aleena dança do ventre
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aleena dança do ventre
Trinômia: Os Diários de Clióphoros Lithokhthônio Carlos Leonardo Bonturim Antunes Índice Projeto Trinômia III Prefácio do Editor VI Livro Primeiro Sênnyl Oeste VII Hino de Agradecimento à Vida IX Canção Argiva dos Ferreiros XIV Arkhônida XXI Encômio a Aleena XIX Theogonia XXXII Origem dos povos de Lithos XXXIII Tithanomakhia XXXV Livro Segundo Sênnyl Leste XL I Provérbios de Kyô XLVI Costumes dos povos de Lithos LI Ode a Lady Lana LI Encômio a Náukles LII Canto Primeiro LVIII Livro Terceiro Telogaia LXIII Livro Quarto Sênnyl Sul LXX A guerra no momento em que esperamos LXXIX Oração Fúnebre LXXXIII Origem de Ôlethros LXXXV Lenda de Klauma e Guélos Livro Quinto Floresta de Gaia LXXXVIII XC Soneto de amor bucólico XCIII De Gaia os filhos mais venustos XCV Livro Sexto Sênnyl Norte XCVIII II Projeto Trinômia Em 2003, veio-me a idéia de mapear um novo mundo de RPG de uma forma diferente daquela pela qual são comumente feitos os cenários de campanhas disponíveis no mercado. Desta forma, ao invés de escrever um livro descritivo e impessoal a respeito de um cenário de campanha, dei início ao projeto de criar um mundo mapeado por seus próprios habitantes. Passei, a partir disto, a construir a personagem a quem caberia a missão de desbravar este novo território, cheio de mistérios e lendas. Pareceu-me inevitável que tal personagem fosse um bardo, um indivíduo a quem o dom das musas fosse familiar. Assim nasceu Clióphoros, nativo de Lithokhthôn, cidadela sacra do titã Lithos. Durante o ano que se seguiu, após ter escrito as primeiras páginas dos diários que Clióphoros teria deixado, resolvi que a melhor forma de terminar o mapeamento inicial de Trinômia era a de mestrar uma aventura neste novo mundo. Para tanto, produzi alguns rascunhos que servissem de base e orientassem a mim e aos jogadores, nos quais descrevia de forma simplesmente informativa, tudo o que tinha pensado até então. A experiência foi muito produtiva e auxiliou-me tanto a terminar a construção do mundo, quanto a produzir a teia de tramas em que se entrelaçam as personagens antagonistas de Trinômia. III De volta à escrita, continuei os diários de Clióphoros, e, junto a este trabalho, fui compondo os poemas, as histórias, os textos proverbiais, e todos os outros que o bardo juntara durante suas peregrinações pelo mundo. O intuito era o de, além de criar um mundo apenas com textos que nele existiam, enriquecer Trinômia com lendas e canções tradicionais, as quais, por um lado, dão-lhe a cor e a vida que tem, e, por outro, fazem da experiência de jogo mais do que diversão. Esta, com efeito, é uma das propostas que tenho com este trabalho: a de fazer das sessões de RPG uma experiência enriquecedora para mestres e jogadores. Disto advém também a questão da mutabilidade do mundo, a qual logo na primeira campanha eu expus ao jogadores, dizendolhes que as ações de seus personagens plasmaria o futuro de Trinômia, e que, mais tarde, iria mestrar uma nova campanha, alguns anos no futuro, para que eles contemplassem o resultado de seus esforços. Mais uma vez, com isto, busquei fazer do jogo não apenas uma atividade prazerosa, mas que também exercitasse a responsabilidade e o planejamento futuro daqueles que fizeram parte da aventura. Depois de terminado o texto, tive infelizmente a impressão de que os leitores careceriam de informações contextuais e mesmo de maior explanações acerca da origem de nomes, lendas e intrigas. Esta impressão só veio a se intensificar conforme recebia as críticas construtivas dos amigos que leram o resultado primeiro. Por conta disto, vim a criar uma segunda personagem para os diários, alguém que haveria tido o trabalho de preparar o texto a seus leitores um elfo de Sênnyl Norte, mago e bibliotecário. Desta forma, ao final de cada parte do diário, podem-se ler as notas que Animavis deixou a IV fim de esclarecer as partes mais obscuras do livro. Além de evidenciar e colaborar na elucidação dos fatos, as contribuições do mago também criam uma nova dimensão no livro a partir de sua leitura e interpretação daquilo que ocorreu, enriquecendo, desta forma, a experiência do leitor. Nos textos que virão depois dos diários, pretendo manter a mesma filosofia, sempre criando novas personagens para escrever acerca do tema que desejo fazer de conhecimento dos jogadores. Por fim, menciono a última de minhas propostas, e não menos importante, a qual diz respeito também a esta maneira pela qual grafei os textos de Trinômia: o intuito fazer com que os livros escritos por estas personagens fossem textos literários que possam ser lidos e apreciados, pelo simples e puro prazer de se contar e ouvir histórias, mesmo por aqueles que não são jogadores de RPG. Espero que todos se divirtam e que, de alguma forma, Trinômia lhes sirva de experiência para a vida. Leonardo Antunes 14 de novembro de 2004 V Prefácio do Editor Ao ano DCXLII de Kyô, tendo se passado cinqüenta anos desde a morte do famoso bardo, faz-se editar, por vontade de Sua Excelência, o arquimago Fatus, a versão revista e comentada dos presentes diários, tendo sido até agora desconhecida de nós todos sua existência. O trabalho de Clióphoros Lithokhthônio na pesquisa e documentação dos povos, da cultura e da história de Trinômia sempre pareceu, aos olhos do alto círculo dos magos, um dos mais detalhados dentre os que dispomos. Assim, considerou-se que deveriam ser dados ao conhecimento públicos os estudos nele presentes, para que façam parte de nossa biblioteca e dos textos de Iniciação. No entanto, muitas de suas observações e opiniões mostram-se deveras duvidosas. Em vista disso, ao final de cada um dos pequenos livros, o jovem Iniciando nos mistérios de Stratos poderá encontrar notas de extrema utilidade acerca dos nomes e do contexto de cada uma das viagens do autor. É preciso que o Iniciando se esforce para compreender, em diversas passagens, a linguagem rebuscada e fora de data do bardo. Principalmente, também, há de se preocupar em desvendar aquilo por trás da opinião pessoal do autor, buscando sempre a verdade essencial a todos os fatos. Este é o caminho da verdadeira magia e somente dominando-o poderá ser digno perante Stratos, lorde dos ventos e titã protetor de nossa Sênnyl Norte. Animavis, Guardião dos Tomos do Poder XXVII de Telé de DCXLII VI Livro Primeiro - Sênnyl Oeste “É olhando através dos olhos do outro que adquirimos o conhecimento mais profundo.” VII I Confesso que a saudade de nossa terra pátria já me vinha prolongando as noites de insônia muito antes de que a notícia da enfermidade de teu pai me alcançasse os ouvidos de ancião. Por isto agora, jovem príncipe, eu sinto que é o momento de organizar os pensamentos e lembranças dos tempos em que errei pelas terras de nossa vasta Trinômia, para que, quiçá, estes lhe nutram o espírito com a luz e a profundidade necessárias ao peito incólume do grande rei que em breve tu serás. Quanto a mim, talvez desta maneira eu encontre a desejada paz, fazendo com que a culpa que me sobrepuja os ombros neste triste fardo se apequeneça, nem que o seja em muito pouco... Perdoa-me, ainda, se te disser, por vezes, aquilo que de cor já sabes, mas também te escrevendo estas memórias eu revivo os dias felizes que passei junto dos nossos. I. Segundo o que nos contou, Clióphoros, cujo nome significa, na língua titânica, “Portador-da-história”, e seus compatriotas passaram a valerse da escrita somente há poucas décadas, de modo que a transmissão de todo o corpus cultural se dá, mormente, pela comunicação oral, passando assim dos mais velhos aos mais novos e guardando-se nos campos da memória até que chegue a hora de também a geração seguinte ouvir aquilo que seus antepassados fizeram. II Ao contar-te estas histórias, meu senhor, hei de empenhar-me, tanto quanto assim me for possível, em relatar com fidelidade a cultura e os costumes dos diferentes povos com que convivi. E, na medida em que a memória mo permita, eu te falarei acerca de tudo aquilo que vi e ouvi, da grandeza dos mais variados povos deste mundo e de seus monumentos, dos mitos que inspiram seus ânimos e dos ensinamentos que os mais velhos passam às gerações mais novas, perpetuando os feitos e as lendas dos heróis de I antigamente. III Começando pela causa, pois que ela é a estrada de encontro à qual todos os longínquos caminhos dos reinos por que andei se vão, eu te digo, príncipe, que foi aquele evento que delineou o fim de nossa era e criou o palco para a maior das catástrofes jamais vivenciadas pelo gênero humano: a morte e queda de Hélios Oriental, o menor dos três sóis a acalentarem nosso planeta. VIII II. A origem deste nome me é desconhecida. Ao que me parece, esta linhagem de reis, há três gerações, deve ter adotado um nome fictício, fugindo da tradição de seus antepassados. Certamente, isto se deu por intermédio de Wildegan, ele que mudou seu nome para outro sem significado algum. É preciso que o jovem Iniciando se lembre da força por trás do nome de cada um de nós. Com efeito, o nome verdadeiro, aquele que pode ser proferido somente no plano etéreo e que traz a chave para o íntimo dos seres, este tem ainda maior poder. Todavia, não se deve menosprezar o poder interpretativo que os nomes trazem consigo, pois são parte intrínseca da personalidade de todos nós, moldando-a de forma definitiva. Desta forma, ao não se dar seu nome de nascença, alguém consegue prevenir que se descubra sua verdadeira personalidade logo ao conhecê-lo. III. É extremamente curioso o fato de que todas as culturas de Trinômia façam uso de um mesmo calendário, ainda que tenham surgido por intervenção de forças primordiais diferentes. Pelo que soubemos de Clióphoros, os orientais já se utilizavam do calendário desde sua origem. Como é de conhecimento popular, eles são os habitantes mais antigos ainda vivos em nosso mundo. Disto, só se pode concluir que o calendário teve origem em Kyô, o pai dos orientais, ou em Gaia, a mãeterra. IV O início de minha viagem, no entanto, remonta ainda a uma época bastante feliz, durante o reinado de Äschnor IIIIIsobre o burgo de Fláurin, em nossa Sênnyl Oeste, ao final do tempo em que, a pedido deste rei, eu me hospedara em sua corte, a fim de que a todos entretivesse com minhas canções e historietas. Terminado o banquete daquele auspicioso primeiro de Arkhé,III lá estava eu no centro do salão de festas, entoando o Hino de Agradecimento à Vida, típico àquela data especial. Hino de Agradecimento à Vida Tantas dádivas brotam do seio da terra! Ó mãe Gaia, por ti gratidão todos temos, Pois é tu quem confere este pão que comemos, Embebido no vinho que o cálice encerra! Solta um grito de júbilo e amor! Salve o inefável senhor deste mundo! Ápeiron, dá-nos viver em teu reino! Aos pequenos e grandes amigos da terra, Protetores fiéis, a vós agradecemos! Sempiterna é a graça brilhante que vemos Incrustada nos montes grisalhos da serra! Solta um grito de júbilo e amor! Salve o inefável senhor deste mundo! Ápeiron, dá-nos viver em teu reino! IX IV. Vide nota 2 Wildegan era conhecido, em Sênnyl Norte, antes de ser banido por alta traição, como “Canis Infirmus”, pois que, apesar de ser ousado como um cão, era dentre todos os jovens de sua época, o mais fraco. V. Modo pelo qual Clióphoros, em sua ínfima erudição arcana, denomina as viagens etéreas tão comuns aos praticantes de nossa “ars magica”. Wildegan, assim como todos os magos de Sênnyl Norte, tinha domínio sobre a arte de projetar seu euverdadeiro, conscientemente, no plano etéreo, e lá aprender e plasmar o mundo conforme sua vontade. Infelizmente, ele jamais soube ser comedido em seus intentos. VI. Wildegan faz uso de uma alegoria bastante engenhosa para dar início a seus planos. É de suma importância que o Iniciando aprenda e domine também este método de persuasão. VII. Com efeito, o equilíbrio entre os três sóis sempre foi importante para a vida em Trinômia. No entanto, há muitos e muitos séculos, desde o início das contendas entre os primevos, os sóis já não se encontram alinhados em harmonia. E talvez ainda hoje eu estivesse naquele amplo paço, com suas arcadas de pedra e os nobres altivos dançando, não houvesse Wildegan,IV o mago real, irrompido do arco leste, esvoaçando seu manto aureopurpúreo. Silenciou-se meu alaúde e a corte por inteiro. Äschnor III ajeitou-se no trono. Em seu cenho majestoso, apesar dos traços agrestes de um homem-de-armas, olhos glaucos fitaram um Wildegan ofegante, que, não tardando, proferiu-lhe o resultado de suas últimas incursões hipnógenas:V “Senhor rei, foi-me mostrada em sonho uma cena de difícil interpretação, embora eu próprio não tenha dúvidas quanto a seu verdadeiro significado. Conto-vos tal qual o vi: um grande urso, à sombra de uma árvore, alimentava-se do mel aurífluo de três colméias de tamanhos progressivamente menores. Sem escrúpulos, o animal acabou por atacar a mais diminuta destas com a mesma intensidade investida contra a de maior tamanho. Não lhe suportando a demanda, tombou por terra esta pequena colméia, cujas abelhas não tardaram a molestá-lo com ímpeto destrutivo, causando-lhe morte com o veneno acumulado VI pelas muitas picadas.” V Respondeu-lhe o rei, meneando a cabeça, que concluísse o que tinha a dizer: “Nosso terceiro sol está morrendo. Já desde algum tempo atrás venho percebendo mudanças em sua irradiação, embora jamais houvesse esperado que fossem oriundas de um problema tão grave, pois, como sabeis, o equilíbrio da irradiação dos três sóis é mister para a vida tal qual a conhecemos hoje.”VII VI Convocou-se o conselho, para o que não se perdeu muito tempo, uma vez que todos os membros já se ali encontravam por ocasião das festividades. Durante toda uma tarde discutiu-se a questão, fazendo-se ouvir as opiniões dos mais sábios de nosso reino. X VIII. É simplesmente risível que se chame de sábio alguém como Pantagnosko, ainda que seu nome signifique “Sabe-tudo”. Sua força sempre adveio pura e simplesmente do favorecimento que os primevos lhe concediam. Ele próprio passou sua vida vivendo de forma comedida e pseudosanta. Os Iniciandos devem ser extremamente cuidadosos no que concerne os ensinamentos deste homem. IX. Como o jovem Iniciando pode imaginar, um mísero comando mental proferido no reino etéreo faria com que Clióphoros deixasse cair por terra seu alaúde. O bardo jamais se iniciara nos segredos arcanos, pois que só aqui em Sênnyl Norte eles são divulgados abertamente, de modo que seu eu-verdadeiro sempre esteve aberto a quaisquer influências externas. X. Certamente, por meio de um ritual, Wildegan havia preparado tal bastão para que se lhe tornasse um terceiro olho, de modo que pudesse acompanhar os progressos de Clióphoros e mesmo manifestar-se, projetando um corpo ilusório, a partir deste. É triste a forma pela qual o bardo é ludibriado, mas ela deve servir ao Iniciando como exemplo do que há de ser seu futuro, caso não apreenda corretamente os ensinamentos de sua Iniciação. Um deles, Jahnor, comerciante das excelentes vinhas de Cádvan e, por conseguinte, homem de muitas viagens, deu fim às dúvidas quando se levantou de seu assento, proclamando a todos ali presentes: “Meus bons senhores de Fláurin, nobre rei Äschnor, ouvime no que tenho a dizer. Todos sabeis que conto, além de tantos anos, viagens por quase todos os reinos amigos. E, numa destas minhas andanças pelo mundo, vim a conhecer um homem de VIII sabedoria inigualável, o venerando Pantagnosko de Telogaia. Tal é o homem que devemos consultar. Eu próprio o visitaria, não me quebrantasse tanto o peso dos anos. Assim, como me vejo impossibilitado de performar tão grande uma viagem, eu que conheço o guia para o retiro do ancião, penso que seja possível escolherdes, para empreendê-la, alguém talhado à empresa.” VII E foi então que algo de prodigioso aconteceu, um presságio, nas palavras de Wildegan, infalível. Por ação do destino, escapou-me às mãos o alaúde paterno, presente de longa data, estilhaçando-se no pavimento pedregoso.IX Argüiu o mago real que este seria um novo marco em minha vida, pois, dali em diante, eu deveria abandonar o âmbito das cortes, expandindo minha vista para além do cinturão de montanhas que circundam a amada Fláurin. VIII Desta arte, ao amanhecer recebi toda a sorte de presentes caros a viajantes: belas capas, botas resistentes, uma mochila impermeabilizada com cera, e um bastão cujo extremo superior, feito de prata, fora esculpido no formato de uma pequena águia.X Tendo sido magicamente imantado, tal adorno funcionava como uma bússola de alta qualidade. Estes foram os dons que me acompanharam durante minhas viagens. Assim termino a XI XI. A mineração é o processo por meio do qual os homens atrasados de Sênnyl Oeste extraem minérios para construir suas casas e produzir toda sorte de utensílios. Eles se valem de ferramentas de metal, com as quais golpeiam a montanha a fim de que se soltem partes dela. É-me incompreensível como isso pode agradar Lithos, o rei da montanha. De fato, os ocidentais e seu titã nutrem costumes estranhíssimos. Quando interrogado a esse respeito, Clióphoros disse que tudo se explicava através da virtude do sacrifício. XII. Os significados dos nomes destas cidades são, respectivamente: “Chão-depedra”, “Dourada”, “Bronzeada”, “Prateada”, “De aço”, “De pedras preciosas”, “De ferro”. O apelido Fláurin não tem qualquer valor semântico a meus olhos, apenas Sideréon o tem, sendo seu significado o último dos supramencionados. XIII. Segundo o que viemos a saber do bardo, Khrýsea e Argýrea foram, respectivamente, os lares da geração dos homens de ouro e de prata, sendo aqueles os filhos de Gaia e estes nossos irmãos, nascidos de Ápeiron. Com efeito, os homens ocidentais e os sulistas nasceram dos titãs Lithos e Pyros, enquanto nós de Ápeiron e os orientais de Kyô. Durante as grandes guerras, essas duas cidades foram completamente destruídas, e, com o tempo, seus tesouros foram pilhados, de modo que hoje muito pouco explanação da razões pelas quais empreendi a maior jornada jamais feita. IX Sob o olhar votivo de Äschnor, do alto de seu castelo, tomei a Estrada de Lithos, a qual secciona em dois o reino de Fláurin. Este é o grão-protetor epônimo de Sênnyl Oeste, pois em nenhum outro cantão abundam em tão grande magnitude as formações rochosas e outros recursos minerais. Não é de se espantar, portanto, que sejam tão dados à mineração os seus habitantes.XI X Sênnyl Oeste é composta de sete burgos principais: Lithokhthôn, Khrýsea, Khalca, Argýrea, Adámantos, Lykhnidos, e Fláurin,XII sendo este último também conhecido por Sideréon devido à ocupação de seus homens.XIII De fato, Fláurin é a cidade dos ferreiros. Quando se caminha sobre os ladrilhos pétreos de suas veredas, dificilmente se encontra um ponto de onde não se consiga avistar ao menos três ferrarias. Louvável é o talento daqueles homens e a maneira que encontraram para se manter em atividade sem