoria da Capitania de Mato Grosso com a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão em 1761, 1764, 1765 até 1768. APMT. Lata 1769, Fundo Governadoria, doc. n. 208, Pará, 4/jun/1769. Correspondência de Gonçalo Pereira França a Luís Pinto de Souza Coutinho. APMT. Lata 1774, Fundo Fazenda, doc. n. 33, Vila Bela, 12/maio/1774. Correspondência de Miguel Pinto Teixeira a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. APMT. Lata 1774, Fundo Governadoria, doc. n. 02, Pará, 18/jun/1774. Correspondência de Gonçalo Pereira de França e Antônio Coutinho de Almeida a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres em que consta relação de vários devedores da Companhia Geral do Pará que se acham em Vila Bela de Mato Grosso. APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 70, Vila Bela, 14/set/ 1776. Ata assinada em Câmara por Francisco Xavier Antão, Jerônimo Martins Fernandes, Francisco de Bastos Ferreira, José da Silva e Francisco Botelho a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 85, Vila Bela, 4/jan/1778. Ata assinada em Câmara por Francisco Xavier Antão, Antônio José da Costa e Nóbrega, Hilário Antônio de Almeida Pessoa e Marcelino Ribeiro a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 89, Vila Bela, 10/jun/ 1778. Ata assinada em Câmara por Francisco Xavier Antão, Manoel de Oliveira Pombal, José da Silva, Hilário Antônio de Almeida Pessoa e Marcelino Ribeiro a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. 154 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos APMT. Lata 1778, Fundo Fazenda, doc. n. 33, Pará, 20/set/1778. Correspondência de Antônio Coutinho de Almeida e Manoel José da Cunha a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres em que consta relação das várias pessoas assistentes em Vila Bela de Mato Grosso que são devedoras da Companhia Geral do Pará. APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 95, Vila Bela, 27/out/ 1778. Ata assinada em Câmara pelo Capitão-mor Antônio Soares Lima, João de Souza Pinto, Hilário Antônio de Almeida Pessoa e Antônio Caetano Bragança a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. APMT. Fundo Senado da Câmara de Vila Bela, doc. n. 105, Vila Bela, 15/set/ 1779. Ata assinada em Câmara por Felisberto Leite Pereira, Manoel de Oliveira Pombal, Alberto Nunes de Freitas, Joaquim da Fonseca Freitas e Antônio Teixeira de Oliveira a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. APMT. Fundo Sesmaria, 1782, doc. n. 155. Requerimento de Alexandre Henriques a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. APMT. Fundo Sesmaria, 1776, doc. n. 090. Requerimento de Manoel da Silva Barata a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. APMT. Fundo Sesmaria, 1789, doc. n. 247. Requerimento de Joaquim Geraldo Tavares a Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres. Projeto Resgate - PR PR – AHU/MT. Vila Bela, 25/jan/1754, cx. 07, doc. n. 438. Carta de Rolim de Moura ao rei D. José. PR – AHU/MT. Grão-Pará, 20/fev/1754, cx. 07, doc. n. 444.Correspondência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao rei D. José. PR – AHU/MT. Vila Bela, 15/fev/1765, cx. 12, doc. n. 739. Carta de João Pedro da Câmara a Francisco Xavier de Mendonça Furtado na qual envia relações e o estado de forças da capitania. PR – AHU/MT. Vila Bela, 20/jan/1769, cx. 13, doc. n. 829. Ofício de Luís Pinto de Souza Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. PR – AHU/PA. Pará, 10/mar/1769, cd 07 (pasta 071/001/031), cx. 64, doc. n. 5527. Ofício do Provedor da Fazenda Real do Pará Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio para Sebastião José de Carvalho e Melo. PR – AHU/MT. Forte Bragança, 29/abr/1770, cx. 15, doc. 893. Correspondência de Luís Pinto de Souza Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. PR – AHU/PA. Pará, 16/dez/1772, cd 07 (pasta 077/001/064), cx. 69, doc. n. 5919. Ofício de João Pereira Caldas a Martinho de Mello e Castro. PR – AHU/MT. Vila Bela, 28/jan/1775, cx. 17, doc. n. 1093. Portaria do governador e capitão general Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres fixando o preço em ouro dos produtos secos e molhados. 155 A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão • Nathália M. D. Rodrigues PR – AHU/MT. Vila Bela, 10/jan/1777, cx. 18, doc. n. 1143. Ofício de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres ao Marques de Pombal. PR – AHU/MT. Vila Bela, 4/jan/1777, cx. 18, doc. n. 1145. Ofício de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres ao Marquês de Pombal. PR – AHU/MT. Vila Bela, 23/dez/1777, cx. 19, doc. 1177. Ofício de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira a Martinho de Melo e Castro. PR – AHU/MT. Vila Bela, 9/jan/1778, cx. 19, doc. n. 1183. Correspondência de Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres a Martinho de Melo e Castro. Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional - NDIHR NDIHR – AHU/MT. Nossa Senhora da Conceição, 14/dez/1765, Microfilme Rolo 12, cx. 13, doc. n. 763. Ofício de João Pedro da Câmara para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. NDIHR – AHU/MT. Nossa Senhora da Conceição, 14/dez/1765, Rolo 12, cx. 13, doc. n. 763. Ofício de João Pedro da Câmara para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 2 Fontes impressas AMADO, Janaina; ANZAI, Leny Caselli. Anais de Vila Bela (1734-1789). Cuiabá: EdUFMT; Carlini & Caniato, 2006. IHGMT. Instruções aos Capitães-Generais. Publicações Avulsas, n. 27. Cuiabá: IHGMT, 2001. MORGADO, Eliane Maria Oliveira; DOURADO, Nileide Souza; CANAVARROS, Otávio; MACEDO, Vera Lúcia Duarte (Orgs.). Coletânea de documentos raros do período colonial (1727-1746). Volume II. Cuiabá. Entrelinhas: EdUFMT. 2007. (Série transcrição: correspondência). NDIHR – UFMT. D. Antônio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja: correspondências. Cuiabá: UFMT/NDIHR, 1982. (Coleção Documentos Ibéricos, série: Capitães-generais, volumes 1 e 3). SÁ, José Barbosa de. 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Na expressão “vivem nos montes”, em épocas diferentes se veiculam vários sentidos como: hábitat natural, lugar geográfico, lugar sagrado da memória tradicional, terra da promessa messiânica, etc. Em oposição, a vida na redução significava experiências distintas para missionários e índios reduzidos (catecúmenos e neófitos), gentios e apóstatas ou infiéis. A redução tornou-se território da civilização cristã européia e de um cristianismo indígena na fronteira dos impérios coloniais ibéricos nas Américas. Neste texto, analisamos o relato do Pe. Julián Knogler (1769), escrito depois da expulsão dos jesuítas das colônias espanholas nas Américas, como indica o editor Werner Hoffmann (1979). Porém, num documentário em vídeo da APCOB, dirigido por Jurgen Riester (1997), tem-se a impressão de que o mesmo tenha sido manuscrito poucos meses antes da expulsão na própria redução de Santa Ana de ChiquiJoão Ivo Puhl é professor efetivo de História da América no Campus Universitário Jane Vanini, de Cáceres – Universidade do Estado de Mato Grosso. Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso é membro fundador e primeiro coordenador do NECALCA – Núcleo de Estudos Científicos da América Latina e Caribe, da UNEMAT. Desde agosto de 2007, é doutorando em História na UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo-RS. É bolsista FAPEMAT. Este texto é o resultado de análises parciais apresentadas no I Congresso Internacional Chiquitano realizado em San Ignácio de Velasco – Bolívia, entre os dias 23-25 de maio de 2008 e nas XII Jornadas das Missões Jesuíticas do Rio da Prata, que aconteceram em Buenos Aires – Argentina, entre 24 e 26 de setembro de 2008. A versão foi complementada com novas leituras, sugestões e críticas de participantes destes eventos e de amigos leitores. 158 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos tos onde o autor trabalhou. Tomichá (2002), em nota, explica que o texto publicado por Hoffmann (1979) foi originalmente transcrito ao alemão por Riester (1970), dando a entender que se trata do mesmo escrito apenas traduzido ao espanhol. Knogler nasceu na Baviera, Alemanha, em 1717, e chegou a Chiquitania em 1740. Saiu das reduções com os demais companheiros da Companhia, expulsos em 1767, tendo permanecido 27 anos nas missões. Tomichá (2002, p. 292, nota 158) fala que este missionário desenvolveu suas atividades em Santa Ana entre 1762-1767, a penúltima redução chiquitana fundada por ele mesmo em 1755. Portanto, nos seus últimos anos nas reduções, esteve ligado àquela comunidade multiétnica composta por índios chiquitos, tabicas ou basorocas e outras etnias como Xarayes (os zarabecas), Curuminas (os curuminacas), Ecobares (os ecorabecas) e nos últimos oito meses de sua permanência foram associados um expressivo número de guanás e alguns guaicurus para iniciar a sua redução, pois eram povos muito numerosos no Chaco. Estes dados indicam a situação de conflito e tensão em que vivia aquela comunidade, acossada por colonos espanhóis e portugueses e reunidos recente e precariamente numa comunidade de vida culturalmente tão diversificada. Este relato foi o mais explorado nesta análise. Ele o escreveu na Alemanha em 1769, intitulado: Relato sobre el país y la nación de los Chiquitos en las Indias Occidentales América del Sud y las misiones en su territorio, redactado para un amigo. Trata-se de um relato sintético de diversos aspectos da vida dos nativos, que representa antecedentes à conquista, os processos de contatos e conquista pelas “caçadas espirituais”, o funcionamento das reduções e os trabalhos dos missionários. Os aprendizados dos índios e suas resistências foram contados a um amigo do missionário num gênero de literatura edificante para estimular o destinatário ou o possível leitor a favor da empreitada missionária e civilizatória. Este e outros relatos são representativos de uma prática de escrita jesuítica, mas também significativos das ideologias religiosas e políticas dominantes e compartilhadas naquele tempo. Explicitam a forma de olhar, perceber, representar e intervir na realidade a partir do ponto de vista eurocêntrico do branco, cristão e civilizado que se considerava superior a qualquer outra manifestação humana com a 159 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl qual se defrontava no processo de conquista e expansão colonial. A conquista militar e política das Américas se complementava com a conquista cultural e espiritual dos povos nativos, genérica e equivocadamente denominados índios. Na conquista colonial etnocêntrica, os missionários construíam a civilização cristianizando as gentes destes territórios, inserindo-as na cristandade européia. Muitas vezes os instrumentos da conquista e os funcionários coloniais cumpriam funções complementares na pacificação e submissão de populações nativas resistentes ou rebeldes, e com elas asseguravam a defesa de territórios fronteiriços com o império colonial português na América do Sul e com os ingleses no Norte. As questões fundamentais que tentamos responder a partir dos relatos foram: Como viviam os nativos antes dos contatos dos conquistadores e colonizadores na representação do missionário? Por que despender esforços para evangelizar “animais de Deus”, que viviam nas selvas e “montes”? Como cristianizar e civilizar estes selvagens e bárbaros? Que significava a redução para missionários e índios? Cristianizar e civilizar índios significava reduzir gente que vivia em liberdade a uma vida sedentária, disciplinada e controlada por uma lógica eurocêntrica. Tematizamos as respostas a estas questões em três eixos fundamentais: a vida nos montes e os significados do viver no monte; a tensão permanente entre a redução e o monte e a negociação e participação dos índios na missão. 1 A vida dos índios nos “montes” Destacamos algumas características culturais e a vida dos nativos na selva, nos montes e chacos como foram descritas ou representadas por missionários jesuítas no século XVIII em território hoje do oriente boliviano. O Pe. Knogler (1769) afirma que descreverá o território chiquitano e os habitantes a partir do que viu e observou nos seus mais de vinte anos de experiência nas missões. (…) describiré solamente el territorio de los chiquitos y a sus habitantes, incluidas las tribus vecinas (…) relataré únicamente lo que he visto y experimentado personalmente en los muchos años pasados en las misiones de este país (…) lo que he observado durante mi estadía entre la gente de este pueblo no vale también para otras tribus indias; las cualidades y costumbres de la gente de ¡esta raza son tan desiguales como las regiones donde habitan (KNOGLER, 1979, p. 2). 160 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos O importante registro que fez é que existiam enormes diferenças culturais entre as tribos indígenas que conheceu como eram diversos os ecossistemas que ocupavam e manejavam. Apresentou o ambiente natural, o clima, tendo como referência a realidade experimental do leitor europeu, para mostrar as possibilidades e empecilhos à missão. El país está comprendido, en su totalidad, dentro de la zona tórrida, por lo tanto pasamos mucho calor durante todo el año, en cambio no se conocen la nieve ni el hielo (p. 2) (…) Que el calor no sea insoportable, lo debemos a las selvas vastas, sombrías y espesas, (…) El calor tropical también está atemperado por las lluvias fuertes y frecuentes que caen sobre todo desde el mes de octubre hasta fines de abril, (…). Esta época del año corresponde a nuestra primavera y verano y es tiempo de inundaciones (…). Por esto hay que elegir sitios altos en medio del monte para las reducciones (KNOGLER, 1979, p. 4). No relato, compara a natureza americana de chiquitos à européia. Faz calor o ano todo, por isso não ocorre “neve” nem “gelo”, ou, mais adiante, que o tempo das chuvas “corresponde a nossa primavera e verão” não somente porque a conhece e é familiar ao seu leitor, mas por considerá-la excêntrica e inferior àquela, pois a mata “espessa” lhe parece “sombria” e “inculta”, “um só monte”, mesmo quando se refere ao chaco, aos pantanais, as terras do planalto chiquitano e das planícies amazônicas. Daí a preocupação para escolherem lugares adequados, livres de inundações, de secas extremas e da falta de terras apropriadas para o cultivo na construção de reduções. Onde há reduções jesuíticas em colônias ibéricas nas florestas da erva mate (Paraguai) ou do cacau (Amazônia) e do café encontramse nas matas alimentos para os humanos, mas nos “montes” chiquitanos não. Afirma: Abundan en este país animales venenosos de toda clase (p. 9). (…) Lo demás es tierra inculta en la cual penetramos en nuestras campañas misioneras (p. 2). (…) En este país no crecen ni el árbol del cacao ni el del café, tampoco la yerba mate que reemplaza al té. Los frutos que se encuentran en el monte sirven más como alimento para los animales que para los hombres (KNOGLER, 1979, p. 5). As terras ameaçadoras e incultas também estavam povoadas por gentes bárbaras e bestiais. Ao elencar esta população, os principais termos que utilizou para representar os “índios” foram expressões como: “silvanos”, “animalia Dei”, animais selvagens, nômades, não 161 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl constroem casas, ganham a vida caçando e pescando, os caciques governam só quando em guerras com outras tribos, como segue no fragmento: Los indios que voy a describir se podrían llamar con razón silvanos, porque viven en un monte inmenso y de la misma manera como lo hacen los animales salvajes. San Gregorio habla de hombres de esta índole como animalia Dei, animales de Dios (p.1). (…) Mientras estos indios viven en sus montes, no se puede hablar de un gobierno político de sus tribus. Obedecen a sus caciques solamente cuando están en pie de guerra con sus vecinos de otras tribus y otros idiomas. (…), no hacen otra cosa que vagar por el monte y ganarse la vida con la caza y la pesca. (…) cambian constantemente de lugar. No construyen casas y no poseen enseres domésticos, así pueden mudarse más cómodamente, (…) levantan chozas que se hacen en pocos minutos (…) (KNOGLER, 1979, p. 11). Sendo considerados “animais de Deus”, parece que não há dúvida de que têm alma, apesar de viverem “à maneira como o fazem os animais selvagens”. Os temas da ausência de governo político, de autoridades, instituição estatal e leis escritas, e do nomadismo aparecem, da mesma forma que em outros cronistas anteriores, e da sua época, como indicadores de seu ser bárbaro e selvagem. O outro tema comum nas crônicas é o da nudez dos índios, que surge como sinal diacrítico da selvageria dos chiquitanos. Andan desnudos, pues no hace frío en su país. Pero llevan, una seña que indica su nacionalidad y su idioma. Algunos usan; con tal fin un pedazo de piel de presa, con el cual se cubren, o bien componen un tejido de fibra o de algodón silvestre. Otros se ungen con tierra rodena, embadurnándose especialmente la cabeza, de modo que parecen llevar puesto un casco de punta. Otros se pintan el cuerpo haciendo rayas con materias colorantes extraídas de raíces y plantas. (…) Las mujeres se tatúan sirviéndose de espinas puntiagudas con las cuales se pintan en el rostro una estrella, una flor, un pájaro o un animal; (…) imborrable, pues nada logra borrar las manchitas negras (KNOGLER, 1979, p. 11). A nudez, que tanto impressionou outros cronistas, em Knogler aparece como decorrência do clima quente, e não de maldade. A nudez foi afirmada, mas logo desmentida na seqüência do relato quando diz que alguns usam peles de animais, tecidos de algodão, capacetes de barro, pinturas com tintas vegetais, tatuagens, lábios e orelhas perfuradas e preenchidos com pedaços de madeira, etc. Todos estes elementos marcam nos corpos diferenças étnicas, políticas, de gênero e de tecnologias. Todos eram símbolos que veiculavam significados so162 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos ciais, incompreensíveis para o missionário, mas certamente não para os seus portadores. Corpos nus, em clima tropical, são corpos incivilizados para o relator, mas para os chiquitos e outras etnias que convivem e disputam o mesmo espaço assinalavam fronteiras, signos de poder, distinções sociais, status político, econômico ou religioso e até a distribuição sexual de papéis de gênero. O missionário arrematou: (…) Como se puede ver, ya su aspecto indica su bajo grado de civilización, además tienen ciertas costumbres de las cuales se puede deducir su naturaleza bárbara (…) (KNOGLER, 1979, p. 12). O missionário concluiu que eram bárbaros a partir da observação, descrição e análise dos seus aspectos físicos, costumes como andarem nus, não terem leis escritas, governo e estado, viverem perambulando atrás da caça e da pesca, morarem em choças precárias, estarem submetidos ao demônio e aos feiticeiros, consumirem muita bebida alcoólica em forma de chicha, realizarem festas e danças em círculos ao som de flautas e tambores, etc. En resumen, esta gente conoce bastante recursos y los sabe emplear para mantenerse por la pesca y la caza, y como esta es la única preocupación que tienen, se los puede considerar más animales salvajes que hombres. Cuesta, por lo tanto mucho trabajo, celo y paciencia convertir a semejantes criaturas primero en auténticos hombres y luego en cristianos, y se logia sólo por la infinita gracia de Dios (KNOGLER, 1979, p. 15). Assim, pelo fato de viverem na selva, o missionário os considerava “silvanos”, selvagens e bárbaros, mais próximos dos animais ferozes do que de homens. Mas concluiu: sendo animais de Deus, têm alma e são cristianizáveis desde que sejam transformados, primeiro em “verdadeiros homens”, depois em cristãos. Apesar dos muitos defeitos, podem chegar a autênticos cristãos pelo esforço intenso, cotidiano e perseverante dos missionários e a graça de Deus. No imaginário dos missionários e dos índios, foi bastante significativo o número de sentidos que a expressão “monte” veiculava. Destacamos que, num primeiro significado, representava o espaço natural ou hábitat dos nativos em sua condição de vida em liberdade originária de nômades caçadores, coletores e pescadores, como apareceu na escrita dos missionários. Em outro, eram os lugares altos, procurados pelos nativos e missionários para construir aldeias ou reduções, para fugirem das inundações nestas terras baixas do oriente boliviano em solos agricultáveis, nas florestas tropicais. 163 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl Num terceiro significado, “montes” eram lugares sagrados de memória e de culto aos espíritos, deuses e antepassados indígenas, expressões do seu modo de ser e viver tradicional. Neste sentido, fugir para os montes não significava somente sair do convívio reducional, mas voltar ao antigo modo de ser e viver na liberdade originária em estado selvático. Os jesuítas consideram o “monte” o lugar da apostasia, da anti-redução, da oposição religiosa e da resistência cultural ao cristianismo e à civilização. Antídoto da conquista, colonização e redução, o “monte” foi refúgio dos índios que se sentiam perseguidos. Hoje também é terra da promissão, quando representado como a “loma santa” na tradição contemporânea do movimento messiânico indígena em Mojos. 2 Conversão e vida em redução Em oposição à vida nos montes e nas selvas, se produziram vários significados para a vida na redução que foram distintos para colonos europeus na América, missionários jesuítas e índios reduzidos (catecúmenos e batizados cristãos), gentios e apóstatas ou infiéis. Apresentaremos, a partir do relato do Pe. Knogler (1979), alguns dos significados atribuídos pelos jesuítas, e quiçá, pelos indígenas, à vida reducional. 2.1 “As caçadas espirituais” Constituídas as primeiras comunidades reducionais através das missões itinerantes às múltiplas aldeias e nações indígenas das terras baixas do atual território do oriente boliviano, a missão se consolidava com a participação dos neófitos na conquista e conversão de novas tribos, parcialidades ou parentes. Começamos analisando o processo que Pe. Knogler denominou de “caçadas espirituais”. Realizamos una especie de caza espiritual cuando seguimos las huellas de esta gente y la perseguimos, usando múltiples recursos que Dios nos encomienda, hasta que se rinde y puede ser domesticada y convertida en buenos cristianos (KNOGLER, 1979, p. 1). Os termos usados denunciam a sua compreensão da tarefa de trazer novos gentios aos povoados reducionais já constituídos. Afirmando que “seguimos as pegadas desta gente e a perseguimos”, traça semelhança com o caçador que segue sua presa e a persegue “até que 164 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos se renda”. Aquela gente deveria abandonar sua vida selvagem para “ser domesticada” e transformada em “autênticos homens” e “bons cristãos”, ou seja, convertida à fé cristã como membros estáveis de uma comunidade reducional. Ao lembrar, nesta literatura edificante, os belos exemplos de neófitos, sentia-se consolado, edificado e animado a continuar a missão. Estimular, animar e edificar constituíam objetivos pedagógicos dos escritos edificantes impostos pelas Constituições, aos membros da Companhia de Jesus. Debo decir que es un verdadero consuelo para un buen cristiano ver en medio de esta jungla india a una distancia de cuatro o cinco horas de camino en un trayecto de aproximadamente cincuenta o cien millas el saludable signo de nuestra redención. Nos inspira valor y ánimo de seguir valientemente, desafiando todas las penas y peligros para llegar a la meta (KNOGLER, 1979, p. 23). Assim, fortalecido e animado pelo exemplo dos neófitos, o missionário guiava a expedição a bom termo. Relatou como procediam quando a expedição encontrava índios pagãos: (…) Ya a una distancia de dos jornadas del presumible paradero de los bárbaros formamos un círculo para cercar a los infieles y evitar que escapen, pero [163] de ningún modo para llevarlos a la fuerza sino solamente con el fin de poder hablarles y explicarles por qué hemos ido a verlos. Cuando se trata de esta última tarea, le toca al misionero tomar la iniciativa, demostrando a la comitiva cómo hay que proceder en esta obra sublime y sagrada. Los infieles se mantienen quietos siempre que comprendan que no pueden huir y que su número no es suficiente para resistir. El misionero debe probar toda clase de idiomas indios hasta que se da cuenta de que los bárbaros entienden uno de ellos. Entonces les manifiesta de inmediato que ha venido para invitarlos que lo sigan a su pueblo donde gozarán de una vida feliz y tranquila, no tendrán que temer más a sus enemigos y dispondrán de los medios de subsistencia sin tener que esforzarse excesivamente para obtenerlos, corriendo de un lado a otro con riesgo de su vida. Todo lo que el misionero les podría decir de Dios y del alma les parecería extraño, pero las promesas materiales los impresionan. A veces se entregan y van con nosotros, pero muchas veces no quiere hacerlo por amor a la libertad y por apego al modo de vivir habitual. En este caso volvemos a hacer un año más tarde la misma expedición para ganar finalmente sus corazones (KNOGLER, 1979, p. 24). 165 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl Conduzir a caçada espiritual não era tarefa fácil e sem riscos. Exigia habilidades do missionário em estratégias de guerra, como cercar os gentios para que não tivessem condições de reagir e fugir. Feito o cerco, entraria em ação o jesuíta com sua arte retórica e o conhecimento lingüístico. Precisava convencê-los de que tinham vindo em paz, para visitá-los e convidá-los a fazerem parte da redução. Reduzidos, “gozariam de uma vida feliz e tranqüila”, não necessitando mais “temer aos seus inimigos”, e podendo subsistir sem os muitos esforços e riscos que havia nas florestas. Este fragmento indica que considera a vida civilizada na redução superior à vida livre e despreocupada de caçadores e pescadores nômades nas florestas. Sabia que “promessas materiais os impressionam”, enquanto que a pregação teológica abstrata sobre “Deus e a alma lhes pareceria estranha”. Desconheceria o missionário a força da religião nestes povos? Antes, desconsiderou que tinham religião, bem diferente do Pe. Juan Patrício Hernandes (1726), que em seu relato representou os índios, visitados pelo Pe. Lucas Caballero, como praticantes de cultos demoníacos, que tinham seus feiticeiros e lugares de culto bem identificados. Achava que eram mais interessados em bens materiais, úteis e palpáveis do que numa teologia abstrata da salvação da alma. As vezes que, nos relatos dos cronistas, os índios buscaram as reduções não parece que foram com a intenção de se converter, mas de se apropriar de novos recursos e poderes, por terem “amor à liberdade” e forte “apego ao modo de viver habitual”. Percebe-se que há uma oposição e resistência entre o “modo de viver habitual” em liberdade nos montes e a liberdade, felicidade, segurança, proteção e facilidade que o missionário lhes promete, caso sigam à redução. “Às vezes se entregam e vão conosco”, outras vezes não aceitavam o convite, daí a necessidade de retornos futuros. Quase sempre convenciam alguns representantes do grupo para visitarem a redução e experimentarem o novo modo de vida para depois se transformarem em mensageiros e porta-vozes para convencer os demais a aderirem. Isto aparece no fragmento que segue: El siguiente método dio buen resultado les proponemos que, por lo menos, permitan que algunos integrantes de su tribu nos acompañen para que visiten nuestro pueblo y conozcan la vida en una comunidad bien organizada. Nosotros tratamos a estos huéspedes con cariño tanto duran- 166 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos te el viaje como en la reducción, los alimentamos bien y les regalamos camisas como las que llevan los indios, un hacha, un cuchillo y anzuelos; finalmente vuelven contentos a su tribu y después los otros se trasladan con ellos a nuestra reducción por su propia iniciativa y nos siguen en nuestra próxima expedición (…) (KNOGLER, 1979, p. 24). No esforço de atraírem novos catecúmenos, a mediação indígena foi importante e não podia ser exercida somente pelo missionário. O método de inserção na redução de alguns índios visava fazê-los experimentar o modo de “vida em uma comunidade bem organizada”. Nestas comunidades, eram vestidos e presenteados com instrumentos de metal desconhecidos nas suas tribos. Tratados com carinho, os hóspedes depois de um tempo voltavam aos seus parentes e se encarregavam de trazê-los ao convívio reducional. Interessante observar que, novamente, ressalta que os atrativos que funcionam como elementos de sedução são materiais e símbolos da cultura, e não os elementos que o missionário considera religiosos. Tratava-se de um processo de negociação entre índios cristãos e missionários de um lado na expedição e na redução e, do outro, índios dos montes com seus interesses, que aceitavam visitar a redução onde experimentavam a hospedagem e recebiam presentes prestigiosos, que serviam para conduzi-los à redução. Os indígenas intermediários, negociadores de acordos, assumiam posições de relevo na nova comunidade, e Knogler os considerava membros das próximas expedições. A missão neste sentido não foi somente obra dos missionários jesuítas, mas deve-se imputar expressiva importância aos próprios índios cristãos que assumiam funções diversas na conversão como guias, seguranças, carregadores, negociadores e “linguarás”1. 2.2 Índios na conversão de índios Nas reduções, os neófitos acolhiam os iniciantes, ensinandolhes a língua e os novos costumes, repetindo-lhes sermões, dandolhes o exemplo de como comportar-se nas novas casas, nas ruas, na praça, na igreja, mostrando-se satisfeitos nos trabalhos, nas festas, nas liturgias, assumindo funções de governo com sinais de distinção, exer- 1 Trata-se de índios que atuavam como tradutores ou intérpretes entre o missionário e as autoridades indígenas. 