Revista dos Formandos da UFBA 2007.2 - Ano: 2007
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Revista dos Formandos da UFBA 2007.2 - Ano: 2007
REVISTA JURÍDICA DOS FORMANDOS EM DIREITO 2007.2 UFBA Diretor da Faculdade de Direito da UFBA Prof. Dr. Jonhson Meira dos Santos Coordenador do Curso de Graduação Prof. Douglas White Chefe do Departamento de Direito Público Prof. Fernando Santana Rocha Chefe do Departamento de Direito Privado Profª.Drª. Roxana Cardoso Brasileiro Borges Relação de professores da Faculdade de Direito da UFBA Antonio Augusto Brandão de Aras - Arivaldo Gandarela Gomes – Carlos Alberto Araponga Doria - Celso Luiz Braga de Castro - César de Faria Junior - Douglas White - Edvaldo Pereira de Brito - Elsior Moreira Alves - Fernando Santana Rocha - Francisco Fontes Hupsel – Fredie Souza Didier Júnior - Gamil Föppel El Hireche - Geisa de Assis Rodrigues - Helcônio de Souza Almeida - Heron José de Santana - Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé - João Carlos Macêdo Monteiro - João Glicério de Oliveira Filho - Johnson Barbosa Nogueira - Jonhson Meira Santos - José Antonio Cezar Santos - José Raymundo Almeida de Sant’Anna - Laíse Maria Guimarães Santos - Luiz Salomão Amaral Viana - Manoel Jorge e Silva Neto - Marcio Flavio Mafra Leal - Marco Aurélio de Castro Júnior - Maria Auxiliadora de A. Minahim - Marilia Muricy Machado Pinto - Mário Jorge Philocreon de Castro Lima - Mônica Neves Aguiar da Silva - Nilza Maria Costa dos Reis - Olindo Herculano de Menezes - Pablo Stolze Gagliano - Paulo Cesar Santos Bezerra - Paulo Eduardo Garrido Modesto - Paulo Roberto Lyrio Pimenta - Raimundo Dias Viana - Ricardo Maurício Freire Soares - Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho Roxana Cardoso Brasileiro Borges - Samuel Santana Vida - Sara da Nova Quadros Côrtes - Saulo José Casali Bahia – Sebastian B. de Albuquerque Mello - Selma Pereira de Santana - Sérgio Alexandre M. Habib – Wilson Alves de Souza Relação dos Servidores da Faculdade de Direito da UFBA Agnaldo Nascimento Júnior – Agnaldo Negreiro – Ângela Requião – Antônio Carlos Sena – Carlos Carvalho – Carlos Miguez – Elon Costa – Eliece Araújo – Jarbas Linhares – Jomar Melo – Jovino Ferreira – Maria Ângela Simões – Maria Angélica Santana – Maria Milsa Brasil – Maria das Graças Sacramento – Maria de Lourdes Santana – Maria de Lourdes Stranch – Maria Regina Machado – Marivaldo Santana – Mércia Mendonça – Mirian Azevedo – Natan Cruz – Noecy Nunes – Pedro Calmon – Sônia Santos – Simone Guimarães – Terezinha Moura – Roniel Barreto – Ramanita Albuquerque – Valnei Silva Relação dos Funcionários e Colaboradores da Faculdade de Direito da UFBA: Alexsandro Pereira – Mário Sérgio Bonfim – Eliomar Ribeiro – Maria Coutinho Matos Roberto Bonfim – Cláudio Araújo – Jonas Santos – Jorge Machado – Marcos Sanches – Daiane America – Elielson Sousa – Gildete Néri – Letícia Santos – Leide Mota – Janielson Sousa – Pedro Amaro – Francisco José – Maria Leida – Rosélia Nunes – Lúcio Flávio – Raimundo Mendes – Nelson dos Santos – Sophia Prata – Vaneson Silva – Renilson Santiago – Genilson Souza – Robério Luz – Antônio Carlos. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA REVISTA JURÍDICA DOS FORMANDOS EM DIREITO 2007.2 UFBA SALVADOR - BA 2007 2007, by Faculdade de Direito da UFBA. OS CONCEITOS EMITIDOS NOS ARTIGOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS, PROIBIDA A REPRODUÇÃO, PARCIAL OU TOTAL, SEM A CITAÇÃO DA FONTE. SOLICITA-SE PERMUTA WE ASK FOR EXCHANGE PIEDESE CANJE ON DEMANDE LECHANGE SI RICHIERLE LO SAMBO AUSTRAUCH WIRD GEBETEN Editor responsável Tagore Trajano de Almeida Silva Capa Carol Cruz Projeto Gráfico e Editoração eletrônica Lúcia Valeska de S. Sokolowicz Revisão dos textos Realizada pelos próprios autores. Bibliotecária Responsável Simone Guimarães Conselho Editorial Milton Pereira Junior, Rafael Ferreira e Tagore Trajano de Almeida Silva Biblioteca Teixeira de Freitas Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. – Vol. 7, n.11 (jul/dez. 2007). – Salvador: UFBA, 1996-2007 Semestral ISSN: 1414-0101 1. Direito-Periódicos I.Faculdade de Direito da UFBA “Que nossos esforços desafiem as impossibilidades. Lembrai-vos que as grandes proezas da história foram conquistadas do que parecia impossível”. Charles Chaplin Agradecimentos É com imensa alegria e satisfação que apresentamos a toda comunidade jurídica baiana e nacional a 11ª edição da Revista Jurídica dos Formandos da Faculdade de Direito da UFBA. O propósito deste importante trabalho é compartilhar uma parte da produção acadêmica de nossa Escola, e trazer ao amplo conhecimento o que há de melhor e mais novo no ensino jurídico desta casa. Esta Revista conta com a participação de alguns dos mais queridos e competentes professores da casa, de muitos dos talentosos e prósperos formandos do semestre 2007.2, e de ilustres juristas estrangeiros, todos contribuindo de forma singular com artigos e trabalhos de excelente qualidade. Gostaríamos de deixar registrados nossos mais sinceros agradecimentos a todos aqueles que, ao longo desses cinco anos de graduação, contribuíram de alguma forma para a busca e formação do verdadeiro espírito acadêmico, sempre tão valorizado nos corredores de nossa Escola e muito bem representado na presente coletânea. Assim, a realização desta revista só foi possível graças à participação da Câmara de Vereadores de Salvador, presidida pelo vereador Valdenor Cardoso e da Comissão de Planejamento Urbano e Meio Ambiente, especialmente ao vereador Paulo Câmara e sua secretária: Paula; todos eles estiveram à disposição para auxiliar a comissão editorial e estabelecer uma relação nunca antes vista entre o Poder Legislativo de Salvador e a Faculdade de Direito da UFBA; que esta parceria continue gerando frutos ainda mais duradouros para o futuro da pesquisa na Bahia. Esta boa produção científica não poderia estar completa sem a ajuda da 3º Grau e Layout convites, principalmente, a Carol Cruz pela capa. Um muito obrigado a Lúcia Sokolowicz pela diagramação, a Simone Guimarães pela catalogação desta revista e a Milton Fontes da EGBA pelo apoio e paciência. Um agradecimento especial à comissão de formandos 2007.2 que apoiou esta empreitada e colaborou com a divulgação, obtenção de patrocínio e sugestões. Por fim, restam-nos os votos de que novas edições da Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA e de outras tantas coletâneas preparadas por atuais e futuras gerações de alunos e professores da nossa Universidade possam ser sempre produzidas, dando continuidade, assim, a uma sólida tradição acadêmica. Salvador/BA, final de curso, em novembro de 2007. Comissão Editorial SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Professor Doutor Heron José de Santana 13 DOUTRINA INTERNACIONAL A REPRESENTAÇÃO METANORMATIVA DO(S) DISCURSO(S) DO JUIZ : O «TESTEMUNHO» CRÍTICO DE UM «DIFERENDO»? José Manuel Aroso Linhares 17 DEPOIS DA ONDA: MUDANÇA DE REGIME? Winston P. Nagan 67 DOUTRINA NACIONAL ARTIGOS E ENSAIOS DOS PROFESSORES/ ARTIGOS DOS FORMANDOS ARTIGOS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESLEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO Gamil Föppel El Hireche 77 DIREITO AO SILÊNCIO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO (ARTS. 347, CPC, E 229, CC) Fredie Didier Jr 117 A METODOLOGIA DO DIREITO Johnson Barbosa Nogueira 131 DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA EM FACE DO ART.232 DO CÓDIGO CIVIL E SUA DEFESA PELA CRIAÇÃO DE UM HABEAS GENOMA Mônica Aguiar 153 DIREITO DO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 161 PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPP) Paulo Modesto 185 REFLEXÕES SOBRE O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO Ricardo Maurício Freire Soares 205 COMO ESCREVER UM PROJETO DE PESQUISA? Roxana Cardoso Brasileiro Borges 233 O MERCOSUL E SUAS RELAÇÕES COM A ALCA E A UNIÃO EUROPÉIA Saulo José Casali Bahia 269 NOTAS PARA UMA TEORIA HERMENÊUTICO-JURÍDICA Willis Santiago Guerra Filho 281 ACESSO À JUSTIÇA E O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL Wilson Alves de Souza 301 ENSAIOS JEAN CHARLES DE MENEZES E O PROCESSO PENAL DO AMIGO César de Faria Júnior 331 VEGETARIANISMO COMO AÇÃO POLÍTICA Heron Santana 337 O DIREITO DO TRABALHO NO SÉCULO XXI Rodolfo Pamplona Filho 341 DOUTRINA ESTUDANTIL ARTIGOS DOS FORMANDOS A INTERRUPÇÃO ÚNICA DO PRAZO PRESCRICIONAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 347 A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 367 O CONCEITO DE “DÍVIDA” EMPREGADO NO INCISO LXVII DO ART. 5.º DA CF/88 E A PRISÃO CIVIL COMO MEDIDA COERCITIVA INOMINADA Bruno Garcia 389 REVISITANDO A DIALÉTICA GESELLSCHAFT UND GEMEINSCHAFT TÖNNIESIANA Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 409 A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS NO CASAMENTO DO MAIOR DE SESSENTA ANOS Ciro de Lopes e Barbuda 427 A QUESTÃO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS E OS ASPECTOS HISTÓRICOS DE POLÍTICA CRIMINAL Daniele Andrade/ Claudiane Cunha 443 A POSSIBILIDADE DO CASAMENTO ESPÍRITA COM EFEITO CIVIL Dejair dos Anjos Santana Júnior 455 VOTO SECRETO DO PARLAMENTAR: DA CRÍTICA À LEGITIMAÇÃO Eduardo José Suzart Filho/ Fernando B. de Oliveira Lima 471 PONDERAÇÕES SOBRE O EMPREGO DE ALGEMAS Fabio Serravalle Franco 493 AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO RELAÇÃO DE TRABALHO X RELAÇÃO DE CONSUMO Fernando Gomes de Almeida 515 BREVES NOTAS SOBRE A EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO Felipe Rondinele Nascimento Rocha 531 RESPONSABILIDADE CIVIL PELA GUARDA DE CÃES PERIGOSOS Isabelle Virgínia Melo Fernandes Batista 563 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA: CONCEITO, CONSIDERAÇÕES, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO Joana Bonfim Machado 575 ANTECIPAÇÃO LIMINAR DA TUTELA (DE LEGE FERENDA): HIPÓTESE DE PROCEDÊNCIA PRIMA FACIE? Leonardo de Moura Landulfo Jorge 597 HIPÓTESES DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO MISERO COMO REGRA DE DECISÃO: ANALOGIA IURIS TRABALHISTA Lucas de Andrade Cerqueira Monteiro 613 DIREITO DO TRABALHO E SUA FLEXIBILIZAÇÃO Mariana Costa Barbosa 629 A RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES FAMILIARES Milton Pereira da Silva Júnior 637 A ESTABILIDADE PROVISÓRIA DA EMPREGADA GESTANTE Natália Cerqueira de Castro 655 DA NECESSIDADE DE UM NOVO TIPO PENAL: CRIME DE TRÁFICO DE ANIMAIS Nicolle Neves Nobre 669 A CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 285-A (IMPROCEDÊNCIA PRIMA FACIE DAS DEMANDAS REPETITIVAS) Pedro José Costa Melo 683 UMA ANÁLISE GERAL SOBRE A EXCEÇÃO DE NÃO-EXECUTIVIDADE E ALGUMAS PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O INSTITUTO, APÓS A NOVA REFORMA PROCESSUAL CIVIL Rafael Silva Ferreira 703 A CRISE ADMINISTRATIVA DOS ESTADOS OCIDENTAIS, O MODELO REGULATÓRIO E A RELATIVIZAÇÃO DE INSTITUTOS CONSTITUCIONAIS Rafael Nascimento Vieira/ Tiago Amaral de Castro 727 O ASSÉDIO SEXUAL NA PERSPECTIVA DO DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO Ramon Moura Ribeiro 739 PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA, DISTRIBUIÇÃO DISFARÇADA DE LUCROS – DDL E VALORAÇÃO ADUANEIRA: DISTINÇÕES NECESSÁRIAS Raphael Moura Passos 759 EXECUÇÃO PROVISÓRIA: UM CAMINHO A EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL Renato Kalil 769 A INSUFICIÊNCIA PARADIGMÁTICA DO CONCEITO AMBIENTAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Savigny Machado 779 APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS DURANTE O CARNAVAL DE SALVADOR (SSA), BAHIA, BRASIL Tagore Trajano de A. Silva/ Arivaldo S. de Souza 801 PROCESSANDO JESUS POR PUBLICIDADE ENGANOSA: BREVES NOTAS SOBRE A “RESTITUIÇÃO DE DOAÇÃO RELIGIOSA” NO DIREITO BRASILEIRO Thiago Pires Oliveira 825 O POSITIVISMO DO TUPINIQUIM E SEUS EFEITOS COLATERAIS NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Vinicius Conceição 845 APRESENTAÇÃO Professor Doutor Heron José de Santana Professor Adjunto dos programas de graduação e pós-graduação da UFBA, mestre em Direito pela UFBA, Mestre em Sociologia pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPE, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Direito Ambiental e Direito Animal (NIPEDA) - www.nipeda.direito.ufba.br, fundador da Revista Brasileira de Direito Animal e presidente do Instituto Abolicionista Animal – www.abolicionismoanimal.org.br. É com muita alegria que felicito aos acadêmicos da Faculdade de Direito da UFBA que irão colar grau no segundo semestre de 2007, por mais uma edição desta Revista dos Formandos, publicação que, desde o ano de 2001, vem divulgando artigos científicos de professores e alunos desta faculdade. Nada senhores... nada é mais importante no mundo acadêmico que a produção científica de seu corpo docente e discente, e tenho certeza que iniciativas como esta só fazem engrandecer a nossa instituição. De fato, quando a universidade foi criada por monges cristãos, há mais de oito séculos, nas cidades de Bolonha e Paris, ele tinha como objetivo fomentar o conhecimento e a produção desinteressada de novas idéias, o que acabou por constituí-la em uma das mais importantes instituições da história da humanidade. Vejam só! Quando Newton desvendou o segredo do arco-íris ao decompô-lo num prisma, o poeta romântico John Keats o acusou de haver destruído o encanto do fenômeno, num típico exemplo de má poesia científica e charlantanismo, muito comum nas universidades e que exercem uma péssima influência sobre as novas gerações, fomentando dogmas e preconceitos incompatíveis com o mundo científico. Noutra oportunidade, durante uma sessão plenária da Associação Britânica para o Progresso da Ciência, realizada em 13 30 de junho de 1860, em Oxford, Inglaterra, o professor Samuel Wilberforce perguntou a Thomas Henry Huxley, um dos principais discípulos de Darwin e especialista em símios, se ele descendia do macaco por parte de pai ou de mãe, tendo Huxley respondido que se tivesse de escolher o pai entre um ser ignóbil, que usa suas faculdade mentais para obscurecer a verdade, e um pequeno e valente macaco, preferia esse último. Não esqueçamos as sábias palavras de Boaventura de Souza Santos ao destacar a atual crise universitária como crise de hegemonia, que a faz buscar meios alternativos para suprir sua incapacidade em desempenhar efetivamente suas funções; crise de legitimidade, decorrente do risco de mediocrização e descaracterização pela inclusão democrática de grupos sociais historicamente dela excluídos; e crise institucional, que a faz adotar modelos organizativos de outras instituições, consideradas mais eficientes. Seja como for, não podemos esquecer que esta crise somente poderá ser superada se unirmos nossos esforços, pensando a longo prazo os problemas da nação, produzindo conhecimentos para além das exigências do mercado e divulgando idéias que contribuam para a edificação de uma ponte segura entre o presente e o futuro do país. A tradição dos formandos de publicar uma revista como essa é uma clara demonstração de que estamos apurando o nosso habitus científico, que, dirá Pierre Bourdieu, é uma espécie de jogo acadêmico que faz com que façamos o que é preciso fazer no momento próprio. Não se iludam, a escolha livre de temas de investigação ainda se constitui na mais importante marca ideológica de uma universidade que se pretenda digna desse nome, a despeito dos que ainda insistem em transformá-la em um mero centro de formação profissional. 14 Apresentação DOUTRINA INTERNACIONAL A REPRESENTAÇÃO METANORMATIVA DO(S) DISCURSO(S) DO JUIZ : O «TESTEMUNHO» CRÍTICO DE UM «DIFERENDO»? * José Manuel Aroso Linhares Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, professor convidado do Departamento de Direito da Universidade Lusófona do Porto. I Dirigirmo-nosà jurisdição como intenção de realização e como discurso — reconhecendo explicitamente as «situações institucionais» que constituem (ou podem constituir) o modus operandi deste discurso e o(s) «projectos» ou exigências de sentido que iluminam (ou que devem iluminar) aquela intenção1 — é hoje enfrentar uma diversidade sem precedentes de representações possíveis. Espectro cujo problema gostaria aqui e agora expressamente de considerar. Sem esquecer que este problema é menos o da diversidade de representações enquanto tal — inscrita numa pluralidade (não menos complexa) de concepções do direito — do que o da possibilidade e o da exigência de a testemunhar — e então e assim também o de encontrar o caminho e o idioma indispensáveis2. Um problema no qual importa imediatamente mergulhar, ainda que apenas para surpreender as vozes (mais significativas) desse espectro. Admitindo que esta primeira tentativa de reconhecimentomapping possa socorrer-se já de um filtro de inteligibilidade plausível (entre muitos outros mobilizáveis). Um filtro de inteligibilidade capaz de iluminar o espectro em causa sem reduzir a extensão das possibilidades (mais ou menos contingentes) com que este se nos oferece e sem impor a estas possibilidades 17 territórios estanques… mas então também capaz de respeitar a «estrutura» heterotópica que os diversos discursos e os diversos projectos — e todos eles como sujeitos-partes num sentido absoluto — compõem3. Um filtro de inteligibilidade que as nossas preocupações presentes possam imediatamente reconhecer (com o qual estas inevitavelmente se cruzem)… Que filtro de inteligibilidade? Atrevo-me a propor aquele que mobiliza o contraponto sociedade / comunidade (societas / communitas, Gesellschaft / Gemeinschaf). Um contraponto que nos remete decerto para a «distribuição» consagrada por TÖNNIES, mas que nos remete sobretudo para o debate plural que as teorias (políticas) da justiça autonomizaram (e que hoje se nos tornou implacavelmente presente)4. Tratando-se de resto aqui e agora menos de convocar os interlocutores deste debate (e as «soluções» individualistas e comunitaristas que os seus tempos específicos nos permitem reconhecer) do que de submeter as representações internas da jurisdição — e os modelos ou «imagens» do juiz que estas constroem — a uma organização-demarcação justificada por exigências e por recursos de integração (mas também por tipos de racionalidade) inconfundíveis — precisamente aqueles que os referidos pólos justificam (ou atraem). Que esta organização está longe de reduzir as possibilidades do espectro interpelado, é o que poderemos confirmar identificando os caminhos que ela nos oferece e levando a sério a distribuição correspondente. 1. Tratando-se desde logo de experimentar o horizonte da societas-artefacto e (ou) de identificar assim três planos ou níveis de objectivação (e a sobreposição-overlapping que os articula). [á] Aquele que, permanecendo fiel à narrativa de uma criação ex nihilo e ao homem desvinculado («independente de toda e qualquer tradição»5) que por ela se responsabiliza — se não mesmo ao status naturalis e (ou) à original position (universalmente representados), 18 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... que a tornam possível —, nos incita simultaneamente a descobrir na emancipação lograda dos interesses e na equivalência dos fins — mas também na redução dos referentes (e dos critérios) materiais a um acervo de afirmações de preferência (subjectivamente experimentadas) — as coordenadas decisivas do seu problema (e da ordem que o assimila)6. [â] Ainda aquele que, encontrando no eixo da episteme e nas «inferências» que este legitima o reservatório-círculo dos procedimentos metódicos permitidos, submete este mesmo eixo a um processo-movimento de transformação — capaz de acompanhar os projectos interpretativos da comunidade dos cientistas (e os códigos de relevância e de comprovaçãofalsificação que estes mobilizem)… mas também capaz de institucionalizar diversos equilíbrios (que o reformulem sob as máscaras de uma episteme-techné… e de uma techné-episteme, abrindo-o a outros tantos discursos de razões). [ã] Sem esquecer aquele que, num traçado paralelo, responsabiliza as abstracções condutoras da ratio-voluntas e dos interesses emancipados — se não já a herança da reine praktische Vernunft e as diversas reformulações do principle of utility (os «argumentos» de KANT e os «argumentos» de BENTHAM)7 — por uma tensão constitutiva irredutível e um pluralismo interno iniliminável, precipitados em outros tantos modelos de equilíbrio (as an appeal to one out of several conceptions of universalizability or to one out of equally multifarious conceptions of utility8). Tratando-se então de experimentar o horizonte da societasartefacto… expondo-o numa (ou como uma) sucessão-continuum de formas e de processos de associação — formas e processos que exigem palcos distintos. Palcos que hão-de corresponder a outras tantas possibilidades da «sociedade aberta» moderno-iluminista, na mesma medida em que consagram distintos «estatutos» universais de José Aroso Linhares 19 cidadania — dominados pela garantia da compossibilidade dos arbítrios, pela efectividade da expansão-generalização dos benefícios ou pelo equilíbrio da auto-diferenciação sistémica (autopoieticamente concebida) 9 … mas também e muito significativamente expostos às finalidades contrapostas de um market mimicking (POSN E R) e de um paradigma «comunicacional» (HABERMAS). Bastando-nos aludir a esta sobreposição-overlapping de exigências (e à sua difícil distribuição interna) para perceber que a identidade da jurisdição interrogada na perspectiva da societas se determina reconhecendo as possibilidades de uma relação orgânica: relação orgânica com a unidade-ordem (politicosocialmente construída) e com o status adventitius que a institucionaliza, mas também e muito especialmente com a «vontade unificadora» (globalmente promulgada) que a representa. e então e assim também com a lex e com o legislador — com aquela lex e com aquele legislador que uma certa «revolução»-acontecimento (als Revolution [eines] geistreichen Volks10) tornou afinal possíveis. Sem esquecer que esta mesma determinação se cumpre unilateralmente: levando a sério as possibilidades de sentido desta prescrição-lex e (ou) reconhecendo as condições funcionais que a especificam ou experimentam — como norma, como imperativo ou como regra11, mas também e muito significativamente como programa (condicional, final ou relacional12). O que é ainda poder reconhecer três grandes discursos em alternativa (e uma multiplicidade de especificações possíveis): aqueles (e aquelas) que as racionalidades lógico-dedutiva, instrumental-estratégica e prático-(se não já pragmático-)-procedimental nos permitem reconhecer. De tal modo que darmo-nos conta daquela sobreposição-overlapping (e dos caminhos que esta distingue) signifique também reconhecer (distribuir… e relacionar) os lugares que as diversas representações do juiz da societas nos autorizam afinal a frequentar. Partindo do juge bouche de la loi do «paradigma 20 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... da aplicação»13 — ou da máscara orgânico-funcional que o protege (e que o consuma como juge arbitre14) —… para reconhecer o juge entraîneur e a passagem da «judicatura à magistratura» (le modèle de justice normative-technocratique) justificados pela intervenção do Estado Providência15 — se não já a «jurisdição de tipo sociológico» a que nos entrega a etapa de l’Âge de l’hommeforme contemporaine (e esta como sociedade da segurança e dos seguros, que é também da solidariedade)16. Antes porventura de exigir que o juiz político do grande consenso constitucional (táctico comprometido com uma grande estratégia material)17 se distinga do juiz-«centro do sistema» (justificado pela reformalização pós-instrumental)18. Sem esquecer a «fuga para frente» da social engineering e o projecto-território do teleologismo tecnológico que a torna possível19: enquanto e na medida em que transforma a decisão judicial num degrau equivalente ao da execução administrativa. Como se apenas uma «diferença de grau» (e não uma «diferença essencial») separasse estes dois problemas (inevitavelmente confundidos nos seus processos de decisão e nos exercícios de «fantasia prática» que justificam) daquele que corresponde à construção (-determinação) da estratégia legislativa. Uma estratégia que a social engineering em causa reconstitui à luz de um princípio epistemológico de experimentação crítica (e dos princípios-ponte que o especificam20). O que nos conduz também à (singular) concertação de free market conservantism e de recusant substantial pragmatism (alimentada por uma profissão de fé nas virtudes do trial and error e da rule of law) que distingue o juiz da economic analysis21 — muito especialmente aquele que interpreta o «interesse público» à luz de um objectivo de «maximização da riqueza (wealth maximization is not only a guide in fact to common law judging, but also a genuine social value and the only one judges are in José Aroso Linhares 21 good position to promote22). O que nos conduz ainda a novas e surpreendentes combinações de argumentos formalistas e instrumentais (se não, insista-se, das heranças ou de certas heranças de KANT e de BENTHAM): aquelas que a institutional theory of law (MACCORMICK23) por um lado e o new textualism (VERMEULE24) por outro lado nos ensinam a reconhecer. Sem esquecer por fim as margens. Aquela em que a relação legislador estratega / juiz táctico se nos impõe «perturbada» pela interferência de «estratégias» alternativas — estratégias que só uma distinta compreensão da societas e da relação teoria/ praxis, se não da ciência como «ontologia do ser social» (alimentada pelas possibilidades-frentes de reinvenção do holismo crítico-dialéctico) estará afinal em condições de assumir25. Ou ainda aquela que invoca a condição pós-moderna de uma societas «em rede» (sustentada numa pluralidade de níveis de poder e numa desordem dominada de processos de transformação) para nos submeter à exigência de um direito «líquido» (intersticial) : o direito que um certo juiz Hermes estará em condições de reconhecer e de experimentar26. 2. Dificuldades de determinação (e de reconhecimento de fronteiras) que estão longe de se reduzir… se quisermos descobrir o julgador comprometido com o regresso da comunidade. Ainda aqui o ponto de partida admite reconstituir-se como uma posição ou como uma frente partilhada. [á] Aquela que reduz a experiência da societas e a identidade colectiva que esta explora (como totalidade e como artifício) a uma dimensão-modelo (se não a uma «tradição» interpretativa) entre outras possíveis (como tal acompanhada de um catálogo selectivo de virtudes e de uma representação-experiência do humano)27. [â] Ainda e muito especialmente aquela que se propõe reinventar a communitas na plenitude dos seus atributos simbólico-culturais: rejeitando todos os caminhos que no-la exponham a uma 22 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... determinação-«corroboração» de elementos ontológicos indisponíveis (ou de dimensões antropológicas naturais)… e então e assim levando a sério a possibilidade de a assumir na historicidade constitutiva do seu processo de realização. O que é decerto descobrir neste processo (e na ordemordinans que lhe corresponde ou no mundo prático que esta constrói) um iniludível (ainda que permanentemente renovado) «sentido de continuidade» — um «sentido» que nenhuma associação de interesses (de sujeitos individuais ou de grupos) estará por si mesma em condições de transformar28. [ã] Eventualmente também aquela que (numa especificação lograda das anteriores) vincula a communitas à «tradição» de uma praxis-prattein autónoma (logistikon bouleuesthain to praktikon dianoètikon) e às virtudes intelectuais que a distinguem — à actividade-energeia da phronesis e ao movimento-kinésis da poiesis-techné —, na mesma medida em que liberta estas virtudes (e os discursos racionais que estas geram) do horizonte de inteligibilidade de uma ordem necessária — daquela ordem que só a «contemplação» iluminada pela sophia (enquanto exigência de experimentar a articulação telos / êthos como uma energeia autónoma, cumprida como bios e como mimesis) estaria afinal em condições de garantir 29. Que dizer no entanto das respostas que assumem esta frente e os seus desafios? Mais do que um overlapping de intenções distintas (alimentadas por uma herança comum) — com o alcance que a procura do juiz da societas (na sua inteligibilidade macroscópico-funcional) nos permitiu descobrir — , dir-se-ia com efeito que estas respostas — e os processos de desenvolvimento que elas asseguram — nos impõem antes um elenco de possibilidades alternativas (cada uma delas com diversos caminhos). Um elenco-espectro de possibilidades ferido transversalmente por desafios recorrentes e pelas respostas positivas e negativas José Aroso Linhares 23 que estes exigem — aqueles que (na sua polaridade exemplar) nos incitam a descobrir o juiz da comunidade dos princípios e o juiz narrador (urdidor permanente de narrativas singulares e das palavras últimas que as fecham). Um elenco-espectro de possibilidades que não obstante confere a estes desafios (e não apenas às respostas que os enfrentam) sentidos e representações incomensuráveis. Bastando-nos aqui e agora reconhecer que a reinvenção da jurisdictio comprometida com o veio auto-subsistente de uma philosophia practica (assim mesmo preocupada com a autonomia constitutiva da phronesis e com a racionalidade sujeito / sujeito que a distingue) — ela própria distribuída (quando não fragmentada) pelos pólos–exigências da recontextualização hermenêutica e da problematização retórico-argumentativa30 — constitui apenas um dos eixos a ter em conta. Um eixo decerto muito complexo — capaz de acolher discursos de fundamentação material e de determinação procedimental… e de assumir (mas também de ignorar) uma preocupação condutora com a autonomia do direito (ou com a especificidade do seu logos) —… e que não obstante importa distinguir em bloco daquele outro eixo a que a discussão da alternativa comunitarista nos vincula (e do holismo ético-prático, se não da abordagem macroscópica a que, independentemente das suas modalidades, esta nos expõe31). Sem esquecer que outros eixos nos comprometem já, em contrapartida, com as exigências de uma comunidade-promessa e com a experiência microscópica que a determina, se não com a inevitabilidade de um continuum prático (um continuum prático que sendo energeia não o seja menos kinésis e aisthesis, e que assim mesmo nos condene a renunciar a uma phronesis autónoma): decerto porque estes outros eixos expõem a representação do sentido (e as possibilidades da vocação integradora que o alimenta, se não a ordem-ordinans que o traduz) 24 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... às seduções (concertadas ou divididas) de uma moralidade política, de uma estética do sublime e de uma ética da alteridade — a primeira preocupada com o encontro tentacular dos efeitos de poder e de resistência e com o «entrincheiramento de hierarquias» que suspende (ou vai suspendendo) o seu movimento perpétuo (mas também e muito especialmente com a possibilidade de o inverter)32, a segunda a mobilizar a experiência do juízo ao qual «só o particular é dado» para reconhecer a singularidade irrepetível de um momento de sensação aisthesis e exigir um discurso que liberte a phronesis do pensamento prático (de um pensamento prático sustentado numa validade normativamente vinculante)33, a última a reconhecer que o contexto-correlato da procura da relação singular (na unicidade e incomparabilidade do seu dizer) se descobre enfim na perspectiva (determinante) de um «Eu de responsabilidade infinita»34. Alusão que nos basta para perceber que os juízes comprometidos com o regresso da comunidade podem ser aqueles que, assumindo a prioridade radical do texto, nos vinculam às intentiones operis (exemplarmente contrapostas) da nova hermenêutica e da desconstração (a estas apenas como atitudes prático-existenciais… ou a estas também como métodos possíveis)35. Como podem também ser aqueles que, levando a sério a prioridade da perspectiva do caso, nos entregam às possibilidades (inconfundíveis) de uma tópico-retórica procedimental e de uma dialéctica sistema / problema materialmente assumida36. Ou ainda aqueles que, convocando a prioridade absoluta do Outro se expõem às lições (não menos exemplarmente contrapostas) de uma jurisprudence of principles (iluminada por uma filosofia do limite ) e de uma justiça-dike (precipitada numa experiência momentânea da justiça)37. E porque não aqueles que partindo de um certo literary turn (ou do cruzamento criícoreflexivamente assumido das experiências do direito e da literatura) José Aroso Linhares 25 nos expõem tanto ao narrativismo wertrational de um communal lawyer (traduzido numa intentio lectoris)38 e de um literary judicious spectator (capaz de justificar uma poetic justice)39, quanto ao narrativismo emancipatório de uma gender consciousness40 ou de uma race consciousness41, se não já ao pathos (selectivamente reconstruído) de uma «realização»-performance42? Sem esquecer decerto aquele que (agindo como se fosse um advogado) nos incita a defender uma ordem de preferências «altruísta»43. Ou ainda aquele que (levando a sério um determinado equilíbrio com a societas dos direitos) assume o seu horizonte wertrational (e a exigência de integrity que o traduz) afivelando a máscara de um Hércules44. 3. Poderíamos continuar, mas importa ficar por aqui. Acrescentando apenas duas notas, notas que este primeiro mergulho no diferendo nos autoriza a reconhecer. Notas decerto indispensáveis, se tivermos presente que o problema que nos ocupa é menos o da pluralidade de «representações» do que o do seu testemunho (ou o do testemunho hoje exigível). A primeira nota restitui esta diversidade (e a crise que ela indicia) a um dos seus factores decisivos— à circunstância de um pensamento que sendo discurso e prática (acervo de discursos e de práticas) perdeu (superou) o seu paradigma (sem o ter substituído por outro!)… —, na mesma medida em que insite na perturbante discussão de fronteiras (se não colonização de territórios) que acompanha esta «ausência». Tratando-se muito claramente de reconhecer que a superação-dissolução do paradigma do Método Jurídico (e outros rule formalisms) — e o repúdio da pretendida autonomia jurídica da sua abordagem — nos condenaram a uma explosão de modelos (e de filtros de relevância) estranhos à experiência do direito (com discussões sobre as fronteiras e a demarcação interior/ exterior tão exemplares como aquelas que o neoconstitucionalismo e a Law and 26 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... Economics por um lado, as deconstructive jurisprudences e os os narrativismos comunitaristas por outro lado nos obrigam a travar45). A segunda nota acentua por sua vez alguns dos perigos (se não paradoxos) desta discussão e das vozes heterogéneas (ou dos estímulos extrajurídicos) que esta introduz. Reconhecendo que tais vozes — em si mesmas, mas sobretudo nos (e através dos) dissídios que estabelecem umas com as outras… — ferem as «práticas constitutivas da juridicidade» — e o «pensamento» que as determina (se não já a «unidade» de «incindível circularidade» que vincula direito e pensamento jurídico)46 — com uma ameaça permanente de indeterminação (ou com o topos reflexivo que a justifica). Uma ameaça que afecta o desempenho normal destas práticas — permitindo que o domínio dos «materiais» vigentes (princípios, programas-standards, critérios-rules, com diversos graus de abstracção-concretização) se abra a um espectro sem precedentes de possibilidades de realização (e outros tantos contextos) —, na mesma medida em que compromete a inteligibilidade-unidade do projecto do direito e da procura que este justifica (se não dos cânones que institucionalizam profissionalmente esta procura). Uma ameaça no entanto que se cumpre evitando os problemas dessas práticas (e as respostas que estes exigem); na medida em que inscreve as vozes em causa (e a legal scholarship que as traduz) numa espécie de vertigem auto-referencial e na cadeia de discursos e metadiscursos que alimentam esta — com o alcance que o diagnóstico (conjunto) de LEVINSON e de BALKIN nos ensina a reconhecer 47. Como outras tantas pretensões de racionalização que, dirigindo-se ou pretendendo dirigir-se (as conclusions-claims) às práticas (de realização) do direito, só conseguem enfrentar-assimilar os problemas dessas práticas indirectamente, enquanto se interpelam umas às outras como José Aroso Linhares 27 discursos ou enquanto desconstroem reciprocamente os argumentos que as sustentam (enquanto renunciam, mais ou menos explicitamente, à vocação-destino de uma reflexão práticonormativa). Como se se tratasse afinal de preservar uma intenção conformadora ou de optar por uma das modalidades de determinação (normativa ou desconstrutiva) que esta oferece, sem descobrir no entanto o caminho que a(s) possa projectar directamente nas práticas-alvo (e na law in action que lhes corresponde). Ao ponto de o sucesso obtido por este espectro de vozes inconciliáveis se reduzir paradoxalmente a um efeito de multiplicação de possibilidades equivalentes. Um efeito que nos expõe aos riscos do esoterismo (e da incomunicabilidade, se não impotência) dos discursos teoréticos, na mesma medida em que entrega estes — enquanto desfazem e refazem a urdidura-trama que os outros engendram — a um implacável jogo de Penélope. O jogo que Duncan KENNEDY denuncia enquanto surpreende o movimento perpétuo dos discursos que recriam (positivamente) a pretensão de neutralidade do julgador (how judges can and should be neutral48)… É certo que só compreenderemos a ironia desta reconstituição (-interpelação!) se tivermos presente a posição de KENNEDY (e a celebração de um juiz polticamente comprometido que a distingue)… e se identificarmos também a crítica de formalismo que os Critical Scholars dirigem aos discursos em causa (e às theories of neutrality que eles defendem): é esta posição (iluminada por aquela crítica) que leva KENNEDY a confessarse «admirador» deste jogo (e dos argumentos que nele se esgrimem). Não decerto porque concorde com qualquer das imagens do juiz (e da neutralidade do juiz) que nele se defendem… mas porque lhe interessa o modo exemplar como estas «imagens» se constroem (anulando-se reciprocamente). Mais do que a ironia, importa- nos no entanto o diagnóstico que a sustenta… e o sinal-rasto com que este nos fere. Mostrandonos e enquanto nos mostra que corremos o risco de mobilizar 28 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... discursos (e intenções conformadoras)… que se alimentam menos dos problemas que pretendem enfrentar (ou converter) do que das críticas que dirigem aos outros discursos. Sinal que, independentemente da intensidade e da extensão com que se nos exponha (e da maior ou menor justeza com que corresponda à nossa situação presente!), nos basta decerto para fazer soar uma campainha de alarme! II Reconhecidos os lugares/ não lugares do diferendo (e as conexões perigosas que os sustentam), urge no entanto perguntar se estamos em condições de o testemunhar — melhor dizendo, de procurar o idioma (ou a sucessão de idiomas) que no-lo tornem inteligível… e de institucionalizar esta procura (ou a mediação que a assegure). Pergunta que nos leva a reconhecer um certo patamar transdogmático e os desafios reflexivos que este acolhe… mas então também a dever ter presente um percurso ele próprio muito complexo. Um percurso que aqui e agora me atrevo a simplificar (se não a surpreender, num flash único) invocando um contraponto muito especial (um contraponto por movimento contrário!) e os dois tempos que (enquanto tempos de reflexão metadogmática) este nos autoriza a distinguir. Tratando-se de confiar uma das vozes deste contraponto oblíquo à nossa circunstância presente , exigindo que a outra voz se confunda com aquela outra circunstância a que uma certa Allgemeine Rechtslehre ou Prinzipienlehre procurou responder, Se o pensamento jurídico herdeiro dos Historiker — preocupado com a autonomia de uma perspectiva interna ([als] Erkenntnis des Rechtlichen aus rein Rechtlichen49) — nos confrontou, no último quartel do século XIX, com a exigência de interpelar o direito vigente a partir de um patamar metadogmático ou transdogmático — um patamar que, pressupondo consumado o processo de autoracionalização da dogmática (enquanto «ciência do direito José Aroso Linhares 29 dogmática» ou «ciência do direito em sentido estrito»50), admitisse enfim «experimentar» a relação juridicidade / cientificidade / Método e discutir a concepção do direito que a torna possível — , o pensamento jurídico do nosso tempo e a circunstância que o determina — enquanto prolongamento implacável de um outro fin de siècle —, esses expõem-nos à urgência de um desafio paralelo (também ele dominado por uma problematização da autonomia ) — mas agora para exigir que o patamar em causa e que a reflexão crítica interna que o torna possível se ocupem prioritariamente com o testemunho-mapping de um diferendo (alimentado por práticas discursivas heterogéneas). Se invoco agora este contraponto é decerto porque este nos permite opor dois tempos exemplares… e ambos como tempos da «teoria» do direito ( se não de um maximum de «teoria» do direito!) : o tempo da consagração-experimentação de um discurso dominante (als naturhistorische Anschauungsweise des Rechts51) — e da operatória (Handwerkzeug) que o sustenta e que se diz Método Jurídico — e o tempo da reacção-resposta à superação irreversível deste domínio — que é também o da experimentação crítica de uma pluralidade de práticas e de discursos possíveis (se não o da impossibilidade de reconstruir um paradigma alternativo). Uma oposição que nos importa… não tanto porventura para insistir na identidade dos seus pólos e nos traços fortes que estes justificam [1.] quanto para surpreender a conexão-vínculo que relaciona os seus tempos de «teoria» a e o processo-provação (se não a «estrutura» em arco) em que estes se integram [2.] 1. Insistir naquela acentuação significa decerto reconhecer (iluminar!) o que no primeiro destes tempos corresponde à concertação feliz (unidimensionalmente consumada) de determinados desafios de institucionalização: daqueles desafios a que o normativismo iluminista por um lado e a assimilação- 30 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... «domesticação» da herança dos Historiker por outro lado expõem a relação direito / pensamento jurídico. Antes porventura de, num exercício de acentuação de convergências (e de frentes partilhadas), convocar o percursoesforço (e as aquisições-resultados) dos legal formalisms (e outros rule conceptualisms) anglo-saxónicos… e de permitir assim que à lição da Theorie der juristischen Technik do «primeiro» J HER ING se associe a síntese metódica de LANGDELL (as a project of structuring law into a system of classification)52. Para que o segundo tempo se ofereça à sua teoria do direito (e deva ser reconstituído por esta) com a auto-subsistência (não menos luminosa) de uma institucionalização «modelar» (que se quer e que se diz pós-postivista). Aquela que (entre muitas outras representações possíveis) OST nos ensina a reconhecer enquanto evoca a «temporalidade metamórfica» (o tempo da conversão progressiva das identidades-instituições) da nossa circunstância presente53 e o «mundo em rede» (reseau) que lhe corresponde54. Na mesma medida em que, reconhecendo que as «fronteiras» interior / exterior se tornaram definitivamente «porosas» e «reversíveis»55, permite que aquela teoria56 se nos imponha (ou seja garantida) com uma inteligibilidade inconfundível ¯ uma inteligibilidade ela própria alimentada pela reconciliação dialéctica compreensão / explicação ou pela perspectiva externa (moderada) que a traduz57 (se não directamente por um paradigma de jogo58). 2. Reconhecer a vinculação que relaciona estes dois tempos e surpreender a «estrutura» em arco (certamente muito complexa) em que estes participam — sem esquecer evidentemente a lição de transparência que a primeira acentuação nos proporciona (e o esclarecimento indispensável que esta representa!) — significa em contrapartida estar em condições de acompanhar a dialéctica de «ordem» e de «aventura» que, nos últimos cem anos — em nome de possíveis teoria(s) do direito (retocando ou substituindo José Aroso Linhares 31 as máscaras que estas exigem) — o pensamento jurídico tem vindo a assumir. Mas então acompanhar uma tal dialéctica… descobrindo nos projectos fundadores de MERKEL, de BERGBOHM e de BIERLING — e nas diferenças exemplares com que estes alimentam a exigência comum de uma allgemeine Rechtslehre ou Prinzipienlehre (e esta como parte integrante, se não como núcleo motor, de uma nova filosofia do direito positivo) — menos o culminar de um «ciclo» (que certamente também representam!) do que o entreabrir (mais ou menos perturbador) de uma porta. Uma porta que nunca mais voltará a ser fechada, cujos (perigosos) limiares não tardarão de resto a ser ultrapassados. Bastando-nos aqui e agora perceber que o estímulo que determina o novo patamar reflexivo ([als eine] Rechstlehre (…) die juristisch durch und durch (…) ist59) — e que o obriga a distinguir-se tanto do processo de objectivação-revelação dos dogmata confiado à ciência do direito (als dogmatische Rechtwissenschaft) quanto do «piso térreo» legitimado pelo esforço percursor da Analytical School of Jurisprudence (reconduzível a uma pura «teoria de conceitos gerais»60)… mas também a distanciar-se da «filosofia do direito tradicional» (se não a eliminar toadas as sobrevivências do jusnaturalismo) 61 — é afinal a oportunidade de interrogar a herança pluridimensional da Escola Histórica e (ou) a divisa de assimilação-superação que lhe faz justiça: «durch die Historische Schule, aber über die Historische Schule hinaus!»62. Uma oportunidade determinada pela exigência de alargar a perspectiva metódica aos domínios (aparentemente mais perigosos) das «instituições públicas»? Antes uma oportunidade provocada por indiscutíveis sinais de crise (e outras tantas resistências internas). Que outros sinais (e resistências) senão aqueles que encontram na acentuação pragmática (mais ou menos explicitamente integrada) do «segundo» JHERING e na 32 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... auto-denúncia que esta compõe (ainda que porventura já não na viragem exterior que esta estimula) os seus exemplos-limite63? Tratando-se muito claramente de reconhecer que a especificação puramente dogmática do Método (enquanto determinação lógicoestruturante do Inbegriff «sistema», submetida à auto-subsistência de uma representação normativista) — na medida precisamente em que se mostra por si só incapaz de respeitar o equilíbrio lógica /tempo, sistema / história exigido pela herança de SAVIGNY — corre o risco de se degradar num mero «domínio cognitivo de prescrições legislativas» (eine bloße Gesetzeskunde64). O que é também e ainda exigir uma instância de reflexão diferente, capaz de recuperar a importância do método histórico (e com esta o equilíbrio perdido com os métodos sistemático e dogmático stricto sensu)65. Uma instância que reaja a uma das consumações inevitáveis da ciência do direito dogmática: aquela que reduz a compreensão da «história» (als historische Betrachtungsweise) a um mero correlato (ou condição de inteligibilidade) do sistema jurídico. De um sistema no qual a máscara da unidade-axioma (excedendo as suas possibilidades originariamente expositivas) se sobrepôs definitivamente à máscara do organismo66. Como se se tratasse afinal de concluir que é à interrogação filosófica —purificada como episteme ou como episteme-nous (libertada da matriz especulativa que a dominara durante séculos) e simultaneamente «rejuvenescida» pelo contributo prometedor das allgemeinen Lehre dos juristas (se não dos juristas-filósofos)67 — que compete enfim tematizar a relação sistemático / histórico. De tal modo que seja possível submeter a determinação-explicitação destes dois pólos (e a representação das tensões que, na sua irredutibilidade, estes impõem) a um novo patamar-sujeito de preocupações sistemáticas (que sendo científicas não sejam menos transdogmáticas). Tematizar a relação sistemático/ histórico reconhecendo a (plena) autonomia do segundo pólo… e esta José Aroso Linhares 33 iluminada pelo Prinzip der notwendige Geschichtlichkeit des ganzes Prozesses68? Podemos dizer que sim. De tal modo que o problema condutor possa ser agora o da representação do Entwicklungsprozeß na sua dinâmica específica — na relatividade e contingência (se não materialidade empírica) dos seus fenómenos. Melhor dizendo, o de exigir uma teoria do direito ([als] realistische Philosophie des positiven Rechts69) e no limite também um conceito de direito (indutivamente justificado), nos quais a conexão com a realidade (e com a Zusammenleben des Menschen70) apareça como um elemento nuclear (se não como uma differentia specifica). O que é já ocupar uma posição efectiva (especialíssima embora!) no percurso-trend da «viragem finalista». Como se as decisões de relevância que convertem o princípio da historicidade do direito (ou a «ligação necessária e interior» que este reflecte) num ob-jectum meta-dogmaticamente determinável devessem afinal — sem prejuízo da intenção sistemático-filosófica que globalmente se lhe dirige (e do cognitivismo estrito que esta professa) — ser confiadas a uma conjunção-convergência de intenções heterogéneas… Mas então também como se — sem rupturas ou soluções de continuidade aparentes (prescindindo pelo menos da tematização que as justificaria)… — se tratasse afinal de reconhecer (de «delimitar») aquela «ligação» (de acumular os elementos-recursos que no-la revelam) passando de uma «explicação» psicológica para uma compreensão prático-cultural… da exigência de uma decomposição analítica para a oportunidade de uma experimentação pragmática… do confronto com ordens contingentes de fins para a convocação integradora de um horizonte de valores ético-comunitariamente reconhecido71. Sem esquecer a mediação (pluralmente determinada) da alltägliche Erfahrung e uma transação contínua entre especificações microscópicas e representações estruturantes. Sem esquecer por fim que a reinvenção lograda da historische Seite se cumpre 34 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... respeitando a systematische-anatomische Betrachtung (redesenhando as fronteiras de relevância correspondentes e o equilíbrio que estas garantem)72… O que é seguramente abrir portas… — fazer corresponder a representação da «realidade» do direito a um continuum de possibilidades com uma extensão incomparável73 —, sem dispor no entanto dos recursos indispensáveis para distinguir as intenções envolvidas e (ou) para tematizar as possíveis soluções de continuidade. Dificuldades que comprometem a «delimitação» projectada? Importa reconhecê-lo. Dificuldades no entanto também que incitam o pensamento jurídico a ultrapassar o limiar destas portas. E a ultrapassá-los sem regresso. Ao ponto de podermos dizer que para além destas portas todas as tentativas de determinar a unidade e a nitidez da «província» metadogmática se cumprem já sob o signo do confronto (se não diferendo). Aquele confronto desde logo que — em nome de uma discussão das possibilidades de uma certa sociologia do direito ou desta como eigene Wissenschaft, alimentada por um conceito de direito autosubsistente (se não pela categoria lebendes Recht) —, vai opor o cognitivismo normativista de KELSEN ao cognitivismo empírico de EHRLICH74. Mas também aquele confronto que, acompanhando as diversas etapas de um certo Positivismusstreit, nos obriga a problematizar estes dois cognitivismos e as linhas de desenvolvimento que eles abrem, mesmo quando alimentadas por novos fôlegos (os fôlegos que hoje reconhecemos no analytical linguistic turn e na reinvenção epistemológica do kritischer Rationalismus, mas também no cruzamento logrado com a herança do american pragmatism)75: a problemtizar tais cognitivismos, entenda-se, a denunciar a compreensão «tradicional» da ciência que os sustenta; o que aqui e agora significa submeter a província da teoria do direito (e esta como kritische Theorie) ao «impulso ético» de uma dialéctica aberta e ao projecto de uma filosofia concreta… e com estas às possibilidades- José Aroso Linhares 35 exigências de um «compromisso de participação» (se não de uma promessa de transformação-«emancipação» da praxis)76. Sem ficarmos por aqui.. Porque há decerto ainda dois outros grandes caminhos a ter em conta (responsáveis por outros tantos confrontos). Caminhos decerto paralelos: enquanto e na medida em que renunciam a iluminar a perspectiva transdogmática com uma pretensão exclusiva de ciência (ainda que já «ontologia do Ser social»). Caminhos não obstante inconfundíveis pelos horizontes que assimilam. Porque se um deles nos incita a reconhecer as possibilidades auto-reflexivas abertas pela «reabilitação da filosofia prática» — se não mesmo a levar a sério o desafio de uma neue Hinwendung zur Rhetorik (capaz de ocupar o nosso degrau com uma rhetorische Rechtstheorie)77 —, o outro assume-se explicitamente como um discurso da singularidade e da diferença — contrapondo às pretensões da universalidade científica (e às seduções de uma tradução holística) as expectativas de organização de um saber ou de uma trama de saberes locais (microscopicamente determinados), saberes que uma organização narrativa (eticamente sustentada) deverá enfim mobilizar como parte integrante de uma atitude crítica (e da promessa que a ilumina)78. 3. Alusão que nos basta para reconhecer uma perturbante circularidade. Para perceber que a província metadogmática que a allgemeine Rechtslehre abriu —enquanto patamar de interpelação do direito (e do pensamento que dogmaticamente o assume) % nos aparece hoje disputada pelas mesmas grandes perspectivas condutoras que alimentam (ou que pelo menos afectam) as «situações instutucionais» desse direito e (ou) dos discursos que o constituem. Como se a perspectiva interrogante — aquela que insistentemente onerámos com a responsabilidade de um testemunho — acabasse afinal por prolongar (num outro plano) o diferendo que constitui o seu «alvo». O que significa decerto 36 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... reconhecer a insuficiência da mediação cognitiva — a impossibilidade de descobrirmos nesta a perspectiva integrante, não obstante as informações preciosas que os seus diversos planos (analítico, empírico-explicativo ou compreensivo) nos proporcionam — , reconhecendo também a impossibilidade de um degrau meta-discursivo (e renunciando assim à equidistância, se não neutralidade, que este poderia garantir). Resignando-nos com a inevitabilidade de iluminar mais um degrau na vertigem interdiscursiva… ou de acrescentar mais um fio na urdidura de Penélope? Antes exigindo a procura de um idioma… e uma procura que (assumindo embora uma preocupação condutora e o compromisso que a traduz) possa resistir a este resultado. III Sendo certo que o primeiro passo na procura deste idioma é decerto aquele que problematiza a possibilidade e a necessidade do testemunho. Um passo que estaremos em condições de cumprir enfrentando a exemplar posição de FISH e esta como um reconhecimento frontal de que é impossível garantir um patamar de interrogação unívoco e produtivo79. Para o Autor de Doing What Comes Naturally trata-se como sabemos de denunciar a improdutividade da teoria ou de uma certa teoria, se não cálculo teorético. Entendendo-se por esta (ou este) a prática discursiva — e o projecto interpretativo, mas também o acervo de «situações institucionais» (mais ou menos partilhadas) — que tenha por objectivo (e por horizonte de relevância) dirigir-se a outra prática. Dirigir-se a outra prática para a delimitar como um objecto — correlato plausível de uma intenção de conhecimento — … mas também para a reconhecer (e filtrar) como alvo logrado de uma conformação possível (com exigências de reconstituição ou de transformação mais ou menos explícitas) — correlato agora de um espectro de intenções de racionalização (que poderão ir da desconstrução à reconstrução prático-normativa, passando José Aroso Linhares 37 pelas intervenções da social engineering e pelas possibilidades da regulação procedimental). Só que se trata também de confirmar o «êxito» das «situações institucionais» que as práticas do direito vão construindo… e a autonomia-distinctiveness, se não felicidade (pragmaticamente inabalável), do jogo (do desempenho) que estas prosseguem — ou porventura mais do que isso, de reconhecer que este jogo se distingue por uma pretensão de autonomia formal e pela eficácia com que tal pretensão é (retorico-politicamente) defendida perante os seus auditórios potenciais80. Reconhecimento que condena o cálculo teorético às aporias de um lugar / não lugar e à pretensão de exterioridade que as traduz. Mostrando-nos que tal cálculo se constitui referindo-se a uma outra prática — entenda-se, esgotando a sua doable activity (institucionalmente reconhecível) no account de um «jogo»-alvo…— , na mesma medida no entanto em que assume (explícita ou implicitamente) uma pretensão reflexiva de suspensão ou de ruptura % precisamente aquela que o há-de libertar das regras de um tal «jogo» e da inteligibilidade imanente do seu processo de realização (as an algorithmic formulation that guides or governs practice from a position outside any particular conception of practice81). Reconhecimento também que desvaloriza os sinais de fragmentação e de colonização exterior que ameaçam a autonomia do jogo do direito. Pelo menos enquanto duvida da força e da eficácia com que os factores correspondentes se concertam… e então e assim da sua capacidade para gerar práticas alternativas — práticas que de alguma forma possam dizer-se qualificadas para desempenhar as tarefas prosseguidas pelas primeiras (e imprimirlhes um sentido novo)82. O que é ainda et pour cause reconhecer que o diferendo a que nos expusemos desde o início é afinal mais inofensivo do que parece: tanto mais inofensivo quanto fechado 38 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... no território dos discursos académicos e incapaz de se projectar com êxito na dogmática vigente. Diagnóstico que nos condenaria a uma celebração da nossa circunstância presente… se não nos abrisse também a porta para considerar a inevitabilidade de uma certa reflexão interior (e a legitimidade do degrau de auto-consciência ou de crítica que a sustenta). Como se se tratasse afinal de reconhecer uma intensificação lograda da «atenção» — não apenas compossível com o exercício das práticas enquanto tal mas também exigida por este ou pelos efeitos que lhe correspondem (as a heightened degree of attention while performing in the practice)83. Porta cujo limiar também nos importa ultrapassar. Mas agora decerto já sem a companhia dos argumentos de FISH, antes quebrando o voto de silêncio que estes argumentos nos impõem. Quebrando estes votos… para admitir com resignação que estamos condenados a participar na (se não a agravar a) vertigem do diferendo? Seguramente que não. Antes, e em contrapartida, para reconhecer que o compromisso a assumir por uma fenomenologia do diferendo — por uma fenomenologia das práticas-discursos em diferendo que se pretenda construir como parte integrante (e eventualmente como núcleo) da teoria do direito (ou da teoria do direito exigida pela nossa circunstância presente) — só pode ser aquele que resulta de uma preocupação efectiva com o problema da autonomia — autonomia do direito decerto, mas também e indissociavelmente autonomia do pensamento jurídico. Exigência que nos permite também perceber que o compromisso em causa, organizando a relevância dos saberes pluralmente mobilizáveis (e constituindo assim um filtro de determinação indispensável), deva simultaneamente impor-se-nos como um fundamentum relationis reconhecível — capaz de iluminarorientar os diversos confrontos e muito especialmente de justificar José Aroso Linhares 39 os exercícios de simplificação-redução dos interlocutores (e de concertação-distribuição das propostas) que a tradução de tais confrontos terá que pressupor84. Um fundamentum relationis reconhecível? Certamente. Ora reconhecível (praticocomunitariamente reconhecível) porque alimentado por uma perspectiva interna e pela auto-reflexão (especificamente jurídica) que esta exige. O que é decerto retomar o desafio de FISH … mas para percorrer caminhos diametralmente opostos. Caminhos que nos permitam antes de mais associar autonomia e sentido e perceber que este sentido (na sua identidade prático-civilizacional) corresponde à continuidade (se não iterabilidade) de uma experiência de «demarcação» humano/inumano e à procura (persistentemente renovada) que a traduz: uma procura que responsabiliza directamente uma forma de vida ou uma sequência de formas de vida — se não ciclos ou etapas — … e que se determina (positiva e negativamente) pelos rastos que estes ciclos vão desenhando e pelas aquisições que assim se reconhecem. Rastos e aquisições que constróem um grande projecto interpretativo enquanto refazem a comunidade (ou a conjugação de comunidades) que o lê (e o campo de possibilidades que esta sulca). Que forma de vida ou que sequência de formas de vida… e que projecto interpretativo integrador (de múltiplos projectos interpretativos)? Aquelas e aquele que souberam inventar (e que continuam a inventar) o homo humanus da autonomia-liberdade e da responsabilidade comunitária… reconhecendo neste — e na felicitous performance da sua projecção histórico-social e prático-existencial (e então também nas soluções de integração intencional e teleologicamente inconfundíveis que o assimilam e especificam) — o tertium comparationis de um processo de «tematização» e de «medida»85: que outro processo (de «comparação de incomparáveis») senão aquele que (experimentando embora diversas representações do 40 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... equilíbrio suum / commune e da sua dialéctica) soube afinal converter um problema necessário de partilha do mundo num problema (prático-culturalmente auto-subsistente e como tal também civilizacionalmente inconfundível) de suum cuique tribuere86? Uma autonomia e um sentido iluminados por uma vinculação civilizacional? Importa repeti-lo. Tendo presente que tal vinculação é aquela que, convocando as heranças polarizadas de Atenas e de Jerusalém — e recriando permanentemente os deveres de fidelidade (aos filósofos e aos profetas) com que estas (irredutivelmente) nos oneram87 —, nos remete para os fogos criadores da civitas romana e da respublica christiana. Antes de reconhecer as aquisições irrenunciáveis da reinvenção modernoiluminista… mas também os processos de superação ou de «reescrita» a que esta e a sua raison raisonnante incessantemente se submetem. Aquela vinculação civilizacional que nos permite descobrir no direito um «pormenor» decisivo de uma certa «ideia da Europa»88? Certamente. Um pormenor culturalmente frágil (ameaçado por uma crise de identidade profunda)… mas nem por isso menos decisivo. Decisivo apenas porque o seu homo humanus se nos oferece como um «pormenor» partilhado — compossível com o «mosaico» das «pluralidades linguística, cultural e social» que iluminam o território desta mesma Europa e com os «pormenores» a que estas pluralidades nos expõem? Decerto também porque a institucionalização lograda deste homo humanus e da procura que o reinventa (na identidade material do seu projecto) nos proporciona a condição por excelência dessa pluralidade ou da santificação-sancire que esta exige (a oportunidade, se quisermos, de resistir à «avidez da uniformidade»… e à «onda detersiva» que a propaga)89. Mas não só nem principalmente. Decisivo também e ainda porque esta procura e a experiência do homem-pessoa que ela renova — e que leva a sério como uma «aquisição axiológica» José Aroso Linhares 41 (emancipando-o de qualquer pré-determinação ontológica universalizável)90 — continuam a interpelar-nos como um dos eixos-interlocutores indispensáveis da nossa circunstância presente (e do processo ou promessa de «demarcação» humano/inumano que lhe responde). Como uma procura que não se consumou — nem ficou prisioneira (de qualquer um) dos ciclos de intellegere-inventio que a foram construindo —… e que assim mesmo confronta a nossa circunstância com a possibilidade-exigência de reinventar uma intenção condutora. Retomar o desafio de FISH (confirmando a inevitabilidade de uma auto-reflexão interna)… para percorrer caminhos diametralmente opostos? Importa acentuá-lo. E acentuá-lo, insistindo no contraponto que opõe à pretensão de autonomia que acabámos de identificar ¯ e à promessa de demarcação humano / inumano que a responsabiliza ¯ a pretensão de autonomia-distinctiveness que (enquanto exigência de distinção ou de determinação de traços específicos) reconhecemos na leitura de FISH. Compreender a primeira destas exigências é invocar directamente um projecto interpretativo e discutir a plausibilidade prático-cultural deste e do commune que ele constrói. Um commune que o projecto em causa descobre na experiência imediata da controvérsia singular — enquanto ilumina a «interrupção» prático-mundanal que relativiza os sujeitos envolvidos (e reconhece a trama dos direitos e deveres que permite compará-los)… mas sobretudo enquanto «sanciona» a possibilidade-promessa da mediação de um terceiro (e o processo de reintegração-tratamento que este assegura). Um commune que a representação auto-reflectida deste projecto (se não do confronto distanciador que a pretensão de suum cuique tribuere lhe impõe) estará por sua vez em condições de assumir e de determinar (mas também de interpelar positiva e negativamente): sob os traços inconfundíveis de um certo homo humanus e da luta pelo reconhecimento que o inventa (e que o diz pessoa)… mas então e muito significativamente como uma ordem-ordinans de validade. 42 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... Responder à pretensão de autonomia-distinctiveness é, em contrapartida, pensar o direito apenas como um conjunto de tarefas de regulação socialmente eficazes ¯ tarefas que uma representação pragmático-funcional (e esta tratada como um cruzamento de expectativas verificáveis) pudesse distinguir de outras tarefas sociais… e beneficiar com uma presunção de adequação ([recognizing] that a certain set of activities is appropriate to a certain field (…), presenting the enterprise, both to the outside world and to its members, as uniquely qualified to perform a specific task91). Não se tratando assim tanto de ignorar aquela luta pelo reconhecimento e as experiências de sentido que lhe correspondem — e que asseguram a continuidade do seu projecto — quanto de resistir à possibilidade de «isolar» tais experiências ou de lhes conferir uma identidade plena (ou uma intencionalidade condutora). O que significa evidentemente equipará-las a outras experiências, igualmente plausíveis (sustentadas em provas de persuasão paralelas). Antes porventura de as remeter para o interior de uma perturbante caixa negra ou para o doing what comes naturally que protege tal caixa… e que nos impede de a explorar. Sem ficarmos evidentemente por aqui. Confrontar a auto-reflexão inscrita no doing do direito e a «intensificação da atenção» que ela exige — nos termos em que FISH no-las apresenta — com a auto-reflexão que uma situação de crise profunda impõe hoje ao compromisso jurídico da humanitas (assumido na sua específica «intencionalidade à validade»92) é com efeito também identificar dois tratamentos exemplarmente distintos do problema da apropriação dos materiais exteriores (e das representações que o sustentam, se não das perguntas que permitem pensá-lo): problema que a segunda das reflexões deve levar a sério como um desafio capital (ao ponto de se abrir a um autêntico testemunho do diferendo)… e que a primeira proscreve (impondo um muro de José Aroso Linhares 43 silêncios ou condenando a pergunta correspondente aos paradoxos do theoretical calculus). Significa isto que a auto-reflexão normal reconhecida por FISH nos obriga a confiar no êxito do processo de apropriação desencadeado pelas práticas jurídicas — e na eficácia da intenção condutora com que este supera as ameaças de «colonização» —, na mesma medida em que nos obriga a confundir o pathos de uma pretensão de autonomia juridicamente relevante com a defesa de um «formalismo» eficaz. Sendo seguramente outra a auto-reflexão que a nossa circunstância espera dos discursos do direito. Uma auto-reflexão que nos mostre desde logo que a coincidência das pretensões de autonomia intencional e de «existência formal», longe de se impor como um dos traços distintivos (e muito menos como uma condição de possibilidade) do projecto interpretativo do direito, se reconduz afinal a uma representação (historicamente contingente) do pensamento jurídico (e deste como ciência do direito sistemática tendencialmente «imune») — uma representação dominante no discurso do Método Jurídico, mas que hoje se nos expõe superada como paradigma, apenas sobrevivendo como uma concepção entre outras possíveis. Mas então também e muito especialmente uma auto-reflexão que, ainda num confronto directo com a primeira, nos obrigue a celebrar uma circunstância única e a pluralidade que a distingue… e então e assim a testemunhar o diferendo (e a teia de Penélope dos discursos não jurídicos que nele se impõe). Por um lado para reconstitutir criticamente o campo de possibilidades deste diferendo e (ou) desenhar as constelações que distribuem os recursos nele mobilizados: distinguindo as categorias de inteligibilidade e os modelos metódicos compossíveis com o compromisso material do direito e com a inventio que lhe corresponde… e identificando aqueles que lhes resistem, no significado prático-cultural das transformações que impõem. Sem deixar assim de recriar plataformas de sobreposição 44 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... possíveis (e os critérios que as justificam). E de reconhecer outras tantas «margens», dificilmente assimiláveis… Por outro lado para levar a sério a especificidade prático-cultural de um tal compromisso. Um compromisso que a societas dos nossos dias tem cada vez mais dificuldades em identificar, enquanto e na medida em que confunde um certo direito com o direito tout court… mas também enquanto condena este direito (como produto de uma civilização e do cânone que esta justifica) a uma participação reguladora meramente instrumental. Um compromisso que urge assim submeter a uma interrogação radical. Uma interrogação que assuma (sem equívocos) a fragilidade prático-cultural das “aquisições” do direito — na mesma medida em que reconhece as “alternativas” que as desafiam93 (que as rejeitam, mas que também as assimilam… e transformam). Mas então também uma interrogação que possa dirigir-se a este direito — enquanto sentido e enquanto prática, enquanto experiência diferenciadora e enquanto ordem material —… para descobrir nele um eixo-interlocutor indispensável da nossa circunstância presente e (ou) da Erschütterung com que esta nos fere. Daquela Erschütterung que nos obriga a desvelar (denunciar) os intérpretesdefensores do inumano: e então e assim a prometer-assumir um novo patamar de humanidade. Será isto retomar o desafio de uma auto-reflexão interna? Admitamos que é. Reconhecendo no entanto que (em confronto com a porta aberta por FISH) se trata aqui e agora de admitir estímulos e exigências que estão longe de poder corresponder às expectativas de uma «situação institucionalizada ou às rotinas que a cumprem.. Estímulos e exigências que nos comprometem com uma «aventura» permanente e que assim mesmo nos remetem para as fronteiras da interpelação filosófica. Uma interpelação «situada» (livre das aporias do não lugar)? Importa reconhecê-lo. Que outra reflexão senão aquela que (sem garantias de «êxito», José Aroso Linhares 45 admitindo precisamente a possibilidade de uma resposta negativa) … expõe a nossa circunstância presente — e esta como uma situação histórico-existencial irrepetível (dominada pela fragmentação e pela heterogeneidade dos discursos, se não pela hipertrofia da discursividade) — à urgência de discutir-reinventar uma vocação integradora? Mas então retomar o desafio de uma auto-reflexão interna, vendo nesta — e no testemunho do diferendo que ela estará em condições de cumprir — menos a reconstituição de um espectro de discursos do que a experimentação indispensável de uma situação problemática (às quais esses discursos hão de conferir inteligibilidades distintas, na mesma medida em que iluminam factores e circunstâncias que os outros não estão em condições de descobrir). Como se se tratasse afinal de respeitar a pluralidade e as diferenças no espectro das celebrações que as prescrevem (e dos pensamentos que as assumem), mas também, e sem soluções de continuidade, no espectro (permanentemente renovado) das suas manifestações problemáticas —reconhecendo estas para além dos discursos e das capacidades de assimilação que estes mobilizam. Não decerto para garantir a contenção de um puro «saber local» (alla FISH) — que pudesse ser (naturalmente) mobilizado pelo cumprimento de uma tarefa (ou pela operatória que a orienta) —, antes para submeter a representação das situações institucionais (em todas as instâncias da realização do direito) aos desafios permanentes tanto de um diagnóstico de diferenças quanto de um projecto interpretativo integrador (capaz de experimentar internamente estas diferenças). Desafios estes que (conjugados!) nos impedem decerto de confundir a identidade dogmática do pensamento jurídico com a sobrevivência de uma representação formalista (mais ou menos habilmente assimilada pelas rotinas do seu doing) — e de assumir os silêncios correspondentes! — mas que nos impedem também de transformar 46 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... a celebração da pluralidade num exercício de indiferenciação, que nos entregasse às possibilidades aparentemente infinitas de um discurso metadogmático fragmentado e à equivalência (hipertélica) de outros tantos projectos interpretativos (se não à equidistância dos lugares ou dos não lugares em que estes se fecham). Uma equivalência e uma equidistância que só será evitada se (em nome de uma teoria do direito interna, crítico-reflexivamente assumida) admitirmos traçar um mapa e iluminar cuidadosamente (diferentemente) os seus percursos. Sem excluir os contributos das reflexões externas e das posturas críticas que estas autorizam (antes tornando-os implacavelmente presentes nas suas diferenças ). Mas então impondo um projecto interpretativo que, ao oferecer à reflexão filosófica um patamar de experimentação indispensável, possa simultaneamente proporcionar a cada um dos projectosinterlocutores envolvidos (e muito especialmente às reflexões metodológicas que os distinguem) um horizonte ou um quadro de integração possível — um horizonte-quadro capaz de reconstituir a teia dos potenciais interlocutores (ou de oferecer os sinais ou os rastos que os iluminam)… mas sobretudo capaz de estabelecer um diagnóstico de problemas — daqueles problemas que as diversas concepções asseguradas por estes interlocutores (e pelos seus jogos) exemplarmente identificam. Como se se tratasse de reconstruir a «grande» teoria de asystatae controversiae que o nosso complexo locus argumentativo afinal exige. Sempre provisoriamente e em termos negativos: excluindo caminhos, contabilizando «erros»... Numa palavra, reconhecendo o «preço» das nossas escolhas culturalmente possíveis. Conclusão-desafio que nos autoriza a voltar ao ponto de partida. Responsabilizando a jurisdictio por uma forma de vida específica e pela procura da humanitas (enquanto validade comunitária) que esta institucionaliza)? Responsabilizando-a também pelo exercício de um contra-poder (e dizêmo-lo com CASTANHEIRA NEVES) : José Aroso Linhares 47 aquele contra-poder que, reconhecendo o seu interlocutor imprescindível no «poder de programação politicamente constituinte» e na lex que este impõe (se não na societas que este(s) reinventa(m)), se dirige a tal poder (e às suas mediações ou às situações institucionais que estas geram) com uma voz autónoma — a única voz que está em condições de «postular a validade do direito e de ser convocada exclusivamente à sua realização» (na mesma medida em que leva a sério a dimensão metodológica desta validade)94. Sem esquecer decerto que uma tal procura se cumpre assimilando controvérsias situadas (mobilizando condições institucionais e enfrentando obstáculos ou constrangimentos exteriores) — se não respondendo (mais habitualmente do que se pensa) a questões de fronteira (boundary questions [which] are simultaneously inside and outside the law95 ). Condições e obstáculos que por sua vez reforçam a identidade desta procura e da sua intenção de realização, na mesma medida em que a inscrevem (ou projectam) num mundo prático continuamente reinventado. Condições e obstáculos que — enquanto dimensões indissociáveis da nossa circunstância presente e das preocupações que esta assume — exigem um diagnóstico logrado dos problemas (dos problemas que tais condições assimilam ou que tais obstáculos impõem). Aquele diagnóstico que o testemunho do diferendo — se e na medida em que o levarmos a sério como um diálogo plural — poderá (deverá) eventualmente abrir. Notas * O presente estudo serviu de base à comunicação apresentada nas Conferências Jurídicas 2007 da Universidade Lusófona do Porto (Departamento de Direito) no dia 31 de Março de 2006 (I Conferência: Filosofia do direito, Teoria do direito e Metodologia Jurídica) e a um seminário integrado num Curso (de Mestrado e Doutoramento) de Teoria e Filosofia do Direito promovido pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Salvador, 24, 27 e 28 de Agosto de 2007). Compreende-se assim a sua dupla publicação: no presente volume e num dos 48 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... próximos números da revista Reflexões - Revista Científica da Universidade Lusófona do Porto. 1 «Situações instutucionais» associadas ao desempenho autónomo de uma prática : com um alcance que a caracterização das comunidades interpretativas assumida por FISH — muito especialmente em Professional Correctness. Literary Studies and Political Change (Oxford Clarendon Lectures, 1993), Harvard, Harvard University Press, 1999, pp. 19 e ss. («Distinctiveness and Its Costs») — nos ajuda a experimentar. Mas então «situações institucionais» que nos importam menos na sua projecção estrutural (e nas opções externas que contingentemente lhes vão respondendo) do que na sua inteligibilidade interna. Uma inteligibilidade interna que — já para além das possibilidades que a proposta de FISH nos oferece (se não explicitamente contra os limites que tal proposta nos impõe) — queremos vincular a um autêntico problema metodológico de realização do direito (e à reflexão que este suscita). Para uma autonomização do problema da jurisdição como problema intencional ou interno («o problema da intencionalidade material da própria jurisdição como jurisdição e o sentido que ela assume e realiza»)— em confronto com os problemas estruturais ou externos associados ao «fazer jurisdicional» («que consideram o poder, a organização, a responsabilidade e o modo desse exercício») —, ver CASTANHEIRA NEVES, «Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema” — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito», Boletim da Faculdade de Direito LXXIV, 1998, pp. 3-4. Para uma acentuação da importância deste problema do poder-função judicial — enquanto problema de sentido (o problema da «jurisdição» no seu «compromisso ao direito» e «na autónoma responsabilidade da sua histórico-concreta realização») —, ver ainda CASTANHEIRA NEVES, «Introdução ao Colóquio “O poder (função) judicial e o direito” » (21 de Abril de 2006), publicada em Reflexões - Revista científica da Universidade Lusófona do Porto, ano 1, nº1, 1º semestre 2006, pp. 314-315. «[N]ão está em causa, nem a sociologia — os pressupostos, as condições e os efeitos sociais —, nem o sistema funcional — a estrutura organizatória, a funcionalidade e a eficiência —, e sim o próprio sentido do poder-função judicial enquanto jurisdição (…). Não o contexto (a possibilidade e as consequências), nem o como funcional (a estrutura e o funcionamento), mas o que (sentido e tarefa) esses poder-função é chamado a realizar nas condições contextuais e mediante aquela funcionalidade…» (Ibidem, p. 314). 2 Se os termos pluralidade, diferendo, testemunho, procura do idioma (recorrentemente mobilizados no texto) nos remetem para a experimentação das «instâncias da linguagem» assumida por LYOTARD, importa ver nesta convocação um mero recurso expressivo — inteiramente desvinculado das representações da heterogeneidade e da incomensurabilidade que singularizam a «procura filosófica» do autor de Le différend. Para uma tradução exemplar das exigências desta procura (e dos pressupostos que a condicionam) ver LYOTARD, Peregrinations. Law, Form, Event, Columbia, Columbia University Press, 1988, cit. na tradução ( reconstituição) francesa do próprio Autor Pérégrinations. Loi, forme, évènement, Paris, Éditions Galilée, 1990, pp. 26 e ss., 61-87 («Brèches»). José Aroso Linhares 49 3 É ainda o universo linguístico de Le différend… corrigido embora pela mediação exemplar de WELSCH e pelas sugestões que esta nos oferece. Assim em Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta Humaniora, 31991, pp. 227 e ss (todo o capítulo VIII, intitulado precisamente «Der Widerstreit oder eine postmoderne Gerechtigkeitskonzeption»), muito especialmente pp. 251-256 («Kritik des Autonomieund Heterogenitäts-Theorems»). 4 Para uma síntese reconstrutiva das possibilidades deste debate— que é também e sobretudo uma tentativa de encontrar um caminho possível, um caminho que culmina na representação de uma concepção pós-tradicional de comunidade (dominada pela reinvenção das exigências da solidariedade, se não pela reciprocidade de uma celebração «afectiva» da «singularidade individual da outra pessoa») —, ver Axel HONNETH, «Posttraditionale Gemeinschaften. Ein konzeptueller Vorschlag», in Das Andere der Gerechtigkeit. Aufsätze zur praktischen Philosophie, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 2000, pp. 328 e ss. 5 «[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal, tradition-independent norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and is the project of modern liberal, individualist society…» (MACINTYRE, Whose Justice? Which Rationality?, London, Duckworth, 1988, p. 335) 6 «[N]unca até então os interesses, na sua radical expressão económica, se tinham reconhecido como autónoma dimensão humana — ou melhor, como dimensão humana socialmente autónoma…» (CASTANHEIRA NEVES, «A imagem do homem no universo prático», Digesta – escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume I, pp. 327-328) 7 MACINTYRE, Whose Justice? Which Rationality?, cit., p. 353 («the Enlightnment invoked the arguments of Kant or Bentham…»). 8 Ibidem, p. 334. 9 Sublinhando a institucionalização do paradigma moderno-iluminista que corresponde ao ciclo da «formalização» e as experiências de «crise» desse mesmo paradigma que correspondem à «neomaterialização» do Welfare State e à «formalização e reprocessualização» pós-instrumentais, ver por todos CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1997, polic., pp. 15-52. 10 KANT, Der Streit der Fakultäten (1798), zweiter Abschnitt (Der Streit der philosophischen Facultät mit der juristischen), cit. na compilação de textos de KANT proposta por Manfred RIEDEL sob o título Schriften zur Geschichtsphilosophie , Stuttgart 1974, reedição de 1985, Reclam Universal-Bibliothek (nº 9694), Philipp Reclam jun. GmbH & Co., reimpressão de 2004, pp. 190 e ss (6. «Von einer Begebenheit unserer Zeit, welche diese moralische Tendenz des Menschengeschlechts beweiset») 50 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... 11 Com o alcance que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer: « “Norma” em sentido estrito implica uma intencional e constitutiva racionalidade – norma é ratio, uma ratio que a sua normatividade assimilaria e ela exprimiria. (…) Imperativo implica um poder e imputa a exigência ou imposição de um determinado comportamento, que a sua prescrição enuncia, à voluntas de uma potestas (…). Por sua vez, “regra” é uma directiva para a acção, qualquer tipo de acção, que nem se funda numa específica racionalidade ou a exprime (como a norma), nem é imposta por um poder (como o imperativo), mas traduz uma mera convencionalidade, [esgotandose] na prescritividade dela resultante…» [ Teoria do direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998, (versão em fascículos) pp. 77, 83, 87, (versão em A4) pp. 42, 46, 48]. 12 Trata-se evidentemente de o dizer com TEUBNER, invocando o conhecido diagnóstico de «Reflexives Recht. Entwicklungesmodelle des Rechts in vergleichender Perspektive», Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, volume 68, 1982, pp.13 e ss. 13 Ver a reconstituição-síntese deste paradigma proposta por CASTANHEIRA NEVES na Teoria do direito…, cit., (versão em fascículos) pp. 103-110, (versão em A4) pp. 57-60. 14 Para o dizermos invocando o modelo de justice légaliste-libérale autonomizado por François OST, «Juge-pacificateur, juge-arbitre, juge-entraîneur. Trois modèles de justice», in GÉRARD /KERCHOVE / OST (ed. ) Fonction de juger et pouvoir judiciaire, Transformations et déplacements, Bruxelles,Presse des Facultés Universitaires SaintLouis, 1983, pp. 1 e ss, 37-38, 57-58. 15 Ainda segundo o mesmo diagnóstico e os tipos ideais que este autonomiza: ibidem, pp.11-15, 20-21, 23-25, 38-44, 45-57, 58 e ss. 16 Para o dizermos agora com François EWALD: cfr. Foucault, la Norme et Le Droit, Paris, Gallimard, 1980, cit. na versão portuguesa Foucault, a norma e o direito, Lisboa, Vega, 1993, pp. 88-98, 106 e ss, L’État-Providence, Paris 1986, pp. 141 e ss (Livre II, Le risque), 171 e ss («Un art des combinaissons»), 433 e ss («Droit social»), 577-600. 17 Para uma reconstituição crítica desta proposta de juiz político (enquanto «conversão» da teleologia mobilizável aos «compromissos e ao espírito do sistema políticonormativo constitucional») ver CASTANHEIRA NEVES: Teoria do direito…, cit., (versão em fascículos) pp. 227-234, (versão em A4) pp.121-124 e «A redução política do pensamento metodológico-jurídico», Digesta, cit., volume II, pp. 404-409. 18 Com o alcance defendido por LUHMANN em Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1993, pp. 338 e ss, 387 e ss. 19 De acordo com a proposta justificada por Hans ALBERT: cfr. exemplarmente os desenvolvimentos propostos em «Das Problem der sozialen Steueurung und die Idee einer rationalen Jurisprudenz», capítulo III do Traktat über rationale Praxis, Tübingen, José Aroso Linhares 51 Mohr Siebeck, 1978, pp. 60 e ss, Rechtswissenshaft als Realwissenschaft. Die Recht als Sozialtatsache und die Aufgabe der Jurisprudenz , Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, passim, e «Werturteil, Recht und soziale Ordnung: zur Kritik der Normativismus und der reinen Jurisprudenz», Kritisher Rationalismus. Vier Kapitel zur Kritik illusionären Denkens, Tübingen, Mohr Siebeck, 2000, pp. 41 e ss. 20 Traktat über rationale Praxis, cit., pp.150-155, 171-182. 21 Com o alcance que pudemos reconstituir em «A unidade dos problemas da jurisdição ou as exigências e limites de uma pragmática custo/benefício. Um diálogo com a Law & Economics Scholarship», Boletim da Faculdade de Direito LXXVIII, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pp. 65 e ss., 141-160 (5.3.). 