universidade federal do rio de janeiro identidade e minoridade em

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universidade federal do rio de janeiro identidade e minoridade em
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
IDENTIDADE E MINORIDADE EM ALLAH N’EST PAS OBLIGÉ,
DE AHMADOU KOUROUMA
MARIA SERTÃ PADILHA
RIO DE JANEIRO
2016
IDENTIDADE E MINORIDADE EM ALLAH N’EST PAS OBLIGÉ, DE AHMADOU
KOUROUMA
Maria Sertã Padilha
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como quesito para a obtenção do
título de mestre em Letras Neolatinas
(Literaturas de Língua Francesa).
Orientador: Professor
Jacques de Moraes.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Doutor
Marcelo
Padilha, Maria Sertã.
Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de
Ahmadou Kourouma./ Maria Sertã Padilha. – Rio de Janeiro:
UFRJ/Faculdade de Letras, 2016.
147f; 30cm
Orientador: Marcelo Jacques de Moraes.
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2016.
Referências Bibliográficas: ff. 143-147.
1.
Construção político-identitária. 2. Literatura
menor. I. Moraes, Marcelo Jacques de. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas. III. Título.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de Ahmadou Kourouma
Maria Sertã Padilha
Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos
Literários Neolatinos – Literaturas de Língua Francesa).
Examinada por:
____________________________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes
____________________________________________________________________
Profa. Doutora Eurídice Figueiredo
____________________________________________________________________
Profa. Doutora Marília Santanna Villar
____________________________________________________________________
Profa. Doutora Irene Correa de Paula Sayão Cardozo, Suplente
____________________________________________________________________
Prof. Doutor Rodrigo Silva Ielpo, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
RESUMO
Padilha, Maria Sertã. Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de
Ahmadou Kourouma. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras
Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de
Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.
Análise do romance Allah n’est pas obligé do escritor marfinense Ahmadou Kourouma,
sob o viés de dois conceitos literários: a identidade e a minoridade. O esfacelamento da
identidade provocado por eventos históricos – tais como o violento processo de
colonização, a repartição arbitrária do território em nações e a problemática
descolonização – impõe aos povos africanos uma urgente necessidade de
problematização de sua identidade. Assim, a revisão do passado adquire um papel
central na compreensão da obra, devendo ser lida em diálogo com a história. Logo, a
análise do romance levará em conta obras de cunho histórico, como a coleção “Histoire
Générale de l’Afrique” e as reflexões do crítico Albert Memmi. Para responder às
exigências identitárias advindas do contexto de escrita de Kourouma, que é
plurilinguístico e intercultural, o autor lança mão de um artifício que consiste em pensar
e trabalhar a língua, para que ela seja capaz de expressar elementos da identidade
africana. Esse trabalho com a língua remete ao conceito de “literatura menor”,
concebido por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que será considerado nessa análise. A
minoridade se torna, portanto, uma chave de leitura para o estudo do romance, aspecto
que é potencializado na obra a partir da construção da voz narrativa, centrada em uma
criança-soldado.
Palavras-chave: Kourouma, identidade, minoridade.
RÉSUMÉ
Padilha, Maria Sertã. Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de
Ahmadou Kourouma. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras
Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de
Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.
Analyse du roman Allah n’est pas obligé, de l’écrivain ivoirien Ahmadou Kourouma,
par le biais de deux concepts littéraires : l’identité et la minorité. L’ébranlement de
l’identité provoqué par des événements historiques – tels que le violent procès de la
colonisation, la division arbitraire du territoire en nations et la problématique
décolonisation – impose aux peuples africains un urgent besoin de poser le problème de
l’identité. Ainsi, la révision du passé joue un rôle central dans la compréhension de
l’oeuvre, qui doit être lue en dialogue avec l’histoire. C’est pourquoi l’analyse du roman
tiendra compte des oeuvres de caractère historique, comme la collection « Histoire
Générale de l’Afrique » et les réflexions du critique Albert Memmi. Pour répondre aux
exigences identitaires résultantes du contexte d’écriture de Kourouma, qui est
plurilingue et interculturel, l’auteur fait appel à une stratégie qui consiste à penser et à
travailler la langue, pour qu’elle soit capable d’exprimer des éléments de l’identité
africaine. Ce travail de la langue renvoie au concept de « littérature mineure », conçu
par Gilles Deleuze et Félix Guattari, qui sera considéré dans cette analyse. La minorité
devient, donc, une clé de lecture pour l’étude du roman, aspect qui est renforcé dans
l’oeuvre à partir de la construction de la voix narrative, axée sur un enfant-soldat.
Mots-clés: Kourouma, identité, minorité.
ABSTRACT
Padilha, Maria Sertã. Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de
Ahmadou Kourouma. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras
Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de
Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.
Analysis of the book Allah n’est pas obligé, by Ivorian writer Ahmadou Kourouma,
under the bias of two literary concepts: identity and minority. The identity’s
disintegration caused by historical events – such as the violent colonization process, the
arbitrary distribution of territory in nations and the problematic decolonization –
imposes to the African people an urgent need of questioning their own identity.
Therefore, past review acquires a center role in the comprehension of the novel, which
must be read in dialogue with history. Thus, the analysis of the novel will take into
account works with historical nature, like the collection “Histoire Générale de
l’Afrique” and the reflections of the critical Albert Memmi. To answer to the identity
requirements coming from Kourouma’s writing context, which is multilingual and
intercultural, the author makes use of a strategy that consists of thinking and working
the language, in order to turn it capable to express elements of the African identity. This
language work leads to the concept of “minor literature”, designed by Gilles Deleuze
and Félix Guattari, which will be considered in this analysis. Therefore, minority
becomes a reading key to the novel’s study, an aspect which is potentiated at the work
from the construction of the narrative voice, centered in a soldier-child.
Keywords: Kourouma, identity, minority.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida.
Ao meu marido, meu amor, Fabio, que participou incansavelmente dessa etapa da
minha vida, não apenas me dando palavras de apoio ou aliviando os desafios que
apareceram, mas, principalmente, se interessando verdadeiramente pela literatura
africana e ajudando a manter vivo o interesse pelo tema da minha pesquisa e pelo
estudo.
À minha querida mãe, Martha, que desempenha muitas funções literárias na minha vida.
Evidentemente, junto com meu querido pai, é a autora da minha existência. É também
uma grande narradora, que tem o dom de nos envolver com suas histórias. Sempre foi
leitora dos meus escritos. Enfim, é uma grande interlocutora, com quem troco muitas
ideias sobre a literatura e sobre a vida.
Ao meu querido pai, Marcelo, que, com o seu exemplo, me ensinou a ter paciência, dom
necessário para concluir o meu Mestrado, e a sorrir, mesmo quando a vida é dura.
Às minhas queridas irmãs, Luiza e Carla, que são minhas maiores companheiras, que
me aceitam como eu sou e com quem sei que posso contar para tudo.
Ao meu orientador, Marcelo Jacques de Moraes, que me incentivou a dar início ao
Mestrado, acreditando no meu projeto e no meu trabalho, e que me apoiou até o final
dessa etapa, de forma sempre solícita e atenciosa.
À Marília Santanna Villar, que me ajudou a elaborar o projeto de Mestrado, sempre
esteve disponível para me ajudar e aceitou fazer parte da Banca.
Aos professores que aceitaram fazer parte da Banca.
A todos os professores que passaram pela minha trajetória e, de alguma forma,
marcaram a minha vida.
A todos os meus familiares, que sempre me acompanham de longe ou de perto, dando
palavras de apoio, torcendo por mim e compartilhando intensamente cada momento da
minha vida.
Aos grandes amigos do Focolare, com quem compartilho uma vida verdadeira.
Aos presentes que a UFRJ me deu Evelin, Jéssica, Luana e Victor, e às grandes amigas
desde sempre, Sabrina, Thelma, Laila e Sophia.
[A infância] é o signo sempre presente de que a humanidade não repousa
somente sobre sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta,
mas tão essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas.
Jeanne-Marie Gagnebin
SUMÁRIO
1. Introdução ................................................................................................................... 11
2. Construção político-identitária ................................................................................... 21
2.1. Percepções do passado e do presente ................................................................... 25
2.1.1. História e ficção ............................................................................................ 26
2.1.2. A voz, o tempo e o espaço............................................................................. 34
2.1.3. Personagens históricos e personagens ficcionais .......................................... 40
2.2. Relações entre identidade e alteridade ................................................................. 49
2.2.1. A identidade nacional e a literatura ............................................................... 52
2.2.2. O nacional e outras instâncias identitárias .................................................... 61
2.2.3. A fragilidade da nação................................................................................... 68
3. Literatura menor ......................................................................................................... 74
3.1. Desterritorialização da língua .............................................................................. 78
3.1.1. A oralidade .................................................................................................... 81
3.1.2. O mito e a desmistificação ............................................................................ 91
3.1.3. Os dicionários: jogo com o real..................................................................... 98
3.2. Minoridade etária: “destutela” e descolonização ............................................... 103
3.2.1. Retratos da descolonização ......................................................................... 112
3.2.2. Infância roubada .......................................................................................... 119
3.2.3. O dever de memória e a subversão da tradição ........................................... 125
4. Conclusão ................................................................................................................. 137
5. Bibliografia ............................................................................................................... 143
5.1. Obras de Kourouma ........................................................................................... 143
5.2. Obras teóricas .................................................................................................... 143
11
1. Introdução
Ahmadou Kourouma nasceu em Boundiali, na Costa do Marfim em 1927 e
morreu no ano de 2003, em Lyon, na França. O escritor fez seus estudos em Bamako,
no Mali, porém, em 1949, foi expulso desse país sob a acusação de ter participado de
uma manifestação pró-independência. Diante dessa situação, decidiu se alistar ao
exército francês para lutar na guerra da Indochina. De retorno à França, Kourouma
retomou seus estudos e optou pelo curso de matemática em uma universidade de Lyon.
Em 1960, quando a Costa do Marfim alcançou a sua independência, ele decidiu retornar
à sua terra natal. Engajou-se politicamente, na luta contra o regime do Presidente Félix
Houphouët-Boigny, o que lhe rendeu alguns anos na prisão e no exílio.
Nessa época, quando se viu privado de trabalhar, Kourouma iniciou a sua
empreitada como escritor e concebeu a sua primeira criação. Seu primeiro romance se
intitula Les soleils des Indépendances1 e foi publicado em 1968 por uma editora
canadense, após ter sido rejeitado por editoras francesas sob o pretexto de conter
problemas na escrita. Após a publicação, no entanto, seu romance foi amplamente
reconhecido pelo uso criativo da língua e por “violar” as normas francesas ao introduzir
o malinké em sua linguagem. O romance ganhou o prêmio da revista Études Françaises
(Les Presses Universitaires de Montréal) e foi reeditado pela editora parisiense Seuil
em 1970, alcançando renome internacional. Como o título sugere, esse livro trata das
condições em que se encontravam certos países africanos após o processo de
descolonização; a independência semeou no povo a esperança de tempos melhores, sem,
no entanto, que isso se verificasse na prática. Kourouma desconstrói as idealizações em
torno das independências ao escolher como protagonista um príncipe que perdera a sua
função e se tornara mendigo em Abidjan.
O seu segundo romance, Monnè, outrages et défis, publicado apenas vinte anos
mais tarde pela editora Seuil, retrata o período da colonização francesa no território
africano. No romance En attendant le vote des bêtes sauvages (1998), Kourouma põe
em cena um ditador africano como protagonista para questionar as práticas de grupos
políticos do período posterior à descolonização. Em 2000, Kourouma lança um novo
livro, intitulado Allah n’est pas obligé, que, no mesmo ano de sua publicação, foi
1
Ao longo da dissertação, as referências aos trechos retirados dos romances de Kourouma aparecerão
com as seguintes abreviações: A (Allah n’est pas obligé); SI (Les soleils des Indépendances); M (Monnè,
outrages et défi); E (En attendant le vote des bêtes sauvages).
12
vencedor de três prêmios literários: o Prix Renaudot, o Prix Goncourt des lycéens e o
Prix Amerigo-Vespucci.
Esse romance será o corpus central dessa pesquisa e, a partir de sua leitura, serão
levantadas importantes questões para a reflexão acerca da África na contemporaneidade.
A análise do corpus girará fundamentalmente em torno dos problemas da identidade e
da minoridade, na medida em que Kourouma constrói o problema da identidade a partir
do relato de uma criança. Evidentemente, a construção ficcional de sua obra remete a
um questionamento identitário de todo um povo que assistiu, em sua história, à
dominação, à guerra, às múltiplas influências culturais e linguísticas, enfim, a um
esfacelamento de sua identidade, acompanhado de uma afirmação de sua situação de
marginalidade. Nesse contexto, a literatura exerce um importante papel não apenas no
sentido da reivindicação de uma nova compreensão identitária africana, mas, sobretudo,
no que tange aos meios de expressá-la. Ao centrar seu romance na figura de uma criança
e ao explorar o uso de “menor” de sua língua, Kourouma aposta na minoridade como
potência estética, como veremos adiante.
A obra Allah n’est pas obligé tem início com a apresentação de um personagem:
Birahima. Trata-se de um menino de dez ou doze anos, que empreende uma narração
em primeira pessoa para contar a sua “vie de merde de damné” (A, p. 10)2. Para atingir
o maior público possível, o menino adota a seguinte estratégia: servir-se de quatro
dicionários a fim de explicar a todos os seus leitores as referências culturais e lexicais
necessárias para a compreensão de seu relato.
Il faut expliquer parce que mon blablabla est à lire par toute sorte de gens:
des toubabs (toubab signifie blanc) colons, des noirs indigènes sauvages
d’Afrique et des francophones de tout gabarit (gabarit signifie genre) (A, p.
9).3
Após apresentar-se, o menino relata fatos relevantes de sua infância, marcada
pela ausência de seu pai e pela doença de sua mãe, que a impossibilitava de andar e
também de cumprir plenamente suas funções maternas. Para explicar os eventos
ocorridos em sua infância, Birahima nos fornece constantemente informações a respeito
de sua cultura de origem e de sua língua materna, isto é, o malinké. A doença da mãe,
As refêrencias ao corpus da pesquisa, o romance Allah n’est pas obligé, aparcerão em francês no corpo
do texto e sua respectiva tradução, retirada da versão traduzida em português por Flávia Nascimento,
aparecerá nas notas de rodapé. “Vida de merda de desgraçado” (A, p. 13).
3
“É preciso explicar porque meu blablablá é para ser lido por todo tipo de gente: tubabs (tubab significa
branco) colonos, pretos nativos selvagens da África e francófonos de tudo que é gabarito (gabarito
significa tipo)” (A, p. 11).
2
13
por exemplo, é consequência de sua excisão, tradição imposta a muitas mulheres
africanas, que é explicada e comentada pelo narrador. Após muito sofrimento, a mãe de
Birahima morre, deixando-o órfão. A única solução consiste em delegar a tutela do
menino a uma tia, que se vê obrigada a fugir da aldeia sem o menino, pois estava jurada
de morte. Mais uma vez, o menino se encontra sem tutela e parte em busca de sua tia,
que se instalara na Libéria, percorrendo inúmeros países fronteiriços da África negra, na
companhia de Yacouba, um mercenário de guerra.
A partir do segundo capítulo, inicia-se, pois, essa trajetória de Birahima em
busca da tia, o que o leva a se tornar criança-soldado para sobreviver. Conforme o
próprio narrador nos informa, essa etapa tem início em junho de 1993, o que nos
permite situar historicamente os eventos vividos pelos personagens. Nos capítulos que
se seguem, Birahima relata as suas desventuras em meio à guerra, aquilo que vira e que
vivera, o seu engajamento na guerra tribal. O menino passa por diversas facções, como
a NPFL (Frente Nacional Patriótica da Libéria), comandada por Taylor, a ULIMO
(Movimento Unido de Libertação pela Democracia na Libéria), chefiada por Samuel
Doe, a facção de Prince Johnson, a RUF (Frente Revolucionária Unida de Serra Leoa),
cujo líder era Foday Sankoh, e a facção de Johnny Koroma.
Esses líderes das facções tinham todos grandes ambições políticas, porém, para
legitimar o seu poder, serviam-se da força e, consequentemente, de meios extremamente
violentos. Os dois primeiros – Taylor e Doe – foram presidentes da Libéria e sua
trajetória será comentada adiante. Prince Johnson atuou nesse mesmo país e foi o
responsável pela tortura e morte de Samuel Doe.
Foday Sankoh e Johnny Koroma são chefes de guerra de Serra Leoa. O primeiro
manteve o controle sobre as minas de ouro e diamante do país, o que leva o narrador do
romance a repetir inúmeras vezes a seguinte frase a seu respeito: “il tient la Sierra
Leone utile” (A, p. 166).4 Sankoh é responsável ainda pelo episódio que ficou
conhecido como o evento dos “manchots”, que consistiu em amputar o braço dos
indivíduos que se apresentassem às urnas para eleger o presidente do país. Johnny
Koroma, em maio de 1997, através de um golpe militar, destitui o governo de Ahmad
Tejan Kabbah, e se mantém no poder até fevereiro de 1998.
4
“A Serra Leoa útil está nas mãos dele” (A, p. 170).
14
Todos os chefes de guerra se dotam de um discurso semelhante, isto é, o de
salvar a Libéria do inimigo, livrando-a da guerra e da dominação; no entanto, o que se
observa é que todos dão continuidade aos mesmos atos de violência e crueldade,
fazendo justiça com as próprias mãos em nome da liberdade. Através de discursos
travestidos de verdade, os chefes de guerra legitimam seu poder e perpetuam uma
guerra sem sentido para aqueles que dela participam; o fragmento a seguir, pronunciado
pelo chefe da NPFL durante um sermão, mostra a denúncia aos outros chefes de guerra
para legitimar a sua imagem de herói:
Ça portait sur la trahison, sur les fautes des autres chefs de guerre:
Johnson, Koroma, Robert Sikié, Samuel Doe. Ça portait sur le martyre que
subissait le peuple libérien chez ULIMO (United Liberian Movement of
Liberia), Mouvement uni de libération pour le Liberia, chez le LPC (le
Liberian Peace Council) et chez NPFL-Koroma (A, p. 70).5
Como podemos notar através do breve resumo da obra e do trecho acima, o
romance está em constante diálogo com a história, convocando, inclusive, personagens
com referência no mundo real para participar da sua trama. No que diz respeito à
contextualização histórica dos eventos narrados, será de grande importância a coleção
“Histoire Générale de l’Afrique”, organizada pela UNESCO, com a participação de 350
especialistas, inclusive de importantes historiadores, como Joseph Ki-Zerbo. Outro
trabalho de interesse para o diálogo entre a história e a obra de Kourouma será a tese de
Bi Kakou Parfait Diandue, estudioso da obra do autor.
A partir de suas análises dos romances Les soleils des Indépendances e Monnè,
outrages et défis, Diandue observa que os lugares representados pelo autor podem ser
identificados à terra natal de Kourouma, isto é, a Costa do Marfim. Em ambos os
romances, Kourouma traça um diálogo intenso com a história da África; na obra Monnè,
outrages et défis, ele fornece informações detalhadas a respeito da instalação dos
europeus na África e do modo como eles legitimaram sua dominação, a resistência dos
chefes locais e da população diante da imposição do colonizador, os impostos forjados
pelo colonizador para subordinar a população à sua dominação (cf. DIANDUE, 2003, p.
50-60).
5
Era um tal de falar de traição, de todos os erros dos outros chefes de guerra: Johnson, Koroma, Robert
Sikié, Samuel Doe. Era um tal de falar do martírio que sofria o povo liberiano com o ULIMO (United
Liberation Movement for Democracy in Liberia), Movimento Unido de Libertação pela Democracia na
Libéria e com o LPC (Liberian Peace Council), Conselho Liberiano de Paz e com a NPLF-Koroma. (A, p.
72).
15
No romance Les soleils des Indépendances, Kourouma problematiza o processo
de descolonização das recém-formadas nações africanas, que mergulhou os países em
uma profunda crise, não apenas política e econômica, mas também social e moral.
Kourouma situa os eventos em um espaço denominado “Côte des Ébènes”, construindo
um personagem chamado “Tiékorini”; conforme demonstra Diandue, essa dupla criação
ficcional representa o espaço da Costa do Marfim e o líder político Félix HouphouëtBoigny, primeiro presidente do país, o chamado “pai da independência” marfinense (cf.
DIANDUE, 2003, p. 328), que permaneceu no governo de 1960 até o ano de 1993.
Cabe observar desde já que o uso da palavra “nação” por si só é problemático
quando se trata do contexto africano, uma vez que a repartição do território em nações
não levou em conta as especificidades de cada região, estabelecendo fronteiras
arbitrárias, o que figurou muito mais uma utopia do que a solução para os problemas.
Representantes de diferentes etnias, muitas vezes inimigas entre si, uniram-se para
expulsar o colonizador, mas não tinham bases sólidas em comum favoráveis a uma
posterior unidade e à possibilidade de convivência pacífica; conclui-se, pois, que “a luta
pelas independências não permitiu que os africanos se libertassem da tutela ocidental”. 6
O romance Allah n’est pas obligé também é permeado por essa polêmica
problematizada nos outros romances de Kourouma; dessa vez, porém, o principal
cenário é a Libéria, sobretudo a sua região fronteiriça com a Serra Leoa e a Guiné. De
acordo com o sétimo volume da coletânea “Histoire Générale de l’Afrique”, no capítulo
dedicado à Libéria, escrito pelo historiador Monday B. Akpan, podemos concluir que
esse país apresenta algumas particularidades históricas, que serão brevemente
comentadas para enriquecer a compreensão do contexto em que se encena
majoritariamente o corpus dessa pesquisa.
Primeiramente, cabe observar que a Libéria foi o primeiro país africano a
alcançar a sua independência. Em 1822, foi fundada a cidade de Monróvia, pela
Sociedade Americana de Colonização, com o objetivo de instalar os ex-escravos afroamericanos. Essa região da África serviu, pois, ao intuito de resolver um problema dos
norte-americanos no que diz respeito aos ex-escravos, que haviam alcançado a sua
liberdade mas não foram incorporados à sociedade, sofrendo muitos preconceitos e
6
As citações de teóricos e críticos de língua estrangeira serão traduzidas por mim no corpo do texto e a
versão original aparecerá nas notas de rodapé. “La lutte pour les indépendances n’a pas permis aux
Africains de s’affranchir de la tutelle occidentale” (DIANDUE, 2003, p. 297).
16
permanecendo à margem do corpo social. A independência da Libéria data do ano de
1847, com a proclamação de uma República na qual o presidente tinha amplos poderes;
no entanto, como era difícil legitimar esse poder fora da capital Monróvia, os vilarejos
eram dominados por grupos ou por famílias que ali impuseram a sua força.
Quando os ex-escravos vindos dos Estados Unidos se instalaram nessa região,
ela já era habitada por povos autóctones africanos e a cultura desses dois grupos se
diferenciava enormemente, uma vez que os afro-americanos tinham origem ocidental,
professavam a religião cristã e levavam um estilo de vida muito diverso ao dos povos
africanos. Evidentemente, a divisão e a disputa entre esses dois grandes grupos eram
significativas e os afro-americanos, detentores do poder político durante muitos anos,
tinham o objetivo de dominar também culturalmente os povos autóctones, exercendo
uma espécie de colonialismo através de seu esforço “civilizatório”.
Como podemos observar, a origem do Estado liberiano foi problemática desde a
sua implantação, por reunir em um mesmo território grupos que apresentavam valores,
hábitos e interesses muito diferentes. Nos anos 1880, com a chegada efetiva dos
europeus no continente, a situação se intensificou ainda mais. Os chefes liberianos
acreditavam que a Libéria não seria objeto de dominação europeia, uma vez que já se
constituía enquanto Estado; entretanto, esse fato não poupou a Libéria da influência
europeia, que começou a conquistá-la a partir do interior e a influir significativamente
em sua administração e organização econômica. Com o consequente enfraquecimento
do país, os ingleses e os franceses começaram a dominar as regiões não ocupadas da
Libéria e a anexá-las ao seu território.
A instabilidade política vivida pelo governo liberiano, de origem afro-americana,
gerou uma situação complexa de colonização dos autóctones, isto é, de colonização de
seu próprio povo, dentro de um país independente. Evidentemente, essa situação gerou
insatisfação e revoltas por parte dos africanos:
Não foi à toa que os africanos autóctones se opuseram ao governo, pois este
queria submetê-los pela força das armas à sua dominação, assim como os
outros africanos se opuseram em outros lugares aos europeus que desejavam
impor-lhes sua lei; eles se revoltavam também contra os abusos da
administração. 7
Il n’est pas étonnant que les Africains autochtones se soient opposés au gouvernement parce que celui-ci
voulait les soumettre par la force des armes à sa domination, tout comme d’autres Africains s’opposaient
ailleurs aux Européens qui voulaient leur imposer leur loi; ils s’élevaient aussi contre les abus de
l’administration. (AKPAN, 2000, p. 298).
7
17
A Libéria foi capaz de manter o seu estatuto de Estado independente e de
sobreviver diante do imperialismo europeu; no entanto, não foi capaz de resolver as suas
questões internas, provenientes da dominação e das disputas étnicas, e acabou
mergulhando em uma sangrenta guerra civil, a partir de 1989, decorrente da tomada do
poder por parte dos africanos. No ano de 1980, Samuel Doe, primeiro africano a ocupar
o cargo máximo político na Libéria, articula um golpe de estado e massacra os líderes
políticos afro-americanos. A partir de então, inicia-se uma longa disputa pelo poder,
marcada por rivalidades étnicas e por ambições políticas e econômicas, lideradas,
inicialmente, por Samuel Doe, de um lado, e Charles Taylor, de outro.
Esses últimos eventos são evocados diretamente por Kourouma em Allah n’est
pas obligé, e os fatos vividos pelo narrador Birahima se mesclam com a história da
Libéria e de países fronteiriços, fazendo com que a sua trajetória de vida seja
indissociável do jogo político presente na região. Kourouma procede, portanto, a uma
ficcionalização da história, em que personagens reais e fictícios estão em cena para
construir a trama do romance.
Além da Libéria, outro cenário do romance é a Serra Leoa. Como a maioria dos
países africanos, a Serra Leoa também sofreu a dominação colonial ocidental. No início
do século XIX, a Coroa Britânica deu início à colonização deste país e, assim como
ocorrera na Libéria, a Serra Leoa também recebeu ex-escravos recém-alforriados.
Depois de um século e meio de dominação, em 1961, a Serra Leoa proclamou a sua
independência, que veio acompanhada de uma enorme instabilidade política,
conduzindo o país a uma sangrenta guerra civil, que será representada no romance.
Conforme comentamos anteriormente, Kourouma traça um paralelo entre a
ficção e a história dos países africanos, como é possível observar no trecho a seguir: “ce
pays [la Sierra Leone] a été un havre de paix, de stabilité, de sécurité pendant plus
d’un siècle et demi, au début de la colonisation anglaise em 1808 à l’indépendance, le
27 avril 1961” (A, p. 161)8. Notamos, portanto, que a história é central para o estudo
dos romances de Kourouma, uma vez que ela é incessantemente convocada; de acordo
com o pesquisador Diandue, analisar a sua obra significa traçar um paralelo constante
com a disciplina historiadora.
“Este país foi um ninho de paz, de estabilidade, de segurança durante mais de um século e meio, no
início da colonização inglesa em 1808 até a independência, no dia 27 de abril de 1961” (A, pp. 165-166).
8
18
Os romances de Kourouma são todos uma retomada ficcional da História.
Enquanto tais, eles não poderiam ser relatos não referenciais, assim como o
romance para Kourouma é um testemunho. Por isso, o correlato noemático
da imitação, isto é, a representação mimética consciente da História que
constitui a produção romanesca de Kourouma é digna de interesse.9
No primeiro capítulo desse trabalho, o fio condutor da pesquisa será, pois, a
relação da obra de Kourouma com a história da África. Na primeira seção, discutirei as
especificidades e os limites entre a história e a ficção. O objetivo será compreender de
que modo a disciplina historiadora está presente na obra de Kourouma, porém sempre
sob o viés da ficção, uma vez que os espaços, tempos e vozes seguem uma flexibilidade
e fluidez mais próximas da criação ficcional que da objetividade historiadora.
Kourouma procede, portanto, a uma estetização da história, que será compreendida
como um processo de expressão identitária. Revisar o seu passado para questionar o
presente constitui um movimento característico da compreensão identitária de sujeitos e
comunidades que sofreram um processo de dominação política, mas também no âmbito
da cultura e da língua, elementos centrais para a identidade coletiva.
A tarefa literária de revisitar o seu passado, mas de expressá-lo através de um
jogo entre realidade e ficção, revela a necessidade de Kourouma de cumprir um dever
de memória. Ele recorre, pois, à sua memória, mas certamente nutre o seu imaginário
com a memória coletiva, trazendo para o papel central, isto é, para a função de narrador
e de protagonista, uma testemunha dos eventos narrados. A escolha de dar a voz a uma
criança-soldado e a permissão de deixá-la falar em primeira pessoa revelam a ponte que
constrói entre a história da África e a narração; em outras palavras, podemos dizer que o
testemunho de Birahima concede aos fatos um teor de veracidade e permite o encontro e
a associação da sua história à história da África.
Na segunda seção do primeiro capítulo, aprofundarei a reflexão acerca da
identidade, examinando o modo como ela está presente no romance. Partirei das
primeiras páginas do livro, que consistem na apresentação do narrador Birahima, para
depreender as instâncias identitárias em jogo no romance. Cabe observar que o narrador
levará em conta aspectos linguísticos, étnicos, sociais e religiosos, sem mencionar o
critério nacional. Conforme mencionei anteriormente, a construção nacional dos países
“Car les romans de Kourouma sont tous une reprise fictionnelle de l’Histoire. En tant que tels, ils ne
sauraient être des récits non référentiels d’autant même que le roman pour Kourouma est un témoignage.
C’est pourquoi le corrélat noématique de l’imitation, c’est-à-dire la représentation mimétique consciente
de l’Histoire qui sous-tend la production romanesque de Kourouma est digne d’intérêt” (DIANDUE,
2003, p. 17).
9
19
africanos é uma questão extremamente complexa e que exige uma análise mais
detalhada. Procederei, pois, a um estudo da construção e da legitimação da ideia de
nação no contexto europeu, para problematizar a sua imposição no contexto africano.
As alusões às nações no romance revelam a descrença de Kourouma diante do fato
nacional e indicam que a compreensão da identidade não deve ser pautada por esse
critério, pois há inúmeros outros aspectos em questão.
Vemos, pois, que a questão identitária é central para a reflexão de Kourouma; o
seu trabalho, portanto, vai além de uma simples busca da identidade e se mostra
inovador na medida em que o autor não apenas questiona, mas procura expressar a sua
identidade, colocando em relevo aquilo que ele considera que é próprio e característico
de sua realidade. Surge, assim, o seguinte questionamento: como é possível expressar
uma identidade africana em língua estrangeira? Kourouma responde a essa pergunta ao
colocar a língua no cerne do seu fazer literário, isto é, ele transforma a sua ferramenta
de expressão em um fim em si. Através da língua, Kourouma resgata valores ancestrais
da África – como a oralidade, as tradições, a cultura malinké – sem negligenciar as
influências culturais recebidas a partir do encontro com outras culturas e línguas.
O segundo capítulo gira justamente em torno dessas questões; na primeira seção,
o objetivo da análise será, pois, verificar a expressão da identidade sob o ponto de vista
da minoridade, a partir, especialmente, do modo como a concebem Gilles Deleuze e
Félix Guattari, que nela apostam como uma força de criação literária. A estratégia
empreendida por Kourouma para expressar a sua identidade está profundamente ligada
ao uso que faz da língua: a situação de desterritorialização linguística, aparentemente
um obstáculo à escrita, revela-se, no romance Allah n’est pas obligé, como uma força de
criação, justamente. De acordo com a concepção de minoridade de Deleuze e Guattari, a
“literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em
uma língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 25). Kourouma opta pela língua
maior como idioma de escrita – o francês –; no entanto, o uso da língua francesa é
profundamente irrigado por outros imaginários e referências culturais, abrindo ao
francês a possibilidade de expressar imaginários e paisagens outras.
Na segunda seção do segundo capítulo, investigarei outra instância minoritária
presente no romance, isto é, a minoridade etária representada pela voz narrativa da
criança-soldado. A partir do exemplo da trajetória do protagonista, mas também de
20
outras crianças-soldados, analisaremos as especificidades desse modelo de infância,
bem como as condições que a propiciam. Os exemplos nos revelarão um elemento
comum a todas essas crianças: a falta de uma instância tutelar, lacuna radicalizada pela
presença da guerra.
A minoridade etária se torna duplamente significativa, uma vez que apresenta
outra dimensão: as recém-formadas nações africanas. Nascidas tardiamente, as nações
africanas também apresentam um problema relativo à noção de tutela, e da necessária
“destutela” em relação à dominação europeia. O romance de Kourouma retrata a
problemática desse processo de “destutela”, que ainda não se realizou plenamente, uma
vez que as nações africanas demonstram muita dificuldade em encontrar modelos
políticos capazes de resolver as crises internas e guerras civis. Esse contexto abre
margem para o caos generalizado, disputas pelo poder, criação de facções de guerra e,
conforme problematiza o romance, o emprego de crianças na linha de frente dos
combates. A minoridade do narrador – que é a principal testemunha dos eventos
narrados – e a minoridade do uso da língua serão, portanto, importantes chaves de
leitura para o romance.
21
2. Construção político-identitária
A partir de uma breve análise a respeito do conteúdo das três obras de
Kourouma, Monnè, outrages et défis, Les soleils des Indépendances e Allah n’est pas
obligé, é possível concluir que, aos poucos, ele encarou inúmeros episódios do
continente africano, atravessando muitos anos de sua história. É notório que um evento
que marcou profundamente essa história e que transformou o seu rumo foi a
colonização, fato que norteia bastante a realidade histórica, social e cultural abordada
por Kourouma. Na primeira obra escrita e publicada pelo autor, Les soleils des
Indépendances, o tema central é a realidade da época posterior ao processo de
descolonização de alguns países africanos.
O caso de Kourouma ilustra a situação de outros artistas em contextos
semelhantes, isto é, a necessidade de rever o seu passado: o autor só consegue liberar a
sua palavra após se debruçar, refletir, questionar e revirar a própria história. Em um
primeiro momento, no entanto, como conta o próprio autor, em uma entrevista
concedida a Lise Gauvin, o seu texto era puramente político, com um tom jornalístico
que tinha por objetivo denunciar a realidade que ele encontrava em seu país. Após
seguir o conselho de alguns amigos, Kourouma decide reescrever seu manuscrito,
fazendo a opção pela ficção e descartando as passagens de teor jornalístico, como ele
próprio revela a Lise Gauvin: “Je crois que notre ami Vauchon avait vu qu’il fallait
peut-être enlever ce qui était au fond très très politique et ne conserver que la fiction”
(GAUVIN, 1997, p, 155). 10
Kourouma dá, portanto, lugar à ficção, transformando seus personagens, espaços
e tempos em entidades ficcionais, o que garante ao seu texto um jogo diverso com a
realidade. O panfleto cede lugar à literatura, pois entram em cena elementos estéticos,
com forte ênfase no trabalho com a língua. Evidentemente, a história não ficará
suspensa; ao contrário, ela será constantemente convocada para ser problematizada,
reformulada, estetizada.
O segundo romance de Kourouma, Monnè, outrages et défis, dialoga
diretamente com a colonização francesa no continente africano e conta com comentários
precisos e específicos a respeito do processo colonizador. Bi Kakou Parfait Diandue, em
“Eu creio que o nosso amigo Vauchon percebeu que talvez fosse preciso retirar aquilo que era
excessivamente político e conservar apenas a ficção”.
10
22
sua tese sobre a obra de Kourouma, mostra que a riqueza de informações a respeito, por
exemplo, dos impostos pagos pelos colonos e dos trabalhos forçados a que eles eram
submetidos demonstra a importância das fontes históricas na produção romanesca de
Kourouma. Esse romance, publicado vinte anos mais tarde que o primeiro, revela a
necessidade do autor de mergulhar ainda mais na história de seu povo, resgatando um
passado ainda mais distante daquele que havia convocado em sua primeira obra.
O livro Allah n’est pas obligé não trata diretamente da colonização ou da
independência em relação à dominação europeia, pois se debruça sobre uma época
posterior a esses momentos; entretanto, a guerra civil representada por Kourouma nesse
romance não está isenta das influências da colonização dos países africanos e do
complexo processo de descolonização pelo qual passaram. A interferência europeia
mudou a estrutura de poder existente nesses países e, no momento em que ocorreu a
expulsão do colonizador para dar lugar à independência, a consequência foi uma
enorme crise política. Uma vez que o poder ficara livre das mãos dos colonizadores, era
preciso encontrar lideranças para ocupá-lo, o que mergulhou diversos países em
sangrentas guerras civis entre grupos que se insurgiram visando a assumir o poder. O
destino de Birahima, protagonista do romance, aparentemente desconectado da
colonização, é, na realidade, efeito das sequelas deixadas por esses eventos históricos.
Esse resumo de três importantes obras de Kourouma nos revela uma questão que
está permanentemente em jogo no seu fazer literário: a linha tênue entre a ficção e a
história. Como vimos, o autor se alimenta de fontes histórias para construir suas obras;
no entanto, ele optou por proceder a uma criação ficcional e não a um texto jornalístico.
Para compreender em que implica a opção de Kourouma de criar um texto ficcional,
porém em constante diálogo com a disciplina historiadora, investigaremos,
primeiramente, o sentido da história. Na introdução de sua tese, Diandue, interessado na
relação entre história e ficção na obra de Kourouma, reflete sobre o conceito de história.
Resumidamente, ele depreende duas significações importantes para esta noção:
Primeiramente, ela tem uma significação epistemológica geral que designa
um certo modo de conhecimento relativo aos dados empíricos irredutíveis,
em fato ou em direito, a toda explicação racional. Em seguida, ela é a
transformação das sociedades humanas no tempo e o relato que dela se faz.
A História é, portanto, uma forma de saber que mobiliza a observação, a
23
indução, a classificação, mas também, de certo modo, a explicação causal
dos fatos particulares. (DIANDUE, 2003, p. 12)11.
A compreensão do tempo passado, as transformações da sociedade, a relação de
causa e efeito entre os fatos, para articular os eventos passados constituem, portanto,
tarefas do historiador. O escritor, ao mesmo tempo em que pode também tomar para si
essa tarefa, não está comprometido da mesma forma com a verdade dos fatos, pois o
jogo traçado entre a realidade e a ficção lhe permite criar ao invés de explicar. Assim, o
escritor, ao estar comprometido com o ficto e não com o facto, isto é, com o ficcional e
não com o factual, pode jogar com temporalidades e causalidades imaginárias,
envolvendo, em seu processo de escrita, elementos estéticos e ficcionais, como veremos
na primeira seção deste capítulo.
Cabe também compreender os motivos pelos quais a história se faz tão presente
na obra de Kourouma. Primeiramente, poderíamos dizer que a função da história em
obras de autores como Kourouma traça uma íntima relação com a identidade.
Compreender o seu passado configura um processo natural da compreensão de si
mesmo. É o que verifica, por exemplo, o historiador Jacques Le Goff na introdução de
sua obra “História e Memória”: “a história tornou-se [...] um elemento essencial da
necessidade de identidade individual e coletiva” de muitos povos (LE GOFF, 1996, p.
16). Essa necessidade se intensifica ainda mais quando se trata de povos que buscam
dotar-se de uma história própria, com uma visão de passado que não seja imposta por
outro povo que se considera superior.
Além da questão identitária, outra função primordial da história consiste na sua
relação com o presente: descortinar o passado torna-se, pois, uma maneira indispensável
para compreender o presente. Através da trajetória literária de Kourouma, notamos que,
após escavar o seu passado, percorrendo, sobretudo, os eventos mais duros e cruciais da
história de seu continente, resta-lhe outra difícil tarefa, não menos dolorosa, não menos
complexa: encarar o presente. No romance Allah n’est pas obligé, em que Kourouma
encena uma época contemporânea à sua, é possível depreender certas pistas de como o
autor vislumbra a africanidade no final do século XX, com um tom sempre irônico e
raramente otimista.
“Elle a d’abord une signification épistémologique générale désignant un certain mode de connaissance
relatif à des données empiriques irréductibles, en fait ou en droit, à toute explication théorique rationnelle.
Elle est ensuite la transformation dans le temps des sociétés humaines et le récit qui en est fait. L’Histoire
est donc une forme de savoir qui mobilise l’observation, l’induction et la classification, mais aussi, dans
une certaine mesure, l’explication causale des faits particuliers” (DIANDUE, 2003, p. 12).
11
24
Para muitos escritores que tratam de questões semelhantes, torna-se cada vez
mais problemático produzir um discurso sobre o presente, como constata, por exemplo,
Albert Memmi, escritor tunisiano que muito se debruça sobre a realidade africana
colonial e pós-colonial, em seu ensaio intitulado “Retrato do descolonizado árabemuçulmano e de alguns outros”. Ao refletir sobre a representação do presente, Memmi
afirma o seguinte: “é mais difícil ser um escritor no período pós-colonial do que durante
a colonização” (MEMMI, 2007, p. 57). Durante o período colonial, havia um inimigo
comum a ser expulso e os discursos dos africanos engajados eram unânimes quanto a
essa questão: era preciso proclamar a independência em relação aos países que se
instalaram em seu território apenas para explorar suas riquezas.
As guerras de descolonização eram imbuídas de uma promessa de paz e de
prosperidade que nunca, porém, foi realizada; os senhores foram trocados, a luta pelo
poder se instaurou, a guerra continuou, mas, dessa vez, tornou-se mais difícil abordar o
seu sentido, isto é, identificar quem é o inimigo contra o qual se luta. Dessa vez, o poder
foi ocupado pelos próprios africanos, que passaram a fazer a guerra contra os seus
irmãos – o que justifica o fato de elas serem frequentemente chamadas de “guerras
fratricidas”. Posicionar-se quanto ao momento presente torna-se uma tarefa mais
delicada, uma vez que se devem denunciar indivíduos do próprio povo: no passado, a
língua do colonizador era empregada para denunciá-lo; no presente, entretanto, a língua
do colonizador passou a ser usada para questionar e denunciar os próprios conterrâneos.
Eis que, desde então, ele tem que voltar essa mesma língua [do
colonizador] contra os seus, uma vez que não aprendeu nenhuma
outra. Continuando a fazer o seu ofício, deveria pintar as carências de
seu povo, seus egoísmos, a lucrativa cumplicidade de suas classes
dirigentes, as exações de seu próprio governo (MEMMI, 2007, p. 57).
O distanciamento temporal permite ver e criticar com mais clareza o passado;
escrever sobre o presente, por outro lado, converte-se em uma tarefa desafiadora, pois
pressupõe uma visão crítica sobre a realidade atual e a denúncia não de um inimigo
estrangeiro, mas de seu próprio povo. Essa é a tarefa à qual se lança Kourouma em seu
romance Allah n’est pas obligé, que, na tentativa de compreensão do presente, volta-se
constantemente para o passado. Na primeira seção deste capítulo, analisaremos, pois, as
percepções entre o passado e o presente e a importância da disciplina historiadora na
obra de Kourouma.
25
Ao convocar a história para reivindicar uma identidade e compreender o
presente, busca-se, na realidade, uma concepção do passado diversa àquela construída
pelo colonizador. Trata-se de elaborar uma visão histórica através de um olhar africano,
pondo à prova as visões dominantes, isto é, eurocêntricas. Essa compreensão do passado
africano leva em conta, necessariamente, o modelo político aplicado às inúmeras
realidades africanas, isto é, a divisão arbitrária do território em nações. Essa divisão
geográfica ignorou aspectos linguísticos, culturais e étnicos, provocando no continente
uma grave fragmentação territorial, mas também identitária, o que gera consequências
negativas até a atualidade.
Apesar de a obra Allah n’est pas obligé não questionar diretamente a
problemática nacional, o contexto em que as ações do romance estão inseridas, isto é, a
guerra tribal decorre de questões políticas e históricas ligadas à formação nacional dos
povos africanos. A identidade nacional não se substituiu a outras formas de identidade,
como a étnica, por exemplo, dificultando a possibilidade de uma unidade nacional,
sempre ameaçada por guerras civis. Ora, se os habitantes de um mesmo território não se
sentem parte de uma unidade, as disputas entre eles serão inevitáveis.