167 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl cendo novos ofícios que os distinguiam e serviam para reforçar seu prestígio, os acordos e os elos entre os já convertidos e os “índios pagãos”. Já anotamos que, antes da conversão, Knogler considerava necessário transformá-los em “autênticos homens” que não eram enquanto viviam nos montes. Havia, porém, outras necessidades para converterem os pagãos: Para humanizar a estas criaturas y para acostumbrarlas a una vida civilizada en común y a una conducta disciplinada, hay que construir casas donde vivan constantemente, en una zona que les ofrezca lo necesario para el sustento de la vida, y hay que enseñarles los trabajos necesarios para mantenerse; de este modo se les quita la costumbre de andar vagando (KNOGLER, 1979, p. 16). Fundamentalmente, “humanizar” e acostumar os índios a “uma vida civilizada” consistiria em acabar com o “costume de andar vagando”, e isto se fazia ao “construir casas” como residências permanentes para a vida comunitária e disciplinada nas reduções em lugares que possibilitassem, com a educação para o trabalho, o necessário ao “sustento da vida” de todos os membros da comunidade. Não era tarefa fácil para os missionários, considerando as características culturais, políticas e sociais dos nativos. Es sumamente difícil acostumbrar a esta gente de lenguas diferentes, de mal genio, que no tiene casa, vestimenta o domicilio estable, que no conoce subordinación, disciplina o la costumbre de trabajar, sino que vive libremente y a su gusto, al orden de nuestras misiones, a una vida en común y a una organización comunal; pues en una reducción viven dos, tres y hasta cuatro mil indios juntos y esta convivencia es algo completamente nuevo para ellos y parece contraria a su naturaleza, así que se puede establecer únicamente con la ayuda de Dios (KNOGLER, 1979, p. 15). Em Chiquitos, os jesuítas reuniam nas reduções povos culturalmente muito diferentes, porém em Knogler aparecem como se todos tivessem os mesmos costumes e as mesmas práticas de vida em aldeias provisórias de caçadores e pescadores de poucas famílias aparentadas sob a liderança de um cacique ao qual não se achavam subordinados, vivendo livres e despreocupados. Outras fontes contemporâneas indicam que nem todos eram apenas caçadores, pescadores e coletores, mas já havia os que praticavam uma agricultura de coivara a qual ele não fez nenhuma referência, generalizando no relato. 168 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos O missionário reconhecia que reduzi-los era uma intervenção profunda no modo de viver na selva, para chegarem a viver juntos uma experiência radicalmente nova, de forma organizada (política) em comunidades (urbanas) de 2, 3 ou 4 mil, e que parecia a ele, contrária à natureza destes índios. Achava que isto só se conseguia com o constante e perseverante trabalho do missionário e da “ajuda de Deus”. Na perspectiva deste jesuíta, tratava-se também de ensiná-los a ganharem seus alimentos pelo trabalho duro e cotidiano do cultivo de roças de milho, mandioca, bananas e outras plantas exóticas introduzidas pelo gênio missionário. A natureza que foi generosa lhe pareceu uma adaptação de Deus que favoreceu a natureza preguiçosa dos índios, dando-lhes em abundância e sem sacrifícios para a coleta. Foram poupados do sofrimento causado pelo trabalho, em conseqüência do pecado de Adão? O missionário concluiu que os índios tinham natural aversão ao trabalho e eram imediatistas. No es fácil alimentarlos, pues no están acostumbrados a trabajar regularmente en el campo, (…) Para que se hagan sedentarios y aprendan con el tiempo la doctrina cristiana, el trabajo en el campo o un oficio, conviene ante todo hacerlos sembrar maíz. (…), se cultiva también la yuca o mandioca que es una raíz muy nutritiva (…). El maíz y la mandioca son los principales alimentos de los indios en las misiones; no hay pan de centeno o trigo y tampoco vino, cerveza o aguardiente. (…) Se plantan también plátanos, (…) En estas y en otras plantas parecidas la bondad divina parece adaptarse a la naturaleza de los indios quienes tienen una aversión al trabajo fatigoso y prefieren recolectar los frutos que necesitan sin ningún esfuerzo y en poco tiempo. A veces se planta también la caña de azúcar, pero (…) no la usan para producir azúcar (KNOGLER, 1979, p. 16). Assim, humanizar, cristianizar e civilizar significava para ele intervir em profundidade para mudar a lógica da vida dos nativos, criando estruturas urbanas, produzindo uma disciplina do trabalho voltado à produção do necessário para o sustento e a manutenção dos membros das comunidades como seres humanos autênticos. Organizando os índios na perspectiva de autoridade e de poder hierárquico, criaram normas disciplinares nas reduções para ordenar as relações entre as pessoas. Sendo os missionários os mediadores nesta transição, se opõem aos poderes tradicionais ou disputam com eles o reconhecimento, dando o exemplo em tudo e ensinando, pela demonstração, as novas habilidades necessárias à “ordem de nossas missões”. 169 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl 2.3 A mediação jesuítica O “missionário faz tudo” e de tudo na redução para converter os índios bárbaros e selvagens em homens civilizados e cristãos. No nos valemos de la fuerza, no necesitamos soldados o alguaciles, todo lo hace el misionero: él es el arquitecto, el maestro de todos los oficios y artes mecánicas, instruye al herrero, al carpintero, al tejedor, al sastre, al zapatero y a su propio cocinero que es [147] muchas veces un inválido que no sirve para el trabajo en el campo o el monte (KNOGLER, 1979, p. 15). O missionário, não podendo contar com a proteção militar na sua relação com os índios que pretendia retirar dos montes e introduzir na vida reducional, tornou-se “pau para toda obra”. Tudo era novo para os neófitos reunidos nos povoados, e precisava ser ensinado, por isso o jesuíta era “mestre em todos os ofícios e artes mecânicas” para o que acreditava poder contar com “a ajuda daquele que nos manda pregar o evangelho a esta gente” para vencer os obstáculos. Os ofícios citados eram conhecidos pelos seus leitores europeus, mas alguns deles eram estranhos para os índios reduzidos. Indicava aos leitores e futuros missionários que converter os índios demandava muitos conhecimentos e diversas habilidades. Na pregação, ressaltou o respeito à pessoa e à sua “alma imortal”, assim como à alma dos outros nativos, mesmo que fossem seus inimigos. Deveriam, pois, contribuir para “a salvação” de todos, de acordo com a noção de que o “homem é a criatura mais perfeita”. Assim, os índios batizados, tidos como convertidos, assumiam paulatinamente funções nas comunidades reducionais e se tornavam auxiliares das funções missionárias. Los primeros que se convierten a la fe católica son instruidos con ahinco acerca del valor inestimable que el hombre tiene a causa de su alma inmortal. Deben saber que el hombre es la criatura más perfecta, muy por encima de todas las otras, para que tengan mucho aprecio por ellos mismos y por los otros y se sientan estimulados a contribuir a la salvación de aquellos que viven todavía en las selvas (KNOGLER, 1979, p. 23). Os primeiros índios convertidos tornavam-se, assim, responsáveis pela conquista espiritual dos que continuam nas selvas e integravam as expedições organizadas e conduzidas pelos jesuítas em suas incursões pelas matas e pelos montes. Consideravam a expedição bemsucedida quando encontravam “índios pagãos”, como os denominou no trecho a seguir. 170 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Si en nuestros viajes encontramos lo que buscamos, es decir, indios paganos, nos sentimos pagados con creces por todos los trabajos y penas y volvemos contentos con ellos a nuestra reducción. En el camino deben ser provistos de los alimentos necesarios y tratados amistosa y cariñosamente, pero, al mismo tiempo, custodiados cuidadosamente para que no vuelvan a su paradero anterior o provoquen un tumulto entre la escolta. Cuando nos acercamos al pueblo nuestros indios les traen la vestimenta necesaria para cubrir su desnudez. Entonces toda la población, cristianos e infieles recién llegados, hace su entrada triunfal a la iglesia donde se canta el Te Deum en agradecimiento por el éxito de la expedición misionera (KNOGLER, 1979, p. 26). Os jesuítas foram hábeis na construção de imagens e cenários impactantes para seus hóspedes, visitantes ou membros iniciantes das comunidades. Os cuidados no caminho de volta à redução com os índios “caçados”, verdadeiros troféus que compensavam riscos e canseiras, precisavam de alimentos, carinho e amizade, mas também de controle para que não fugissem ou se rebelassem. O relato do retorno da expedição remete à semelhança entre as crônicas de prisioneiros de guerra, entre índios diversos, em que o valor do prisioneiro dependia da sua valentia e resistência, aumentando o prestígio de quem o capturou. Chegando nas proximidades da redução, os índios capturados começavam a ser despojados de suas identidades, sendo transformados. O processo iniciava com a imposição das “vestes”, signo da civilização e da redução, para “cobrir sua nudez” natural e cultural. Assim igualados, “cristãos” e “infiéis” entravam triunfalmente na Igreja para agradecer o sucesso da “expedição missionária”. Este espetáculo marcante fazia parte da estratégia pedagógica da conversão, reforçando compromissos entre os neófitos e tornando sensíveis ao ensino os novos catecúmenos. Subjaz a esta prática missionária uma teoria do conhecimento e da aprendizagem que considerava o aprendizado indígena um processo de abstração racional que inicia pelo contato sensitivo e emocional com as realidades materiais dos novos signos culturais (roupas, instrumentos de metal, alimentos, remédios, adereços, oratória, etc.) e religiosos (procissões, festas, missas, e outros sacramentos, curas mágicas) que experimentadas remeteriam a um processo de construção abstrata dos sentidos intencionados pelos missionários para a transformação e conversão dos índios. 171 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl Apesar de relativamente incapazes, reconheceu a capacidade universal dos povos de acesso ao “Deus verdadeiro”, afirmada para os chiquitanos no fragmento que segue. Así se puede explicarles paulatinamente y en la medida de sus facultades intelectuales la esencia del único Dios verdadero de cuyo apoyo tenemos tanta necesidad. (…) Dios se dirige al hombre de distinto modo y se da a conocer también por el trueno (…) (p. 26). A pesar de que estos indios no tienen un conocimiento verdadero de Dios, no se puede negar lo que los teólogos dicen: que también la gente salvaje y brutal conoce pudor y tiene vergüenza de cometer públicamente o sin testigos una mala acción, porque la conciencia les reprocha la iniquidad del hecho (…) (KNOGLER, 1979, p. 27). Retomando uma perspectiva da patrística cristã dos primeiros séculos do cristianismo, considerava que os índios, mesmo selvagens e brutos, dispunham de um conhecimento difuso de Deus observável em atitudes moralmente consideradas más ou reprováveis, já que “Deus se dirige ao homem de distintos modos, dando-se a conhecer” até através dos fenômenos naturais e cósmicos. Considerava que entre os índios existiam muitas diferenças no conhecimento de Deus e da prática moral, sendo umas nações mais disponíveis e outras mais resistentes à conversão por estarem mais entranhadas nos vícios: Hay entre los indios ciertas naciones que faltan más a menudo y de manera más malignas que otras a las inspiraciones de la conciencia propia e infringen los principios que la naturaleza nos inculcó, cometiendo por ejemplo asesinatos y otros crímenes graves que también a la luz de la razón resultan delitos atroces. Y estas naciones oponen también mayor resistencia a las tentativas de convertirlas por medio de la enseñanza religiosa y se abren más tarde a la luz de la fe que otros pueblos menos deslumbrados por sus vicios (KNOGLER, 1979, p. 27). Apesar de reconhecer diferenças de comportamentos e de disposição entre os índios para a conversão, pareceu generalizar as incapacidades práticas para compreenderem os ensinamentos filosóficoteológicos expostos nos sermões ou nas catequeses missionárias: A causa de su modo desordenado y bárbaro de vivir y del estado salvaje que acabamos de describir, esta gente no es capaz, por lo menos al comienzo de una enseñanza religiosa, de comprender un razonamiento. Debemos buscar otro método de implantarles el conocimiento, la adoración y el temor de Dios, (...) hacer uso de cosas exteriores que salten a la vista, 172 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos que halaguen su oído y que se puedan tocar con las manos, hasta que su mente se desarrolle en este sentido. Por esto tratamos de que tengan, en su remoto país de naturaleza salvaje, lo mismo que hay en el mundo más civilizado: ante todo esta casa prodigiosa en la cual nos reunimos y donde podemos conseguir todo lo que necesitamos si lo pedimos al dueño de la casa, es decir, a Dios. Hemos logrado este objetivo y las iglesias que construimos en los pueblos de nuestros indios son tan hermosas que quedarían bien en cualquier país europeo. El culto divino en estas iglesias decentemente adornadas se celebra dignamente en cuanto a su aspecto externo e interno, (…) (KNOGLER, 1979, p. 28). A introdução do pensamento “cristão” e “civilizado” passava pela exposição sistemática dos índios à convivência e manejo cotidiano e onipresente dos seus signos. (…) hacemos cuanto esté a nuestro alcance para que la casa de Dios sea vistosa y respetable, no en razón de su suntuosidad extraordinaria, sino gracias a estatuas bien trabajadas y bonitas, la pintura de las paredes y otros elementos [172] que podemos reunir en nuestro ambiente y que surten efecto en la gente (KNOGLER, 1979, p. 29). Considerados incapazes de compreenderem, no começo, os raciocínios da lógica e da teologia cristã por seu “estado selvagem”, aprenderiam quando se implantasse “o conhecimento, a adoração e o temor de Deus” por “coisas exteriores” que impressionassem a vista, os ouvidos e as mãos até que sua “mente se desenvolva”. O missionário se defrontava com os problemas da tradução dos sentidos e dos significados culturais, mas julgava estar diante de gente incapaz de compreender. O edifício da igreja e o culto, no conjunto dos signos da cristandade, assumiam, então, um lugar central na pedagogia jesuítica para conquistar os índios nas reduções, e, ao final, foram os aspectos que as tornavam parecidas ao mundo civilizado europeu. Inúmeros outros recursos eram utilizados para construir e representar o referencial cristão no imaginário dos índios reduzidos. Entre estes meios estavam as festas e os espetáculos teatrais que, ensaiados, eram apresentados, em certos momentos, para a edificação dos neófitos, uma vez que se entendia que isto causava boa impressão. Os jesuítas foram mestres nestas técnicas, como indica o relato: Además de estos medios de sustentar la moral cristiana entre los indios y de incitarlos a perfeccionarse, tenemos otros, por ejemplo representaciones teatrales en días de fiestas mayores, las cuales ofrecen una historia 173 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl edificante, interpretada por alumnos de la escuela, a los que preparamos especialmente para estos espectáculos (KNOGLER, 1979, p. 34). Ao incluírem os índios nas atividades, nos ensaios e nas encenações, formavam-nos para a vida comunitária e missionária, mostrando exemplos do que na nova lógica significava estar errado e em pecado e o que era considerado permitido e certo para ser seguido. Afinal não bastava conhecer as verdades da fé ou decorar o catecismo se não se transformassem em atitudes e testemunhos de vida cristã exemplar, como afirmava: Saber el catecismo de memoria no basta, hay que practicarlo en la vida pues las costumbres deben ser acordes con él; ningún verdadero cristiano debe vacilar en hacerlo. Nuestra fe católica necesita hombres enteros, sin miedo o vergüenza de ostentar costumbres cristianas delante de fieles e infieles (...) (KNOGLER, 1979, p. 35). Ensinados pelos missionários, estes índios convertidos eram exemplos de vida e foram auxiliares importantes para a manutenção da ordem cristã e a conversão de novos índios ainda gentios ou infiéis. Porém, este discurso também se dirige aos leitores cristãos europeus que se pretendiam missionários e exemplos de vida cristã, mas muitas vezes vacilavam. Assim, o objetivo das cartas edificantes se explicita mais como um diálogo espiritual com seus leitores do que uma descrição e análise fiel de uma realidade observada e dissecada. A missão entre os índios das Américas seria uma vocação para a solidão do sacerdócio, ao sacrifício do martírio como testemunho extremo de vida de quem na Europa fosse capaz de suportá-lo no exílio, distante da família e dos amigos. Quien opina que un sacerdote no puede vivir solo, lejos de su familia y sus amigos no se atreverá por supuesto a partir para estas regiones salvajes, tan apartadas de su tierra natal, y no se acomodará a esta vida. Y si viniera acá volvería pronto. Hace, por lo tanto, bien en quedarse en su casa, donde está bien mantenido y alimentado y tiene todas las comodidades (KNOGLER, 1979, p. 15). Pe. Knogler concluiu seu relato com uma afirmação que resume os significados que atribuía à atitude de deixar a terra natal e buscar a conversão dos infiéis. No hay manera más útil y fructífera de convertir a los infieles que ir a su país, confiando en Dios y el Evangelio, sin interés personal y sin miedo de molestias y peligros, dispuesto a aprender su idioma, a conocer su 174 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos carácter y sus costumbres de acuerdo con todo esto, a predicarles el Verbo Divino con mucho trabajo, amor y paciencia; así hemos llegado con la ayuda de Dios a convertir a los chiquitos. Los misioneros que trabajan en estos países tan apartados deben hablar como los indios. Pero esto no es, en el fondo, nada nuevo; el mundo cristiano ha tenido siempre esta costumbre: los apóstoles han predicado (KNOGLER, 1979, p. 31). Considera que, com muito amor, paciência e ajuda de Deus, os jesuítas conseguiram converter aos chiquitos. Mesmo não sendo novidade o que os jesuítas fizeram, achava que os missionários deviam viver entre os que queriam converter, aprender sua língua para falar como eles, conhecer seu caráter e costumes para lhes “pregar o Verbo Divino”, como agiram os apóstolos no começo e os jesuítas nas reduções. 2.4 Índios: negociando a conversão A adesão dos índios à vida reducional não significou o total abandono de seu modo de vida anterior e o esquecimento de todos os seus conhecimentos e práticas tradicionais. Nas negociações que estabeleciam com os missionários, barganhavam e preservavam inúmeros elementos de sua vida tradicional. No relato de Knogler e de inúmeros outros jesuítas do Paraguai, a questão da bebida fermentada e alcoólica torna-se recorrente como um costume arraigado que não foi erradicado. A propósito de esta costumbre no voy a dejar de referirme a su extraña bebida llamada chicha.(…) La consideran su mejor vino y, al mismo tiempo, una comida fuerte que mata el hambre junto con la sed porque contiene harina y agua. Es también su chocolate, su té y su café. Todo es tratado, arreglado y pagado con esta bebida, pues no hay otro dinero. Si una persona le hace un favor a otra y la ayuda en un trabajo en casa o en el campo, después de prestar el servicio se la recompensa con chicha, en vista de que no es posible remunerarla en efectivo por falta de moneda que no he visto nunca en este país (p. 16) (…) Esta bebida miserable nos ha tenido siempre preocupados y nos ha causado serios disgustos, puesto que enloquece a la gente, si se la deja fermentar ocho o más días. De este modo estallan querellas violentas, ya que la chicha les gusta a nuestros indios justamente si se ha hecho tan agria como vinagre. Los que la toman tienen entonces el cuerpo hinchado desde la cabeza hasta los pies. Ahora se les permite solamente hacerla fermentar tres días, en este caso no pierden el juicio, sino que se sienten únicamente alegres (KNOGLER, 1979, p. 17). 175 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl “O agora se lhes permite somente fazê-la fermentar por três dias” é o reconhecimento da continuidade do costume, negociado com os missionários. Tomichá (2002) refere-se ao caso em que índios procuraram o missionário pedindo-lhe a redução para se protegerem dos seus inimigos índios e mamelucos portugueses. Em troca, exigiram que o padre cura lhes permitisse continuarem consumindo a chicha. Esta bebida apreciada (miserável para o jesuíta) era alimento ritual, moeda de troca de serviços na minga (mutirão) e animava as muitas e longas festas tradicionais nas quais se embebedavam. Bebida bendita e abençoada dos chiquitanos nos montes, no relato do missionário tornou-se uma preocupação. “Esta bebida miserável” que enlouquece seus consumidores desencadeava disputas violentas e deixava seus corpos inchados da cabeça aos pés. Foi admitida nas reduções com uso e fermentação controlada de três dias, diminuindo o teor de álcool que apenas os deixasse alegres e não embriagados. O mesmo se poderia dizer da continuidade dos costumes de caçar, pescar e coletar, que não foram supressos na redução. A despeito da introdução dos cultivos agrícolas e o incentivo à criação de gado de diversos tipos, não os abandonaram. Para que no sean exterminados los animales en el monte y los peces en los arroyos de los alrededores de las reducciones hemos introducido la ganadería. Al principio importamos trescientas cabezas de ganado vacuno del Perú y las repartimos entre los pueblos, para que se reprodujeran en provecho de los indios. Nos costó no poco trabajo encontrar pastos para nuestro ganado, pues en este país no hay otra cosa que monte y poquísimos campos de pastoreo y no se conoce la cría del ganado vacuno. Después de largas búsquedas encontramos acá y allá algunos campos que podían servir de pastura o nosotros mismos los limpiamos con grandes dificultades, talando el monte y represando el agua, para que formara un estanque donde el agua se mantuviera también en la estación seca. En algunas reducciones el ganado aumentó considerablemente en pocos años, de acuerdo con la naturaleza del terreno y la calidad de los campos de pastoreo (KNOGLER, 1979, p. 17). Criado extensivamente, afirma que o gado cresce por obra da natureza, e não dos cuidados dos índios. Mais do que simplesmente introduzir uma nova atividade econômica, o que relata é uma transfiguração dos alimentos básicos cotidianos e principalmente das festas tradicionais em que se consumiam grandes quantidades de carne de 176 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos caça e pescados diversos, que, na sua obtenção e no preparo, exigiam a mobilização intensa e demorada de todos os membros do grupo. (…) entonces se eligen algunos animales que se llevan al pueblo para ser sacrificados en vísperas de una fiesta. La carne se distribuye entre los habitantes de modo que cada familia tenga un buen pedazo de regalo para el día de fiesta, en lugar de la caza y de los pescados que antes constituían su único alimento (KNOGLER, 1979, p. 17). A introdução do gado para substituir a carne que tradicionalmente procedia da caça, constituiu-se em um acréscimo no rol dos trabalhos cotidianos dos índios. Também transferiu o controle dos festejos, transsignificando práticas, uma vez que a carne não era só para o consumo do corpo, mas era também símbolo carregado de forças que alimentavam a tradição. Isto é, a novidade nas formas de criação do gado, abate e distribuição da carne obtida nas estâncias, implicava um novo modo de vida, fazendo desaparecer ou relativizando práticas e rituais antigos. As tradicionais contendas entre grupos e tribos de línguas diferentes, na disputa por recursos e territórios, causaram muitos conflitos nas reduções ao juntarem, às vezes, de forma imprudente, grupos ou parcialidades rivais e inimigas, sem levar em conta suas rixas e incompatibilidades tradicionais. No menos contrastantes [que la diversidad de lenguas] son los sentimientos de los unos hacia los otros, lo más frecuente es que se odian mutuamente, ninguna nación se fía de las otras (KNOGLER, 1979, p. 13). Estes sentimentos de inimizade que reinavam entre zamucos e ugaroños, que conviveram na redução de San Ignácio por mais de vinte anos, não se apagaram. Permaneceram latentes sob as cinzas de uma aparente paz e convivência amistosa, enquanto a correlação de forças lhes parecia equilibrada. No momento em que os zamucos sentiram-se ameaçados em 1745, instigaram a rebelião e retirada de um dos grupos ugaroños da redução, e eles mesmos fugiram com medo. Convidaram o Pe. Ignácio Chomé, cura da redução, a acompanhá-los, acusando seus inimigos de tramarem contra a vida do missionário e dos zamucos, como o próprio missionário relatou em carta daquele ano. A inconstância nas relações matrimoniais em sua vida nos “montes” foi outra observação anotada por Knogler. O padre percebeu certa continuidade deste costume em muitos casamentos que se desfaziam 177 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl nas reduções, entendendo-o como outro dos signos de inconversão e incivilidade dos índios. [144] En sus matrimonios no son constantes, mientras que son paganos; sus uniones conyugales no tienen siquiera la validez de convenios civiles. A pesar de que viven en pareja sucede a menudo que una parte abandona a la otra por razones fútiles, asociándose con otra persona (KNOGLER, 1979, p. 13). O missionário afirmava ser necessário conhecer os costumes e o modo de viver dos índios, saber falar sua língua, ter muito amor e paciência no trabalho de convertê-los. Não obstante, percebeu como fúteis os motivos que levavam ao fim de certas uniões conjugais, e como errados os novos casamentos que eram constituídos. Isto indica que enxergava e avaliava etnocentricamente a conduta do outro e lhe atribuiu um valor moral, que não tinha na cultura do chiquitano. Caso semelhante pode-se constatar quando falou do costume, mantido na redução, dos longos bailes com danças, que considerou cansativas ao som monótono de instrumentos musicais tradicionais, que eram muito apreciados pelos índios, e disse que os toleravam porque não viam neles inconvenientes. Os estudos mais detalhados destas práticas indicam que o olhar etnocêntrico do missionário certamente não compreendeu todos os significados veiculados pelos indígenas através desta prática festiva. Parece fatigoso bailar así, a gritos y con movimientos constantes del cuerpo, al ritmo de esta música monótona, sobre todo cuando hace mucho calor; (…) es una diversión para nuestros indios y nosotros la toleramos en vista de que no hay nada de perjudicial o reprobable en este pasatiempo. Pues si hubiera algún elemento de esta índole en aquella costumbre, no podría ser un verdadero y permanente placer, según los principios de un juicio recto (KNOGLER, 1979, p. 22-23). Passatempo ou diversão, que expressava “verdadeiro e permanente prazer”, não poderia conter “nada de prejudicial ou reprovável”, mas para os índios poderia veicular muitos outros sentidos tradicionais que o missionário não compreendia e não reconhecia. 