22 POSNER, The Problems of Jurisprudence, Harvard,Harvard University Press, 1990, p. 360. «The economic analysis of legislation implies that fields of law left to the judges to elaborate, such as the common law fields, must be the ones in which interest-group pressures are to weak to deflect the legislature from pursuing goals that are in the general interest. Prosperity (…), which wealth-maximization measures more sensitively than purely monetary measures (…), is one of these goals, and the one that judges are especially well equipped to promote…» (Ibidem, p.359). 23 Cfr. a exploração dos diversos tipos de racionalidade proposta em Legal Reasoning and Legal Theory, Oxford, Oxford University Press, 1978, cit. na reimpressão de 1997 (da versão revista de 1994), pp. 53 e ss. («Deductive Justification — Pressuppositions and Limits»), 100 e ss. («Second-Order Justification), 128 e ss («Consequentialist Arguments»), 265-274 («Law, Morality, and the Limits of Practical Reason»). 24 Cfr. a justificação empírico-estratégica do textualismo formalista (ou da decisão que o assume como proposta interpretativa) defendida por Adrian VERMEULE em «Interpretative Choice», New York University Law Review , volume 75 nº 1, 2000, pp. 74-149. 25 Referimo-nos às teorias críticas do direito explicitamente inscritas na herança da Escola de Frankfurt. Como um exemplo possível, invoque-se a construção (relativamente heterogénea) proposta por Luiz Fernando COELHO em Teoria Crítica do Direito, Porto Alegre 1991, passim. Para uma reconstituição das «imagens» do juiz comprometidas com estratégias alternativas (distinguindo as experiências do uso alternativo del diritto e dos jueces para la democracia do chamado «direito alternativo brasileiro»), ver por todos Lédio Rosa de Andrade, Introdução ao direito alternativo brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996, pp. 105 e ss («História do Direito Alternativo Brasileiro»), 186 e ss. («Jurisprudência alternativa»), 235-297 («Identidades e diferenças com os Europeus»). 26 Com o alcance que mais uma vez OST nos permite reconhecer, agora em «Jupiter, Hercules, Hèrmes: Trois Modelés du Juge», in Pierre BOURETZ (org.), La Force du Droit. Panorama des débats contemporains, Paris, Esprit, 1991, cit. na tradução 52 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... castelhana «Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez», Doxa, nº 14, 1993, pags. 169 e ss., 182-194 («Hermes, la red y el banco de datos»). 27 Com o alcance que o diálogo com o narrativismo comunitarista nos permitiu defender em « Humanitas , singularidade étnico-genealógica e universalidade cívicoterritorial. O “pormenor” do Direito na “ideia” da Europa das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista», Dereito. Revista xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, volume 15, número 1, 2006, pp. 34 e ss. (3.4), 41 e ss (3.5). 28 Ainda que uma tal associação determine um acontecimento ou desenvolvimento «traumático». Decerto porque este acontecimento terá que ser colectivamente experimentado e (como tal) internamente assimilado. As transformações (se ocorrerem) serão aquelas que a assimilação prático-comunitária «legitimar». Neste sentido, cfr. «Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial…», cit., pp.21-22 (1.). 29 Trata-se evidentemente de pressupor o «equilíbrio» autonomizado no livro VI da Ética a Nicómaco, assumindo simultaneamente a exigência de o superar (e de o superar convocando um outro sentido da prática e o horizonte de inteligibilidade que lhe dá sentido). Para uma reconstituição da compreensão aristotélica, convoquemse as mediações imprescindíveis de Pierre AUBENQUE, La prudence chez Aristote, Paris 1963, cit. na tradução castelhana La prudencia en Aristóteles, Barcelona, Crítica, 1999, pp.43 e ss. (toda a segunda parte) e de Joseph DUNNE, Back to thr Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of Technique, Notre Dame (Indiana), University of Notre Dame Press, 1997, cit. na reimpressão de 2001, pp. 237 e ss. («Theory, Techne, and Phronesis: Distinctions and Relations»), 275 e ss. («The Circle between Knowledge and Virtuous Character: Phronesis as a Form of Experience»). 30 Cfr. a síntese proposta por CASTANHEIRA NEVES na Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora,1993, pp.70-78. 31 Cfr.a síntese destas «modalidades» ensaiada por Kurt SEELMANN em Rechtsphilosophie , München, Beck, 3ª edição (ampliada), 2004, pp. 193 e ss. («Kommunitaristische Gerechtigkeitstheorien»). 32 Trata-se de invocar a herança de FOUCAULT assimilada (selectivamente) pelos Critical Legal Scholars. Para um desenvolvimento crítico das possibilidades deste «cruzamento», ver Ana Margarida GAUDÊNCIO, Entre o centro e a periferia : a perspectivação ideológico-política da dogmática jurídica e da decisão judicial no Critical Legal Studies Movement (Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Filosóficas), Coimbra, polic., 2004 (a publicar em breve), pp. 39 e ss (2.2.3.), 190 e ss (4.3.). 33 O caminho é agora a «reconversão» lyotardiana da estética kantiana do sublime, na tradução expressamente assumida por WE LSCH (que algumas linhas das Postmodern Jurisprudences virão a assimilar). Para uma reconstituição das possibilidades deste caminho (e do horizonte que este impõe à «interpretação», se não «reescrita», do livro VI da Ética a Nicómaco) veja-se o nosso Entre a reescrita pós- José Aroso Linhares 53 moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença…, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pp. 241-265, 481 e ss., 495-507. 34 Com o alcance que explorámos em «O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e Derrida», in CANOTILHO / STRECK (org.), Entre discursos e culturas jurídicas, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 181 e ss. 35 Para uma síntese das duas concepções da intentio operis aqui em confronto ver Manuel Alexandre JÚNIOR, Hermenêutica Retórica. Da retórica antiga à nova hermenêutica do texto literário, Lisboa, Livraria Espanhola, 2004, pp.164 e ss. («Facetas de uma estratégia hermenêutica global»). Sem esquecer os textos exemplares que integram Diane P. MICHELFELDER/ Richard E. PALMER (ed.), Dialogue and Deconstruction. The Gadamer-Derrida Encounter , New York, State University of New York Press, 1989, passim. Para uma reconstituição crítica das exigências da hermenêutica compreensiva como «filosofia prática» e como «método» (nos seus cruzamentos exemplares com o discurso jurídico), ver CASTANHEIRA NEVES, O actual problema metodológico da interpretação juridica, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 46-107, 362 e ss., 378 e ss. e A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 58-68. Já a discussão das máscaras do desconstrutivismo «pós-estruturalista» ( la Déconstruction, the Deconstruction with a capital “D”) enquanto reflexão «filosófica» e enquanto proposta «metódica» — na sua relação decisiva com os Critical Legal Studies (se não mesmo com uma etapa-geração específica destes «estudos») — leva-nos a convocar três impressivas sínteses de BALKIN: «Deconstructive Practice and Legal Theory», Yale Law Journal, volume 96, 1987, 743 e ss., «Deconstruction», in D. PATTERSON (ed.), A Companion to the Philosophy of Law and Legal Theory, London, 1996 e «Deconstruction’s Legal Career» (1998), on line text [todos disponíveis na Jack Balkin Home Page, http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin]. Veja-se também a reconstituição que propusemos em «Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de “Force de loi”», Ars Iudicandi. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves, número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (a publicar em breve), pontos 1. (notas 3-11) e 3.1. 36 Para reconhecer estes dois pólos de compreensão da prioridade do caso (e da perspectiva que o assume), ver o diálogo crítico que CASTANHEIRA NEVES desenvolve com a racionalidade tópico-argumentativa (enquanto convoca o eixo validade / dogmática / sistema e a autonomia irredutível que lhe corresponde, na sua dialéctica constitutiva com o problema): Metodologia jurídica, cit., pp.72-74 [ááá)], 78-81[äää)]. 37 Trata-se de confrontar as propostas de Drucilla CORNELL (The Philosophy of Limit, New York/London, 1992) e de Costas DOUZINAS / Ronnie WARRINGTON (Justice Miscarried. Ethics, Aesthetics and the Law, New York/London/…, Harvester Wheatsheaf, 1994). Para uma reconstituição do núcleo destes dois discursos, veja- 54 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... se o nosso «Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita…», cit., (respectivamente) pontos 5.2.4.3. e 5.2.4.1. 38 É a proposta de James BOYD WHITE (de Heracles’Bow. Essays on the Rhetoric and Poetics of the Law, Madison, The University of Winsconsin Press, 1985 a The Edge of Meaning, Chicago, The University of Chicago Press, 2001), com a qual nos temos também recorrentemente ocupado: cfr. Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença…, cit., pp. 679 e ss, «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura (law as literature, literature as law) à analogia com uma poiesis-techné de realização (law as performance)» Boletim da Faculdade de Direito LXXX, Coimbra, 2004, pp. 66-84. , « Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial…», cit., pp.53-59 (3.6.), 60-62. 39 Trata-se de convocar Martha NUSSBAUM e a proposta explícita de Poetic Justice.Tthe Literary Imagination and Public Life , Boston, Beacon Press Books, 1995, pp. 72 e ss («The Judicious Spectator»), 86-90 («Judicial Neutrality»), 99 e ss («Poetic Judging»). 40 Para uma reconstrução-síntese do universo plural da Feminist Legal Analysis, ver Gary MINDA, Postmodern Legal Movements. Law and Jurisprudence at Century’s End, New York /London, New York University Press, 1995, pp. 128-148. Para uma consideração específica da proposta de Robin WEST (num confronto directo com a compreensão do homem assumida por POSNER, ver ainda Ana Margarida GAUDÊNCIO, «Às portas da lei (?): reflexos do diálogo divergente entre West e Posner sobre as possíveis leituras de Kafka na perspectivação do homem perante o direito» (a publicar brevemente em Reflexões - Revista Científica da Universidade Lusófona do Porto). 41 O discurso é agora o dos Critical Race Scholars: ver por todos Richard DELGADO / Jean STEFANCIC, Critical Race Theory: an Introduction, New York /London, New York University Press, 2001, pp. 37 e ss. («Legal Storytelling and Narrative Analysis»). 42 Com o alcance que as propostas conjuntas de Sanford LEVINSON e Jack BALKIN nos autorizam a considerar (Law as performance) e que procuramos reconstituir em «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos…» , cit., pp. 84 - 132 (3.), mas também em «Recht als dramatische und musikalische Aufführung: eine fruchtbare Analogie?», in Erich SCHWEIGHOFER, Doris LIEBWALD, Mathias DRACHSLER, Anton GEIST (Hrsg.), E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht. Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik , Tagungsband des 9. Internationalen Rechtsinformatik Symposions IRIS Wien 2006, Stuttgart/ München/…, Richard Boorberg Verlag, 2006, pp. 468-475. 43 O juiz que Duncan KENNEDY nos ensina a reconhecer: menos porventura no fundamental A Critique of Addjudication (Fin de siècle) , Cambridge Massachusetts, Harvard University Press, 1998, passim, do que em «Form and Substance in Private Law Adjudication», Harvard Law Review, volume 89, 1976, pp. 1685 e ss., e muito José Aroso Linhares 55 especialmente em «Freedom and Constraint in Adjudication: a Critical Phenomenology» (1986), in BOYLE (ed.), Critical Legal Studies, Dartmouth, 1992, pp. 45 e ss. Para uma consideração das diversas fases da ultra-theory de KENNEDY (e da renúncia aos binómios que especificam a «contradição fundamental»), ver Ana Margarida GAUDÊNCIO, Entre o centro e a periferia…, cit., pp. 98 e ss. (3.2.2.2.). 44 Aquele decerto com que DWORKIN nos interpela: bastando-nos ter presentes os desafios capitais de «Hard Cases» (1975), Taking Rights Seriously (1977), reimpressão de 1984, Cambridge Massachusetts, Duckworth, 1984, pp. 81 e ss, 105-130 e de Law’s Empire, Oxford, 1998, pp. 206 e ss., 239-258, 327 e ss, 410-413 e ss., combinados com a tentativa de responder ao dilema «Judges must be philosophers, but judges can’t and perhaps shouldn’t be philosophers», impressivamente assumida em «Must Our Judges Be Philosophers? Can They Be Philosophers?», New York Council for the Humanities / Scholar of the Year Lecture (2000), http:// www.nyhumanities.org/soylecture2000.html (extraído em 31-07-2001). Para uma «experimentação» do equilíbrio entre a community of principles e a society of rights, importa no entanto ter presente a lição de Sovereign Virtue. The Theory and Practice of Equality, Cambridge Massachusetts / London, Harvard University Press, pp. 211 e ss («Liberal Community»), 237 e ss. («Equality and Good Life»). 45 Ver exemplarmente David HOWARTH, «On the Question “What Is Law?”», Res Publica, nº 6, 2000, pp.264-275 («Boundary disputes and Concepts of Law»). 46 Com o alcance que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer, enquanto nos dá conta de que o «objecto» da uma teoria do direito hoje possível (assumida como uma teoria crítico-reflexiva, com um alcance que ainda viremos ter em conta) não pode ser «o direito, como que hipostasiado num em si e por si, mas as concepções práticas que o manifestam e os pensamentos que o pensam»: «[A] uma “teoria do direito” compreendêmo-la hoje sobretudo como a determinação crítico-reflexivamente metanormativa do direito, i. é, das concepções e das práticas constitutivas da juridicidade (…) e dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…) [P]ois só na unidade histórico-cultural entre aquelas e estes o direito vem à sua existência, à sua objectivação real e pode, já por isso, ser “objecto” de uma reflexão teórica que nessa objectivação o queira compreender…» [Teoria do direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998, (versão em fascículos) pp. 50-51, (versão em A4) p. 28]. 47 «[There is an] increasing amount of scholarship, especially in the elite journals, that is about other legal scholarship, rather than about primary legal materials like statutes and cases. Legal scholarship becomes an increasingly self-contained, self-referential discipline, which is “about itself” as much as it is about the legal world outside, either law on the books or law in action. As interdisciplinary movements like law and economics or law and literature spring up, they begin to focus not on their relationship to the work of lawyers and judges, but to their own internal coherence and justification. Legal interpretation is replaced by legal theory, which is replaced by meta-theory, 56 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... which is replaced by meta-meta theory, and so on…» (Sanford LEVINSON,/Jack BALKIN, «Law, Music and Other Performing Arts» (1991), University of Pennsylvania. Law Review, volume 139, 1991, p.1652). 48 «There is no extant theory that threatens to end the current ideological conflict abut method by compelling a consensus about how judges can and should be neutral. Indeed, the current multiplicity of contradictory theories of neutrality seems a powerful, though of course not conclusive refutation of all of them. I am an admirer of their work of mutual critique. I endorse Dworkin’s critique of Richard Posner along with Andrew Altman’s critique of Dworkin and Fiss’s doubtless forthcoming critique of Altman, and Posner’s critique of Fiss (if there is one) and on around the circle. This is not musical chairs but more like a game of “Penelope”, in which each writer simultaneously weaves his own and unweaves other’s work…» [Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication (fin de siècle), cit., p. 91, itálicos nossos]. 49 Para o dizermos com Roland DUBISCHAR, Einführung in die Rechtstheorie, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, pp. 24 e ss. («Das Programm der dogmatische-positivistischen Rechtstheorie: Erkenntnis des Rechtlichen aus rein Rechtlichen»). 50 Para o dizermos mobilizando a conhecida sistematização de Nikolaus FALK (Rechtwissenschaft im weiteren Sinne als Gesammtheit der juristischen Disziplinen / Rechtwissenschaft im engeren Sinne als Rechtsdogmatik / Rechtwissenschaft im Sinne von «allgemeiner Theorie des Rechts») , tal como a vemos reconstituída por Annette BROCKMÖLLER, Die Entstehung der Rechtstheorie im 19.Jahrhundert in Deurschland, Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1997, pp. 68 e ss. («Zur „Allgemeinen Rechtstheorie” Falcks»), 76 e ss. («Rechtswissenschaft, Rechtsdogmatik und „Allgemeine Rechtslehre”»). 51 A formulação é já evidentemente aquela que JHERING mobiliza para identificar o momento culminante da juristische Construction (a terceira das operações fundamentais da juristische Technik que, ao ser assumida pela höhere Jurisprudenz , corresponde já em pleno a uma tarefa simultaneamente «científica e jurídica», capaz de distinguir a ciência do direito «de todas as outras ciências»): assim no § 41 do Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung, zweiter Teil, zweite Abteilung, 8ª edição (reimpressão da edição de 1883), Basel, Benno Schwabe § Co, pp. 357 e ss («Die juristische Construktion»). «Um zu construieren muß [die Jurisprudenz] erst interpretieren; die niedere Jurisprudenz ist die notwendige Vorstufe der höheren. Aber sie ist nur eine Vorstufe, und die Jurisprudenz soll nicht länger auf ihr verweifen als nötig ist. Erst auf der höheren Stufe wird ihre Aufgabe und Methode eine specifisch juristische, erst hier gewinnt sie ihren eigentümlichen wissenschafllichen Charakter , der sie von allen andern Wissenschaften unterscheidet…» (Ibidem, p. 359, itálicos nossos). 52 Para uma reconstituição da conceptual jurisprudence de LANGDELL, ver MINDA, Postmodern Legal Movements, cit., pp.13 e ss.. José Aroso Linhares 57 53 OST, «Temps et contrat. Critique du pacte faustien», in Annales de droit de Louvain, 1999, p. 17 e ss., cit. na tradução castelhana «Tiempo y contrato: crítica del pacto faústico», Doxa, nº 25, 2002 , pp. 597 e ss., pp. 624-626. 54 Cfr. OST / KERCHOVE, De la pyramide au réseau? Pour une théorie dialectique du droit, Bruxelles, Presses des Facultés Universitaires Saint Louis, 2002, passim. 55 «Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez», cit., p. 186. 56 Não obstante a máscara de théorie générale (critique, gradualiste, relativiste et dialectique) que esta continua a afivelar: ver muito especialmente «Pour une théorie ludique du droit», Droit et Société, nºs 20-21, 1992, pp. 89 e ss., 95-98 (B.). Sem esquecer o «manifesto» (significativamente mais desenvolvido) proposto por OST e KERCHOVE em «Le jeu: un paradigme fécond pour la théorioe du droit?», Droit et Société, nºs 17-18, 1992, pp. 173-205. 57 «Il s’agit donc de ce qu’on pourrait appeler un „point de vue externe modéré” qui articule, de façon pardoxale,l’interne et l’externe…» («Pour une théorie ludique du droit»,cit., p.95). 58 OST / KERCHOVE (dir.), Le jeu : un paradigme pour le droit, Paris , L.G.D.J., 1992, passim. 59 Karl BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie. Kritische Abhandlung, volume I (Einleitung / Erste Abhandlung: Das Naturrecht der Gegenwart), Leipzig 1892, cit.na reimpressão da Verlag Detlev Auvermann, Glashütten im Taunus, 1973, p. 15. Importa esclarecer que BERGBOHM utiliza esta expressão para caracterizar a Analytical Jurisprudence (a «Analytische Schule» der englischen Juristen): trata-se no entanto de sublinhar uma intenção decisiva de «pureza jurídica» (e de «pureza jurídica» conjugada com uma exigência de «cientificidade», livre da «fantasia» idealista), que o autor de Jurisprudenz und Rechtsphilosophie entende dever ser preservada, se não constitutivamente assumida (também «deste lado do canal»), pelo projecto da neue realistische Philosophie des positiven Rechts —não obstante as diferenças de concepção que separam (e devem separar) tal projecto do seu ilustre percursor inglês [Ibidem, pp. 15-17]. 60 «[Die Engländer] brechen überall die Fragestellung zu früh ab und lassen die letzen Probleme so gleichmütig auf sich beruhen, als wenn diese Fragen gar nicht aufgeworfen zu werden verdienten oder bereits außerhalb der Peripherie aller Wissenschaften lägen. (…) Die Engländer lassen sich gleichsam an dem Fundament (…) und dem Erdgeschoß (…) genugen, getrauen sich aber nicht, die materielle Rechtsphilosophie als ein weiteres Stockwerk draufzusetzen.…» (Ibidem, 14, 15) . 61 Trata-se de assumir uma «luta» contra a Rectsphilosophie alten Styls, denunciando o perigo de dissolução (na tradição do(s) Natur-, Vernunft- e Idealrecht(e)) que ameaça o discurso jurídico não dogmático (e as tentativas de o institucionalizar) [Neste sentido cfr.Adolf MERKEL, «Besprechung von Dr K. Bergbohm „Jurisprudenz und 58 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... Rechtsphilosophie”» (1893), in Gesammelte Abhandlungen aus dem Gebiet der allgemeinen Rechtslehre und des Strafrechts , zweiter Hälfte, Straßburg, Verlag von Karl T. Trübner, 1899, pp. 727 e ss.].. Sem esquecer os contributos de «segundo» JHERING e de BIERLING, importa ter presente que o extenso primeiro volume de Jurisprudenz und Rechtsphilosophie (o único que, em conjunto com a Introdução, BERGBOHM chegou a completar) se intitula precisamente Das Naturrecht der Gegenwart [Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, cit., pp.109 e ss]. Para BERGBOHM trata-se com efeito de descobrir (-interpelar) o «objecto» nicht positives Recht. Ou mais rigorosamente, de partir de um «conceito de direito natural» latissimo sensu (als Inbegriff aller nichtpositiven Recht und Rechtselemente) [Ibidem, p. 130] — quando não da representação deste como um nomen appelativum [Ibidem, p. 485] — para levar a cabo uma reconstrução sistemática de todas as propostas que em pleno século XIX assumem como referência objectiva «um direito não positivo ou elementos deste» [MERKEL, «Besprechung von Dr K. Bergbohm „Jurisprudenz und Rechtsphilosophie”», cit., p. 727]. «[A]ls Recht ist jedes Recht außer dem positiven schlecthin ein Nonsens…» (BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, cit., p. 479). 62 Esta divisa assumida por BERGBOHM é uma paráfrase explícita da famosa divisa de JHERING «Durch das römische Recht, aber über desselbe hinaus!»: «DieseVariation einesbekannten Wortes v. Jhering möchte ich die Rechtsphilosophie sich zur Devise wählen sehen. Sie allein, von den Juristen selbst bei allen Fundamentallehre ihrer Wissenschaft durchgeführt, kann die letzere vor einer abermaligen Invasion der in alle Brechen eindiringenden Naturrechtslhrei bewahren…» (Ibidem , p.25). 63 Para uma referência explícita ao «segundo» JHERING (como um argumento decisivo para pensar a complementaridade indispensável da formelle e da materielle Rechtsphilosophie), ver MERKEL, «Besprechung von Dr K. Bergbohm „Jurisprudenz und Rechtsphilosophie”», cit., pp. 731-732. Sem esquecer a posição distinta de BERGBOHM (também ela a convocar o «segundo» JHERING… e não obstante a denunciar as dificuldades da materielle Rechtsphilosophie ): Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, cit., pp. 544-546 (nota 9). 64 BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, cit., p. 23. Veja-se também a reexposição-síntese proposta nas páginas finais da longa «Introdução», ibidem, pp. 102-106. «Dem System der juristischen Wissenschaften haftet ein schwere Mangel an, wenn der Kreise derselben nicht durch eine philosophische Rechtslehre, die allen einzelnen Teilen,aber keinem besonderes angehöt, zusammengehalten wird…» (Ibidem, p.102) 65 Sem deixar assim de exigir uma Neubegründung, que possa integrar os «conceitos e os princípios mais gerais» — de todos os domínios do direito, se não de todas as «partes da ciência do direito» — num sistema posível : «[als] Neubegründung eines Lehrgebäudes (…), das in sich die allgemeinsten Begriffen und Prinzipen aller Teilen der Rechtwissenschaft zu vereinigen dürfte…» (Ibidem, p. 18) José Aroso Linhares 59 66 Para uma acentuação do contraponto Organismus / System (e deste projectado no Rechtsquellenstreit), cfr as reconstuições da proposta de SAVIGNY desenvolvidas por CASTANHEIRA NEVES [«As fontes de direito e o problema da positividade jurídica», Boletim da Faculdade de Direito LI, Coimbra 1975, pp. 149-157 (1.) e «Escola Histórica do Direito» (1984), Digesta, cit., volume II, pp. 203 e ss., 207-209 (2)), 211—214] e por Annette BROCKMÖLLER [Die Entstehung der Rechtstheorie im 19.Jahrhundert in Deurschland, cit., pp. 83 e ss. («Recht und Rechtswissenschaft bei Savigny»), 99-107 (b) e c)), 108-111 («Wissenschaftlichkeit der Rechtwissenschaft oder: Das Verhältnis von Organismus und System») ]. 67 BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie , cit., pp. 25 e ss («Neueste Bestrebungen der deutschen Juristen»).. 68 Ibidem , p.551. Ver todo o § 17 («Die ungeschichtliche und die geschichtliche Rechtstheorie»). 69 Ibidem, pp. 548-549, nota 12. 70 Ibidem, p. 547. 71 Se as duas primeiras tensões nos aparecem «partilhadas» (com resultados diferentes embora) por BERGBOHM, BIERLING e MERKEL, a última impõe-se-nos autonomamente apenas com MERKEL, enquanto e na medida em que considera que a a conexão com a realidade se pode impor também directamente através do problema do valor (als Wert der Rechtnormen) [MERKEL, Juristische Encyclopädie, Berlin / Leipzig, Verlag von Guttentag, 1885, pp. 6-7 (§§ 6-12), 13-26 (§§ 24-4), «Elemente der allgemeinen Rechtslehre», in Gesammelte Abhandlungen aus dem Gebiet der allgemeinen Rechtslehre und des Strafrechts , zweiter Hälfte,, cit., pp. 588-589 (§7, «Recht und Macht»), 608-613 (§14, «Der Begriff des Gerechtens») ]. Tratando-se, com efeito, de distinguir dois tipos de vinculação material: (a) o primeiro — dominado pela perspectiva-«valor» da finalidade ([ als] Zweckmäßigkeit ) — a corresponder à relação que os critérios-normas (enquanto meios) estabelecem com as «necessidades» e os «interesses» sociais — se não directamente com os fins «públicos» que generalizam estes interesses); (b) o segundo — associado à perspectiva-«valor» da eticidade ([als] ethischer Wert) — a considerar já os limites que as concepções ético-comunitárias vigentes (ethische Volksanschauungen) — muito especialmente aquelas que exprimem uma determinada compreensão do justo — impõem a tais critérios-normas: «Der Inhalt des Rechts unterliegt aber zugleich einem Einfluß in der Richtung einer Herstellung oder Wahrung seiner Übereinstimmung mit herrschenden ethischen Anschauungen über das Gerechte, und nimmt überall neben der Eigenschaft der Zweckmäßigkeit diejenige der Gerechtigkeit für sich in Anspruch…» [Juristische Encyclopädie , cit., p. 13 (§ 25)]. Dois tipos de vinculação que MERKEL quer inconfundíveis enquanto perspectivas … e que não obstante (em nome da sua estratégia de «luta» contra a «filosofia tradicional») acaba por considerar prioritariamente na sua «convergência» — enquanto «modos» ou «maneiras» de uma vigência prática historicamente construída. 60 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... 72 Assim também quando a conexão com a realidade aparece associada a uma exigência explícita de adesão prática ou de reconhecimento-Anerkennung (MERKEL, BIERLING)…e de tal modo que a exigência em causa se nos exponha na sua autonomia: independentemente da inteligibillidade da norma-ratio (ou da característica de generalidade que o seu texto constitui); independentemente ainda da legitimidade político-institucional do imperativo (e da volonté générale que esta legitimidade pressupõe). Autonomia (auto-subsistência) que MERKEL defende sem renunciar a uma compreensão orgânico-institucional: enquanto restitui a experiência do reconhecimento a um território de fronteira — marcado pelo cruzamento das intenções da ética e do direito (se não pela «concordância do direito» com específicos «factores morais» e com a «força» que estes autonomamente exercem); e então e assim enquanto assume tal experiência como um «momento» indispensável da exigência de «obrigatoriedade» (verpflichtende Kraft) , que a determinação categorial correspondente deverá autonomizar [MERKEL, Juristische Encyclopädie, cit., pp. 30-33 (§ 49)]. Auto-subsistência que BIERLING defende por sua vez enquanto rompe com o «discurso do organismo»… mas então também enquanto (assumindo o contraponto reconhecimento directo/ reconhecimento indirecto) articula dois eixos distintos. O primeiro dominado pela experiência de um «comportamento» ou pela tradução empírico-explicativa (psicológica) que a consagra— se não já pelo modelo de determinação-comprovação que lhe corresponde (e que culmina numa hipótese de reconhecimento efectivo ou directo) [«Die Anerkennung, die das Recht (…) zum Recht macht (…), ist (…) nicht ein vorübergehender Akt, sondern ein dauerndes, habituelles Verhalten in Beziehung auf die Bettreffenden (d. H., die anerkannten) Rechtsgrundsätze…» (Ermst Rudolf BIERLING, Zur Kritik der juristischen Grundbegriffe, reimpressão da edição de Gotha (1887-1883), Aalen, Scientia Verlag Aalen, 1965, Teil I., pp.6-7(3))]. O segundo constituído pela representação de um sistema jurídico em degraus, entenda-se, pela determinação das relações (verticais) de «subordinação» e de «subsunção» que (para além dos vínculos de «coordenação» horizontalmente experimentáveis) sustentam o edifício-estrutura das Rechtssätzen-Normen e dos comandos- Anordnungen: representação por sua vez que culmina no isolamento de um círculo fundante de proposições constitucionais, se não já na pressuposição (lógico-constitutiva) de uma Norm-Anordnung fundamental [Ibidem, pp. 105-138 (IX.)]. 73 Reconstituição que não podemos cumprir aqui, cujos «argumentos» esperamos no entanto retomar em breve, a propósito deste especialíssimo tempo de teoria do direito (e do contraponto que ele oferece ao nosso). 74 As expressões mobilizadas no texto são de resto extraídas do ensaio de KELSEN que desencadeou a famosa polémica: «Eine Grundlegung der Rechtssoziologie», Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik , 39. Band, 1915, pp. 839 e ss. «Dasjenige, was Ehrlich als „lebendesRecht” bezeichnet, ist (…) zwar keine juristische Kategorie (…). Rechtsoziologie ist im grunde genommene gar keine eigene José Aroso Linhares 61 Wissenschaft; es ist ein vom Standpunkte soziologischer Erkenntnis durchhaus willkührlicher Ausschnitt aus einer allgemeinen, das soziale Leben betrachtenden und erklärenden Wissenschaft.denn die abgrenzung dieser Rechtssoziologie muß durch einen Begriff vollzogen werden, dessen Bestimmung von einem ganz anderen Standpunkte auserfolgt,alsder einen exolikativen Soziologie ist, nämlich durch den normativen Rechtsbegriff (…) Der Versuch Ehrlichs, für die Soziologie des Rechts eine Grundlegung zu schaffen, muß als völlig gescheitert gelten: vor allem infolge des gänzliches Mangels einer klaren Problemstellung und einer präzisen Methode…» (Ibidem , pp. 875-876) 75 Cfr. a reconstituição exemplar de todas estas frentes (e etapas de confronto) proposta por Hans-Joachim DAHMS em Positivismusstreit. Die Auseinandersetzungen der Frankfurter Schule mit dem logischen Positivismus, dem amerikanischem Pragmatismus und dem kritischen Rationalismus , Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1994, passim. 76 Ver supra, nota 25. 77 Referimo-nos evidentemente à proposta de VIEHWEG e ao modo como esta assume-«interpreta» as possibilidades da teoria do direito num horizonte de Rehabilitierung der praktische Philosophie: cfr. a colectânea Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie. Gesammelte kleine Schriften. Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1995, passim. 78 A «linha» de reflexão em causa — crítico-genealógica (cratológica), estético-reflexiva e ética — é aquela que se expõe às seduções (concertadas ou divididas) a que aludimos supra (de uma moralidade política, de uma estética do sublime e de uma ética da alteridade): ver notas 32-34. 79 Para um desenvolvimento dos argumentos que a seguir se convocam (e uma consideração dos pressupostos que estes mobilizam), veja-se o diálogo com FISH que propus em Constelação de discursos ou sobreposição de comunidades interpretativas? A caixa negra do pensamento jurídico contemporâneo, Porto, Edição do Instituto da Conferência, 2007, passim (estudo de cujas formulações o presente ensaio explicitamente se socorre). 80 Ver muito especialmente Stanley FISH, «The Law Wishes to Have a Formal Existence», in Aram VEESER (ed.), The Stanley Fish Reader, Malden/Oxford 1999, pp. 165-203, Professional Correctness, cit., pp. 19 e ss. (Lecture II), 71 e ss. (Lecture IV), 93 e ss. ( Lecture V ) e «Theory Minimalism» (Panel on Jurisprudence at the January 2000 Association of American Law Schools Conference: An Exchange on the Nature of Legal Theory), San Diego Law Review, volume 37 nº3 2000, pp. 761776. Sem esquecer ainda os ensaios integrados em Doing What Comes Naturally, Durham/London 1989, There’s No Such Thing As Free Speech And It´s a Good Thing,Too, Oxford 1994, e The Trouble With Principle, Harvard 1999. 81 62 «Dennis Martinez and the Use of Theory», Doing What Comes Naturally, cit., p. 378. A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... 82 Ver exemplarmente «Play of Surfaces: Theory and the Law», There’s No Such Thing As Free Speech…, cit., pp.180-199. 83 «Insofar as one is ever critically reflective, one is critically reflective within the routines of a practice. (…) What most people want from critical reflectiveness is precisely a distance on the practice rather than what we might call a heightened degree of attention while performing in the practice. (…) Insofar as critical selfconsciousness is a possible human achievement, it requires no special ability and cannot be cultivated as an independent value apart from particular situations: it’s simply being normally reflective. It’s not an abnormal, special — that is, theoretical — capacity…» [«Fish Tales: A Conversation with “The Contemporary Sophist”» (entrevista concedida por FISH a Gary OLSON) “, JAC Online (12-02-1992), http:// www.cas.usf.edu/JAC/122/olson.html (extraído em 11-04-2003)]. 84 É neste sentido que, assumindo as possibilidades-desafios de uma teoria críticoreflexiva,, CASTANHEIRA NEVES distignue três grandes perspectivas actuais de compreensão da juridicidade: o normativismo, o funcionalismo e o jurisprudencialismo. Cfr. Teoria do direito, cit., (versão em fascículos) pp. 50 e ss., (versão em A4) pp.28 e ss. 85 «Tematização» no sentido consagrado por LEVINAS (indissociavelmente ligado à «interrupção do terceiro»). Ver muito especialmente Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, La Haye, 1978, Paris, edição de bolso Kluwer Academic, 2004, pp. 239253 («Du dire au Dit ou la Sagesse du Désir»), 253 e ss. («Sens et il y a»), 256 e ss. («Scepticisme et raison»). 86 A «alternativa humana» (enquanto resposta apenas culturalmente possível para um problema necessário) que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer: cfr. muito especialmente «O princípio da legalidade criminal», Digesta , Coimbra, Coimbra Editora, 1995, vol 1º, pp. 413 419, «O direito como alternativa humana. Notas de reflexão sobre o problema actual do direito», ibidem , pp. 287-310, Metodologia jurídica, cit., pp. 231-234, «Pessoa, direito e responsabilidade», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 6, 1996, pp. 38-40, «O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade», in PINTO RIBEIRO (coord.), O Homem e o Tempo. Liber Amicorum para Miguel Baptista Pereira , Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1999, pp. 88 e ss., «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as condições da emergência do direito como direito», Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, volume II, Coimbra,, 2002, pp. 837 e ss.., O direito hoje e com que sentido ? O problema actual da autonomia do direito, cit., 2002, 53 e ss. (IV). 87 É ainda a lição de LEVINAS: ver muito especialmente Autrement qu’être, cit., pp. 233 e ss., (“Témoignage et prophétisme”). 88 Permita-se-nos esta paráfrase, que convoca explicitamente Georges STEINER, The Idea of Europe , cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa, Lisboa, Gradiva, 3 2006, pp. 48-55. Para um desenvolvimento, veja-se o nosso «Humanitas, singulari- José Aroso Linhares 63 dade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O “pormenor” do Direito na “ideia” da Europa das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista», Dereito. Revista xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, volume 15, número 1, 2006, 89 As expressões citadas neste parágrafo são todas elas de STEINER,: A ideia da Europa, cit., pp. 49-50. 90 «[Para] acedermos da individualidade à pessoa temos de passar do plano simplesmente antropológico para o mundo da coexistência ética, pois a pessoa não é uma categoria ontológica, é uma categoria ética — numa outra palavra, a primeira é uma entidade antropológica, a segunda uma aquisição axiológica…» (CASTANHEIRA NEVES, «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as condições da emergência do direito como direito», cit., pp. 863-864). 91 Stanley FISH, Professional Correctness, cit., p.19. 92 CASTANHEIRA NEVES, A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, cit., 2003, p. 146. 93 Cfr. textos cits. supra, nota 86. Para CASTANHEIRA NEVES, trata-se com efeito de contrapor a ordem de validade do direito à ordem de necessidade do poder e à ordem de possibilidade da ciência (tecno-ciência) mas também à ordem de finalidade da política… reconhecendo nestas outras tantas respostas (culturalmente) possíveis. Alternativas às quais importará porventura acrescentar uma quarta : aquela que se nos impõe com as tentativas de reconhecer uma ética nova (e com os degraus de universalidade que esta ambiciona). Para uma alusão a esta “ameaça” de continuum prático, ver os nossos “A ética do continuum das espécies e a resposta civilizacional do direito. Breves reflexões”, Boletim da Faculdade de Direito LXXIX, Coimbra, 2003, pp. 197 segs., 214-215 e “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos… » , cit., pp. 65-66, 132-135. 94 «[A] índole política (comprometidamente política) da função legislativa há-de ter o seu contra-pólo na índole jurídica (autonomamente jurídica) da função jurisdicional. O compromisso político que corresponde hoje à lei, a fazer dela um instrumento jurídico-político de governo, não pode deixar de implicar para a sua normatividade a parcialidade e mesmo a partidarização que são próprias do compromisso político numa sociedade dividida e plural (...). [Se] a evolução do sentido da lei é forçosa, ela própria convoca, e com o mesmo carácter forçoso, um contrapeso, um poder chamado a garantir o respeito pelos valores fundamentais da ordem jurídica e do direito. (...) [As] funções legislativa e jurisdicional, no actual sistema político-jurídico, não só continuam a não ser análogas, como voltam a ser contrárias: e se igualmente não são contraditórias, pois uma não nega a validade e a autonomia específica da outra, o certo é também que deixaram de ser simplesmente complementares nos termos em que o eram no sistema moderno-iluminista (a complementaridade da criação genérica e da aplicação particular de um direito-norma geral ), para serem antes 64 A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ... concorrentes, como duas dimensões, intencional e institucionalmente contrapostas, de uma dialéctica entre um poder de programação politicamente constituinte e um contra-poder que postula a validade do direito e é convocado unicamente à sua realização...» (O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, pp. 604, 605, 611). Para uma caracterização do «juízo jurídico da jurisdição» e a problematização do sentido da função jurisdicional como «elemento institucional da comunidade política» (e de uma comunidade política organizada num Estado que se quer legislativo-jurisdicional), caracterização que insiste assim numa especificação da exigência de «representação comunitária» — dominada pelo contraponto político/política (e pelos desafios da institucionalização de um poder que não sendo «apolítico» também não desempenha decerto «uma função de intenção e de natureza políticas») —, cfr. o mesmo O instituto dos «Assentos»…, cit., pp. 418 e ss., 429-475, 596-611. 95 HOWARTH, «On the Question “What Is Law?”», cit., pp. 282-283. José Aroso Linhares 65 DEPOIS DA ONDA: MUDANÇA DE REGIME? (Entendendo a Crise no Iraque)1 Winston P. Nagan Professor de Direito da Universidade da Flórida-EUA (Levin College of Law), Diretor do Instituto para Direitos Humanos, Paz e Desenvolvimento, Ministro em exercício da Suprema Corte da África do Sul, Professor Honorário da Universidade da Cidade do Cabo-RSA, Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA. O Presidente Bush determinou que os EUA deveriam aumentar as tropas no território iraquiano. Ele está convencido de que pode fazê-lo se puder limpar Bagdá dos cruéis insurgentes, com o Iraque ganhando fôlego para o governo da unidade nacional finalmente se estabelecer como um governo com algum efetivo controle sobre o seu povo, território, instituições governativas e com capacidade de atuar mesmo que modestamente no ambiente internacional. Nós normalmente destacamos estas qualidades para um país quando nós consideramos que ele reúne condições para seu reconhecimento internacional como Estado. Dita iniciativa é de fato não uma estratégia, mas um mero lance, e a questão crucial é se esta tática tem algum valor estratégico que justifique o investimento da reputação da Nação pela Administração Bush, dos recursos do Tesouro e, o mais importante dentre tudo, das vidas e do bem estar do seu pessoal militar. O mais óbvio a respeito do conflito no Iraque é que ele é indiscutivelmente considerado sectário. Pode ser que alguns considerem o conflito sectário diferente do conflito étnico. Isto, contudo, não é sustentável. A fundamental conjectura que a maioria dos agentes políticos fazem sobre o conflito étnico é a seguinte: o conflito é incompreensível; as partes lutam por razões 67 completamente irracionais; uma terceira parte imparcial não consegue atribuir qualquer racionalidade para a conduta das partes envolvidas; e, deste modo, é impossível entender o conflito em termos de princípios ou reivindicações negociadas ou racionais. Em tal contexto, agentes políticos que sejam prudentes não irão intervir porque a intervenção seria fútil. Se há intervenção, agentes políticos que sejam ajuizados procurarão limitar esta intervenção porque as perdas envolvidas não podem ser justificadas em bases racionais. O que uma sábia política não deve fazer é expandir a intervenção até o ponto em que seja completamente incompreensível do ponto de vista do protagonista étnico. Isto é pensado para ser uma idéia básica sobre a natureza de conflitos étnicos e os limites da intervenção. Se o termo sectário pode ser usado para enfraquecer a caracterização do conflito, a fim de permitir continuados e custosos compromissos, é uma questão que deve ser seriamente considerada. O conflito no Iraque possui todas as características de um conflito étnico. Quer denominemos o conflito como étnico ou como sectário, há um fato universal que se impõe. Os sunitas do Iraque não gostam da intervenção americana. Os americanos são seus inimigos. Daí, as tropas americanas mais propriamente do que serem mediadoras são as inimigas dos sunitas. Sadam Hussein, que foi recentemente executado, e cujo irmão foi executado um tanto de maneira bárbara, era sunita. Estas execuções apenas exacerbaram o ódio dos sunitas tanto contra os EUA quanto contra o governo controlado pelos shiitas. Os shiitas são o outro setor de grupo étnico. É apropriado distinguir entre o governo nacional (cuja maioria é shiita) e as milícias shiitas sustentadas pelo seu partido. Entretanto, os shiitas sabem que darão as cartas quando os americanos se forem, e irão querer ter todas as cartas que possam ter à sua disposição para se proteger dos adversários sunitas. Os shiitas irão sem dúvida se recordar de 68 Depois da Onda: Mudança de Regime? (Entendendo a Crise no Iraque) como o Presidente Bush, o pai, deixou-os expostos como uma oferenda de sacrifício para Sadam Hussein, depois que as potências aliadas deixaram Sadam Hussein no poder com o seu exército Baath. Eles sobreviveram por causa dos shiitas do Irã. Em verdade, os shiitas também apoiam os shiitas do Líbano que se levantaram contra os israelenses recentemente. Os shiitas sabem que os EUA não são seus amigos, e que a mudança de orientação política da Administração Bush teve menos a ver com a democracia no Iraque do que com as preocupações de Israel relativas às ameaças de longo prazo tanto de um Iraque dominado por sunitas sob Sadam quanto por um grande Iran shiita sob os aiatolás. Em suma, os americanos são o alvo legítimo no Iraque dos shiitas. O Presidente Bush procura expandir o avanço das tropas em um conflito étnico-sectário onde ambos os lados vêem as forças americanas como alvos de ocasião. Ninguém pode imaginar pior cenário tático no qual atuam as tropas americanas. Se isto é correto, poderia existir apenas uma razão para este extravagante sacrifício do sangue americano e de verbas do Tesouro, e esta consiste em que a Administração Bush está ainda confiante de que se remanescer no Iraque tempo suficiente, isto será capaz de gerar um conflito real diretamente com o Irã. Um conflito com o Iraque, da perspectiva da doutrina Bush, terá como propósito mudar o regime iraniano por força. Naturalmente, Bush irá precisar de um incidente para iniciar o ataque. A questão crítica sobre estas doutrinas de segurança nacional é que quer elas emanem de um partido político ou de outro, elas pretenderam representar o crucial interesse nacional como um todo. O uso de uma tal doutrina, entretanto, poderia ter não somente um dupla finalidade, mas também um objetivo duplo e radicalmente partidário. Este objetivo poderia ser aumentar o envolvimento americano em conflitos globais como meio de influenciar a próxima eleição presidencial americana. Se isto é verdade, isto bem pode Winston P. Nagan 69 ser o último e desesperado lance da Administração Bush para continuar decisivamente influenciando as eleições de 2008. Se isto é correto, então Bush irá querer manter a dispendiosa presença militar no Iraque tempo o suficiente para ser crucial para a dinâmica eleitoral. Tempo é um fator crítico. Se o momento é adequado, a Administração Bush terá de achar uma desculpa para atacar o Irã. Indubitavelmente, o volúvel líder atual do Irã bem pode fazer isto mais fácil para a Administração Bush com a sua excessiva retórica. Em caso de conflagração, o partido do Presidente Bush terá vantagens eleitorais significativas. Um conflito expandido e selvagens ameaças compreendendo arsenais nucleares irão sem dúvida explorar a dinâmica da insegurança pessoal no eleitorado doméstico americano. O discurso político será controlado largamente por quem dirigir as instituições de segurança nacional. O Congresso será marginalizado. A imprensa será emudecida. A opinião crítico-política responsável será acusada como usual de enfraquecer a segurança nacional. A oposição política será acusada de ser impatriótica, e não desejosa de apoiar as tropas. O objetivo será silenciar o próprio debate político. Em conseqüência disto, líderes de opinião neste país, especialmente as lideranças parlamentares, observam criticamente e com muito mais cuidado como a Administração Bush irá se conduzir entre agora e 2008. Em particular, o público precisa saber se a Doutrina Bush e seu compromisso de mudança de regime em todo o Oriente Médio, pelo uso da força, continua a ser a doutrina de segurança nacional da Nação. É crucial para os americanos saber quais são os reais objetivos estratégicos da Administração Bush e se estes objetivos correspondem realmente ao interesse nacional. A Administração Bush tem sido lembrada recentemente de que os EUA tem vários meios de promover os interesses americanos, e de que uma excessiva confiança no uso da força pode bem ser contraproducente. 70 Depois da Onda: Mudança de Regime? (Entendendo a Crise no Iraque) Notas 1 Artigo traduzido do inglês por Saulo José Casali Bahia, professor de Direito Constitucional e de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da UFBA. Winston P. Nagan 71 DOUTRINA NACIONAL ARTIGOS E ENSAIOS DOS PROFESSORES ARTIGOS DOS FORMANDOS ARTIGOS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESLEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO Gamil Föppel El Hireche1 1 Doutorando em Direito Penal Econômico pela UFPE, Mestre em direito Público pela UFBA, e Especialista em Ciências Criminais (IELF/Juspodivm). Além da advocacia, é figura ativa no meio acadêmico, sendo diretor da Faculdade Baiana de Direito, Coordenador do curso de especialização em Ciências Criminais do Juspodivm, Professor dos cursos Juspodivm (BA), Praetorium (MG), IDAJ (PE), Espaço Jurídico (PE), Professor da Graduação e Especialização da UFBA e da Especialização da UFPA, e professor da ESA/SP e ESAD/BA. Endereço postal e eletrônico: Av. Tancredo Neves, nº. 1283, Edf. Empresarial Ômega, sala 302, Caminho das Árvores, CEP: 41.820-021, Salvador, Bahia. [email protected] Sumário: 1. À guisa de introdução. A (des)legitmação da intervenção penal na economia e o posicionamento de Hassemer. Primeiras linhas em defesa do Direito da Intervenção. 2. Os (novos?) problemas e o surgimento do Direito Penal Econômico. 2.1. Breve escorço histórico. 2.2. A propósito de um conceito de Direito Penal Econômico. Primeiras perplexidades... 2.3. Características do Direito Penal Econômico. Especificidades. Flexibilização de garantias? 3. Propostas conciliatórias: o Aparecimento do Direito Penal da Intervenção e a contribuição de Winfried Hassemer. 3.1. Fundamentos do Direito da Intervenção. Em que consiste, direito, conceito. 3.2. Zaffaroni, reação aos Direitos Penais Paralelos: Crítica ao Direito da Intervenção? 4. Considerações Finais. 5. Referências Bibliográficas. Resumo: Pretende-se expor as preocupações com a deslegitimação do direito penal econômico, a sua desnecessidade e a sua exclusiva serventia para um discurso demagógico, simbólico. Por conta disso, tratar-se-á do aparecimento do direito penal econômico, suas características, disfunções e, em seguida, apresentar-se-á, mediante um viés crítico, o chamado direito da intervenção, como bem defendido pela escola de Frankfurt. Palavras Chave: Direito, Penal, Econômico, Deslegitimação, Intervenção. 77 1. À guisa de introdução. A (des)legitmação da intervenção penal na economia e o posicionamento de Hassemer. Primeiras linhas em defesa do Direito da Intervenção Sobretudo no Direito Penal ambiental e no Direito Penal econômico é, entretanto, publicamente evidente que os tradicionais pressupostos de imputação do Direito Penal podem ser inteiramente impeditivos de uma política criminal eficiente. Aqui se entende, por exemplo, que a imputação individual, como a tradição do Direito Penal, pode impedir a atuação dos meios penais (a qual, aliás, sempre foi a sua tarefa!). Por conseguinte, faz-se a exigência de que em determinados setores do Direito se devam enterrar as sutilezas de uma imputação individual. No mesmo contexto, pode-se mencionar o aumento das cominações penais, bem como as tendências que levam a uma difusão do injusto (que no Direito Penal ambiental por exemplo, através do princípio da acessoriedade administrativa, somente as autoridades administrativas estipulam onde começa o limiar do injusto criminal). Tudo isso leva finalmente a uma perda dos tradicionais pressupostos de imputação, os quais não poderiam deixar o Direito Penal passar, de modo algum, sem prejuízos.2 A angústia supra transcrita se refere a um dos maiores pensadores da política criminal da atualidade: Winfried Hassemer. Neste presente ensaio, pretende-se expor as preocupações com a deslegitimação do Direito Penal Econômico, a sua desnecessidade e a sua exclusiva serventia para um discurso demagógico, simbólico. Por conta disso, trataremos do aparecimento do Direito Penal Econômico, suas características, suas disfunções e, em seguida, apresentar-se-á, mediante um viés crítico, o chamado Direito da Intervenção, como bem defendido pela Escola de Frankfurt. Desde o século passado, o Direito Penal Econômico vem se expandindo. Com a bi-polarização econômica, surgindo dois 78 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. modelos de produção, o mundo assistiu à proliferação das normas penais em matéria econômica. Surgiu uma nova necessidade para as pessoas, e esta nova necessidade refletiu e vem refletindo em matéria penal. Efetivamente, por um lado, torna-se visível a criação de novos bens que demandam proteção. Atualmente, as pessoas não se preocupam mais apenas e tão somente com os seus patrimônios, com as suas honras, com as suas vidas. Existe uma preocupação em proteger a normalidade do mercado financeiro, o bom funcionamento das bolsas de valores, a economia popular, a ordem tributária e previdenciária, as relações de consumo, enfim, os novos bens, desta nova sociedade, são coletivos. Não se discute que o ordenamento jurídico precisa proteger e tutelar esta nova realidade. Resta saber se esta proteção poderia ser feita por meio do Direito Penal ou não. Sucede, porém, que, a ordem econômica não representaria um bem tradicionalmente jurídico-penal. Trata-se de uma nova forma de intervenção penal, que, consoante se analisará, é marcada por flexibilizações às garantias, mormente à da legalidade, haja vista que, para tratar destes novos bens, são usadas normas penais em branco, tipos de mera conduta, repletos de elementos normativos, de perigo abstrato, o que se afasta, também, do princípio da legalidade e da ofensividade. Além disso, percebe-se que, na realidade, as normas de Direito Penal Econômico representam, uma vez mais, uma manifestação simbólica da intervenção penal. Procura se justificar a intervenção penal em nome de uma pseudo-segurança, quando, verdadeiramente, as normas não punem quem quer que seja, deixando a sociedade à mercê dos interesses de particulares. O presente trabalho pretende, sobretudo, analisar, como embrião da tese que se apresentará à UFPE, as contribuições de Winfried Hassemer a respeito do Direito da Intervenção. Seria, grosso modo, Gamil Föppel El Hireche 79 uma terceira via, entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que pretenderia conciliar, a um só tempo, as garantias e direitos fundamentais com a necessidade de resguardar novos bens. A opção por Hassemer se justifica por ser um dos autores mais respeitados em política criminal, por procurar conciliar as ciências penais, sem exageros herméticos de um dogmatismo estéril. Este será, pois, o grande problema deste trabalho, é dizer, a principal pergunta a que se pretende responder: é legítima a intervenção penal em matéria econômica ou seria mais interessante buscar uma outra alternativa, possivelmente o Direito da Intervenção, como proposto por Hassemer? 2. Os (novos?) problemas e o surgimento do Direito Penal Econômico 2.1. Breve escorço histórico Primeiramente, deve-se tratar do surgimento do Direito Penal Econômico e de alguns de seus aspectos históricos, bem como dos principais modelos existentes no mundo. A necessidade de criar normas penais econômicas fica adiante evidenciada por Manoel Pedro Pimentel: Novas relações entre o capital e o trabalho, a revolução dos meios de comunicação e de transporte, o nascimento das empresas, com investidores anônimos, as novas posições do mercado financeiro, a complexa interação dos fatores do mercado econômico, do trabalho e do mercado financeiro, dos preços e das rendas, tudo isso tornou necessária a ajuda do Estado com medidas de proteção, surgindo paulatinamente a intervenção estatal no domínio econômico.3 Há quem, a despeito das manifestações recentes do Direito Penal Econômico, entenda que ele sempre existiu, em todas as sociedades. Esta é a opinião de Martos Nunes4, que, citando Muñoz 80 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. Conde, evidencia que, desde a idade média, manifestações há de Direito Penal Econômico.5 Em apertada síntese, a relação do Direito Penal com a economia passa a ser necessária sempre que se entendeu pertinente a defesa da economia, e as manifestações do Direito Penal Econômico irão variar a partir do modelo de estado, de política econômica e de política criminal. Veja-se, com acerto, que há autores que identificam o aparecimento do Direito Penal Econômico com o dirigismo e o controle estatal sobre a economia. Neste passo, Martos Nuñes: que un derecho penal económico, en sentido propio, sólo comienza a existir cuando aparece una economia dirigida y centralizada, pues mientras existan condiciones que otorguen a los operadores económicos plena libertad para desarrollar relaciones económicas, el Estado carece de interés para interferirse en el mantenimiento del orden económico.6 A necessidade de aparecimento do Direito Penal Econômico surge, pois, quando uma instituição, o Estado, resolve dirigir a economia. Neste passo, uma vez mais, Martos Nuñes: La necesidad surge cuando una institución pública establece planes económicos, vigila su ejecución y determina las coordenadas de la organización del mercado.7 Analisados os elementos históricos, passa-se a analisar, neste ponto do trabalho, o conceito do Direito Penal Econômico. 2.2. A propósito de um conceito de Direito Penal Econômico. Primeiras perplexidades... Veja-se a seguinte preocupação com o conceito de Direito Penal Econômico: Los términos que se utilizan para designar la materia no están bien precisados. Así, se habla de derecho penal financiero, derecho penal comercial o derecho penal de los negocios.[...].La Gamil Föppel El Hireche 81 locución Derecho penal económico cubre más ampliamente todos los aspectos de esta rama del Derecho, tanto los aspectos dirigistas como los aspectos liberales. Sabido es que desde esta última perspectiva, el Estado no debe intervenir en la actividad económica más que para proteger la libertad contractual y la libertad de comercio e industria: el Estado se limita a asegurar el funcionamiento del sistema capitalista atacando los abusos que destruyen la libertad, consecuentemente el Derecho penal económico liberal aspira a ser únicamente un Derecho de protección.8 A referência a Martos Nuñes supra transcrita releva a confusão de termos empregados para definir este novo ramo do Direito Penal que intercede na economia. Por ser a expressão mais ampla, que abrange mais elementos, fez-se a escolha, neste projeto, e na futura tese que se apresentará à UFPE, de empregar a denominação Direito Penal Econômico. Uma definição mais direta pode ser colhida em Martos Nuñes: “El conjunto de normas jurídico-penales que protegen el sistema económico constitucional”.9 Semelhante posição, em um conceito mais elástico, vazado no bem jurídico que é tutelado, é a sustentada por Bajo e Bacigalupo. Assim, a despeito de os autores não conceituarem – e isso seria improvável – de forma uníssona, percebe-se sempre uma preocupação em atrelar o Direito Penal Econômico à política de produção de bens do Estado. Transcreva-se: Podemos definir el Derecho Penal Económico como el conjunto de normas jurídicopenales que protegen el orden económico. La clave para desentrañar en toda su profundidad el sentido y alcance de esta definición estriba en el objeto de protección: el orden económico .10 Buján-Pérez, em seu trabalho específico sobre o tema,11 adverte que inicia o seu trabalho pelo conceito. Para ele, existe um conceito amplo e um outro restrito do Direito Penal Econômico, distinção 82 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. que se funda no projeto alternativo alemão. Passa a conceituar os delitos econômicos de forma ampla e de forma estrita. À esta mesma divisão se refere Martos Nuñes12, que sugere a existência de um direito penal em sentido amplo e um outro, em sentido estrito. Este seria permeado pela intervenção, pelo dirigismo estatal na economia; aquele, da regulação, produção e distribuição de bens. A diferença, pois, está no fato de o Direito Penal Econômico em sentido estrito referir-se à intervenção estatal. Registre-se, ademais, que Martos Nuñes sustenta, no conceito amplo de Direito Penal Econômico, estarem os crimes patrimoniais com vítimas certas e determinadas.13 Importa, assim, consignar a importância em se separar o Direito Penal Econômico em sentido amplo do sentido estrito. Sem que se faça a separação, as terminologias passariam a ser ambíguas, imprecisas, imprestáveis. Consoante Buján-Pérez, em sentido estrito, o Direito Penal econômico deve representar o “Direito Penal Administrativo Econômico”, que cuida da atividade interventiva e reguladora do Estado na Economia. 14 No início, inclusive, esta era a única manifestação do Direito Penal Econômico. Já o conceito amplo parte da análise de condutas que ofendem a coletividade, os bens supraindividuais, sem que representem uma mácula à regulação e à intervenção da economia. À guisa de arremate para este ponto, chamem-se as lições de Bajo e Bacigalupo, dando as definições em sentido amplo e em sentido estrito de Direito Penal Econômico. Observe-se: Derecho Penal Económico en sentido estrito es el conjunto de normas jurídico-penales que protegen el orden económico entendido como regulación jurídica del intervencionismo estatal en la economia.15 Para conceituar o Crime Econômico, Esteban Rigui, por sua vez, menciona que se trata de um ato lesivo ao interesse do Estado Gamil Föppel El Hireche 83 pela integridade e conservação do sistema econômico.16 Encerrase este tópico, antes de passar às especificidades, singularidades e características do Direito Penal Econômico, com Rigui: el derecho penal econômico fue definido como conjunto de normas jurídico penales que protegem el ordem econômico entendido como regulación jurídica de la produción, distribuición y consumo de bienes y servicios.17 Assim, pode-se ver que existe uma manifestação ampla e outra restrita do Direito Penal Econômico. Em sentido amplo, representaria toda e qualquer manifestação das normas penais referentes à produção de riqueza, em sentido estrito, seriam normas penais que se referem à estruturação econômica de uma determinada nação. Fixado o conceito, importante consignar o Direito Penal Econômico tem características próprias, sobremaneira importantes para a tese que se apresentará. Neste instante, importante fazer estas distinções entre as características do Direito Penal Econômico e o Direito Penal tradicional ou nuclear, bem como se tratar das (dis)funções político-criminais referentes à intervenção penal na economia. Quanto às características, impende ressaltar, com Buján-Pérez, que o Direito Penal Econômico em sentido estrito possui autonomia em relação ao Direito Penal comum.18 O estudo da matéria, inclusive, deveria ser separado do Direito Penal comum. As especificidades perpassam a questão do bem jurídico, do processo penal, da figura criminológica do criminoso econômico e, finalmente, a questão referente à responsabilidade penal da pessoa jurídica. É pelas características que se poderá identificar o Direito Penal Econômico, e, a partir daí, conceituá-lo e analisar a existência ou não de autonomia. O estudo destas especificidades termina por desbordar na criação de uma legislação penal especial, outro dos pontos de 84 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. tensão relacionado a esta matéria. Com efeito, discute-se se seria necessário criar leis especiais - que teriam como maior virtude a adequação da tutela para cada grupo de crimes em espécie- ou se seria melhor tratar do Direito Penal econômico no próprio Código Penal comum, preservando a facilidade de os cidadãos tomarem conhecimento do injusto. A dificuldade em definir o Direito Penal Econômico passa, inicialmente, pelo seu caráter de novidade, de proteção a bens novos. Com efeito, trata-se de uma nova manifestação de comportamentos lesivos à sociedade, que diferem dos crimes comuns. Assim, Buján-Pérez coloca dois tipos de Direito Penal: um que ele chama de clássico e outro que ele chama de nuclear.19 Releva notar que, malgrado defenda a sua autonomia, Buján-Pérez sustenta que o Direito Penal Econômico tem os mesmos princípios do Direito Penal Tradicional. Veja-se: Por consiguinte, el intitulado “Derecho Penal Econômico” se halla regido por los mismos princípios jurídico-penales que el Derecho Penal Comum.20 Mas o autor adverte que não se podem transladar acriticamente, sem as modificações necessárias, as regras do Direito Penal Para o Direito Penal Econômico.21 Na área econômica, o direito penal passa a ter características próprias, qualidades diferentes do direito penal comum, sendo que tais diferenças são necessárias porque se tratarão de bens jurídicos novos, bens que não são tradicionalmente os penais. Para o autor, são delitos que “no pertencem ao núcleo tradicional del derecho penal comum”.22 2.3. Características do Direito Penal Econômico. Especificidades. Flexibilização de garantias? Como mencionado, o Direito Penal em relação à economia passa a intervir em uma área que, tradicionalmente, não é a sua, são necessárias certas flexibilizações à garantia da legalidade estrita, Gamil Föppel El Hireche 85 mormente em relação à tipicidade. Tais garantias são mitigadas em razão de a sociedade exigir que se protejam estes novos bens, a demonstrar, cada vez mais, a “antecipação de tutela em matéria penal”, expressão difundida e já consagrada em matéria penal econômica. Por conta disso, são empregadas normas penais em branco, é dizer, normas que demandam complemento. A este respeito, Tiedemann: En el ámbito de la tipicidad es característico del Derecho penal económico el uso de normas penales en blanco, es decir, normas “abiertas” total o parcialmente que se remiten para ser completadas y complementadas a normas con rango inferior a la ley (normas penales en blanco en sentido estricto) o a otras leyes (normas penales en blanco en sentido amplio).23 Assim, quando se versa sobre os bens jurídicos tradicionais, não é necessário, verbi gratia, definir o conceito da palavra alguém, mas, nos crimes econômicos, pela nova realidade da intervenção penal, é imprescindível que se conceituem certos institutos, como, por exemplo, o tipo penal explicativo, definindo instituição financeira, previsto na Lei 7492/86. Para além disso, os bens são tão importantes que o legislador, impaciente, não aguarda a ocorrência de uma lesão concreta para poder punir. Por conta disso, a fim de resguardar a sociedade, fazse um uso cada vez mais freqüente de tipos de perigo abstrato ou presumido, de questionável constitucionalidade. Sobre perigo abstrato, mais uma vez, Tiedemann: Para evitar estos problemas de determinación y de prueba procesal el legislador, sobre todo en materia económica (y del medio ambiente), ha introducido tipos que renuncian a cualquier clase de resultado o lesión: los delitos de peligro abstracto que incriminan ya una determinada acción considerada peligrosa por el legislador (como el caso de los medicamentos del art. 343 bis C.P.) o de las sustancias nocivas a la salud en el caso del art. 341 C.P. donde ya es suficiente la aptitud para dañar).24 86 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. A “necessidade” da utilização de crimes de perigo abstrato vem da importância dos bens jurídicos que neles são resguardados. Com efeito, os bens são tão importantes que o legislador não aguarda a ocorrência de uma lesão para que possa intervir. O desafio, porém, é de legitimar estes crimes, porquanto, em casos tais, a intervenção penal poderia estar se afastando da lesividade e da ofensividade que a norteiam. Uma outra peculiaridade do Direito Penal Econômico é que nele os crimes são todos vagos, é dizer, ofendem a coletividade, não têm como vítimas pessoas certas e determinadas. Por conseqüência disso, consoante se investigará, dificilmente se aceitará a aplicação do princípio da insignificância, bem como das regras do consentimento do ofendido. Um outro marco de especial relevância diz respeito à construção dos tipos por meio de elementos normativos, vale dizer, aqueles que demandam valoração no tempo e no espaço. Com efeito, além dos elementos puramente descritivos ou objetivos, as normas de penal econômico são marcadas pela presença freqüente dos chamados tipos anormais. Sobre isto, Martos Nuñes: A tenor de los complejos fenómenos y regulaciones de la vida económica presente, es imposible prescindir de elementos normativos y cláusulas generales a la hora de describir los tipos penales económicos. En efecto, junto a las exactas descripciones de los tipos, es necesario admitir, aunque sea cuidadosamente, los conceptos jurídicos indeterminados y las cláusulas generales, sobre la base, dominante en la doctrina y Jurisprudencia, de que los elementos normativos y las cláusulas generales en Derecho penal únicamente pueden fundamentar una declaración de responsabilidad criminal, si se trata de valoraciones reconocidas y seguras, es decir, si se trata del núcleo propiamente dicho de esos conceptos jurídicos indeterminables.25 Além dos tipos anormais, outra característica marcante do Direito Penal Econômico é relacionada com a responsabilidade penal da Gamil Föppel El Hireche 87 pessoa jurídica, que ganha corpo em matéria econômica. Registrese que este não é o ponto da pesquisa – que justificaria uma tese de doutoramento – será abordado apenas como característica do Direito Penal Econômico. Uma contribuição por demais significativa em relação às características nos dá Martos Nuñes, a partir do magistério de García-Pablos. Define este autor que a delinqüência econômica esta sujeita à complexa estrutura organizada, além de, por ter um distanciamento entre o autor e a vítima, exista um anonimato das infrações. Outra relevante marca é o uso cada vez mais freqüente de mecanismos avançados de tecnologia.26 Em resumo e dito mais claramente: por tratar de uma área não exclusivamente penal, que não versa dos bens tradicionais, é necessário que se recorra a elementos extra-penais, daí a utilização de normas em branco, tipos de perigo abstrato, anormais, abertos, etc. Os novos bens violados são supra individuais, criando-se, pois, tipos penais vagos. Sobre os bens jurídicos referentes ao Direito Penal Econômico, indispensável é a transcrição verbum ad verbum de Hassemer: A isso corresponde que os bens jurídicos, para os quais deve haver proteção, não são bens jurídicos individuais, mas bens jurídicos universais. E é certo que o legislador penal formula esses bens jurídicos universais de modo muito vago e trivial (a proteção à saúde do povo, proteção à função dos meios de subversão, etc.). Deste modo, o moderno Direito Penal afastase das suas tradições em um duplo sentido. Ali se girava em torno da proteção dos bens jurídicos individuais, os quais eram determinados do modo mais concreto e preciso possível. Os bens jurídicos, os quais o Direito Penal pode designar para a legitimação das cominações legais, não são mais discriminados. E existem apenas alguns tipos de comportamento humano, que hoje se deveriam descriminalizar com a invocação do princípio da proteção dos bens jurídicos.27 88 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. Na tese que se apresentará à UFPE, além das características do Direito Penal Econômico, mister se faz tratar da questão atinente ao bem jurídico resguardado. Bujan Pérez defende que, no Direito Penal Econômico está uma das manifestações mais difíceis do Bem Jurídico.28 Com efeito, tratam-se de bens jurídicos novos, com marcante característica supra-individual. Neste passo, convém chamar à colação as lições de Tiedemann: En el seno de las relaciones entre Derecho constitucional y Derecho penal corresponde al Derecho Penal económico un papel importante, ya que esta nueva rama del Derecho guarda una particular y estrecha relación con la política económica y social del Estado. Por ello se reconocen nuevos y supraindividuales bienes jurídicos, aparecen expresos mandatos constitucionales dirigidos al legislador penal económico y también se plantean nuevos problemas de orden técnico para la aplicación del derecho, incluso en relación a principios bien tradicionales como el de legalidad, derivados del empleo de técnicas legislativas especiales propias de esta materia económica y por las numerosas remisiones a normas extrapenales que los nuevos tipos delictivos necesariamente incorporan.29 Vê-se, pois, que a questão do bem jurídico será determinante para outras tantas, mormente para a (des)legitimação, mas ainda repercutirá no aspecto da autonomia. Bujan Perez, analisando de forma singular o bem jurídico em matéria penal econômica, faz uma distinção entre o bem jurídico imediato (que pode ser chamado de específico ou de diretamente tutelado) e o bem mediato. O bem jurídico imediato é o único que se incorpora ao tipo de injusto, sendo indispensável na parte objetiva de qualquer tipo, razão por que a violação ao bem jurídico imediato também precisará contar com a tipicidade subjetiva do agente.30 É a partir do bem imediato que se tem como analisar a função interpretativa das normas de direito penal econômico. O bem mediato não integra o tipo, a ele Gamil Föppel El Hireche 89 não se incorpora e em nada se relaciona com a função interpretativa. O bem mediato é imaterial, intangível. O bem mediato, no penal econômico, é sempre supra-individual; o imediato, pode ser individual ou coletivo.31 Todos estes elementos – características, bens jurídicos, (dis)funções – seguramente conduziriam a uma necessidade de criar regras próprias de teoria do crime e das conseqüências jurídicas do delito. Com efeito, detidamente analisadas as características do Direito Penal Econômico – normas penais em branco, excesso de tipos anormais, tipos abertos, de perigo abstrato, de mera atividade, com novos bens jurídicos, impende se analisar a criação de uma parte geral própria para o Direito Penal Econômico, haja vista que estas qualidades demandam novo tratamento jurídico. Esta é uma das primeiras preocupações esboçada pela doutrina e, em particular, por Buján Perez. Verdadeiramente, para ele, a primeira necessidade é a de estabelecer uma parte geral do Direito Penal Econômico. Menciona que a realização de uma parte especial do Direito Penal Econômico não é tarefa das mais valiosas. Como se trata de um novo ramo do Direito, com novas características, sustenta que deve haver regras próprias de teoria do delito e de teoria das conseqüências jurídicas do injusto. Em relação ao objeto da sua pesquisa, menciona Pérez: Por tanto, con este volumen que ahora ve la luz yo pretendia anteponer al examen particularizado de los diferentes delitos uma investigacion básica que no solo conceptuase el setor del Derecho penal Econômico, delimitando sus contornos e fijando los critérios de identificacion del mismo, sino que además abordase el análisis de las cuestiones que son comunes al estúdio de dichos delitos. Era, pues, si se prefere, uma espécie de “Parte General”del Derecho Penal Econômico que, sobre poseer um carácter propedédutico com respecto al examen de su segunda parte o “Parte Especial”, perseguia evitar también estériles 90 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. repeticiones em el comentario de las concretas figuras delictivas.32 As novas características imporão regras próprias de teoria do delito e de teoria da pena. Por conta disso, será necessário analisar a questão da tipicidade, da ilicitude, da culpabilidade, regras atinentes ao erro, ao concurso de pessoas, à reprimenda penal, tudo isso de forma autônoma do direito penal comum, pois não se pode tratar de um novo ramo com as mesmas (e antigas) soluções do Direito Penal Nuclear. Registre-se que as diferenças entre o direito penal econômico e o nuclear não param nas importantíssimas referências à parte geral. Modificam-se, pois, os elementos referentes à tipicidade objetiva. Tiedemann, escrevendo sobre a tipicidade nos crimes econômicos, justifica o motivo de os tipos serem tão fluídos, tão flexíveis. Consoante leciona, a razão está na necessidade de o Direito Penal acompanhar a economia, com suas mutações constantes. Veja-se: Otra particularidad en el ámbito de la tipicidad en Derecho penal económico radica en que los frecuentes cambios de intereses de la vida económica y de la política económica conducen a un cambio relativamente frecuente de las normas de Derecho económico.33 Em relação ao tipo objetivo, força é convir em que, frequentemente, se empregam elementos extra-penais, a fim de adequar a tutela às novas realidades. Neste passo, Basoco: En Derecho penal de la empresa es continuada la utilización de elementos típicos normativos y la remisión a otros preceptos extrapenales. Si bien la ley penal se reserva a fijar la conducta incriminada y la sanción, lo cierto es que la constatación de aquélla requieren múltiples ocasiones la previa comprobación, como elemento integrante de la misma, de infracciones definidas en normas de diverso origen (mercantil, laboral, fiscal, etc…), hasta el punto de que el valor descriptivo del texto penal queda reducido a muy poco.34 Gamil Föppel El Hireche 91 Um dos principais pontos a merecer a nossa análise será da tipicidade frente à garantia da legalidade. Com efeito, um tipo objetivo perpassado com tamanha fluidez poderá, efetivamente, violar a noção da legalidade. Significativamente, a transposição do Direito Penal nuclear para o Direito Penal Econômico terminará por flexibilizar garantias expostas há séculos, como, por exemplo, a da legalidade. A histeria com a segurança simbólica das normas penais transforma o direito penal, que deixa de olhar para o passado, passando a tutelar futuras (e supostas) lesões. Neste passo, uma vez mais, invoca-se Hassemer: Com isso, relaciona-se a já mencionada tendência de que o legislador penal compreende este instrumento não como ultima, mas como sola ou prima ratio e que, ao contrário, insere aí, prontamente, o princípio da subsidiariedade, com o uso do qual seria possível obter um proveito político. Estas inovações, por outro lado, relacionam-se com a nova função de satisfazer o interesse de efetivação das conseqüências também por intermédio do Direito Penal. A característica clássica da reação penal, de ser distanciada e proporcionalmente uniforme, passa para o segundo plano. Em vez de chegar a uma resposta a um injusto e à compensação por meio da reação justa, leva agora à prevenção dos futuros injustos ou até mesmo ao vencimento de futuras desordens. Em outras palavras, de agora em diante, também no Direito Penal não se trata mais de dar uma resposta apropriada ao passado, mas da dominação do futuro. As estruturas do pensamento e da atuação do Direito Penal desenvolvem-se desde padrões normativos até padrões empíricos.35 Analisadas estas características, impende tratar das finalidades declaradas do Direito Penal Econômico. Uma primeira função que se pode atribuir ao Direito Penal Econômico é a de manter a ordem econômica eleita, escolhida pelo Estado. Uma vez mais, o Direito Penal cumpre a sua missão sancionadora de bens jurídicos, de tutelar aquilo que já vem tutelado por outros ramos. Neste sentido, Martos Nuñes: 92 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. Sólo a partir de este instante, a un Derecho Penal autónomo en materia económica corresponde la importante función social de garantizar, por medio de sanciones penales, el mantenimiento de un orden económico creado y vigilado por el Estado.36 Mais uma função que se pode atribuir ao Direito Penal Econômico é, com efeito, assegurar a isonomia das normas penais.37 Do contrário, o Direito Penal somente estaria a intervir nas camadas mais humildes da população. Esclarecendo: se não forem punidos os atos que atentam contra a economia, a parcela mais abastada da população não estaria, em regra, sujeita às normas penais. Assim, Martos Nuñes: la delincuencia socio-económica amenaza la estructura del Estado, pues ataca la confianza del público en el sistema financiero, económico y social. A este argumento utilitario hay que añadir un imperativo de justicia, pues, en efecto, el Derecho Penal debe castigar eficazmente todo tipo de delincuencia: tanto las grandes estafas financieras como los pequeños robos.38 Uma outra função, que seria por demais importante, é a de resguardar, de proteger bens jurídicos reputados importantes, neste caso, o bom funcionamento e a credibilidade em relação à economia. Veja-se com Bacigalupo: El Derecho penal económico se define en relación con un objeto de carácter político-criminal: la prevención de la criminalidad económica. La criminalidad económica constituye un fenómeno complejo que requiere el conocimiento de aspectos que no son jurídico-penales en sentido estrito. En ese sentido, el desarrollo de las sociedades modernas ha producido no sólo una elevación de la criminalidad tradicional frente a la propiedad y el patrimonio (hurtos, robos, estafas), sino también una multiplicación de las formas de delincuencia posibles.39 Enfim, a finalidade declarada do Direito Penal Econômico está intimamente ligada com a finalidade da intervenção do Estado na Economia. Sobre este assunto, lapidar é o magistério de Bajo e Bacigalupo: Gamil Föppel El Hireche 93 La finalidad y la función del Derecho Penal Económico no son otra cosa que la sublimación de finalidad y la función del intervencionismo: cumplir las exigencias de una valoración diferente del imperativo de Justicia en orden a las relaciones sociales y económicas. Estas nuevas exigencias se plasman en la necesidad que hoy se siente de proteger la Economía en su conjunto, el orden económico, la Economía Nacional puesta al amparo del nuevo intervencionismo estatal, como intereses distintos a los particulares de propiedad, patrimonio y fe contratual.40 Interessante notar, vistas as funções, as (dis)funções do Direito Penal Econômico. Com efeito, como salienta Bujan-Pérez, deve-se observar a Escola de Frankfurt (de que são partidários Winfried Hassemer, Cornelius Prittwitz, Felix Herzog, Wolfgang Naucke, PeterAlexis Albrecht)41 que duramente critica a expansão do Direito Penal para a área econômica.42 As críticas feitas pela Escola de Frankfurt passam pela inidoneidade do Direito Penal para interceder na ordem econômica, a sua deslegitimidade para interferir num âmbito que não é o seu, a conseqüente e indesejável perda de garantias em relação às normas de direito penal econômico e, finalmente, demonstrar o caráter puramente simbólico da intervenção penal na economia, deixando a sociedade verdadeiramente desprotegida. Em verdade, a proteção penal na economia seria uma espécie de embuste: vende-se uma imagem de controle, de segurança, imagem fraudada, ardilosa, que serviria para justificar, para as camadas dominadas, a existência de uma pseudo-isonomia. Esta preocupação também não escapou a Hassemer: De um lado, la ciencia del Derecho penal (incluida la Criminología) debe conocer com precisión las posibilidades de solución de problemas que tiene el sistema de Derecho penal, marcando las fronteras de tales posibilidades. La defensa frente a exigências desmesuradas e injustificadas por parte de la Política Criminal comienza con un análisis exacto de las capacidades del sistema de Derecho penal. 