nunca terem de competir uns com os outros por clientela. XI O mais admirável, contudo, é que sequer houve um acordo explícito para tanto. A experiência, tão-somente, ensinou aos habitantes de Fláurin a buscarem um ofício de especialização diferente da de seu vizinho. Com efeito, todos manejam proficientemente a calcurgia,XIV por serem desde pequenos ensinados a trabalhar o mais copioso dos metais. Quando, porém, atingem a maioridade, procuram um mestre que lhes possa ensinar as técnicas avançadas que almejam. XII resta delas. XIV. A arte de forjar armas, armaduras e outros mais artigos metálicos feitos de bronze. XII Sendo a maior produtora de artigos metálicos do mundo conhecido, Fláurin abriga os mais diversos tipos de ferreiros, desde os muitos produtores de armas e armaduras férreas, até joalheiros, ornamentadores, e criadores de artigos mágicos. XIII Quando por primeiro cheguei à cidade, ainda na flor de minha juventude, fui recebido na casa de Árgon,XV um senhor robusto e de traços duros, como todos em Fláurin, cujas cãs permanecem sempre presas num rabo-de-cavalo. Poucas vezes em minha vida convivi com um homem tão humilde e agradável, malgrado ser, sem dúvida alguma, o melhor argurgistaXVI vivo. Além da arte com a prata, Árgon acumulou durante os anos de sua vida, graças à simpatia que lhe é inerente, um número infindo de histórias a ele contadas por viajantes. Sua casa se encontra perto da entrada da cidade, logo após o portão de bronze e das altas muralhas que se estendem como braços das montanhas circunvizinhas. Trabalhando em seu pátio, ele passa os dias a observar os que vem e vão, e, quando acontece ser alguém vindo de longe, ele o saúda com sua jovialidade, e sempre acaba por aprender algo novo. XV. O significado de seu nome, na língua titânica, é “Prateado”. Os ocidentais e os sulistas somente valem-se desta língua para comunicarse. Os orientais, por sua vez, aprenderam com Kyô sua linguagem, sendo esta uma das mais antigas de Trinômia. Nós, em Sênnyl Norte, somos os únicos a usar a língua de Ápeiron, a qual foi criada a partir de um simulacro da linguagem universal dos planos. XVI. Aquele que trabalha em forjar a prata. XIV Encantou-lhe o imo peito as canções e historietas com as quais o agradei naquele meu primeiro dia em Fláurin, de modo que me ofereceu um quarto em sua bela casa. XV Há uma opulência considerável em sua cidade, embora os homens nunca acumulem muito mais do que lhes é preciso para viver. Por isso, suas casas são agradáveis e belas de se ver. Sobre as bases de pedra erguidas a meia-altura, são construídas as paredes de madeira bruta, conferindo rigidez ao conjunto. Os telhados são XIII igualmente de madeira, e em toda parede há sempre uma janela que derrame a luz melíflua do sol para dentro do ambiente. A matériaprima para tais construções advém, mormente, dos bosques a leste de Fláurin, num vale em meio aos montes de Báinon.XVII XVI As mulheres desta cidade tem o costume de manter canteiros de flores exóticas sob as janelas. Naturalmente, estas mudas são adquiridas com comerciantes vindos de outros reinos, pois em nosso país a terra fértil é de uma raridade surpreendente, quando comparada a Sênnyl Sul e outros cantões ainda mais distantes. De fato, a compra de plantas, terra escura para as mesmas, e alimentos diversos, dentre eles o vinho e o pão, formam a maior parte das importações de Sênnyl Oeste. XVII. Báinon, cujo nome significa “Caminhante”, nasceu nos tempos de Anaxândron e, a mando deste rei, explorou as montanhas a leste de Fláurin, e nelas descobriu um amplo vale em que se podiam ver árvores e alguns animais menores. XVIII. Seu nome significa “Verdade”. Doravante, deixo avisado ao Iniciando que, quando tudo que tiver de comentar sobre alguém se limitar à origem de seu nome, apenas o explicitarei entre aspas. XIX. “Nobre-bigorna”. XVII Por lhes faltarem mais tarefas em que ajudar seus maridos, as mulheres de meu país, além de cuidarem dos filhos e dos vários afazeres domésticos, dedicam-se ao aprendizado de línguas estrangeiras e suas respectivas literaturas e filosofias. Por elas são as crianças, desde a mais tenra idade, ensinadas a ler e a escrever. XVIII E foi esta a primeira cena que presenciei ao entrar na casa de Árgon naquele dia. Alétheia,XVIiI sua esposa, ensinava ao pequeno AristákmonXIX a antiga Canção Argiva dos Ferreiros. Canção Argiva dos Ferreiros Sete cidades, de Lithos no dêmos. Prata, ouro e bronze, no ventre de outeiros. Em cada braço de Fláurin, um ferreiro, XIV Para que as graças de Lithos moldemos! Em nossas ruas as pedras cosemos. Limpas, as casas de pedra e madeira. Soam bigornas e o fogo lareiro, A cada vez que no ferro batemos! Vamos, amigos, ao pátio voltemos! O Sol dos montes desponta bendito, A conclamar por que nós trabalhemos! Eis que já ouço do ferro o atrito! Vamos, amigos, ao pátio, voltemos, Para cuidarmos da arte de Lithos! Conforme me viram adentrar o recinto, timidamente cessaram o canto que vinham entoando, mas, sob pedidos meus de que dessem fim à bela melodia, assim o fizeram. XIX Terminada a canção e tendo as devidas apresentações sido feitas, retribui-lhes o gesto, com algumas de minhas próprias composições, as quais utilizei para ilustrar o caminho por mim percorrido até Fláurin Sideréon. A tais canções voltarei mais adiante em meu relato, pois parecem-me mais dignas de ocuparem este espaço as histórias que me foram contadas por Árgon, em especial, a XX Lenda de Ucknatar, por versar sobre tantos aspectos do espírito humano e, principalmente, dos antepassados flaurinos. XX. O nome não tem significado algum, assim como a lenda que lhe diz respeito. XXI. “Belo-homem”. XXI XX Ucknatar vivera durante o reinado de Kalandros, XXII XXIII filho de Yor, filho de Anaxândron, primeiro rei de Fláurin. A XV família real dos anaxandrinos retém, com justeza, até hoje o mando sobre este povo, tendo reinado por nove gerações. XXI Ao primeiro destes reis, é atribuída a criação do código de leis de Fláurin, segundo o qual ainda em meu tempo vivia a cidade. Também foi Anaxândron, inspirado por Lithos, quem ensinou os homens flaurinos a serem artífices dos metais, tendo ele próprio descoberto a medida para a liga brônzea. XXII Yor, por sua vez, parece ter sido um homem de grande visão empreendedora, pois foi ele quem fez construírem-se as extensas estradas de pedra, as quais, saindo do coração de Fláurin, no vale do Nyr,XXIV serpenteiam pelas montanhas de Báinon, o explorador, espraiando-se por todos os reinos de Sênnyl Oeste. Com tal advento, uniram-se em aliança os burgos destes cantões, firmando-se, assim, as rotas de comércio interno de metais e os câmbios de conhecimentos, dos quais Fláurin adquiriu, em nossa Lithokhthôn, a arte de erguer estruturas de pedras. XXII. Nome sem significado a meu ver. XXIII. “Rei-doshomens”. XXIV. É o vale que secciona o reino de Lithos, dando acesso às cidades que lá se encontram. XXIII Uma vez florescente, a cidade encontrou-se, nos tempos de Kalandros, em terríveis circunstâncias. Como sabes, o solo rochoso de Sênnyl Oeste é bastante infértil, crescendo nele, salvo exceções, apenas hortaliças e musgo. Dependiam, portanto, os habitantes de Fláurin exclusivamente das aves para se alimentarem, mas mesmo estas não existem em grande número em nosso país, por também elas não terem quantidade suficiente de alimentos com que se nutrirem. Deste modo, quando do reinado de Kalandros, os flaurinos contavam com mais bocas do que Lithos jamais lhes poderia alimentar. XVI XXIV Na esperança de resolver-se a agrura, a assembléia foi convocada, costume recém-criado pelo regente, o qual também deu aos flaurinos uma praça em que se reunirem para tais ocasiões, toda feita em mármore e ouro, com uma fonte central e diversas bancadas ao redor. XXV Ucknatar era, ao contrário do que se pode esperar de um flaurino, avesso às artes de Lithos. Conta-se ainda que também não se podia comparar aos demais concidadãos no tocante a porte e estatura. Até então, havia sido um fardo para a cidade e motivo de vergonha para os seus. XXVI Sentindo-se infeliz, tomou um pedaço de madeira encontrado ao léu e dele se fez um bordão. Indo até o portão da cidade, lançou-o aos céus, decidido a tomar o caminho que lhe fosse apontado quando o bastão tombasse por terra. Titubeou ao contemplar o resultado: para além do horizonte rochoso, a XXV extremidade côncava apontava, em direção a Telogaia. XXVII Ouvindo, entretanto, a risada de escárnio que os guardas da cidade lhe dirigiam, decidiu que não havia, de fato, coisa melhor a fazer. XXVIII Quando da ocasião da assembléia, havia dois anos que ele partira rumo ao nada. Podes imaginar, então, meu príncipe, o quão espantados não ficaram os flaurinos ao avistarem, adentrando o portão citadino, Ucknatar à frente de uma caravana mercante? XXV. “Fim-do-mundo”. XVII XXIX Segundo o que lhes contou, descobrira um novo reino ao leste, cujas campinas verdejam oito meses ao ano e flores nascem por todos os cantos. XXX Eis, portanto, como Sênnyl Oeste veio a criar rotas comerciais com Sênnyl Leste, e como, movido por um desejo de fazer-se digno, Ucknatar salvou sua cidade de um ocaso prematuro, dando valor a si próprio entrementes. XXXI Muito me impressionei ao ouvir tal lenda e até hoje ainda me impressiona, por ter Ucknatar, uma vez descoberta a rota para novos reinos, regressado a sua cidade com a caravana mercante, para restabelecer sua glória perante os seus. E é justamente a glória um dos pontos mais marcantes do povo flaurino. XXXII Deixei-te um suspiro em devaneio, ó Fláurin, ao cruzar teus portões e muralhas ancestrais. E, quando dei por mim, volvendo o olhar acima da crista pedrosa que coroa a cidade de Äschnor, nuvens outonais flambavam o horizonte até onde os olhos podiam alcançar. O caminho à minha frente levou-me de volta à terra pátria, Lithokhthôn, em busca de Phéron,XXVI o homem que Jahnon me aconselhara a tomar como guia durante minha jornada até Telogaia. XXVI. “Que conduz”. XXXIII Uma súbita alegria me arrebatou o imo peito quando, após serpentear as últimas curvas na orla dos montes, vi erguer-se a antiga Cidadela de Lithos, como enormes estalagmites negras justapostas, diante de meus olhos saudosos. XVIII XXXIV Uma caminhada de uma semana me conduzira de volta à terra pátria, pela qual meu coração ardorosamente chorara e mais ainda hoje chora durante os três anos em que me ausentei de lá. Suas ruas retilíneas me receberam com a mesma plácida austeridade com que se me despediram três anos antes. Construída como o templo supremo de seu protetor, Lithokhthôn jamais se fiou em muralhas com que se proteger, embora nossos homens, feitos como enormes torres de pedra, quase possam ser considerados como tais. Suas armaduras negras refletem a severidade em seus olhos e cabelos escuros, enquanto os emblemas rubros de suas vestimentas e as longas capas de mesma tonalidade ressaltam o ímpeto jovial de seus modos e o próprio tom avermelhado de sua tez. XXXV Segundo a tradição, a mão de Lithos ela mesma ergueu-se do âmago dos montes para assentar as fundações da cidadela. De fato, não se poderia explicar de outra forma a organização das pedras colossais que constituem o edifício. Nove gerações de homens trabalharam tais pedras, conferindo-lhes a forma que hoje possuem. Respeitando a constituição estalagmítica natural das rochas, nossos irmãos esculpiram a cidadela nossa de forma simples e harmoniosa. De suas três torres, finas correntes de água brotam, serpenteando ao longo do palacete até unirem-se no espelho d'água que o cinge. E, naquele dia em que retornei, o pôr-dosol concedia um púrpura rutilante à água nas correntes, dando vida à robustez das pedras. XXXVI Com efeito, mais do que em qualquer outro lugar de Sênnyl Oeste, os recursos hídricos abundam em Lithokhthôn. Duas grandes cachoeiras traçam os limites leste e o oeste da cidade, e os cursos de suas águas, numa meia-lua, tangem-se no termo sul, face XIX à grande cidadela. Da união de suas águas, quase no cume Lithokhthôn, e por conseguinte de toda Sênnyl Oeste, nasce o magno Sôndir, o rio que cruza nosso país em direção ao Mar Pétreo. XXXVII Devido à grande riqueza mineral dessas águas e aos ensinamentos dos pequenos guardiões de sua cidade, os habitantes de Lithokhthôn logo aprenderam a plantar hortaliças sobre as pedras irrigadas, tarefa à qual suas mulheres até hoje se dedicam, alimentando todos os cidadãos e exportando o excedente para nutrir as demais cidades do reino. XXXVIII Como em todo o restante do país, Lithokhthôn abriga uma quantidade ínfima de gado, sendo os ovinos o único grupo de número mais significante. Não obstante, o uso desses animais é quase que exclusivamente reservado à extração de lã para roupas. XXXIX As crianças, desde pequenas, são encorajadas a aprender a arte da guerra e a exercitar seus corpos em jogos e competições. Àqueles, entanto, que não se mostram aptos a tal vida, resta optar, não sendo de forma alguma considerados inferiores por isso, entre a engenharia, a arquitetura e a geologia. XL Aos guerreiros, incansavelmente, dia e noite, é ensinada a virtude do sacrifício. Como nenhum outro povo conhecido, os homens de Lithokhthôn entregam-se por inteiro ao serviço de seus ideais. O primeiro dos comandantes, Árkhon I, institui-nos a máxima segundo a qual vivem todos nossos homensXX de-armas: “Mal nenhum alcançará aquele que, tendo o corpo firme no solo, onde Lithos demora, se torne um com a terra; seja em vida, seja em morte.” XLI De Árkhon I, contam-se inúmeras memoráveis, as quais versam tanto sobre seu valor guerreiro, quanto sua jovialidade eutrapélica. Um dos costumes mais louváveis dos nossos em Lithokhthôn é o de sempre manter vivas as historietas de seus antepassados, contando-as aos mais novos, na forma de canções, ao cair da noite em torno de uma fogueira. E, dentre todas as formas de sabedoria e de narrativas pitorescas, a Arkhônida é, de longe, a predileta de nosso povo. Arkhônida - Mordakmakhia I Fazei silêncio, amigos, para que na glória Do povo nosso possa vos cantar a ingente Saga de Árkhon Primo, o louvável regente, Senhor-da-guerra e mestre da arte oratória, II A quem Lithos deu força, para sobre os nossos Reinar com impecável justeza e amor, A fronte íntegra, olhos de alvejador, XXI E o porte, a majestade altiva de um colosso. III E é acerca dele que hoje, à sombra deste monte, O mesmo monte que lhe deu abrigo há tantos Séculos, eu vos narrarei em doce canto A batalha de Árkhon e Mórdax na ponte IV Leste, ao final do ano em que a mão de Lithos Irrompera da terra, criando a cidade De nossos ancestrais, dando termo à idade Nômade e início ao nosso período bendito. V Por um septênio já haviam se medido Nossos homens de Lithokhthôn e as hordas De Mórdax, pura força de ódio e balborda, Pelas sendas internas dos montes de Ido, VI E do alto da montanha o magno rio Sôndyr XXII Pulsava com o sangue de nossos avós, Quando em meio aos corpos pronunciou-se a voz Do rei a quem as preces nossas hão de ir. VII Erguendo-se da massa amorfa em sangue imunda, O vulto majestoso de um paladino Abrupto irrompeu do ventre vespertino E palavras aladas disse em tom profundo: VIII "Mataste agora o último de meus soldados. Do sangue de meus pares não derramarás Nem uma gota mais sequer. Monstro mordaz, De Mórdax com acerto foste apelidado, IX Pois na extensão toda da vasta Trinômia Nem homem, nem anão, nenhum elfo ou drago Supera-te em vileza. Sus! Não vês que trago Em mim a grande insígnia, tal qual encômio, X XXIII Do senhor da montanha, o plenipoderoso Lithos? Nos dias teus um fim há de ser dado. Afasta teus guerreiros, prepara o machado. Lutemos até a aurora se assim for forçoso. XI Neste solo um de nós cairá." Desta arte Conclamou nosso rei, e da bainha ornada Com prata incorruptível a montante espada Desembainhou. Lançando-se da alta parte XII Dos montes, a extensão da ponte ele se pôs A percorrer. Os passos lentos e seguros Guiavam-no em sua negra armadura. Atrás de si a luz da lua logo expôs XIII O símbolo de Lithos em sua capa austera. Tudo a seu respeito inspirava ardor Em seus compatriotas, e ao imigo, a dor Vindoura pelo olhar que até na morte impera. XXIV XIV Do outro lado desta ponte, entanto, achava-se O arauto máximo da cólera infernal, A nêmesis de um povo, o ápice do mal, A força hedionda que Mórdax chamava-se. XV Um urro horríssono ao alto céu se alçou E a besta feita toda em carne e fogo e horror, Na ânsia por matar dos nossos o senhor, À frente em carga insana logo se lançou. XVI A cada passo Mórdax estremecia a terra Sob esta mesma ponte pétrea que ainda integra A nossa cidadela sob a fenda negra. Aqui, no sacro solo de Lithos a guerra XVII Teve fim, quando Árkhon, tendo visto o avanço De seu imigo, pôs-se à sua espera, a espada Montante, ingente, muito bem nas mãos firmada, De modo que sua carne e o aço eram só XV XVIII Um, enquanto do mal o mensageiro vinha Em sua direção, saltando com as presas Prontas para trazer a morte à nossa alteza. O último raio dos três sóis acima tinha XIX Iluminado o Sôndyr quando o frígido aço Do machado fincou-se no solo e a ponte Toda por pouco não cedou, quando defronte À besta esquivou-se Árkhon com um passo, XX Salvando assim a vida. Um segundo estrondo Espraiou-se na escuridão quando o metal Da espada trespassou o arauto do mal, A adamantite refulgente se expondo XXI Nas costas da criatura, tendo perfurado O corpanzil disforme, por ter feito uso O príncipe do modo bruto e difuso Com que se atirara, brandindo o machado, XXVI XXII O inimigo de forma que sua própria sanha Fez que se lhe cravasse a espada nos pulmões. O seu grito de morte foi como trovões Incontáveis, rasgando da terra as entranhas. XXIII Ali jorrou seu sangue em lava interna, Corrompendo-se a si e a Árkhon Primeiro, Deixando a nós estátuas de bravos guerreiros, Uma vez seco o magma da "chama eterna". XXIV Assim morreram Mórdax e Árkhon primo, Campeões dos titãs do fogo e da terra, Quando por terminada deu-se a grande guerra Num enlaço de magma e rocha opima. XXV Que as bênçãos do rei da montanha jamais Faltem a ti, ó príncipe, nem nunca dos Corações dos teus falte a glória do legado Que às gerações deixaste de homens mortais. XXVII Faze das ações de teu antepassado tuas próprias, nobre príncipe, e nada terás a temer. XLII E, naquele dia, enquanto cruzava a ponte leste, a mesma ponte em que há tantos séculos se mediram Árkhon Primo e Mórdax, experimentei no íntimo uma sensação singular. Pus-me junto do parapeito, onde cruzei meus braços cansados, e meu olhar eu volvi para baixo em direção à fenda negra por sobre a qual a ponte fora erguida. A meu lado divisei as marcas do embate mortal, deixadas pelos dois guerreiros no ponto em que foram petrificados. Abaixo, apenas a escuridão era visível, mas muito mais do que sombras habitava aquele antro funéreo; era, segundo a crendice do povo, o lar de Aleena. Restavam a mim apenas relatos pitorescos, já que ninguém se atrevia a explorar