3 Apropriação da redução pelos índios Na abertura do seu relato, Knogler sintetizou o que o leitor podia encontrar em outros relatos e nas reduções das quais ele falava como testemunha ocular. Constatam-se os progressos que a compa178 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos nhia fez ao longo de mais de setenta anos de atuação entre os chiquitos, ressaltando os últimos vinte que ele viveu nas missões em diversos povoados e funções: Quien haya leído al Señor Muratorio o al “Welt-Bott” mismo, [122] donde se habla de estos indios, se dará cuenta seguramente que mucho ha cambiado con el correr del tiempo Pues en el curso de los últimos veinte años el número de cristianos en nuestras misiones aumentó constantemente, gracias a la conversión de varias pequeñas tribus de infieles. En el año 1768 vivían en nuestras reducciones no menos de treinta y siete mil indios, veintidós mil bautizados y quince mil a punto de convertirse (KNOGLER, 1979, p. 1). O número de convertidos cresceu continuamente. Ele afirmou que em 1768 viviam 37 000 índios nas dez reduções de Chiquitos, e, destes, 15 000 ainda eram catecúmenos que estavam se preparando para receber o batismo. Estes números variavam muito por diversos fatores que desestabilizavam a população nas reduções. Os dados quantitativos, no entanto, somente falam da grandeza do fenômeno missional, mas dizem pouco da sua qualidade. O mais importante seria mostrar a forma como os índios viviam o seu cristianismo. La parte más importante de mi relato es, sin duda, la que se refiere al cristianismo de nuestros indios. Pues la meta y el fin de nuestros viajes a países tan remotos y tan poco hospitalarios es la promulgación de la doctrina cristiana a estos salvajes, para que encuentren el camino que lleva a la eterna salvación. Todo lo otro sirve solamente para facilitar esta tarea (KNOGLER, 1979, p. 23). Importava mostrar o segredo de tanto sucesso na promoção da doutrina cristã entre índios tão selvagens, brutos e pouco capazes para aprender, a não ser através da mediação de muitos elementos materiais e simbólicos que falassem intensamente aos sentidos e às emoções. Ou seja, era mais importante apelar a estas do que à razão. A agricultura já era praticada por algumas das tribos Aruak e outras incluídas nas reduções de chiquitos, pois cronistas como Schmidel (1538), Cabeza de Vaca (1546), Pe. Francisco Burgés (1703) e Pe. Juan Patricio Fernandes (1726) mencionaram ricos banquetes em que ofereciam aos espanhóis diversos produtos cultivados e carnes de caça e pesca. Porém, a agricultura e a criação de gado bovino prosperaram com dificuldades em outros grupos nas reduções. Só conseguiram, ao longo das décadas, garantir alimento suficiente para sustentar a vida 179 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl de populações numerosas sedentarizadas, sempre complementado nas reduções com a caça e a pesca. Sin embargo, aprendieron a cultivar la tierra, que es poco fértil, pero produce, al menos, una clase de cereales en cantidad suficiente para alimentarlos. Como sabemos por experiencia, sólo el maíz se da bien en esta tierra pues el suelo no es apropiado para el cultivo de otros cereales europeos (KNOGLER, 1979, p. 5). Nas reduções, parece que os índios e missionários alcançaram algum sucesso nos cultivos nativos, mas fracassaram nas tentativas de introduzirem cereais e frutíferas européias por causa do tipo de solos e do clima. Assim, o limite alimentar estava sempre bem próximo do desequilíbrio, e teria sido crônico se os missionários não tivessem introduzidos o sistema de armazenamento de parte da produção, tida como comunitária, que era redistribuída em períodos de carestia, em festas ou quando recebiam muitos hóspedes abrigados nas casas das famílias dos neófitos. Nas reduções, avançou o aprendizado dos ofícios, mas o jesuíta achava que não eram muito artísticos e originais nos seus artefatos, e os faziam fora das normas dos grêmios europeus. Foram artefatos úteis, na falta de outros. O ferro que vinha de Potosi era transformado em inúmeros instrumentos: El herrero indio educado en nuestra escuela de artes y oficios fabrica con este hierro sus hachas (…) formones, cepillos de carpintero, sierras y anzuelos, (…) (KNOGLER, 1979, p. 18). Algo semelhante ocorria com os carpinteiros, marceneiros, alfaiates, escultores, pintores, açougueiros, etc., que se qualificaram e se tornaram mestres de ofícios que inicialmente os próprios padres haviam ensinado aos aprendizes que com eles trabalhavam. O amplo conjunto de transformações que a catequese e a missão produziram nos índios, considerados tábula rasa, inscreveu-os na humanidade e criou uma cristandade civilizada que, na afirmação do Pe. Knogler, rivalizava, em muitos aspectos, com a européia. Na opinião dele, o modo reducional de vida dos índios seria o inverso do que fora viver no monte. Não havia abundância de alimentos e riquezas materiais, pois apenas dispunham o necessário para o sustento em ambas as situações, mas nas reduções modificou-se o modo de vestir, morar, trabalhar e conviver com outros em paz. Así viven ahora los indios, en condiciones muy diferentes de las que reinaban antes. Disponen de todo lo necesario para el sustento de la vida, 180 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos no andan más desnudos sino que tienen vestimentas diferentes, viven en casas, bajo un gobierno que los obliga a trabajar, no corren más de acá para allá a través del [153] Monte; el país se pacifica paulatinamente, lo que parece un milagro divino en vista de la mezcla de tantas naciones de diferente mentalidad y distintos idiomas (KNOGLER, 1979, p. 19). Tornaram-se humanos! Relata o inverso do ocorrido na torre de Babel com o milagre da pacificação de povos de culturas e idiomas tão diferentes no espaço reducional. Knogler considera o entendimento de línguas e a pacificação de povos diferentes como o novo pentecostes. As mudanças na conversão dos indígenas só se podiam fazer de modo muito simples e escasso. Alertamos, no entanto, que não se pode desconsiderar a força de sedução que as novas tecnologias, instrumentos de metal, tecidos novos, etc., exerceram no imaginário indígena, pelo seu valor simbólico. Motivos terrenales no los pueden estimular a una convivencia pacífica, pues ningún pueblo puede esperar algo de otro, ni prestigio mayor ni más riqueza, sino que todos son iguales, naciones e individuos, el cacique más noble no aventaja al indio más humilde en vestido, vivienda y enseres domésticos. Ninguno tiene cosas que lo diferencien de los demás, todos poseen arcos y flechas, ahora también hachas, cuchillos, eslabones, anzuelos, agujas y palas de madera para el trabajo, pero nadie tiene un centavo en todo el país. Estos pocos objetos son toda su riqueza y todo lo que un joven necesita para casarse. Las jóvenes no necesitan otro ajuar que los collares arriba mencionados. Una tijera de mediana calidad es ahora tal vez la pieza más preciosa y más rara de sus enseres domésticos. La necesitan para sus trabajos de sastrería y para cortarles el cabello a los chicos; con tal fin antes usaban dos conchas rotas que juntaban y que servían tan bien como dos pedazos de vidrio para cortar el pelo puesto en el medio (KNOGLER, 1979, p. 19). O desejo de ter acesso a estes novos objetos, produtores de distinções e novos símbolos de poder em comunidades multiétnicas, não pode ser minimizado como o missionário fez no seu relato. Trata-se de literatura edificante que aplainava o caminho eliminando tensões, expurgava conflitos do texto, para estímulo dos leitores, mas certamente não conseguiu apagá-los da realidade. As rixas, advindas da mistura de grupos, nações e línguas diferentes na mesma redução, não se apagaram. Novas hierarquias se afirmavam entre beneficiários de cargos nos cabildos, ou entre aqueles 181 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl que ascendiam a outras funções e ofícios, originais para os índios, e importantes para o funcionamento da redução. Em termos econômicos, a situação de todos os reduzidos era remediada, tendo acesso aos instrumentos de ferro muito cobiçados, e a vida certamente fruía na simplicidade sem esbanjamentos e sobras, a não ser no culto divino. Uma fonte de poder e de tensão que os jesuítas enfrentaram desde o começo, e que ao longo do período não parece ter sido superada em sua totalidade, foram as práticas xamânicas tradicionais. Falou do ofício dos curandeiros como se estes tentassem enganar índios ingênuos que desconheciam as causas das doenças. Colocariam na boca pedrinhas, pedaços de madeira ou outros objetos antes de chuparem feridas dos enfermos, das quais diziam extraí-las: Entre los indígenas gozaban de gran autoridad pues estos bárbaros tontos [155] creían que una persona que fuera capaz de sacar tales objetos del cuerpo del enfermo también podía hacerlos entrar por medio de su arte, enfermando de este modo a un hombre sano. Por eso respetaban profundamente a tales embusteros y los incitaban así a realizar muchos otros disparates aún más groseros que estos. Nos ha costado varios años suprimir del todo estas malas costumbres y cuando la gente no se dejaba convencer por exhortaciones, teníamos que castigar a los desobedientes. En su afán de hacerse curar, se valían de cualquier subterfugio especialmente porque desconocían las verdaderas razones de sus enfermedades (KNOGLER, 1979, p. 19). Temidos pela sua magia poderosa para curar ou para produzir a doença no homem sadio, eram muito procurados pelos nativos mesmo nas reduções, apesar do combate que os missionários faziam com exortações e castigos que infligiam por causa destas “práticas demoníacas”. Chama aos índios de “tontos” que apelavam aos curandeiros, que denominou “embusteiros”, porque exploravam seu povo que desconhecia as verdadeiras razões das suas enfermidades. No momento em que os missionários assumiam com sucesso os poderes de curandeiros, o combate se tornava mais eficiente e fácil. Na redução, as funções propriamente religiosas exercidas pelo jesuíta, como a “cura das almas”, se complementava com outras, por exemplo, no cuidado dos doentes e até mesmo empregando ex-curandeiros batizados como enfermeiros. Knogler falou de dois auxiliares fundamentais, na mediação exercida pelos jesuítas nas reduções, que tornaram as resistências e opo- 182 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos sições menos eficientes e ativas ou visíveis nas comunidades multiétnicas das reduções. O primeiro ator que ele lembrou foram os jovens eleitos entre os mais capazes para aprenderem a ler e escrever para exercerem funções de leitores nas liturgias, nas leituras espirituais, no ensino da catequese, na escrituração da contabilidade, nos registros das oficinas, na elaboração das correspondências e atas dos cabildos, etc. Estes aprendizes ficavam aos cuidados de um professor índio capaz de lhes ensinar a escrita e leitura das línguas chiquitana e espanhola e a leitura ou recitação de orações em latim. Assumiam importantes funções que ele descreveu assim: Los que cumplen con esta condición, tienen la importante función de reemplazar a los tipógrafos, copiando libros que necesitamos con urgencia, como catecismos, misales, calendarios y piezas de música (KNOGLER, 1979, p. 21). O segundo ator que ele ressaltou em termos de importância para manter a disciplina e a boa ordem nas reduções complementando a mediação dos missionários eram os caciques. Assim relatou a prática da manutenção ou promoção do poder e prestígio deles em benefício da convivência cristã e civilizada: En las misiones les damos todavía mayor prestigio otorgándoles un traje de ceremonia que guardamos en la sacristía para que se lo pongan en las fiestas mayores; tienen además un asiento más alto en la iglesia y, en todas las reuniones, llevan en la mano un bastón al que aprecian mucho. Como ellos no pueden contar con un pago u otra remuneración material hubo que pensar en otros medios que pudieran incitarlos a ejercer un cargo. Las distinciones que reciben de nosotros parecen bagatelas similares a los premios que los alumnos reciben en una escuela por su buena conducta; pero han servido siempre muy bien para fomentar las buenas costumbres en los pueblos de nuestros indios. Pues cuando los mayores y los que gozan de mucho prestigio se portan bien, arrastran también a su gente, en parte por su ejemplo, en parte por sus órdenes expresas y reiteradas exhortaciones. En una palabra, [los caciques] ayudan al misionero eficazmente a mantener la disciplina y fomentar las costumbres cristianas, de modo tal que la gente de su tribu se somete incluso a un castigo cuando incurrió en una falta. Es evidente que sin disciplina no se puede vivir en una comunidad, pero hemos tenido que proceder con suma cautela para introducirla en nuestros pueblos, en vista de que nuestros indios, durante toda su vida, han hecho lo que se les daba la gana, no han tomado en consideración ninguna exhortación y no se han dejado reprimir o intimidar por 183 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl castigos, cuanto menos por penas corporales. Mas todo es posible con la ayuda de Dios (KNOGLER, 1979, p. 33). O tratamento respeitoso dispensado pelos jesuítas aos caciques e às lideranças indígenas não era uma concessão gratuita, mas fruto de negociações intensas que interessavam às lideranças indígenas empenhadas. A nova situação não só manteve o seu prestígio, como o ampliava na mediação em relação aos membros de suas parcialidades, os missionários, espanhóis e até frente aos índios seus inimigos históricos. Desprestigiá-los seria um equívoco perigoso. Aconteceu em San Ignácio de Zamucos quando o cura Pe. Ignácio Chomé estava fora da redução em expedição ao Chaco. Seu auxiliar, o Pe. Bandiera, querendo tratar a todos os índios como iguais, presenteou-os de forma que deixou de distinguir a um dos principais, conforme era tradição na cultura indígena. Este fato inclusive levou o cacique a se rebelar, e Bandiera só não foi assassinado porque o Pe. Chomé retornou em tempo para contornar a situação. 4 Considerações finais Apresentamos algumas imagens representativas sobre os índios, os missionários e a redução em vista da constituição de uma sociedade cristã e civilizada na América do Sul colonial, a partir do escrito de um missionário jesuíta que atuou no século XVIII na conversão de índios em reduções na “Chiquitania”. Os jesuítas consideravam as reduções como espaço de domínio de Deus sobre as forças do pecado, do inferno e os representantes do demônio, inserindo-o no território da cristandade com a defesa da liberdade dos índios diante dos colonos espanhóis e mamelucos portugueses que os queriam como seus escravos. As reduções eram territórios cristãos e da civilização nas fronteiras dos impérios espanhol e português nas Américas. Os índios representavam a redução diversamente, muito de acordo com sua relação de inserção, exclusão ou oposição ao sistema. Os ameaçados pela escravidão a reconheciam como espaço de proteção, de liberdade e de salvação, a defendiam e buscavam trazer outros parentes a ela; para os que dela fugiam instigados pelos xamãs (feiticeiros ou curandeiros), tratava-se do lugar da perda da liberdade, da subjugação cultural e motivo de castigos e desgraças por abandonarem o modo de viver de seus antepassados. 184 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos O relato do Pe. Knogler, de 1769, em parte reproduz outros relatos anteriores de companheiros da companhia que estiveram relacionados com as reduções e os índios chiquitos, mas também apresenta algumas diferenças que se podem atribuir ao gênero literário edificante, a longa experiência missionária entre os chiquitos e ao tempo conjuntural de seu relato. A maioria dos relatos parece ter uma fonte de referência comum que combinada com outras informações e experiências produz as diferenças nos acentos e detalhes ressaltados. O memorial do Pe. Francisco Burgés, de 1703, foi escrito na Europa quando ele era o Procurador das missões jesuíticas da Província do Paraguai, assim como fizera Antônio Ruiz de Montoya em 1639. Naquela ocasião, Montoya estivera encarregado de defender, diante do Conselho das Índias e diante do Geral da Companhia, os interesses das reduções contra o avanço dos mamelucos portugueses. Burgés defende a isenção por vinte anos dos tributos exigidos pela coroa aos Chiquitanos, recém-reduzidos e convertidos, como forma de incentivo à sua consolidação e ao seu desenvolvimento para garantia da defesa da fronteira espanhola frente aos constantes ataques e avanços dos portugueses na direção de Santa Cruz de la Sierra e das minas de Potosi. O relato ressaltou os serviços militares prestados pelos índios guaranis e chiquitanos ao longo do século XVII e início do XVIII, exagerando a utilidade dos serviços dos neófitos à coroa e às autoridades metropolitanas na colônia. O Pe. Juan Patrício Fernandez, como visitador do Provincial nas missões, escreveu uma “relação historial” (1723) que foi publicada na Espanha em 1726, como uma narrativa de um superior a outro. Entretanto, esta iniciativa queria, também, contribuir para a exaltação do sucesso da empresa missionária diante dos reis e da sociedade espanhola e européia. Pretendia-se, assim, contribuir para que se mantivessem o apoio às aspirações e ao projeto da Companhia. Seu relato se torna um cântico de louvação aos heróicos companheiros da Companhia que lutaram com todas as energias contra as forças do demônio, e que com a graça milagrosa de Deus alcançaram a conversão e redução de milhares de gentios que se transformavam em autênticos homens, cristãos fiéis, súditos espanhóis e partes da civilização. Pe. Ignácio Chomé nasceu em Flandres em 1696, ingressou na Companhia de Jesus na Província Galo-Belga em 1716, ordenando-se 185 Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados • João Ivo Puhl padre aos 29 anos, em 1725. Em 1728, partiu da Europa para as missões na Província do Paraguai chegando naquele ano em Buenos Aires. Trabalhou um tempo em diversas reduções desde 1730, quando em 1737 foi chamado para atuar em Chiquitos onde permaneceu até o fim de seus dias. Teve atuação destacada nos anos finais da redução de San Ignácio de Zamucos (1737-1745), depois trabalhou entre os chiquitos em San Miguel, Concepción e San Javier até 1767 donde saiu por causa da expulsão dos jesuítas, mas no caminho para o Peru, no regresso à Europa, morreu em Oruro, no começo de 1768. Pe. Chomé deixou inúmeros escritos, frutos do seu trabalho de missionário preocupado em comunicar-se na língua dos homens a ele confiados. Escreveu várias cartas edificantes (Corrientes: 1730; Buenos Aires: 1732; Tarija: 1735; San Ignácio de Zamucos: 1738; San Miguel de Chiquitos: 1746) e trabalhos lingüísticos como: Vocabulário e arte da língua Chiquita; Vocabulário zamuco; uma história das missões de chiquitos, para formar futuros missionários. Mas também escreveu para os seus neófitos e índios cristãos uma coleção de sermões em chiquito e fez várias traduções à língua chiquita. “A relação do que sucedeu no povoado de São Inácio de Zamucos, de 15 de outubro de 1745” é um manuscrito de treze folhas, transcrito e publicado em cinco páginas impressas em espanhol2. Nela, Chomé relatou e tentou explicar os acontecimentos conflitivos e contraditórios que culminaram com o fechamento definitivo da redução onde atuava como cura. Trata-se da leitura e interpretação de um cura de redução que viveu as dificuldades e os conflitos cotidianos numa redução de população multiétnica, que precisa explicar os fatos aos seus superiores para a tomada de decisões e novos encaminhamentos baseados no seu relato. Todos estes relatos são fontes para o estudo da ação missionária e a conversão dos índios, que oferecem ao analista farto material para compreender os processos de negociação, de mediação interétnica, da pedagogia missionária e da participação dos indígenas no processo de redução e conversão de inúmeras parcialidades, tribos e nações de índios. 2 Maiores informações o leitor interessado pode encontrar em TOMICHÁ CHARUPÁ, Roberto. Carta inédita del Pe. Ignácio Chomé desde San Ignácio de los Zamucos (15 de octubre de 1745) p. 159-175. In: Anuario de la Academia Boliviana de Historia Eclesiástica, 9. Sucre, 2003. 186 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Referências ARNT, Fúlvio Vinícius. San Ignácio de los Zamucos: índios e jesuítas no coração do deserto sul-americano, século XVIII. São Leopoldo – RS: Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Dissertação de Mestrado em História, 2005, 218p. CALEFFI GIORGIS, Paula. La provincia jesuítica del Paraguay: Guaraníes y Chiquitos. Un análisis comparativo. Madrid: Tesis doctoral presentada en la Universidad Complutense de Madrid, 1990. ______. Propriedades e manutenção das reduções jesuíticas com os índios Chiquitos. In: Anais do X Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros. Santa Rosa, 1997, p. 168-181. CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil 1580-1620. Tradução de Ilka Stern Cohen. Bauru: Edusc, 2006. HOFFMANN, Werner. Las misiones jesuíticas entre los chiquitanos. 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Sucre, 2003. ______. Francisco Burgés y las Misiones de Chiquitos: El Memorial de 1703 y documentos complementários. Cochabamba: Verbo Divino, 2008. TONELLI JUSITINIANO, Oscar. Reseña Histórica social y econômica de la Chiquitania. Santa Cuz de la Sierra: El País, 2004, 405 p. ______. Santa Ana La Cenicienta Chiquitana. Santa Cruz de la Sierra: El País, 2006, 336 p. 187 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos Luís Alexandre Cerveira As discussões apresentadas aqui são, como sempre nas análises historiográficas, fruto de questões surgidas no tempo presente. Através da observação do grande interesse demonstrado pelas pessoas e pela atenção dedicada pela mídia no que diz respeito à paixão, nossa investigação se voltou para a necessidade de compreender como, em outro espaço e outra temporalidade, as populações viviam e percebiam a paixão. O recorte espacial e temporal, assim como as pessoas e instituições envolvidas que foram alvo de nossa investigação historiográfica, foram orientados pela própria documentação que nos foi disponibilizada pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. Um conjunto de mais de duas mil páginas de Cartas Ânuas da Companhia de Jesus relativas às suas atividades no espaço platino, referentes à primeira metade do século XVIII. Nosso interesse recaiu, especificamente, em identificar e analisar as estratégias usadas pela Companhia de Jesus para o combate e a supressão das paixões no ambiente rural, já que logo percebemos o fato que, ao contrário do que ocorre no tempo presente, no Prata do século XVIII, as paixões não eram vistas com bons olhos e, mais que isso, eram objeto de preocupação e mal a ser eliminado ou convertido em bem. São objetos de investigação, também, a verificação da ocorrência das denominadas “artes de fazer” – as táticas –, porventura empregadas por essa população rural platina a fim de manter suas práticas pautadas nas paixões, e o esforço de constatação de semelhanças e diferenças entre a vivência das paixões nas áreas rurais e nas áreas urbanas. Luís Alexandre Cerveira é Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, professor do Colégio Batista, em Porto Alegre, e Santa Terezinha, em Campo Bom – RS. E-mail: [email protected] 188 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos A vivência das paixões no campo traz em si uma característica que a singulariza. O ambiente rural – o campo, o pampa ou sertão – parece ter sido o espaço por excelência do viver sem amarras, de um viver espontâneo e sem grandes contenções, facilitado por uma ocupação humana esparsa e pelas longas distâncias dos centros urbanos. É em razão disso que a discussão que proponho contempla a reflexão sobre esta pretensa licenciosidade, ao questionar se ela ocorreu de fato, ou foi, antes, uma construção daqueles que pretendiam implementar aí outro modelo de sensibilidade. Esse modo de vida tem sido identificado, já de longa data, como antinômico em relação ao experimentado no espaço citadino, pois desde os “tempos da Renascença, a cidade fora sinônimo de civilidade, o campo de rudeza e rusticidade” (THOMAS, 1988, p. 290). Os ares civilizados da pólis grega haviam seduzido os homens do início da Idade Moderna, convencidos de que o isolamento, a solidão e a falta dos mecanismos de controle e coerção das cidades produziam, no campo, uma sociedade “bárbara”. O antagonismo entre barbárie/campo e civilização/cidade não mais saiu da pauta daqueles que se propuseram a pensar a formação do Estado, da sociedade e, por conseqüência, do agir destes grupos humanos. É clássica a relação feita por Hobbes em sua obra o “Leviatã” (1999, p. 113) em que o estado de “natureza” é uma situação de barbárie, no qual os homens estão sob o controle de suas paixões sem nenhum limitador externo. Logo, sua proposta de implantação de um Estado passa pela supressão das paixões através da mão forte do Leviatã. A concepção de um binômio entre “Barbárie x Civilização”, entretanto, não foi uma exclusividade dos pensadores europeus. A América espanhola não ficou imune a esta categorização das populações e dos comportamentos humanos. No período pós-independência argentina, na década de trinta do século XIX, momento em que o país vivia a experiência política singular da disputa entre federalistas e unitários, Domingo F. Sarmiento escreveu o seu “Facundo: civilização e barbárie” (1938), procurando, de um lado, explicar o que era a Argentina de meados do século XIX sob o comando de Rosas – a quem considerava um caudilho oriundo de uma região bárbara/rural – e, de outro, propor um caminho pautado na idéia de civilização que levaria seu país a patamares europeus. A obra parece ter marcado profundamente a sociedade platina, a ponto de interferir na forma como esta se percebe ou se enxerga no tempo. 189 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira José Carlos Barran, em sua obra “Historia de la sensibilidade en el Uruguay”, retoma os conceitos de Sarmiento, discutindo-os em dois tomos. O Tomo I é intitulado “La cultura barbara”, e o Tomo II, chamado “El disciplinamiento”, trata dos mecanismos de disciplinamento e da busca pela produção de uma sensibilidade “civilizada”: A este tipo de sensibilidad, dominante, sin dudas, hasta la década que se inicia en 1860, muchos integrantes de las clases dirigentes le dieron en nombre de “bárbara”. En 1845, Domingos Faustino Sarmiento tomó su antinomia barbarie y civilización de este medio social al que pertencia, asignándole tanto un contenido geográfico – vinculando la barbarie con el medio rural e identificando la civilización con las ciudades – como otro valorativo (…) (BARRAN,1991, p. 14). Barran, entretanto, não aceita a relação direta entre campo/barbárie e cidade/civilização, sustentando sua escolha menos no determinismo geográfico e mais em uma “funcionalidad que existió entre la economía de la abundancia con las ‘plétoras’ de ganado vacuno de 1800 a 1860 y la sensibilidad valoradora del placer y el juego”. Ou seja, uma relação entre economia “ganadera” e uma sensibilidad “frouxa” pautada pelo prazer e pelo jogo e, de outro lado, uma sensibilidade “civilizada” em um “Uruguay casi burgués de 1890 y la represión del ocio y la sexualidad” (1991, p. 16). Julgo importante desvendar a compreensão dos conceitos de “barbárie” e “civilização” empregados por Barran, na medida em que seus estudos sobre o Uruguai “bárbaro” do século XIX servem, em termos de aproximação, para a análise da vivência das paixões próprias do ambiente rural platino da primeira metade do século XVIII que pretendo aqui desenvolver. Ainda que o referido autor não estabeleça uma relação objetiva entre o ambiente rural e a “barbárie”, Montevidéu é descrita como uma cidade com alma campesina. Suas bem documentadas descrições da vida da cidade no Oitocentos a aproximam, em função dos aspectos econômicos já mencionados, com o modo de vida frouxo e intenso dos campos orientais. No segundo tomo de sua obra (1990), Barran trata quase que de um processo de civilização da própria cidade, propondo-se a fazer “una historia de las emociones; de la rotundidad o la brevedad culposa de la risa y el goce; de la pásion que lo invade todo, asta la vida pública”. O processo que o autor uruguaio persegue, portanto, é aquele que quer fazer das paixões algo “encogido y reducido a 190 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos la intimidad; del cuerpo desenvuelto o del encorsetado por la vestimenta y la coacción social que juzga impúdica toda soltura” (1991, p. 15). O conceito de sensibilidade “bárbara” de Barran me parece perfeitamente adequado para o estudo aqui proposto, já que esta sensibilidade dos excessos não foi outra coisa senão uma sensibilidade apaixonada. Para ele, “la historia de la sensibilidad en ese Uruguay del siglo XIX es la de la lenta desaparición del pathos y la también lenta aparición del freno de las ‘pasiones interiores’.”(1991, p. 11) Acredito, portanto, que uma aproximação com o trabalho deste autor seja bastante produtiva, na medida em que ele se deteve no estudo das estratégias adotadas pelo estado uruguaio para o estabelecimento de uma nova subjetividade “burguesa”, que implicava pôr freios nas paixões interiores. De minha parte, esta nova subjetividade será analisada a partir das estratégias empregadas pelos jesuítas para o estabelecimento de uma reforma dos costumes que compreendeu a supressão ou o controle das paixões. Deve-se considerar que os inacianos, freqüentemente, se referem, em suas correspondências, ao processo de “reforma dos costumes”, apresentando-o como um dos principais objetivos do trabalho missionário, aproximando-se da idéia de sensibilidade “civilizada” que expusemos acima. É claro que, no caso dos jesuítas, o modelo a ser seguido era aquele definido pela Igreja, o comportamento cristão exemplar, enquanto que no caso do Uruguai do século XIX havia uma sensibilidade civilizada que atendia aos padrões e interesses burgueses. No que diz respeito à sensibilidade “bárbara”, me parece que os conceitos são ainda mais próximos. Ainda que a documentação não se refira – de forma recorrente – ao termo “barbárie”, a descrição que ela traz da vida camponesa em muito se aproxima da idéia de um modo de vida bárbaro, não civilizado. Sobre este modo de vida, Barran afirma que, para compreendê-lo, era preciso “analizar la violencia, el juego, la sexualidad y la muerte [que] nos acercará a la médula de esa época, a los rasgos colectivos y seguramente intransferibles de una forma de sentir” (1991, p. 13). A documentação consultada assim descreve o modo de viver nas regiões rurais do Prata: “Hay muchos incentivos al pecado, y los males ocasionales son tan abundantes y provocativas, pierdem ellos muy facilmente la gracia de Dios, y se precipitan a los vícios.” (Cartas Ânuas, 191 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira 1730-1735, p. 5) Estes vícios incluem uma entrega desenfreada às paixões do corpo, à luxúria, aos jogos de azar, que incluíam a avareza e a compulsão, além de atos de violência como brigas e assassinatos, aí presentes a ira e a inveja. O modo de vida das populações rurais – a partir da análise de uma documentação que não tem origem clerical – é o foco do trabalho Elite, Pulpería y Disciplina Social. San Juan de la Frontera, 1750-1770, de Mário A. Solar Mancilla (2005), que adverte que “la fuente que nos permite, en parte, reconstruir sus modalidades de vida es la judicial” (MANCILLA, 2005, p. 112). Cabe ressaltar, entretanto, que San Juan de la Frontera não está localizada na região compreendida como platina. Estando ao norte da Província de Mendoza, a sudoeste de La Rioja e a leste dos Andes e do Chile, San Juan possuía uma economia baseada na produção de vinhos e criação de gado, ou seja, fortemente rural. Portanto, creio que há mais semelhanças do que diferenças entre a população de San Juan e as que aqui analisamos, o que permite algumas aproximações para efeito de análise. As descrições presentes nas fontes judiciais utilizadas, portanto, assemelham-se muito às descrições feitas pelos missionários das população campesina, como pode ser constatado nesta transcrição: Las pendencias, heridas y muertes, lógicamente no tenían lugar en aquellas, que estaban más cerca de ser tiendas o almacenes que tabernas, sino en los ranchos improvisados donde se daban cita los hombres para dar rienda suelta a los placeres de la vida (…) Los pucheros calientes, los matahambres, y las empanadas iban acompañados por el aguardiente, los juegos de azar y por el infaltable cantor popular que amenizaba el fandango, haciendo olvidar por algunas horas el rigor de la vida. Pero también en medio de esa algarabía una palabra mal dicha, una bufonada, no responder un saludo, creaba las condiciones para que la festividad terminara en una pelea campal, con un herido o un muerto (MANCILLA, 2005, p. 134). Nos registros civis, judiciais e da imprensa sobre o Uruguai do século XIX – utilizados por Barran –, nas Cartas Jesuítas que se referem à população platina do século XVIII, ou, ainda, na documentação judicial relativa à população rural de San Juan de la Frontera, há uma adjetivação constantemente referida na descrição destas populações que se poderia denominar de “bárbara”, tomando a expressão de empréstimo a Barran. Esta sensibilidade “bárbara” – como Barran a denominou – tem como característica a predominância de um comportamento pautado por “excessos”, um comportamento que, no geral, 192 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos não se dobra às ordenanças clericais, estatais ou judiciais. No Brasil português, especialmente no que hoje é o estado de Minas Gerais, a antinomia entre civilização e barbárie também esteve presente. Ainda que a região mineradora brasileira apresente características geográficas – é, no geral, montanhosa – e econômicas diferentes do espaço platino, já que possuía grandes riquezas minerais, creio que sejam possíveis aproximações no sentido de nos ajudar a compreender de forma mais ampla a questão. Lá, no chamado sertão, eram os “paulistas”, em vez de gaúchos ou campesinos platinos, os que recebiam a pecha de incivilizados ou bárbaros. Em seu recente estudo sobre a violência e o crime nas Minas Setecentistas, Carla Maria Junho Anastasia refere que sobre os paulistas se dizia que “não possuíam civilização, eram selvagens”, pois “ficam sem cultura, ou nas suas povoações, ou metidos no mato, onde andam anos sem mais provimento para sua subsistência que pólvora, munição e machados” (ANASTASIA, 2005, p. 53). Nas Cartas Ânuas, por sua vez, o excesso se expressava, sobretudo, na ignorância em relação às coisas espirituais, uma “ignorancia religiosa (que) entre ellos es excessiva” (C.A. 1750-1756, p. 7), indicando que seus comportamentos estavam longe daqueles desejados pela igreja, por serem “inclinados a toda classe de vicios, a robos, perjurios, deshonestidades, adultérios, al juego y a la holgazanería” (C.A. 1756-1762, p. 95). Considerando que o excesso e o descontrole são características fundamentais da paixão, é possível afirmar que a sensibilidade bárbara predominante no campo é uma sensibilidade em que a paixão é a protagonista. Para os missionários jesuítas, tornou-se imperativo compreender as razões que levavam as populações campesinas a viverem “como infieles, y peor aún” (C.A. 1756-1762, p. 95) e “no tienen [de] cristianos si no el nombre”. Diante desta constatação, e considerando que os jesuítas possuíam forte visão estratégica para o cumprimento de sua missão, eles acabaram por “estudiar este asunto a fondo” (C.A. 17501756, p. 7), de modo a modificar a situação. Em suas descrições deste modo de vida “bárbaro”– regido, sobretudo, pela paixão – os missionários se valem de uma qualificação usual, a de que eram “brutos” (C.A. 1750-1756, p. 7). É interessante notar que o adjetivo pode significar rudeza, algo de conduta imprópria, o que certamente caracterizava os comportamentos excessivos daquelas populações. Entretanto, “bruto” também pode ser tomado como algo não lapidado, que se mantém em seu estado original. 