Sendo assim, percebemos que questões passadas ainda geram consequências no
presente. A formação das nações africanas é digna de interesse a partir desta
perspectiva, isto é, enquanto causa de conflitos no presente. Na segunda seção deste
capítulo, abordaremos a questão nacional no contexto africano, refletindo sobre a sua
formação, em comparação ao modelo europeu. A nação está intimamente associada à
noção de identidade nacional; investigaremos, pois, como é construída a noção de
identidade no corpus dessa pesquisa e de que modo a referência à identidade nacional se
faz presente.
2.1. Percepções do passado e do presente
A obra de Ahmadou Kourouma faz com que o leitor mergulhe imediatamente na
história, uma vez que o conteúdo de suas narrativas, por mais que seja ficcional, está
imerso na realidade histórica da África. Como vimos, a relação entre a história e a
literatura está intimamente associada a um processo de consciência identitária. É o que
constata Diandue a partir do estudo da obra de Kourouma: “Nós devemos demonstrar
que a estetização da História postula a ideia da afirmação identitária. De forma clara, a
26
remodelagem dos fatos históricos faz o trabalho de despertar a consciência identitária
em Kourouma”. 12
Quando se fala em passado, em história, não há como ignorar um evento que
deixou muitas marcas nas recém-formadas nações africanas: a guerra, elemento que se
torna central enquanto temática, na medida em que constitui um fato onipresente não
apenas na história de uma única nação africana, mas de inúmeras nações, que nasceram
em meio à guerra e continuam a viver sob a sua constante ameaça. Como a literatura
não é alheia aos acontecimentos que abalam a realidade, – ao contrário, procura encarálos, questioná-los e representá-los – a guerra se torna um tema literário recorrente no
cenário africano. É esse o contexto do romance Allah n’est pas obligé, no qual a
literatura se converte em um meio de dar voz a sujeitos anônimos, que ganham espaço
para refletir sobre a sua realidade e dar testemunho de sua história; como a memória
ainda está muito viva, torna-se impossível calar as vozes de lembranças tão recentes e,
frequentemente, tão cruéis.
A memória, portanto, tem um papel significativo na representação estética da
guerra, à qual se articulam também a pesquisa de dados historiográficos e os arquivos.
As diversas visões e interpretações do passado estão em cena na construção do romance,
mas esses elementos estão aliados à imaginação, por meio da qual os artistas criam e
inventam personagens, tempos e espaços fictícios para jogar com a realidade. Essas três
questões centrais – a história, a memória e a ficção – se imbricam e se fazem presentes
na representação literária da guerra e, a partir de exemplos tirados das obras de
Kourouma, podemos discutir as representações históricas e literárias do passado
africano.
2.1.1. História e ficção
No romance Allah n’est pas obligé, o narrador convoca inúmeros personagens
cujas referências existem no mundo real, como é o caso de Charles Taylor, Samuel Doe,
Prince Johnson, Johnny Koroma, todos líderes de facções, com grande influência
política e econômica, na Libéria ou em Serra Leoa. As ações dos acontecimentos
“Nous devons démontrer que l’esthétisation de l’Histoire postule l’idée de l’affirmation identitaire. En
clair, le remodelage des faits historiques fait office d’éveil de la conscience identitaire chez Kourouma”
(DIANDUE, 2003, p. 23).
12
27
narrados também se passam em lugares reais, como os vilarejos de Zorzor, Sanniquelie
e Mile-Thirty-Eight, e as cidades de Monróvia e Freetown. Além disso, a todo tempo
são citados nomes de cidades, como, por exemplo, Abidjan, Yopougon, Port-Bouët,
Boundiali, Dakar, Bamako; e de países, como Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa,
Gana, Nigéria, Senegal.
Sobretudo na parte final do romance, Kourouma evoca inúmeros personagens
com referência história, com uma precisão tão grande, que situa os acontecimentos no
tempo, datando-os e explicando o contexto internacional da situação em questão. Nos
exemplos a seguir, são narrados eventos históricos relativos às tentativas de negociação
em prol do estabelecimento da paz nos países em guerra civil:
Le trente-troisième sommet des chefs d’État et de gouvernement de l’OUA
(Organisation de l’unité africaine) se tient à Harare au Zimbabwe du 2 au 4
juin (A, p. 198, grifo nosso)13;
Le deuxième round des négociations d’Abidjan (round signifie épisode d’une
négociation difficile) s’est ouvert les 29 et 30 juillet 1997 toujours au vingttroisième étage de l’hôtel Ivoire (A, p. 200, grifo nosso)14;
La junte veut maintenir la suspension de la constitution et rester au pouvoir
jusqu’à l’an 2001 (A, p. 200, grifo nosso)15;
Dès le début du mois d’août 1997, la Sierra Leone est ravagée par
d’incessants combats (A, p. 201, grifo nosso)16;
Des entrevues, il ressort que la junte est « disposée à poursuivre les
négociations avec le comité des quatre mandaté par la CDEAO en vue d’un
retour à la paix » et réaffirme tout haut que la date de novembre 2001
annoncée pour un retour au régime civil est négociable (A, p. 201, grifo
nosso)17.
As referências a organizações – a OUA, a CDEAO –, a datas e a eventos
históricos revelam que Kourouma está em constante diálogo com a disciplina
historiadora e que deseja situar as ações narrativas no tempo histórico, para lhes conferir
um teor de veracidade. No entanto, não podemos esquecer que se trata de uma obra
ficcional e que, apesar das evocações explícitas de personalidades históricas, não se
“A trigésima terceira reunião de cúpula dos chefes de Estado e do governo da OUA (Organização da
Unidade Africana) realiza-se em Harare, no Zimbábue, entre os dias 2 e 4 de junho” (A, p. 202, grifo
nosso).
14
“A segunda rodada das negociações de Abidjão (rodada significa etapa de uma negociação difícil)
abriu-se nos dias 29 e 30 de julho de 1997, sempre no vigésimo terceiro andar do hotel marfim” (A, p.
204, grifo nosso).
15
“A junta quer manter a suspensão da constituição e permanecer no poder até o ano de 2001” (A, p. 204,
grifo nosso).
16
“Desde o início do mês de agosto de 1997, incessantes combates devastam Serra Leoa” (A, p. 205,
grifo nosso).
17
“Das conversas, resulta que a junta está ‘disposta a prosseguir as negociações com o comitê dos quatro
mandatado pela CEAO com vistas a um retorno à paz’ e a afirmação, em alto e bom som, que a data de
novembro 2001 anunciada para um retorno ao regime civil é negociável” (A, p. 205, grifo nosso).
13
28
pode confundir o caráter diegético de um personagem com a sua existência histórica,
pois, a partir do momento em que o autor se propõe a narrar uma ficção, os seus
personagens ganham caráter ficcional mesmo que os seus nomes coincidam com a
existência real de uma pessoa no mundo externo ao romance. Percebe-se, pois, um tênue
limite entre história e ficção, uma vez que, ao ler os trechos acima, que contêm diversas
citações e comentários a respeito de personagens que podem ser associados a uma
referência externa real, poderíamos pensar que se trata de um discurso histórico.
Para refletir acerca dos limites e aproximações entre história e ficção,
recorreremos a dois pensadores que se debruçaram sobre essa temática: Hayden White,
um historiador norte-americano, sobretudo a partir da análise de um capítulo intitulado
“As ficções da representação factual”, que se encontra em sua obra “Trópicos do
discurso: ensaios sobre a crítica da cultura”; e Paul Ricoeur, filósofo francês que muito
refletiu sobre elementos comuns à historiografia e ao discurso literário, como, por
exemplo, a temporalidade. Sua obra “A memória, a história e o esquecimento” norteará
as reflexões relativas à tríade história, memória e ficção, central para a análise do
romance Kourouma.
De acordo com Hayden White, a aproximação entre história e ficção existe, pois
ambos se utilizam das mesmas técnicas e estratégias no exercício da escrita, isto é, as
duas recorrem à linguagem para produzir o seu discurso; um grande ponto de interseção
entre história e ficção se dá, pois, no âmbito discursivo. Antes da Revolução Francesa, a
distinção entre esses dois campos de estudo era feita entre “fato” e “fantasia”; após a
Revolução Francesa, a oposição passou a ser feita a partir da dicotomia entre verdade
histórica e erro. É preciso admitir que, a partir do momento em que se propõe a
transformar em discurso o estudo da história, deve-se lançar mão das técnicas de
representação, que são indissociáveis das técnicas de representação ficcional, da qual
faz parte a imaginação.
A disciplina historiadora passou a ter a pretensão de fazer um discurso sobre a
verdade isento da subjetividade e da ficcionalidade contidas nas técnicas de
representação; acreditou-se que existia uma forma única e objetiva de representar o real.
Em outras palavras, acreditou-se que, se as ideologias fossem abstraídas, seria possível
produzir um discurso certo e objetivo, assim como as ciências exatas e naturais.
29
A crítica feita por White a essas teorias reside na ideia de que “os fatos não
falam por si mesmos, mas que o historiador fala por eles, fala em nome deles, e molda
os fragmentos do passado num todo cuja integridade é – na sua representação –
puramente discursiva” (WHITE, 2001, p. 141). Além disso, não há como negar que
qualquer conjunto de fatos pode ser escrito e representado de infinitos modos, o que
conduz à seguinte conclusão: todo modo de expressão seleciona algumas formas que
privilegia, excluindo outras.
Na obra de Kourouma, podemos depreender um exemplo que ilustra o modo
como ele se alimenta do discurso histórico para construir as suas narrativas ficcionais. O
autor, ao fazer o seu recorte, acaba por selecionar os fatos que lhe parecem pertinentes,
nutrindo-se da história apenas quando lhe é conveniente. Essas escolhas do autor nos
permitem inferir a sua visão de mundo. Em seu estudo sobre a obra de Kourouma, na
seção em que se dedica ao livro Monnè, Outrages et Défis, o pesquisador Diandue
observa a riqueza de detalhes com que Kourouma descreve a colonização francesa, a
divisão da África entre as nações europeias, a luta de resistência dos povos africanos
contra a colonização; esse detalhamento e a precisão histórica demonstram a
importância das fontes históricas na construção romanesca de Kourouma (DIANDUE,
2003).
Todavia, Diandue observa que alguns fatos históricos são deixados de lado pelo
autor: ao narrar a instalação dos ocidentais na África, Kourouma opta por omitir as
divergências e lutas entre os líderes da oposição aos colonizadores, o que revela uma
idealização da relação entre os líderes africanos na África pré-colonial, fato bastante
contestado historicamente. Segundo Diandue, “essa postura visa a estigmatizar a
intrusão colonial, que é lida como a fratura no destino de um continente. Ela mostra a
imagem de uma África pré-colonial pacífica e sem choques”.18
Prosseguindo o debate teórico, à luz das reflexões de Hayden White, pode-se
afirmar que, além do aspecto da escolha seletiva de fatos, a oposição entre os discursos
histórico e ficcional pode ser encarada sob o prisma do conflito entre duas verdades: a
“verdade de coincidência” e a “verdade de coerência”, associadas, respectivamente, à
história e à ficção. No entanto, White defende que ambos os discursos compartilham das
“Cette entreprise vise à stigmatiser l’intrusion coloniale qui se lit comme la fracture dans le destin d’un
continent. Elle montre le visage d’une Afrique précoloniale paisible et sans heurts” (DIANDUE, 2003, p.
40).
18
30
duas verdades; a história também usa estratégias de “coerência”, pois recorre a
mecanismos da lógica textual para encadear o seu discurso, ao passo que a ficção
pressupõe a “coincidência”, pois ela é uma imagem de algo além de si mesma (WHITE,
2001).
É inegável, pois, que a história e a ficção dialogam e compartilham alguns
elementos capazes de aproximá-las; sabe-se, contudo, que “uma coisa é um romance,
mesmo realista; outra coisa, um livro de história” (RICOEUR, 2010, p. 274). Paul
Ricoeur propõe tratar da distinção entre esses dois campos abordando a questão do
ponto de vista da recepção, do pacto estabelecido entre os interlocutores: “embora
informulado, esse pacto estrutura expectativas diferentes, por parte do leitor, e
promessas diferentes, por parte do autor” (RICOEUR, 2010, p. 274).
Há um pacto ficcional estabelecido entre autor e leitor na leitura de um romance,
que faz com que o leitor aceite, por exemplo, explicações mágicas e sobrenaturais para
acontecimentos ficcionais, o que seria impensável em uma narrativa histórica, visto que
a expectativa do leitor é outra; por sua vez, a promessa, a tarefa e o objetivo do escritor
também são completamente diferentes nesses dois modos de narrativa. Está, pois, em
questão um jogo de expectativas e promessas entre leitor e autor que não são
formulados explicitamente, mas que estão no imaginário dos interlocutores envolvidos
no processo. O leitor, ao se deparar com uma narrativa ficcional, “suspende de bom
grado a sua desconfiança” (RICOEUR, 2010, p. 275), aceita o pacto de entrar num
universo irreal; por outro lado, o leitor da narrativa histórica é convocado a ter a atitude
contrária, isto é, a ativar seu espírito crítico e buscar a veracidade do discurso que se
propôs a narrar o passado real.
Na narrativa histórica, portanto, “autor e leitor (...) convencionam que se tratará
de situações, acontecimentos, encadeamentos, personagens que existiram realmente
anteriormente” (RICOEUR, 2010, p. 289). A palavra “realmente” traz novamente à tona
a questão da verdade, que é a maior pretensão da representação historiadora, cujo objeto
referencial é o próprio passado. Como criticar, então, o discurso historiador? Como
saber se ele é de boa fé e pretende à verdade, ou se ele não está somente a serviço de
uma ideologia? A resposta sugerida por Ricoeur leva em conta todas as etapas do
processo de representação historiadora: “quando juntas, escrituralidade, explicação
compreensiva e prova documental são suscetíveis de credenciar a pretensão à verdade
31
do discurso histórico” (RICOEUR, 2010, p. 292). Ricoeur aposta ainda na força viva do
testemunho; da mesma forma que é a memória que certifica a realidade de nossas
lembranças, é o testemunho que certifica e dá crédito à representação historiadora do
passado (RICOEUR, 2010, p. 293).
Como o objeto de estudo desse trabalho é a análise literária de um romance, o
que nos interessa principalmente é o âmbito da ficção; a suspensão de bom grado da
desconfiança – como fala Ricoeur – permite à ficção explorar universos alheios à
realidade, mesmo que eles nos falem profundamente da realidade humana, dada a sua
relação de verossimilhança com o mundo. “É graças a essa relação de verossimilhança
que a narrativa de ficção está habilitada a detectar, na forma das variações imaginativas,
as potencialidades não efetuadas do passado histórico” (RICOEUR, 2010, p. 276, nota
de rodapé).
A ficção pode explorar tempos, espaços e pessoas que não existiram, enquanto
que a história sempre pressupõe a coincidência entre o discurso e a realidade. Com isso,
a ficção pode realizar todas as potencialidades do passado, além de poder dar voz a
personagens fora da existência real, porém que, muitas vezes representam aqueles que
não têm voz no discurso histórico. Nesse sentido, o campo da ficção se alarga em
relação ao campo da história, uma vez que ele compreende todos os eventos dignos de
interesse pela história, isto é, os elementos da realidade observável, porém também
abarca a matéria da imaginação e da criação ficcional:
Os historiadores ocupam-se de eventos que podem ser atribuídos a situações
específicas de tempo e espaço, eventos que são (ou foram) em princípio
observáveis ou perceptíveis, ao passo que os escritores imaginativos –
poetas, romancistas, dramaturgos – se ocupam tanto desses tipos de eventos
quanto dos imaginados, hipotéticos ou inventados (WHITE, 2001, p. 137).
Desse modo, a literatura pode recorrer tanto à realidade histórica, quanto à
imaginação, o que lhe permite jogar com o real de um modo diverso, porém, não menos
comprometido com a realidade. Os escritores, através de seus personagens ficcionais,
estão autorizados a dizer aquilo que pensam, a se emocionar, a sentir, a chorar, enfim, a
dizer tudo aquilo que não é dito oficialmente. No romance Allah n’est pas obligé,
Kourouma se serve de uma voz ficcional, a voz do protagonista Birahima, para tratar de
uma realidade profundamente humana e diretamente ligada à realidade histórica da
África no final do século XX. O narrador, Birahima, uma criança-soldado que se vê
obrigada a se engajar na guerra tribal, é o porta-voz da experiência e da vivência de
32
muitas crianças em meio à guerra e à violência, em um diálogo constante com a
realidade histórica.
Em circunstâncias nas quais o discurso histórico ou político está a serviço de
ideologias que pretendem veicular apenas a sua visão da realidade, impondo os seus
valores, muitas vezes como forma de legitimar ou eternizar o seu poder, os escritores
dispõem da ficção para mostrar a realidade de outra forma. Tempos, espaços e
personagens imaginários ganham vida para representar tudo aquilo que se sente, mas
não que não é dito oficialmente.
Ao reler os trechos do romance Allah n’est pas obligé relativos a acontecimentos
históricos, podemos notar que, apesar de assemelhar-se ao discurso histórico, por sua
forma e seu conteúdo, a fala do narrador é entremeada de estratégias discursivas que nos
lembram, em alguns momentos, que se trata de uma obra ficcional. Retomemos uma das
citações, porém estendendo-a um pouco:
Le deuxième round des négociations d’Abidjan (round signifie épisode d’une
négociation difficile) s’est ouvert les 29 et 30 juillet 1997 toujours au vingttroisième étage de l’hôtel Ivoire. Il devait porter sur les modalités de
l’établissement de la légalité constitutionnelle. Surprise! Les nouvelles
propositions de la junte sont en total désaccord avec les points acquis au
cours de la première rencontre du 17 juillet. (A, p. 200, grifos nossos)19.
Primeiramente, podemos observar que o narrador, mesmo em meio a uma
referência histórica, recorre a uma estratégia usada ao longo de todo o romance, que é o
uso dos parênteses para esclarecer o significado de uma palavra. Esse recurso será
analisado mais adiante, porém, em resumo, ele se manifesta na fala do menino Birahima
para explicar uma palavra de sua língua malinké àqueles que não a dominam ou,
inversamente, para explicar a definição de um vocábulo francês que não seria
compreendido imediatamente por um africano; ou seja, essa estratégia literária tem o
objetivo de fazer o leitor transitar entre os dois universos linguísticos, estratégia que não
tem o menor interesse histórico.
No parêntese usado especificamente no exemplo acima, o narrador não
referencia o dicionário usado para fazer a tradução da palavra “round”, informando uma
definição que não corresponde exatamente à do dicionário em todo e qualquer contexto.
“A segunda rodada das negociações de Abidjão (rodada significa etapa de uma negociação difícil)
abriu-se nos dias 29 e 30 de julho de 1997, sempre no vigésimo terceiro andar do hotel Marfim. Ela devia
tratar das modalidades do estabelecimento da legalidade constitucional. Supresa! As novas proposições
da junta estão em total desacordo com os pontos resolvidos no decorrer do primeiro encontro de 17 de
julho” (A, p. 204, grifos nossos).
19
33
A explicação da palavra “round” é profundamente subjetiva, uma vez que o narrador a
associa a uma “negociação difícil”; no entanto, nem sempre “round” é associado a
negociação, como diz o narrador. Ademais, o adjetivo “difícil” revela a sua visão
subjetiva diante dos fatos, dada a nuance negativa do adjetivo empregado; desse modo,
o narrador admite a sua visão pessimista diante de tais negociações feitas em prol da
paz, revelando a sua descrença em tais acordos. O narrador deixa claro que se trata de
uma visão subjetiva diante dos fatos, por abrir mão da objetividade subjacente ao
discurso histórico.
Em segundo lugar, a referência ao local é um tanto quanto inusitada, uma vez
que o narrador menciona o “vingt-troisième étage de l’hôtel Ivoire”, informação que
geralmente é omitida do discurso histórico por sua pequena relevância. O narrador, no
entanto, ao selecionar precisamente essa informação, tem como objetivo expressar algo
além de uma simples referência espacial. Com a informação de que a reunião de cúpula
foi realizada em um andar alto de um hotel, o narrador põe em evidência dois aspectos:
o luxo e a distância, elementos que sugerem um grande contraste entre o dentro e o fora,
os políticos e o povo; nesse caso, os representantes políticos se isolaram em um hotel,
em um andar alto, e optaram por se reunir em condições muito diversas em relação à
penúria, à insegurança e à violência verificadas fora dos muros do hotel.
Em terceiro lugar, o uso da frase exclamativa “surprise!” deixa bem clara a
visão do narrador a respeito dessas negociações; essa ironia ao antecipar o desacordo
dos políticos com a palavra “surpresa” revela a sua total descrença nas negociações e o
seu pessimismo diante de uma possível solução para o conflito. Desse modo, ao se
nutrir das fontes históricas e, ao construir, assim, um discurso aparentemente
semelhante ao discurso histórico, o narrador revela toda a sua subjetividade e opera a
narração discursiva de modo diverso daquele que seria empreendido por um historiador.
Evidentemente, a linha entre a ficção e a história pode ser tênue em obras como
a de Kourouma; no entanto, a análise do trecho acima nos fornece pistas do trabalho
literário empreendido pelo escritor em sua criação ficcional. Na seção a seguir,
analisaremos outros elementos que o escritor pode explorar de um modo diverso na
criação literária: a voz, o tempo e o espaço, recorrendo a universos e a imaginários, mais
fluidos, mais livres e subjetivos.
34
2.1.2. A voz, o tempo e o espaço
Somando-se aos fatores analisados acima, poderíamos ainda elucidar a distinção
entre o discurso literário e o discurso histórico investigando outros traços característicos
de textos literários. Para estudar mais detalhadamente a estrutura adotada por Kourouma
na tessitura do romance Allah n’est pas obligé, aprofundaremos elementos como o
tempo, a voz narrativa e a construção dos personagens. As reflexões acerca desses
aspectos serão elaboradas à luz das considerações de Gérard Genette, que auxilia a
compreensão de elementos narrativos, como a voz, o tempo e o espaço.
As quatro primeiras páginas do romance constam da apresentação de um
personagem que narra em primeira pessoa; é impossível, pois, menosprezar a presença
desse narrador que, desde o início, postula a sua personalidade revelando o seu desejo
de busca e de compreensão de sua própria identidade. O narrador se impõe, portanto,
como um elemento central para a construção da narrativa, exigindo uma análise
particular, tendo em vista a sua necessidade de tomada de consciência identitária. Em
sua apresentação, o narrador, Birahima, fornece diversas informações sobre si, levandonos a construir uma identidade formada a partir de seu julgamento sobre si mesmo.
“M’appelle Birahima. Suis p’tit nègre. Pas parce que suis black et gosse. Non ! Mais
suis petit nègre parce que je parle mal le français” (A, p. 7)20. Nas primeiras linhas do
texto, Birahima faz questão de justificar seu modo de falar, estabelecendo como forte
elemento identitário o fato de não dominar a língua francesa; o domínio desse idioma
pressupõe o acesso à escolarização, direito do qual ele não desfrutou. Outras instâncias
de sua identidade serão apresentadas pelo narrador e serão analisadas na próxima seção.
Visto que se trata de ficção, vale lembrar que o papel do narrador é também um
papel fictício; não se pode confundir a figura desse narrador fictício com a do autor.
Sabemos que Ahmadou Kourouma escreveu esse livro para responder a uma demanda
de meninos-soldados do Djibuti, que lhe pediram para falar da vida deles, o que está
escrito na dedicatória do romance: “Aux enfants de Djibouti: c’est à votre demande que
ce livre a été écrit” (A, p. 5)21. Por mais que Kourouma conheça muito bem a realidade
sobre a qual escreve, a partir do momento em que se dá voz ao narrador, não podemos
“Meu nome é Birahima. Sou um neguinho. Não porque sou black e moleque. Não! Mas sou neguinho
porque falo mal francês” (A, p. 9).
21
“Às crianças de Djibuti: foi a pedido de vocês que este livro foi escrito” (A, p. 7).
20
35
confundir o “eu” do narrador com o “eu” do autor; analogamente, o “aqui” e “agora” se
referem ao tempo da narração e não ao tempo da escrita do romance.
Vemos, portanto, que há um “eu” que toma a palavra desde o início da narração
e podemos atribuir essa voz ao personagem Birahima. Contudo, após uma leitura mais
profunda do romance, é possível detectar a presença de outro narrador, ou seja, de um
outro nível narrativo, como o denomina Genette. No nível extradiegético, situa-se outro
“eu” que narra a história, mas que não se apresenta e não faz questão de ser identificado.
Esse narrador extradiegético se retira diversas vezes da sua posição de narrador e dá voz
a Birahima que, na verdade, situa-se no nível diegético. Produz-se, pois, uma narração
dentro da narração primeira; há um “eu” narrado por um outro “eu”: um narrador
historicamente consciente que dá voz a uma criança.
É possível fazer essa análise, uma vez que sabemos que Birahima é uma criança
e que, apesar de ver e viver diversas realidades que extrapolam o universo infantil, ele
tem, no máximo, doze anos. Ao longo da narração, há o relato de diversos
acontecimentos históricos que são narrados a partir de uma consciência crítica e
histórica que não pode ser atribuída a uma criança de doze anos, por mais madura que
seja. Nesses momentos, o narrador extradiegético retoma a palavra para situar
historicamente os relatos de Birahima. Evidentemente, a linha que separa esses dois
níveis diegéticos não é claramente delimitada, e essas duas vozes se confundem e se
entremeiam; porém, de um modo geral, o jogo narrativo se dá quando a narração passa
de uma macrorrealidade – a história de países da África, sua situação política e
econômica – a uma microrrealidade – as aventuras de Birahima, seus pensamentos, suas
percepções, seus relatos.
Retomando o que dissemos anteriormente, o livro tem início com a apresentação
do narrador, em primeira pessoa; nesse momento, encontram-se o início e o fim da
história, pois, ao final do romance, chegamos ao ponto de partida da narrativa: o
momento em que Birahima se apresenta e conta as suas memórias, o que nos remete ao
início do livro. No final do romance, o tempo da narração encontra o tempo da história
e, por poucas linhas, o tempo verbal utilizado é o presente, pois se trata do grau zero da
narrativa, que, por definição, é justamente o momento de isotopia temporal entre a
narração e a história. Após esse breve momento, o tempo da narração é posterior ao da
história, que passa a ser contada no passado.
36
A marcação e a medida dessas anacronias narrativas (...) postulam
implicitamente a existência de uma espécie de grau zero que seria um
estado de perfeita coincidência temporal entre a narração e a história.22
O lugar da narração é um carro dentro do qual o narrador concluiu a sua viagem
em busca de sua tia – busca, inclusive, frustrada, visto que sua tia acabara de morrer no
momento em que ele chegou à sua aldeia. No final do romance, portanto, temos
exatamente o início das memórias de Birahima, momento em que ele relata a sua
infância, a morte de sua mãe, a sua viagem à procura da tia – familiar que se tornaria
sua tutora após ele ter ficado órfão – e, finalmente, como se tornara menino-soldado,
participando ativamente da guerra tribal. O lugar da história, porém, não é único; ao
contrário, a história se passa em diversos lugares, começando na aldeia natal de
Birahima e seguindo o percurso do narrador, em países fronteiriços da África, durante a
sua viagem.
A duração da narrativa e a duração da história também não são idênticas. Ao
final do romance, o narrador fornece indicações bem precisas do intervalo de tempo de
uma e de outra. A duração da narração é bastante curta, de apenas alguns dias, ao longo
de uma viagem que Birahima, Yacouba e seu primo Mamadou fazem em direção a
Abidjan: “J’ai continué à conter mes salades pendant plusieurs jours” (A, p. 222, grifo
nosso).23 Por outro lado, a duração da história é mais longa; ela inclui os anos da
infância de Birahima e, sobretudo, os três anos vividos em meio à guerra tribal, como
nos indica o fragmento a seguir: “La tante Mahan était la malheureuse que nous
cherchions, nous aussi, depuis plus de trois ans dans ce Liberia de la guerre tribale”
(A, p. 209, grifo nosso).24
O tempo da narrativa, em alguns momentos, é bem marcado, com a referência
temporal exata, o que aponta para uma aproximação com a história visando a situar os
eventos ficcionais em um tempo histórico. No entanto, o tempo da narrativa não é
sempre linear, pois é permeado de voltas ao passado e saltos para o futuro, nem sempre
claramente datados. Em alguns momentos, o narrador opta por não situar claramente as
suas ações no tempo, deixando bem clara essa opção: “Aujourd’hui, ce 25 septembre
“Le repérage et la mesure des ces anachronies narratives (...) postulent implicitement l’existence d’une
sorte de degré zéro qui serait un état de parfaite coïncidence temporelle entre récit et histoire”
(GENETTE, 1972, p. 79).
23
“Eu continuei a contar minhas bobagens durante vários dias” (A, p. 225, grifo nosso).
24
“A tia Mahan era a infeliz que a gente estava procurando, a gente também, há mais de três anos,
naquela Libéria da guerra tribal” (A, p. 213, grifo nosso).
22
37
199…” (A, p. 128)25. Essa citação revela que as ações contadas pelo narrador poderiam
ter acontecido em qualquer ano da década de noventa e que a data não é relevante para
aquele trecho da narrativa.
Essas estratégias narrativas são típicas de um texto ficcional que, inclusive, não
deixa de lançar mão da magia para explicar seus eventos. Os feitiços e os rituais são
parte constitutiva do romance e, com frequência, são usados para justificar eventos
históricos, mudanças no destino dos personagens. Muitas mortes acontecem por causa
dos “fétiches”, como é o caso do Colonel Papa le bon, um chefe de guerra (o que será
analisado mais detalhadamente a seguir); a explicação sobre a sua morte repousa no
desrespeito aos “fétiches”.
Les balles ont traversé le colonel Papa le bon malgré les fétiches de
Yacouba. Yacouba a expliqué: le colonel avait transgressé des interdits
attachés aux fétiches. D’abord, on fait pas l’amour avec un grigri.
Secundo, après avoir fait l’amour, on se lave avant de nouer des grigris.
Alors que le colonel Papa le bon faisait l’amour en pagaille et dans tous les
sens sans avoir le temps de se laver. Et puis il y avait une autre raison. Le
colonel n’avait pas fait le sacrifice de deux boeufs écrit dans son destin.
S’il avait fait le sacrifice de deux boeufs, il ne se serait jamais aventuré seul
dans la prison. Le sacrifice de deux boeufs aurait empêché la circonstance
(A, p. 85, grifos nossos)26.
Após essa breve análise a respeito da voz, do tempo e do espaço da narrativa,
podemos notar que há uma relativa flexibilidade quanto a esses elementos; em outras
palavras, é possível detectar que o leitor atravessa, sem aviso, universos temporais e
diegéticos que se transformam e se mesclam a todo instante. A voz de Birahima,
narrador diegético, mescla-se com a voz do narrador extradiegético, sem que o leitor
possa delimitar claramente onde isso começa e até onde vai. O tempo da narrativa
percorre movimentos diversos, sendo linear, em determinados momentos, cíclico, em
outros, e também passando por saltos entre passado e presente. Como diz a
pesquisadora Aurélia Mouzet a respeito do modo de narrar empreendido por Kourouma,
“o realismo mágico da obra autoriza, de fato, os deslizamentos espaciais e temporais
“Hoje, nesse dia 25 de setembro de 199...” (A, p. 131).
“As balas atravessaram o coronel Papai bonzinho apesar dos feitiços de Yacuba. Yacuba explicou: o
coronel tinha transgredido as proibições que iam junto com os feitiços. Primeiro, não se transa com um
grigri no corpo. Segundo, depois de ter transado, é preciso se lavar muito bem antes de pendurar de novo
os grigris. Ao passo que o coronel Papai bonzinho, quando transava, era na maior confusão e de qualquer
jeito, sem ter tempo de se lavar. E depois tinha outra razão. O coronel não tinha sacrificado os dois bois
como estava escrito no destino dele. Se ele tivesse sacrificado aqueles dois bois, ele jamais teria se
aventurado daquele jeito na prisão. O sacrifício dos dois bois teria impedido aquelas circunstâncias (A,
pp. 87-88, grifos nossos).
25
26
38
mais variados, permitindo, assim, que o leitor viaje entre realidade e supra-realidade
diegéticas” 27. Para ilustrar essa afirmação, cabe mergulhar mais a fundo no romance e
verificar como se articulam o tempo e a construção dos personagens.
No primeiro capítulo, temos um panorama da infância do protagonista e o tempo
da narrativa, de um modo geral, segue de maneira linear, acompanhando o crescimento
do menino, junto à sua mãe, evoluindo segundo a doença da mãe, até chegar à sua
morte, deixando o menino órfão. Entretanto, alguns comentários e explicações relativos
à juventude da mãe são feitos, o que acarreta numa volta ao passado, para melhor situar
o presente da narrativa.
Um dos grandes impactos na vida do menino é a doença da mãe, que não lhe
permite andar, e que torna o ambiente da casa bastante pesado, com cheiros
característicos e rastros da doença – o pus, o sangue –, elementos que marcaram
profundamente os anos iniciais da vida do protagonista. Para tentar compreender a
origem dessa doença, é preciso voltar ao passado, a eventos vividos pela mãe no
passado, sobretudo a sua excisão. A morte da mãe e a consequente orfandade do
menino, cujo pai era extremamente ausente, constituem um conflito inicial que
justificará o resto do romance, isto é, o seu engajamento na guerra tribal, como se pode
compreender a partir da seguinte citação: “Quand on n’a pas de père, de mère, de frère,
de soeur, de tante, d’oncle, quand on n’a pas rien du tout, le mieux est de devenir un
enfant-soldat, c’est pour ceux qui n’ont plus rien à foutre sur terre et dans le ciel
d’Allah” (pp. 118-119, grifos nossos)28.
Logo, o primeiro capítulo é constituído pela narração da infância de Birahima,
que é permeada por eventos e personagens fictícios, sem referência externa; trata-se de
uma microrrealidade, em que a narrativa ficcional ainda não é determinada por eventos
políticos externos. A partir de então, inicia-se a trajetória do menino em meio à guerra
tribal, quando a história do menino encontra a História, o que exige uma intensa relação
entre passado e presente, uma vez que o presente de cada personagem é decorrência do
passado do país.
“le réalisme magique à l’oeuvre autorise en effet les glissements spatio-temporels les plus variés et
permet ainsi au lecteur de voyager entre réalité et supra-réalité diégétiques” (MOUZET, 2013, p. 43).
28
“Quando a gente não tem pai, mãe, irmão, irmã, tia, tio, quando a gente não tem mais coisa nenhuma, o
melhor é se tornar uma criança-soldado. Ser criança-soldado é para os que não têm mais nada o que
procurar na terra o no céu de Alá” (A, p. 121, grifos nossos).
27
39
Daí em diante, o romance passa a ter uma estrutura cíclica, marcada por eventos
que se assemelham e que se repetem ao longo do tempo. A passagem do menino pelas
diversas facções da guerra segue uma estrutura semelhante, que se repete a cada
mudança de grupo ao qual ele se filia. Primeiramente, temos a apresentação do chefe de
guerra local, responsável pela região em que se encontra o protagonista: trata-se de um
personagem ficcional, que é o representante do líder de uma facção. Em segundo lugar,
temos a apresentação desse grande líder, que é um personagem cuja referência existe na
realidade. Em seguida, há a descrição das atividades realizadas pelo chefe local, bem
como a forma segundo a qual ele garante o seu poder. Em quarto lugar, encontramos a
descrição espacial da região comandada pelo chefe de guerra.
Após contextualizar os personagens fictícios, históricos e o espaço, o narrador
conta as cenas que vira com seus próprios olhos, a sua experiência vivida em meio à
guerra. Para justificar a mudança dos rumos do personagem, surge um elemento ou um
novo personagem que desestabiliza a estrutura até então estabelecida e obriga o
protagonista a mudar de lugar e a se juntar a uma nova facção, que mudará os nomes
dos sujeitos e dos espaços, porém não será capaz de alterar a condição do menino. A
justificativa para as mudanças espaciais reside na esperança de encontrar a sua tia, busca
eternamente frustrada uma vez que Birahima chega aos novos vilarejos ou cidades junto
com a guerra tribal, fazendo com que a sua tia fuja da localidade em que encontrava e se
instale em outro, sem que o objetivo do menino seja alcançado.
Ao longo de suas desventuras, o menino passa por seis facções de guerra, isto é,
a NPFL (Front National Patriotique du Libéria), a ULIMO (Mouvement uni de
libération pour le Libéria), a facção de Prince Johson, a RUF (Front révolutionnaire
uni), a facção de Johnny Koroma e a facção de El Hadji Koroma. Os três primeiros são
grupos guerrilheiros da Libéria, enquanto que os três últimos atuam na Serra Leoa. A
estrutura da narrativa é bastante semelhante em cada passagem do menino pelas
facções, e a organização segue, de modo global, o esquema apresentado no parágrafo
acima.
Na primeira facção, temos como chefe local o Colonel Papa le bon (personagem
ficcional), como líder do grupo, Taylor (personagem histórico) e como cenário, Zorzor
(pequeno vilarejo na fronteira entre a Libéria e a Guiné). Na parte referente à ULIMO, a
estrutura é a mesma: temos, respectivamente, o General Baclay, o líder Samuel Doe e o
40
vilarejo de Sanniquelie (outro pequeno vilarejo entre a Libéria e a Guiné). Na terceira
facção, a estrutura é semelhante e temos, respectivamente, a freira Marie-Béatrice, o
líder Prince Johnson e a cidade de Monróvia (capital da Libéria). No RUF, o
personagem ficcional que comanda a facção é o General Tieffi, o líder que encontra
uma referência externa ao texto é Foday Sankoh e o vilarejo em que se passa a ação é
Mile-Thirty-Eight (um checkpoint a trinta e oito milhas de Freetown, capital da Serra
Leoa). Na quinta facção, temos como personagem ficcional o chefe de guerra
Sourougou, como personagem histórico o líder Johnny Koroma e como cenário a capital
de Serra Leoa, Freetown. Na sexta e última facção, as descrições são muito breves, pois
há poucas ações na passagem de Birahima por esta facção.
Essa estrutura cíclica mergulha o romance – e o protagonista – em um jogo
temporal, em que se misturam e entremeiam o tempo da narrativa e o tempo histórico, e
que possibilita diversas interpretações: uma delas leva em conta o ritmo da narrativa,
que será analisado mais adiante; esse ritmo tem características específicas, mas, em
suma, implica um avanço da narrativa que não se baseia no acréscimo de informações,
mas na sua repetição, que tem por efeito enfatizar o seu impacto. Ademais, o
movimento cíclico da narrativa revela a impossibilidade do protagonista de se afastar da
guerra, fazendo com que ele seja sempre obrigado a reintegrar uma nova facção.
A repetição da estrutura da narrativa na passagem do menino pelas diversas
facções evidencia a semelhança entre as diversas facções e seus líderes; em outras
palavras, podemos dizer que, apesar de os chefes de guerra se declararem partidários de
ideologias opostas, a sua atuação e legitimação do poder acaba sendo a mesma e, em
todos os casos, incapaz de oferecer ao país uma solução para os conflitos. Enfim, os
líderes e as ideologias podem mudar de nome, mas a situação permanece sempre a
mesma. Birahima percorre diversas facções, com promessas diversas, porém todas
acabam por dar continuidade à mesma realidade: à guerra, à violência, à arbitrariedade e
ao exército de crianças na linha de frente dos combates.
2.1.3. Personagens históricos e personagens ficcionais
Através do mecanismo de imbricar os tempos narrativo e histórico, Kourouma
adota duas estratégias: dar aos personagens nomes que correspondem à sua existência
real e criar personagens fictícios. Para ilustrar essa estratégia, retomemos dois
41
personagens já citados: Taylor e Colonel Papa le bon. O primeiro personagem leva o
mesmo nome de um dos presidentes da Libéria, Charles Taylor, que foi conhecido por
saquear os cofres públicos, fugir para os Estados Unidos e depois retornar à Libéria para
ocupar funções políticas estratégicas, enquanto que o segundo é um personagem
ficcional. Na narrativa, porém, as referências ao real e ao ficcional estão imbricadas, em
um jogo que provoca um duplo movimento: a ficcionalização da história e o efeito de
real produzido pelos elementos ficcionais, como se nota nas citações a seguir:
Le colonel Papa le bon était le représentant du Front national patriotique,
en anglais National Patriotic Front (NPFL) à Zorzor. C’était le poste le plus
avancé au nord du Liberia. Ça contrôlait pour le NPFL l’important trafic
venant de la Guinée. Ça percevait les droits de douane et surveillait les
entrées et sorties du Liberia. Walahé ! Le colonel Papa le bon était un grand
quelqu’un du Front national patriotique. Un homme important de la faction
de Taylor (A, pp. 64-65)29.
Nesse trecho, notamos a referência ao NPFL, uma das facções da guerra civil na
Libéria, liderada por Charles Taylor. Encontramos também três referências espaciais, a
Libéria, a Guiné e o vilarejo de Zorzor, localidades que existem no mapa. O principal
personagem referido, no entanto, não tem uma referência externa real, sendo criação do
autor. O Colonel Papa le bon terá uma grande importância no romance, pois a sua
existência modifica diretamente o rumo da trajetória do protagonista, e muitas páginas
lhes serão dedicadas, para contar a sua história, seu poder, suas atividades e, por fim,
sua morte. Já o personagem Taylor não está envolvido diretamente com as ações do
narrador Birahima, mas a sua história serve de pano de fundo para esclarecer a situação
política real da Libéria.
Na referência a Taylor, o narrador relata rapidamente a sua trajetória, contando
as suas negociatas na Libéria e o esvaziamento dos cofres públicos; em seguida,
tomamos conhecimento de sua fuga para os Estados Unidos, onde foi preso. Tendo
conseguido escapar, encontrou apoio na Líbia, junto a Kadhafi, onde aprendeu a técnica
da guerrilha; finalmente, Taylor buscou apoio junto a Compaoré (Burkina Faso) e
Houphouët-Boigny (Costa do Marfim), ganhando poder, armamento e soldados, para
que voltasse à Libéria com o intuito de desestabilizar o governo de Samuel Doe. Mais
“O coronel Papai bonzinho era o representante da Frente Patriótica Nacional, em inglês National
Patriotic Front (NPFL) em Zorzor. Era o posto mais avançado ao norte da Libéria. Ele controlava para a
NPFL o volumoso tráfico que vinha da Guiné. Ele recebia as taxas de alfândega e vigiava as entradas e
saídas da Libéria. Walahê! O coronel Papai bonzinho era um figurão da Frente Patriótica Nacional. Um
homem importante do partido de Taylor” (A, p. 67).
29
42
uma vez, o trecho referente a essa personalidade se aproxima do modo discursivo
operado pela história; no entanto, o narrador insere, em seu discurso, elementos que
mostram ao leitor que se trata de uma ficção.
Il s’est enfui en Libye où il s’est présenté à Kadhafi comme le chef
intraitable de l’opposition au régime sanguinaire et dictatorial de Samuel
Doe. Kadhafi le dictateur de Libye qui depuis longtemps cherchait à
déstabiliser Doe l’a embrassé sur la bouche. (...) Et ce n’est pas tout : il l’a
refilé à Compaoré, le dictateur du Burkina Faso, avec plein d’éloges comme
si c’était un homme recommandable. Compaoré, le dictateur du Burkina,
l’a recommandé à Houphouët-Boigny, le dictateur de la Côte-d’Ivoire,
comme un enfant de choeur, un saint. Houphouët qui en voulait à Doe pour
avoir tué son beau fils fut heureux de rencontrer Taylor et l’embrassa sur la
bouche (A, pp. 65-66, grifos nossos)30.
Primeiramente, observamos elementos característicos do relato oral, como a
expressão “ce n’est pas tout” e a repetição da expressão “et l’embrassa sur la bouche”.
Em seguida, podemos notar que esse trecho é repleto de adjetivos, que apontam para um
modo discursivo que não se quer totalmente objetivo, uma vez que os adjetivos
carregam uma carga semântica subjetiva, com nuances que nos permitem classificar os
substantivos como positivos ou negativos, levando-nos a um juízo de valor e não a uma
neutralidade diante dos fatos. Ademais, nota-se a ironia do narrador em sua descrição
dos regimes dos líderes inimigos, Taylor e Samuel Doe: o primeiro é caracterizado
apenas positivamente – “plein d’éloges”, “recommendable”, “enfant de choeur”, “saint”
– enquanto que o segundo é marcado por uma adjetivação negativa – “sanguinaire”,
“dictatorial”.