o ventre sombrio do Vale do Nyr. XXVII XLIII Aleena, filha do fogo e irmã de Ôlethros, senhor da guerra de Sênnyl Sul e, de acordo com alguns, filho do próprio Mórdax. Muitos dizem ter visto à noite o vulto de uma mulher ruiva, cujos cabelos encaracolados lhe pendiam até a cintura fina, marcada em seu vestido vermelho e negro. Suas aparições sempre são seguidas de crimes hediondos, de forma que mesmo os mais bravos tremem quando seu nome é pronunciado. A seu respeito escrevi um XXVIII encômio, dado que é necessário também que se louvem os inimigos, pois é de acordo com a grandeza deles que a glória vindoura será medida. Encômio a Aleena XXVII. “Destruição”. XXVIII. Canção cujo intuito é o de fazer um elogio a alguém. O fogo fulge nos teus olhos, dama Aleena, e com vigor sangüíneo inflama XXVIII A fronte, que os cachos rubros te coroam, Vertendo às costas livres, e esvoam, Como se em chamas, quando em meio à noite Caminhas pelas sombras. A ti, foi-te Dado o dom da graça ígnea das flamas, Com que te moves, pelo qual me chamas... Esbelta, envolve o ventre teu em giro A veste negra em que vive Pyros. XLIV Sem mais delongas, adentrei a cidade de nossos ancestrais, trazendo no imo peito o orgulho de nove gerações de guerreiros valorosos. Caminhando pela rua principal, em pouco tempo se pode chegar à praça, ao redor da qual se estabeleceu o comércio local em altos prédios em pedra esculpidos. Não nos é familiar, ao contrário do que acontece em Fláurin, o costume de se comerciar artigos nas chamadas feiras ao ar-livre. Talvez isto se dê pelo próprio caráter sisudo dos habitantes, pelos quais as compras são vistas apenas como um elemento necessário para a sobrevivência. Desta forma, são vendidos em Lithokhthôn, em geral, apenas mantimentos e utensílios simples e imprescindíveis ao dia-a-dia. XLV Não se deve pensar, no entanto, que os habitantes de nossa cidade não tenham cuidado para com sua aparência. Muito pelo contrário, eles prezam em muito o belo, estando sempre asseados. Costumam manter seus longos cachos negros presos, soltando-os apenas em ocasiões especiais, como combates singulares XXIX e apresentações formais. Outro costume notório é o de aplicarem unções em sua pele avermelhada pelos sóis. XLVI De onde estava, logo à entrada da cidade, podia avistar a praça deserta, o que, se em Fláurin, certamente significaria que algum desastre havia ocorrido. Os de Lithokhthôn, no entanto, não tem o hábito de reunirem-se em praça pública diariamente, ficando isto reservado apenas para quando se deseja discutir algum assunto de interesse geral, para o que é convocada a ágora. Assim sendo, encontram-se os homens de Lithokhthôn no ginásio quando desejam sair de casa em seu tempo livre, e lá praticam esportes como corrida com escudo, pugilismo, lançamento de pesos, entre outros. A estrutura deste ginásio é quadrangular, dando espaço em seu centro para uma grande área onde se exercitam os homens, e em cujo redor se construiu a platéia, ponto em que os expectadores se reúnem também para conversar e discutir assuntos menores. XLVII Nosso maior atleta naqueles tempos, orgulho de todos os cidadãos, era também o general das forças de Lithokhthôn, XXIX XXX Algandros, filho de Sománomos. Em toda minha vida, poucas vezes vi um homem que pudesse se medir em tamanho e força com Algandros de Lithokhthôn, e menos ainda foram os que puderam fazê-lo na arena de pugilismo. Um homem de imenso poder e olhos pequenos, semicerrados sob amplas sobrancelhas que terminavam quase juntas lá onde lhe surgia o nariz, o qual inspirava respeito por seu tamanho e constituição. XXIX “Dor-doshomens”. XXX “Lei-do-corpo”. XLVIII Creio que a única pessoa que vi durar mais do que poucos segundos quando se medindo com Algandros foi tua querida XXX tia, Lady Lana, filha de teu avô, Árkhon VIII e irmã de teu pai, Árkhon IX, senhor de Lithokhthôn. Durante muitos anos sonhei com tua imagem, nobre Lana, com tuas tranças negras e tua grácil figura. Ah, como agradeci a Lithos quando a vi naquele dia, parada em frente à estalagem a que me dirigia, e, como de costume, envergando sua armadura de combate, toda ela negra e ornamentada com as insígnias rubras de Lithos. Percebendo-me a presença, volveu os olhos claros para presentear-me com um sorriso pueril estampado em seu semblante egrégio. Pensei comigo que em todo o mundo jamais veria um nariz tão belo como aquele, pequeno, suave em suas curvas e ao mesmo tempo trazendo em si o orgulho de sua gente na ligeira inclinação ascendente em que se terminava. E estava certo. XLIX Saudamo-nos respeitosamente, mas dando vazão a certo calor, pois que desde pequenos dividíamos assentos contíguos ao redor da fogueira de nossos pais quando nos juntávamos para ouvir suas narrativas. Ao lado de Lana, ouvi tudo que hoje conheço a respeito da história de nosso povo, matéria que foi para as canções que vim a compor durante minha juventude, as quais versam acerca do início dos tempos, dentre elas a Theogonia, a Origem dos povos XXXI de Lithos, e a Titanomakhia. XXXI. Acerca dessas canções, é preciso salientar que o alto círculo não aprova a interpretação resultada de sua versão dos fatos. No entanto, nós a manteremos aqui para que o Iniciando possa ver com seus próprios olhos o tipo de crendice que nutrem os homens ocidentais. Theogonia Canta-me o início, ó musa, no tempo em que Ápeiron magno Era a essência de tudo, pois nele tiveram origem XXXI 5 10 15 20 25 30 Stratos e Pyros e Lithos e Hydros, os quatro titãs, Lordes de tudo que vemos no solo da ampla Trinômia. Ápeiron magno em si concentrava a essência de tudo, E alto no éter reinava supremo no Templo das Almas. Cá em Trinômia viviam os homens chamados de ouro Por conhecerem somente alegrias enquanto eram vivos. Em suas casas jamais lhes faltavam saúde e alimentos, Pois tudo aquilo de que careciam mãe Gaia lhes dava. A Ápeiron magno, entanto, isso não agradava o imo peito. Gaia, a seu ver, estragava os humanos, minando-os de modo A nunca poderem lidar com as vicissitudes da vida, Desconhecendo o equilíbrio preciso a tudo que é vivo. Por isso então resolveu o titã, nosso lorde do éter, Vir a Trinômia assolar os domínios de Gaia, mãe terra, Mas para tanto lhe foi necessário assumir uma forma Que adaptasse sua essência ao plano chamado matéria. E assim fazendo plasmou para si quatro formas distintas, Em que se fez dividir nos poderes primevos do mundo, Ar, fogo, terra, e água, restando amorfo o éter. E esses poderes, na luta que então dividiu os países, Aniquilaram mãe Gaia e a raça dos homens de ouro. Ápeiron, lorde do éter, das cinzas dos corpos defuntos, Fez que nascesse a magna raça dos homens de prata, Feitos aos moldes daquilo que ele firmou como belo, Formas serenas e equilibradas em suas essências, Às quais cabia um lote semelho de bens e de males, Para que assim aprendessem na dor e também na alegria. Mas o que Ápeiron, lorde do éter, jamais esperava Foi que os titãs, conscientes da força que neles havia, Sublevassem-se contra o mais velho e pai deles todos, Eliminando a magna raça dos homens de prata, E destronando o lorde do éter, de modo a restar-lhe XXXII 35 Não mais que o plano do éter em que exercer seu domínio. Stratos, o lorde dos ventos, do caos e das artes arcanas, Fez que nascessem os dragos, os elfos, e os devonianos, Para habitarem o gélido reino ao norte de Sênnyl. Pyros, o lorde do fogo e flagelo de tudo que é vivo, 40 A seu modelo criou os ciclopes, os orcs, e os monstros Que nos desertos de Sênnyl do Sul reverberam o caos. Lithos, senhor da montanha, da ordem, da morte sem fuga, Fez que da pedra surgissem gnomos, anões, e os homens Que nos altíssimos montes de Sênnyl Oeste demoram. 45 E Hydros, senhora dos mares, beldade de grácil nadar, Na orla do mar fez nascerem sereias, tritões, e os homens Que pelos mares de Sênnyl do Leste navegam altivos. Somos a última raça de homens, chamada de bronze. E nesta vida sofremos os males da guerra e da morte, 50 Mas desfrutamos da ajuda de nossos titãs protetores, E estes, no entanto, se ralam na lida dos planos supremos, Ao elemento oposto à ruína buscando levar, Sempre cuidando de oferecer ao amigo assistência. E desta arte cruel alcançamos o grato equilíbrio, 55 Ápeiron, lorde do éter, titã protetor dos destinos. Origem dos povos de Lithos Quando tomou para si o terreno de Sênnyl Oeste E, em seu ventre, firmou os recursos de todas as pedras, Lithos, senhor da montanha, criou, para que o habitasse, Raças diversas de homens, nas quais infundiu em seus peitos 5 Ânimos tais que se aparentassem com seu ambiente, E, desta arte, nasceram no solo sagrado de Adámantos XXXIII 10 15 20 25 30 Os valorosos anões, cujo ímpeto empreendedor Não se compara a nenhum outro povo que existe em Trinômia. E eles na glória de Lithos criaram a sua acrópole, Sob a qual escavaram, em meio às pedras preciosas, Sua cidade e túneis que ligam o subterrâneo, Dando passagem a todos os cantos da terra de Lithos. Por sua vez, os gnomos nasceram na brônzea Khalca, Onde ergueram ingente de bronze o seu baluarte, Para que lá eles dessem início ao estudo científico, Causa que foi de inventarem engenhos de todos os tipos. E, ainda que muitos pareçam a nós sem propósito algum, Sempre lembremos que neles reside o engenho de Lithos. Já coroada por todos os montes, os quais a protegem, Surge a cidade afamada dos homens que em Fláurin nasceram, Eles a quem o senhor da montanha confere a graça De ostentarem o aspecto mais orgulhoso das rochas, E altos, com suas madeixas douradas e olhos azuis São do seu pai o motivo de glória e símbolo dela. E, finalmente, criou-nos, a raça de Lithokhthôn, Nós, que lutamos e sobre seus montes a terra guardamos, Somos de Lithos o braço massivo, a força das pedras, Feitos aos moldes da honra e de tudo que nela impera, Deu-nos o pai proteger seus domínios no vale do Nyr, E em sua honra lutamos até a terra um dia voltarmos. Titanomakhia Morta mãe Gaia e a magna raça dos homens de prata, XXXIV 5 10 15 20 25 30 Esta que fora criada por Ápeiron, Lorde do Éter, Feita das cinzas deixadas dos corpos dos homens de ouro, Os que de Gaia eram prole e habitaram Trinômia primeiro, Eis que se viram os quatro titãs com um mundo a gerir. De forma alguma chegavam os quatro a consenso qualquer, E, cada qual se exilando num canto da vasta Trinômia, Eles criaram as raças de homens que hoje ainda vivem, Bem como toda a sorte de monstros que aos homens odeiam. Mas a cobiça dos lordes dos quatro elementos primevos Era maior que o quinhão que a cada um deles cabia, Pois desejavam, ao signo oposto, inglório dar fim, Dele usurpando as terras e os povos que lá habitavam. Mas, sendo eles progênie de Ápeiron e partes do mesmo, Arquitetaram semelho um plano a fim de dar cabo De seus intentos terríveis: criaram os dragos titânicos; Mors, a progênie das pedras e ícone puro da morte; Pélagos, vindo de antros profundos, potência equórea; Nêphelai, filho das brumas, draco de espírito diáfano; Kháos, que do magma bruto plasmou-se qual ígneo demo. Estes os dragos criados então pelos quatro titãs; Cada um deles buscava dar morte ao imigo do pai. E por mui pouco assim não se deu, pois dos dragos a força Era sem dúvida muito maior que a dos pais que os criaram. Mas, percebendo seu erro, em conselho, os titãs se encontraram, Para que assim se firmassem as leis pelas quais viveriam, E, na arcada ancestral onde todos se unem, convieram Que nunca mais agiriam a fim de dar morte ao irmão, E cada qual no mais fundo abismo enfurnou seu dragão, Pois que estruí-los não era possível a quem os criara, Sendo eles próprios parte ainda viva de seu criador, E para que os guardassem um bom guardião nomeou Cada um deles, ficando até hoje guardados da luz. XV Desta arte aos homens restou o combate em nome dos quatro, 35 Dando-se início às guerras e a toda a sorte de males. L Trocando palavras afáveis, adentramos a estalagem de Lithokhthôn, um edifício não muito diferente das demais sólidas construções rochosas da cidade, entalhado na pedra em tempos ancestrais, e em cujas paredes algumas hortaliças despontam seus ramos e folhas brancos, amenizando assim a sisudez pétrea de sua figura. LI Sentamo-nos frente ao balcão em pedra escura, e à nossa frente logo foram postas duas canecas de cerveja. Dando-me conta, XXXII então, de que havia anos que bebera minha última cerveja, tomei um gole generoso do áureo líquido, o qual não era de forma alguma conseguido em Fláurin, onde as vinhas de Cádvan produzem o mais fino vinho de todo nosso país e, como vim a confirmar mais tarde, também de toda Trinômia. XXXII. A cerveja é uma bebida de cor amarelada e aspecto espumante, cujo gosto se assemelha a pão devoniano envelhecido e molhado. É feita a partir da fermentação do trigo e tem como objetivo, assim como o vinho e todas as outras bebidas entorpecentes, dar algum sentido temporário, por meio do embevecimento, à vida dos homens rudes do ocidente. LII Após algum tempo de conversa, pus querida Lana a par de tudo que me acontecera na cidade de ferro, de minha estadia no amplo castelo de rei Äschnor e de como vira a ser escolhido para a missão de encontrar Pantagnosko de Telogaia, o mais sábio homem a jamais pisar o solo de Lithos. Contei-lhe ainda a respeito de minha busca por Phéron, o homem que, segundo Jahnor, me auxiliaria a alcançar o escopo de minha empresa. LIII Oferecendo-me mais um de seus gentis sorrisos, Lady Lana me disse que, para minha sorte, ela mesma conhecia o tal homem que eu procurava, Phéron, o guia, uma vez que este prestava XXXVI serviços a seu irmão e regente de Lithokhthôn, Árkhon IX. Segundo ela, Phéron era também um exímio cartógrafo, e fora contratado por Árkhon para que mapeasse o país de Lithos, seguindo as antigas referências de Báinon, o explorador. Desta forma, não seria de forma alguma difícil encontrá-lo. Pediu-me que a acompanhasse até o castelo, para que tivesse com o rei e assim me informasse do atual paradeiro de Phéron, o que fiz, tendo terminado minha tão apreciada cerveja. LIV Adianto-te, senhor, que não há cidade como a nossa. Se há algo acerca do qual posso palestrar, certamente é disto. De todos os países em que estive, de todas as cidades de homens que visitei, nenhuma pode ser medir com Lithokhthôn, mesmo as belas cidades dos homens do leste. Enquanto caminhava naquele dia por tuas ruas amplas e planejadas com siso e simplicidade, dava-me conta de teu esplendor, ó cidade amada! Passamos pela praça principal, onde alguns dos guardas envergavam suas armaduras escuras e capas vermelhas e faziam sua ronda. Dei-me conta, então, de que, ao contrário do que ocorre em Fláurin, não tive minha tranqüilidade auditiva perturbada pelos inúmeros comerciantes apregoando suas mercadorias. E, assim, com um sorriso, continuei meu caminho ao lado de Lady Lana, que oferecia aos passantes um gentil gesto de cabeça enquanto andava. Todos a conheciam e respeitavam, sem exceção. LV Passamos pelas casas dos cidadãos mais ilustres, elas todas altas e austeras. Passamos pelo prédio da guarda, bastião da cidade, pelo imponente templo de Lithos, e desta arte chegamos ao castelo de Árkhon IX, o mesmo castelo que há nove gerações se ergue majestoso do cume de Sênnyl Oeste em glória a seu titã e XXXVII protetor. LVI Saudando os guardas reais, entramos. Acima de nós, as arcadas de pedra escura, esculpidas na própria montanha, inspiravam o mais profundo respeito e solenidade. Nossos passos ecoavam em profundidade no que íamos andando sobre o chão que, apesar de escuro como o restante do edifício, ostentava um aspecto azulado em seu brilho austero. LVII “Salve, Árkhon IX, discípulo de Lithos e regente da amada cidade de Lithokhtôn.” Com uma profunda reverência, saudei o senhor de minha cidade, ao que fui respondido com um largo sorriso e um inesperado aperto de mão assim que se me aproximou o alto regente. Cabelos grisalhos presos num rabo de cavalo, um cavanhaque sobre o amplo queixo em que se refletia o aspecto das cãs, e olhos claros e sinceros faziam de Árkhon IX um homem venerando, mas que certamente possuía a simplicidade de um guerreiro e a honestidade encontrada apenas nos mais devotos paladinos. Já me olvidara de como era agradável e honrado um rei que, olhos nos olhos, palestra com os seus como iguais. Jamais te esqueças disto, jovem Árkhon, para que também os teus te respeitem como rei e irmão. LVIII “Caro Clióphoros, voltas à terra de teus pais e aos teus. Sê bem-vindo, e que em teu caminho Lithos te acompanhe sempre, aonde quer que tu vás.” Sorri-lhe em grande respeito e agradeci suas palavras com outras igualmente votivas. Fui breve em minhas narrativas quanto ao que vivenciei em Fláurin, sabendo que o tempo de minha missão era curto, com o que prontamente Árkhon XXXVIII IX concordou após ouvir meu relato. De bom grado, apontou-me ao lugar onde eu havia de encontrar Phéron: além de Lithokhtôn, a poucos quilômetros da divisa com Telogaia. LIX Ainda naquele tempo tínhamos o costume de referirnos a tudo o quanto existia além de Sênnyl Oeste, todo o desconhecido, como Telogaia, malgrado já tivéssemos, há algumas gerações, conhecimento dos homens que povoam os cantões de Sênnyl Leste. LX Despedi-me de Árkhon IX e Lady Lana, tendo ambos me acompanhado através da cidade de meus ancestrais até o portão norte, e assim dei início à minha travessia do passo de Nyr. LXI No que eu andava, mais afastados ficavam os portões de pedra escura da amada cidade de Lithos, e sobre minha cabeça se erguiam os montes imortais, como mãos imponentes, resguardando o caminho que levava ao final de nossa pátria. De fato, Lithokhthôn é o último porto-seguro de quem viaja pelos reinos. Além de seus picos, só nos resta o incerto. LXII Uma guarnição considerável de homens armadurados saldou-me ao passar pelas torres finais do passo, três dias depois de deixar Lithokhthôn, e a mim desejaram a melhor das sorte e os mais profundos votos de sucesso em minha jornada. Olhando para cima, agradeci-lhes e acenei ao passar por baixo da arcada pétrea que une as torres de vigia. XXXIX Livro Segundo - Sênnyl Leste “A imagem do outro é o espelho mais acurado de nós mesmos.” XL I Saindo do reino de Lithos, à minha frente o horizonte se abriu com novidades alvissareiras no verde que inundava as campinas. Um sorriso se me abriu no rosto enquanto pisava surpreso a estrada de terra que dividia o gramado sobre esta nova plaga. Quanta alegria não havia em meu íntimo enquanto caminhava por aqueles pastos! Meu olhar, incerto acerca do que mirar primeiro tamanha era a beleza à minha volta e meus pés, famintos por trilhar cada novo espaço daqueles reinos! II Com ânimo renovado, atravessei uma pequena ponte sobre um riacho, do qual mais tarde vim a saber o nome: Okhýresis, apelido angariado pela surpreendente velocidade de suas águas. Também soube ainda que, mais à frente, ele desaguava no coração de Sênnyl Norte, o que muito me surpreendeu, dado que sua nascente ainda é na terra de Lithos. III Atualmente, já velho e livre das tarefas as quais me foram confiadas, posso dar-me ao luxo de despender meu tempo na análise de tais fatos, e, por conseguinte, pude vir a compreender que isto, a ligação de Sênnyl Oeste e Sênnyl Norte por meio das águas de Okhýresis, se dava devido à natureza dos elementos patronos de cada país e suas relações entre si. Com efeito, sendo Sênnyl Oeste o lar de Lithos, titã das pedras, e Sênnyl Norte o de Stratos, senhor dos ventos, seus elementos interagem em harmonia apenas na aliança comum com fogo e água, e desta forma se aceitam mesmo em seu antagonismo. I.