193 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira A idéia que fica é que estas populações estariam em um estado de “barbárie”, de selvageria, já que “se retiran ellos a lugares apartados y a la espesa selva, como si fuesen fieras” (C.A. 1750-1756, p. 8). Interessante notar que um padre chega a nos informar que, devido à chegada da missão nas regiões rurais da Província Jesuítica do Paraguai, os campesinos saíam dos seus “encondrijos” (C.A. 1750-1756, p. 7), termo muito usado para caracterizar não só os lugares onde animais se escondem, mas também onde se refugiam indivíduos que vivem fora do controle do Estado. Acredito, portanto, que se pode inferir aqui a presença do conceito de paixão – como algo constitutivo do ser –, como pensado por Aristóteles e Tomás de Aquino, já que, segundo suas concepções, a paixão se relaciona diretamente com o que há de mais primitivo no ser. Um comportamento “bruto”, “bárbaro”, de alguma forma os aproximava dos animais, de um estado de primitivismo próprio daqueles que ainda não haviam sido lapidados pelo cristianismo ou pela reforma dos costumes. Outra avaliação recorrente na documentação é a de que estas populações eram infiéis, o que de alguma forma os isentava de culpa, já que “los más de ellos son malos más bien por ignorância que por malicia” (C.A. 1750-1756, p. 7). A idéia presente nesta descrição pressupõe uma identificação entre as populações campestres e os infiéis, nesse caso, especificamente os indígenas que não aceitavam ser reduzidos pelas missões jesuítas, e que, vivendo a seu modo, não raras vezes atacavam as populações nas cidades, pueblos e fazendas, já que estas áreas antes eram parte de seu território. Essa aproximação, portanto, brutaliza os habitantes do campo, os torna selvagens, e, por conseqüência, reféns de seus instintos mais primitivos, suas pulsões ou suas paixões. A razão para o estado de “barbárie” em que se encontravam estas populações, segundo a Carta Ânua, é que “si descubre qui (...) los seglares que los debían bautizar (obligando a eso la necessidad, por estar lejos los párocos), no se han servido de la debida fórmula” (C.A. 1750-1756, p. 7). Além disso, o clero secular não estava cumprindo seu papel, já que “por su péssima vida eran antes el escándalo de toda la comarca” (C.A. 1730-1735, p. 107). Além do mau exemplo do clero secular, que, ao que parece, acaba por se “barbarizar” dando vazão às suas paixões, outro fator que contribuía para as más condutas era o isolamento em que viviam as 194 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos populações. Por se encontrarem espalhados pela extensa zona rural, era “indescriptible la necesidad espiritual de aquellos campesinos, diseminados por alli, viviendo ellos muy distantes los unos de los otro” (C.A. 1756-1762, p. 95). Em razão disso, “raras veces vienen ellos a misa, y más raras veces reciben ellos los sacramentos. Los más de ellos no conocen a su cura-pároco ni siquiera de vista” (C.A. 17501756, p. 7). O isolamento e a falta de assistência espiritual levavam, na percepção dos religiosos da Companhia de Jesus, esta gente a viver “más bien, como brutos” (C.A. 1756-1762, p. 95). A opinião de que os ambientes rurais, marcados pelo isolamento e pelo afastamento da comunidade cristã, acabavam por brutalizar e “barbarizar” as populações campesinas não era expressa apenas pelos padres jesuítas. Em 1785, o governador de Córdoba escreve ao vice-rei exprimindo opinião muito semelhante: En la jurisdicción de esta se hallan más que en otra, dispersas varias familias de mestizos e indios por aquellas dilatadas llanuras y quebradas, que de tiempo inmemorial viven de ésta forma, sin que los jueces sean bastantes a vigilar sus operaciones, ni pueda alcanzarle el pasto espiritual y es de presumir que al quererlos sacar de éste genero de vida para reducirlos a población, se profugen lo más porque aborrecen la sociedad (TORRE apud MANCILLA, 2005, p. 109). Alguns anos antes, quando a região de San Juan de la Frontera estava ainda submetida à Audiência do Chile, outra reclamação referia que o “bajo pueblo... sólo vive ocioso e inútilmente en sus ranchos infelises, robando ganado de las estancias inmediatas...” (MANCILLA, 2005, p. 110). Ao que parece, a visão que tinham as pessoas que moravam nas cidades, ou mesmo nas estâncias “urbanizadas”, nas quais as instituições como a Igreja e o Estado possuíam suas sedes, era de que o campo era o espaço da violência, da sexualidade desenfreada, do ócio, do jogo, enfim, do espaço da barbárie e, porque não dizer, da paixão. A questão proposta por Silveira ao estudar as Minas dos Setecentos, e que nos serve em termos de aproximação, é de que “a manutenção de hábitos considerados bruscos e violentos e da excessiva licenciosidade de outrora fazia com que as pessoas que permaneciam ligadas a essas posturas antigas tendiam a ser associadas ao oposto dessa regrada ‘civilização’, isto é, à ‘barbárie’” (SILVEIRA, 1997, p. 35). 195 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira Ainda que, no campo, as pessoas tenham tido algumas vivências bastante específicas – em função do ambiente em que moravam –, como veremos mais adiante, não creio que, no geral, elas tenham sido tão diferentes daquelas experimentadas pelos moradores das cidades. Isso porque, ao estudarmos os comportamentos citadinos (CERVEIRA, 2008), observamos que estes incluíam a luxúria, a violência, a mentira, a dissimulação e outras tantas práticas considerados não virtuosas pela ótica cristã. Se aceitarmos a argumentação de que o ambiente rural permite uma forma de vida sem tantos limitadores como os encontrados na cidade – em que o aparato estatal e clerical está presente e vigilante –, teremos de admitir que, no campo, o ambiente rural permite uma vida de maiores excessos, uma vida em que muitas das paixões vividas pelos citadinos se exacerbam e outras, específicas, têm lugar. Este argumento pode, portanto, partir da premissa conceitual de que o espaço natural é “(...) uma área indeterminada que existe previamente na materialidade física” (BARROS apud SANTOS, 2004, p. 15), que ao ser trabalhado pela ação humana se transformaria em espaço produzido: É um resultado da ação humana sobre a superfície terrestre que expressa, a cada momento, as relações sociais que deram origem. Nesse sentido, a paisagem manifesta a historicidade do desenvolvimento humano, associando objetos fixados ao solo e geneticamente datados. Tais objetos exprimem a espacialidade de organizações sócio-políticas específicas e se articulam sempre numa funcionalidade do presente (MORAES apud ARRUDA, 2000, p. 26). O ambiente rural se encontraria, nesta perspectiva, em um estágio intermediário entre o espaço natural e o espaço produzido. A historiografia tem destacado que as autoridades espanholas, desde o aumento das tensões no campo ocorrido em princípios do século XVIII, tentaram, através de uma “política de fundación de pueblos y villas (...), intervenir el espacio, racionalizarlo y controlar a sus ocupantes” (MANCILLA, 2005, p. 110), o que acabou, contudo, não dando resultado. A Companhia de Jesus, apesar de reconhecer as dificuldades que o ambiente rural apresentava, não se furtou de cumprir aquilo que acreditava ser seu papel. Se os cura-párocos locais tinham falhado porque “no se han servido de la debida fórmula” (C.A. 1750-1756, p. 7), os jesuítas haviam, desde o início do século XVII, chamado para 196 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos si a responsabilidade de evangelizar e civilizar estas populações campesinas. Em 1609, o Provincial Diego de Torres havia recebido a incumbência do Padre Geral Cláudio Acquaviva de que os jesuítas deveriam sair, sempre que possível, a pregar missões. Logo depois, em 1627, o Prepósito Geral da Companhia de Jesus reafirmava a ordem de que fossem realizadas missões “por los pueblos de los indios, y por las estancias de los espanholes, adonde, según me informan, hay gente muy necessitada” (ZEN,1995, p. 55-56). Estas missões consistiram numa variação das missões populares surgidas na Europa, ainda no século XVI, e que na América receberam a denominação de missões campestres. As condições adversas impostas pelo relevo e pelo clima, as ameaças de indígenas “infiéis”, e mesmo a falta de pessoal, são bastante enfatizadas pelos missionários empenhados na realização dessas missões: Impulsados sólo por tales sentimientos, salen nuestros Padres cada año dos o tres veces de sus respectivos colegios, a estos las más de las veces muy difíciles por tupidas selvas, empinadas montarías, escarpas rocas sirviéndose ahora de una carreta agreste, o de un jumento, o andando a pie, cada vez por unas 200 leguas... Dura dos o tres meses cada una de estas misiones rurales... Hay que añadir a todo esto inminente asalto de los indios infieles, los cuales infestan hoy día con sus invasiones, toda la Provincia del Tucumán (C.A. 1730-1735, p. 4). Cabe lembrar que as estratégias se valem de “cálculos objetivos” e de “sua relação com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela instituição” (CERTEAU, 2004, p. 47). Ou seja, sua eficácia se dá a partir de ações estruturadas racionalmente e que necessitam do domínio exercido através de mecanismos de controle, que, no geral, são devedoras de um domínio significativo sobre o espaço. Se considerarmos as descrições do campo que aqui apresentamos – tais como a de um espaço de difícil controle, no qual as populações viviam de forma “bárbara” e “selvagem” –, acredito que se deva relativizar a eficiência das estratégias jesuíticas. Prova disso é que, ao contrário de todo aparato de que dispunha a Companhia de Jesus nas cidades – como as residências, as confrarias, os colégios ou as universidades, além das igrejas e da própria presença física dos membros da Companhia –, no campo, a situação que encontramos é bastante diversa. 197 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira Do ponto de vista da estrutura física propriamente dita, nas regiões mais distantes, não havia mais que “capillas, levantadas a grandes intervalos”. Quando os padres chegavam para fazer a missão, a população, que normalmente era avisada com antecedência, não se reúne em “una aldeia determinada, si no distan sus casas tres cuartos y mas leguas una de la otra” (C.A. 1750-1756, p. 7). Agrupando-se em torno de uma povoação, que normalmente comportava a capela, ali assistiam à pregação da missão. Segundo a documentação, a audiência era muito boa, já que, na zona rural de Tarija, em uma única missão se “confessaron a muchíssima gente: en una sola de estas missiones más de 4.000”. Entre estes, inclusive “los eclesiásticos los quales por su péssima vida eran antes el escándalo de toda la comarca” (C.A. 1730-1735, p. 107). Isto reforça o que foi dito anteriormente, de que não era somente o ambiente inóspito e a falta de padres que motivavam a vida desregrada dos camponeses. O fator mais prejudicial era, sem dúvida, o trabalho relapso e a vida “pecaminosa” levada pelos poucos cura-párocos que vivam nas áreas rurais. Apesar dos poucos recursos e da falta de estrutura, os padres que pregavam nas missões campestres procuravam manter o mesmo modus operandi das missões populares urbanas. Ainda que muitas das vilas e muitos dos povoados que recebiam a missão não possuíssem largas e bem traçadas ruas, nem praças espaçosas em frente às igrejas, acredito que, de algum modo, a Companhia de Jesus manteve sua estratégia de conversão. Entretanto, se as “peças” mais importantes da “máquina” jesuítica de conversão/evangelização e civilização, sua universidade, seus colégios e suas residências, estão a léguas de distância, o que percebo é que seus missionários – empenhados nas missões campestres – ganham importância, a ponto de priorizar sua função como atores do teatro da fé. Se, por um lado, não é possível pensar numa “cidade teatro”, dada a ausência concreta da cidade, por outro, creio que seja possível pensar em um grande espetáculo teatral a céu aberto. A chegada do padre que realizaria a missão era normalmente preparada por algum clérigo secular ou liderança do lugarejo. Dependendo da distância, seu deslocamento se dava a cavalo ou de barco. Recebido fora do vilarejo, o padre se paramentava e, seguido por um bom grupo de fiéis, liderava uma procissão, adentrando o povoado e 198 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos percorrendo as poucas ruas e espaços que as condições do lugar permitissem. Creio ser oportuna a reflexão sobre o que representava a chegada desses missionários jesuítas em termos de acontecimento mesmo. A documentação informa que a maioria das pessoas que se reunia nos vilarejos para assistir à pregação da missão vinha de muito longe, de lugares bastante isolados. As opções de lazer dessas pessoas, como veremos mais adiante, eram essencialmente dirigidas aos homens e tinham como lugar os ranchos onde havia bebidas alcoólicas, jogos, músicas e mulheres. As pessoas dessas localidades “muy raras veces vienen a misa, ni en las fiestas mayores” (C.A. 1756-1762, p. 95), logo, a simples chegada do padre missionário, com todo seu aparato litúrgico e sua entrada triunfal e teatral na cidade, seguida da movimentação de contingentes consideráveis de população, era um importante acontecimento. Para um grande espetáculo, espera-se uma grande platéia. Os missionários da Companhia, no geral, a tiveram. Em função do número, por vezes elevado, de pessoas que vinha de longe para assistir à pregação da missão, muitos povoados, desprovidos de estrutura, não conseguiam acomodar todas essas pessoas. A solução encontrada por muitos era a de permanecerem “morando (durante a missão) em suas carretas ou levantavam tendas e barracas com galhos de árvores”. Desta forma, a própria platéia dava brilho e interagia com o espetáculo, pois “o lugarejo, antes quase solitário, aparecia, então, como por encanto e, por poucos dias, uma povoação bastante numerosa (ZEN, 1995, p. 73). Se já havia uma platéia que, por vezes, se tornava elenco – quando fazia sua parte das procissões e dos demais ritos litúrgicos – e o palco era a céu aberto, na praça ou nas poucas ruas dos vilarejos, é certo que os atores principais eram os missionários. O roteiro desse “teatro da fé” rural era muito semelhante ao seu correlato citadino. Cada ato da peça deveria ser aproveitado da melhor forma possível. O tempo destinado para a missão era curto, no geral uma semana, e, além disso, o padre nem sempre sabia quando retornaria ao vilarejo. A dimensão do trabalho a ser feito fica evidenciada na informação de que em “sus almas en otros tiempos por los padres, a la par que crece y medra la mala yerba de tal modo, que casi siempre tienen los Padres que comenzar de nuevo con trabajosa roza de la cizaña y con la siembra de la sementera” (C.A. 1730-1735, p. 5). 199 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira As missas e as confissões diárias se mantinham tal qual nas missões urbanas, sendo que as últimas ganhavam enorme importância, na medida em que o padre ao “perguntarlos cuanto tiempo hace que ya no se han confessado”, obtinha a resposta de que “desde que han pasado por aquí los santos Padres. Por lo tanto, sucede que esta pobre gente queda tres o cuatro años sin confesarse” (C.A. 1750-1756, p. 9). As confissões – e as conseqüentes absolvições – eram fundamentais para a missão, pois reinseriam os habitantes das áreas não urbanas numa vida cristã piedosa. Segundo Zen, as confissões eram, no entanto, tarefa “dificultosa e desgastante para os missionários. Isso porque os penitentes, talvez em sua maioria, até desconheciam os primeiros elementos da doutrina cristã ou pelo menos não sabiam como confessar-se (sic)” (1995, p. 101). A missão campestre proporcionava a confissão dos pecados e oportunizava a recepção de sacramentos – como o batismo – e a regularização das uniões através dos casamentos. Estes momentos serviam, sobretudo, para alcançar os rebanhos desgarrados de cristãos apenas nominais. Além de serem momentos festivos desfrutados entre familiares e amigos – como os do batismo ou do casamento – eram, também, momentos ritualizados que acabavam por ser uma “encenação” muito proveitosa ao reunirem uma platéia que talvez de outro modo não estivesse ali. Os batismos eram importantes momentos da missão campestre na medida em que, através desse sacramento, as crianças eram não só inseridas na comunidade cristã, como também afastadas do limbo, em caso de morte. Sua importância aumentava em decorrência do precário atendimento espiritual nas áreas rurais, o que levava os padres jesuítas a realizarem muitos batizados. A documentação informa que, após a missa, o missionário “bautiza el primeo todos los ninõs nascidos durante el año pasado” (C. A. 1735-1743, p. 159). Além das crianças, não era raro o batismo de adultos que nunca haviam recebido o sacramento. A realização de matrimônios era outra tarefa fundamental dos missionários durante as missões campestres. Os casamentos – como era de se esperar – não se limitavam aos solteiros. A situação de isolamento e carência de assistência espiritual motivava muitos amancebamentos e mesmo separações, que se buscavam reverter através das missões: 200 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Un buen número de solteros se casó, y todavía se están casando, otros, para vivir en gracia de Dios, después de haber vivido sin casarse, para vivir más libremente de una manera disoluta. Una buena porción de matrimonios aparentes hubo que revalidar. Otros matrimonios, deshechos por la discordia, se volvieran a la paz y concordia (C. A. 1735-1743, p. 159-160). Práticas bastante peculiares das missões campestres eram as procissões, o assalto espiritual ou rondas religiosas, a procissão geral de penitência, o perdão dos inimigos, as comunhões e o período de flagelações. Numa comparação com as práticas adotadas nas missões populares urbanas, talvez a mais prejudicada nas missões campestres tenha sido a dos Exercícios Espirituais. Em geral, para que pudessem ser feitos de forma mais eficiente nas cidades, os exercícios eram realizados numa casa que pertencesse à Companhia, ou tivesse sido cedida por algum morador importante. No caso dos vilarejos, muitas vezes não havia casas à disposição ou que comportassem o grande número de fiéis que buscavam participar dos exercícios. A alternativa encontrada foi empregar os ensinamentos de Santo Inácio como um roteiro nas pregações públicas, especialmente os exercícios da “primeira semana”, nos quais os exercitantes eram levados a meditar sobre o pecado e a buscar uma vida nova. De acordo com Zen, “poderíamos afirmar que elas eram Exercícios Espirituais abertos segundo o precioso livrinho dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio” (1995, p. 54). Se faltavam condições mais adequadas – como nas cidades, especialmente em termos de estrutura física – para a montagem das estratégias de conversão dos camponeses “bárbaros” e reféns de suas paixões, por que não fazer uso daqueles recursos empregados nas missões urbanas? Se havia excessos nos comportamentos, por que não redirecioná-los para o “teatro da fé”? Parece-me que podemos aproximar esta sensibilidade – carregada de excessos e que caracterizava também as populações campesinas – daquela de que nos fala Barran, ao referir-se ao Uruguai do século XIX: “¿Qué sensibilidad era esta que hacía derramar el llanto en público a las mujeres de la cazuela ante la representación de ‘La Traviata’ (...)?” (BARRAN, 1991, p. 12). Uma sensibilidade marcada pelo excesso – e por que não dizer, apaixonada – que será eficientemente direcionada para o comportamento adequado e almejado, através dos recursos teatrais e retóricos empregados pelos jesuítas. O emprego e o êxito 201 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira dessa estratégia jesuítica foram registrados pelos missionários que nos informam que as populações campesinas ficavam dias “no haciendo caso ya de sus casas y habitaciones (...) Y no se pierde ninguna palabra de los padres, se arrepienten con grandes señales de dolor, y vuelven a juicio” (C.A. 1750-1756, p. 7). Isso ocorria, segundo o jesuíta, de forma constante e generalizada, nos muitos pueblos que serviam de base para a realização das missões campestres. Ou seja, talvez se possa dizer, que a mesma sensibilidade apaixonada – que caracterizou os espetáculos profanos de Montevidéo – esteve presente nas missões campestres da região platina. Os missionários jesuítas logo compreenderam que todo este excesso – esta paixão à flor da pele – poderia ser reorientado, operandose a transição do profano para o sagrado. A mesma pulsão, a mesma força motora que havia servido ao pecado, poderia estar a serviço da virtude, pois “habíendo aprendido ellas despreciar al cuerpo tanto más implacavelente, cuanto más indebidamente ántes le habían regalado” (C.A. 1730-1735, p. 62). O caso descrito pelo jesuíta refere-se a um grupo de mulheres de Buenos Aires que, fazendo o uso de seus direitos, pleiteou que lhe fosse facultada a prática dos Exercícios Espirituais. Após terem conseguido a aprovação, estas mulheres teriam chegado a extremos durante a autoflagelação. Tais excessos, conforme a documentação, eram resultado de uma relação direta de inversão. Aquelas que mais pecavam antes dos Exercícios e da conversão, eram as que mais se martirizavam. Nessa mesma linha de raciocínio, Barran sustenta que “lo que sucedió fue que esta cultura no diferenció claramente el trabajo del juego, lo ‘sagrado’ de lo ‘profano’ (...) En el sentir de la sensibilidad “bárbara” (BARRAN, 1991, p. 99). Para ele, portanto, diferentemente do que pensava Durkheim, há na sensibilidade “bárbara” uma outra lógica que não aquela baseada em uma divisão estanque entre as esferas religiosa e não-religiosa. Ainda que haja claros indícios dessa lógica nas extensas e intensas práticas de autoflagelação, esta discussão não será alvo de maior atenção neste trabalho. Acredito, no entanto, que havia muito mais do que fervor religioso nos excessos cometidos durante os períodos de penitência. Apesar de todo o esforço estratégico da Companhia de Jesus, ao que parece, o campo continuou sendo o espaço privilegiado da paixão. Um dos padres – envolvido nas missóes campestres – reconhece que os vícios e as ocasiões para pecar eram tantas que isto acabava por 202 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos sufocar a boa semente “esparcida en sus almas en otros tiempos por los padres, a la par que crece y medra la mala yerba de tal modo, que casi siempre tienen los Padres que comenzar de nuevo con trabajosa roza de la cizaña y con la siembra de la sementera” (C.A. 1730-1735, p. 5). Este registro nos revela, ainda, que apesar das missões anuais realizadas nas áreas rurais e das realizadas nas áreas urbanas, as populações agiam como se antes não tivesse havido qualquer trabalho de evangelização . No caso das missões campestres, a descrição das dificuldades encontradas dá fortes evidências de que os resultados, não poucas vezes, haviam sido intensos, mas fugazes como a paixão. Muitas vezes, talvez em sua maioria, os campesinos – terminada a missão – voltavam ao seu dia-a-dia e o sermão emocionado e persuasivo ficava na lembrança. A paixão, sem o direcionamento para o sagrado, acabava sendo canalizada novamente para o profano. As paixões a que se entregava a “chusma mal entretenida” – designação recorrente na documentação judicial ao se referir à população rural de San Juan de la Frontera – tais como “el ocio, el vagabundaje, el alcoholismo, la violencia, el robo, el amancebamiento” (MANCILLA, 2005, p. 110), em parte se assemelhavam às vividas pelos habitantes das cidades, apesar de apresentarem suas especificidades. Neste espaço – marcado pela solidão rural, pela distância do controle da Igreja e das pressões da civilização –, essas paixões ganhavam matizes muito próprios. As expressões da paixão-luxúria – que encontramos nas cidades – estiveram também muito presentes no campo. Nele, entretanto, essa paixão foi potencializada devido a uma série de fatores. Para Carlos A. Mayo, uma das principais razões para uma vivência intensa da paixão-luxúria era a existência de “un mercado de mujeres matrimoniables como aquel, estrecho y oligopólico”, fazendo com que “ la vida sexual y amorosa de la plebe rural (...) estaba signada por la ilegitimidad, las uniones informales y la precariedad” (MAYO, 1996, p. 139). A situação, segundo Mayo, se tornava ainda mais complicada, porque os setores altos e médios “de la sociedad rural ejercían un virtual monopolio del mercado femenino (...). Hacia 1815 el 84% de los hacendados y el 80% de los agricultores eran casados mientras casi el 94% de los trabajadores asalariados carecían de esposa” (1996, 203 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira p. 180). Aqui cabe ressaltar que muitos estancieiros preferiam peões solteiros, o que – de alguma forma – parece ter contribuído para “el amancebamiento (...) haber estado bastante extendido.” (MAYO, 1996, p. 182) Por outro lado, como já demonstramos, uma das principais atividades da missão campestre era a de regularizar casamentos, ou mesmo de batizar filhos de uniões nem sempre legítimas ou legitimáveis, pois “os missionários também necessitavam evitar certas artes enganosas dos que se apresentavam, pedindo casamento religioso (...) Para conseguirem seu intento matrimonial, muitos não vacilavam em ocultar qualquer impedimento” (ZEN, 1995, p. 107). Aqui, ao que parece, se encontra uma sofisticada tática de preservação de determinadas paixões, que nos sugere que o grande teatro da fé, armado no pequeno pueblo, era vivido por atores que não se contentavam em desempenhar seus papéis de acordo com o roteiro. Antes, utilizavam-se de “artes enganosas” ou artifícios para darem a elas outro sentido. A interpretação dos atores, em razão disso, extrapolava aquilo que os mentores do espetáculo haviam proposto, já que através dela pretendiam legitimar um comportamento distinto daquele previsto no enredo original. Além disso, as poucas mulheres solteiras, costumeiramente, não estabeleciam relações formais ou informais duradouras “con peones y malentretenidos”, sendo que “Las ‘amistades ilícitas’, como se calificaba a las uniones de ese tipo, eran frecuentes” (MAYO, 1996, p. 182). A documentação que consultamos apresenta um caso bastante ilustrativo desta situação ao referir a “una mujer escandalosa [que] hacía un año, se había escapado de su pueblo, para vivir escondida en unas cuevas de la selva, para encontrarse allí mas facilmente con los individuos con los cuales vivía mal” (C.A. 1735-1743, p. 254). Interessante notar que a decisão de manter uma “má vida” passou por um abandono do pouco de civilidade que lhe restava – ao viver no pueblo – mediante a fuga para a “selva”. Esta, ao que parece, não era tida somente como um lugar afastado dos olhares acusadores dos vizinhos, mas, também, como o mais adequado para o tipo de vida que ela havia escolhido, pautada pelos desejos da carne. A selva – o espaço por excelência da barbárie – torna-se, assim, o lugar onde a estratégia jesuítica de combate e supressão das paixões não consegue se impor. O lugar onde não é necessário dissimu- 204 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos lar, onde não é necessário interpretar ou reinterpretar as pautas comportamentais traçadas pela Companhia de Jesus ou pelas autoridades civis. Em sua obra, Barran faz referência a uma carta enviada ao Conselho de Índias, em 1794, na qual o emissário manifesta seu desejo de dar “noticia sobre el estado de los campos de la Banda Oriental”. Ao fazê-lo, acaba por levantar – horrorizado – um questionamento em relação ao comportamento dos campesinos: “Qué escessos (...) no cometerían en el uso de la Venus, unos hombres que en nada lo parecen sino en la figura? Unos hombres que no están ligados a sus semejantes por religión (...)