Essa operação de adotar um ponto de vista político para denegrir a imagem da
oposição é repetida algumas vezes no romance; no entanto, a narrativa não adota sempre
uma mesma perspectiva; com a fluidez diegética típica do estilo de Kourouma, o
narrador toma a voz ora de Taylor, ora de Doe, e também a de Prince (grandes líderes
da guerra) para justificar os próprios atos e denunciar os dos outros. No final,
concluímos que o intuito de Kourouma é mostrar que todos os chefes de guerra adotam
o mesmo discurso: salvar o povo, culpando as outras facções pela guerra; porém, no
fundo, são todos igualmente responsáveis pela guerra, repetindo as mesmas atrocidades.
“Ele fugiu para a Líbia onde se apresentou a Kadafi como chefe da oposição ao regime sanguinário e
ditatorial de Samuel Doe. Kadafi, o ditador da Líbia, que há muito tempo tentava desestabilizar Doe,
beijou ele na boca (...) E isso não é tudo: ele despachou ele para Compaoré, o ditador do Burkina Fasso,
com um monte de elogios como se fosse um homem recomendável. Compaoré, o ditador do Burkina,
recomendou-o a Houphouët-Boigny, o ditador da Costa do Marfim, como se fosse um verdadeiro anjo,
um santo. Houphouët, que tinha raiva de Doe por ele ter matado seu genro, ficou feliz por encontrar
Taylor, que ele beijou na boca” (A, p. 68, grifos nossos).
30
43
Dessa maneira, Kourouma convoca diversos elementos históricos, porém, associa a eles
componentes literários, de modo a proceder a uma ficcionalização da história, que
mescla diversos pontos de vista, tempos e espaços.
Por outro lado, opera-se também o procedimento inverso: a criação de
personagens imaginários, que estão de tal modo integrados à vida política do país, que
se assemelham a personagens reais. Esse é o caso, por exemplo, do personagem Colonel
Papa le bon, líder local da facção NPLF. O narrador conta a sua história, mostrando
como ele se tornara chefe de guerra: ele foi também criança de rua, mas foi resgatado
por um grupo de freiras que o enviaram aos Estados Unidos para estudar. Papa le bon
decide se ordenar padre e voltar à Libéria; ao chegar à sua terra natal, ele se depara com
crianças de rua, relembra a sua infância e decide ajudá-las. Entretanto, o líder Samuel
Doe descobre a sua iniciativa, manda assassinos para atacá-lo e Papa le bon se vê
obrigado a pedir auxílio a Taylor, que o nomeia responsável pela arrecadação das tarifas
alfandegárias da região fronteiriça de Zorzor.
Como o seu nome indica, o personagem é descrito pelo narrador através de uma
adjetivação positiva, o que se verifica nos fragmentos a seguir:
Le colonel Papa le bon dans sa majesté a fait un signe (A, p. 58, grifo
nosso)31;
il est venu me caresser la tête comme un vrai père” (A, p. 58, grifo nosso)32;
il y avait une pension de jeunes filles que le colonel Papa le bon dans sa
grande bonté avait fait construire (A, p. 78, grifo nosso)33;
autrement, il sera pardonné par le colonel Papa le bon. Parce que le colonel
Papa le bon avec sa canne pontificale est la bonté elle-même” (A, p. 81,
grifo nosso)34.
Todas essas referências ao personagem evidenciam o deslumbramento de Birahima
diante do chefe de guerra, que se refere a ele através de palavras e expressões de cunho
positivo.
O narrador descreve ainda, com detalhes, todas as tarefas realizadas por Papa le
bon na região por ele controlada. Ele se ocupa de todos os domínios da vida da
comunidade: no âmbito econômico, as taxas de alfândega; no aspecto religioso, a
formação e os sermões; na instância jurídica, o julgamento de todos os condenados; no
“O coronel Papai bonzinho, em toda sua majestade, fez um sinal” (A, p. 60, grifo nosso).
“ele veio me fazer carinho na cabeça como um verdadeiro pai” (A, p. 60, grifo nosso).
33
“Tinha uma pensão de meninas que o coronel Papai bonzinho em sua grande bondade tinha mandado
construir” (A, p. 81, grifo nosso).
34
“Do contrário, ele seria perdoado pelo coronel Papai bonzinho. Porque o coronel Papai bonzinho com
sua bengala pontifical era a bondade em pessoa” (A, p. 84, grifo nosso).
31
32
44
âmbito burocrático, a assinatura dos papéis e documentos. Evidentemente, o Coronel
lida com todos esses assuntos segundo a sua vontade e os seus próprios critérios, o que
leva o narrador a resumir o seu papel da seguinte forma: “À Zorzor, le colonel Papa le
bon avait le droit de vie et de mort sur tous les habitants. Il était le chef de la ville et de
la région et surtout le coq de la ville. À faforo ! Walahé (au nom d’Allah!)” (A, p. 71,
grifo nosso)35. Consequentemente, a atitude dos habitantes diante de seu poder é de
submissão e dependência: “Tout le monde se leva et se décoiffa parce que c’était lui le
chef, le patron des lieux (...) Papa le bon fit trois fois le tour des corps et vint s’asseoir.
Tout le monde s’est assis et a écouté comme des couillons au carré” (A, p. 61, grifos
nossos)36.
Diante de tal submissão, poderíamos nos questionar sobre o modo segundo o
qual Papa le bon era capaz de legitimar o seu poder, a ponto de fazer com que todos o
respeitassem incondicionalmente; certamente, o seu poder é agenciado pelo medo, mas
também pela sua imagem:
Le colonel Papa le bon portait une mitre de cardinal. Le colonel Papa le bon
s’appuyait sur une canne pontificale, une canne ayant au bout une croix. Le
colonel Papa le bon tenait à la main gauche la Bible. Pour couronner le
tout, compléter le tableau, le colonel Papa le bon portait sur la soutane
blanche un kalachnikov en bandoulière. L’inséparable kalachnikov qu’il
traînait nuit et jour et partout. Ça, c’est la guerre tribale qui voulait ça (A,
p. 57, grifos nossos)37.
Papa le bon jamais se distancia de sua arma, o que revela que, se necessário, o recurso à
força é sempre possível. No entanto, além desse aspecto, ele legitima também o seu
poder pela representação religiosa ostentada em seu modo de vestir, dotando-se de
elementos que lhe garantem a autoridade religiosa, como o crucifixo, a Bíblia, a mitra
de cardeal e a batina branca.
“À Zorzor, o coronel Papai bonzinho tinha direito de vida e morte sobre todos os moradores. Ele era o
chefe da cidade e da região e sobretudo o verdadeiro galo do terreiro. Faforo! Walahê (em nome de Alá)!”
(A, pp. 73-74, grifo nosso).
36
“Todo mundo se levantou e tirou o chapéu porque ele era o chefe, o patrão do pedaço. (...) Papai
bonzinho deu três voltas no corpo e foi sentar. Todo mundo sentou e ficou ouvindo que nem uns babacas”
(A, pp. 63-64, grifos nossos).
37 “O coronel Papai bonzinho usava uma mitra de cardeal. O coronel Papai bonzinho se apoiava numa
bengala pontifical, uma bengala que tinha uma cruz na ponta. O coronel Papai bonzinho segurava na mão
esquerda a Bíblia. Para coroar tudo isso, para completar o quadro, o coronel Papai bonzinho usava por
cima da batina branca uma kalachnikov pendurada a tiracolo. A inseparável kalachnikov que ele
arrastava dia e noite por todo lado. Isso, isso é a guerra tribal que determina” (A, p. 60, grifos nossos).
35
45
Além da arma e dos adereços religiosos, o narrador revela outro modo de
legitimação do poder do personagem: o discurso. Enquanto líder religioso, Papa le bon é
responsável também pelos rituais, nos quais ele procede a um sermão:
Ça portait sur la trahison, sur les fautes des autres chefs de guerre :
Johnson, Koroma, Robert Sikié, Samuel Doe. Ça portait sur le martyre que
subissait le peuple libérien chez ULIMO (United Liberian Movement of
Liberia), Mouvement uni de libération pour le Liberia, chez le LPC (le
Liberian Peace Council) et chez NPFL-Koroma (A, p. 70, grifos nossos)38.
Através de seu discurso político travestido de discurso religioso, o Coronel persuade os
habitantes da região a culpar os outros líderes de facção pela guerra, veiculando a ideia
de que os seus atos e seu exército estavam apenas a serviço do bem comum.
A análise da construção e caracterização dos personagens Taylor e Colonel Papa
le bon ilustram a estratégia empreendida por Kourouma ao longo de todo o romance,
isto é, o jogo entre o real e o ficcional. Nos capítulos subsequentes, esse procedimento
se repete e entram em cena diversos personagens com referência externa ao texto, como
é o caso de Samuel Doe, Prince Johnson, Foday Sankoh e Johnny Koroma, e seus
respectivos representantes locais, General Baclay, Marie-Béatrice, General Tieffi e
Sourougou, personagens ficcionais.
Esse jogo entre referência ao real e criação ficcional funciona como se
colocássemos um microscópio em alguma parte dos países em questão e
compreendêssemos como a macrorrealidade incide sobre a microrrealidade. Em outras
palavras, podemos dizer que o autor sai do plano da política internacional para mostrar
como ela afeta os lugares e as pessoas em menor instância. Por meio do personagem
Taylor, o narrador introduz elementos que permitem uma análise política da situação
vigente no país, levando o leitor a ler, de forma crítica, a realidade macroscópica de
alguns países africanos, situando os eventos narrados no espaço e no tempo histórico.
No que concerne à elaboração de um personagem fictício como o Colonel Papa
le bon e tantos outros que serão analisados posteriormente, cabe ao autor uma tarefa
diversa. Pois se Kourouma se alimenta de fontes históricas – como a condição de vida
nos vilarejos dizimados, o meio através do qual os chefes locais legitimam o seu poder,
as ações das crianças-soldados, o requinte de crueldade das mortes –, elas não são
38
Era um tal de falar de traição, de todos os erros dos outros chefes de guerra: Johnson, Koroma, Robert
Sikié, Samuel Doe. Era um tal de falar do martírio que sofria o povo liberiano com o ULIMO (United
Liberation Movement for Democracy in Liberia), Movimento Unido de Libertação pela Democracia na
Libéria e com o LPC (Liberian Peace Council), Conselho Liberiano de Paz e com a NPLF-Koroma. (A, p.
72, grifos nossos).
46
suficientes para dar conta de todos os pormenores da guerra. Para elaborar personagens
que deem vida a essa microrrealidade, de modo que ela seja verossímil, é preciso nutrirse de outras fontes. Por isso, o trabalho do autor opera também sobre a memória
coletiva: os testemunhos que lhe são contados tornam-se a matéria prima para a
caracterização dos personagens, dos lugares, das ações.
O testemunho em primeira pessoa tem caráter documental uma vez que se baseia
no discurso de alguém que viu e que viveu a realidade sobre a qual escreve. O lugar do
testemunho é valorizado, na medida em que se concebe a história como fruto de
reconstruções do passado nas quais convivem diversos pontos de vista. O discurso
histórico, muitas vezes, é construído a partir da perspectiva dos dominadores, e outras
visões do passado são essenciais, na medida em que se percebe a necessidade de criar
uma nova forma de lidar com os acontecimentos transcorridos. Em uma entrevista sobre
a importância da memória na construção da história, o crítico Márcio Seligmann-Silva
afirma o seguinte:
em um século de catástrofes com o genocídio armênio, Auschwitz,
Hiroshima, os gulags de Kolima, as ditaduras sangrentas que
marcaram a América Latina, o massacre dos Tutsis e tantos outros
genocídios, novas modalidades de se relacionar com os mortos e com
o passado precisavam ser desenvolvidas (SELIGMANN-SILVA,
2010).
Como afirmamos anteriormente, a reflexão sobre a história se tornou
fundamental no âmbito da discussão identitária de diversos povos; é preciso, pois,
compreendê-la para poder reconfigurá-la de modo a deslocar visões eurocêntricas e
discursos de dominação ocidental em meio a povos que constituem a sua identidade no
entrecruzamento, muitas vezes conflituoso, de culturas ocidentais e povos ancestrais.
Nesse contexto, o testemunho passa a ocupar uma importante função, pois ele contribui
para a elaboração de uma concepção histórica a partir de diversos pontos de vista,
inclusive, daqueles que, em geral, não têm espaço nos discursos históricos oficiais.
Como afirma Paul Ricoeur, o testemunho é o ingresso da memória na vida
pública (RICOEUR, 2010, p 139). Ao refletir sobre a relação entre história e memória,
Ricoeur analisa de que modo as lembranças pessoais se articulam com o discurso
histórico. As lembranças podem ser involuntárias, mas também resultado de uma
evocação, de um esforço de memória; para que a matéria dessa recordação possa fazer
parte de um arquivo, é preciso que ela passe de sua instância imagética para a fase
declarativa. Assim, na medida em que as lembranças passam para o âmbito discursivo,
47
elas podem ganhar relevância histórica. No entanto, cabe observar que as recordações
individuais ganham um sentido histórico na medida em que são consideradas dentro de
um contexto social.
Em sua obra “A Memória Coletiva”, o sociólogo francês Maurice Halbwachs
sustenta a teoria de que o mundo não é percebido de forma individual, mas a partir das
representações coletivas. As nossas lembranças se confundem e se constroem não
apenas a partir de nossas impressões, mas também daquilo que os outros nos dizem
sobre nós mesmos. Segundo Halbwachs, não lembramos sozinhos, e é justamente essa
teia de lembranças que forma a memória coletiva. Uma memória individual que temos
de algum acontecimento ganha uma nova significação quando colocada sob o ponto de
vista coletivo:
para que atinja realidade histórica atrás da imagem, ela [a lembrança]
terá de sair de si mesma, terá de ser posta no ponto de vista de um
grupo, para que se possa ver como tal fato marca uma data – porque
entrou no círculo das preocupações, dos interesses e das paixões
nacionais (HALBWACHS, 2003, p. 79-80).
Deparamo-nos, portanto, com a polaridade entre a memória individual – as
lembranças pessoais e as impressões subjetivas – e a memória coletiva – que dá um
sentido social à memória. Ricoeur, ao analisar a memória individual à luz da
fenomenologia, e a memória coletiva à luz da sociologia, conclui sugerindo um
intermediário entre os dois polos: a memória dos nossos próximos, ou seja, daquelas
pessoas com as quais compartilhamos a nossa existência e com quem compartilhamos
nossas visões do mundo: “portanto, não é apenas com a hipótese da polaridade entre
memória individual e memória coletiva que se deve entrar no campo da história, mas
com a de uma tríplice atribuição da memória: a si, aos próximos, aos outros.”
(RICOEUR, 2010, p. 142).
No romance de Kourouma, a voz narrativa dá seu testemunho: o personagem
Birahima começa o seu relato se apresentando e se propõe a contar, em primeira pessoa,
a sua história, as suas memórias e as suas percepções relativas ao passado vivido. Esses
testemunhos, no entanto, são ficcionalizados, pois não podemos atribuir a esse
personagem uma referência na realidade externa aos romances.
Não se trata, portanto, de um testemunho no qual há uma coincidência entre o
narrador e o autor – como é o caso de uma autobiografia. Aqui, se o autor escreve sobre
uma realidade que não lhe é alheia, pois fala de sua terra e de eventos pelos quais ela
48
passou ou ainda passa, não se pode dizer que os fatos narrados tenham sido vividos em
primeira pessoa. Como se trata de situações imaginárias, contadas por um narrador
fictício, em um contexto cujo referente externo é de conhecimento de todos – as guerras
-, é preciso que os relatos tenham caráter de verossimilhança para que façam sentido na
construção do romance.
O conteúdo narrativo, por mais fictício ou metafórico que seja, dialoga sempre
com a realidade; ele se baseia, portanto, na memória coletiva que um determinado povo
guarda da vivência dessa realidade histórica. Essa memória coletiva é tecida por
milhares de memórias pessoais, que não são apenas memórias individuais, mas também
testemunhos daqueles que são próximos, dos quais somos interlocutores e que também
nos afetam, contribuindo para formar o imaginário coletivo. Assim, no cenário africano
do final do século XX, a memória compartilhada pelo grupo social registrou elementos
tais como a devastação causada pela guerra, as consequências provocadas na terra em
seus habitantes, as crianças que tomam parte ativamente na violência para garantir o
interesse de poucos, o massacre de inocentes.
Em um artigo a respeito da obra Allah n’est pas obligé, Flávia Nascimento,
tradutora do romance na língua portuguesa, afirma que o narrador Birahima representa a
“alegoria do escritor-testemunha”. Ao contar as experiências pessoais vividas na guerra
tribal, o menino cumpre a função de dar testemunho da tragédia coletiva: “a criançasoldado realiza um grande feito: ela materializa, pela escritura de seu relato de caráter
testemunhal, o registro de sua experiência vivida que se torna, desde então,
experimento/experimentação linguístico(a)” (NASCIMENTO, 2010, p. 52).
A naração de Birahima responde a um pedido feito por seu primo Mamadou:
“Petit Birahima, dis-moi tout, dis-moi tout ce que tu as vu et fait; dis-moi comment tout
ça c’est passé” (A, p. 222, grifos nossos)39. Essa solicitação de Mamadou convoca o
menino a dar testemunho de sua vivência na guerra, contando aquilo que ele próprio viu
e fez. Não é fortuita, portanto, a escolha de construir uma narrativa pautada em uma voz
em primeira pessoa, pois a força estética desse romance reside no teor testemunhal do
relato do narrador, que ganha um caráter de veracidade na medida em que ele fala de
sua própria experiência. Desse modo, a relação com o real se torna ainda mais íntima,
“- Birahimazinho, conta tudo, conta pra mim tudo o que você viu e fez; conta pra mim como foi que
tudo isso aconteceu” (A, p. 225, grifos nossos).
39
49
uma vez que a narração provém de uma testemunha ocular dos fatos; apesar de
ficcional, o seu relato ganha um estatuto de verdade proveniente de seu teor
testemunhal.
No segundo capítulo, analisaremos mais detalhadamente a importância do
testemunho na construção do romance e na reflexão acerca da identidade. Antes, porém,
cabe prosseguir a discussão relativa à revisão do passado, movimento de grande
importância na obra de Kourouma. Na próxima seção, essa revisão do passado levará
em conta um evento que foi profundamente marcante no continente africano e cujas
consequências ainda são sentidas no presente: a divisão e organização do território
africano em nações, através do estabelecimento de fronteiras arbitrárias. Essa
imposição, pautada no modelo europeu, gerou problemas de ordem política e
econômica, mas também fragmentou a identidade de muitos povos.
2.2. Relações entre identidade e alteridade
A revisão do passado, analisada anteriormente, é um movimento central na
compreensão da própria identidade: as nações que foram vítimas da colonização e de
um consequente desajuste de sua estrutura precisam, frequentemente, repensar o
passado para poder compreender e se situar no presente. Essa reflexão se torna
necessária, uma vez que o processo de formação nacional, que remonta à época da
colonização, faz-se sentir ainda no presente. As fronteiras nacionais africanas foram
estabelecidas por um povo dominador, sem levar em conta aspectos identitários
cruciais; consequentemente, a noção de identidade nacional, fundamental para a
edificação da nação, é problemática desde a sua origem, constituindo, na realidade, uma
identidade fragmentada.
A análise do romance Allah n’est pas obligé revela que a identidade nacional
não se sobrepôs a outras formas de identidade. Ainda que a questão identitária se faça
fortemente presente na fala do narrador, percebe-se que ele não leva em consideração a
instância nacional enquanto referencial identitário. Ademais, as referências aos países
africanos encontradas no romance – elemento que investigaremos adiante – não
promovem um entusiasmo ou uma glorificação da nação; ao contrário, remetem a um
questionamento e a uma descrença diante do fato nacional.
50
Para compreender determinadas tensões existentes no continente nos tempos
atuais, cabe, portanto, remontar ao passado e refletir sobre essa fissura entre os povos
africanos, que estabeleceu fronteiras artificiais, esfacelando a sua identidade.
Estudaremos, pois, a seguir, o processo de edificação das nações europeias, modelo
sobre o qual foram pautadas as nações africanas, para compreender de que modo esses
dois processos diferem profundamente.
Na obra de Kourouma, a busca identitária é introduzida desde as primeiras
páginas do romance, visto que elas tratam, precisamente, da apresentação de seu
protagonista e narrador, Birahima. Apresentar-se significa pensar e formular uma
identidade, que pode levar em conta diversos critérios: nome, idade, nacionalidade,
grupo social, condição sócio-econômica, enfim, a pertença a grupos que nos
caracterizem e aos quais optamos por nos filiar.
Essa operação encenada pelo menino Birahima representa, pois, uma reflexão
acerca da identidade de uma coletividade; não se trata de compreender uma identidade
singular, mas o posicionamento comum a um grupo. Evidentemente, o menino recorrerá
à primeira pessoa do discurso; contudo, insere-se em sua fala o pronome “on”, sem que
se saiba qual é a sua referência exata:
On connaît un peu, mais pas assez; on ressemble à ce que les nègres noirs
africains indigènes appellent une galette aux deux faces braisées. On n’est
plus villageois, sauvages comme les autres noirs nègres africains indigènes:
on entend et comprend les noirs civilisés et les toubabs sauf les Anglais
comme les Américains noirs du Liberia. Mais on ignore géographie,
grammaire, conjugaisons, divisions et rédaction; on n’est pas fichu de
gagner l’argent facilement comme agent de l’État dans une république
foutue et corrompue comme en Guinée, em Côte-d’Ivoire, etc., etc (A, p. 8,
grifos nossos)40.
O pronome “on” foi repetido seis vezes ao longo desse fragmento, sem que haja uma
referência anterior para poder situá-lo. Sabe-se somente que o pronome “on” se refere a
um grupo e não apenas a um indivíduo, o que nos leva a crer que as indagações de
Birahima a respeito de sua identidade não se restringem a um único indíviduo, mas a
uma coletividade.
“A gente sabe um pouco, mas não o bastante; a gente parece aquilo que os negros africanos nativos
chamam de broa queimada dos dois lados. A gente não é mais um bicho do mato, selvagem como os
outros pretos negros africanos nativos: a gente escita e entende os pretos civilizados e os tubabs exceto os
ingleses como os americanos pretos da Libéria. Mas a gente não sabe nada de geografia, gramática,
conjugação de verbos, divisão e redação; a gente não é capaz de ganhar dinheiro fácil como funcionário
do Estado numa república miserável e corrompida como a Guiné, a Costa do Marfim, etc., etc.” (A, p.
10).
40
51
Ao longo de sua apresentação, é possível notar que o menino oscila entre
diversas instâncias identitárias, que levam em conta elementos de diversas ordens:
linguística, nacional, étnica, cultural, o que demonstra que o fator identitário é de suma
importância sem, no entanto, ser marcado rigidamente. A primeira postulação de
identidade aparece da seguinte forma “suis p’tit nègre”41, seguida de uma explicação:
“pas parce que suis black et gosse. Non! Mais suis p’tit nègre parce que je parle mal le
français” (A, p. 7).42 Essa fala do menino revela o quanto a sua identidade é
profundamente marcada por seu modo de falar; além dos critérios linguísticos que estão
em jogo através dessa afirmação, devem ser acrescentados ainda os fatores culturais.
Além disso, esse modo de falar, isto é, o “petit nègre”, não se pauta pelo domínio de sua
língua materna, mas pelo conhecimento do idioma francês, a língua do colonizador.
Esse simples comentário do menino é profundamente revelador da hierarquia linguística
percebida por ele, em que o francês ocupa uma posição superior às línguas nativas
africanas.
Em seguida, o menino se filia a outra categoria: “nègre noir africain
indigène”43, que está atrelada a critérios raciais, marcados pela ênfase sugerida pelo uso
de ambas as palavras, “nègre” e “noir”. Essa categoria enfatiza a pertença ao continente
africano e o emprego do vocábulo “indigène” reforça a importância das suas matrizes
culturais anteriores à colonização. Outra instância citada é a classificação de “África
francófona”, que remete a parâmetros classificatórios ocidentais; seu emprego causa
certo estranhamento em relação aos outros, tendo em vista que essa classificação teve
origem no período colonial e está intimamente associada à ideia de expansão territorial
da França. De todo modo, mais uma vez, encena-se a instância linguística como
referência identitária.
Mais adiante, o narrador faz uma afirmação categórica, que marca a defesa de
uma identidade à qual ele tem orgulho de se associar: “les Malinkés, c’est ma race à
moi”. (A, p. 8)44 Com essa afirmação, o menino deixa claro que os fatores étnicos
também são relevantes e centrais para a sua busca identitária e, sobretudo, para a sua
. “Sou um neguinho” (A, p. 9).
“não porque sou black e moleque. Não! Mas sou neguinho porque falo mal francês” (A, p. 9).
43
“negro preto nativo africano” (A, p. 10).
44
“os malinquês, essa é a minha raça” (A, p. 10).
41
42
52
diferenciação em relação a outros grupos étnicos presentes no território por ele
habitado.
Ao longo da apresentação tecida pelo menino, não se nota uma filiação a
nenhuma nacionalidade, nem referência ao seu país de origem, o que revela que a
instância identitária nacional não é central para o narrador. O que se pode notar,
portanto, na obra de Kourouma não é tanto uma literatura em prol da afirmação nacional
da Costa do Marfim, mas um discurso que valoriza as bases ancestrais de seu povo,
elemento que não é exclusivo dos marfinenses, por ser comum a outras nações
africanas. Essa valorização é reveladora também de uma denúncia à colonização,
fazendo do colonizador – e não das outras nações africanas – a alteridade a ser
diferenciada, questionada, posta de lado. Assim, cabe investigar as origens da fundação
nacional nos países africanos, para compreender os motivos pelos quais elas causam
grandes problemas identitários no continente.
2.2.1. A identidade nacional e a literatura
Ao fazer um levantamento das abordagens possíveis para se estudar uma obra,
não se pode negligenciar uma categorização canônica nos estudos literários que são as
literaturas nacionais. Em alguns contextos, essa classificação não causa nenhum
estranhamento e serve, com muita frequência, de referência para a abordagem literária,
como é caso da literatura francesa. No entanto, quando se trata de nações que foram
produtos da colonização, essa classificação se torna extremamente complexa, uma vez
que o conceito de nação abarca diversas questões históricas, políticas e, inclusive,
discursivas, que estão ligadas a um contexto cujas origens remontam ao período
posterior à Idade Média, com os diversos movimentos de conquista dos bárbaros sobre
o Império Romano.
Evidentemente, as nações não se concretizaram subitamente; ao contrário, foram
necessários séculos até que se formassem as nações europeias tal como as conhecemos
hoje. Pode-se dizer, portanto, que as nações não surgiram de um único gesto, uma única
guerra, uma única revolução: elas foram fruto de um longo processo histórico que teve
de ser legitimado para poder vigorar. Nas chamadas nações africanas, esses processos
históricos e de legitimação ocorreram de forma tão diversa, que o próprio sentido do
vocábulo “nação” poderia ser questionado.
53
Em uma antologia de textos relativos à temática da nacionalidade, intitulado
“Escrever a nação: literatura de nacionalidade”, o organizador da obra, Carlos Manuel
Ferreira da Cunha, reflete sobre a legitimação da nação, que está intimamente associada
ao sentimento de identidade nacional. De acordo com Cunha, esse processo envolve
diversos fatores: a invenção de um patrimônio comum; a revisão do passado histórico,
isto é, a promoção de uma determinada visão do passado que ponha em relevo eventos
que estejam a favor de certas ideologias, em detrimento de outras; a literatura, que
cumpre a função de criar uma coesão sociocultural em torno de uma língua específica
(CUNHA, 2001).
Assim como Cunha, Anne-Marie Thiesse, ao escrever também sobre as questões
nacionais, aposta em uma íntima relação entre a identidade nacional e a literatura.
Segundo a pesquisadora, subjaz à formação de uma nação uma atividade criadora que
visa a substituir a ideia de identidade religiosa, étnica, cultural, para sobrepor a elas a
identidade nacional; além disso, é imprescindível, para esse processo, o trabalho
pedagógico para que esse reconhecimento identitário seja passado também às gerações
seguintes.
Será necessário mais de um século de intensa atividade criadora para
construir a identidade nacional dos alemães, dos italianos, dos franceses e de
todos os seus homólogos europeus. Isto implica, senão abolir as identidades
preexistentes baseadas no estatuto social, na religião ou no fato de fazerem
parte de uma comunidade local restrita, implica, no mínimo, redefini-las
como características secundárias, subordinadas à identidade nacional.
(THIESSE, 2002, p. 8)
Como afirma Thiesse, o processo de construção das nações europeias não
ocorreu subitamente e foi necessário um esforço criador e pedagógico para que a noção
de identidade nacional pudesse se sobrepor a outras noções identitárias. Na África, o
modelo europeu de nação foi adotado, sem que houvesse o tempo e as condições
necessárias para que ele fosse consolidado.
Como vimos através de exemplos do romance de Kourouma, a identidade
coletiva dos povos africanos é pautada, em grande parte, pelas etnias. Em um artigo da
obra “Histoire Générale de l’Afrique”, J. Isawa Elaigwu reflete sobre a construção
nacional, admitindo que, no contexto europeu, a edificação da nação estava intimamente
ligada a uma tendência à homogeneidade cultural. Segundo o pesquisador, no
continente africano, a edificação da nação não deveria consistir no abandono de outras
instâncias identitárias, como, por exemplo, a etnia: “para nós, o processo implica não
54
uma transferência, mas um alargamento do horizonte até que os grupos restritos
reconheçam sua própria identidade, a ponto de englobar entidades mais vastas, tais
como o Estado”. 45
Para que se consolide o processo de edificação da nação, de acordo com
Elaigwu, são necessárias duas dimensões da identidade: a dimensão vertical e a
dimensão horizontal. A primeira consiste em promover a edificação de um Estado, isto
é, um poder político unificado; no entanto, a mera existência de um Estado não é
suficiente, pois é indispensável que ele seja reconhecido pelos cidadãos, para que tenha
legitimidade:
Trata-se da dimensão vertical da edificação da nação, o que significa que
não somente exista um Estado, mas também que as pessoas aceitem a sua
autoridade (e não simplesmente o seu poder de coerção) e vejam no seu
governo o símbolo de sua comunidade política. 46
Além da dimensão vertical, ligada à legitimidade do poder do Estado, é
necessário também o movimento horizontal, isto é, aquele que diz respeito a todos os
membros pertencentes à nação. A aceitação da igualdade de todos aqueles que
compartilham um território, é fundamental para gerar um sentimento de pertença a uma
única comunidade política.
No sentido horizontal, a edificação da nação implica que cada um aceite a
igualdade dos outros membros do corpo cívico enquanto membros de uma
nação juridicamente constituída – o que significa que cada um reconheça os
direitos de dividir a história comum, os recursos, os valores morais e os
outros aspectos do Estado. 47
J. Isawa Elaigwu prossegue as suas reflexões afirmando que a edificação do
Estado e a edificação da nação são, pois, dois processos diferentes, embora estejam
intimamente ligados. No contexto europeu, esses processos se deram de forma lenta e
não simultânea, pois foi preciso criar primeiramente um sentimento de pertença
nacional para que o poder do Estado pudesse se legitimar. No continente africano, na
maioria dos casos, ocorreu o contrário: primeiramente, foi consolidado o Estado, sem
“Pour nous, le processus implique non pas un transfert mais l’élargissement de l’horizon jusqu’auquel
les groupes restreints reconnaissent leur propre identité, au point d’englober des entités plus vastes telles
que l’État” (ELAIGWU, 1998, p. 465).
46
“Il s’agit là de la dimension verticale de l’édification de la nation, c’est-à-dire que non seulement il y a
un État mais aussi que les gens acceptent son autorité (et pas simplement sa puissance de coercition) et
voient dans son gouvernement le symbole de leur communauté politique” (ELAIGWU, 1998, p. 465).
47
“Dans le sens horizontal, l’édification de la nation implique que chacun accepte l’égalité des autres
membres du corps civique en tant que membres d’une nation juridiquement constituée – c’est-à-dire que
chacun reconnaisse aux autres le droit à partager l’histoire commune, les ressources, les valeurs morales
et les autres aspects de l’État” (ELAIGWU, 1998, p. 466).
45
55
que antes houvesse uma unidade nacional. Esse Estado constituído através de força e
mediado pela dominação estrangeira não promoveu o sentimento de identidade
nacional, tão necessário para legitimar a edificação da nação.
Para muitos Estados africanos anteriormente colonizados, o Estado precedeu
a nação. Os povos foram arbitrariamente agrupados no seio de uma unidade
territorial que formou em seguida uma entidade geopolítica denominada
Estado. Dentre os povos incorporados a esses Estados, muitos não
identificavam o Estado enquanto símbolo de um povo ou de uma
comunidade política. 48
Os povos africanos foram agrupados de modo arbitrário, sem levar em conta
características culturais e linguísticas, elementos favoráveis a um sentimento de
pertença, de unidade e de identidade coletiva. Assim, tornou-se difícil realizar os dois
movimentos identitários de que fala J. Isawa Elaigwu, o que resultou em territórios
divididos sob o nome de nações, porém com identidades nacionais fragmentadas. A
falta de legitimidade do poder do Estado e o não reconhecimento da igualdade de todos
os cidadãos dentro de um território comum estão na base da instabilidade política vivida
por tantos países africanos. Como veremos, a ausência da autoridade política gerou uma
série de golpes de Estado, e a falta de um sentimento de identidade coletiva levou ao
massacre de muitos povos, mergulhando inúmeros países em sangrentas guerras civis,
na segunda metade do século XX.
Como se pode concluir, a implantação das nações africanas se deu de forma
diversa do modelo europeu e é polêmica por si só. Certamente, a chamada literatura
nacional dessas nações também será operada de um modo diferente. Como observa
Anne-Marie Thiesse, há um check-list identitário que “é a matriz de todas as
representações de uma nação”; dela fazem parte elementos como “ancestrais
fundadores, uma história que estabeleça a continuidade da nação através das vicissitudes
da história, uma galeria de heróis, uma língua, monumentos culturais e históricos,
lugares de memória, uma paisagem típica, um folclore” (THIESSE, 2002, pp. 8-9).
Através dessa lista, é possível notar que muitos desses fatores estão ligados a
formas discursivas a serviço de um processo histórico e social. A literatura opera,
portanto, um papel central na construção do imaginário nacional, com o objetivo de
“Pour beaucoup d’États africains antérieurement colonisés, l’État a précédé la nation. Des peuples
furent arbitrairement regroupés au sein d’une unité territoriale qui forma ensuite une entité géopolitique
dénommée État. Parmi les peuples incorporés à de tels États, nombreux étaient ceux chez qui n’existait
aucune identification à l’État en tant que symbole d’un peuple ou d’une communauté politique”
(ELAIGWU, 1998, p. 466).
48
56
criar um sentimento de pertença comum entre grupos que, muitas vezes, apresentam
traços de distinção. A literatura e a nacionalidade, durante muitos anos, estiveram
estreitamente vinculadas uma à outra, de modo que diversos movimentos literários
tiveram como importante característica “a missão patriótica de fundarem uma literatura
e uma cultura centradas na nação” (CUNHA, 2001, p. 13), como é o caso emblemático
do Romantismo. Ao longo do século XIX, “foi a vinculação da história literária à
problemática da identidade nacional que definiu o objectivo desta disciplina” (CUNHA,
2001, p. 14), o que fez com que os movimentos literários europeus viessem a ter sentido
quando compreendidos em conjunto com a história da nação.
Conforme salienta ainda Thiesse, no início do século XIX, por falta de uma
historiografia da nação, o romance, “um gênero literário tão jovem quanto a ideia de
nação, servirá, ao mesmo tempo, de modelo narrativo para as primeiras elaborações
eruditas de escrita nacional e de vetor de difusão de uma nova visão do passado”
(THIESSE, 2002, p. 12). Consequentemente, a literatura se põe a serviço da nação,
tendo a função de buscar uma origem comum, exercendo um papel fundamental na
promoção da “unidade da nação como ser coletivo” (idem).
Essa função literária muito se assemelha com a função das epopeias clássicas,
que têm como característica central a fundação de uma comunidade, criando as bases de
sua origem comum, sua filiação, seu território. De acordo com Eric Havelock, que se
consagrou às literaturas clássicas, as sociedades pré-letradas embasam a sua identidade
e sua consciência social através da “composição de narrativas poéticas que servem
também como enciclopédias de conduta (...) que são continuamente recitadas e
constituem um apanhado – uma reafirmação – do éthos comunitário, e também uma
recomendação de observá-lo” (HAVELOCK, 1996, p. 164). Essa identidade, portanto, é
manifestada através de narrativas que são transmitidas de geração em geração por meio
da oralidade, e conta, necessariamente, com estratégias de memorização inerentes à
estrutura das narrativas orais.
Como foi observado anteriormente, a tematização da questão da origem,
fundamental para a promoção da identidade nacional, sempre foi, no contexto africano,
particularmente problemática e conflituosa. Evidentemente, a literatura não produz o
mesmo efeito que tivera na fundação das nações europeias: a literatura de inúmeros
57
autores africanos não exultou as glórias da fundação de suas nações, mas, ao contrário,
refletiu sobre o seu impacto no destino de seu continente.
Em sua tese, o pesquisador Diandue investiga o modo como Kourouma encena
diversos episódios da história da África em suas obras. A divisão do continente africano
pelas mãos dos europeus – “le partage de l’Afrique” – também foi abordada por
Kourouma, sobretudo em seus romances En attendant le vote des bêtes sauvages (1994)
e Monnè, outrages et défis (1990) obras que têm como momento histórico a dominação
europeia no continente africano (cf. DIANDUE, 2003, pp. 29-40).
No primeiro romance citado acima, Kourouma faz alusão às conferências
internacionais promovidas pelos europeus com o intuito de legitimar a colonização
africana e discutir a divisão do continente, como se observa no fragmento a seguir:
Sous l’égide de Paul II, le 12 septembre 1876, s’ouvrit dans la capitale du
Royaume la Conférence géographique internationale. La Conférence créa
l’Association Internationale Africaine. L’association décida de planter
définitivement l’étendard de la civilisation dans le coeur de la forêt (E, p.
228).
De acordo com a pesquisa de Diandue, Kourouma teria se inspirado no livro de Henri
Brunschwig intitulado “Le Partage de l’Afrique”, o que aponta novamente para um
recurso a fontes históricas na construção das obras ficcionais do autor marfinense. Em
outro trecho do mesmo romance, Kourouma faz referência à Conferência de Berlim,
marco histórico da ocupação europeia no continente africano, conforme afirma
Diandue:
Foi, pois, em Berlim que se “despedaçou” a África no sentido compreendido
por Marcel Amondji49. O termo “despedaçar” empregado por ele faz parte do
léxico do açougue ou da charcutaria. Ele apresenta a África como uma
“presa”, uma “comida” ou uma “vítima” que a Europa açougueira havia
matado, despedaçado e distribuído.50
Essa leitura de Diandue revela a profunda violência intrínseca à divisão
territorial da África em nações, decisão que foi tomada por povos alheios aos habitantes
locais, por meio da força e da imposição. Na referência que Kourouma faz à
Conferência de Berlim, no romance En attendant le vote des bêtes sauvages, nota-se a
tomada de posição do autor com relação a esse evento histórico: “Dans le partage de
Cf. Marcel Amondji, Houphouët-Boigny et la Côte d’Ivoire, l’envers d’une légende, Paris : Karthala,
1984.
50
“C’est donc à Berlin qu’on a "dépecé" l’Afrique au sens où l’entend Marcel Amondji. Le terme «
dépecé » qu’il emploie relève du lexique de la boucherie ou de la charcuterie. Il présente l’Afrique
comme un "gibier", une "nourriture" et une "victime" que l’Europe charcutière avait tuée, dépecée et
distribuée” (DIANDUE, 2003, pp. 31-32).
49
58
l’Afrique décidé par les Etats chrétiens à la conférence de Berlin en 1885, le territoire
des deux fleuves est dévolu au Coq gaulois” (E, p. 211). Ao descrever a divisão de uma
região, Kourouma deixa clara a arbitrariedade da decisão dos países europeus, que
dividiu um território de outros povos, sem nem consultá-los; sem nenhum critério, a
região dos dois rios foi dedicada ao “coq gaulois”, isto é, à França.
No romance Monnè, outrages et défis, Kourouma encena os movimentos
contrários à dominação europeia no continente africano, convocando inúmeros
personagens históricos que se convertem em heróis por sua luta e resistência diante da
dominação estrangeira. Esse é o caso, por exemplo, de Samory Touré, que é valorizado
e idealizado por sua coragem e sabedoria para encontrar os meios de vencer os
Franceses que haviam se instalado em seu território: “Samory Touré, l’Almamy, le « Fa
», était le plus valeureux du Mandingue ; il avait le savoir, la stratégie et les moyens de
vaincre les Français et les avait défaits sur plusieurs fronts” (M, p. 24).
Os heróis, nesse caso, não são aqueles que fundaram a nação, mas aqueles que se
opuseram ao modo de divisão política pautada em modelos estrangeiros. Esse fato
revela a crítica e o descontentamento diante da dominação colonial e da adoção de um
modelo político europeu que não levou em consideração elementos identitários
africanos para a demarcação geográfica do território. O fragmento a seguir ilustra a
recusa de alguns povos diante da conquista ocidental e a consequente luta para evitar
que as populações africanas fossem obrigadas a se curvar diante das nações europeias:
L’Almamy Samory commande à tous les rois du Mandingue de se replier sur
le Djimini. Face à certains affronts venant d’incirconcis, il faut comme le
bélier, reculer avant d’asséner le coup définitif. Tous nos peuples doivent
déménager, tous : Sénoufos, Bambaras, Malinkés. Les toits seront incendiés,
les murs abattus. Ces païens d’incirconcis conquerront les terres sans vie,
sans grains, sans eaux, sans le plus petit duvet d’un petit poussin et sauront
que nous sommes une race sur la croupe de laquelle jamais ne sera portée
une main étrangère (M, p. 31).
Esses fragmentos retirados de obras de Kourouma revelam a complexa
problemática em torno da fundação das nações africanas, que foi realizada contra a sua
vontade; assim, não existem as bases para a identidade nacional tão necessária para o
processo de legitimação e edificação de uma nação. A literatura de Kourouma
problematiza, pois, a construção das nações africanas, revelando que a identidade
africana é marcada por outras instâncias diferentes da identidade nacional.
59
Os trechos supracitados revelam uma releitura dos eventos históricos realizados
por Kourouma nos anos de 1990, isto é, em uma época posterior aos acontecimentos
sobre os quais ele reflete. No momento da imposição colonial, entretanto, a literatura
produzida na Costa do Marfim não refletiu esses questionamentos, reproduzindo um
modo de fazer literatura importado diretamente dos modelos europeus.
Através das investigações do professor Bruno Gnaoulé-Oupoh, em sua obra
“Littérature Ivoirienne”, temos um panorama da formação da literatura na Costa do
Marfim. O pesquisador analisa as primeiras manifestações literárias no país, refletindo
sobre o seu contexto de produção. Segundo a sua pesquisa, os primeiros registros de
literatura escrita, de 1932, são principalmente peças de teatros, que foram produzidas
por estudantes das escolas superiores instaladas na colônia pela metrópole francesa. O
objetivo da instalação dessas escolas era compor uma elite de africanos letrados que
dominassem bem o idioma francês para servirem de exemplo no processo civilizatório,
visando a atingir não apenas as cidades, mas também os territórios mais afastados da
administração colonial (GNAOULÉ-OUPOH, 2000). A estratégia consistiu em não
negligenciar pura e simplesmente a cultura africana, mas em conhecê-la melhor para
poder também combatê-la. Daí remontam as origens da chamada “cultura francoafricana”, que serviu de inspiração para as primeiras peças teatrais produzidas na Costa
do Marfim.
É nesse contexto ideológico e político, no qual se havia tido o cuidado de
preparar as mentes para o reconhecimento dos benefícios da civilização
francesa e para rejeitar as culturas e costumes africanos considerados
bárbaros, que o inspetor geral Charton vai propor aos alunos da Escola
William Ponty que componham e encenem peças de teatro inspiradas na vida
aborígene.51
A consequência foi que a cultura franco-africana, da qual provêm os primeiros registros
literários escritos na Costa do Marfim, apesar de tratar de temas relativos aos costumes
e hábitos dos povos africanos, veicula a ideia de que a cultura francesa era superior à
sua.