“Correr-rápido”. IV Continuei minha caminhada por mais algumas dezenas de metros em direção a uma rocha sobre a qual estava devidamente XLI sentado um senhor de meia idade e barba mal-aparada, que desenhava, movendo o olhar de seu pergaminho à cadeia de montanhas às minhas costas. A ele me apresentei e minhas suspeitas então se confirmaram no que Phéron desceu do rochedo para saudar-me com um forte aperto de mão. V A noite já chegava e por isso buscamos uma elevação um tanto afastada da estrada principal para lá passarmos a noite. Juntamos alguns gravetos e com eles fizemos uma pequena fogueira, de proporções apenas suficientes para que pudéssemos acalentar nossos corpos e a refeição que então comemos enquanto conversávamos. VI Dei-me por feliz pois, como se já podia esperar, Phéron era um homem vário, conhecedor de inúmeras histórias e cidades. Com efeito, não poderia ter me desejado um companheiro mais adequado para a viagem a que daríamos início na manhã seguinte. VII Ainda naquela noite, passei longo tempo, no que ouvia meu companheiro palestrar acerca de suas andanças, admirando-lhe as vestes, as quais ele me disse terem sido presente do senhor dos gnomos, o que certamente justificava os detalhes bem trabalhados e coloridos. Ele se riu de minha curiosidade, coçando a barba grisalha e espantando alguns insetos que lhe sobrevoavam a cabeça calva. VIII Dormimos alternando a vigília, e ao acordar fui presenteado com um nascer de sol como nenhum outro; das plagas orientais ele se erguia, magno astro, áureo como o trigo na campina, XLII aos poucos iluminando as terras que se erguiam levemente no horizonte com seus lagos e florestas, ao que era respondido pelo despertar dos animais que ali viviam. Pássaros cruzavam os céus em arcos, coroando as matas e cantando vividamente; coelhos, corsas, flamingos e toda a sorte de animais a mim desconhecidos se dirigiam ao riacho perto de nós ou a algum dos lagos, ignorando nossa presença, ou talvez até felizes com ela. Sem dúvida, foi este um dos momentos mais gratificantes de minha viagem. IX Caminhávamos novamente, o desjejum já tendo feito, e Phéron me ensinava o nome de tudo que víamos à nossa volta, de tanto flora e fauna quanto aspectos geográficos. A estrada de terra nos levou floresta adentro durante uma semana, mas suas árvores esparsas e de flores purpúreas não ofereciam nenhuma dificuldade a nós viandantes. E, desta forma, dois dias mais tarde, chegávamos ao II coração da floresta de Lýon, tendo deixado a trilha principal para, sob conselho de meu guia, passarmos pelo lago que lá existia, em cujo centro uma pequena ilha se dava a ver, cercada por peixes de cores e formas verdadeiramente indizíveis. II. “Dissolvente”. III. “Selvagem”. X E assim o era. No entanto, o que mais me chamou a atenção foi a pequena formação rochosa que havia sobre a ilha, a qual dava mostras de ter uma entrada de caverna. Aconselhado por Phéron, porém, logo deixei de lado minha curiosidade ao saber que ;III ali morava uma criatura conhecida como Ágria uma medusa posta à luz da vida por mãe Gaia para proteger um de seus santuários. Muito me intrigou e ainda me intriga o fato de nenhum titã haver aniquilado Ágria após ou durante a contenda que travaram contra Gaia. Mas agora não me há meios de saber mais sobre o assunto. Algumas oportunidades simplesmente não se nos apresentam mais XLIII que uma vez, e, tendo passado o tempo em que podíamos arrebatálas, só nos resta indicar aos que depois de nós vieram para que não incorram no mesmo erro. XI Durante mais duas semanas nossos pés deixaram suas marcas sobre a estrada de Hydros em meio às florestas e lagos que ornamentam a bela terra dos orientais, até que, finalmente, num fim de tarde ensolarado, avistamos as primeiras construções de bambu e madeira que se erguiam ao longe, rodeadas pelos bambuzais que lentamente se moviam com a ação do vento.. A península em que se IV situa Kámnon é separada, de norte a sul, por dois canais vindos do lago de Kyô, os quais foram abertos pelos habitantes desta cidade com o duplo propósito de irrigar as terras às suas margens, proporcionando, assim, um terreno adequado para o plantio de arroz, e de isolar seu território do restante de Trinômia, fazendo com que só se possa ter acesso a sua cidade pelas pontes norte e sul, construídas, em seguida, sobre estes dois canais, os quais são comumente chamados de rios do dragão também em homenagem a Kyô. IV.“Que trabalha”. XII Com efeito, parece-me que a figura mais conhecida em Sênnyl Leste seja este lendário Kyô. De acordo com a tradição, teria ele nascido da união de Gaia com Oceano, e, assim que nasceu do ventre materno, já sentindo a potência incomensurável herdada de seus pais, num grito altissonante, Kyô impeliu-se para fora do oceano, como que pronto para explodir em toda sua energia criadora. O jovem dragão titânico então lançou-se aos ares em raios de luz e, de seu abismo dentário, foi expelida uma torrente de água que atingiu o cerne de Sênnyl Leste, dando origem a Okhýresis e seus afluentes. XLIV XIII Consumido em seu impulso primordial, Kyô deitou-se na orla do Mar Glauco e, em sua placidez titânica, ele cantou a criação dos homens. Da mistura de seu sangue com a luz dos três Sóis de Trinômia, nasceram os primeiros seres humanos de Sênnyl, pois, com efeito, todos os outros reinos dos homens teriam sido criados V tardiamente. XIV Durante quinhentos anos, Kyô viveu entre os de Sênnyl Leste e ensinou-lhes tudo o que era preciso para que vivessem em paz no reino marinho. Estabeleceu-lhes costumes e leis, de acordo com os quais até hoje vivem.VI V. Na verdade, como sabemos, os homens orientais foram criados do sopro de vida que Kyô lançou à terra. A imagem de que eles teriam nascido da canção do dragão titânico, portanto, é apenas uma meia verdade. Quanto a terem nascido de seu sangue e da luz dos sóis, parece-me muito improvável, afinal quando teria Kyô sangrado? É preciso lembrar que, para a mente dos homens incultos, são mais agradáveis as imagens apelativas, mesmo que essas não tragam consigo qualquer sentido. VI. Muito pouco provável. Se Kyô realmente tivesse vivido entre os orientais, por quê então não impediu que os filhos de Ápeiron destronassem Gaia? Sem dúvida alguma, é apenas o tipo de lenda de que uma cultura gosta de se jactar, esquecendo-se de verificar sua veracidade. VII. “Tesouro” XV A compleição deste povo é, de todo, adversa à nossa, os de Sênnyl Oeste, por terem eles olhos puxados e a pele num tom mais amarelado. Em estatura são bastante inferiores mesmo aos homens de Lithokhthôn, sendo entre eles os de KeimélionVII os mais baixos e os de Kámnon, os mais altos. Estes últimos são também os que mais se dedicam às práticas esportivas e ao estudo das artes da guerra. XVI E, no que andava pelas ruas de sua cidade, elas assentadas em pedras medianas, pude perceber que apesar de serem bastante diminutas quando comparadas às estradas de nosso povo, possuem uma graça que não se pode encontrar nas construções dos homens da terra de Lithos. O aparente descuido com que foram dispostas as pedras de suas veredas confere uma harmonia idílica junto à natureza em que vivem, havendo canteiros de flores a cada centena de metros, onde também algum pequeno lago, fonte, ou praça com bancos pode ser encontrado. Lá costumam eles se sentar quando cansados de suas caminhadas, ou quando desejam ensinar as XLV histórias de seus antepassados às crianças. XVII Quanto às suas tradições, muito me espantou o fato de não as guardarem em canções, mas sim gravadas em pedras, as quais dispuseram, na extensão de seu país, em bosques sagrados, ao lado de altares em que, após refletirem sobre os provérbios de sabedoria ancestral lá entalhados, oferecem preces de agradecimento a Hydros e a Kyô pelas graças que lhes conferem diariamente em suas vidas.VIII Provérbios de Kyô A água é una e nela tudo é equilíbrio. Mesmo a mais pura gota d'água pode trazer morte se não empregada com sabedoria. VIII. Devem-se louvar os orientais por conta de sua sabedoria, uma vez que, em seus provérbios, são ensinados que, sem o vento, a água não se pode mover, não tem vida. De fato, a humildade que demonstram é tão grande que lhes faz perceber o quão menos importante sua titã é no engenho do mundo. O Iniciando deve se recordar de que a origem da palavra “humildade”, ela mesma, na antiga língua de Ápeiron, confunde-se com a origem de “humilhação”, ambas derivadas de “humilitas”. O riacho que passa por teus pés é antigo como os montes e renovado como o orvalho. Se te fias sempre numa única água com que te banhar, logo estarás a sujar-te. O dormir e o despertar se encontram no enfeixo do ciclo eterno, assim como, saído da nascente, deságua o rio no mar. Não chore a morte de teu irmão, pois o que está findo novamente se inicia no ciclo eterno. Sê como o riacho na juventude; o mar, na vida adulta; o XLVI lago, na senilidade. A água que derramas hoje levianamente por estares saciado é a mesma pela qual ainda chorarás amanhã em tua sede. Controla tuas paixões, pois nelas arde incógnita a chama da destruição. O homem que domina suas paixões é senhor de si mesmo e ícone do equilíbrio a seus irmãos. Aquele que age de uma forma e pensa de outra é um aquário limpo apenas por fora. O trabalho rejuvenesce o corpo, assim como as ondas, o mar. A maior das barcas ficará presa no mais singelo dos canais. A água nutre a terra. O vento movimenta a água. XVIII São considerados, entre os orientais, tendo eles uma sociedade de castas, de maior status os samurais e os monges, acima dos quais encontram-se apenas aqueles pertencentes à família real. IX. Os homens ocidentais e orientais, por encontrarem-se em um estado de desenvolvimento ainda tão anterior, fazem uso de verdadeiras carapaças para se defender da selvageria de seus adversários. XIX Os primeiros em muito se assemelham aos paladinos de Lithokhthôn por colocarem, acima de todos os outros valores, a honra como o ideal a ser defendido, lutando por seus senhores, pela glória de sua família, e por Hydros Soberana. Armam-se com armaduras confeccionadas em bambu, as quais ostentam os brasões IX das famílias pelas quais eles lutam, além das insígnias de sua titã. XLVII XX Quanto aos monges, apenas os encontrei em Keimélion, e são eles detentores de toda a sabedoria de seu povo, sendo responsáveis pelo ensinamento dos ideais de Hydros à família real, trabalhando como tutores dos jovens príncipes e princesas. Dão grande valor ao que vem do corpo e do espírito, cuidando de igual modo de ambos. Com efeito, são exímios lutadores, precisando de pouco mais que seus próprios punhos para se medir com qualquer adversário. Costumam tonsurar seus cabelos, deixando deles apenas um rabo de cavalo que lhes pende, à beirada anterior do topo de suas cabeças, em uma grande trança negra. Vestem-se com simplicidade, trajando mantos compridos e de tonalidades claras, mas que lhes conferem graça em todos os movimentos. X. “Separado”, “Duplo”. Ao que me parece, a montanha recebeu tal nome por conta do rio que lhe corta em duas. XI. “Contínuo”. XII. Ao que parece, o bambu é uma espécie de madeira flexível, a partir da qual os orientais constroem grande parte de seus utensílios. A qualidade e dureza de tais objetos é certamente duvidosa. Mais uma vez, o Iniciando deve agradecer a Stratos por não precisar de mais do que seu conhecimento para sobreviver. XXI Noutra coisa também se diferem os homens do oriente em relação a nós ocidentais: possuem apenas uma única família real, a qual rege todas as cidades de seu reino, estabelecendo-se em cada uma delas um príncipe, e cabendo ao rei administrar a maior. Esta, em meu tempo, era Kámnon, a qual também se destacava pelo cultivo de arroz e por seus contingentes militares. No centro da X península de Kámnon, existe uma alta montanha, Diamphídios, da XI qual nasce o rio Pámmenos, famoso por, durante todo o tempo em que moraram os orientais em sua cidade, jamais haverem secado suas águas. De Diamphídios, extraem os homens de Kámnon os minérios com que confeccionam suas armas. Talvez por não existir em seu país quantidade suficiente de recursos minerais com que forjar armaduras e outros utensílios, tenham os de Sênnyl Leste criado a XII arte de lidar com o bambu. XXII Abaixo dos monges e samurais na hierarquia de seu país, encontram-se os clérigos de Hydros, os quais, devido às bênçãos XLVII concedidas por sua titã, possuem o dom de curar ferimentos, sejam eles psíquicos ou somáticos. Seu maior templo, como vim a aprender, se situa no centro do terceiro grande lago, conhecido como de Hydros. Dele apenas pude ver a silhueta veneranda num pôr-do-sol XIII enquanto caminhávamos em direção a Parathálassa, para que lá conseguíssemos uma embarcação que nos pudesse levar até a Ilha dos Mortos, lugar onde, segundo meu guia, encontraríamos Pantagnosko de Telogaia. Como era de conhecimento comum em Sênnyl Oeste, para tal ilha havia Phéron guiado o ancião alguns anos antes, quando este decidiu que chegara a hora de isolar-se da companhia dos homens mortais, consagrando o restante de seus dias à proteção do mais puro solo de Lithos, a Montanha do Anoitecer. XXIII Ainda na primeira cidade em que chegamos, visitamos o palácio real, situado junto ao monte Kámnon, nome pelo qual Diamphídios é comumente chamado. De lá, tem-se uma visão privilegiada da geografia da cidade, com suas veredas estreitas dispersando-se por sua extensão como nervuras numa graciosa folha primaveril, e as muralhas de bambu protegendo sua face ocidental, frente aos rios do dragão, nascidos do primeiro dos três grandes lagos, o de Kyô. XXIV O grande lago central, do qual ainda não vos falei, caro príncipe, se trata de um lugar sagrado, com o peculiar formato de uma fechadura, em que são enterrados os senhores de Sênnyl Leste. A constituição da ilha se deve a uma simbologia que representa a saída deste mundo para o retorno ao éter, onde se encontrarão com Ápeiron pai. XIII. “Junto-ao-mar”. XLIX XXV Mais do que nós, é preciso saber que os de Sênnyl Leste tem respeito pelo titã do éter, dirigindo a ele orações de agradecimento antes de deitarem-se à noite. Tendo-se em mente a ligação intrínseca entre sono e morte, poder-se-ia dizer que, ao dormir, estariam também adentrando o reino do éter. Mais tarde, esta minha teoria veio a se confirmar, quando estive entre os magos de Sênnyl Norte e com eles aprendi sobre as formas de magia e a constituição do reino do éter. XXVI Era uma tarde de bons augúrios, pois os pássaros cruzavam os céus à nossa direita enquanto subíamos os últimos degraus da escadaria de madeira que nos conduziria ao palácio de XIV Náukles, um senhor venerando de meia-idade e regente do reino de Hydros. XXVII Fomos por ele muito bem recepcionados, tendo suas concubinas nos servido saquê e algumas especiarias feitas de arroz e de sabor suave e agradável de se provar. XIV. “Glória-das-naus”. É peculiarmente estranho o fato de que o rei dos orientais não use um nome de origem na língua de Kyô, e, sim, na titânica. Talvez, tenha Clióphoros dado-lhe este nome por não conseguir reproduzir corretamente os sons da língua oriental. XXVIII Respondendo-lhe ao pedido de que lhe narrasse algo sobre os homens de meu país, acompanhado de minha lira eu lhe cantei os Costumes do povo de Lithos e a Ode a Lady Lana. Muito lhe aprouveram minhas peças, e, em agradecimento a elas, o magnânimo Náukles ofertou-me uma capa de seda azul com a insígnia de Hydros, a qual, segundo me explanou, haveria de me proteger contra os perigos do mar. L Costumes dos povos de Lithos Na época em que viscejam as folhas nutridas do Sôndyr, Canta em honra aos titãs e a Ápeiron e a mãe Gaia, Pois a colheita com que alimentas teus filhos queridos Vem das potências que nutrem o imo de nossa Trinômia. 