94 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. Y, de outro, la ciencia del Derecho penal (comprendiendo también a la Criminología) debe fundamentar si el Derecho penal tiene un potencial simbólico y, em su caso, qué posibilidades cabe asignalarle en tal sentido. Este discurso acaba de comenzar y, basándose en la experiencia, sigiere que la amenaza penal e la ejecución tambien tienen efectos simbólicos. Asinismo, pone encima de las mesa el problema de las relaciones (de los fines simbólicos e instrumentales en el Derecho penal) que em pírica y normativamente pueden atribuirsele.43 Registre-se que o assunto relacionado com as (dis)funções do Direito Penal Econômico servirá de fundamento para o elemento mais importante da tese: a deslegitimação do Direito Penal Econômico. Com efeito, devem ser abordadas as funções de prevenção, com todos os seus desdobramentos (prevenção geral e especial, positiva e negativa); teorias absolutas ou da retribuição; as teorias ecléticas, com ênfase para a Teoria dialética Unificadora e, finalmente, as teorias deslegitimadoras, que criticam o direito penal e, com mais razão, o Direito Penal Econômico. Expostos os aspectos tradicionais do Direito Penal Econômico – até como pressuposto para o desenvolvimento da tese, máxime porque não se pode deslegitimar aquilo que não se conhece, terá início o desenvolvimento do ponto de vista de que o Direito Penal não é instrumento legítimo para interferir na ordem econômica. Vejase o posicionamento de Alberto da Silva Franco: O Direito, que vem sempre atrás de mudanças, aguardando que elas se concretizem e se consolidem, para formular o discurso jurídico, vê-se atropelando pela rapidez do processo transformador. Foi ele, sem dúvida, apanhado de surpresa e o seu equipamento conceitual revela-se inadequado, despreparado e, em algumas situações, até mesmo superado, para apreender e regular os problemas propostos pela globalização e a conseqüente criminalidade transnacional. Essa defasagem engendra posições dissonantes entre a sociedade em mutação e o direito, quando não um vazio legal extremamente Gamil Föppel El Hireche 95 perigoso. Diante desse quadro, o apelo à intervenção do mecanismo penal para o enfrentamento dos grandes desafios dos tempos modernos surge, de pronto, com um posicionamento alternativo: ou o direito penal deve ajustar os seus instrumentos ou garantias ao moderno desenvolvimento tecnológico ou devem buscar-se outros instrumentos jurídicos que possam responder melhor a esse desenvolvimento do que o Direito penal´.44 Vê-se, pois, que o Direito Penal, para satisfazer os interesses daqueles que estão ávidos para que exista sua intervenção na economia, acaba por macular garantias conquistadas há séculos. Com efeito, legalidade estrita, ofensividade, lesividade, responsabilidade subjetiva, dentre outras tantas, tornam-se nulas com a multiplicação de tipos penais extravagantes, repletos de elementos normativos, de normas penais em branco, configurando tipos de mera atividade e de perigo abstrato. Por conta disso, na atualidade, defende-se uma restrição do Direito Penal aos casos de absoluta e manifesta necessidade, casos que, seguramente, não contemplariam a intervenção na economia. Neste passo, convém invocar Cornelius Prittwitz45: [...] mediante el Derecho Penal se consiguen pocas cosas positivas y se producen, en cambio, muchos perjuicios. De ser cierto, solo parece entonces consecuente pretender el menos derecho penal posible. Vê-se que, além de quebrar as garantias penais, estas manifestações de Direito Penal Econômico têm outro inconveniente: representam apenas uma interferência simbólica, não efetiva, do Direito Penal. É dizer, não se protege a sociedade, não se resguardam os bens que se declaram como protegidos. Veja-se o que sustenta Olga Gaitán: O direito penal moderno tende a refugiar-se em encargos meramente simbólicos, como instrumento para a sensibilização social, para satisfazer demandas por atuação, para mostrar um 96 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. Estado forte, etc. mas o simbólico não é neutro, no sentido crítico em que o tratadista alemão Hassemer dá ao termo, pois deve ser associado com engano, na medida em que existe uma oposição entre o que realmente se quer e o que de fato se aplica. Engano porque se parte de uma aparência falsa de efetividade e instrumentalidade e, com isso, legitima-se o endurecimento das sanções, a extensão do controle penal e a necessidade de recorrer a este instrumento em primeira e última instância. Direito penal simbólico significa que as funções latentes das normas predominam sobre suas funções manifestas; é então de se esperar que com elas e sua aplicação realiza-se algo diferente do disposto na mesma lei.46 Em verdade, pode-se dizer que existem dois discursos do direito penal em matéria econômica: um, declarado, de que o Direito serviria para proteger bens jurídicos, e um outro discurso, real, não declarado, de que, em verdade, o Direito Penal serviria para proteger os interesses de certas classes sociais. O Direito Penal seria usado como sistema de controle da sociedade, a fim de resguardar os interesses da elite dominante. As normas de Direito Penal Econômico cumprem seu papel neste contexto, pois, a despeito de parecer paradoxal, pode-se perceber que as normas de Direito Penal Econômico foram feitas para não funcionar, é dizer, elas servem como uma manifestação simbólica para demonstrar a isonomia inexistente, para demonstrar que existe criminalidade de colarinho branco, que os ricos também podem ser presos, mas, na verdade, tudo não passa de manifestação desprovida de eficácia, ficando a sociedade verdadeiramente desprotegida. Veja-se, portanto, que é possível que, sob todos os aspetos, a intervenção penal em matéria econômica seja perniciosa, quer seja por violar garantias fundamentais quer seja pela existência de uma finalidade não declarada do Direito Penal, que seria a de, efetivamente, não punir. De qualquer sorte, é fato que as normas penais não têm o poder de proteger a sociedade, como bem evidencia Prittwitz: Gamil Föppel El Hireche 97 Porque quem quer usar o direito penal – colocando-o desta forma ou não – principalmente para reprimir, vai receber de bom grado um direito penal mais rígido e mais abrangente, considerando-o, numa aliança peculiar, da mesma forma legítimo que aqueles que, ao contrário, querem atingir, com o direito penal, os poderosos da economia e da política. Mas mudará de opinião quando perceber que “mais direito penal” promete menos efeito, puramente por motivos de efetividade – coisa que sempre volta a ocorrer e às vezes também é vista.47 O quê fazer, então, para proteger de forma efetiva a sociedade, sem renunciar às garantias penais individuais? No trabalho a ser desenvolvido com tese, desenvolver-se-á o problema exposto neste ensaio, pretende-se sistematizar e desenvolver a criação de um novo ramo do Direito, que cuidaria destas novas lesões a estes bens que surgiram e que não têm íntima relação com o Direito Penal. Urge, pois, a adoção de um Direito da Intervenção, que representaria uma região intermediária entre o Direito Penal e o Direito Administrativo. Trata-se de um Direito Punitivo, com sanções graves, a cumprir a função de prevenção geral e de tutela de bens jurídicos, que, por não ter pena de privação da liberdade, pode comportar menos garantias que o Direito Penal. Uma semelhante preocupação incomoda Figueiredo Dias: O único caminho apontado neste campo parece ter alguma coisa por si é, assim, o da preconizada transferência da função de tutela jurídico-penal para o âmbito do direito administrativo, nele incluído o direito administrativo sancionatório, porventura sob uma forma reforçada como a que é hoje preconizada – embora eu deva que não vejo ainda com um mínimo de clareza a definição de sue âmbito, de sua extensão e de seus instrumentos.48 Segue esta mesma linha Miguel Reale Júnior, uma vez que prevê a criação de uma terceira via jurídica competente para tratar do fenômeno em comento, desde que atrelada a alguns princípios já consagrados 98 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. no Ordenamento, tais como legalidade, retroatividade da lei nova mais benéfica e proibição da analogia in malam partem, in literis: Desse modo, pode-se avançar na construção de uma terceira via, que dote o Ordenamento de um instrumento mais ágil que, sem deixar de atender a alguns princípios garantistas do Direito Penal, supere os óbices que tornam este último ineficiente, fazendo atuar, por outro meio e de modo eficaz, os fins de prevenção e retribuição na defesa de bens jurídicos essenciais, fracamente protegidos pela lei penal, que se revela dispicienda.49 Assim, a tese a ser apresentada tratará de analisar a deslegitimação do Direito Penal Econômico e, por conseqüência, o aparecimento do chamado Direito da Intervenção para uma tal finalidade. Veja-se que, com o Direito da Intervenção, o âmbito do ilícito pode ser mais fluido, sem a garantia intransigente da legalidade estrita, sendo possível proteger bens, adequando-se às alterações e modificações da sociedade, sem que se viole a proteção penal. Veja-se, como exemplo disto, as manifestações já existentes, no Brasil, previstas na Lei de Improbidade Administrativa. A supracitada tese se contrapõe à construção teórica de Lenio Streck que sustenta ser possível a “relegitimação do direito penal adaptando-o aos ditames do novo modelo de Direito estabelecido pelo Estado Democrático de Direito” 50. Entretanto, conforme já foi exposto, a nova demanda enseja a criação de um ramo autônomo, o chamado Direito da Intervenção. Isto, pois os novos bens jurídicos revelam características próprias, fator que implica a adoção de meios de tutela peculiares, incompatíveis com o Direito Penal, sobretudo no que tange à necessidade de flexibilização de garantias. Esta linha de argumentação – transferência da matéria penal econômica para o âmbito do Direito da Intervenção – já encontra respaldo também na doutrina estrangeira. Vejam-se as lições de Elena Gorriz Nuñez:51 Gamil Föppel El Hireche 99 Algunos autores han evolucionado hasta realizar propuestas intermedias en cuanto que también tratarían de reducir la intervención punitiva, pero creando un Derecho de intervención (Interventionsrecht) a caballo entre el Derecho Penal nuclear y el Derecho Administrativo Sancionador (Rect. Der Ordnungswidrigkeiten). En esta línea se situa en Alemania la propuesta de Hassemer quien (…) postula crear un sistema jurídico al margen del código penal, pero regido por criterios penales y que aglutine preceptos relativos a la delincuencia económica, a la mediombiental o em materia de drogas. En este Derecho da Intervención, se flexibilizarián las garantias materiales y procesales y no se recurriría a la pena privativa de liberdad. Na tese, pois, de que este artigo, elaborado no curso de História das Idéias Penais pretende ser um capítulo, intenciona-se, a partir das críticas feitas à intervenção penal em matéria econômica, apresentar os fundamentos do Direito da Intervenção, como proposto por Hassemer,52 evidenciando as suas diferenças em relação ao Direito Penal, bem como a sua idoneidade para tratar de assuntos que o Direito Penal, pelas limitações de sua própria natureza, não poderia tratar. Será, portanto, procurada uma forma de resolver conflitos, a fim de equilibrar a tensão existente pela necessidade de proteger bens jurídicos sem violar as garantias fundamentais, como adverte Renato Silveira: Uma coisa é certa: como os interesses difusos abordam os sentidos plurais do Direito Penal de forma diferente do Direito Penal clássico, é evidente que o âmbito criminal quanto a eles deva ser diverso, quando e se preciso. Portanto, imprescindível parece ser uma descriminalização, deixando-se, aos demais ramos do Direito, a busca por uma solução melhor dos conflitos supra-individuais. Reale Júnior considera necessário um enveredar para uma terceira via, administrativo-penal, em que se dote o ordenamento de instrumentos mais ágeis, os quais, sem deixar de atender a alguns princípios garantistas do Direito Penal, superem os óbices que tornam, este último, obsoleto e ineficiente.53 (grifo nosso). 100 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. Feitas estas considerações iniciais em relação ao Direito Penal Econômico, pautada em um viés crítico, deve-se, doravante, expor, na mesma linha de raciocínio, uma forma melhor de resguardar a economia: o Direito da Intervenção, da escola de Frankfurt. 3. Propostas conciliatórias: o Aparecimento do Direito Penal da Intervenção e a contribuição de Winfried Hassemer De maior importância é que os problemas que mais recentemente forma introduzidos no Direito Penal sejam mais afastados dele. O Direito dos ilícitos administrativos, o Direito Civil, o Direito Público e também o mercado e as próprias precauções da vitima são setores nos quais muitos problemas, que o moderno Direito Penal atraiu para si, estariam essencialmente mais bem tutelados. Recomenda-se regular aqueles problemas da sociedade moderna, que levaram à modernização do Direito Penal, particularmente, por um “Direito de Intervenção”, que esteja localizado entre o Direito Penal e o Direito dos ilícitos administrativos, entre o Direito Civil e o Direito Público, que na verdade disponha de garantias e regulações processuais menos exigentes que o Direito Penal, mas que, para isso, inclusive, seja equipado com sanções menos intensas aos indivíduos. Tal Direito “moderno” seria não só menos normativamente grave, como seria também faticamente mais adequado para acolher os problemas especiais da sociedade moderna.54 Deve-se proteger a economia, como se devem proteger todos os bens de interesse para a sociedade. Mas, seguramente, como já se demonstrou, a intervenção penal é antiquada, inapropriada, ultrapassada. Quid Juris? Como proteger a economia sem se valer de normas penais? Isto que se pretende apresentar nas linhas seguintes. Vistas todas as críticas contundentes feitas ao Direito Penal Econômico, podemos, neste instante, fazer duas conclusões Gamil Föppel El Hireche 101 iniciais: 1) seguramente, o Direito Penal Tradicional ou nuclear é inconciliável com a dinâmica da economia, a menos que se macule de forma irreparável a noção da legalidade estrita; 2) é necessário proteger a economia dos abusos de alguns setores. Esta preocupação é sintetizada pelo próprio Hassemer:55 O Direito Penal, nos últimos tempos, tem ampliado de modo significativo suas capacidades e assim tem deixado cair a bagagem democrática, a qual é um obstáculo na realização de novas tarefas. Como, então, fazer isso? Proteger a ordem econômica sem ser por meio do Direito Penal? É incontroverso que a economia fica sujeita a alterações muito rápidas, bastante voláteis. O direito penal, por suas características tradicionais de garantias, não pode, a menos que estas sejam quebradas, ocupar-se de uma realidade tão dinâmica. Deve-se desnudar o véu da persistência equivocada, da insistência em um instrumento inidôneo, para buscar uma tutela adequada, que consiga, a um só tempo, salvaguardar e proteger a sociedade, sem fazer letra morta das garantias fundamentais. O Direito faz parte do mundo cultural e, portanto, fica sujeito às transformações do tempo e às variações do espaço. Se o Direito não acompanhar o tempo se tornará um instrumento esclerosado, perdendo a sua finalidade de preservação da paz social. Por conta disso, para resguardar estas novas infrações, evidentemente descompassadas com o Direito Penal clássico, necessário se faz reconhecer a impossibilidade de o direito penal tradicional tutelar estes bens, transferindo-os para um novo ramo, este sim, próprio, adequado, idôneo à tutela dos bens jurídicos. Esta é uma evidência feita por Hassemer: Para começar, precisamos libertar o direito penal de tarefas preventivas, para as quais não está vocacionado. Mais concretamente, devemos extirpar do direito penal tudo aquilo 102 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. que só possa ser conseguido com apelo para a acessoriedade administrativa..56 A Escola de Frankfurt, assim, propõe um direito intermediário, um meio termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que se chama de Direito da Intervenção. Ora, fica patente, assim, que, se o Direito Penal não pode resguardar, nada impediria que se transferisse esta tutela para um novo ramo do direito, de que se tratará agora. 3.1. Fundamentos do Direito da Intervenção. Em que consiste, direito, conceito Há muitas razões para se supor que os problemas “modernos” de nossa sociedade causarão o surgimento e desenvolvimento de um Direito interventivo correspondentemente “moderno” na zona fronteiriça entre o Direito administrativo, o Direito penal e a responsabilidade civil por atos ilícitos. Certamente terá em conta as leis do mercado e as possibilidades de um sutil controle estatal, sem problemas de imputação, sem pressupostos da culpabilidade, sem um processo meticuloso - mas, então, também, sem a imposição de penas criminais.57 O Direito da Intervenção surge como alternativa para a um só tempo resguardar a sociedade, sem desprestigiar as garantias fundamentais dos cidadãos. Trata-se de um direito verdadeiramente punitivo, consigne-se, com sanções graves, com respostas mais céleres, num procedimento mais rápido, entretanto, com menos garantias que o Direito Penal. Apenas não haveria pena de privação da liberdade. Com isso, registre-se que não se trata de um discurso de liberalidades, de proteção exclusiva às pessoas. Propugna-se, efetivamente, por uma tutela verdadeira, não simbólica da sociedade. Com isso, passaria a existir uma nova separação dos diversos ramos do direito punitivo, englobadas neste direito da intervenção, consoante estabelece o próprio Hassemer: Gamil Föppel El Hireche 103 Este novo ramo de direito deveria condensar os seguintes elementos: a) Direito penal; b) Fatos ilícitos civis; c) Contravenções (Überschreitungen); d) Direito de Polícia (Polizeirecht); e) Direito fiscal; f) Medidas de matriz econômico e financeiro; g)Planejamento do território; h) Proteção da natureza; i) Direito municipal (Kommunalrecht)..58 Hassemer ainda evidencia que este novo ramo do direito não é repressivo como o Direito Penal, o que representaria mais uma grande virtude do Direito da Intervenção. Com efeito, a resposta do Direito Penal é consequencial, menos que perfeita, ele só intervém quando o bem já foi ofendido. O Direito da Intervenção, por sua vez, teria a grande virtude de antecipar a proteção, sem representar a antecipação de tutela em matéria penal. Neste passo, repita-se uma nova citação para comprovar o pensamento do autor: O direito de intervenção deverá ser concebido de molde a poder atuar previamente à consumação de riscos. Ou seja, deverá ser pensado como um direito de caráter preventivo, ao contrário do direito penal, que é direito repressivo..59 Ao tratar dos fundamentos que caracterizam o Direito da Intervenção, Miguel Reale Júnior, apesar de harmônico com as idéias preconizadas por Hassemer, critica a terminologia escolhida, com fulcro nos seguintes argumentos: Concordando com estas sugestões opomo-nos, todavia, à denominação “Direito de Intervenção”, que pouco designa, uma vez que intervenção não será a característica desse novo ramo, mesmo porque não há direito repressivo que não realize uma intervenção. A característica fundamental a ser retida é que as infrações são administrativas e não penais, sendo julgadas por um tribunal administrativo como, por exemplo, o Cade. Todavia, revestem-se de algumas garantias e limitações próprias do Direito Penal, o que significa dizer que contém, simbioticamente, qualidades de infração administrativa quanto penal.60 A controvérsia sobre a nomenclatura adequada, entretanto, resta irrelevante diante da preocupação maior em definir os 104 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. elementos caracterizadores do Direito interventivo, bem como os meios necessários ao seu estabelecimento enquanto ramo autônomo do direito. Como se afirmou, anteriormente, o Direito da Intervenção tem menos garantias que o Direito Penal, e que, em compensação, não teria pena de prisão. Por conta disso, poderia ocorrer responsabilidade coletiva de natureza objetiva, sem se perquirir a culpa, pedra angular do Direito Penal. Isto teria a grande virtude de fazer cessar a existência de denúncias genéricas, mormente nos crimes societários, um abuso do poder de acusar que fere, letalmente, o princípio da plena defesa. Com o Direito da Intervenção – que não tem prisão – um tal problema deixaria de existir. Confira-se com a lição do próprio Hassemer: O direito de intervenção deverá dispensar os mecanismos de imputação individual de responsabilidades. Isto significa que a imputação de responsabilidades coletivas deverá ser admitida, contanto que as penas privativas de liberdade não venham a integrar o rol das sanções aplicáveis. Este novo ramo de direito deverá dispor de um catálogo de sanções rigorosas. Desigualmente, deverá poder decretar a dissolução de entes coletivos, encerrar as empresas poluidoras, suspender as respectivas atividades ou setores de atividade, entre outras medidas. O direito de intervenção deverá estar preparado para atuar globalmente, e não apenas estar destinado a resolver os casos isolados..61 O Direito da Intervenção, assim, poderia resguardar a economia, com sanções graves, cumprindo a sua missão de prevenção geral, com procedimento célere, tutelando os bens novos, mesmo flexibilizando garantias, sem que, contudo, exista pena privativa de liberdade. Seria, então, uma forma de compatibilizar uma proteção verdadeira a bens jurídicos, sem renunciar às garantias fundamentais. Alguns autores confundem, porém, a necessidade de flexibilização de garantias com a supressão das mesmas. A adoção Gamil Föppel El Hireche 105 do Direito da Intervenção objetiva não só a preservação dos princípios legitimadores do Direito Penal – uma vez que uma adaptação forçosa à tutela das novas lesões em debate acabaria por desnaturá-lo – como também a aplicação de garantias no Direito interventivo, desde que respeitando as particularidades dos bens jurídicos que marcam este fenômeno. Não se trata, pois, de manobra política arbitrária, mas de legítima aplicação de medida idônea de combate a tais lesões. Equivoca-se, portanto, Celso Eduardo Coracini ao tecer a seguinte crítica ao Direito da Intervenção: Poderia ser a busca de uma solução.Entretanto, analisada de perto, a mencionada proposição representa um aumento de poderes do Estado, em detrimento das liberdades individuais, sem justificativas ou critérios claros e plausíveis.62 Em Portugal, chama-se de Direito das Contra-Ordenações aquilo que Hassemer denominou de Direito da Intervenção. As diferenças – entre o Direito da Intervenção e o Penal comum – são muito bem definidas a seguir: Parte Goldschimidt de uma contraposição entre as normas do Direito de Justiça (justizstrafrecht), que considera o homem como ser individual e, conseqüentemente, a tipicidade está voltada para descrição dos direitos juridicamente relevantes, gerando efeitos na ordem jurídica (Rechtsfolgen) das meras normas penais administrativas (Verwaltungsstranfrecht), que tutelam os planos sociais do Estado, considerando os indivíduos no seio social, com ordenamentos ou regulamentos administrativos (Verwaltungsvorschriften), dando causa a atuação do EstadoAdministração. O critério diferenciador entre amos os direitos deve ser buscado na maior ou menos ameaça ou lesão aos bens jurídicos tutelados por normas de direito penal ou por decretos penais administrativos. Portanto, há que se considerar o direito penal administrativo sob o prisma das infrações de política (Polizeistrafrecht) em termos de autonomia material e qualitativa 106 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. destes direcionados contra o ordenamento do EstadoAdminstração”. 63 Mas será que o Direito da Intervenção seria assim mesmo tão bom? Não estaria ele sujeito a críticas? Ver-se-á isto no próximo tópico. 3.2. Zaffaroni, reação aos Direitos Penais Paralelos: Crítica ao Direito da Intervenção? Zaffaroni, em livro recente, menciona a existência de um fenômeno que a um leitor menos avisado poderia soar como uma crítica ao Direito da Intervenção. Zaffaroni, trata, em verdade, do que ele convencionou chamar de Direitos Penais Paralelos, criticando-os ferrenhamente. Com efeito. Segundo Zaffaroni, a sanha punitiva do Estado está desbordando o Direito Penal e atingindo outras áreas. O Estado policialesco estaria passando, por exemplo, para dentro do direito administrativo, sem que, contudo, se fizesse acompanhar das mínimas garantias do Direito Penal. Exemplifica, sustentando que, ut upta, os órgãos de classe hoje têm poder para impor decisões mais graves que um juiz criminal. Efetivamente, a OAB, por exemplo, pode expulsar, em caráter perpétuo, de seus quadros, um advogado, já que lá não vige o princípio da não perpetuação das penas. Disso trata Zaffaroni, verbum ad verbum: Parece estranho que a teoria jurídico-penal não tenha destacada a analogia que estas formas de exercício do poder mantêm com o sistema penal formal, ainda que isto constitua efeito direto da metodologia que insistem em manter fora de foco os dados da realidade que o legislado não incorpora, ou em considerar que sua incorporação é um ato valorativo que só o legislador pode empreender, como se fora ele o único a enxergar o mundo. Gamil Föppel El Hireche 107 Deve-se aqui avaliar, outra vez, o efeito do narcisismo do discurso penal, gravemente ferido quando se adverte de que não está programando - como pretende - o exercício do poder punitivo e que, além disso, nem sequer se refere à totalidade do mesmo, o que destrói sua proclamação discursiva do monopólio dele por parte do estado. Este impedimento tem conseqüências graves, pois implica uma renúncia a disputar a incorporação desses âmbitos do poder punitivo a seu discurso e, com isso, a exercer qualquer papel limitador a respeito deles. A preservação do discurso tradicional tem, pois, o efeito de reduzir o âmbito do conhecimento e da aspiração ao exercício do poder. E mais: é comum o discurso penal legitimar esses sistemas penais paralelos como alheios ao direito penal (elementos negativos do discurso), com o que acaba sendo o único discurso de programação do exercício de u poder cuja estratégia implica reduzi-lo, na contramão do que buscam todos os discursos de poder e todas as corporações existentes.64 A crítica de Zaffaroni é extremamente pertinente, mas não se aplica ao Direito da Intervenção. De fato, o Direito da Intervenção é um direito sistematizado, em que não se pode falar em um sem-número de infrações soltas. Malgrado tenha menos garantias que o Direito Penal, ele conserva as garantias fundamentais. E, mais importante do que tudo isso, o Direito da Intervenção não usurpa, do Direito Penal, os bens que lhe são próprios. Para os bens tradicionais – vida, patrimônio, honra, costumes – as garantias tradicionais. Para os novos bens, que escapam à seara penal, as novas determinações do Direito da Intervenção. Hassemer não defende nem nunca defendeu a existência de Direitos Penais Paralelos. Com efeito, a importância que ele dá ao Direito Penal pode ser verificada em: O quinto aspecto, que merece especial referência, consiste no reconhecimento de que o direito penal ainda deverá jogar um papel neste novo contexto. Todavia, para o direito penal ainda deverá ficar reservada apenas uma função ancilar, de caráter flanqueador, destinada a dar cobertura a determinadas mediadas 108 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. de proteção ambiental. Mas com aqueloutra função de proteção de bens jurídicos, porque agora se trata apenas de garantir o cumprimento dos deveres impostos pela Administração.65 Semelhantemente: O direito penal administrativo assume uma função dinâmica e impulsionadora da atividade do homem em sociedade, não permitindo que este seja omisso ou socialmente descuidado; o direito penal de justiça permanece em sua função garantidora e mantenedora dos direitos individuais do homem, assumindo um papel conservador e estático.66 Abordados estes pontos, passa-se às considerações finais, não sem antes advertir ao leitor que o Direito da Intervenção ainda é uma novidade no Brasil, malgrado existam exemplos evidentes da intervenção entre nós, como no caso da Lei de Improbidade Administrativa, que se pretende, com este trabalho e com seu desenvolvimento na tese de doutoramento, desenvolver para apresentar à sociedade. 4. Considerações Finais Diante de tudo que se expôs, pode-se asseverar que: A. A intervenção penal na economia é um fenômeno relativamente recente, que, desde o nascedouro, tem um caráter eminentemente político; B. A economia é um ramo bastante volátil, cheio de mutações, e o direito penal nuclear, de primeira velocidade, não consegue acompanhar sem que haja grandes prejuízos às garantias fundamentais, mormente aquelas relacionadas com a legalidade; C. Para acompanhar as mutações na ordem econômica, o Direito Penal passa a fazer uso de uma legislação esparsa, descodificada, com excessivo número de tipos abertos, normas em branco, de perigo abstrato ou presumido, recheadas de elementos normativos; Gamil Föppel El Hireche 109 D. Todas estas deficiências do direito penal, em busca de uma ilusória eficácia de segurança, deve-se ao fato de ele ser verdadeiramente disfuncional, é dizer, ele atende a finalidades outras de não proteção a bens jurídicos, nem de resguardo da sociedade. É algo que funciona bem na exata medida em que funciona mal; E. Por conta disso, surge o direito da intervenção, meio termo entre o Direito Administrativo e o Direito Penal, não prescindindo deste. O Direito da Intervenção, qual proposto pela Escola de Frankfurt, terá sanções graves, pesadas, num processo mais célere, com menos recursos, menos garantias, porém sem privação da liberdade; F. As críticas feitas por Zaffaroni aos Direitos Penais Paralelos não se aplicam ao Direito da Intervenção. 5. Referências BACIGALUPO, Enrique “et alli” Derecho Penal Econômico. Buenos Aires: Editorial Hamurabi, 2004. BAJO, Manuel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2001. BASOCO, Juann Terradillos “et alli” Derecho penal de la empresa. Madrid: Editorial Trotta, 1995. CASABONA, Carlos Maria Romeo (coordenador). La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, 2000. COUTI N HO, Heliana Maria de Azevedo. O direito de mera ordenação social no sistema jurídico-penal alemão. In: Revista Brasileira de Ciência Criminais. Ano 2, n.7 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 2001. FRANCO. Alberto Silva. Globalização e Criminalidade dos Poderosos. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal. ano 10, fasc. 2.º. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. 110 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. GARCÍA, Olga Lucia Gaitán. Direito Penal Contemporâneo: da Tutela Penal a uma Lesão à Proteção de Riscos. In: Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade. ano 7, n. 12, 2º semestre de 2002. Rio de Janeiro: Revan, 2002. HASSEMER, Winfried. Perspectivas del Derecho penal futuro, in Revista Penal, ano 1, n° 1, Traducción de Enrique Anarte Borrallo. Editorial Praxis. HASSEMER, Winfried. A preservação do meio ambiente através do direito penal. Conferência proferida no I Congresso Internacional de Direito do Ambiente, adaptada para publicação por Paulo de Sousa Mendes. Lusíada – Rev. C. C. Direito n° Especial, 1996. HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n° 08, outubro-dezembro, 1994, tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos. HASSE M E R, Winfried. Posibilidades jurídicas, policiales y administrativas de una lucha más eficaz contra la corrupción, in Corrupción de funcionários públicos: pena y estado, número 1, año 1995, Editores del Puerto s.r.l.. HASSEMER, Winfried. Bienes Jurídicos en el derecho penal. In: Estudios sobre la Justicia Penal: homenaje al Prof. Julio B. J. Maier / David Baigún [et.al.]. 1. ed. Buenos Aires: Del Puerto, 2005. p 63-74. HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y Protección de Bienes Jurídicos. In: Pena Y Estado: Función simbólica de la pena. N. 1, 1991. HASSEMER, Winfried. Contra el abolicionismo: acerca del porqué no se debería suprimir el derecho penal. In: Revista Penal. N. 11. HASSEMER, Winfried. Ressocialização e Estado de Direito. In: Revista ICP. Belo Horizonte, 2006. Volume I. HASSEMER, Winfried. Crisis y Caracteristicas del Moderno Derecho Penal. In: Actualidad Penal. Madrid: Actualidad Editorial, S.A, 1993. Volume I. HASSEMER, Winfried. Três Temas de Direito Penal. Escola Superior do Ministério Publico: Porto Alegre, 1993. NUÑES, Elena Gorriz. Posibilidades y Limites del Derecho Penal de dos Velocidades. In: BASOCO, Juan Terradillos e SANCHÉZ, Maria Acalé (coord). Temas de Derecho Penal Económico. III Gamil Föppel El Hireche 111 Encontro Hispano Italiano de Derecho Penal Econômico. Madrid: Editorial Trota, 2004. HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 2. NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987. PIMENTEL, Manuel Pedro. Direito Penal Econômico. São Paulo: RT. PEREZ, Bujan; MARTINEZ, Carlos. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998. PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: Revista do IBCCrim. São Paulo: março-abril de 2004, nº 47. PRITTWITZ, Cornelius. El Derecho Penal Alemán: Fragmentario? Subsidiario? Ultima Ratio? Reflexiones sobre la razón y limites de los principios limitadores del Derecho Penal. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo (coordenador). La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, 2000. SILVEIRA, Renato Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual: Interesses Difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU, 1993 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Desafios do Direito Penal na era da globalização. In: Cidadania e Justiça. Ano 2, 2º Semestre de 1998. ZAFFARONI, E.Raúl, BATISTA, Nilo, et alli. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 6. Notas 2 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal, in Revista de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, p. 62-63. 3 PIMENTEL, Manuel Pedro. Direito Penal Econômico. São Paulo: RT, p. 6-7. 4 NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 111. 112 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. 5 Id; Ibid, p. 111-112. 6 NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 113. 7 Id. Ibid, p. 114. 8 Id. Ibid, p. 125. 9 Id. Ibid, p. 130. 10 BAJO, Manuel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2001, p. 11. 11 PEREZ, Bujan; MARTINEZ, Carlos. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998. 12 NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 128. 13 Ver, neste passo, NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 129. 14 BUJAN PEREZ, CARLOS MARTINEZ. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 33. 15 BAJO, Manuel; BACIGALUPO, SIlvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2001, p. 13. 16 RIGHI, Esteban. Los Delitos Económicos. Buenos Aires, 2000, p. 29. 17 Id. Ibid, p. 100. 18 BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 58. 19 Id. Ibid, p. 20. 20 Id. Ibid, p. 21. 21 Id. Ibid, p. 28. 22 Id. Ibid, p. 30. 23 TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU, 1993, p. 158. 24 TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU, 1993, p. 123. 25 NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 243. Gamil Föppel El Hireche 113 26 NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 174-175. 27 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal, in Revista de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, p. 60. 28 BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 36. 29 TIEDMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU, 1993, p. 123. 30 BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 90. 31 BUJAN PEREZ, CARLOS MARTINEZ. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 97. 32 Id. Ibid, p. 13. 33 TIEDMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico . Barcelona: PPU, 1993, p.161. 34 BASOCO, Juann Terradillos “et alli” Derecho penal de la empresa. Madrid: Editorial Trotta, 1995 , p.36 35 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal, in Revista de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, p. 61. 36 NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico . Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 114. 37 BUJAN PEREZ, CARLOS MARTINEZ. Derecho Penal Econômico . Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 27. 38 NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 120-121. 39 BACIGALUPO, Enrique “et alli” Derecho Penal Econômico. Buenos Aires: Editorial Hamurabi, 2004 p.29. 40 BAJO, Manuel, BACIGALUPO, SIlvina. Derecho Penal Económico . Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2001, p. 13. 41 Por todos, ver a coletânea de trabalhos: CASABONA, Carlos Maria Romeo (coordenador). La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, 2000. 42 BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 22-23. 114 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. 43 HASSEMER, Winfried. Perspectivas del Derecho penal futuro, in Revista Penal, ano 1, n° 1, Traducción de Enrique Anarte Borrallo. Editorial Praxis, p. 40. 44 FRANCO. Alberto Silva. Globalização e Criminalidade dos Poderosos. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal. ano 10, fasc. 2.º. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 216. 45 PRITTWITZ, Cornelius. El Derecho Penal Alemán: Fragmentario? Subsidiario? Ultima Ratio? Reflexiones sobre la razón y limites de los principios limitadores del Derecho Penal. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo (coordenador). La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, 2000. 46 GARCÍA, Olga Lucia Gaitán. Direito Penal Contemporâneo: da Tutela Penal a uma Lesão à Proteção de Riscos. In: Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade. ano 7, n. 12, 2º semestre de 2002. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 48. 47 PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal . In: Revista do IBCCrim. São Paulo: março-abril de 2004, nº 47. p. 36.48 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 2001. 49 REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no Direito Penal Econômico: uma terceira via entre o crime e a infração administrativa? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: outubro-dezembro de 1999, n° 28. p. 128. 50 STRECK, Lenio Luiz. Crise (s) Paradigmática (s) no Direito e na Dogmática Jurídica: dos conflitos interindividuais aos conflitos transindividuais – A encruzilhada do direito penal e as possibilidades da justiça consensual. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: outubro-dezembro de 1999, n° 28. p. 115. 51 NUÑES, Elena Gorriz. Posibilidades y Limites del Derecho Penal de dos Velocidades. In:BASOCO, Juan Terradillos e SANCHÉZ, Maria Acalé (coord). Temas de Derecho Penal Económico. III Encontro Hispano Italiano de Derecho Penal Econômico. Madrid: Editorial Trota, 2004, p. 341-342. 52 Neste sentido: HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 2, n. 5. e, ainda, HASSEMER, Winfried. A preservação do meio ambiente através do direito penal . Conferência proferida no I Congresso Internacional de Direito do Ambiente, adaptada para publicação por Paulo de Sousa Mendes. Lusíada – Rev. C. C. Direito n° Especial, 1996. 53 SILVEIRA, Renato Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual: Interesses Difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 203. 54 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal, in Revista de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, p. 65-66. Gamil Föppel El Hireche 115 55 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direito Penal. In Revista de Estudos Criminais. Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS. Número 08, p. 59. 56 HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 33. 57 HASSEMER, Winfried. Três Temas de Direito Penal. Escola Superior do Ministério Publico: Porto Alegre, 1993. p. 59. 58 HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 33-34. 59 HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 34. 60 REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no Direito Penal Econômico: uma terceira via entre o crime e a infração administrativa? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: outubro-dezembro de 1999, n° 28. p. 125. 61 HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 34. 62 CORACINI, Celso Eduardo Faria. Os Movimentos de Descriminalização: em busca de uma racionalidade para a intervenção jurídico-penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: setembro-outubro de 2004 n° 50. p. 266. 63 COUTINHO, Heliana Maria de Azevedo. O direito de mera ordenação social no sistema jurídico-penal alemão. In: Revista Brasileira de Ciência Criminais. Ano 2, n.7, com trechos de Goldschimidt, verwaltungsstrafrecht, Berlin, Carl Heymans, 1902, citados pela autora. 64 ZAFFARONI, E.Raúl, BATISTA, Nilo, et alli. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 69-70. 65 HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 34. 66 COUTINHO, Heliana Maria de Azevedo. O direito de mera ordenação social no sistema jurídico-penal alemão. In: Revista Brasileira de Ciência Criminais. Ano 2, n.7, com trechos de Eric Wolf, Die Stellung der Verwaltunsdelikte im Strafrechtssystem Frank –Festgabe, Band 2, s.516 ff. Deutschla 1930, citados pela autora. 116 Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico. DIREITO AO SILÊNCIO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO (ARTS. 347, CPC, E 229, CC)1 Fredie Didier Jr Professor-coordenador do curso de graduação em Direito da Faculdade Baiana de Direito. Professor-adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (graduação, mestrado e doutorado). Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Advogado e consultor jurídico. www.frediedidier.com.br Sumário: 1. Noção. 2. Generalidades sobre o depoimento da parte. 3. A recusa lícita de depor: o direito ao silêncio. 3.1. Noção. 3.2. Direito ou dever de silêncio. 3.3. Direito ao silêncio em relação a fatos criminosos ou torpes. 3.4. Direito ao silêncio sobre fatos relacionados à vida familiar ou à atividade profissional. 3.5. Outras hipóteses expressas, em que se reconhece o direito ao silêncio, previstas no Código Civil (art. 229). 3.6. Regra geral de escusa. 1. Noção O direito ao silêncio é um dos temas mais interessantes e, curiosamente, ao mesmo tempo, menos estudados pela dogmática do direito processual civil. Bem diferente é a situação em relação à dogmática do direito processual penal, em que há inúmeros trabalhos, seja da doutrina brasileira seja da doutrina estrangeira, sobre o princípio do nemo tenetur se detegere. As regras sobre o direito ao silêncio estão previstas no CPC (art. 345, 347 e 406) e no CC (art. 229). Essa constatação fundamenta a escolha desse tema para compor a coletânea em homenagem ao querido amigo e mestre Arruda Alvim, jurista que se destaca com igual maestria tanto no direito privado quanto no direito processual civil. As regras legais mencionadas valem tanto para o depoimento da parte quanto para o testemunho de terceiro. Cuidaremos do 117 direito ao silêncio da parte. As considerações servem, mutatis mutandis, para o direito ao silêncio da testemunha (art. 406, CPC2). 2. Generalidades sobre o depoimento da parte O sistema brasileiro seguiu o modelo italiano: há duas espécies de depoimento da parte, o depoimento por provocação e o interrogatório. Há o depoimento da parte por provocação, requerido pela parte adversária, realizado na audiência de instrução e julgamento e determinado sob pena de confissão ficta (art. 343, § 1º, CPC), acaso a parte se recuse3 ou não compareça para depor (art. 343, § 2º, CPC): tomar-se-ão por confessados os fatos afirmados em desfavor da parte que deveria ter-se apresentado para depor. A confissão ficta, neste caso, embora tenha natureza jurídica de sanção, será valorada pelo magistrado como se confissão real fosse (sobre a possibilidade de valoração judicial da confissão, ver o capítulo sobre a confissão, neste livro), inclusive podendo afastá-la, acaso os fatos fictamente confessados sejam inverossímeis4. A parte deve ser intimada pessoalmente, com expressa menção, no mandado, à pena de confissão ficta, sob pena de nulidade do ato que aplicar essa sanção5. A parte não pode requerer o seu próprio depoimento. As declarações de uma parte, contudo, podem servir como meio de prova em seu favor, na medida em que reforcem a convicção do magistrado6. O interrogatório, no processo penal, é encarado como um meio de defesa do acusado7, o que reforça a argumentação de que as declarações do depoente podem beneficiar-lhe. No processo penal, porém, há o direito ao silêncio, com todo o conteúdo da cláusula do nemo tenetur se detegere (ninguém é obrigado a manifestar-se), conduta que lá não pode implicar prejuízo ao réu8. No direito processual civil também há o direito ao silêncio, que torna lícita a recusa de depor, em hipóteses adiante examinadas. 118 Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1. Há, também, o interrogatório, determinado ex officio pelo magistrado, em qualquer estágio do processo, inclusive em instância recursal9, não sendo possível, neste caso, entretanto, cominar a pena de confissão ficta para o caso de nãocomparecimento ou recusa (art. 342, CPC)10. A doutrina costuma não considerar o interrogatório como um meio de prova propriamente dito, mas, na verdade, um instituto cujo objetivo é o de esclarecer o magistrado sobre fatos da causa. Porém, convém apontar, “é sempre possível que dele extraia o juiz algum elemento de prova, a ser usado para formar sua convicção sobre os fatos articulados no processo”11. Admite-se mais de uma convocação da parte ao interrogatório, bem como, por não visar à confissão, se permite a convocação de incapaz para depor. Como o interrogatório visa ao esclarecimento dos fatos, a princípio não há utilidade na ouvida, nesta condição, de representantes ou presentantes de pessoa jurídica, que não tenha conhecimento dos fatos12. Em ambos os casos, a confissão provocada pode surgir, e é sempre essa a razão de ser última de qualquer depoimento da parte. A diferença é que, no interrogatório, a confissão não pode ser prevista como sanção ao não-comparecimento ou à recusa a depor, condutas que podem ser avaliadas como abusivas, ficando a parte suscetível de punição por litigância de má-fé (art. 17 do CPC) e, para alguns autores, até mesmo a pena por crime de desobediência (desrespeito ao art. 340, I, CPC)13. 3. A recusa lícita de depor: o direito ao silêncio 3.1. Noção A recusa de depor tanto pode caracterizar-se pela negativa direta e frontal, como pela simples omissão em responder ou pelo recurso a evasivas. Nestes casos, cabe ao órgão judicial verificar se a Fredie Didier Jr. 119 atitude da parte há de ser considerada como recusa, devendo esclarecer na sentença as suas razões (art. 345 do CPC)14 e, assim, aplicar a sanção da confissão ficta. Há, contudo, situações em que é lícita a recusa de depor: são hipóteses em que se admite a escusa de depor. O sistema prevê as hipóteses que legitimam a recusa de duas maneiras: há uma regra geral de atipicidade da escusa de depor (art. 345), exigindo como pressuposto apenas a justiça do motivo, e há situações específicas, já qualificadas pelo legislador como justas para autorizar o silêncio (art. 347, CPC, e art. 229, CC). Cabe ao magistrado o controle da licitude da recusa, que examinará o preenchimento dos pressupostos legais que a autorizam. 3.2. Direito ou dever de silêncio O direito ao silêncio (direito de recusar-se a depor sobre determinados fatos e direito de não ser interrogado sobre eles) é, em certas situações, um dever: nas hipóteses em que o direito ao silêncio decorre da proteção constitucional e penal ao sigilo profissional, o depoente não tem apenas o direito de recusar-se a depor: tem o dever de fazê-lo. Nos demais casos (relações de família e amizade), o depoente pode abrir mão do seu direito de escusa15. É preciso anotar, porém, que, abrindo mão do seu direito de calar, não pode o depoente mentir, conduta desleal inadmissível16. O dever de dizer a verdade (art. 14, I, CPC) convive com o direito de calar, mas é incompatível, obviamente, com o direito de mentir. A parte tem o direito de calar, mas não tem o direito de mentir. A mentira em juízo é ilícito processual civil (litigância de má-fé, art. 17, II, CPC). Trata-se de conduta vedada, que pode ser punida com multa, conforme o art. 18 do CPC. Não é, porém, conduta 120 Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1. criminosa, pois inexiste o crime de perjúrio, salvo se afetar terceiro, o que configuraria outro crime, como a denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal). Não se pode confundir essa conduta com a do crime de falso testemunho (art. 342 do Código Penal), que não pode ser cometido pela parte. 3.3. Direito ao silêncio em relação a fatos criminosos ou torpes A parte não é obrigada a depor: a) sobre fatos criminosos ou torpes que lhe são imputados; b) a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo -— essa última ressalva não se aplica às ações de filiação, de separação, divórcio e de anulação de casamento (art. 347 do CPC)17. Trata-se de regras que prestigiam o direito à autopreservação. Note que, à semelhança do que acontece no âmbito penal, é direito da parte silenciar sobre fatos tidos por criminosos que lhe sejam imputados (direito ao silêncio) no âmbito cível. Trata-se do conhecido direito contra a auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare, ninguém é obrigado a acusar a si mesmo; nemo contra se edere tenetur, ninguém é obrigado a se denunciar; nemo testis contra se ipsum, ninguém testemunhe contra si mesmo). “...o princípio nemo tenetur se ipsum accusare passou a ter significados distintos, relacionados entre si: a) um direito genérico a não se auto-incriminar (privilege against self-incrimination); b) um direito de não ser interrogado pelo juiz (right not to be questioned); e c) um direito de, quando interrogado, se manter em silêncio (right to silence)”18. LUIGI FERRAJOLI, quando examina o assunto no direito processual penal, identifica como conteúdo desta garantia (que ele prefere denominar de nemo tenetur se detegere, ninguém é obrigado a se manifestar, mais abrangente que as outras designações) os Fredie Didier Jr. 121 seguintes direitos, dentre outros que neste momento não interessam, pois mais afeitos ao processo penal: a) direito ao silêncio; b) proibição de tortura e de utilização de técnicas de manipulação da psique (drogas ou hipnose) para a obtenção da confissão; c) direito a ser acompanhado por um advogado durante o depoimento19. No processo civil, garante-se, pois, também o direito ao silêncio em relação a fatos tidos por criminosos (art. 347 do CPC e art. 229 do CC). O direito ao silêncio sobre fatos criminosos tem natureza de direito fundamental (art. 5º, LXIII, CF/88). Está previsto, também, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): Art. 8º. Garantias judiciais, § 2º, “g”: “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”. Há quem veja na antiga regra hebraica dos dois testemunhos (testis unus, testis nullus,20 mínimo exigido para fundamentar uma decisão condenatória) a origem remota deste direito21. Sucede que essas previsões restringem-se ao âmbito do processo penal. No direito brasileiro, o direito ao silêncio sobre fatos criminosos no âmbito civil está previsto apenas no nível infraconstitucional22. Essa constatação, porém, não diminui sua importância: estendê-lo ao âmbito cível parece corolário inevitável da garantia constitucional, pois, de fato, não faria muito sentido permitir que, no cível, o sujeito fosse obrigado a depor sobre fatos havidos como criminosos, conduta que certamente teria alguma influência na formação do convencimento do juízo penal. É importante frisar, ainda, que o direito ao silêncio sobre fatos criminosos abrange não só os fatos constitutivos da demanda, mas também fatos simples ou secundários. É o que acontece quando a pessoa, inquirida sobre um fato qualquer, para dizer a verdade precisa afirmar a existência de um fato criminoso, como acontece quando alguém, perguntado sobre a sua profissão, deva 122 Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1. declarar, por ser a verdade, que lida com trabalho ilícito (agiotagem, rufianismo etc.)23 Há, ainda, o direito ao silêncio sobre fatos torpes (nemo tenetur detegere propriam turpitudinem, ninguém é obrigado a manifestarse sobre a própria torpeza), que, à semelhança do primeiro, tem origem remota, podendo ser encontrado nas Ordenações Manuelinas e Filipinas (Liv. III, Tít. LIII, 11), bem como no Regulamento n. 737/1850 (art. 208, § 1º). 3.4. Direito ao silêncio sobre fatos relacionados à vida familiar ou à atividade profissional Como no juízo cível é possível a discussão de um sem-número de fatos, muitos deles não-criminosos, foi preciso regrar o direito ao silêncio em relação a esses últimos. Em juízo de ponderação, o legislador entendeu por bem reconhecer o direito ao silêncio, no âmbito cível, apenas em certas situações, relacionadas, ou à proteção da intimidade, da vida e do patrimônio do depoente, ou à natureza da sua profissão. Reputa-se legítima a recusa de depor quando se tratar de fato que diga respeito ao sigilo profissional, ou que envolva situação relacionada ao estado da pessoa (salvo em ações de filiação, separação, divórcio ou anulação de casamento). Embora a ressalva em relação às ações de família esteja no parágrafo único do art. 347, o que poderia conduzir à interpretação de que se refere à totalidade do art. 347, a melhor interpretação é aquela que o relaciona apenas aos fatos relacionados ao estado da pessoa, mais especificamente às ações de família. O segredo profissional é bem jurídico de alta relevância (inclusive penal: art. 154 do Código Penal). A proteção do sigilo é, ainda, direito fundamental (art. 5º, XIV, CF/88)24. Essa proteção visa proteger o equilíbrio das relações sociais, notadamente o valor confiança, indispensável à ética dessas mesmas relações. É o Fredie Didier Jr. 123 caso do médico, advogado (art. 7º da Lei Federal n. 8.906/1994), jornalista, padre, juiz, membro do Ministério Público, enfermeiro, psicólogo etc.25 Bem examinado o problema, a recusa de depor, neste caso, antes de um direito é um dever do depoente26. Tratase de tutela civil de um bem jurídico penal e de um direito fundamental. Convém anotar que é crime de responsabilidade “revelar negócios políticos ou militares, que devam ser mantidos secretos a bem da defesa da segurança externa ou dos interesses da Nação” (art. 5º, n. 4, Lei Federal n. 1.079/1950). Trata-se de hipótese em que também é legítima a recusa de depor, que no caso também se apresenta como um dever do depoente. Como todo direito fundamental, o direito à proteção do sigilo profissional pode, em certas situações, ceder a outro direito fundamental, aplicado o princípio da proporcionalidade. Admitese, por exemplo, a quebra do sigilo médico para revelação de maus-tratos a menores (protegidos constitucionalmente: art. 227 da CF/88) ou para favorecer o próprio paciente (entrega do seu prontuário para que se tomem providências com o objetivo de salvar-lhe a vida)27. Aliás, o próprio texto do Código Penal permite a revelação do sigilo havendo justa causa, que será examinada pelo magistrado no caso concreto. Dispensa-se o sigilo, também, quando o beneficiário do segredo libera o profissional de seu dever, permitindo a sua revelação28. 3.5. Outras hipóteses expressas, em que se reconhece o direito ao silêncio, previstas no Código Civil (art. 229) O art. 229 do Código Civil traz outras hipóteses em que se considera a priori como legítima a recusa de depor: “Art. 229. Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo; 124 Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1. II - a que não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge, parente em grau sucessível, ou amigo íntimo; III - que o exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente, a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato”. Note que o inciso I repete a hipótese já prevista no inciso II do art. 347 do CPC. O inciso II do art. 229 do Código Civil é hipótese nova, em que o legislador, considerando a proteção da honra do depoente, ou de pessoas que lhe são próximas, permite a escusa de depor. Perceba que o CPC já permitia a recusa de depor em relação a fatos torpes imputados ao depoente. A redação do CC é mais abrangente por referir-se a “desonra”, que tem sentido mais amplo do que “torpe”, além de permitir a recusa para a proteção da honra de terceiros. Há precedente semelhante no inciso I do art. 406 do CPC, que cuida da recusa de depor como testemunha, que não prevê, porém, a recusa em razão da amizade e restringe o parentesco em linha colateral até o segundo grau29. Neste ponto, a legislação processual foi revogada pela legislação civil, que, como lei posterior, substitui a anterior. “É para evitar uma autêntica desumanidade – quer por revelar uma mazela moral, quer por induzir a testemunha a não desvendar a verdade – é que, quanto está em jogo a honra do depoente ou das pessoas que lhe são caras, a lei o dispensa de testemunhar”30. O inciso III do art. 229 do Código Civil também inova, ampliando o direito ao silêncio: agora, é lícita a negativa de depor quando o depoimento puder expor o depoente, parente em grau sucessível, cônjuge ou amigo íntimo a perigo de vida, demanda ou dano patrimonial imediato. A inovação, como se vê, aparece em dois aspectos. Em primeiro lugar, amplia o rol das pessoas protegidas pelo silêncio. Pela redação do CPC, protege-se a pessoa do depoente; Fredie Didier Jr. 125 pelo texto do Código Civil, a recusa de depor justifica-se como forma de proteção de qualquer parente em grau sucessível (ascendentes, descendentes e colaterais até o quarto grau), cônjuge (e, por conseqüência, companheiro31) ou amigo íntimo. Em segundo lugar, permite-se a negativa se o depoimento puder expor qualquer destes sujeitos a perigo de vida, demanda ou dano patrimonial imediato. Se a proteção à vida justifica-se, é difícil compreender a razão da dispensa nas outras hipóteses. “Evidentemente, em toda demanda patrimonial, a parte corre o risco de sofrer dano patrimonial imediato, já que esta é a finalidade da demanda”32. Assim, em todo processo cujo objeto litigioso envolve direito patrimonial, a escusa de depor seria legítima. Mas não é só. Como em todo processo, patrimonial ou não-patrimonial a relação jurídica discutida, sempre há a possibilidade de a parte vencida ser condenada a arcar com as despesas processuais e honorários advocatícios, sempre haveria a possibilidade de um dano patrimonial imediato, a autorizar a recusa de depor. É por isso que a doutrina já sugeriu a interpretação temperada do art. 229 do Código Civil, que somente poderia ser “aplicado quando o magistrado verificar que seria desarrazoado exigir do sujeito o depoimento (como parte ou como testemunha), pois isto o colocaria em situação de especial sacrifício, inexigível da comunidade Em casos outros, a regra não merece aplicação”33. De todo modo, é preciso anotar que as regras que permitem a recusa de depor estão imbuídas de forte conotação ética, porque visam tutelar a confiança, inerente em diversas relações profissionais e nas relações de família e amizade. São, ainda, regras que compõem a proteção da dignidade da pessoa humana34. 3.6. Regra geral de escusa O art. 345 do CPC prevê uma regra geral de escusa de depor, ao permitir, a contrario sensu, que a parte possa negar-se a depor 126 Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1. por motivo justo, a ser avaliado pelo magistrado35. Trata-se, como se vê, de um conceito jurídico indeterminado, cuja concretização será investigada pelo magistrado no caso concreto. Assim, além das expressas hipóteses em que é garantido (definidas a priori como autorizantes da recusa pelo art. 347 do CPC e pelo art. 229 do CC), o silêncio também é permitido em qualquer situação considerada pelo magistrado como legítima, como, por exemplo, em relação a fatos impertinentes/irrelevantes (que não podem ser objeto de prova)36. Cria-se uma regra de atipicidade das razões da recusa, que devem ser identificadas a posteriori pelo magistrado. O pressuposto geral para a recusa é o de que ela seja considerada justa pelo órgão jurisdicional37. 4. Notas 1 Escrito em homenagem ao Prof. José Manoel de Arruda Alvim Netto, Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2 Art. 406 do CPC: ”A testemunha não é obrigada a depor de fatos: I - que lhe acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge e aos seus parentes consangüíneos ou afins, em linha reta, ou na colateral em segundo grau; II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo”. 3 “A recusa de depor tanto pode caracterizar-se pela negativa direta e frontal, como pela simples omissão em responder ou pelo recurso a evasivas, sem motivo justificado”. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil Brasileiro. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 58.) 4 MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, t. 4, p. 310. 5 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil Brasileiro. 23ª ed., cit., p. 58. 6 MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, 3ª ed., t. 4, cit., p. 304. 7 Ver, por exemplo, dentre outros, LOPES Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 231; OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 379 e segs; DUCLERC, Elmir. Curso Básico de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, v. 2, p. 252 e segs. Fredie Didier Jr. 127 8 Art. 186 do Código de Processo Penal: “Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único . O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. 9 MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, 3ª ed., t. 4, cit., p. 304. Sobre a produção de provas em tribunal, ver item específico sobre o tema no v. 3 deste Curso. 10 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil Brasileiro. 23ª ed., cit., p. 58; LOPES, João Batista. “O depoimento pessoal e o interrogatório livre no processo civil brasileiro e estrangeiro”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1979, n. 13, p. 97-98; MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed. São Paulo: RT, 2005, v. 5, t. 2, p. 36. Em sentido contrário, admitindo a fixação da pena de confesso no interrogatório, MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, 3ª ed., t. 4, cit., p. 305. 11 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 35. 12 Sobre todas essas questões, MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 40-41. 13 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 37. 14 Art. 345 do CPC: ”Quando a parte, sem motivo justificado, deixar de responder ao que lhe for perguntado, ou empregar evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e elementos de prova, declarará, na sentença, se houve recusa de depor”. 15 LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 591; MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 96-97. 16 No processo penal, há quem reconheça o direito de o depoente (acusado) mentir, como conteúdo da cláusula nemo tenetur se detegere (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 486; LOPES Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 233). 17 Art. 347 do CPC: “A parte não é obrigada a depor de fatos: I - criminosos ou torpes, que lhe forem imputados; II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo. Parágrafo único. Esta disposição não se aplica às ações de filiação, de desquite e de anulação de casamento”. 18 COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: RT, 2004, p. 262. 128 Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1. 19 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 486. 20 Livro de Deuteronômio, 19, 15: “Uma única testemunha não é suficiente contra alguém, em qualquer caso de iniqüidade ou de pecado que haja cometido. A causa será estabelecida pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas”. 21 Sobre esta percepção, sem concordar ao que parece com ela, trazendo amplas referências, COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: RT, 2004, p. 30-32. Entendia-se que nem todo testemunho era apto a servir como prova para condenar alguém; proibia-se o testemunho de parentes. Dizia-se, então, que o acusado era seu próprio parente, e que, por tal razão, sua confissão não poderia ser aceita. Afirmava-se, ainda, que, como a vida de um homem pertence a Deus, “confessar um crime seria o equivalente a dispor de uma propriedade – o corpo – que não pertence ao acusado, e, no caso de crimes capitais, o habilitaria a cometer uma forma de suicídio”. (COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio, cit., p. 30, nota 4.) Justificava-se também a regra, segundo alguns, como forma de desestimular a tortura (WEINTRAUB, Melissa. “The Bar against Self-Incrimination as a Protection against Torture in Jewish and American Law”, disponível em http://www.rhr-na.org/torture/ ainadammesim_short.pdf, p. 2-3, com amplas referências, consultado em 19.11.2006, às 14h41), tendo sido esta a principal razão, ao que parece, de seu acolhimento pela doutrinas liberais que propagavam as garantias processuais individuais a partir do século XVIII. De acordo com o panorama histórico traçado por João Couceiro, tendo por base a lição de Leonard Levy, a evolução do direito ao silêncio na Inglaterra, país em que teria sido consagrado primeiramente esse right, está relacionada à proteção das liberdades religiosa e de expressão, visto que era exercido nas acusações de heresia, cisma ou traição, fazendo parte do contexto de luta pelo reconhecimento de limitações ao poder Real e da Igreja (COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio, cit., p. 67-68, nota 87.) 22 COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: RT, 2004, p. 262. 23 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 90. Arrematam os autores: “Neste caso, não se imputa à pessoa a prática de fato ilícito – não havendo, portanto, a incidência da regra do art. 347, I – mas a resposta a ser dada (em função do dever de veracidade e completude) certamente indicará a prática, pelo depoente, de atividade ilícita e sujeita a sanção criminal”. (cit., p. 90, nota 114) 24 “XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. 25 Assim, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. 1, p. 480. Fredie Didier Jr. 129 26 Assim, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. 1, cit., p. 481. 27 Para os exemplos, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. 1, cit., p. 483. 28 THEODORO Jr., Humberto. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 3, t. 2, p. 555. 29 Art. 406 do CPC: ”A testemunha não é obrigada a depor de fatos: I - que lhe acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge e aos seus parentes consangüíneos ou afins, em linha reta, ou na colateral em segundo grau”. 30 THEODORO Jr., Humberto. Comentários ao Código Civil, v. 3, t. 2, cit., p. 556. 31 Neste sentido, também, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. 1, cit., p. 483. 32 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 101. 33 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 101. 34 Assim, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. 1, p. 479; LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 590-591. 35 Art. 345 do CPC: ”Quando a parte, sem motivo justificado, deixar de responder ao que lhe for perguntado, ou empregar evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e elementos de prova, declarará, na sentença, se houve recusa de depor”. 36 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 90. 37 “Confrontando o teor deste artigo com o dos dois incisos do art. 347 conclui-se que motivos justificados não são apenas os indicados neste último, mas também outros, a ele estranhos. Se o intérprete dessas normas fizer de uma (345) conseqüência da outra (347), a primeira ficará inócua, o que não se pode admitir no corpo da lei. Qualquer motivo que ao juiz se afigure justificado, afora os referidos no outro dispositivo, poderá autorizar o litigante a calar-se”. (ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz. Exegese do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: AIDE, s/a, v. 4, t. 1, p. 152.) No mesmo sentido, MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 74-75. 130 Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1. A METODOLOGIA DO DIREITO Johnson Barbosa Nogueira1 1 Professor adjunto IV da FDufba, mestre em direito econômico e doutorando em direito público pela FDufba. Sumário: 1. Introdução 2. Breve escorço histórico da Justiça ( e da metodologia do direito). 3. Pensar problemático ou pensar dogmático? 4. A valoração jurídica. 5. Metodismo ou ametodismo? ¨. Bibliografia. Resumo: A superação da Hermenêutica normativista é fruto de várias reações, cujo pluralismo pode bem ser denominado de pós-positivismo. As várias correntes do pós-positivismo têm algumas raízes comuns, entre as quais a inserção dos valores, com destaque dos princípios jurídicos, na tarefa hermenêutica. Daí, a retomada da Justiça, como questão crucial para se conhecer o direito, bem como a preocupação de se buscar uma lógica adequada aos valores e princípios jurídicos. Palavras-Chave: Hermenêutica. Pós-positivismo. Justiça. Lógica de valores. 1. Introdução A metodologia da pesquisa jurídica ressente-se de uma definição prévia a respeito da própria metodologia do direito. É certo que sendo o direito um fenômeno social, a metodologia de sua pesquisa tende a se desenhar pelo modelo da metodologia das ciências sociais. Contudo, o fenômeno jurídico tem sua especificidade, a exigir um tratamento especial para se adequar às peculiaridades do direito. Daí porque a concepção ontológica do direito faz pressupor a opção metodológica. Como a concepção ontológica do direito vem variando ao longo do tempo, ora tomando o direito como um fenômeno social, ora como um fenômeno normativo, ora como um fenômeno axiológico, é natural que as opções metodológicas venham disputando sua prelazia na filosofia e na doutrina do direito. 131 Estas variantes ontológicas e, consequentemente, metodológicas podem ser melhor visualizadas por meio do papel destinado à Justiça em cada escola ou corrente do Direito. A resposta à pergunta (Qual é o papel da Justiça no Direito?) define a linha metodológica a ser seguida. Equivale a responder à questão: Qual o método adequado para se conhecer o direito? Há uma verdade jurídica? Como se chega a ela? Uma breve resenha histórica do tratamento dado à Justiça clarificará o problema metodológico do direito. 2. Breve escorço histórico da justiça (e da metodologia do direito) A idéia de Justiça no Direito representa a inserção do axiológico na compreensão do fenômeno jurídico. Por isso mesmo, o positivismo jurídico, que pugna pelo depuramento valorativo do direito, expele a idéia de Justiça para os domínios da moral. Por outro lado, a inserção da Justiça no labor dos juristas ficou muito tempo vinculada ao Direito Natural e, por conseguinte, a uma concepção metafísica da Justiça e dos valores jurídicos. Este consórcio entre Justiça e direito natural se revelou improdutivo e anti-científico, razão pela qual o pós-positivismo abomina a idéia do Direito Natural e acata a idéia de Justiça, por força da contribuição da moderna Axiologia Jurídica, que possibilita tratar os valores e princípios jurídicos sem apelar para concepções metafísicas. 2.1. A Justiça na Antiguidade É natural que a influência da religião sobre o direito antigo deslocasse a questão da Justiça para a alçada divina. A Justiça provém dos deuses. Essa concepção divina da Justiça, apoiada na mitologia, influenciou Sócrates e até mesmo Platão. 132 A Metodologia do Direito A partir de Sócrates, o pensamento grego firmou a exigência de simetria entre o justo agir e o reto pensar. Platão erigiu todo o seu sistema político à base da temática da Justiça, correlacionando a justa ordenação da cidade com a correta colocação dos homens em seus lugares sociais. Para Kelsen, a justiça é o problema central de toda a filosofia platônica. Para solucionar esse problema, Platão criou a Teoria das Idéias. As idéias são essências transcendentes que existem em outros mundos, não acessível aos nossos sentidos, que representam valores que devem ser realizados no mundo dos sentidos, mas jamais plenamente. A idéia principal, da qual todas as demais retiram sua validade, é a idéia do Bem absoluto que tem o papel, na filosofia platônica, semelhante ao de Deus na teologia. O Bem contém em si a idéia de Justiça, o belo, o bom e o supremo conhecimento. A idéia do bem é causadora de todo o justo e de todo o bom. Faz uma correlação da Justiça com a felicidade, ensinando que apenas o justo é feliz ou que temos a conduzir os homens a crer em tal. Ao longo de sua obra, Platão sempre tratou da questão da Justiça, mas não concluía sua definição. Na sua última obra (Leis) se encontra ainda uma tentativa de identificar a justiça à igualdade, da qual ele distingue a igualdade mecânica, aritmética, ou seja, a igualdade segundo uma medida, peso ou número, e a igualdade proporcional, na qual nem todos recebem o mesmo, cada um sendo tratado segundo o que merece e o que lhe é devido. E no final confessa: “No entanto, a única igualdade verdadeira – e a melhor – não se apresenta tão facilmente cognoscível a todos. Isso porque o juízo cabe aí a Zeus, e aos homens ele sempre se comunica em pequena medida”.2 No Críton, faz a apologia do direito positivo, do caráter divino das leis, que devem ser obedecidas, pois Sócrates está convencido de que obedece à divindade quando se submete às leis.3 Johnson Barbosa Nogueira 133 Na sua investigação filosófica sobre a justiça e a injustiça, Aristóteles propões indagar quais são as espécies de ações a que se correlacionam, que espécie de meio termo é a justiça e entre que extremos o ato justo é o meio termo. Provisoriamente, adota a definição de que a Justiça é a disposição da alma, graças à qual ela se dispõe a fazer, agir e desejar o que é justo. E o que seria o justo? Responde que o justo é “aquilo que é conforme a lei e correto, e o injusto é o ilegal e o iníquo”. Tomada como virtude, a Justiça é a excelência moral perfeita. Socorre-se da Elegias de Têognis, verso 147, para expressar que “na justiça se resume toda a excelência”4. Mas ao lado dessa concepção de Justiça como virtude-síntese, resumo de várias virtudes, Aristóteles procura desenvolver o sentido da justiça como virtude particular, assimilando-a à igualdade e à proporcionalidade, distinguindo a justiça distributiva e a justiça corretiva. Mas, retornando, ao seu postulado inicial, conhecido como a teoria do mesotes, que se vulgarizou com a parêmia virtus in medio, o Estagirita concebe a justiça ao lado dos extremos de injustiça, por falta e por excesso. No ato injusto, ter muito pouco é ser tratado injustamente e ter demais é agir injustamente. Aristóteles distingue a justiça natural da justiça legal, convencional. Seriam partes da justiça política. São naturais as coisas que têm a mesma força em todos os lugares, independentemente de as aceitarmos ou não. Neste ponto, Aristóteles é tido como um precursor do direito natural. Por fim, contribui o filósofo grego para a distinção entre justiça e equidade. “A justiça e a equidade são, portanto a mesma coisa, embora a equidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o eqüitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal”.5 134 A Metodologia do Direito Com certeza, Aristóteles é o primeiro filósofo a tratar sistematizadamente do problema da justiça, levantando questões que até hoje nos mobiliza a consultar a Ética a Nicômacos. A definição da Justiça como “constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi” é a mais tradicional entre os romanos (Dig., 1, 1.10). Segundo Alf Ross, a fórmula pela qual os juristas romanos expressaram a Justiça foi suum cuique tribuere, neminem laedere, honeste vivere, que foi amiúde repetida com insistência como se tratasse da quintessência da sabedoria, mas que se trata de pura ilusão que atinge a aparência de algo óbvio porque nada diz.6 2.2 A Justiça e o direito natural O jusnaturalismo é a corrente do pensamento jurídico que se apropriou da noção de Justiça, confundindo-a com o próprio direito natural – uma impropriedade que é fonte de muitos equívocos e confusões. Assim, afirmar a existência do Direito Natural é afirmar a existência da Justiça. Negar a existência do direito natural é negar a possibilidade da idéia de Justiça. As mudanças ocorridas na concepção do direito natural importam mutações da Justiça. Assim temos, correspectivamente, uma Justiça Divina, uma Justiça Racional, uma Justiça históricocondicionada. Os gregos tinham nítida diferenciação entre o “justo por natureza” (physei/physikon dikaion) em oposição ao “direito posto” (nomo/ nomikon dikaion). Esta dualidade veio convivendo historicamente desde Aristóteles até o Positivismo Jurídico que representa o antidireito natural, pela afirmação exclusiva do direito positivo. No Decreto de Graciano (cerca de 1140), o direito natural se sobrepôs ao direito positivo, mas normalmente, salvo na Idade Média, o direito positivo prefere ao direito natural, conforme observou Noberto Bobbio. Johnson Barbosa Nogueira 135 Diante dos “estados injustos”, a idéia do direito natural é sempre acalentadora. Por isso, o direito natural constitui-se numa verdadeira “fênix jurídica”, porque se agarra à noção de Justiça, tentando dela fazer um indevido monopólio e tábua de salvação. Assim é que, após a 2ª Guerra Mundial, observa-se a tentativa de sua restauração, por meio de documentos internacionais (Carta do Atlântico de 1941, a Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948) e por meio do prestígio dos acórdãos do Tribunal Federal Constitucional alemão.7 A formulação da teoria dos direitos humanos ou fundamentais, como manifestações pré e suprapositivas acalenta uma nova ressurreição da fênix, sob a concepção de um direito natural crítico. 2.3. O positivismo jurídico Uma das idéias centrais do positivismo jurídico fulcra-se na crítica da idéia de Justiça. Não vamos fazer um panorama histórico do positivismo jurídico, mas centrar em algumas posições básicas do positivismo acerca da Justiça, a partir de alguns dos seus representantes mais emblemáticos. Numa primeira posição, encontramos autores positivistas que aceitam alguns princípios de justiça. Hobbes, “que é considerado o pai do moderno positivismo jurídico e de Estado”, desenvolve uma série de leis naturais que, junto com o princípio do bem comum (salus populi suprema lex), servem à fundamentação moral e valoração concreta da ordem do Direito e do Estado. Outros dois representantes do positivismo jurídico britânico Bentham e Austin, chegam a defender uma crítica suprapositiva do Direito e do Estado. Outro filósofo da tradição positivista, Herbert Hart, confessa-se adepto de alguns princípios de justiça e até admite um direito natural mínimo.8 Numa segunda posição está Hans Kelsen que, na formulação de sua Teoria Pura do Direito, põe, em suas bases epistemológicas, 136 A Metodologia do Direito “o fundamento para expulsar, do campo da ciência do Direito, o problema da justiça, resguardando-lhe, todavia, o estatuto próprio, no terreno da filosofia e da política, como questão de natureza ética”.9 Para Kelsen, a justiça é uma qualidade, uma virtude dos indivíduos e, como tal, a justiça é uma qualidade moral e nessa medida, pertence ao domínio da moral. Esta virtude ou qualidade se exterioriza na conduta do indivíduo em face do outro, isto é, na sua conduta social. Esta conduta será justa se conformar-se a uma norma positiva, que constitui o valor justiça e, neste sentido, é justa. Esta norma positiva pode ser designada como norma da justiça. “Como as normas da moral são normas sociais, isto é, normas que regulam a conduta de indivíduos em face de outros indivíduos, a norma da justiça é uma norma moral, e assim, também sob este aspecto o conceito da justiça se enquadra no conceito da moral”.10 Temos que nos contentar com uma justiça terrena, positiva e, pois, relativa. A justiça absoluta é o engodo desta eterna ilusão. Numa terceira posição, situa-se o positivismo que absorve a noção de justiça, descaracterizando-a como uma simples exigência de racionalidade e regularidade. Nesta posição, situa-se Alf Ross, para quem “a justiça é aplicação correta de uma norma, como coisa oposta à arbitrariedade”.11 Não pode ser um padrão jurídicopolítico ou um critério para julgar uma norma. A ideologia da justiça não cabe, pois, num exame racional do valor das normas. Mas admite que há uma conexão entre o direito vigente e a idéia de justiça. Dentro desta idéia, distingue Ross dois pontos: 1º) a exigência de que haja uma norma como fundamento de uma decisão; 2º) a exigência de que a decisão seja uma aplicação correta de uma norma. Sem um mínimo de racionalidade (possibilidade, regularidade) seria impossível falar em ordem jurídica. “Nesta medida, a idéia de Johnson Barbosa Nogueira 137 justiça – no sentido de racionalidade e regularidade – pode ser qualificada como constitutiva do conceito do direito”.12 Tal como Kelsen, Ross desmistifica a igualdade como exigência suprapositiva de justiça. A exigência de que todos devem ser tratados de maneira igual apenas significa que o tratamento dado a cada pessoa deve seguir as regras gerais.13 Uma quarta posição pode ser simbolizada pelo procedimentalismo de Luhmann. Diversamente de Kelsen, ele incorpora o problema da justiça “como elemento do sistema jurídico autopoiético, retirando-lhe o significado ético para emprestar-lhe o papel de unidade operacional do sistema, obediente às suas regras internas e destinada a atuar como fórmula de contingência, cuja função é assegurar consistência às decisões”.14 Uma quinta posição, com aspectos similares à primeira, terceira e quarta posição é a de juristas que, como John Rawls, sem acenos ao jusnaturalismo, intentam construir um sistema de princípios de justiça, racionalmente fundamentados, que poderiam servir de base para instituições consideradas justas. Os princípios da justiça de Rawls são escolhidos sob um véu de ignorância, como resultado de um consenso ou ajuste eqüitativo.15 Provisoriamente, Rawls formulou os dois princípios da justiça nos seguintes termos: “Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos”.16 Mais adiante, Rawls fornece-nos, em nome da completude, uma formulação final: 138 A Metodologia do Direito Primeiro Princípio Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com o sistema semelhante de liberdade para todos. Segundo Princípio As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos obedecendo as restrições do princípio da poupança justa, e (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades. Primeira Regra de Prioridade (a prioridade da liberdade) Os princípios da justiça devem ser classificados em ordem lexical e portanto as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade. Existem dois casos: (a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos; (b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor. Segunda Regra de Prioridade(A Prioridade da Justiça sobre a Eficiência e sobre o Bem Estar) O segundo princípio da justiça é lexicalmente anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade eqüitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença. Existem dois casos: (a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor; (b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que carregam esse fardo.17 Em obra posterior, RAWLS proclama que sua teoria da justiça como equidade é apenas “política” e afirma o abandono do Johnson Barbosa Nogueira 139 conceito restrito de racionalidade que utiliza no Uma Teoria da Justiça e novamente define os dois princípios da justiça nos seguintes termos: (1) Cada pessoa tem o direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e de direitos básicos iguais para todos, compatíveis com um mesmo sistema para todos. (2) As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas as funções e posições abertas a todos em condições de justa (fair) igualdade de oportunidade; em segundo lugar, devem proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade.18 Em todas as posições, sobressai uma marca significativa: o esforço para encontrar a solução do problema da justiça por meio da racionalidade, com desprezo ou desimportância para o enfoque axiológico. 2.4. Pós-positivismo Caracterizamos a justiça pós-positivista como uma concepção do Direito e da Justiça que se nega a ficar ilhada no racionalismo ou no irracionalismo, nem tampouco quer fazer uma opção exclusivista entre o sistemático e o problemático. É uma justiça que não faz ouvido mouco ao pluralismo e à complexidade da sociedade moderna. Por isso mesmo, reconhece o axiológico no sistema jurídico, devendo providenciar o raciocínio adequado a esta introdução. A Justiça pós-positivista reflete, pois, a crítica ao positivismo jurídico, mas sem se render aos encantos da solução jusnaturalista. Para se tratar de valores no campo do Direito, não se tem que ser necessariamente jusnaturalista. A compreensão do direito como experiência cultural, que se utiliza da normatividade, mas impregnada de valores, demanda uma 140 A Metodologia do Direito revisão da teoria hermenêutica, reivindicando o papel fundamental dos princípios enunciadores de valores no sistema jurídico. A compreensão da justiça pós-positivista acolhe a idéia da justiça, ordenada por princípios valorativos (e não apenas preceitos lógicos), mas sem ficar presa às malhas do racionalismo, nem cair nos desvãos do irracionalismo ou do voluntarismo amorfo. São os autores da linha culturalista que resgatam o aspecto valorativo do direito, sem descurar do seu aspecto normativo e fático. Os avanços da Axiologia Jurídica e da Hermenêutica Jurídica, da Semiótica, da busca de novas lógicas, como a Lógica do Razoável, a Nova Retórica e o ressurgimento da Tópica, apetrecham os juristas para novos rasgos de compreensão do fenômeno jurídico e do problema da Justiça. Nesta crítica, despontam os trabalhos do tridimensionalismo jurídico (Recaséns Siches, Miguel Reale, Eduardo Garcia Mainez), do egologismo (Carlos Cossio), dos dogmáticos culturalistas de matizes diversos, como Larenz, Canaris e outros. Merece especial registro os autores que criticam o positivismo pelo seu caráter sistemático, pleiteando novas lógicas e o enfoque problemático do direito, a exemplo de Chaïm Perelman, com sua Nova Retórica, e Theodor Viehweg, com seu trabalho de ressurgimento da Tópica. 3. Pensar problemático ou pensar dogmático? A crítica à aplicação da lógica formal do direito foi desenvolvida no século passado por três grandes pensadores: Recaséns Siches, Chaïm Perelman e Theodor Viehweg. A idéia da lógica do razoável parte da colocação inicial de que estas lógicas tradicionais não são toda a lógica, não constituem a lógica inteira. O campo do logos é muitíssimo mais extenso do que a área da lógica pura tradicional, pois compreende outras regiões, a exemplo da razão histórica apontada por Dilthey, da razão vital e Johnson Barbosa Nogueira 141 histórica mostrada por Ortega y Gasset, a da experiência prática desenvolvida por Dewei e a lógica do humano ou do razoável, que o próprio Recaséns Siches começou a desenvolver, pois considerava incorreta a aplicação da lógica tradicional no conteúdo das normas jurídicas, uma vez que o problema da interpretação do direito é um problema de lógica material. A esta mesma conclusão chegava Carlos Cossio na Argentina. Os atos humanos, ainda que tenham causas e produzam efeitos, diferem dimensionalmente do mundo da natureza, porque possuem sentido e significação. Frente aos atos e obras humanas, o homem se encontra com algo que é expressão da vida humana, como algo que é homogêneo a ele, com o qual pode ser entendido e compreendido. Este é o mundo da liberdade, do livre arbítrio; aquele é o mundo da necessidade. Estas diferenças demonstram que aos fatos e obras humanas (o mundo da cultura) não é adequada à aplicação da lógica formal. Só a lógica do razoável é capaz de compreender este mundo de valorações, de meios e fins. A lógica do razoável é regida por razoes de congruência e de adequação: 1) Entre a realidade social e os valores: (quais valores são apropriados para a ordenação de uma determinada realidade social). 2) Entre os valores e os fins ou objetivos (quais são os objetivos valiosos). 3) Entre os objetivos e a realidade social concreta (quais são os propósitos de possível e conveniente realização). 4) Entre os fins ou objetivos e os meios (enquanto à adequação dos meios para os fins). 5) Entre os fins e os meios (a respeito da correção ética dos meios). 6) Entre os fins e os meios (quanto à eficácia dos meios). A respeito do pensamento problemático, Recaséns Siches considera úteis os estudos sobre a tópica, a retórica e a dialética 142 A Metodologia do Direito da Antiguidade Clássica, porque contribuíram para esclarecer um tipo de pensamento jurídico de importância e relevo nas funções do legislador e do juiz. Contudo, considera que as menções principais e aceitáveis, deste tipo de pensamento sobre o conteúdo das regras jurídicas são as pertinentes à dialética clássica, entendida esta como deliberação e argumentação. Mas considera anacrônico qualquer intento de fazer reviver as tópicas empregadas na Antiguidade e na Idade Média. A retórica dialética, diferentemente do método sistemático, toma como ponto de partida o senso comum, o qual vai abrindo caminho no terreno das verossimilhanças, guiado pela prudência humana. Conclui o mestre mexicano sobre o pensamento problemático, afirmando que o seu espírito radica na penetrante visão de que o jurista inevitavelmente se encontra com questões abertas, isto é, não resolvidas expressa ou implicitamente. É a visão de que os problemas humanos não podem encontrar solução no cárcere de um sistema dogmático. Por isso, de vez em quando sente a urgência de evadir-se do cárcere sistemático.19 Há uma semelhança muito grande entre a lógica do razoável de Recaséns Siches e a Nova Retórica de Chaïm Perelman. Ambos partem do ponto de vista de que a lógica aplicável aos valores não é a lógica formal, devendo se dar prevalência ao razoável em vez do racional. Ambos se convencem de que é preciso construir uma lógica material para discutir o conteúdo das normas jurídicas que, por ser valorativo, demanda uma lógica capaz de raciocinar sobre valores. O lógico francês Edmond Goblot publicou em 1927 uma lógica dos juízos de valor que apenas logrou uma análise interessante dos valores instrumentais. Em dez anos de trabalho conjunto com a Senhora L. Olbrechts-Tyteca, diz Perelman que suas pesquisas não o conduziram a uma lógica dos juízos de valor, mas a uma lógica menosprezada há muito tempo e Johnson Barbosa Nogueira 143 esquecida pelas lógicas contemporâneas, que fora desenvolvida nos tratados de retórica e nos tópicos. Trata-se do estudo das provas, que Aristóteles denominava de dialéticas por oposição às provas analíticas. Esses estudos levaram à formulação de uma teoria da argumentação, que foi denominada Nova Retórica.20 Razoável é a argumentação que procura convencer o auditório formado por todos os homens normais e competentes (auditório universal). O argumento forte é o embasado no precedente. Perelman dá destaque ao senso comum. É a tradição clássica da filosofia ocidental se mostra contrário ao senso comum. É tradição do racionalismo. Mas o interesse pelo senso comum aumentou na filosofia contemporânea em conseqüência da valorização da língua natural, instrumento por excelência do senso comum, e da influência exercida por G. Moore e L. Wyttgenstein, cujas concepções filosóficas se afastam da tradição clássica em filosofia. O razoável é vinculado ao senso comum, ao que é aceitável pela comunidade. Perelamn opõe o razoável ao racional: o racional é ligado à idéia de verdade, portanto de unicidade: o razoável é uma noção mais vaga, socialmente condicionada, que não leva a uma única solução, mas a uma pluralidade de soluções aceitáveis em dado meio social e em dado momento histórico. Daí resulta que uma teoria da Justiça, como qualquer teoria filosófica ou teoria jurídica, na medida que sua construção envolve juízos (explícitos ou implícitos) de valor, é sempre historicamente situada e é, ao mesmo tempo, uma concepção que não vale para sempre para toda a sociedade, mas depende do senso comum, de lugares comuns, de uma determinada sociedade. A tópica de Viehweg “é uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica”. Uma característica desta retórica é o que se chama tópica de 2º grau, ou seja, os catálogos dos tópicos (topói) que ajudam e dão segurança no desenvolvimento da argumentação. 