As primeiras manifestações literárias no continente foram pautadas pela
ideologia atrelada ao processo de colonização, como a explicita, por exemplo, o
ministro das Colônias, Paul Reynaud, em sua seguinte afirmação: “Nós levamos a luz às
« C’est dans ce contexte idéologique et politique, où l’on avait pris soin de préparer les esprits à la
reconnaissance des bienfaits de la civilisation française et à rejeter les cultures et moeurs africains jugées
barbares, que l’inspecteur général Charton va proposer aux élèves de l’École William Ponty de composer
et de joeur des pièces de théâtre inspirés de la vie indigène » (GNAOULE-OUPOH, 2000, p. 38).
51
60
trevas (...) Este é o significado da colonização francesa”.52 Essa afirmação, que torna
clara a ótica da superioridade das nações europeias em relação aos povos estrangeiros,
foi proferida na ocasião da inauguração da Exposição Colonial de Paris, de 1931, que
contou com mais de oito milhões de visitantes. As exposições coloniais, ocorridas em
diversos países da Europa, ao longo da primeira metade do século XX, revelam o modo
como se concebia a alteridade, o universo não ocidental, até então, muito pouco
conhecido pela maioria dos europeus. Essas exposições tinham o objetivo de promover
a potência das nações europeias, cujos territórios não se limitavam à Europa, mas se
estendiam ao mundo inteiro. Contando com a presença de homens trazidos das colônias
para ilustrar suas atividades, seus hábitos e danças, as exposições veiculavam um modo
idealizado de se encarar o estrangeiro, o Outro, apostando em seu caráter de exotismo
para fascinar a população europeia e legitimar o ideário imperialista.
Sob o ponto de vista literário, durante muitos anos, a alteridade foi representada
por seu caráter exótico. Segundo a concepção de Jean-Marc Moura, pesquisador dos
estudos pós-coloniais, “o exotismo ainda é suspeito de ser um simples refúgio da
idealização ocidental das civilizações diferentes, colorindo os mundos estrangeiros para
melhor negá-los”53. Essa abordagem em relação à alteridade revela um olhar de
superioridade do mundo ocidental sobre as outras culturas, o que hierarquiza a
diversidade humana.
Durante muitos anos, a colonização foi interpretada da forma explicitada acima,
isto é, como um modo de levar a civilização para os povos bárbaros. Esse modo de
conceber o Outro revela uma visão da alteridade ligada à assimilação, isto é, o projeto
de fazer com que o Outro – os colonizados – se comporte como Nós – os colonizadores.
O sociólogo francês, Eric Landowski, que estuda as identidades e as diversas relações
com a alteridade, define o projeto de assimilação da seguinte forma:
O Outro se encontra de imediato desqualificado enquanto sujeito: sua
singularidade aparentemente não remete a nenhuma identidade estruturada.
E é finalmente este desconhecimento – ingênuo ou deliberado – que
fundamenta a boa consciência do Nós em sua intenção assimiladora: não só
o estrangeiro tem tudo a ganhar ao se fundir de corpo e alma no grupo que o
52
« Nous avons apporté la lumière dans les ténèbres (...) Voilà ce que c'est que la colonisation française ».
Paul Reynaud, ministre des Colonies, « L'empire français », Discurso de inauguração da Exposição
colonial de Vincennes, 1931, reproduzido no Número especial : « Exposition coloniale internationale L'effort colonial dans le monde », in Le Sud-Ouest économique, n°213, agosto de 1931, p. 689.
53
“l’exotisme est encore soupçonné d’être le simple refuge de l’idéalisation occidentale des civilisations
différentes, colorant les mondes étrangers pour mieux les nier » (MOURA, 2006).
61
acolhe, mas, além disso, o que ele precisa perder de si mesmo para se
dissolver como lhe recomendam não conta, estritamente, para nada
(LANDOWSKI, 2002, p. 7).
A partir dessa ideologia que envolveu o processo colonizador, podemos concluir
que as primeiras manifestações literárias na Costa do Marfim se atrelavam a um projeto
literário ocidental, cujos moldes e bases eram essencialmente europeus, sem levar em
conta características estéticas, históricas, sociais e culturais presentes no continente
africano; quando essas eram levadas em conta, tratava-se de abordá-las sob o prisma do
exotismo. Com o passar do tempo, sobretudo com a consciência da necessidade de
independência e de autonomia em relação aos colonizadores, a concepção de literatura
se modificou e deixou de estar a serviço de um projeto europeu, para buscar suas formas
autênticas de manifestação. Esse processo passou por uma necessária revisão do
passado, como vimos na seção anterior, e não pode ficar isento de questionamento no
que diz respeito à ideia de “nação”, como estamos vendo nesta seção.
No primeiro romance escrito por Kourouma, Les soleils des Indépendances,
escrito poucos anos após o processo de descolonização da Costa do Marfim,
verificamos que a sua abordagem em relação às nações africanas implica uma profunda
reflexão. O momento de escrita de Kourouma coincide com os primórdios da formação
de seu país como nação livre da dominação estrangeira; a origem, em geral, é o
momento de maior efervescência e deslumbramento quanto ao futuro que está por vir.
Na escrita de Kourouma, porém, o que se nota é sua grande descrença quanto aos
modelos políticos adotados. A sua obra não representou a sacralização da recémformada nação marfinense livre de seu colonizador; ao contrário, questionou e
problematizou esse processo de formação nacional, que abalou as estruturas do país,
sem representar, de fato, uma solução política para o conflito. A sua desconfiança em
relação ao rumo que seu país tomara após a conquista da independência e a luta pelo
poder é simbolizada por uma frase do romance, retomada na contracapa do livro: “En
politique, le vrai et le mensonge portent le même pagne” (SI, p. 157).
2.2.2. O nacional e outras instâncias identitárias
Após analisar como Kourouma concebe e encena a nação em suas obras escritas
anteriormente, investigaremos como estão presentes as referências à nação no romance
62
Allah n’est pas obligé. A visão de Kourouma acerca dessa questão não se tornou mais
otimista, como podemos concluir a partir das citações a seguir.
As primeiras referências às nações africanas, tecidas desde as primeiras páginas
do livro, mostram-nos o modo como se refere a países como a Guiné, a Costa do
Marfim, a Gâmbia, a Serra Leoa, o Senegal: “on n’est pas fichu de gagner l’argent
facilement comme agent de l’État dans une république foutue et corrompue comme en
Guinée, en Côte-d’Ivoire, etc., etc.” (A, p. 8, grifos nossos)54; “C’est la sorte de nègres
noirs africains indigènes qui sont nombreux au nord de la Côte-d’Ivoire, en Guinée et
dans d’autres republiques bananières et foutues comme Gambie, Sierra Leone et
Sénégal là-bas, etc.” (A, p. 8) (grifos nossos)55. Ao mencionar as repúblicas africanas,
os adjetivos a elas associados são de caráter extremamente negativos, senão grosseiros.
Ao longo de todo o romance, esses mesmos adjetivos aparecem inúmeras vezes
associados a substantivos como república, nação ou país.
Somando-se às citações anteriores, há, ao longo do relato do menino-soldado,
um questionamento pungente a respeito de seu destino em um contexto que não lhe
oferece solução alguma: “Et quand on n’a plus personne sur terre, ni père ni mère ni
frère ni soeur, et qu’on est petit, un petit mignon dans un pays foutu et barbare où tout
le monde s’égorge, que fait-on?” (A, p. 94)56. Essa frase de Birahima é extremamente
impactante, pois ela resume a condição em que ele vive, explicitando a razão pela qual
ele se vê obrigado a se tornar criança-soldado. Mais uma vez, depreendemos a mesma
carga negativa expressa pelos adjetivos “foutu” e “barbare”.
Em alguns trechos, surpreendemo-nos com adjetivos de nuance positiva
associados às nações, como é o caso das seguintes citações:
Et comme il fallait un seul chef, un seul et unique chef d’État, Samuel Doe se
proclama président et chef incontesté et incontestable de la République
unitaire et démocratique du Liberia indépendant depuis 1860 (A, p. 98,
grifos nossos)57;
“a gente não é capaz de ganhar dinheiro fácil como funcionário do Estado numa república miserável e
corrompida como a Guiné, a Costa do Marfim, etc., etc.” (A, p. 10).
55
“É o tipo de pretos negros africanos nativos que são numerosos ao norte da Costa do Marfim, na Guiné
e em outras repúblicas de bananas estropiadas como a Gâmbia, a Serra Leoa e o Senegal, lá praqueles
lados, etc.” (A, pp. 10-11).
56
“E quando a gente não tem mais ninguém nessa terra, nem pai, nem mãe, nem irmã, e a que a gente é
pequeno, um garotinho bonitinho num país desgraçado e bárbaro onde todo mundo é degolado, o que é
que a gente faz?” (A, p. 97).
57
“E como era preciso apenas um chefe, um único chefe de Estado, Samuel Doe proclamou-se presidente
e chefe inconteste e incontestável da República unitária e democrática da Libéria indepedente desde
1860” (A, p. 101, grifos nossos).
54
63
Aussi tout guérillero qui arrive chez lui est-il enfermé et reste-t-il enfermé :
on l’oblige à jurer qu’il combattra jusqu’à la mort le chef de guerre qui
voudra se présenter au suffrage universel ; le chef de guerre qui voudra être
président ; le chef de guerre qui voudra commander le Liberia, la patrie
bien-aimée libérée (A, p. 131, grifo nosso)58.
Nesses trechos, de cunho evidentemente irônico, empregam-se os adjetivos “unitaire”,
“démocratique” e “bien aimeé”, todos de nuance positiva, que representam um
determinado ideário de pátria. Para compreender o uso desses atributos, cabe observar
que eles estão associados a políticos, o que sugere que o seu emprego tece uma
intertextualidade com discursos políticos, que são proferidos para convencer as massas,
o que explica o seu forte caráter apelativo. Nesse contexto, usam-se vocábulos positivos
em relação à nação, pois eles estão atrelados à imagem positiva que se deseja passar da
mesma. Retomando o fragmento supracitado, muito emblemático da obra de Kourouma,
“en politique, le vrai et le mensonge portent le même pagne” (SI, p. 157), podemos
concluir que a verdade que se veicula nos discursos políticos, aos olhos de Kourouma,
tem o mesmo valor que uma mentira. Nesse caso, os adjetivos “unitaire”,
“démocratique” e “bien aimeé” são falaciosos e se aplicam apenas a discursos políticos
vazios.
Na verdade, a ironia explícita do uso desses adjetivos torna-se evidente a partir
da análise do restante da citação: os adjetivos “unitaire” e “démocratique” estão
vinculados à política de Samuel Doe, que é questionada o tempo todo e descrita por seu
caráter ditatorial e arbitrário. Além disso, na própria citação, o sentido de “democrático”
é desconstruído, uma vez que “Samuel Doe se proclama président”, pondo em xeque
todo o sentido da democracia, o que nos leva a crer que o seu governo, na realidade, era
tirânico desde a sua instauração.
Na segunda citação, temos um procedimento semelhante: o uso do adjetivo
“bien aimée” é absolutamente irônico, o que pode ser visto pelo restante da citação.
Nota-se, mais uma vez, a falta de liberdade e o modo segundo o qual o governo está
organizado: sob imposição, através da força e da ameaça da morte, num sistema de
eleição em que o candidato é um “chefe de guerra”. O cidadão que deve lutar pela sua
pátria “bem amada” é o mesmo ao qual se associam palavras como “enfermé”, “obligé”,
“E também todo guerrilheiro que chega até ele é preso e permanece preso; ele é obrigado a jurar que vai
combater até a morte o chefe de guerra que quiser se apresentar ao sufrágio universal; o chefe de guerra
que quiser ser presidente, o chefe de guerra que quiser comandar a Libéria, a pátria liberada bem-amada”
(A, p. 135, grifo nosso).
58
64
“combat” e “mort”, isto é, não há liberdade alguma em se lutar pela pátria, o que faz
com que o adjetivo “bien aimée” destoe completamente do contexto em que está
inserido, significando, portanto, o oposto de seu conteúdo.
Em suma, podemos observar que a instância nacional é amplamente questionada
ao longo do romance e denunciada por ser uma concepção falida desde o seu
nascimento, por não prezar por seus princípios básicos, como a democracia e a
liberdade; essas características estão presentes apenas nos discursos, mas não se
verificam na realidade. A busca da identidade não está, pois, associada a critérios
nacionais, o que não significa que ela não esteja presente; como vimos, há outras
instâncias identitárias às quais os personagens se filiam. Ao invés de pautar a sua
identidade coletiva a partir de um recorte nacional, o narrador leva em conta, de modo
muito mais recorrente, a instância étnica como referencial identitário. Essa instância
abarca fatores raciais, culturais e também linguísticos, uma vez que a sua língua
materna é homônima à sua etnia. Esse referencial será central para a compreensão
identitária do protagonista do romance, mas também terá grande impacto em questões
políticas na região da África em questão.
No que se refere ao narrador Birahima, em diversos momentos, ele reafirma a
sua pertença à etnia malinké, frisando a sua importância no seu modo de falar, nos seus
costumes e em eventos de sua vida. Ele justifica, desde o início de seu relato, o uso de
palavras de sua língua malinké, e ao longo de todo o romance, ele mescla vocábulos
dessa língua e da língua francesa, convocando elementos e paisagens típicos de sua
cultura, fato que se pode verificar no exemplo a seguir e que será analisado
detalhadamente no próximo capítulo.
J’emploie les mots malinkés comme faforo! (Faforo signifie sexe de mon
père ou du père de ton père.) Comme gnamokodé ! (Gnamokodé ! signifie
bâtard ou bâtardise.) Comme Walahé ! (Walahé ! signifie Au nom d’Allah.)
Les Malinkés, c’est ma race à moi (A, p. 8, grifo nosso)59.
Ele explica eventos de sua vida com base em tradições, leis e princípios de sua
etnia, como vemos nos exemplos a seguir. “C’est à mon oncle Issa que devait
appartenir maman après le décès de mon père, c’est lui qui devait automatiquement
“Eu uso as palavras da língua malinquê que nem faforo! (Faforo! Significa caralho do meu pai ou do
teu pai). Que nem gnamokodê! (Gnamokodê! Significa filho-da-puta ou puta-que-pariu). Que nem
Walahê! (Walahê significa Em nome de Alá). Os malinquês, essa é minha raça” (A, p. 10, grifo nosso).
59
65
marier ma mère. C’est cela la coutume des Malinkés” (A, p. 27)60. Ao se tomar uma
importante decisão na vida do menino, no momento de decidir quem seria a sua tutora
após a morte de sua mãe, os critérios usados também se vinculam às leis e costumes dos
malinkés:
Ils ont décidé, en raison des lois de la famille chez les Malinkés, que ma
tante était devenue, après la mort de ma maman, ma seconde mère. La
seconde mère est appelée aussi tutrice. C’était ma tante, ma tutrice, qui
devait me nourrir et m’habiller et avait seule le droit de me frapper, injurier
et bien m’éduquer. (A, pp. 32-33, grifo nosso)61.
Outro fato importante na infância do menino foi a sua circuncisão e a sua
iniciação, que ele descreve com poucos detalhes, para não desrespeitar a ordem de não
revelar o que acontecera nesse momento àqueles que ainda não foram iniciados. Mais
uma vez, a lei que o menino está seguindo é aquela dos malinkés: “Ça fait très mal.
Mais c’est cela la loi chez les malinkés” (A, p. 34, grifo nosso). 62
Além dessas referências à cultura malinké no que diz respeito à vida e à visão do
menino, podemos também depreender do romance a importância das divisões dos
grupos segundo critérios raciais e étnicos na construção política desses países. O
romance Allah n’est pas obligé retrata um importante capítulo da história da Libéria,
que pode ser considerado uma causa da guerra tribal: a inimizade entre os chamados
“nègres noirs afro-américains” e os “natives”. A categoria de “nègre noir africain
indigène” também é usada inúmeras vezes pelo narrador e ele se associa frequentemente
a ela; como analisamos anteriormente, essa instância leva em conta fatores raciais, a
partir do uso das palavras “nègre” e “noir”, mas também considera as origens do
continente africano. Através da fala do narrador, é possível concluir que essa
classificação é maior do que a categoria étnica, pois envolve diversos grupos étnicos,
como os malinkés, os krahns, os gyos, os guéré.
Les habitants étaient des Yacous et des Gyos. Les Yacous et les Gyos,
c’étaient les noms des nègres noirs africains indigènes de la région du pays.
Les Yacous et les Gyos étaient les ennemis héréditaires des Guérés et des
“Era ao meu tio Issa que mamãe devia pertencer depois do falecimento de meu pai, com ele é que devia
automaticamente se casar minha mãe. Esse é o costume dos malinquês” (A, p. 29).
61
“Eles decidiram, em razão das leis de família próprias dos malinquês, que minha tia tinha se tornado,
depois da morte de minha mãe, minha segunda mãe. A segunda mãe também é chamada de tutora. Era
minha tia, minha tutora, que devia me alimentar, me vestir e só a ela cabia o direito de me bater, xingar e
educar bem” (A, pp. 34-35, grifo nosso).
62
“Isso dói demais. Mas é esta a lei dos malinquês” (A, p. 36, grifo nosso).
60
66
Krahns. Guéré et Krahn sont les noms d’autres nègres noirs africains
indigènes d’une autre région du foutu Liberia (A, p. 71)63.
Como se pode ver, todos esses grupos citados pelo narrador estão englobados dentro da
classificação de “nègre noir africain indigène”, apesar de serem inimigos.
No evento histórico em questão, que envolve o líder político Samuel Doe, a
oposição se dá entre os “nègres noirs africains indigènes” et os “nègres noirs afroaméricains”:
Lui, sergent Doe, et certains de ses camarades ont eu marre de l’arrogance
et du mépris des nègres noirs afro-américains appelés Congos à l’égard des
natives du Liberia. Les natives, c’est les nègres noirs africains indigènes du
pays. Ils sont à distinguer des nègres noirs afro-américains, les descendants
des esclaves libérés (A, p. 97)64.
Para tirar do poder os “nègres noirs afro-américains” que, segundo o narrador,
adotavam uma postura colonialista diante dos nativos, o sargento Samuel Doe, da etnia
krahn, e Thomas Quionkpa, da etnia gyo, juntaram-se e planejaram um golpe de estado,
que foi bem-sucedido, provocando a morte dos líderes que estavam até então no poder,
através de um fuzilamento de uma tremenda violência. Após essa conquista dos nativos
surge, portanto, um impasse: não era possível dividir o poder entre duas pessoas, o que
levou Samuel Doe a se proclamar presidente e a tomar atitudes para eliminar Thomas
Quionkpa da cena política.
Evidentemente, essa traição por parte de Doe não foi bem aceita por Thomas
Quionkpa, que planejou um complô contra ele, dando início a uma enorme disputa entre
as suas respectivas etnias: “Avec des officiers, des cadres gyos comme lui, Thomas
Quionkpa monta effectivement un vrai complot” (A, p. 101, grifo nosso)65.
Primeiramente, Quionkpa é derrotado e Doe triunfa: “Voilà Samuel Doe heureux et
triomphant, le seul chef, entouré des seuls cadres de son ethnie krahn. La République
“Os habitantes eram yacus e gyos. Yacus e gyos eram nomes de negros pretos africanos nativos
daquela região do país. Os yacus e os gyos eram inimigos hereditários dos guerês e dos krahns. Guerê e
krahn são nomes de outros negros pretos africanos nativos de outra região da Libéria desgraçada” (A, p.
73).
64
“Ele, sargento Doe, e alguns de seus camaradas ficaram cheios da arrogânciae do desprezo dos negros
afro-americanos chamados de congos em relação aos nativos da Libéria. Os nativos são os negros pretos
africanos originários do país. Eles deviam ser diferenciados dos negros pretos afro-americanos, os
descendentes dos escravos alforriados” (A, p. 99).
65
“Com oficiais e altos funcionários gyos que nem ele, Thomas Quionkpa montou, de fato, um verdadeiro
complô” (A, p. 104, grifo nosso).
63
67
de Liberia devint un État krahn totalement krahn. Cela ne dura guère” (A, p. 102,
grifos nossos)66.
Essa disputa se prolonga e tem como consequência muitos massacres, com
mortes extremamente violentas, dando origem à guerra tribal na qual o país mergulha
durante muitos anos.
Les soldats du renfort tombèrent dans un guet-apens, ils furent tous
massacrés, tous tués, tous émasculés et leurs armes récupérées. Les cadres
gyos, les mutins, avaient des armes, beaucoup d’armes. C’est pourquoi on
dit, les historiens disent que la guerre tribale arriva au Liberia ce soir de
Noël 1989 (A, pp.102-103)67.
A guerra tribal, cenário do romance em questão, é explicada sob uma
perspectiva histórica, como vimos acima, mas ela é onipresente na vida dos
personagens, sobretudo do protagonista. Podemos observar o quanto essa rivalidade
entre as etnias se torna a causa de muitos conflitos, obrigando um grupo a fugir
constantemente do outro para não ser massacrado. Encontrar a tia do menino, objetivo
perseguido pelo personagem desde o segundo capítulo do livro, torna-se uma tarefa
impossível, pois ela está constamente sob a ameaça das tribos inimigas; em um primeiro
ataque, seu marido é morto e, mais adiante, ela própria se torna vítima,
impossibilitando, para sempre, o encontro entre o menino e sua tia, como vemos no
trecho a seguir:
C’est les Krahns, dit-il. Ils n’aiment pas les Mandingos. Ils veulent pas voir
des Mandingos au Liberia. Les Krahns sont arrivés. Ils lui ont écrasé la
tête; ils lui ont arraché la langue et le cul. La langue et le sexe pour rendre
les fétiches plus forts. Sa femme, la bonne Mahan, a vu ça, elle a vite couru
et s’est cachée (...) (A, p. 126, grifo nosso)68.
Após considerar esses exemplos tirados do romance Allah n’est pas obligé,
podemos concluir que o fundamento da identidade coletiva não se pauta em critérios
nacionais; ao contrário, as nações são vistas com grande desconfiança, por
representarem um modelo de organização que não foi capaz de solucionar os problemas
políticos e econômicos e, sobretudo, de garantir uma convivência pacífica entre povos
“E lá estava Samuel Doe feliz e triunfante, chefe único, rodeado apenas pelos altos funcionários de sua
etnia krahn. A República da Libéria tornou-se um estado krahn, totalmente krahn. Isso não durou quase
nada” (A, p. 104, grifos nossos).
67
“Os soldados enviados como reforço caíram numa armadilha, foram todos massacrados, mortos, todos
eles castrados e as armas deles recolhidas. Os funcionários gyos, os amotinados, tinham muitas, muitas
armas. Por isso se diz que a guerra tribal chegou na Libéria naquela noite de Natal de 1989” (A, p. 105).
68
“- Foram os krahns – disse ele. Eles não gostam dos mandingos. Eles não querem mais saber de
mandingos na Libéria. Os krahns chegaram. Eles esmagaram a cabeça dele; eles arrancaram a língua e o
pau dele. A língua e o sexo, que é para poder fazer os feitiços mais fortes. A mulher dele, a boa Mahan,
viu tudo, ela correu depressa e se escondeu na minha casa” (A, p. 129, grifo nosso).
66
68
diferentes. A pretensa unidade nacional, que funcionou em diversos países europeus
séculos antes, não foi capaz de eliminar antigas rivalidades entre etnias e, sobretudo,
sobrepor-se aos interesses de pequenos grupos, sedentos de poder, prestígio e dinheiro.
2.2.3. A fragilidade da nação
Conforme vimos anteriormente, a edificação e a legitimação da nação são
processos que estão intimamente associados à construção da identidade nacional; para
atingir esse objetivo, entram em cena alguns elementos, dentre os quais a literatura
ocupa um papel primordial, cumprindo a função de promover um sentimento de
unidade, de pertença, que Anne-Marie Thiesse resume sob o nome de “ficções
criadoras”.
Segundo Thiesse, “a nação nasce de um postulado e de uma invenção. Mas só se
mantém viva com a adesão colectiva a essa ficção.” (THIESSE, 2001, p. 72). Em outras
palavras, podemos dizer que, na concepção de nação, está em jogo a adesão pessoal de
cada cidadão à identidade nacional acima das outras identidades coletivas: é o caso, por
exemplo, do bretão e do normando que sobrepuseram a essas identidades a identidade
de francês. Ao analisar a obra de Kourouma, é possível observar que não há uma
afirmação da nacionalidade marfinense que se sobreponha às outras formas de
identidade; ao contrário, percebe-se, por exemplo, a defesa de identidades coletivas tais
como as dos malinkés, dos muçulmanos, dos “féticheurs”, isto é, identidades ligadas à
etnia, à religião, às tradições e não à nação, como vimos em exemplos anteriores.
A partir de fragmentos supracitados do romance Allah n’est pas obligé, nota-se
que uma das principais causas das guerras civis encenadas no romance provém das
tensões étnicas entre os povos africanos. É o que revela, por exemplo, o trecho a seguir:
“Quand un Krahn ou un Guéré arrivait à Zorzor, on le torturait avant de le tuer parce
que c’est la loi des guerres tribales qui veut ça. Dans les guerres tribales, on ne veut
pas les hommes d’une autre tribu différente de notre tribu” (A, p. 71, grifo nosso).69
Apesar de suas rivalidades históricas, em um determinado momento da história,
povos inimigos se uniram em torno de um objetivo comum: expulsar o colonizador.
“Quando um krahn ou um guerê chegava em Zorzor, torturavam antes de matar porque isso, isso é a
guerra tribal que determina. Nas guerras tribais, ninguém quer homens de outra tribo diferente da sua
própria tribo” (A, p. 73, grifo nosso).
69
69
Entretanto, as guerras tribais em países como a Libéria ou a Serra Leoa evidenciam que
a unidade estabelecida com esse intuito não tinha raízes profundas. Houve uma união
momentânea de povos com interesses opostos; no entanto, após a consquista da
independência, o poder passou a estar livre e se tornou alvo de novas ambições
políticas, o que trouxe novamente à tona as antigas rivalidades entre as etnias.
Do ponto de vista literário, notamos que a categoria nacional nem sempre
responde à busca identitária empreendida pelos artistas, intelectuais e também pelos
personagens ficcionais criados pelos escritores; torna-se, pois, necessário pensar essa
literatura, produzida por africanos, em um contexto de entrecruzamento de culturas e
línguas, a partir de outras categorias alternativas à literatura nacional. Da mesma forma
que as fronteiras nacionais são artificiais, essa literatura ultrapassa as fronteiras
geográficas e os seus questionamentos não se restringem a um único país. O caso de
Kourouma ilustra esse fato, uma vez que o seu país de origem é a Costa do Marfim,
porém, ele escreve a respeito de diversos outros países além do seu. Em Allah n’est pas
obligé, os cenários em questão são a Libéria e a Serra Leoa; em outros romances,
entram em cena também países como o Togo, o Zaire, a Guiné, a República CentroAfricana (DIANDUE, 2003), enfim, um grande número de países que possuem uma
série de elementos históricos, culturais e (pluri)linguísticos em comum.
Essa evidência vai ao encontro de análises recentes relativas ao conceito de
nação. Eduardo Coutinho, ao repensar a historiografia da América Latina, reflete sobre
elementos que são relevantes também para a produção literária africana. Tanto a nação
quanto o idioma, que constituíam “referenciais seguros para a Literatura Comparada,
hoje se revelam como constructos frágeis” (COUTINHO, 2011, p. 120). Ambas serviam
para dar homogeneidade a determinado corpus, porém, em diversos contextos atuais,
essas duas instâncias estão mais longe do que nunca de ser perfeitamente homogêneas,
tornando-se menos rígidas e mais plurais.
Dentro de uma mesma nação, encontram-se contradições culturais e, por outro
lado, existem categorias literárias e culturais que transcendem as fronteiras fixas das
nações (COUTINHO, 2011). Essa constatação se aplica ao caso africano, visto que o
patrimônio ancestral dos diversos povos africanos não segue a divisão política
determinada pelos europeus, o que significa que, dentro de uma mesma delimitação
geográfica, convivem povos que não partilham a mesma herança cultural e, por outro
70
lado, há diversas semelhanças que vão muito além das fronteiras demarcadas no século
XX.
Esse fator é claramente percebido através da obra de Kourouma, que não se
restringe à Costa do Marfim, mas menciona, percorre e aborda diversos outros países
africanos. O romance Allah n’est pas obligé ilustra essas fronteiras fluidas entre países
como a Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa, Gana, pelas quais o narrador transita sem
demarcar as fronteiras, isto é, sem fazer muita distinção geográfica, o que aponta para
características semelhantes entre os países dessa região.
Após essas considerações, pode-se notar que a abordagem nacionalista da
literatura é problemática em muitos contextos e não dá conta de realidades plurais e
móveis.
Se não se pode mais pensar a história em termos de um esquema linear e
unicultural, mas apenas como a articulação de sistemas que se imbricam,
superpõem e transformam constantemente; se não se pode mais restringir a
produção de um povo a um espaço arbitrariamente construído por razões de
hegemonia político-econômica, mas, ao contrário, encarar esse espaço como
um locus móvel e plural, (...) os corpus que serviram de base às histórias
literárias tradicionais perdem sua fixidez, tornando-se múltiplos e dinâmicos,
e dão margem à coexistência de cânones distintos dentro de um mesmo
contexto (COUTINHO, 2011, p. 125).
Essa visão de Eduardo Coutinho é a constatação de que a literatura não pode
mais ser abordada a partir de um modelo único, eurocêntrico. A sua proposta de
reflexão não visa, de forma alguma, a abolir as literaturas nacionais até então
estabelecidas, inclusive, pois esse modelo é ainda fecundo em determinados contextos e
constitui um aparato histórico que deve ser levado em conta; no entanto, trata-se de
pensar a literatura nacional a partir de novos recortes, mais amplos e mais móveis,
levando em conta critérios de constituição da identidade diversos da hegemônica
identidade nacional.
No contexto em questão, essa concepção de Coutinho auxilia a compreender que
as manifestações literárias não precisam ser analisadas dentro do círculo fechado de
suas fronteiras geográficas, tendo em vista que há diversos elementos de aproximação
entre elas e as literaturas produzidas em outras regiões. Desse modo, os sistemas postos
em relação podem auxiliar no estudo e na compreensão da literatura como um todo. O
crítico Xavier Garnier, estudioso de muitos autores africanos, em seu artigo “Le
comparatisme: une vocation pour les études littéraires africanistes”, reflete sobre esse
campo literário, que apresenta características peculiares e complexas. Garnier constata
71
que esse contexto de produção literária, apesar de ser um desafio para a crítica, figura
como um terreno fecundo para o comparativismo e para a relação da literatura com
outras áreas do saber, como a filosofia, a linguística, a geografia, a história, a sociologia,
entre outras.
Garnier esboça, nesse sentido, um panorama das correntes críticas que se
debruçaram sobre a literatura produzida nesse contexto, ressaltando três principais
abordagens: culturalista, sociopolítica e filológica, todas essencialmente comparatistas.
Na abordagem negro-africana, por exemplo, o critério racial ocupou um lugar central e
buscaram-se imbricações entre fatores literários e etnográficos, através do resgate dos
“valores profundos” da África, com seus mitos e imaginários próprios.
As abordagens mitocríticas da literatura africana geralmente buscam uma
nova orientação através dos “valores profundos” de uma África negra cujo
imaginário é estruturado por mitos específicos. Elas revelam, no entanto, a
mistura gerada pelo contato colonial e encaram os escritores como lugares de
confrontação ou de conciliação de imaginários. 70
Outra abordagem que deu origem a muitos trabalhos foi a intercultural, que se
debruçou sobre a “coexistência de elementos culturais heterogêneos no seio de uma
mesma obra”.71 Abordagens de cunho sociopolítico problematizaram a existência e a
diversidade de campos literários no continente africano. O fator geográfico também foi
levado em conta na tentativa de agrupar regiões geográficas com determinadas
características de modo a formarem um espaço literário, como seria o caso do Maghreb,
da África Negra, entre outras.
Apesar de reconhecer que a pesquisa da literatura africana torna-se, muitas
vezes, limitada em razão de questões linguísticas, uma vez que poucos pesquisadores
conhecem e dominam os idiomas africanos, Garnier enfatiza a centralidade linguística
na literatura do continente africano. Um dos motivos pelos quais o estudioso faz essa
afirmação é o fato de que essa literatura é extremamente rica em fenômenos como a
autotradução, ou a coexistência de mais de uma língua em uma mesma obra.
O formidável plurilinguismo do continente africano e a dinâmica da
evolução das línguas são particularidades que os estudos literários estão
“Les approches mythocritiques de la littérature africaine vont généralement dans le sens d’un
recentrage sur les « valeurs profondes » d’une Afrique noire dont l’imaginaire est structuré par des
mythes spécifiques. Elles prennent cependant acte du brassage engendré par le contact colonial et
envisagent les écrivains comme des lieux de confrontation ou de conciliation d’imaginaires” (GARNIER,
2007, p. 337).
71
“Coexistence d’éléments culturels hétérogènes au sein d’une même oeuvre” (GARNIER, 2007, p. 338).
70
72
buscando avaliar e que os instalam de forma sólida no campo do
comparativismo. 72
Esse comentário de Garnier introduz uma reflexão central no estudo da obra de
Kourouma; trata-se do jogo linguístico que ele realiza diante do plurilinguismo em que
se encontra a sua situação de escrita. Por um lado, o imaginário dos escritores desse
campo literário é composto por mais de uma língua; no caso de Kourouma, há duas
fortes influências linguísticas: sua língua materna, o malinké, e a língua francesa. Por
outro lado, o público dessas obras é extremamente heterogêneo e, consequentemente,
plurilinguístico, como nos alerta o próprio narrador, nas primeiras páginas de Allah
n’est pas obligé:
Il faut expliquer parce que mon blablabla est à lire par toute sorte de gens :
des toubabs (toubab signifie blanc) colons, des noirs indigènes sauvages
d’Afrique et des francophones de tout gabarit (gabarit signifie genre) (A, p.
9). 73
Consciente da diversidade de seu público, o narrador Birahima precisa encontrar
estratégias para que seu relato seja compreendido pelo maior número possível de
pessoas. Esse comentário explicita um grande desafio encontrado por escritores como
Kourouma, que diz respeito ao trabalho com a língua, para que a sua obra atinja o
público mais vasto possível. É o que constata, por exemplo, Lise Gauvin, crítica literária
canadense, que se debruça sobre a literatura francófona:
Esses escritores têm em comum o fato de se dirigirem a diversos públicos,
separados por aquisições culturais e linguísticas diferentes, o que os obriga a
encontrar estratégias capazes de dar conta de sua comunidade de origem,
permitindo-lhes, ao mesmo tempo, atingir um maior número de leitores. 74
Para obter maior projeção, grande parte dos escritores africanos opta por
escrever na língua do colonizador, uma vez que suas línguas maternas têm menor
alcance, inclusive, em meio a leitores africanos, tendo em vista a pluralidade linguística
existente no continente. Assim, o escritor se depara, inevitavelmente, com a seguinte
questão: como expressar a sua identidade na língua do outro? Essa problemática se
complica ainda mais, uma vez que esse “outro” é o ex-colonizador.
“Le formidable plurilinguisme du continent africain et la dynamique d’évolution des langues est une
particularité dont les études littéraires sont en train de prendre la mesure et qui les installe solidement
dans le champ du comparatisme” (GARNIER, 2007, p. 342).
73
“É preciso explicar porque meu blablablá é para ser lido por todo tipo de gente: tubabs (tubab significa
branco) colonos, pretos nativos selvagens da África e francófonos de tudo que é gabarito (gabarito
significa tipo)” (A, p. 11).
74
“Ces écrivains ont en commun le fait de s’adresser à divers publics, separés par des acquis culturels et
langagiers différents, ce qui les oblige à trouver des stratégies aptes à rendre compte de leur communauté
d’origine tout en leur permettant d’atteindre un plus vaste lectorat » (GAUVIN, 2007, p. 6).
72
73
Debruçar-se sobre o problema linguístico se torna, pois, um grande desafio para
Kourouma, que não se contenta em escrever no idioma francês e negligenciar
completamente as influências de sua língua materna e seu imaginário africano.
Kourouma opta por transformar essa problemática em um modo de reivindicação e
afirmação de sua identidade, ao explorar, esteticamente, a sua situação de
plurilinguismo e interculturalidade.
Essa exploração criativa da língua faz pensar na noção de “literatura menor”
postulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em sua concepção, a “literatura menor”
não é vista sob uma perspectiva negativa, mas, ao contrário, é aquela que contém “as
condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande
(ou estabelecida)” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 28). A minoridade da língua e
da literatura nesse contexto aparentemente instável se converte em uma potência
estética e literária. No próximo capítulo, analisaremos a obra de Kourouma sob a ótica
da minoridade literária, investigando os aspectos de sua escrita que consistem em uma
revolução e inovação literárias, a partir da presença da cultura, da língua e do
imaginário africanos. Ao explorar as potencialidades de um uso “menor” da língua,
Kourouma oferece pistas para uma possível expressão de elementos identitários
africanos, ainda que se recorra à língua do “outro”.
74
3. Literatura menor
Como vimos no capítulo anterior, a obra de Kourouma está inserida em um
contexto histórico e político complexo, cujas implicações no fazer literário são bastante
relevantes. Uma ferramenta utilizada pelo escritor para manifestar essa polêmica e
problematizá-la é o jogo linguístico. Kourouma transforma o seu fazer literário em um
lugar de reflexão do plurilinguismo, trazendo para o seio da construção narrativa os
limites e influências das realidades que irrigam sua escrita, isto é, a cultura africana e a
cultura europeia.
Na prática, sabemos que a literatura produzida por Kourouma – e também por
tantos outros autores africanos – muitas vezes se vê em uma posição marginal em
relação, por exemplo, à literatura francesa, por motivos políticos, históricos,
econômicos e, inclusive, literários, quando se leva em consideração a tradição francesa,
com autores canônicos que servem de referência aos estudos literários no mundo inteiro.
Desse ponto de vista, há uma mirada que leva em conta a fecundidade dessa situação de
produção literária e que aponta para o potencial estético de uma literatura denominada
menor. Gilles Deleuze e Félix Guattari, em sua obra Kafka: por uma literatura menor,
apostam no caráter revolucionário de uma literatura menor diante de ideários
totalizantes.
O conceito de literatura menor é definido levando-se em conta três principais
fatores, sendo eles a desterritorialização da língua, a ramificação do individual no
imediato-político e o agenciamento coletivo de enunciação. Segundo os autores, a
literatura menor “é o que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE e
GUATTARI, 1975, p. 25). O conceito de literatura menor não pretende qualificar essas
literaturas, mas propõe-se, sobretudo, a identificar as condições revolucionárias de toda
literatura, o que implica, nas palavras de Deleuze e Guattari, “encontrar o seu próprio
ponto de subdesenvolvimento, seu patois, seu próprio terceiro mundo” (DELEUZE e
GUATTARI, 1975, p. 28). Deleuze e Guattari vislumbram o devir-menor não como um
aspecto pejorativo, mas como uma potente forma de subversão e de criação estética,
pois faz com que a língua seja usada em sua intensidade e não apenas em seus sentidos
estabelecidos; a suposta fragilidade linguística em meio à qual as obras menores são
realizadas garante a possibilidade de se forjar uma nova sensibilidade, uma nova
consciência.
75
Os dois últimos aspectos elencados por Deleuze e Guattari, isto é, os aspectos
político e coletivo, foram considerados no capítulo anterior, em que a relação com a
história e a compreensão da identidade reflete uma literatura preocupada com as
questões político-identitárias. Diante do cenário da obra de Kourouma, é impossível
escrever sem abordar, ou, ao menos, tangenciar questões políticas, pois a literatura se
torna, inclusive, um meio de expor essas problemáticas e questioná-las, colocá-las à
prova, provocar a reflexão a seu respeito e, em muitos casos, denunciá-las.
Essa dimensão política intrínseca à escrita de Kourouma exerce uma dupla
função. Primeiramente, sua obra dá voz àqueles que não têm voz, pois são, justamente,
aqueles que são excluídos politicamente e que se deseja manter invisíveis; a sua
literatura, portanto, dá um nome a quem sempre se manteve no anonimato. Em segundo
lugar, a obra de Kourouma é política no sentido em que propõe uma alternativa à visão
dominante do mundo e do passado; nesse sentido, a sua percepção da realidade e a sua
imaginação se tornam terrenos fecundos para se perceber a realidade de forma
alternativa aos discursos dominantes (MOURA, 2006). Como diria, talvez, Deleuze a
minoridade de sua obra traz uma potência estética que permite fugir dos sistemas e
olhares dominantes, apostando em um novo fazer literário que busca a sua matériaprima num devir-menor, no não-preexistente, no imprevisto, em suma, no novo.
De um modo global, é possível depreender de todas as obras de Kourouma a
importância das questões políticas, que não servem apenas de pano de fundo para as
histórias, mas que interferem nelas diretamente. Na realidade, o destino de cada um dos
personagens é modificado em função das circunstâncias políticas do momento,
tornando-os reféns da história e das disputas pelo poder. O protagonista de Allah n’est
pas obligé, Birahima, ilustra perfeitamente essa íntima relação, uma vez que a sua
trajetória pessoal é indissociável da conjuntura política em vigor. O menino é a voz
narrativa do romance, e ela dá testemunho de tudo aquilo que viu e que viveu.
Entretanto, como adiantei no primeiro capítulo, esse narrador em primeira
pessoa não é a única voz narrativa desse livro: há outro narrador, extradiegético. Entre
essas duas vozes narrativas, no entanto, não há uma delimitação clara, o que faz com
que elas se confundam ao longo do romance. Evidentemente, há momentos em que o
“eu” de Birahima se torna mais nítido, com um uso mais intensivo de marcadores de
primeira pessoa do discurso e com uma linguagem que nos faz lembrar a voz de uma
76
criança, com sua lógica e modo de expressão. Em outros momentos, porém, percebe-se
que a narrativa tem um tom maior de comentário, com especificações históricas e
políticas que não poderiam ser narradas pela voz de uma criança.
O terceiro fator mencionado por Deleuze e Guattari está diretamente ligado ao
segundo, pois as questões políticas são vinculadas à coletividade, o que faz com que a
literatura ocupe essa função de enunciação coletiva, produzindo uma solidariedade
ativa: “não há sujeitos, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação” (DELEUZE
e GUATTARI, 1975, p. 28). Os sujeitos enunciativos não tratam de questões
individuais, isoladas de sua comunidade, pois, quando uma literatura se propõe a
questionar a realidade, ela não consegue falar de casos individuais sem ter passado
anteriormente por uma reflexão acerca de problemas coletivos, que foram longamente
silenciados, dando voz ao que estava calado. Nesse caso, “a literatura tem a ver com o
povo” (idem) e não está a serviço unicamente de um indivíduo isolado de seu grupo,
mas de toda a comunidade que o circunda. Na obra de Kourouma, não se trata, com
efeito, de compreender uma identidade individual; os personagens são metonímias da
busca da compreensão da identidade coletiva, que não se contenta com categorias
canônicas como a de “nacional”, mas que deseja se compreender dentro de suas
instâncias identitárias específicas.
Para analisar o fator da coletividade presente na obra – diretamente associado ao
aspecto político –, podemos recorrer também à dimensão diegética da obra. Como
vimos, há uma convivência de mais de um nível narrativo, apesar de somente um se
apresentar e querer ser identificado; essas duas vozes, na maior parte do tempo,
confundem-se, e se torna difícil distinguir o olhar do menino e o olhar “de fora”. Essa
anulação de uma distinção nítida entre o narrador diegético e o extradiegético
contribuem para apagar a subjetividade da enunciação de Birahima, colocando-o num
plano de coletividade superior à sua singularidade. Não se trata, portanto, de um drama
pessoal do narrador Birahima e das especificidades de sua singularidade; Birahima
serve apenas de metonímia para simbolizar o conjunto das crianças-soldados, mas
também das comunidades que vivem em meio à guerra. A narração, apesar de estar
parcialmente em primeira pessoa, ganha um tom de enunciação coletiva, na medida em
que Birahima deixa de ser um sujeito com autonomia narrativa, visto que sua voz é
77
tolhida, em diversos momentos, para dar lugar a outro nível diegético, conforme
analisamos no primeiro capítulo.
Em um artigo acerca da obra de Kourouma, intitulado “Le rire cosmique de
Kourouma”, Xavier Garnier observa que “os heróis de Kourouma parecem os
catalisadores de uma experiência coletiva”75. Segundo a análise de Garnier, esses heróis
representam o esforço coletivo da sobrevivência, da luta contra a morte em meio a um
ambiente de transformações políticas que se impõem através da violência. Os
personagens, portanto, não escolheram estar na situação em que encontram; ao
contrário, eles tentam escapar de sua condição para tentar sobreviver.