5 Canta em honra aos três sóis quando à terra a semente lançares, Para que a vida concedam ao fruto que hás de colher. Se, por acaso, um parente, ou amigo querido, perderes, Roga a Lithos que o reino dos mortos encontre teu par, E, na montanha, descanse seu corpo em paz junto aos teus. 10 Mas, se tiveres a graça bendita de à luz te trazerem Um descendente querido, a ele ensina os ditos E as façanhas de Árkhon, o príncipe nosso primeiro, Para que aprenda a ser varonil e honrado em seus atos, Sempre lutando em defesa da pátria terra querida, 15 Dos teus parentes e nunca faltando com nosso rei Lithos. Ode a Lady Lana Entre os varões valorosos que guardam a pátria querida, Luta ombro-a-ombro e excele nas artes da paz e da guerra, Lana guerreira, orgulho da estirpe de magnos príncipes Que sobre a terra de Lithos exerce o comando 5 Há gerações incontáveis, nascidos de Árkhon Primeiro, Nobre senhor de guerreiros e filho querido de Lithos. muitos por tua espada prateada já foram vencidos, Sempre em defesa da pátria, do rei, e dos filhos de Lithos. Mas muitos mais já ganhaste com todos teus gráceis sorrisos, 10 Puros no cenho perfeito em que assoma o nariz pequenino. E quantos mais os teus olhos alvíssimos não conquistaram? LI Quantos as tranças escuras, e quantos as curvas opimas Sob a negra armadura de guerra mui bem protegidas? Muitos, por certo, mas posso afirmar com certeza que foram 15 Menos do que os que amam o teu coração majestoso. XXIX Agradeci-lhe o presente com a promessa de que lhe comporia um encômio antes de deixar sua cidade. O rei de Sênnyl Leste riu-se de minha bondade, e disse-nos que então passaríamos a noite em seu palácio, onde eu teria a paz necessária para que pudesse escrever o poema. E assim o fizemos, partindo no dia seguinte após lhe ter presenteado com o Encômio a Náukles. Encômio a Náukles Salve, altivo senhor do Oriente, Náukles, discípulo de Hydros Augusta! Caiba em teu peito a glória, pois vem-te Ela não só de tua pátria venusta, Mas de teus filhos também, venerandos, Os quais labutam no dorso do mar, Para que a ti, quanto a pátria voltando, Dádivas tragam com que te agradar! Pois que és o ícone magno, dentre Os que aqui vivem, da nobre virtude De Hydros. Que nunca, tornando, do ventre De tua terra, a sorte te mude! XXX Para guiar-nos até Parathálassa, o gentil rei de Sênnyl LII Leste pediu que nos acompanhasse Yanon, seu guarda-costas, monge e campeão do reino, um jovem esbelto e de longos cabelos negros, em cujas costas havia uma larga marca de nascença na forma de um dragão alçando vôo. Não vestia nada que lhe cobrisse o tronco, apenas calças escuras e sandálias de madeira. Era um homem sábio e extremamente taciturno, de forma que sua presença era quase que olvidada conforme caminhávamos. XXXI Entretanto, soube ele nos conduzir não apenas em segurança até a próxima cidade, Keimélion, a qual se localizava a sul de Kámnon, além da ponte que dava travessia sobre o Mar Glauco, para que se pudesse alcançar a ilha em que esta cidade de monges estava localizada, mas também pôde nos apontar todos os sete bosques sagrados de seu povo, a fim de que eu compilasse os provérbios que lá se encontravam, fonte de todo seu saber, leis, e costumes. XXXII A nós, homens de Lithos e acostumados com a XV grandeza ctônica das cidades do ocidente, parecia-nos deveras pequena Keimélion, a vila em que habitavam os monges orientais. Suas casas eram de aspecto ainda mais simples que as de Kámnon. Todavia, Gaia havia sido incrivelmente generosa nos dotes naturais que conferira àquele lugar, visto que, em todos os cantos, flores de formas e tamanhos diferentes ornamentavam as construções de bambu em que viviam os homens locais. No centro de sua cidade, haviam construído um amplo tablado em que treinavam seus corpos nas artes marciais, protegidos da intempérie por um telhado de madeira de compleição peculiar, pois suas pontas se erguiam ligeiramente após haverem descendido até seu fim. XV. “Terrestre”. LIII XXXIII Lá treinando, conhecemos o príncipe Bao, um sorridente e agradável jovem, sem sombra de dúvida. Cumprimentou-nos com respeito e ofereceu-nos um almoço de frutos do mar e peixes, ao que me pareceu, um prato típico local, e contou-nos a Lenda de Yuritsu, o primeiro dos monges. XXXIV No ano trezentos e cinqüenta de Kyô, os homens orientais viam nascer a sétima geração de homens. Sua economia prosperava, as colheitas eram fartas, os homens tinha toda sorte de alegrias na vida e não havia doenças conhecidas entre eles. Excelia a todos os de sua época um jovem de feições duras e que se cria senhor de seus próprios apetites. Chamava-se Matsen e contava pouco mais que vinte verões. XXXV No último dia da colheita de primavera, quando as flores purpúreas das árvores se abriram ao redor de Kámnon, Matsen deixou sua fazenda para ter com Kyô, o dragão titânico e pai de todos os homens. Em sua jactância, o jovem oriental apresentou-se a Kyô como “o melhor de todos os homens” e “o mais apto a liderar sua nação”. Nada expressou Kyô, apenas mantendo seus olhos de serpente firmados no homem. Vendo que não havia obtido sucesso ainda, Matsen acrescentou que também era “senhor de seus apetites e paixões”. XXXVI Segundo meu anfitrião, Kyô jamais falou com nenhum homem depois daquele dia, nem se deixou ver até o dia em que retornou às profundezas do Mar Glauco, uma centena e meia de anos depois. LIV XXXVII Matsen, por sua vez, só foi visto três anos depois daquele dia, quando pôde, por fim, deixar a caverna de Kyô. Não parecia, nem de longe, o mesmo homem que entrara naquele lugar. Durante três anos ele fora obrigado a aprender as virtudes de Kyô, principalmente a da humildade. Foi Matsen quem grafou para os orientais os provérbios do dragão, por este criados para evitar que jamais se criasse outro ego como o daquele. Quando saiu da caverna, carregava nas costas as sete pedras proverbiais, as quais assentou, como estabelecido por Kyô, numa meia-lua ao redor das cidades orientais. Durante seis anos, então, ele trabalhou de mal grado na ornamentação dos bosques sagrados, construindo seus altares e lâmpadas de incenso com suas próprias mãos. Ao encontro dele, quando de volta à luz, veio Yuritsu, que o ajudou tão fraternalmente como o mais devoto dos irmãos o ajudaria, e juntos executaram a tarefa com a qual o antigo dragão titânico havia incumbido XVI Matsen. XVI. É triste pensar que exista um povo no qual, se alguém se mostra corajoso e apto a governar, acaba sendo humilhado pela autoridade máxima, punido de múltiplas formas e, por fim, exilado. Às vezes, custo a entender como os orientais veneram a titã patrona do bem. XXXVIII Ao que parece, Yuritsu, que ao contrário de Matsen era de todo um homem comum, a tal ponto se devotou às leis de Kyô que desvendou a arte de curar pelas mãos e de usar a energia do plano astral em combinação com as técnicas de luta centenárias, também legadas pelo dragão titânico, para criar as artes marciais tais quais hoje são ensinadas em Keimélion por Horin, discípulo de Suriô, último descendente direto de Yuritsu e venerando mestre nos ensinamentos de Kyô. XXXIX Todos pareciam relutantes a falar acerca de Suriô. Tudo que pude saber foi que o ancião habitava o monte Gaia, localizado entre o lago de Hydros e o chamado sagrado, já que seu nome não é por ninguém pronunciado desde que Matsen deixou a LV terra dos orientais, amaldiçoado por Gaia devido a suas tantas faltas e à inveja que passou a nutrir por seu irmão, Yuritsu, agora prodígio. XL Ainda mais intrigante, garanto-te, é o restante do relato de Bao, pois, cento e cinqüenta anos após ter deixado a terra de seus pais, Matsen voltou a caminhar as veredas de Keimélion, em seu peito um ódio como nenhum outro nutrido ao extremo. Trazia consigo insígnias incomuns. Vestia um traje de batalha oriental manchado da cabeça aos pés em sangue fresco que jamais parecia coagular. Discursou em praça pública para os habitantes de sua cidade natal, e, em seus corações, ele teve o poder de incitar as paixões mais fortes em cada um deles. Convocou-os à guerra. E eles o seguiram. XLI E, então, no ano quinhentos de Kyô, o dragão titânico ele mesmo deixou a terra dos orientais. Em seu vôo, ele assistiu a seus filhos lutando uns contra os outros, seu próprio sangue manchando as águas puras do Mar Glauco. Para o fundo do oceano ele se foi, e de lá nunca mais voltou. Em meio aos homens, por outro lado, surgiram as doenças, a fome e a desgraça que a tudo consome, restando-lhes apenas a memória dos tempos passados em que viviam em harmonia com as forças primordiais. XLII E esta foi também a época em que nasceram os titãs. A guerra entre os clãs do oriente coincidiu, de forma intrigante, com o surgimento dos filhos de Ápeiron em Trinômia e a contenda entre estes e Gaia. LVI XLIII A terra tremeu, os oceanos sublevaram-se, e o magma do seio do mundo pulsou em gêiseres funéreos, ribombando os céus em cores sangüíneas. Matsen ergueu-se como Senhor da Discórdia, nutrido por todos os vícios que ajuntou no plano astral. De fato, a história também me pareceu absurda e neste ponto confesso ter perdido até o fio da meada, mas, segundo meu anfitrião, ele havia, assim como seu irmão, aprendido a utilizar-se das formas e energias do plano do éter, e, com os pensamentos e vícios que despertou em seus seguidores, ele ergueu-se como potência destrutiva. XLIV Apesar de todos estes relatos, nunca mais se soube de Matsen. Conta-se que Gaia o destruiu pouco antes de proteger o povo dos orientais, escondendo-os em seu ventre por toda uma geração, para que os filhos de Ápeiron não os aniquilassem, como sempre era feito a cada mudança de era. A simbologia me pareceu deveras interessante. XLV Deves estar te indagando o mesmo que me pus a indagar naquele dia em que meu anfitrião me narrava tão inquietantes contos, ó príncipe, e, com efeito, os orientais se mostram seguros de que Gaia, mãe-terra, ainda está viva e ativa em Trinômia, ao contrário do acreditado em nosso país. XLVI Por fim, como um todo, de tal modo perturbou-me tal relato, ainda que belo em suas imagens e ensinamentos, que, uma vez tendo o tempo para tanto, compus um pequeno canto, entitulado apenas como Canto Primeiro, em que narro algumas das imagens que me vieram em sonho na noite em que vim a conhecer a história LVII de Matsen. Não me pareceu agradável terminá-lo em completa tragédia assim como o vi, uma vez que a história do mundo continua, e por isto mesmo eu o deixarei para sempre incompleto, para que desta forma alguma geração posterior possa grafar algo de bom na alvura frígida das páginas restantes. Ser, Tempo, Vontade Canto Primeiro e Único I - Lembranças do Fim Como urrasse a tormenta ao ensaio de um gesto, E do mar avançasse - qual fera - o futuro; As montanhas fundiam-se em gêiseres rubros, Pela noite seus bárbaros sons retumbando. Bufando, em vagalhões, do ventre intumescido O mar surdia excelso, espedaçando abrolhos, Fragas... Do Equóreo reino o centro se assomara, Sustido num trabalho, aos demais, agravoso. Dá-se lume à contenda entre os notos poderes; Um grito horríssono propaga-se no ar. E mesmo ao imo a lide intende amplexar-se, Ringindo o magma, açulando o intramar. De que força sem par a vontade cumpriu-se, Culminando na faina que agora me brota? Do filho desregrado, ereto-caminhante, E sua jactância sempefunérea. LVIII II - Uma Invocação na Noite O ego canta-me, ó Musa, que mudou Destinos tantos, inumeráveis, de povos. Ora ultrajando, ora os enaltecendo, E que, entanto, se foram nas brumas do oblívio. Toma início por onde lhe mais aprouver, Pois que o encanto, oriundo de teus dons beatos, Possa melifluir, como sói da revoada O cantar ressonante de brio impareável. Que caminhos seguiram errados os homens? Aonde se foram os grandes varões preclaros? Onde mora o famoso herói ensandecido, Matsen, que os guiou para o escuro mortal? Nas montanhas de seu próprio ser, enfurnado, Egressou-se o herói, mas seu corpo ainda vaga Pelos vales ao longo, umbrosos, morada Do ímpio Terror, companheiro infesto. III - Indícios do Ser, seu Tempo e sua Vontade Pelos anos dolevos, armíssona, a terra, Em tragédias sangüíneas, chorou longamente. Foram anos de Guerra - é o tempo em que os pais, De seus filhos, assistem aos enterros, premortos. Por conflitos cindidos, irmãos se estraçalham, Se atalham com tramas, tingindo-se em culpa. E seus corpos ingentes se apequenecem LIX Aos poucos, sem que os olhos se possam dar conta. Resta às mães dar à terra o que, um dia, lhes fora. Demoram-se à noite, a juntarem nos campos Os egros frutos da guerra, e, ao fragor de um pranto Furente, se lhe incensa o fogo da morte. Resta à terra a penúria de um povo acabado. Ao povo, apenas dor; mas, da dor, a esperança Acaba a nascer, sempre, esparsando consigo Os caminhos possíveis a todos os Fins. IV - Tempos Passados De um vale cristalino no berço, à luz Deu o filho, e, alçando-lhe coisas venustas, Libertou-o; o orbe lhe afaga em tesouros, Entrementes, a opimos ofícios o impele. E Gaia, que o gerara, a Mãe-Terra, o amava, E seus entes que tudo mantinham em Ordem. O céu resplandecia o horizonte em inúmeras Vias multifloridas, bem orientadas. Musa, diz-me o fado de um filho que volve, Ingratamente, as costas às graças maternas, Usurpando-lhe as rédeas do engenho do mundo, Ufanando-se em tantos ardis façanhosos! Caos lhe há de embalar seus apegos chorosos, Quando, inerme, por terra cair, aferrado Em suas Leis, pisoteado por irmãos LX Sobre a terra, que lhe há de negar um indulto. XLVII No dia seguinte, partimos em direção a Parathálassa, cidade portuária localizada na maior das três ilhas costeiras. A primeira, como vos narrei anteriormente, é a em que se encontra Keimélion, tendo um formato ligeiramente redondo e tamanho mediano. A ilha de Parathálassa, por sua vez, surpreendeu meus olhos ocidentais ao surgir em meio às brumas do oceano conforme percorríamos a ponte liga a cidade dos monges à dos navegantes. XLVIII Sem dúvida, não só seu tamanho é impressionante, mas também as construções de madeira lá encontradas. Naquele dia, as muralhas nebulosas de Parathálassa pareciam atingir os céus, embora, mais tarde, tenha descoberto que não são em tamanho superiores às de Fláurin. XLIX Há uma floresta no coração da ilha, cortada por um rio chamado Amphis, devido à dupla correnteza de suas águas. Explicou-me Yanon que Amphis era na verdade um pedaço do mar que seccionava em dois a ilha de Parathálassa. L Cruzamos uma pequena ponte de madeira, e, à nossa esquerda pude ver um monte de tamanho respeitável, de onde os orientais extraem sal e carvão. Seu nome, todavia, falha-me à memória. LI Não precisamos andar muito mais para avistar as LXI primeiras moradias de pescadores, assentadas ao redor da muralha. Disse-me Yanon que aquela se tratava da parte pobre da cidade, oposta à parte rica, localizada face às muralhas oeste e sul. O interior, restrito apenas à família real e à casta de monges e samurais, continha alguns palacetes e templos sagrados. Infelizmente, não me houve tempo de conhecer tais lugares, uma vez que o tempo de XVI minha busca urgia. Desta arte, dirigimo-nos sem mais demora para o porto de Parathálassa, erguido face à muralha oeste. LII Despedimo-nos de Yanon cortesmente, agradecendolhe todo o trabalho que tivera em nos guiar nos últimos dias. Com efeito, cumprira seu trabalho, uma vez que Phéron conhecera, na fronteira entre nossos países, um mercador oriental de grande renome e capitão da Serpente Marinha, a mais bela barca já vista por esses olhos meus, eu te digo, caro príncipe.XVII XVI. É triste pensar que exista um povo no qual, se alguém se mostra corajoso e apto a governar, acaba sendo humilhado pela autoridade máxima, punido de múltiplas formas e, por fim, exilado. Às vezes, custo a entender como os orientais veneram a titã patrona do bem. XVII. É célebre o episódio em que Clióphoros, passeando pela terra dos elfos azuis, encontrou-se boquiaberto perante suas jangadas, confessando que mesmo a mais simples dela era superior à Serpente Marinha. No entanto, o orgulho certamente o impediu de narrar tal episódio em seus diários. LIII Passamos a noite em uma estalagem do porto, pois já era tarde e também por termos sido, pouco depois de nossa chegada, informados de que Kato e a Serpente Marinha só chegariam na manhã seguinte. LXII Livro Terceiro - Telogaia “É preciso viver o saber.” LXIII I Kato era um homem único, daqueles que, uma vez conhecidos, deixam para sempre sua presença marcada nos campos de nossa memória. Trajava-se com roupas leves e de cores claras, tendo à cabeça um chapéu que lhe protegia da irradiação dos três sóis. Não era, de forma alguma, como os outros orientais que conheci em Sênnyl Leste, mas, sim, fazia-me lembrar dos tempos em que Kragûn Kreionkheir, capitão da guarda de Adámantos e melhor anão que já conheci, passou entre nós em Fláurin, tendo trazido notícias dos reinos subterrâneos. Certamente, a semelhança entre os dois não era na estatura, mas em serem ambos extremamente bonachões. Durante o mês que navegamos as águas límpidas do Mar Glauco, meu rosto chegava a doer de tanto que Kato me levava a rir com suas anedotas e peças juvenis. II O mar é um lugar fascinante. Especialmente para nós do Oeste, creio eu, que não estamos de forma alguma acostumados a ver a grandeza plácida das águas em seu movimento undíssono. A extensão que viajamos provavelmente se equipararia a uma jornada de ida e volta de Fláurin a Adámantos, e isto em apenas um mês. Com efeito, a navegação é uma das maiores artes já criadas. I. Esta lenda servirá de exemplo ao Iniciando da maneira pela qual os povos menos desenvolvidos se valem de experiências empíricas para substituir a ciência quando se vêem na necessidade de fazer uso de seus intelectos de forma criadora III E, por sinal, este foi um dos tópicos que mais me interessou nas conversas que tive com o capitão da Serpente Marinha, já que era ele um homem sabedor de muitas histórias e lendas. Por isso mesmo, então, pedi-lhe que me contasse a origem dos barcos e como haviam os povos do Leste adquirido a ciência de I tão profusa arte. Por conseguinte, narrou-me Kato a lenda de Jiro. IV Segundo a lenda, Jiro era pescador e nativo de LXIV Parathálassa. Passava seus dias na orla do Mar Glauco, mesmo quando não estava trabalhando, e mais do que ninguém gostava ele de contemplar as águas no silêncio do isolamento. V Numa noite primaveril, surgiu-lhe em meio à bruma marítima a imagem de uma ninfa envolta em sedas azuis. Sobre sua pele clara refulgia o orvalho com o brilho dos astros sidéreos, e pequenas escamas se davam a ver em toda sua extensão até a cauda fina que serpenteava ao seu redor. Por um lapso de segundo, pôde Jiro ver-lhe os olhos de opala e os fios diáfanos dos cabelos que pareciam se estender até além de sua cintura. Então sumiu, deixando ao pescador não mais que um devaneio. VI Arrebatado por aquela imagem sobre-humana de beleza, Jiro lançou-se ao mar e nadou tanto quando pôde, até perder o fôlego. Enquanto nadava, parecia-lhe que a figura o chamava em voz maviosa para que a alcançasse no coração do oceano. E, no dia seguinte, acordava o pobre Jiro em meio à areia na praia de Parathálassa. VII A cada noite que se seguiu, a ninfa se lhe aparecia, e o mesmo triste processo se repetia. Até que ao pescador lhe veio um expediente engenhoso, algo que lhe permitiria alcançar a ninfa em meio às ondas oceânicas. VIII Por duas semanas ele trabalhou, juntando lenho com lenho, amarrando com esmero cada feixe de madeira, até que estava construída sua pequena jangada. E, com ela, foi-se Jiro na mesma LXV noite até onde a ninfa o levou. IX Pressionado por seus concidadãos mais tarde a revelar onde estivera, Jiro apenas disse que Hydros o presenteara, criando nele o anseio pelas artes náuticas, de que agora era o pai. E, depois disto, em muito evoluíram os orientais as técnicas de construção de suas naus, delas fazendo uso na pesca e na defesa de suas terras, até a perfeição, materializada na Serpente Marinha, a mais bela barca já construída, como jamais se cansava de dizer nosso capitão. X Após uma noite turbulenta em que a fúria do mar e do céu se abateu sobre nós na forma da mais terrível borrasca, o amanhecer trouxe-nos a tão esperada imagem de Telogaia. Uma maciça formação rochosa se erguia do interior das brumas, assomando seu cume plúmbeo até as vaporosas nuvens do céu de Trinômia. Nuvens no céu e bruma no mar. Telogaia nos saudou com sua austeridade pétrea, guardadora de segredos além da imaginação dos homens mortais. XI Com o trabalho impecável de seus marinheiros, Kato fez com que baixássemos âncora a uma distância passível de ser transposta pelo pequeno barco a remos que levávamos conosco na Serpente Marinha. A cada braçada, a Montanha do Anoitecer se avolumava à nossa frente, e, sob sua sombra monumental, nossas almas se encolhiam em temor e respeito. Aportamos em meio às pedras da encosta, olhando à nossa volta a maneira pela qual se dispunham as rochas, como uma assombrosa floresta de pedras, guardando a entrada para a montanha, onde, segundo uma lenda antiga e já quase de todo apagada da memória dos homens, dorme LXVI Mors, o dragão símile da morte. Um calafrio desceu-nos a espinha conforme caminhávamos sobre aquela ilha sacra em busca do único homem capaz de impedir a calamidade próxima, Pantagnosko, o ancião. XII De acordo com os mais antigos entre nós, Pantagnosko convivera com Árkhon Primeiro no Tempo das Guerras, aconselhera Anaxândron em seu governo, visitara todos