144 A Metodologia do Direito Como pensamento problemático, a tópica se opõe à idéia de sistema.21 Parece-nos que tanto a lógica do razoável, como a Nova Retórica e a Tópica são filhas do mesmo ventre e constituem teorias da argumentação, que se mostram como o estilo próprio de raciocinar sobre juízos de valor. Todas são lógicas do razoável e expressões do pensamento problemático, mas a lógica do razoável e a Nova Retórica se mostram mais genéricas em sua pretensão de se constituírem uma lógica material para resolver o problema da Justiça. 4. A valoração jurídica A concepção cultural do Direito e da Justiça parte de que a realidade jurídica é composta de uma experiência valorativa, não de valores etéreos, ahistóricos, irracionais ou racionais, mas de valores que se determinam na intersubjetividade , seja ela tomada como senso comum, tradição, entendimento societário, ou auditório universal ou contrato social, razão comunicativa ou simplesmente consenso. E esta intersubjetividade dos valores expressa-se na escolha de valores, que se cristalizam nos princípios jurídicos, os quais, como fontes do direito, são utilizados na construção das normas da convivência social. Os valores jurídicos e, consequentemente, os princípios deles decorrentes, antes de ter um caráter arbitrário, são construídos, conquistados intersubjetivamente, pela tradição, consenso ou entendimento societário. Cabe aos filósofos e juristas desvelar estes valores, e seus princípios jurídicos constituem elementos do sistema jurídico. O equívoco em tratar valores com lógica formal levou à conclusão de sua arbitrariedade, culminando com 1) a sua depuração do direito ao 2) sua colocação num plano etéreo ou 3) sua estreiteza em pretensa racionalidade. Johnson Barbosa Nogueira 145 A lógica do razoável, que é também uma teoria argumentativa, a Nova Retórica é, em grau excepcional, a Tópica, apresentam-se como solução para compreendermos os valores e racionarmos com os princípios jurídicos. Como trabalhar com valores e seus princípios? Ou por outra: como se realiza a valoração jurídica? Sem valoração jurídica não logramos compreender o problema da Justiça ou da equidade (e mesmo da interpretação jurídica com sua babel metodológica e de concepções – escolas). Com razão, diz Perelman que todo sistema de justiça constitui apenas o desenvolvimento de um ou de vários valores, cujo caráter arbitrário é vinculado à própria natureza deles. Isso permite compreender porque não existe um único sistema de justiça, pois podem existir tantos quantos os valores (ou sistemas de valores) diferentes houver. E mais adiante arremata: É apenas quando há acordo dobre os valores desenvolvidos por um sistema normativo, que se pode procurar justificar a regras, que é possível eliminar tudo que favorece ou desfavorece arbitrariamente os membros de certa categoria essencial. Quando o acordo sobre os valores permite o desenvolvimento racional de um sistema normativo, a arbitrariedade consistirá na introdução de regras alheias ao sistema; essas regras poderão ser atacadas como injustas, porque arbitrárias e não fundamentadas.22 Desde os gregos, os filósofos do direito se põem diante do dilema: A justiça é um dentre os valores, ou é o valor síntese de todos os valores jurídicos? Qualquer que seja a resposta, não se elimina a idéia de que há um sistema de valores jurídicos que envolve valores diversos e mesmo discordantes. A justiça ou é este valor-síntese, ou é um dentre outros valores. Diz Perelman que, em sua obra, Platão escolheu a primeira alternativa, enquanto Aristóteles demonstrou nítida preferência pela segunda.23 Entretanto, não se consegue dar um conteúdo material à Justiça, senão com o cruzamento e ponderação de vários valores, 146 A Metodologia do Direito notadamente as várias espécies de igualdade, proporcionalidade, verdade, equidade, segurança, ordem, etc. O problema da Justiça tende a colocar a Justiça como valorsíntese do sistema jurídico. A depender do caso, ressaltam-se valores diversos na construção da regra justa ou da decisão justa. Na América Latina, Carlos Cossio24 empreendeu a construção de uma axiologia jurídica que tem a Justiça como valor-síntese, formando um plexo de valores jurídicos, onde se alternam valores de autonomia e de heteronomia, em que os valores são distribuídos em três grupos: 1º) A coexistência enquanto circunstância (mundo): Ordem e Segurança 2º) A coexistência enquanto pessoas: Poder e Paz 3º) A coexistência enquanto sociedade: Cooperação e Solidariedade Em cada grupo, há os valores da autonomia (que convertem seus signos axiológicos por decréscimo mas não pro crescimento), e da heteronomia (que convertem seus signos axiológicos por crescimento e por decréscimo). Os valores da autonomia têm no seu decréscimo sua negação: Segurança!Insegurança Paz!Discórdia Solidariedade!Estranheidade Já os valores da heteronomia têm sua negação tanto no decréscimo, quanto no acréscimo: Desordem!Ordem!Ritualismo Impotência!Poder!Opressão Minoração!Cooperação!Massificação. Definidos e selecionados os valores jurídicos do sistema, a valoração jurídica já começa na escolha dos valores que melhor vivenciarão a justiça do caso e na sua concretização dentre as regras do sistema ou mesmo excepcionalmente, fora do sistema, Johnson Barbosa Nogueira 147 por meio da equidade. A concretização dos princípios jurídicos é operação indispensável da valoração jurídica; seu instrumento, sua regra e compasso, é a lógica do razoável, a lógica argumentativa. A valoração jurídica é o exercício dialético, mediante uma lógica argumentativa, que visa construir a fundamentação jurídica da decisão, por meio principalmente de princípios, que, embora dispensem justificação, são passíveis de uma harmonização por meio da lógica do razoável. A Justiça é o valor-síntese do sistema jurídico, mas o valor primordial, o valor-fonte, é a dignidade da pessoa humana. Este é o valor referencial das ideologias, para a realização do bem individual e do bem, comum, isto é, da Justiça. O valor da pessoa humana é “qualificado como “valor-fonte”, ou seja, aquele do qual emerge todos os valores, os quais somente não perdem sua força imperativa e sua eficácia enquanto não se desligam da raiz de que promanam.25 5. Metodismo ou ametodismo? À guisa de conclusão, fica claro que a metódica jurídica atual está conscientizada de que a lógica formal não é o instrumento adequado para tratar da realidade valorativa do direito, devendo buscar uma lógica própria para raciocinar com valores e princípios jurídicos. Três caminhos se esboçaram para resolver esta questão: 1) a utilização de teorias argumentativas, como a Tópica e outras retóricas, como a Nova Retórica de Perelman; 2) o desenvolvimento de uma lógica própria dos valores, como a Lógica do Razoável de Recaséns Siches; e 3) a utilização de sobreprincípios, como o princípio da razoabilidade, da proporcionalidade e devido processo legal formal e substancial, para o balanceamento de valores e de bens na tarefa hermenêutica. Este desafio de resolver a questão de como trabalhar com valores não deve desaguar numa proposta de ametodismo, com 148 A Metodologia do Direito verniz gadameriano ou pós-modernista, mas na construção de uma metódica pós-positivista, axiológica e pluralista, tal como se desenha nas propostas da Hermenêutica Constitucional. A utilização do pensamento problemático não significa a repulsa ao pensamento dogmático ou sistêmico. A metodologia do direito não pode desprezar toda a herança e utilidade do pensamento sistemático, mas apenas dosá-lo de pensamento problemático, quando se faz necessário o balanceamento de valores, bens e princípios jurídicos. Esta coexistência da zetética e da dogmática é o belo desafio por que passa a construção do método jurídico pós-positivista. 6. Referências ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos.Tradução de Mário da Gama Cury. 3ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1944. BARROS, Suzane de Toledo. 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Johnson Barbosa Nogueira 149 HÖFFE, Otfried. Justiça Política. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2001 KELSEN, Hans. A Justiça e direito natural. Tradução Baptista Machado. 2ª edição. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1970. ___________ A teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 3ª edição: Armênio Amado Editor, 1974. ___________A ilusão da justiça. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Martins Fontes, 1995. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1980. MURICY, Marília. Racionalidade do direito, justiça e interpretação. Diálogo entre a teoria pura e a concepção do direito como sistema autocrítico. In Hermenêutica Plural. Org. Carlos Edmundo Abreu Bouclont e José Rodrigues. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ___________e O LB R ECHTS-TYTE LA, Lucie. 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São Paulo: Martins Fontes, 2005, ps. 119 e 120. 10 A Justiça e o Direito Natural, ps. 1 e 2. 11 Op. cit., p. 326. 12 Op. cit., p. 327. 13 Op. cit., p. 331. 14 Cons. Marília Muricy. Ob. cit., p. 120. 15 Uma Teoria da Justiça, p. 13. 16 Idem, ibidem, p. 64. 17 Idem, ibidem, ps. 333 e 334. 18 RAWLS, John. Justiça e Democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000, ps. 207 e 208. 19 Introduccion al Estudio del Derecho. 4ª edição. México: Editorial Porrûa S.A., 1977, ps. 258 a 262. Johnson Barbosa Nogueira 151 20 Esta teoria foi publicada no Brasil com o título de “Tratado da Argumentação: A Nova Retórica”, em 1996 pela Editora Martins Fontes. 21 Conf. VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 22 Op. cit., ps. 59 e 60. 23 Op. cit., p.247. 24 La Teoria Egológica del Derecho y el Concepto Jurídico de Liberdad. 2ª edição. Buenos Aires:Abeledo-Perrot, 1964, p. 613. 25 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e Conflito das Ideologias. 3ª ed. Rev. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 100. 152 A Metodologia do Direito DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA EM FACE DO ART.232 DO CÓDIGO CIVIL E SUA DEFESA PELA CRIAÇÃO DE UM HABEAS GENOMA Mônica Aguiar1 1 Mestre em Direito Econômico pela UFBa. Doutora em Direito Civil pela PUC/SP. Professora de Direito Civil e Bioética dos Programas de Graduação e Pós-graduação da UFBa. Professora de Direito Civil da Escola de Magistratura da Bahia e da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Juíza Federal. Autora. Palestrante. Sumário: 1. Introdução. 2. Direito à intimidade genética. 3. Proteção processual da intimidade genética: o habeas genoma. 4. Limites ao exercício do direito à intimidade genética. 5.Conclusão. 6. Bibliografia. 1. Introdução É adequado afirmar, em consonância com os adeptos da corrente historicista, que os direitos não surgem todos ao mesmo tempo. Ao revés, nascem à medida que se torna necessário proteger-se determinado bem jurídico. Assim ocorre, em especial, com os direitos da personalidade quando adotada a teoria tipificadora, pela qual pode ser fracionado esse instituto jurídico em vários direitos de acordo com os variados atributos decorrentes da personalidade. O direito à intimidade genética não foge a esse esquema. Com efeito. Somente a partir do momento em que James Watson e Francis Crick identificaram, em 1953, a estrutura moleculardo ácido desoxirribonucléico (DNA) é que foi colocada a possibilidade de invasão das informações do genoma pessoal de cada indivíduo e surgiu, destarte, a necessidade de proteger-se, como bem jurídico essas informações. 153 Inicialmente, sem sequer adotar-se a denominação de intimidade genética, já se garantia o sigilo aos dados genótipos das pessoas. Tome-se como exemplo a decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal em 1994 no Habeas Corpus 71373-4/RS. O voto vencedor, proferido pelo Ministro Marco Aurélio de Melo, e aqueles exarados pelos ministros que seguiram a divergência, em nenhum momento fundamentam o direito a não condução sob vara para realização do chamado exame de DNA no direito à intimidade genética, mas, sim, na dignidade humana ou no direito à intangibilidade do corpo humano, quando, em verdade, a violação pode ocorrer mesmo que não seja extraído material do corpo humano, mas utilizado algum já descartado pela pessoa, como se verá nos exemplos citados a seguir. Urge, entretanto, esquadrinhar-se, adequadamente, a existência de um tal direito, apartado do direito à intimidade, reconhecido expressamente pelo ordenamento positivo no art. 5º, X da Constituição Federal, para, então, examinar a freqüente colisão entre ele e o direito à identidade pessoal daqueles que pretendem, judicialmente, ver reconhecido vínculo de filiação não assumido voluntariamente. 2. Direito à intimidade genética O que vem a ser um tal direito e qual o conteúdo jurídico que se lhe pode atribuir são questões respondidas ainda de forma incipiente pela doutrina brasileira. Convém anotar, do direito espanhol, a corrente engendrada por Carlos Ruiz Miguel2 para quem o direito à intimidade genética deve ser visto sob tríplice aspecto: subjetivo, objetivo e axiológico. No primeiro, poderia o titular exigir do Estado lhe fosse assegurado o direito de não ter seus dados genéticos acessados por ninguém a não ser quando expressamente consentido; no segundo, deve ser disponibilizado procedimento processual adequado para essa 154 Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil... defesa, o que poderia ser conseguido através de um Habeas Genoma; no terceiro, do fato de que o genoma humano é algo que nos define como pertencentes à espécie humana, decorre uma dimensão valorativa de natureza cientifica. Impõe-se, assim, responder às indagações postas anteriormente. De inicio, convém anotar, que o direito á intimidade previsto no nosso ordenamento positivo não é idêntico àquele aqui estudado. A intimidade, assim sem adjetivos, refere-se ao direito de manter, apartado do conhecimento alheio, a nudez, a saúde, as convicções religiosas, a orientação sexual da pessoa. Não se coaduna, pois, com o conteúdo do direito à intimidade genética que se refere, exclusivamente, ao genoma de cada um. É ele o direito de consentir o acesso à informação genética do titular. Constitui, no aspecto objetivo, o genoma humano e, obliquamente, qualquer tecido ou parte do corpo humano a partir do qual essa informação possa ser obtida. Dessa assertiva decorre que, mesmo quando autorizada pela pessoa uma intervenção corporal, não é licito o acesso aos dados genótipos sem expressa autorização para esse fim. 3. Proteção processual da intimidade genética: o habeas genoma Outrossim, há que ressaltar que a informação genética é única, singular, haja vista que todo individuo é geneticamente irrepetível. Os dados genótipos são inalteráveis. A necessidade de proteção desses dados encontra-se reconhecida, expressamente, na Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, a qual, em seu art.12 determina: “Quando são recolhidos dados genéticos humanos ou dados proteómicos humanos para fins de medicina legal ou de processos civis ou penais ou outras ações legais, incluindo testes de paternidade, a colheita de amostras biológicas in vivo Mônica Aguiar 155 ou post mortem só deverá ter lugar nas condições previstas pelo direito interno, em conformidade com o direito internacional relativo aos direitos humanos.” A proteção desse direito há de ser garantida pela construção de um instrumento processual próprio intitulado Habeas Genoma que deve ser preferencialmente preventivo para assegurar que não ocorra o acesso ilícito aos dados pessoais do genoma humano. 4. Limites ao exercício do direito à intimidade genética Conforme assinalado, anteriormente, a intimidade genética é direito reconhecido expressamente em documentos internacionais. Em nosso sistema positivo, acha-se acobertado pelo comando do §2º do art.5º da Constituição Federal, segundo o qual, ainda quando não expressamente garantidos, podem outros direitos ser assegurados com escopo em princípios, sejam implícitos ou explícitos do ordenamento jurídico. No caso em apreço, é importante anotar que o art.5º, inciso “c” da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos expressa que se deva respeitar o direito de toda pessoa a decidir que se lhe informe ou não os resultados de um exame genético e suas conseqüências. O acesso de terceiros a esses dados constitui inequívoca violação a um direito personalíssimo, podendo afetar a vida privada do titular. Sendo assim, deve esse direito ser preservado. Buscou-se a solução mediante a utilização de Habeas Corpus para garantir a liberdade do individuo de ir e vir, e, destarte, não ser conduzido debaixo de vara, solução instrumental esta aceita pelo Supremo Tribunal Federal no caso paradigmático tratado no mencionado Habeas Corpus 71.373-4/RS. A solução mais 156 Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil... adequada, não obstante, resultaria na criação de um novo instrumento jurídico como adiantado. Nenhum direito é, entretanto, absoluto. Tal ocorre, também, com o direito à intimidade genética que pode vir a ceder espaço quando, em cotejo com outro, de igual natureza, tiver que ser afastado no exame do caso concreto. Tome-se, como exemplo, o direito à identidade pessoal, no qual acha-se incluído o direito de conhecer a ancestralidade. Essa figura jurídica, resguardada, expressamente, pela Constituição Portuguesa em seu art.26, traz como característica a possibilidade de alcançar-se o conhecimento real da descendência da pessoa. Seria então, possível, havendo colisão entre eles, decidirse favoravelmente ao segundo. Ocorre que o direito positivo brasileiro não alberga a possibilidade de condução debaixo de Vara para fins de realização de exame genético, em face do teor do art. 232 do Código Civil em comento. E, nesse ponto, atendido o requisito do art.12 da DUGDH, não se deve decidir contra legem. De qualquer sorte, ainda com a existência de norma legal expressa e de entendimento jurisprudencial consubstanciado na súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça3 da qual não discrepa a decisão antes referida do Supremo Tribunal Federal, seria possível extrair-se entendimento diverso, nos casos em que houvesse risco coletivo a ser considerado ou necessidade de garantir-se imposição ou cumprimento de sanção penal. Essas exceções não se coadunam com o choque aparente entre o direito da pessoa nascida de conhecer sua ancestralidade e o direito à intimidade genética de seu suposto ancestral. É que, embora na ação de investigação de paternidade não esteja em jogo apenas direitos patrimoniais, o certo é que a verdade real que se busca está lastreada em uma presunção comum do investigante de quem seja seu pai, no caso a pessoa que apontou Mônica Aguiar 157 como réu na ação. Se a tal convicção própria do autor vem a se juntar, por sua vez, a declaração judicial reconhecendo a presunção, em decorrência de omissão da parte contrária, não pode o autor, legitimamente, considerar que a verdade não esteja estabelecida.4 São idênticas as hipóteses ocorridas de fato nos seguintes casos: a) exame feito a partir de secreção nasal contida em lenço de papel descartado pelo investigado, para corroborar desconfiança de determinado jornal de que o filho mais novo do Príncipe Charles, da Inglaterra, era fruto de uma relação extraconjugal; b) utilização de bagas de cigarro deixadas em um cinzeiro em delegacia de polícia por vítima de suposto crime de rapto para comprovação de que a investigada não era filha da acusada. Em ambas as hipóteses, houve violação ao direito à intimidade genética. No primeiro caso, havia mera curiosidade em comprovar-se, contra a vontade da pessoa, sua ancestralidade. No segundo, violase esse direito para comprovar-se a existência de um crime, cuja punibilidade já se encontrava extinta pela prescrição. Deveria seguir, pois, íntegro o direito à intimidade genética, por não ser a hipótese de colisão em que devesse ele ser afastado. O que se perquire, destarte, no entendimento sobre a matéria e que ganha relevância é saber se o que deve preponderar na investigação de paternidade é o direito da pessoa de conhecer sua real identidade, e não apenas a presumida, ou se o do suposto pai à intimidade genética. A perspectiva, pois, que se coloca não é simplesmente de afastar o direito à intangibilidade física do investigado como disputam os julgadores e doutrinadores em tema discutido de forma ainda incipiente, pois, conforme alinhado acima, não é somente esse o direito que deve ser respeitado - apesar de, no campo da prova, se deva ter em mente o comando legal antes referido - mas o 158 Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil... direito mais amplo de intimidade genética, ou seja, ainda com relação ao material que já foi descartado tem seu titular o poder de obstar a realização do exame. Assim, se mesmo com material já descartado ele pode dissentir da prova, ainda mais poderá no caso em que a prova que pretendem dependa da coleta direta sobre seu próprio corpo do material necessário à pesquisa. Destarte, seria o mesmo que dizer que, se o réu reconhece no curso da ação, independentemente da realização do exame que não pretende fazer, a paternidade, ainda assim o autor não se satisfaz e exige que o suposto pai faça o exame para ter a certeza do vínculo. Ora, em tempo de consagração ampla na doutrina da chamada filiação sócio-afetiva é, no mínimo, um contra senso, que tal se exiga. E nem se diga que o interesse aí é diverso, pois, a perfilhação pode ocorrer mesmo que o réu não seja o genitor. 5. Conclusão Não é direito ao próprio corpo ou à intangibilidade física o que se pretende resguardar com a presunção tratada no art.232 do Código Civil quando necessária a realização de prova pericial especifica para confirmar-se o vinculo de filiação entre autor e réu. A hipótese é de direito à intimidade genética, o qual compreende o direito de manter intacto os dados genéticos da pessoa. Como todo direito subjetivo não é ele absoluto, pois, pode ceder lugar a outro ou outros quando cotejado, no caso concreto, com direito de idêntica natureza ou que tenha interesse coletivo a ser resguardado. O direito à identidade pessoal tem a mesma natureza do direito à intimidade genética, mas não é violado quando a ancestralidade é tomada por via presuntiva, pois, se a presunção é desfavorável ao titular da intimidade genética que não autoriza seja desvendada, não se pode esquecer que será ela tomada contra o réu que teria, Mônica Aguiar 159 então, todo o interesse em realizar a prova para se desfazer do ônus não querido e cuja única possibilidade então de afastar seria pela perícia que não permitiu. 6. Bibliografia MIGUEL, Carlos Ruiz. Los datos sobre características genéticas: Libertad, Intimidad y No discriminación. In Genética y derecho. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2001. 7. Notas 2 MIGUEL, Carlos Ruiz. Los datos sobre características genéticas: libertad, intimidad y no discriminación. In Genética y derecho. A.A.V.V. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2001. p. 31 3 Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade. 4 160 Voto do Ministro Octavio Gallotti exarado no HC 713734/RS. Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil... DIREITO DO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO Murilo Carvalho Sampaio Oliveira Advogado, especialista em Direito do Trabalho, Mestre em Direito Privado pela UFBA e doutorando pela UFPR, Professor da Faculdade de Ruy Barbosa. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho – IBDT e da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais – AATR-BA. [email protected]. Sumário: 1. Introdução. 2. Gênese. 3. Ontologia Trabalhista. 4. A crise do Direito do Trabalho. 5. Reafirmando o Princípio da Proteção. 6. Proteção versus Regulação. 7. Referências Resumo: Objetiva discutir quais as perspectivas emancipatórias para o juslaboralismo no cenário de crise do emprego, flexibilização, terceirização e precarização. Inicia contextualizando o cenário de crise no Direito do Trabalho para revisitar sua gênese, em busca de extrair sua ontologia emancipatória que é definida pelo seu caráter protetivo. Desenvolve dialeticamente a relação entre a proteção legal e emancipação, para a identificação de novas propostas emancipatórias para o Direito do Trabalho. 1. Introdução Dizia Lacordaire “entre o forte e o fraco, entre o pobre e o rico, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta.”(apud SUSSEKIND, 1981, p. 32). Esta frase, muito conhecida na seara do juslaboralismo, sinaliza um viés emancipatório articulado sobre a proteção legalestatal. Indaga-se, então, o Direito do Trabalho e o seu caráter tutelar ao tempo que prega uma proteção-emancipação não termina por praticar uma dominação reguladora de uma efetiva emancipação? Este ensaio objetiva percorrer esta indagação sem qualquer pretensão de resposta definitiva ou acabada. Pretende, em verdade, pontuar idéias e balizas que podem ajudar no caminho para a resposta. Por dever acadêmico, cumpre, desde já, desvelar a précompreensão que envolve o ensaio, inclusive para publicizar os 161 pré-juízos a fim de se evitar arbitrariedades (GADAMER, 2005). O olhar que construiu as idéias analisadas foi o olhar dialético materialista que considera a realidade em constante transformação e contraditória em si. Para a dialética, o conhecimento e a atividade humana estão inseridos num processo de totalização (MARX, 1996), que nunca alcança uma etapa definitiva, perfeita e acabada, estando em constante transformação. Talvez só a dialética possa assumir a dicotomia (contradição) emancipação-regulação inerente ao Direito do Trabalho. O caminho seguido pelo ensaio perpassa a gênese do Direito Laboral com o fito de identificar a sua ontologia. Adiante, analisarse-á o contexto contemporâneo, em síntese apertada, para entender a crise do Direito do Trabalho. No cenário de crise, tratou-se de reafirmar uma posição protecionista. Ao final, cuidou dos pontos contraditórios do juslaboralismo e suas vertentes de regulação/ conservação e emancipação, anotando algumas direções. 2. Gênese No estudo da gênese da disciplina laboral, acolhe-se a premissa de Mário De La Cueva, que vincula intrínseca e inseparavelmente o Direito do Trabalho à dignidade humana. A história do Direito do Trabalho é um dos episódios na luta do homem pela liberdade, pela dignidade pessoal e social e pela conquista de um mínimo bem-estar, que, ao mesmo tempo dignifique a vida da pessoa humana, facilite e fomente o desenvolvimento da razão e da consciência. (DE LA CUEVA, 1969, p. 21) O modo de produção capitalista difere substancialmente das demais e anteriores formas de organização da produção, pois nele há separação entre aqueles que detêm os meios de produção dos outros que, somente tendo sua força de trabalho, sujeitam-se a vendê-la em troca de remuneração, a qual é muito aquém em relação 162 Direito do trabalho e emancipação à riqueza produzida pelo trabalho humano. Tem-se a divisão social do trabalho e a alienação. (MARX, 1978, p. 24) A doutrina juslaboralista vincula essencialmente o surgimento do Direito do Trabalho ao movimento cunhado pela história como Revolução Industrial, iniciado pelo advento da máquina a vapor. Nesta linha, temos Orlando Gomes e Élson Gottschalk (2005), Rodrigues Pinto (2005), entre outros. Martins Catharino destoa ao afirmar que a origem do Direito do Trabalho não se limita à Revolução Industrial, mas à conjunção desta com o fenômeno chamado de questão social (hipossuficiência e consciência de classe). Poder-se-ia associar o surgimento deste ramo jurídico com a conjugação de três elementos: Revolução Industrial; Liberalismo; Consciência de Classe. A Revolução Industrial implicou estruturais mudanças na forma de organizar a produção, engendrando uma categoria de trabalhadores que venderiam sua força de trabalho. A filosofia liberalista incentivava a total liberdade nas relações privadas, sem qualquer intervenção estatal. Nas relações de trabalho, a autonomia da vontade acarretou contratos leoninos e atentatórios à dignidade do trabalhador, posto que este – tendo no trabalho seu meio de sobrevivência – não estaria em condições de negociar os termos do contrato de trabalho, relegando ao empregador a definição do seu conteúdo. Isto foi denominado por Alfredo Palacios como Liberdade Liberticida. (SUSSEKIND, 2004, p.15). Frente a essa situação, a concentração das massas de trabalhadores produziu, pela similitude das condições de vida, uma consciência coletiva, uma consciência de classe. As péssimas condições de trabalho conclamavam os trabalhadores à luta, eis que nada tinham a perder perante a dificuldade que viviam. “O Direito do Trabalho é obra desses homens que se perderam, por já não terem o que perder” (VIANA, 2004, p. 261). Então, a partir da organização coletiva, a luta reivindicatória consorciada com a Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 163 utilização do máximo instrumento de pressão dos trabalhadores – a greve – ocasionou um processo de conquistas, normativizações no plano coletivo. Posteriormente, a influência da Igreja Católica simbolizada na encíclica Rerum Novarum, aliada a concepções humanistas, ensejaram o sentimento da questão social, estabelecendo o esteio para a atuação legislativa do Estado, mediante intervenção nas relações de trabalho com regulamentações protetivas dos hipossuficientes. Não obstante o Direito Laboral ter surgido como conquista da ação organizada dos trabalhadores na Europa, suas características no Brasil são bastante distintas, uma vez que, no sistema brasileiro, a iniciativa estatal predominou, configurando um modelo de normatização autoritário corporativo (GODINHO, 2004, p. 120). Todavia, deve-se lembrar que o seu início foi demarcado por uma incipiente organização sindical, sob inspiração da ideologia anarquista proveniente da formação política dos imigrantes europeus que compunham parte considerável dos trabalhadores no Brasil. Logo, a afirmação de que o Direito do Trabalho no Brasil representou uma dádiva da lei não pode ser propalada, uma vez que não se coaduna, de forma fidedigna, com a história. Já se disse não sem certa razão, que nosso Direito do Trabalho tem sido uma dádiva da lei, uma criação de cima para baixo, em sentido vertical. Em muitos casos tem sido assim realmente. Todavia, não se deve olvidar que em outros, mesmo antes da Revolução de 1930, o nosso incipiente Direito do Trabalho conheceu sua fase de auto-afirmação, numa inequívoca demonstração histórica de uma consciência de classe, que já se delineava, desde o início deste século. Ainda aqui temos a confirmação histórica da prioridade cronológica do direito coletivo sobre o individual do trabalho. (G OM E S e GOTTSCHALK, 2005, p. 6). A era Vargas implementa, nas relações de trabalho, uma nova política, intrinsecamente intervencionista e protetiva, assegurando, 164 Direito do trabalho e emancipação inquestionavelmente, uma série importante de direitos e vantagens, nas relações de emprego, aos trabalhadores individualmente considerados. Em contrapartida, implementou uma estratégia de atrelamento da organização coletiva dos trabalhadores ao Estado, importando sua cooptação e dominação, ao controlar da criação até a extinção dos sindicatos, ao definir seus objetivos, administração, receitas e eleições. A época, o controle estatal era tão intenso ao ponto da doutrina trabalhista imputar ao sindicato uma nova natureza jurídica: ente de Direito Público, eis que inserto no modelo corporativista autoritário. Infere-se que o trabalhismo de Vargas inicialmente garantiu aos trabalhadores uma proteção trabalhista inimaginável para a época, considerando a capacidade de organização e conquista do movimento sindical. No entanto, seu preço foi indubitavelmente alto, posto que causou a aniquilação do potencial emancipatório da ação coletiva dos trabalhadores, produzindo o chamado “sindicalismo pelego”. 3. Ontologia Trabalhista Desta breve gênese, pode-se extrair que o Direito do Trabalho, em termos gerais, representa o regramento das relações de trabalho entre partes desiguais, com a finalidade de atenuar ou diminuir esta hipossuficiência, mediante um sistema jurídico protetivo. A condição de inferioridade frente ao empregador foi delineada classicamente por Cesarino Junior, quando caracterizou de hipossuficentes aquelas pessoas não-proprietárias, que dependem da sua força de trabalho para lograr sua sobrevivência e de sua família: Aos não proprietários, que só possuem sua força de trabalho, denominamos hipossuficentes. Aos proprietários de capitais, imóveis, mercadorias, maquinaria, terras, chamamos de hipersuficientes. Os hipossuficientes estão, em relação aos auto- Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 165 suficientes, numa situação de hipossuficiência absoluta, pois dependem, para viver e fazer viver sua família, do produto do seu trabalho. Ora, quem lhes oferece oportunidade de trabalho são justamente os auto-suficientes [...]. (JUNIOR, 1980, p. 44-45). Sua ontos reside na situação fática que a prestação de trabalho é indissociável da condição humana, ensejando uma feição que é, no mínimo, pessoal (trabalho autônomo) e, no máximo, personalíssima (trabalho subordinado). A natureza personalíssima da relação de trabalho subordinado decorre do fato da impossibilidade de separação entre o trabalho e a pessoa do trabalhador, ou mesmo sua confusão. Neste sentido, a regulação das relações de trabalho não se deve orientar por cânones civilistas, atinentes ao direito das coisas (res), uma vez que se está regulando diretamente a própria condição humana. Esta circunstância – impossibilidade da separação entre o trabalhador e o trabalho por ele prestado – engendra uma singularidade no Direito Laboral. “A especial singularidade do trabalho como objeto de uma relação jurídica consiste em que, não confundindo-se (sic) com a pessoa que o executa, é no entanto algo pessoal e íntimo, uma emanação, por assim dizer, da personalidade do trabalhador”. (OLEA, 1969, p. 142) Ensinam Orlando Gomes e Élson Gottschalk que o Direito do Trabalho lida diretamente com a condição humana, manifestada na prestação do labor, pois no “contrato de trabalho apanha a própria pessoa, envolvendo-a na sua essência humana. (GOMES e GOTTSCHALK, 2005, p. 12). Deparando-se, como fora observado na gênese, com situações de excessiva exploração do trabalho humano e diretamente do próprio homem, a ontologia juslaboral foi criada almejando rejeitar a exploração do homem pelo homem, seja por sua atenuação (reformismo cristão), limitação (socialismo útopico) ou mesmo a supressão (comunismo). Independentemente dos graus de 166 Direito do trabalho e emancipação tolerância da exploração, resta clarividente o compromisso ontológico do Direito do Trabalho em questionar a desigualdade entre o patrão (tomador dos serviços) e o trabalhador (prestador dos serviços), ou melhor, em contestar a hipossuficiência nas relações laborais. A desigualdade apontada é a motivadora para o caráter protetivo, segundo Pinho Pedreira: O motivo dessa proteção é a inferioridade do contratante amparado em face do outro, cuja superioridade lhe permite, ou a um organismo que lhe represente, impor unilateralmente as cláusulas do contrato, que o primeiro não tem a possibilidade de discutir, cabendo-lhe aceitá-las ou recusá-las em bloco. (SILVA, 1999, p. 22). É a hipossuficiência que clama por proteção ao trabalhador perante o poderio econômico do seu empregador. Destarte, o fundamento de proteção ao trabalho é a própria proteção à pessoa humana e sua dignidade, posto que não há como se separar o trabalho de seu prestador. “Sendo impossível separar o trabalho das pessoas, concretamente considerada, a disciplina inspira-se num personalismo real, humanista e socializante.”(CATHARINO, 1982, p. 32) Assim, as relações de trabalho prestadas a outrem têm como pressuposto, em regra, uma disparidade. Perante a necessidade de sobrevivência, o obreiro não pode livremente estipular as condições contratuais com o tomador de serviços, carece ele, de forma imprescindível, do trabalho. Na lei da oferta e da procura definida ao sabor do mercado, o trabalhador – que não detém os meios de produção, termina por aceitar a subordinação e, especialmente em um contexto de alto desemprego, acolhe o ajuste das condições de trabalho e de remuneração pelo tomador dos serviços, de maneira quase que unilateral. “Se fosse realmente livre para vender (ou não) a sua liberdade, o trabalhador a manteria – inviabilizando o sistema. Desse modo, para que o sistema se perpetue, é preciso não só que haja liberdade formal para contratar, mas que falte liberdade real para não contratar.” (VIANA, 2004, p. 260). Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 167 Na ontologia trabalhista, há o reconhecimento da organização coletiva dos trabalhadores e, principalmente, o reconhecimento dos efeitos ultra-contratuais ou normativos das Convenções Coletivas de Trabalho, delineando uma ruptura com o monismo jurídico e firmando o pluralismo jurídico (WOLKMER, 1999) nas relações de trabalho. Reconhecer uma normatividade advinda dos próprios destinatários (trabalhadores e empresários) representou um processo de abertura do Direito Moderno, impregnado por maior legitimidade e dissonante do tradicional monopólio do Direito pelo aparelho estatal. Saliente-se que os efeitos normativos consectários deste pluralismo jurídico descuram amplos debates acerca da natureza e efeitos da Convenção Coletiva de Trabalho, notadamente pelo seu caráter especial e controverso, bem situado na conhecida expressão de Francesco Carnelutti: “Corpo de contrato, alma de Lei” (apud NASCIMENTO, 2004, p. 1112). Depreende-se, deste modo, que o Direito do Trabalho surgiu como medida de justiça social – insuflado pelos reclames dos movimentos dos trabalhadores, ideologias socialistas e com valores acolhidos pela classe média, intelectuais e Igreja – para as relações de trabalho que se baseavam em excessiva exploração dos trabalhadores. Essa medida de justiça social se confirma pela mitigação do pilar civilista da autonomia privada, através da cogência e imperatividade de uma legislação intervencionista que estipula um rol mínimo de direitos irrenunciáveis. “O Direito do Trabalho surge como conseqüência de uma desigualdade: a decorrente da inferioridade econômica do trabalhador. Essa é a origem da questão social e do Direito do Trabalho.” (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 66). O Direito do Trabalho surge, então, por uma série de rupturas. A ruptura com a liberdade formal e sua conseqüente autonomia privada. A ruptura com a igualdade praticada após a Revolução Francesa – a igualdade formal, em prol de outra real e efetiva, 168 Direito do trabalho e emancipação hodiernamente definida como igualdade material. A ruptura com o individualismo, este que caracterizou o direito moderno como sendo o pilar central do Direito Privado, ao afirmar a coletividade dos interesses e sua força social. A ruptura com o monismo jurídico, recém fortalecido com o apogeu dos Estados Modernos, a partir do reconhecimento da normatividade advinda das Convenções Coletivas, imputando um pluralismo jurídico nas relações de trabalho. A ruptura com a interpretação clássica do Direito, ao desconsiderar as costumeiras regras de interpretação, em favor da identificação da norma mais favorável, em atenção ao seu compromisso com a proteção do hiposuficiente. A ontologia trabalhista é intrinsecamente protetiva, eis que só houve razão de ser para esta nova disciplina jurídica, porque a antiga regulação civilista não mais correspondia ao interesses dos atores sociais. O surgimento do Direito Laboral decorre da necessidade de proteção aos hipossuficientes, sendo esta proteção o caractere essencial desta ciência jurídica e, portanto, indispensável. Conclusivamente, a ontologia trabalhista pode ser sintetizada nas palavras de Martins Catharino: Nascido e desenvolvido para compensar a desigualdade econômica, mediante desigual e proporcional tratamento jurídico, o Direito do Trabalho protege os economicamente débeis. os “hipossuficientes”, na expressão feliz de A. F. Cesarino Junior. (CATHARINO, 1982, p. 152) 4. A crise do Direito do Trabalho Situada a gênese e a ontologia, trata-se, agora, de entender o atual cenário do Direito do Trabalho, que tem sido demarcado pela idéia de crise. A compreensão da crise do Direito do Trabalho, em sua integralidade, imprescinde da analise da conjuntura econômica e social que o envolve. Nesse sentido, a série de crises Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 169 da sociedade contemporânea enseja desdobramentos nas instituições basilares, como o Estado, a Ciência e o Direito. Conseqüentemente, a crise do Direito do Trabalho estará concatenada com a crise que assola a sociedade, posto que, sendo o Direito uma Ciência Social Aplicada, refletirá as conseqüências das crises do Estado, da Ciência e do Trabalho. A globalização, norteada pelo neoliberalismo, ao promover as integrações das economias mundiais, também impõe uma redução na atuação estatal. Em verdade, estabelece como diretriz um Estado-Mínimo em contraposição ao Estado-Providência. A autonomia privada ressurge com força, criticando a intervenção estatal que, segundo este pensamento, tem propiciado obstáculos para o crescimento econômico. Este contraste entre um Estado, ainda interventor, mas que sofre reduções, limitações e privatizações provoca uma crise particular do Estado. Em concomitância, os estudos científicos mais profundos têm demonstrado a própria crise da ciência, especialmente porque tem apontado seus limites. A epistemologia pós-moderna desconstrói os mitos científicos da modernidade, quais sejam: o cientificismo e a neutralidade. Vislumbra-se, portanto, uma crise nos paradigmas científicos, que caminham na direção de relativizações, na compreensão de que todo conhecimento é provisório, inconcluso e inacabado, ou seja, de que não existem verdades absolutas e tampouco a ciência, ou melhor, que a racionalidade científica não possui o monopólio na produção de verdades. Tem-se a crise na Ciência, que também repercute no Direito. Em paralelo com as crises anteriores, a análise dos dados do mercado de trabalho comprova o declínio do emprego. No Brasil, em 2002, havia 27 milhões de trabalhadores empregados (com anotação na CTPS) numa população economicamente ativa de 76,5 milhões de trabalhadores; isto significa que somente 1/3 dos trabalhadores do país estavam protegidos pela tutela trabalhista. 170 Direito do trabalho e emancipação Na Região Metropolitana de Salvador, não há muita diferença, pois tem-se atualmente uma taxa de desemprego de 29,7% da população economicamente ativa, ou seja, de 1,662 milhão de pessoas, 496 mil estão sem emprego. Verifica-se que a organização da economia global incorre em uma profunda reestruturação produtiva. Segundo Ricardo Antunes (2003, p.182), o modelo de produção fordista é subjugado pelo toytotismo, este fundado na descentralização e terceirização do sistema produtivo, acarretando em uma drástica redução do proletariado fabril estável, na desqualificação conjugada, contraditoriamente, com a especialização, precarização e/ou subcontratação do trabalho (ANTUNES, 2003, p. 184). Não se pode olvidar, ainda, que a “crescente transformação da ciência em força produtiva” (SANTOS, 1999, p. 200) tem resultado no fenômeno do desemprego estrutural, a exemplo dos postos de trabalhos sucumbidos pela automação, informática e robótica. Nesse sentido, as novas modalidades de trabalho têm sido utilizadas dentro da estratégia geral pós-fordista de extenalização. O fenômeno da externalização ou out-sourcing representa o intento do paradigma pós-fordista em evair-se das obrigações trabalhistas, a partir de novas formas de trabalho. A crise do emprego, então, não pode ser explicada unicamente pelos fenômenos econômicossociais supracitados. É assentada, também, na explícita pretensão flexibilizadora e desregulamentadora. Poder-se-ia argumentar que a crise do emprego justifica-se pela existência da proteção tutelar estatal nesta relação de trabalho, enquanto que nas outras prevalece a máxima liberalidade das partes. A reconfiguração do trabalho objetiva, além dos ganhos produtivos, a evasão da proteção peculiar do Direito do Trabalho. Perante a crise do emprego, o sistema protetivo trabalhista urge ser repensado, sob pena de não conseguir oferecer proteção ao trabalhador contemporâneo. Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 171 Tal realidade indica a reconfiguração do trabalho na sociedade. O processo econômico-social de reorganização das formas de trabalho é chamado de reestruturação produtiva. O crescimento e a criação de formas de trabalho sem proteção legal, tais como o trabalho informal, sub-emprego, trabalho (falsamente) cooperado e os trabalhadores pseudo-autônomos desvela a pretensão de fuga da relação de emprego. Dessa forma, a nova organização do trabalho está plenamente associada à crise do emprego, que pode ser chamada, de outra maneira, de crise do trabalho. O mundo do trabalho é atualmente caracterizado pela heterogeneização das formas de trabalho, particularmente com o decréscimo do trabalho classicamente assalariado, o emprego. Frise-se que a redução do emprego, em favor de relações precarizadas ou supostamente autônomas, importa em exclusão de um imenso contingente de trabalhadores do sistema protetivo trabalhista, social e previdenciário. Esse novo mundo do trabalho criou, conseqüentemente, uma classe trabalhadora, assim definida por Antunes: Essas mutações criaram, portanto, uma classe trabalhadora mais heterogênea, mais fragmentada e mais complexificada, dividida em trabalhadores qualificados e desqualificados do mercado formal e informal, jovens e velhos, homens e mulheres, estáveis e precários, imigrantes e nacionais, brancos e negros etc., sem falar nas divisões que decorrem da inserção diferenciada dos países e de seus trabalhadores na nova divisão internacional do trabalho. (2003, p. 184) Todas essas circunstâncias provocam reflexos importantes no Juslaboralismo, pois implicam redução da atuação legiferante do Estado, na redução de custos – redução de direitos e fragmentação da classe trabalhadora. De fato, o Direito do Trabalho termina sendo o direito de poucos trabalhadores. Pode-se até denominálo de Direito do Emprego ou, como já ensinava Martins Catharino 172 Direito do trabalho e emancipação (1979), “Contrato de Emprego”, inclusive porque o Direito Laboral foi construído a partir do emprego típico (ROMITA, 2000, p. 188). 5. Reafirmando o Princípio da Proteção Não obstante as mudanças advindas da transição pós-moderna e do pós-fordismo, as condições de vida do trabalhador continuam a ser demarcadas pela debilidade. A análise de três importantes elementos do mercado de trabalho comprovam a persistência da hipossuficiência. São o percentual de desempregados, o rendimento salarial e as novas formas de trabalho (ou trabalho informal). Sublinhe-se que o heterogêneo (diferente da relação de emprego) implica, do ponto de vista técnico trabalhista, na exclusão da proteção. A ontologia juslaboral não se esvai ante o mundo em transição pós-moderna e a fábrica pós-fordista. A condição do trabalhador, não mais do empregado, persiste no contexto da dependência ou hipossuficiência. Há que se vislumbrar de maneira indissociável o binômio hipossuficiência-dependência, que implica na defesa de um Direito do Trabalho de cunho protetivo enquanto seus destinatários perdurarem numa situação de desigualdade econômica. “Existirá, pois, a necessidade de proteção enquanto esta existir [inferioridade dos trabalhadores], mas deve ser evitada a superproteção, que pode produzir efeitos perversos.” (SILVA, 1999, p. 39). Cumpre, de igual modo, rechaçar alguns argumentos propalados como causadores da suposta crise do princípio da proteção. Trata-se de uma repetição (disfarçada) dos argumentos contrários ao surgimento do Direito do Trabalho e dos seus princípios. Contudo, ao invés de se invocar o argumento da liberdade das partes (superado pela idéia de hipossuficiência), o discurso (neo)liberal vale das idéias de competitividade e eficácia, como também repete-se as de leis do mercado, necessidade de baixar Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 173 custos, entre outras. O sentido implícito de movimento de liberalização ao retirar o teor protetivo do Direito Laboral é retomar uma regulamentação civilista das relações de trabalho, em mitigando o princípio pré-jurídico ou axioma de que o trabalho não é mercadoria, como adverte Pinho Pedreira: É preciso reconhecer que cada norma do Direito do Trabalho constitui um acidente, um obstáculo, um impedimento para tratar o trabalho como uma mercadoria sujeita às leis do Mercado. Querer tirar as rigidezes equivale a querer destruir o Direito do Trabalho. (SILVA, 2004, p. 93). A crise econômica, fundamento de igual importância, para que se pretenda uma flexibilidade na proteção dos trabalhadores, sempre acompanhou o Direito do Trabalho. Na história, constatamse inúmeras crises econômicas internacionais e nacionais, que repercutiram, inclusive com o afrouxamento da rigidez da legislação trabalhista, sem, contudo eliminar a ontologia protecionista (SILVA, 1999, 38). Além disso, mesmo nos momentos críticos, os interesses econômicos não podem subjugar o valor social do trabalho, isto é, não podem, para lograr a recuperação, aviltar as condições de trabalho dos trabalhadores, diminuindo a proteção. Transferir os prejuízos econômicos para os trabalhadores implica na negação do princípio da forfertaridade, que desvincula os riscos do negócio dos direitos trabalhistas. De forma diametralmente oposta, em momentos de crise que se deve recorrer às bases e diretrizes do fenômeno contestado. Recorrer as diretrizes importa reafirmar os princípios originários, que são, pelos seus caracteres, os componentes da disciplina jurídica com maior perenidade, uma vez que são depositários de todos os substratos (econômicos, sociais e políticos) que originaram o sistema em catarse. Constatada a similitude da situação econômica – na perspectiva de dependência econômica do trabalhador, inclusive agravada em alguns casos – a confirmação 174 Direito do trabalho e emancipação do valor social da proteção aos trabalhadores se impõe. Porém, as contestações liberais negam este raciocínio, advogando a existência de um único caminho: a liberalização. Nesta perspectiva, Amauri Mascaro Nascimento defende a necessidade a intervenção estatal (uma das técnicas protetivas), mesmo perante a crise econômica e social, demarcada pela ascensão da flexibilização e precarização: [...] a resposta é afirmativa porque a verdadeira igualdade está em tratar desigualmente situações desiguais. No entanto, há direitos que devem ser defendidos com a força da lei e outros que podem ser melhor disciplinados pela autocomposição direta entre os próprios interessados. (NASCIMENTO, 2002, p. 905) Em atenção ao contexto crítico, a OIT se manifestou através da Declaração de 1998 sobre princípios e direitos fundamentais no trabalho, reconhecendo que os direitos fundamentais atualmente são: a) Liberdade sindical e reconhecimento efetivo da negociação coletiva; b) Eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) Abolição efetiva do trabalho infantil; d) Eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. Infere-se da Declaração da OIT de 1998 uma ênfase ao plano coletivo, bem como nas questões de excessiva exploração sequer aceitas no capitalismo (trabalho forçado e infantil) e, destaque-se, menção a defesa isonomia nos empregos e ocupações. Apesar de não haver referência explícita ao princípio da proteção, o caráter tutelar do Direito Laboral pode ser depreendido das declarações anteriores e da própria finalidade da OIT. Noutro sentido, verificase que, com a menção à isonomia entre emprego e “ocupação” estipula-se um regime de igualdade entre o trabalho convencional (emprego) com as atuais formas flexíveis (flex-jobs, trabalho a tempo Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 175 parcial, parassubordinados, cooperados, entre outros), ratificando a noção de expansionismo do Direito do Trabalho, intrinsecamente protecionista. Reafirmada a perspectiva protecionista, o princípio da proteção precisa de reforço para enfrentar seus dilemas contemporâneos. A corrente compreensão normativa e vinculante dos princípios, notadamente dos princípios constitucionais, pode em muito colaboar. Trata-se de absorver na doutrina ascendente o papel dos princípios e transpô-lo para o princípio protetivo laboral. Em consonância com a postura protecionista delineada, sustentase que o Direito do Trabalho urge em ser repensado, com o objetivo de conferir maior efetividade na proteção aos empregados e ampliar-se para ofertar proteção aos trabalhadores heterogêneos e diferenciados, desde que dependentes. A ampliação da tutela para os parassubordinados, mesmo que em doses menores do que aquelas destinadas ao empregado, é hermenêutica que mais concretiza e torna viva a Constituição, pois, significa “a concretização na práxis jurídica entre nós do humanismo e da axiologização nas relações de trabalho, imperativos de impressão da justiça nestas relações, postulado da ordem e da paz sociais.” (JUCÁ, 2000, p 109). A título de exemplo vale conhecer a recente experiência italiana que criou o Contrato a Projeto, enquanto horizonte de perspectivas. 6. Proteção versus Regulação Há que se fazer uma severa crítica à ontologia protetiva trabalhista, em atenção à pré-compreensão orientada pelo materialismo histórico. Numa análise mais detida, sabe-se que a proteção trabalhista articulada na legislação conforma-se como mecanismo de dominação, porque assegura a continuidade da exploração do trabalhador, advinda da apropriação do resultado do trabalho por 176 Direito do trabalho e emancipação conta alheia. Com as medidas protetivas que asseguram alguns direitos, mas mantém a mais-valia, o Direito do Trabalho funciona como conservador do status quo, impedindo as pretensões revolucionárias dos trabalhadores. É este o sentido apurado da afirmativa de Palomeque López: [...] a legislação do trabalho corresponde prima facie a uma solução defensiva do Estado Burguês para, através do de um corpo de normas tuitivas a favor dos trabalhadores, dispor sobre a integração e institucionalização do conflito entre o capital e o trabalho em termos compatíveis com a viabilidade do sistema estabelecido. (apud ROMITA, 1998, p. 603) Proteger significa dominar e colocar, sob o julgo do protetor, o protegido que, graças à sua condição de dependente, irá-se satisfazer com a qualidade de protegido. Destaca Pinho Pedreira: Pareceu-nos sempre que em tempo algum o fim, em última instância, do Direito do Trabalho foi a proteção do trabalhador, pois não seria possível a existência, no regime capitalista, de um ramo do direito em contradição com os interesses da classe dirigente, [...]. Para nós, ontem como hoje, a finalidade imediata do Direito do Trabalho é a proteção do trabalhador, mas a finalidade mediata o equilíbrio social ou, como se exprime como maior propriedade Wolfgang Daubler, “a conservação dos status quo social”. (SILVA, 1999, p. 34). No mesmo sentido, Aldacy Rachid Coutinho discorre criticamente que “a proteção do trabalhador é um mito. Aquilo que está no lugar do que não pode – ou não deve – ser dito. Está enunciar que protege, quando nem sempre tutela. Afinal o direito do trabalho é o direito capitalista do trabalho.” (COUTINHO, 2001, p. 7). Não obstante, mesmo o princípio da proteção conduzindo a uma faceta de dominação pela regulação, não se pode deixar de defendê-lo, particularmente de defender seu caráter protetivo. Seu caráter instrumental também poderá ser guiado pelo viés emancipatório, quando se vincula a proteção à condição de Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 177 dignidade do homem trabalhador, e quiçá para além daquela reconhecida pelo direito positivo. Aldacy Rachid Coutinho assevera: E se não fosse protetivo do trabalhador ... seria do capital. A primazia do trabalho sobre o capital determina que o direito está pelo e para o homem. O homem não está a serviço dos interesses traduzidos no direito. O mercado não pode influenciar, direcionar o direito do trabalho. (COUTINHO, 2001, p. 7). A tensão cotejada da regulação-emancipação atinge, de igual maneira, o direito. Apesar do direito hegemônico praticado, ensinado dogmaticamente e dito servir como meio de conservação social (técnica de regulação social), tem-se o contra-direito, o Direito Crítico, insurgente, de combate, surrealista, ou qualquer outra denominação que expresse movimentos, no âmbito do direito de reação à dominação daquele direito posto e hegemônico, na direção compromisso libertário. Não obstante a indispensável crítica materialista, a defesa de um direito protecionista é pauta, no regime capitalista, das ideologias reformistas e revolucionárias. O cenário que se conjectura para a projeção do Direito do Trabalho resgata seu horizonte fundador. Rejeita-se uma postura liberalizante, eis que a flexibilização negociada ou a precarização das condições de trabalho não são compatíveis com a ontologia juslaboral, e, no plano fático, não apresentam resultados de atenuação/diminuição da hipossuficiência do trabalhador, que continua dependente, seja na subordinação, autonomia ou parassubordinação. De outro modo, o insucesso da vertente conciliatória européia, denominada flexicurity, aponta para o retorno da proteção, desde que baseada em outros moldes. Esta leitura conduz a uma superação da crise e a reafirmação do Princípio da Proteção. Assim conclui Plá Rodriguez: Deve continuar fiel a seus princípios, aplicando-os adequadamente à época e às realidades efetivas que se põem em cada momento. Essa aplicação racional, razoável, funcional 178 Direito do trabalho e emancipação dos princípios deve distinguir o permanente do circunstancial, separar o essencial do contingente. Os princípios não são obstáculo às mudanças exigidas pelos tempos e pelas circunstancias. Sua própria maleabilidade lhes permite manter a substancia mesmo que tudo o mais se mude. (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 82). Os discursos flexibilizantes, hegemônicos na globalização, não se sobrepõem à realidade social, que persiste em caracterizar o trabalhador de hipossuficiente. O modo de produção pós-fordista, apesar de alterar as formas de trabalho e seus contratos, tem agravado a exploração e a dependência econômica do trabalhador. A crise do princípio da proteção não conduz à sua negação, mas engendra uma necessidade de repensá-lo. Nesta tensão regulação–proteção, é tático defender, na sociedade capitalista, um Direito do Trabalho protetivo, que opera com fundamentos que negam a racionalidade jurídica capitalista, como a autonomia privada em favor de um humanismo que não admite que o trabalho humano seja tratado como mercadoria. O ideal de Justiça Social e combate à exploração, bases do Direito do Trabalho, confirmam, em grande medida contra-racionalidades dentro do sistema jurídico dominante, aproximando mais o juslaboralismo de uma vertente emancipatória do que regulatória. Contudo, o caminho que se segue, pela sua complexidade imanente, diferenciação e heterogeneização, traz um horizonte que privilegia individualidades ou individualismos, relegando a atuação coletiva ao declínio e ao descrédito. Neste percalço, Carlos Drummond de Andrade adverte: Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. (ANDRADE, 2005, p. 59) Murilo Carvalho Sampaio Oliveira 179 Trata-se de, utopicamente, desvelar que a proteção que se almeja ao trabalhador não deve depender exclusivamente das medidas intervencionistas do Estado, o que configuraria a vitória de uma (des)proteção regulatória com perversos excessos sobre uma proteção emancipatória, ou seja, o primado da outorga (e controle) sobre a conquista. Ao contrário, a perspectiva que se coloca é resgatar, na história companheira, a importância fundante da atuação coletiva na luta pela proteção nas relações de trabalho. Aliás, o companheiro, vindo de longe das associações de companheiros e oficiais da Idade Média (compagnonnages), designa aquele que reparte o pão. Ou seja, aquele que compartilha as mesmas condições de trabalho (com o outro trabalhador), sabendo que somente juntos, partilhando sofrimentos (consciência coletiva), poderão contrapor-se ou resistir fraternamente. Esta perspectiva irrompe e recompõe dois valores fundantes e basilares do Direito do Trabalho, que são recuperados no contexto contemporâneo, e, por isso, indispensáveis para a tarefa do repensar. São a fraternidade, que atrai o perfil protetivo nas relações enfocadas individualmente entre trabalhador e empregador; e a consciência de classe, que ressalta a imprescindibilidade de um ente coletivo renovado para os problemas hodiernos. Faz-se necessário explicitar a idéia de renovação do sindicato. Reconhecida a crise do sindicalismo, consectária da crise do Direito Laboral acentuada pelos fenômenos do desemprego estrutural e da terceirização, poder-se-ia abandonar a entidade de classe, acaso entenda-se que os conflitos de classe já foram superados pelas atuais relações de trabalho. É esta a propaganda da nova relação interativa de parceria empregado-empresa. De outro lado, do materialismo dialético, que dirige epistemologicamente a pesquisa, cumpre negar o discurso do fim dos conflitos de classes e reforçar a atuação coletiva, a partir da autocrítica acerca dos instrumentos, recursos e atitudes sindicais 180 Direito do trabalho e emancipação que não foram aptos para enfrentar os atuais conflitos capitaltrabalho. Impõe-se produzir novas práticas sindicais que aglutinem outros sujeitos (sociedade civil, consumidores, movimentos populares) no conflito trabalhista. É preciso construir atitudes e representações tão heterogêneas como são heterogêneos os trabalhadores atuais, conquanto mantenha-se a centralidade da questão do trabalho (ANTUNES, 2003). Por fim, uma leitura emancipatória sinaliza para a conclusão de que é preciso manter o caráter protetivo do Direito do Trabalho. Além disto, é indispensável um sistema sindical que consagre e torne efetiva a liberdade sindical, iniciando-se pela ratificação da Convenção 87 da OIT e a adoção de medidas que combatam as ações anti-sindicais. Desse modo, a proteção trabalhista expressa um compromisso com a emancipação dos trabalhadores, conquanto seja proveniente de uma legislação intervencionista e expandida (ou reforçada) pela atuação coletiva de sindicatos livres e representativos. Defender, nestes moldes, a proteção é uma tática adequada à sociedade capitalista, mesmo reconhecendo sua função de conversação do status quo sobre uma efetiva emancipação dos trabalhadores. Trata-se de explorar as possibilidades insurgentes do sistema até seus limites. Em verdade, uma real proteção-emancipação dispensaria o Direito do Trabalho o que, por hora, não está a acontecer, justificando o caráter protetivo do juslaboralismo. 7. Referências ANDRADE, Carlos Drummond. Sentimento do mundo. 7ª Ed. Rio de Janeiro: E. Record, 2005. 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Conselheiro Técnico da Sociedade Brasileira de Direito Público. Membro do Conselho de Pesquisadores do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado. Ex-Assessor Especial do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado do Brasil. Editor do site www.direitodoestado.com.br Sumário: 1. As Parcerias Público-Privadas: sentido amplo e restrito 2. As Parcerias Público-Privadas na Lei nº. 11.079/2004. 3. As Parcerias PúblicoPrivadas nos Serviços de Relevância Pública e as “Concessões Administrativas”. 4. Conclusão. 1. As Parcerias Público-Privadas: sentido amplo e restrito O direito brasileiro conhece, em sentido amplo, formas variadas de parceria entre o Estado e pessoas privadas de caráter empresarial e entre o Estado e as entidades privadas sem fins lucrativos. Naturalmente, as parcerias do primeiro grupo cuidam de estabelecer preferencialmente formas de cooperação na prestação de serviços públicos e na exploração de atividades econômicas. Reversamente, as parcerias do segundo grupo vinculam-se tradicionalmente à prestação de serviços de relevância pública, tendo em conta que a atuação das entidades sem fins de lucro neste campo de atividades é explicitamente fomentada pela Constituição (v.g., CF/88, arts. 199, §1º, in fine (saúde); 214, I (assistência social); 205, caput, e 213 (educação))1. Mas essa divisão não é absoluta: as entidades privadas empresariais também 185 colaboram em serviços sociais do Estado, sem fins de lucro, cumprindo funções de fomento, especialmente em atividades culturais (v.g., amostras de arte, exposições, espetáculos públicos) e sociais (v.g., projetos de urbanização, auxílio a creches e escolas públicas). São características gerais das diversas modalidades de parceria, presentes em maior ou menor intensidade nas diferentes modalidades de ajuste: a) a voluntariedade da adesão ao ajuste; b) a convergência de interesses; b) a complementaridade de encargos; c) a atenuação no emprego de prerrogativas exorbitantes por parte da Administração, com vistas não inibir o interesse do parceiro privado; d) a flexibilidade dos arranjos institucionais viabilizadores do ajuste de interesses. As parcerias, em sentido amplo, caracterizam-se como acordos entre duas ou mais partes, para atuarem juntas em direção a um objetivo comum. As parcerias entre o Estado e o empresariado frequentemente envolvem a celebração de contratos de concessão de serviço público ou de obra pública, mas também podem ocorrer com a mobilização conjunta de capitais para criação de entes empresariais (sociedades de economia mista).2 Formas de parceria também usuais são os acordos econômicos, que envolvem redução de preços em setores específicos da economia e a redução concomitante da tributação sobre produtos industrializados ou sobre o consumo de certos produtos (ex. redução de tributação para carros populares). Não é este sentido amplo da voz parceria, porém, que cumpre aqui desenvolver. Interessa analisar, considerando o exposto nos itens anteriores, o alcance específico da expressão parceria públicoprivada, isto é, da voz parceria consoante vem empregada na recentíssima Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004 (publicada no DOU de 31/12/2004) e, em especial, a sua aplicação não apenas no campo tradicional dos serviços públicos e das atividades de exploração econômica, esfera em que terá 186 Parcerias Público-Privadas (PPP) provavelmente a mais intensa aplicação, mas no âmbito sempre esquecido das atividades de relevância pública, dos serviços sociais e culturais prestados ao público pelo Estado e por particulares, igualmente carente de recursos e de iniciativas que lhe ampliem a eficácia3. É o que se fará a seguir. 2. As Parcerias Público-Privadas na Lei 11.079/2004 A Lei n. 11.079/2004 denomina como parceria público-privada o contrato especial de concessão que estabeleça contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado, sob duas modalidades: concessão patrocinada e concessão administrativa. Trata-se de contrato de direito público, de longo prazo e caráter extraordinário, somente aplicável a ajustes de grande vulto, cujo valor seja equivalente ou exceda a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais), possua prazo de vigência igual ou superior a 5 (cinco) anos (mas não excedente a 35 anos) e envolva compartilhamento de riscos entre o parceiro público e o parceiro privado, inclusive no tocante à cobertura de riscos contra caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária. A Lei 11.079/2004 estipula que, quando não houver contraprestação pecuniária do poder público, a concessão administrativa deve ser rotulada como “concessão comum”, sendo inaplicáveis as normas especiais que institui. Também não são aplicáveis as normas da nova lei aos contratos que tenham como objeto único o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública (art. 2º, §4º, III). Saliente-se, ainda, que a contraprestação pecuniária da Administração Pública, necessária para caracterização da nova modalidade contratual, somente será cabível após a efetiva disponibilização do serviço objeto do contrato de parceria Paulo Modesto 187 público-privada ou, ao menos, de parcela fruível do serviço contratado (art. 7º). A Lei 11.079/2004 inova o léxico jurídico administrativo em termos nacionais (art. 1º), razão pela qual define, expressamente, os conceitos de concessão patrocinada e concessão administrativa. Com o primeiro rótulo designa a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários, contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado. O segundo rótulo denota não propriamente um contrato de concessão de serviço público, ao menos como este é reconhecido no direito administrativo brasileiro, mas uma espécie de contrato de risco de que a Administração Pública seja a “usuária direta ou indireta”, cumulado ou não com contrato de concessão de uso de bem público ou de obra pública. As denominadas “concessões administrativas”, segundo o art. 3º da nova Lei 11.079/2004, regem-se pela Lei 11.079/2004 e também pelo disposto nos arts. 21, 23, 25 e 27 a 39 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e no art. 31 da Lei no 9.074, de 7 de julho de 1995. Nas “concessões administrativas”, em princípio, não há delegação de serviço público, o que torna realmente ambígua e problemática a terminologia empregada. Embora tenha isolado em duas modalidades de contrato as suas hipóteses de aplicação, é nítida a preocupação da Lei em disciplinar sobretudo a modalidade de concessão denominada patrocinada, pois é esta aquela que melhor serve à atração de capitais privados para investimento em infra-estrutura, particularmente nas atividades de maior risco econômico ou regulatório. Como é evidente, segundo a concepção adotada pela nova lei, parcela significativa dos investimentos em infra-estrutura de que o país necessita exigem longo prazo de maturação e grande volume de recursos, isto é, embutem grande risco econômico, 188 Parcerias Público-Privadas (PPP) regulatório e político, cuja cobertura somente pode ser realizada integralmente por empresas privadas em situações especiais, nas quais seja evidente ou muito provável a estabilidade das receitas a serem auferidas ao longo do tempo ou manifesta a sustentabilidade do negócio pelo elevado número de usuários a serem atendidos. Em projetos de interesse público, que envolvam construção de obras, mas de fluxo de caixa incerto ou insuficiente, de duas uma: a) o Poder Público integraliza todo o investimento, contratando do setor privado a obra em regime de empreitada (regime tradicional: risco integral do Estado); ou b) o Poder Público compartilha riscos com o investidor privado, assegurando subsídios ou a estabilidade no tempo de receitas necessárias à amortização do investimento (regime das parcerias público-privadas). É esta a concepção ideológica que permeia todas as normas da Lei 11.079/2004. Por isso, as duas modalidades de contratação de parcerias público-privadas (conhecidas no continente europeu também pela sigla PPP, Public-Private-Partnerships) apresentam caráter subsidiário em relação às denominadas concessões comuns. Somente parece legítima a adoção das novas modalidades quando inviável, por manifesto desinteresse dos capitais privados e insuficientes recursos de investimento do poder público, a adoção da modalidade comum de concessões de serviço, de obra ou de uso de bem público, bem como a contratação direta em regime de empreitada. 4 O caráter subsidiário e extraordinário dos referidos contratos de parceria é evidenciado também pelas exigências a serem observadas pela Administração antes de decisão sobre a celebração dos contratos, em especial a verificação da “sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria” (art. 4º, VII), ao lado da observância da “responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias” Paulo Modesto 189 (art. 4º, IV) e “repartição objetiva de riscos entre as partes” (art. 4º, VI). Por igual, a abertura do processo de licitação, que será sempre na modalidade de concorrência, está condicionada a “autorização da autoridade competente, fundamentada em estudo técnico que demonstre a conveniência e a oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que justifiquem a opção pela forma de parceria público-privada (art. 10, I, a). É necessário também que a minuta do edital e do respectivo contrato seja submetida à consulta pública, que deverá necessariamente “informar a justificativa para a contratação” (art. 10, VI). Por fim, as concessões patrocinadas em que mais de 70% (setenta por cento) da remuneração do parceiro privado for paga pela Administração Pública dependerão de autorização legislativa específica (art. 10, § 3o). A lei exige também a avaliação da solvência financeira do ente público, considerando o comprometimento financeiro com projetos de parceria público-privada em curso, antes da celebração de novos contratos de parceria.5 Sem essas cautelas, o contrato de parceria público-privada será ilegal e, em princípio, contrário ao interesse público. A opção pelo modelo das PPPs deverá exigir ao menos dois fundamentos concretos: a ausência de recursos suficientes para investimentos de interesse público e, cumulativamente, a inviabilidade da transferência para a iniciativa privada do risco econômico integral da prestação do serviço, precedido ou não de obra pública.6 Essa é a razão para a identificação crescente das PPPs, no plano internacional, a projetos de Iniciativa Financeira Privada (Private Finance Initiative – “PFI”). Nestes tipos de ajuste, o empreendedor privado assume a responsabilidade da concepção dos projetos, da obtenção do financiamento, da construção e da operação de obras e serviços de interesse público (contratos tipo “design-build-finance-operate”), cabendo ao Estado fiscalizar a obra e os serviços, prestar garantias que diminuam o risco do 190 Parcerias Público-Privadas (PPP) investimento e, por vezes, o papel de cliente direto ou indireto responsável pelo pagamento dos serviços prestados. No entanto, nestes ajustes é possível prever também “o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado” (art. 5º, IX, da Lei 11.079/2004). Os contratos de concessão tradicionais, denominados agora também de “concessões comuns”, quando envolviam a prévia construção de obra pública, em geral seguiam o modelo BOT (contratos tipo “build, operate, transfer”: construir, operar, transferir). Não oneravam, em princípio, os cofres públicos, mas o Estado era responsável pela concepção do contrato e cobria todos os riscos de manutenção da equação econômico-financeira. É ainda hoje uma opção excelente, uma vez que não importa em aumento do endividamento público, mas traduz modalidade que somente produz resultados quando a taxa de retorno do investimento privado é motivadora. Quando a taxa de retorno privado é baixa e a vantagem social obtida com o ingresso de investimentos privados é relevante, a parceria somente é possível fora dos marcos tradicionais da concessão precedida de obra pública. Nesses casos, como o Poder Público praticamente esgotou as suas possibilidades de endividamento, ganhou relevo o papel dos investidores como terceiros diretamente interessados no contrato de parceria público-privada, prevendo a Lei diversos mecanismos de garantia do investimento, com vistas a diminuir ao máximo os riscos econômicos envolvidos no projeto e baratear ao máximo o crédito necessário para o desenvolvimento da obra ou serviço. Na Lei 11.079/2004 os investidores assumem papel de destaque na relação jurídico administrativa, autorizando a lei que os contratos de parceria público-privada poderão prever o direito de ingresso dos financiadores no projeto, isto é, a “transferência do controle Paulo Modesto 191 da sociedade de propósito específico”, responsável pela execução da concessão, para os seus financiadores, com o manifesto “objetivo de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o previsto no inciso I do parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995” (art. 5º, § 2o, I). Autoriza também a “possibilidade de emissão de empenho em nome dos financiadores do projeto em relação às obrigações pecuniárias da Administração Pública” e “a legitimidade dos financiadores do projeto para receber indenizações por extinção antecipada do contrato, bem como pagamentos efetuados pelos fundos e empresas estatais garantidores de parcerias públicoprivadas” (art. 5º, § 2o, II e III). Por essas medidas, é óbvio, procurase proteger os financiadores ou credores finais do empreendimento da atuação irregular ou ruinosa de empreendedores privados. No entanto, como é baixa a credibilidade do Poder Público no Brasil, a Lei 11.079/2004 trata de prever garantias objetivas dos financiadores também em relação ao parceiro estatal, especialmente quanto a atrasos deste no desembolso das contrapartidas públicas do contrato. Por um lado, admite que a contraprestação da Administração Pública seja feita de maneira variada, especialmente, por “ordem bancária; cessão de créditos não tributários; outorga de direitos em face da Administração Pública; ou outorga de direitos sobre bens públicos dominicais” (art. 6º, I a IV). Por outro lado, assegura que esses desembolsos sejam garantidos mediante “vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal; instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei; contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público; garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público; garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa 192 Parcerias Público-Privadas (PPP) estatal criada para essa finalidade7; outros mecanismos admitidos em lei.” (art. 8º). É lógico que essas garantias devem ser compatíveis com a divisão de riscos estabelecida no contrato de parceria público-privada, não podendo abranger os riscos que devem ser cobertos pelos parceiros privados, sob pena de desvirtuamento do contrato e violação direta das normas previstas na própria Lei 11.079/20048. Os elementos expostos permitem a formulação de um conceito operacional das parceiras público-privadas em sentido estrito: contrato administrativo de longo prazo, celebrado em regime de compartilhamento de riscos, remunerado após a efetiva oferta de obra ou serviço pelo parceiro privado, responsável pelo investimento, construção, operação ou manutenção da obra ou do serviço, em contrapartida a garantias de rentabilidade e exploração econômica asseguradas pelo Poder Público. 3. As Parcerias Público-Privadas nos Serviços de Relevância Pública e as “Concessões Administrativas” Nos serviços prestados pelo Estado não é possível, frequentemente, reclamar contrapartidas dos usuários. Em algumas hipóteses, há previsão constitucional de gratuidade na prestação dos serviços, como ocorre na prestação de serviços de saúde (art. 198, § 1º, CF) e de ensino (art. 206, IV, CF). Em outras situações, há decisão política de não onerar os usuários do serviço ou da obra pública (por exemplo, as concessões de rodovias com “pedágio-sombra”, mecanismo pelo qual o Poder Público remunera o concessionário segundo uma estimativa de utilização, não havendo pagamento de pedágio pelo usuário direto do serviço). Dessume-se da Lei 11.079/2004 que “concessão administrativa” é a parceria público-privada sem participação do usuário na remuneração do parceiro privado. Nos termos da dicção legal, “concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços Paulo Modesto 193 de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação e bens” (art. 2º, § 2o). O novo instituto pode ser empregado tanto para a prestação de serviços públicos quanto para prestação de serviços de relevância pública, desde que o “concessionário” não seja remunerado por usuários privados. Figure-se a hipótese da União Federal pretender a instalação de um hospital para atendimento gratuito e especializado a portadores de cardiopatias em um Município carente. Não dispondo a União de recursos orçamentários para a construção e operação de um novo hospital no referido município, nem havendo auto sustentabilidade econômica do projeto, pela incerteza da demanda e pelo caráter gratuito do atendimento, nem sendo possível a aquisição direta do serviço através de hospitais privados, por ausência de prestadores locais, pode-se cogitar a utilização do modelo da “concessão administrativa”, remunerando-se o concessionário que assuma a construção e operação do novo hospital mediante a previsão contratual de um percentual de acréscimo aplicável sobre a tabela geral de procedimentos do SUS ou de uma estimativa de utilização mínima de procedimentos médicos. Em contrapartida aos investimentos e obras exigidas para a construção do hospital, para aquisição das instalações e manutenção dos serviços, além da remuneração paga a todo empreendedor proprietário de hospital credenciado junto ao SUS, o Poder Público asseguraria ao concessionário uma remuneração estimada (de forma semelhante ao pedágiosombra) ou aplicaria sobre a efetiva utilização de usuários um percentual adicional sobre a tabela de procedimentos padrões do sistema único de saúde, com vistas à formação da parceria públicoprivada. O usuário não seria onerado com o custo de procedimentos médicos, o Estado não precisaria arcar imediatamente com o 194 Parcerias Público-Privadas (PPP) investimento de implantação do serviço e a amortização do capital privado investido ocorreria ao longo do tempo, assumindo o parceiro privado os riscos econômicos de demanda (maior ou menor quantidade de usuários) e outros que lhe sejam assinalados no vínculo que firmar com a Administração.9 A hipótese indica que a denominada “concessão administrativa” não será, nos serviços de relevância pública, uma concessão de obra pública nem um contrato de prestação de serviços tradicional. Não será uma concessão de obra comum, pois os usuários não serão onerados e o que se objetiva é a prestação adequada de serviços gratuitos, livres à iniciativa privada, mas desinteressantes para empreendedores privados sem garantias especiais do Poder Público. Não será um contrato de prestação de serviços tradicional, pois a obtenção dos recursos necessários à própria prestação dos serviços será atribuída ao parceiro privado, além da remuneração possuir um caráter aleatório, dependente do fluxo futuro de clientes ou usuários dos serviços oferecidos, e estar vinculada à efetiva prestação dos serviços.10 Além disso, como antes dito, será um contrato extraordinário, de elevado valor, prazo determinado e expresso compartilhamento de riscos entre os parceiros público e privado, este último sendo remunerado apenas após a efetiva disponibilização do serviço. A concessão administrativa pode figurar como um contrato de prestação de serviços peculiar, de risco ou de quantitativos variáveis, quando não exigir a prévia execução de obra ou o fornecimento e instalação de bens e a remuneração do empresário privado decorrer da eficiência de seu desempenho na execução das atividades contratadas. A hipótese é remota, dada a proibição de celebração de contrato de parceria público-privada cujo valor seja inferior a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais) (art. 2º, § 4o, I, da Lei 11.079/2004). No entanto, não é impossível, desde que o procedimento contratado seja de valor individual Paulo Modesto 195 elevado, realizado em grande número e o prazo de prestação do serviço permita uma estimativa de despesa pública dentro dos marcos exigidos pela lei. De ordinário, no entanto, salvo melhor juízo, a concessão administrativa deve ser qualificada como um contrato administrativo misto, híbrido, envolvendo um contrato de prestação de serviços e uma concessão de uso ou de obra pública, nomeadamente quando envolver a utilização de instalações privativas do Poder Público ou a execução de obra ou o fornecimento de bens. A celebração de contratos de “concessão administrativa” somente será justificada quando oferecer vantagens socioeconômicas, sustentabilidade financeira, respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços, repartição objetiva de riscos entre as partes, ganhos de eficiência e transparência nos procedimentos e decisões, como exige expressamente o art. 4º. da Lei 11.079/2004. A concessão administrativa exigirá, além disso, aperfeiçoamento dos processos de fiscalização e monitoramento do desempenho do parceiro privado, para diminuir o risco de desvirtuamento da nova figura contratual e aproveitamento adequado da atividade desenvolvida pelos parceiros, especialmente em atividades de relevância pública, nas quais a qualidade do atendimento ao público é muito mais importante do que o número dos procedimentos realizados. 