? Qué pecado habrá que les perezca enorme, si lo piede la sensualidad?” (apud BARRAN, 1991, p. 146). Aqui, novamente, a documentação – nesse caso, referindo-se ao Uruguai rural do final do século XVIII – desumaniza os homens em função de sua entrega às paixões, nesse caso de Vênus, da luxúria. É interessante notar a relação entre o “uso de la Venus” e a perda da humanidade, pois a vivência das paixões da carne – sem limites – faz do homem um selvagem, mesmo fora da selva. Casos de adultério na zona rural são fartos na documentação jesuítica, como o de certa mulher que após ter “pasado muitíssimos años en los vícios”, em função da missão, “se le ocurrió arregalar su conciência”. A confissão e o arrependimento da adúltera, entretanto, não suportaram a uma nova investida; pois, ao ser “provocada otra vez por una mala amistad con un individuo perverso, fue vencida por la tentación, y volvió a lo que había lanzado de sí” (C.A. 1730-1735, p. 71). Como vimos anteriormente, os arrependimentos não duradouros, ao que parece, também foram uma constante na zona rural platina, assim como nas cidades da região. Difícil não pensar que esta tenha sido uma forma de manter – ao mesmo tempo – um modo de vida pautado pela paixão, e outro, aceitável, nas escassas ocasiões em que se esperava destes campesinos um comportamento cristão. Retomando a análise que fizemos sobre a constatação feita por um padre jesuíta, de que a erva daninha acabava por sufocar o bom trabalho de semeadura da Companhia, acredito que muitas dessas “ações pecaminosas” devam ser consideradas como formas de resistência, sejam elas conscientes ou inconscientes. Duas formas de satisfação da paixão da luxúria bastante específica da zona rural eram o incesto e o chamado bestialismo: 205 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira Los amancebamientos de 10, 15, 20 y 30 anõs de duración...los incestos y ...el bestialismo sobre todo con yeguas, se alimentaban de ciertas características de la vida rural, tales como el rancho de una sola habitación, la gran distancia en que se encontraban los pobladores de los escasos curas...sobre todo, de la escasez de mujeres en una campaña con índices de masculinidad elevadísimos (...) (BARRAN, 1991, p. 147). Apesar de considerar que a barbárie resulta de fatores sócio-histórico-econômicos e de investir numa oposição campo-cidade, Barran reconhece que há determinadas práticas que, não sendo exclusivas do campo, são por ele potencializadas. Ainda que este não seja um assunto sobre o qual Mayo se demore ao enfocar a vida das mulheres “de los sectores bajos”, o autor afirma que “es francamente impactante” constatar que a documentação judicial “hace referencia al incesto en presencia de los restantes miembros de la familia” (MAYO, 1996, p. 171). A natureza da documentação por ele utilizada – bastante distinta daquela de caráter religioso – permite que se tenha uma idéia das práticas condenadas, tais como a “persistencia de costumbres selvajes y indecorosas como la de dormir padres e hijos en un mismo dormitorio” (apud MAYO, 1996, p. 171). Mais uma vez, o termo utilizado na documentação se reporta à idéia de um comportamento selvagem. Ao viverem todos sob o mesmo teto, sem qualquer respeito à privacidade – tanto de parte dos pais quanto dos filhos –, mantendo a prática da satisfação imediata dos desejos carnais sem quaisquer pudores, estas pessoas estavam adotando uma conduta anti-humana, selvagem, fora dos roteiros possíveis do teatro da civilização . As Cartas Ânuas da Província Jesuítica do Paraguai, por sua vez, não se furtam em trazer estes problemas à tona. Como exemplo, destacamos o “caso de cierto matrimonio inválido, por un impedimento dirimente de ambos esposos supuestos, el cual los hizo vivir incestuosamente, ya por cuarentas años continuos”. (C.A. 1735-1743, p. 237) Como era de se esperar, um caso de tamanha gravidade não seria considerado normal ou relevado pela Companhia diante de razões próprias da sociedade rural. Por outro lado, acreditamos, as populações camponesas do Prata tinham consciência de que sua situação estava em desacordo com as normas cristãs. Ainda que, em muitas regiões da Província Jesuítica do Paraguai, não houvesse missões campestres anuais, elas não era totalmente desassistidas. Um caso ocorrido na área rural de Corrientes, em 206 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos 1739, ilustra bem isto: uma moça que havia se entregue a sua “desenfrenada lujuria, tanto que después de haber cometido ya imemerables pecados de toda clase, al fin comenzó a vivir en unión ilícita con su propio Padre” (C.A. 1735-1743, p. 168). Interessante notar que ainda que os estudos até aqui feitos não registrem missão campestre específica na região de Corrientes, a documentação indica, na chamada “grande carta” de 1735-1743, que ela era assistida de alguma forma pelos padres regulares, que teriam, inclusive, alertado o padre missioneiro que nessa região as missões não lograriam êxito. A moça, segundo a documentação, arrependida dos pecados que a haviam levado à “cloaca de males (...) poco tiempo después se enfermó gravemente, acabando sus días con el firme esperanza de alcanzar la eterna buena venturanza del ciel”. (C.A. 1735-1743, p. 168) Parece que encontramos aqui o que denominamos de “tática da boa morte”, empregada por indivíduos que, depois de anos em determinado pecado, após se conscientizarem de seu estado de saúde, alegavam arrepender-se, e, logo em seguida, vinham a falecer. Desta forma, acabavam por se beneficiar do melhor dos dois mundos. No mundo terreno, vivendo suas paixões, e no outro, o celestial, já livres dos seus pecados, teriam assegurada “su eterna salvación” (C.A. 1735-1743, p. 168). Ainda que essa seja só uma das interpretações possíveis destes acontecimentos, acredito que a ocorrência constante na documentação indique uma tática de “negociação” entre a vivência de suas paixões e o desejo de uma boa vida pós-morte. Ainda que a documentação da Companhia de Jesus, referente à região platina, não reconheça as especificidades da zona rural como atenuantes, encontramos algo que parece apontar nesta direção num relato sobre um caso acontecido na região de La Rioja em 1741. Neste registro, há uma referência à prática do “pecar por bestialidade”: “Al viajar, montado sobre una mula, por un lugar desierto, había consentido a una grave tentación del demonio pecando con la misma bestia con la cual andaba” (C.A. 17351743, p. 285). Embora o padre aponte o demônio como o promotor do pecado, não deixa de referir que o mesmo foi cometido em um lugar deserto, o que, além de favorecer a prática face à ausência de prováveis testemunhas, teria levado – pela solidão e pela distância de tudo e de todos – a uma situação de fragilidade diante da tentação. Cabe lembrar que o termo “deserto” reporta à idéia de um espaço geográfico específico. Vai além de um lugar temporariamente sem pessoas por perto, mas, 207 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira sim, refere-se uma espacialidade não ocupada, mesmo por pequenas vilas, ou estâncias, um lugar carente de civilização e, portanto, incapaz de proporcionar a sociabilidade. Em outro relato – que informa sobre o ocorrido na zona rural de Assunción, em 1738 –, o jesuíta se refere a um homem que possuía o mau “costumbre de pecar por bestialidade”, e que”muchas veces había hecho propósito de procurar la salud de su alma”, mostrando ter consciência de seu pecado. Estas demonstrações de arrependimento, no entanto, não o impediam de manter a prática condenada pela Igreja, pois, mesmo fazendo confissões e propósitos de mudar seu comportamento, sempre acabava por praticar “nuevos crimenes”. O relato informa que, ao ser descoberto, “no se atrevió a acercarse más al tribunal de la penitencia” (C.A. 1735-1743, p. 242), uma vez que sua “atuação dentro da atuação” do teatro da fé havia sido desmascarada e não seria mais permitida. Além dos pecados de ordem sexual – a paixão da luxúria –, a documentação consultada parece indicar que as paixões relacionadas ao jogo, aos excessos com a bebida e à violência foram também potencializadas pelas características do espaço rural. Dentre os trabalhos desenvolvidos no campo, especialmente a pecuária proporcionou uma fartura que, com certeza, possibilitou que o ócio se fizesse presente. Este aspecto da cultura campestre foi destacado pelo viajante inglês James Weddel, que, ao visitar o Uruguai no início do século XIX, ressaltou que a população não “se distingue por su laboriosidad siendo bastante adicta a la holgazanería y a la embriaguez (...) con tres días de trabajo por semana, dada la baratura de las provisiones, les basta para mantener-se” (BARRAN, 1991, p. 33). Além da bebida, também o jogo, segundo Barrán, tinha importância na vida dos camponeses, sendo o “ocio, condición no necesaria pero sí ambientadora del juego” (BARRAN, 1991, p. 131). O estudo de Mayo reforça as conclusões de Barran, pois ao analisar a documentação judicial referente à população pampeana, pôde constatar que “el juego era una de las actividades favoritas de los vagabundos. Sobre un total de 55 processados por vagabundaje, 27, prácticamente la mitad, fue acusada de jugar asíduamente” (MAYO, 1996, p. 160). Também nas Cartas Ânuas encontramos relatos que revelam que os padres tinham consciência de que o ambiente rural favorecia o ócio – especialmente para os que se dedicavam à criação de gado – permi- 208 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos tindo a vivência exacerbada de certas paixões que encontravam terreno ainda mais fértil no campo. Nelas, os campesinos são descritos como aqueles que “tienen ocio de sobra” e as dificuldades enfrentadas são ressaltadas, pois “hay una cosa que cuesta mucho remediar, y es quitar a esta gente el vicio del juego” (C.A. 1750-1756, p. 8). O jogo, ainda que muitas vezes tolerado – especialmente pelos padres regulares –, já que, segundo Barran, se “vinculaba sobre todo a las fiestas religiosas” (1991, p. 131), era motivo de grande preocupação dos padres da Companhia de Jesus. Na Carta Ânua de 1735-1743, há uma referência explícita dos efeitos desastrosos do vício, ao relatar o caso de certo homem que, após ter “perdido en juego toda su fortuna”, ficou transtornado e, tentando aplacar sua raiva, “traspaso con su puñal las imagenes del Santo Cristo crucificado, y de la virgen”. A desgraça que recaiu sobre o jogador abandonado pela sorte, levou-o a cometer o grave pecado da blasfêmia – “tal grado de insensatez” – que, segundo o jesuíta, tivera como causa a “pasión del juego” (C.A. 1735-1743, p. 173). Conforme o conceito de paixão por nós utilizado, ela é percebida de formas distintas e complementares pelos jesuítas em missão. A primeira percebe a paixão como sofrimento, a segunda, herdeira da tradição aristotélica e tomista, define a paixão como pulsão, força motriz que reage em conseqüência de estímulos externos, e daí a esperança de conversão colocada nos sermões emocionados, tão característicos das missões que buscavam redirecionar a força da paixão do pecado para a virtude. A terceira, herdeira dos neoplatônicos, dos escritos neotestamentários e de Santo Agostinho, define a paixão como essencialmente má e pecaminosa, além de ser geradora de outros pecados, uma força intensa, excessiva e fugaz que só tem como resultado o sofrimento, a desgraça e o distanciamento de Deus. Ao definir o jogo como uma paixão, como um pecado a ser combatido – como sugere a passagem de que “estos jugadores persiguen los padres con gran energía” (C.A. 1750-1756, p. 8) –, a documentação jesuítica dá respaldo para que se sustente a proposta de que a paixão foi, em muitos casos, percebida e combatida como sinônimo de pecado. Ao tomarmos a paixão como pecado e, também, como o que promove o pecado, não podemos desconhecer a existência de outros pecados/paixões que normalmente acompanhavam o jogo: a luxúria, 209 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira a “borrachera” e a violência física. Segundo Mancilla, nas áreas rurais, os espaços onde essas paixões atuaram como atrizes principais teriam sido (...) las pulperías (que) se convertieron en un espacio de sociabilidad popular. Ellas albergaron el ocio, el juego, la violencia, pero también los fandangos y chinganas que eran animados por los infaltables vinos y aguardientes cuyanos. Las pulperías fueron...ese pequeño almacén de menestras que expendían las vitullas más indispensables para el consumo popular, pero donde también, al abrigo del mostrador o en la trastienda del regente, se desarrolló una tertulia popular, germen de una sociabilidad popular (MANCILLA, 2005, p. 110). As pulperias ocuparam lugar de destaque na vida campesina por sua importância econômica. Nelas, a população rural se abastecia de gêneros de primeira necessidade que, no geral, não produzia. Ao seu objetivo original, no entanto, foi acrescido, segundo Mancilla, um outro, que talvez não estivesse nos planos iniciais das autoridades que idealizaram estes estabelecimentos, pois “las pulperías no fueron ese idílico comercio colonial que aprovisionaban a la población y concedidas por los cabildos a mujeres viudas” (MANCILLA, 2005, p. 123). Ou seja, aquilo que foi pensado para ser um posto de comércio avançado, mediante concessão dada pelos cabildos às mulheres desassistidas, muito cedo passou a ter – pela criatividade e necessidade das populações campestres – outro uso, distinto daquele idealizado pelas elites políticas e civis. As pulperias acabariam, assim, se transformando em espaço de vivência das paixões. Na verdade, as pulperias, “mas bien fueron improvisados ranchos de paja y barro que albergaba el juego, la embriaguez y la prostituición, escenario de fandangos, pero también de las más violentas pendencias.” (MANCILLA, 2005, p. 123) A importância que adquiriram as pulperias não se limitou à região de San Juan de la Frontera. A descrição típica de uma pulperia do interior da região de Buenos Aires era a de um lugar “donde los gauchos bebían aguardiente hasta embriagarse, mataban el tiempo jugando al truco y entregaban la vida en duelos a cuchillo, podía ser también y para sumarle mayor sordidez un prostíbulo” (MAYO, 1996, p. 139). Também o pampa uruguaio teria sido, durante os séculos XVIII e XIX, palco de “la danza lasciva, la bebida y el desorden en el porte, financiadas e promovidas “por los pulperos y demás personas del comercio” (BARRAN, 1991, p. 139). 210 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Não quero, no entanto, propor que, ao concederem ou autorizarem o funcionamento das pulperias, as autoridades o fizessem inocentemente e desprovidas de interesses. Pelo contrário, é possível dizer que “existió un doble discurso de la elite local, aquel que intentó condenar las pendencias y las borracheras en el interior de las pulperías, y la que favoreció y estilmuló, en alguna medida, el consumo de alcohol entre la peonada rural” (MANCILLA, 2005, p. 126). Acredito que mesmo aquele grupo que se beneficiava economicamente do consumo de bebidas alcoólicas logo perdeu o controle da tênue relação entre seu interesse econômico e as conseqüências desta prática, pois “los rústicos ranchos que servían de pulperías y que no estaban bajo el control del cabildo se multiplicaron en el mundo rural, dando lugar a una forma de sociabilidad popular que nada tenía que ver con el nuevo espíritu reformador de los sectores dominantes, ni con sus intereses” (MANCILLA, 2005, p. 137). As pulperias se fizeram presentes numa vasta área geográfica e por um longo tempo. Referências a sua existência e importância como espaço de sociabilidade e de suas muitas funções como bolicho, casa de jogos, casa de bailes, ponto de encontro, casa de prostituição e, mesmo, local de ocorrências de peleias são encontradas do pampa ao sul de Buenos Aires no século XVIII (MAYO, 1996, p. 153), passando pelos campos ao pé dos Andes de San Juan de la Frontera (MANCILLA, 2005, p. 109), até o Uruguai do início do século XIX (BARRAN, 1991, p. 139). Como era de se esperar, as pulperias, como lugar de vivência das paixões que eram, extrapolaram sua condição de espaço de sociabilidade popular, transformando-se em símbolo de um modo de viver, de se divertir, de amar e de odiar que não mais podia ser tolerado pelas autoridades. Já sob a jurisdição de Córdoba, as pulperias acabaram sendo alvo de uma série de bandos de Buen Gobierno, tanto das autoridades de San Juan de la Frontera quanto de Buenos Aires, que pretendiam “condenar y contener aquellos desórdenes”, referindo-se ao que acontecia nas pulperias e procurando conter os abusos, assim como disciplinar seu funcionamento. Em mais uma tentativa, (...) la autoridad ordenó a los jueces que cumplieran la política de control sobre aquellos hombres. En mayo de 1776 las autoridades insistían en reglamentar el funcionamiento de las pulperías, sobre todo porque ellas se mantenían abiertas hasta los días consagrados: ‘Por tal razón se ordena y manda que, estén cerradas las pulperías todos los días y noches excepto 211 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira las dos horas que van desde las diez de la mañana hasta las doce de la misma o medio día’. Las autoridades de San Juan de la Frontera reglamentaron hasta los más mínimos detalles del funcionamiento de las pulperías, llegaron a pensar incluso que al reducir el número de horas de atención se evitarían las pendencias y muertes. Dispusieron los días que debían abrir, los horarios en que debían atender, y los productos que podían comercializar; prohibieron taxativamente la venta y el consumo de alcohol, tanto dentro como fuera de las pulperías y la permanencia de personas de extraña condición en ellas (MANCILLA, 2005, p. 136). Os problemas que as autoridades da América espanhola encontravam com as muitas horas de ócio que tinham os homens ligados ao trabalho com gado, que se dedicavam à “vadiagem”, às bebedeiras e aos divertimentos “mundanos”, provocaram várias tentativas de regulação, contenção e até mesmo proibição, aproximando-se das medidas adotadas pelas autoridades da América portuguesa. O ambiente de relativa “liberdade” desfrutada por negros, mulatos e brancos pobres envolvidos no trabalho da extração do ouro promoveu uma série de confusões, brigas e mortes na região das Minas Gerais no século XVIII, sobretudo nas vendas que abasteciam os arraiais. Diante disso, as autoridades também procuraram, de alguma forma, instituir regras que garantissem mais segurança e tranqüilidade, como através da medida que “procurou controlar o consumo de aguardente pelos negros e mestiços nos engenhos próximos aos caminhos e buscou restringir o comércio de pólvora” (ANASTASIA, 2005, p. 15). Apesar de as pulperias não serem referidas explicitamente nas Cartas Ânuas consultadas, há indicações de que elas preocupavam os padres da Companhia de Jesus: “se retiran ellos (os jugadores) a lugares apartados y a la espesa selva, como si fuesen fieras y pierden allí por el juego semanas y meses enteros. Cuantos robos de allí se saltan, esto se puede conjeturar fácilmente” (C.A. 1750-1756, p. 8). As descrições feitas do lugar e das atividades nele realizadas nos levaram a inferir que o que preocupava os jesuítas, provavelmente, eram as atividades ilegais e as conseqüências imorais e pecaminosas, principalmente de alguns tipos de jogos proibidos, como a taba, muito apreciado nas pulperias clandestinas. Cabe retomar aqui tema discutido anteriormente, o da referência à selva como o lugar próprio das paixões. Os jogadores compulsivos, segundo informações dadas pelos padres, jogavam por semanas e meses, se embrenhavam na selva espessa como se fossem feras. A li212 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos gação entre a paixão e a barbárie é retomada, a mata fechada e o comportamento animal são, respectivamente, o lugar e a práxis da paixão. A pulperia, provavelmente um rancho improvisado em algum campo longínquo ou alguma mata fechada, não aparece como uma ilha de civilidade no mar verde do pampa ou da selva. Pelo contrário, é associada ao espaço rural, que provê as condições para a reunião dos homens-feras entregues a seu comportamento apaixonado e bárbaro. Outra menção – não explícita – feita às pulperias e ao perigo que representavam é encontrada nas Cartas Ânuas de 1735-1743, que referem o caso de certo “borracho” da região rural de La Rioja, que, em 1742, teria sofrido um acidente por intervenção divina enquanto se dirigia “hacía cierta casa, donde sabía que se divertían mundanamente” (C.A. 1735-1743, p. 290). Interessante notar a relação estabelecida entre paixão-pecado, punição e a casa de divertimento mundano mencionada pelo padre. Por outro, se entendermos o espaço campestre platino como aquele que permitiu a encenação de uma elaborada peça profana e violenta, a pulperia pode ser vista – mais do que qualquer outro espaço – como o palco que deu visibilidade às atuações dos múltiplos atores que ali viveram e interpretaram suas paixões. Pensamos que também seja plausível imaginar que neste espaço diferentes tipos de peças tenham sido encenados. Desde os alegres fandangos e as galhofas entre amigos até as corridas a cavalo e jogos, nem sempre com finais felizes, dos possíveis enredos românticos que possam ter surgido entre homens simples e mulheres da baixa sociedade, até as relações muito mais eróticas do que emocionais entre peões e mulheres de “má vida”. As pulperias foram, nesta perspectiva, o espaço em que as paixões foram vividas em toda sua plenitude. E, se as paixões são sinônimo de intensidade e excesso, também o foram quando se tratou de violência. Nas pulperias “la violencia se percibía por doquier, solo faltaba un roce, una mala palabra para que las cuchillas salieran a relucir” (MANCILLA, 2005, p. 123). Barran confirma esta percepção ao afirmar que a sensibilidade – por ele chamada de “bárbara” – estava calcada em um tripé composto pela sexualidade, pela violência e pela “actitud ante la muerte” (BARRAN, 1991, p. 12). Dados judiciais referentes a San Juan de la Frontera enumeram pelo menos 18 crimes, entre 1770 e 1775, todos ocorridos em pulperias, sendo que alguns dos agredidos acabaram mortos. 213 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira Importante dizer, ainda, que “en los procesos judiciales analizados los acusados se encontraban alcoholizados al momento de la agresión” (MANCILLA, 2005, p. 121. Por outro lado, acreditamos que se possa pensar as ações violentas como uma “necessidade de afirmar-se ou defender-se integralmente como pessoa”, que surge conjugada à valorização de determinadas condutas “como a bravura e a ousadia”, tornando, nesses casos, “realmente, a ação violenta não apenas legítima, mas imperativa” (FRANCO, 1983, p. 36). Silveira, por sua vez, corrobora esta opinião quando refere que, ainda que “parecessem ilógicos, os atos violentos participavam de uma racionalidade global que lhes conferia sentido. Matar era, muitas vezes, um gesto público de vingança capaz de sublinhar a grandeza; era, portanto, um modo particular de ser virtuoso” (SILVEIRA, 1997, p. 148). Em um mesmo palco, a luxúria, o jogo, a borracheira e a violência própria do corpo “escasamente encorsertado por la ropa, las reglas de urbanidad, las convenciones emanadas de la tradición y las jerarquias sociales” (BARRAN, 1991, p. 100), atuavam na composição de um enredo intenso, excessivo, na maioria das vezes violento e, por vezes, mortal. Nas Cartas Ânuas, o ódio gerador da violência é tratado como paixão. O caso de um homem que precisou da intervenção divina para dar-se “cuenta de su ciega pasión” (C.A. 1735-1743, p. 117) e abandonar seu plano de assassinar um inimigo exemplifica a gravidade atribuída pelos inacianos aos pecados decorrentes da ira. Sabiam os padres que homens rudes, por vezes sob o efeito do álcool, eram fortes candidatos a se deixarem dominar por esta paixão e, assim, cometerem crimes graves. É certo que as pulperias também foram palco de inúmeros duelos que resultaram em muitas mortes ou determinaram ódios mortais. Entretanto, a documentação indica que a paixão do ódio não foi exclusividade dos “bárbaros” freqüentadores das pulperias. Segundo Zen, em “todos os lugares em que os missionários pregavam missões encontravam pessoas que viviam uma relação de inimizade” (ZEN, 1995, p. 125). O problema era de tal ordem que “outra função que nunca faltava nas missões era o que se chamava de perdão dos inimigos” (ZEN, 1995, p. 119). Portanto, se o ódio não foi exclusividade dos campesinos, assim como outras paixões aqui já descritas, acreditamos que seja possível 214 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos afirmar que os homens e as mulheres do Prata – dos núcleos urbanos ou rurais – viveram intensamente suas paixões sempre que puderam. Por vezes, de forma frouxa e despreocupada; em outras ocasiões, de forma escondida e velada. Tanto os inacianos quanto as elites civis quiseram, através da antinomia “civilização x barbárie”, atribuir aos moradores do campo um comportamento passional predeterminado que não foi, como procuramos demonstrar, exclusivo dos campesinos. Por outro lado, as fontes consultadas revelam que algumas dessas paixões assumiram feições muito próprias, em decorrência das características do ambiente rural. A ausência de vigilância e de controle próprios do espaço urbano e civilizado permitiram que as populações campesinas vivenciassem suas (próprias) paixões com uma relativa liberdade. Não cremos, entretanto, que isso os caracterizasse como “bárbaros”, uma vez que simplesmente fizeram “uso” de um ambiente que, por facultar um pouco de “invisibilidade”, permitia que desfrutassem de certa licenciosidade. Seus pares urbanos, por outro lado, também viveram suas paixões intensamente, tendo que, no entanto, imprimir muito mais energia e criatividade para alcançá-las. Referências 1 Fontes Carta Anua de 1612. Documentos para la Historia Argentina. Tomo XIX, Buenos Aires, 1927. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A.). Anõs 1730-1735. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS,1994. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A.). Anõs 1735-1743. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS,1994. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A.). Anõs 1750-1756. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay (C.A.). Anõs 1756-1762. Tradución de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Tradução Digitada, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1994. 215 As paixões e o campo platino: a barbárie e a sensibilidade dos excessos • Luís Alexandre Cerveira 2 Livros, artigos e dissertações ANASTASIA, Carla Maria Junho. A geografia do crime: Violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões. Bauru: EDUSC, 2000. BARRAN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay: La cultura bárbara (1800-1860). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental-Facultad de Humanidades y Ciencias, 1991. ______. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. El disciplinamiento. 18601920. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental Uruguay, 1990, v. 2. BÍBLIA Sagrada. Edição Revista e Atualizada no Brasil. Trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2004. CERVEIRA, Luís Alexandre. 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Entre elas, lê-se: E porque a experiência nos ensinou que esta vida traz consigo muitas e grandes dificuldades, julgamos ainda conveniente determinar que ninguém seja recebido nesta Companhia se não for provado durante muito tempo e com toda a diligência; e quando se mostrar prudente em Cristo e eminente, quer na doutrina, quer na pureza da vida cristã, então, finalmente, seja admitido na milícia de Jesus Cristo1 ([1540] LOYOLA, 2004, p. 35-36). Pode-se perceber que, desde a oficialização desta ordem, o experimento ocupa um espaço importante para a confirmação e a reescrita dos preceitos da instituição. Um outro exemplo do que afirmamos é a Carta Apostólica Exposcit debitum do papa Júlio III, datada de 21 de julho de 1550, que ratifica as fórmulas anteriores “mais exata e claramente, como fruto das lições da experiência e do uso das coisas” ([1550] LOYOLA, 2004, p. 29). Neste documento, quanto à admissão é dito: E porque a experiência nos ensinou que esta vida traz consigo muitas e grandes dificuldades, julgamos ainda conveniente determinar que ninguém seja admitido a fazer profissão nesta Companhia sem primeiro ser conhecida a sua vida e doutrina, com demoradas e diligentíssimas provas (...) Com efeito, este Instituto exige homens inteiramente humil- Fabiana Pinto Pires é Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected] 1 A não ser nos casos expressamente identificados, os grifos são da autora do capítulo. 218 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos des e prudentes em Cristo, e notáveis na pureza da vida cristã e nas letras ([1550] LOYOLA, 2004, p. 35-36). Desde o início da formação dos inacianos, o espaço da experiência é prescrito pela Companhia. A partir dela, almeja-se atingir como “deve ser” o jesuíta. Na parte nomeada “Três tempos em que se faz boa e sadia eleição”, dos Exercícios Espirituais, Inácio de Loyola destina o primeiro tempo à atração e à mobilidade da vontade da pessoa espiritual por Deus, de modo que “a pessoa segue o que lhe foi mostrado, sem duvidar nem poder duvidar”. Sendo assim, no segundo tempo, “a pessoa chega à bastante clareza e conhecimento pela experiência de consolações e desolações, e pela experiência do discernimento de vários espíritos” ([1548] LOYOLA, 2006, Exercícios Espirituais2 175-176, p. 73-74). Se antes Deus manifestava-se diretamente ao exercitante, nesta segunda etapa, Sua presença é compreendida indiretamente em diferentes momentos. A experiência produz a reflexão sobre o vivido, o discernimento ([1548] LOYOLA, 2006, EE 336, p. 127-128). Portanto, a partir do que foi experimentado e conhecido, seria possível guardar-se “doravante, de seus costumeiros enganos” ([1548] LOYOLA, 2006, EE 334, p. 127). A experiência parece ser o caminho para a reflexão, o discernimento e, conseqüentemente, o conhecimento. Segundo as normas complementares das Constituições da Companhia de Jesus, “o processo da formação apostólica deve favorecer a assimilação pessoal da experiência cristã: uma experiência espiritual, pessoal, vital, radicada na fé”, que torne os religiosos aptos a cooperar com o progresso espiritual dos fiéis e a comunicar a fé aos não-crentes (65, [1558]3 LOYOLA, 2004, p. 259). Os exercícios espirituais comporiam, por exemplo, uma experiência profunda para reavivar a fé, a esperança apostólica de perseverar na missão (246, parágrafo 6, [1558] LOYOLA, 2004, p. 317). Conforme Paulo Roberto Pacheco: Aprende-se a ser jesuíta “experimentando” o que seja ser um jesuíta. E o que é ser um jesuíta? Passar por exercícios espirituais, fazer peregrinação, trabalhar a serviço de pobres: o que é isso? É a vida de Inácio: uma 2 3 Exercícios Espirituais, doravante EE. É interessante observar que o texto da Constituição foi apresentado em 1550 a quase todos os padres professos por Inácio de Loyola. Após realizar modificações indicadas pelas observações de todos e pelas sugestões extraídas de experiências cotidianas, as Constituições foram apresentadas para promulgação na Espanha em 1553. Em 1558, a Congregação Geral em Roma realizou a última revisão antes da aprovação unânime (RIBADENEIRA. In: LOYOLA, 2004, p. 20). 