os cantos de Trinômia e dos habitantes dela se isolara há poucos anos, buscando morada numa ilha distante e à qual poucos homens sabiam II chegar. XIII Phéron era um destes poucos. E não por acaso do destino, mas por ter ele próprio guiado Pantagnosko, em sua velhice, até tal retiro. Agora, trazia-nos até a pequena caverna na encosta da Montanha do Anoitecer, humilde e singela. Nenhum adorno se mostrava à entrada. Apenas a runa que identificava Pantagnosko podia ser vista sobre uma grande pedra que certamente servia para vedar o ambiente em dias de chuva. Estava recostada e, no chão, não vimos nenhum sinal de que havia sido usada na noite anterior. II. Segundo consta em nossos registros, Pantagnosko dificilmente contava mais de cento e dez anos. XIV Um vento gélido nos cortou a alma conforme esboçamos o primeiro passo para dentro da caverna. Em seu interior, sentado contra a parede, a figura de um velho pôde ser vista. Estava coberto por um manto e seu rosto não se dava a ver. Respirando fundo, saudei-o tão bem quanto pude: “Salve, sábio e venerando Pantagnosko, a quem Lithos concedeu o saber de tudo quanto há na vasta Trinômia. A ti viemos da terra do senhor da montanha, eu, Clióphoros Lithokhthônio, o afamado bardo, e Phéron, teu guia, a LXVII mando do glorioso rei Äschnor III, por conta de um terrível presságio: viu, em sonhos, que sobre nós um dos sóis se apagaria, nosso mago real, Wildegan.” XV Apesar de todos meus esforços, do ancião ouviu-se um som de escárnio. Franzi o cenho e calei-me, aguardando que falasse. Phéron deixou-me a sós com ele, soltando um suspiro entristecido ao sair. XVI “Meu tempo é findo, bardo. Ao contrário do que te informaram as lendas, sou apenas um homem, e, sendo homem, como homem porto-me. A mim não é dado mover montanhas. O trabalho de titãs, aos titãs eu relego. Se vivi muito, a eles todo o mérito é cabido. Agora, os teus deveriam saber também disto. Entre eles vivi e a eles ensinei tudo o que sabia. Preferiram cultuar uma lenda a aprender a vida de um mortal. Saiba, Clióphoros, que, quando um estranho se aproxima e, apertando-lhe a mão, cumprimenta seu senhor, um cão crê que lhe faz uma ofensa. Se vós, cães, sois tão cegos a ponto de dar abrigo a um verme traidor e permitir que ele, cão que é, destrua o lar de seus senhores enquanto estes dormem, que sofram também a surra a ele destinada. Volta para tua casa e dize aos teus que uma parte do sol certamente há de cair sobre suas cabeças infandas. Agora, deixa-me só. Se sobrevivi ao III embate de ontem, foi para morrer hoje na paz de Lithos.” III. Com efeito, o único fato digno de ser louvado em Pantagnosko é de que ele sabia a respeito do cão traidor. No entanto, preferiu tornar-se um ermitão a prestar ajuda a seus concidadãos. XVII Incapaz de pronunciar uma palavra sequer, fui como que lançado para fora da caverna, tão rápido pus-me a andar tendo ouvido a ordem do ancião. Decepcionado e perdido, fitei meus companheiros que, apesar de tudo, estavam ainda alegres e LXVIII inscientes do ocorrido. Forcei-lhes um sorriso e disse que estava tudo acabado. Alegraram-se em seu íntimo, crendo o oposto do que tentava lhes informar, e, no intuito de voltar ao lar, se puseram a preparar a embarcação. Com um suspiro de desesperança, segui-os em silêncio. XVIII Havia tanto em minha cabeça... O rei de Fláurin me incumbira com uma grande missão e agora, quando finalmente chegara ao fim dela, via-me como um joguete nas mãos de algum ser vil. Conspirações se criavam no território fértil de minha mente numa velocidade inquietante. Passava a indagar se Jahnor não teria uma parte nisso tudo, ou mesmo Phéron, já que Pantagnosko sequer pronunciara-lhe uma palavra, tendo o mesmo ainda deixado o recinto tão cedo quanto pôde... XIX Naquela época, muito pouco dos planos do traidor de que Pantagnosko falara eram de meu conhecimento. De fato, mais ainda me era obscura sua identidade. Logo, cheio de questionamentos estéreis e tristezas incuráveis, subi a bordo da IV Serpente Marinha. IV. Creio que, mesmo se Pantagnosko gritasse-lhe o nome do traidor, Clióphoros não compreenderia. Somente com um esforço vindo de dentro é que se consegue abrir os olhos e enxergar além do véu enganador da opinião. XX Quão enfadonhos não me foram os gracejos de Kato nos três dias seguintes de viagem. Com efeito, precisei de um esforço sobre-humano para não deixar que meus companheiros notassem a diferença em meu estado de espírito. Dissimulei estar enjoado com a viagem e mantive-me em meus aposentos até a terceira noite, quando novamente os céus de Trinômia reverberaram em coriscos vibrantes, e, açulando o furor da maré, as ondas fremiram e os ventos cantaram, com seu sopro gélido e incessante, a morte insepulta de nossos homens. LXIX Livro Quarto - Sennyl Sul “Navega consciente neste mar. Faz do íntimo o teu leme e das paixões a tua vela.” LXX I Meus olhos se abriram lentamente; as pálpebras, pesadas com a areia que senti cobrir-me a face. Com dificuldade, pus-me de pé, incrédulo de haver sobrevivido. Ajeitei minhas vestes, as quais agora se encontravam em farrapos. Todas, à exceção de uma: a longa capa de seda azul com que me agraciara o benevolente rei Náukles, desejoso de que o presente me concedesse a proteção de Hydros. E eu a tive. Sem dúvida que a tive... Mas não meus companheiros, capitão Kato, seus marujos, e Phéron, pois que a tempestade da terceira noite da viagem de volta os lançara a uma morte insepulta no fundo do oceano, onde jamais encontrariam a paz no reino dos mortos. II Havia grande tristeza em meu coração. Todavia, mais do que nunca, o íntimo me dizia que mister era que algo fosse feito para impedir a catástrofe que viria, para impedir o traidor incógnito e seus engenhos traiçoeiros. E, com estes pensamentos dando-me as forças necessárias, segui em frente, deixando para trás não mais que minhas pegadas incertas sobre a cálida areia da praia. I. Por algum motivo, ou talvez ignorância, Clióphoros furtou-se a mencionar que o Deserto de Nara tem tal nome devido à lenda de uma bela mulher que, impedida de ter aquele por quem nutria uma paixão desmedida, lançou-se dentro da Mão Negra, muito antes de Ôlethros fazer de lá sua morada, sacrificando-se a Pyros. Ela ficou para sempre presa no submundo, e suas lágrimas ácidas corromperam todos os rios subterrâneos, de modo que vegetação alguma pode vicejar naquela área, valendo-se do lençol freático. III Caminhei o que me pareceu um dia inteiro sob a fúria incessante dos três sóis. Maior do que em qualquer outro lugar que I estive, no Deserto de Nara, brilham com poder os astros régios que, na tríplice lei de seus raios, moldam o mundo, nossa querida Trinômia. IV Em meio a uma cortina de areia que se erguia das dunas com o sopro do vento, vislumbrei a imagem de um homem que se me aproximava conforme andávamos. Cada vez mais perto, enquanto eu progressivamente ficava cada vez mais cansado. O calor parecia LXXI consumir-me as energias de forma assombrosa. Por meus lábios ressacados, a respiração arfante deixava-me o encerro da boca em frágeis suspiros. Cada vez mais fracos, e meus olhos já não viam e os ouvidos se taparam... V Uma comoção de gritos apressados invadiu-me os sonhos, trazendo-me de volta ao reino material num despertar súbito e ofegante. O quarto em que me encontrava era diferente de tudo que até então havia visto, pois havia sido construído com barro alaranjado preenchendo a estruturação de madeira.II Algumas estantes podiam ser vistas nas paredes, guardando toda a sorte de pequenas figuras de barro, as quais representavam, segundo mais tarde vim a saber, os guardiões do deserto, os filhos de Pyros, pois eu me achava em Sênnyl Sul. VI Levantei-me, buscando ajuda no apoio de uma cadeira que se encontrava ao lado da cama e em frente a uma pequena mesa, cujas ferramentas que se encontravam em sua superfície eram banhadas pela iluminação rubra do fim de tarde, projetada quadrangularmente pela forma da janela pouco acima. II. O tipo de construção a que o autor se refere chama-se adobe e não só é extremamente mundana como também pouco eficaz. III. Por mais que isso pudesse chocar o bardo, o líquido lá encontrado deveria ser puro sangue, mas não necessariamente se tratava de uma bebida. VII Encontrei os poucos bens que ainda me restavam, o bastão imantado, a capa de seda e minha mochila impermeável junto aos grandes vasos em que descobri, para minha surpresa, uma bebida avermelhada, tal qual o vinho, mas da qual subia-me às narinas um olor semelhante ao de sangue fresco...III VIII Cada vez mais surpreso e aterrorizado, juntei o que LXXII restava de meus pertences e minha coragem para deixar o único recinto da casa em que me encontrava. Do lado de fora, surpreendeu-me uma cena em muito parecida com as que vi em minha terra natal: as pessoas do lugar se reuniam numa espécie de praça, sentados ao redor de um pequeno palanque, de onde aquele que me parecia ser seu líder tentava pô-los em ordem. IX No que nossos olhos se encontraram, ele cessou sua própria gritaria, e os demais, como que pressentindo perigo, também se calaram. X “Forasteiro, se és amigo, toma um lugar junto aos nossos e atenta ao que tenho a dizer. Do contrário, deixa agora nosso povo e agradece a Pyros por salvar-te a vida, já que a guerra com que nos agracia impede-nos de dar-te atenção.” IV. É triste dizer, mas Clióphoros também não era exatamente asseado também. Inclusive, tinha fama entre os nossos devido a seu odor peculiar. V. “Terrível”. XI Algo em meu íntimo se gelou ao ouvir aquelas palavras, talvez por temor do homem barbado e feito em puro músculo à minha frente, talvez da desgraça que me acompanhara e se abatera sobre todos que comigo se encontraram nas últimas semanas. Ainda assim, sentei-me junto àqueles homens brutos, vestidos em peles curtidas de animais e adornados com troféus de guerra que variavam desde anéis de metal forjados a partir de armas inimigas, a até pedaços dos próprios inimigos. Cada um deles era muito singular em seus modos e idumentária, mas, sem exceção, todos fediam mais do IV que qualquer antro em que eu jamais estive. XII Na hora que se seguiu, Deinôs,V o líder dos bárbaros, LXXIII pôs-nos a par da situação em que se encontrava seu povo. Segundo soube então, as tribos de goblinóides e orcs que com eles dividiam o deserto viviam em constante guerra, de acordo com o resultado da qual eles decidiriam a supremacia sobre o território. E tal guerra entre os clãs goblins e orcs era o que até aquele dia salvara do ocaso aquela tribo de homens que vivia às margens do oásis de Nara, um límpido espelho d'água cuja nascente se encontra nas cordilheiras que limitam o reino do Sul e principiam o cantão do Oeste. XIII Tal era a situação daquele povo até então. Viviam em constante luta, sempre cuidando em atacar o clã de monstros que estivesse se sobressaindo na contenda, para assim garantir que jamais houvesse um vencedor naquela guerra sem fim. No entanto, naquele mesmo dia um mensageiro cruzara as altas dunas de Nara, VI chegando por fim até Termôkhora, a cidade em que me encontrava. Trazia consigo a mensagem de um rei ocidental, de Äschnor III, senhor de Fláurin. A carta se lia da seguinte forma: “Bárbaros, é de nosso conhecimento que sois responsáveis, por conta de vossa adoração e rituais nefandos, da decomposição de Hélios Oriental. Meu bom conselheiro me explanou a forma pela qual cultuam Pyros, e, segundo o que me assegura, quereis trazer os sóis para nosso mundo, aumentando, por conseguinte, a potência do senhor das chamas. Sabei que não permitiremos tamanha aberração! Os filhos de Lithos hão de encontrá-los no campo de batalha dentro de um mês, e então poremos um fim nessa heresia!”. VI. “Terra-do-calor”. VII. “Serpente-de-fogo”. VIII. Espécie de sacerdote tribal incumbido de trazer alguma espécie de iluminação espiritual e mesmo proteção mística aos homens mais simples. XIV Num coro infernal, os homens da tribo se manifestaram, juntamente a seu líder, para que se preparassem os machados e os demais instrumentos de guerra, mas silenciou-os VII VIII Drakópyros, o venerando xamã que, sendo um dos poucos LXXIV letrados presentes, acabara de ler-lhes em voz alta a carta que acima reproduzi-vos, leitores.IX XV O simples ato de haver erguido seu cajado, no intuito de falar-lhes, fez com que, em poucos segundos, todos lhe concedessem a atenção que demandava. E, então, fechando os olhos em concentração, a eles proclamou em ágora: “Intenções ruins a mim são claras como a luz do fogo eterno... Esta carta não nos veio do rei flaurino, mas sim de um mago de Sênnyl Norte!...” XVI Tomei coragem e pronunciei-me, então, pondo-lhes a par de minha missão e das desgraças que me acompanhavam em minha viagem. Contei-lhes, detalhadamente, a forma pela qual, durante a noite, fomos, eu e meus companheiros de viagem, atacados por uma tempestade descomunal em duas ocasiões distintas. Narrei o que vi em Telogaia e o fim de Pantagnosko, que, numa das noites de borrasca, havia combatido algum adversário terrível que lhe arrancara todas as forças enquanto para sua caverna nós nos dirigíamos a bordo da Serpente Marinha. E, por fim, como vim a naufragar por ação de um novo temporal, chegando, então, à cidade de Termôkhora de uma maneira que a mim era desconhecida. IX. É deveras interessante o fato de que Clióphoros não se tenha pronunciado em defesa do rei de Fláurin em primeiro lugar. Inclusive, ele não demonstra, em momento algum, preocupação para com o mesmo. Sem dúvida alguma, suas viagens acabaram por torná-lo um tanto insensível, ou talvez por demais paranóico. XVII Um homem forte e esguio ergueu-se em meio à multidão. Mantinha parte de seu cabelo num rabo de cavalo que lhe pendia às costas junto ao restante de seus cachos negros. Suas feições eram duras e bronzeadas pelo sol do deserto, mas havia em seu semblante algo que inspiraria a confiança na maioria dos mortais, certamente devido à justeza com que se comportava. Disse-me que fora ele quem me encontrara nas proximidades do mar e carregara LXXV até sua cidade para que lá me recuperasse. Agradeci-lhe brevemente, pois que a ocasião não me permitia expressar toda a gratidão que por ele tinha. Seu nome, como mais tarde vim a saber, era Dikaiólykos,X e era responsável pela patrulha das redondezas da cidade. XIX “Forasteiro,” continuou Drakópyros, “se o que dizes é verdade e creio que o é , mais certo ainda me parece o presságio que tive quanto a esta carta. Os magos, sem dúvida, enviaram-na com a esperança de que, atiçados por suas mentiras, déssemos guerra aos homens ocidentais. Tolos que são, subestimaram-nos!... Deverão, agora, pagar por isso, e não pouco. E tu, Clióphoros, terás parte nisto, pois vejo que tens o dom da palavra, talento necessário para pôr em prática o plano que agora tenho em mente...”. XX Desta arte, fui levado à casa de Deinôs, a qual, para minha surpresa, não era, em tamanho, de forma alguma maior do que as demais. Lá, Drakópyros nos contou o que planejara. Eu, homem vário que era, deveria adentrar o terreno proibido de Sênnyl Norte e alcançar a alta torre do Lycaeum, onde haveria de encontrar o traidor. Para tanto, fazendo uso de seus chocalhos e de uma cantiga ancestral, o velho xamã preparou um ritual que faria com que a carta retornasse àquele que a escrevera tão logo estivesse em suas proximidades. Uma vez revelado o culpado, eu deveria expô-lo a Fatus, o arquimago, e este certamente tomaria as medidas necessárias para puni-lo. X. “Lobo-justo”. XXII Agradou-me, de certo modo, a simplicidade e a forma direta pela qual se expressam os homens de Termôkhora, pois que a LXXVI reunião que tivemos naquele dia não durou mais do que meia hora, tempo suficiente para que Drakópyros me expusesse seu plano e diretrizes básicas. XXIII Desta forma, os três deixamos a casa do líder dos bárbaros de Termôkhora, Deinôs, o qual, prontamente, pôs-se no intento de acalmar seus homens, no que teve pouco sucesso infelizmente. XXIV Contudo, uma dádiva de Pyros, como a denominaram, logo alcançou aqueles homens bronzeados e sua cidade à beira do oásis: despontando acima das altas dunas que nos delimitavam o horizonte, uma legião de criaturas se nos aproximava. Um grito de júbilo alcançou os céus de Trinômia enquanto os homens percorriam as vielas em direção às suas casas, trazendo, ao voltarem, seu armamento de guerra, o qual era constituído, basicamente, de grandes machados adornados com pequenos ossos presos por fios de cabelo. À minha volta, o movimento incessante paralisou-me, de modo que pouco pude fazer além de observar-lhes os modos peculiares. XXV Chamou-me, sem dúvida, a atenção mais do que qualquer outro um homem ingente, feito todo em músculo, cujo corpo semi-nu estava coberto por tintura de guerra em desenhos ameaçadores. Ao redor dele, os outros se organizaram, e, logo, pude XI constatar que deveria ser seu general. Ktêinon era seu nome. Faltam-me palavras para descrever o terror que seus olhos inspiravam. Com efeito, era um homem sem igual. XI. “Que mata”. LXXVII XXVI Dando-me um tapinha encorajador às costas, Deinôs demandou-me se era conhecedor das artes da guerra, ao que lhe respondi não serem elas a mim, de forma alguma, estranhas. Porém, expliquei-lhe que minha participação no combate não se dava no brandir de armas, mas no insuflar de ânimo e coragem no coração dos homens!... Riu-se de mim, Deinôs, dizendo-me que, de todos os povos de Trinômia, o dele, certamente, não era o que necessitava de tal tipo de encorajamento quando na guerra. XXVII Sorri-lhe um tanto envergonhado, mas, então, nossa conversa foi interrompida pelo silêncio cortante dos homens, cujos olhos estavam fixados nas dunas do leste. No ápice destas, coroado por um pôr-do-sol sangüíneo, um cavaleiro negro podia ser visto. Às suas costas, esvoaçava uma capa rubra e flamejante. De seu elmo escuro, nas laterais erguiam-se duas pequenas asas, tangendolhe as aberturas da orelhas. Sua placa peitoral trazia uma insígnia conhecida e temida em toda Trinômia: uma chama cujo interior era vazio, negro como a armadura em que estava estampada. Havia um sentido duplo para tal simbologia. O primeiro dizia respeito ao fato de Mórdax, quando morto, ter deixado a Chama Eterna, artefato ancestral e dádiva de Pyros, longe de sua terra natal. O segundo e mais terrível sentido da chama vazia era o de anunciar aos que o viam a falta de sentimento, de âmago, daquele que ostentava o ícone máximo do mal, para que soubessem que ele, Ôlethros, era o arauto de Pyros. XXVIII Naquele momento, malgrado as palavras de Deinôs, senti que minha lira seria, por fim, uma necessidade, pois que o povo a meu redor quedava mudo e desesperançoso conforme a horda de anões do fogo marchava lentamente duna abaixo, movidos LXXVIII pelo ritmo fúnebre de tambores de guerra que faziam os próprios céus, prenunciadores da matança em seu vermelho vivo, tremessem em medo e horror. XXIX Voltando a si, o líder de Termôkhora