4. Conclusão O modelo das parcerias público-privadas não pode ser um modismo, que afaste a aplicação dos contratos de concessão comuns quando estes ainda são cabíveis. Não pode também se voltar apenas para as atividades econômicas ou para o financiamento da prestação de serviços públicos, frequentemente sustentáveis ao longo do tempo, desde que garantias de 196 Parcerias Público-Privadas (PPP) procedimento leal e honesto da Administração Pública sejam asseguradas. Este modelo pode ser empregado, com sucesso e talvez com maior urgência, também para financiar a ampliação de serviços sociais do Estado, em atividades livres à iniciativa privada, de expressiva relevância pública, mas desinteressantes para as empresas sem garantias de rentabilidade mínimas adredemente pactuadas e firmemente reconhecidas. Estas conclusões não são expressões singelas de qualquer ideologia: decorrem do sistema constitucional brasileiro e, por igual, das normas de cautela previstas na Lei 11.079/2004. Essas normas evidenciam o caráter subsidiário da nova modalidade de parceria, voltada apenas para qualificar o contrato de direito público, de caráter extraordinário, de longo prazo e grande vulto, cujo valor seja equivalente ou exceda a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais), possua prazo de vigência igual ou superior a 5 (cinco) anos (mas não excedente a 35 anos) e envolva compartilhamento de riscos entre o parceiro público e o parceiro privado, inclusive no tocante à cobertura de riscos contra caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária. Para a celebração desses contratos são exigidas cautelas especiais, como a comprovação da “sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria” (art. 4º, VII), ao lado da observância da “responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias” (art. 4º, IV) e “repartição objetiva de riscos entre as partes” (art. 4º, VI). Por igual, a abertura do processo de licitação está condicionada a “autorização da autoridade competente, fundamentada em estudo técnico que demonstre a conveniência e a oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que justifiquem a opção pela forma de parceria públicoprivada (art. 10, I, a). É necessário que a minuta do edital e do respectivo contrato seja submetida à consulta pública, que deverá Paulo Modesto 197 necessariamente “informar a justificativa para a contratação” (art. 10, VI). Por fim, as concessões patrocinadas em que mais de 70% (setenta por cento) da remuneração do parceiro privado for paga pela Administração Pública dependerão de autorização legislativa específica (art. 10, § 3o). A lei exige também a avaliação da solvência financeira do ente público, considerando o comprometimento financeiro com projetos de parceria público-privada em curso, antes da celebração de novos contratos de parceria. A aplicação das parcerias público-privadas deve ser a última opção do Poder Público, quando inexistentes os recursos necessários para implantação de serviços e obras fundamentais para o país e for inviável a transferência para o parceiro privado do risco econômico de empreendimentos de interesse público. Se não for assim, serviços auto sustentáveis serão contratados pelo modelo das parcerias público-privadas, para melhor conforto dos capitais privados, enquanto demandas sociais sem auto sustentação continuarão esquecidas no quadro das prioridades públicas. As parcerias público-privadas desoneram o Poder Público do desembolso imediato de recursos necessários à implementação de serviços e obras, mas obrigam o acompanhamento e a fiscalização detalhadas de todo o processo de prestação do serviço e da execução da obra. Em especial, nas concessões administrativas, o risco de demanda do parceiro privado deve ser acompanhado para que não se converta em fraude real, ainda que no futuro, para o Poder Público. Celebradas com as cautelas devidas, as parcerias públicoprivadas podem oferecer nova dinâmica a serviços prestados com patrocínio do Estado ao público, servir para superar limitações orçamentárias na implementação de serviços públicos e serviços de relevância pública, sem ampliar ainda mais o endividamento público, assegurando hoje utilidades que talvez sem essas 198 Parcerias Público-Privadas (PPP) iniciativas continuassem também simples promessas no futuro. (Salvador, 21 de março de 2005). 5. Notas 1 Em trabalho anterior, após referir os dispositivos constitucionais citados, resumi: “Outras disposições constitucionais referem de forma reflexa esta mesma forma de colaboração de entidades particulares com a administração pública, a saber: (1) igrejas (arts. 19, I - colaboração, de interesse público, com a União, Estados, Distrito Federal e Municípios; art. 226, § 2, celebração do casamento religioso com efeito civil; art. 213, escolas confessionais); (2) instituições privadas de educação (art. 150, VI, c - imunidade tributária, desde que sem fins lucrativos); (3) instituições de assistência social beneficentes ou filantrópicas (art. 150, VI, c - imunidade tributária, desde que sem fins lucrativos; art. 195, § 7º- isenção de contribuição para a seguridade social); (3) terceiros e pessoas físicas e jurídicas de direito privado na área da saúde (arts. 197 - declaração de relevância pública das ações e serviços de saúde pelos mesmos executados); (4) organizações representativas da população (art. 30, X cooperação no planejamento municipal; art. 58, II - participação em audiências públicas de comissões do Poder Legislativo); (5) serviços notariais e de registros (arts. 236, e §§ - serviços privados mas por delegação do poder público); (6) entidades privadas em geral - art. 74, II (cabe ao sistema de controle interno integrado dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a comprovação da legalidade e avaliação dos resultados, também quanto à eficácia e eficiência, da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado ). Essas disposições revelam a extensão que tomou a cidadania participativa e a parceria público-privado na Constituição de 1988, assinalando ainda algumas das diversas modalidades de estímulo utilizadas pelo Estado para atrair e premiar a colaboração de entidades privadas em atividades de acentuada relevância social: (a) imunidade tributária (art.150, VI, “c”, art. 195, §7º e art.240); (b) trespasse de recursos públicos (art. 204, I; art. 213; art. 216, §3º, art.61,ADCT); (c) preferência na contratação e recebimento de recursos (art. 199, §1º, in fine).(Cf. MODESTO, Paulo. Reforma Administrativa e Marco Legal das Organizações Sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das Organizações Sociais, Revista Trimestral de Direito Público, n. 16, 1996, p. 187-88). 2 Não afasto do conceito amplo de parceria a criação de entidades específicas, integradas pelos parceiros, com vistas à realização de propósitos comuns (parceria institucional). A entidade criada pode ser temporária, a exemplo de sociedades de propósitos específicos (SPE), ou assumir formas jurídicas estáveis, como as sociedades de economia mista. Em sentido contrário, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO exclui do conceito de parceria a hipótese de formação de nova pessoa jurídica: “Neste livro, o vocábulo parceria é utilizado para designar todas as formas de sociedade que, sem formar uma nova pessoa jurídica, são organizadas entre os setores público e privado, para a consecução de fins de interesse público. Nela existe a colaboração entre o poder público e a iniciativa privada nos âmbitos social e econô- Paulo Modesto 199 mico, para satisfação de interesses públicos, ainda que, do lado do particular, se objetive o lucro. Todavia, a natureza econômica da atividade não é essencial para caracterizar a parceria, como também não o é a idéia de lucro, já que a parceria pode dar-se com entidades privadas sem fins lucrativos que atuam essencialmente na área social e não econômica”.(Parcerias na Administração Pública, Editora Atlas, 3ª ed., 1999, págs. 31/32). 3 Denomino serviços de relevância pública as atividades consideradas essenciais ou prioritárias à comunidade, não titularizadas pelo Estado, cuja regularidade, acessibilidade e disciplina transcendem necessariamente à dimensão individual, obrigando o Poder Público a controlá-las, fiscalizá-las e incentivá-las de modo particularmente intenso. Não há aqui exigência de aplicação obrigatória de todas as obrigações de serviço público tradicionalmente reconhecidas na legislação. Nem titularidade exclusiva desses interesses pelo Estado, admitindo-se a livre atuação privada. Mas a lei ordinariamente impõe que a fiscalização e regulação dessas atividades pelo Poder Público seja minudente e tutelar, sendo assegurando ainda o respeito a princípios constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana. Na Constituição brasileira há explícita referência aos serviços de relevância pública em duas normas: art. 129, II e art. 197. Na primeira norma, o conceito é empregado em sentido subjetivo subjetivo, para referir as entidades privadas que prestam serviço de relevância pública. Na segunda, o conceito é empregado em sentido objetivo objetivo, para referir as ações e os serviços de saúde, seja quando prestados pelo Poder Público, seja quando prestados por pessoa física ou jurídica de direito privado. As disposições são diretas e de simples compreensão: “Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público: II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;” “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros, por pessoa física ou jurídica de direito privado” É certo também que os serviços sociais referidos, quando desempenhadas pelo Poder Público como encargo, obrigação, submetem-se ordinariamente ao regime de direito público público, quer por ser este o regime jurídico comum e normal da função administrativa do Estado, quer por expressa decisão legal. Por essa razão, diversos autores tendem a considerar essas atividades, quando prestadas pelo Estado, serviços públicos. Mas, sem embargo dessa qualificação, essas atividades não seriam serviços públicos quando desempenhados por particulares. Porém, como vimos antes, rotular de serviço público essas atividades, quando exercidas pelo Estado, é subordinar a natureza jurídica de uma atividade à qualidade do sujeito que a exercita, é adotar um conceito subjetivo, o que é incoerente com a tese predominante na doutrina brasileira de se buscar a identidade própria da atividade de 200 Parcerias Público-Privadas (PPP) serviço público na identificação do regime jurídico especial da atividade atividade, não do sujeito que por ela responde. A conseqüência pragmática deste entendimento é ambígua: por um lado, a analogia permite aparentemente ampliar as garantias dos administrados quando aplicada a pessoas jurídicas estatais de direito privado (tese problemática, ante a ausência de imposição constitucional do regime de direito público a todo esse conjunto de atividades);; por outro lado, restringe a compreensão dos compromissos públicos da mesma atividade quando exercida por particulares (pois, neste caso caso, seriam simples atividades econômicas econômicas). Seja como for, mesmo os autores que dilatam a aplicação do conceito de serviço público para atividades sem titularidade do Estado reconhecem que, quando os particulares atuam, com ou sem fins lucrativos, por direito próprio (iure propio), não se sujeitam ordinariamente ao regime do serviço público ou do direito administrativo, mas ao regime jurídico típico ou predominante das pessoas de direito privado, o que muitas vezes lhes confere maior agilidade ou presteza no atendimento dos seus objetivos sociais. Os serviços de relevância pública não são serviços públicos, mas também não são atividades de exploração econômica. Constituem zona jurídica intermediária, rol de atividades que dispensa título especial de autorização tanto para o Estado quanto para os particulares, mas que cumpre papel relevante no fornecimento de utilidade vitais para os cidadãos, sendo especialmente protegida na Constituição Federal xecução direta de (v.g., art. 129, II). Trata-se de domínio em que a atividade de e execução serviços e a atividade de fomento administrativo administrativo, mediante outorga de títulos especiais, apoio financeiro e acordos de parceria encontra lugar privilegiado para coexistir, rompendo-se em definitivo a dicotomia de soma zero que isolava a atuação dos particulares e do Estado em zonas distintas e mutuamente excludentes 4 O caráter subsídiário de contratações pela modalidade PPP é ressaltado também em alguns relatórios internacionais. A Comissão incumbida de estudar os diversos contratos de PPP celebrados nos países da União Européia, com vistas à elaboração do guia “Diretrizes para Parcerias Público-Privadas bem-sucedidas”, disponível na Internet (http://europa.eu.int/comm/regional_policy/sources/docgener/guides/ PPPguide.htm), acentuou: “Entretanto, embora as PPPs possam apresentar diversas vantagens, deve ser também lembrado que esses esquemas são complexos para projetar, implementar e administrar. Em nenhuma hipótese elas constituem a única opção ou a opção preferencial, e devem ser consideradas apenas se puder ser demonstrado que elas poderão gerar valor adicional em comparação a outras abordagens, se existir uma estrutura de implementação efetiva e se os objetivos de todas as partes puderem ser atingidos com a parceria.” (pág. 04). 5 Para a União: ”Art. 22. A União somente poderá contratar parceria público-privada quando a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das parcerias já contratadas não tiver excedido, no ano anterior, a 1% (um por cento) da receita corrente líquida do exercício, e as despesas anuais dos contratos vigentes, Paulo Modesto 201 nos 10 (dez) anos subseqüentes, não excedam a 1% (um por cento) da receita corrente líquida projetada para os respectivos exercícios”. Por vía oblíqua, para os Estados e Municípios: “Art. 28. A União não poderá conceder garantia e realizar transferência voluntária aos Estados, Distrito Federal e Municípios se a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das parcerias já contratadas por esses entes tiver excedido, no ano anterior, a 1% (um por cento) da receita corrente líquida do exercício ou se as despesas anuais dos contratos vigentes nos 10 (dez) anos subseqüentes excederem a 1% (um por cento) da receita corrente líquida projetada para os respectivos exercícios.” 6 As concessões de obra ou serviço público são caracterizadas no Brasil como contratos administrativos em que o risco é exclusivamente do concessionário concessionário. Essa concepção, no entanto, é antes um mito (ou um “mantra dogmático”, um fraseado repetido sistematicamente, sem reflexão ou crítica) do que um dado da ordem jurídica positiva: o direito brasileiro reduz o conceito de álea ordinária – conjunto de riscos que o concessionário deve suportar – e amplia ao máximo a proteção do concessionário em face da álea extraordinária (nas duas modalidades, álea administrativa e álea econômica), obrigando o Estado a assumir diversos riscos durante o contrato de concessão de serviço ou de obra pública. A teoria do fato do princípe nos contratos de concessão, por exemplo, possui entre nós um alcance muito mais amplo do que no direito francês: no direito brasileiro, de ordinário, o Estado cobre com exclusividade os desequilíbrios contratuais decorrentes de medidas gerais por ele impostas que afetem indistintamente toda a coletividade (como os tributos), o que não ocorre, como regra, no direito francês. Por igual, entre nós a noção de equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão tem sido extremamente generosa para o concessionário, pois diante de fatos imprevistos, excepcionais, que afetem a economia do contrato têm-se invocado a responsabilidade integral do Estado pela cobertura destes riscos, enquanto no direito francês os prejuízos decorrentes de fatos imprevisíveis e anômalos (álea econômica) são partilhados entre o concedente e o concessionário. Essa dupla redução de riscos para o concessionário é extraída, pela doutrina majoritária, do disposto no art. 37, XXI, da Constituição Federal, na parte que estatui que as obras e serviços serão contratados “com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta”. Sem embargo dessas garantias do concessionário, que nada mais são do que assunção pelo Estado de parte dos riscos da concessão, a Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, define a concessão de obra ou serviço público como contrato em que o concessionário deve fazer prova de possuir capacidade para executar a obra ou serviço “por sua conta e risco” (art. 2º, II, III e IV). A Lei 11.079/2004 (Lei das PPPs) foi mais austera: impôs a “repartição objetiva de riscos entre as partes” (art. 4º, VI), inclusive os “referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária (art. 5º, III). Não tenho dúvida que muitos autores inquinarão o novo dispositivo de inconstitucional, por afronta ao precitado art. 37, XXI, da Constituição Federal. Mas considero que esta será uma leitura apressada (ou interessada): o dispositivo constitucional obriga que sejam 202 Parcerias Público-Privadas (PPP) mantidas as condições efetivas da proposta, mas não impede que o legislador determine aos particulares que, na proposta, contemplem objetiva catalogação dos riscos que estão dispostos a assumir em relação a situações típicas de caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária. O conceito de “condições efetivas da proposta” não deve atinar apenas com o preço e as tarefas assumidas: deve encerrar, ao menos nos contratos de parceria público-privada, um objetivo catálogo de situações que indique quais os riscos serão partilhados entre os parceiros e quais os riscos serão de responsabilidade exclusiva de cada parte. É o início do fim dos contratos administrativos elípticos e mal ajustados, de poucas páginas, que asseguram todas as garantias possíveis ao concessionário e deixam o Estado sem clareza sobre a extensão do risco efetivo assumido pelo concessionário. 7 A Lei 11.079/2004 cuida de constituir, desde logo, no plano da União, um Fundo Garantidor de Parceiras Público-Privadas (FGP), com patrimônio inicial autorizado de R$ 6.000.000.000,00 (seis bilhões de reais), com vistas a “prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais em virtude das parcerias de que trata esta Lei” (art. 16). 8 Nesta direção, a disciplina do Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP) estabece: “Art. 18. As garantias do FGP serão prestadas proporcionalmente ao valor da participação de cada cotista, sendo vedada a concessão de garantia cujo valor presente líquido, somado ao das garantias anteriormente prestadas e demais obrigações, supere o ativo total do FGP. (...) § 3o A quitação pelo parceiro público de cada parcela de débito garantido pelo FGP importará exoneração proporcional da garantia; § 4o No caso de crédito líquido e certo, constante de título exigível aceito e não pago pelo parceiro público, a garantia poderá ser acionada pelo parceiro privado a partir do 45 o (quadragésimo quinto) dia do seu vencimento; § 5o O parceiro privado poderá acionar a garantia relativa a débitos constantes de faturas emitidas e ainda não aceitas pelo parceiro público, desde que, transcorridos mais de 90 (noventa) dias de seu vencimento, não tenha havido sua rejeição expressa por ato motivado; § 6o A quitação de débito pelo FGP importará sua subrogação nos direitos do parceiro privado.” 9 Segundo o art. 6o, parágrafo único, da Lei 11.079/2004, “o contrato poderá prever o pagamento ao parceiro privado de remuneração variável vinculada ao seu desempenho, conforme metas e padrões de qualidade e disponibilidade definidos no contrato”. Embora disciplinada como mera faculdade para os contratos de parcerias público-privadas em geral, a previsão de remuneração variável deve ser considerada a forma preferencial de remuneração dos parceiros privados nas concessões administrativas, tendo em vista distanciar a nova forma de parceria dos contratos de fornecimento de mão-de-obra, fornecimento e instalação de equipamentos ou a mera execução de obra pública. 10 Recorde-se que a Lei 8.666 veda, expressamente, nos contratos para realização de obras ou a prestação de serviços incluir no objeto da licitação a obtenção de recursos financeiros pra a execução do contrato, ressalvados apenas os empreen- Paulo Modesto 203 dimentos executados e explorados sob o regime de concessão (art. 7º, §3º), bem como a inclusão, no objeto da licitação, de fornecimento de materiais e serviços sem previsão de quantidade ou cujos quantitativos não correspondam às previsões reais do projeto básico ou executivo (art. 7º, § 4º). Estas vedações quardam coerência com a exigência de programação integral dos custos atuais e finais das obras e serviços contratados (art. 8º), mas são inviáveis de serem cumpridas em parcerias público-privadas, cuja matriz conceitual é exatamente a viabilização de obras e serviços com financiamento privado, compartilhamento de riscos e com remuneração vinculada a obrigações de resultado. 204 Parcerias Público-Privadas (PPP) REFLEXÕES SOBRE O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO Ricardo Maurício Freire Soares Doutorando e Mestre em Direito (UFBA). Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito da UFBA, Faculdade Baiana de Direito, Faculdade de Direito da UNIFACS e da FTE. Professor do Curso JUSPODIVM de preparação para carreira jurídica e da Rede Telepresencial LFG. Pesquisador-convidado da Università degli studi di Roma (Itália). Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia. E-mail: [email protected] Sumário: 1. Introdução. 2. A crise do positivismo jurídico. 3. Pós-positivismo e direito principiológico. 4. Caracteres da principiologia jurídica. 5. A funcionalidade dos princípios jurídicos. 6. Conclusão. Referências 1. Introdução Sem a pretensão de esgotar a complexidade e a vastidão do tema, o presente trabalho versa sobre o pós-positivismo jurídico. Inicialmente, será examinada a crise do positivismo jurídico, que representou a importação do positivismo filosófico para o mundo do Direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica objetiva, neutra e formalista, esvaziando-se o debate sobre a legitimidade e a justiça do sistema jurídico. Em seguida, verificar-se-á como a crise do positivismo jurídico cede espaço para a emergência de um conjunto amplo e difuso de reflexões acerca da função e interpretação do Direito, que costuma ser definido como pós-positivismo jurídico, reintroduzindo as noções de justiça e legitimidade para a compreensão axiológica e teleológica do sistema jurídico. Outrossim, será vislumbrada como a emergência do movimento pós-positivista permite a superação do reducionismo do fenômeno 205 jurídico a um sistema formal e fechado de regras legais, abrindo margem para o tratamento axiológico do direito e a utilização efetiva dos princípios jurídicos como espécies normativas que corporificam valores e finalidades. Posteriormente, serão estudados como os princípios jurídicos apresentam morfologia e estrutura normativa diversas daquelas verificadas no exame das regras de direito e como realizam múltiplas funções no ordenamento jurídico. 2. A crise do positivismo jurídico O positivismo foi fruto de uma idealização do conhecimento científico, baseada na crença de que os múltiplos domínios da atividade intelectual pudessem ser regidos por leis naturais, invariáveis e independentes da vontade humana. Nesse contexto, como bem ressalta Luís Barroso (2003, p. 320, a ciência desponta como único conhecimento verdadeiro, depurado de indagações teológicas ou metafísicas. O conhecimento científico é considerado objetivo, porque fundado no distanciamento entre sujeito e objeto e na neutralidade axiológica do sujeito cognoscente, assegurada pelo método descritivo, baseado na observação e na experimentação. O positivismo jurídico representou, assim, a importação do positivismo filosófico para o mundo do Direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica apartou o Direito da moral, concebendo o fenômeno jurídico como uma emanação imperativa e coativa do Estado. A ciência do Direito passou a fundar-se em juízos de fato e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade, esvaziando o debate sobre a legitimidade e a justiça. Segundo Norberto Bobbio (1999, p.131-134), o positivismo jurídico, como típica expressão da modernidade, pode ser 206 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico compreendido nas seguintes dimensões complementares: a) como um certo modo de abordagem do direito; b) como uma certa teoria do direito; c) como uma certa ideologia do direito. O primeiro problema diz respeito ao modo de abordar o direito. Para o positivismo jurídico, o Direito é um fato e não um valor. O jurista deve estudar o direito, do mesmo modo que o cientista estuda a realidade natural, vale dizer, abstendo-se de formular juízos de valor. Deste comportamento deriva uma teoria formalista da validade do direito. Com efeito, a validade do direito se funda em critérios que concernem unicamente à sua estrutura formal, prescindindo do seu conteúdo ético. Neste sentido, o debate sofre a justiça sofre um profundo esvaziamento ético, visto que a formalização do atributo da validez normativa afasta o exame da legitimidade da ordem jurídica. No segundo aspecto, encontramos algumas teorizações do fenômeno jurídico. O positivismo jurídico, enquanto teoria, baseiase em seis concepções fundamentais: a) teoria coativa do direito, em que o direito é definido em função do elemento da coação, pelo que as normas valem por meio da força; b) teoria legislativa do direito, em que a lei figura como a fonte primacial do direito; c) teoria imperativa do direito, em que a norma é considerada um comando ou imperativo; d) teoria da coerência do ordenamento jurídico, que considera o conjunto das normas jurídicas, excluindo a possibilidade de coexistência simultânea de duas normas antinômicas; e) teoria da completitude do ordenamento jurídico, que resulta na afirmação de que o juiz pode sempre extrair das normas explícitas ou implícitas uma regra para resolver qualquer caso concreto, excluindo a existência de lacunas no direito; f) teoria da interpretação mecanicista do direito, que diz respeito ao método da ciência jurídica, pela qual a atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo, sobre o produtivo ou criativo do direito. Ricardo Maurício Freire Soares 207 No terceiro aspecto, trata-se de uma ideologia do direito que impõe a obediência à lei, nos moldes de um positivismo ético. O positivismo como ideologia apresentaria uma versão extremista e uma moderada. A versão extremista caracteriza-se por afirmar o dever absoluto de obediência à lei, enquanto tal. Tal afirmação não se situa no plano teórico, mas no plano ideológico, pois não se insere na problemática cognoscitiva referente à definição do direito, mas numa dimensão valorativa, relativa à determinação do dever das pessoas. Assim como o jusnaturalismo, o positivismo extremista identifica ambas as noções de validade e de justiça da lei. Enquanto o primeiro deduz a validade de uma lei da sua justiça, o segundo deduz a justiça de uma lei de sua validade. O direito justo se torna uma mera decorrência lógica do direito válido. Por outro lado, a versão moderada afirma que o direito tem um valor enquanto tal, independente do seu conteúdo, mas não porque, como sustenta a versão extremista, seja sempre por si mesmo justo, pelo simples fato de ser válido, mas porque é o meio necessário para realizar um certo valor, o da ordem. Logo, a lei é a forma mais perfeita de manifestação da normatividade jurídica, visto que se afigura como a fonte do direito que melhor realiza a ordem. Sendo assim, o positivismo legalista concebia o Direito moderno como um ordenamento dessacralizado e racional. O sistema jurídico jurídico passou a ser entendido como um sistema fechado, axiomatizado e hierarquizado de normas. Desta concepção moderna defluiam as exigências de acabamento, plenitude, unicidade e coesão do direito, sendo negada a existência de lacunas e de antinomias jurídicas. Com o advento da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, na primeira metade do século XX, o positivismo jurídico se converte numa variante de normativismo lógico, aprofundando o distanciamento da ciência do direito em face das dimensões fática e valorativa do fenômeno jurídico. Sendo assim, ao isolar o direito 208 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico dos fatos sociais, Hans Kelsen rejeita o tratamento científico da efetividade da ordem jurídica. Por sua vez, ao apartar o direito da especulação axiológica sobre a justiça, expurga a compreensão da legitimidade da ordem jurídica do campo do conhecimento jurídico. Como bem assevera Orlando Gomes (2003, p. 57), a teoria pura só se ocupa do direito tal como é, até porque é uma teoria do direito positivo, pelo que o valor justiça lhe é indiferente. Toda valoração, todo o juízo sobre o Direito positivo deve ser afastado. O fim da ciência jurídica não é julgar o direito positivo, mas, tãosó, conhecê-lo na sua essência e compreendê-lo mediante a análise de sua estrutura Privilegia-se tão-somente a validade da norma jurídica, verificada através do exame imputativo da compatibilidade vertical da norma jurídica com os parâmetros de fundamentação/derivação material e, sobretudo, formal que são estabelecidos pela normatividade jurídica superior. Sendo assim, norma jurídica validade é aquela produzida de acordo com o conteúdo (o que deve ser prescrito), a competência (quem deve prescrever) e o procedimento (como deve ser prescrito) definidos pela norma jurídica superior, dentro da totalidade sistêmica hierarquizada e escalonada a que corresponde a pirâmide normativa. O sistema jurídico estaria, em última análise, fundamentado numa norma hipotética fundamental (grundnorm), como pressuposto lógico-transcendental do conhecimento jurídico, cuja função seria impor o cumprimento obrigatório do direito positivo, independentemente da sua eficácia e da sua legitimidade enquanto direito justo. Sendo assim, Hans Kelsen (2003, p. 16) se dedica a examinar o problema da justiça no plano exclusivamente ético, fora, portanto, dos limites científicos de sua Teoria Pura do Direito. Para ele, a ciência do direito não tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo Ricardo Maurício Freire Soares 209 que de fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um destes juízos de valor. Para ilustrar a sua tese de que a fé não garante certeza científica e que a justiça é um dado variável, desenvolve estudo das sagradas escrituras, fonte divina que deveria oferecer um conceito absoluto ou perene do justo. Demonstra algumas supostas incongruências entre o Antigo e o Novo Testamento. Existe, por exemplo, franca oposição entre o princípio da retaliação ensinado por Javé (Antigo Testamento) e a lei do amor e do perdão ensinada por Jesus Cristo (Novo Testamento). Acentua ainda a diferença entre a lei mosaica (decálogo), a doutrina crística (pregações de Jesus Cristo) e os ensinos paulianos (cartas e exortações). Kelsen critica ainda o idealismo platônico, pela falta de solidez de seu conceito de justiça, transformado num valor transcendente e, pois, destituído de conteúdo material e humano, bem como o pensamento aristotélico, por buscar uma matematização da justiça e não discutir a justiça na amizade. Ademais, objeta as teses preconizadas pelo jusnaturalismo, pela fluidez do conceito de natureza como fundamento para a justiça. O cepticismo axiológico da teoria pura do direito se estende, portanto, para a filosofia kelseniana da justiça, para a qual não existe, nas questões valorativas, qualquer objetividade possível, negando qualquer alternativa de racionalidade e consenso em questão de valor. Sustenta-se um relativismo axiológico ao afirmar que, no exame do problema da justiça, de um ponto de vista racional-científico, conviveriam muitos ideais de justiça contraditórios entre si, nenhum dos quais excluindo a possibilidade de um outro conceito do justo. Para Kelsen (1994, p. 76), uma teoria dos valores relativista não significa – como muitas vezes erroneamente se entende – que não haja qualquer valor e, especialmente, que não haja qualquer justiça. Significa, sim, que não há valores absolutos, mas apenas valores 210 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico relativos, que não existe uma justiça absoluta mas apenas uma justiça relativa, que os valores que nós constituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos. Enquanto teoria relativista dos valores, também o positivismo lógico fornece critérios para a apreciação ou valoração do direito positivo. Apenas sucede que estes critérios têm um caráter relativo, negando-se, assim, o tratamento racional da justiça, pois, na visão kelseniana, racionalizar a qualificação de uma conduta como devida, sob o ponto de vista de seu valor intrínseco, implicaria negar a diferença entre a lei físico-matemática e a lei ética. Ao tentar definir o que seja justiça, Kelsen (2001, p. 25) assinala que, de fato, não sabe e não pode dizer o que seja a justiça absoluta. Sendo assim, satisfaz-se com uma justiça relativa, só podendo declarar o que significa justiça para ele próprio. Uma vez que a ciência é sua profissão, propõe uma justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. Para ele, trata-se da justiça da liberdade, da paz, da democracia e da tolerância. A teoria pura do direito, no entanto, não nega lugar aos valores como integrantes da experiência jurídica e reconhece sua presença na prática dos juristas. Isto porque a moldura da norma superior combina vinculação e indeterminabilidade do conteúdo da norma inferior, implicando a necessidade de interpretação. Diferentemente do que ocorre com a interpretação doutrinária, a interpretação autêntica, de responsabilidade do órgão de aplicação do direito no exercício de sua competência normativa, é produzida como ato de vontade. Enquanto aquela procura apontar as alternativas hermenêuticas abertas pela indeterminação lingüística do texto normativo, a interpretação autêntica permite que o aplicador do Ricardo Maurício Freire Soares 211 direito realize escolha valorativa, o que escapa do domínio da ciência jurídica. O positivismo jurídico sujeitou-se, contudo, à crítica crescente, visto que jamais foi possível a transposição totalmente satisfatória dos métodos das ciências naturais para o campo próprio das ciências humanas. O Direito, ao contrário de outros domínios do saber, não comporta uma postura puramente descritiva da realidade, visto que não é um dado, mas uma criação social e cultural, pelo que o ideal positivista de objetividade e neutralidade é insuscetível de realizar-se no plano jurídico. Essa é razão pela qual a decadência do positivismo jurídico costuma ser emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, porquanto tais movimentos, em nome da legalidade vigente, promoveram inúmeras injustiças e ofensas à dignidade da pessoa humana. Ao cabo da segunda grande guerra, as idéias de um ordenamento jurídico desvinculado do problema da legitimidade, porque indiferente a valores éticopolíticos, bem como de uma legislação formalista e afastada do valor supremo da justiça, não mais gozavam do reconhecimento pela comunidade jurídica ocidental. Ao constatar os mencionados limites do positivismo jurídico, Karl Engisch (1960, p.74) critica a redução normativista operada pela doutrina do direito positivo, afirmando que a ordem jurídica deve ser entendida como um conjunto de valores, através dos quais os juristas elaboram juízos axiológicos sobre a justiça dos acontecimentos e das condutas humanas. Em face do problema da fundamentação do direito justo, o positivismo jurídico, em suas mais diversas manifestações, revela propostas limitadas e insatisfatórias. Isto porque a identificação entre direito positivo e direito justo e a excessiva formalização da validez normativa não propiciam uma compreensão mais adequada das íntimas relações entre direito, legitimidade e justiça. 212 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico Decerto, o positivismo legalista desemboca numa ideologia conservadora que ora identifica a legalidade com o valor-fim da justiça, em face da crença na divindade do legislador, ora concebe a ordem positivada pelo sistema normativo como valor-meio suficiente para a realização de um direito justo. Por sua vez, o positivismo lógico da Teoria Pura do Direito abdica o tratamento racional do problema da justiça, ao afastar quaisquer considerações fáticas e, sobretudo, valorativas do plano da ciência jurídica, de molde a assegurar os votos de castidade axiológica do jurista. A busca do direito justo passa a depender das inclinações político-ideológicas de cada indivíduo, relegando ao campo do cepticismo e do relativismo a compreensão do direito justo. Com a crise do positivismo jurídico, abriu-se espaço para a emergência de um conjunto amplo e difuso de reflexões acerca da função e interpretação do Direito, que costuma ser definido como pós-positivismo jurídico, reintroduzindo as noções de justiça e legitimidade para a compreensão axiológica e teleológica do sistema jurídico. 3. Pós-positivismo e direito principiológico Decerto, o reexame do modelo positivista tem ocupado cada vez mais espaço nas formulações da ciência do direito. A constatação de que o direito não se resume a um sistema fechado de regras legais abriu margem para que fossem oferecidos novos tratamentos cognitivos ao fenômeno jurídico. Buscou-se, então, conceber-se a ordem jurídica como um sistema plural, dinâmico e aberto aos fatos e valores sociais. Deste modo, foi se erguendo um novo paradigma jurídico, denominado por muitos autores como “pós-positivismo”. Podem ser elencados, no campo teórico pós-positivista, dois pilares básicos: a proposta de uma nova grade de compreensão das relações entre direito, moral e política; e o desenvolvimento Ricardo Maurício Freire Soares 213 de uma crítica contundente à concepção formalista do positivismo jurídico. Em relação a este segundo aspecto, interessa frisar a emergência de um modelo de compreensão principiológica do direito, que confere aos princípios jurídicos uma condição central na estruturação do raciocínio do jurista, com reflexos diretos na interpretação e aplicação da ordem jurídica. Divisando a emergência desta nova concepção, sustenta Eduardo de Enterría (1986, pp. 30-34) que todo ele está conduzindo o pensamento jurídico ocidental a uma concepção substancialista e não formal de Direito, cujo ponto de penetração, mais que uma metafísica da justiça ou uma axiomática da matéria legal, que se encontra nos princípios gerais do direito, expressão desde logo de uma justiça material, mas especificada tecnicamente em função de problemas jurídicos concretos. Agora, a ciência jurídica não tem outra missão senão aquela de revelar e descobrir, através de conexões de sentido cada vez mais profundas e ricas, mediante a construção de instituições e a integração respectiva de todas elas em conjunto, os princípios gerais sobre os quais se articula e deve, por conseguinte, expressar-se a ordem jurídica. Dentro do pensamento jurídico pós-positivista, sem embargo de outras referências importantes, adquirem relevo as contribuições de expoentes como Chaïm Perelman, Ronald Dworkin e Robert Alexy, cujas concepções devem ser examinadas no presente trabalho, ainda que numa apertada síntese. No tocante a Chaïm Perelman, sua obra se insurge contra as conseqüências de uma abordagem positivista no campo da argumentação racional dos valores. O filósofo belga critica o modelo teórico que privilegia apenas a demonstração e o raciocínio lógico-matemático como caminhos para a obtenção da verdade, o que acaba por relegar ao voluntarismo todas as opções axiológicas do indivíduo. 214 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico Ao refutar a concepção moderna de razão, Perelman busca enfatizar meios de prova distintos do modelo dedutivo-silogístico. A valorização de outros meios de produzir convencimento reclama a elaboração de uma teoria da argumentação, capaz de descortinar um caminho diferente da demonstração, pedra de toque do funcionamento da lógica cartesiana tradicional. Segundo ele, é necessário potencializar a dimensão retórica do direito e investigar o modo de desenvolvimento racional da argumentação, perquirindo as técnicas capazes de permitir a adesão de teses sustentadas perante um determinado auditório. Partindo da distinção cunhada por Aristóteles entre o raciocínio dialético, que trata do verossímil e serve para embasar decisões, e o raciocínio analítico, que abrange o necessário e sustenta demonstrações, Perelman situa o raciocínio jurídico no primeiro grupo, ressaltando a sua natureza argumentativa. Sendo assim, as premissas do raciocínio juridico não são previamente dadas, mas, em verdade, são escolhidas pelo orador. O interlocutor que as elege (v.g., o advogado, o promotor, o juiz) deve, de início, buscar compartilhá-las com o seu auditório (e.g., juiz, tribunal, júri, opinião pública), pois, em seu cotidiano profissional, o operador do direito é instado a formular argumentos a fim de convencer o interlocutor da tese sustentada. Perelman constata, assim, a importância da retórica no âmbito do conhecimento jurídico, com o que se opõe a algumas premissas básicas do positivismo lógico, tais como a rígida separação entre o direito e a moral, com a conseqüente negação da normatividade dos princípios jurídicos. Neste diapasão, refere Chaïm Perelman (1999, pp.395-396) que, cada vez mais, juristas vindos de todos os cantos do horizonte recorrem aos princípios gerais do direito, que poderíamos aproximar do antigo jus gentium e que encontrariam no consenso Ricardo Maurício Freire Soares 215 da humanidade civilizada seu fundamento efetivo e suficiente. O próprio fato destes princípios serem reconhecidos, explícita ou implicitamente, pelos tribunais de diversos países, mesmo que não tenham sido proclamados obrigatórios pelo poder legislativo, prova a natureza insuficiente da construção positivista que faz a validade de toda a regra do direito depender de sua integração num sistema hierarquizado de normas. Com efeito, Perelman observa que, na prática da decisão judicial, ao contrário do que defendiam os positivistas, são introduzidas noções pertencentes à moralidade, mediante o uso da principiologia. Sendo assim, os princípios jurídicos figuram, então, como topoi (lugares-comuns), aos quais o juiz pode recorrer como premissas, compartilhadas pela comunidade jurídica, para a justificação racional de um ato decisório. A utilização destes topoi, no processo de argumentação judicial, remete à necessidade de uma escolha valorativa do hermeneuta, que se orienta pelo potencial justificador e racionalizador para a tomada de uma decisão. Para Perelman, não basta ter princípios gerais como ponto inicial de uma argumentação, sendo necessário escolhê-los de um modo tal que sejam aceitos pelo auditório, bem como formulá-los e interpretá-los, para poder adaptá-los ao caso de aplicação pertinente. O que importa é causar a adesão do auditório composto pela comunidade jurídica, através do uso dos topoi mais persuasivos para o deslinde do caso concreto, através da força dos melhores argumentos, o que se potencializa com o uso da principiologia jurídica. De outro lado, Ronald Dworkin tem desenvolvido suas reflexões sobre os princípios jurídicos a partir de um diálogo com outras doutrinas positivistas, mormente o normativismo lógico de Hart, no contexto dos sistemas de inspiração anglo-saxônica (common law). Dworkin não compartilha do entendimento de que, nos chamados hard cases, o julgador pratica um mero ato volitivo, 216 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico exteriorizando suas convicções particulares e arbitrárias de justiça. Segundo ele, os princípios podem ser utilizados como critérios racionais para uma interpretação reconstrutiva da ordem jurídica e a conseqüente tomada de uma decisão, porque objetivamente inseridos no sistema jurídico. Para Dworkin, é indispensável reabilitar a racionalidade moralprática no campo da metodologia jurídica, de molde a controlar a decisão judicial. Para tanto, critica a estreita visão positivista que considera o direito como um sistema composto exclusivamente de regras e que autoriza a discricionariedade do magistrado no preenchimento das eventuais lacunas jurídicas. Isto porque quando se admite que o ordenamento jurídico também contempla princípios, esses problemas restarão solucionados. Neste sentido, sustenta Ronald Dworkin (1997, p.100) que, uma vez abandonada a doutrina do positivismo jurídico e tratados os princípios como expressão do direito, cria-se a possibilidade de que uma obrigação jurídica a ser cumprida pelo jurisdicionado possa ser imposta tanto por uma constelação de princípios como por uma regra estabelecida no sistema jurídico. Na perspectiva de Dworkin, os princípios jurídicos, diferentemente, das regras, não podem ser aplicados através do método lógico-formal, por não disciplinar diretamente uma caso concreto. Ademais, é possível que mais de uma norma principiológica seja relevante para a solução do litígio, apontando em sentidos diversos. Configurada esta hipótese, o julgador deverá avaliar quais são os princípios jurídicos preponderantes e operar uma atividade de sopesamento, estabelecendo uma relação de prioridade concreta, em face da especificidade de uma dada situação jurídica. Sendo assim, a colisão principiológica se resolve através de um processo hermenêutico de ponderação, em que os diversos princípios jurídicos relevantes ao caso concreto são apreciados em face dos fatos e valores incidentes. Ricardo Maurício Freire Soares 217 Decerto, as normas principiológicas consubstanciam valores e fins muitas vezes distintos, apontando para soluções diversas e contraditórias para um mesmo problema. Logo, com a colisão de princípios jurídicos, podem incidir mais de uma norma sobre o mesmo conjunto de fatos, como o que várias premissas maiores disputam a primazia de aplicabilidade a uma premissa menor. A interpretação jurídica contemporânea, na esteira do pós-positivismo, deparou-se, então, com a necessidade de desenvolver técnicas capazes de lidar com a natureza essencialmente dialética do direito, ao tutelar interesses potencialmente conflitantes, exigindo o uso do instrumental metodológico da ponderação. Por outro lado, ao estudar o sistema jurídico anglo-saxônico, marcado pela força dos costumes e dos precedentes judiciais, Dworkin pontifica que a prática jurídica se afigura como um exercício permanente de interpretação. Apontando os pontos de convergência entre a interpretação literária e a interpretação jurídica, pretende demonstrar que a ordem jurídica é um produto de sucessivos julgamentos interpretativos. Os intérpretes/aplicadores, no entender de Dworkin, atuariam como romancistas em cadeia, sendo responsáveis pela estruturação de uma obra coletiva – o sistema jurídico. Para Dworkin (2000:238), decidir casos controversos no direito é mais ou menos como esse estranho exercício literário. A similaridade é mais evidente quando os juízes examinam e decidem casos do common law, isto é, quando nenhuma lei ocupa posição central na questão jurídica e o argumento gira em torno de quais regras ou princípios de Direito subjazem a decisões de outros juízes, no passado, sobre matéria semelhante. Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram 218 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então. A função do intérprete e aplicador seria, portanto, a de reconstruir racionalmente a ordem jurídica vigente, identificando os princípios fundamentais que lhe dão sentido. Rompe-se, assim, com a dicotomia hermenêutica clásssica que contrapõe a descoberta (cognição passiva) e a invenção (vontade ativa), na busca dos significados jurídicos. O hermeneuta, diante de um caso concreto, não estaria, assim, criando direito novo, mas racionalizando o material normativo existente. O que se trata é de buscar identificar os princípios que podem dar coerência e justificar a ordem jurídica, bem como as instituições políticas vigentes. Cabe ao intérprete se orientar pelo substrato ético-social, promovendo, historicamente, a reconstrução do direito, com base nos referenciais axiológicos indicados pelos princípios jurídicos. A seu turno, merece também registro a obra de Robert Alexy, que se propõe a examinar as possibilidades de uma racionalização discursivo-procedimental para o Direito, com destaque para o papel exercido pelos princípíos jurídicos. Com efeito, Alexy parte de uma teoria geral da argumentação prática para aplicá-la ao campo do direito. Para ele, o discurso jurídico figura como um um caso especial do discurso da moralidade. Valendo-se da contribuição da teoria da ação comunicativa de Jurgen Habermas, entende Alexy que as questões jurídicas podem ser decididas por meio da racionalidade do melhor argumento, como expressão de um consenso justificado. Segundo Alexy, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral, porque são debatidas questões práticas, com uma justa pretensão de correção, dentro dos limites normativos do direito positivo. O discurso jurídico não pretende sustentar que uma determinada proposição seja intrinsicamente verdadeira, mas, Ricardo Maurício Freire Soares 219 isto sim, que ela pode ser fundamentada racionalmente na moldura do ordenamento jurídico vigente. Para ele, se, por um lado, o procedimento do discurso jurídico se define pelas regras e formas do discurso prático geral, por outro lado, é moldado pelas regras e formas específicas do discurso jurídico, que expressam, basicamente, a sujeição à lei, aos precedentes judiciais e à ciência dogmática do direito. Sendo assim, sustenta Alexy que uma teoria da argumentação jurídica apresenta o seu valor prático quando consegue unir dois modelos diferentes de sistema jurídico: o procedimental e o normativo. O primeiro representa o lado ativo, composto de quatro procedimentos (discurso prático geral, criação estatal do direito, discurso jurídico e processo judicial). O segundo configura a dimensão passiva, constituído por regras e princípios. A concepção tridimensional de Alexy - composta de regras, princípios e procedimentos - não permite atingir sempre uma única resposta correta para cada caso concreto, mas, em contrapartida, potencializa a busca de um maior grau de racionalidade prática para a tomada da decisão jurídica. Sobre a principiologia jurídica, leciona Robert Alexy (2001,p.248) que a formulação de princípios forma uma classe final de normas jurídicas. Para ele, princípios são proposições normativas de um tão alto nível de generalidade que podem, via de regra, não ser aplicados sem o acréscimo de outras premissas normativas e, habitualmente, são sujeitos às limitações por conta de outros princípios. Em vez de serem introduzidos na discussão como proposições normativas, os princípios também podem ser introduzidos como descrições de estados de coisas em que são considerados bons. Na visão de Alexy, as regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, deste modo, podem apenas ser cumpridas ou descumpridas. A forma característica de aplicação das regras 220 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico é a subsunção. Os princípios, contudo, são normas que ordenam a realização de algo na maior medida possível, relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas. As normas principiológicas figuram, por conseguinte, como mandados de otimização, podendo ser cumpridos em diversos graus. A forma característica de aplicação dos princípios é, portanto, a ponderação. Como já referido na obra de Ronald Dworkin, sob a égide de uma visão positivista do direito, a subsunção se afigurou como a fórmula típica de aplicação normativa, caracterizada por uma operação meramente formal e lógico-dedutiva: identificação da premissa maior (a norma jurídica); a delimitação da premissa menor (os fatos); e a posterior elaboração de um juízo conclusivo (adequação da norma jurídica ao caso concreto). Se esta espécie de raciocínio ainda serve para a aplicação de algumas regras de direito, revela-se, no entanto, insuficiente para a lidar com a interpretação dos princípios jurídicos, como fundamentos para a decidibilidade de conflitos. Desponta, assim, a ponderação como técnica hermenêutica aplicável a casos difíceis (hard cases), em relação aos quais a subsunção figura insuficiente, especialmente quando a situação concreta rende ensejo para a aplicação de normas principiológicas que sinalizam soluções diferenciadas. Embora não seja possível conceber uma teoria sobre os princípios jurídicos que os situe numa hierarquia restrita, Alexy propõe uma ordem frouxa, que permite a aplicação ponderada da principiologia, como fundamento para a tomada de decisões jurídicas, e não o seu uso arbitrário, o que sucederia caso se circunscrevesse a um mero catálogo de topoi. Como bem refere Atienza (2003, p.182), essa ordem frouxa proposta por Alexy se compõe de três elementos: a) um sistema de condições de prioridade, que fazem com que a resolução das colisões entre os princípios, num caso concreto, também tenha relevo para novos casos. As condições sob as quais um princípio Ricardo Maurício Freire Soares 221 prevalece sobre outro formam o caso concreto de uma regra que determina as conseqüências jurídicas do princípio prevalecente; b) um sistema de estruturas de ponderação que derivam da natureza dos princípios como mandados de otimização. Com referência às possibilidades fáticas, cabe formular as seguintes regras: uma medida M é proibida em face de P1 e P2, senão é eficaz para proteger o princípio P1, mas é eficaz para solapar o princípio P2; uma medida M1 é proibida com relação a P1 e P2 se existe uma alternativa M2 que protege P1 pelo menos tão bem quanto M1, mas que solapa menos P2. Com relação às possibilidades jurídicas, a obrigação de otimização corresponde ao princípio da proporcionalidade, que se exprime nesta lei de ponderação: quanto mais alto for o grau de descumprimento ou de desprezo por um princípio, tanto maior deverá ser a importância do cumprimento do outro; c) um sistema de prioridades prima facie: a prioridade estabelecida de um princípio sobre outro pode ceder no futuro, mas quem pretende modificar essa prioridade se encarrega da importância da prova. Ademais, Robert Alexy (2002, p.457) correlaciona ainda a normatividade jurídica com a organização procedimental, ao referir que os procedimentos se afiguram como os meios capazes de produzir um acordo racional sobre o conteúdo dos direitos fundamentais, geralmente enunciados em princípios jurídicos, oportunizando a dinamização de um espaço comunicativo necessário para a correção das proposições normativas. Neste contexto, afirma-se que os procedimentos são sistemas de regras e princípios para a obtenção de um resultado consensual. Se o resultado do discurso jurídico é obtido com base em tais regras e princípios, então, desde o aspecto procedimental, essa é uma característica positiva. Se não é obtido desta forma, o resultado é defeituoso desde o ponto de vista procedimental, afigurandose negativo. Tudo isso revela como a estruturação dos 222 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico procedimentos está umbilicalmente ligada à tutela dos direitos fundamentais do cidadão. Deste modo, como se infere dos contributos de Perelman, Dworkin e Alexy, a difusão deste novo paradigma pós-positivista, que enfatiza a relevância téorico-prática dos princípios, permite oferecer um instrumental metodológico mais compatível com o funcionamento dos sistemas jurídicos contemporâneos, a fim de conciliar legalidade com legitimidade e restaurar os laços éticos privilegiados entre o direito e a moralidade social. 4. Caracteres da principiologia jurídica O vocábulo princípio significa, numa acepção vulgar, início, começo ou origem das coisas. Transpondo o vocábulo para o plano gnoseológico, os princípios figuram como os pressupostos necessários de um sistema particular de conhecimento, servindo como a condição de validade das demais proposições que integram um dado campo do saber, inclusive, no plano do conhecimento jurídico. Como ressalta Humberto Ávila (2005, p.15), em virtude da constante utilização dos princípios na atualidade, chega-se mesmo a afirmar que a comunidade jurídica presencia um verdadeiro Estado Principiológico. Este é o motivo pelo qual a doutrina e a jurisprudência têm utilizado, cade vez com maior freqüencia, os princípios jurídicos na resolução de problemas concretos, tornando absolutamente necessário ao intérprete do direito compreender estas proposições. Gradativamente, a doutrina vem assinalado o papel prescritivo da principiologia jurídica, visto que, com o advento do paradigma pós-positivista, os princípios foram inseridos no campo da normatividade jurídica. Como normas jurídicas de inegável densidade valorativa e teleológica que consubstanciam direitos fundamentais dos cidadãos, os princípios jurídicos adquiriram Ricardo Maurício Freire Soares 223 enorme importância nas sociedades contemporâneas, reclamando dos juristas todo esforço para emprestar-lhes aplicabilidade e efetividade. Eis a razão pela qual a ciência do direito tem revelado um significativo empenho em compreender a morfologia e estrutura dos princípios jurídicos, na busca de seus elementos autênticos, para diferenciá-los das regras jurídicas. Conforme assinala Ruy Espíndola (1999, p.65), a diferenciação entre regras e princípios jurídicos pode ser guiada pelos seguintes critérios: a) O grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida; b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador, julgador ou administrador), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação direta; c) Caráter de fundamentalidade no sistema de fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito); d) Proximidade da idéia de direito: os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculantes com um conteúdo meramente formal; e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante. Sendo assim, as regras disciplinam uma situação jurídica determinada, para exigir, proibir ou facultar uma conduta em termos definitivos. Os princípios, por sua vez, expressam uma diretriz, sem regular situação jurídica específica, nem se reportar a um fato 224 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico particular, prescrevendo o agir humano em conformidade com os valores jurídicos. Diante do maior grau de abstração, irradiam-se os princípios irradiam-se pelos diferentes setores da ordem jurídica, embasando a compreensão unitária e harmônica do sistema normativo. Deste modo, a violação de um princípio jurídico é algo mais grave do que a transgressão de uma regra jurídica. A inobservância de um princípio ofende não apenas um específico mandamento obrigatório, mas a todo um plexo de comandos normativos. Tratase, pois, da mais grave forma de invalidade, visto que representa insurgência contra todo o sistema normativo, ferindo os seus valores fundantes. 5. A funcionalidade dos princípios jurídicos Não basta ao operador do direito conhecer as características dos princípios, sendo fundamental, outrossim, saber para que eles servem no plano do conhecimento jurídico. É necessário, assim, compreender qual a função dos princípios de direito para que sejam aplicados corretamente. Os princípios figuram como normas jurídicas, mas exercem um papel diferente daquele desempenhado pelas regras jurídicas. Estas, por descreverem fatos hipotéticos, possuem a nítida função de disciplinar as relações intersubjetivas que se enquadrem nas molduras típicas. O mesmo não se processa com os princípios, em face das peculiaridades já demonstradas. Os princípios jurídicos são, por seu turno, multifuncionais, podendo ser vislumbradas as funções supletiva, fundamentadora e hermenêutica. Não é outro o pensamento de Joaquín Valdés (1990, pp.78-79) quando afirma que os princípios gerais do direito, como as idéias fundamentais que a comunidade forma sobre sua organização jurídica, estão sendo chamados para cumprir a tríplice função fundamentadora, interpretativa e supletória. Tais idéias básicas, Ricardo Maurício Freire Soares 225 por ser fundamento da organização jurídica, assumem uma missão para o desenvolvimento legislativo necessário para a regulação de todas as relações interindividuais e coletivas, como cumprem um papel crítico (axiológico), capaz, em última análise, de invalidar ou derrogar toda norma positiva que mostre, irredutivelmente, uma oposição aos princípios. Tanto uma como outra função se realizam em virtude do denominado caráter informador, que também justifica sua missão interpretativa, em relação às demais fontes jurídicas. Residualmente, podem ser utilizados ainda como fonte autônoma, de direta aplicação, para resolver ou regular situações concretas jurídicas, na falta da lei ou costume, assumindo, assim, o caráter de fonte supletória e integradora do ordenamento jurídico. Na qualidade de fonte subsidiária do direito, os princípios serviriam como elemento integrador, tendo em vista o preenchimento das lacunas do sistema jurídico, na hipótese de ausência da lei aplicável à espécie típica. Esta concepção revelase, porém, anacrônica. Isto porque, ao se constatar a normatividade dos princípios jurídicos, estes perdem o caráter supletivo, passando a impor uma aplicação obrigatória. De antiga fonte subsidiária dos códigos, os princípios gerais, desde o advento do constitucionalismo da segunda metade do século vinte, tornaramse fonte primária de normatividade, corporificando os valores supremos da ordem jurídica. Sendo assim, os princípios devem ser utilizados como fonte imediata do direito, podendo ser aplicados diretamente a todos os casos concretos. Por outro lado, no desempenho de sua função fundamentadora, os princípios são as idéias básicas que servem de embasamento ao direito positivo, exprimindo as finalidades e as estimativas que inspiram a criação do ordenamento jurídico. Destaca-se ainda a função hermenêutica dos princípios jurídicos, ao informar e orientar a interpretação e aplicação de todo o sistema normativo, inclusive, das próprias regras jurídicas. Logo, afigura226 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico se incorreta a interpretação da regra, quando dela deflui contradição, explícita ou tácita, com a principiologia do direito. A interpretação deve, então, calibrar o alcance e o sentido da regra com as pautas axiológicas dos princípios jurídicos. Ainda neste plano hermenêutico, serve também o princípio jurídico como limite de atuação do intérprete, pois, ao mesmo passo em que funciona como vetor interpretativo, o princípio tem limita o subjetivismo do aplicador do direito. Sendo assim, os princípios estabelecem balizamentos dentro dos quais o jurista exercitará seu senso do razoável e sua capacidade de realizar o justo diante de um dado caso concreto. Ademais, pode-se dizer que os princípios jurídicos funcionam como padrões legitimidade para a escolha de uma opção hermenêutica. Decerto, os princípios despontam como imposições deontológicas capazes conferir força de convencimento às decisões jurídicas. Quanto mais o operador do direito procurar utilizá-los, no deslinde dos conflitos de interesses, mais legítima tenderá a ser a interpretação e a posterior decisão. Por outro lado, carecerá de legitimidade a decisão que desrespeitar os princípios jurídicos, enquanto repositório de valores socialmente aceitos. Em sua dimensão hermenêutica, a aplicação dos princípios jurídicos exige que sejam densificados e concretizados pelos operadores do direito. O ato de densificar um princípio jurídico implica em preencher e complementar o espaço normativo, a fim de tornar possível a solução dos problemas concretos. Por sua vez, concretizar o princípio jurídico consiste em traduzi-lo em decisão, passando dos textos normativos às normas decisórias. Neste sentido, doutrina Eros Grau (2002, 170-171) que, enquanto as regras estabelecem o que é devido e o que não é devido em circunstâncias nelas próprias determinadas, os princípios estabelecem orientações gerais a serem seguidas em casos, não predeterminados no próprio princípio, que possam ocorrer. Por Ricardo Maurício Freire Soares 227 isso, os princípios são dotados de uma capacidade expansiva maior do que a das regras, mas, ao contrário destas, necessitam de uma atividade ulterior de concretização que os relacione a casos específicos. Como se depreende do exposto, as tarefas hermenêuticas de concretização e de densificação das normas principiológicas estão umbilicalmente ligadas: densifica-se um espaço normativo a fim de tornar possível a concretização e a conseqüente aplicação de um princípio jurídico a uma controvérsia jurídica. 6. Conclusão Em face de todo o exposto, pode-se sintetizar que: - o positivismo jurídico representou a importação do positivismo filosófico para o mundo do Direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais; - a busca positivista pela objetividade científica, com ênfase na realidade empírica, apartou o Direito da moral e dos valores transcendentes, concebendo o fenômeno jurídico como uma emanação do Estado com caráter imperativo e coativo; - a ciência jurídica positivista passou a fundar-se em juízos de fato e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade, esvaziando o debate sobre a legitimidade e a justiça; - o positivismo jurídico sujeitou-se a uma crítica severa, porquanto jamais foi possível a transposição dos métodos das ciências naturais para o campo próprio das ciências humanas, pois o Direito não comporta uma postura puramente descritiva da realidade, pelo que o ideal positivista de objetividade e neutralidade é insuscetível de realizar-se no plano jurídico. - o positivismo jurídico, em suas mais diversas manifestações, revela propostas limitadas e insatisfatórias, porque a identificação 228 Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico entre direito positivo e direito justo e a excessiva formalização da validez normativa não propiciam uma compreensão mais adequada das íntimas relações entre direito, legitimidade e justiça; - o positivismo legalista desemboca numa ideologia conservadora que ora identifica a legalidade com o valor-fim da justiça, em face da crença na divindade do legislador, ora concebe a ordem positivada pelo sistema normativo como valor-meio suficiente para a realização de um direito justo; - o positivismo lógico da Teoria Pura do Direito abdica o tratamento racional do problema da justiça, ao afastar quaisquer considerações fáticas e, sobretudo, valorativas do plano da ciência jurídica, de molde a assegurar os votos de castidade axiológica do jurista. A busca do direito justo passa a depender das inclinações político-ideológicas de cada indivíduo, relegando ao campo do cepticismo e do relativismo a compreensão do direito justo; - a crise do positivismo jurídico cede espaço para a emergência de um conjunto amplo e difuso de reflexões acerca da função e interpretação do Direito, que costuma ser definido como póspositivismo jurídico, reintroduzindo as noções de justiça e legitimidade para a compreensão axiológica e teleológica do sistema jurídico; - a emergência do movimento pós-positivista permite a superação do reducionismo do fenômeno jurídico a um sistema formal e fechado de regras legais, abrindo margem para o tratamento axiológico do direito e a utilização efetiva dos princípios jurídicos como espécies normativas que corporificam valores e finalidades; - o pós-positivismo, baseado no uso dos princípios, oferece um instrumental metodológico mais compatível com o funcionamento dos sistemas jurídicos contemporâneos, a fim de harmonizar legalidade com legitimidade e reafirmar os laços éticos privilegiados entre o direito e a moralidade social; Ricardo Maurício Freire Soares 229 - os princípios jurídicos apresentam morfologia e estrutura normativa diversas daquelas verificadas no exame das regras de direito, visto que as regras disciplinam uma situação jurídica determinada, em termos definitivos, sendo aplicadas por subsunção, enquanto as normas principiológicas expressam uma opção valorativa, sem regular situação jurídica específica, nem se reportar a uma circunstância particular, sendo aplicadas por ponderação; - os princípios jurídicos procuram realizar as funções supletiva, fundamentadora e hermenêutica, oferecendo, nesta última hipótese, os parâmetros para uma interpretação/aplicação do direito que, ao superar o modelo subsuntivo, revela-se mais legítima e compatível com os fatos sociais; 7. 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O que colocar num projeto de pesquisa? 5 Descrição das partes do projeto de pesquisa; 5.1 Capa e folha de rosto; 5.2 Sumário; 5.3 Identificação do projeto; 5.4 Introdução e apresentação; 5.5 Justificativa; 5.6 Problema de pesquisa; 5.6.1 Definição e importância do problema; 5.6.2 Delimitando o âmbito da pesquisa: os limites do trabalho a ser planejado; 5.6.2.1 Recortando o objeto da pesquisa; 5.6.2.1 a) Em relação ao assunto; 5.6.2.1 b) Em relação ao tempo; 5.6.2.1 c) Em relação ao espaço; 5.6.2.2 Tipos de perguntas-problemas para a pesquisa; 5.6.2.3 Requisitos para a formulação da sua pergunta-problema: familiaridade e criatividade; 5.6.2.4 Outros elementos a serem observados na escolha da sua perguntaproblema: aptidão, inclinação e motivação pessoal; 5.6.2.5 A viabilidade da pesquisa: também requer cuidado na formulação da pergunta-problema; 5.7 Hipótese; 5.8 Questões orientadoras; 5.9 Objetivos; 5.10 Revisão de literatura; 5.11 Teoria de base ou embasamento teórico; 5.12 Sistema conceitual; 5.13 Estrutura preliminar; 5.14 Metodologia; 5.14.1 Função da metodologia; 5.14.2 Ausência de uniformidade; 5.14.3 Que informações são necessárias? 5.15 Resultados esperados; 5.16 Cronograma; 5.17 Orçamento; 5.18 Conclusão; 5.19 Referências; 5.20 Apêndice; 5.21 Anexos; 6 Formatação; Bibliografia 1. Advertência preliminar Normalmente, os guias ou manuais não são capazes de ensinar a fazer pesquisa, pois esta se aprende com a própria prática da 233 pesquisa. Entende-se que mais útil para o estudante é ajudá-lo a descobrir sua própria forma de pesquisar, oferecendo-lhe sugestões de como proceder em determinados momentos, apresentando-lhe opções de caminhos que podem ser tomados, indicando as atitudes que normalmente dão certo e alertando-o sobre as decisões que, na maioria das vezes, fazem com que o pesquisador iniciante se perca em seu trabalho ou se desvie de seu curso principal. Assim, não se busca, neste trabalho, elaborar uma análise da epistemologia da ciência ou das teorias sobre o conhecimento científico. Este texto é especialmente destinado a quem está diante de uma pesquisa a ser planejada e que gostaria de ter alguma orientação prática sobre como proceder. 2. Sobre a metodologia de pesquisa A metodologia de pesquisa pode ser entendida como um roteiro para a realização de pesquisas que pretendem ter como resultados conhecimentos novos e relevantes, obtidos a partir de procedimentos reconhecidos como científicos pela comunidade. Não se trata, propriamente, de regras ou normas a serem seguidas obrigatoriamente pelo pesquisador, mas de um conjunto de práticas ou costumes que poderão ajudá-lo a chegar ao final de sua pesquisa obtendo o reconhecimento de seus pares. Portanto, o que se vai ver nas próximas páginas não são modelos nos quais o pesquisador deve se encaixar, mas informações sobre como normalmente as pesquisas reconhecidas têm se desenvolvido. Não se podem tomar tais costumes acriticamente nem colocar as orientações metodológicas como fim de uma pesquisa, mas, sempre, como um instrumento. Assim, as regras ou normas metodológicas são costumes ou práticas que servem para nos orientar quando resolvermos fazer nossa pesquisa. Como as pesquisas reconhecidas pela 234 Como escrever um projeto de pesquisa? comunidade científica seguem determinados procedimentos, vamos conhecer esses procedimentos para podermos atingir, também, um bom resultado para nossa pesquisa. Essas normas não são propriamente estabelecidas por alguém, surgem da prática da pesquisa e da discussão teórica sobre a metodologia científica, constituindo-se muito mais de costumes ou práticas reiteradas da comunidade de pesquisadores do que normas impostas por alguém. Se estas regras ou procedimentos não forem adotados pelo pesquisador, ele corre o risco ou de se perder em sua pesquisa ou de, ao final desta, não obter o reconhecimento pretendido. Feitas essas observações preliminares, deve-se preparar para uma atividade que deverá ser proveitosa, criativa, produtiva e prazerosa que, além disso, poderá atribuir os títulos ou reconhecimentos desejados e contribuir para o desenvolvimento teórico ou social de um campo ou setor. 3. Sobre o projeto de pesquisa A função mais importante do projeto de pesquisa é a de projetar o trabalho a ser feito, tanto em relação ao seu provável conteúdo como em relação às etapas a vencer. Ou seja, sua principal utilidade é servir ao próprio pesquisador, como planejamento de sua pesquisa. Neste aspecto, ele é essencial para que o pesquisar se organize e não se perca antes mesmo de começar a pesquisa. A monografia/dissertação/tese resulta de uma pesquisa. A pesquisa é uma atividade que demanda certo planejamento. Se se pretende elaborar uma monografia/dissertação/tese, o primeiro passo é planejar a pesquisa que levará até ela. A redação da monografia/dissertação/tese é a última fase de uma pesquisa, na qual o pesquisador exporá à comunidade científica qual era, inicialmente, seu problema, quais eram seus objetivos no início da pesquisa, qual resultado foi alcançado e que caminho ele percorreu até chegar ao resultado ou conclusão. Roxana Cardoso Brasileiro Borges 235 Assim, a monografia/dissertação/tese é um relatório da pesquisa, devendo, portanto, ser escrita apenas ao final desta. Portanto, para escrever uma monografia/dissertação/tese, precisa-se, antes, desenvolver uma pesquisa. E, para desenvolver uma pesquisa, precisa-se planejar como fazê-la, para que haja eficiência. Esta é a função do projeto: projetar a pesquisa. O projeto de pesquisa contém informações sobre todos os aspectos da pesquisa a ser realizada, desde a apresentação da pergunta-problema que se pretende responder ou resolver até informações sobre os custos da pesquisa. Além disso, quando se está fazendo pesquisa numa instituição de ensino, em graduação, especialização, mestrado ou doutorado, há algum momento em que será exigido um projeto de pesquisa. Este momento pode ocorrer já no curso da graduação, especialização, mestrado e doutorado, ou, em outros casos, antes do ingresso do estudante nos programas de pós-graduação, como parte do processo de seleção. Independente de estar ou não vinculado a alguma instituição de ensino, se o pesquisador pretender algum apoio técnico ou financeiro para sua pesquisa ou se quiser convidar alguém para orientá-lo, provavelmente terá de elaborar um projeto de pesquisa. O projeto de pesquisa pode ser comparado a um cartão de visitas do pesquisador. É através de projetos de pesquisa que se comunica a outras pessoas (orientador, professores, instituições, órgãos) sobre a pesquisa que se deseja desenvolver. Em suma, o projeto de pesquisa pode ser utilizado pelo pesquisador para: a) ajudar o próprio pesquisador a se organizar em função da pesquisa, b) obter ingresso em cursos de pós-graduação, sobretudo mestrados e doutorados, 236 Como escrever um projeto de pesquisa? c) cumprir requisito para aprovação em disciplina ou curso. d) apresentar sua proposta de pesquisa a seu futuro ou atual orientador, e) apresentar sua proposta de pesquisa a agências de fomento, com o fim de obter recursos necessários para seu desenvolvimento, como bolsas, f) obter financiamentos de organizações ou instituições específicas, que não sejam agências de fomento à pesquisa. 4. O que colocar num projeto de pesquisa? Os projetos de pesquisa não obedecem a padrões rígidos. No entanto, a instituição de ensino ou organização para as quais se destina podem exigir a observância de algumas normas de apresentação, tópicos que deve conter, número de páginas. No projeto de pesquisa, o pesquisador, em geral: a) planeja o maior número de aspectos da pesquisa que pretende realizar, b) define o objeto da pesquisa, ou seja, define a pergunta que buscará responder ou o problema para o qual pretende apresentar solução, c) define os objetivos internos da pesquisa, deixando claro o que deseja demonstrar, provar, alcançar, d) justifica seus objetivos, ou seja, explica por que essa pesquisa merece ser feita, prevendo as contribuições que poderá trazer para o desenvolvimento de seu campo de conhecimento e da sociedade, e) estabelece como o problema será abordado, f) prevê que técnicas de coleta de dados serão utilizadas, g) prevê as etapas que a pesquisa terá e como estão programadas no tempo, Roxana Cardoso Brasileiro Borges 237 h) prevê os custos da pesquisa e qual será a fonte dos recursos necessários para desenvolvê-la, i) prevê os resultados que espera de sua pesquisa. Para fazer um projeto de pesquisa, o estudante ou pesquisador deve ter, em primeiro lugar, um planejamento da pesquisa que pretende fazer. Esse planejamento requer que o estudante ou pesquisador já saiba o que deseja investigar, o que pretende alcançar na investigação, por quê e como. Veja-se como esses planos podem ser transformados num projeto. Um projeto de pesquisa pode ser composto pelas seguintes partes, explicadas nos tópicos seguintes: a) capa, b) folha de rosto, c) sumário, d) identificação do projeto, e) (apresentação ou introdução), f) justificativa, g) problema, h) (hipótese), i) objetivos, j) revisão da literatura, k) teoria de base, l) sistema conceitual, m) estrutura preliminar da monografia, n) metodologia, o) resultados esperados, p) cronograma, q) orçamento, r) (conclusão), s) referências ou bibliografia, t) apêndices, u) anexos. 238 Como escrever um projeto de pesquisa? 5. Descrição das partes do projeto de pesquisa Apresentam-se aqui as partes consideradas essenciais a todos os projetos, assim como tópicos que aparecem em alguns projetos mas que são desnecessários e outros que são impróprios. Normalmente, são essenciais, nos projetos de pesquisa: capa, folha de rosto, sumário, justificativa, problema, revisão de literatura, metodologia, cronograma, referências. Podem ser desnecessários, dependendo do caso, os tópicos: identificação do projeto, introdução, apresentação, hipótese, objetivos, teoria de base, sistema conceitual, estrutura preliminar do relatório (monografia/dissertação/tese), orçamento, apêndice, anexos. As necessidades desses tópicos dependerá do contexto do projeto e do pesquisador. É imprópria a presença de conclusão. 5.1 Capa e folha de rosto A capa e a folha de rosto de um projeto de pesquisa são, em geral, padronizadas segundo as normas da ABNT ou da instituição, não sofrendo muitas variações. Assemelham-se às capas de monografias, dissertações e teses, devendo conter informações gerais sobre a pesquisa, tais como: nome do pesquisador, instituição à qual está vinculado ou à qual pretende se vincular, título do projeto, local e data. O título do projeto é a primeira informação importante sobre a essência da proposta do pesquisador. Deve ser claro, objetivo e fiel ao conteúdo do projeto, explicitando a delimitação do tema (recorte quanto ao assunto, tempo, espaço, matriz teórica etc.). 5.2 Sumário O sumário do projeto de pesquisa tem a mesma função que um sumário de monografia/dissertação/tese: apresentar suas Roxana Cardoso Brasileiro Borges 239 partes. As partes principais ou títulos contidos no projeto de pesquisa devem ser indicados no seu sumário, com indicação da página em que o título inicia. 5.3 Identificação do projeto A identificação do projeto é o campo onde se deve informar: a) título do projeto (embora isso já esteja na capa), b) nome do pesquisador (o autor do projeto), c) endereço, telefone, fax, e-mail do pesquisador (como o pesquisador pode ser contactado), d) orientador do projeto (se houver), e) endereço, telefone, fax, e-mail, titulação do orientador, f) outros pesquisadores ou técnicos que compõem a equipe ou grupo de pesquisa, se houver, com respectivos dados, g) área de concentração ou linha de pesquisa em que o projeto se insere (aplica-se a projetos vinculados a instituições de ensino), h) duração do projeto (previsão de quando será seu início e de quando os resultados da pesquisa serão apresentados), i) instituições envolvidas no projeto (instituição de ensino ou outra organização), j) instituição financiadora da pesquisa (agência de fomento, empresa ou outra entidade). 5.4 Introdução e apresentação Não é raro encontrar projetos que contenham introdução e/ou apresentação. Não se vê utilidade nesses tópicos, num projeto de pesquisa, pois, geralmente, as informações neles apresentadas terão lugar próprio nos tópicos seguintes, como objeto, justificativa, revisão de literatura. A menos que haja alguma informação que não seja adequada a estes tópicos, pode ser conveniente uma apresentação. 240 Como escrever um projeto de pesquisa? 5.5 Justificativa A justificativa tem um papel muito importante no projeto de pesquisa porque, como indica a própria denominação, é lá que ele vai justificar sua pesquisa, demonstrando que ela é atual, original, relevante, viável, útil, necessária. Neste tópico se constrói o convencimento de que esta pesquisa merece ser feita e, se for o caso, merece ser apoiada. Na justificativa o pesquisador deve deixar claro: a) por que esse problema merece ser investigado, b) o que sua pesquisa oferecerá como contribuição para a sociedade e para o campo de conhecimento em que se insere, ou seja, qual é a utilidade da pesquisa, sua contribuição teórica e social, c) qual é a relevância e atualidade dessa pesquisa, d) qual é sua originalidade, e) demonstrar sua viabilidade. A originalidade nos projetos de pesquisa é polêmica. Costuma-se dizer a respeito da originalidade, que todo trabalho de pesquisa tem algo de original. Outras vezes se diz que nenhuma pesquisa é totalmente original. Afinal, em que consiste a originalidade de uma pesquisa? Esta é uma pergunta espinhosa. De fato, quase todo trabalho de pesquisa apresenta algo de original e, também, praticamente nenhuma pesquisa é cem por cento original. Mas por quê? Se se pensar em originalidade como um trabalho que não é idêntico a outro, então toda pesquisa poderá ser considerada original, ou com certo grau de originalidade. Assim, são aceitas pesquisas sobre temas já pesquisados, mas que analisam o mesmo objeto a partir de um novo ponto de vista, estudando-o com base em nova teoria, observando um aspecto que não foi devidamente estudado nas pesquisas precedentes ou a partir de uma abordagem metodológica diversa. Essas pesquisas, embora Roxana Cardoso Brasileiro Borges 241 seu tema não seja exatamente original, apresentam alguma contribuição a mais, pois contribuem para a continuidade de uma reflexão iniciada por outros pesquisadores e ainda não exaurida. De outro lado, como normalmente as pesquisas são continuações das que lhes precederam, ou como se apóiam nas pesquisas já realizadas, pode-se dizer também que quase nenhuma pesquisa é dotada de cem por cento de originalidade, pois a produção do conhecimento é um processo feito por continuidades ou acúmulos (e, de vez em quando, algumas descontinuidades e rupturas também). Por isso, quase toda pesquisa terá que se referir ao conhecimento anteriormente produzido pelos outros pesquisadores, seja para tomar como ponto de partida, seja para o criticar. Na verdade, a originalidade está mais ligada à forma como um tema é abordado do que propriamente ao tema em si. Na maioria das vezes, não é o tema que é original, mas a abordagem que se faz sobre ele, o enfoque dado, o percurso realizado. Quanto à relevância de uma pesquisa, outra polêmica se levanta. Habitualmente se diz que uma pesquisa deve ter relevância teórica e social. Há momentos em que se diz que a pesquisa deve ser livre, pura, sem vínculos com a relevância ou atualidade. O ideal é que toda pesquisa apresente uma relevância teórica e social no seu campo de conhecimento ou setor de aplicação. Isso significa que o pesquisador, ao propor uma pesquisa, deve estar comprometido com a transformação teórica de seu campo científico e com a transformação social ou transformação da realidade na qual ele está inserido. Mas a relevância é relativa, pois, em certas áreas científicas, algumas pesquisas são empreendidas sem que tenham, no seu início, objetivamente, uma relevância social, e acabam por ter como resultado a produção de um conhecimento ou uma tecnologia de 242 Como escrever um projeto de pesquisa? relevância científica e social que não era imaginada no momento em que foi proposta. Convém refletir sobre a utilidade de informações, no projeto, sobre a vida pessoal e/ou profissional do pesquisador, ou sobre suas motivações particulares. Elas só devem ser incluídas no projeto se realmente forem necessárias ou úteis, dependendo do contexto no qual o projeto for apresentado. Podem complementar a justificativa ou a metodologia. Sobre a viabilidade, veja-se, abaixo, quando do tratamento sobre o problema de pesquisa. 5.6 Problema de pesquisa 5.6.1 Definição e importância do problema O objeto ou problema, no projeto de pesquisa, é a perguntaproblema que o pesquisador pretende responder ou resolver. No tópico objeto de pesquisa ou problema o pesquisador descreverá o que irá investigar, qual é seu tema, o assunto, qual é a problemática que irá analisar, problematizando o tema. Em algum momento, é bom que a pergunta-problema seja apresentada na forma de interrogação. O passo mais importante do planejamento da pesquisa é formular o problema da pesquisa: a) O que se vai pesquisar? b) O que se vai estudar? c) O que se vai analisar? d) O que se quer explicar, comparar, criticar? O problema da pesquisa é a pergunta central que se busca responder realizando a pesquisa. A pesquisa tem um objetivo que é responder à pergunta central que foi elaborada pelo pesquisador no início da pesquisa. Se não foi formulada uma questão, a pesquisa está sem objetivo e o pesquisador, sem rumo. Para não Roxana Cardoso Brasileiro Borges 243 ficar sem rumo na pesquisa, precisa-se, de início, formular com muita precisão a pergunta que se pretende responder ou o problema que se quer resolver. É o problema de pesquisa que guiará o pesquisador em seu trabalho. Se o problema de pesquisa não for bem formulado, bem delimitado, bem definido, o pesquisador não saberá o que estará pesquisando. Isso terá como conseqüências para o pesquisador muita leitura feita sem sentido, tempo perdido, recursos despendidos e ... nenhum resultado. A formulação do problema de pesquisa é um dos momentos mais importantes do trabalho do pesquisador. Dele depende todo o desenrolar da pesquisa. De um problema bem formulado, bem delimitado, bem definido, proposto de forma clara e objetiva, depende o desenvolvimento da pesquisa. Nesse momento talvez seja preciso fazer um rápido estudo do tema para poder delimitá-lo melhor. Isso geralmente pode ser feito através de uma breve pesquisa bibliográfica, chamada de levantamento bibliográfico ou pesquisa exploratória. É uma revisão do assunto, um levantamento das possíveis abordagens para a pesquisa, uma busca de enfoques que se podem dar ao trabalho. Além disso, nesse levantamento, busca-se a certeza de que a pergunta-problema está bem formulada e que, portanto, pode-se passar para o desenvolvimento da pesquisa, com a definição do planejamento e o aprofundamento da investigação. 5.6.2 Delimitando o âmbito da pesquisa: os limites do trabalho a ser planejado Com a formulação do problema se está delimitando o alcance da pesquisa. É neste momento que se devem estabelecer os limites da pesquisa, até onde se vai pesquisar, qual a quantidade de informações precisarão ser coletadas, qual a quantidade de leitura que deverá ser feita, quanto tempo será necessário. É formulando 244 Como escrever um projeto de pesquisa? o problema de pesquisa que se estabelecem os limites da investigação. Quanto mais amplo for o problema ou quanto mais genérica for a pergunta, mais perto do impossível se estará se se pretender elaborar uma monografia sobre isso. Como a monografia é o resultado de uma análise profunda sobre um tema, quanto mais restrito for o problema formulado, mais facilmente poder-se-á ir direto ao ponto e os riscos de se darem voltas e não chegar a lugar nenhum será muito reduzido. Se a questão formulada for muito ampla, ter-se-á que ler, analisar, compreender, criticar e relacionar tantos fatores que, provavelmente, o prazo expirará sem que tenha começado a fase de redação da monografia. Os limites para delimitar o tema e formular o problema podem ser em relação ao assunto, ao tempo e ao espaço. 