219 Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires experiência-modelo que, aqui, deixa de ser a descrição de uma experiência espiritual, para se tornar à prescrição explícita de um modelo de imitação (2004). Desta maneira, o discernimento constrói-se, também, pela experiência exemplar. Implícito no exemplo está o fato de os Exercícios Espirituais “terem sido escritos somente um ano após o acidente de batalha que levou Loyola a abandonar sua carreira militar”, sendo, portanto, uma reprodução da “mentalidade medieval das ordens militares, particularmente no tocante à obediência à Igreja” (EISENBERG, 2000, p. 35). Logo, a experiência alheia é, igualmente, importante para a confirmação da vocação religiosa. De acordo com as normas, a experiência de outros inacianos ajuda a aprofundar a avaliação e a reflexão durante a formação permanente do missionário (242, parágrafo 1, [1558] LOYOLA, 2004, p. 311-312). Os idosos e doentes auxiliariam nesta reflexão ao compartilhar “a sabedoria acumulada pela experiência do serviço à nossa missão” e animar pelo exemplo de entrega filial e confiante a Deus (norma 244, parágrafo 1, [1558] LOYOLA, 2004, p. 312-313). As normas recomendam que os missionários compartilhem experiências também com membros de outras religiões, “a fim de ajudálos a experimentar o amor compassivo de Deus em suas vidas” (270 parágrafo 3, [1558] LOYOLA, 2004, p. 326). Segundo a norma complementar 99, parágrafo 2, “a formação deve favorecer a sintonia do jesuíta com o povo ao qual é enviado, de modo que seja capaz de partilhar seus sentimentos e valores, sua história, experiência e aspirações”, permanecendo aberto aos sentimentos e valores de outras culturas ([1558] LOYOLA, 2004, p. 267). Assim, a norma 107 indica que o Superior procure que os jovens tenham uma formação com diversas experiências, conforme os dotes de cada um, considerando as obras apostólicas da Província e da Companhia ([1558] LOYOLA, 2004 p. 269). Para os inacianos, a vocação é promovida de forma ampla a partir da reflexão sobre “a experiência e cultura daqueles aos quais [buscam] servir, inclusive as culturas minoritárias, os migrantes e os povos indígenas” (norma 412, parágrafo 3, [1558] LOYOLA, 2004, p. 379). Logo, a reflexão sobre as experiências e a cultura dos indígenas faz parte dos ordenamentos institucionais. Após compreender o espaço que a experiência ocupa nos documentos institucionais fundantes e normativos, é impróprio continuar a análise sem clarificar o emprego dado ao termo “experiência” pelos 220 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos jesuítas. Para tanto, a análise de Paulo Roberto Pacheco parece ser a mais adequada: O termo experiência deve ser entendido a partir de um complexo feixe de influências: além da assumida posição filosófica aristotélico-tomista, é preciso dizer que parece existir também uma influência agostiniana. E, para além do aspecto puramente filosófico, quando se fala de experiência na Companhia de Jesus, se está tratando com uma categoria que também pertence ao universo da regulação tanto espiritual e corporal quanto jurídica e institucional (PACHECO, 2004). Nesta perspectiva, ao provocar inquietações e possível reflexão, a experiência produz um conhecimento moral a partir do que foi vivido. Entretanto, é importante lembrar a ressalva de Charlotte de Castelnau-L’Etoile quanto ao “nosso modo de proceder” dos jesuítas. Este não pressupunha que todos os inacianos necessitassem ser idênticos ou fazer a mesma coisa. Ao contrário, o que as Constituições prescreviam era que agissem da mesma maneira. Conforme Castelnau-L’Etoile, “as Constituições não são regras estáticas, mas dinâmicas, descrevendo a aquisição de uma identidade e não a identidade em si mesma”, por isso, “definindo um estilo, uma maneira de proceder, as Constituições designam uma liberdade de agir a cada um, liberdade que idealmente todo o jesuíta incorporado à identidade da Companhia saberá delimitar em fronteiras aceitáveis pela instituição”. Deste modo, as experiências locais constituem a práxis do princípio de adaptabilidade da Companhia: “cada regra remete o jesuíta à sua capacidade de discernimento e à sua liberdade de agir e está enunciada: ‘pode ser assim, salvo se for outra situação’” (2006, p. 69)4. O presente estudo almeja analisar de que forma o exórdio5 traduz experiências inacianas nos registros referentes à Província Jesuítica do Paraguai, no século XVII. Como fontes de análise, serão utilizadas a obra Conquista Espiritual de Antônio Ruiz de Montoya S. J. e a Coleção De Angelis, que é composta por correspondências oficiais e internas de jesuítas missionários. Entretanto, apresenta-se como premissa que constitui esse objeto o que Eliane Fleck nomeou de “a conversão como enredo”. Para melhor compreensão: 4 5 A autora refere-se à fórmula citada na introdução das Constituições da Companhia de Jesus. Oportunamente será definido o emprego do termo aplicado aqui. 221 Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires Ao serem contadas, as experiências são transpostas para o registro da narrativa, transformando-se em textos que são regulados por regras e convenções que regem esse domínio e que são próprias do ambiente sóciohistórico que as criou (FLECK, 2007, p. 66). A análise do processo de produção desses registros de experiência é, por conseguinte, o próximo passo. A experiência do registro jesuítico Em “Espelho de Heródoto”, François Hartog afirma que “a retórica de alteridade constitui o operador da tradução”. Conforme o autor, “é ela que faz o destinatário crer que a tradução é fiel”, pois produz “um efeito de crença” (1999, p. 273). Sendo assim, o processo de fazer crer fundamenta-se na tradução da diferença a partir da retórica da alteridade6. Desta forma, é estabelecido um canal de comunicação entre o narrador e o destinatário. A experiência da aproximação ou da estranheza é traduzida pela operação semântica7. Em relação aos jesuítas, a tradução se dá pela linguagem religiosa. Conforme Cristina Pompa, “a linguagem religiosa parece tornar-se o terreno de mediação onde cada cultura pode tentar ler a diversidade da outra e onde a alteridade pode encontrar seu sentido e, portanto, sua ‘tradução’ em termos culturalmente compreensíveis” (POMPA, 2003, p. 56). “No caso das Anuas, ainda que esta alteridade permaneça abominável e condenável para o missionário, passa a fazer sentido para ele, dando início àquilo que denominamos de exegese, de interpretação da experiência” (FLECK, 2007, p. 76). Essa interpretação das experiências é registrada a partir da arte de escrever cartas: ars dictaminis. Porém, esta não é uma ação livre de regramentos institucionais. Cumprindo as prescrições estabelecidas, os missionários necessitam traduzir-se – e às suas experiências – para a própria Ordem. Conforme as Constituições da Companhia: Conforme Hartog (1999), traduzir, nomear, classificar e descrever compõem a retórica da alteridade. 7 Em “Psicologia dos jesuítas: uma contribuição à história das idéias psicológicas”, Marina Massimi analisa a medicina de ânimo como componente da dimensão da “psicologia” jesuítica. Neste aspecto, a autora refere-se à importância dada por Loyola ao conhecimento do temperamento do destinatário pelo remetente das correspondências (2001, p. 5). Assim, o jesuíta busca a experiência da aproximação. Quanto à estranheza, João Adolfo Hansen afirma: “toda diferença da experiência é traduzida como um análogo distante, por isso mesmo reconhecível e identificável, quando sua estranheza é interpretada pela Palavra que se espelha na proporção da retórica do discurso” (1995, p. 94). 6 222 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos As cartas enviem-se fechadas, de modo a ninguém saber o que o outro escreve. Quando o Superior Geral ou o Provincial quiserem informações mais completas, hão de escrever, não só o colateral, o síndico e o conselho a respeito do Reitor e de todos os outros, mas cada um dos professores e dos escolásticos aprovados, assim como os coadjutores formados, manifestando o que sentem de todos, e entre eles do Reitor. E para que isso não pareça inovação, dar-se-ão essas informações como coisa normal, pelo menos de três em três anos (507, LOYOLA, 2004, p. 150). As análises de Charlotte de Castelnau-L’Etoile e Cristina Pompa são lembradas, aqui, como exemplos complementares de sistematização do papel das correspondências no governo da Companhia de Jesus. Castelnau-L’Etoile afirma: A correspondência tinha assim um papel estrutural na organização da Companhia de Jesus: ela reforçava a identidade do grupo disperso, permitia adaptar as regras às circunstâncias locais e dava ao centro [Roma] o meio de exercer uma forma de controle (CASTELNAU-L’ETOILE, 2006, p. 76). Assim, os princípios institucionais de corpo místico8, obediência e adaptabilidade, são plenamente atendidos pela obrigatoriedade da escrita. Para Cristina Pompa, a atividade epistolar dos jesuítas foi verdadeira chave de todo seu sistema missionário. Sua importância justifica o fato de que, diferentemente de outras atividades deixadas à iniciativa individual, esta era regulada por prescrições rígidas, que distinguiam gêneros epistolares conforme o conteúdo e os destinatários. A obrigatoriedade institucional de escrever respondia a várias exigências: a difusão e ‘propaganda’ dos resultados da catequese para o mundo externo (incentivando também as vocações), a de controle do governo central da ordem sobre os membros dispersos e, finalmente, a de reconfirmação permanente da identidade desses membros (POMPA, 2003, p. 81). Instrumentos necessários para estabelecer contato diante da complexa mobilidade que os missionários da Companhia de Jesus se dispunham a viver, as cartas atendem a intencionalidades diferentes, conseqüentemente o estilo se adapta a estas distinções. Em “Cartas à 8 Em relação ao principio do corpo místico, este é “unificado na vontade de integração de seus membros, aristotelicamente todos amigos uns dos outros porque, pelo autocontrole, abrem mão de toda veleidade pessoal e atingem o domínio das paixões, a concórdia e a paz necessárias para o perfeito funcionamento da Ordem” (HANSEN, 1995, p. 111). 223 Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires Segunda Escolástica”, Alcir Pécora analisa a arte de escrever cartas dos jesuítas. Segundo este autor, Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, determinou que os padres fizessem uma carta principal que “guardasse ordem” e “desse edificação a quem lesse” (PÉCORA, 1999, p. 382) As cartas deveriam conter um estilo conciso e trabalhado com eloqüência madura. Para Pécora: As cartas estão longe de ser efeito espontâneo das novas experiências dos padres em regiões desconhecidas dos europeus. A preceptiva epistolar inaciana, amparada na longa e profícua reflexão medieval e renascentista do gênero, de alguma forma previa ou esboçava retoricamente os contornos básicos de personagens, ações e caracteres que jamais haviam visto antes (1999, p. 410). Deste modo, a escrita principal passaria por correções para atingir os objetivos de “mostrar e edificar”. Os detalhes sobre fatos mais particulares seriam deixados para os anexos ou para outras cartas internas (também conhecidas como hijuelas)9. Em “Escrevendo cartas. Jesuítas, escrita e missão no século XVI”, Fernando Londoño analisa o papel estratégico da escrita jesuítica, que não se limitava apenas ao ato de edificação. Conforme este autor, as cartas compunham “um sistema de informações que atuava como suporte para um sistema de decisões inaciano: hierárquico e vertical” (2002, p. 2-3). Sendo assim, a estratégia política da Companhia permanecia unificada, conforme determinação de seu fundador. Ratifica-se o corpo místico, referido anteriormente, composto por todos os inacianos: Ao escrever sobre sua missão, os jesuítas o faziam utilizando um registro ou tom inspirado na subjetividade de sua vivência do carisma inaciano. Como historiador, acredito que não consigo ouvir esse registro subjetivo considerando referências e maneiras de escrever só como edificantes. Da mesma forma, as informações presentes nas cartas não se deviam unicamente ao espírito de controle ou ao desejo de matar curiosidades (Assunção, 2000, pp. 81-89). Elas seriam recolhidas e enviadas à Europa constituindo textos diferenciados, produzidos como parte de um projeto missionário que estava sendo construído e para o qual o poder sempre foi uma referência fundamental. E nessa construção da missão, a escrita cumpriu um papel estratégico (LONDOÑO, 2002, p. 2). 9 Nas Constituições da Companhia de Jesus foram estabelecidas as normas para estes registros. Ver LOYOLA, 2004, pp. 490, 504, 507, 673, 674, 675, 790. 224 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos O corpo místico interliga-se a partir da cabeça, do centro, de Roma. Entre as estratégias está o principio da eficiência na comunicação, como descreve Castelnau-L’Etoile: Essa comunicação tão importante para o funcionamento da ordem passa antes de tudo pela comunicação epistolar. De fato, segundo o princípio de eficiência caro aos jesuítas, uma carta viaja mais facilmente e a menor custo que um homem. Procura-se evitar os deslocamentos inúteis e apenas por meio de cartas trocadas o preposto geral “está em comunicação com toda a Companhia” (CASTELNAU-L’ETOILE, 2006, p. 72). Para tanto, vale lembrar o alerta feito por Pécora: “não se pode ler literatura convenientemente como documentação conteudística da realidade, quanto que apenas convém tomá-la como histórica”, pois “aquilo que ela tem de convenção e artifício é exatamente o mesmo que tem de produto histórico: enquanto ato de criação é também efeito criado, de tal modo que seu aspecto mais ‘formal’ e ‘interno’ é também o mais ‘público’ e o mais ‘datado’” (PÉCORA, 2001, p. 16). Após a análise das prescrições dos registros permanentes e compreensão dos alertas, almeja-se compreender de que forma o exórdio traduz experiências inacianas nos registros referentes à Província Jesuítica do Paraguai no século XVII. Passamos, então, das experiências de registros para os registros de experiências. As narrativas de experiências a partir do exórdio nas reduções inacianas do Paraguai do século XVII No início do século XVII, o Superior Geral da Companhia de Jesus fundou a Província do Paraguai, reunindo as regiões de Tucumã, Chile e Rio da Prata. Em 1603, ocorreu, em Assunção, o 1º Concílio do Rio da Prata, que objetivava reforçar os métodos de ensino da doutrina aos indígenas e as reformas de costumes dos espanhóis. O padre provincial do Paraguai, Diego de Torres Bollo, escreveu, por conseqüência do Concílio, duas Instruções (1609 e 1610). Os registros produzidos pelos missionários que estiveram na América Colonial, no século XVII, tinham os mesmos preceitos de todos os registros da Companhia de Jesus. Os jesuítas adquiriram a licença para atuar na América hispânica em 1588, após a aprovação pelo Conselho das Índias (trinta e nove anos depois da chegada dos primeiros missionários ao Brasil). Com a licença, pretendiam aproximar-se da cultura indígena local e realizar a “conquista espiritual”. 225 Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires Conforme ratifica Cristina Pompa, apresenta-se como elemento da “pedagogia jesuítica clássica: a utilização de elementos da cultura nativa como ‘linguagem’ para veicular conteúdos da fé católica” (POMPA, 2003, p. 53). Em “Máquinas de gênero”, Alcir Pécora analisa cartas de Nóbrega a partir da divisão do modelo histórico da ars dictaminis, em salutatio, captatio benevolential, narratio, petitio e conclusio (2001, PÉCORA, p. 33). Cada uma destas partes possui objetivos específicos em relação ao leitor. A salutatio é o início do exórdio, uma saudação piedosa de pouca variação. A segunda parte, a captatio benevolentiae, busca predispor o leitor para o que está por vir. Em muitas cartas, apresenta-se, nesta etapa, o sentido da escrita. A narratio constitui um relato do “estado das coisas” (2001, PÉCORA, p. 39). A petitio é “o pedido ou solicitação de providências ou medidas à autoridade competente” (PÉCORA, 2001, p. 61). Na conclusio, é comum “uma nova aplicação de petitio”, orações, devoção, bênção, um “remate da narratio” e “protestos de obediência” (PÉCORA, 2001, p. 62-65). A experiência aparece como filtro dessas diferentes etapas. Contudo, apesar de em determinados momentos serem manifestas as dificuldades, “as cartas não apresentam nenhuma evidência de desistência ou fracasso da ação”. Ao contrário, intensificam a obra sistematizada pela experiência (HANSEN, 1995, p. 106)10. Tal divisão é possível perceber, também, nos documentos da Província Jesuítica do Paraguai. Entretanto, os documentos apresentados aqui serão analisados apenas quanto ao uso do exórdio na narrativa de experiências, o que Hansen define como “pequenas referências ao pecado do ‘eu’ da enunciação”, ou, ainda, a composição do “éthos da humildade”, que “se heroiciza no ato de persistência” (HANSEN, 1995, p. 38). Um documento de Diego de Boroa apresenta um exemplo dos riscos que os inacianos enfrentavam. Na narrativa, o religioso afirma estar ciente de que os missionários poderiam morrer entre “filos de espada o ruedas de navajas por amor de Dios nro Sor” porque o objetivo final da missão era “conservar y dilatar la Sta fe, y los trabajos que se padeçen muchos y la falta de cossas necessárias en partes tan remotas muy grande” (BOROA [1614], In: Jesuítas e bandeirantes no Itatim, 1952, p. 12). Nota-se que, num contexto de instalação da mis10 Hansen analisa, também, as cartas de Nóbrega. Entretanto, a afirmativa pode ser direcionada as cartas referentes a Província Jesuítica do Paraguai. 226 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos são e, portanto, de expectativa, o amor a Deus justifica o risco. A experiência é um investimento projetado no futuro da missão. Deste modo, as dificuldades enfrentadas pelos inacianos possibilitam a construção de uma imagem positiva sobre si: “Todos los quales religiosos son buenas lenguas y experimentados en el ministério de los indios, personas doctas y toda satisfaccion” (TRUXILO [1633], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 20). Desta forma, os religiosos exaltam nos relatos suas habilidades, seus feitos e a humildade como enfrentam esse processo. Nos exórdios das cartas, os perigos da missão mesclam-se com a valorização dos trabalhos dos religiosos. Deste modo, apresentamse os dois elementos definidores de exórdio: a humildade e a heroicização. Segundo o padre Pedro Romero, em 1634, “dieron muy bien que merecer a los P.es Joseph Domenech y Antonio Pablo Palermo, sus curas; todos los dias daban el viatico a mas de treinta y quarenta personas, gastando todo el dia con los enfermos, dejando muy de ordinario el sueño y comida por acudirles con tiempo” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 42). Ao descrever a mudança de local das Reduções de Acarai e Iguaçu, o missionário refere-se aos religiosos como “verdaderos pastores trabajan sin cesar por guardar sus ovejas de los lobos visibles e invisibles que procuram quitarselas” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 46). Todos os trabalhos são exaltados pela documentação, pois os jesuítas são descritos pela coragem de enfrentar os perigos da missão. Sendo assim, expressões como “a costa del sudor y sangre de los hijos desta apostolica Prov.a” traduzem o esforço dirigido à missão. A noção de humildade indica, em alguns casos, um prenúncio de solicitação, pedido (na divisão de Pécora: petitio). Assim, os jesuítas expunham suas dificuldades aos Provinciais na tentativa de obterem uma melhor estrutura para os povoados. Em outro documento, padre Romero também escreve sobre este tema: “a todos acudindo el P.e Fran.co Clavijo que tubo esta reduccion a su cargo, comp.° del P.e Claudio Ruyer (...) repartiales todos los dias limosna de carne y muchas veces de maíz a hombres, mujeres y ninõs, que venian cada dia a nuestra puerta como a casa de sus verdaderos P.es” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 56). Contrapondo-se ao esforço missionário na narrativa, os padres descreviam sua discordância quanto ao desinteresse indígena em produzirem alimentos para 227 Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires o ano todo. Relatam um certo espanto com a falta de preocupação que os nativos apresentavam em relação ao futuro. Parece relevante indicar aqui a presença do binômio falsa/verdadeira religião, que permite a comunicação para conversão (POMPA, 2003, p. 49). Neste caso, aplica-se aos níveis de ordenamento cotidiano. De forma complementar, observa o relato do padre Pedro Mola, os religiosos “en este tiempo se les a acudido con mucho cuidado sin perdonar a ningún trabajo por grande que fuesse andando con el rigor del sol a bisitarlos por todas partes” (MOLA [1635], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 117). O cotidiano da missão exigia esforços físicos, descritos pelos religiosos como empenho espiritual. A missão exigia dedicação, pois, segundo o padre Antonio Ruiz de Montoya, tinha suas recompensas: “Cheguei à redução de Nª Sª de Loreto com desejos de ver aqueles dois insignes homens, que eram o Pe. José e o Pe. Simão. Encontrei-os em extrema pobreza, mas ricos assim mesmo de contentes” ([1639] MONTOYA, 1997, p. 50). A tradução da própria cultura indica ao leitor um estado de expectativa. Os religiosos eram mediadores que construíram uma realidade registrada, privilegiando a sua linguagem religiosa na tradução de experiências. Conforme descrição do padre Montoya: “enviou o Pe. Diogo de Torres à cidade de Guairá, que apenas constava de trinta homens, ao Pe. José Cataldino e ao Pe. Simão Masseta, sendo ambos eles italianos, valorosos missionários e filhos fiéis da Companhia, bem como apóstolos daquela gentilidade”. Os padres são referidos como tutores dos indígenas, “verdadeiros pastores” ([1639] MONTOYA, 1997, p. 37). As cartas jesuíticas fazem “uma triagem entre o que pode ser ‘compreendido’ e o que pode ser esquecido para obter uma inteligibilidade presente” (CERTEAU, 1982, p. 16). No entanto, é importante lembrar que, apesar de construírem um modelo de discurso com relação à cristianização dos indígenas, nos registros dos jesuítas é possível perceber as “operações heterogêneas que compõem os patchtworks do cotidiano” (CERTEAU, 1994, p. 46), principalmente quando o texto diz muito mais de quem escreve. Para exemplificar, lê-se o relato de um religioso sobre o padre Roque Gonzalez de Santa Cruz: “començó la Red.on de S. Nicolas, meramente con las armas de evangelio en las manos y en la boca” ([1635], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 130-131). 228 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Em um documento, o padre Romero descreve as dificuldades de manutenção do que chama de glorioso trabalho: “Muy consolados quedaron todos los Pes desta visita y de aver hablado y comunicado su consciencia con su Superior y Pe y muy animados en estos desiertos y soledades a llebar adelante una obra tan gloriosa y a procurar con todas veras la conversión destos pobres naturales, cada uno en el puesto que su Rª les señalo”. Numa narrativa de experiências coletivas, o padre relata que existem dificuldades, mas que os religiosos tratam mais de trabalhar do que exaltar seus feitos: “Y aunque es verdad que mas cuydan los Pes en ellos de obrar y trabajar que de escrebir ni apuntar sus gloriosos trabajos” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 40). O inaciano refere-se aos religiosos da missão como “verdaderos obreros Apostólicos que los [aos indígenas] amen y quieran mas en Jesus Xpo y se compadescan dellos com verdaderas entrañas de Padres” (ROMERO [1634], In: Jesuítas e bandeirantes no Tape, 1969, p. 34). O ápice do exórdio é percebido nas cartas que descrevem os martírios de integrantes da ordem. Para os religiosos, a empresa definia-se como prioridade, inclusive em relação à vida. O padre Montoya afirma que o martírio não é vergonha: “(...) na Província do Uruguai, onde o Evangelho entrou sem armas, derramaram o seu sangue cinco sacerdotes da Companhia com insignes martírios, isto não é fraqueza do Evangelho, mas fortaleza sua e risco eficaz para seu crescimento” ([1639] MONTOYA, 1982, p. 49). Os inacianos deveriam estar dispostos a todos os riscos. Conforme Diego de Boroa: “por la missericordia del Sr hemos tenido tanta estima de padecer por esta caussa, que lo tenemos por un gênero de martirio gloriossiss.o padeçer por ella y dichosso el que diera su vida por defender a la gente mas perseguida y dessamparada del mundo como son estos pobres yndios los quales padeçen siempre” (BOROA [1614], In: Jesuítas e bandeirantes no Itatim, 1952, p. 13). Considerações finais O presente estudo dispôs-se a analisar o espaço das experiências para a Companhia de Jesus a partir de amostras de documentos fundantes do Instituto e de Cartas Ânuas referentes à Província Jesuítica do Paraguai. Desde as primeiras leituras foi possível discernir que esta ordem religiosa possui uma das mais longas formações. Na 229 Registros de experiências jesuíticas nas reduções da Província do Paraguai (séc. XVII) • Fabiana Pinto Pires medida em que experiências, reflexões e discernimentos produzem alterações desde os documentos normativos, novos conhecimentos permitem novas experiências, novas reflexões. Entretanto, há preceitos definidos na Companhia, há a constituição de um corpo místico reforçado pela comunicação por cartas, que deve ser considerado. E, apesar do caráter edificante das correspondências, os princípios de adaptabilidade, obediência e prudência mesclam-se na composição das narrativas de experiência a partir de exórdios. Assim, informam muito sobre a expectativa e a experiência de quem escreve. Conforme Eliane Fleck: As experiências se superpõem, impregnando-se umas das outras, exatamente porque as novas esperanças ou as frustrações abrem brechas e repercutem sobre elas. A estrutura temporal da expectativa pressupõe necessariamente a experiência. Quando, entretanto, sucede aquilo que não se esperava, isto é, quando se estabelece uma ruptura do horizonte de expectativa, apresentase, então, uma nova experiência (FLECK, 2007, p. 67). Sendo assim, parece ser um lapso deixar de cotejar os elementos discursivos não silenciados para compreender a tradução jesuítica da própria. Referências a) Documentais Jesuítas e bandeirantes no Guairá: 1549-1640. Introdução e notas de Jaime Cortesão. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951, 507 p. (Manuscritos da Coleção de Angelis, v. 1) Jesuítas e bandeirantes no Itatim: 1596-1760. Introdução e notas de Jaime Cortesão. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1952, 367 p. (Manuscritos da Coleção de Angelis, v. 2) Jesuítas e bandeirantes no Tape: 1615-1641. Introdução e notas de Jaime Cortesão. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1969, 438 p. (Manuscritos da Coleção De Angelis, v. 3) Jesuítas e bandeirantes no Uruguai (1611-1758). Introdução e notas de Hélio Vianna. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1970, (Manuscritos da Coleção De Angelis, v. 4) 554 p. LOYOLA, Ignácio. S. J. ([1558], Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares. Tradução de João Augusto Amazonas Mac Dowell SJ. São Paulo: Loyola, 2004. 230 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos ______ ([1548]. Exercícios espirituais. Tradução de R. Paiva SJ. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Loyola, 2006. MONTOYA, Antonio Ruiz de. [1639]. Conquista espiritual: feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. 2 ed. brasileira. Tradução de Arnaldo Bruxel. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. b) Bibliográficas Artigos FLECK, Eliane D. Nas franjas do texto e do tempo: sensibilidade no espaço das experiências reducionais. Revista de História. v. 156, USP, p. 59-77, 2007. MASSIMI, Marina. A psicologia dos jesuítas: uma contribuição à história das idéias psicológicas. 2001. Disponível em: <http://www. Scielo.br>. Acesso em: 11 out. 2008. LONDOÑO, Fernando T. Escrevendo Cartas. Jesuítas, escrita e missão no século XVI. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Humanitas, v. 22, n. 43, 2002. HANSEN, João Adolfo. O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega, 15491558. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: IEB/EDUSP, n. 38, 2002. PACHECO, Paulo Roberto A. Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, p. 58-87. 2004. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/artigos07/pacheco01.htm>. Acesso em: 20 out. 2008. PÉCORA. Alcir. Cartas à Segunda Escolástica In: NOVAES, Adauto (Org). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1999. p. 382. Livros CASTELNAU-L’ETOILE, Charlotte. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Tradução de Ilka Stern Cohen. Bauru: EDUSC, 2006. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense-Universitária (Vanguarda Teórica), 1982. EISENBERG, José. As missões Jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000. HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1999. (Humanitas; 32). PÉCORA, Alcir. Máquinas de gênero. São Paulo: EDUSP, 2001. POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru: EDUSC, 2003. 231 Itinerários de viagem pelos confins do território americano: os missionários jesuítas e a expansão para a área ao sul de Buenos Aires Yesica Amaya Desde princípios do século XVIII, uma nova conjuntura começou a se definir nos territórios da América colonial. Este novo momento estará, em parte, definido pela chegada ao trono da dinastia dos Bourbon, situação que irá impulsionar uma decidida política de controle político, econômico, territorial e fiscal da monarquia, ao lado de uma crescente centralização administrativa e do início do que se tem chamado de “regalismo bourbônico”. Este conjunto de medidas teve, sem dúvida, um impacto decisivo nas colônias americanas, em diferentes níveis, de acordo com os territórios e atores envolvidos. Neste novo contexto, nos interessa indagar qual foi a importância estratégica que adquiriram os territórios localizados ao sul de Buenos Aires, bem como o papel dos jesuítas no processo de exploração e ocupação destas áreas. A partir das crônicas e dos diários de viagem dos missionários que percorreram estas terras em meados do século XVIII, analisaremos os diferentes interesses que entraram em jogo no momento de definição e ocupação deste espaço. Para isso abordamos aqui as estratégias ensaiadas e postas em prática pela coroa espanhola e pelos jesuítas, buscando perceber os conflitos e interesses contradi- Yesica Amaya é Pesquisadora do Centro de Estudos sobre a América Latina (Cesal) da Faculdade de Ciências Humanas na Universidade do Centro da Província de Buenos Aires, UNCPBA. Graduada em História é doutoranda da UNCPBA. Este texto faz parte de um trabalho mais amplo que investiga a ação da Companhia de Jesus na cidade de Buenos Aires durante o século XVIII. É bolsista do CONICET. E-mail: [email protected] Tradução de Maria Cristina Bohn Martins, e-mail: [email protected]. 