principiou a dar suas ordens, fazendo com que os seus se organizassem ao redor da cidade, tal qual uma barreira humana, enquanto eu animava o coração dos homens com a canção A guerra no momento em que esperamos, a mim ensinada pelo antigo bardo Áidokles,XII conterrâneo e tutor querido. A guerra no momento em que esperamos A guerra no momento em que esperamos, Os pés plantados firmes sobre o solo, Os olhos no inimigo; Da guerra a batida dos tambores É una com o sangue que nos move, Que em nossas veias ferve. À frente, aquele que há de nos dar glória Quando o aço em fúria expor seu sangue ao mundo E ao chão tombar inerme. Atrás, o povo que em nós se fia, Imaculado está como há de estar Se bravos nós lutarmos. XII. “Glória-do-canto”. LXXIX XXX Nosso esforço combinado logo surtiu efeito e os valorosos homens de Termôkhora tornaram ínfimos os tambores dos anões vermelhos conforme vibravam seus machados contra os escudos, o alto alarido aos céus subindo. XXXI Com um urro desmedido, lançaram-se os dois lados quando a distância que os separavam podia ser percorrida em um minuto de corrida. Um minuto que separava vida e morte para muitos. Um minuto que significava o último minuto para aqueles que naquele dia tombaram. Alguns dizem que pressentimos nossa morte quando a enfrentamos frente-a-frente. Os que a pressentiram naquele dia deram tudo de si em seus gritos de guerra, fazendo daquele minuto, num coro horríssono, seu canto de morte e seu próprio encômio na glória vindoura. XXXII Chocaram-se num espetáculo ensurdecedor, metal contra metal, carne contra carne, sangue banhando a cálida areia de Nara. O som de ossos se partindo podia ser ouvido de longe, seguido pelo grito de terror daqueles que perdiam suas vidas. Os que tombavam cobriam o chão tal qual um horrendo tapete, sobre o qual se erguiam os sobreviventes, e, ainda que sem se aperceberem, enviavam a Lithos, ao pisotearem-nos, aqueles que se encontravam, no chão, incapacitados de se levantarem. XXXIII Deinôs e Ktêinon lutavam lado a lado como que possuídos pelo espírito da guerra. Suas armas cortavam ar e carne com a mesma facilidade com que seus movimentos rápidos e precisos eram desempenhados. Ao redor de cada um deles, tendo passado menos de cinco minutos, havia ao menos uma dúzia dos temidos LXXX anões vermelhos, os legionários de Ôlethros e protetores de sua torre. Ele, por sua vez, o soberano do deserto, descia em trote sereno e inabalável, dirigindo-se ao lugar em que lutava Ktêinon. XXXIV Os dois se encontraram pouco depois, quando já batiam em retirada os anões vermelhos, perseguidos por aqueles de Termôkhora que ainda tinha energias para tanto. O Senhor da Destruição puxou as rédeas de Nyx,XIII sua égua negra, cujos olhos vermelhos amedrontam até o mais corajoso dos homens. XXXV Ktêinon, ofegante e banhado em sangue, manteve seus pés firmes no solo, o machado de duas mãos, pelo qual era conhecido, seguro firme em suas mãos. Lutava não apenas com o ímpeto daquele que protege os seus do inimigo, mas no frenesi dos que amam o combate e dele fazem sua existência. XXXVI Lento como a própria Morte ao se aproximar da vítima, Ôlethros desceu de sua montaria, desviando do caminho a longa capa flamejante enquanto o fazia. Já de pé, desferiu um golpe inverso com o punho esquerdo para derrubar um infeliz que o tentara surpreender pelas costas, e, com a mesma placidez de movimentos, desembainhou Thanásimos,XIV o machado negro que trazia às costas e, então, aproximou-se lentamente... XIII. “Noite”. XIV. “Que traz a morte”. O machado de Ôlethros foi forjado a partir de uma costela de Mórdax. É-me, no entanto, desconhecida a maneira pela qual ele foi capaz de remover a costela de uma estátua. XXXVII Ktêinon rasgou os ares na fúria com que se lançou sobre o Senhor da Destruição. Seu machado, num meio arco que traçou de baixo acima, partiu a chama vazia de Ôlethros em dois, incutindo-lhe um corte profundo na carne e lançando-o uma dezena LXXXI de metros para longe. XXXVIII Em alívio, surpresa e júbilo, as mulheres e crianças gritaram, rindo-se daquele que, com toda sua empáfia, havia sido derrubado por um bárbaro. XXXIX Ktêinon já examinava, com um amplo sorriso, seu suposto troféu de guerra, a égua negra, quando Ôlethros voltou a se mover. Levantava-se tão lentamente como andava. XL O bárbaro, incrédulo e furioso, gritou de ódio conforme lançou-se uma vez mais sobre o homem armadurado. XLI Foi recebido, ainda de joelhos, por Ôlethros, que desferiu um golpe à frente com sua manopla, cravando-lhe as garras no peito. Por Lithos, juro-te, príncipe, que vi Ktêinon fenecer ali mesmo, ficando pálido e fraco conforme sua energia era transferida, no sangue que jorrava sobre a armadura, para Ôlethros, o arauto do mal. XLII Deinôs tentou ainda impedi-lo, com um berro desesperado, mas foi jogado para longe com outro golpe inverso de Ôlethros. XLIII Quedamos imóveis enquanto o cavaleiro negro, tardonho como sempre, montava novamente e partia solitário. E, LXXXII mesmo que todo seu batalhão de anões vermelhos tivesse sido aniquilado pelos valorosos homens de Termôkhora, ainda assim, a tristeza reinava suprema sobre os bárbaros do oásis de Nara. XLIV Em silêncio, separamos os cadáveres, preparando os nossos para o funeral costumeiro em Sênnyl Sul. Durante os dois dias que se seguiram, as mulheres choraram suas mortes. Ao final da segunda noite, Deinôs fez um breve discurso acerca da honra dos que morreram, e, conforme me havia requisitado pouco antes, eu canteilhes a Oração Fúnebre enquanto seus corpos eram incensados na glória de Pyros, para, só então, encontrarem o descanso junto ao solo onde Lithos demora. Oração Fúnebre Vós que lutastes no campo de guerra onde Pyros demora, Eu vos saúdo, pois glória eterna alcançastes em morte. Estes de que hoje nós nos despedimos viver hão de sempre, E não por terem aqui perecidos em prol de nós todos, Mas por se terem dispostos no íntimo, bravos que eram, A abraçarem a morte se isto forçoso assim fosse. Hoje, aqui, não daremos à terra o corpo de homens, E, sim, daremos de nós uma parte nos nossos premortos. Que nós possamos viver à altura de vosso exemplo, Nossos heróis, protetores guerreiros da sacra Termôkhora. LXXXIII XLV Durante os dois dias de luto, pude assimilar alguns dos costumes daqueles homens. Soube que, ao atingirem a maioridade, devem deixar a cidade e desafiar para um duelo, no qual se podem valer apenas de seus punhos, algum dos trolls que vivem, além do oásis, a noroeste de Termôkhora. Se sobreviverem, devem trazer de volta as garras da criatura, e estas lhe adornarão o machado que receberá de seus pais para brandi-lo na glória de Pyros. XLVI Quando crianças, vivem como animais. Com efeito, os lobos do deserto nutrem grande simpatia por aqueles homens e lhes toleram a companhia, ficando, mesmo, gratos por ela. Drakópyros disse-me que com os lobos aprendem os jovens tudo de que necessitam na vida adulta: a caçar, a respeitar o líder, a proteger a matilha acima de tudo, e a dividir o que descobrem. XLVII Pareceram-me deveras sábias estas lições, de modo que passei a olhar com outros olhos aqueles homens incomuns e sua sociedade. XLVIII As mulheres são consideradas sagradas em Termôkhora e são protegidas como tais. Ao contrário do que acontece em meu país, onde as mulheres têm direitos iguais e possibilidade de lutar, em Sênnyl Sul elas são reservadas ao âmbito do lar. Apesar de terem muitos filhos, a grande maioria deles acaba, durante os muitos combates, perecendo, de modo que os de Termôkhora contam pouco mais do que quinhentos habitantes. XLIX Na primeira noite que passei em Nara, pedi a LXXXIV Drakópyros que me contasse alguma das histórias de seu povo. Em resposta, narrou-me diversas lendas, das quais uma pareceu-me fenomenal. Por isto mesmo, passei-a em verso, a fim de que não se perdesse, a história que conta a Origem de Ôlethros.XV Origem de Ôlethros 5 10 15 20 XV. A origem de Ôlethros segundo documentada por Clióphoros é, no mínimo, romântica e simplista. Pareceme que foi forjada pelo xamã de Termôkhora para que a culpa pela existência de um novo conquistador recaísse sobre os orientais, na figura de Matsen. 25 Musa, reconta-me a época infanda que outrora viveram Os nossos antepassados quando Ôlethros ímpio nasceu. Diz-me quem foram seus pais e a história dos dois me inspira. Dentro do templo de Pyros na sacra cidade, Termôkhora, Alta e esbelta, uma sacerdotisa belíssima havia, Sempre vestida em sedas vermelhas que ao vento esvoaçavam, Como se o corpo perfeito estivesse-lhe em chamas ardentes. Era chamada de Kháris, pois fora uma graça de Pyros Que lhe salvara a vida ainda no ventre materno. Quando voltava sua mãe para casa ao final de uma tarde, Eis que lhe surge, saída das dunas de areia, uma serpe, Dorso sangüíneo e vil como todas as crias da noite. Dando-lhe o bote, lançou-se em rumo à mãe e a Kháris, Mas, antes que ela pudesse erguer-se do solo de Nara, Fê-la em chamas o magno Pyros, titã irrepreensível, Desta arte, à mãe e a Kháris salvando de morte inglória. No ano em que a jovem completa seu décimo nono verão, Apaixonou-se por ela um homem que há pouco chegara De muito longe no Oriente, e abrigo hospital recebera, Tendo cabido a Kháris prover-lhe do que carecesse. Por três semanas trocaram os dois as palavras afáveis Que aos corações dos amantes somente se dão a surgir. Olhos nos olhos se olhavam com grande ternura e respeito, E, ainda que Kháris sentisse o peso da culpa no outro, O íntimo lhe inspirava paixões sobre-humanas por ele, Este valente e heróico varão do Oriente, Matsen. LXXXV 30 35 40 45 50 E eles se amaram de forma jamais vista antes no mundo, Pois que era um misto de irrefreável paixão e calor E o mais puro enlace de almas no amor comedidas. Força era que isto jamais agradasse ao lorde das chamas, O qual, ao ver em sua filha o rebento de um homem do Oriente, Muito se enfureceu em seu íntimo avassalador. Manifestando-se, então, aos amantes lhes disse em cólera: "Amaldiçôo-te, Kháris, por tu te unires com cães, E as crianças que trazes no ventre eu tomo de ti. Só lhe as devolverei quando o cão que tu chamas de esposo Instituir as virtudes de Pyros no povo de Hydros, Desta maneira, fazendo-se digno para meus olhos." E, assim, Matsen retornou ao país em que ele nascera, Para trazer-lhes a guerra e a discórdia que a todos aparta. E, então, teria a todos do Oriente Matsen corrompido, Não lhes houvesse ocultado no ventre materno mãe Gaia, Que aguardava, cuidosa, o ataque dos filhos de Ápeiron. Volta Matsen à cidade sagrada no solo de Nara, Entristecido com sua derrota e a falha com Pyros, Que lhe surgiu logo em meio às chamas dizendo em cólera: "Tu me falhaste, Matsen, e por isso mesmo devolvo-te os filhos, Para que vivam inglórios no mundo que tu me criaste. São teus os filhos, mas levam no íntimo a cólera minha E dar-te-ão mais vergonha do que já as tem em teu peito." L Quando nasceu o terceiro dia após o combate, prepareime para partir em direção a Sênnyl Norte, assim como havia planejado Drakópyros, o xamã da cidade de Termôkhora. LI Com certo pesar, deixei aqueles homens com cuja LXXXVI companhia já começara a me habituar, para dirigir-me a norte e além do Deserto de Nara. A fim de guiar-me, por sugestão de Deinôs, Dikaiólykos viajou comigo em meio as dunas que separam o Oásis de Nara do final do deserto. LII Nossa jornada durou uma semana, longa, sedenta, escaldante... No terceiro dia de viagem, após subirmos até o cume de uma duna gigantesca, pudemos avistar a Mão Negra, o palácio de Ôlethros, todo ele erguido em rocha magmática, no formato de um punho semi-aberto, e de cujo cume lava ardente pulsa eternamente, escorrendo em sua extensão e criando um círculo de fogo que delimita sua fortaleza. Ao sopé de seu castelo, vivem as tribos de anões vermelhos e homens-lagarto que o protegem. Mais acima, sobrevoando as cinco torres, tivemos a terrível visão de pesadelos alados, criaturas que se assemelham a cavalos, mas em cujas patas e crina a chama de Pyros pode ser vista. LIII Mais que depressa deixamos o lugar, cuidando de não nos avistarem seus guardiões. LIV Algo de extraordinário, com efeito, ocorreu na manhã seguinte, quando acordamos e demos conta de que, sob o solo arenoso em que havíamos montado acampamento, uma estrutura repleta de runas se escondia. No intento de descobrir a natureza da construção perdida, removemos parte da areia que a cobria, mas meu guia, tendo visto um certo signo, pediu que me ajudasse a desfazer o que havíamos acabado de concluir. Ainda que um tanto com dúvida, auxiliei-o a recobrir a estrutura. LXXXVII LV Mais tarde, quando já nos encontrávamos longe do lugar, contou-me Dikaiólykos a Lenda de Klauma e Guélos,XVI a qual me espantou de tal modo que soube que deveria transformá-la em verso. Lenda de Klauma e Guélos Sobre a cálida areia de Nara, Houve um tempo em que Klauma errara. Sempre que alguém a cidade deixava, Eis que de um vulto o choro se ouvia. E, se partisse a buscar quem chorava, Nunca este alguém para os seus voltaria. Pela cidade o rumor se ouvia De que um monstro ali perto vivia. Muito espantado com este relato, Guélos se pôs a verdade a buscar Pois ele cria que atrás destes fatos, Outros ainda ele iria encontrar. XVI. Respectivamente, “Choro” e “Sorriso”. Sabendose a origem desses nomes, podese ver como a lenda deixa de ser um conto sem propósito para tornar-se uma história modelar, cuja moral servia para dar alguma educação aos jovens de Termôkhora. Desta arte, então, ele parte a explorar. E, logo mais, pôde um choro escutar, Que parecia advir do horizonte, Vento e areia turvando a visão. Aproximou-se cuidoso do monte, Onde, chorando, viu uma aberração. Ah, que ao contrário de tudo até então Guélos sorriu-lhe em consideração. A criatura, em raios e gritos, LXXXVIII Se transmudou na donzela que antes Fora forçada num hórrido rito A dar seu corpo em troca humilhante. Foram-se, então, tendo rumo ao distante, Pois eram um ao tornarem-se amantes. Estando o feitiço do monstro quebrado, Vítima foi do que ele inventara. E há de ficar para sempre trancado Sob a cálida areia de Nara. LVI Ao final do sétimo dia, chegamos ao limite do deserto, onde, por detrás de uma duna, voltavam a florescer as campinas. Todavia, mais do que em Sênnyl Leste, era aqui fechada a mata, de forma a semelhar-se a uma parede verde, separando o deserto do restante do mundo. LVII Despedi-me de Dikaiólykos e agradeci-lhe imensamente, tanto por ter-me salvo a vida depois do naufrágio, quanto por ter-me guiado em segurança e impedido que minha curiosidade me levasse à ruína. XVII. Quando interrogado a esse respeito, Clióphoros confessou que, na verdade, se esquecera de demandar o nome da floresta a seus habitantes. No entanto, para não ter de fazer tal confissão ao rei, ele mascara o fato com mais uma de suas histórias apelativas. LVIII Deste modo, após ter volvido o olhar para ver meu guia aguardando que eu partisse, respirei fundo e comecei a explorar a Floresta de Gaia, como assim proponho chamá-la, já que seus XVII habitantes apenas a chamam de “lar”. LXXXIX Livro Quinto - Floresta de Gaia “A voz de dentro é a voz primeva.” XC I Meus primeiros passos sobre aquele solo recoberto por folhas secas e raízes foram tão incertos quanto minha própria vontade de seguir adiante. Através da cúpula majestosa perfeita nas copas das árvores, os raios de sol fluíam áureos e vibrantes, produzindo feixes de luz cá e lá, revestindo de ouro as samambaias e as hortaliças que se espraiavam ao longo da trilha num festival de cores e tons. II Aos poucos, fui reganhando minha coragem, já tão abalada pela perda de amigos queridos e pelos muitos insucessos de minha missão, e, portanto, continuei minha caminhada. Sob meus pés alguns galhos velhos estalavam e, no verdejante véu acima, as folhas se moviam reticentes com o vento, tal qual as ondas e a maré, num farfalhar uníssono. III A trilha me levou floresta adentro, serpenteando entre grandes rochas e árvores tão magnas e antigas quanto a própria terra que as suportava. Um pequeno riacho que brotava acima de uma gruta cruzou meu caminho em seu leito cristalino, onde pequenas pedras preciosas cintilavam com os raios fúlgidos do sol. IV Resolvi que, antes de atravessar o riacho, descansaria um pouco, recostado nas pedras do exterior da gruta. Aliviei-me as costas e os ombros, dispondo minha mochila sobre as pedras e acamando-me a cabeça nela própria. V Um longo suspiro meu se foi ao vento junto ao som do córrego e a luz serena dos astros régios. Fechei os olhos com um XCI sorriso, pois que a beleza do lugar aos poucos conferia-me uma paz nunca antes alcançada. VI Um rosto redondo e curioso se encontrava à minha frente quando abri meus olhos uma vez mais e, por muito pouco, não me uni a Lithos, premorto de espanto. A criatura à minha frente, conforme percebi nos segundos seguintes, em que me acalmava, era incrivelmente baixa, mesmo quando comparada aos anões de minha terra pátria. Todavia, ao contrário dos anões, ele não era de forma alguma atarracado, e, sim, parecia viver numa eterna juventude.I VII Esbocei algumas palavras de saudação, ao que fui respondido em uma língua há muito esquecida e perdida da memória de quase todos os homens: a língua primeva da era em que Gaia reinava suprema no solo de Sênnyl.II Agradeci, silenciosamente, a meu mestre Áidokles por me haver treinado nas artes e linguagens ancestrais. I. Uma criatura baixa como uma criança provavelmente é uma criança. Contudo, todo este livro quinto é de teor extremamente dúbio. II. Durante sua vida, Clióphoros jamais se manifestou a respeito desta língua primeva. Segundo Fatus, mesmo quando lhe perguntou a este respeito, ele se negou a pronunciar-se. VIII Ainda que um tanto perplexo, conversei com o pequenino durante longo tempo, em que ele me explicou, sempre sorrindo e amistoso, que havia anos que não via alguém das gentes grandes. Segundo o que me disse, seu povo jamais se mostrava a quem quer que adentrasse a floresta, vindo do lado de fora. Todavia, de longe avistara-me a lira que trazia acoplada à mochila de viagem. Animadíssimo com o instrumento, Miro, como se me apresentou, instou-me que lhe tocasse uma canção de amor acompanhado da lira. Ri-me de seu pedido, no que ele prontamente se riu também, e confessou-me estar apaixonado por uma pequenina de seu povo. Atendi-lhe o pedido, cantando e tocando o Soneto de amor XCII bucólico. Soneto de amor bucólico Em meio à relva há muito adormecida, A minha amada, em visos de amor, Suspira em seu leito todo em flor E, na floresta dorme esquecida. Os faunos, logo após o sol se pôr, À sua fronte lânguida e abatida, Com sonhos e grinaldas mui floridas, Lhe hão de conferir o antigo ardor. Mas mesmo que a vistam de princesa, Tal qual um dia ela se mostrou, Ainda falta vida em seu peito. E o beijo que lhe deito é frio. Acesa A vela estava até que apagou Um vento sem destino nem respeito. IX Meu pequeno amigo mostrou-se ainda