5.6.2.1 Recortando o objeto da pesquisa a) Em relação ao assunto Em relação ao assunto, pode-se delimitar o problema “cortando” o assunto que se escolheu investigar. Se alguém diz que sua pesquisa será sobre Direito Civil, é necessário informar, informar que não há aí um tema. Direito Civil é um ramo do direito, um mundo de institutos, categorias, princípios, teorias. Não se escreve uma monografia sobre Direito Civil, pois Direito Civil não é um tema, muito menos um problema. Assim, embora esse pesquisador tenha escolhido o ramo do direito dentro do qual quer pesquisar, ainda definiu pouco. Dentro do Direito Civil há a Teoria Geral, o Direito das Obrigações, o Direito de Família, o Direito das Coisas, o Direito das Sucessões ... cada um com princípios próprios, objetivos diversos, categorias e figuras diferentes. Imagine-se que, dentro do Direito das Obrigações, o pesquisador tenha escolhido estudar a teoria geral dos contratos. Bem, isso ainda é o assunto, pois é possível redigir um manual Roxana Cardoso Brasileiro Borges 245 sobre a teoria geral dos contratos, mas não uma monografia. É preciso ainda que o pesquisador pense sobre que questão ou que problema, dentro da teoria geral dos contratos, ele pretende analisar. Digamos que ele decida investigar a boa-fé objetiva. Bem, “investigar a boa-fé objetiva” pode ser um tema, mas ainda não se chegou a um problema de pesquisa, pois “investigar a boa-fé objetiva” não indica o que se busca na pesquisa, o que se pretende resolver, explicar, demonstrar, provar ou criticar em relação à boafé objetiva. Esse pesquisador precisa efetuar mais um esforço, precisa formular uma pergunta interessante, uma pergunta para a qual ainda não foi oferecida resposta ou uma pergunta que ainda mereça um trabalho de investigação, argumentação, comprovação, divulgação. Imagine-se que, finalmente, o pesquisador chegue ao seguinte problema: “O Código Civil de 2002 protege a boa-fé objetiva na fase pré e pós contratual?”. Agora, sim, há um esboço de problema, podendo-se começar a pesquisa propriamente dita, pois, antes, sem um problema bem formulado, não havia o que investigar, apenas o que explorar. b) Em relação ao tempo Ainda há um outro critério utilizado para a delimitação do âmbito da pesquisa e formulação do problema. É o critério temporal. Após a delimitação do tema em relação ao assunto, selecionando um tópico específico a ser investigado, pode-se delimitar esse tópico também em relação ao tempo. Utilizando o exemplo acima, delimitase o tempo ao se expressar no problema ou na pergunta que a análise será feita a partir das disposições que entraram em vigor com o novo Código Civil (2003). Ou seja: a pesquisa investigará a realidade a partir de 2003. Assim, não se vai analisar a boa-fé objetiva no Direito Civil de todas as épocas. Ou, se a fonte principal for documental, como, por exemplo, a jurisprudência, pode-se definir que serão objeto de análise decisões judiciais a partir de 2003, 246 Como escrever um projeto de pesquisa? quando o Código entrou em vigor, ou a partir de 1988, quando foi publicada a Constituição Federal. c) Em relação ao espaço Da mesma forma, também se pode delimitar a pesquisa em relação ao espaço. Ao se inserir no exemplo acima “o Código Civil brasileiro de 2002”, automaticamente revela-se que a pesquisa estará delimitada no âmbito do direito brasileiro, pois não se pretende analisar a regulamentação da boa-fé objetiva no direito de outros países. Ou, numa pesquisa jurisprudencial, restringir a análise às decisões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça ou de outro(s) Tribunal(s). Quanto mais se especificar o que se vai investigar, mais fácil fica iniciar – e concluir – a pesquisa, pois já se sabem os limites desta. Assim, não se vai analisar o Direito Civil vigente no século passado nem estudar a legislação vigente na China ou na França, pois o âmbito de pesquisa já foi delimitado. Esse tipo de delimitação a partir de critérios espaciais e temporais é especialmente importante, sobretudo quando a pesquisa demandar coleta de informações através de formulários, questionários, levantamentos estatísticos, documentos, estudos de casos. Se não tiver definido o “recorte da realidade” que se pretende investigar, o desenvolvimento da pesquisa será dificultado pela desorganização e indefinição. 5.6.2.2 Tipos de perguntas-problemas para a pesquisa Diante desse tipo de dificuldade, que atinge todos os pesquisadores que nunca fizeram – e mesmo os que já fizeram alguma – pesquisa monográfica, vejam-se alguns tipos de perguntas que podem ser formuladas e constituírem problemas de pesquisa. Podem-se fazer perguntas de definição. As perguntas de definição utilizam-se da expressão interrogativa “o que é?” ou “o Roxana Cardoso Brasileiro Borges 247 que são?” e exigem do pesquisador a elaboração de uma definição para um conceito. Exemplo de uma pergunta-problema de definição: “O que é personalidade jurídica para o direito civil brasileiro?”. Assim, o objetivo da pesquisa é construir uma definição de personalidade jurídica a partir do direito civil brasileiro. Podem-se elaborar perguntas que busquem uma relação de causa e efeito entre dois ou mais fenômenos, ou perguntando pela causa ou perguntando pelo efeito ou dissociando os fenômenos, como, por exemplo: “o que provoca...?”, “o que causa...?”, “qual é a causa de...?”, qual é a origem de...?”, “... é mesmo a causa de...?”, “qual é a conseqüência de ...?”, “... é conseqüência de...?” etc. Ou perguntar que influência uma coisa tem em outra: “qual é a influência de ... sobre ...”, “como ... influencia ou determina ...”, “como ... afeta ...”, “em que grau ... provoca ...” etc. Também se podem fazer perguntas que exigem como respostas uma afirmação ou uma negação, seguida de uma explicação, como, por exemplo: “Há incidência de autonomia privada no Direito de Família brasileiro? Sim? Não? Por quê?”. Ainda podem-se formular perguntas que exijam respostas quantitativas, ou seja, respostas que demonstrem quantidades de determinado objeto, exemplo: “Quantos tipos de propriedades existem no direito privado brasileiro? Quais são?”. Outro exemplo de pergunta é a que busca classificar determinado objeto, como: “A CPMF pertence a que classe que tributo?”. Enfim, são inúmeras as formas de problema que podem se encontradas nas pesquisas já realizadas e infinitas as que podem ser utilizadas para nossa pesquisa. Se for um problema bem elaborado, ele guiará a pesquisa. Se a pergunta-problema for mal elaborada, mal definida, mal recortada, poderá haver mais dispêndio de energia e recursos do que o necessário para chegar à conclusão. 248 Como escrever um projeto de pesquisa? 5.6.2.3 Requisitos para a formulação da sua perguntaproblema: familiaridade e criatividade Para a formulação da pergunta-problema é preciso ter conhecimento prévio do assunto que se deseja investigar – senão não se consegue sequer formular um problema adequado – e um pouco de criatividade. Se o pesquisador não tiver familiaridade com o assunto escolhido, não conseguirá formular uma pergunta que possa levar a uma resposta nova e relevante para seu campo de conhecimento, pois não conhecerá suficientemente o campo a ponto de identificar quais são as questões mal resolvidas ou que demandam maior desenvolvimento. Na prática, pode ocorrer que o problema sofra um leve “acabamento” à medida em que a pesquisa se realiza. Não significa que o pesquisador esteja sem rumo, mas que ele simplesmente “aprimorou” a formulação de sua pergunta. Isso costuma acontecer com freqüência, mesmo com pesquisadores que já têm certa experiência. 5.6.2.4 Outros elementos a serem observados na escolha da sua pergunta-problema: aptidão, inclinação e motivação pessoal Não adianta ter elaborado um problema que insinue uma resposta original e relevante, a respeito de um assunto em relação ao qual se tem familiaridade, se não há atração pela proposta. Poderá ser uma pesquisa que trará grande contribuição para dado campo de conhecimento ... se o pesquisador conseguir concluí-la. Por isso não se deve pensar apenas em realizar uma pesquisa original, ou relevante, ou sobre um tema “da moda”. Se não houver uma motivação real, envolvimento com o tema, a pesquisa corre risco de não ser concluída. Roxana Cardoso Brasileiro Borges 249 É muito mais fácil realizar – e terminar – a pesquisa se, além de gostar do tema, considerar-se seu estudo útil para o pesquisador, seja em relação a uma carreira que queira seguir ou a um concurso que queira fazer ou a uma pós-graduação em que queira ingressar ou terminar. Ora, se além de sentir atração pelo tema, o pesquisador também o considerar útil para si, tanto melhor para o desenvolvimento da pesquisa, pois haverá motivação para empreendê-la, e para empreendê-la bem. Se não gostar do tema, dependendo da disciplina pessoal do pesquisador, talvez até consiga levar a pesquisa até o fim, mas percorrendo, desnecessariamente, um caminho penoso. Realizar um trabalho de pesquisa penoso é desnecessário porque é o pesquisador quem escolhe seu tema, portanto, é livre para facilitar ou para dificultar sua própria vida. Há algumas questões pessoais que devem ser respondidas, sob o risco de desperdício de tempo e outros recursos: a) Por que escolhi este tema? Gosto desse assunto? b) Tenho facilidade para tratar desse assunto? c) Tenho inclinação ou tendência por esse tema? d) Esse tema prende meu interesse? e) Escolhi porque é um tema da moda? f) Combina com os assuntos que mais estudei em minha formação? g) Combina com os assuntos em relação aos quais mais tive êxito? h) Qual é a motivação que tenho para levar essa pesquisa adiante? i) Tenho afinidade com os professores que poderão ser meus orientadores? j) Qual é o papel desse tema em minha formação? k) Qual é a utilidade desse tema em minha vida profissional? 250 Como escrever um projeto de pesquisa? l) O que posso tirar de bom da experiência de pesquisar esse tema? 5.6.2.5 A viabilidade da pesquisa: também requer cuidado na formulação da pergunta-problema Além disso, é preciso verificar se existem técnicas e recursos disponíveis para a coleta das informações de que o pesquisador precisará. A pesquisa deve ser viável, o que significa que o pesquisador deve se preocupar com os aspectos práticos da pesquisa, tais como os prazos de que dispõe, relacionados com seu preparo intelectual e sua experiência de pesquisa; a bibliografia disponível ou outras fontes de informação; necessidade de equipamentos, viagens ou outros tipos de serviços. Assim, ao propor a pergunta-problema, devem ser feitas as seguintes questões: a) O tempo que tenho para a realização dessa pesquisa me permite pesquisar esse tema, nessa amplitude, buscando as informações de preciso, tendo tempo para analisá-las, para redigir a monografia e entregar no prazo estipulado? O tempo de que disponho é suficiente para a realização da pesquisa que desejo? b) As informações de que preciso para fundamentar minha pesquisa estão disponíveis? São acessíveis? Onde estão essas informações? Em livros? Tenho acesso a essa bibliografia? Tenho esses livros? Que bibliotecas possuem esses livros? Se tiver de adquirir alguns livros, quantos serão? Quando? c) Os livros que tratam sobre o tema são livros estrangeiros? Tenho esses livros nas bibliotecas às quais tenho acesso? Domino os idiomas em que estão escritos? d) As informações de que preciso não estão apenas nos livros, mas nos relatos das pessoas? Sei quem são as pessoas Roxana Cardoso Brasileiro Borges 251 que podem me relatar suas experiências? Essas pessoas estão dispostas a colaborar? Como poderei coletar esses relatos? Através de entrevistas abertas? Formulários, questionários? Saberei analisar esses dados? Terei tempo para isso? e) Precisarei fazer alguma viagem para coletar informações imprescindíveis à pesquisa? Tenho tempo e dinheiro para isso? f) Precisarei de materiais, equipamentos ou serviços? São oferecidos em minha cidade? Terei recursos econômicos para adquiri-los? g) Terei um professor orientador para este tema? Ora, não adianta ter, teoricamente, uma excelente perguntaproblema se não existem condições práticas para que a pesquisa se desenvolva, ou seja, viabilidade. Se isso acontece, aconselhamos que o problema seja reformulado. A viabilidade deve transparecer, no projeto de pesquisa, nos tópicos justificativa e metodologia. 5.7 Hipótese O problema e a hipótese são os elementos da pesquisa que guiarão o trabalho do pesquisador. Em sua atividade de pesquisa, o pesquisador buscará demonstrar que sua hipótese é suficientemente fundamentada para convencer a comunidade científica quanto à sua solidez. Se, na conclusão da pesquisa, a hipótese tiver sido confirmada, tem-se já não mais uma hipótese, mas uma teoria. Aquela resposta imaginada pelo pesquisador no início de seu trabalho foi confirmada, através de demonstração, argumentação, comprovação. É controverso o cabimento de hipóteses em alguns tipos de pesquisa, como em ciências humanas e sociais aplicadas. Se houver a exigência deste tópico, deve-se colocar como hipótese a 252 Como escrever um projeto de pesquisa? resposta provisória que o pesquisador planeja comprovar/refutar com a pesquisa. Hipóteses são as repostas ou soluções imaginadas pelo pesquisador, que vai buscar provar através da pesquisa. Pode haver hipóteses básicas e secundárias, todas redigidas como afirmações. Quando se formula uma pergunta ou conjunto de perguntas a serem respondidas através de uma investigação, geralmente se imagina qual é a resposta provável. A hipótese é esta resposta provável ou resposta provisória que o pesquisador, a partir de seu estágio de conhecimento atual sobre o campo, imagina que será confirmada ao final do trabalho de investigação. Nas Ciências Sociais, algumas vezes a pesquisa é feita para fundamentar a resposta que o pesquisador, de início, já imagina adequada para a pergunta que ele formulou. Pode ser considerada uma teoria provisória, que passará a ser definitiva (tese) ao final da pesquisa, com sua confirmação, ou será rejeitada nas conclusões da pesquisa. Se houver formulação de hipótese no projeto, o pesquisador realizará sua pesquisa buscando todos os elementos que refutem esta resposta provisória (sua hipótese), podendo chegar à sua confirmação, ao final. Desta forma, automaticamente à formulação da pergunta (ou problema), o pesquisador, em grande parte das vezes, já imagina, também, a reposta para essa pergunta. Essa resposta imaginada deve ser nova (original) e relevante para a comunidade científica da qual o pesquisador faz parte. Se a resposta não for nova, então não há tanta razão para fazer aquela pesquisa. Se não for relevante, a comunidade, da mesma forma, também não encontrará razão para dar atenção àquele trabalho. A resposta que o pesquisador espera ou imagina deve apresenta alguma novidade, alguma contribuição para a compreensão de certa realidade, ou então carecerá de motivo para ser buscada: Roxana Cardoso Brasileiro Borges 253 a) Por que realizar uma pesquisa, com dispêndio de tempo e dinheiro, se seu resultado não acrescentará nada ao campo de conhecimento no qual está inserida? b) Por que gastar tanta energia para demonstrar o que já foi suficientemente demonstrado por outros pesquisadores? Se não há respostas razoáveis para essas perguntas, não há o que justifique tal pesquisa. E a justificativa é o que faz com que as pessoas se convençam de que devem apoiar a pesquisa (orientadores, agências de fomento, instituições de ensino) e é o que levam outras pessoas a lerem os resultados do trabalho. Assim, se a pergunta elaborada não insinuar uma reposta que ofereça novidades e novidades essas que tenham utilidade para a comunidade científica, há riscos como desinteresse de um programa de pós-graduação por aquele projeto (e desclassificação ou baixa pontuação no processo seletivo), falta de apoio durante a pesquisa, falta de crédito ao final da pesquisa e desestímulo durante o processo de pesquisa. Ao se tratar de hipóteses, costumam-se classificá-las em hipótese básica e hipóteses secundárias. A hipótese básica é a resposta principal apresentada para a pergunta-problema. Em alguns casos, o pesquisador elabora também hipóteses secundárias, que complementam a hipótese básica, englobando detalhes que não cabem no enunciado principal, mas que ajudarão o pesquisador a encaminhar suas atividades de forma a não se distanciar do objeto central da pesquisa. 5.8 Questões orientadoras Em certos casos, para explicitar ainda mais os aspectos que o problema envolve, sugere-se a elaboração de questões orientadoras. São perguntas intermediárias ou subsidiárias ou satélites que o pesquisador terá que responder para resolver a questão central, ou o problema. 254 Como escrever um projeto de pesquisa? As questões orientadoras ligam-se diretamente às hipóteses secundárias e aos objetivos específicos, podendo haver um sentimento de repetição na elaboração e leitura desses tópicos, o que denota coerência do projeto. 5.9 Objetivos Nos objetivos o pesquisador poderá desdobrar sua perguntaproblema, anunciando o que ele visa demonstrar, analisar, atingir, alcançar, provar. Deverá haver muita proximidade entre os objetivos e o problema, chegando a parecer repetitivo. Se não houver a sensação de repetição, é porque o projeto não está coerente. Pode haver objetivo geral e objetivos específicos. O geral liga-se diretamente ao problema e à hipótese básica. Os específicos são desdobramentos do geral. Recomenda-se a utilização de verbos no modo infinitivo para a listagem, em tópicos, dos objetivos. Os objetivos internos a que se refere este tópico do projeto, são aqueles que se referem às conclusões da pesquisa. Ao iniciarmos uma pesquisa, há uma questão que se quer resolver, a que se costuma chamar de problema. Assim, essa questão ou problema é o que vai impulsionar o pesquisador em busca de uma resposta ou de uma solução. O encontro da resposta para essa questão ou da solução para esse problema é a finalidade interna principal da pesquisa. Chegar à conclusão significa encontrar a resposta ou a solução da pergunta ou do problema. A finalidade interna de nossa pesquisa é chegar a essa conclusão. Podem-se ter como objetivos internos, por exemplo, a demonstração de alguma característica, a demonstração de alguma relação entre fenômenos, a demonstração de ausência de relação entre acontecimentos, a comprovação de uma causa ou de um efeito, a prova de um equívoco ou de um acerto, a explicação sobre certo evento ou teoria. Roxana Cardoso Brasileiro Borges 255 Por isso, o objetivo central está diretamente ligado à hipótese básica, se houver, e ao problema. Pode haver um sentimento de repetição na elaboração desses itens, mas esta repetição denota coerência no projeto, como exposto. Às vezes o pesquisador é pego numa armadilha: para evitar a repetição, ele inova no objetivo central, o que torna o projeto incoerente. Os objetivos específicos ligam-se diretamente às questões orientadoras, se houver. Eles revelam etapas intermediárias que devem ser atingidas para se chegar ao objetivo central. 5.10 Revisão de literatura A revisão da literatura é a parte do projeto de pesquisa em que o pesquisador apresenta qual é o estágio atual de desenvolvimento daquele tema, em que consistem os conhecimentos atuais acerca daquele problema, qual é a posição da literatura, o que foi pesquisado e desenvolvido até esse momento sobre a realidade que ele quer investigar, ou seja, qual é o estado da arte sobre o tema. Deve o pesquisador demonstrar o “estado da arte” no seu campo de conhecimento, descrevendo as principais correntes de pensamento, as principais teorias, como o conhecimento naquele campo se desenvolveu até o momento e em que consiste o conhecimento atual sobre o tema. De certa forma, a descrição do estado da arte, ao mesmo tempo em que pode justificar o projeto de pesquisa, demonstra o conhecimento que o pesquisador tem do tema proposto. 5.11 Teoria de base ou embasamento teórico Na teoria de base o pesquisador descreverá o seu quadro teórico de referência, ou seja, ele apresentará que em teorias ou idéias pretende se basear para abordar o problema selecionado como objeto de pesquisa. Ele identificará as teorias ou quadros 256 Como escrever um projeto de pesquisa? teóricos de que se utilizará para analisar sua pergunta-problema, que pensamentos o influenciarão na busca e tratamento das informações, no uso dos conceitos, na elaboração das definições. Também pode ser chamada de embasamento teórico. Revela uma opção feita pelo pesquisador, a partir da revisão da literatura, estando ligada, também, à abordagem metodológica. É possível que o embasamento teórico seja feito juntamente com a revisão de literatura, sem um tópico destinado exclusivamente a isso, assim como pode antecipar questões metodológicas. 5.12 Sistema conceitual No item sistema conceitual, se o pesquisador já estiver com a pesquisa relativamente avançada, ele poderá definir as categorias ou conceitos principais a serem utilizados na pesquisa, como serão operados e quais são suas definições. É possível que o sistema conceitual componha a teoria de base ou embasamento teórico, sem a necessidade de um tópico exclusivo para isso. Dependerá da especialidade ou importância do sistema conceitual no projeto. 5.13 Estrutura preliminar O pesquisador deverá apresentar também, no projeto, a estrutura preliminar da monografia/dissertação/tese. Trata-se do índice provisório da monografia/dissertação/tese a ser redigida ao final da pesquisa. É comum que este tópico seja exigido em exames de qualificação de dissertações ou teses. Tendo formulado a pergunta-problema, deve-se fazer um “mapa” que guiará o pesquisador através da pesquisa. Nesse mapa temse um ponto de partida, que é a pergunta-problema, e um ponto de chegada, que será a resposta imaginada para aquela perguntaproblema. Mas o que existe entre o ponto de chegada e o ponto Roxana Cardoso Brasileiro Borges 257 de partida? O que levará o pesquisador da pergunta-problema à confirmação da resposta que imaginou para ela? Que percurso será esse? O que será encontrado pelo caminho? A monografia/dissertação/tese (o texto final) é um grande argumento. Nesse argumento, o autor (o pesquisador) se propõe a resolver determinado problema ou a responder certa pergunta e percorrerá inúmeras páginas demonstrando ao leitor (o orientador, os examinadores, os colegas) que existe uma solução para esse problema ou uma resposta para essa pergunta. E, durante páginas, o pesquisador estará convencendo (ou tentando convencer) essas pessoas de que a solução ou resposta encontrada é a única possível ou a melhor de todas ou a ideal ou a mais atualizada ou a mais completa. E tudo isso se faz manuseando-se informações. Assim, as informações são a matéria-prima de uma pesquisa e, conseqüentemente, de uma monografia/dissertação/tese. É com as informações que se constroem os vários argumentos que formarão o argumento maior chamado monografia/ dissertação/tese. É necessário, portanto, elaborar um mapa de informações. Esse mapa de informações, na verdade, é um índice. O índice da monografia/dissertação/tese, a que se chamamos, no projeto, de estrutura preliminar. Formulada a pergunta-problema, o passo seguinte é a formulação da estrutura preliminar do futuro texto: a) Que tópicos, capítulos, itens, subtópicos terá? b) Como será sua divisão e subdivisão? c) Que assuntos serão tratados em cada parte, desde a primeira até a última? d) Em que ordem? Esse é um poderoso instrumento de orientação na pesquisa. A estrutura preliminar, ao mesmo tempo em que será sua bússola, será, também, modificada à medida em que a pesquisa for se desenvolvendo. Isso é natural. À medida que for lendo, analisando e 258 Como escrever um projeto de pesquisa? interpretando as informações que são a matéria-prima da pesquisa, pode-se mudar de opinião quanto à organização do índice. A estrutura preliminar levará o raciocínio, passo a passo, até a conclusão, como se fosse uma escada que, degrau a degrau, leva ao topo. Assim, o índice indica quais degraus precisam ser percorridos. O mapa indicará por quais caminhos deve-se passar para chegar até o destino (a conclusão). Desta forma, a estrutura preliminar é o retrato do megaargumento (texto da monografia/dissertação/tese), é um rascunho do que se vai escrever, de forma mais extendida, na monografia. É uma fôrma ou molde que precisa ser preenchida com uma massa de informações. É a partir dessa fôrma ou molde de argumentos que se vai buscar as informações necessárias para preenchê-la. 5.14 Metodologia 5.14.1 Função da metodologia Na metodologia o pesquisador deverá indicar os métodos de abordagem, os métodos de procedimento e os métodos e técnicas de pesquisa de que se utilizará para encontrar a resposta ou solução de sua pergunta-problema. Neste item ele deve prever, por exemplo, se a pesquisa será qualitativa e/ou quantitativa, se coletará dados através de pesquisa bibliográfica, documental, entrevistas, onde estão localizadas essas informações, que instrumentos utilizará para coletá-las, como estas informações serão tratadas. O rigor metodológico é o que atribuirá “seriedade” ao trabalho produzido pelo pesquisador. A observância do rigor metodológico vigente na época é que atribuirá cientificidade ao trabalho do pesquisador. O rigor metodológico diz respeito à forma como o trabalho foi desenvolvido, ao procedimento utilizado para atingir determinado Roxana Cardoso Brasileiro Borges 259 resultado ou conclusão. A observância do rigor metodológico é o que gera a confiança da comunidade científica em relação a determinado trabalho de pesquisa. A comunidade científica de determinada época “costuma” produzir ciência a partir de determinados modelos e só reconhece como ciência ou como válido o conhecimento que for produzido seguindo estes modelos. Se uma determinada pesquisa não seguir estes modelos, ou seja, se não apresentar rigor metodológico, não será aceita pelos demais pesquisadores. Numa pesquisa, o que leva o pesquisador da pergunta-problema à confirmação da resposta que imaginamos são, como exposto, informações. As informações são o que há de mais precioso numa pesquisa – depois da genialidade do pesquisador, claro. São as informações e o tratamento dado a elas que permitirão a comprovação ou demonstração da resposta como sendo a única cabível para a pergunta-problema formulada. 5.14.2 Ausência de uniformidade Não há uniformidade quanto ao que deve ser posto neste tópico. Há várias expressões utilizadas pelos pesquisadores, com uma variedade semântica grande, o que dificulta o trabalho dos iniciantes. De uma forma geral, pode-se dizer que a metodologia de abordagem ou o método de abordagem ou, simplesmente, a abordagem, é a concepção teórica do pesquisador sobre como tratar o tema. Como dito acima, é possível que isso já seja revelado no embasamento teórico. A abordagem pode ser, por exemplo: hermenêutica, fenomenológica, dialética, hipotético-dedutiva, indutiva. O método de procedimento pode ser, por exemplo: comparativo, histórico, estatístico, monográfico. Os tipos de pesquisa podem ser, exemplificativamente: pesquisa de campo, pesquisa bibliográfica, pesquisa documental. 260 Como escrever um projeto de pesquisa? As técnicas de pesquisa podem ser, de forma exemplificativa: entrevistas, observação, estatística. É importante ressaltar que não é obrigatório haver apenas um método de abordagem, assim como podem ser feitos mais de um tipo de pesquisa, com mais de uma técnica. O tipo de problema formulado é que vai indicar a necessidade quanto à forma de abordagem, quanto aos dados necessários para a verificação da hipótese, quanto às técnicas necessárias para coletar os dados. Não há uma escolha propriamente dita dessas metodologias, pois tudo deve estar justificado a partir do problema proposto e servir a ele. 5.14.3 Que informações são necessárias? Deve-se perguntar ao problema e ao mapa, ao índice, à estrutura preliminar. Diante do mapa ou estrutura preliminar, vêem-se, através dos tópicos (capítulos e subdivisões) ali previstos, as informações a serem buscadas. É o índice que diz o que deve ser lido, quem deve ser entrevistado, que dados devem ser coletar. Os títulos que formam os índice são as setas que apontam os caminhos. O mapa ou estrutura preliminar indica quais são as leituras a serem feitas para obter as informações para construir pequenos argumentos que formarão o argumento maior. Em outras palavras, a estrutura preliminar indica quais são as fontes que para a coleta das informações necessárias à construção dos tópicos e capítulos que formarão o texto da monografia. Olhando a estrutura preliminar, a partir do conhecimento que o pesquisador já tem sobre o assunto, ele deverá anotar, abaixo de cada tópico: a) Quais são os outros assuntos que terá de abordar, b) Que autores terá de comentar, c) Que documentos terá de analisar, d) Que comparações terá de fazer, Roxana Cardoso Brasileiro Borges 261 e) f) g) h) Que elementos terá de relacionar, Que relações terá de interpretar, Que livros terá de buscar, Que leis, tratados, biografias, relatos, processos, julgados, terá de conhecer, i) Com que pessoas terá de conversar, j) Que pessoas terá de entrevistar, k) Que órgãos terá de consultar, l) Que detalhes terá de esclarecer, m) Que dados terá que analisar. Depois de respondidas essas perguntas, o pesquisador estará com um mapa bem mais detalhado do que antes. São essas as informações de que ele precisa para desenvolver sua pesquisa e escrever sua monografia. Já se sabem quais são as informações necessárias para preencher o índice e construir os argumentos de defesa para a resposta. Mas como chegar a essas informações? Começa a fase da pesquisa usualmente conhecida como coleta de dados. Para que se analisem e interpretem as informações, é preciso, antes, coletá-las. Existem diversas formas de coletar os mais variados tipos de informações. São as técnicas ou tipos de pesquisa: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental, pesquisa experimental, entrevistas, aplicação de formulários e questionários, estudos de caso, observação sistemática. Algumas pesquisas são desenvolvidas a partir de combinações de técnicas de coletas de dados, mas nenhuma prescinde da pesquisa bibliográfica. O pesquisador deve conhecer essas técnicas de coletas de informações para que possa identificar quais são as mais apropriadas para sua pesquisa. 262 Como escrever um projeto de pesquisa? 5.15 Resultados esperados Nem sempre se exige a presença do tópico resultados esperados ou produtos. O pesquisador deve estar atento às regras da instituição sobre as partes necessárias do projeto. Deve indicar, neste tópico, se a pesquisa resultará em publicações, em comunicações científicas, em patentes, em industrializações, ações, intervenções etc. 5.16 Cronograma O cronograma é a previsão, em relação ao tempo, das fases de uma pesquisa. É a agenda da pesquisa, em forma de tabela. O pesquisador prevê quais as semanas ou meses que tem pela frente e localiza, apontando, em cada período, que etapas da pesquisa serão desenvolvidas. É a organização do tempo da pesquisa. Como fazer um cronograma? Elabora-se uma tabela de tempo, com a previsão das semanas ou meses se tem pela frente e tentase imaginar que etapas da pesquisa serão desenvolvidas em cada momento. O cronograma, se bem previsto, pode ajudar a imprimir o ritmo correto à pesquisa, sem que o pesquisador se adiante desnecessariamente e sem se atrasar demais, afinal, sempre há um prazo para a pesquisa e, muitas vezes, é esse prazo que determina a velocidade do trabalho. Se não se calcular razoavelmente o tempo que necessário para a pesquisa – não apenas quantas horas por semana, mas quantas semanas ou quantos meses –, corre-se o risco de passar muito tempo numa fase da pesquisa, sem avançar, e acabar atropelando etapas subseqüentes para não perder o prazo, prejudicando o trabalho feito. O pesquisador deve ser realista nesta previsão. Roxana Cardoso Brasileiro Borges 263 Vejam-se alguns exemplos de cronogramas: Exemplo 1: Exemplo 2: 5.17 Orçamento O orçamento, também apresentado em forma de tabela, exibe uma estimativa detalhada dos custos da pesquisa. Devem ser apresentados os tipos de gastos previstos e de quanto serão esses gastos. Normalmente é um tópico exigido quando há financiamento da pesquisa por agência de fomento. 5.18 Conclusão Como o projeto é a projeção do planejamento da pesquisa, é uma projeção do que deverá ser feito, não cabe um tópico para conclusão, já que esta só acontecerá no final da execução da pesquisa, cujo planejamento é feito no projeto. 264 Como escrever um projeto de pesquisa? Ora, se o pesquisador ainda está planejando a pesquisa, não pode ter, já, a conclusão. 5.19 Referências As referências ou bibliografia ou referências bibliográficas do projeto indicam as obras já consultadas ou a serem estudadas na pesquisa. A diferença é que, enquanto sob o título bibliografia listam-se livros ou textos literários em papel, citados ou não, sob o título referências, aceitam-se outras fontes, como as eletrônicas e as documentais, desde que citadas no trabalho, e sob o título referências bibliográficas devem aparecer as obras literárias em papel citadas no trabalho. Devem ser consultadas as regras adotadas pela instituição para elaboração de referências bibliográficas e de listagem de bibliografia. 5.20 Apêndice No apêndice o pesquisador pode apresentar formulários, questionários ou mapas que já tenha elaborado, fotos, gráficos etc. Não é um item obrigatório. 5.21 Anexos Os anexos são complementações ao projeto, na forma de textos, documentos, fotos, formulários etc., similares ao apêndice, mas elaborados por terceiros, desde que considerados importantes para a compreensão da proposta. Assim como o apêndice, sua presença não é obrigatória e só deve ocorrer quando realmente necessária. 6 . Formatação Por fim, o pesquisador deve formatar seu projeto segundo as normas de apresentação escrita seguidas pela instituição, como Roxana Cardoso Brasileiro Borges 265 as comumente adotadas normas elaboradas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). 7. Bibliografia ANDRADE, Maria Margarida de. Introdução à metodologia do trabalho científico. São Paulo: Atlas, 1997. BARROS, Aidil Jesus Paes de; LEHFELD, Neide Aparecida de Souza. Fundamentos de metodologia: um guia para a iniciação científica. São Paulo: McGraw-Hill, 1986. BECKER, Howard S. Métodos da pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1997. BRUYNE, Paul de; HERMAN, Jacques; SCHOUTHEETE, Marc de. Dinâmica da pesquisa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. CARVALHO, Maria Cecília de (org.). Construindo o saber: metodologia científica: fundamentos e técnicas. 6. ed. Papirus: Campinas: 1997. CASTRO, Cláudio de Moura. A prática da pesquisa. São Paulo: McGraw-Hill, 1977. CERVO, Amado Luiz; B E RVIAN, Pedro Alcino. Metodologia científica. São Paulo: Makron Books, 1996. CHRÉTIEN, Claude. A ciência em ação. Papirus: Campinas, 1994. CONTANDRIOPOULOS, André-Pierre et. al. Saber preparar uma pesquisa: definição, estrutura, financiamento. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec, 1997. DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Atlas, 1995. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1996. FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Pesquisa em direito e redação de monografia jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1996. GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Record, 1997. 266 Como escrever um projeto de pesquisa? GOMES, Romeu. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. HÜHNE, Leda Miranda (org.). Metodologia científica: cadernos e técnicas. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1990. HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes, 1997. KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica: teoria da ciência e prática da pesquisa. Petrópolis: Vozes, 1997. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1997. LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1987. LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. São Paulo: Cortez, 1995. MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In: MYNAIO, M. C. S. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. OLIVE IRA, Silvio Luiz de. Tratado de metodologia científica: projetos de pesquisa, TGI, TCC, monografias, dissertações e teses. São Paulo: Pioneira, 1997. PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. O trabalho monográfico como iniciação à pesquisa científica. In: CARVALHO, Maria Cecília Marigoni de. Construindo o saber: metodologia científica: fundamentos e técnicas”. Campinas: Papirus, 1997. SALOMON, Délcio Vieira. Como fazer uma monografia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SALVADOR, Ângelo Domingos. Métodos e técnicas de pesquisa bibliográfica. 11. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Sulina, 1986. Roxana Cardoso Brasileiro Borges 267 O MERCOSUL E SUAS RELAÇÕES COM A ALCA E A UNIÃO EUROPÉIA Saulo José Casali Bahia Juiz Federal (SJBA) e Professor Adjunto (UFBA). Doutor em Direito (PUC-SP). Sumário: 1. O estágio atual do Mercosul. 2. O Mercosul e a ALCA. 3. O Mercosul e a União Européia 1. O estágio atual do Mercosul A integração entre países, embora exista quanto a isto alguma divergência na doutrina, possui estágios diversos, nem sempre sucessivos. E a integração comporta vários tipos, também não necessariamente sucessivos, pois não se pode dizer que a integração econômica tenha sido sempre a primeira a ocorrer, embora o seu avanço sempre produza a necessidade de uma maior e posterior integração jurídica e política. Quanto aos estágios e o tipo de integração, o exemplo da integração econômica européia parece ser, para a América Latina, em razão da precedência e do estágio avaçado, um paradigma a ser observado, embora não se requeira que seja necessariamente imitado. O primeiro passo que geralmente é adotado consiste na formação de uma área de preferências aduaneiras (Tariff Preferences), onde passam os países a usufruir de facilidades comerciais derivadas de tarifas aduaneiras mais reduzidas. A reciprocidade, base deste nível de integração, gera uma redução de custos dos produtos e serviços, dinamizando a economia dos Estados ao permitir a expansão do mercado e do consumo. Via de regra, as preferências aduaneiras são estabelecidas em relação a serviços ou bens onde ocorre franca complementariedade entre 269 os Estados envolvidos, ou onde a concorrência não se mostrar capaz de promover grave desequilíbrio para qualquer das partes. A zona de preferência tarifária é estabelecida entre os Estados partes do acordo celebrado para este fim. Trata-se de uma situação diversa daquela onde a convergência de interesses se verifica para a finalidade de união de esforços no tocante à fixação de tarifas em relação a terceiros países, chamada de União Aduaneira (Customs Union). Neste nível, as tarifas aduaneiras em relação a terceiros países é comum para os Estados que celebraram o tratado de constituição desta união, que permite um maior poder de barganha no plano internacional. Surge uma política comercial comum e uma tarifa externa comum em relação a terceiros estados. O nível mais avançado de integração econômica corresponde à Zona de Livre Comércio (Free Trade Association), onde a franca liberalização comercial diz respeito aos bens, serviços e capitais, e a circulação se faz acompanhar do livre estabelecimento e da livre concorrência, no grau que as partes entenderem pertinente. Todavia, o aprofundamento da prática do regime das 5 liberdades previsto para a Zona de Livre Comércio pode gerar graves desigualdades e desequilíbrios, restando setores produtivos de um ou alguns dos países envolvidos seriamente afetados, pela impossibilidade de competir com setores, em outros países, melhor articulados e desenvolvidos. Os riscos sociais e econômicos fazem com que a zona de livre comércio dependa, para o seu completo sucesso como ambiente de liberdades, de certa coordenação de políticas macroeconômicas e alguma intervenção estatal na economia, organizando as forças produtivas e evitando que o puro esforço da “mão invisível do mercado” dirija as ações e aponte as consequências da integração. Basta mencionar o esforço em promover as chamadas inversões econômicas intra-bloco, que envolve o fechamento e a abertura de fábricas, treinamento de pessoal, deslocamentos de mão de obra etc, que não poderiam 270 O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia ser promovidos, senão a maior custo social, senão pela força dos Poderes Públicos. Este estágio é o do Mercado Comum (Common Market), que pode fazer a coordenação através de organismos supranacionais (caso da União Européia) ou meramente intergovernametais, dependendo do consenso dos Estados envolvidos (caso do Mercosul). A integração econômica, geralmente (mas não necessariamente) após alcançado o estágio do Mercado Comum, conflui de modo natural para a adoção de uma moeda única, na medida em que farse-á necessária a facilitação das trocas e obtida certa harmonização nos fluxos comerciais e financeiros. É a etapa da União Monetária (Monetary Union), atual estágio europeu. Por fim, a frustrada recente tentativa de aprovar a Constituição Européia parece representar o último estágio da integração, qual seja, a União Política (Political Union). Sem dúvida alguma, a Constituição Européia buscou reforçar a autoridade supranacional comum. Ainda que não se visasse aniquilar a personalidade internacional por completo dos Estados membros, boa parcela de suas soberanias seria cedida ao ente central. Falava-se em blocos de constitucionalidade (presentes nas constituições nacionais) intocáveis, e resguardados da sanha invasora comunitária. Venceu, todavia, no primeiro embate, o pensamento daqueles que consideram ainda muito prematura a adoção de uma integração política em grau mais avançado. Podese considerar, todavia, que foram os próprios impactos positivos e negativos da integração econômica que foram avaliados, sabendo-se que muitas das ações comunitárias produziram danos de monta para muitos setores em vários estados partes, ainda não devidamente assimilados. O custo da integração é alto, e o desemprego e a recessão presentes em algumas zonas da Europa impedem, por ora, que a unificação seja tida como a solução preferencial a ser adotada. Saulo José Casali Bahia 271 O Mercosul caminha a uma velocidade de integração visivelmente inferior àquela que a Europa já possuiu. Previu-se para o Mercosul que haveria um programa de liberalização comercial (com redução progressiva, linear e automática de tarifas, junto com a remoção de restrições nãotarifárias ou medidas de efeito similar). Ao lado disto, estabeleceuse uma tarifa externa comum e a harmonização de políticas macroeconômicas e setoriais, onde apropriado. A verdade é que o cronograma da desgravação tarifária vem sendo prorrogado reiteradamente. As listas de exceções nunca foram eliminadas por completo. Fala-se constituir o Mercosul uma União Aduaneira incompleta, uma Zona de Livre Comércio imperfeita e um quaseMercado Comum. Trata-se de uma visão pragmática e realista, atuando a diplomacia dos países mercosulinos, notadamente o Brasil, com certa prudência, evitando que a integração do cone sul descambe para o passionalismo. 2. O Mercosul e a ALCA Há, atualmente, uma grave divergência entre o Brasil e os USA no tocante ao ritmo de implementação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), onde a posição brasileira, ao contrário da americana, consiste na estratégia de negociar como bloco (envolvendo os 4 Estados do Mercosul, conscientes os países integrantes do Mercosul da maior vantagem comparativa na negociação em bloco) e em todas as áreas simultaneamente (“single undertaking”), o que produz uma redução no ritmo de negociações. Hoje em dia, a tarifa externa comum varia de 0% a 20%, com média de 14%, o que já representa níveis bastante inferiores aos já praticados. Qual a razão (ou razões) para explicar a estratégia brasileira? Antes de mais nada, o Brasil vê a ALCA como uma Zona de Livre Comércio comandada ou pela mão invisível do mercado ou 272 O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia pelos interesses comerciais dos países cujas economias sejam as mais competitivas na região (o que poderia ser dito dos Estados Unidos). A ALCA não teria, para o Brasil, qualquer pretensão de constituir um Mercado Comum, com intercâmbio planificado e disposição de cessão de qualquer parcela de soberania dos Estados envolvidos. Assim, o Brasil vê certos riscos na criação imediata da ALCA, pois muitas empresas brasileiras continuam a operar com vetores produtivos inadequados e ainda não estão aptas a competir sob níveis reduzidos de proteção estatal. E fatores institucionais impedem a redução dos custos de transações no Brasil. Todavia, não se pode negar certas oportunidades, pois a integração hemisférica pressiona e exige a reestruturação de indústrias localizadas no Brasil, melhorando suas condições de competitividade. Como outros riscos, pode-se notar que, entre os membros da ALCA, os interesses em criar um Mercado unificado são assimétricos, e apenas 4 países da região possuem um leque diversificado de produtos para exportação. Será certamente necessário o aumento, pelos Estados, dos investimentos em ciência e tecnologia, e a criação de condições que possam encorajar o setor privado a cumprir as suas funções. Como riscos à estabilidade monetária, pode-se apontar para que muitos países latinoamericanos usam âncoras externas para combater a inflação, não sendo o dolar uma âncora ideal para uma futura integração. Mas como oportunidades, se a Argentina, o Brasil, o Canada e o México harmonizarem as suas políticas de taxas externas, suas moedas poderiam servir como uma âncora inicial para a criação de sistema monetário para as Américas (Monetary System of the Americas - MSA) e para promover a convergência de políticas macroeconômicas no hemisfério. A atual agenda a ALCA possui três desafios principais: a questão monetária, a ajuda estatal e a ciência e tecnologia. Enquanto estas Saulo José Casali Bahia 273 dificuldades persistirem, as assimetrias no hemisfério não irão propriamente ser resolvidas. Mas não deve haver dúvida de que as negociações da ALCA estimulam a transparência e a coerência em políticas domésticas, e a negociação em questões envolvendo a regulação do mercado interno abre novas oportunidades para a cooperação. A iniciativa da ALCA pressupõe que o Brasil tenha regras estáveis governando o comércio exterior, como uma taxa equilibrada para as trocas e um estável regime de importação. Muitos outros riscos podem ser apontados, desde o decréscimo dos direitos trabalhistas (bastante desenvolvidos no Brasil, sendo a proteção ao trabalhador tida como maior do que em países como os EUA), a destruição das tradições culturais (com a massificação comercial) e da agricultura familiar (com o implemento da produção em escala). Fala-se em danos que vão da seguridade social à biodiversidade, da destruição de médias e pequenas empresas até o crescimento das dificuldades e responsabilidades internacionais. Os fracos tornar-se-iam mais fracos, e os fortes mais fortes. Caberia aos Estados menos desenvolvidos ou competitivos todos os custos do ajustamento e das inversões econômicas, bem como os custos de novos investimentos. Quando se fala em ALCA, há uma falta de previsão de auxílios ou de fundos regulatórios, e nada de muito concreto se fala quanto às barreiras não-tarifárias (que podem ser impostas por certos países). A ALCA pode representar, por outro lado, um abandono do projeto integracional do Mercosul, ou afetar o mesmo, fazendo com os países integrantes deste bloco percam as suas vantagens comparativas. Todavia, são poucos os que também não vejam o estímulo ao comércio, a redução de custos, o acesso a bens e serviços, o crescimento da renda e o desenvolvimento dos países envolvidos. 274 O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia Existe nos países membros do Mercosul uma clara consciência de que a integração econômica, por qualquer via, não pode desprezar o desenvolvimento social em prol de ganhos absolutos mas mal partilhados entre os segmentos da população. “Crescer e depois dividir” consistiu em uma política econômica hoje repugnada, pois a experiência já demonstrou que a concentração de renda fomentou apenas a perpetuação da pobreza e gera um mecanismo auto-defensivo em favor da própria concentração. É consensual, na América mercosulina, a necessidade de ligar o desenvolvimento econômico e a justiça social, com a rejeição da opressão da lei do mais forte, devendo-se buscar o desenvolvimento equilibrado e durável, com a participação da sociedade. Não foi à toa que uma consulta pública, no Brasil, em relação à ALCA, com 10.149.542 votantes e promovida por cerca de 60 instituições, em 4000 Municípios, ofereceu há poucos anos o desalentador resultado de 98% contra e apenas 1% em favor da criação desta zona. Os riscos com a ALCA não podem ser, como até o presente momento se sugere, meramente um problema nacional. Em verdade, a integração via ALCA está a reclamar, para muitos países, um choque de solidariedade. Para tanto, e como salvaguarda, insiste o Brasil em proceder à negociação através do MERCOSUL, e realizar a discussão sobre todos os setores (subsídios, dumping, no chamado entendimento único ou através do “single undertaking”), e não apenas sobre a data de início, dentro da conhecida estratégia de “eixo e raios” (“hub and spokes”) ou do bilateralismo. 3. O Mercosul e a União Européia Desde a criação do Mercosul, en 1991, houve a presença e a ajuda institucional da União Européia, que sempre considerou o Saulo José Casali Bahia 275 Mercosul como um instrumento capaz de evitar o alargamento da influência dos EUA no continente americano. Assim, em 1992 foi assinado o Acordo Bilateral de Cooperação Institucional, e em 1994 o Plano de Duas Fases UE-Mercosul para reforçar as trocas comerciais. Em 1995 (15/12) foi a vez do Acordoquadro de Cooperação Interregional, o primeiro do gênero por uniões aduaneiras, e foi prevista a criação de uma associação interregional. No ano de 2006, houve a assinatura do “Projeto de apoio da União Européia para a instalação do Parlamento do Mercosul”. O interesse em não ver alargar a influência de um poder econômico rival (EUA) não é, todavia, a única motivação existente para a atenção dispensada pela UE ao Mercosul. Várias outras razões servem a justificar o vívido relacionamento entre os Blocos. Antes de mais nada, dois membros da UE (Espanha e Portugal) guardam identidade de valores e de civilização com os países do Mercosul, donde o interesse em manter vínculos aproximativos. As economias (temperada do hemisfério norte e tropical do hemisfério sul) guardam inegável complementariedade, seja diante das injunções e inversões climáticas, seja diante dos graus diferenciados e diversificados que possuem. A UE representa 1/3 des exportações do Mercosul, que recebe 42% dos investimentos europeus. É o Mercosul o quarto mercado mundial depois do NAFTA, da UE e do Japão, com PIB de 1,1 bilhões de dólares. Assegurar a existência do Mercosul pode contrabalançar não somente os EUA, mas também a idéia da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), zona de livre comércio desprovida de qualquer pretensão de supranacionalidade, harmonização ou coordenação de políticas macroeconômicas, e onde se imagina haver o resultado principal de abertura do mercado para os EUA. 276 O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia A diagonalização com o Mercosul permitiria aos países membros do Mercosul, segundo estudos já realizados, um crescimento do PIB, com a liberalização comercial, maior que aquela advinda da associação na ALCA (Brasil com 0,76% mais que com a ALCA, e Argentina com 4,0% mais que com a ALCA). Obviamente, as ações Mercosul-U E seguem estratégia organizada definida, e sintetizada em 3 pilares: a) a cooperação política ; b) a liberalização gradual e recíproca das trocas, em todos os setores; c) a cooperação mútua reforçada. Os acordos acima mencionados cuidaram do estabelecimento de uma estrutura institucional formada pelo Conselho de Cooperação (nível ministerial), pela Commissão Mista de Cooperação e pela Subcommissão Comercial. Vem ocorrendo Reuniões Regulares dos órgãos desde 1996, e em 2000, na Reunião do CMC de Buenos Aires, foi decidido realizar a negociação por 3 grupos. O Grupo 1 corresponde ao diálogo político, prevendo-se reuniões regulares de chefes de Estado e autoridades da UE, reuniões anuais de chanceleres e reuniões ministeriais e de altos funcionários. Ainda é aguardada a definição de uma data para o início da associação interregional. O grupo 2 corresponde à cooperação, com o reforço das instituições, das políticas setoriais e macroeconômicas, da integração física, das estruturas comerciais e dos laços com a sociedade civil. O grupo 3 corresponde aos temas comerciais, com 3 subgrupos: GT1 – Comércio de mercadorias, Tarifas, Normatização, Dumping, Regime de origem e Aduana; GT2 - Serviços, Propriedade Intelectual e Investimentos; e GT 3 – Compras Governamentais, Concorrência e Solução de Controvérsias. Saulo José Casali Bahia 277 Esta aproximação, todavia, não deve ser considerada como despida de diversas e sérias dificuldades. Como problemas, deve-se recordar que, em 1998, a Commissão Européia adotou uma recomendação ao Conselho Europeu para obter a autorização de negociar uma associação interregional com o Mercosul. Todavia, houve a posição contrária da França, e a questão da concorrência agrícola foi lembrada. Onde quase 50% das trocas envolvem produtos agrícolas e agroindustriais, forçouse a uma negociação por 2 fases, envolvendo a Organização Mundial do Comércio e a revisão da PAC (Políticas Agrícolas Comuns). Não se pode esquecer que, em matéria de comércio internacional, a política protecionista nunca é uma posição descartada por qualquer Estado, em qualquer ocasião. A “Revue Europe”, em edicão de 1995 (nº 6468, em 26 abril 1995), atrevidamente, para padrões diplomáticos, realizou a seguinte advertência: “A coragem política é dizer aos amigos sulamericanos, e aos outros produtores do mundo inteiro, que a Europa deve manter suas políticas, não abrir suas fronteiras aos produtos alimentares essenciais dos outros continentes, nem aos cereais, nem à carne, nem aos lácteos, nem para as frutas e legumes, porque estes produtos devem ser produzidos na Europa.” Contra o protecionismo, e para contorná-lo quando surge durante negociações comerciais, a estratégia do Mercosul consistiu em tratar de temas do comércio internacional com base no princípio do “single undertaking”. Ou se negocia todos os pontos, ou não pode haver negociação de qualquer um deles. Não é preciso dizer do entrave que tal posição inevitavelmente provoca às negociações comerciais internacionais e às negociações comerciais UE-Mercosul. E, ao lado deste entrave, entrou em cena, por parte da UE, uma ação reativa quanto ao seu entorno (em direção à Europa Central e do Leste e para o Mediterrâneo). 278 O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia Por parte do Mercosul a situação também não deixa de ser parecida, e os esforços não se concentram apenas na aproximação com a União Européia. Também o Mercosul promove ativamente uma ação reativa em direção ao seu entorno, notadamente com o Chile, Bolivia, Venezuela, Pacto Andino (disto já resultando a admissão pelo CMC da Venezuela como membro pleno), chegando as diplomacias Mercosulina e brasileira a propor a Área de Livre Comércio Sulamericana (ALCS), em claro contraponto à Área de Livre Comércio Americana (ALCA), livre dos estorvos e assimetrias que poderiam advir de uma tal relação (zona de livre comércio) com os Estados Unidos, onde o Brasil não possuiria maior poder de decisão. Espera-se, portanto, que as relações entre países ocorram sempre em prol do desenvolvimento dos Estados envolvidos, e que o sentido de cooperação supere aquele de ganhos exclusivos, garantindo-se, com o diálogo e o entendimento, a adoção de medidas que possam preservar os interesses das populações envolvidas. Saulo José Casali Bahia 279 NOTAS PARA UMA TEORIA HERMENÊUTICOJURÍDICA Willis Santiago Guerra Filho Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor de Filosofia do Direito no Programa de Estudos PósGraduados (Mestrado e Doutorado) em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e dos Cursos de Mestrado em Direito das Universidades Candido Mendes (UCAM), RJ, e de Pós-Graduação lato sensu\da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Ciência do Direito (Universidade de Bielefeld, Alemanha) e Livre-Docente em Filosofia do Direito (Universidade Federal do Ceará). Sumário: 1. Generalidades. 2. Os Sentidos da Interpretação Jurídica. 3. A Hermenêutica Jurídica Tradicional. 4. A nova Hermenêutica Jurídica: a Interpretação especificamente Constitucional. 5. Referências. Resumo: A hermenêutica é uma disciplina de origem filosófica, que passou para o campo do direito, modernamente, mediada por uma inserção e desenvolvimento em outras disciplinas, como a teologia e a filologia. A elaboração moderna e ainda atual do que se pode chamar de abordagem clássica da hermenêutica jurídica é devida, principalmente, ao professor alemão do Século XIX F. C. von Savigny, que distinguiu os métodos gramatical, filológico, histórico e sistemático, enquanto será uma contribuição posterior, de Rudolph von Jhering, a introdução do método teleológico, sendo de se considerar uma radicalização deste método aquele dito sociológico. A ênfase maior dada a uns ou outros desses métodos vai introduzir uma oposição entre concepções subjetivistas e objetivista na interpretação do direito, algo a ser superado em uma abordagem atualizada pelos recursos semiológicos/semióticos da vertente analítica em filosofia contemporânea. A grande novidade em matéria de hermenêucia jurídica, no entanto, são os novos métodos da chamada inerpretação especificamente constitucional, que levam a uma re-interpretação quando a aplicação do direito com base na hermenêutica tradicional leva a uma ameaça os fundamentos constitucionais do direito, com destaque para a preservação dos direitos fundamentais, evitando colisões entre eles que possa inviabilizar algum deles, pela incidência do princípio da proporcionalidade. 281 Palavras-chave: Hermenêutica Filosófica – Interpretação Jurídica – Hermenêutica Constitucional – Princípio da Proporcionalidade 1. Generalidades A etimologia da palavra “interpretação”, de origem latina, remeteria a uma prática adivinhatória romana, muita antiga, baseada na “leitura” do que se via ao abrir ritualmente animais sacrificados, em suas entranhas (inter pres), para prognosticar o futuro. No mesmo ambiente cultural, outras formas divinatórias, menos cruentas, eram utilizadas, como a leitura do vôo sincopado de pássaros, como as andorinhas, e se pode mesmo afirmar que em toda sociedade se produzem tais práticas, mágicas, de atribuição (ou “desentranhamento”) de um sentido ao que ocorreu, ocorre e ocorrerá, a partir de algum dispositivo considerado apto a estabelecer vínculos entre esta realidade, mundana, com aquela outra, superior, invisível, em que habitam as forças ou deidades que geram e detêm o controle dessa realidade em que vivemos (e morremos). Daí que uma outra palavra, mais erudita, que guarda sinonímia com aquela que ora nos ocupa, a saber, “hermenêutica”, em sua origem grega, seja associada ao deus Hermes, filho de Zeus com a Ninfa Maya, que se tornou o mensageiro de pés alados, mediador e responsável pela comunicação entre seu pai e os mortais, sendo por isso atribuída a ele, na narrativa mitológica helênica, a invenção da linguagem e da escrita. Apesar de questionada e duvidosa (Jean Grondin), como geralmente ocorre com a etimologia dos vocábulos, especialmente aqueles mais significativos, esta aproximação com a mitologia, além de esclarecedora, enquanto alegoria, nos coloca, justamente, diante de situação que requer o emprego da interpretação, seja como interpretatio, seja como hermèneutiké. Isso para transitarmos de um sentido que esteja “escondido”, na interioridade de animais sacrificados ou do pensamento de quem se dedica a entender o 282 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica sentido do mundo, podendo ainda este sentido se perder por estar muito à vista, na literalidade de uma narrativa mítica – sendo ho mythos, em grego, justamente este relato de uma vivência (Emmanuel Carneiro Leão) -, donde a necessidade de se trazê-lo à compreensão, expressando-o por meio de uma espécie de tradução ou deciframento do que se interpreta, em linguagem corrente. É dessa expressão e compreensão, decorrente do ajuste entre o que está em dada sentença e a intenção a ela subjacente, para assim aferir de sua veracidade, que se vai tratar, quando Aristóteles - tal como em geral ocorreu, precedido por seu mestre Platão -, faz uma elaboração filosófica do problema, no âmbito de sua obra Peri hermèneias, traduzida em latim por De interpretatione. Assim, apesar dessa aproximação semântica, entre o que teria sido, originalmente, a designação de uma prática divinatória, no caso da interpretação, enquanto forma de saber, e a hermenêutica, ao ponto de se ter uma sinonímia entre ambas, na Grécia antiga se diferenciava perfeitamente a ambas, ao mesmo tempo em que se considerava guardarem entre si uma espécie de parentesco, tal com se nota no pequeno diálogo de Platão denominado Epínomis, ou seja, “apêndice”, a outro mais extenso, que é “As Leis”, sendo aquele denominado também “O Filósofo”, quando já em sua segunda manifestação o personagem designado com “O ateniense” considera como duas espécies de um mesmo gênero de saber a quiromancia (mantiké) e a hermenêutica, ambas incapazes de conduzir ao saber verdadeiro, a Sophia. Isto porque a hermenêutica, enquanto arte ou “capacidade” (na trad. bras.) geral de interpretar oráculos, conduziria à compreensão do que é dito por estes que, em seu estado de êxtase, de mania, sequer sabem o que dizem, mas ainda não permite estabelecer se é verdadeiro (alethes) o que foi dito. Em texto clássico e de grande importância histórica, denominado “A Origem da Hermenêutica”, de 1900, Wilhelm Dilthey, logo no Willis Santiago Guerra Filho 283 princípio, assevera o A. que a “arte de interpretar (hermeneía) nasceu na Grécia, fruto da necessidade de ensinar”. Concretamente, este ensino baseava-se em textos poéticos como os de Homero e Hesíodo, para citar apenas dois dos mais conhecidos dentre os “pais-fundadores” da Civilização que é um dos pilares daquela dita Ocidental. Daí porque um outro filósofo contemporâneo, identificado com a elaboração filosófica da hermenêutica, Paul Ricouer, na abertura mesmo de sua obra, igualmente clássica, “O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica”, vai afirmar que o problema da interpretação é colocado, primeiramente, enquanto um problema de exegese, ao aparecer “no contexto de uma disciplina que se propõe a compreender um texto, a compreendê-lo a partir de sua intenção, baseando-se no fundamento daquilo que ele pretende dizer”. Eis que terminamos por introduzir uma terceira palavra, “exegese”, também considerada um sinônimo de interpretação, mas que se restringiria a uma dimensão mais filológica, por vincular a interpretação a objeto de certo tipo, que são os textos. Ao mesmo tempo, percebe-se aí a grande amplitude em que, já nesse nível exegético, o problema da interpretação se situa, com implicações para além – ou aquém -, inclusive, da própria filosofia, especialmente no campo de religiões como aquelas baseadas em textos, a exemplo dos Vedas, da Bíblia e do Corão, assim como da literatura em geral e, também, de maneira igualmente paradigmática, desde épocas bastante recuadas, no campo do Direito, na forma da interpretação jurídica. Contemporaneamente, pode-se destacar a interpretação psicanalítica como um exemplo que se situa neste paradigma. 2. Os Sentidos da Interpretação Jurídica O problema hermenêutico pode ser considerado, principalmente no âmbito das chamadas ciências do espírito ou culturais, como um desdobramento da questão metodológica e, portanto, como 284 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica uma preocupação que se coloca igualmente ao nível epistemológico, visto que ‘interpretação’, em sentido amplo, é sinônimo de “compreensão”, quando esta seria precisamente a tarefa a ser realizada por aquelas ciências, entre as quais se inclui o Direito, em oposição ao objetivo descritivo das ciências ditas exatas ou naturais. “Explicamos a Natureza, compreendemos a Cultura”, foi o lema de Dilthey. No campo do Direito, em virtude mesmo da conexão íntima que se demonstrou existir entre conhecimento e interpretação, a ponto de tornar em grande parte coincidentes a questão hermenêutica com a questão epistemológica jurídica, verifica-se um tratamento da primeira que em tudo faz lembrar aquele dispensado a esta última. É assim que ao lado dos que consideram a atividade de interpretação do Direito como voltada para a determinação da verdade, conferindo-lhe, portanto, caráter científico, outros a concebem como mera técnica decisória, em face de valores antagônicos, enquanto Kelsen entende não ser este sequer um problema de Teo-ria do Direito, mas sim de Política do Direito, postulando, ab initio, ser a interpretação realizada pelos órgãos estatais aplicadores do Direito a interpretação correta, em qualquer circunstância, e distinguindo, nesta aplicação, um ato de conhecimento, que transcende os limites do Direito positivo, revelador de inúmeras possibilidades de interpretação de uma norma, e um ato de vontade, onde se escolhe uma delas, o que se toma ela própria uma norma jurídica (individual), e deverá ser considerada como autêntica e irrefutável. Incidentalmente, podese observar, na concepção kelseniana, considerada em linhas gerais, como é impreciso o limite onde termina a interpretação e começa a aplicação do Direito, quando, na verdade, como deflui do que ficou assinalado, são operações obviamente distintas, conquanto intimamente interrelacionadas. G. Tarello, aplicando ao problema o que U. Scarpelli denominou ‘semântica terapêutica’. Willis Santiago Guerra Filho 285 distingue inicialmente duas acepções em que se utiliza a palavra ‘interpretação’, sendo uma “aquela pela qual o vocábulo se refere a uma atividade; a segunda acepção é aquela pela qual o vocábulo se refere a um objeto (que eventualmente coincide com o produto de uma atividade designável como ‘interpretação’ na primeira acepção).” Em seguida, tomando em consideração diversos contextos em que os termos são empregados, conclui que existe uma “área semântica comum” entre eles, o que se evidencia particularmente quando os vocábulos são usados com referência à atividade dos juízes e funcionários administrativos. Assim, é possível, sendo mesmo o mais comum, que se interprete uma norma, mas não se chegue ao ponto de aplicá-la, o que é tarefa específica de determinadas autoridades. O contrário, porém, não se veri-fica, pois na atualidade é voz corrente que toda aplicação, por mais evidente que seja o significado do dispositivo, pressupõe uma interpretação. Finalmente, é de se ressaltar como `aplicação’ também, por sua vez, pode ser entendida de duas formas, isto é, como `aplicação-atividade’, e como `aplicação-produto’, notando que “quando se emprega o termo ‘interpretação’ na acepção de ‘interpretação-produto’ se refere às interpretações para a aplicação, ou seja, às interpretações dos juízes e dos funcionários administrativo”. Já a aplicação-atividade pode ser qualificada dentro do que J. L. Austin chamou de ‘enunciados performativos’, para designar a função operativa da linguagem, na medida que não se prestam tanto a dizer algo - como ocorre na interpretação-atividade, onde se diz que um poder, direito ou obrigação é concedido a alguém -, quanto a fazer com que o indivíduo seja investido em determinada situação subjetiva, ao passo que a aplicação-produto e constituída pelo próprio fato desta investidura. O que caracteriza o emprego da interpretação no Direito é sua finalidade eminentemente prática, onde o intérprete deseja compreender não aquilo que o autor do texto normativo lato sensu 286 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica disse ou quis dizer - donde o despropósito de polêmicas do tipo daquela entre subjetivistas e objetivistas, a ser considerada oportunamente -, mas sim quer saber como ele deverá se comportar diante da prescrição normativa, como deverá julgar concretamente em face dela, se for um juiz; como orientará o comportamento de outros para entendê-la ou cumpri-la, caso seja professor, jurista ou advogado. Por outro lado, a interpretação jurídica é revestida igualmente de importância teórica inexcedível, já que a própria ciência do Direito é uma ciên-cia prática, voltada para o controle e organização da sociedade, ao propiciar a redução dos conflitos intersubjetivos de interesses. Na verdade, a hermenêutica jurídica possui diversos níveis, pois se pode divisar uma espécie de interpretação doutrinal, realizada de uma perspectiva extrasistemática, no âmbito da Política do Direito ou da filosofia jurídica, onde se estuda o momento valorativo e ideológico da interpretação, para justificar racionalmente e de maneira objetivamente avaliável o objetivo do ato interpretativo. Por outro lado, existe o que se denomina interpretação operativa, mais ligada à práxis judiciária, a qual pode ocasionar uma verdadeira teoria, científica e descritiva da interpretação, ao se ocupar da construção de modelos hermenêuticos específicos para o tratamento do Direito em sua concretude. Por outro lado, a interpretação jurídica é revestida igualmente de importância teórica inexcedível, já que a própria ciência do Direito é uma ciência prática, voltada para o controle e organização da sociedade, ao propiciar a redução dos conflitos intersubjetivos de interesses. Na verdade, a hermenêutica jurídica possui diversos níveis, pois se pode divisar uma espécie de interpretação doutrinal, realizada de uma perspectiva extra-sistemática, no âmbito da Política do Direito ou da filosofia jurídica, onde se estuda o momento valorativo e ideológico da interpretação, para justificar racionalmente e de maneira objetivamente avaliável o objetivo do Willis Santiago Guerra Filho 287 ato interpretativo. Por outro lado, existe o que se denomina interpretação operativa, mais ligada à práxis judiciária, a qual pode ocasionar uma verdadeira teoria, científica e descritiva, da interpretação, ao se ocupar da construção de modelos hermenêuticos específicos para o tratamento do Direito em sua concretude. A interpretação operativa assume uma estrutura dogmática, ao elaborar um conhecimento em função de uma tomada de decisão, que põe fim a conflitos, mesmo sem solucioná-los de forma cabal, impedindo assim sua generali-zação insidiosa pelo corpo social. Esta decisão se dá sob a égide de uma tensão entre dois pólos, presa a duas determinações fundamentais: uma inicial, que impõe a assunção de um ponto de partida e de apoio, convencionado previamente e aceito de um modo geral como apto a fundamentar a decisão - é o dogma, constituído pela norma jurídica abstrata, premissa maior do silogismo judicial, a espera de uma interpretação que propicie a subsunção dos fatos con-cretos, ao estabelecer uma equivalência com aqueles previstos na hipótese le-gal ou suporte fático normativo (Tatbestand, dizem os alemães; fattispecie, os italianos). O condicionamento final é a imposição da tomada de decisão, sendo vedada a pronúncia da impossibilidade de solução, o non liquet. Esta demarcação de limites para a interrogação e a dúvida, informadora de todo o processo cognitivo, é o que concede à interpretação operativa seu caráter dogmático. A interpretação doutrinal, por seu turno, estrutura-se de forma zetética (gr., zetein: pesquisar, investigar), o que lhe confere uma postura aberta, que admite o questionamento total - ou quase total, posto que sempre existem os axiomas, isto é, pontos assentes que permitem o desenvolvimento do pensamento -, com o qual tanto pode-se chegar a soluções de lege lata, como de lege ferenda, ou ainda concluir dizendo que a norma interpretada não tem um sentido preciso ou a ambígua, hipóteses descartadas quando se realiza uma interpretação 288 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica operativa. Para atender ao objetivo da exegese de um dispositivo legal, a via adequada é a da interpretação operativa, conforme a uma teoria descritiva, ensejada por um modelo explicativo de natureza empírico-semiótica. E de fato, a importância da teoria dos signos no procedimento interpretativo evidencia-se quando se considera que as duas principais formas semióticas da linguagem, a comunicação e a significação, se acham presentes ali, pois interpretar e atribuir certo sentido ou significado a um signo, o qual provém de um emissor (no caso da lei, o legislador) e dirige-se aos receptores (os indivíduos subordinados ao ordenamento jurídico), veiculando uma informação, is-to é, fazendo uma comunicação. 3. A Hermenêutica Jurídica Tradicional Abordando agora, sucintamente, o tema da hermenêutica jurídica tradicional, cabe assinalar, inicialmente, a insuficiência da aplicação unilateral de qualquer método hermenêutico, na compreensão dos textos legais. A interpretação, contudo, é uma, não se fraciona, conquanto exercite-se por vários processos, contendo diversos elementos ou fases: gramatical ou filológico e lógico, subdividido este em lógica propriamente dita e social. Estes dois aspectos da interpretação representam a permanente tensão dialética que marca todo o processo hermenêutico entre, por um lado, a letra do dispositivo e, por outro lado, o espírito que o anima. Neste sentido, já preconizava a velha sentença de Ulpiano: Verbum ex legibus, sic occipiendem est: tam ex legum sententia, quam ex verbis ( D. 50.16 - 6, § 19; “o sentido das leis se deduz tanto do espírito como da letra respectiva”.). O processo gramatical exige, precipuamente, o domínio perfeito da língua empregada no texto, isto e, das palavras e frases usada em determinado tempo e lugar; propriedade e acepções várias de cada uma delas, bem como conhecimento das leis de composição e gramaticais. É este o Willis Santiago Guerra Filho 289 ponto de partida do trabalho hermenêutico, sua conditio sine qua non, (condição necessária) porém, jamais conditio per quam (condição suficiente). O brocardo in claris cessat interpretatio (“com a clareza cessa a interpretação”) não encontra jamais aplicação, pois toda lei é passível de ser interpretada de forma lógico-extensiva, e não apenas literalmente. Como regras de proceder líterogramatical, tem-se de: (1o.) examinar se não ha divergências entre o significado comum das palavras e seu sentido técnico, quando este, evidentemente, prevaleceria sobre o primeiro; (2o.) levar em consi-deração a colocação da norma no corpo da lei; (3o.) enquadrar as palavras da nor-ma não só no contexto em que se acha, mas também relacioná-la com outras disposições sobre a matéria; (4o.) em havendo palavras que apresentam vários sentidos literais, interpretar verificando, inicialmente, qual deles pode-se harmonizar com aqueles advindos da interpretação lógica, sistemática, teleológica e histórico-evolutiva; (5o.) caso tal não ocorra, isto é, havendo antinomia entre o sentido gramatical e os demais, lógicos lato sensu, o intérprete deve abrir mão do primeiro em face dos demais, dissolvendo as divergências, tendo em vista as exigências do bem comum. Assim, pode-se enunciar duas regras elementares da interpretação lé-xica: (1o.) deve-se atender ao sentido usual da palavra e (2o.) deve-se sempre confrontar este sentido com aquele resultante da conexão entre as outras palavras do texto caso estes princípios não se coordenem. Há de se dar primazia ao segundo, deixando o campo aberto para a interpretação lógica. Os autores dividem a interpretação lógica em interna e externa. Na primeira, opera-se uma indagação psicológica daquilo que foi a vontade do legislador (mens legislatoris), considerando como a própria vontade da lei (mens legis). Externamente ressalta a pesquisa de ocasio legis e da ratio legis, isto é, da formação histórica do instituto, do estudo da legislação comparada, dos trabalhos preparatórios, das normas vigentes ao tempo da lei interpretada, 290 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica bem como sua finalidade, sui telos. Autores que se aglutinam em torno de posição dita “subjetivista” privilegiam o momento “interno”, na definição de qual seja a melhor interpretação, enquanto outros, os “objetivistas”, ressaltam a maior relevância do aspecto “externo”. Os epígonos de ambas as tendências possuem fortes argumentos para contrapor a seus opositores, sem que os argumentos em seu próprio favor cheguem a reunir o poder de se impor definitivamente – e o resultado mais evidente do debate é o enfraquecimento mútuo, antes que o fortalecimento da própria posição. Os que entendem ser necessário captar a intenção do legislador (mens legislatoris) sofrem o reproche de que este legislador é uma ficção, não existe como figura concreta, pois em qualquer sociedade com um nível maior de complexidade em sua organização e que acate padrões mínimos de civilização, as leis não resultam da vontade de um chefe identificável, mas sim de um processo de positi-vação, cujo resultado não e a expressão da vontade de nenhum dos que dele tomam parte, individualmente ou em conjunto, nem sequer do seu acordo ou da media estatística da votação. A “vontade” do legislador termina sendo aquela que ficou consagrada pela tradição, necessitando, para que se manifeste com força vinculante, que seja sempre reafirmada, por um recurso as normas interpretativas, donde se evidencia que, até por uma questão de ordem prática, deve-se confiar nas palavras da lei acima de tudo. A isto os subjetivistas rebatem dizendo que seus opositores não conseguem escapar a tarefa de identificar a intenção da lei, mas apenas, ao negar que esta deva coincidir com a vontade, acaba fazendo com que seja dada arbitrariamente pelo próprio intérprete, acarretando uma tremenda insegurança nas relações jurídicas. Além disso, se não se pode conferir um atributo psíquico a figura institucional do legislador, com menos razão ainda se poderia fazê-lo com relação a entidades totalmente desprovidas de propriedades psicológicas, como são as normas jurídicas. Como se pode observar, as duas posições Willis Santiago Guerra Filho 291 são extremamente fortes, no que diz respeito a capacidade de desmontar-se mutuamente, mas ao mesmo tempo, completamente débeis, quando se trata de apresentar fundamentos para suas próprias sustentações. Ideologicamente, a sustentação do subjetivismo favoreceria o fortalecimento do Estado, sendo levada às últimas conseqüências pelo despotismo, onde as leis devem ser interpretadas sempre de acordo com a vontade do chefe absoluto, tal como ocorreu na Alemanha no período do nacional-socialismo, quando era vigente o chamado “Führerprinzip”, pelo qual se deveria interpretar o direito como um todo e cada uma de suas disposições como expressão da vontade de Adolf Hitler. Já o objetivismo, ao sustentar que com a edição do ato legislativo a lei desprende-se do seus autores, adquirindo existência autônoma e objetiva, vinculando a todos, inclusive aqueles consagra um dos princípios basilares do Estado de Direito, resguardando a so-ciedade civil do autoritarismo estatal - contudo, radicalizá-lo conduziria a anarquia social, por se ter tantas interpretações quantos forem os intérpretes. O processo lógico propriamente dito ou lógico-formal consiste em procurar descobrir o sentido e alcance das expressões jurídicas sem recorrer ao auxílio de nenhum elemento exterior. Trata-se, então, de uma interpretação “pura”, no sentido em que Kelsen adota, quando se propõe a realizar uma dou-trina pura do direito (reine Rechtslehre). Pretende do simples estudos das normas em si mesma consideradas, ou em conjunto, por meio do raciocínio dedutivo, obter uma interpretação. Absolutizar tal processo só seria possível se o sistema jurídico fosse algo ideal, e não uma realidade social concreta. A eurritmia lógica e a perfeição do raciocínio têm um limite: a utilidade social, nem sempre fácil de enquadrar na rigidez de um silogismo. Daí a necessidade de se recorrer a outros processos, ditos sociais. Entre os processos sociais, desponta, primeiramente, aquele que pode ser considerado como um método 292 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica intermediário entre estes e o lógico stricto sensu. Trata-se do processo sistemático, pelo qual se compara o dispositivo, sujei-to à exegese, com outros do mesmo repertório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto, que formam, assim, um mesmo instituto jurídico. Este há de ser relacionado com institutos outros e, finalmente, refere-se tudo aos princípios gerais e ao conjunto do ordenamento em vigor. Levando este processo sistemático às últimas conseqüências, percebe-se a contribuição imensa que pode dar o estudo do direito comparado à interpretação jurídica, bem assim o método históricoevolutivo. Entretanto, cumpre acentuar as peculiaridades do meio para o qual as normas são elaboradas, donde resulta que outros elementos, como, v. g., o teleológico, serão de mais valia para a hermenêutica – reconhece-se como uma contribuição de Rudolph von Jhering, posterior a Savigny, já no último terço do século XIX, a introdução do método teleológico, sendo de se considerar uma radicalização deste método aquele dito sociológico, advindo com o surgimento da sociologia jurídica, no bojo do chamado Movimento do Direito Livre, já no seéculo XX. 4. A nova Hermenêutica Jurídica: a Interpretação especificamente Constitucional A interpretação constitucional se reveste de especificidades, da mesma maneira como em outros ramos do Direito, quando sobre ele se projeta a hermenêutica jurídica. Assim sendo, enquanto na interpretação gramatical, no campo do Direito Processual, diante do significado de um termo, deve-se privilegiar o seu sentido técnico, por se tratar de ramo do Direito afeto primariamente aos profissionais da área, em se tratando de interpretação de texto constitucional, há de se prestigiar mais o sentido comum das palavras, visto ser o conjunto da cidadania o seu destinatário. Mais importante do que tratar desses aspectos, relacionados a uma Willis Santiago Guerra Filho 293 hermenêutica jurídica que já se pode considerar tradicional, em um curso de pós-graduação, se nos afigura tratar das especificidades da hermenêutica constitucional, ou seja, de uma forma de interpretação jurídica especificamente constitucional, que introduz novos cânones, em complemento àqueles consolidados a partir do trabalho de F. C. von Savigny, ainda no século XIX. Praticar a “interpretação constitucional” é diferente de interpretar a Constituição de acordo com os cânones tradicionais da hermenêutica jurídica, desenvolvidos, aliás, em época em que as matrizes do pensamento jurídico assentavam-se em bases privatísticas. A intelecção do texto constitucional também se dá, em um primeiro momento, recorrendo aos tradicionais métodos filológico, sistemático, teleológico etc. Apenas haverá de ir além, empregar outros recursos argumentativos, quando com o emprego do instrumental clássico da hermenêutica jurídica não se ob-tenha como resultado da operação exegética uma “interpretação conforme à Constituição”, a verfassungskonforme Auslegung dos alemães, que é uma interpretação de acordo com as opções valorativas básicas, expressas no texto constitucional. A referência feita a um jargão em língua alemã não foi mero acaso, pois é da recente experiência constitucional alemã - quando após a hecatombe nazista se retoma o projeto político-jurídico anti-positivista da época da República de Weimar -, que se extrai os melhores subsídios para aprofundar a questão aqui colocada, da necessidade de desenvolver uma forma específica de interpretar a Constituição. O contato com essa experiência modelar mostra como a nova metódica hermenêutico-constitucional resultou de uma íntima colaboração entre produção teórica e elaboração jurisprudencial, em nível de jurisdição constitucional. Além disso, introduziu-se em sede de teoria do direito uma diferença entre normas que são regras daquelas com a natureza de princípios que repercutiu no modo como se reconfigurou o tema da hermenêutica 294 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica em Direito. É essa natureza diferenciada de princípios e regras que suscita a necessidade de se desenvolver uma hermenêutica constitucional igualmente diferenciada, diante da hermenêutica tradicional. Especialmente a distinção por último referida, segundo a qual os princípios encontram-se em estado latente de colisão uns com os outros, requer o emprego dos cânones da interpretação constitucional, que passamos a expor, na formulação já clássica de Konrad Hesse, secundado, em língua portuguesa, entre outros, por Gomes Canotilho, sendo, no entanto, de se atribuir a Friedrich Müller, com sua “Teoria Estruturante do Direito” e a correspondente “metódica jurídica”, o maior mérito pelo desenvolvimento dos novos cânones hermenêutico-jurídicos. (1) O primeiro - e mais importante - desses cânones é o da unidade da constituição, o qual determina que se observe a interde-pendência das diversas normas da ordem constitucional, de modo a que formem um sistema integrado, onde cada norma encontra sua justificativa nos valores mais gerais, expressos em outras normas, e assim sucessivamente, até chegarmos ao mais alto desses valores, expresso na decisão fundamental do constituinte. O ato de in-terpretação constitucional, portanto, sempre tem um significado polí-tico e se dá calcada numa ideologia, que, porém, não deve ser a ideologia particular do intérprete, mas sim aquela em que se baseia a própria Constituição. No caso da nossa, a fórmula política se acha claramente indicado no “Preâmbulo” e no seu art. 1º: Estado Democrático de Direito. Ela há de se situar ao nível do que na hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer se denomina “pré-compreensão” (Vorverständnis), designando a pré-disposição orientadora do ato hermenêutico de compreensão. (2) Cânone do efeito integrador, indissoluvelmente associado ao primeiro, ao determinar que, na solução dos problemas jurídicoconstitucionais, se dê preferência à interpretação que mais favoreça a integração social, reforçando a unidade política. Willis Santiago Guerra Filho 295 (3) Cânone da máxima efetividade, também denominado cânone da eficiência ou da interpretação efetiva, por determinar que, na interpretação de norma constitucional, se atribua a ela o sentido que a confira maior eficácia, sendo de se observar que, atualmente, não mais se admite haver na Constituição normas que sejam meras exortações morais ou declarações de princípios e promessas a serem atendidos futuramente. Tal cânone assume particular relevância na inteligência das normas consagradoras de direitos fundamentais. (4) Cânone da força normativa da Constituição, que chama a atenção para a historicidade das estruturas sociais, às quais se reporta a Constituição, donde a necessidade permanente de se proceder a sua atualização normativa, garantindo, assim, sua eficácia e permanência. Esse cânone nos alerta para a circunstância de que a evolução social determina sempre, se não uma modificação do texto constitucional, pelo menos alterações no modo de compreendê-lo, bem como às normas infraconstitucionais. (5) Cânone da conformidade funcional, que estabelece a estrita obediência, do intérprete constitucional, da repartição de funções entre os poderes estatais, prevista constitucionalmente. (6) Cânone da interpretação conforme a Constituição, que afasta interpretações contrárias a alguma das normas constitucionais, ainda que favoreça o cumprimento de outras delas. Determina, também, esse cânone, a conservação de norma, por inconstitucional, quando seus fins possam se harmonizar com preceitos constitucionais, ao mesmo tempo em que estabelece como limite à interpretação constitucional as próprias regras infraconstitucionais, impedindo que ela resulte numa interpretação contra legem, que contrarie a letra e o sentido dessas regras. (7) Cânone da concordância prática ou da harmonização, segundo o qual se deve buscar, no problema a ser solucionado 296 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica em face da Constituição, confrontar os bens e valores jurídicos que ali estariam conflitando, de modo a, no caso concreto sob exame, se estabeleça qual ou quais dos valores em conflito deverá prevalecer, preocupando-se, contudo, em otimizar a preservação, igualmente, dos demais, evitando o sacrifício total de uns em benefício dos outros. Nesse ponto, tocamos o problema crucial de toda hermenêutica constitucional, que nos leva a introduzir o topos argumentativo da proporcionalidade. Para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, se preconiza o recurso a um “princípio dos princípios”, o princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução de compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu “núcleo essencial”, onde se encontra entronizado o valor da dignidade humana. Esse princípio, embora não esteja explicitado de forma individualizada em nosso ordenamento jurídico, é uma exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não se concebe como bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. O princípio da proporcionalidade, entendido como um mandamento de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental, em situação de conflito com outro(s), na medida do jurídico e faticamente possível, tem um conteúdo que se reparte em três “prin-cípios parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” ou “máxima do sopesamento” (Abwägungsgebot), “princípio da adequação” e Willis Santiago Guerra Filho 297 “princípio da exigibilidade” ou “máxima do meio mais suave” (Gebot des mildesten Mittels). O “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja juridicamente a melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que não se fira o “conteúdo essencial” (Wesensgehalt) de direito fundamental, com o desrespeito intolerável da dignidade humana, bem como que, mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o interesse de pessoas, individual ou coletivamente consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que traz para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens. Os subprincípios da adequação e da exigibilidade ou indis-pensabilidade (Erforderlichkeit), por seu turno, determinam que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste para atingir o fim estabelecido, mostrando-se, assim, “adequado”. Além disso, esse meio deve se mostrar “exigível”, o que significa não haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais. Do exposto até aqui, espera-se ter ficado suficientemente evidenciada a íntima conexão entre o princípio da proporcionalidade e a concepção, antes esboçada, do ordenamento jurídico como formado por princípios e regras, princípios esses que podem se converter em direitos fundamentais - e vice-versa. Da mesma forma, como assevera R. Alexy, atribuir o caráter de princípio a normas jurídicas implica logicamente no reconhecimento daquele princípio maior, e vice-versa. É ele que permite fazer o “sopesamento” (Abwägung, balancing) dos princípios e direitos fundamentais, bem como dos interesses e bens jurídicos em que se expressam, quando se encontram em estado de contradição, solucionando-a de forma que maximize o respeito a todos os envolvidos no conflito. O princípio em tela, portanto, começa por ser uma exigência 298 Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica cognitiva, de elaboração racional do Direito - e aqui vale lembrar a sinonímia e origem comum, na matemática, dos termos “razão” (latim: ratio) e “proporção” (latim: proportio) -, o que explica a cir-cunstância da idéia a ele subjacente animar também um dos cânones metodológicos da chamada “interpretação constitucional” - aquela a que se deve recorrer quando o emprego da hermenêutica jurídica tradicional não oferece um resultado constitucionalmente satisfatório: o da “concor-dância prática”, conforme vimos acima. Não se confunda, porém, o princípio constitucional da proporcionalidade, que é norma jurídica consagradora de um direito (rectius: garantia) fundamental – portanto, é uma prescrição -, com um cânone da nova hermenêutica constitucional, que não atua sobre a vontade, mas sim sobre o intelecto do intérprete do Direito, nos quadros de um Estado Democrático. Na verdade, pode-se perfeitamente compreender aqueles cânones todos como uma transcrição, para o plano heurístico, das opções políticas (e éticas) fundamentais, subjacentes àquela forma de Estado, onde o cânone do efeito integrador corresponde à soberania popular (CR, art. 1o., parágrafo único); o da máxima efetividade, à aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (CR, art. 5o., § 1o.); o da força normativa da Constituição, aos objetivos fundamentais da República (CR, art. 3 o.); o da conformidade funcional, à separação de Poderes da União (CR, art. 2o.); o da interpretação conforme a constituição, à legalidade do Estado de Direito, assim como o da unidade da constituição corresponde à legitimidade democrática, estando ambos consagrados no art. 1o. da CR, no caput, em seus incisos, bem como ao longo de toda a ordem constitucional e da ordem jurídica que nela se funda, como um desdobramento dessa polarização da forma jurídica do Estado de Direito com o conteúdo éticopolítico da Democracia, requisitos epistemológicos da teoria hermenêutico-jurídica aqui esboçada. Willis Santiago Guerra Filho 299 5. Referências ALEXY, Robert - Theorie der Grundrechte, Nomos, Baden-Baden, 1985. AUSTIN, J. L. - Performative Uterance in: Diritto e analisi del linguaggio, Uberto Scarpelli (org.), Milão: Giuffrè, 1976. CANOTI LHO, José Joaquim Gomes - Direito Constitucional. Almedina, Lisboa, 1989. DILTHEY, Wilhelm – “Origens da hermenêutica”, in: Textos de Hermenêutica, Porto: Rés, 1984. FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna – La hermenéutica jurídica de Hans-Georg Gadamaer, Universidad de Valladolid, 1992. GRONDIN, Jean – Introdução à hermenêutica filosófica, São Leopoldo (RS): Ed. UNISINOS, 1999. G U E R RA F I LH O, Willis Santiago – “Introdução a uma Hermenêutica Pragmática do Discurso Normativo”, in: Estudos Jurídicos: Teoria do Direito - Direito Civil, id., Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1985. ______. Metodologia Jurídica e Interpretação Constitucional. In: Ensaios de Teoria C onstitucional, id., Fortaleza: Imprens a Universitária, 1989. ______. 