Eles [os heróis de Kourouma] buscam encontrar um lugar na ordem social,
sua principal preocupação é a sobrevivência, sua principal angústia é
encontrar uma rotina que lhes permita durar. Para tanto, eles precisam dispor
de muita habilidade e criatividade em sociedades à deriva. 76
Essa análise de Garnier está em plena consonância com a trajetória de Birahima,
que tem como único objetivo encontrar a sua tia. Essa tia representa para o menino a
solução para os seus problemas, tornando-se a metáfora da sobrevivência, o que seria a
única alternativa capaz de garantir a essa criança uma infância programada, isto é, uma
infância que contivesse certos elementos fundamentais, como a tutela de alguém, uma
perspectiva de futuro, uma alternativa à morte. Logo, a trajetória de Birahima,
acompanhada do féticheur Yacouba, representa a busca de um lugar na ordem social em
que lhes fosse garantida a sobrevivência. Segundo Garnier, essa é a preocupação
coletiva das comunidades que viveram a situação da guerra, como é o caso de muitos
povos na história da África, retratados nas obras de Kourouma.
Como os dois últimos fatores – isto é, o político e o coletivo – foram abordados
no capítulo anterior, cabe agora uma reflexão mais detalhada do primeiro fator citado
por Deleuze e Guattari: a desterritorialização da língua. Visto que o contexto de escrita
de Kourouma é marcado pelo plurilinguismo e que as questões linguísticas exercem um
papel importante nas reflexões do autor, dedicaremos a primeira seção deste capítulo a
investigar a função estética da desterritorialização linguística em sua obra.
« les héros de Kourouma semblent les catalyseurs d’une expérience colletive » (GARNIER, 2006, p.
102).
76
« Ils [les héros de Kourouma] cherchent à trouver une place dans l’ordre social, leur principale
préoccupation est la survie, leur principal souci est de trouver une routine qui leur permettra de durer. Il
leur faut, pour cela, déployer beaucoup de savoir-faire et d’inventivité dans des sociétés à la dérive »
(GARNIER, 2006, pp. 102-103).
75
78
Na segunda seção, abordaremos outra dimensão da minoridade, presente no
romance através da voz narrativa concedida a uma criança. Trata-se, pois, da
minoridade etária que tece uma íntima relação com o tempo presente. A radicalização
da infância manifestada na obra revela as duras consequências do passado sobre o
presente; nesse sentido, podemos compreender a função da convocação da história no
trabalho literário de Kourouma, que compreende a história por sua relação com o
presente. Repensar o passado significa, na verdade, cumprir um dever de memória com
a finalidade de identificar suas “centelhas de perigo”, para ser capaz de agir sobre o
tempo presente.
3.1. Desterritorialização da língua
O primeiro aspecto da “literatura menor” mencionado por Deleuze e Guattari é
muito caro ao nosso estudo, visto que, em um contexto de entrecruzamento de culturas e
de diversidade linguística, o escritor se depara frequentemente com a questão da
desterritorialização. Muitos escritores, como é o caso de Kourouma, optaram por tornar
essa diversidade fecunda e buscar um uso menor da língua, trazendo para a literatura
aquilo que foge não apenas das normas gramaticais e dos usos canônicos da língua, mas
também de um modo de conceber a dimensão dominante e majoritária do mundo
ocidental. Esses autores trazem para a literatura a diferença, o estrangeiro, o “anormal”.
A abordagem de Deleuze e Guattari eleva a questão linguística a um lugar
central do fazer literário; ela deixa de ser apenas um instrumento de escrita, e passa a
dialogar diretamente com questões identitárias de ordem cultural e linguística. Através
da língua, é possível transitar entre duas culturas, explorar sua intensidade e, inclusive,
jogar com a representação do real. A relação entre língua e literatura é, portanto,
particularmente importante para o estudo da obra de Kourouma, pois, não apenas, ela
remete a questões históricas ligadas à dominação, mas, sobretudo, ela abre a
possibilidade de fugir a essa dominação através do uso não canônico da língua, que
deixa espaço para a coabitação de imaginários e universos simbólicos, a princípio
incompatíveis.
Quando se trata especificamente das obras de autores africanos, raros são
aqueles que escrevem em sua língua materna e, mesmo que o idioma francês tenha se
tornado para eles sua ferramenta de comunicação cotidiana, é inegável a presença de
79
outras línguas em seus imaginários, fazendo do plurilinguismo um denominador comum
a essas manifestações literárias. A problemática que se apresenta a esses escritores, pois,
é a impossibilidade de escrever, ao mesmo tempo, em francês e em outra língua, o que
faz com que eles se vejam obrigados a reinventar o francês para poder trazer para sua
escrita outros imaginários. Essa sensibilidade para questões linguísticas e o fato de que
esses autores estejam constantemente pensando a língua reflete um fenômeno
denominado por Lise Gauvin de surconscience linguistique, pois se trata de uma
consciência tanto exacerbada quanto fecunda (GAUVIN, 1997).
Diversos escritores se deram conta de que, ao usar o francês de forma canônica,
não conseguiam representar de forma verossímil os personagens e as realidades que
desejavam. Eles observavam que esse uso do francês não condizia com o conteúdo de
suas obras. Ao criar e inventar a sua própria linguagem, é possível trazer à tona os
elementos culturais e linguísticos de sua cultura de origem, que são impregnados de
seus imaginários e paisagens. Ahmadou Kourouma, em uma entrevista concedida a Lise
Gauvin, relata exatamente essa necessidade de refletir e de reinventar a sua linguagem
ao afirmar o seguinte:
Le problème qui s’est posé, quand j’ai commencé à écrire comme tout le
monde dans un français classique, c’est que je me suis aperçu que mon
personnage n’arrivait pas à ressortir, à paraître dans toutes ses dimensions.
C’est seulement quand je me suis mis à travailler le langage que je suis
arrivé à le saisir dans sa totalité (GAUVIN, 1997, p. 154). 77
Em um artigo publicado por Kourouma, novamente ele manifesta sua
preocupação central com a questão linguística, que sempre representou um importante
ponto de reflexão de seu fazer literário. Apesar de escrever em idioma francês,
Kourouma afirma ser impossível negligenciar sua língua materna, pois seu imaginário
está impregnado dela. Tendo em vista a forte ligação entre língua e cultura, o autor
mostra a limitação de expressar sua cultura malinké em outro idioma; o léxico do
francês não dá conta de expressar a abundância lexical de sua língua materna no que diz
respeito, por exemplo, a Deus, aos fetiches, à sua religião animista. Primeiramente, pelo
fato de certas palavras não existirem na língua francesa; além disso, uma única palavra
francesa não substitui as múltiplas nuances de um vocábulo malinké para designar
elementos de sua cultura.
77
O problema que surgiu quando comecei a escrever como todo mundo, em um francês clássico, foi que
percebi que meu personagem não conseguia nascer, aparecer em todas as suas dimensões. Foi somente
quando comecei a trabalhar a linguagem que consegui apreendê-lo em sua totalidade.
80
Ao longo do seu texto, o narrador introduz diversos vocábulos relativos à sua
cultura de origem; como ele pretende ser compreendido “par toute sorte de gens” (A, p.
9)78, é preciso explicar essas palavras e contextualizar certas referências culturais às
quais ele faz menção.
(Gnama est un gros mot nègre noir africain indigène qu’il faut expliquer
aux Français blancs. Il signifie, d’après Inventaire des particularités
lexicales du français en Afrique noire, l’ombre qui reste après le décès d’un
individu. L’ombre qui devient une force immanente mauvaise qui suit
l’auteur de celui qui a tué une personne innocente) (A, p. 10, grifo nosso)79.
Após empregar uma palavra como “gnama”, ele introduz um parêntese
explicativo para dar conta de seu significado. Nesse caso, não basta uma simples
tradução ou a procura de uma palavra correspondente na língua francesa; é preciso uma
explicação mais detalhada, visto que esse vocábulo faz menção a uma referência
religiosa característica dessa região da África, porém desconhecida por muitos que não
fazem parte dessa realidade. Como diz o próprio narrador, os “Français blancs” não
estão familiarizados com essa referência e, consequentemente, é preciso contextualizála.
Há inúmeras outras palavras de origem malinké usadas pelo narrador, que
remetem a referências culturais desconhecidas por aqueles que não fazem parte da
mesma realidade. É o caso de vocábulos como “bilakoro”, que faz referência à
circuncisão, importante tradição dos malinkés, comentada pelo menino: “Bilakoro
signifie, d’après l’inventaire des particularités lexicales, garçon non circoncis” (A, p.
11, grifo nosso)80. Há ainda o uso de “cafre”, termo intimamente ligado ao contexto
religioso vivido pelo narrador, em que as maiores religiões são o islamismo e as
religiões tradicionais africanas: “C’était un cafre, c’est comme ça on appelle un homme
qui refuse la religion musulmane et qui est plein de fétiches, d’après Inventaire des
particularités lexicales” (A, p. 14, grifo nosso)81. Ainda em meio ao contexto religioso,
em que os “fétiches” têm uma enorme importância, sendo, inclusive, explicação para
“por todo tipo de gente” (A, p. 11).
“(Gnama é um palavrão preto negro africano nativo que tem que ser explicado aos franceses brancos.
Ele significa, segundo o Inventário das particularidades lexicais do francês da África negra, a sombra que
sobra depois da morte de um indivíduo. A sombra que se torna uma força imanente má que segue aquele
que matou uma pessoa inocente)” (A, p. 12, grifo nosso).
80
“Bilakoro significa, segundo o Inventário das particularidades lexicais, menino não circuncidado” (A,
p. 13, grifo nosso).
81
“Era um cafre, é assim que a gente chama um homem que recusa a religião muçulmana e que é cheio
dos feitiços, segundo o Inventário das particularidades lexicais” (A, p. 16, grifo nosso).
78
79
81
doenças, conflitos e catástrofes, notamos uma variedade lexical com nuances
específicas, inexistentes na língua francesa, o que justifica o seu uso na língua malinké:
ils ont lancé contre la jambe droite de ma maman un mauvais sort, un koroté
(signifie, d’après l’Inventaire des particularités lexicales, poison opérant à
distance sur la personne visée), un djibo (signifie fétiche à influence
maléfique) trop fort, trop puissant (A, pp. 21-22, grifos nossos)82.
Apesar de optar pelo francês como idioma de escrita, o autor convoca, a todo
instante, elementos de outras culturas que não a francesa. Mesmo se apropriando de
vocábulos da língua francesa, Kourouma os ressemantiza, isto é, retira-os de seu
contexto usual para inseri-lo em outros imaginários, em outras paisagens; essas palavras
ganham, pois, um novo sentido, sofrendo uma ressemantização. Essa operação realizada
pelo escritor em suas obras foi denominada de “quebrar a língua” (casser la langue) e
foi definida da seguinte forma por Gauvin:
Quebrar a língua significa, para uns e para outros, trabalhá-la em todos os
sentidos até rebentar as fronteiras que a separam dos estados de línguas mais
antigos, ou ainda ressemantizá-la e irrigá-la com a memória de outras
línguas. 83
Os exemplos tirados do romance revelam que Kourouma convoca inúmeras
referências lexicais e culturais dos malinkés. Desse modo, a memória do francês é
irrigada com as paisagens de outras línguas, ampliando o seu uso e estendendo-o a
contextos cada vez mais diversificados. Além dessa estratégia, Kourouma joga ainda
com outro elemento da cultura africana: a oralidade, conforme veremos na seguinte
seção.
3.1.1. A oralidade
Entre a maioria dos povos africanos, a herança literária se ancora fortemente na
oralidade e a base de transmissão dos conhecimentos e das experiências era
essencialmente oral. A forte presença da oralidade relaciona-se, de certo modo, com a
ausência de registro escrito de muitas línguas africanas. Entretanto, não se trata apenas
da relação com a escrita, pois, mesmo onde ela existia, a oralidade manteve a sua
importância, por ser um meio de conservação dos saberes ancestrais de um povo,
“Eles lançaram contra a perna direita de minha mamãe um feitiço ruim, um korotê (significa, segundo o
Inventário das particularidades lexicais, veneno que age a distância sobre uma pessoa visada), um djibo
(significa feitiço de influência maléfica) muito forte, muito poderoso” (A, pp. 23-24, grifo nosso).
83
“Casser la langue, cela signifie, pour les uns et les autres, la travailler dans tous les sens jusqu’à faire
éclater les frontières qui la séparent d’avec des états de langues plus anciens, ou encore la resémantiser et
l’irriguer de l’intérieur par la mémoire d’autres langues” (GAUVIN, 2004, p. 341).
82
82
veiculados através da palavra. Em um livro que reúne diversas noções caras à literatura
francófona, intitulado “Vocabulaire des études francophones”, organizado por Michel
Beniamino e Lise Gauvin, há um artigo referente à questão da oralidade, escrita pelo
crítico Jean Derive. De acordo com Derive,
Essa noção oral de cultura implica a existência de um sistema antropológico
de comunicação verbal no qual são tradicionalmente transmitidos oralmente
os valores de um patrimônio conservados em uma série de repertórios que
existem apenas na memória dos interessados. 84
A forte influência da oralidade nas línguas e literaturas africanas pressupõe uma
lógica diversa às línguas escritas, que, segundo Kourouma, são “planificadas”. A
oralidade está ligada a outros elementos externos à língua, como, por exemplo, o gesto.
L'oralité n'est pas que la parole parlée, mais aussi la parole retenue, le
silence. Elle n'est pas seulement la parole et le silence, mais aussi le geste.
(...) L'objectif recherché par le créateur dans la tradition négroafricaine est
de favoriser la participation par l'émotion. Il y parvient en usant du rythme,
de l'image et du symbole comme procédés littéraires (KOUROUMA, 1997,
p. 116).85
Na cultura africana, de base oral, a função da literatura está muito ligada à
transmissão da herança cultural, de valores e tradições. O griot, encarregado de manter
viva a memória da sociedade, sobretudo no que diz respeito aos valores e tradições,
ocupa, portanto, uma posição fundamental da sociedade. A obra de Kourouma,
impregnada de influências da cultura africana, traça um jogo com a oralidade, o que faz
com que a sua escrita seja permeada por estratégias da linguagem típicas do registro
oral. Evidentemente, não se deve presumir que a sua obra seja fruto de um relato
imediato e espontâneo, assim como o de um griot; na realidade, existe um trabalho
prévio da língua, com o intuito de explorar esteticamente as marcas de oralidade.
Ao constatar que a oralidade pode ser uma chave de leitura para obras de
escritores como Kourouma, Jean Derive alerta que não se trata de uma oralidade
espontânea, decorrente de um determinismo cultural; ao contrário, trata-se de um
recurso consciente, com a finalidade de responder a demandas estéticas:
“Cette notion orale de culture orale implique l’existence d’un système anthropologique de
communication verbale où sont traditionnellement transmises oralement les valeurs d’un patrimoine
conservées dans une série de répertoires qui n’ont d’existence que dans la mémoire des intéressés”
(DERIVE, 2005, p. 138)
85
“A oralidade não é apenas a palavra falada, mas também a palavra retida, o silêncio. Não se trata
somente da palavra e do silêncio, mas também do gesto. (...) O objetivo do criador na tradição
negroafricana é favorecer a participação através da emoção. Ele consegue isso usando o ritmo, a imagem
e o símbolo como procedimentos literários.”
84
83
Não se pode nunca esquecer que não se trata de uma oralidade natural e
espontânea, marca do determinismo cultural de um escritor que não poderia
escrever de outra forma. Trata-se, na realidade, de um oralidade fingida e
muito sabiamente reconstruída, em toda consciência, por escritores que
sabem se dirigir a um público francófono exógeno, assim como àquele de
seu próprio território. 86
No que diz respeito ao trabalho de Kourouma com a língua, pode-se verificar
que ele convoca propositalmente para o seu texto elementos da oralidade, na busca de
um modo de expressão africano, ainda que escrito em francês. Logo, é possível elencar
diversas características formais de sua escrita que se assemelham a estratégias de uma
literatura oral, como é o caso, por exemplo, do ritmo da narrativa. Através da repetição
de palavras, de termos ou de frases inteiras, verificamos uma estrutura narrativa que se
assemelha a um refrão, elemento típico da tradição oral, por facilitar a memorização.
Em Allah n’est pas obligé, Kourouma se serve desse recurso para dar ênfase a uma
ideia, como é o caso da repetição de palavrões, recorrendo a eles tanto em francês,
quanto em malinké: “Walahé (au nom d’Allah)! A faforo (cul de mon père)! Gnamokodé
(bâtard de bâtardise)” (A, p. 95).
Além da repetição de vocábulos, verificamos no romance uma grande
recorrência de expressões que são repetidas reiteradas vezes no mesmo trecho:
C’était un affranchi, c’est comme ça on appelle un ancien esclave libéré,
d’après Larousse. C’était un donson ba, c’est comme ça on appelle un
maître chasseur qui a déjà tué un fauve noir et un génie malfaisant, d’après
Inventaire des particularités lexicales. C’était un cafre, c’est comme ça on
appelle un homme qui refuse la religion musulmane et qui est plein de
fétiches, d’après Inventaire des particularités lexicales (A, pp.13-14, grifos
nossos).
Na passagem acima, chama-nos a atenção a construção das frases, que apresenta uma
mesma estrutura repetida três vezes, como é possível notar através das partes grifadas.
O narrador caracteriza um personagem atribuindo-lhes três classificações: “affranchi”,
“donson ba” e “cafre”; para explicar o significado de cada uma delas, ele recorre a uma
mesma estrutura frasal, modificando apenas as informações necessárias. Além da
anáfora utilizada pelo narrador, observamos ainda a aliteração, a partir da repetição do
som /s/, nas palavras “c’était”, “c’est” e “ça”. Desse modo, o seu relato nos remete à
oralidade, por gerar um efeito musical, assemelhando-se a um refrão.
“Il ne faut jamais oublier qu’il ne s’agit pas d’une oralité naturelle et spontanée, marque du
déterminisme culturel d’un écrivain qui ne pourrait faire autrement. Plutôt d’une oralité feinte et très
savamment reconstruite, en toute conscience, par des écrivains qui savent s’adresser à un public
francophone exogène tout autant qu’à celui de leur propre territoire” (DERIVE, 2005, p. 142).
86
84
Observemos outro fragmento em que o ritmo da narrativa merece uma atenção
especial:
Ma tante Mahan vivait au Liberia loin de la route dans la forêt après une
rivière. Elle s’était réfugiée là-bas avec son second mari parce que son
premier mari, le père de mon cousin Mamadou, était un maître chasseur.
Un maître chasseur qui criait, injuriait, menaçait avec le couteau et le fusil.
C’est ce qu’on appelle un violent ; le maître chasseur, le papa de Mamadou,
était un gros violent. Ma tante a fait avec le maître chasseur ma cousine
Férima et mon cousin Mamadou. Le nom du maître chasseur, le père de
Mamadou, était Morifing. Mais tellement Morifing injuriait, frappait,
menaçait ma tante, tellement et tellement qu’un jour ma tante est partie ;
elle a fui. Partout dans le monde une femme ne doit pas quitter le lit de son
mari même si le mari injurie, frappe et menace la femme. Elle a toujours
tort (A, p. 31, grifos nossos).
Nesse trecho, o ritmo da narrativa é significativo, mais uma vez, pela repetição de
palavras e expressões: a expressão “maître chasseur” é repetida cinco vezes e as
sequências compostas pelos verbos “crier”, “injurier”, “frapper” e “menacer” são
repetidas três vezes. Como esse parágrafo apresenta uma grande quantidade de nomes
de personagens – a tia, seu segundo marido, o “maître chasseur” (Morifing), o “cousin
Mamadou”, e a “cousine Férima” –, o narrador evita o emprego de pronomes pessoais
para fazer menção a eles, evitando, desse modo, a confusão de nomes.
Em um relato oral, pressupõe-se que o público acompanhe a narrativa, e deve-se
também despertar a sua atenção para que ele se envolva com os eventos narrados. A
repetição, portanto, cumpre essa dupla função, ao evitar que o público se perca e ao
reforçar as ideias, dando maior intensidade ao relato. Na passagem acima, a decisão de
repetir a expressão “maître chasseur” não é fortuita, uma vez que o objetivo desse
parágrafo é colocar em evidência as suas ações. A repetição dessa expressão e da
sequência de verbos serve, pois, para dar intensidade à violência do seu modo de agir e
de tratar a sua esposa.
Outro trecho do relato, que se estende por mais de três páginas, desperta muita
atenção quanto ao ritmo que a narrativa adquire.
Nous n’avons même pas beaucoup fait pied la route, même pas un
kilomètre: tout à coup à gauche, une chouette a fait un gros froufrou et est
sortie des herbes et a disparu dans la nuit. J’ai sauté de peur et j’ai crié «
maman ! » et je me suis accroché aux jambes de Tiécoura. Tiécoura qui est
un homme sans peur ni reproche a récité une des trop puissantes sourates
qu’il connaît par coeur. (...) Il s’est assis et a récité trois autres sourates
fortes du Coran et trois terribles prières de sorcier indigène (A, pp. 42-43,
grifos nossos).
85
Ao longo das páginas que se seguem, o mesmo ritual acontece outras duas vezes e a
estrutura do relato permanece muito semelhante, com repetições de trechos inteiros.
Entretanto, no que diz respeito a todas as quantidades presentes no fragmento, podemos
verificar que esse número aumenta seguindo uma certa proporção. A primeira estrutura
grifada na citação, ao acontecer novamente, aumenta de proporção da seguinte forma:
“même pas un kilomètre” / “même pas cinq kilomètres” / “même pas dix kilomètres”.
Na segunda expressão grifada, notamos o aparecimento de uma coruja; ao decorrer da
narração, esse evento também se intensifica com o aumento do número de corujas: “une
chouette” / “une deuxième chouette” / “une troisième chouette”.
O terceiro fragmento que adquire maior proporção à medida que o relato avança
é o seguinte: “J’ai sauté de peur et j’ai crié « maman ! »”; nas vezes que se seguem, o
menino se sente da mesma forma e dá o mesmo grito, porém de modo mais intenso:
“J’ai tellement eu peur et peur que j’ai crié deux fois « maman ! »” / “J’ai tellement eu
peur et peur et peur que j’ai crié trois fois « maman ! »”. O procedimento se repete
ainda com a última estrutura grifada na citação acima: da primeira vez, ele recita “trois
autres sourates fortes du Coran et trois terribles prières de sorcier indigène”; em
seguida, ele recita “six sourates fortes du Coran et six grosses prières de sorcier
indigène”, até que, finalmente, ele recita “neuf autres sourates fortes du Coran et neuf
grosses prières de sorcier indigène”.
À medida que a narrativa prossegue, os eventos tornam-se maiores e mais
intensos, com uma gradação que varia de acordo com proporções regulares. A leitura
dessas páginas do livro nos faz pensar numa cantiga de criança, em que a repetição é
central para a memorização da canção; além disso, a amplificação, e não a
diversificação dos eventos, constitui a matéria prima da narração. Essas citações
ilustram um modo de narrar que se ancora em bases outras, dando ao romance um estilo
narrativo diverso, por sua semelhança com um conto ou uma canção.
Somando-se ao ritmo da narrativa, o recurso ao provérbio e ao ditado constitui
outro elemento de aproximação à oralidade. Além de o provérbio ser típico da
linguagem oral, ele tem uma função didática, ao transmitir uma moral, um ensinamento,
sendo também característico do gênero épico e das narrativas orais. Em seu estudo
sobre a obra de Kourouma, Mufutau Adebowale Tijani elenca uma série de provérbios
86
encontrados em seus romances. No livro Les soleils des indépendances, ele destaca os
seguintes provérbios:
Excité comme un grillon affolé (SI, p. 14);
Impoli à flairer comme un bouc les fesses de sa maman… (SI, p. 108);
L’esclave appartient à son maître; mais le maître des rêves de l’esclave est
l’esclave (SI, p. 145).
Em Allah n’est pas obligé o recurso aos provérbios também se faz fortemente
presente, como se pode verificar através da lista a seguir:
Le genou ne porte jamais le chapeau quand la tête est sur le cou (A, p. 9);87
Il faut toujours remercier l’arbre à karité sous lequel on a ramassé
beaucoup de bons fruits pendant la bonne saison (A, p. 14);88
Un enfant n’abandonne pas la case de sa maman à cause des odeurs d’un
pet (A, p. 16); 89
Un pet sorti des fesses ne se rattrape jamais (A, p. 26);90
Le chien n’abandonne jamais sa façon éhontée de s’asseoir (A, p. 144);91
On suit l’éléphant dans la brousse pour ne pas être mouillé par la rosée (A,
p. 163).92
Através de uma comparação ou de uma metáfora, os ditados veiculam um ensinamento
que emana da sabedoria popular, recorrendo, muitas vezes, a uma comparação com a
natureza – como é o caso da referência à árvore, ao cachorro, ao elefante, à selva – para
justificar um modo de comportamento a ser adotado pelas pessoas, ou para explicar
eventos ou realidades que acontecem no mundo.
Além dessas listas de provérbios encontradas ao longo desses dois romances,
cabe observar ainda que o narrador se serve de frases semelhantes a ditos populares ao
se referir a alguém mais velho ou mais sábio que ele próprio. Com bastante frequência,
ao usar o discurso indireto, o narrador introduz a fala de outro personagem, de modo
que o seu dizer se assemelhe a um provérbio, por parecer uma verdade absoluta. Em
outras palavras, a fala de alguns personagens aparece em alguns momentos para
expressar uma sabedoria popular proveniente de sua experiência, ao estilo de um
provérbio, como podemos observar nos trechos a seguir: “Yacouba continuait à penser,
et il le disait, que Allah dans son immense bonté ne laisse jamais vide une bouche qu’il
“O joelho nunca usa chapéu quando a cabeça está no lugar” (A, p. 11).
“Sempre se deve mostrar gratidão à árvore-da-manteiga da qual colhemos boas frutas durante a
estação” (A, p. 17).
89
“Uma criança não abandona cabana de sua mamãe por causa do cheiro de um peido” (A, p. 18)
90
“Um peido que escapou não pode ser pego de volta” (A, p. 28).
91
“O cão vagabundo nunca muda sua maneira desavergonhada de se coçar” (A, p. 148).
92
“A gente segue bem atrás do elefante no mato para não ser molhado pelo orvalho” (A, p. 167).
87
88
87
a créée” (A, p. 41)93 e “Balla m’expliquait que cela n’avait pas importance et
n’intéressait personne de connaître sa date et son jour de naissance vu que nous
sommes tous nés un jour ou un autre” (A, p. 18)94.
Além do ritmo da narrativa e do uso de provérbios, é possível verificar ainda a
presença de outros elementos característicos das narrativas orais na obra de Kourouma,
mencionados por ele próprio em um trecho supracitado; trata-se da alusão às imagens,
para que o público possa visualizar aquilo que está sendo narrado e, desse modo,
envolver-se e emocionar-se com o conteúdo narrativo. Essas imagens se tornam mais
intensas e chocantes pelo fato de o narrador convocar os sentidos para descrevê-las,
recorrendo ao campo da visão, da audição, do olfato e do tato.
Uma imagem muito usada por Kourouma, e que também se faz presente em seus
romances, é o sangue. Ele está presente em inúmeras circunstâncias: no universo
feminino, nos sacrifícios, na guerra. Em Les soleils des indépendances, há uma cena
intensa, em que a imagem do sangue é bastante significativa, gerando uma forte carga
emotiva. Nesse romance, a infertilidade de Salimata, a esposa do protagonista, causa
muita infelicidade para o casal, que não consegue ter filhos; para tentar resolver seu
problema, a mulher vai consultar um marabout, que lhe diz que seria necessário
sacrificar um animal para que Alá se compadecesse de sua situação. A cena do
sacrifício é repleta de sensualidade e a presença dos corpos de Salimata e do marabout
se torna central, o que pode ser percebido pela quantidade de partes do corpo
mencionadas ao longo da descrição.
Salimata s’était stabilisée, disons-le, dans une position carrément
provocante : les seins se découvraient, descendaient et se redécouvraient ;
les hanches se décolllaient, s’ouvraient noires, pimentées et profondes e se
rouvraient. Des vapeurs érotiques inopportunes faillirent boucher
l’inspiration du marabout. Sacrilège ! (SI, p. 72, grifos nossos).
O caráter erótico da cena é reforçado ainda mais pela escolha das partes do
corpo descritas, isto é, “seins” e “hanches”, e os adjetivos a elas associados, “noires”,
“pimentées”, “profondes”. Além disso, podemos notar que a cena é carregada de
movimentos que dão um ritmo à descrição de modo a nos fazer imaginar a cena e os
movimentos do corpo. Os verbos escolhidos para marcar essa movimentação corporal
“Yacuba continuava pensando, e dizia isso, que Alá em sua imensa bondade nunca deixa vazia uma
boca por ele criada” (A, p. 43).
94
“Balla me explicava que isso não tinha importância e que não interessava a ninguém saber a data e o
dia da semana do nascimento, já que todos nós nascemos num dia ou noutro” (A, p. 20).
93
88
são também de um caráter sensual: “se découvraient”, “descendaient”, “se
redécouvraient”, “se décollaient”, “s’ouvraient”, “se rouvraient”. Através dessa escolha
verbal, é possível perceber que a narrativa ganha um ritmo, que, por sua vez, está em
consonância com os movimentos do corpo de Salimata, fazendo com que o texto se
movimente na mesma direção em que a imagem que ele produz.
Essa descrição se desenrola no exato momento em que um galo está sendo
sacrificado. Nesse momento, o marabout empunha uma faca para concluir o sacrifício:
“brûlant et brillant, pétrifiant comme celui de l’excieuse” (SI, p. 73). Essa faca tem o
poder de ativar a memória de Salimata e a faz lembrar-se de sua excisão. No momento
em que o marabout apunhala o animal, ele morre, fazendo seu sangue escorrer: “le sang
gicla, le sang de l’excision, le sang du viol” (SI, p. 74). Para Salimata, portanto, o
sangue jorrado pela morte do animal remete ao sangue de sua excisão e de seu estupro.
Elle: l’essoufflement et les vertiges qui l’assourdissaient, l’étreignaient, et
les couleurs qui se superposaient : le vert et le jaune dans des vapeurs
rouges, le tout rouge ; la douleur et les roulements de ventre, les chants
dans l’aurore ; le champ de l’excision au pied des montagnes aux sommets
vaporeux, le soleil sortant tout rouge, tout noyé dans le sang, le viol, la nuit
et les lampes brillantes et éteintes et fumantes et les cris et les jambes
piétinées, contusionnées, les oreilles meurtries, les pleurs et les cris et le
pillage... (SI, p. 74, grifos nossos).
As palavras “sang”, “excision” e “viol”, que já tinham aparecido inúmeras vezes
em outros fragmentos do romance, retornam e se tornam centrais. O vermelho do
sangue traz à mente da personagem uma infinidade de sensações, que são expressas pelo
narrador através da justaposição de substantivos, marcada, inclusive, por um uso
exaustivo do conectivo de adição “e”. A relação de Salimata com o sangue é tão íntima
e intensa que é capaz de fazê-la resgatar de sua memória o estupro do qual fora vítima, a
violência, o calor, a pilhagem, o choro e tantos outros dramas que vivera em sua vida.
Além disso, a justaposição dos substantivos garante à descrição (que geralmente é
marcada por adjetivos) um ritmo semelhante ao da narrativa oral, em que as palavras
são ditas à medida que vêm à mente, sem obrigatoriamente formarem períodos
complexos e coesos.
Assim como no universo de Salimata, o sangue também se faz muito presente na
vida do menino-soldado Birahima, em Allah n’est pas obligé. Nesse contexto, o sangue
se torna uma metáfora para evocar a linha tênue entre a vida e a morte, uma vez que a
violência da guerra transforma a existência e a sobrevivência em constantes conquistas.
89
O sangue, tão marcante por seu cheiro, sua cor e a violência que representa, está
associado, na cena a seguir, a outros elementos que convocam os sentidos.
Vint un instant, un moment de silence annonçant l’orage . Et la forêt
environnante a commencè à cracher tralala...tralala...tralala... de la
mitraillette. Les tralalas... de la mitraillette entraient en action. Les
oiseaux de la forêt ont vu que ça sentait mauvais, se sont levés et
envolés vers autres cieux plus reposants. Tralalas de mitarille
arrosèrent la moto et les gars qui étaient sur la moto, c’est-à-dire le
conducteur de moto et le mec qui faisait le faro avec kalachnikov
derrière la moto. (Le mot faro n’existe pas dans le Petit Robert, mais
ça se trouve dans Inventaire des particularités lexicales du français en
Afrique noir. Ça veut dire faire le malin.) Le conducteur de moto et le
mec qui faisait faro derrière la moto étaient tous deux morts,
complètement, totalement morts. Et malgré ça, la mitraiellette
continuait tralala... ding ! tralala... ding ! Et sur la route, par terre,
on voyait déjà le gâchis : la moto flambait et les corps étaient
mitraillés, remitraillés, et partout du sang, beaucoup de sang, le sang
ne se fatiguait pas de couler. A faforo ! ça continuait son manège, ça
continuait sa musique sinistre de tralala. (A, p. 51-52, grifos
nossos)95.
Essa cena descrita por Birahima tem um conteúdo carregado de violência e de
crueldade; essa crueldade, no entanto, é intensificada pelos recursos usados pelo
narrador, sobretudo, por sua relação com os sentidos, reforçando o caráter imagético e
sensorial da cena. Nesse trecho, não apenas há diversos elementos que jogam com o
campo visual, como também há um verbo que introduz claramente um desejo de fazer
com que o interlocutor possa visualizar o que o narrador vira; trata-se do verbo ver –
“on voyait déjà le gâchis”. Desse modo, o narrador deseja transmitir uma imagem que
está em sua memória e torná-la visual ao seu destinatário. A frase que vem logo em
seguida está, portanto, repleta de componentes que convocam a nossa visão, o que faz
com que vejamos, por exemplo, a cor vermelha, sem que ela seja explicitamente
referida, pela referência intensa ao fogo e ao sangue, ao excesso de sangue, que “ne se
fatiguait pas de couler”.
“Veio um instante, um momento de silêncio anunciando a tempestade. E a floresta das redondezas
começou a cuspir tarataratatá... tarataratatá... tarataratatá... tiros de metralhadora. Os tarataratatás... de
metralhadora estavam entrando em ação. Os passarinhos da floresta viram que a coisa estava fedendo,
levantaram e voaram na direção de outros céus mais repousantes. Tarataratatás de metralhadora regaram
a moto e os caras que estavam na moto, isto é, o motorista e o jirigote que estava de butuca com
kalachnikov na garupa. (A palavra jirigote não está no Petit Robert, mas encontra-se no Inventário das
particularidades lexicais do francês na África negra. Quer dizer bancar o espertalhão.) O motoqueiro e o
jirigote na garupa tinham morrido todos os dois, completamente, totalmente. E apesar disso, a
metralhadora continuava tarataratatá... fiu! Tarataratatá... fiu! E na estrada, no chão, já dava para ver o
estrago: a moto pegando fogo e os corpos metralhados, remetralhados, e sangue para todo lado, muito
sangue, um sangue que não parava de correr. Faforo! E o troço continuava cuspindo fogo, continuava sua
música sinistra de tarataratatá. (A, pp. 53-54, grifos nossos).
95
90
Além de convocar a visão, para representar de uma forma mais completa a
violência da cena, a descrição convoca ainda outros sentidos, como é o caso da audição.
O uso de palavras do campo semântico da escuta – “le silence”, “l’orage”, “la musique
sinistre” – joga diretamente com a nossa audição, fazendo-nos perceber a quebra do
silêncio da floresta pela invasão do barulho das metralhadoras. Para intensificar o efeito
auditivo, o narrador, reiteradas vezes, faz uso das onomatopeias “tralala” e “ding”,
evocando o barulho provocado pelo uso da arma. O recurso às onomatopeias, assim
como a repetição de certas expressões, intensifica o ritmo da narrativa, aproximando-a
da oralidade.
De forma mais sutil, podemos depreender ainda a referência ao olfato e ao tato.
A expressão “ça sentait mauvais” faz referência ao cheiro, através de um jogo de
palavras que significa tanto que o cheiro estava ruim, quanto que a situação não estava
boa. Finalmente, o emprego dos adjetivos “mitraillés” e “remitraillés”, das imagens do
sangue correndo e do fogo sendo cuspido está relacionado ao tato, uma vez que os
efeitos de metralhar, de sangrar e de queimar afetam o corpo fisicamente, de forma
palpável, tátil.
No fragmento supracitado, a referência ao cheiro é apenas indicativa; no entanto,
em diversos outros trechos do romance, podemos detectar a importância do cheiro, do
corpo, das sensações. Ao descrever um espaço, ou uma pessoa, Birahima comenta
minuciosamente o cheiro, pois esse elemento marca profundamente o seu imaginário.
Je n’ai jamais craint les odeurs de ma maman. Il y avait dans la case toutes
les puanteurs. Le pet, la merde, le pipi, l’infection de l’ulcère, l’âcre de la
fumée. Et les odeurs du guérisseur Balla. Mais moi je ne les sentait pas, ça
ne me faisait pas vomir. Toutes les odeurs de ma maman et de Balla avaient
du bon pour moi. J’en avais l’habitude. C’est dans ces odeurs que j’ai mieux
mangé, mieux dormi. (A, p. 16, grifos nossos). 96
As memórias de sua mãe estão, portanto, profundamente marcadas pela presença do
cheiro que dela emanava. Essa citação revela que os odores em meio aos quais o menino
vivia eram todos ruins, o que é sintetizado pela palavra “puanteurs”; entretanto, ele
havia criado uma relação afetiva e eles não mais o incomodavam. Assim sendo, esses
“Eu nunca senti medo do cheiro da mamãe. Na cabana tinha todos os fedores. Peido, merda, xixi,
infecção de úlcera, o azedo da fumaça. E os cheiros do curandeiro Balla. Mas eu, eu não sentia os
cheiros, nada me fazia vomitar. Todos os cheiros da minha mãe e de Balla eram bons para mim. Eu
estava acostumado. Foi no meio desses cheiros que eu comi bem, que eu dormi bem” (A, p. 18, grifos
nossos).
96
91
cheiros faziam bem ao menino, e a memória de sua infância é também marcada por
elementos olfativos.
Os exemplos da herança africana presentes na obra Kourouma são muito
numerosos e esses elementos formam uma lista não exaustiva sobre o tema, podendo se
estender ainda mais. Todavia, apesar de convocar a todo instante a sua cultura e língua
materna, não se pode negligenciar que a sua obra foi escrita sob a forma de romance,
gênero de origem literária ocidental. Essa evidência comprova que o imaginário de
Kourouma não é apenas africano, dialogando constantemente com múltiplas influências
culturais que se entrelaçam, sem poder dizer onde uma termina para dar lugar à outra.
Na próxima seção, analisaremos de que forma se imbricam essas múltiplas influências
culturais e linguísticas e de que modo Kourouma as convoca em sua escrita.
3.1.2. O mito e a desmistificação
Como vimos na seção anterior, a escrita de Kourouma envolve uma série de
procedimentos que remetem a uma valorização da cultura africana, manifestada através
da convocação de elementos lexicais e culturais, bem como a presença de estratégias
literárias típicas da oralidade. Entretanto, é impossível ignorar que a escrita de
Kourouma também é permeada por elementos característicos da literatura ocidental, a
começar pelo recurso ao idioma francês e pelo gênero literário escolhido para compor as
suas obras, isto é, o romance. De acordo com a crítica literária Aurélia Mouzet, em um
artigo relativo à obra de Kourouma, já citado anteriormente, o que se observa é o
seguinte: “o objetivo de Kourouma não era combater o romance ocidental, mas,
sobretudo, encontrar técnicas de expressão que permanecessem fiéis à identidade
africana, abraçando a forma de escrita romanesca”. 97
Édouard Glissant, pensador antilhano muito sensível às relações entre línguas e
culturas, propõe uma reflexão pertinente acerca dessa temática. Glissant aposta em uma
“Poética da Relação”, contrapondo aquilo que ele chama de o “Mesmo” e o “Diverso”.
O conceito do “Mesmo” é definido por Glissant como aquele que deseja impor a sua
visão humanista e universal a todos os povos, excluindo as diferenças, postura que
“Le propos de Kourouma n’était pas de contrer le roman occidental, mais plutôt de trouver des
techniques d’expression qui demeuraient fidèles à l’identité africaine tout en épousant la forme de
l’écriture romanesque” (MOUZET, 2013, p. 42).
97
92
Glissant associa ao imaginário ocidental diante do restante dos povos. Já o “Diverso” é
aquele que almeja uma relação transversal entre as culturas, sem tender ao
universalismo, e que tem a necessidade da presença de todos os povos, não para que
eles sejam objetos a serem negligenciados, mas para que sejam postos em relação
(GLISSANT, 1981).
Como o Outro é a tentação do Mesmo, o Todo é a exigência do Diverso. (...)
se foi possível que o Mesmo se tenha revelado na solidão do Ser, torna-se
indispensável que o Diverso “passe” pela totalidade dos povos e das
comunidades. O Mesmo é a diferença sublimada; o O Diverso, a diferença
consentida. 98
Essa atitude em relação ao Outro, em relação ao diferente, está associada ao
modo como essas comunidades nasceram e se afirmaram diante dos outros. Constituídas
há milênios, as comunidades denominadas por Glissant de atávicas basearam a sua
origem em uma ideia de gênese, ligada à ideia de filiação a um determinado espaço:
para legitimar a sua presença e o domínio de um território, essas comunidades se
filiaram a ele, excluindo as outras. Segundo Glissant, estão na base desse processo de
legitimação os mitos fundadores, isto é, o grito poético fundador de uma comunidade,
que valida a pertença de um território a um determinado povo eleito.
O grito poético está presente no início da formação de todas essas
comunidades atávicas: o Antigo Testamento, a Ilíada e a Odisseia, a Canção
de Rolando, os Nibelungen, o Kalevala finlandês, os livros sagrados da
Índia, as Sagas islandesas, o Popol Vuh e o Chilam Balam dos ameríndios.
Hegel, no capítulo três de sua Estética, caracteriza essa literatura épica como
uma literatura da consciência da comunidade, mas da consciência ainda
ingênua, isto é, ainda não política, em um momento em que a comunidade
não está certa de sua ordem, em um momento em que esta necessita sentir-se
segura em relação a essa ordem. (GLISSANT, 2005, p. 43).
Como mostra Glissant, parafraseando Hegel, a consciência coletiva, no discurso
épico, brotou de forma ainda ingênua, reunindo a comunidade em torno de seus mitos e
sacralizando-os; foram necessários séculos de escrita e de amadurecimento da
consciência coletiva até que se chegasse ao estágio do pensamento político em que se
dessacralizaram os mitos. Do ponto de vista literário, Glissant observa que as literaturas
que emergiram no seio do “Diverso” encararam o problema de não ter tempo de evoluir
harmoniosamente:
“Comme l’Autre est la tentation du Même, le Tout est l’exigence du Divers. (...) s’il était loisible que le
Même se révelât dans la solitute de l’Être, il demeure impérieux que le Divers ‘passe’ par la totalité des
peuples et des communautés. Le Même, c’est la différence sublimée; le Divers, c’est la différence
consentie” (GLISSANT, 1981, pp. 190-191).
98
93
O problema contemporâneo das literaturas nacionais, tal como eu os concebo
aqui, é que elas devem aliar o mito à desmistificação, a inocência primeira a
uma malícia adquirida. (...) Elas devem assumir tudo de uma só vez, o
combate, o militantismo, o enraizamento, a lucidez, a desconfiança de si
mesmo, o absoluto de amor, a forma da paisagem, o nu das cidades, as
superações e as teimosias.99
Consequentemente, as literaturas das quais fala Glissant, expostas a múltiplas
influências, esbarram necessariamente em um conflito paradoxal: resgatar e sacralizar
os seus mitos, ou colocá-los em xeque, ativando a suspeita e a descrença em relação a
eles. Glissant aposta na “Poética da Relação” como chave para a compreensão da
identidade de literaturas nesse contexto; ele acredita que a identidade dessas novas
nações não deverá repetir o mesmo caminho das “culturas atávicas”, ao construir o seu
ideário baseando-se na exclusão do outro, mas colocar o “Mesmo” e o “Diverso” – o
Nós e o Outro – em relação. Glissant, em sua poética, não defende a soma das culturas,
mas a relação entre elas, o que sempre produz um resultado imprevisível, o novo.