mais entusiasmado, e, quando terminei a canção, Miro insistiu, tomandome a mão, que eu o acompanhasse até a Grande Árvore. X Assim como vim a saber durante nossa caminhada por demais informativa, os habitantes da Floresta de Gaia não buscam só um tipo de morada, e, sim, espalham-se pela floresta, ora sobre as árvores, ora dentro delas, ora em uma gruta, ora em algum buraco em XCIII meio às raízes, e em tantos outros e fascinantes lugares que a floresta lhes oferta. XI Após alguns minutos seguindo uma trilha escondida, alcançamos, removendo algumas trepadeiras que nos impediam a passagem, um lugar como nenhum outro que meus olhos haviam visto até então: no centro de um jardim florido, rodeada por grandes cogumelos que serviam de bancos, uma árvore antiqüíssima se erguia majestosa, e, ao seu redor, pude ver algumas crianças dos pequeninos correndo alegres ao longo dos ladrilhos azuis que, como pontes sobre aquele mar verdejante, serviam de caminho para quem ali trilhava. XII Sorri um tanto pasmo e segui em frente sem muito pensar. Logo quando dei meu primeiro passo, à minha frente saltou um ingente e fortíssimo ser carregando uma lança que inspirava grande respeito e temor. Da cintura para cima, era homem assim como eu, ainda que muito mais forte e belo, diga-se de passagem. III Para baixo, era feito à semelhança de um cavalo de batalha. XIII Enquanto eu quedava mudo em espanto e admiração, meu pequeno amigo acalmou a sentinela, dizendo-lhe que eu era diferente das outras gentes grandes, pois a voz de Gaia saía de minha “caixa de cordas mágica”, forma pela qual ele intitulou a lira que me acompanhava nas viagens pelos reinos. III. A criatura mencionada é o mitológico centauro, cujas origens remontariam a uma época anterior ainda a dos humanos criados por Gaia. XIV A expressão do centauro logo transmudou-se num sorriso de boas-vindas, e ele saudou-me com um gesto amigável, ao que eu prontamente lhe retribuí de igual maneira. XCIV XV Limpando o suor de meu semblante perturbado mas ainda maravilhado com a beleza da floresta , sentei-me com Miro nos grandes cogumelos que cercavam a árvore central. Uma vez mais, meu amiguinho pediu-me que tocasse algo para eles. Aquiesci com um sorriso e, tomando da lira, improvisei a canção De Gaia os filhos mais venustos. De Gaia os filhos mais venustos De Gaia os filhos mais venustos Um dia eu vi dançarem; Da lira quis a todo custo As cordas ver vibrarem O nobre Miro, pequenino. E em coro então cantamos A Gaia-mãe um belo hino E até tarde dançamos. Canta e dança e bebe o vinho! Ergue a taça até o vizinho! Logo o dia vai raiar! Não podemos parar! XVI Conforme eu tecia meu canto, surgiam-me ao redor, saídas das flores e samambaias, pequenas fadinhas aéreas que, dançando diáfanas pelo ar, moviam-se no ritmo da música. Igualmente graciosas, ninfas ergueram-se do pequeno lago da face leste e juntaram-se às pequenas fadas. Sátiros cantavam em coro e acompanhavam-me com suas flautas. Nos céus os pássaros cantaram e todos os pequenos e grandes animais da floresta para lá correram ávidos por ouvir aquilo que, como então compreendi, para eles era a XCV voz de Gaia. XVII Ao final de minha canção, Miro exclamou a todos que eu havia de ser o escolhido de Gaia, aquele que traria vida novamente à Grande Árvore e convocaria Nédyme, com o que, para meu total espanto, todos os outros presentes concordaram.IV XVIII Naquele momento, como que por mágica, à mente me veio uma canção que, depois de incorporada nas lições de Áidokles, eu jamais cantara. Algo que ele me dissera não ser para os ouvidos dos mortais e que eu só haveria de cantá-la uma vez antes de completamente esquecê-la de minha mente, pois suas palavras reverberariam através dos planos e se haveriam de confundir com o próprio movimento do engenho do mundo a Canção do Ciclo Eterno, a qual, por conta disto mesmo que, tristemente, acabo de explicar-te, meu caro príncipe, não me foi possível transcrever em meus diários, pois há muito se apagou dos campos de minha memória. XIX Numa orquestra celeste, todos os pequeninos, as ninfas, os centauros, os sátiros, as fadas, e mais uma infinidade de seres aos quais eu não saberia denominar, cantamos então em honra a Gaia com um ímpeto jamais visto antes. IV. A jactância de Clióphoros parece não ter fim, a ponto de ele se crer o escolhido para reverter a condição de torpor de forças tão antigas.os. XX Foi então que algo de extraordinário aconteceu: conforme a terra fremia, movida por nossa canção no prenúncio do renascimento de uma força ancestral, a Grande Árvore aos poucos se abriu, tal qual um casulo, e dela um pássaro ingente irrompeu, feito todo em cores rubras e vivas, como a terra de que nascera, XCVI dando a nós a impressão de que estava em chamas. E, assim, ressurgiu Nédyme,V filha de Gaia, a fênix titânica. E, em seu dorso flamejante, eu voei através dos céus de Trinômia e em meio às nuvens, por sobre a terra e ao lado dos três sóis no último dos dias em que se encontravam presentes no céu, mantendo o que restava da ordem e da harmonia em sua tríplice lei.VI XXI Para Sênnyl Norte, então eu fui, acreditando no íntimo que poderia mudar o curso do destino e salvar a todos da desgraça que se abateria sobre nós. Quando se é jovem, o coração fala alto e parece-nos exigir ações de igual mesura. Felizes são aqueles a quem os eternos concedem, ao nascerem, um ânimo semelho a sua capacidade de ação, pois jamais estes se encontram empreendendo tarefas maiores do que aquelas encontradas no quinhão que lhes coubera. XXII A mim, entretanto, sobrepujavam-me os ombros o peso do mundo e o destino de tantos quantos nele vivem. XXIII Despedi-me de meus novos amigos, tendo vindo deles a sugestão de que, no dorso de Nédyme, cruzasse os céus rumo a Sênnyl Norte quando lhes expus minha missão na manhã seguinte. V. “Agradável”, “Doce”. VI. Aqueles que se encontravam dentro da torre principal no dia de sua chegada, dentre os quais eu me incluo, viram o bardo alcançar a terra de Stratos montado sobre um grilo gigante. XXIV Mal sabia eu que as alegrias daquele dia precederiam tristezas jamais sentidas por meu íntimo sofredor. Portanto, lembrate sempre, jovem príncipe, de que a inconstância da sorte é comum a todos os homens, e que cada alegria deve ser vivida como a última. XCVII Livro Sexto - Sennyl Norte “Olha a tua volta e aprende. Deixa teus olhos verem o mundo sempre como se pela primeira vez.” XCVIII I Em meio às nuvens gélidas que transladam, feito anéis de treva vaporosa, os montes GnôramonI vi surgirem as torres magnas em que habitam os nativos de Sênnyl Norte, ao longo do complexo de pontes que as interligam num reforçado anel de metal e gelo. Com efeito, por toda a extensão de suas construções, o acúmulo de neve formara sólidas dentições, conferindo uma atmosfera ainda mais imponente à compleição marfínea dos montes. II Conforme Nédyme aterrissava junto a uma área afastada, eu me deleitava com os detalhes arquitetônicos de cada uma daquelas estruturas, pois que, dentre elas, nenhuma era semelhante a qualquer das outras, sendo sempre única e excêntrica em sua singularidade. No entanto, tinham em comum as cores azuladas, brancas e os tons purpúreos com que haviam sido ornamentadas, em detalhes de curvas surpreendentes, ao longo das vértebras que lhes sustentavam as imensas estaturas. Em seus ápices, eu podia ver como se revolviam, saídos das brumas de plúmbeo intenso encontradas mais acima, finos coriscos, serpenteando pelas formas retorcidas das várias torres.II I. O estranho nome pelo qual Clióphoros, por algum motivo, insistia em apelidar a cordilheira de Lúnula é de origem obscura, mas creio significar “Vista-sapiente”. II. Ao contrário do que Clióphoros afirma, no dia de sua chegada havia uma temperatura agradável e os sóis brilhavam no céu sem que nuvem alguma os perturbasse. III. “Nuvens”. III Os céus, então, se turvaram e as nuvens ganharam vida no que relâmpagos se manifestavam sobre as torres de Gnôramon. Minha montaria apressou sua partida ao ouvir-se o estrondo desmedido que escapara dos gélidos pulmões de Nêphelai,III o imenso dragão branco que rondava os céus tenebrosos de Sênnyl Norte, pronunciando, em seu retorno, o caos que reinaria nesta nova era. IV Sob meus pés fremia a terra a cada urro da criatura, e as brumas a meu redor se avultavam num torvelinho escomunal que se XCIX erguia até o cume do mundo. A neve sobre as torres aos poucos despencava e mesmo os montes se esfaziam à medida que o tremor se intensificava, forçando-me a prostrar-me de joelhos para louvar o poder titânico que naquele momento demonstrava toda sua força, erguendo do solo de Trinômia um país inteiro e dando ao mundo a última visão de Sênnyl Norte antes que ela desaparecesse por completo em meio às brumas celestes mais distantes. V Acordei algum tempo depois quase que completamente soterrado pela neve. Minha mão ergueu-se solitária de dentro do palor infértil da neve, puxando-me para fora daquela cova frígida e inglória. Sentei-me junto ao monte, recompondo-me lentamente, enquanto buscava em minha mochila um frasco de vinho com que me presentearam os habitantes da Floresta de Gaia. Bendita bebida, sem dúvida, pois graças a ela meus pés voltaram à vida, levando-me montanha acima. VI Malgrado o terrível tremor se haver dissipado, mais do que antes as nuvens sobre mim se concentravam como garras negras buscando dilacerar o mais íntimo de meu ser. Sem ter coragem para enfrentá-las com o olhar, eu simplesmente continuei em meu intento, aos poucos escalando os montes, cuja constituição abalada pelos tremores facilitou-me a empresa. VII Senti novamente a terra fremir e, num movimento rápido, lancei-me para dentro de uma fenda na montanha. Logo atrás de mim, uma enorme avalanche desceu os montes, por muito pouco não me levando consigo em seu ventre. C VIII Agradeci a Lithos pela ajuda enquanto retomava o fôlego. Minhas preces foram interrompidas por uma voz calma e dona de grande sabedoria que me saudava. Volvi o olhar para trás de mim e lá encontrei uma criatura de que há muito tempo não ouvia falar. Seu aspecto era sereno como a montanha onde Lithos demora. Sua pele era plúmbea como a rocha e seus olhos claros como o céu. Era um devoniano, a raça mais devota aos titãs e ao estudo dos elementos. São, com efeito, os únicos seres a venerar todos as forças primordiais de Trinômia. IX Fiz-lhe uma grande reverência ao que ele prontamente respondeu de igual maneira. Examinei-o cuidadosamente, curioso com a aparência incomum que sua pele frondosa lhe conferia. X “Bem que gostaria de ficar e conversar contigo, a fim de aprender a cultura de teu povo, bom devoniano. Mas o tempo de minha missão urge e devo enfrentar perigos para os quais sem dúvida não estou preparado...”. XI Ele sorriu novamente e me disse, ajudando-me a voltar para o dorso dos montes: “Olha a tua volta e aprende. A crença de um povo é a fundação de seu castelo. A natureza que lhe cerca molda seu ânimo.” XII Agradeci-lhe com um sorriso e um gesto de cabeça, pondo-me novamente a escalar a montanha que se erguia na imensidão de neve, tentando compreender o que dizia com tais palavras. CI XIII Com muito esforço, atingi a primeira ponte e ao longo de sua extensão caminhei rapidamente em rumo à maior das torres, localizada no centro do anel e circundada por todas suas irmãs. Vitrais de cores claras espelhavam os raios celestes em meio aos símbolos de Stratos enquanto eu me punha em frente à gigantesca porta dupla que dava acesso ao Lycaeum, a escola dos magos de Sênnyl Norte. XIV Como um uivo lançado ao vento, uma voz se manifestou ao meu redor, ecoando através dos montes em um tom grave e profundo: “Tu que ousas erguer-te frente ao lar de Stratos convence-me de que és digno, ou para longe serás bufado como paga de tua afronta. O que te faz crer que estas portas se abrirão perante ti?”. IV. Na verdade, ao avistarmos o bardo que se nos aproximava, abrimos os portões pois que já temíamos que começaria a bater desesperado em nossos umbrais. XV Fechei meus olhos por um instante, pensando ainda no que o devoniano havia me dito. Conforme abri meus olhos, lentamente olhei a minha volta, atentando aos detalhes daquele lugar novo e misterioso. Avistei a neve que cobria as montanhas, as dentições de gelo, as fendas que adentravam as entranhas dos montes, e a imensidão de chumbo que me cobria o horizonte. Novamente, então, vi as cinco torres, todas altas e únicas em seus detalhes. Como uma luz irrompendo do íntimo de meu ser e desvendando um mundo novo, tudo fez-se claro para mim. Respirei fundo e, então, desta forma respondi: “Jamais se abriram estas portas a ninguém. Então, eu ouso vir da terra de Lithos até o território inimigo. Sou único em meu intento e empreendo o que jamais foi tentado. Que Stratos me abençoe com o sopro de gênio que envolve todos aqueles que desbravam terras pelas quais ninguém jamais IV ousou trilhar.” CII XVI Agradeci em silêncio aos ensinamentos do devoniano acerca da filosofia de vida de seu povo no que eu via, com um suspiro de alívio, as grandes portas abrirem-se à minha frente. XVII Meus passos ecoaram no recinto amplo, feito à semelhança de uma gigantesca caverna congelada, em cujo redor uma escadaria se estendia, dando acesso aos andares superiores. No centro do lugar, pude ver um conclave de magos reunidos, de joelhos, em torno de um elfo de aspecto venerando. Assim como os demais, vestia-se com um manto tons purpúreos. Suas orelhas pontiagudas erguiam-se além dos longos cabelos prateados e seus olhos eram claros e profundos como a noite eterna. Em suas mãos, ele segurava uma esfera mística em cujo interior podia-se ver a forma diáfana do Sopro dos Ventos, o artefato ancestral cuja guarda Stratos conferira a Fatus, o arquimago. Ligando estes fatos, apresentei-me a ele com uma breve reverência. XVIII “Saudações, nobre Fatus. Sou Clióphoros Lithokhthônio e venho ter contigo por conta de um traidor que se encontra entre os teus. Trago aqui uma carta escrita por algum dos magos de Stratos, forjada por magia para que se assemelhasse à caligrafia do rei Äschnor III de Fláurin, carta esta destinada declarar guerra aos os habitantes de Termôkhora, culpando-os pela morte de Hélios Oriental. Que a força de Drakópyros revele aquele que a produziu!”. XIX Para minha atônita surpresa, após flutuar através do recinto, a carta susteve seu movimento frente a Fatus. Balbuciei algumas palavras de puro espanto, até que, tomando forma frente ao CIII arquimago, a imagem ilusória de um homem de queixo pontiagudo e volumoso nariz se mostrou, trajando um longo manto aureopurpúreo que trazia as insígnias de Fláurin. XX Tudo fez-se claro então a mim, ainda que tarde demais para que pudesse mudar o curso dos eventos. Como não pudera suspeitar do mago estrangeiro quando Pantagnosko me falara de um traidor? Amaldiçoei minha própria ingenuidade enquanto ouvia o discurso de Wildegan. XXI “Tolo Fatus! Como podes ser o arquimago, sempre foi o que me questionei. Nunca tiveste percepção o bastante para distinguir aquilo que se apresenta à sua volta. Não sabes dizer o falso do verdadeiro, nem o bom do ruim. Se me tivesses dado o devido valor, ao invés de banir-me da terra pátria, não estarias agora nesta posição humilhante, tendo sido completamente forçado por mim a utilizar o poder do Sopro dos Ventos para erguer Sênnyl Norte da face de Trinômia, sob a previsão de que Hélios Oriental tombaria sobre tua cabeça. Agora és prisioneiro de teu próprio artifício. Nêphelai teve de ser solto para cumprir tua ordem e agora não pode mais ser controlado, pois deve fazer aquilo para que foi criado em primeiro lugar: destruir Lithos. E eu, na terra do Rei da Montanha, farei com que isto se cumpra!”. XXII Com isto, sua imagem desapareceu, e todos os olhos miravam Fatus desesperadamente. O venerando elfo ainda tinha seu olhar fixo onde a ilusão de Wildegan aparecera quando pronunciounos: “Não vos preocupais, meus filhos, pois nem Nêphelai não terá força sobre a terra enquanto Sênnyl Norte encontrar-se nos ares, CIV nem Wildegan encontrará paz quando a fúria de Hélios se abater sobre o solo de Trinômia. Aqui estamos a salvo e nada nos impedirá de assim continuar para o resto dos dias. No entanto, agora percebo meu erro em subestimar Wildegan. Jamais imaginei que ele estivesse por detrás de algo tão colossal quanto a morte de um Sol. Sem dúvidas não está sozinho nisto.” XXIII Novamente a terra tremeu e todos corremos em direção à janela mais próxima para ver o mais aterrador dos espetáculos: consumindo-se em suas próprias chamas, Hélios Oriental se decompusera, e dele um fragmento agora rasgava fumegante os céus de Trinômia, deixando atrás de si um rastro de fogo e destruição. De cima do mundo, pudemos apenas vê-lo, em princípio, trespassar as nuvens em direção à terra. Logo depois, no entanto, as brumas se espalharam como se sopradas para longe, e um jorro de magma e areia ergueu-se aos céus quando o fragmento de Hélios Oriental atingiu o cerne do Deserto de Nara. XXIV Mais tarde, compreendemos a maneira pela qual Wildegan conseguira ter sucesso em sua empresa conforme uma legião infernal se erguia do ventre do mundo para estabelecer-se ao redor da torre de Ôlethros. Havíamos entrado em uma nova era na história de nosso mundo. Uma era em que as forças primordiais se erguiam para terminar o combate iniciado há tantos séculos. Uma era em que os homens tomariam as rédeas do engenho do mundo, desfazendo as maravilhas criadas pelos eternos. XXV Este é teu mundo, meu príncipe. Força é que tu lutes novamente a guerra de teu ancestral, pois as forças destrutivas CV novamente se alastram junto ao magma sangüíneo que nutre um ódio mais furente que o de Pyros. Somente com o conhecimento dos ensinamentos de todos os titãs, poderás trazer o equilíbrio novamente a Trinômia e restabelecer a vida tal qual um dia a conhecemos. Deves entender aqueles a tua volta, aqueles que vieram antes de ti, pois são teus iguais e tua sina não há de diferir em muito da deles. Estuda minhas palavras com cuidado e lembra daquilo que te contei. Que minha história te tenha servido de aviso, V senhor, pois temo que seja tudo para que jamais servirá... V. Apesar de todos seus esforços, a carta para o rei jamais deixou os montes de Sênnyl Norte, tendo cinqüenta anos de poeira se acumulado em suas páginas até o dia de hoje. Muitas das informações nele contidas foram consideradas subversivas pelo alto círculo dos magos, e, por conseguinte, foram devidamente censuradas. Ademais, a visão errônea de que nosso arquimago seria culpado pela libertação de Nêphelai certamente faria com que nos declarassem guerra todos os reinos dos homens. Obviamente, Sua Excelência não teve parte nenhuma nisso, tendo sido Wildegan, com o apoio do rei de Fláurin, quem empreendeu tal empresa. Aqui termino minhas anotações. Que Stratos conceda o sopro de gênio a todos os Iniciandos em seus mistérios. Clióphoros Lithokhthônio CVI