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Conteúdo do princípio do juiz natural. 3. O princípio do juiz natural e conceito de autoridade competente: falta de jurisdição e falta de competência. 4. O princípio do juiz natural e a idéia de juiz do lugar. 5. O problema dos atos processuais praticados por juiz afastado em face do princípio do juiz natural. 6. A unidade do juiz natural. 7. Sobre a substituição de juízes e convocação de juízes de órgão inferior para atuar em órgão superior em face do princípio do juiz natural. 8. Sobre o denominado “esforço concentrado” em face do princípio do juiz natural. 9. Sobre a distribuição de processos em face do princípio do juiz natural. 10. Sobre a avocação e a suspensão de processos em face do princípio do juiz natural. 11. Sobre a exclusão de juiz do processo e o desaforamento de causas em face do princípio do juiz natural. 12. Sobre os atos de supressão ou de modificação de competência de órgão judiciário em face do princípio do juiz natural. 13. Sobre a cláusula contratual de competência de foro em face do princípio do juiz natural. 14. Sobre a atribuição de poder jurisdicional a particulares fora dos casos previstos na constituição em face do princípio do juiz natural. 15. Violação ao princípio do juiz natural e suspeita de parcialidade. 16. Conclusões. 17. Referências bibliográficas. 1. Introdução O princípio do juiz natural é um dos princípios processuais constitucionais dos mais relevantes, de maneira que há uma profunda relação entre o direito de acesso à justiça e tal princípio. É o que passaremos a analisar. 2. Conteúdo do princípio do juiz natural O princípio do juiz natural (juiz legal, segunda a terminologia preferida pela doutrina alemã, bem assim por boa parte da doutrina 301 portuguesa) se funda, em primeiro lugar, na idéia de que ninguém deve ser julgado por tribunal ou juízo de exceção ou ad hoc, mas sim apenas pela autoridade competente nos termos previstos em lei anterior a partir da norma constitucional ou na própria norma constitucional.2 Por tribunal de exceção entende-se aquele designado ou criado para julgar determinado caso, não importando quem o criou nem se foi criado antes ou depois do fato ou complexo de fatos objeto da causa a ser julgada nem quem fez a designação.3 Sem dúvida que a criação de tribunal ou juízo de exceção posteriormente ao caso é mais gritante, mas a violação ao princípio do juiz natural pode também se concretizar se a criação do órgão se deu anteriormente aos fatos. Assim, se é exata a associação que se costuma fazer de juiz natural a juiz preconstituído, esse não é o único dado que configura a observância do princípio em tela, de maneira que o órgão jurisdicional pode ter sido criado anteriormente aos fatos, mas com finalidade específica e dirigida para julgar determinados casos concretos ou casos idênticos, isto é, ante determinadas situações previsíveis, determináveis, temporalmente limitadas, que se sabe de antemão que se concretizarão (tribunais extraordinários). Deste modo, se essa última hipótese ocorrer tal órgão jurisdicional se caracteriza como tribunal ou juízo de exceção, o que significa dizer que o caso será, igualmente, de violação ao princípio do juiz natural.4 Com efeito, o princípio do juiz natural pressupõe que o órgão jurisdicional tenha sido criado anteriormente segundo as normas constitucionais ou legais em carácter geral e abstrato. Vê-se aí que o princípio do juiz natural envolve os princípios da legalidade (só a lei pode instituir o órgão jurisdicional e determinar a sua competência) e da irretroatividade (a lei que instituiu o órgão jurisdicional e definiu a sua competência deve estar em vigor antes do acontecimento do fato que fundamenta a ação.5 302 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural Quando se fala em carácter geral evidentemente que não se está a querer dizer que o Estado não possa criar justiças especializadas como mecanismo de divisão do trabalho e melhor realização da atividade jurisdicional. Assim é que a instituição de justiça especial (justiça federal, justiça trabalhista, justiça eleitoral, justiça militar), como ocorre, no direito brasileiro.6 Nessa mesma perspectiva, também não se pode falar em violação ao princípio do juiz natural a atribuição constitucional de função jurisdicional a órgãos não integrantes do Poder Judiciário (ou não caracterizado como tribunal judicial, para usar a linguagem posta na Constituição portuguesa), nos sistemas que em determinados casos atribuem função jurisdicional ao parlamento,7 instituem tribunais administrativos e fiscais,8 tribunais de contas 9 e órgão especial de controle abstrato de constitucionalidade.10 Nessa linha de raciocínio também não podem ser tidos como tribunais ou juízos de exceção os órgãos jurisdicionais com atribuições para julgar causas em razão de pessoas e fatos (prerrogativa de foro). A razão é idêntica à situação anterior, ou seja, o que importa é que não se está a instituir órgãos jurisdicionais para beneficiar ou prejudicar determinada pessoa em particular, mas sim para atender necessidade pública ou interesse público, nos termos constitucionais ou legais prévios e gerais. Deste modo, justifica-se a prerrogativa de foro se determinada conduta praticada por determinado agente se enquadrar em determinadas situações peculiares previstas nas normas referidas, como o exercício de determinadas funções públicas e determinadas condutas por estes praticadas. Por outras palavras, a prerrogativa de foro prevista previamente na constituição ou na lei está posta em razão do cargo a ser ocupado, e não da pessoa que ocupa o cargo.11 Wilson Alves de Souza 303 3. O princípio do juiz natural e conceito de autoridade competente: falta de jurisdição e falta de competência O conceito de autoridade competente deve ser entendido, em primeiro lugar, como sendo aquela que tem o poder jurisdicional atribuído pelas normas constitucionais (jurisdição). Esse aspecto do conceito é mais relevante do que o aspecto restrito do conceito de competência dado pela doutrina processual, que se refere a mera divisão do trabalho dentre os órgãos com função jurisdicional, tendo em consideração diversos critérios (território, matéria, pessoa, valor, etc.) segundo normas infra-constitucionais. Assim, quando se fala em autoridade competente, para se referir ao princípio do juiz natural, significa dizer, num primeiro plano, que o poder jurisdicional é entregue, a partir da constituição, normalmente a diversos órgãos do Poder Judiciário (justiça comum, justiças especiais, como justiça federal, justiça do trabalho, justiça eleitoral, justiça militar, etc.), ou excepcionalmente, conforme salientado acima, a órgãos especiais, como tribunais de contas, cortes constitucionais, tribunais administrativos, nos países que adotam, respectivamente, sistema especial de controle de constitucionalidade e sistema de contencioso administrativo, ou, ainda, ao Poder Legislativo, em princípio nos casos crimes de responsabilidade. Desta maneira, é fundamental aqui a distinção entre poder e função, valendo ressaltar que, como é elementar, o clássico princípio da divisão de poderes não se aplica integralmente, sendo frequentemente necessário, até mesmo como condição de funcionalidade do próprio princípio, que, excepcionalmente um Poder exerça funções que são típicas de outro Poder.12 Por outras palavras, quando a letra de determinada constituição se referir ao princípio do juiz natural expressando que “ninguém será processado e julgado senão pela autoridade competente”, deve-se ter em consideração que a própria 304 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural constituição pode - frequentemente o faz - dividir a função jurisdicional entre determinados órgãos, de maneira que esses órgãos só têm jurisdição (e não mera competência segundo a terminologia empregado normalmente pela doutrina processual) nos limites postos na própria constituição. Isso significa dizer que o juiz natural, primeiro de tudo, é o juiz para o caso segundo as normas constitucionais, para depois se analisar o problema a nível de competência, no sentido estrito (processual) da expressão, a nível, portanto, das normas infra-constitucionais. Por outras palavras, em torno desse tema não se pode olvidar que a atribuição constitucional do poder jurisdicional significa atribuição de jurisdição e não de mera competência. Com efeito, a análise do problema sob este enfoque tem a consequência prática de que “o processo e o julgamento” cujos atos foram praticados por quem não tem função jurisdicional para o caso (falta de jurisdição) são juridicamente inexistentes, enquanto o processo e o julgamento cujos atos foram praticados por quem tem poder jurisdicional, mas não tem competência segundo as leis infra-constitucionais, são juridicamente existentes, o que significa dizer que esses atos prevalecerão enquanto não forem invalidados por quem tem competência para tanto, que é o próprio órgão jurisdicional, cabendo aí distinguir, com todas as suas consequências processuais, a incompetência absoluta da incompetência relativa, segundo o ordenamento jurídico de cada país. Expressando de outro modo, a violação ao princípio do juiz natural a nível constitucional direto (falta de jurisdição) é um problema de inexistência jurídica do processo; a violação às normas processuais infra-constitucionais de competência é um problema de invalidade de determinados atos processuais. Assim, por exemplo, se a constituição atribui ao parlamento o poder de julgar determinados agentes políticos nos crimes de responsabilidade, e o “julgamento” se deu por agentes de qualquer outro órgão, Wilson Alves de Souza 305 mesmo que seja por agentes do Poder Judiciário, houve clara violação ao princípio do juiz natural por agressão direta à constituição, caracterizando-se o “processo” e a “decisão” dentro dele operada como juridicamente inexistentes. Diga-se o mesmo, à evidência, se determinado órgão que não o tribunal constitucional (função que no Brasil é exercida pelo Supremo Tribunal Federal, que é órgão de cúpula do Poder Judiciário) “decidir” uma “demanda” que tem por objeto o controle concentrado de constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo do poder público. No mesmo contexto, vale citar como mais um exemplo o caso de um ordenamento jurídico que segue sistema de contencioso administrativo, a exemplo do ordenamento português, em que determinada causa de natureza administrativa ou fiscal é julgada por um tribunal judicial, ou então, ao contrário, um tribunal administrativo julga causa que é atribuição de tribunal judicial. Os exemplos acima narrados são bem caracterizados e nítidos para melhor compreender o tema em tela, mas o problema da atribuição constitucional de julgar não se põe apenas na relação entre os Poderes, ou entre órgãos judiciais e órgãos especiais, mas também, na linha do acima exposto, entre os próprios órgãos de um mesmo Poder, particularmente, num segundo plano, entre órgãos do próprio Poder Judiciário, tendo em conta as constituições que instituem tribunais judiciais especiais, como é o caso da Constituição brasileira. 13 Assim, por exemplo, se a constituição atribuiu o poder jurisdicional de julgar causas trabalhistas à justiça do trabalho, enquanto órgão jurisdicional especial por ela próprio instituído,14 e o julgamento se deu por outro órgão jurisdicional, também houve violação aberta ao princípio do juiz natural por agressão direta à constituição (falta de jurisdição), caracterizando-se todo o “processo” como juridicamente inexistente, o mesmo ocorrendo se a justiça do trabalho julgar causa atribuída pela constituição à justiça comum 306 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural ou a outra justiça especial. Isso não significa dizer que o princípio do juiz natural não tenha que ser considerado e analisado no que se refere a problemas processuais de competência por violação a normas processuais infra-constitucionais, como logo adiante se perceberá. Com efeito, existem muito problemas processuais relacionados com a falta de jurisdição e, consequentemente, com o princípio do juiz natural. Vejamos alguns casos. 4. O princípio do juiz natural e a idéia de juiz do lugar. O conceito atual de juiz natural não se identifica com a idéia de juiz do lugar, idéia essa que nada mais é do que um aspecto definidor de competência, que é o aspecto territorial, por sinal dos mais tênues, porque os ordenamentos jurídicos costumam dispor que são casos de nulidade relativa os vícios de competência territorial do juízo, de maneira que os atos processuais praticados por juízo relativamente incompetente em princípio ou já foram sanados pela aceitação da parte interessada ou, se impugnados, só poderão resultar em anulação dos atos decisórios praticados. De outro lado, é claro que a decisão de um juiz do lugar vale em todo o território nacional. No entanto, é preciso não olvidar que o conceito de juiz do lugar diz respeito ao princípio do juiz natural no sentido de que o juiz só tem jurisdição no seu lugar, ou seja, no limite da sua atuação jurisdicional territorial na forma da lei local, vale dizer, o juiz, só porque juiz é, não tem como sair dos seus limites jurisdicionais territoriais para assumir processos e prolatar decisões em qualquer lugar em que estão atuando outros juízes, a não ser, é claro, nos casos de substituição segundo as normas locais de organização judiciária. Essa vedação é tão importante que também se aplica aos casos em que existe mais de um juiz, igualmente competente ou não, no mesmo lugar, isto é, o juiz de um lugar fica limitado a atuar nos processos que foram atribuídos Wilson Alves de Souza 307 ao seu órgão jurisdicional conforme distribuição, não podendo sair do seu órgão jurisdicional para decidir processos atribuídos a outro juiz no mesmo lugar, ou seja, para atuar em outro órgão jurisdicional, a não ser, repita-se, nos casos de substituição na forma das normas locais de organização judiciária. Em todos esses casos o problema é de falta jurisdição, e não de mera falta de competência, porque em evidente violação ao princípio do juiz natural a nível constitucional, de maneira que tais atos haverão de ser tidos como juridicamente inexistentes. É exactamente por isso que se costuma dizer, com propriedade, que o juiz natural (leia-se o órgão jurisdicional natural) é apenas um. Em verdade, esse tipo de conduta, qualificada como usurpação de função (pública) jurisdicional, é de ser tida como grave violação aos deveres funcionais. 5. O problema dos atos processuais praticados por juiz afastado em face do princípio do juiz natural O juiz afastado por qualquer motivo, a exemplo de suspensão cautelar das funções em procedimento administrativo para apuração de falta funcional, licença para tratamento de saúde, licença para fins de estudo, férias, etc, enquanto afastado estiver não tem jurisdição, que, por sinal, está ocupada pelo seu substituto legal, não sendo outra a razão pela qual se diz corriqueiramente, como acima salientado, que o juiz natural é apenas um. Nesses casos os atos que por acaso o juiz afastado praticar ofendem ao princípio do juiz natural e devem ser tidos como juridicamente inexistentes. Com o retorno regular do juiz afastado, uma vez que readquiriu este sua jurisdição, quem já não mais tem jurisdição, a contrario sensu, é o substituto legal daquele – e mais uma vez incide a idéia de que o juiz natural é apenas um –, de modo que quem estará a violar o princípio do juiz natural e, assim, a praticar atos juridicamente 308 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural inexistentes, será o juiz substituto se continuar a atuar após o regular retorno do juiz substituído. 6. A unidade do juiz natural Quando se afirma a unidade do juiz natural está-se aqui a se referir ao órgão jurisdicional a partir de processos pendentes e não à figura da pessoa do juiz, de maneira que, como visto acima, mais de um juiz pode atuar num determinado processo, seja nos casos de substituição legal de juízes ou nos casos de sucessão legal de juízes. Excepcionalmente é possível atuação de mais de um órgão jurisdicional num mesmo processo por atribuição constitucional em caráter hierárquico15 ou não16 ou em caso de regra de competência.17 7. Sobre a substituição de juízes e convocação de juízes de órgão inferior para atuar em órgão superior em face do princípio do juiz natural O princípio do juiz natural também deve ser observado nas substituições dos juízes nos processos, inclusive nas convocações de juízes de instância inferior para atuar em órgão jurisdicional superior, de maneira que as normas que regulamentam o assunto devem prescrever a garantia da pré-constituição, vedando designações arbitrárias ou discricionárias de juiz. Assim, por exemplo, se o juiz se afastou de determinado processo por motivo de impedimento ou suspeição deve remeter os autos do processo ao seu substituto legal na forma das normas regulamentares preexistentes. Inexistindo tais normas e havendo mais de dois órgãos jurisdicionais no mesmo lugar a solução correta para que seja efetivamente aplicado o princípio do juiz natural será a distribuição do processo. Aliás, em casos assim, sempre que não se previu nas normas regulamentares como se procede a Wilson Alves de Souza 309 substituição do órgão ante determinada situação, a única solução aceitável, no mesmo lugar ou não, será a distribuição do processo entre os órgãos com igual competência material, sendo absolutamente fora de cogitação o critério da designação arbitrária. No caso falta de regulamentação prévia específica de convocação de juízes de instância inferior para atuar em órgão jurisdicional superior, o único critério razoavelmente aceitável é a observância da regra de antiguidade, o que significa dizer que também nesse caso as designações arbitrárias ferem o princípio do juiz natural. 8. Sobre o denominado “esforço concentrado” em face do princípio do juiz natural Um dos mais graves problemas dos nossos dias no que diz respeito a atividade jurisdicional – não importa aqui analisar os motivos – é o excesso de processos pendentes na maioria dos órgãos jurisdicionais, enquanto em outros órgãos jurisdicionais pode ocorrer uma situação inversa, problema esse que os encarregados da administração do serviço jurisdicional buscam solucionar por meio do que se vem convencionando denominar no Brasil de esforço concentrado ou mutirão, que consiste no fato de designação de juízes com menor carga de trabalho para processar e julgar causas que estão atribuídas a juízes com carga excessiva de trabalho, e assim com prestação jurisdicional demorada além do razoável. Ocorre que, não raro, na apressada tentativa da solução desse problema as designações de juízes e – o que é bem mais grave – a atribuição de processos aos juízes designados não seguem qualquer critério normativo geral, objetivo e prévio. A ser assim, violado estará, sem qualquer sombra de dúvida, o princípio do juiz natural. Não se pode negar que a solução do denominado esforço concentrado ou (mutirão) pode ser uma aceitável política como 310 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural mecanismo no objetivo de minorar, embora episódica e paliativamente, a demora excessiva da prestação jurisdicional, buscando, assim, aplicar um outro princípio constitucional (o princípio do processo em tempo razoável), desde que não se ignore o princípio do juiz natural. Essa ponderação pode ser obtida mediante a previsão de normas gerais prévias que estabeleçam critérios objetivos com relação aos atos de designação, e uma vez assim ocorrendo tais designações impõe-se a redistribuição dos processos entre todos os juízes designados no órgão necessitado de concentração de esforços. 9. Sobre a distribuição de processos em face do princípio do juiz natural Outro aspecto a considerar é que tendo em vista que em muitos casos há necessidade de se instituir mais de um órgão jurisdicional num mesmo lugar com igual competência material o princípio do juiz natural se define pela distribuição da petição inicial ou, sendo o caso, dos processos (sorteio). Deste modo, temos como certo que a distribuição da petição inicial e dos processos, muitas vezes negligenciada, não tem apenas a finalidade de dividir equitativamente o trabalho entre os juízes do mesmo lugar com igual competência, mas sim tem igualmente a relevante função de fazer observar o princípio do juiz natural.18 A norma que impõe distribuição por dependência nos casos de conexão ou continência é mecanismo que visa a atender ao princípio do juiz natural, na medida em que a competência fora antes firmada com a distribuição alusiva à causa anterior conexa, impondo-se tal solução por razões lógicas (evitar julgamentos contraditórios) ou de economia processual ou por conveniência legal.19 Para alcançar esses objetivos a conexão entre causas pode e deve, aliás, determinar a modificação de competência de um dos juízes, o que se dará pelo critério legal de prevenção, mas não se perca de vista Wilson Alves de Souza 311 que isso só ocorre, assim como a distribuição por dependência, se o juiz tiver competência a nível absoluto para ambos os processos; não sendo o caso, a conexão entre causas não determina a distribuição por dependência nem a reunião de processos, mantendo cada juiz a sua competência, devendo, no entanto, ficar suspenso o processo da causa prejudicada em relação ao da causa prejudicial.20 Também é perfeitamente salutar a norma que impõe distribuição por dependência para evitar escolha indireta de juiz pela parte autora, quando esta desiste da ação após já ter conhecimento do órgão jurisdicional a quem a peça inicial de postulação fora distribuída e propõe nova demanda posteriormente, ainda que com alterações parciais nos aspectos subjetivos e objetivos da causa.21 Discute-se se há violação ao princípio do juiz natural no ato de terceiro que aproveitando processo pendente já distribuído onde tem mais de um juízo igualmente competente pretende ingressar como litisconsorte ativo facultativo ulterior para defender direito próprio e independente, embora conexo com a causa originária, que permitiria o litisconsórcio facultativo originário. Diz parcela da doutrina que a parte que assim agir, porque já sabia para quem fora distribuída a petição inicial da demanda originária, escolheu o órgão jurisdicional que vai julgar a sua causa, de modo que tal postulação deve ser indeferida pelo juiz no sentido de ter o ato como nova demanda e encaminhá-la à distribuição regular.22 Pensamos que há exagero na tese. É que se existe conexão, própria (por razões de prejudicialidade) ou imprópria (por razões de economia processual) deve haver (necessariamente nos casos de conexão própria) ou pode haver (nos casos de conexão imprópria) distribuição por dependência para o juízo prevento23. Nessa mesma perspectiva deve haver (nos casos de conexão própria) ou pode haver (nos casos de conexão imprópria) reunião de processos tendo em conta o juízo prevento. Sendo assim, uma vez 312 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural caracterizada a conexão imprópria – evidentemente que no caso de conexão própria a reunião de processos é impositiva - e tendo em vista o momento temporal ainda é possível o litisconsórcio ulterior, não se pode falar em violação ao princípio do juiz natural na hipótese, vez que o litisconsorte ulterior nada mais fez do que aplicar regra legítima de prevenção, de modo que se assim não agir os juízes dos dois processos poderão fazer o acertamento no sentido de determinar a reunião dos processos devendo ambos ficarem com o juízo prevento se tal providência for necessária no sentido da aplicação do princípio da economia processual.24 Por óbvio, não há que colocar o problema na hipótese de no lugar em que a ação fora ajuizada existir apenas um órgão jurisdicional competente. No objetivo de conciliar o princípio do juiz natural com o princípio da efetividade pensamos que o legislador pode e deve prescrever exceções no sentido de dispensar distribuição imediata em casos urgentes, impondo-se, no entanto, distribuição a posteriori.25 A inobservância da distribuição, por violar o princípio constitucional do juiz natural, deveria gerar meros fatos, ou seja, atos juridicamente inexistentes. No entanto, há que se ponderar tal princípio com o princípio do processo em tempo razoável e até mesmo com o princípio da segurança jurídica, mesmo porque não se pode comparar essa hipótese com a hipótese de falta de jurisdição. Assim, se só muito tempo depois se alega tal violação, não se pode falar em inexistência jurídica, mas sim em nulidade. Deste modo, entendemos que os atos decisórios praticados em processo em que faltou distribuição devem ser considerados nulos, porque, no mínimo, há que se considerar a hipótese como de incompetência absoluta. Pensamos que a falta de distribuição, diferentemente do que pode aparentar, gera um problema de incompetência de tanta ou maior gravidade do que a falta de competência material. Não se perca de vista que a falta de Wilson Alves de Souza 313 distribuição, quando estava deveria ocorrer, significa que o juiz a quem se dirigiu a petição inicial está a receber designação de alguma autoridade, não importando se do próprio Poder Judiciário, ou está sendo designado pela própria parte autora, o que é bem mais grave, de maneira que forçoso é convir que não devem ser considerados como válidos atos processuais decisórios que daí surjam.26 10. Sobre a avocação e a suspensão de processos em face do princípio do juiz natural Desrespeita o princípio do juiz natural o ato que autorizar ou determinar a avocação ou suspensão de processos em tramitação perante o juiz competente, porque esses atos importam em retirar ou paralisar a atuação do juiz legalmente preconstituído fora dos casos que se compatibilizem com as normas constitucionais pertinentes. Trata-se, como se vê, de grave situação de suspeita e, consequentemente, de desconfiança. De outro lado, no caso de avocação há dupla violação ao princípio do juiz natural, na medida em que retira-se, arbitrária e abusivamente, a competência do juiz competente para atribuí-la a outro que não tem competência. Evidentemente que a avocação de processo por órgão jurisdicional superior para preservar sua competência que estava sendo usurpada por órgão jurisdicional inferior atende à constituição, na medida em que o juiz inferior não era o juiz natural.27 A suspensão de processos nos casos de relação de prejudicialidade ou outras situações razoáveis previstas em lei também atende à constituição, porque seu objetivo é, no primeiro caso, evitar decisões contraditórias, preservando a competência dos órgãos jurisdicionais envolvidos nos dois processos, e, no segundo caso, por alguma impossibilidade lógica ou prática que impede o prosseguimento do processo.28 314 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural 11. Sobre a exclusão de juiz do processo e o desaforamento de causas em face do princípio do juiz natural A exclusão do processo de juiz que não julga a causa no prazo legal sem justificativa, não fere o princípio do juiz natural, porque tal situação se compatibiliza com o princípio do processo em tempo razoável, sendo lícito ao Estado tomar determinadas providências no sentido de fazer respeitar este último princípio, desde que atenda ao devido processo legal para apurar a falta funcional do juiz e excluí-lo do processo, não se justificando tal medida se o caso é de falta estrutural do próprio sistema estatal de prestação de tal serviço. De outro lado, se correta a decisão de afastamento do juiz do processo, é necessário que tal processo seja atribuído ao substituto legal do juiz afastado, nos termos acima expostos.29 Também não transgride o princípio do juiz natural o desaforamento de causas por motivos de segurança pública ou forte clamor popular.30 Aqui o princípio do juiz natural terá que ser conciliado não tanto com o princípio da segurança, mas sim com os princípios da ampla defesa, da independência e da imparcialidade do juiz. É que ao Estado cabe garantir segurança a todos, em particular, sendo o caso, àquele que está sob sua custódia e àquele agente estatal encarregado do julgamento. Esse clamor popular, no entanto, pode ser tão intenso que há forte possibilidade de comprometer um julgamento independente, imparcial e, assim, justo, sobretudo se estamos a tratar de júri popular. Assim, o desaforamento de processos deve ser visto com muito cuidado e tratado com muita excepcionalidade, devendo a decisão em tal sentido se sustentar em sólidos fundamentos fáticos e jurídicos e o processo ser encaminhado ao órgão jurisdicional substituto nos termos da lei prévia. Wilson Alves de Souza 315 12. Sobre os atos de supressão ou de modificação de competência de órgão judiciário em face do princípio do juiz natural Os atos de supressão de órgão judiciário ou de modificação de competência de órgãos judiciários, desde que por lei, não violam, em regra, o princípio do juiz natural.31 Existe aqui uma proporcionalidade entre o princípio do juiz natural e o princípio do processo em tempo razoável, na medida em que é uma constante a necessidade de ajustes na organização judiciária como mecanismo para alcançar maior rapidez nos julgamentos. No entanto, não se pode afastar a possibilidade de que por trás da aparente legalidade do ato exista o atroz objetivo indireto de afastar determinados juízes de determinados processos, caso em que ocorrerá violação ao princípio do juiz natural. De outro lado, a alteração de órgão judiciário por lei que institua justiça especial, ainda que se trate de norma constitucional, não pode incidir sobre processos pendentes, porque o caso não é simplesmente de alteração de competência, mas sim de alteração de jurisdição, a não ser que o próprio constituinte prescreva expressamente que os processos pendentes devem ser encaminhados ao novo órgão constitucional. 13. Sobre a cláusula contratual de competência de foro em face do princípio do juiz natural Não viola o princípio do juiz natural a lei que autoriza a inserção de cláusula contratual que prevê competência de foro em caso de surgimento de necessidade de solucionar litígios entre as partes contratantes relacionados com o próprio contrato (foro de eleição ou foro do contrato), ainda que no foro eleito exista um só órgão jurisdicional.32 No entanto, a lei não pode autorizar, por violar o princípio do juiz natural, a eleição de determinado juízo se no lugar 316 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural eleito existir mais de um juízo com igual competência. Válida será a cláusula contratual na parte em que escolheu o foro (definição contratual da competência territorial), não podendo ser aplicada na parte em que escolheu o juízo, dentre vários existentes no lugar, impondo-se, no caso de eventual demanda, a distribuição da peça inicial de postulação na linha do exposto acima. 14. Sobre a atribuição de poder jurisdicional a particulares fora dos casos previstos na constituição em face do princípio do juiz natural Viola claramente o princípio do juiz natural, sem prejuízo do desrespeito a outros princípios constitucionais, a lei que confere poder jurisdicional, ainda que limitada à prática de atos executivos, a quem não tem nem pode ter atribuição jurisdicional constitucional. Com efeito, fere abertamente o princípio do juiz natural a lei que concede poderes unilaterais a uma das partes para processar e julgar determinada causa ou instituir órgão com tal função, ainda que limitadamente à prática de atos executivos.33 15. Violação ao princípio do juiz natural e suspeita de parcialidade Vê-se, assim, que a não aplicação do princípio do juiz natural carrega o juiz de forte suspeita de dependência e de parcialidade. Não se pode dizer de antemão que o juiz que está a atuar em processo em que não se observou o princípio do juiz natural seja dependente e parcial, mas há evidentemente uma forte tendência a isso. Daí a cautela com que se procura atender a tal princípio a partir de uma garantia constitucional.34 De todo modo, essa suspeita de parcialidade é muito forte a ponto de podermos ter como visível a relação do princípio do juiz natural com o princípio do acesso à justiça, e até mesmo com princípios constitucionais maiores, como o princípio do Estado de Wilson Alves de Souza 317 direito. Deste modo, a observância do princípio do juiz natural não tem o objetivo, como pode aparentar, de criar embaraços à prestação do serviço jurisdicional, mas sim tem por finalidade, porque a tanto essencial, evitar um julgamento dependente, bem assim parcial, objetivo esse que é extremamente necessário nos sistemas jurídicos democráticos, porque garantia fundamental do cidadão a obter uma decisão judicial justa, e porque essencial para que a população tenha confiança nas decisões e as instituições jurisdicionais adquiram credibilidade perante todos os jurisdicionados, os quais só assim poderão obter um efetivo acesso à justiça. 16. Conclusões 1. É profunda a relação entre o princípio do juiz natural e o princípio do acesso à justiça. 2. O princípio do juiz natural (juiz legal, segunda a terminologia preferida pela doutrina alemã, bem assim por boa parte da doutrina portuguesa) se funda, em primeiro lugar, na idéia de que ninguém deve ser julgado por tribunal ou juízo de exceção ou ad hoc, mas sim apenas pela autoridade competente nos termos previstos em lei anterior a partir da norma constitucional ou na própria norma constitucional. 3. Por tribunal de exceção entende-se aquele designado ou criado para julgar determinado caso, não importando quem o criou nem se foi criado antes ou depois do fato ou complexo de fatos objeto da causa a ser julgada nem quem fez a designação. 4. O conceito de autoridade competente de que trata o art. 5º, LIII, da Constituição federal, deve ser entendido, em primeiro lugar, como sendo aquela que tem o poder jurisdicional atribuído pelas normas constitucionais (jurisdição). 5. O conceito de juiz do lugar diz respeito ao princípio do juiz natural no sentido de que o juiz só tem jurisdição no seu lugar, ou 318 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural seja, no limite da sua atuação jurisdicional territorial na forma da lei local, vale dizer, o juiz, só porque juiz é, não tem como sair dos seus limites jurisdicionais territoriais para assumir processos e prolatar decisões em qualquer lugar em que estão atuando outros juízes, a não ser, é claro, nos casos de substituição segundo as normas locais de organização judiciária. 6. Os fatos processuais praticados por juiz afastado ofendem ao princípio do juiz natural e devem ser tidos como juridicamente inexistentes. 7. Quando se afirma a unidade do juiz natural está-se aqui a se referir ao órgão jurisdicional a partir de processos pendentes e não à figura da pessoa do juiz, de maneira que mais de um juiz pode atuar num determinado processo, seja nos casos de substituição legal de juízes ou nos casos de sucessão legal de juízes. 8. O princípio do juiz natural também deve ser observado nas substituições dos juízes nos processos, inclusive nas convocações de juízes de instância inferior para atuar em órgão jurisdicional superior, e no caso que se convencionou chamar de esforço concentrado ou mutirão, de maneira que as normas que regulamentam o assunto devem prescrever, em obediência a tal princípio, a garantia da pré-constituição, vedando designações arbitrárias ou discricionárias de juiz. 9. Tendo em vista que em muitos casos há necessidade de se instituir mais de um órgão jurisdicional num mesmo lugar com igual competência material o princípio do juiz natural se define pela distribuição da petição inicial ou, sendo o caso, dos processos (sorteio). 10. Desrespeita o princípio do juiz natural o ato que autorizar ou determinar a avocação ou suspensão de processos em tramitação perante o juiz competente, porque esses atos importam em retirar ou paralisar a atuação do juiz legalmente preconstituído fora dos casos que se compatibilizem com as normas constitucionais pertinentes. Wilson Alves de Souza 319 11. A exclusão do processo de juiz que não julga a causa no prazo legal sem justificativa, não fere o princípio do juiz natural, porque tal situação se compatibiliza com o princípio do processo em tempo razoável, sendo lícito ao Estado tomar determinadas providências no sentido de fazer respeitar este último princípio, desde que atenda ao devido processo legal para apurar a falta funcional do juiz e excluí-lo do processo, não se justificando tal medida se o caso é de falta estrutural do próprio sistema estatal de prestação de tal serviço. 12. Também não transgride o princípio do juiz natural o desaforamento de causas por motivos de segurança pública ou forte clamor popular. 13. Os atos de supressão de órgão judiciário ou de modificação de competência de órgãos judiciários, desde que por lei, não violam, em regra, o princípio do juiz natural, a não ser que, no caso concreto se verifique a finalidade de, indiretamente, excluir o juiz do processo. 14. Não viola o princípio do juiz natural a lei que autoriza a inserção de cláusula contratual que prevê competência de foro em caso de surgimento de necessidade de solucionar litígios entre as partes contratantes relacionados com o próprio contrato (foro de eleição ou foro do contrato), ainda que no foro eleito exista um só órgão jurisdicional. 15. Viola claramente o princípio do juiz natural, sem prejuízo do desrespeito a outros princípios constitucionais, a lei que confere poder jurisdicional, ainda que limitada à prática de atos executivos, a quem não tem nem pode ter atribuição jurisdicional constitucional. 16. A observância do princípio do juiz natural não tem o objetivo, como pode aparentar, de criar embaraços à prestação do serviço jurisdicional, mas sim tem por finalidade, porque a tanto essencial, evitar um julgamento dependente, bem assim parcial, objetivo esse que é extremamente necessário nos sistemas jurídicos 320 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural democráticos, porque garantia fundamental do cidadão a obter uma decisão judicial justa, e porque essencial para que a população tenha confiança nas decisões e as instituições jurisdicionais adquiram credibilidade perante todos os jurisdicionados, os quais só assim poderão obter um efetivo acesso à justiça. 17. Referências DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. 1º vol. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. DIEZ-PICAZO GIMENEZ, Ignacio. El derecho fundamental al juez ordinario predeterminado por la ley. In Revista Española de Derecho Constitucional, año 11, nº 31, jan-abr, 1991. GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 29, jan-mar, 1983. N E RY J U N IOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. 18. Notas 2 A Constituição brasileira consagra esse princípio nos seguintes termos: “não haverá juízo ou tribunal de exceção” (art. 5º, XXXVII); “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art. 5º, LIII). Diz Nelson Nery Junior que a Constituição brasileira consagra também no ora transcrito art. 5º, LIII o princípio do promotor natural, ao sustentar que “extrai-se da locução “processar”, que vem no art. 5º, LIII, da CF, o sentido de que é a atribuição que se confere ao Ministério Público para mover ação judicial, pois somente ele pode “processar” alguém; não mais o juiz, a quem se aplica o vocábulo “sentenciar” constante da mesma norma constitucional em exame”. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição ffederal ederal ederal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 81. Pensamos que o dispositivo em tela se refere apenas ao juiz, até porque quando o promotor promove ação judicial contra alguém não pratica ato de autoridade, mas sim ato de parte, sujeitando-se, por isso mesmo, como qualquer outra parte, à autoridade da decisão de quem tem o poder jurisdicional, evidentemente que com os meios e recursos previstos em lei, também conferidos a qualquer um que esteja a agir como parte. De outro lado, embora seja certo que ao juiz não cabe promover ação, certo igualmente é que ele não se limita no processo a sentenciar, valendo lembrar que há casos em que determinado ordenamento jurídico pode prever que determinado órgão tem poder jurisdicional apenas para processar (órgão jurisdicional Wilson Alves de Souza 321 de instrução) e outro órgão tem o poder jurisdicional apenas para julgar (órgão jurisdicional de julgamento).De toda maneira, é sempre ao juiz que se entrega a função de processar e julgar. Quando o art. 5º, LIII, da Constituição brasileira emprega a expressão processar está a se referir apenas ao juiz porque a ele cabe decidir se admite ou não o ato da parte que inicia a demanda, inclusive o ministério público quando estiver atuando como parte, e dirigir o processo até final. Por outras palavras, da cláusula de que “ninguém será processado senão pela autoridade competente” resulta que o cidadão só está sujeito a processo que tenha toda a sua tramitação perante o juiz natural, e não a que também está sujeito somente a ser acusado por um promotor natural, mesmo porque o dispositivo em tela não se refere apenas ao processo penal, onde, por sinal, não é só o ministério público quem tem a titularidade da ação penal, mas também ao processo civil, onde também o ministério público pode atuar como parte, e a todo e qualquer outro processo. Fosse diferente, quando qualquer particular estiver a atuar como parte ter-se-ia que concluir que estaria “processando” alguém e, assim, agindo como autoridade, o que, evidentemente, não é o caso. Aliás, tudo isso resulta igualmente claro dos arts. 52, I e II, 102, I, 105, I, 108, I, 109, I a XII, 114, I a IX e 125, parágrafos 4º e 5º, da Constituição brasileira, todos empregando a expressão “processar e julgar” quando se referem às atribuições jurisdicionais dos órgãos ali referidos. Veja-se, aliás, que há exemplo no direito brasileiro em que determinado juiz tem competência para processar (dirigir o processo praticando os atos necessários ao julgamento), mas a competência para julgar pode ou deve, a depender das circunstâncias, ser atribuída a outro juiz. É o caso do processo alusivo a crimes dolosos contra a vida (consumados ou tentados), onde o juiz togado tem competência para dirigir todo o processo (processar), tem poderes de julgamento para absolver sumariamente o réu, decidir no sentido de não pronunciá-lo (que também ocorre após a instrução) ou no sentido de pronunciá-lo (levá-lo a julgamento pelo júri), caso em que a competência para julgar o réu passa a ser do júri popular (juiz natural), ficando o juiz togado com competência limitada a presidir os trabalhos, retomando o poder decisório para aplicação da pena na hipótese de o júri proferir decisão condenatória (Constituição Federal, art. 5º, XXXVIII e Código de Processo Penal, arts. 406 e seguintes). Não se nega aqui a existência nem a relevância do princípio do promotor natural, mas ele resulta do art. 129, da Constituição Federal e das normas infra-constitucionais que regulamentam tal dispositivo no sentido de vedar designações de promotores ou exclusão de promotores de suas atividades sem observância dos mesmos critérios aplicáveis ao juiz. Na Constituição portuguesa o princípio do juiz natural está expresso apenas com relação à matéria penal, como se deduz dos artigos 27º, 2, 32º, 9 e 209º, 4. O primeiro, com a rubrica direito á liberdade e à segurança segurança, dispõe que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. O segundo, com a rubrica garantias de processo criminal criminal, prescreve que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. O terceiro, com a rubrica categorias de tribunais tribunais, dispõe que “sem prejuízo do dispos- 322 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural to quanto aos tribunais militares, é proibida a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”. Isso não significa dizer que o princípio não seja aplicável em relação ao processo civil ou administrativo e fiscal. Haverá de ser considerado implícito. 3 No sentido do texto, em termos, NERY JUNIOR, Nelson. Princípios Princípios…, cit., p. 58. 4 Foi exemplo disso no Brasil, ao tempo do Estado Novo, o Tribunal de Segurança, criado em 1935 para julgar crimes contra a segurança do Estado e a estrutura das instituições. 5 Nesse sentido, no que se refere à matéria criminal cf. na doutrina portuguesa, DIAS, Jorge de Figueredo. Direito processual penal penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, 1º vol., pp. 322-323. É de se reconhecer, no entanto, que no que se refere ao Processo Civil, pelo menos em regra, essa exigência de irretroatividade deve ser abrandada para o momento da propositura da ação, tendo em conta, p. ex., a largueza de alguns prazos prescricionais. No entanto, deve ficar ressalvado que essa flexibilidade não impede que se apure eventual caso concreto de burla ao princípio do juiz natural por trás da instituição, ainda que por lei, de órgão jurisdicional no transcurso temporal entre o fato que fundamenta a ação e o ajuizamento da ação. 6 Cf. Constituição brasileira, art. 92. 7 É o caso do direito brasileiro (Constituição federal, arts.51, I e 52, I e II) 8 É o caso do direito português (Constituição, art. 209º). 9 É o caso do direito brasileiro (Constituição federal, art.71) e do direito português (Constituição, art. 214º). 10 É o caso do direito português (Constituição, arts. 221º a 224º). 11 Vejam os seguintes exemplos na Constituição brasileira: “Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado (art. 51, I); “Compete privativamente ao Senado Federal: I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o ProcuradorGeral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade” (art. 52, I e II). “Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oitos anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis” (parágrafo único do art. 52); “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele Wilson Alves de Souza 323 submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade” (art. 86); “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar originariamente: b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; d) o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do ProcuradorGeral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal” (art. 102, I, b a d). Inserese, pensamos, como exemplo de prerrogativa de foro o julgamento da perda de mandato de parlamentar nos casos de violação às normas constitucionais de incompatibilidade do parlamentar (art. 54 c/c art. 55, I), quebra do decoro parlamentar (art. 55, II), condenação criminal por sentença transitada em julgado, que, conforme seja respectivamente deputado ou senador, “será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa” (§ 2º do art. 55). Ressalte-se o fato de se encontrar tramitando no Congresso Nacional Projeto de Emenda Constitucional no sentido de transferir a atribuição para tal julgamento ao Supremo Tribunal Federal. No direito português o Presidente da República é processo e julgado perante o Supremo Tribunal de Justiça nos casos de crimes relacionados com o exercício das suas funções (Constituição, artigo 130º, 1), e perante os tribunais comuns, após o término do mandato, nos casos de crimes estranhos a suas funções (Constituição, art. 130º, 4), enquanto os parlamentares são processados e julgados pelos tribunais comuns, nos termos da lei, ainda que se trate de “crime de responsabilidade no exercício da função” (Constituição, art. 160º, 1, d). 12 Não temos como constitucionais, ainda que conste na constituição, as normas de determinado Estado que, por hipótese, atribua função jurisdicional a órgão do Poder Executivo para julgar causas em que a própria Administração é parte, ainda que se trate de questões de natureza administrativa ou fiscal, sem qualquer possibilidade de acesso a tribunal independente e imparcial, ainda que não seja integrante do Poder Judiciário. Como se verá adiante, se o Poder Executivo julga atos do próprio Executivo não haverá, aí exercício de jurisdição, mas sim julgamento em causa própria, porquanto o que caracteriza a jurisdição é a nota da substituição, ou seja, julgamento por terceiro independente e imparcial. Como o Estado não teria porque, no caso, abrir mão da sua soberania, não há alternativa senão o julgamento do Estado pelo próprio Estado, mas impõe-se que esse julgamento seja realizado por um órgão independente e imparcial. Fora daí, portanto, toda vez que o órgão admi- 324 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural nistrativo julgar contra o particular, uma vez que estaria vedado acesso aos tribunais judiciais, haverá, inequivocamente, negação de acesso à justiça. 13 É claro que nos casos concretos teremos as situações de evidência e as situações de dúvida. De todo modo, os casos duvidosos em que se verifica conflito de atribuições terá tal conflito que ser resolvido por um terceiro órgão competente nos termos da constituição. Mas o fato da situação ser duvidosa não nos dispensa da coerência de afirmar que não se concordando com a solução que fora dada em determinado caso em que não houve suscitação de conflito o “processo” e a “decisão” são juridicamente inexistentes. Não importa, por se tratar de outro problema, o fato de “decisão” juridicamente inexistente produzir efeitos práticos no plano material, inclusive pelo fato de o interessado deixar de postular a declaração judicial de inexistência jurídica e o afastamento jurídico dos efeitos materiais produzidos. 14 É o caso do direito brasileiro (CF, arts. 92, IV, 111 e 114). No ordenamento português podemos citar, com mais forte razão, porque em contexto mais profundo, o caso dos tribunais administrativos e fiscais, os quais apesar de não serem considerados tribunais judiciais, são órgãos jurisdicionais independentes e estão incluídos nas categorias de tribunais, de maneira que têm atribuições constitucionais (jurisdição) limitadas e específicas, mas com exclusividade, para julgar determinados tipo de causa, quais sejam “litígios emergentes das relações administrativas e fiscais” (Constituição, arts. 209º, 1, b e 212º), não tendo jurisdição para julgar os demais tipos de causa, do mesmo modo que falta jurisdição aos tribunais judiciais para julgar os tipos de causa atribuídas aos tribunais administrativos e fiscais. 15 No direito brasileiro podemos citar como exemplos o caso de atribuição a órgão hierarquicamente superior para julgar recursos em face dos princípios do esgotamento da função jurisdicional e do duplo grau de jurisdição ou de atribuição constitucional direta, como no caso de recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça e recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal. 16 É o caso, no direito brasileiro, da atuação do juiz togado e do tribunal do júri nos crimes dolosos contra a vida (Constituição federal, art. 5º, XXXVIII). 17 É o caso, no direito brasileiro, de instrução realizada por juiz de outra comarca, a exemplo da testemunha que reside em outra comarca (CPC, art. 410, II). 18 No direito brasileiro o princípio da distribuição está consagrado explicitamente no art. 251 do CPC. A relevância de tal princípio está claramente percebida no art. 256 do mesmo Código, que garante à parte ou a seu procurador o direito de fiscalizar o ato de distribuição. No direito português o art. 209º, do CPC reza que “é pela distribuição que, a fim de repartir com igualdade o serviço do tribunal, se designa a secção e a vara ou juízo em que o processo há-de correr ou o juiz que há-de exercer as funções de relator”. Apesar da referência apenas à finalidade de divisão do trabalho, pensamos que o legislador disse menos do que deveria ou poderia dizer. O CPC português garante ao advogado da parte o direito de acompanhar o resultado e obter informações a respeito da distribuição (art. 209º-A). Wilson Alves de Souza 325 19 No direito brasileiro conferir CPC, arts. 105, 108, 109, 253 e 800. No direito português o CPC não é expresso sobre o assunto, mas isso é o que resulta do que se dispõe no art. 96º, 2, ao propósito das causas incidentais, bem assim no que se refere aos procedimentos cautelares em relação ao processo principal (art. 383º). 20 Cf. CPC brasileiro, art. 265, IV, a e c, e CPC português, artigo 97º combinado com artigo 279º, 2 e 3. 21 No direito brasileiro conferir CPC, art. 253, II. 22 É o que sustentam, por exemplo, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de processo civil comentado comentado. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 347. 23 É o que consta expressamente no Código de Processo Civil brasileiro (art. 253, III). 24 Cf. Código de Processo Civil brasileiro, arts. 103, 104, 105, 106 e 219. 25 No direito brasileiro há exemplo em tal sentido no caso de ação de alimentos, dispensando-se a prévia distribuição, mas impondo-se a distribuição posteriormente (art. 1º e parágrafo 1º, da Lei nº 5.478/1968). No direito português também consta tal exceção para alguns casos simples, “procedimentos cautelares e diligências urgentes feitas antes de começar a causa ou antes da citação do réu” (art. 212º). Isso, no entanto, não significa dizer que a distribuição não tenha que ser feita posteriormente à decisão tida como urgente. 26 O CPC brasileiro não expressa as consequências ante o reconhecimento da falta de distribuição de processos. No entanto, como tal inobservância gera incompetência do juízo, e considerando que tal Código só permite modificação de competência por vontade das partes em função do valor e do território, inclusive pela omissão do réu em não alegar a incompetência relativa por meio de exceção no prazo de contestação (arts. 111 e 114) e considerando tudo o mais quanto o exposto no texto principal, pensamos que indiretamente as consequências deverão ser as mesmas determinadas para os casos de incompetência absoluta, ou seja, a anulação pode e deve ser decretada ex officio, a incompetência pode ser alegada por qualquer das partes, em qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (art. 113), os atos decisórios haverão de ser anulados com remessa dos autos para a distribuição – aqui reconhecemos que, excluída a hipótese de afastamento do juiz do processo por se reconhecer que o mesmo agiu de má-fé ao aceitar processo sem prévia distribuição, se houve distribuição para o mesmo juiz que antes atuava no processo todos os atos processuais deverão ser aproveitados – e se a sentença passou em julgado cabe ação rescisória no prazo decadencial de dois anos (arts. 485, II). No caso da ação rescisória entendemos, como nos casos normais de incompetência absoluta do juízo ou impedimento do juiz, que o tribunal deve rescindir a sentença e proceder ao rejulgamento da causa. O CPC português disciplinou expressamente o assunto no artigo 210º, 1, ao gizar que “a falta ou irregularidade da distribuição não produz nulidade de nenhum acto do processo, mas pode ser reclamada por qual- 326 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural quer interessado ou suprida oficiosamente até a decisão final”. Como se vê, disciplinou-se a matéria aqui de modo semelhante aos casos de reconhecimento de incompetência absoluta (art.102º,1), caso em que não há a sanção de nulidade de atos processuais. 27 No direito brasileiro existe o instituto da reclamação constitucional ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça “para preservação de sua competência e resguardar a autoridade de suas decisões” (Constituição federal, arts. 102, I, l e 105, I, f). 28 Cf. as causas de suspensão do processo no CPC brasileiro (art. 265) e no CPC português (arts. 276º a 279º e artigo 97º). 29 No direito brasileiro o CPC é expresso no sentido de prever a exclusão de juiz do processo em caso de demora na prestação jurisdicional sem motivo justificável. Assim: “Qualquer das partes ou o órgão do Ministério Público poderá representar ao presidente do Tribunal de Justiça contra o juiz que excedeu os prazos previstos em lei. Distribuída a representação ao órgão competente, instaurar-se-á procedimento para apuração da responsabilidade. O relator, conforme as circunstâncias, poderá avocar os autos em que ocorreu excesso de prazo, designando outro juiz para decidir a causa” (art. 198). “A disposição do artigo anterior aplicar-se-á aos tribunais superiores, na forma que dispuser o seu regimento interno” (art. 199). 30 Cf. no direito brasileiro o art. 424, do Código de Processo Penal, que deve ser interpretado com muita cautela, tendo em vista os muitos conceitos vagos ali contidos, sobretudo no que toca ao parágrafo único, que dispõe sobre desaforamento por excesso de prazo, que só pode ocorrer, no nosso modo de entender, por motivo imputado ao próprio juiz. Não consta norma similar no CPP português nem no Decreto-Lei nº 387-A/87, de 29 de dezembro, que trata do regime do júri. 31 O art. 87, do CPC brasileiro dispõe sobre o assunto nos seguintes termos: “Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações no estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia”. O CPC português também é expresso sobre o assunto ao dispor no artigo 64º que: “Quando ocorra a alteração da lei reguladora da competência considerada relevante quanto aos processos pendentes, o juiz ordena oficiosamente a sua remessa para o tribunal que a nova lei considere competente”. 32 No direito brasileiro conferir CPC, art. 111 e parágrafos. No direito português conferir artigo 100º, do CPC. 33 Assim, no direito brasileiro são manifestamente inconstitucionais o Dec-lei nº 70, de 21.11.1966 e a Lei n. 5.741, de 01.12.1971, que concedem a banco credor nas relações jurídicas de financiamento para aquisição de moradia própria pelo Sistema Financeiro da Habitação o direito de instituir agente fiduciário com o poder de sumariamente processar a execução do crédito hipotecário com a consequente Wilson Alves de Souza 327 determinação de imissão do credor na posse do imóvel. Veja-se que esse poder de, na prática, conferir jurisdição executiva ao próprio credor não é atribuído nem mesmo ao próprio poder público, ainda que se trate de crédito tributário, o qual como se sabe, se destina a atender necessidades coletivas. É lastimável que o Supremo Tribunal Federal tenha afirmado, e continue afirmando, como constitucional tão gritante inconstitucionalidade, dando guarida a um sistema com origem nos tempos do período ditatorial, com o evidente objetivo de privilegiar o poder econômico. O mais grave é que do outro lado da relação jurídica está sabidamente a parte mais fraca (o consumidor), que era quem deveria merecer tratamento diferenciado em seu favor, relação jurídica essa que envolve relevantíssimo problema jurídico e social, que é o direito de morar. No sentido do nosso ponto de vista, em termos, GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia garantia. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 29, jan-mar, 1983, pp. 22-23. 34 Como percebido por Ignacio Diez-Picazo Gimenez, esta garantia “no es más que un límite jurídico para evitar un riesgo (juez ad hoc) que levanta una sospecha (parcialidad), pero no es una panacea, es decir, que resulta perfectamente concebible que, respetándose la predeterminación legal, el juez resultante no sea ni independiente ni imparcial, o lo contrario, que, aun vulnerando la regla de la predeterminación legal, el juez ad hoc sea totalmente independiente y totalmente imparcial. El principio del juez legal no es sino el resultado de una experiencia secular que ha llevado a los hombres a sospechar de la imparcialidad del juez designado ad casum, pero de ahí no se puede deducir que todo juez parcial ou dependiente viola el derecho fundaho fundamental del artículo 24.2 CE”. DIEZ-PICAZO GIMENEZ, Ignacio. El derec derecho mental al juez ordinario predeterminado por la ley ley. In Revista Española de Derecho Constitucional, año 11, nº 31, jan-abr, 1991, p. 92. 328 Acesso à justiça e o princípio do juiz natural ENSAIOS JEAN CHARLES DE MENEZES E O PROCESSO PENAL DO AMIGO César de Faria Júnior1 1 Advogado, professor, mestre e doutorando em Direito pela UFBA. ([email protected]). Só a partir de 1985, em estudo sobre a “Criminalización en el estadio prévio a la lesión de um bien jurídico”, JACOBS2 começou a estabelecer a diferença entre o Direito Penal do Cidadão, o qual preserva as esferas de liberdade, e o Direito Penal do Inimigo, que prioriza a proteção a bens jurídicos. Em trabalho mais recente, o mesmo autor tedesco3, invocando as teorias contratualistas do Iluminismo, aduziu que quem viola as normas do contrato social, por princípio e de forma reiterada, renuncia ao seu status de cidadão, da mesma forma que aquele que adere ao grupo criminoso, em vez da sociedade civil, e repudia a legitimidade do Estado em seu conjunto pratica uma “autoexclusão da personalidade”, devendo, segundo ele, ser tratado como inimigo. Os fenômenos político-criminais geradores do denominado Direito Penal do Inimigo, segundo CANCIO MELIÁ4, são o Direito Penal Simbólico e o punitivismo, ambos produtos da expansão do Direito Penal nas sociedades pós-industriais. O professor espanhol critica a tese de JACOBS acerca da pretensa autoexclusão da personalidade jurídica por parte do inimigo, na justa medida em que a personalidade jurídica é atribuída pelo Estado Democrático de Direito a todos os seres humanos, sendo irrenunciável, de tal forma que Direito Penal do Inimigo encerra uma contradição em termos, ao passo que Direito Penal do Cidadão, um pleonasmo. 331 JACOBS sustenta sua posição, restringindo a aplicação do Direito Penal do Inimigo como Direito Penal de Emergência, defendendo sua aplicação aos terroristas, numa guerra refreada, de forma claramente delimitada, para se evitar que se prive o Direito Penal do Cidadão de suas qualidades imanentes à noção de Estado de Direito, o que, em sua opinião, seria menos perigoso do que se embutir no Direito Penal do Cidadão alguns dispositivos próprios do Direito Penal do Inimigo. A referida polarização entre Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo permeia igualmente o Direito Processual Penal. O grande paradoxo do Direito Processual Penal é ter duas finalidades precípuas que se entrechocam: eficácia na realização da justiça e proteção dos direitos fundamentais do cidadão. Ordenamento de liberdade versus ordenamento de segurança. Nessa dicotomia, o Processo Penal do Inimigo traduz, em vez da atividade cognitiva baseada na imparcialidade do Estado Democrático de Direito, aquilo que LUIGI FERRAJOLI5 denomina “procedura decisionistica e inquisitória fondata sul principio, schiettamente politico, dell´amico/nemico”. Segundo o autor peninsular, são características do Processo Penal do Inimigo a conotação partidária do acusador e do órgão jurisdicional e a transformação do processo penal em instrumento da luta contra a criminalidade organizada. Em outro trabalho6, o mesmo autor fala em uma crise de credibilidade do direito, como conseqüência da globalização, porque, apesar das muitas cartas constitucionais e declarações de direitos, os homens são, hoje, incomparavelmente, mais desiguais em essência devido às condições de indigência das quais são vítimas milhares de seres humanos. Nesse contexto, WINFRIED HASSEMER 7 aduz que os fenômenos da modernização e da globalização vêm ameaçando maciçamente as clássicas garantias do processo penal, sendo que as reformas processuais penais “concentram-se nas últimas 332 Jean Charles de Menezes e o processo penal do amigo décadas somente na fase de investigação, isto é, naquela parte do processo em que se trata de instrumentos de controle.” Como já advertia BARATTA,8 os mecanismos discriminatórios na administração dos direitos fundamentais a favor de cidadãos “respeitáveis” e a custa dos excluídos (imigrantes, desempregados, indigentes, toxicômanos, jovens marginais, etc.) condicionam uma redução da segurança jurídica que, por sua vez, alimenta o sentimento de insegurança da opinião pública. O resultado é uma forma de estilização seletiva das áreas de risco de violação dos direitos, onde a parte não está no todo, mas em lugar do todo ou, diretamente, contra o todo, entendido o todo como os direitos fundamentais de todas as pessoas. O maior paradigma do Processo Penal do Inimigo é, na abalizada opinião de DIOGO MALAN9, a Ordem Militar Presidencial estadunidense de 13/11/2001, a qual versa sobre a “Detenção, Tratamento e Julgamento de Alguns Não-cidadãos na Guerra contra o Terrorismo”. Trata-se de ato normativo, promulgado por força do notório atentado de 11 de setembro de 2001, ao qual podem ser submetidos indivíduos considerados suspeitos de qualquer tipo de envolvimento com o terrorismo, notadamente com a organização terrorista Al Quaeda, desde que seja considerado conveniente do ponto de vista dos interesses dos Estados Unidos da América. Todos os indivíduos enquadrados no elástico conceito de terroristas são julgados por órgãos denominados Comissões Militares, cujos membros (julgadores, acusadores e defensores) são diretamente nomeados pelo Secretário de Defesa estadunidense, dentre oficiais integrantes das Forças Armadas. Numa concentração absoluta de poderes, o Secretário de Defesa detém também competência legislativa, podendo editar ordens com vistas à regulamentação desse ato, quanto à matéria processual, havendo, ainda, a instituição de um reexame obrigatório César de Faria Júnior 333 de todas as decisões de mérito proferidas pelas Comissões Militares pelo próprio Presidente da República ou pelo Secretário de Defesa, caso designado por aquele. Tal ato legislativo ressalva, expressamente, serem inaplicáveis aos suspeitos da prática de atos terroristas os princípios da lei e as regras probatórias do processo criminal ianque, não cabendo recurso por parte dos réus a qualquer tribunal civil, seja ele norteamericano, estrangeiro ou internacional. Como visto, a Ordem Militar Presidencial outorga poderes praticamente ilimitados ao Secretário de Defesa: acumula o poder legislativo (ao criar órgãos jurisdicionais e normas processuais penais ex post factum), executivo (ao nomear todos os componentes dessas Comissões Militares e exercer as funções de autoridade penitenciária) e, finalmente, judicial (ao desempenhar o papel de instância revisora das decisões proferidas pelo primeiro grau de jurisdição), tornando tal Ordem “um ato absolutamente único, ante a clássica tripartição de Poderes e o seu sistema de freios e contrapesos, que caracterizam qualquer Estado Democrático de Direito”, como bem anota MARCO BOUCHARD10. Registre-se que, após cinco anos do atentado às torres gêmeas, a Suprema Corte dos EUA começou a reagir no tocante à contradição de se admitir o Processo Penal do Inimigo num Estado que se auto-proclama Democrático e de Direito, ao decidir que também os suspeitos de terem praticado atos de terrorismo detidos pelo governo devem ser tratados de acordo com a Convenção de Genebra de 1949 sobre prisioneiros de guerra. Veja-se o quanto se retrocedeu na história do Direito Penal e Processual Penal, a tal ponto que, aplicar as regras destinadas aos prisioneiros da Segunda Guerra Mundial, passou a ser uma garantia, uma “evolução”. De qualquer sorte, o procedimento aplicável aos suspeitos da prática de terrorismo nos Estados Unidos da América, bem como em outros países tidos democráticos, como a Inglaterra (que 334 Jean Charles de Menezes e o processo penal do amigo também adota medidas excepcionais de detenção governamental por tempo indefinido de estrangeiros suspeitos de terrorismo) são casos paradigmáticos de Processo Penal do Inimigo, visando à neutralização do suposto perigo que esses indivíduos representam, através da supressão de diversas garantias fundamentais, ao lado do Processo Penal do Cidadão, com todos os corolários lógicos da cláusula do “due processo of law” aplicável a todos os demais cidadãos. E, para nós, a morte do brasileiro JEAN CHARLES DE MENEZES pela famosa polícia inglesa, a “scotland yard”, metralhado na estação do metrô em Londres, por fantasiosa suspeita de ser terrorista, é o significativo e triste exemplo do que leva ver o outro como inimigo. Em sua memória escrevi estas linhas, indignado com o reverso da moeda, a aplicação do “processo penal do amigo” aos seus algozes, com a conseqüente impunidade. Afinal, para eles, a vítima era apenas um brasileiro. Notas 2 JAKOBS, Gunther. Criminalización en el estádio prévio a la lésion de um bien jurídico. Trad. De Enrique Peñaranda Ramos. Estúdios de derecho penal. P.293-323. Madrid: Civitas, 1997. 3 JAKOBS, Gunther. Derecho penal del ciudadano y derecho penal del enemigo. In: JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 19-56. 4 CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo y delitos de terrorismo: Algumas consideraciones sobre la regulacíon de lãs infracciones em matéria de terrorismo em el código penal español después de la LO 7/2000 . Revista Peruana de Ciências Penales, Lima, n. 9, p. 151-168, jun. 2003. 5 FERRAJOLI, Luigi. Emergência penale e crisi della giurisdizione . Dei delitti e delle pene, Bari, n. 2, p. 271-292, mag./ago. 1984. 6 FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y globalização, trad. De M. Carbonell, em CRPClaves de Razón Práctica, n.152, 2005, p.20-25, esp. p. 20. 7 HASSEMER, Winfried. Processo penal e direitos fundamentais. Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 15-25. César de Faria Júnior 335 8 BARATTA, El concepto actual de seguridad en Europa. RCSP – Revista Catalana de Seguridad Pública, n. 8, 2001, p.19. 9 MALAN, Diogo Rudge. Revista Brasileira de Ciências Penais, março/abril 2006, ano 14, nº 59, p.223-59. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 10 BOUCHARD, Marco. Guantánamo: morte do processo penal e início do apocalipse. Trad. Eduardo Maia Costa. Revista do Ministério Público, n. 97, p. 61-72, Lisboa, jan./ mar. 2004. 336 Jean Charles de Menezes e o processo penal do amigo VEGETARIANISMO COMO AÇÃO POLÍTICA Heron Santana Doutor em Direito pela UFPE. Professor Adjunto da UFBA – Promotor de Justiça do Meio Ambiente em Salvador. Presidente do Instituto Abolicionista Animal. [email protected] A expressão vegetarianismo somente se tornou mundialmente conhecida após a criação da Sociedade Vegetariana da Inglaterra em 1847. Derivada do latim begetus, ela na verdade tem o sentido de “forte”, “vigoroso”, “saudável”, e não de “vegetal” como muitos pensam. De fato, o vegetarianismo, via de regra, permite o consumo de ovos e leite, embora hoje em dia esteja mais em voga a filosofia vegan, que, mais próxima da teoria do abolicionismo animal, recusa o consumo de todo e qualquer produto que obtido com o sofrimento de animais. Muitos filósofos gregos como Pitágoras, Empédocles, Plutarco, Platão, Plotino e Porfírio já defendiam o vegetarianismo, embora o vitalismo aristotélico tenha prevalecido na formação da tradição filosófica e religiosa ocidental. Plutarco, por exemplo, denunciava que ao mesmo tempo em que os homens acusam as serpentes e os leões de selvageria ele é capaz de matar e devorar animais mansos e pacíficos, que a natureza parece ter criado apenas para que possamos admirar sua graça e beleza. Para ele a compaixão pelos animais é um importante treino para a responsabilidade social, pois tudo o que fazemos aos animais nós também podemos fazer aos nossos semelhantes. Vários estudos revelam que a maioria dos criminosos violentos têm históricos de violência contra animais. Rousseau foi um dos primeiros a afirmar que o homem é naturalmente vegetariano, pois tem dentes chatos como o cavalo e não pontudos como o cachorro, e que além disso, sendo a caça 337 o principal motivo de luta entre os carnívoros, os animais frugívoros tendem a ser mais pacíficos. Embora o vegetarianismo tenha entrado em declínio na era moderna, a partir dos anos 70 ele reapareceu, com fundamento em quatro linhas de argumentação: o primeiro é o argumento ecológico, uma vez que a pecuária é uma das principais fontes de poluição do meio ambiente e responsável pelo desmatamento de quase um quarto da área terrestre do planeta. No Brasil, por exemplo, onde o gado é criado em pastos, este quadro se torna ainda mais dramático, e já se constitui em uma das principais causas da destruição da mata atlântica e da amazônia, duas das principais reservas de biodiversidade do mundo. Além disso, o índice de poluição dos manancias hídricos por fezes e carcaças de animais mortos para o consumo humano é elevadíssimo, o que faz aumentar ainda mais a escassez de água no mundo. O segundo argumento é econômico, pois o custo/ benefício para a população seria muito grande se ela adotasse uma dieta vegetariana, já que os rebanhos consomem uma quantidade de alimentos bem maior do que a população humana. Na verdade, um terço dos grãos produzidos no mundo são destinados para alimentação do gado, quando poderiam ser utilizados diretamente para a alimentação das pessoas. A taxa média de cereais empregados na alimentação do gado, por exemplo, é de 3 kg para produzir 450 g de alimento aproveitável e a produção de 0,5 kg de carne normalmente consome cerca de 9.500 litros de água. (Lappé, 1985;p.88) O terceiro argumento é de saúde pública, e uma grande parte dos profissionais de saúde já concorda que o homem pode viver muito bem sem o consumo de carne, e que isto só traria conseqüências positivas para ele. O Banco Mundial, por exemplo, tem se recusado a financiar projetos econômicos de gado de corte ao redor do mundo, pois seus técnicos chegaram à conclusão de 338 Vegetarianismo como ação política que esta atividade tem empobrecido o planeta e aumentando a fome dos países pobres. Por outro lado, grande parte do orçamento público é gasto para o tratamento de doenças como câncer, obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, que normalmente são originadas ou agravadas pelo consumo excessivo de carne. Diversas pesquisas já demonstraram que as populações que adotam uma dieta vegetariana possuem uma maior longevidade e necessitam de menos cuidados médicos, de modo que o vegetarianismo já se apresenta como uma das principais vertentes da medicina preventiva(Patrícia Bertron; p.32) O quarto argumento é de caráter político, e tem se tornando cada vez mais divulgado através das obras de filósofos como Herry Salt, Perter Singer, Tom Regan, que entendem que a adoção de uma dieta vegetariana é um importante instrumento político na luta pelos direitos dos animais. De fato, as pessoas devem mudar suas crenças antes de mudar seus hábitos, embora um processo como esse exija muitos esforços de ordem educacional e política visando promover mudanças nos corações e mentes, preparando assim a opinião pública para uma mudança social que venha a por fim a todo tipo de exploração institucionalizada dos animais. Como afirmou Peter Singer(2000:183): “Os que lucram com a exploração de grande número de animais não precisam de nossa aprovação, eles precisam de nosso dinheiro. Eles utilizarão métodos intensivos, desde que consigam vender o que produzem mediante a utilização desses métodos; e terão os recursos necessários para combater reformas no campo político; e poderão defender-se contra as críticas, respondendo que simplesmente oferecem o que o público quer.” A indústria de criação intensiva de animais nada mais é do que a junção da tecnologia industrial à idéia de que os animais são meros instrumentos para os fins pretendidos pelo homem, e enquanto estivermos dispostos a adquirir produtos provenientes Heron Santana 339 desse tipo de exploração, a norma constitucional que proíbe a prática de atividades que submetam os animais à crueldade não passará de um simples pedaço de papel impresso, sem qualquer eficácia social ou jurídica. 340 Vegetarianismo como ação política O DIREITO DO TRABALHO NO SÉCULO XXI Rodolfo Pamplona Filho Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Ilhéus do Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região (Bahia). Professor Titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador – UNIFACS. Coordenador do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil da Universidade Salvador – UNIFACS. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Professor Colaborador da Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da UFBA – Universidade Federal da Bahia. Autor de diversas obras jurídicas. Instigado a refletir sobre o Direito do Trabalho do Século XXI, a primeira frase que vem à mente não é de nenhum jurista consagrado ou doutrinador de escol, mas sim do poeta da nova geração, Lulu Santos, ao cantar que “Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia...” De fato, a nova face que se vislumbra do Direito do Trabalho no Século XXI é bem diferente daquela originalmente desenhada, ainda no alvorecer da Revolução Industrial, bem como completamente oposta do perfil que lhe tentaram impor na segunda metade do século XX. E essa nova visão passa, necessariamente, pela concepção do Direito Material do Trabalho, mas também pelos novos desafios outorgados à nossa Justiça do Trabalho, notadamente com a Emenda Constitucional nº 45. Senão, vejamos! O Direito do Trabalho surgiu como uma resposta especializada da necessidade da quebra do paradigma de igualdade do Direito 341 Civil clássico, pela peculiaridade de uma forma contratual derivada da antiga locação de servicos romana: o contrato de emprego (ou trabalho subordinado). Na constatação da super-exploração da mão-de-obra, visivelmente inferiorizada diante dos titulares do capital, foi construído todo um sistema jurídico de proteção ao trabalhador, no que diz respeito às suas condições mínimas de trabalho, em especial na busca por uma limitação da jornada e da fixação de uma retribuição mínima pelo labor. Nesse momento histórico, que se interpenetra ainda com a realidade presente, constata-se uma tendência de maior intervenção estatal nas relações trabalhistas, idéia que influencia, ainda hoje, a imagem do Direito do Trabalho na doutrina jurídica, a ponto de respeitados autores, como o civilista Álvaro Villaça de Azevedo, o classificarem como parte do Direito Público. Esse sistema ganhou ainda mais força no século XIX e meados do século XX, na contraposição do sistema capitalista com o comunismo histórico da URSS e aliadas, em que o medo do “perigo vermelho” fazia com que os grandes grupos econômicos admitissem ceder uma parcela de seus ganhos, ainda que fosse para o sistema continuar da mesma forma. Com a derrocada do regime socialista na maioria dos países que o adotaram, chegamos àquilo que Francis Fujuyama denominou exageradamente de “fim da história”, com a prevalecência do livre mercado, terreno fértil para o desenvolvimento do fenômeno da globalização da economia. Nessa linha, encontra-se um segundo perfil do Direito do Trabalho, que ganhou espaço na mencionada segunda metade do século XX. Trata-se da concepção reducionista do Juslaboralismo, em que a expressão “flexibilização” ganhou imensa força, com o estímulo a contratos precários, jornadas flexíveis, remunerações por 342 O Direito do trabalho no Século XXI produção, entre outros institutos tão caros aos teóricos da “excelência empresarial”. Esqueceram-se, porém, que o Direito do Trabalho somente faz sentido no próprio regime capitalista, como num sistema de freios e contrapesos, a permitr a retroalimentação da sociedade, como uma visão autopoiética das organizações. Com efeito, trabalhadores com contratos de duração determinada não obtêm crédito tão facilmente quanto aqueles portadores de algum tipo de estabilidade econômica (não necessariamente jurídica). Sem crédito, não há dinheiro na praça a alimentar o comércio. Sem comércio, não há produção de riquezas, nem arrecadação de impostos, o que faz com que toda a organização social se enfraqueça, em um círculo vicioso que a corrói como um tumor incontrolável... Nessa constatação, vê-se claramente uma nova face do Direito do Trabalho a surgir. Na Europa, notadamente na Espanha e Itália, onde se flexibilizou a não mais poder, fala-se em um recrusdecimento da proteção. No Brasil, o órgão maior de proteção das relações trabalhistas, a Justiça do Trabalho, passa de candidata a extinção para o ramo mais prestigiado pela Reforma do Judiciário. Isso tudo não pode ser considerado uma mera coincidência. Não, definitivamente, não! O Direito do Trabalho do Século XXI é, novamente, protetivo, sem ter receio de admitir isso. Essa proteção, porém, não se limita mais à velha concepção do contrato individual de trabalho, mas, sim, muito mais do que isso, abrangendo a luta pela preservação da saúde, física e mental, nas relações laborais. Nesse campo, não se discute somente o descumprimento do conteúdo pecuniário do contrato, mas também a tutela dos direitos da personalidade do trabalhador e do empregador, combatendo Rodolfo Pamplona Filho 343 males antigos que tomam novos nomes, como o assédio sexual, assédio moral, doenças ocupacionais etc. Esse novel perfil do direito material influencia o órgão jurisdicional, agora com competência renovada para lides trabalhistas como um todo, e não somente do trabalho subordinado. Afinal, trabalho digno é direito de todos e o ramo do Judiciário que se propõe a ser uma “Justiça do Trabalho” não pode ser reduzida a uma “Justiça do Contrato de Emprego”. O novo Direito do Trabalho é, sem incoerências, tradicional e inovador, na medida em que preserva as garantias básicas, mas se preocupa com outros pontos que merecem proteção nas relações trabalhistas. Cabe a todos aqueles, vocacionados para enfrentar toda esta seara de inesgotáveis problemas, a missão de efetivar esta nova face. E não tenho dúvida que, se vocacionados são, preparados estão para esta missão... 