Essas análises de Glissant nos fornecem as bases para pensar a obra de
Kourouma, atravessada ela também por essa polêmica, tanto histórica e política, quanto
literária. O que observamos na escrita de Kourouma é justamente esse duplo
movimento: uma busca de suas raízes para irrigar o seu estilo narrativo, com recurso à
oralidade e a todas as estratégias analisadas anteriormente; mas também um espírito
crítico aguçado quanto à visão que se tem de sua própria realidade. Kourouma convoca
o seu imaginário africano, com seu modo de expressão, suas paisagens, seu léxico, seu
ritmo narrativo; por outro lado, não é ingênuo em relação ao seu passado, narrando-o de
forma crítica, com uma grande “malícia adquirida”, parodiando Glissant. A obra de
Kourouma ilustra o quanto uma cultura pode irrigar a outra: a oralidade desafia o
romance da tradição ocidental, enquanto que a ironia, por exemplo, desafia valores
tradicionais africanos.
As reflexões de Glissant evidenciam a relação entre o gênero épico e a afirmação
da identidade das comunidades. No que diz respeito ao conteúdo das narrativas de
Kourouma, é possível traçar alguns paralelos com o gênero épico, sobretudo no que
concerne ao fator da revisão histórica do passado, o que está relacionado, muitas vezes,
“Le problème contemporain des littératures nationales, telles que je les conçois ici, est qu’elles doivent
allier ce mythe à cette démystification, cette innocence première à cette ruse acquise. (...) Il leur faut tout
assumer tout d’un coup, le combat, le militantisme, l’enracinement, la lucidité, la méfiance envers soi,
l’absolu d’amour, la forme du paysage, le nu des villes, les dépassements et les
entêtements” (GLISSANT, 1981, p. 192).
99
94
à temática da guerra. Nas epopeias tradicionais, entretanto, a guerra estava associada a
uma causa coletiva, de defesa de um patrimônio, através de gestos heroicos, sendo o
canto de exultação de uma vitória.
A guerra encenada no romance Allah n’est pas obligé não tem essa mesma
função, e uma clara diferença reside no fato de não haver vitória nem vitoriosos. Ao
final da leitura, é evidente a falta de sentido da guerra, que sacrifica grande parte de sua
população, sobretudo de suas crianças, em busca de uma solução que não garante o
benefício coletivo. Ao contrário, o que percebemos é que a guerra representa uma eterna
luta pelo poder, em que um líder massacra o outro, sem conseguir se manter no poder,
sendo, em seguida, também assassinado. Além disso, as ações dos personagens não
configuram gestos heróicos, pois se resumem a uma violência gratuita, cujas razões não
são compreendidas nem por eles próprios. Constatamos, portanto, a transgressão do
gênero épico, uma vez que os romances de Kourouma, apesar de traçarem paralelos
com as epopeias clássicas, acabam por desconstruí-las ao evidenciarem a falência do
sistema representado.
Ademais, nas obras de Kourouma estão constantemente presentes os valores
culturais, que, assim como nas epopeias, têm a função de manter viva a tradição de um
povo. No romance Les soleils des Indépendances, observamos, diversas vezes, a
importância dos “fétiches” para buscar uma solução para algum problema, para afastar
algum mal, para se livrar de uma tragédia ou de uma ameaça natural que possa
prejudicar a organização social ou a produção agrícola, como é o caso do harmattan100.
Les Malinkés du Horodougou le savaient bien, ils pratiquaient la divination,
et pas uniquement avec les méthodes prescrites par Allah. Parce que
musulmans dans le coeur, dans les ablutions, le fétiche koma leur devait être
interdit. Mais le fétiche prédisait plus loin que le Coran; aussi passaient-ils
la loi d’Allah, et chaque harmattan, le koma dansait sur la place publique
pour dévoiler l’avenir et indiquer les sacrifices. Et quel village malinké
n’avait pas ses propres devins? Togobala, capitale de tout le Horodougou,
entretenait deux oracles: une hyène et un serpent boa (SI, pp. 154-155).
Essa passagem nos revela a importância dos “fétiches” para adivinhar o futuro e,
consequentemente, proteger-se das possíveis ameaças. Em seguida, o narrador descreve
como os oráculos – a hiena e a serpente – livraram a aldeia de inúmeras ameaças,
garantindo, inclusive, a sua sobrevivência ante a aparição de uma epidemia que dizimou
100
Vento seco que sopra sobre parte da África Ocidental.
95
tantas outras aldeias da África. Podemos perceber ainda que os “fétiches” estão a
serviço de uma comunidade, eles pertencem ao village, a Togobala, que os mantém para
o proveito de todos e não de uma minoria.
Um pouco adiante, o narrador nos mostra que as adivinhações continuaram
sendo feitas na era das independências, como podemos observar na seguinte passagem:
Il demeurait bien connu que les dirigeants des soleils des indépendances
consultaient très souvent le marabout, le sorcier, le devin ; mais pour qui le
faisaient-ils ? Fama pouvait répondre, il le savait : ce n’était jamais pour la
communauté, jamais pour le pays, ils consultaient toujours les sorciers pour
eux-mêmes, pour affermir leur pouvoir, augmenter leur force, jeter un
mauvais sort à leur ennemi (SI, pp. 156-157).
Esse recurso, usado tradicionalmente em prol da comunidade, passou a ser utilizado
com vistas a um objetivo totalmente diferente, isto é, ao benefício próprio. Em um
primeiro momento, o narrador procede, portanto, a uma valorização dos “fétiches” e da
coletividade, o que, de certa forma, os sacraliza. No entanto, ao mesmo tempo em que o
narrador quer manter viva a sua tradição cultural e seus ritos ancestrais, ele reconhece
que, em um determinado momento da história, esses valores foram deturpados em prol
de benefícios pessoais. A sacralização vem, portanto, seguida da sua problematização:
a literatura de escritores como Kourouma, para dar conta de sua realidade, acaba por
“aliar o mito à desmistificação” (GLISSANT, 1981, p. 192).
No romance Allah n’est pas obligé, vemos um procedimento semelhante,
sobretudo através da figura de Yacouba, um multiplicador de notas de dinheiro, como o
denomina o menino Birahima, que não poderia ser reconhecido em muitas regiões,
devendo ser chamado de Tiécoura. Esse personagem se aproveita da circunstância da
guerra para ganhar dinheiro: “Tiécoura était pressé de partir parce que partout tout le
monde disait qu’au Liberia là-bas, avec la guerre, les marabouts multiplicateurs de
billets ou devins guérisseurs ou fabricants d’amulettes gagnaient plein d’argent et de
dollars américains” (A, p. 36, grifos nossos)101. Além de ser um oportunista, o
personagem também se atribui o título de marabout, isto é, um sábio da religião
muçulmana, o que faz com que a sua profissão seja reconhecida por sua ligação com a
tradição local. Para ganhar dinheiro, Yacouba aceita fazer qualquer negócio, seja ele
lícito ou não, até mesmo pretender ocupar importantes posições sociais e religiosas –
“Tiecura estava com pressa de sair de viagem porque por todo lado todo mundo estava dizendo que na
Libéria, com a guerra, os marabutos multiplicadores de notas de dinheiro ou os adivinhos curandeiros ou
os fabricantes de amuletos estavam ganhando muito dinheiro e dólares americanos” (A, p. 38, grifos
nossos).
101
96
marabout, féticheur – inventando preces e fabricando feitiços em troca de dinheiro e
proteção: “Yacouba (...) s’est installé comme marabout multiplicateur de billets,
fabricant d’amulettes, inventeur de paroles de prières pour réussir et découvreur des
sacrifices pour éloigner tous les mauvais sorts. Son travail a bien marché” (A, p. 40,
grifos nossos)102.
Associado aos costumes e tradições, Kourouma insere, portanto, uma grande
dose de ironia em suas narrativas. Outro evento baseado na tradição africana é a seção
de “desenfeitiçamento” (“désensorcelement”). O Coronel Papa le bon, ao prender uma
mulher sem nenhum motivo, inventara que ela estava enfeitiçada. O narrador explica
nos seguintes termos as seções de “desenfeitiçamento” na terra de Papa le bon: “La
maman du bébé alla aux femmes à désensorceler. (Chaque femme à désensorceler était
enfermée nue, totalement nue, tête à tête avec le colonel Papa le bon. C’était la guerre
tribale qui voulait ça.)” (A, p. 72, grifo nosso).103 Esse comentário do narrador
evidencia a ironia inerente à prática de “desenfeitiçamento”, o que sugere a sua
desconfiança relativa a essa tradição, tendo em vista as condições a que eram
submetidas as mulheres diante de Papa le bon.
Assim como a convivência do mito com a desmistificação, a lucidez e a malícia
adquirida (cf. GLISSANT, 1981, p. 190-193) também se fazem presentes na literatura
de Kourouma; em sua obra, convivem a tradição e a modernidade, como a presença de
elementos da tradição africana, porém seguidos de um questionamento a seu respeito. O
autor não se contenta com uma visão ingênua acerca da tradição de seu povo,
colocando-a constantemente à prova. Na última parte deste trabalho, abordaremos
novamente essa questão, analisando os efeitos da subversão da tradição na obra de
Kourouma. Por ora, investigaremos, em Allah n’est pas obligé, a presença da
ingenuidade e da ironia, a convivência do mito com a desmistificação.
Em sua revisão do passado, o autor escolhe até mesmo os nomes dos
personagens de maneira a evidenciar a ironia da situação. Esse é caso, por exemplo, do
Général Baclay, que luta junto a Doe para livrar o país dos afro-americanos. Segundo o
“Yacuba se instalou como marabuto multiplicador de notas de dinheiro, fabricante de amuletos,
inventor de orações para ter sucesso e descobridor de sacrifícios para conjurar todos os maus-olhados.
Seu trabalho funcionou bem” (A, p. 42, grifos nossos).
103
“A mãe do bebê foi para junto das mulheres que deveriam ser desenfeitiçadas. (Cada mulher que devia
ser desenfeitiçada era trancada pelada, totalmente pelada, a sós com o coronel Papai bonzinho. Era a
guerra tribal que determinava isso.)” (A, p. 74, grifo nosso).
102
97
narrador, o nome original dessa personagem ficcional é Onika Dokui; ao tomar o poder,
ela decide mudar seu nome para Baclay, com a seguinte justificativa: “Baclay parce que
cela faisait nègre noir afro-américain et, on a beau dire, être afro-américain au Liberia
donnait un certain prestige, c’était mieux que d’être d’origine native, d’être nègre noire
africaine indigène” (A, p. 106).104 A ironia desse comentário reside no fato de o
personagem adotar um nome semelhante ao de seu inimigo para garantir certo prestígio,
o que, mais uma vez, evidencia a falta de um sentido ideológico-político para a guerra.
Além da ironia quanto aos costumes e tradições, observamos também a
subversão de outros elementos tipicamente associados à oralidade. Nas narrativas orais,
a função fática se faz necessária pela presença física de interlocutores; em sua escrita,
Kourouma cria um público imaginário e se dirige a ele à maneira de um griot. Alguns
exemplos tirados dos romances supracitados ilustram esse recurso: “savez-vous ce qui
advint ?” (SI, p. 8), “mais attention ! ” (SI, p. 149), “je vous l’ai déjà dit : pied la route
signifie marcher” (A, p. 59)105. Apesar de recorrer a elementos da tradição oral, é
possível perceber que a escrita de Kourouma está em sintonia com a análise feita por
Glissant sobre as literaturas do “Diverso”, isto é, ao mesmo tempo em que ela apresenta
elementos tradicionais, estes são trabalhados a partir de elementos da modernidade,
como é o caso da ironia e da irreverência. O narrador Birahima se dirige a um
interlocutor; no entanto, muitas vezes esse apelo ao seu público se faz de forma
irreverente, usando inúmeros palavrões – como foi citado anteriormente - e como
podemos ver no trecho a seguir: “moi non plus, je ne suis pas obligé de parler, de
raconter ma chienne de vie, de fouiller dictionnaire sur dictionnaire. J’en ai marre ; je
m’arrête ici pour aujourd’hui. Qu’on aille se faire foutre” (A, p. 95, grifos nossos).106
De maneira semelhante, a escrita de Kourouma subverte também o ritmo
narrativo, emprestado à oralidade. No exemplo seguinte, verifica-se a repetição
proposital de uma mesma estrutura, fazendo-nos pensar em um refrão que é relembrado
constantemente. Nessa passagem, a repetição da expressão “ça tenait du miracle” está
posta para reforçar os feitos de Marie-Béatrice. A personagem Marie-Béatrice é a madre
“Baclay porque esse nome parecia negro preto afro-americano e, por mais que se diga, ser afroamericano na Libéria dava certo prestígio, era melhor que ser descendente de nativos, que ser negro, preto
africano, nativo” (A, p. 109).
105
“Eu já disse: pé na estrada significa andar” (A, p. 61).
106
“Eu também não, não sou obrigado a falar, a contar essa minha vida cadela, a vasculhar dicionário
atrás de dicionário. Estou com o saco cheio; por hoje eu estou com o saco cheio. Para o inferno todo
mundo!” (A, p. 98, grifos nossos).
104
98
superiora de uma grande instituição religiosa da Libéria. Com o início da guerra civil,
sua instituição começou a ser pilhada constantemente por grupos guerrilheiros em busca
de alimento ou de dinheiro. Insatisfeita e revoltada com a situação, Marie-Béatrice
decide abandonar seus adereços santos e adotar como instrumento cotidiano uma
kalachnikov para poder defender sua instituição dos ataques guerrilheiros.
Esse refrão, no entanto, traz consigo uma carga de ironia, pois sabemos que esse
milagre ao qual o narrador faz alusão só pode acontecer pelo uso da força e das armas
pela irmã Marie-Béatrice; em outras palavras, sabe-se que o fato de a instituição ainda
existir não é um milagre, mas uma opção por transformá-lo em uma frente de batalha,
com o uso de armas para sua proteção. O ritmo oral da narrativa está sendo usado para
ironizar os feitos da irmã, como se pode observar na seguinte passagem:
Le fait que l’institution de Marie-Béatrice ait pu résister pendant quatre
mois aux pillards était extraordinaire. Ça tenait du miracle. Nourrir une
cinquantaine de personnes dans Monrovia pillée, abandonnée pendant
quatre mois était extraordinaire. Ça tenait du miracle. Tout ce qu’avait
réussi Marie-Béatrice pendant les quatre mois de siège était
extraordinaire. Ça tenait du miracle. Marie-Béatrice avait fait des actes
miraculeux. Elle était une sainte, la sainte Marie-Béatrice (A, p. 141,
grifos nossos).107
Os exemplos tirados do romance apontam para uma convivência do mito e da
desmistificação, da tradição e da suspeita, da ingenuidade e da ironia. Além dessas
dualidades verificadas no romance, há ainda uma questão linguística de grande interesse
para a análise da obra Allah n’est pas obligé: a presença de quatro dicionários que
servem de mediação para que o narrador possa circular entre duas línguas e duas
culturas. A exploração das definições pretensamente retiradas dos dicionários revela a
incapacidade da linguagem em reproduzir o real, conforme veremos na seção a seguir.
3.1.3. Os dicionários: jogo com o real
Além da desterritorialização da língua e da convivência do mito com a
desmistificação, há um elemento do romance Allah n’est pas obligé que merece uma
atenção especial: a presença de um instrumento usado pelo menino-soldado para contar
“O fato de a instituição de Maria Beatriz ter podido resistir durante quatro meses aos saqueadores era
extraordinário. Parecia milagre. Alimentar umas cinquenta pessoas naquela Monróvia saqueada,
abandonada, durante quatro meses era extraordinário. Parecia milagre. Tudo o que Maria Beatriz tinha
conseguido fazer durante os quatro meses daquele cerco era extraordinário. Parecia milagre. Maria
Beatriz tinha realizado atos milagrosos. Ela era uma santa, a santa Maria Beatriz” (A, p. 145, grifos
nossos).
107
99
sua vida, isto é, os quatro dicionários aos quais ele recorre para poder se fazer
compreender por todo mundo. O menino se depara com o problema do idioma da
escrita, que é semelhante àquele encontrado por todo escritor dito francófono. De um
modo geral, ao escrever em francês em vez de recorrer à sua língua materna, os autores
francófonos africanos se dirigem a um universo numericamente mais vasto; por outro
lado, eles acabam por excluir muitos africanos que, por não falarem o francês, não
poderiam ter acesso à sua obra. Sabe-se que o francês é o idioma oficial de muitos
países africanos, porém, por problemas ligados à precariedade do sistema educacional,
muitos africanos não dominam essa língua oficial de seu país. Essa problemática da
escolha do público, diretamente associada à opção do idioma de escrita, é simbolizada
no romance pela presença dos dicionários, que têm o objetivo neutralizar essa questão,
ao inserir explicações das palavras que não seriam acessíveis a um grupo ou a outro.
Ao colocar, pois, as questões linguísticas no centro do romance, percebemos que
a dificuldade reside no fato de que, ao transitar entre duas línguas e, sobretudo, entre
duas culturas, é difícil atingir a verdade. É o que constata o crítico Jean-Claude
Blanchère em um artigo acerca da linguagem na obra de Kourouma: “o verdadeiro
problema que se apresenta no romance é a capacidade da linguagem de atingir a verdade
das coisas, quando se trata de passar de um universo linguístico a outro, de uma cultura
a outra”.108
Ao introduzir, na narrativa, parênteses explicativos, o narrador, dotado de um
instrumento de autoridade e de legitimidade – os dicionários –, se dá o direito de
comentar e ressignificar as palavras que são ditas. Em alguns momentos, o dicionário
cumpre a função prometida pelo narrador, isto é, mediar realidades culturais e
linguísticas distintas, como podemos observar nos fragmentos a seguir, além dos
inúmeros já citados acima:
Autour du foyer, des canaris. (Canari signifie, d’après l’Inventaire des
particularités lexicales, vase en terre cuite de fabrication artisanale. (A, p.
13); 109
(...) le conducetur de moto et le mec qui faisait le faro avec le kalachnikov
derrière la moto. (Le mot faro n’existe pas dans le Petit Robert, mais ça se
108
« le véritable problème posé dans le roman est donc celui de la capacité du langage à atteindre la vérité
des choses, lorsqu’il s’agit de passer d’un univers linguistique à un autre, d’une culture à une autre. » (J.C. BLACHÈRE, 1999, p. 138).
109
“Em volta da fogueira, canaris. (Canari significa, segundo o Inventário das particularidades lexicais,
vaso em terracota de fabricação artesanal)” (A, p. 15).
100
trouve dans Inventaire des particularités lexicales du français en Afrique
noire. Ça veut dire faire le malin (A, p. 51).110
Em outros momentos, porém, o narrador joga com o sentido das palavras,
introduzindo explicações de teor subjetivo, retirando a neutralidade da definição e
colocando-a no plano do comentário que se pretende neutro, mas que acaba por emitir
uma opinião acerca daquilo que está sendo narrado:
Et la CDEAO a demandé au Nigeria de faire application de l’ingérence
humanitaire au Libéria. (Ingérence humanitaire, c’est le droit qu’on donne
à des États d’envoyer des soldats dans un autre État pour aller tuer des
pauvres innocents chez eux, dans leur propre pays, dans leur propre
village, dans leur propre case, dans leur propre natte.) (A, pp. 129-130,
grifo nosso). 111
Nessa passagem, o narrador faz referência à ECOMOG, isto é, às tropas de
interposição, cuja maioria dos soldados era proveniente da Nigéria. Essa sigla significa
Economic Community of West African States Monitoring Group (Grupo de
Monitoramento do Cessar-Fogo da Comunidade Econômica dos Estados da África
Ocidental) e, como o nome indica, o seu objetivo inicial era garantir que os países em
guerra civil respeitassem o acordo de cessar fogo para que se instalasse a paz.
O trecho supracitado ilustra um comentário que não se limita a traduzir ou a
explicar o significado de uma palavra; nesse fragmento, o narrador deixa clara a sua
opinião em relação a um acontecimento histórico, isto é, à decisão de enviar um grupo
militar com o objetivo de garantir a paz. Ao estender a definição de “ingerência
humanitária”, o narrador manifesta a sua posição política quanto à interferência de um
país nos conflitos de outro: ele associa ao envio dos soldados o direito de matar
inocentes, o que retira a neutralidade do comentário, ao impregná-lo de aspectos
negativos. Segundo o narrador, a ingerência humanitária não se resume a um acordo
político entre as nações, em que a mais forte se dispõe a ajudar a parte mais fraca; na
prática, essa intervenção militar vai muito além de acordos internacionais, afetando a
vida pessoal e íntima de cada pessoa. Essa invasão e violação da intimidade é reforçada
textualmente pelo recurso à gradação, que parte do mais amplo (pays), indo cada vez ao
“(...) o motorista e o jirigote que estava de butuca com kalachnikov na garupa. (A palavra jirigote não
está no Petit Robert, mas encontra-se no Inventário das particularidades lexicais do francês da África
Negra). Quer dizerbancar o espertalhão” (A, pp. 53-54).
111
“E a CDEAO tinha pedido à Nigéria que aplicasse a ingerência humanitária na Libéria. (Ingerência
humanitária é o direito dado aos Estado de enviar soldados a outro Estado para irem matar pobres
inocentes em sua própria terra, seu próprio país, sua própria aldeia, sua própria cabana, na própria
esteira em que eles se sentam)” (A, p. 134, grifo nosso).
110
101
mais próximo, até chegar ao lugar sobre o qual se dorme (natte), que é um símbolo da
intimidade.
Outro fragmento em que o narrador joga com a definição do dicionário é o
seguinte: “Le patron associé est souvent un Libanais et on comprend qu’il soit souvent
assassiné. Oui, c’est bien qu’on les assassine affreusement, ce sont des vampires. (Les
vampires sont des gens qui s’enrichissent du travail d’autrui d’après le Petit Robert.)”
(A, p. 110, grifo nosso).112 Ao falar dos “patrons associés”, proprietários das regiões
auríferas que concedem a alguém o direito de explorar o ouro mediante um pagamento,
o narrador os associa a um “vampiro”. No dicionário Petit Robert, há um significado
que faz menção ao sentido figurado da palavra “vampire”, evidenciando o aspecto da
avareza. Todavia, no trecho em questão, o narrador aplica o termo ao fato de o “patron
associé” se aproveitar do trabalho dos outros para enriquecer. Há uma manipulação na
definição supostamente feita pelo dicionário Petit Robert para adequá-lo ao discurso do
narrador.
Em outra passagem, o narrador põe em questão a própria função da tradução;
apesar de vislumbrar na tradução uma possível solução de trânsito entre as línguas e
culturas, ele reconhece as suas limitações e decide colocar em questão o método
adotado por si mesmo para jogar com o plurilinguismo: ironizar o dicionário, tecendo o
seguinte comentário: “C’était un centre de rééducation. (Dans le Petit Robert,
rééducation signifie action de rééduquer, c’est-à-dire la rééducation. Walahé ! Parfois
le Petit Robert aussi se fout du monde.)” (A, p. 69, grifo nosso). 113
Kourouma insere, pois, a linguagem no centro da discussão, propondo um jogo
linguístico que está intimamente associado ao jogo que ele faz com o real. Em um artigo
a respeito da noção de desterritorialização linguística concebida por Deleuze e Guattari,
Karl Eric Schollhammer reflete sobre a relação entre esse conceito e a representação da
realidade. Ao pensar sobre a função de uma escrita desterritorializada, Schollhammer
afirma o seguinte: “em vez de negar e criticar a realidade dialeticamente,
desterritorializa-a numa aposta de alegre afirmação que a leva ao seu limite de evidência
“O patrão associado geralmente é um libanês e é fácil entender por que muitas vezes ele é assassinado.
É isso mesmo, bem-feito que eles sejam assassinados cruelmente, eles são verdadeiros vampiros.
(Vampiros são pessoas que enriquecem com o trabalho alheio, segundo o Petit Robert.)” (A, p. 112,
grifo nosso).
113
“Era um centro de reeducação. (No Petit Robert, reeducação significa ação de reeducar, isto é,
reeducação. Walahê! De vez em quando o Petit Robert tira uma com a cara da gente.)” (A, p. 71, grifo
nosso).
112
102
e redundância.” (SCHOLLHAMMER, 2001, p. 62). Assim procede Kourouma nos
fragmentos citados acima: ele não nega os procedimentos que descreve, mas os afirma
de modo a explorar a sua evidência e redundância. No comentário relativo às tropas de
interposição, o narrador não adota uma postura de questionar essa medida; ao contrário,
ele explica as suas ações de modo a torná-las absurdas.
Assim, a linguagem se torna um personagem do romance, uma vez que ela
desafia o real, na medida em que não é capaz de reproduzi-lo. Conforme comenta Lise
Gauvin, em uma análise do romance Allah n’est pas obligé,
o verdadeiro protagonista dessa história é a própria linguagem, suas
extensões, seus limites, seu aspecto às vezes aleatório, arbitrário, de um lado
e, do outro, coercitivo, fascista. Uma linguagem portadora de todas as
ambiguidades sobre as quais se funda o que designamos como civilização.114
Essa ambiguidade inerente à linguagem, sobretudo quando se trata de um
contexto plurilíngue e pluricultural põe em questão a própria função da linguagem e a
sua capacidade de expressar o real. Desse modo, quanto mais se procura explicar as
palavras, mais se acaba por relativizá-las, o que acarreta o seu descrédito. Tudo não
passa de um mero jogo com a linguagem, e, ao mesmo tempo em que a mediação entre
as culturas é necessária, ela é também impossível de ser feita de forma neutra e de
expressar uma única e exclusiva verdade. Aliás, a relação entre o discurso e a verdade,
nas obras de Kourouma, é polêmica: em um mundo de disputa pelo poder e de guerras,
os discursos se tornam vazios e acabam por não corresponderem a um desejo de
verdade, sendo expressamente falaciosos e mentirosos. O mesmo discurso que promete
a paz – como vimos com o exemplo da ingerência humanitária – é aquele que acaba por
matar e perseguir as pessoas em seu próprio país, sua própria aldeia, sua própria cabana,
sua própria esteira.
Após refletir sobre o sentido de “minoridade literária” e sobre a
desterritorialização da língua na obra de Kourouma, abordaremos outra dimensão da
“minoridade” presente no romance: a minoridade etária. Evidentemente, essa noção
remete necessariamente à importância da infância no romance, inclusive enquanto voz
narrativa. Todavia, há ainda outro elemento a ser levado em conta, no que diz respeito à
minoridade etária: as recém-formadas nações africanas. Tanto as crianças quanto as
114
« Le véritable protagoniste de ce récit est le langage lui-même, ses extensions, ses limites, son aspect à
la fois aléatoire, arbitraire, d’une part, et, d’autre part, coercitif, voire fasciste. Un langage porteur de
toutes ambigüités sur lesquelles se fonde ce que l’on désigne comme civilisation » (GAUVIN, 2007, p.
100).
103
nações africanas apresentam uma problemática relativa à noção de tutela e da
consequente “destutela”, conforme analisaremos na seção a seguir.
3.2. Minoridade etária: “destutela” e descolonização
Após investigar a importância do fenômeno da identidade na obra de Kourouma,
processo que envolve diretamente a história do continente africano, buscamos
compreender de que modo o autor encontra soluções para se expressar em língua
estrangeira, sem abrir mão de elementos característicos da cultura africana. Ao travar
um diálogo intenso com a disciplina historiadora, da qual o autor se nutre para elaborar
suas obras, Kourouma cria personagens, vozes, tempos e espaços fictícios, que jogam
constantemente com a realidade, independentemente de encontrarem ou não uma
referência externa no mundo real.
No exercício de repensar e revisitar o seu passado – o que fizera, inclusive, em
obras anteriores –, Kourouma adota uma estratégia literária que consiste em expressar
esteticamente elementos da identidade africana através da ferramenta da qual dispõe um
escritor, isto é, a língua. Através de um uso menor, potente e expressivo de sua língua,
como vimos na seção anterior, o autor aposta no trabalho linguístico para problematizar
a posição de entrecruzamento em que se encontra, ou seja, uma posição em que
convivem múltiplos idiomas, culturas, imaginários e influências literárias. O uso menor
da língua, que, nesse sentido, significa a valorização de sua situação de
desterritorialização, torna-se profundamente fecundo.
No caso específico do romance Allah n’est pas obligé, a minoridade se torna
duplamente significativa, uma vez que não está presente apenas na sua dimensão
linguística, mas se manifesta também na escolha do protagonista do romance, que é uma
criança. A minoridade etária, que não pode ser ignorada na análise dessa obra, põe em
cena inúmeras crianças, porém, sabemos que se trata de crianças em um contexto bem
particular, o que faz com que o modelo de infância em questão no romance não seja
prototípico.
Além da minoridade da infância, poderíamos ainda detectar outra minoridade
presente no romance: a das nações africanas. Nascidas tardiamente, a partir do modelo
das nações europeias, as nações africanas ainda encarnam problemas que se encontram
postos desde a sua criação. Conforme já analisamos anteriormente, a questão nacional
104
na África implica uma série de discussões e polêmicas que remontam à época da
colonização. No entanto, o processo de descolonização não foi menos complexo, e
merece uma atenção especial. Ao longo desta seção, analisaremos a minoridade etária
do ponto de vista da infância e da construção nacional, enfocando um conceito comum a
essas duas instâncias, isto é, a noção de tutela, que engendra, por sua vez, a noção de
emancipação.
As obras de Kourouma anteriores ao romance Allah n’est pas obligé traçaram
igualmente um diálogo com a história e com os rumos políticos que marcaram o destino
dos países africanos. No entanto, nas outras obras, aqueles que ocuparam os papéis
centrais na narrativa são adultos. Em Allah n’est pas obligé, dando continuidade ao
trabalho empreendido em Les Soleils des Indépendances e En attendant le vote des
bêtes sauvages, Kourouma prossegue as reflexões relativas aos rumos da
descolonização, que ainda não fora capaz de encontrar soluções políticas pacíficas e
estáveis para a maioria dos países africanos. Nessa empreitada, ele convoca para o papel
de narrador uma criança-soldado, que é caracterizada no romance da seguinte forma:
“L’enfant-soldat est le personnage le plus célèbre de cette fin du vingtième siècle” (A,
p. 88)115.
A presença da infância na literatura não é rara e, com frequência, está associada
a noções como a busca de uma origem, à compreensão de si, a partir de um retorno à
mais tenra idade. Em muitas obras autobiográficas, o retorno ao passado é
intrinsecamente associado ao retorno à infância e tem a função de auxiliar a
compreender o presente. Portanto, a infância, muitas vezes, está relacionada ao passado,
às memórias passadas, à origem. Por outro lado, a criança representa, em diversos
campos do saber, o futuro da sociedade, com a ideia de que as crianças serão os adultos
de amanhã. Deposita-se na criança a esperança de um futuro melhor, a partir do
momento em que se concebe a infância como potencialidade, como depositária de
utopias e sonhos políticos.
No romance em questão, trazer a infância à tona não representa nem um retorno
ao passado do autor nem o retorno ao passado de um povo. Tampouco representa a
esperança depositada nas crianças em uma aposta de futuro melhor. Ao contrário, a
criança de Allah n’est pas obligé, isto é, as crianças-soldados, representa com todo vigor
115
“A criança-soldado é o personagem mais célebre deste final de século” (A, p. 91).
105
o presente. Desvinculadas de seu passado e sem perspectiva alguma quanto ao futuro,
elas se engajam na guerra e agem sobre o presente de seu povo. O próprio narrador
revela que um dos meios para poder se engajar em uma facção enquanto criançasoldado era cometer o parricídio; desse modo, eles não possuiriam mais nenhum vínculo
com seu passado e estariam mais preparados para matar e cometer atrocidades.
Les enfants-soldats étaient de plus en plus cruels. Ils tuaient leurs parents
avant d’être acceptés. Et prouvaient par ce parricide qu’ils avaient tout
abandonné, qu’ils n’avaient pas d’autre attache sur terre, d’autre foyer
que le clan à Johnny Koroma (A, p. 205, grifo nosso).116
Sem passado, a única justificativa capaz de impedi-los a engajar-se como criançasoldado seria uma perspectiva de futuro. Todavia, não é essa realidade que verificamos
a partir das personagens infantis da obra de Kourouma; ao contrário, elas são definidas
do seguinte modo: “Les enfants soldats, c’est pour ceux qui n’ont plus rien à foutre sur
terre et dans le ciel d’Allah” (A, 119).117
As crianças-soldados, muito numerosas nas guerras tribais africanas, têm
características particulares e são levadas a ganhar esse status devido a uma série de
condicionamentos favoráveis. No romance Allah n’est pas obligé, acompanhamos
detalhadamente a trajetória de Birahima, mas, ao longo de seu relato, conhecemos
também a história de muitas outras crianças-soldados e as causas pelas quais elas se
viram obrigadas a se tornarem guerrilheiras.
Umas das crianças apresentadas ao longo do romance é Sarah. Após mencionar
o quanto a menina era terrível, o narrador conta a sua história, revelando como ela se
tornara menina-soldado. O pai de Sarah vivia viajando e, quando a menina tinha apenas
cinco anos de idade, sua mãe morreu. “Son père, ne sachant que faire d’une fille, la
confia à une cousine du village qui la plaça chez Madame Kokui” (A, p. 88).118 A
mulher a quem Sarah foi confiada, Madame Kokui, era vendedora de bananas e
ensinou-lhe a fazer o seu “ofício”. Um dia, porém, a menina foi roubada e a moça não
acreditou em sua história, punindo-a por ter mentido e roubado o dinheiro. No dia
seguinte, Sarah é roubada novamente e, para não ser punida outra vez por Madame
“As crianças-soldados estavam cada vez mais cruéis. Elas matavam os pais antes de serem aceitas. E
provavam pelo parricído que tinham abandonado tudo, que não tinham mais nenhum outro laço afetivo
neste mundo, nenhum outro lar além do clã de Johnny Koroma” (A, p. 209, grifo nosso).
117
“Ser criança-soldado é para os que não têm mais nada o que procurar na terra e no céu de Allah” (A, p.
121).
118
“O pai dela, sem saber o que fazer da menina, confiou-a a uma prima da aldeia que mandou ela para a
casa de Madame Kokui” (A, p. 91).
116
106
Kokui, decide pedir esmola na rua; esse círculo vicioso passa a se repetir todos os dias,
o que a obriga a viver de vez na rua e também a se prostituir. Nessa época, tem início a
guerra tribal e a solução encontrada pela menina é o exército de crianças-soldados.
Outro personagem infantil presente no romance, Sekou Ouedraogo, foi obrigado
a entrar na guerra por causa da mensalidade da escola; é exatamente nesses termos que
o narrador explica a história de Sekou: “Lui, Sekou Ouedraogo, le terrible, c’est
l’écolage qui l’a eu, l’a jeté dans la gueule du caïman, dans les enfants-soldats.
(Écolage signifie les frais de scolarité.)” (A, p. 114, grifo nosso).
119
Como seus pais
não tinham dinheiro para pagar a mensalidade, o menino foi expulso da escola até que
conseguisse os meios necessários para realizar o pagamento. O menino decide procurar
dinheiro por si só e acaba se perdendo em uma cidade e tendo que pedir esmolas ou
trabalhar sem nenhuma remuneração.
Há ainda o caso de outro menino, Jean Bazon, que é chamado por Birahima de
Johnny la foudre. Sua entrada na guerra também é explicada pelo narrador, no trecho a
seguir:
Sans blague ! Sans blague ! Lui Johnny la foudre, c’est le gnoussougnoussou de la maîtresse qui l’a perdu, l’a amené aux soldats-enfants.
(Gnoussou-gnoussou signifie, d’après Inventaire des particularités, le con,
le sexe de femme.) Oui c’est le sexe de la maîtresse qui l’a conduit aux
enfants-soldats. Et voilà comment (A, p. 182, grifos nossos). 120
Em seguida, o narrador explica com detalhes o significado desse comentário. Johnny foi
expulso de seu colégio por ter pegado um lápis que caíra no chão e, consequentemente,
por ter sido acusado de, ao se abaixar, ter olhado debaixo da saia da professora. Após
ser expulso do colégio, Johnny joga uma pedra no rosto de um colega de sala, matando
o menino. Procurado pela polícia, ele foge para se esconder em um vilarejo. No
caminho, é interceptado por um grupo de guerrilheiros, que perguntam quem gostaria de
voltar a pé para Man, sua cidade natal. Com medo de ser preso, o menino pensa o
seguinte: “Bazon s’est dit: « Moi à Man, jamais, jamais, je veux être un soldat-enfant. »
“Ele, Seku Ouedraogo, o terrível, foi a mensalidade que foi a perdição dele, foi isso que jogou ele na
goela do crocodilo, isso que fez ele ir parar nas crianças-soldados. (Mensalidade significa os custos com a
escolarização de uma criança). (A, p. 117, grifo nosso).
120
“Sem brincadeira! Sem brincadeira! Ele, Johnny Relâmpago, a perdição dele foi o gnussu-gnussu da
professora dele, foi isso que jogou ele na vida de soldado-criança. (Gnussu-gnussu significa, segundo o
Inventário das particularidades, boceta, órgão genital da mulher.) Isso mesmo, foi o sexo da professora
que jogou ele na vida de criança-soldado. E foi assim que aconteceu” (A, pp. 185-186, grifos nossos).
119
107
Et c’est ainsi que Jean Bazon est entré dans les soldats-enfants où il devint Johnny la
foudre” (A, p. 183).121
A história de Birahima já foi comentada anteriormente, e podemos ver
semelhanças entre ela e as histórias de Sarah, de Sekou ou de Johnny la foudre.
Birahima, assim como os outros, foi afastado da instituição escolar: “Mon école n’est
pas arrivée très loin; j’ai coupé cours élémentaire deux. J’ai quitté le banc parce que
tout le monde a dit que l’école ne vaut plus rien, même pas le pet d’une vieille grandmère” (A, p. 7, grifos nossos)122. Além disso, seu pai sempre foi ausente e, quando ele
tinha apenas dez anos, sua mãe morreu, deixando-o órfão. O familiar que deveria se
ocupar do menino a partir de então seria a sua tia: “C’était ma tante, ma tutrice, qui
devait me nourrir et m’habiller et avait seule le droit de me frapper, injurier et bien
m’éduquer” (A, p. 33, grifo nosso)123. Logo após essa decisão, a tia foge para a Libéria
e deixa, novamente, Birahima sem um tutor.
Nota-se, pois, que uma característica fundamental para explicar o fenômeno das
crianças-soldados está relacionada à questão da tutela. Em todos os exemplos citados, a
falta de um “maior” que se responsabilizasse por eles acabou por não lhes deixar opção
diferente à de se engajar na guerra ativamente. A noção de tutela é central nos estudos
sobre a infância, uma vez que uma importante característica geralmente associada às
crianças é a sua incapacidade, o que gera a necessidade de que elas sejam assistidas por
um tutor.
As reflexões de Jean-François Lyotard acerca da infância relacionam-se a essa
questão, pois, segundo a sua concepção, a criança é aquela que é carregada pela mão do
adulto, isto é, que não está entregue a si mesma, mas ao outro, relação que vai além da
relação de dependência. Na esteira de Kant, Lyotard define a infância segundo o prisma
da tutela, apoiando-se no conceito de minoridade, que leva em conta a condição de
dependência em relação ao outro. A discussão de Kant se situa em um contexto
histórico de debates religiosos em torno da liberdade de consciência; apesar de se tratar
“ ‘Eu, voltar para Man? Nunca mais, eu quero ser soldado-criança.’ E foi assim que Jean Bazon entrou
para os soldados-crianças, onde ele se tornou Johnny Relâmpago” (A, p. 187).
122
“Não fui muito longe na escola; parei no segundo ano primário. Caí fora da escola porque todo mundo
disse que a escola não vale mais nada, não vale nem um peido de uma velha” (A, pp. 9-10, grifos nossos).
123
“Era minha tia, minha tutora, que devia me alimentar e me vestir e só a ela cabia o direito de me bater,
xingar e educar bem” (A, p. 35, grifo nosso).
121
108
de um contexto bem diferente daquele que nos interessa, suas reflexões serão relevantes
no que diz respeito à noção de tutela.
Ao refletir sobre o Iluminismo, Kant define o seu conceito de minoridade, em
um artigo intitulado “Resposta à pergunta: ‘O que é Iluminismo’ ” (1784). De acordo
com o pensador, os homens devem ser capazes de ter seu próprio entendimento, sem
que precisem ser conduzidos pelo pensamento de outrem; afastar-se da minoridade
significa, portanto, deixar de estar sob a tutela do outro. O que garante a condição de
emancipação é a liberdade de pensamento, a liberdade do homem de se orientar a partir
de sua própria consciência. Segundo Kant, é impossível pretender frear ou separar o ser
humano do novo, das “novas luzes”; não se pode também impedir que as novas
gerações ampliem seus conhecimentos, pois a natureza humana foi feita para esse
progresso, para se encaminhar rumo ao esclarecimento. Logo, impedir que se questione
uma doutrina implica igualmente que ela nunca vá melhorar, podendo torná-la estéril ou
até mesmo nefasta para a posteridade. Além disso, a partir do momento em que se tolhe
a liberdade de pensamento, abre-se margem para que atitudes insanas não sejam
contestadas e se perpetuem.
Retomando a discussão de Lyotard, a sua definição de infância é a seguinte:
Por infância eu compreendo não somente, como dizem os racionalistas, uma
idade privada de razão. Eu compreendo essa condição de sermos afetados,
mas não termos os meios – a linguagem e a representação – para nomear,
para identificar e para reproduzir aquilo que nos afeta. Eu entendo por
infância que nós nascemos antes de termos nascido para nós mesmos,
entregues sem defesa aos outros. (LYOTARD, 1990, p. 17)124.
Lyotard postula essa relação da infância perante os outros através da imagem de uma
criança que é conduzida pelas mãos de seus pais, o que ele chama de mainmise.
Segundo Lyotard, essa relação é inerente à condição humana e se manifesta na infância,
o que faz com que o adulto – manceps, aquele que toma o outro pela mão – se torne
responsável pela criança, carregando-a pela mão, apropriando-se dela. Àquele que é
carregado pela mão, que está sob a tutela do outro – mancus – falta uma mão;
emancipar-se significa, portanto, escapar de um estado de falta, recuperar a sua própria
liberdade.
124
“Par enfance, je n'entends pas seulement, comme les rationalistes, un âge privé de raison. J'entends
cette condition d'être affecté alors que nous n'avons pas les moyens — le langage et la représentation —
de nommer, d'identifier, de reproduire et de reconnaître ce qui nous affecte. J'entends par enfance que
nous sommes nés avant d'être nés à nous-mêmes, livrés sans défense aux autres » (LYOTARD, 1990, p.
17).
109
Uma das conclusões que se pode tirar das reflexões de Lyotard é que o estado de
mainmise faz parte de um processo natural, e que, para se emancipar, é preciso que se
tenha passado pelo estado de tutela. Lyotard faz uma comparação entre o ser humano e
as máquinas, observando que não falta nada às máquinas, senão o fato de elas não terem
essa falta, ou seja, de nunca terem nascido e não terem passado por esse estado de portar
a chaga da falta de uma mão, característico daquele que está sob a tutela do outro.
Segundo Lyotard, “quando as máquinas forem assim manetas (manchotes), elas poderão
pensar, isto é, libertar-se daquilo que já foi pensado” (LYOTARD, 1990, p. 21)125. Por
analogia, podemos concluir que só se pode pensar algo diferente daquilo que já foi
pensado, dar um passo além, emancipar-se, trazer algo de novo, quando se passou pelo
estágio de tutela.
Após ter analisado o conceito de tutela do ponto de vista filosófico, a partir das
reflexões de Lyotard, vamos investigar de que modo a tutela se manifesta em Allah
n’est pas obligé. Nos exemplos retirados do romance, analisados anteriormente, nota-se
que todas as instituições que deveriam exercer o papel de tutoras para as crianças
encontram-se esvaziadas: a família, a escola e o Estado. Quanto às duas primeiras
instâncias, já ficou evidente, através dos trechos citados, que elas inexistem na vida das
crianças que se tornam soldados.
No que diz respeito ao Estado, cabe uma análise mais detalhada da situação
política presente no romance para compreender em que medida o Estado encenado no
romance é capaz de representar uma tutela ou não para seus cidadãos. Evidentemente, o
fato de a história se passar em um contexto de guerra já responde em grande medida a
essa questão. No entanto, cabe analisar mais precisamente a realidade do Estado nos
países descolonizados da África Negra.