232 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos tórios dos atores envolvidos na expansão e exploração dos “confins do território americano”. Isto sem deixar de mencionar os interesses de Buenos Aires em tornar efetivo o controle dos referidos territórios. Em segundo lugar, nos concentraremos nas diferentes expectativas de cada um dos jesuítas protagonistas de tais viagens, para assim analisar, a partir da experiência individual de cada um, os interesses da Companhia de Jesus e as práticas concretas dos viajantes. Neste nível, é possível ver a distância existente entre as “instruções” emanadas pela Ordem, e as estratégias dos missionários, guiados, em muitos casos por interesses particulares que ultrapassavam os da própria Companhia e, inclusive, os da monarquia espanhola. Também podemos perceber que uma grande dose de adaptabilidade e improvisação acompanhava a empresa dos seguidores de Santo Inácio de Loyola na exploração e ocupação destas terras ao sul. Interesses e objetivos da expansão para o sul A partir de finais do século XVII e princípios do XVIII, um considerável número de viagens e expedições partiram de um ponto a outro do Novo Mundo. Muitas destas viagens de exploração foram lideradas por jesuítas, os quais, para Guillermo Furlong, eram “hombres que parecían nacidos para todo lo arduo y arriesgado” (1994, p. 24). À presença ativa no território americano de distintos atores, em particular dos representantes das Ordens Regulares da Igreja, somavase, naquela oportunidade, a não menos importante ação do governo colonial nestes territórios, com o objetivo de colocá-los mais efetivamente sob controle da metrópole. Desde então, é notável o crescente interesse da Companhia e da coroa por áreas que, até esta oportunidade, eram tidas como pertencendo aos “confins do território americano”. O objetivo destas viagens de exploração assinala uma confluência de interesses da ordem e da coroa. A importância estratégica dos territórios localizados ao sul de Buenos Aires, e o papel dos jesuítas na ocupação destas terras permitirão, de fato, elucidar os papéis da Companhia de Jesus e de seus missionários neste processo e como parte importante do mesmo. Desde os primeiros tempos da colônia, as particulares características econômicas e sociais da parte mais austral do continente americano – nos marcos de uma economia baseada no descobrimento de minas de ouro e prata e na exploração da população nativa – determi- 233 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya naram, em parte, o caráter da ocupação e da colonização da atual área buenairense. A ínfima proporção de população branca, relativamente à grande extensão do território e à possibilidade de abastecer-se comodamente, favoreceram uma relação nem sempre conflituosa com os indígenas da região. Mesmo assim, contribuiu para que o estabelecimento de missões jesuítas aí não se fizesse efetivo até meados do século XVIII. A fim de que possamos responder ao questionamento estabelecido sobre o papel da Companhia na Buenos Aires colonial, acreditamos ser necessário considerar que a cidade, desde sua fundação, centrou seu interesse na participação da rota comercial que se dirigia até Potosi, motivo pelo qual o sul não fez parte de seus objetivos até o século XVIII, coincidentemente com o interesse da Ordem. Até este momento, Buenos Aires desenvolvera uma política principalmente defensiva, realizando apenas esparsos movimentos em direção ao sul. Durante o século XVIII, algumas crônicas isoladas trazem informações sobre a geografia do lugar, sendo que, na sua primeira metade, ocorreu um investimento significativo para fins do melhor conhecimento deste espaço, processo que contou com importante participação dos missionários jesuítas. Diferentemente do que se observa no caso de outras capitais, Buenos Aires tardou a manifestar interesse em desenvolver políticas de evangelização e atração dos nativos para a fé (CRUZ, 1999), questão que não pode ser desconsiderada ao tratarmos do papel desempenhado pelos jesuítas no tardio processo de catequese ao sul da região. Efetivamente, até 1617 as iniciativas de exploração partiam das governações de Tucumán e Paraguai, respectivamente. Neste ano, com criação de uma sede de governo em Buenos Aires, a ocupação e exploração dos territórios mais austrais passaram a ser responsabilidade da capital. Embora, desde 1684, os jesuítas tivessem permissão para evangelizar nos territórios ao sul das regiões buenairense e patagônica, as iniciativas neste sentido somente se concretizaram a partir de 1740. Os territórios situados ao sul de Buenos Aires começaram a se revestir, a partir de finais do século XVII e princípios do XVIII, de um caráter importante para a coroa espanhola, diante da crescente rivalidade entre portugueses e ingleses. Se os jesuítas participaram ativamente nas viagens de exploração e conquista que passarem a ser organizadas, é importante recordar que tais iniciativas não se reduzem ao espaço pampeano e patagônico. Tal como afirma Artur Barcelos (2006), 234 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos o século XVIII iniciou e culminou com uma série de viagens de missionários da Ordem por todo o continente1. De acordo com sua análise, amplamente documentada, ao longo deste século os jesuítas avançaram em direção à região amazônica, pela Baixa Califórnia, pela Patagônia, pelo Chile e pela Cordilheira dos Andes, Rio Paraguai e Orenoco, entre outros lugares. As motivações para estas viagens sinalizam a possibilidade de realizar incursões em áreas ainda não evangelizadas, bem como a oportunidade de ampliar o raio de ação da Companhia de Jesus em diferentes regiões da América, questões estas que se achavam intimamente imbuídas de intenções políticas e religiosas (BARCELOS, 2006, p. 174). Este decidido avanço para a área do “pampa buenairense” desenvolveu-se no âmbito de uma política de expansão das fronteiras coloniais. Até este momento, ainda no transcurso do século XVIII, as relações com os grupos indígenas da zona se apresentavam como “não necessariamente conflitivas”, situação que foi alterada quando os “malones”2 deixaram de constituir-se em fenômeno isolado. Nesta oportunidade, surgiu e se fortaleceu uma noção de espaço fronteiriço como uma área sobre a qual era preciso avançar. As fontes consultadas demonstram uma ativa presença dos jesuítas no território a partir de 1740. Este é o caso das viagens de Thomas Falkner, que percorreu a zona central da pampa buenairense entre 17461749, do Padre Strobel, que viajou pela região que compreende atualmente a cidade de Mar del Plata, entre 1746-1747, do jesuíta José Cardiel, que viajou pelos territórios da atual Bahía Blanca, e do Padre Quiroga que, junto a Strobel e Cardiel, empreendeu, em 1745, a primeira “expedição científica” pela Patagônia. Estão compreendidas aí, no século XVIII, um conjunto de viagens como as de Samuel Fritz pelo “Marañón” e Amazonas entre 1689-1692, iniciando a centúria, e as de Eusebio Kino, que percorre a Baixa Califórnia em 1683 e, em busca de uma comunicação terrestre entre a península e o continente, explora, junto a Isidoro de Atondo, a região nordeste de Nova Espanha entre 1697-1702. O século finaliza com as viagens de Sánchez Labrador, que realiza o caminho entre o Paraguai e as reduções de Chiquitos, e Wenceslau Link, que protagoniza quatro expedições para a costa ocidental da Baixa Califórnia em 1765-1767. 2 “Malón”: nome pelo qual eram conhecidas as incursões guerreiras dos índios mapuches contra parcialidades indígenas inimigas ou contra povoados e fortificações brancas. Tal tática militar consistia em ataques rápidos e surpreendentes contra o inimigo, a fim de obter provisões, gado e, eventualmente, prisioneiros para cativeiro. N. da T. 1 235 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Sem dúvida, e tal como aponta Mary-Louise Pratt, estas viagens e seus relatos respondem a uma nova mirada sobre o mundo não europeu, para a qual os jesuítas não estiveram alheios: La sistematización de la naturaleza es un proyecto europeo nuevo, una nueva forma de lo que podríamos llamar conciencia planetaria entre los europeos. Durante tres siglos los aparatos europeos para la construcción del conocimiento habían estado interpretando el planeta sobre todo en términos de navegación – ahora, a mediados del siglo XVIII, los sistemas clasificatorios generaron la tarea de ubicar a todas las especies en el planeta, sacándolo de su entorno arbitrario (el caos) y colocándolo en su sitio adecuado dentro del sistema (el orden: libro, colección o jardín) con un nuevo nombre europeo, secular y escrito (PRATT, 1997, p. 61-64). Neste sentido, devem ser tomados em conta os variados propósitos que motivaram as viagens dos missionários jesuítas, como também importa destacar quem eram os destinatários de seus diários ou de suas crônicas de viagem. Muitos destes sacerdotes percorrem e exploram o território desde meados do século XVIII, no contexto de uma Europa que se lançava para as primeiras “expedições científicas” e em direção a uma nova “consciência planetária”. Tal como afirma Pratt, “[…] las ideologías dominantes establecían una clara distinción entre la (interesada) búsqueda de riquezas y la (desinteresada) búsqueda de conocimiento; y por la otra, la competencia entre naciones seguía siendo el motor de la expansión europea de ultramar” (1997, p. 43). Sem dúvida, estes componentes estavam presentes nas viagens de nossos protagonistas, envolvidos como poucos no espírito do século. Estavam eles interessados tanto nas possibilidades econômicas das áreas exploradas ou ainda por ocupar, quanto no “conhecimento correto” do espaço, sempre atentos aos requerimentos emanados desde a coroa diante da competição de outras nações. As experiências e os informes destas viagens foram forjadas em crônicas e diários que informam sobre os objetivos e interesses que motivaram algumas delas. As fontes disponíveis colocam de relevo os interesses da Ordem na cidade portuária e na expansão territorial iniciada nas primeiras décadas de 1700. As crônicas de viagem que aqui analisamos constituem, em princípio, expedições com diferentes objetivos. De acordo com tais desígnios, elas podem ser definidas como viagens de exploração e investigação, e viagens de conquista. 236 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Entre as temáticas que retiveram a atenção dos jesuítas viajantes, se encontram, em primeiro lugar, as descrições geográficas, de forma que seus detalhados informes, escritos e gravuras têm ajudado a ajustar a cartografia existente sobre o continente3. Em tais descrições é possível encontrar características geológicas, medidas de latitudes e longitudes, condições climáticas, observações da paisagem, meio ambiente, flora, fauna, etc. Em segundo lugar, aparecem as referências específicas sobre os aborígines que habitavam as regiões que visitavam. Além disto, encontram-se aí importantes apreciações sobre a forma de vida, não apenas dos aborígenes, mas também dos colonos que habitavam nas cidades e nas áreas rurais. Ali aparecem, em alguns casos, importantes estimativas e descrições demográficas e sociais. As crônicas jesuíticas se caracterizam, neste período, pela especial ênfase posta nas descrições geográficas, com pretendido caráter “científico”. No que diz respeito aos diários de missionários jesuítas, além das considerações antes realizadas, se deve ter em conta o propósito principal, expressado pelos padres, de evangelizar e estabelecer missões, assim como de informar os Superiores da Ordem sobre o desenvolvimento e o funcionamento das missões, dos colégios e das fazendas jesuítas. Em muitos casos, as viagens podiam ser impulsionadas pelo instituto, pela sociedade local ou pela coroa espanhola. Em cada um destes casos, se entrecruzavam claramente os interesses dos diversos setores envolvidos. A presença dos missionários jesuítas na exploração ao sul do território de Buenos Aires se fez efetiva a partir de 1740 aproximadamente, quando se iniciou a “conquista espiritual” do centro e do sul do âmbito de Buenos Aires. A partir de meados do século XVIII, é notável o crescente interesse da Companhia e da coroa naquilo que, até o momento, se consideravam como os confins do território americano. A finalidade destas viagens de exploração evidencia a confluência de interesses entre a Ordem e a coroa que, no século XVI haviam estado vinculados ao “descobrimento” e à conquista de América e, no século XVIII, à pratica mais “moderna” de estudo e investigação dos territórios conquistados. 3 Assim o evidenciam os numerosos mapas do território americano – e do Rio da Prata em particular – que os jesuítas elaboraram, muitos deles compilados por FURLONG CARDIFF, 1936. 237 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Dentro do que é possível definir como “viagens de exploração e investigação do território”, podemos mencionar a empresa desenvolvida pelo jesuíta Cardiel ao sul da atual Bahía Blanca e a de Thomas Falkner e do padre Quiroga pelo mar, esta última conhecida como a primeira viagem “científica” para a Patagônia. Por outra parte, devemos mencionar as “viagens de fundação de missões”, empreendidas por Cardiel, Falkner e Strobel. O itinerário dos viajantes jesuítas A viagem em que concentraremos nossa atenção foi protagonizada pelo Padre Quiroga, que, junto com Strobel e Cardiel, empreendeu, em 1745, a primeira “expedição científica” pela Patagônia. Ela foi a empresa que mais claramente suscitou o interesse da coroa, que inclusive financiou parte do seu percurso; curiosamente é, por outro lado, a expedição que de menos mérito pareceu se revestir para a Ordem. Talvez seja possível ver nos seus resultados uma perda de interesse por parte dos jesuítas, ou de Quiroga, em particular, pelo espaço patagônico. O objetivo dos jesuítas estava posto mais na demarcação do território do que no estabelecimento de missões. Na expedição, depois de algumas entradas terra adentro, os padres parecem convencer-se rapidamente da ausência de índios para evangelizar. (…) saltamos en tierra y subimos todos a lo alto de un cerro, solamente quedaron los marineros para guardar la lancha; desde esta altura registramos todo el contorno con Largomira; pero no descubrimos sino tierras estériles, muchas quebradas y peñasquerías, sin arboles ni humanidad alguna; no hallamos señal alguna de que al presente habiten indios en esta costa (…) (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 22). Ainda que um dos escopos da iniciativa fosse o reconhecimento do território, também se avaliaram as possibilidades da área para o estabelecimento de povoações. Acreditava-se que a “Bahía de San Julián” poderia ser um lugar apropriado, inclusive para estabelecer o porto. Sem dúvida, as apreciações realizadas pelos missionários foram muito diferentes: Los puertos son muy pocos; solamente en el Puerto Deseado, en San Julián y en la bahía de San Gregorio se halla abrigo para los navíos. En el Puerto Deseado hay una fuente, de la cual en caso de necesidad pueden hacer aguada los navíos. Todo lo restante de la costa está seco y árido, que no se ve un árbol, ni hay donde se pueda hacer leña gruesa; de algunos matorra- 238 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos les se puede hacer algún poco en la bahía de San Julián, en donde se hallará también mucha pesca y abundancia de sal (LOZANO, 1836, p. 28). O Padre Quiroga, protagonista desta travessia, parece ser o paradigma do “jesuíta cientista” do século XVIII. Em seu diário de viagem, ele relata: (…) al anochecer nos hallamos cerca de la isla de los Reyes, y no habiendo hallado desde los 49 grados a los 48 la entrada del Puerto de San Julián, determinamos conservar esta altura para volver al día siguiente, recorriendo la costa en demanda de dicho puerto, por ser este el principal objeto de la demarcación, que se me había encomendado (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 23). Este espírito científico é ressaltado na hora de mencionar a bagagem de instrumentos científicos que Quiroga trouxe consigo para a América, entre os quais se mencionam: “dos relojes de faltriquera para la mensura del tiempo, dos telescopios, una lámina de cobre para cuadrante, y dos compases, entre otras cosas” (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 19). A expedição para a Patagônia reúne claramente os interesses da coroa espanhola e da Ordem, expressos na necessidade de dar uma resposta à monarquia, preocupada com o controle de seus territórios coloniais. Ainda que a estratégia da Companhia fosse sempre responder aos requerimentos do rei, seu estrito voto de obediência ao papa e ao Geral da Companhia não era de menor importância. Motivo de conflitos em mais de uma ocasião para os inacianos, esta foi, para alguns, a razão da sua expulsão de 1767. Ao mesmo tempo, este princípio de obediência se achava mediado pelas situações concretas que os missionários deviam enfrentar em suas viagens e expedições. Neste sentido, a viagem de Quiroga permite entrecruzar os interesses antes mencionados, isto é, da Companhia e da coroa, com as motivações particulares do missionário. O que buscava Quiroga depois da viagem? Seria receber o reconhecimento pela travessia realizada e pelo matiz “científico” de sua viagem? Estaria envolvida aí a oportunidade de obter melhores posições dentro da Ordem? Foram alcançadas suas expectativas? Se seguirmos sua trajetória, poderemos nos acercar mais adequadamente de alguns dos resultados alcançados pelo sacerdote, questão que abordaremos mais adiante. O próprio Cardiel alude, em seu “Diario de viaje y Misión al Rio del Sauce”, à ocasião em que eles percorreram as costas em direção ao 239 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya sul: “emprendimos al fin del año 17464, el viage por mar a las Costas de Magallanes para combertir a nuestra santa fe los infieles comarcanos al Estrecho, y por otros fines del bien público que también el Rey pretendía” (CARDIEL, 1930, p. 250-251). Como já mencionamos, a expressão que utiliza nos permite ver como os interesses da coroa se achavam absolutamente presentes nesta expedição, que não parece receber a mesma valoração por parte dos missionários. Depois de concluída a viagem pela Patagônia, o Padre Cardiel não descansou em seu desejo de avançar, desta vez por terra, até o estreito de Magalhães. Este seu anseio esteve claramente expresso em uma carta ao Governador de Buenos Aires, datada de agosto de 17465, em que demonstra profundo interesse pelo conhecimento do referido espaço, ao mesmo tempo em que destaca a relevância da expedição. Fazendo referência à existência de numerosas populações e importantes recursos, solicita autorização para a viagem nas seguintes palavras: Habría de durar seis a ocho meses, si se registrara bien todo: y para tantos meses eran menester cinco reses para cada uno, y con cabos que fuesen de empeño (que si no son escogidos, luego se cansarían), todo se conseguiría, y Vuestra Señoría, además del premio que se le guardaría para la otra vida, lo tendría grande del Rey nuestro señor. Nosotros acá no buscamos sino la honra y servicio de Dios, de aquel gran Señor, a quien no correspondemos, sino haciendo mucho por Su Majestad, y con solo su honra y gloria estamos contentos. Si a Vuestra Señoría no le agrada este proyecto, o si no tuviere efecto el juntar la gente de este modo, puede Vuestra Señoría discurrir otro con gastos reales, o costa de particulares, que quieran entrar en la empresa. En todo estoy a las órdenes de Vuestra Señoría, que Dios guarde los años de mi deseo (DE ANGELIS, 1836, p. 17-18). Contudo, nesta oportunidade, ele não conseguiu autorização para embarcar na referida empresa. Porque a viagem não foi autorizada? Por um lado, a resposta pode estar na necessidade de avançar com a fundação de novas reduções mais próximas de Buenos Aires. Por outro, pode estar no intento de conter as ações “demasiado autônomas” da Companhia em um contexto em que não eram necessariamente harmoniosas as relações entre a coroa espanhola e a Ordem. 4 5 Há aqui um equívoco na data que é destacado pelo editor do texto. DE ANGELIS, 1836, p. 11-18. 240 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos O Padre Cardiel acaba sendo destinado às missões de Pampas y Serranos. Sobre isto informa ele: “vínome orden de que fuese a las Sierras del Volcán, para desde allí proseguir con el tiempo hasta el estrecho. Están estas Sierras 70 leguas de Buenos Aires con corta diferencia al sudeste de esta ciudad. Llegue allí con mi compañero a fines de agosto de 1746” (CARDIEL, 1930, p. 26). Em 1747, o religioso fundou, junto com Falkner, a redução de “Nuestra Señora del Pilar del Volcán”, de onde, de quando em quando, permaneceu perseguindo a possibilidade de concretizar sua expedição para o sul. Cardiel logrou finalmente empreender sua viagem “hacia la desembocadura del Rio de los Sauces al Mar”, em março de 17486. A expedição partiu de Buenos Aires e, desde ali, avançou em etapas até a redução da “Inmaculada Concepción de Nuestra Señora de las Pampas”, passando, depois, para “Nuestra Señora del Pilar del Volcán” e concluindo-se quatro léguas adiante do chamado “Arroyo de la Ascensión”. A partir dali, os índios que o acompanhavam recusaramse a continuar a viagem. El día 21 estando ya cargadas las cabalgaduras, salieron el baqueano o guía, y el intérprete, diciendo que se querían volver, que hacia mucho frio y que estaba lexos. Ya las noches antecedentes habían hablado mucho de esto, a que añadían que los infieles que buscábamos eran mui barbaros y sangrientos, que nos havían de matar (…) Volvieronse a galope dejándonos solos, viéndome sin guía ni lengua imposibilitado no tanto a caminar adelante, quanto a hablar y declarar a los indios mi venida, me fue preciso volver atrás con el pesar que se deja entender, y para sacar algún provecho de mi vuelta, determine hacerla por la Playa del mar hasta el pueblo de los Pampas (CARDIEL, 1930, p. 261). A viagem de Cardiel nos demonstra um profundo interesse no espaço por conquistar. Neste sentido, diferentemente daquela realizada por mar junto com Quiroga, parece-nos haver aqui uma decisão mais firme do missionário em avançar, apesar das dificuldades e de não contar com os recursos necessários. Ao mesmo tempo, ele se ocupou de ressaltar as vantagens desta zona para o estabelecimento de povoações. 6 DE ANGELIS, 1837. 241 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Quédese pues savido para todos, que este camino desde las sierras del volcán hasta 4 leguas mas allá del arroyo de la ascensión de donde nos volvimos, que por tierra adentro es de cosa de 70 leguas, es camino no solo de cavalgaduras sino también de carretas, sin pantano alguno, con pasos por los ríos, aun por los dos grandes de las barrancas, con leña para pasar, porque aunque en algunas partes ay mui poca, se puede cargar en las que ay, con abundancia de agua, de manera que quasi siempre se puede hacer medio día en un arroyo, y noche en otro, camino de tierra adentro, y de la orilla de los arenales. Para llegar al Rio Colorado, que dicen ser grande y con mucha abundancia de sauces altos y gruesos, no faltan según lo que pude averiguar cosa de 30 leguas: este trecho será de las mismas calidades, que el de 70 andado (CARDIEL, 1930, p. 272). A motivação de Cardiel parece estar mais vinculada à possibilidade e à oportunidade que, para o missionário, significava o avanço sobre territórios quase inexplorados, somando-se a isto a possibilidade de ali fundar reduções. De alguma maneira, a experiência com os guaranis estava sempre presente no ideário do religioso, reforçando o princípio de “autoimposição do êxito na missão”7. A viagem representava, então, a possibilidade de ter êxito em sua travessia, um resultado que não era obtido facilmente, já que a competição entre os jesuítas por posições de destaque era parte constitutiva da estrutura hierárquica da Companhia, que não se encontrava, por isto mesmo, alheia aos conflitos. Uma vez mais nos perguntamos: quais foram seus resultados? Recordemos que a importância estratégica de tais territórios para a coroa não se reduziu apenas ao interesse científico. De fato, as viagens de meados do século XVIII representavam, principalmente, a necessidade de controlar territórios antes considerados “marginais”. Como também já afirmamos, elas coincidem com as transformações operadas no seio da Monarquia Bourbônica, e marcam os anos prévios à criação do Vice Reinado do Rio da Prata (1776). Assume características diferentes a viagem empreendida por Thomas Falkner para a Patagônia. Falkner realizou sucessivas entradas em direção ao sul, entre 1746 e 1749. Personagem muito ativo, ele participou da fundação de “Nuestra Señora del Pilar” e, em 1749, da criação 7 Com esta expressão, queremos fazer referência à importância do êxito nas atividades empreendidas pelos jesuítas, que consideravam-no obtido quando alcançavam a evangelização de grande número de aborígines. 242 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos da missão de “Nuestra Señora de los Desamparados”. Seu dinamismo e conhecimento da área ficaram registrados em sua “Descripción de la Patagonia y de las partes adyacentes de la América Meridional”, cujo original publicou-se em inglês. De suma importância para compreender a trajetória deste missionário é saber que, devido às restrições emanadas das autoridades metropolitanas em 1743, os jesuítas estrangeiros – isto é, de origem não espanhola – que estivessem em território colonial, deveriam sofrer maior controle. Por este motivo, cremos que Falkner não pode ter acesso, nem em nível de reconhecimento do terreno, às experiências missionárias desenvolvidas em outras áreas. O ponto extremo ao norte, ao qual chegou em suas viagens, foram as instalações da Companhia em “Santiago del Estero”; ao sul, suas incursões encontram limites nas serras buenairenses, na costa ao sul de Buenos Aires e nas povoações ao sul do “Pago de la Magdalena”. Suas descrições – que sugerem um grande conhecimento do espaço – realizaram-se sobre a base do que viu e, ainda, dos relatos dos índios. Como ele mesmo conta, “he seguido la relación que me hicieron los indios, y los españoles cautivos que han vivido muchos años entre ellos” (FALKNER, 1835, p. 3). Em certas ocasiões, o padre deixou entrever seu interesse por áreas que poderiam ser atrativas desde o ponto de vista de suas potencialidades econômicas, e nos quais havia possibilidade de estabelecerem-se povoações permanentes. Estos valles son muy fértiles, con el terreno negro y profundo, sin mezcla de arcilla: están siempre cubiertos de tan buena yerba, que el ganado engorda en poco tiempo. Estos pastos por lo común están bien cerrados por un lado con las montañas, pero muy abiertos al norte y noroeste. No he visto en el distrito de Buenos Aires paraje alguno tan capaz de ser beneficiado como éste: el único inconveniente a que está sujeto, es la falta de maderas para la fábrica de casas; lo que en pocos años, y con no mucho trabajo se podría remediar, mayormente cuando hay materiales bastantes para fabricar casas, que podrían durar y servir, cubriéndolas de cañas, hasta que tuviesen lo necesario para hacerlas mejor (FALKNER, 1835, p. 20). Da mesma maneira, suas descrições sobre a geografia e sobre os sistemas de rios permitem ter a dimensão de um conhecimento, geralmente muito preciso, que o jesuíta adquire, diferentemente de outros missionários, que percorrem as regiões ao sul de Buenos Aires e a Patagônia: 243 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Más adelante al poniente hay un río con muy altas y perpendiculares orillas, llamado por los españoles el río de las Barrancas. Los indios le llaman Hueyque-leubu, o río de mimbres, que nacen en sus orillas. Este río es muy grande, aunque no tanto, comparado con el Río Colorado, y el Negro. En general se puede vadear, pero también tiene a veces algunas avenidas de las lluvias y nieve derretida que recibe. Fórmase en un país llano, entre las montañas de Achala y Acanto, y el primer desaguadero, o Río Colorado, de un gran número de arroyos que salen de estas montañas; y toma su curso hacia el sur y sudeste, hasta que para a 12 ó 14 leguas al este de Casuhati, y entra en el Océano, después de haber recibido otro pequeño río que nace de aquellas montañas. Pero tengo algunas dudas, por relación de los indios, que este río se vacíe inmediatamente en el Océano, y no en el Río Colorado, poco más arriba de su boca. Todo este país abunda de caballos silvestres, sobre todo la parte del este, que está más cerca del Tuyú y las montañas (FALKNER, 1835, p. 23). Tanto o diário quanto o mapa de Falkner demonstram seu conhecimento sobre este espaço, motivo das posteriores dificuldades enfrentadas para obter-se a sua publicação, havendo o temor das autoridades metropolitanas de que as informações aí contidas favorecessem possíveis países competidores da Espanha. Efetivamente, na apresentação para a edição em castelhano, Pedro de Angelis adverte sobre o receio existente na Espanha acerca da publicação de uma obra que deixaria a descoberto pontos vulneráveis do Império Espanhol8. O próprio Falkner diz: Si alguna nación intentara poblar este país, podría ocasionar un perpetuo sobresalto a los españoles, por razón de que desde aquí se enviarían navíos a la mar del sur, para destruir en él todos sus puertos, antes que tal cosa o intención se supiera en España, ni aun en Buenos Aires. Fuera de que se podría descubrir un camino más corto para navegar este río, con barcos hasta Valdivia: podríanse reunir también tropas de indios moradores de sus orillas, y los más valientes de estas tribus, que se alistarían con la esperanza del pillaje; de manera que sería muy fácil el rendir la guarnición importante de Valdivia, y allanar el paso a la ocupación de Valparaíso, por las que se aseguraría la conquista del reino de Chile (1835, p. 2). Algumas questões particulares surgem ao analisarmos a viagem e a trajetória deste personagem. Em primeiro lugar está a de ele não haver avançado para além das missões dos pampas. O fato de existi8 É importante assinalar que a publicação de sua obra se realizou logo depois da expulsão do autor, durante o período do seu exílio. 