Para tanto, cabe retomar as discussões tecidas no primeiro capítulo sobre o
passado e o presente da África no momento da escrita do romance. Nas primeiras seções
deste trabalho discutimos bastante as questões relativas à dominação colonial e ao
contexto de independência das nações africanas. Interessa-nos, pois, dar prosseguimento
a essa discussão para refletir sobre o contexto da descolonização e as perspectivas para
se compreender a africanidade no mundo contemporâneo.
“quand les machines seront ainsi manchotes, elles pourront penser, c'est-à-dire tenter de s'affranchir de
ce qui est déjà pensé” (LYOTARD, 1990, p. 21).
125
110
De acordo com o artigo escrito por Albert Adou Bohaen a respeito da dominação
colonial, na coletânea Histoire Générale de l’Afrique, a África e a Europa sempre
tiveram relações comerciais. No entanto, a partir de um determinado contexto
econômico, as intenções da Europa sobre a África começaram a ir além de meras trocas
comerciais. “Os Europeus não queriam mais somente se dedicar às trocas, mas exercer
igualmente uma dominação política direta sobre a África”
126
. A partir dessa influência
direta da Europa sobre a África, assistimos ao longo processo de colonização, já
comentado diversas vezes ao longo deste trabalho. No trecho que acabamos de citar,
notamos que, no original em língua francesa, foi empregada a palavra “mainmise”,
mesmo vocábulo usado por Lyotard para tratar da noção de tutela. De fato, durante os
anos da colonização, a Europa passou a adotar uma postura de tutora em relação ao
continente que havia dominado, ditando as regras, inclusive, de sua delimitação
geográfica.
Após um longo período sob dominação europeia, determinados grupos de
africanos, muitas vezes inimigos entre si, uniram-se em torno de um objetivo comum,
isto é, conquistar sua independência. Após a expulsão do colonizador das terras
africanas, era preciso, pois, passar por um verdadeiro processo de descolonização, de
emancipação, de “destutela” em relação ao Ocidente. Em suma, era preciso emanciparse, o que, conforme postula Lyotard, significava escapar de um estado de falta,
recuperar a própria liberdade, projeto que foi prometido com muito ardor pelos heróis
da independência, porém que foi realizado de forma muito diversa na prática.
Já discutimos o quanto é problemática a questão nacional na África, dada a
arbitrariedade das delimitações territoriais e de sua construção política. A missão dos
novos dirigentes, que haviam acabado de assumir o poder após a independência, era
igualmente complexa: conciliar interesses de diferentes grupos, evitar o caos e lidar com
o problema milenar da falta de recursos e da fome.
Cabia-lhes principalmente: centralizar a autoridade política, o que se chama,
muitas vezes, de “processo de construção do Estado”; instaurar a unidade
dos grupos heterogêneos que vivem no país, tarefa muitas vezes denominada
de “processo de edificação da nação”; abrir as perspectivas para a
participação política; dividir os recursos pouco abundantes. 127
“Les Européens ne voulaient donc plus seulement se livrer aux échanges, mais bien exercer également
une mainmise politique directe sur l’Afrique” (Histoire Générale de l’Afrique, v. 7, p. 27, grifo nosso).
127
“Il leur fallait notamment: centraliser l’autorité politique, ce qu’on appelle souvent « processus de
construction de l’État » ; instaurer l’unité entre les groupes hétérogènes vivant dans le pays, tâche souvent
126
111
Aquilo que se observa, todavia, de forma quase generalizada, não é a
concretização dessa árdua missão. Através de leituras de cunho tanto histórico quanto
literário, podemos compreender melhor as complexidades da descolonização e verificar
em que medida as metas dos heróis nacionais, pais da pátria, responsáveis pela expulsão
do colonizador, foram cumpridas. De acordo com Albert Memmi, já mencionado por
suas reflexões acerca da situação política e econômica dos países africanos, durante e
após a colonização, verificamos um triste retrato da conjuntura política e social na maior
parte do continente: “Infelizmente, somos obrigados a constatar que, na maioria das
vezes, nesses novos tempos tão ardorosamente desejados, por vezes conquistados ao
preço de terríveis provações, reinam ainda a miséria e a corrupção, a violência, se não o
caos” (MEMMI, 2007, p. 17).
Justamente nesse período em que se deixa de estar sob a tutela do Ocidente – a
mainmise por parte da Europa –, os povos africanos só poderiam livrar-se desse caos
instalado se propusessem novos modelos políticos e de organização social, capazes de
amenizar as antigas rivalidades étnicas e distribuir a riqueza de modo mais equânime. O
que se constata, entretanto, não é um movimento criador, de mudança, de ruptura em
relação ao sistema anterior, de emancipação, de “destutela”; ao contrário, “o regime
colonial havia visto nela [na administração colonial] um instrumento de manutenção da
ordem e uma ferramenta de exploração, e as elites que recolheram a herança dessa
administração se contentaram geralmente com essa concepção e não consideraram
colocá-la ao serviço do bem estar da população”128.
Desse modo, os abusos por parte dos líderes africanos se perpetuaram, e a
estrutura colonial não sofreu grandes mudanças. Na realidade, os abusos de poder só
aumentaram, o que acarretou uma falta de justiça e uma consequente arbitrariedade,
gerando uma ausência absoluta de normas, situação que Memmi apelidou de “país do
não-direito”:
Mesmo durante a colonização, quando o direito estava principalmente a
serviço do colonizador, havia limites para a ilegalidade. (...) Ocorre que o
direito colonial foi abolido e não foi realmente substituído. O potentado não
appelée « processus d’édification de la nation » ; ouvrir des perspectives pour la participation politique ;
et repartir des ressources peu abondantes” (Histoire Générale de l’Afrique, v. 8, p. 473).
128
“le régime colonial avait vu en elle [l’administration coloniale] un instrument de maintien de l’ordre et
un outil d’exploitation, les élites qui en recueillirent l’héritage se contentèrent généralement de cette
conception et ne songèrent pas à la mettre au service du bien-être de la population” (Histoire Générale de
l’Afrique, v. 8, p. 475).
112
tem ninguém a quem prestar contas. Não permite o desenvolvimento de
poderes intermediários suficientemente autônomos – como a justiça, por
exemplo – para se interpor entre ele e o descolonizado, que, em caso de
litígio, deverá reportar-se diretamente a ele, único verdadeiro juiz. A
consequência desse poder ilimitado é a possibilidade de uma iniquidade sem
limites (MEMMI, 2007, p. 84).
Essas considerações de Memmi descritas em sua obra “Retrato do
Descolonizado” estão em consonância com o retrato da África pintado por Kourouma
em seus romances e, de modo especial, no romance corpus dessa pesquisa. Na próxima
seção analisaremos, pois, de que modo a literatura de Kourouma retrata a situação
política dos países da África Negra.
3.2.1. Retratos da descolonização
Após analisar a época retratada em Allah n’est pas obligé – final do século XX –
à luz da disciplina historiadora e do ensaio de Memmi, investigaremos mais
detalhadamente como Kourouma encena esse mesmo período em sua obra, investigando
em que medida esse estágio de “destutela” em relação ao Ocidente foi verificado e em
que medida o Estado é capaz de representar uma instância tutelar para os cidadãos, de
modo especial, para as crianças.
Como vimos nas análises relativas aos personagens do romance, muitos deles
representam os chamados chefes de guerra, líderes de facções, independentemente de
serem entidades ficcionais ou de encontrarem uma referência externa ao texto. Os
personagens da obra de Kourouma encarnam características muito semelhantes às
detectadas por Memmi. O Colonel Papa le bon, por exemplo, desfruta de um poder
ilimitado: “À Zorzor, le colonel Papa le bon avait le droit de vie et de mort sur tous les
habitants. Il était le chef de la ville et de la région et surtout le coq de la ville. À faforo !
Walahé (au nom d’Allah) !” (A, p. 71, grifo nosso)129.
A respeito do poder irrestrito dos líderes políticos, Memmi afirmou o seguinte:
“a consequência desse poder ilimitado é a possibilidade de uma iniquidade sem limites”
(MEMMI, 2007, p. 84). Essa constatação se verifica no romance, uma vez que a
consequência da falta de limites para o poder do Colonel Papa le bon é uma justiça
arbitrária, o que significa, na realidade, uma ausência completa de justiça. Durante a
“Em Zorzor, o coronel Papai bonzinho tinha direito de vida e morte sobre todos os moradores. Ele era
o chefe da cidade e da região e sobretudo o verdadeiro galo do terreiro” (A, pp. 73-74, grifo nosso).
129
113
estada de Birahima na facção de Papa le bon, o menino presencia um julgamento, para
se descobrir e punir o responsável pelo assassinato de uma menina. Papa le bon presidiu
o tribunal e recorreu ao seguinte recurso para descobrir o assassino: “Un couteau fut
placé dans un réchaud aux charbons ardents. La lame du couteau devint incandescente.
Les accusés ouvrirent la bouche, se tirèrent la langue” (A, p. 80)130. Aquele que
vacilasse diante da faca incandescente seria o responsável e deveria ser punido. “Mais
quand avec la lame le colonel Papa le bon se dirigea vers Tête brûlée, le commandant
Tête brûlée recula et courut pour sortir de l’église (...) C’était lui le responsable, c’était
lui qui avait tué la pauvre Fati” (A, p. 81)131. Os chefes de guerra, donos de um poder
ilimitado, poderiam recorrer aos meios que desejassem para aplicar a justiça.
Em diversos outros trechos do romance, fica evidente que não há limites para a
ilegalidade, e a luta pela liberdade se dá de modo extremamente violento. É o que
ocorre no golpe dado por Samuel Doe, na Libéria, acontecimento que já analisamos no
primeiro capítulo. Nesse evento, Doe organizou um complô contra os afro-americanos
que detinham o poder e, através das armas e em nome da liberdade, instaurou uma nova
ditadura, legitimada pela força e pela opressão:
Après la réussite du complot, les deux révoltés allèrent avec leurs partisans
tirer du lit, au petit matin, tous les notables, tous les sénateurs afroaméricains. (...) Au lever du jour, devant la presse internationale, les
fusillèrent comme des lapins. Puis les comploteurs retournèrent dans la
ville. Dans la ville, ils massacrèrent les femmes et les enfants des fusillés et
firent une grande fête avec plein de boucan, plein de fantasia, avec plein de
soûlerie, etc (A, p. 98, grifos nossos) 132.
Vemos acima um golpe de Estado, por parte do Sargento Doe, que foi sucedido
de um ato de extrema violência para eliminar seus inimigos políticos. No entanto,
fuzilar os líderes políticos não foi suficiente, e os responsáveis pelo complô acabaram
por massacrar também os habitantes das cidades, civis, inclusive, mulheres e crianças.
Para que o golpe de Estado obtivesse sucesso, Samuel Doe havia se aliado a Thomas
“Uma faca foi colocada num fogareiro cheio de carvões ardentes. A lâmina da faca tornou-se
incandescente. Os acusados abriram a boca, puseram a língua para fora” (A, p. 83).
131
“Mas quando a lâmina do coronel Papai bonzinho dirigiu-se para Cabeça Queimada, o comandante
Cabeça Queimada recuou e saiu da igreja correndo. (...) Era ele o responsável, era ele que tinha matado a
pobre Fati” (A, p. 83).
132
“Depois so sucesso do complô, os dois revoltados foram com os partidários deles tirar da cama, de
madrugada, todas as personalidades, todos os senadores afro-americanos. (...) Quando nasceu o dia, eles
os fuzilaram como coelhos, diante de toda a imprensa internacional. Depois os autores do complô
voltaram para a cidade. Na cidade, eles massacraram as mulheres e os filhos dos fuzilados e fizeram uma
grande festa na maior algazarra, numa euforia sem controle, na maior bebedeira e assim por diante” (A, p.
100, grifos nossos).
130
114
Quionkpa; entretanto, não havia lugar para os dois no poder e Doe se deu conta de que,
para se manter no comando, era preciso eliminar Quionkpa. A solução por ele
encontrada foi mudar o status da situação política, isto é, propor uma passagem da
ditadura para a democracia:
Pour résoudre ces problèmes, Samuel Doe inventa un stratagème garanti.
(Stratagème signifie ruse, d’après mon dictionnaire le Petit Robert.) C’était
simple ; il suffisait d’y penser. C’était le coup de la démocratie. La
démocratie, la voix populaire, la volonté du peuple souverain. Et tout et
tout… (A, p. 100, grifo nosso)133.
Para poder garantir ao seu governo uma imagem de democracia, era preciso
deixar o seu cargo militar e se tornar um civil. Para tanto, era preciso também adotar um
discurso bastante convincente, que lhe atestasse legitimidade capaz de assegurar sua
autoridade:
« J’ai été obligé de prendre le pouvoir par les armes parce qu’il y avait trop
d’injustice dans ce pays. Maintenant que l’égalité existe pour tout le monde
et que la justice est revenue, l’armée va cesser de commander le pays.
L’armée remet la gestion du pays aux civils, au peuple souverain. Et pour
commencer, moi, solennellement, je renonce à mon statut de militaire, je
renonce à ma tenue de militaire, à mon revolver. Je deviens un civil. » (A,
p. 100, grifos nossos)134.
Para veicular a imagem de um sistema democrático, era necessário votar uma
constituição e, em seguida, convocar eleições. Muitos países africanos tentaram realizar
essa transição para a democracia através da proclamação da República. Todavia, o que
se observou foi que muitos desses dirigentes acabaram por permanecer décadas no
poder, o que revela que a democracia não aconteceu, de fato. Conforme observa J.
Isawa Elaigwu, em seu capítulo escrito para a Histoire Générale de l’Afrique, “não era
fácil, para pessoas educadas em uma cultura política colonial autoritária, realizar a
transição para a democracia parlamentar, com seus valores de participação, de
conciliação com a oposição política, e de tolerância”.135 É exatamente isso que
“Para resolver esses problemas, Samuel Doe inventou um estratagema garantido. (Estratagema
singnifica artimanha, segundo o meu dicionário Petit Robert. Coisa simples, bastava lembrar-se dela. Era
o golpe da democracia. A democracia, a voz popular, a vontade do povo soberano. Etcetera e tal...” (A, p.
102, grifo nosso).
134
“- Fui obrigado a tomar o poder pelas armas porque há injustiça demais nesse país. Agora que a
igualdade existe para todo mundo e que a justiça está de volta, o exército vai parar de comandar o país.
O exército entrega de volta aos civis, ao povo soberano a gestão do país. E para começar, eu,
solenemente, renuncio a meu estatuto de militar, eu renuncio a meu uniforme de militar, a meu revólver.
Eu me torno um civil” (A, p. 102, grifos nossos).
135
“il n’était pas facile, pour des gens éduqués dans une culture politique coloniale autoritaire, d’effectuer
la transition vers la démocratie parlementaire et ses valeurs de participation, de compromis avec les
opposants politiques et de tolérance” (ELAIGWU, 1998, p. 473).
133
115
observamos através dos inúmeros eventos políticos mencionados por Kourouma em
suas obras.
Nesse mesmo evento em que Samuel Doe se propõe a instaurar uma democracia
na Libéria, vemos o seguinte comentário do narrador de Allah n’est pas obligé a
respeito do processo eleitoral: “Et la constitution fut un dimanche matin votée à 99,99
% des votants. À 99,99 % parce que 100 % ça faisait pas très sérieux. Ça faisait ouyaouya” (A, p. 101, grifo nosso)136. Após a aprovação da constituição, na semana
seguinte: “on vota pour lui [Samuel Doe] à 99,99 % des votants en présence des
observateurs internationaux. À 99,99 % parce que 100 % ça faisait ouya- ouya ; ça
faisait jaser” (idem, grifo nosso)137. O narrador não explicita os meios através dos quais
ele conseguira 99,99% dos votos; no entanto, a ironia de seu comentário deixa claro que
o processo eleitoral não era digno de credibilidade alguma, colocando em questão a
possibilidade de democracia na Libéria após tal processo.
O romance Allah n’est pas obligé retrata bastante a situação política da Libéria,
porém, a partir do quinto capítulo, em que Birahima parte para uma facção da Serra
Leoa, o contexto político deixa de ser o da Libéria e passa a ser o desse outro país. Ao
representar a configuração política de Serra Leoa, o narrador tece um comentário que
poderia resumir a situação de vários países africanos, isto é, uma sucessão de golpes de
Estado em que os líderes que assumiam o poder gozavam de amplos poderes até serem
vítimas de um novo golpe de Estado e serem eliminados pelo grupo sucessor:
Quand le dictateur détenteur du pouvoir devenait trop pourri, trop riche, un
militaire par un coup d’État le remplaçait. S’il n’était pas assassiné, le
remplacé sans demander son reste s’enfuyait comme un voleur avec le
pognon. Ce remplaçant devenait à son tour très pourri, trop riche, un autre
par un autre coup d’État le remplaçait et, s’il n’était pas assassiné, il
s’enfuyait avec le liriki (liriki signifie fric). Ainsi de suite (A, p. 163, grifos
nossos)138.
Assim como aconteceu na Libéria, o processo eleitoral de Serra Leoa não foi
digno de credibilidade alguma. Nesse caso, porém, a força foi empregada concretamente
“E num domingo de manhã, a constituição foi aprovada numa votação com 99,99% dos eleitores,
porque 100% já seria demais e não pareceria sério. Dava impressão de uya-uya” (A, p. 103, grifo nosso).
137
“ (...) 99,99% dos eleitores votaram nele [em Samuel Doe] na presença de observadores internacionais.
99,99% porque 100% também já seria demais e daria a impressão de uya-uya” (idem, grifo nosso).
138
“Quando o ditador detentor do poder tornava-se podre demais, rico demais, um militar o substituía,
por meio de um golpe de Estado. Se ele não era assassinado, o substituído dava no pé que nem um ladrão
que foge com a bufunfa. Aquele que o substituía, por sua vez, tornava-se podre demais, rico demais,
então outro, através de outro golpe de Estado, o substituía e, se ele não fosse assassinado, fugia com o
liriki (liriki significa grana). E assim por diante” (A, p. 168, grifos nossos).
136
116
para manipular o resultado das eleições, em um evento de caráter extremamente cruel.
Trata-se do lema empreendido por Foday Sankoh: “Pas de bras, pas d’élections” (A, p.
168)139, que consistia em cortar os braços das pessoas para que elas não pudessem votar.
Il faut couper les mains au maximum de personnes, au maximum de
citoyens sierraléonais. (...) On procéda aux « manches courtes » et aux «
manches longues ». Les « manches courtes », c’est quand on ampute les
avant-bras du patient au coude ; les « manches longues », c’est lorsqu’on
ampute les deux bras au poignet (A, pp. 168-169, grifos nossos) 140.
Os fragmentos supracitados, além de retratarem a ausência de leis, a extrema
crueldade dos atos políticos e a instabilidade desses países, são profundamente
reveladores também de outro enorme problema comum a todas essas realidades: a
corrupção. Os trechos “s’enfuyait comme un voleur avec le pognon” (idem), “il
s’enfuyait avec le liriki (liriki signifie fric)” (idem) mostram as verdadeiras intenções
dos líderes políticos: isto é, beneficiar-se do dinheiro público para garantir seus
interesses pessoais. Como constatamos ao longo do romance, a corrupção é onipresente
e se verifica não apenas nas altas instâncias de poder, mas em todo e qualquer âmbito
social, político e econômico.
A corrupção não apenas paralisa a vida política, mas ameaça seriamente a
economia, uma vez que os recursos naturais que o país possui, muitas vezes, são
explorados ou traficados pelos chefes de guerra. É o que acontece, por exemplo, com os
royalties da borracha, na Libéria, que vão diretamente para dois líderes guerrilheiros:
Taylor e Samuel Doe.
La Compagnie américaine de caoutchouc était la plus grande plantation
d’Afrique. Elle couvrait d’un tenant près de cent kilomètres carrés. En fait,
tout le sudest du pays appartenait à la compagnie. Elle payait plein de
royalties. (Royalties signifie redevance due au propriétaire d’un brevet ou
d’un sol sur lequel sont exploitées des richesses.) Les royalties étaient
partagées entre les deux anciennes factions, la bande à Taylor et la bande
à Samuel Doe (A, pp. 152-153 grifo nosso).141
Nas regiões de fronteira, espaço onde se passa o romance, há ainda outro modo
de corrupção amplamente difundida: o controle aduaneiro. Muitas vezes dominado por
“Sem braços, nada de eleições” (A, p 172).
“Ele [Foday Sankoh] manda cortar as mãos do maior número de pessoas, do máximo possível de
cidadãos leoneses. (...) Procederam às mangas curtas e às mangas compridas. Mangas curtas é quando se
amputa os antebraços do paciente na altura do cotovelo; mangas compridas é quando se amputa na altra
do punho.” (A, pp. 172-173, grifos nossos).
141
“A Companhia Americana de Borracha era a maior plantação da África. Ela cobria um enorme terreno
de quase cem quilômetros quadrados. Na verdade, todo o sudeste do país pertencia à companhia. Ela
pagava um monte de royalties. (Royalties significa débito que se tem para com o proprietário de uma
patente ou de um solo sobre o qual são exploradas certas riquezas.) Os royalties eram divididos entre as
duas antigas facções, o bando de Taylor e o bando de Samuel Doe” (A, p. 157, grifo nosso).
139
140
117
chefes de guerra locais, o controle da alfândega gera uma grande quantidade de
dinheiro, por exemplo, ao permitir o contrabando. Desse modo, ambas as partes
corruptoras se beneficiam, e a consequência é, de um lado, o enriquecimento dos líderes
guerrilheiros e, de outro, o contrabando, por exemplo, de armas de fogo. O controle
alfandegário encontra uma forma de se enriquecer, pois estabelece um valor aleatório,
de acordo com o seu interesse, para as mercadorias que passam pela fronteira. Essa
prática também se faz presente no romance, como vemos no seguinte trecho: “On arrive
au camp retranché du colonel Papa le bon. Patrons du convoi descendent, ça rentre
chez le colonel Papa le bon. Tout est déballé, pesé ou estimé. Les taxes des douanes
sont calculées selon la valeur” (A, p. 53)142.
Não poderíamos deixar de mencionar o tráfico de diamantes, muito
frequentemente associado a esses países da África Negra, visto que a região em questão
é uma das mais ricas em diamantes no mundo. No entanto, as minas diamantíferas,
frequentemente, estão nas mãos de chefes de guerra que usam o dinheiro da exploração
dos metais para comprar armamentos e financiar as suas guerras. Tanto em sua
passagem na Libéria, quanto em Serra Leoa, o narrador comenta essa situação. Na
Libéria, as minas de ouro estavam sob o domínio da facção ULIMO, chefiada por
Samuel Doe:
Parce que ULIMO avait beaucoup de dollars américains. Il avait beaucoup
de dollars parce qu’il exploitait beaucoup de mines. (Exploiter, c’est tirer
profit d’une chose, d’après mon Larousse.) ULIMO exploitait des mines
d’or, de diamants et d’autres métaux précieux (A, p. 77, grifos nossos).143
Na Serra Leoa, quem detinha as minas diamantíferas era Foday Sankoh, o
mesmo que promovera o supracitado episódio dos “manchots”:
Ce qu’il [Foday Sankoh] demande d’abord c’est l’expulsion du représentant
de l’ONU, sa bête noire depuis le Congo. (Bête noire signifie personne
qu’on déteste le plus.) Il ne lâchera pas les mines de diamants et d’or qu’il
tient tant que le représentant de l’ONU résidera en Sierra Leone (A, p.
167, grifo nosso)144.
“A gente chega no campo entricheirado do coronel Papai bonzinho. Os chefes do comboio descem, os
caras entram no campo do coronel Papai bonzinho. Tudo é aberto, pesado e avalisado. As taxas de
alfâdega são calculadas de acordo com o valor” (A, p. 55).
143
“Porque o ULIMO tinha muitos dólares americanos. Tinha muitos dólares porque explorava muitas
minas. (Explorar é tirar proveito de uma coisa, segundo meu Larousse). O ULIMO explorava as minas de
outro, de diamantes e de outros metais preciosos” (A, p. 80, grifos nossos).
144
“O que ele [Foday Sankoh] pede primeiro é a expulsão do representante da ONU, seu mais execrado
inimigo desde o Congo. (Execrado significa o que mais se detesta e odeia.) Ele não vai largar as minas
de diamante e ouro que ele tem nas mãos enquanto o representante da ONU continuar residindo em
Serra Leoa” (A, p. 171, grifo nosso).
142
118
Donos das principais riquezas do país, esses chefes de guerra – os “bandits de grand
chemin” segundo o narrador – acabam por representar uma autoridade maior que os
líderes políticos eleitos, submetendo-os ao seu poder e influenciando as decisões
políticas internas e externas do país; esse é o caso, por exemplo, da determinação de
Foday Sankoh em expulsar os representantes da ONU da Serra Leoa, verificada no
fragmento acima.
Apesar de essa situação ser de conhecimento geral, os líderes políticos
encontram enormes dificuldades em lutar contra o tráfico, porém, sem sucesso: “Le
general reconnaît lui-même, en août 1985, qu’il « ne possède pas les moyens
d’éliminer le trafic de diamants ». C’est-à-dire la corruption” (A, p. 164, grifo
nosso)145. Em outros trechos do romance, o narrador evoca a corrupção e comenta as
tentativas de eliminá-la do cenário político; no entanto, todas parecem em vão:
La corruption continuait à sévir sous le colonel Juxton et ça n’a pas tardé.
Le 19 avril 1968, le colonel Juxton est renversé par un complot de sousofficiers qui créèrent un mouvement révolutionnaire anticorruption (ACRM).
Anticorruption ! (Rien que cela, Walahé !) Cela n’arrêta pas la corruption.
(A, p. 163, grifos nossos)146.
Após esse retorno às análises da conjuntura política e econômica dentro do
romance, podemos concluir que, conforme observou Albert Memmi, reinavam nesses
países da África negra a corrupção, a fome, a desigualdade. No entanto, esse cenário
político é encontrado em inúmeros países do mundo, em todas as épocas da história; o
que mais choca na realidade retratada por Kourouma é a carga de violência associada
aos eventos políticos, nos quais os líderes políticos recorrem constantemente à força
para legitimar sua autoridade. Palavras como “fusiller”, “massacrer”, “couper”,
“amputer”, “tirer”, “assassiner”, observadas nos diversos fragmentos citados acima, são
recorrentes ao longo de todo o romance, e empregados com grande naturalidade.
Evidentemente, esse Estado representado por Kourouma não é capaz de ser tutor
de nenhum cidadão, muito menos das crianças, que acabam sendo as vítimas mais fáceis
do sistema. A situação de guerra gera uma instabilidade generalizada, que acaba por
eliminar também as outras instâncias tutoras da infância, como a família e a escola;
“O general reconhece, ele próprio, em agosto de 1985, que ‘ele não dispõe dos meios para eliminar o
tráfico de diamantes’. Isto é, a corrupção” (A, p. 168, grifo nosso).
146
“A corrupção continuava a causar estragos sob o governo do coronel Juxton, e a coisa não tardou. No
dia 19 de abril de 1968, o coronel Juxton foi derrubado por um complô de sub-oficiais que criaram um
movimento anticorrupção (ACRM). Anticorrupção! (Nada mais, nada menos, Walahê!) Isso não deteve a
corrupção” (A, p. 167, grifos nossos).
145
119
visto que o Estado não se ocupa da tutela das crianças, a única opção que lhes resta é se
tornar criança-soldado, pois esse caminho representa um meio de sobreviver à guerra e
ao caos. Na próxima seção, investigaremos as características específicas dessa infância
não-prototípica retratada no romance.
3.2.2. Infância roubada
Diante do cenário encontrado pelas crianças em meio à guerra, não lhes resta
outra opção senão reproduzir o caos generalizado observado em torno delas. Assim, a
única lei das crianças-soldados passa a ser a da sobrevivência, que é regida pelo
princípio da predação universal, simbolizada no romance através da seguinte frase:
“Allah ne laisse jamais vide une bouche qu’il a créée” 147. Essa frase é repetida algumas
vezes pelo narrador, que a emprega para justificar a pilhagem dos vilarejos por onde ele
e as outras crianças-soldados passam, aterrorizando e massacrando a população.
Birahima explica de modo bastante objetivo a tarefa de uma criança-soldado: “Dans
toutes les guerres tribales et au Liberia, les enfants-soldats, les smallsoldiers ou
children-soldiers ne sont pas payés. Ils tuent les habitants et emportent tout ce qui est
bon à prendre” (A, p. 49, grifo nosso)148. Essa elucidação por parte do menino deixa
claro que a justificativa para as suas ações é a sobrevivência, que consiste em usufruir
de tudo o que encontrar.
Ao analisar as características das crianças-soldados, Xavier Garnier resume da
seguinte forma o princípio que rege as suas leis: “Esse é o princípio da economia da
predação: de um lado, a generosidade do criador, do outro, a avidez das criaturas”
(GARNIER, 2004, p. 28)149. Dando prosseguimento à sua análise, Garnier acredita que
as crianças são o modelo desse sistema, pois elas são capazes de pegar aquilo que
encontram na rua, sem malícia alguma, ou mesmo de receber um presente e não
agradecer. Para as crianças, não se trata de uma ideologia política a ser defendida, ou de
um novo sistema a ser implantado; trata-se de um jogo infantil, assim como outros. No
entanto, esse jogo toma proporções incomensuráveis uma vez que são introduzidas as
“Alá nunca deixa vazia uma boca por ele criada” (A, p. 95).
“Em todas as guerras tribais na Libéria, as crianças-soldados, os samll-soldiers ou children-soldiers,
não são pagas. Elas matam os habitantes e carregam tudo que dá para pegar” (A, p. 52, grifo nosso).
149
“Tel est le principe de l’économie de prédation : d’un côté la générosité du créateur, de l’autre l’avidité
des créatures” (GARNIER, 2004, p. 28).
147
148
120
armas de fogo: “As crianças-soldados não são crianças que embarcaram nos assuntos
dos grandes, mas crianças em cujo jogo os grandes se intrometeram, emprestando-lhes
as armas de fogo” (GARNIER, 2004, p. 28)150.
Quando se acrescentam as armas, as kalachnikov abundantemente citadas no
romance, o jogo passa a ter consequências muito mais drásticas; para as crianças, as
kalach muitas vezes são consideradas do ponto de vista lúdico, como uma recompensa,
um prêmio merecido: “On avait des lits, des tenues de parachutistes neuves, des kalach
neufs. Walahé !” (A, pp. 77-78)151. Assim como acontece com os brinquedos, as
crianças passam a usar as armas sem limites e atirar torna-se, portanto, uma tarefa
corriqueira: “Et puis les enfants-soldats se sont alignés et ils ont tiré avec les kalach. Ils
ne savent faire que ça. Tirer, tirer” (A, p. 64, grifo nosso)152. O efeito desse jogo acaba
por fazer com que as armas sejam destituídas de significado, não mais representando um
meio de acabar com vidas humanas, mas constituindo parte de um jogo: o jogo da
sobrevivência.
Assim, assistimos no romance a uma banalização generalizada da morte,
consequência de uma banalização da vida. Como as crianças sabem que suas vidas não
valem nada e que elas podem morrer a qualquer momento, o ato de tirar a vida dos
outros se torna também corriqueiro. Cabe observar que o uso da arma de fogo
intensifica ainda mais essa banalização, dada a facilidade de matar que ela possibilita.
Em tempos em que os combates eram feitos homem a homem, a morte geralmente era
mais lenta, mais difícil de ser atingida. Ademais, esse tipo de combate possibilitava o
contato pessoal com o adversário, o que podia também colocar em jogo a dimensão
humana do inimigo e introduzir algum tipo de sentimento de solidariedade ou de
compaixão pelo seu semelhante. Com o uso das armas de fogo, ao contrário, o inimigo
deixa de ter um rosto, o que faz com que o combate se torne mais frio, desumano,
covarde. Outra dimensão que faz com que a morte seja banalizada é, justamente, a falta
de um inimigo claramente identificado. As crianças não sabem nem mesmo contra
quem elas lutam. Com medo, todos acabam se tornando seus inimigos, conforme será
comentado num trecho logo adiante.
“Les enfants-soldats ne sont pas des enfants embarqués dans des affaires de grands, mais des enfants
aux jeux desquels les grands se sont joints, en leur prêtant leurs armes à feu” (GARNIER, 2004, p. 28).
151
“Tinha cama, uniformes de pára-quedistas novinhos, kalachs novinhas. Walahé” (A, p. 80).
152
“E depois as crianças-soldados fizeram uma fila e deram tiros com as kalachs. Elas só sabem fazer
isso. Atirar, atirar” (A, p. 67, grifo nosso).
150
121
Para ilustrar essa relação entre a lei da predação universal e as consequências
desastrosas de se introduzirem verdadeiras armas no jogo, tomemos como exemplo uma
única cena, em que as crianças-soldados pilham um vilarejo, em busca de alimentos
para matar sua fome:
On commença à fouiller les cases du village. Une à une. Bien à fond. Les
habitants avaient fui en entendant les rafales nourries que nous avions
tirées. Nous avions faim, il nous fallait à manger. (...) Nous prenions tout ce
qui était bon à grignoter. Allah ne laisse jamais vide une bouche qu’il a
créée (A, p. 92, grifo nosso)153.
Vemos novamente a repetição da frase “Allah ne laisse jamais vide une bouche qu’il a
créée”, que serve sempre como uma justificativa para qualquer tipo de ação. Até esse
momento, porém, as ações se resumem a pilhar para não morrer de fome. Em seguida,
as crianças-soldados descobrem que havia duas crianças na casa, que haviam sido
deixadas por seus pais na hora de sua fuga. A cena que se segue ultrapassa em muito o
limite da luta pela sobrevivência e atinge um nível de crueldade extremo, resultante do
uso das armas sem nenhum limite.
Nous fouillions dans les coins et les recoins. Alors que nous croyions qu’il
n’y avait personne, absolument personne, à notre surprise nous avons
découvert sous des branchages deux enfants mignons que leur mère n’avait
pas pu emmener avec elle dans sa fuite éperdue. (...) Il y avait parmi les
soldats-enfants une fille unique appelée Fati. Fati était comme toutes les
filles-soldats, méchante, trop méchante. (...) Ils avaient six ans: c’étaient des
jumeaux. Ils avaient peur. Ils ne pouvaient rien comprendre à rien. Fati a
voulu les effrayer. Elle a voulu tirer en l’air mais, comme elle était dans les
vapeurs, elle les a bien mitraillés avec son kalachnikov. L’un était mort,
l’autre était blessé (A, pp. 92-93, grifo nosso)154.
Essa cena resume todas as características apontadas acima a respeito das
crianças-soldados, evidenciando a sua luta pela sobrevivência através da predação
universal, pois elas buscavam desesperadamente alguma comida; em seguida, o uso das
armas e suas terríveis consequências; a evidência de que, por causa do medo, todos
haviam se tornado inimigos, inclusive duas crianças indefesas; finalmente, detectamos a
“E a gente começou a vasculhar as cabas da aldeia. Uma a uma. Sem deixar passar nada. Os habitantes
tinham fugido ao ouvirem as rajadas prolongadas do nosso tiroteio. A gente estava com fome e precisava
comer. (...) A gente passava a mão em tudo que era bom embolsar. Alá nunca deixa vazia uma boca por
ele criada” (A, p. 95, grifo nosso).
154
“A gente estava vasculhando em tudo que era canto recanto. A gente pensava que não tinha ninguém
lá, absolutamente ninguém, mas para nossa surpresa a gente descobriu escondidas nuns galhos duas
crianças bonitinhas que a mãe não tinha tido tempo de carregar na fuga esvairada. (...) Havia entre os
soldados-criançasuma filha única, chamada Fati. Fati era que nem todas as meninas-soldados, malvada,
malvada que só ela. (...) Elas deviam ter seis anos: eram gêmeas. E estavam com medo. Elas não
entendiam nada de nada. Fati quis botar medo nelas. Elas quis atirar para cima, mas como estava
viajando com o haxixe, ela metrallhou as duas com a kalachnikov. Uma morreu, a outra ficou ferida” (A,
p. 96, grifo nosso).
153
122
consequente banalização da morte, que faz com que não se questione mais o direito à
vida de nenhuma criatura humana, nem mesmo quando ela é inofensiva.
Garnier aposta também na falta de tutela como explicação para o fenômeno das
crianças-soldados e para a violência de seus atos:
Os jogos de criança, com sua violência latente, são bastante comoventes
quando eles acontecem sob a tutela parental, mas se tornam muito mais
inquietantes quando perdem o controle. (...) Será muito difícil encontrar em
Allah n’est pas obligé uma instância tutelar adulta. (GARNIER, 2004, p.
28)155.
A análise de Garnier evidencia a dificuldade de se encontrar uma tutela adulta no
romance. Como vimos, nem a família, nem a escola, nem o Estado são capazes de
ocupar essa função e as crianças passam a não ter outra opção senão aderir à guerra. O
que observamos no romance é uma radicalização dessa situação, que chega a ponto de
as crianças não conceberem outra alternativa senão essa; ao contrário, elas passam a
desejar o caos para poder se beneficiar dele, refletindo, assim, a postura de personagens
como Yacouba, um mercenário de guerra. É o que constatamos a partir de trechos como
o seguinte:
La situation générale était désastreuse, elle ne peut être pire que ce qu’elle
était. Walahé ! Donc elle était bonne pour nous. Faforo ! Nous, Yacouba, le
bandit boiteux, le féticheur multiplicateur de billets, et moi, Birahima,
l’enfant de la rue sans peur ni reproche, l’enfant-soldat. Gnamokodé ! Nous
avons été appelés, nous avons pris du service aussitôt (A, p. 202, grifos
nossos)156.
Neste fragmento notamos que o narrador se torna ávido pelo caos, pela situação
desastrosa de seu país, pois apenas dessa forma ele encontraria uma ocupação, isto é,
um modo de sobreviver. No momento em que o menino profere essa frase, o poder
estava nas mãos dos Kamajor, dos caçadores tradicionais, que não empregavam
crianças em suas facções. Desse modo, sem ocupação, o menino se confronta com a
verdadeira miséria e a precariedade da guerra:
Les chasseurs professionnels et traditionnels, les kamajors, n’avaient pas
besoin de soldats-enfants. Leur code leur interdisait d’utiliser des enfants à
la guerre. Pour participer à la guerre à leur côté, il fallait être initié comme
chasseur. De sorte que, pour la première fois, nous (Yacouba et moi) étions
Les jeux d’enfants, avec leur violence latente, sont bien attendrissants lorsqu’ils ont lieu sous la tutelle
parentale, mais ils deviennent beaucoup plus inquiétants une fois hors controle. (...) On aura beaucoup de
mal à trouver dans Allah n’est pas obligé une instance tutélaire adulte. (GARNIER, 2004, p. 28).
156
“A situação geral era desastrosa, ela não podia ficar pior do que estava. Walahá! Portanto ela era boa
para a gente. Faforo! A gente, Yacuba, o bandido manco, feiticeiro multiplicador de notas de dinheiro, e
eu, Birahima, o menino de rua sem eira nem beira, a criança-soldado. Gnamokodê! Nós fomos chamados,
nós pegamos no batente imediatamente” (A, p. 206, grifos nossos).
155
123
confrontés à la réalité, à la précarité de la guerre tribale (A, p. 194, grifo
nosso)157.
Esse comentário, além de pôr em relevo a precariedade encontrada durante a guerra
tribal, deixa claro que, na verdade, as crianças não desejam realmente ser soldados.
Apesar de Birahima fazer comentários como o seguinte: “Être un soldat-enfant,
Walahé!, avait des avantages. On était un privilegié” (A, p. 81)158, sabemos que ele não
se sente, de fato, um privilegiado. Na sua apresentação, ele próprio diz que contará a sua
vida de “merda de desgraçado”. Na realidade, ele busca incansavelmente a guerra e
afirma que quer ser uma criança-soldado, justamente, para escapar à precariedade da
guerra, isto é, à fome, à miséria, à insegurança, à violência.
Essa infância representada por Kourouma em sua obra revela um profundo
desajustamento da realidade retratada pelo autor, consequência de uma série de eventos
que mergulharam a África em uma grande crise política e econômica, mas também ética
e moral. Nesse sentido, a criança é profundamente simbólica, na medida em que ela
representa, justamente, a fragilidade. Como diria Jeanne-Marie Gagnebin, ao pensar
sobre o que tanto nos intriga a respeito da infância:
[a infância] contém a experiência essencial ao homem de seu desajustamento
em relação ao mundo... [ela] é o signo sempre presente de que a humanidade
não repousa somente sobre sua força e seu poder, mas também, de maneira
mais secreta, mas tão essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas
(GAGNEBIN, 2005, p. 180).
No entanto, essa minoridade etária não é representada apenas pela imagem da
criança, mas também ecoa na produção de Kourouma através da minoridade das recémformadas nações africanas. Como é possível detectar em sua obra, essas nações, assim
como as crianças, ainda vivem em um estado de muita instabilidade e fragilidade,
buscando caminhos para encarar o seu passado, resolver seus problemas presentes e
vislumbrar um futuro diferente.
No que diz respeito tanto às crianças quanto às nações africanas, detectamos um
problema relativo à tutela e à sua consequente “destutela”: ambas passaram por um
processo complexo e problemático de tutela (no caso das crianças, por parte da família,
da escola e do Estado; no caso das nações, por parte da “mainmise” ocidental); desse
“Os caçadores profissionais e tradicionais, os kamajors, não precisavam de soldados-crianças. O
código deles proibia a utilização de crianças na guerra. Para participar da guerra ao lado deles, era preciso
ser iniciado como caçador. De modo que, pel primeira vez, nós (Yacuba e eu) estávamos confrontados
com a realidade, com a precariedade da guerra tribal” (A, p. 198, grifo nosso).
158
“Ser um soldado-criança, Walahé!, tinha suas vantagens. Era um privilégio” (A, p. 84).
157
124
modo, evidentemente o processo de “destutela” das nações africanas não será menos
complexo e, se não chegar a alcançar uma verdadeira emancipação, continuará em seu
estado “mancus” (apontado por Lyotard): permanecerá o estado de falta.
Esse estado de falta é verificado nas nações africanas que, incorporando um
modelo europeu de organização política e social, não levaram em conta as suas próprias
especificidades e os limites para adotar tal modelo. Falta, pois, encontrar uma via que
leve em consideração as características específicas da realidade africana, e que permita
resgatar do modelo europeu aquilo que for positivo e não reproduzir seus vícios.
A respeito da minoridade no sentido político, econômico, social, isto é, em seu
sentido mais usual, geralmente associado à marginalidade, o historiador Joseph KiZerbo se posiciona e sugere a seguinte reflexão:
Não convém que nos posicionemos demasiado em relação aos outros e
concebamos a marginalização em função do centro. O centro está em nós
mesmos. Eu diria que, em primeiro lugar, seria necessário, como alternativa,
um projeto coletivo: quem somos nós? Onde queremos ir? Desde que somos
independentes, ainda não respondemos a estas perguntas (KI-ZERBO, 2009,
pp. 157-158).
Ki-Zerbo aposta, pois, em uma concepção que não coloque em relevo a marginalização
da África em relação aos outros continentes; ao contrário, aposta que as perspectivas
positivas para os problemas da África devem levar em conta a própria africanidade,
através do questionamento e da compreensão de sua identidade. Sensível a
questionamentos como estes, a literatura não está alheia a esse movimento e reflete a
busca pela compreensão de sua identidade, esfacelada por tantos eventos históricos
cruéis.
Essa necessária reflexão acerca da identidade se torna essencial para responder
às exigências africanas no mundo contemporâneo. Para tanto, é preciso levar em
consideração dois elementos extremamente importantes: a história e a tradição. Como
vimos ao longo deste trabalho, a compreensão da identidade passa por uma
compreensão do passado; além disso, a resposta à necessária pergunta “quem somos
nós?” leva em conta em conta um retorno à origem, à compreensão de suas tradições
para detectar os elementos tradicionais capazes de responder às problemáticas atuais.
Kourouma aposta na tradição para compreender e afirmar a sua identidade; por outro
lado, isso não significa que ela também não seja posta à prova ou questionada, como
veremos adiante.
125
Essas duas noções – a história e a tradição – são onipresentes na obra de
Kourouma; todavia, no romance Allah n’est pas obligé, há um elemento a mais, que
joga de forma direta com essas questões: a criança. O personagem infantil da obra Allah
n’est pas obligé toma a palavra para pensar a sua história e o seu presente, dando
testemunho de suas experiências em meio à guerra. Desse modo, o narrador cumpre o
seu dever de memória, fazendo da revisão do passado um constante alerta sobre o
presente.
No que diz respeito à tradição, o fato de a voz narrativa ser concedida a uma
criança inverte a lógica da narração tradicional, que geralmente é delegada a alguém
mais velho, mais sábio, mais experiente. A subversão da tradição implícita no ato de
delegar a tarefa de narrar a uma criança revela a necessidade de ativar o espírito crítico
em relação às tradições, para que elas não sejam deturpadas em favor de benefícios
pessoais, conforme veremos na seção a seguir.
3.2.3. O dever de memória e a subversão da tradição
De acordo com a seção anterior, verificamos que a minoridade etária se faz
constantemente presente no romance, uma vez que Kourouma opta por focalizar as
guerras tribais africanas a partir do prisma de uma criança. Essa criança não encarna um
modelo de infância prototípica e, conforme analisamos, apresenta características
particulares. Além de ser “o personagem mais célebre deste final de século” (A, p. 91),
como diz o próprio narrador, a criança tem ainda uma função central no jogo entre
realidade e ficção, entre história e memória, como veremos a partir de agora.
As crianças-soldados, movidas pelo desejo de sobreviver, engajam-se na guerra;
uma vez enquadradas enquanto soldados, passam a usar armas, a usar de violência e
crueldade em seus atos, não mais questionando o valor da vida e matando sempre que
necessário for – ou mesmo sem necessidade alguma; acostumadas a esse modo de vida,
e sem saber fazer nada diferente, passam a desejar ser soldados, para não ter que
enfrentar a precariedade da guerra e da falta de recursos de seu país. Essa situação
paradoxal das crianças-soldados, que são ao mesmo tempo reféns, vítimas e agentes da
violência, revela o absurdo da guerra, que rouba a infância de suas próprias crianças em
lutas cujas causas elas próprias desconhecem. As causas dessa guerra, na realidade, são
fruto de eventos históricos complexos que envolvem a violenta colonização e a
126
problemática descolonização, que não foi capaz de eliminar antigas rivalidades, gerando
novas disputas pelo poder.
Como vimos, a obra tem mais de um nível diegético e o limite entre eles não é
claro. Na realidade, essas vozes narrativas estão intimamente ligadas ao tempo histórico,
em que o nível extradiegético se pronuncia para esclarecer a conjuntura política,
remontar ao passado para encontrar as causas da guerra, retomar eventos históricos,
enfim, para ser um porta-voz da história. No entanto, a voz narrativa de Birahima
manifesta-se constantemente para lembrar-nos do presente. Birahima interrompe as
explicações e divagações acerca dos eventos passados para mostrar as duras
consequências que eles originaram no tempo presente.
A obra de Kourouma está muito ligada à história, e a sua tarefa foi muitas vezes
elogiada pelo fato de proceder a uma revisão do passado de modo a por em relevo uma
visão de passado alternativa à perspectiva do dominador. Como vimos na seção
anterior, neste que é seu último romance completo publicado em vida, Kourouma
concede a voz a uma criança. Essa escolha nos fornece uma chave de leitura para a
importância da história na obra de Kourouma: a história é entendida por ele por sua
relação com o presente.
Jeanne-Marie Gagnebin, em seu livro “Lembrar escrever esquecer”, discute a
importância e a finalidade da disciplina historiadora. Gagnebin concebe a história como
uma luta contra o esquecimento; nesse sentido, a história responde a um dever de
memória que consiste em não apagar eventos do passado, isto é, em prevenir que
determinados eventos caiam no esquecimento.
A visão de Gagnebin está plenamente em sintonia com a reflexão de Walter
Benjamin a respeito da história formulada em seu texto “Sobre o conceito de história”.
Nesse ensaio, Benjamin afirma o seguinte: “articular historicamente o passado não
significa ‘conhecê-lo como de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal
como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1985, p. 224). A história,
concebida nesse sentido, não pode ser desvinculada do presente, pois a sua finalidade se
relaciona justamente com o presente: “Entendo com isso que a verdade do passado
remete mais a uma ética da ação presente que a uma problemática da adequação
(pretensamente científica) entre ‘palavras’ e ‘fatos’” (GAGNEBIN, 2006, p. 39). Assim
como discutimos no primeiro capítulo deste trabalho, Gagnebin reconhece a semelhança
127
da história com a ficção, visto que ambas lançam mão da escrita e recorrem à narração.
Todavia, o que interessa a Gagnebin não é discutir a cientificidade da disciplina
historiadora, mas compreender o sentido de se rever o passado, isto é, compreender a
necessidade da rememoração.
A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em
particular a essas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se
trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o
presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à
transformação do presente. (GAGNEBIN, 2006, p. 55).
Nesse sentido, em um contexto como o da guerra, o dever de memória se torna
ainda mais necessário, pois a guerra representa justamente uma “centelha de perigo”, de
que fala Benjamin, que não deve ser esquecida para não ser repetida. Por outro lado,
muitos daqueles que poderiam ajudar a compor a memória coletiva, perderam a sua vida
nos conflitos, morrendo sem poder falar. Nesse sentido, o testemunho dos sobreviventes
se torna crucial para que o historiador possa cumprir a sua tarefa de relatar o passado,
alertando para as “centelhas de perigo” que ameaçam o presente.
Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e
Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê
confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa
transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos
mortos que não puderam ser enterrados. (...) Tarefa altamente política: lutar
contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do
horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente
ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do
historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para
aqueles que dele foram privados (GAGNEBIN, 2006, p. 47).
A partir dessa concepção acerca da história, a figura da criança na obra de
Kourouma se torna ainda mais interessante, uma vez que um dos elementos que ajudam
a estruturar e a escrever a história é o testemunho. No romance Allah n’est pas obligé, a
voz da criança enquanto narradora dá ao relato um teor de veracidade, uma vez que fala
sobre o que ela viu e viveu. Nas primeiras páginas do romance, essa dimensão vem à
tona, a partir da seguinte frase, retomada, aliás, na contra capa do livro: “Voilà ce que je
suis; c’est pas un tableau réjouissant. Maintenant, après m’être presenté, je vais
vraiment, vraiment conter ma vie de merde de damné” (A, p. 10, grifos nossos). O
menino se propõe, pois, a contar a sua vida, o que faz com que seu relato adquira um
teor de veracidade propiciado pelo seu testemunho ocular. Birahima, tendo visto e
vivenciado a guerra, será capaz de relatar as experiências pelas quais passou,
transmitindo informações que, muitas vezes, são ocultadas pelos meios de comunicação.
128
Além de se apresentar e de se disponibilizar a contar a sua vida, outros
elementos de seu relato remetem a um testemunho, uma vez que o menino situa os
eventos narrados temporalmente, precisando informações como as datas, por exemplo:
“On était en juin 1993” (A, p. 47). Como vimos anteriormente, inúmeras são as
referências a personagens com referência externa ao texto, como Taylor, Samuel Doe,
Foday Sankoh e tantos outros nomes de líderes políticos dos países africanos. Desse
modo, o relato de Birahima se articula diretamente com a história. Como a história é
uma disciplina que tem a finalidade de relatar objetivamente os eventos passados, assim
também somos levados a interpretar as palavras de Birahima, isto é, por sua relação
direta com a realidade histórica.
O teor de veracidade de seu relato se verifica ainda pela riqueza de detalhes com
que o menino conta eventos reais passados na África negra, como é o caso, por
exemplo, da tomada de poder por parte de Samuel Doe, ou o eventos dos “manches
longues et manches courtes” comandado por Foday Sankoh. Ao pesquisarmos a história
da África em discursos históricos, encontramos esses eventos narrados pelo menino de
forma surpreendentemente semelhante. Sabe-se que Birahima é um personagem
ficcional e que as suas desventuras são fruto da criação literária de Kourouma; no
entanto, a tomada de palavra do menino para dar testemunho de suas vivências na
guerra tece um profundo jogo com o real e com a história.
Flávia Nascimento, tradutora do romance em português, investiga a figura de
Birahima e acredita que a opção de centrar a narração em torno da criança não é
fortuita: “por sinal, a representação do espaço africano pós-colonial – o das guerras
tribais liberianas e serra-leonenses – encontra na criança-soldado em ação sua
personagem mais vigorosa: uma personagem completamente verdadeira, evidentemente
real e, no entanto, escandalosamente inconcebível” (NASCIMENTO, 2010, p. 61). Essa
constatação dialoga bastante com um comentário, tecido pelo próprio escritor, Ahmadou
Kourouma, em uma entrevista concedida a Thibault Le Renard e Comi M. Toulabor, ao
falar dos ditadores africanos:
Les comportements des dictateurs africains sont tels que les gens ne les
croient pas ; ils pensent que c’est de la fiction. Leurs comportements
dépassent en effet souvent l’imagination. Les dictateurs africains se
comportent dans la réalité comme dans mon roman. Nombre de faits et
d’événements que je rapporte sont vrais. Mais ils sont tellement impensables
129
que les lecteurs les prennent pour des inventions romanesques. C’est terrible!
(KOUROUMA, 1999, p. 179).159
Do mesmo modo que Kourouma caracteriza as ações dos ditadores africanos
como aparentemente ficcionais, a figura da criança-soldado parece ser inconcebível,
conforme analisa Flávia Nascimento. Ambas parecem estar mais conformes à ficção do
que à realidade, porém, ambas são reais e existiram/existem na história.
Assim como afirma Flávia Nascimento, a missão de Birahima é, portanto,
altamente política: “Birahima aparece então como uma alegoria do escritor-testemunha,
aquele que, implicado em seu tempo e no mundo que o rodeia, assume uma tarefa
altamente política: lutar contra o esquecimento a fim de não permitir a repetição do
horror” (NASCIMENTO, 2010, pp. 52-53). Essa tarefa tão complexa é, pois, delegada a
uma criança, ao in-fans, que, etimologicamente, remete “[à]quele que não fala”. Ao
longo de toda a narrativa, percebemos que Birahima é, ao contrário, aquele que fala, a
voz do romance. Segundo Flávia Nascimento, o momento de sua tomada de palavra é
justamente a sua passagem para a vida adulta, momento em que Birahima passa do
estágio de phonè para logos.
É pois o momento em que se efetua, ao mesmo tempo, a passagem da
infância para a vida adulta, da voz para a linguagem, do phonè para o logos
(Cf. Agamben, 2005, p.9-18), do estado de não fala, enfim – pois é preciso
lembrar que o vocábulo latino in-fans quer dizer, etimologicamente, “aquele
que não fala” –, ao estado de tomada da palavra. (NASCIMENTO, 2010, p.
52).
De acordo com o pensamento de Giorgio Agamben, desenvolvido em sua obra
Infância e História: destruição da experiência e origem da história (1978), citado por
Flávia Nascimento, a infância se faz presente por sua relação com a experiência, sendo
compreendida como uma “etapa da experiência” ou como a única forma autêntica de
experiência, através da sua relação com a linguagem. Agamben se volta para a reflexão
acerca da “expressão primeira” da experiência, o que estaria relacionado a uma origem,
a um ponto de partida em que a “expressão humana seria ainda muda”, e a experiência
consistiria precisamente na passagem da mudez à palavra, à voz, à linguagem, pois é
apenas através da linguagem que o homem se constitui enquanto sujeito (cf.
AGAMBEN, 2008, pp. 48-58). Somente através da linguagem o sujeito é capaz de se
“Os comportamentos dos ditadores africanos são tais que as pessoas nem acreditam; elas pensam que
se trata de uma ficção. Seus comportamentos, de fato, ultrapassam frequentemente a imaginação. Os
ditadores africanos se comportam na realidade como no meu romance. Inúmeros fatos e eventos que eu
conto são verdadeiros. Mas eles são de tal forma impensáveis que as pessoas pensam que são invenções
romanescas. É terrível”
159
130
constituir como “eu”, como um “sujeito linguístico” (AGAMBEN, 2008, p. 57). Nesse
ponto reside a relação entre experiência e infância, isto é, o limite entre um momento
em que o ser humano não fala, é mudo, e a sua tomada de voz, sua aquisição de
linguagem. Nesse caso, Agamben se refere ao que prefere chamar de in-fante.
A constituição do sujeito na linguagem e através da linguagem é
precisamente a expropriação desta experiência “muda”, é, portanto, já
sempre “palavra”. Uma experiência originária, portanto, longe de ser
algo subjetivo, não poderia ser nada além daquilo que, no homem, está
antes do sujeito, vale dizer, antes da linguagem: uma experiência
“muda” no sentido literal do termo, uma in-fância do homem, da qual
a linguagem deveria, precisamente, marcar o limite. (AGAMBEN,
2008, p. 58).
O sujeito da linguagem é, portanto, o fundamento tanto da experiência quanto do
conhecimento, e o problema da experiência é indissociável da linguagem: a experiência
pura seria aquela que ainda é muda, e a constituição do sujeito através da linguagem é
exatamente a expulsão dessa experiência muda. A linguagem marca, portanto, o limite
dessa experiência pura, e a in-fância é o silêncio do sujeito, “um ‘fluxo de consciência’
intangível e irrefreável como fenômeno psíquico originário” (idem).
Agamben, no entanto, não concebe a infância como uma etapa cronológica, que
precederia a linguagem e que terminaria no exato momento em que se começaria a falar:
não se trata de um “paraíso que é perdido” no momento em que se adquire a linguagem,
“mas coexiste com a linguagem, constitui-se, aliás, ela [a experiência, a infância que
está aqui em questão] mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo
a cada vez o homem como sujeito” (AGAMBEN, 2008, p. 59). Trata-se de um
movimento ininterrupto e que se repete a cada experiência do homem com a perda e a
busca da linguagem.
Essa experiência com a linguagem se faz presente em qualquer criação artística e
literária, na qual se convive constantemente com a perda da linguagem para poder
atingir níveis outros de linguagem; trata-se de um trabalho de busca de novas
linguagens para atingir o exigente desafio de dizer aquilo que não se é capaz de dizer,
isto é, ir além das palavras, ser capaz de transmitir aquilo que não conseguimos
recorrendo apenas a um tipo de linguagem, devendo envolver nessa tarefa todo o corpo,
o gesto, o ritmo, o som, as imagens, isto é, um constante voltar à infância.
Birahima toma a palavra quando está em um caminhão conversando com seu
primo Mamadou, após descobrir que sua tia falecera e após ter passado alguns anos
131
engajado como criança-soldado na guerra tribal; nesse momento, ele deixa de ser infans e passa para um estágio articulado da linguagem, assumindo a função de narrar, de
dar voz a um relato. Assim, acontece uma morte metafórica da infância, que passa da
experiência muda à fala. O testemunho ficcionalizado de Birahima representa a
imensidade de sujeitos sem voz, as outras in-fans espalhadas pelo mundo, as inúmeras
crianças-soldados que não podem falar.
O relato de Birahima, além de representar um jogo entre a realidade e a ficção,
simboliza ainda a morte metafórica da infância (no sentido de in-fans), mas também
testemunha sobre as inúmeras mortes, no sentido literal, encontradas no romance. O seu
relato surge, portanto, no contexto da guerra como um grito contra a morte, isto é, como
a voz de uma testemunha da realidade ao seu redor. Diante de tantas mortes concretas,
Birahima representa o sobrevivente: aquele que poderia ter morrido no lugar de outro,
mas ainda tem vida. Sabe-se que muitas vidas são eliminadas em contextos como esse e,
não raro, os únicos registros de sua existência aparecem sob a forma de números; não se
sabe nem o nome das vítimas de guerra, mas apenas o número, a quantidade.
O sobrevivente é, portanto, aquele que ainda pode falar, ainda pode dar o seu
testemunho, no lugar daqueles que morreram sem falar. Como afirma Hannah Arendt,
“sempre haverá um sobrevivente para contar a história” (Arendt apud Lyotard, p. 77), e,
a essa sobrevivência, associa-se responsabilidade ética de falar por aqueles que
morreram sem falar como uma forma de redimir-se de uma certa culpa por estar vivo
enquanto o outro não está, por estar vivo no lugar do outro.
Além de cumprir essa função ética, o testemunho de Birahima estabelece um
jogo muito íntimo entre realidade e ficção. Apesar de ser um personagem ficcional e de
a literatura estabelecer um pacto ficcional com o leitor, somos levados a questionar se o
seu relato não tem nenhum relação com a realidade. Como disse Kourouma, esses
eventos mais parecem ficção do que realidade, no entanto, apesar de inconcebíveis,
muitas vezes retratam eventos que efetivamente aconteceram e que só são conhecidos
graças à voz das testemunhas. Desse modo, a memória dessas testemunhas tem a
finalidade de compreender o passado, mas sempre guardando a sua relação com o
presente. Como afirma, de forma bastante poética, Jeanne-Marie Gagnebin:
“(...) Nietzsche, Freud, Adorno e Ricoeur, cada um no seu contexto
específico, defendem um lembrar ativo: um trabalho de elaboração e de luto
em relação ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e
132
de esclarecimento — do passado e, também, do presente. Um trabalho que,
certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por
amor e atenção aos vivos” (GAGNEBIN, p. 105).
Quando pensamos em memória, pensamos também em tradição, em conservação
de um patrimônio cultural comum. Ora, como vimos anteriormente, a tradição africana
tem uma enorme importância na escrita de Kourouma, de modo que ele a convoca
intensamente na sua construção literária. Todavia, sabemos que Kourouma, apesar de
acreditar nos valores tradicionais africanos para compreensão da identidade, não tem um
olhar ingênuo a seu respeito. Em sua obra, percebemos que ele também a questiona. Isto
posto, podemos encarar a escolha de um personagem infantil para a função de narrador
como uma subversão à tradição, visto que essa função geralmente é ocupada por alguém
mais velho, dono de saber e experiência adquiridos no decorrer de uma longa vida.
Como vimos, a escrita de Kourouma é fortemente ancorada na tradição oral
africana, em que o griot toma a palavra para compartilhar com sua comunidade o seu
saber, fruto de sua experiência. No mundo retratado em Allah n’est pas obligé, a ordem
está a tal ponto ameaçada que até mesmo a figura do narrador, do “conteur traditionnel”
é colocada em xeque.
Essa subversão da tradição no modo de narrar se manifesta através de
comentários feitos por Birahima, como os seguintes:
Voilà ce que j’avais à dire aujourd’hui. J’en ai marre ; je m’arrête
aujourd’hui. Walahé ! Faforo (sexe de mon père) ! Gnamokodé (bâtard) !
(A, p. 45);
Moi non plus, je ne suis pas obligé de parler, de raconter ma chienne de vie,
de fouiller dictionnaire sur dictionnaire. J’en ai marre ; je m’arrête ici pour
aujourd’hui. Qu’on aille se faire foutre ! (A, p. 95);
Aujourd’hui, ce 25 septembre 199… j’en ai marre. Marre de raconter ma
vie, marre de compiler les dictionnaires, marre de tout. Allez vous faire
foutre. Je me tais, je dis plus rien aujourd’hui… À gnamokodé (putain de ma
mère) ! À faforo (sexe de mon père) ! (A, p. 123).
Esses trechos revelam o modo como o narrador se direciona ao seu público, isto é, sem
nenhuma decência e respeito. O menino faz uso, sem pudor, de palavrões, seja em
idioma malinké, seja na língua francesa. É ele quem decide quando falar e quando parar
de falar, porque não está com vontade. O fato de Kourouma convocar uma criança para
o lugar da narração encena um mundo que, tendo perdido seus referenciais, tem
dificuldade em compreender a sua própria identidade.
Em um artigo de Amadou Koné, a respeito da tradição nas obras de Kourouma,
ele faz os seguintes questionamentos:
133
No que diz respeito à tradição, a obra de Kourouma coloca questões
fundamentais. Como a cultura tradicional influencia o comportamento, as
mais diversas e mais cruciais escolhas do Negro-Africano? Ela dá respostas
satisfatórias às questões que surgem da nova situação criada pela
colonização e pelas independências? Ela contém os recursos eficazes para
resolver os problemas que se apresentam aos Africanos dessa época que se
estende do período colonial à época pós-colonial? (KONÉ, 2004, pp. 4243)160.
Essas questões levantadas por Amadou Koné são cruciais para compreender a obra de
Kourouma, dada a importância da tradição evocada pelo autor em seus romances. As
referências às etnias, às religiões tradicionais africanas, ao uso de fétiches e grigri, são
muito numerosas ao longo do romance, além da influência linguística e literária,
herdada da oralidade, elementos que foram analisados na seção anterior.
Yacouba, personagem que diz ser o portador da tradição, fornece uma pista da
visão de Kourouma acerca da tradição. Yacouba, que, na realidade se chama Tiécoura, é
descrito da seguinte forma: “Tiécoura était multiplicateur de billets et aussi marabout
devin et marabout fabricant d’amulettes” (A, p. 36)161. Em outro momento, ele próprio
diz ser “féticheur”: “Il s’est approché de Yacouba qui a entonné sa chanson: « Je suis
grigriman, je suis féticheur. »” (A, p. 58)162. Enfim, Yacouba, ao menos em sua
aparência e em seu discurso, diz ser “marabout”, “féticheur”, “grigriman”, elementos
que representam a faceta esotérica e religiosa dos malinkés, mas também das culturas
tradicionais africanas de forma geral. Todas essas funções que Yacouba diz exercer são
tradicionalmente delegadas a pessoas mais velhas, aos anciões da aldeia, pessoas cujo
saber e experiência são reconhecidos e respeitados pelo grupo. Essa sabedoria, nas
culturas tradicionais, estava a serviço da comunidade, isto é, tinha uma finalidade
coletiva.
Evidentemente, não é para esse fim que Yacouba se diz ser “féticheur” ou
“marabout”, pois ele é o personagem que busca a guerra a todo custo para dela tirar
proveito. “Tiécoura était pressé de partir parce que partout tout le monde disait qu’au
“Par rapport à la tradition, l’oeuvre de Kourouma pose des questions fondamentales. Comment la
culture traditionnelle influence-t-elle le comportement, les choix les plus divers et les plus cruciaux du
Négro-Africain ? Donne-t-elle des réponses satisfaisantes aux questions qui surgissent de la situation
nouvelle créée par la colonisation et les indépendances ? Contient-elle les ressources efficaces pour
résoudre les problèmes qui se posent aux Africains de cette époque qui s’étend de la période coloniale à
l’époque postcoloniale ?” (KONÉ, pp. 42-43).
161
“Tiecura era multiplicador de notas de dinheiro e também marabuto adivinho e marabuto fabricante de
amuletos” (A, p. 38).
162
“Ele se aproximou de Yacuba que entoou sua ladainha: ‘Eu sou grigriman, eu sou feiticeiro’ ” (A, p.
60).
160
134
Liberia là-bas, avec la guerre, les marabouts multiplicateurs de billets ou devins
guérisseurs ou fabricants d’amulettes gagnaient plein d’argent et de dollars
américains” (A, p. 36)163. Seu interesse não está, de forma alguma, associado ao
coletivo, mas à satisfação de suas necessidades individuais.
Esse personagem, como vimos em uma seção anterior, sintetiza as reflexões de
Édouard Glissant acerca do mito e da mistificação que convivem dentro da mesma obra.
O próprio narrador, por vezes, desconfia da eficiência dos “fétiches” para resolver os
problemas:
“Les féticheurs sont des fumistes. (Fumiste signifie personne peu sérieuse,
fantaisiste, d’après mon Larousse.) Sans blague ! Pour avoir consommé du
cabri, il y avait là trois morts, d’après les féticheurs. Sortir des conneries
énormes comme ça. C’est incroyable !” (A, p. 114, grifo nosso)164.
Notamos que há uma oscilação da confiança do narrador nos “fétiches”, que, por vezes
duvida de sua eficiência, porém, em outros momentos, diz confiar plenamente neles:
“Nous étions impatients de combattre. Nous étions tous forts par le hasch comme des
taureaux et nous avions tous confiance en nos fétiches” (A, p. 113)165. Essa frase revela
a enorme distorção do recurso à tradição: geralmente associada ao bem coletivo, a
tradição, no contexto da guerra tribal, está a serviço da morte. Conforme postula
Amadou Koné a respeito das tradições na obra de Kourouma, “a tradição que persiste
não passa de um avatar degradado da verdadeira tradição, um abastardamento” (KONÉ,
2004, p. 43)166.
Ainda de acordo com Koné, Kourouma desconfia e questiona a tradição na
medida em que ela é reduzida a um meio de se resolver os problemas individuais e a
atingir suas ambições:
Seu objetivo não é ensinar a tradição aos Africanos (...) nem (...) justificar as
práticas tradicionais africanas aos olhos dos Ocidentais. Ahmadou
Kourouma descreve personagens para os quais a influência da tradição se
“Tiecura estava com pressa de sair de viagem porque por todo lado todo mundo estava dizendo que na
Libéria, com a guerra, os multiplicadores de de notas de dinheiro ou os adivinhos curandeiros ou os
fabricantes de amuletos estavam ganhando muito dinheiro e dólares americanos” (A, p. 38).
164
“Os feiticeiros são uns trapaceiros. (Trapaceiro significa pessoa pouco séria, enroladora, segundo o
meu Larousse.) Sem brincadeira! Porque a gente tinha comido carne de cabrito, lá estavam três mortos, de
acordo com os feiticeiros. Conseguir soltar tamanhas babaquices! Não dá pra acreditar!” (A, p. 117, grifo
nosso).
165
“Nós estávamos impacientes para combater. Nós estávamos tão fortes por causa do haxixe, como
touros, e tínhamos confiança em nossos patuás” (A, p. 116).
166
“La tradition qui persiste n’est qu’un avatar dégradé de la vraie tradition, un abâtardissement” (KONÉ,
p. 43).
163
135
torna um fardo, personagens que exploram a tradição para satisfazer suas
ambições ou resolver situações problemáticas. 167
Essa descrição reflete o modo como Yacouba e tantos chefes de guerra concebem a
tradição, isto é, como um mero amuleto da sorte. Esse modo relativista de enxergar a
tradição é denunciado por Kourouma, uma vez que não é nessa tradição que está
ancorada a base da africanidade.
Como vimos anteriormente, a manifestação da identidade na obra de Kourouma
está profundamente ligada ao seu enraizamento na cultura e no idioma malinké,
convocando-os
a
todo
instante,
para
sua
escrita.
Na
seção
dedicada
à
“desterritorialização da língua”, analisamos a importância da oralidade na construção do
romance, com seus elementos característicos, tais como o ritmo da narrativa, a
repetição, o recurso aos provérbios, a importância das imagens e dos sentidos. Por outro
lado, é preciso observar que Kourouma não é ingênuo a respeito de sua tradição e tem
consciência de que, muitas vezes, ela é usada de modo deturpado. Essa atitude de
Kourouma aponta para um recurso aos valores africanos que seja realizado de forma
honesta e não a serviço de interesses pessoais.
A escolha da criança como narrador cumpre, pois, a seguinte função:
desmistificar uma tradição usada de forma deturpada. Isto não significa que Kourouma
não acredite na tradição; no entanto, seu uso descontextualizado da comunidade e a fim
de beneficiar unicamente interesses pessoais, transformam a tradição em um “avatar”.
Esse “avatar”, na verdade, também é identificado na figura das próprias criançassoldados que, tendo sua infância roubada, tornam-se máquinas de guerra. Kourouma
encena, portanto, “um mundo que, tendo perdido suas referências, tem dificuldade a
encontrar novos referenciais e que se comporta como se fosse possível preservar apenas
o pior da tradição e o pior do que os vencedores lhe haviam imposto” (KONÉ, 2004, p.
43)168.
Tal é o quadro pintado por Kourouma de modo geral na sua obra, porém, de
forma ainda mais radical no romance Allah n’est pas obligé. A sua obra lança as bases
“son but n’est pas d’enseigner la tradition aux Africains (...) ni (...) de justifier les pratiques
traditionnelles africaines aux yeux des Occidentaux. Ahmadou Kourouma décrit des personnages pour
lesquels l’influence de la tradition devient un fardeau, des personnages qui exploitent la tradition pour
assouvir leurs ambitions ou résoudre des situations problématiques” (KONÉ, 2004, p. 39).
168
“un monde qui, ayant perdu ses repères, a du mal à en définir de nouveaux et qui se comporte comme
s’il n’était possible de préserver que le pire de la tradition et le pire de ce que les vainqueurs lui ont
imposé” (KONÉ, 2004, p. 43).
167
136
para uma reflexão intercultural e multilinguística inversa àquela verificada por Amadou
Koné, isto é, uma relação entre culturas na qual se aproveite aquilo que há de melhor de
cada uma, e não reproduzindo os seus vícios. Essa conclusão vai ao encontro de um
artigo escrito por Joseph Ki-Zerbo, na coletânea “Histoire Générale de l’Afrique”, a
respeito das tentativas de modelos políticos adotados na África, de ditaduras militares, a
governos marxistas ou neoliberais, e até ao chamado “socialismo africano”. Ao falar da
corrupção generalizada na África e do favorecimento de uma minoria autoritária, em
oposição a uma maioria miserável, Ki-Zerbo constata o seguinte:
A incoerência dessa contradição calculada, transformada em “valor” político
perverso é a raiz do mal africano, visto que ele acumulou todos os aspectos
negativos de três sistemas: a herança africana, o liberalismo capitalista e o
marxileninismo dos países do antigo bloco do Leste. 169
O mergulho na herança cultural africana deve ser feito de modo a encontrar os valores
de sua ancestralidade que sejam capazes de responder às questões da atualidade. Nesse
sentido, a tradição não deve se dobrar à corrupção e ser deturpada a ponto de ser usada
para ganhar a guerra. Ao contrário, deve-se buscar o que a herança cultural africana traz
de alternativo ao modelo estabelecido, tanto do ponto de vista político e econômico,
quanto ético e moral, para que se depreenda uma nova forma de se encarar os problemas
da contemporaneidade.
“L’incohérence de cette contradiction calculée, transformée en une « valeur » politique perverse, est à
la racine du mal africain en ceci qu’elle a cumulé tous les aspects négatifs de trois systèmes: l’héritage
africain, le libéralisme capitaliste et le marxismeléninisme des pays de l’ancien bloc de l’Est” (KIZERBO, 1998, p. 515).
169
137
4. Conclusão
As primeiras páginas do romance Allah n’est pas obligé constam da
apresentação do narrador e protagonista do romance, a criança-soldado Birahima. Como
vimos, o menino se serve de elementos linguísticos, raciais, étnicos, sociais e culturais
para compor o seu retrato, o que indica uma problematização da identidade, estabelecida
desde as primeiras linhas do romance.
Certamente, essa problematização provém do enorme contraste entre a infância
presente no romance e uma infância prototípica. Tradicionalmente, a infância é
associada à incapacidade, à inocência, à pureza; Birahima, ao contrário, faz questão de
assumir que é o oposto dessas características, tecendo comentários como os seguintes:
“suis insolent, incorrect comme barbe d’un bouc et parle comme un salopard” (A, p.
8),170 “depuis longtemps je m’en fous des coutumes du village” (A, p. 9),171 “suis pas
chic et mignon, suis maudit parce que j’ai fait du mal à ma mère” (A, p. 10).172 Na
realidade, essa deturpação da infância nada mais é do que o reflexo da deturpação da
realidade em meio ao caos da guerra tribal. Logo, a problematização da identidade
apresentada pelo narrador espelha um questionamento identitário que não se restringe
ao personagem infantil presente no romance, estendendo-o a uma coletividade.
Para responder a esse apelo identitário coletivo, é preciso remontar ao passado e
convocar a história para compreender de que modo foi possível atingir tamanho
desajuste no presente. A realidade da guerra tribal é decorrente de uma série de eventos
históricos que deixaram sequelas no continente, levando povos vizinhos a dizimarem
uns aos outros, conforme verificamos a partir dos relatos de Birahima. Mergulhar no
passado de seu continente e repensar eventos históricos – como a implantação do
modelo nacional, a dominação ocidental, a independência, o processo de
descolonização, a conquista da democracia, muitas vezes através de golpes de estado e
eleições fraudulentas – constitui um movimento intrínseco à problematização e à
compreensão da identidade.
A obra de Kourouma responde a esse apelo, em seu constante diálogo com a
disciplina historiadora. Todavia, o trabalho do escritor não se resume a reproduzir a
história, mas envolve um processo de ficcionalização da história, no qual se imbricam
“Sou insolente, errado que nem barba de bode e falo como um filho-da-mãe” (A, p. 10).
“Mas eu faz muito tempo que estou me lixando para os costumes da aldeia” (A, p. 11).
172
“Não sou arrumadinho e bonitinho, sou um maldito porque fiz mal para minha mãe” (A, p. 12).
170
171
138
referências reais e ficcionais em um jogo com o real que reflete os grandes
questionamentos da África no final do século XX.
A revisão do passado e a compreensão do presente põem à prova duas instâncias
canônicas da literatura Ocidental: a nação e a língua. No que diz respeito ao nacional, a
sua fragilidade é manifestada na obra de Kourouma através de dois mecanismos: a
suspeita e a descrença em relação às nações africanas, constantemente qualificadas
através de uma adjetivação negativa, como “foutue”, “fichu”, “barbare”, “maudit”,
“injuste”; e a filiação dos personagens a outras instâncias identitárias, sobretudo à
instância étnica, conforme sugere o trecho a seguir: “les Malinkés, c’est ma race à moi”
(A, p. 9),173 o que relativiza a importância da identidade nacional.
No que concerne à língua, podemos dizer que esse é um elemento central do
fazer literário de Kourouma. A situação de plurilinguismo em que se encontra o seu
contexto de escrita produz no autor uma grande sensibilidade aos problemas
linguísticos, o que Lise Gauvin chama de surconscience linguistique, isto é, uma
necessidade exacerbada de “pensar a língua” (GAUVIN, 2003, p. 22): “Essa
surconscience é também uma consciência da língua como espaço de ficção ou até
mesmo de fricção: um imaginário da língua e pela língua”.174
No contexto de escrita de Kourouma, a língua e a literatura estão intimamente
ligadas, pois adotar um idioma de escrita se converte em uma decisão política e
identitária, que dá origem à seguinte bifurcação: escrever na sua própria língua ou na
língua do outro? Kourouma opta por irrigar a língua do outro, a língua do colonizador,
com seu imaginário africano. A língua se torna fecunda, uma vez que representa o lugar
da manifestação da identidade através da conjugação de elementos multiculturais e
plurilinguísticos.
Kourouma assume a identidade literária africana baseada na oralidade ao evocar
elementos da literatura oral em seu texto escrito: o ritmo da narrativa, os provérbios, a
função fática, as repetições comprovam que a escrita e a oralidade podem conviver no
mesmo texto. Ademais, as nuances lexicais do malinké e as referências culturais
africanas abrem ao idioma francês a possibilidade de representar uma paisagem e um
imaginário além de suas fronteiras nacionais.
“Os malinquês, essa é a minha raça” (A, p. 10).
“Cette surconscience est aussi une conscience de la langue comme espace de fiction voire de friction:
soit un imaginaire de et par la langue” (GAUVIN, 2003, p. 19).
173
174
139
Esses desvios linguísticos e a exploração criativa do plurilinguismo apontam
para um uso “menor” da língua, ou melhor, para uma literatura que “uma minoria faz
em uma língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 25). Como vimos, o
conceito de “menor” associado à literatura de Kourouma não remete a um sentido
pejorativo do termo; ao contrário, a “literatura menor” é aquela que contém “as
condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande
(ou estabelecida)” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 28).
Em um artigo citado anteriormente, acerca da definição de “literatura menor” de
Deleuze e Guattari, Karl Eric Schollhammer define da seguinte forma o sentido do
adjetivo “menor”:
“Menor” é aquela prática que assume sua marginalidade em relação aos
papéis representativos e ideológicos da língua e que aceita o exílio no
interior das práticas discursivas majoritárias, formulando-se como
estrangeiro na própria língua, gaguejando e deixando emergir o sotaque e o
estranhamento de quem fala fora do lugar ou de quem aceita e assume o nãolugar como seu deserto, na impossibilidade de uma origem
(SCHOLLHAMMER, 2001, p. 63).
Nesse sentido, a “minoridade” consiste em uma afirmação de sua marginalidade para
fugir dos modelos ideológicos totalizantes e majoritários, ao trazer para a literatura o
estranho, o não-canônico, o sotaque, o estrangeiro. Assim, Kourouma desterritorializa a
sua língua, para permitir a convivência de universos plurilinguísticos e interculturais.
Ao irrigar o idioma francês com a língua e a cultura malinké, o autor abre novos
horizontes para a possibilidade de manifestação de uma identidade africana na língua do
outro.
A noção de minoridade se torna ainda mais fecunda na análise da obra Allah
n’est pas obligé, tendo em vista a importância da voz narrativa centrada em um
personagem infantil na construção desse romance. A minoridade etária é manifestada
ainda através das recém-formadas nações africanas que, tendo nascido tardiamente,
ainda apresentam complexas tensões em relação ao processo de “destutela”. Essa dupla
minoridade etária – das crianças e das nações – revelam, na realidade, duas faces da
mesma moeda: uma vez que as nações africanas são instâncias problemáticas, que
apresentam dificuldades em encontrar soluções no presente para problemas históricos,
elas se tornam um ambiente propício para a deturpação do modelo infância verificado
na figura das crianças-soldados.
140
Além de revelar uma triste faceta da África descolonizada, a minoridade etária
está relacionada também a dois elementos cruciais para a compreensão da obra de
Kourouma: a história e a tradição. A criança-soldado aparece como a forma mais radical
e mais intensa das consequências desastrosas do passado sobre o presente. A cada
momento em que a voz extradiegética da narrativa é tentada a voltar ao passado, surge
novamente a voz de Birahima para lembrar que é o presente que interessa. Trata-se do
jogo entre passado e presente descrito por Gagnebin, citado anteriormente: “um trabalho
que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor e
atenção aos vivos” (GAGNEBIN, 2006, p. 105). A minoridade do narrador também põe
à prova o modo de narrar inspirado pelos griots, o que manifesta o jogo de Kourouma
com a tradição, revelador de uma sociedade que, tendo perdido as suas referências
morais e éticas, encontra dificuldades em compreender seus próprios valores.
Kourouma aposta, portanto, em uma postura de valorizar a tradição e buscar nela
pistas para a compreensão da identidade, porém, ativando o espírito crítico e
questionador a seu respeito. Essa perspectiva vai ao encontro das reflexões de Albert
Memmi acerca do papel dos artistas e intelectuais em meio à crise das nações
descolonizadas. Segundo Memmi, em um momento em que era imprescindível a
participação da camada intelectual para buscar soluções criativas para combater os
problemas, o que se verificou, na realidade, foi o oposto; ao invés de se engajarem
politicamente, os intelectuais optaram pelo silêncio, o que mergulhou as nações
africanas em uma profunda “letargia cultural” (MEMMI, 2007, p. 62). Ao ceder à
omissão, “eles [os intelectuais] renunciam à sua função específica, a de uma justa
avaliação das atuais carências coletivas, que é a condição prévia e necessária de uma
mudança salutar” (MEMMI, 2007, p. 50).
A atitude de Kourouma de lançar um olhar crítico em relação ao seu próprio
povo responde a essa missão dos artistas e intelectuais de rever e questionar as suas
práticas, suas tradições e seu passado, a fim Essa perspectiva vai ao encontro das
reflexões de Albert Memmi acerca do papel dos artistas e intelectuais em meio à crise
das nações descolonizadas. Segundo Memmi, em um momento em que era
imprescindível a participação da camada intelectual para buscar soluções criativas para
combater os problemas, o que se verificou, na realidade, foi o oposto; ao invés de se
engajarem politicamente, os intelectuais optaram pelo silêncio, o que mergulhou as
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nações africanas em uma profunda “letargia cultural” (MEMMI, 2007, p. 62). Ao ceder
à omissão, “eles [os intelectuais] renunciam à sua função específica, a de uma justa
avaliação das atuais carências coletivas, que é a condição prévia e necessária de uma
mudança salutar” (MEMMI, 2007, p. 50). de construir um presente mais consciente. É o
que constata Memmi ao afirmar o seguinte: “dizer a verdade a seu povo (...) não é
aumentar sua miséria, mas, ao contrário, respeitá-lo e ajudá-lo” (MEMMI, 2007, p. 51).
Assim, torna-se necessário pôr à prova a sua própria cultura e suas tradições para
denunciar uma cultura manipulada em favor de benefícios próprios – conforme ilustram
o personagem Yacouba e tantos líderes de guerra presentes no romance. Memmi
acredita que “a cultura viva recoloca permanentemente em questão as aquisições
tradicionais para experimentá-las, adaptá-las à inelutável transformação de todas as
sociedades” (MEMMI, 2007, p. 63). A cultura africana deve, pois, ser fértil para
responder às exigências do presente e não estéril a ponto de se dobrar aos interesses
pessoais.
Em suas obras, Kourouma não se propõe a sugerir soluções para os problemas
da África. No entanto, os seus textos cumprem a função de refletir sobre as tradições e o
passado, sempre em íntimo diálogo com o presente. A forte presença de elementos
históricos em seus romances cumpre a função de proceder a uma rememoração no
sentido de Benjamin: ver as “centelhas de perigo” da história. O testemunho
ficcionalizado de Birahima responde a um dever de memória que tem a finalidade de
lutar contra o esquecimento.
Os inúmeros fragmentos retirados dos romances e analisados ao longo desse
trabalho evidenciam que uma característica comum às obras de Kourouma é o tom
pessimista. Ao pintar um retrato terrível da África contemporânea, parece não deixar
nenhuma esperança respirar em seu relato. Dos acontecimentos, cada vez mais cruéis,
parece surgir uma fatalidade que impossibilita algum tipo de perspectiva otimista. No
entanto, ao convocar para o lugar central da narração uma criança, testemunha dos
eventos narrados, o autor revela a sua confiança depositada na história.
Não se trata, pois de uma história que comemora e celebra os eventos do
passado, mas de uma reconstrução histórica capaz de construir uma consciência
identitária ativa, isto é, que veja em seu passado as “centelhas de perigo” do presente.
Trata-se de uma história rememorativa, que não permite que se esqueça nunca das
142
condições limítrofes da condição humana às quais a guerra necessariamente conduz, ao
levar o ser humano a cometer atrocidades como essas: “Quand un Krahn ou un Guéré
arrivait à Zorzor, on le torturait avant de le tuer parce que c’est la loi des guerres
tribales qui veut ça. Dans les guerres tribales, on ne veut pas les hommes d’une autre
tribu différente de notre tribu” (A, p. 71).175 Ao relatar eventos terríveis como este, de
modo tão natural, Kourouma cumpre com o seu dever de memória para lembrar que a
busca e a problematização da identidade são importantes, porém, uma vez que a
identidade é concebida a partir da destruição da alteridade, as consequências são as
catástrofes relatadas no romance Allah n’est pas obligé.
A própria imagem de uma criança (in-fans) que é capaz de narrar os horrores da
guerra, conceber uma terrível banalização da morte (“on mourait comme des mouches
dans le Liberia de la guerre tribale” (A, p. 63)176), e ser, ela própria, responsável pela
morte (“j’ai tué beaucoup de gens avec kalachnikov” (A, p. 9)177), representa um
personagem inconcebível. Mais próximo da ficção do que da realidade, as criançassoldados assemelham-se a um monstro, a um Frankenstein. No entanto, sabe-se que elas
são profundamente reais e, inclusive, muito numerosas. O testemunho de Birahima é
uma criação ficcional, entretanto, ele alerta para uma situação real e até mesmo
corriqueira em muitos lugares. Enfim, ele representa a radicalização de um presente
afetado por marcas profundas e por uma exigência urgente de identidade. É nesse
sentido que se compreende a tarefa política de Kourouma, que se debruça a responder à
questão “quem somos?”, para poder lançar as bases da necessária reflexão “para onde
vamos?”. Em outras palavras, o testemunho ficcionalizado de Birahima, que trava um
intenso diálogo com a realidade, alerta para as “centelhas de perigo” do passado e suas
terríveis consequências no presente.
“Quando um krahn ou um guerê chegava em Zorzor, torturavam antes de matar porque isso, isso é a
guerra tribal que determina. Nas guerras tribais, ninguém quer homens de outra tribo diferente da sua
própria tribo” (A, p. 73).
176
“o povo morria que nem mosca na Libéria da guerra tribal” (A, p. 65).
177
“matei muita gente com kalachnikov” (A, p. 11).
175
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