244 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos rem limites concretos para sua ação dentro da Companhia determinou que sua estratégia tivesse sido diferente. Isto é, ante a impossibilidade de ocupar posições de maior hierarquia nas missões do Chaco ou do Paraguai, o religioso buscou incansavelmente as oportunidades que podiam ser abertas a ele nesse novo espaço. Quais terão sido, então, as expectativas e os resultados da travessia empreendida por Falkner? Interesses e estratégias em jogo na expansão A expansão em direção ao sul da área buenairense encontra, desde meados do século XVIII, os padres da Ordem, a coroa espanhola e a sociedade portenha como os principais atores sociais envolvidos no referido processo. Devemos, todavia, indagar se estes interesses eram compartidos ou entravam em disputa, ou ainda se geravam solidariedades entre os setores envolvidos. A partir daí, podemos, então, tentar definir qual o papel dos membros da Companhia no processo de expansão que estamos analisando. O recente interesse pelas áreas em questão decorreu da necessidade, por parte da Coroa e da sociedade portenha, de desenhar políticas que abordassem a nova realidade social e econômica da campanha buenairense. A ausência do estado colonial, até então observada, não significava necessariamente a falta de relações de intercâmbio de todo tipo, entre indivíduos e grupos, relações que nem sempre foram homogêneas ou responderam a um interesse comum de definição geral. Neste contexto se compreende a criação aí de um conjunto de três reduções jesuíticas9, e dos sucessivos avanços para o sul, protagonizados pela Companhia. Estes fatos remetem à vinculação entre os interesses locais, os interesses da coroa espanhola, e os objetivos de expansão dos territórios de ação missionária por parte da Ordem, nem sempre claramente expressados por seus membros, protagonistas de muitas destas viagens. A política desenvolvida pelos jesuítas permitiu, por um tempo, manter a tranqüilidade na região, possibilitando ao governo de Buenos Aires ocupar-se de outras frentes de conflito dentro de sua jurisdição, enquanto a política portenha não interferisse nos interesses dos 9 Em 1740 é fundada a Missão de “Nuestra Señora de la Concepción de las Pampas”; em seguida se criam “Nuestra Señora del Pilar” (1746-1747) e “Madre de los Desamparados” (1749). 245 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya índios que “ya entraran en esta ciudad hechos amigos”, porque “estos indios son volubles y tan indómitos que no conocen mas sumisión que su propia voluntad” (apud CRUZ, 2000, p. 76). A pressão exercida pela presença de grupos indígenas em busca de gado, e a valorização da região como espaço produtivo, criaram uma “imagem do outro” até então desconhecida. Assim, começa a ser construída a idéia dos índios como perigosos, enquanto o sul se constitui em um campo propício para o desenvolvimento de políticas já postas em prática em outros espaços do mundo colonial (CRUZ, 2000, p. 65-66). A presença dos nativos na cidade de Buenos Aires foi alterada pela nova realidade política e econômica da cidade que, por estas razões, voltou sua atenção para o sul, ao mesmo tempo em que os jesuítas pareciam dispostos a uma nova empresa missionária. De toda forma, é possível pensar que, no marco das relações cada vez mais tensas entre a coroa e a Ordem, esta soube encontrar, nas novas missões, uma estratégia de sobrevivência e uma possibilidade de atenuar os conflitos políticos já perceptíveis em meados do século XVIII, isto é, às vésperas da expulsão. A Companhia encontrou, assim, uma resposta para estas tensões, resposta esta que era política e estratégica a um só tempo, já que os religiosos percebiam nestas viagens, na maior parte dos casos, uma oportunidade de desenvolver ou afiançar sua posição em espaços pouco explorados, pretendendo, ainda, com sua ação, responder às solicitações da monarquia. Deste ponto de vista, os objetivos dos missionários e os do governo colonial podiam confluir neste processo de expansão e evangelização. Sem abandonar a idéia de que os jesuítas se interessaram pelo sul e de que estabeleceram ali missões como estratégia de sobrevivência para a Ordem, existem dados sobre o interesse jesuítico, para além da conjuntura política, pelo futuro econômico próspero da região, tal como deixam entrever Thomas Falkner e José Cardiel. Este último diz a respeito: “los caballos alzados no tienen dueños, y andan disparando en grandes manadas por aquellas vastas llanuras”. Adverte ainda que “la tierra es negra y profunda, sin arcilla, y siempre esta cubierta de tan buen pasto y en tan abundancia, que las haciendas que por allí pastan engordan en muy poco tiempo” (1930, p. 225). Esta visão é recorrente entre os viajantes do século XVIII, e ainda entre os do XIX, os quais ressaltavam as potencialidades econômicas da pampa buenairense, ao tempo em que destacavam a situação de seu vazio territorial e estado primitivo. Também um misto de perple246 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos xidade e otimismo está presente nas descrições e nos diagnósticos dos funcionários bourbônicos (ALIATA, 2006, p. 46). Os jesuítas, que não eram de todo alheios ao espírito ilustrado da época, ressaltavam a mesma situação na hora de definir seus pareceres sobre a área pampeana. Além das transformadas conjunturas políticas – às quais os jesuítas tentavam uma vez mais responder –, os membros da Ordem se viram envolvidos, desde meados do século XVIII, em um intenso processo de expansão. Se bem que seus interesses nem sempre foram claros, este feito posicionou os jesuítas em uma condição destacada em relação às políticas locais de defesa, da cidade, e às mais gerais da metrópole espanhola. Como parte deste processo, o Colégio da Companhia em Buenos Aires se transformou mais decididamente em um local estratégico e ponto de passagem de todas as expedições lideradas pelos jesuítas. Sem pretender reduzir a esta questão a importância deste colégio, acreditamos que, durante a primeira metade do século XVIII, a Companhia de Jesus, em Buenos Aires, cumpriu um papel estratégico no avanço em direção ao sul. Prova disto são as numerosas viagens que partem do colégio, constituindo-se este em passagem obrigatória para todos os jesuítas que embarcavam nas referidas empresas. Desde o processo de expansão iniciado em meados do século XVIII, e inclusive antes, o colégio, ao localizar-se em uma cidade portuária, constitui-se em lugar de chegada dos jesuítas enviados para as Províncias Jesuíticas do Paraguai. A maioria deles passava ali uma temporada para recuperar-se da fadiga da viagem. É o que informa, por exemplo, o Padre Antonio Sepp, que chega a Buenos Aires em abril de 1691: “después de descansar un mes en Buenos Aires, un grupo se dirige a Córdoba, para que pudiesen proseguir sus estudios (…) el resto se embarcó siguiendo el curso del Rio Paraná y Uruguay hacia las Misiones” (1980, p. 109). Também o faz Manuel Querín, tendo chegado a Buenos Aires em 1717, quando se celebrava uma Congregação Provincial, (…) fuimos grandemente agasajados por los jesuitas bonaerenses, en la Congregación Provincial que se celebró ese año, bajo la égida del entonces Provincial, Padre Luis de la Roca, dos meses pasamos en Buenos Aires reponiéndonos de las fatigas del viaje, al cabo de las cuales marché hacia Córdoba (FURLONG CARDIFF, 1967, p. 21). 247 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Diferentes são os casos de Quiroga e Cardiel, tendo ambos se dirigido ao colégio da Companhia em Buenos Aires com o objetivo de partir em expedições. O primeiro chegou em junho de 1745, como chefe da campanha para a Patagônia, e permaneceu ali durante seis meses preparando a viagem e participando, durante esse tempo, das atividades do colégio (FURLONG CARDIFF, 1930, p. 17-21). O segundo, depois de percorrer, por mais de dez anos, diferentes colégios e missões na Província do Paraguai, participou, em 1745, da expedição à Patagônia, junto com os padres Quiroga e Matías Strobel. Partiu para esta expedição saindo de Buenos Aires e, ao seu final, solicitou autorização para realizar novas campanhas “rumbo al sur hacia el inmenso desierto que se abre rumbo al estrecho de Magallanes”. Esta viagem, que concretizou em 1748, ele repetiu, depois, em três outras ocasiões. As crônicas analisadas permitem ver uma questão, intrínseca ao funcionamento da Ordem de Santo Inácio, referente à alta mobilidade de seus membros. Da mesma forma, percebemos a existência de preferências, nem sempre verbalizadas entre os religiosos que chegaram à Província Jesuítica do Paraguai por alguns lugares, em detrimento de outros. Tal fato pode também ser compreendido como parte da política geral da Companhia, cujo principal objetivo se encontrava nas missões, ou bem como conseqüência do interesse crescente da coroa pelo estabelecimento das mesmas. Uma avaliação da carreira dos restantes jesuítas a partir das crônicas analisadas, com exceção daquela do Padre Manuel Querín, que foi designado governador do Colégio de Buenos Aires entre 1743 e 1747 e permaneceu aí durante estes anos, indica que nenhum deles permaneceu na cidade por mais de seis meses. Intentaremos também, a partir das trajetórias de cada um deles, conhecer os resultados de suas expedições, para nos aproximarmos de seus horizontes de expectativas e resultados obtidos. José Quiroga chegou a Buenos Aires em junho de 1745 e, em dezembro do mesmo ano, partiu em sua expedição pela Patagônia, de onde regressou convencido da impossibilidade de estabelecerem-se missões por ali. Em seguida o encontramos no Colégio de Córdoba, ocasião em que fundou a primeira cátedra de matemática; passou por Santa Fé por volta de 1749 e, logo depois, no momento em que era assinado o Tratado de Limites de 1750 entre Espanha Portugal, encontrava-se novamente na cidade portenha. 248 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Nesta oportunidade, o encontramos desempenhando uma atividade intimamente vinculada às esferas de poder político e diplomático, tendo acompanhado, como capelão, aos comissários espanhóis encarregados de estabelecer os limites entre as jurisdições dos dois impérios. Quando os demarcadores chegaram a Buenos Aires, solicitaram um geógrafo ao padre provincial dos jesuítas, especialidade para a qual foi designado José Quiroga. Em sua crônica, aparece em destaque o comentário do Marquês de Valdelírios, que, em 1754, diz, a propósito de sua participação nos trabalhos de demarcação, que “solo los jesuitas conocían el país y eran por ende los mejores, sino los únicos capaces de juzgar el verdadero valor del tratado”(FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 38). Como resultado de sua participação nas disputas sobre o tratado, dois anos depois publicou um estudo em que tentou demonstrar os “inconvenientes que resultan de la demarcación contratada” (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 30) fato que lhe gerou críticas. Entre 1755 e 1762, segundo os dados recolhidos por Furlong, Quiroga se encontrava viajando pelo território e dedicado à composição de alguns mapas. Já no momento da expulsão, encontrava-se em Buenos Aires “dirigiendo obras de construcción de la Iglesia y el Colegio” (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 40). O padre José Cardiel parece ser representativo do jesuíta que chegou à Província do Paraguai sem haver concluído sua formação, pelo que desempenhou funções em lugares diversos durante algum tempo, ocupado com o que se podem considerar “cargos menores”. Chegando a Buenos Aires, foi enviado para as reduções guaraníticas, onde permaneceu por doze anos como vice-pároco, ajudante e cura, respectivamente, de diferentes “pueblos”. Em 1742, esteve por algum tempo no Colégio de Corrientes como hóspede. Em 1743, colaborou com a fundação de reduções entre os índios “mocobíes” e, em 1745, foi enviado ao Colégio de Santa Fé. Sem dúvida, “hombre de las actividades de Cardiel no podía concentrar sus energías dentro de los limites de una ciudad, y esto explica que, poco después del citado nombramiento, le hallamos entregado en cuerpo y alma a otra empresa singular” (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 20), afirma Furlong, referindo-se à expedição para a Patagônia que ele empreendeu junto com Quiroga. Quando regressou para Buenos Aires, solicitou permissão para empreender as já mencionadas expedições para o Rio Salado. Como já assinalamos, desde as missões de pampas conseguiu concretizar sua viagem para o sul, cujos resultados já conhecemos. 249 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Em fins de maio de 1748, Cardiel se dirigiu para Buenos Aires para informar ao governador e ao provincial sobre o fracasso de sua viagem. Ainda que seu esforço tenha sido reconhecido, encomendouse dele, esta vez, a evangelização e a fundação de missões entre os abipones. Em 1749 ele estava no Colégio de “Asunción”, quando foi designado como consultor, confessor da casa e missionário “de partido”10 (CARDIEL, 1930, p. 42). Desde princípios de 1750, encontravase realizando tarefas “mas ajustadas a su carácter”, em diferentes “pueblos” das reduções guaraníticas, primeiro em “San Ignacio” e, depois, em outros, tendo aí protagonizado vários conflitos em razão de seu desacordo com os termos do Tratado de Limites, questão que não detalharemos aqui. Em 1754, foi cura do “Pueblo de Itapúa”, um dos mais importantes destas missões; em 1756, participou da ocupação dos povoados afetados pelo tratado; em 1757, passou por “San José” e “San Juan” e em 1758 esteve em São Borja. Em 1761, foi destinado a reconstruir o povoado de São Miguel e, em 1762, foi designado como capelão do exército espanhol que deveria invadir Rio Grande. Finalmente, no momento da expulsão dos irmãos, encontrava-se no “Pueblo de la Concepción”. Thomas Falkner, de origem inglesa, desembarcou em Buenos Aires em 1730 aproximadamente, quando uma enfermidade o impediu de regressar para a Europa. Em tal situação, “solo, aislado, falto de relaciones, de recursos y en una tierra extraña” (DE ANGELIS, 1836, p. 3), entrou em contato com os padres jesuítas da cidade e, em conseqüência, em 1732, ingressou na Companhia, sendo ordenado em 1740. Em 1744, foi designado para a denominada “Sierra del Volcán”, onde posteriormente fundou, junto com Cardiel, a missão de “Nuestra Señora del Pilar del Volcán”, na qual permaneceu até 1751, quando as reduções de “Pilar” e “Madre de los Desamparados” foram abandonadas. A partir de sua experiência nas missões de pampas realizou sucessivas entradas para o sul. Em 1752, foi designado para a estância de “San Antonio de Areco” e, depois, até 1756, esteve trabalhando em uma propriedade da Ordem ao sul de Santa Fé. Esteve também por um tempo no Colégio de Santa Fé, e daí partiu para o de Córdoba, onde permaneceu até que os jesuítas foram enviados ao exílio. 10 A expressão “partido” se refere a uma área que circunda uma cidade sede de um distrito. Geralmente esta área abarca a cidade propriamente dita e os povoados menores e zonas rurais adjcacentes. 250 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos De outra parte, Domingo Muriel chegou a Buenos Aires em dezembro de 1748, e rapidamente foi enviado para Córdoba. Ali permaneceu ministrando aulas de filosofia até 1751, ano em que foi nomeado vice-reitor da universidade em Córdoba. Em 1757 foi designado secretário do reitor do Colégio de Montserrat, função que exerceu durante um ano. Em seguida, como secretário do padre provinicial, visitou os colégios e residências de “Córdoba”, “Santa Fe”, “Asunción” e “Corrientes” (FURLONG CARDIFF, 1934, p. 15). Percorreu, ainda, as Missões dos “mocobíes”, “abipones”, “lules, “ mataguayos”, “vilelas”, “isistines”, “tobatines”, “tobas” e “chiriguanos”. Depois de desempenhar outras funções por curto espaço de tempo, em 1762 foi designado mestre de noviços e instrutor de “tercerones”11, cargo que ocupou até o momento da expulsão. Sem dúvida, sua trajetória nestas terras foi muito diferente daquela dos jesuítas viajantes que até aqui analisamos, já que tanto Cardiel como Falkner tiveram seu principal âmbito de ação nas missões. Trata-se de situação altamente significativa, se a compararmos com as opiniões do ex-jesuíta Bernardo Ibáñez, que afirma: (...) los jesuitas retenían en los Colegios de las grandes ciudades a los miembros inteligentes y enviaban a los que eran tan cortos de inteligencia que no eran capaces de darse cuenta del reino jesuítico tan hábilmente formado y conservado en las regiones del Paraguay (…) pongo un ejemplo (...) para explicar mi pensamiento y ver si atino con el de los que esto manipulan. Yo conocí durante largos años en sus estudios de Castilla a los Padres José Quiroga, Domingo Muriel, Lorenzo Casado, José Matillo (…) Los tres primeros eran y son muy hábiles y sobresalían en las letras; los tres últimos eran punto menos que negados (FURLONG CARDIFF, 1930b, p. 17). Este breve percurso pelas carreiras de alguns jesuítas nos permite ver claramente as hierarquias existentes no interior da Ordem e o alto grau de mobilidade entre seus membros. Tanto é assim, que os jesuítas que chegaram ao Rio da Prata encontraram, nas Missões e nos Colégios da Ordem, possibilidades diferentes para construir uma trajetória destacada em lugares muito ou pouco explorados, nas missões já consolidadas ou por consolidar, nas cidades, ou em áreas de fronteira. Existiu, sem dúvida, um crescente interesse, e até mesmo concor- 11 Isto é, ocupado com a formação de principiantes ou estudantes dentro dos Colégios. 251 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya rência, pelos espaços considerados de “maior hierarquia”, que permitiam uma carreira mais destacada dentro da Ordem. As Missões Guaraníticas constituíram o exemplo mais saliente disto, estando em segundo lugar aquelas da área chaquenha. Menor destaque tinham as atividades junto ao Colégio de Córdoba e, finalmente, aquelas da área pampeano-patagônica. Buenos Aires, por sua parte, desempenhou mais o papel de lugar de passagem – e ponto de partida de grande parte dos viajantes –, do que de espaço escolhido para assentar-se de maneira permanente. Todas as viagens que se analisam partiam de Buenos Aires e finalizavam na cidade, mas os jesuítas, após uma curta estadia, abandonavam rapidamente o colégio. Para além da imagem que a Companhia de Jesus transmitiu de si mesma, de uma instituição homogênea, fortemente coesa, baseada no mútuo controle e em rígidos princípios hierárquicos, já não é possível afirmar a ausência de conflitos no interior da Companhia, e os trabalhos de Lía Quarleri contribuem para repensar esta visão (2003, 2005). A análise das crônicas disponíveis coloca em evidência o alto grau de mobilidade entre os membros, acompanhada de um crescente interesse, e inclusive competição, pelos espaços de hierarquia, ou por aqueles que permitiriam uma carreira mais destacada dentro da Ordem. Consideramos que a rigorosa estrutura da Sociedade de Jesus, marcada pela obediência e por princípios hierárquicos, foi posta constantemente à prova, na medida em que os jesuítas se expandiam pela América e pelo mundo. É complexo definir, portanto, quais foram os níveis de obediência alcançados. No caso que aqui nos interessa, se podem discernir claramente dois níveis que se superpõem e complementam. Por um lado estavam os princípios preestabelecidos pela Companhia e as ordens emanadas pelo Geral. Por outro, as respostas específicas e as práticas dos missionários, que estariam, segundo uma percepção corrente na historiografia, sempre predispostos para novos desafios12. Isto constituirá, para alguns, parte essencial de sua formação, se recordamos as palavras de Furlong Cardiff, para quem os jesuítas se achavam predispostos para tudo que fosse árduo e arriscado (1994, p. 24). 12 Nos referimos aqui à constantemente referida formação dos inacianos, através da qual eles seriam preparados para enfrentar desafios e dar respostas a situações imprevistas. 252 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Em meados do Setecentos, no contexto das pressões exercidas pela coroa para avançar na exploração e fundação de novas reduções, os jesuítas nem sempre atuaram segundo princípios preestabelecidos, mas, sim, a partir de variáveis doses de improvisação e adaptabilidade. Sabemos que o cultivo sistemático dos espíritos, a educação e a férrea formação nos princípios inacianos deveriam ser uma garantia de segurança da Ordem. Neste sentido, os colégios teriam a obrigação de desempenhar um papel sumamente importante na formação da obediência de seus servidores. Aqueles localizados em território americano assumem, desta forma, uma importância estratégica fundamental para a própria subsistência da instituição. Acreditamos também que o processo de expansão reforçou esta função do colégio no caso específico da cidade de Buenos Aires. O Colégio Jesuíta de Buenos Aires cumpriu, ao mesmo tempo, um papel central na formação de novos membros da Ordem. Constatamos que José Cardiel chegou à cidade sem haver concluído sua formação, e, ainda que Falkner tenha realizado a sua formação em Córdoba e em Buenos Aires, ambos puderam completar parte de sua carreira no Colégio de Buenos Aires. Contudo, a respeito da função dos jesuítas no processo de expansão iniciado em princípios do século XVIII, encontramos, neste novo cenário, os membros da Ordem desempenhando um papel destacado. Do referido processo, participaram a Companhia de Jesus, a coroa e a sociedade local, inclusive colocando em jogo seus interesses. Neste contexto, o Colégio da Ordem adquiriu um maior protagonismo e reforçou sua posição como lugar estratégico para o avanço até o sul. Sem dúvida, a conjuntura política mudou com a chegada dos Bourbon ao poder e, diante disto, mudaram as condições da cidade de Buenos Aires e dos jesuítas. As fontes consultadas demonstram a existência de uma maior mobilidade e um intento crescente de ocupar e explorar o espaço. Este período coincide com um momento de progressos econômicos para a Ordem, inclusive com a chegada de novos jesuítas e com a crescente demanda por mais missionários. Quais interesses se conjugavam por trás do processo de expansão e exploração territorial, concretizado na fundação de três missões ao sul do Rio Salado? Por um lado, existia o interesse, transformado em necessidade por parte da sociedade portenha, a qual começava a perceber um “perigo” nas populações indígenas da área, e requeria, do governo local e das autoridades da Espanha, uma solução a respeito. 253 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Por outro lado, encontramos o interesse, transformado em resposta necessária, por parte do Estado Colonial e, através dele, do governo de Buenos Aires. A coroa espanhola encontrava-se promovendo e, em certas ocasiões, financiando viagens de exploração, com o objetivo de consolidar suas posses territoriais frente a possível concorrência de outras potências européias. Da mesma maneira, ainda que apenas assinalado, existiu um interesse “científico” por explorar o território e fundamentalmente avaliar as possibilidade de estabelecer populações permanentes para prevenir as incursões de outros países. Por último, estava a estratégia de sobrevivência, transformada em interesse, por parte da Companhia de Jesus que, ante o crescente controle e a pressão por parte da coroa para o estabelecimento de novas missões, respondeu às vezes de forma vacilante. A Ordem, no contexto de uma política mais ampla de expansão, transformou-se, sem dúvida, em um dos atores principais envolvidos no dito processo, se bem que era uma necessária resposta política, já que por trás dela se encontrava o objetivo, sempre presente, de estabelecer novas missões em espaços por explorar. Os missionários, protagonistas destas viagens, constituíam a expressão concreta dos anseios, das expectativas e dos temores que a viagem e a exploração de um novo território significavam. Em todos os casos, esse espaço que se abria ante seus olhos poderia constituir uma oportunidade ou um castigo. A partir das crônicas, observamos que a viagem de Quiroga, por um lado, e as explorações de Cardiel e Falkner, por outro, podem ser interpretadas como opostas e complementares dentro de um mesmo processo de expansão. O padre Quiroga encontrou em sua missão o ensejo de chegar ao Novo Mundo e, junto disso, a possibilidade de ocupar posições destacadas dentro do âmbito da Ordem, situação que estava na dependência dos resultados de sua expedição pela Patagônia. Mesmo que a expedição tenha sido considerada um fracasso para a coroa, já que não conseguiu concretizar nem definir um lugar para o estabelecimento de “pueblos” e missões, contribuiu para avaliar o espaço. Não obstante, conhecer os limites de seu império na América teria sido de vital importância para a coroa, definindo-a como uma expedição mais marítima que terrestre e com um caráter mais científico que evangelizador. Ela constituiu-se na expedição mais organizada, naquela que deixou menor margem para a improvisação. Ao seu êxito estavam ligadas as possibilidades e oportunidades que, depois dela, se apresentavam para 254 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Quiroga consolidar sua trajetória no Novo Mundo. Seu itinerário seguiu mais claramente o rumo de um “intelectual e cientista” do que o de um missionário aventureiro. Muito além do que foi solicitado pela Companhia, este parece ter sido o caminho aspirado por Quiroga. Já os padres José Cardiel e Thomas Falkner constituem o exemplo de trajetórias diferentes. Ambos encontraram nas “Misiones de Pampas” seu principal âmbito de ação. Suas viagens e explorações referem-se mais aos interesses da Ordem que aos da coroa, ainda que a política missionária conduzida desde 1740 tenha também sido uma resposta ao governo colonial diante dos crescentes conflitos da zona. O objetivo destas viagens permitiu um conhecimento mais completo da região e de seus habitantes, contribuindo para forjar imagens deste espaço bastante ajustadas à realidade, conhecimento necessário para que se pudesse dominá-lo. Seguramente, possuir a informação e ser os principais intermediários entre as populações que ali habitavam e as autoridades do governo de Buenos Aires outorgou aos missionários uma quota de poder extra, o qual, acreditamos, lhes permitiu, inclusive, coloca-se em posições privilegiadas ou de maior visibilidade para o governo colonial. Entretanto, cedo ou tarde, o custo que teriam que pagar por esta condição destacada será proporcional ao poder que haviam conquistado. Diferentemente da expedição pela Patagônia, nas viagens de Falkner e Cardiel se entrecruzam o interesse científico com o evangelizador e o de avaliação das possibilidades econômicas da área. A improvisação e as estratégias postas em prática pelos missionários, foram fundamentais para eles se adaptarem a esse universo por evangelizar. Suas viagens dependeram em maior medida da informação e da ajuda oferecidas pelas populações da área, obrigando os missionários a pôr em jogo um grande número de estratégias tendentes a atrair os nativos. Sabemos que os jesuítas não descansaram em seu desejo de avançar até o sul, ainda que seus resultados não tenham sido os esperados pelas autoridades coloniais. Uma questão central diferencia as trajetórias de Cardiel e Falkner. O primeiro, depois de sua experiência nas missões dos pampas, teve uma atuação importante nas reduções guaraníticas, podendo alcançar o que, sem dúvida, constituía o maior objetivo de um missionário e aquilo que se esperava de um missionário nestas terras, isto é, trabalhar nas prestigiosas reduções do Paraguai. Já o segundo teve um âmbito de ação restrito geograficamente, mas não por isso menos rele255 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya vante, alcançando os limites máximos que um missionário poderia atingir na área do pampa. Paralelamente ao processo de expansão iniciado em meados do século XVIII, a Companhia de Jesus se encontrava, então, redefinindo suas estratégias frente à situação cada vez mais conflituosa existente com a monarquia espanhola. Os avanços até o sul do espaço buenairense, assim como até outras áreas da América, constituíram uma estratégia de sobrevivência posta em prática pela Ordem antes da crise que gerou sua expulsão. Mesmo que isto não invalide a hipótese da existência de conflitos e competições internas na Companhia, acreditamos que a expansão ao sul permitiu descomprimir outros espaços de missão que constituíam um objetivo apreciado por muitos inacianos. Os diferentes caminhos dos três missionários aqui mencionados nos proporcionam uma clara visão do que o sul significou para a coroa espanhola, para a Companhia de Jesus, e principalmente para os jesuítas, que encontraram nele dificuldades, mas, sobretudo, oportunidades. É por isso que, para Cardiel, o sul foi a chance de realizar uma experiência nas missões que o conduzisse, depois, aos “pueblos” dos guaranis. Para Falkner, o sul foi a única oportunidade de estabelecer-se nas missões. Já para Quiroga, embora ele tenha tido também sua oportunidade para demonstrar que possuía os conhecimentos que lhe permitiriam posicionar-se no âmbito dos colégios, o estabelecimento definitivo no sul “pampeano-patagônico” constituirse-ía em um castigo. O resultado das viagens de exploração e conquista foi, em alguns casos, o estabelecimento de missões. Em outros, elas contribuíram para obter um conhecimento mais acertado da geografia e de seus habitantes. Estes itinerários empreendidos pelos missionários permitiram construir as primeiras imagens do “sul”. Estas visões estavam repletas de idéias fantásticas, por exemplo daqueles que buscavam e imaginavam a rota para a “Cidade dos Césares”, mas também de conhecimentos específicos sobre os rios, a flora e a fauna, que permitiram ajustar a cartografia da atual Patagônia. Por outro lado, as imagens transmitidas não estavam alheias aos interesses e preconceitos, dando lugar a uma série de construções posteriores que permitiram consolidar a imagem do sul como um deserto. Sem dúvida, a análise realizada nos sugere que as visões que destacam a ausência de populações nativas para evangelizar, ou a presença de populações belicosas, de terras estéreis, a escassez de água e o sinuoso das travessias, são imagens construídas posteriormente para justificar e explicar o “fracasso” das missões estabelecidas ao sul do Rio Salado. 256 Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos Mapa: Furlong Cardiff, Los jesuitas y la cultura rioplatense… 257 Itinerários de viagem pelos confins do território americano • Yesica Amaya Referências FONTES CARDIEL, José. Diario de viaje y Misión al Río Sauce realizado en 1748, con prólogo de G. Furlong Cardiff y F. Outes. Buenos Aires, 1930. DE ANGELIS, Pedro. Colección de viajes y expediciones a los campos de Buenos Aires y a las costas de Patagonia. Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1887. DE ANGELIS, Pedro. 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