344 O Direito do trabalho no Século XXI DOUTRINA ESTUDANTIL ARTIGOS DOS FORMANDOS A INTERRUPÇÃO ÚNICA DO PRAZO PRESCRICIONAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL Arivaldo Marques do Espírito Santo Júnior Lucas Lopes Menezes Acadêmicos da Universidade Federal da Bahia. Sumário: I – Considerações iniciais; II – Do conceito de prescrição; III – Dos fundamentos da prescrição; IV – Manifestações doutrinárias; V – Problemas decorrentes da unicidade prescricional; VI – Soluções Propostas pela doutrina; VII - Aplicação da unicidade no Novo Código Civil e da necessidade de se adotar uma interpretação sistemática e teleológica; VIII – Conclusão; IX – Referências bibliográficas. Resumo: O Novo Código Civil veio como tentativa de reaproximação da realidade jurídica com o mundo dos fatos, visto que o Código Civil de 1916 já demonstrava alguma ineficiência em determinados aspectos por não se compatibilizar com as novas exigências sociais, patrimoniais e até mesmo processuais que se apresentavam como objeto de regulação. Dentre essas modificações trazidas na parte geral do Novo Código, o sistema da prescrição foi significativamente alterado. A nova Lei codificada estabeleceu prazos menores para o exercício da pretensão, permitiu o conhecimento de ofício da alegação de prescrição quando favorecer absolutamente incapaz1, além de pôr fim a antiga discussão acerca da diferença entre a prescrição e decadência. Sem correspondente na antiga codificação civil, o aludido artigo inova ao estabelecer a interrupção única dos prazos prescricionais. 1. Considerações iniciais O Novo Código Civil veio como tentativa de reaproximação da realidade jurídica com o mundo dos fatos. O Código Civil de 1916 já demonstrava alguma ineficiência em determinados aspectos por não se compatibilizar com as novas exigências sociais, patrimoniais e até mesmo processuais que se apresentavam como objeto de regulação. No mais das vezes, a aplicação do código anterior já não mais satisfazia as necessidades que ora se apresentavam, 347 seja nas relações de família e sucessórias, em que a condição jurídica da mulher e dos filhos - havidos fora do casamento - eram colocados num plano secundário, seja em sua parte geral, que reclamava pela proteção de novos direitos e pelo “refinamento” de institutos já existentes. Dentre essas modificações trazidas na parte geral do Novo Código, o sistema da prescrição foi significativamente alterado. A nova Lei codificada estabeleceu prazos menores para o exercício da pretensão, permitiu o conhecimento de ofício da alegação de prescrição quando favorecer absolutamente incapaz2, além de pôr fim a antiga discussão acerca da diferença entre a prescrição e decadência. Outra inovação importante introduzida é aquela fornecida pelo caput do artigo 202, que preceitua: A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á: Sem correspondente na antiga codificação civil, o aludido artigo inova ao estabelecer a interrupção única dos prazos prescricionais. Mas a inovação não é demasiada original. O próprio direito positivo brasileiro apresenta antigo precedente ao limite da interrupção. A regra contida no artigo 202 do novo códex espelhase no decreto 20.910/323, que estabelece que a prescrição de toda e qualquer pretensão contra a Fazenda Pública, seja ela Federal, Estadual ou Municipal só poderá sofrer uma única interrupção. Distancia-se, entretanto, do Código de 1916, que não apresentava limite algum, ao menos expressamente, para a interrupção do prazo da prescrição, apenas verberando em seu artigo 172 que “a prescrição interrompe-se:” Foi justamente pelo silêncio da Lei Codificada Anterior que surgiu, naquele momento, na doutrina, a discussão acerca da possibilidade da prescrição ser interrompida mais de uma vez. 348 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil Favoravelmente à limitação, argumentava-se que a prescrição possui como um dos seus fundamentos básicos o interesse da sociedade em que os direitos não permaneçam muito tempo sem exercício, situação que restaria incompatível com a interrupção mais de uma vez do prazo prescricional. 4 Nesse sentido, o Ministro Bento de Faria já sustentava, numa posição vanguardista, a tese da interrupção única do prazo prescricional na apelação nº 5.250 de 23 de setembro de 1927. Argumentava o douto jurista que a prescrição se justificava em razão de elevados interesses sociais, sendo, por conta disso, uma medida de ordem pública para estabilidade de todas as relações jurídicas. Dessa forma, tal instituto não se coadunava com perpetuação do litígio, embutida na possibilidade da prescrição ser interrompida diversas vezes: [...] tudo deve ter fim e o Estado é interessado em que os direitos não permaneçam por muito tempo sem exercício; se com tal dispor, assentado na – negligência – a razão de imputabilidade contra o titular de crédito, se procurou prescrever o regime nas ações perpétuas, já malferidas desde 424, por TEODOSIO, o jovem; parece que permitir, ilimitadamente, a interrupção do prazo respectivo não removeria, mas faria surgir esse – periculum litium. Basta que o interessado, sem ajuizar seu crédito para exigi-lo, por outro meio, v. g., pelo protesto interrompesse continuamente, em tempo útil, o curso do prazo fixado para extingui-lo.” 5 Contrariamente a Bento de Faria, Carvalho Santos6 sustentava que quando o credor interrompe a prescrição não dá lugar para que se estabeleça uma situação de incerteza, inexistindo, por conta disso, interesse social em que ele perca a sua pretensão, “pois a sociedade não pode ter interesse em prejudicá-lo, quando nenhuma certeza ou dúvida subsiste quanto ao seu direito.” Carvalho Santos argumentava que a prescrição apenas se justifica quando houver negligência do credor que, se prolongada, Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 349 importe a renúncia do seu direito. Afirmava o douto jurista que a interrupção do curso prescricional feita pelo credor se dava em seu próprio benefício e representava a ausência de sua incúria, não sendo possível, dessa forma, que a ordem social sacrificasse esse direito sem fundamento razoável, não tolerando novas interrupções da prescrição. Além disso, segundo Carvalho Santos, a lei quedou-se silente acerca da reiteração do ato interruptivo, por julgá-lo supérfluo, já que uma vez interrompido surge um prazo novo, porém, com a mesma natureza do anterior. Assim, se há novo prazo, há, necessariamente, a possibilidade de nova interrupção. A discussão findou-se (ao menos aparentemente) com o advento da nova Lei Civil que instituiu a unicidade da interrupção do curso prescricional em seu art. 202, ora comentado. Entretanto, se é certo que a alteração trazida pelo Novo Código Civil pôs fim à discussão travada pela doutrina acerca da interrupção única da prescrição, certo também é que uma interpretação equivocada da regra esculpida no art. 202 da Lei Civil poderá dar origem a diversos outros problemas a serem enfrentados pelos operadores do direito. Será este, portanto, o tema central deste trabalho: os problemas decorrentes da regra da unicidade interruptiva da prescrição. 2. Do conceito de prescrição A prescrição pode ser definida como uma exceção7 material que obsta o exercício da pretensão do titular de um direito violado. Operada a prescrição por inércia do titular do direito violado, desaparece o poder de exigir coercitivamente a reparação desse direito. O conceito formulado assenta-se em novas premissas encontradas em diversos exames feitos pela doutrina nacional envolvendo este instituto. Superada a idéia outrora sustentada de que a prescrição atinge o direito de ação8, pois este é um direito 350 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil fundamental e abstrato, a noção da pretensão como o “direito de exigir de outrem uma ação ou omissão” assumiu a condição de nova premissa para o estudo da prescrição9, sendo adotada pelo Código Civil Brasileiro sob influência do Código Civil Alemão (§ 198). Observe-se, de outro lado, que já antes do advento do Novo Código Civil, Pontes de Miranda10, com maestria, ensinava: A prescrição seria uma exceção que alguém tem contra o que não exerceu, durante um lapso de tempo fixado em norma, sua pretensão ou ação. (grifos aditados) Maria Helena Diniz, também vinculada à noção de que prescrição atua como impedimento da pretensão11, pondera que: O que caracteriza a prescrição é que ela visa extinguir uma pretensão alegável em juízo por meio de uma ação, mas não o direito propriamente dito12. (grifos aditados) Logo, atento às novas bases que circundam o instituto jurídico da prescrição, o Código Civil alterou o tratamento dado à prescrição dentro do sistema jurídico brasileiro, inovando em diversos pontos, como, v.g., ao estabelecer a interrupção única dos prazos prescricionais. 3. Dos fundamentos de prescrição A análise mais detalhada da prescrição leva-nos a duas ordens de fundamentos que lhe dão sustento: a) o interesse público e; b) castigo à negligência do titular do direito13. Primeiramente, a violação ou até mesmo a simples ameaça de um direito geram uma desarmonia social e desequilíbrio da ordem jurídica. A ação surge como instrumento que possibilita ao titular do direito restabelecer o “status quo ante”. Entretanto, se o titular desse direito queda-se inerte, não exercitando pretensão, nada mais faz que cooperar com essa desarmonia, legando ao Estado o dever de solucionar o desarranjo Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 351 e restaurar o equilíbrio anteriormente existente. Para corresponder a este dever ao qual é chamado, o Estado se faz valer da prescrição como meio eficaz para tanto. As relações jurídicas quando instáveis necessitam de mecanismo que devolva a harmonia antes havida. Se permanece paralisado o titular do direito, permitindo a continuidade da perturbação da ordem jurídica e não cooperando para a harmonia social, o Estado incumbe-se de realizar providência mediante a prescrição, que retira do titular do direito o poder de exigir de outrem, coercitivamente, o cumprimento de um dever jurídico. 13 Bem lembra Maria Helena Diniz que “esse instituto foi criado como medida de ordem pública para proporcionar segurança às relações jurídicas, que seriam comprometidas diante da instabilidade oriunda do fato de se possibilitar o exercício da ação por prazo indeterminado”.14 Ademais disso, fundamenta também a prescrição o seu propósito de punir a inatividade do titular do direito, isto é, a sua negligência diante da possibilidade de pacificação da ordem jurídica. A prescrição apresenta-se como uma penalidade, pois a negligência não compadece com a existência de um estado antijurídico. Imperioso é o brocardo latino “dormientibus non sucurit iure”. Não resta dúvida que a prescrição é, em simbólica alusão, uma espada pressionada contra o titular do direito, que o força ao exercício de sua pretensão, sob pena de não poder mais exigir que a outra parte satisfaça a obrigação avençada. É, desta forma, imprescindível que o credor quede-se inerte para que a prescrição opere seus efeitos. Nesse sentido pondera J. M. de Carvalho Santos: “A negligência do credor, portanto, é a base da prescrição e só a justifica quando se manifesta a tal ponto, que vá redundar em trazer incerteza de seu direito, com o que já interessa de perto a ordem pública e os interesses sociais. 352 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil Mas, sem a negligência, se o credor está vigilante, interrompendo sempre a prescrição, isso revela apenas que, em benefício seu, não exercitou a ação e não seria possível que a ordem social viesse a sacrificar esse direito, sem fundamento razoável, não tolerando novas interrupções da prescrição”15 4. Manifestações doutrinárias Diversas são as manifestações encontradas na doutrina acerca da modificação, direcionando elogios à limitação da interrupção dos prazos prescricionais. Os professores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho entendem ser salutar a medida, haja vista a tentativa de moralizar a utilização da possibilidade de interrupção, coibindose abusos e a própria perpetuação da lide16. Ressaltam ainda, posteriormente, que: “No Juízo Trabalhista, por força do entendimento consolidado no Enunciado 268 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, ‘a demanda trabalhista, ainda que arquivada, interrompe a prescrição’. A quase-gratuidade no ajuizamento de reclamações trabalhistas tem permitido que os autores simplesmente ajuízem ações sem sequer comparecer à audiência designada (arquivando-a, na forma do art. 844 da CLT, o que corresponde à extinção do processo sem julgamento do mérito), simplesmente para o obter novo prazo para apresentarem reclamação. Tal prática, agora, não terá mais possibilidade jurídica sendo realizada, em função da aplicação da nova regra expressa”. 17(grifos nossos). Evidente, não há como afastar a boa intenção do legislador ao intentar a modificação inserta no caput do art. 202. A inovação pretendeu atender aos fundamentos e a toda estrutura do sistema da prescrição, evitando a perduração da situação de instabilidade, e contrária ao ordenamento jurídico. Como bem observa Câmara Leal, umas das vantagens da prescrição é a de “impedir que o autor retarde, maliciosamente, a demanda no intuito de dificultar a defesa do réu pelo desbara- Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 353 tamento das provas, em virtude da remota ocorrência dos fatos”18,19. Dessa forma, de nada adiantaria a sua existência se a lei atribuísse a fatos subjetivos, dependentes, portanto, da vontade do credor, o efeito de interromper o curso prescricional, a qualquer tempo e em qualquer situação. Isto, fatalmente, fulminaria o objetivo do instituto da prescrição que é justamente o de coibir os abusos de direito por parte do seu titular, contrariando, por conseqüência lógica, o seu próprio fundamento, na medida em que haveria a perpetuação da situação de incerteza instaurada pela violação do direito. Talvez por isso, é que essa alteração trazida pelo Novel Código Civil tem sido vista pela doutrina como uma medida salutar tomada pelo legislador. 5. Problemas decorrentes da unicidade prescricional Data venia ao intuito legislativo, a admissão da unicidade da interrupção do prazo prescricional provoca repercussões materiais e processuais importantes, que não podem ser renegadas a um plano secundário. Uma interpretação literal do artigo acarretaria situações injustas e desarrazoadas. Poder-se-ia entender, por exemplo, que, em virtude da regra constante no caput do art. 202, interrompido anteriormente o prazo prescricional e proposta, depois, a demanda, haveria a ocorrência da prescrição intercorrente. Dessa forma, o entendimento da interrupção prazal única de modo compatível com toda a sistemática da prescrição deve ser visualizada à luz dos fundamentos, anteriormente examinados, que norteiam este instituto. Isso porque, do contrário, a unicidade da interrupção poderá nos levar a situação de os efeitos da prescrição se operarem mesmo que o titular do direito não se mostre negligente. Tomese em consideração a hipótese do titular de um título cambial 354 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil que, no primeiro dia subseqüente ao vencimento do título, interrompe seu prazo prescricional mediante o protesto cambial (hipótese prevista no inciso III do artigo 202 do Código Civil)20, continuada a inadimplência do devedor, propõe ação executiva de cobrança da cambial. Em nenhum momento esse titular do direito mostrou-se inerte. Muito pelo contrário, desde o início, mostrara-se diligente diante de suas possibilidades de fazer cumprir seu direito. Entretanto, diante da exegese literal do artigo, essa primeira interrupção inviabilizaria qualquer outra posterior, até mesmo aquela prevista em seu inciso I, decorrente do despacho citatório do juiz. Assim entendido, o prazo prescricional voltaria a “correr” na data do protesto cambial, conforme estabelece o parágrafo único do artigo 202, não mais havendo nova interrupção em virtude da propositura de ação. Através do raciocínio exposto, aplicado a hipótese figurada, concluir-se-ia que o processo proposto não poderia durar mais de 03 anos, sob pena de prescrita a pretensão do titular do crédito. Mais absurda ainda era a situação anterior a vigência da Lei 11.232/2005, quando tínhamos a separação entre os processos de conhecimento e de execução. Proposta a ação de conhecimento e interrompido o prazo prescricional, não mais se interromperia o prazo reiniciado em virtude do processo de execução.21 Sabido que é a situação do Judiciário em todo o país e da duração desarrazoada de seus processos, inconcebível punir o titular da pretensão que se mostrou diligente por fatos alheios a sua esfera de atuação. 6. Soluções prospostas pela doutrina Apesar da recente inovação conferida pelo Novo Código Civil já se vislumbram na doutrina pátria alguns posicionamentos acerca do tema. Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 355 Humberto Theodoro Júnior, enfrentando o problema, afirma que em sendo proposta a ação principal posteriormente à ação preparatória, o despacho citatório exarado no bojo daquela não terá o condão de interromper o curso prescricional. Todavia, “o efeito que impede a contagem do prazo prescricional enquanto pende o feito em juízo (art.202, parágrafo único), que teve começo no processo primitivo perdurará enquanto não se encerrar o processo principal, dado o vínculo de acessoriedade que há entre eles.” 22 Apesar de louvável, a solução trazida pelo ilustre doutrinador não pacifica a questão, pois apenas se presta a resolver o problema quando existir uma relação de acessoriedade entre os atos interruptivos. E quando inexistir essa relação? Pensemos novamente no exemplo do título protestado e a sua posterior execução. Nesse caso não haveria a relação de acessoriedade sustentada pelo ilustre jurista. Haveria então prescrição intercorrente, de acordo com a inovação do art. 202 do Novo Código Civil? Já os professores Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes23 afirmam que a interpretação literal do caput do art. 202 não deve prosperar, posto que inexistente um requisito essencial da prescrição, qual seja, a inércia do credor. Isso porque “nada mais demonstrativo do que o interesse de receber o crédito”, vale dizer, do exercício da pretensão do que o ajuizamento da demanda judicial. Com isso, “reconhecer que despacho citatório não é hábil para interromper a prescrição, pelo simples fato de que o prazo já foi anteriormente interrompido, além de contrariar a essência do instituto jurídico, estabeleceria o caos e a insegurança jurídica dos créditos, isso sim, repudiado pelo ordenamento jurídico”. Diante disso, sustentam os citados autores que o magistrado deve sopesar as questões relativas à aplicação da causa interruptiva constante no inciso I do art. 202 do Código Civil. 356 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil De fato, da literalidade do dispositivo poder-se-ia concluir pela prescrição intercorrente, pelo que se estaria, com já foi dito, criando situações esdrúxulas no sistema. Entretanto, a solução apontada pelos doutos juristas esbarra no problema da ampliação da discricionariedade judicial, questão essa bastante controvertida na doutrina.24 O professor Arruda Alvim, com a clareza que lhe é peculiar, ensina que a regra da interrupção única do curso prescricional somente deve ser aplicada no âmbito extraprocessual. Isso porque a finalidade da norma insculpida no caput do art. 202 seria a de possibilitar a propositura da demanda. Dessa forma, em sendo promovida a ação aplicar-se-á a segunda parte do parágrafo único do dispositivo em comento.25 Com efeito, não há maiores problemas relacionados a unicidade da interrupção prescricional quando seu efeito recair sobre o âmbito extraprocessual. Nessas situações, a permissão de inúmeras interrupções da prescrição não se coadunaria com os fundamentos do instituto. No entanto, data maxima venia ao brilhante entendimento esposado pelo Mestre Arruda Alvim, não concordamos que a regra da unicidade da interrupção da prescrição deva ser aplicada apenas ao âmbito extraprocessual. Isso porque incontroverso é o entendimento de que a prescrição caracteriza-se pela punição à negligência e que a norma em comento surgiu com o escopo de coibir os abusos cometidos pelos credores que se valiam da interrupção do curso prescricional para postergar a lide, dificultando, com isso, a defesa do réu. Note-se, por exemplo, as hipóteses previstas nos incisos II, IV, V, VI do art. 202 do Código Civil, que apesar de judiciais, portanto endoprocessuais, estariam adstritas à interrupção única do curso prescricional, haja vista que a permissão de inúmeras interrupções também não se coadunaria com o fundamentos do instituto. Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 357 Note-se ainda que a regra da unicidade não exclui de sua aplicação a hipótese do inciso I do art. 202 do Código Civil. Devese, porém, observar algumas ponderações, como se verá adiante. 7. Aplicação da unicidade no novo código civil e da necessidade de se adotar uma interpretação sistemática e teleológica Inexistindo a indolência do credor26 consubstanciada pelo ajuizamento da demanda judicial, impossível é que seja negado efeito interruptivo ao despacho citatório. Assim, em qualquer hipótese, a causa prevista no inciso I do art. 202 do NCC terá o condão de interromper o curso prescricional. Por outro lado, poder-se-ia afirmar que essa interpretação fulminaria o objetivo da norma que é coibir os abusos cometidos pelos credores. Isso porque permitiria que os credores ajuizassem a demanda, abandonando-a posteriormente o que implicaria na extinção do feito sem julgamento do mérito, mas não afetaria a interrupção do curso prescricional. É o que acontece (ou acontecia) no Juízo Trabalhista. Entretanto, é obvio que esse entendimento não pode prosperar. Ora, se o ajuizamento da demanda judicial demonstra o interesse do credor de exercer a sua pretensão, o seu abandono demonstra a sua incúria. Com isso, uma vez proposta a demanda, se esta vier a ser extinta por culpa do autor, o despacho citatório exarado no bojo do processo quando da sua repropositura não terá o condão de interromper o curso prescricional. Deve o credor, pois, ser punido, posto que não foi diligente quanto ao prosseguimento do feito primitivo. Com isso, pugnamos pela adoção de uma interpretação sistemática e teleológica do caput do art. 202, tomando-se por base os fundamentos que norteiam a prescrição, bem como a intenção do legislador consubstanciada na regra ora analisada. 358 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil Importante observar que a adoção de determinada regra hermenêutica não exclui, necessariamente, a aplicação de outra, podendo haver, portanto, a conjugação de técnicas interpretativas. Nesse sentido assevera Humberto Theodoro Junior que “os vários critérios ou métodos de interpretação não excludentes entre si. Ao contrário, devem ser empregados cumulativamente na medida em que o caso concreto reclame técnica exegética pertinente a cada um deles. Às vezes um só deles é suficiente para solucionar o problema de interpretação. Outras vezes só com a conjugação de alguns ou de todos os critérios disponíveis é que se logrará resultado satisfatório na operação hermenêutica.” Desse modo, o intérprete deve buscar o espírito da norma, adequando-a ao sistema que circunda a prescrição. Em assim sendo, o aplicador do direito deve ponderar o caráter punitivo da prescrição e o intuito do legislador de coibir os abusos de direito cometidos por quem o titulariza. Ou seja, para que a regra da unicidade seja aplicada ao quanto disposto no inciso I do art. 202 da Lei Civil é mister que a conduta do credor evidencie o seu descaso quanto ao exercício da sua pretensão, bem como o seu propósito em postergar o litígio. Dessa forma, entendemos ser nada desarrazoado que quando o processo for extinto por conta das hipóteses que evidenciem uma finalidade procrastinatória e o descaso do autor, deverá ser observada literalmente a regra da unicidade da prescrição. Vale dizer, quando por culpa do autor o processo ficar parado por mais de um ano, ou quando este desistir da ação, ou abandonar a causa, mostrando-se inerte perante a sua pretensão, não poderá ele interromper o curso prescricional através da repropositura da ação. Importante ressaltar que estaria incluída toda e qualquer hipótese que gere a extinção do feito sem resolução mérito por fato imputável ao autor, a exemplo do não comparecimento do demandante à Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 359 audiência nos processos de competência dos Juizados Especiais e da Justiça Trabalhista. Ressalte-se ainda que na hipótese de desistência da ação (art. 267, VIII do CPC), se esta ocorrer antes da citação do réu, entendemos que deverá este ser notificado da decisão nos termos do § 6º do art. 219 do Código de Processo Civil.27 Restaria, dessa forma, respeitado simultaneamente o sistema prescricional e o intuito do legislador buscado com a inovação. 8. Conclusão Diante dos argumentos acima expostos e dos ensinamentos da Hermenêutica Jurídica, irrefutável é a posição de que ao caput do art. 202 do Código Civil não se aplica uma interpretação literal. Caso contrário estaria sendo ignorada toda a estrutura em que se assenta o instituto da prescrição, além de ocasionar, por via de conseqüência, situações de extrema insegurança jurídica, punindose, desmotivadamente, o credor e colocando o devedor em situação excessivamente vantajosa. Evidente que a análise do caput do art. 202 deve preservar a intenção do legislador de coibir os abusos de direito cometidos pelo credor, contudo, essa posição deve ser ponderada de forma a não desvirtuar o instituto da prescrição, ou seja, a aplicação da novidade trazida pelo citado artigo deve-se coadunar com os fundamentos objetivos da prescrição. Dessa forma, concluímos que: a) Aplica-se, sem restrições, a interrupção única da prescrição aos incisos II, III, IV, V e VI do art. 202; b) Quanto ao inciso I do art. 202 do Código Civil, deve ser adotada uma interpretação sistemática e teleológica, levando-se em consideração os fundamentos que circundam a prescrição, assim como o intuito legislativo de coibir os abusos de direito. Assim, deve o magistrado aplicar a regra 360 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil da unicidade apenas nos casos de repropositura da demanda anteriormente extinta por fato imputável ao autor. Isso porque nessas hipóteses visualiza-se, o descaso do credor quanto ao exercício da sua pretensão, o que configura, por sua vez, a negligência do titular do direito, repudiada pelo sistema que envolve o instituto da prescrição, além de evidenciar o propósito do credor em postergar a lide. c) Havendo extinção do processo em virtude do disposto no inciso VIII do art. 267 do CPC, deve o réu ser notificado nos termos do § 6º do art. 219 do mesmo diploma legal. 9. Referências ALVIM, José Manoel de Arruda. Da Prescrição Intercorrente. Prescrição no novo Código Civil: uma analise interdisciplinar. Mirna Cianci (coord.). São Paulo: Saraiva, 2005.. ALMEIDA, Ísis de. Manual da Prescrição Trabalhista. 2ª. ed. São Paulo: LTr, 1994. ALVES, José Carlos Moreira. A Parte Geral do Projeto de Codigo Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000. AMARAL, Franciso. Direito Civil. Introdução. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. BANDE IRA DE ME LO, Celso Antônio. 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Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Saraiva 2002, v. I. __________. Código Civil Anotado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. FILHO, Agnelo Amorim. Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis. RT, 300, outubro/1960, pág. 7, reproduzido na RT 744, outubro/1997, v.744 GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003, v.I. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil. Parte Geral. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. ----_________. “Prescrição: questões relevantes e polemicas”. Questões controvertidas no novo código civil. Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Alves (coord.). São Paulo: Método, 2003, v. I. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Da prescrição e da decadência. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 18ª. ed. 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Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 10. Notas 1 Posteriormente, a Lei 11.280 de 16.02.2006 alterou o §5º do art. 219 do CPC dando-lhe o seguinte enunciado: “juiz pronunciará, de oficio, a prescrição”. Com isso, revogou o art. 194 do Código Civil. Sobre o tema conferir THEODORO JUNIOR. Humberto. “A exceção da prescrição no Processo Civil. Impugnação do devedor e decretação de oficio pelo Juiz”. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil. São Paulo: IOB Thomson. 2006, ano VII., nº 41. p. 69-85. 2 Posteriormente, a Lei 11.280 de 16.02.2006 alterou o §5º do art. 219 do CPC dando-lhe o seguinte enunciado: “juiz pronunciará, de oficio, a prescrição”. Com isso, revogou o art. 194 do Código Civil. Sobre o tema conferir THEODORO JUNIOR. Humberto. “A exceção da prescrição no Processo Civil. Impugnação do devedor e decretação de oficio pelo Juiz”. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil. São Paulo: IOB Thomson. 2006, ano VII., nº 41. p. 69-85. 3 Art. 8° do Decreto-lei nº 29.910/32: “A prescrição somente poderá ser interrompida uma vez.” 4 TEPEDINO. Gustavo. Barboza. Heloisa Helena. Bodin de Moraes. Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro. Renovar. 2004. p. 379. 5 BENTO DE FARIA apud J.M. CARVALHO SANTOS. Código Civil Brasileiro interpretado, principalmente prático. Vol. III. Parte Geral. 7ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1991. p. 441-442. 6 CARVALHO SANTOS. Op., cit.,. p.443. De acordo com Fredie Didier Jr, em sentido material, “a exceção relaciona-se com a pretensão, sendo um direito de que o demandado se vale para opor-se à pretensão, para neutralizar-lhe a eficácia – é uma situação jurídica que a lei material considera como apta a impedir ou retardar a eficácia de determinada pretensão, espécie de contradireito do réu em face do autor: é uma pretensão que se exerce como Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 363 contraposição à outra pretensão”. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1, 7ª Edição. Salvador: Juspodivm, 2007, p.439-440. 7 Para Carvalho Santos, a prescrição era um modo de extinção dos direitos em virtude da perda da ação que os assegurava. Carvalho Santos. João Manuel. Código Civil Brasileiro interpretado, principalmente prático. Vol. III. Parte Geral. 14ª edição. Rio de Janeiro. 1991, p., 123. 8 A noção de que os efeitos da prescrição se operam sobre a pretensão do titular de um direito violado ganha força no Brasil com o trabalho artigo apresentado por Agnelo Amorim Filho, que, ao buscar diferenciar os institutos da decadência e da prescrição, acaba por ressaltar em diversos pontos que a pretensão, e não a ação que extinguese com a prescrição. De acordo com o professor, “o exercício dos direitos potestativos se vinculam somente a decadência pelo fato de que estes direitos não têm por objetivo a satisfação de uma pretensão, se se entender como tal o poder de exigir de outrem uma prestação, pois os direitos potestativos são, por definição, direitos sem pretensão”. F I LH O , Agnelo Amorim. Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis. RT, 300, outubro/1960, pág. 7, reproduzido na RT 744, outubro/1997, v.744, págs. 725-750. 9 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte geral, v.6, p., 100. 10 Afirmando o entendimento de que a prescrição ataca a pretensão, os professores baianos Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho entendem que “a prescrição é a perda da pretensão de reparação do direito violado, em virtude da inércia de seu G LIAN O , Pablo Stolze e PAM P LO NA F titular, no prazo previsto pela lei.” GA GAG IANO AMP FII LH O , Rodolfo. Novo curso de direito civil. 4ª ed, v. I. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 476. 11 D I N I Z , Maria Helena.Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, v. I, p.336 12 SAVIGNY apud LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Da prescrição e da decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 27. 13 GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003, v.I. p. 478. 14 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Saraiva 2002, v. I. p.335. 15 CARVALHO SANTOS. Op., cit., p. 444. 16 Nesse mesmo sentido afirma CARLOS ROBERTO GONÇALVES: “A restrição é benéfica, para que não se eternizem as interrupções da prescrição. Como o art. 172 do Código de 1916 silenciava a esse respeito, admitia-se que a prescrição fosse interrompida mais de uma vez, salvo se reiteração caracterizasse abuso. A inovação é salutar, porque evita interrupções abusivas e a protelação da solução das controvérsias.” Direito Civil. Parte Geral . V. 1. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 476. 364 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil 17 GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op., cit., p. 497-498. 18 CÂMARA LEAL, Antônio Luiz da. Op., cit., p. 32. 19 Note-se que não devemos confundir os fundamentos da prescrição com os seus benefícios. Aqueles são os motivos que lhe deram origem, razão da existência do instituto, enquanto que estes são apenas as conseqüências dele decorrentes. 20 Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, darse-á: I – por despacho do juiz, mesmo que incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual; II – por protesto, nas condições do inciso antecedente; III – por protesto cambial IV – pela apresentação do titulo de credito em juízo de inventario ou em concurso de credores; V - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor; VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor. Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo que a interromper.” 21 O professor baiano CRISTIANO CHAVES DE FARIAS entende que “em se tratando de causa interruptiva judicial, a paralisação prazal única a que alude o dispositivo legal diz respeito a cada tipo de pretensão. Assim, interrompida a prescrição no processo de conhecimento, uma única vez, não obsta que se venha a interromper, também a prescrição executiva, pelo despacho no processo de execução”. Direito Civil. Teoria Geral. Lúmen Júris. 3ª edição. Rio de Janeiro. 2005. p. 506. 22 THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. 3, Tomo II. Dos efeitos do negócio jurídico ao final do livro III. Rio de Janeiro. Forense. 2003. p. 255. 23 TEPEDINO. Gustavo. BARBOZA. Heloisa Helena. MORAES. Maria Celina Bodin de (coord.). Op., cit., p 380 24 Sobre discricionariedade judicial ver BANDEIRA DE ME LO, Celso Antônio. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. ed. 2. Malheiros: São Paulo. 2001 25 “entendemos que a interrupção feita fora do processo é que pode ser feita somente uma vez. Sendo assim, interrompida a prescrição no caso do inc. III, por protesto cambial, pode ser promovida a ação de execução, e, com a citação, será, novamente, interrompida a prescrição, e, no curso do processo, aplicar-se-á o parágrafo único do art. 202, segunda parte (“a prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do ultimo ato do processo para a interromper”); ou seja, a cada do processo interrompe-se novamente. (...) Por fim, deve-se acentuar que a única e exclusiva finalidade de ser interrompida uma prescrição, fora do âmbito de um processo, é para que, possivelmente, venha este a ser proposto. Se é Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes 365 assim, por certo, este é entendimento que deverá vir a ser aceito.” ARRUDA. Alvim. Da Prescrição Intercorrente. Prescrição no novo Código Civil: uma análise interdisciplinar. Mirna Cianci (coord.). São Paulo. Saraiva, 2005. p. 36. 26 Nesse sentido, assevera ARRUDA ALVIM: “Não se deve admitir a ocorrência de prescrição se não houver inércia do credor; e, minudeando mais, igualmente não deve ser havida como configurada prescrição intercorrente se não há inércia do credor e autor em processo de conhecimento ou em execução”. Op., cit., p.26. 27 A aplicação do art. 267, III deverá ocorrer em conjunto com o § 6º do art. 219 do Código Civil, haja vista ser uma das formas de dar ao réu condição de averiguar a ocorrência da interrupção do prazo prescricional. Essa interpretação sistemática dos artigos mencionados beneficia ao réu. 366 A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO Bruno Nova Silva1 Daniela Carvalho Portugal2 1 Formando da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e pesquisador voluntário do PIBIC 2006/2007. 2 Aluna do 6° semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora do PIBIC 2006/2007. Sumário: 1. Introdução 2. Aspectos Técnicos 3. Breve Contextualização Histórico-Política 4. Direito Penal de Emergência e o R D D 5. Inconstitucionalidade Material 6. Considerações Finais 7- Bibliografia Resumo: O presente texto consiste no resultado de um estudo acerca do regime disciplinar diferenciado, em que serão abordados os aspectos formais e materiais atinentes ao tema, bem como o contexto histórico que o envolve. Pretende-se, pois, tratar não só dos aspectos jurídicos, como também das implicações políticas e sociais relevantes ao assunto. Desta forma, o RDD será contextualizado com as diretrizes de política criminal adotadas no país, bem como com os sistemas de lei e ordem e de Direito Penal de Emergência que vêm resultando na gradativa flexibilização – ou mesmo supressão! – de direitos e garantias fundamentais caracterizadores do Estado brasileiro enquanto democrático. 1. Introdução A Lei n° 7.210/84, denominada Lei de Execução Penal (LEP), sofreu recente alteração pela edição da Lei n° 10.792/03, que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). À época da referia alteração, pensou-se tratar de meio eficaz para o combate à criminalidade crescente que figurava como responsável pela incrementação do forte temor social frente ao crime organizado. Neste sentido, serão analisados os gradativos fatores sociais e medidas institucionais que antecederam a instituição do RDD em nosso ordenamento jurídico, contextualizando-os com a atual 367 política de direito penal de emergência3. Desta forma, buscar-se-á a demonstração do mero efeito simbólico que marca tais medidas, em especial o RDD, frente a uma sociedade gravemente abalada pelo temor da violência social. O presente trabalho, portanto, tem o objetivo de discutir os dispositivos legais trazidos com a referida alteração, contrapondoos ao sistema jurídico vigente. Para tanto, dar-se-á enfoque aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo e a sua demasiada flexibilização frente a tais políticas de segurança pública. 2. Aspectos Técnicos Preliminarmente, cumpre ressaltar que o Regime Disciplinar Diferenciado, apesar de tal denominação, ainda não constitui regime autônomo de cumprimento de pena, ao menos quanto à acepção técnica do termo. Isto porque, conforme o quanto disposto no art. 33 do Código Penal brasileiro c/c art. 110 da LEP, tem-se como regimes para o cumprimento da pena a serem determinados pelo juiz quando da condenação do réu: fechado, semi-aberto ou aberto. Entretanto, já é demonstrada a intenção política em torná-lo um regime autônomo de cumprimento de pena, como evidencia o Projeto de lei do Senado n° 179 de 2005, que prevê a criação do regime penitenciário de segurança máxima. Assim, pode-se definir o RDD como um tratamento especial conferido, sem prejuízo da sanção penal, ao preso, seja ele provisório ou condenado, que cometa falta grave mediante prática de conduta prevista como crime doloso capaz de ocasionar subversão da ordem e disciplina internas. Cabe aqui, de início, antecipar a ofensa ao modelo garantista referente à possibilidade de submissão do preso provisório ao RDD, valendo o destaque da construção de Ferrajoli sobre as medidas cautelares: Naturalmente, a ausência do nexo entre pena e delito dissolve, em tais casos, inclusive, a garantia da legalidade, ademais dos 368 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado eventuais vínculos da jurisdicionariedade: a lei que estabelece os pressupostos da medida preventiva, com efeito, corresponde a uma norma em branco, quer dizer, a uma espécie de caixa vazia, preenchida em cada ocasião dos conteúdos mais arbitrários; o juízo, ao estar desvinculado de qualquer condição objetiva preexistente e informado por meros critérios de discricionariedade administrativa, degenera em procedimento policial de estigmatização moral, política ou social. 4 Outrossim, imperioso ressaltar que também estão igualmente sujeitos ao RDD os presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e segurança do estabelecimento penal e da sociedade ou sobre os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando, conforme dispõem os §§ 1° e 2° do art. 52 da LEP. Tal fato aproxima o modelo punitivo escolhido pelo Estado brasileiro do chamado “sistema de mera prevenção”, combatido por Ferrajoli: É evidente o caráter não igualitário, ademais de puramente decisionista, deste esquema de intervenção punitiva. De conformidade com ele, o direito e o processo penal se transformam de sistema de retribuição, dirigido a prevenir os fatos delituosos por meio da comprovação e da punição dos já ocorridos, em sistema de pura prevenção, dirigido a afrontar a mera suspeita de delitos cometidos, mas não provados, ou o mero perigo de delitos futuros.5 O interno submetido ao RDD será recolhido em cela individual, tendo direito à visitas semanais de duas pessoas, não contadas as crianças, com duração de duas horas. Terá, também, direito à saída da cela durante apenas duas horas diárias para banho de sol. Vale dizer que a submissão ao RDD tem duração máxima de trezentos e sessenta dias, podendo ser prorrogada por igual período em virtude de nova falta grave da mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada. Neste sentido, importante é recordar o quanto disposto na súmula 715 do STF, segundo a Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 369 qual os incidentes de execução da pena são contados com base no total das penas unificadas, e não do limite de trinta anos. Portanto, se um indivíduo fosse condenado a 200 anos, ele poderia passar até um sexto de tal condenação em RDD! Conforme verbera o art. 54 da supracitada lei, diferente do que ocorre com as demais sanções disciplinares às quais ficam sujeitos os internos, para a imposição ao RDD é necessário não mero ato motivado do diretor do estabelecimento carcerário, mas prévio e fundamentado despacho do juiz competente. Para tanto, caberá ao diretor ou a outra autoridade administrativa a elaboração de requerimento circunstanciado, que passará pela análise do presentante do Ministério Público e pela manifestação da defesa – a ser apresentada em um prazo máximo de quinze dias –, para só então ser decidida pela autoridade judiciária competente. Vale frisar, ainda, que há possibilidade de inclusão do interno no RDD em caráter provisório, desde que no interesse da disciplina e averiguação do fato, o que, no entanto, fica condicionado ao despacho do juiz competente e tem prazo máximo de dez dias a ser abatido quando da imposição definitiva. Importante esclarecer que também se aplica ao RDD o quanto disposto no art. 45 da LEP. Desta forma, fica vedada a aplicação de falta grave ou sanção disciplinar sem que haja expressa previsão legal ou regulamentar que a defina, bem como proibida a colocação em risco da integridade física e moral do detento, a alocação em cela escura e a aplicação de sanções coletivas. Ultrapassada a exposição do tratamento legal instituidor do RDD, cabe agora tecer alguns comentários acerca de tais disposições. Quando da determinação da amplitude da sujeição passiva ao RDD, o legislador fez uso da expressão “apresentem alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento penal ou 370 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado da sociedade”. Trata-se de flagrante violação à estrita legalidade ou taxatividade, já que, segundo tal princípio, é obrigatória a utilização de técnica legislativa idônea a excluir dispositivos arbitrários e discriminatórios que se refiram às pessoas e não a fatos. Com isso, cabe à lei prevê hipóteses que traduzam apenas comportamentos empíricos determinados para não incorrer no chamado “direito penal do autor”, severamente condenado por Ferrajoli: Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais perversas no esquema penal chamado tipo de autor, onde a hipótese normativa de desvio é simultaneamente “sem ação” e “sem fato ofensivo”. A lei, neste caso, não proíbe nem regula comportamentos, senão configura status subjetivos diretamente incrimináveis: não tem função reguladora, mas constitutiva dos pressupostos da pena; não é observável ou violável pela omissão ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente observada e violada por condições pessoais, conformes ou contrárias. 6 Tal técnica legislativa representa, ainda, violação à estrita jurisdicionalidade, já que exclui da hipótese acusatória os seus requisitos da refutabilidade e verificabilidade. Isto porque configurar “alto risco” consiste em mero juízo de valor, dotado assim de inteira subjetividade, o que, além de conferir indesejada margem de discricionariedade quando da aplicação de tal medida, impossibilita o exercício da ampla defesa e do contraditório, já que não se pode confrontar de maneira objetiva um juízo de valor. Outra expressão utilizada que merece ser analisada é “fundadas suspeitas”. Isto pois sua disposição acaba por ferir frontalmente o princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência. Como se admitir que, em um regime democrático garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo, uma lei faculte ao judiciário a restrição à liberdade de um indivíduo em tal nível por existir contra ele “fundadas suspeitas”?! Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 371 Conclui-se, portanto, que a previsão legal do Regime Disciplinar Diferenciado, da forma que está posta no nosso ordenamento jurídico, apresenta graves defeitos formais. Apega-se em conceitos fluidos, indeterminados, e elementos normativos do tipo, que conferem ampla margem de discricionariedade na aplicação dos seus dispositivos. Frise-se, por oportuno, que uma discricionariedade demasiada nada mais é senão um pressuposto para arbitrariedades! 3. Breve contextualização histórico-política A Lei de Execução Penal, quando editada, foi considerada uma lei a frente de seu tempo, pois, mesmo antes da promulgação da denominada Constituição “cidadã” de 1988, já previa uma série de direitos e garantias fundamentais, bem como princípios a serem seguidos no tratamento dispensado ao indivíduo apenado. O grande problema, à época, era a falta de estrutura do Estado que permitisse a garantia de uma efetividade dos dispositivos da supramencionada lei. Diante dessa situação, o Estado optou não por criar medidas político criminais de base que viabilizassem a aplicação de tais dispositivos, mas por suprimi-los de forma gradativa. Tal supressão configurou verdadeiro “atestado” de incompetência estatal frente ao combate à criminalidade, configurando flagrante ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social, aproximando mais o país do modelo totalitarista e, consequentemente, distanciando-o do suposto ideal democrático politicamente proclamado. O contexto de institucionalização do RDD está intimamente ligado à evolução do crime organizado no país, bem como ao espaço que se fez ocupar de tal assunto na mídia brasileira. A crescente violência urbana e o forte temor social “legitimaram” a 372 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado flexibilização de direitos e garantias consagrados não só pela LEP como também pela Constituição Federal de 1988. Pode-se afirmar, inclusive, que a intenção política já era manifesta neste sentido, já que é muito mais fácil resumir a política criminal à construção de presídios em lugar de investir em programas sociais de base. Faltava, apenas, uma justificativa politicamente idônea para se conquistar o massificado apoio popular em prol do sistema de lei e ordem que passam a defender e inaugurar. Neste sentido, para a conquista do clamor social – e sua conseqüente manipulação – faltava tão somente a existência de um “vilão”, um “inimigo do Estado”, rótulo para o qual os presidiários, sobretudo o traficante serviram muito bem. Escolhido o “bode expiatório”, ficaria mais fácil isentar o dito “cidadão de bem” de culpa pelas mazelas sociais que influenciam, direta ou indiretamente, no aumento da criminalidade e persuadi-lo a aderir à política de tolerância zero. O fato mais marcante propulsor da supressão de direitos e garantias foi o surgimento do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção de presidiários no estado de São Paulo. Em 1985, quando criado o Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, foram construídas 160 celas separadas, utilizadas no isolamento dos internos considerados perigosos. Já naquela época, tal segregação revoltava os presos, que se organizaram, fazendo surgir, em 1993, o PCC. A partir de então, tal facção criminosa comandou uma série de acontecimentos, dentre os quais é possível destacar duas rebeliões como fatores decisivos no endurecimento penal e na busca por mecanismos eficazes para evitar semelhantes situações. O primeiro fato marcante, neste contexto, foi o grave motim na Casa de Custódia em Taubaté, no ano de 2000, em que houve a destruição completa da penitenciária, bem como a morte de nove internos, sendo quatro decapitados. Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 373 O segundo evento, considerado a maior rebelião do país até então, ocorreu em 2001 após o retorno dos “presos perigosos” para a Casa de Custódia, quando findada a sua reforma. Tal rebelião envolveu 25 presídios e 4 cadeias do estado de São Paulo. Este último fato gerou grave repercussão social, culminando na edição da Resolução n° 26 de 2001 pelo então Secretário da Administração Penitenciária (SAP) do estado de São Paulo Nagashi Furukawa, que instituiu o RDD no mesmo ano. A grande polêmica à época versava sobre a ilegalidade de tal resolução, tanto no seu aspecto material, posto que contrariava os dispositivos da LEP, quanto no seu aspecto formal, já que violava a separação de Poderes e a competência para a edição de leis que pertence, exclusivamente, ao Poder Legislativo. Neste sentido, houve diversas manifestações jurisprudenciais pela inconstitucionalidade de tal dispositivo, dentre as quais merece destaque a decisão proferida pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo quando do julgamento do Habeas Corpus relativo ao processo de n° 978.305.3/0-00. O referido HC tinha como paciente Marcos Willians Herbas Camacho, vulgo “Marcola”, e como relator o desembargador Borges Pereira, no qual seque trecho do voto: [...] Trata-se, no entanto, de medida inconstitucional, como se sustenta a seguir: O chamado RDD (Regime disciplinar diferenciado) é uma aberração jurídica que demonstra à saciedade como o legislador ordinário, no afã de tentar equacionar o problema do crime organizado, deixou de contemplar os mais simples princípios constitucionais em vigor. Já no seu nascimento, a medida ofende mortalmente a Constituição Federal, desde que a resolução SAP n° 026/01, que cria o regime disciplinar diferenciado, é ato de secretário de estado, membro do Poder Executivo, a que não cabe legislar sobre matéria penal, nem tampouco penitenciária, segundo a 374 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado Constituição Federal (arts. 22, I e 24, I). Assim, a inexistência de procedimento legislativo e da necessária edição de lei federal, é que deveria bastar para demonstrar a inviabilidade de sua efetivação, configurando evidente constrangimento ilegal. Solucionando a polêmica apenas em seu aspecto formal, foi editada, dois anos após a SAP n° 026/01, a lei n° 10.792 de 2003, que altera a LEP e institui o RDD. 4. Direito Penal de emergência e o RDD Os discursos têm o efeito de centrar a atenção sobre certos fenômenos e seu silêncio em relação a outros os condena à ignorância ou à indiferença. Isso é o que acontece com a verdadeira dimensão política do poder punitivo, que não se radica no exercício repressivo-seletivo da criminalização secundária individualizante, mas no exercício configuradr-positivo da vigilância, cujo potencial controlador é imenso em comparação com a escassa capacidade operativa da primeira.7 A violência urbana e sua respectiva exploração pela mídia, consoante já mencionado, geram um intenso temor pela falta de segurança pública, que repercute no clamor social por medidas céleres e enérgicas por parte do Estado no combate à criminalidade. Mas a velocidade da notícia e a própria dinâmica de uma sociedade espantosamente acelerada são completamente diferentes da velocidade do processo, ou seja, existe um tempo do direito que está completamente desvinculado do tempo da sociedade. E o Direito jamais será capaz de dar soluções à velocidade da luz. Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com a velocidade da virtualidade não quer esperar pelo processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade de uma imediata punição. Assim querem o mercado (que não pode esperar, pois o tempo é dinheiro) e a sociedade (que não quer esperar, pois está acostumada ao instantâneo).8 Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 375 Neste contexto, os poderes políticos encontram terreno fértil para a adoção de medidas emergenciais, com forte valor simbólico frente a uma sociedade amedrontada e, por isso, de fácil manipulação, como é o caso do RDD. O simbolismo decorre da falsa, porém tranqüilizante, idéia de que esta nova política é eficaz: raciocínio construído e propagado pelos meios de comunicação, que exploram lucrativamente o temor social e manipulam a opinião pública. Deflagra-se um processo de fobia generalizada em que está presente não só o medo concreto decorrente de uma prática delitiva consumada, como também o pânico diante da possibilidade constante da agressão. Desenvolvese, portanto, a perseguição à figura do “bode expiatório”, “inimigo do estado”, o que contribui para o fortalecimento da segregação e da marginalização social. A legislação penal de emergência surge no momento em que o Estado se utiliza de medidas de reafirmação da sua soberania no combate a situações excepcionalmente graves, capazes de abalar a ordem e segurança do país, ocasionando forte temor social. Esta resposta estatal, em princípio, seria legítima e necessária, não fossem as conseqüências que, na prática, são extraídas de tal política. As intervenções de urgência parecem sempre chegar ao mesmo tempo demasiado cedo e demasiado tarde: demasiado cedo porque o tratamento aplicado é sempre superficial; demasiado tarde porque, sem uma inversão de lógica, o mal não parou de se propagar.9 Essa situação excepcional acaba por se perpetuar e tais medidas são incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio, dando vez à institucionalização de um “Direito Penal de Emergência”. Significa, então, que o Estado acaba por “atestar” a sua incapacidade de restaurar o ambiente de normalidade, e a situação supostamente excepcional se torna regra. Assim, legitima-se a quebra de direitos 376 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado e garantias fundamentais constitucionalmente consagrados, ferindo o modelo de Direito Penal garantista, preconizado por Luigi Ferrajoli. Conclui-se, portanto, que o RDD é mais um fruto desta legiferação de emergência e, como tal, possui caráter meramente simbólico, não constituindo medida idônea ao verdadeiro enfrentamento da problemática da criminalidade, até porque é manifesto que tal fenômeno vai muito além de um mera e efêmera situação de anormalidade. Desta forma, mais uma vez o Estado cede às pressões da mídia e, consequentemente, da sociedade, dispensando tratamento superficial a um assunto de tamanha gravidade. Elege-se figuras, tais como “Fernandinho Beira-Mar” e “Marcola” como “bodes expiatórios”, atribuindo-lhes a falsa responsabilidade pela violência urbana. Assim, utiliza-se do intolerante e cruel tratamento a tais “líderes”, dando-lhes publicidade essencialmente comercial e politiqueira, com o mero fim de representatividade da atividade estatal de combate à violência. 5. Inconstitucionalidade material O RDD viola flagrantemente os direitos e garantias fundamentais consagrados pelo nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, observa-se não só a afronta aos preceitos expressamente dispostos na Constituição de 1988, como também aos princípios implícitos e aos direitos e garantias consagrados em tratados internacionais em que o país é signatário. Cabe aqui uma breve digressão com o objetivo de distinguir as supracitadas vertentes assumidas pelos direitos e garantias fundamentais no nosso ordenamento jurídico. Primeiramente, existem aqueles devidamente expressos em nossa Magna Carta, elencados não só em seu art. 5°, como também ao longo de seu texto. Os princípios implícitos, por sua vez, têm o seu conteúdo extraído da interpretação sistemática dos dispositivos atinentes Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 377 às regras de garantias. Por fim, seguindo a moderna orientação de Direito Internacional Público, os direitos inscritos em tratados internacionais ocupariam mesma posição hierárquica – ou até superior – em relação aos preceitos constitucionais expressos. O que vem ocorrendo, em termos práticos, é a manifestação da atual tendência a interpretar a Constituição à luz dos textos infraconstitucionais. É verdade que um princípio, quando isoladamente considerado, traduz diversas possibilidades interpretativas, dentre as quais caberá ao Estado a escolha daquela que irá tutelar. Entretanto, ao ser inserido em um sistema jurídico harmônico, tal princípio tem suas possibilidades de interpretação naturalmente reduzidas, uma vez que o todo do qual ele é parte limita a escolha do significado correspondente exato a ser tutelado. Não fosse esta busca de unidade e coerência, impossível seria falar em sistema harmônico. A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum.10 Desta forma, o interesse pela segurança pública não pode ser visto de outra forma senão em conjunto com os demais princípios garantistas consagrados pela Constituição “cidadã” de 1988. A crescente legiferação de emergência, no afã de prever situações rápidas – embora ineficazes – de combate a problemas estruturais, para a conquista de apoio político, acaba por desnaturar o modelo garantista e democrático proposto, ao menos em tese, pela Magna Carta. Esta carência de diretrizes e valores agrava a situação de temor social, facilitando a manipulação do cidadão para o apoio 378 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado de medidas de urgência, das quais o RDD é grande exemplo, flagrantemente inconstitucionais. Sob uma perspectiva sistemática, o RDD foge à construção de um modelo de Estado garantidor, conforme restará demonstrado a seguir, ignorando a construção feita por Ferrajoli: Cada uma das implicações deônticas – ou princípios – de que se compõe todo modelo de direito penal enuncia, portanto, uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da pena. Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária, na ausência da qual não está permitido ou obrigado punir. 11 O RDD viola o princípio do non bis in idem, que, apesar de não ser expressamente previsto na Constituição, é necessário à própria legitimação de um Estado Democrático de Direito. Isto porque o envolvimento em quadrilha ou bando, além de ser previsto como hipótese de incidência do RDD, também constitui crime autônomo, tipificado no art. 288 do nosso Código Penal em vigor. O princípio da dignidade da pessoa humana, disposto já no art. 1°, III, combinado com a leitura do art. 5°, XLIX, ambos da Carta Constitucional pátria também resta desrespeitado. A ofensa à integridade física e moral do preso submetido ao RDD é alarmante, pois o excessivo confinamento consiste em condição capaz de desencadear um processo de atrofia muscular, bem como o acometimento do interno a um estado de depressão profunda. Observa-se, ainda, a ofensa ao princípio da humanização das penas, previsto não só na Constituição Federal, em seu art. 5°, III, como também na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), em seu art. 5° n° 2, segundo o qual “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 379 privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”. O RDD agride, ainda, os princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência, este último previsto no art. 5°, LVII, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Isto ocorre não só porque o RDD pode ser aplicado ao preso provisório, como também pelo fato de as hipóteses de incidência estarem calcadas em conceitos valorativos e ambíguos, tais como “alto risco” e “fundado temor”, o que enseja demasiada discricionariedade quando da aplicação da norma em detrimento do preso. Desta forma, a mera suspeita justifica, de forma arbitrária e nefasta, a inclusão de um indivíduo em condições de confinamento subumanas. Neste contexto, a utilização legal de termos imprecisos e repletos de subjetividade revela-se, ainda, uma afronta direta ao princípio da legalidade estrita vigente no direito penal pátrio, conforme dispõe o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal. Vale aqui mencionar as duas condições intrínsecas a tal princípio, quais sejam: “o caráter formal ou legal do critério de definição do desvio e o caráter empírico ou fático das hipóteses de desvio legalmente definidas” 12. Assim, tem-se atendida apenas a primeira condição, já que se encontra legalizada tal aberração jurídica, “apenas” não restando preenchida a segunda condição, o que decorre da utilização de figuras subjetivas intrinsecamente ligadas ao autor, e não a qualquer fato. Mais uma vez, mostra-se indispensável a doutrina de Ferrajoli: O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter “construtivo” e não “regulamentar’ daquilo que é punível: como 380 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os “desocupados” e os “vagabundos”, os “propensos a delinqüir”, os “dedicados a tráficos ilícitos”, os “socialmente perigosos” e outros semelhantes.13 (grifo nosso). Também resta violado o princípio da proporcionalidade, já que não há base legal que indique a dosimetria adequada à aplicação da sanção em virtude de cada uma das hipóteses de submissão do preso ao RDD, nem mesmo em relação à possibilidade prevista no caput do art. 52 da LEP, que é definida com base em critérios razoavelmente objetivos. Neste sentido, sepulta-se, também, o quanto disposto no art. 7° n° 3 do Pacto de San José da Costa Rica, uma vez que a falta de critério firmado na aplicação da sanção acaba por submeter o preso a encarceramento arbitrário. O princípio da individualização da pena, previsto no art. 5° XLVI da Magna Carta, é ofendido com a aplicação do RDD. A escolha do tempo de duração do castigo feita pelo juiz é meramente casuística, inexistindo critérios objetivos para a sua respectiva aplicação com base nos diferentes graus de reprovabilidade sobre o fato. Nada mais elementar, posto que não se está tratando de diferenciados graus de reprovabilidade da conduta, mas do autor – hipótese em que resta impossível a delimitação de critérios concretos de dosimetria, já que se ancora em valoração puramente subjetiva! O resultado disso é aplicação da mesma punição aos mais diversos presos, ainda que por motivos absolutamente distintos. Vale dizer, ainda, que o preso em RDD tem violado o seu direito à informação, fundamentado pelo art. 5°, XIV da Constituição Federal e pelo art. 39 das Regras mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros. O confinamento impossibilita o contato do interno com a realidade que o cerca, incrementando a alienação do preso – refletindo o interesse político do Estado Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 381 no isolamento, sobretudo de líderes de organizações criminosas, como meio de esconder em uma pequena cela de prisão a sua vasta e evidente incompetência frente o combate às desigualdades sociais e suas conseqüências. Diante disso, já não se pode mais falar em princípio da função ressocializadora da pena, uma vez que o art. 1° da LEP, diante da atual política penal da intolerância, configura texto morto, desprovido de qualquer sentido prático. O discurso da lei e da ordem conduz a que aqueles que não possuem capacidade para estar no jogo sejam detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitência, pois é mais barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de consumidor, através de políticas públicas de inserção social. Trata-se de uma conseqüência (penal) do afastamento do Estado do setor social, onde um menos Estado-providência necessita de um Estado (mais) Penal para conter a decorrente marginalização social. É o que WACQUANT sintetiza em supressão do Estado econômico, enfraquecimento do Estado Social, fortalecimento e glorificação do Estado penal.14 Por fim, percebe-se que, ao contrário do que dispõe o art. 5° § 1° da CF-88, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais não têm, em verdade, aplicação imediata, aliás, sequer têm qualquer aplicação prática: seria hipocrisia afirmar o contrário. Caso os princípios normativos realmente guardassem relevância e respeito, ou mesmo real eficácia normativa em nosso ordenamento, jamais seria permitido o ingresso ou a permanência do instituto do Regime Disciplinar Diferenciado no sistema jurídico pátrio. Com efeito, a segurança pública não é um assunto a ser tratado de forma maniqueísta. Há quase que uma mitificação do chamado “cidadão de bem” em contraposição à demonização do indivíduo apenado. Frisa-se tal expressão com o intuito de lembrar que as jaulas do cárcere não abrigam monstros, mas pessoas. A 382 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado sociedade “de bem” frequentemente esquece deste “detalhe” porque não quer se sentir responsável pela incrementação da miséria humana por intermédio do cárcere. 6. Considerações finais Só o jurista consciente da insuficiência do monólogo jurídico está apto a compreender a complexidade característica da sociedade contemporânea. Para tanto, deve ter humildade científica suficiente para socorre-se de leituras de sociologia, antropologia, história, psiquiatria, etc. sem falar no lastro filosófico. Não há espaço para o profissional alienado, porque ele ali-é-nada.15 (grifo nosso) Diante do quanto exposto, conclui-se que o Regime Disciplinar Diferenciado não pode ser abrigado em nosso sistema jurídico, uma vez que viola diretamente os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988. Consiste, pois, em verdadeiro retrocesso, uma vez que atropela o modelo garantista preconizado por Ferrajoli, aproximando o Estado brasileiro de um modelo totalitarista e autoritário: [...] reprimem não tanto ou não apenas determinados comportamentos, senão atitudes ou situações de imoralidade, de perigosidade ou de hostilidade ao ordenamento, para além de sua exteriorização em manifestações delituosas concretas. Entretanto, os sistemas e as normas “sem ofensa” prescindem da lesão de bens jurídicos concretos, ou reprimindo antecipadamente a simples e freqüente colocação abstrata em perigo, ou mesmo punindo puramente o desvalor social ou político da ação, para além de qualquer função penal de tutela.16 A mídia exerce, junto ao Estado, grande parcela de culpa pelo processo de demonização do indivíduo apenado. Explora lucrativamente o medo da sociedade mediante a incessante e sensacionalista exibição da violência urbana. A finalidade dos meios de comunicação em massa, neste sentido, não tem como o Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 383 objetivo principal a difusão da informação ao seu público alvo, uma vez que estes manipulam da forma que lhes for mais conveniente (política e economicamente) a informação que será vendida à sociedade. Vale dizer, ainda, que o famigerado RDD não constitui meio idôneo de combate à criminalidade, uma vez que não é capaz de reduzir os altos índices de violência urbana ou mesmo reincidência penal. Não é com base em uma política de intolerância que o Estado conseguirá solucionar tal problemática. Impossível pensar em uma política de combate ao crime desprovida de um programa social que objetive (e viabilize, por óbvio) a efetiva melhoria de qualidade de vida da grande parcela miserável da população brasileira. O confinamento desencadeia um ciclo vicioso de estigmatização social, uma vez que aquele indivíduo privado do contato com o mundo exterior retornará à sociedade e o crime, para ele, funcionará como uma espécie de “reação social”, uma vez que também é vítima da falta de educação, de oportunidade e da descriminação pelo dito “cidadão de bem”. É cediço que o ser humano possui como importante característica a capacidade de se habituar ao meio em que vive. Mesmo não desconsiderando as imperfeições intrínsecas aos indivíduos, pode-se afirmar, hipoteticamente, que qualquer indivíduo “puro”, livre das experiências sociais com as quais, diariamente, os brasileiros convivem, entraria em “choque”, em estado de perplexidade diante da mazelas que circundam as cidades brasileiras. Tal espanto, entretanto, apenas dura o curto espaço de tempo em que o indivíduo precisa para se habituar e, por conseqüência, acomodar-se a tal realidade. É o que ocorre, pois, com a gradual quebra dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, rotineiramente intensificada, maliciosamente inserida na sociedade. 384 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado A falência da pena de prisão, neste diapasão, é ainda mais gritante quando submetido o preso ao RDD, pois é aqui que o processo de demonização é levado ao extremo, já que são somados os esforços do Estado e da Mídia para rotular aquele indivíduo como “inimigo do Estado”. Essa constatação frente à falência do sistema carcerário, a muito declarada por diversos estudiosos, deixa claro que a instituição do Regime Disciplinar Diferenciado consiste verdadeira “contra-mão” histórica! Por fim, cabe ao Estado seguir as diretrizes fixadas (expressa e implicitamente) na Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacionais – sobretudo os Tratados Internacionais de Direitos Humanos e das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros – e expulsar RDD do sistema jurídico pátrio. Entretanto, frente à constante omissão e manifesto desinteresse político do Estado em transformar tal realidade e seguir as supracitadas orientações, não se pode perder de vista que, além desta habilidade se habituar, possui, também, o ser humano a capacidade de modificar o meio em que vive! É neste último sentido que deve se direcionar a atitude do jurista, do cidadão, numa postura de efetivação substancial dos direitos e garantias fundamentais, por meio de políticas sociais de base, e não mediante o uso do direito penal como vassoura a esconder a sujeira debaixo do tapete. 7. Referências BARATA, Alessandro. “Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal. Lineamentos para uma teoria do bem jurídico”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 2, n° 5, 1994. CHOUKR, Fauzi. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. DEL OMO, Rosa. A América Latina e sua Criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2004. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Tradução: Luiz Flávio Gomes et al. São Paulo: RT, 2002. Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 385 HULSMAN, Louck; CELIS, Jacqueline. Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Luam. JACOBS, Günther e CANCIO MELIA, Manuel. Derecho Penal Del Enemigo. Madri: Civitas Ediciones, 2003. LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da instrumentalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. MOCCIA, Sergio. La perenne emergenza. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997. PRITTWITZ, Cornelius. “O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo: tendências atuais em Direito Penal e política criminal”. In: Revista do IBCCrim. São Paulo, mar./ abr. de 2004, n°47. SILVA, SANCHEZ, Jesus Maria. A Expansão do Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a Nova Gestão da Miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003. YOU N G, Jock. A Sociedade Excludente: Exclusão S ocial, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de janeiro: Renavan, 2003. 8. Notas 3 MOCCIA, Sergio. La perenne emergenza. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997. 4 eoria Geral do Garantismo P enal FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – T Teoria Penal enal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 82. 5 Id., Ibid., p. 81-82. 6 FERRAJOLI, op. cit., p. 80-81. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. enal Brasileiro: primeiro volume – T eoria Geral do Direito P enal. Rio de Penal Teoria Penal. Direito P janeiro: Renavan, 2003, p. 69. 386 A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado 8 rocesso P enal: F undamentos da LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao P Processo Penal: Fundamentos instrumentalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 28. 9 empo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999, p. 356 apud LOPES OST, François. O T Tempo JUNIOR, Aury. Op cit., p. 29. 10 Id., Ibid., p. 40. 11 FERRAJOLI, op. cit.,p. 74. 12 FERRAJOLI, op. cit.,p. 30. 13 FERRAJOLI, op. cit.,p. 31. 14 LOPES JUNIOR, Aury. Op cit., p. 13. 15 LOPES JUNIOR, Aury. Op cit., p. 11-12. 16 FERRAJOLI, op. cit.,p. 80. Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal 387 O CONCEITO DE “DÍVIDA” EMPREGADO NO INCISO LXVII DO ART. 5.º DA CF/88 E A PRISÃO CIVIL COMO MEDIDA COERCITIVA INOMINADA Bruno Garcia Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de dívida; 2.1. Breves considerações; 2.2. Estudo semântico da expressão; 2.3. Conceito jurídico; 2.3.1. Dívida lato sensu (“Tese restritiva da prisão civil”); 2.3.2. Dívida strictu sensu (“Tese ampliativa da prisão civil”); 2.3.3. Nossa opinião. Análise do texto do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988; 3. Conclusão. Resumo: Através do presente estudo, tentaremos romper com o paradigma que tem imperado no nosso sistema jurídico de que só seria a utilização da prisão civil naquelas expressamente autorizadas pelo inciso LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988. Nesse esteio, mostraremos que a prisão civil - se bem utilizada - é medida bastante útil para a concretização do direito fundamental à efetividade tão em voga atualmente, além de outros igualmente fundamentais tuteláveis no caso concreto. 1. Introdução Inicialmente, cumpre esclarecer o porquê de se estar fazendo um estudo do conceito da palavra “dívida” empregado no inciso LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988. Ora, a justificativa pauta-se no fato de o aludido dispositivo vedar a aplicação do instituto da prisão civil por dívida, salvo nos casos de depositário infiel e inadimplemento de prestação alimentar. Desse modo, tendo o legislador constituinte dado conteúdo à prisão civil que seria vedada, ou seja, por ter tido ele o cuidado de especificar qual tipo de prisão civil estaria vedada, cumpre que se estude com não menor zelo qual, definitivamente, é o conceito de dívida ali empregado. Entendemos, pois, que, caso não fosse importante tal trabalho interpretativo, o poder constituinte originário apenas teria simplesmente redigido tal dispositivo sem dar qualquer 389 conteúdo à vedação da prisão civil, excluindo do texto a expressão “por dívida”. Incontroverso, pois, que relevante é o trabalho interpretativo ora proposto. Com essa análise, tentaremos romper com o paradigma que tem imperado no nosso sistema jurídico de que só seria a utilização da prisão civil naquelas expressamente autorizadas pelo inciso LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988. Esse entendimento – como já dito - conduz a uma inoperância da expressão dívida empregada como qualidade da prisão civil que estaria vedada pelo mencionado dispositivo. Nesse esteio, mostraremos que a prisão civil - se bem utilizada - é medida bastante útil para a concretização do direito fundamental à efetividade tão em voga atualmente, além de outros igualmente fundamentais tuteláveis no caso concreto. Contudo, para coibir possíveis arbitrariedades de magistrados, defenderemos o estabelecimento de rígidos critérios para adoção de tal medida, sempre atentos à regra da proporcionalidade e à ponderação dos direitos fundamentais envolvidos no caso concreto, além da operância de um eficaz sistema de controle para os excessos porventura cometidos. 2. Conceito de dívida 2.1. Breves considerações Para que seja apreendido o conceito de dívida de modo legítimo, é mister que se faça uma análise do uso comum da palavra pelos cidadãos brasileiros, os jurisdicionados submetidos à ordem constitucional posta. Embora tal método não seja apto a deflagrar o conceito jurídico da expressão dívida logo no seu início, confere a legitimidade necessária à correta interpretação a ser dada ao final. Pois bem, geralmente, o cidadão comum brasileiro, leigo às minúcias jurídicas, conceitua vulgarmente dívida como sendo tudo aquilo que é devido por alguém a outro alguém, inclusive favores, 390 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... fugindo-se completamente do conceito jurídico de tal palavra, conforme será demonstrado adiante. 2.2. Estudo semântico da expressão Segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio, a palavra “dívida” tem a sua origem no latim debita (devida), que significa aquilo que se deve, obrigação, dever.1 Doutra parte, cumpre também transcrever a definição dada no site jurídico “Índice Fundamental do Direito”: Do latim debita, ‘devida’ - subentende-se quantia. S. f. 1. Aquilo que se deve; 2. Obrigação, dever.2 (grifos editados) Feita esse adendo acerca da etimologia da palavra dívida, necessária se faz a análise do conceito jurídico da expressão, ou seja, que valores os doutrinadores do direito tem atribuído à palavra, para que daí se possa extrair a real vontade da norma constitucional contida no inciso LXVII, do art. 5.º da Carta Suprema Brasileira de 1988. É exatamente isso que será feito adiante. 2.3. Conceito jurídico A doutrina brasileira diverge bastante acerca do conceito jurídico da palavra dívida aplicada no inciso LXVII do art. 5.º da CF/88, havendo doutrinadores que defendem que ela deve ser interpretada ampliativamente, em benefício da garantia da liberdade e outros que pregam a interpretação restritiva da expressão dívida, favorecendo assim a sobrepujança do direito fundamental à tutela executiva. Esses entendimentos lastreiam, respectivamente, a tese restritiva da prisão civil e a tese ampliativa da prisão civil. Passemos, então, aos seus exames detidos. 2.3.1. Dívida lato sensu (“Tese restritiva da prisão civil”) O conceito jurídico de dívida defendido pelos doutrinadores adeptos dessa corrente é aquele no sentido de abranger toda e qualquer obrigação civil devida por alguém a outro alguém. Esse Bruno Garcia 391 entendimento, portanto, confere um conceito mais amplo da expressão dívida, envolvendo assim não só as obrigações pecuniárias, mas também as obrigações de fazer, não-fazer e dar coisa diversa de dinheiro. Nesse esteio, é de se destacar o papel do professor Eduardo Talamini que ensina o seguinte: Relega-se a “prisão civil” – a constrição da liberdade como medida processual civil coercitiva, meio de “execução indireta” – à excepcionalidade. Fora da exceção estabelecida no próprio dispositivo constitucional, a prisão só poderá ser utilizada como “pena” propriamente dita, sanção para condutas tipificadas como crimes (ou, quando menos, “transgressões militares” – art. 5º, LXI) – e desde que observadas todas as garantias constitucionais, penais e processuais penais (art. 5º, XXXIX, LX, XLV, LIII, LIV, LV, LVII, LXI, LXV, LXVI etc.).3 O professor Eduardo Talamini argumenta ainda que caso a vedação da prisão civil constante no art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal de 1988 se referisse apenas às dívidas pecuniárias, como se explicaria o fato de ter o texto ressalvado da regra geral uma obrigação não pecuniária como a prisão por depositário infiel? Cumpre, pois, transcrever o trecho no qual o autor trata do assunto: Autorizada doutrina sustenta que a Constituição proibiria apenas a prisão “por dívida”, no sentido de inadimplemento de prestação pecuniária. O emprego da prisão civil como mecanismo processual coercitivo, para resguardar a autoridade jurisdicional, não encontraria nenhum óbice. Em outras palavras, ninguém poderia sofrer prisão civil, por dever uma quantia; mas nada impediria a prisão civil, em todo e qualquer caso, daquele que desobedecesse a uma ordem do juiz. Houve até quem pretendesse que a prisão civil estaria entre as medidas atípicas que o juiz pode adotar mesmo de ofício para efetivar a tutela específica prevista no novo art. 461 do Código de Processo Civil (§ 5º do art. 461). 392 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... Mas o argumento, data venia, não procede. Se a regra geral fosse essa, como explicar que uma das duas exceções previstas na norma constitucional – a do depositário infiel – não envolve prisão por dívida pecuniária? Afinal, a prisão civil do depositário infiel funciona (ou funcionava, enquanto cabível) precisamente como mecanismo de preservação da autoridade do juiz. A resposta não pode ser outra: o preceito constitucional consagrou essa hipótese como exceção justamente porque a regra geral nele contida é a vedação de qualquer prisão civil. Então, para que se compreenda o exato alcance da regra geral, tem-se de cotejá-la com as exceções.4 A adoção desse conceito ampliativo da expressão dívida, abrangendo todas as obrigações civis, sustenta a tese restritiva da prisão civil como medida coercitiva, de modo que a vedação constitucional do art. 5º, inciso LXVII atingiria inclusive as obrigações de fazer, não-fazer e dar coisa distinta de dinheiro, do que se conclui logicamente que o poder geral de efetivação conferido ao juiz pelo § 5º do art. 461 do Código de Processo Civil não autorizaria a aplicação da prisão civil como meio de coerção inominado para efetivação da tutela específica. Outro doutrinador que adere a esta corrente é o professor Amendoeira Jr., cujo entendimento ora se transcreve: Medidas como essas poderão ser até tachadas de radicais, mas o próprio obrigado não terá deixado alternativas ao juiz. Para nós, a pressão psicológica que o juiz pode legitimamente dispor consistirá apenas em impor ou exacerbar astreintes razoavelmente proporcionadas e a serem devidas em caso de o obrigado continuar desobedecendo depois de decorrido o prazo fixado; ou em desencadear outras medidas necessárias que, caso a caso, sejam adequadas, suficientes e razoavelmente proporcionais. Aliás, é importante que a intensidade da pressão não seja total e abrupta de início, devendo ser aumentada na medida em que a desobediência se arrasta pelo tempo e culminando com a decisão de renunciar à esperança de obter o cumprimento voluntário – impondo-se então a medida Bruno Garcia 393 equivalente necessária a obter o resultado desejado. Isso é mais do que suficiente para evitar que o juiz tenha que se resignar com a reiterada desobediência da parte, o que equivaleria a exercer o poder estatal pela metade. Mas daí ao permissivo da prisão do devedor, o passo é muito grande e certamente inconstitucional em nosso sentir. Do mesmo que demonstramos que há um incremento histórico dos poderes do juiz, daí a defesa dessa linha, também é possível demonstrar, por outro lado, que sempre houve uma tendência histórica em se reduzir ou deixar de se admitir a prisão civil. Mais do que isso, o próprio direito penal de forma cada vez mais radical vem restringindo a aplicação das penas restritivas de liberdade e buscando formas alternativas para o ilícito penal, como ainda a descriminalização e a despenalização. Daí, então, de se perguntar: como seria de se admitir o Contempt of Court em toda a sua extensão no Brasil? Não seria, mesmo porque, diferentemente do que entendem ADA PELEGRINI GRINOVER e KAZUO WATANABE, entendemos que falar em pressão nestes casos levaria a se infringir o dispositivo constitucional.5 (grifos editados) Nesse sentido, também o professor Antônio Carlos de Araújo Cintra: Lembre-se, a propósito, que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (Constituição Federal, art. 5.º, inciso LXVII).6 A crítica feita em torno desse entendimento é que tal corrente ignora totalmente qualquer trabalho de ponderação de normas jusfundamentais conflitantes no sentido de possibilitar, em certos casos, a utilização da prisão civil como medida coercitiva apta a compelir o devedor ao cumprimento de uma decisão que porventura tutele um outro direito fundamental, cujo descumprimento conduziria ao total desrespeito a norma(s) igualmente jusfundamental(is). Os doutrinadores adeptos a esta corrente, pois, acabam por, inconscientemente, privilegiar o direito fundamental à liberdade em detrimento de quaisquer outros direitos fundamentais. Reside aí, pois, o equívoco dessa parte da doutrina. 394 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... 2.3.2. Dívida strictu sensu (“Tese ampliativa da prisão civil”) Outra parcela da doutrina interpreta a expressão dívida, constante no art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal de 1988, no seu sentido estrito, do que se faz concluir que a vedação constitucional do mencionado dispositivo envolveria apenas as obrigações pecuniárias, aquelas de conteúdo patrimonial. É a tese ampliativa da prisão civil. Esta corrente defende que não teria sido por acaso que o legislador constituinte fez questão de qualificar a prisão civil que seria vedada, fazendo constar no texto que “não haverá prisão civil por dívida”. Assim, ainda de acordo com esse pensamento, contra-argumentando a idéia dos doutrinadores adeptos da tese restritiva da prisão civil, a expressa consignação das exceções à vedação constitucional do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição, teria o único objetivo de enfatizar a possibilidade de prisão naqueles casos (de depositário infiel e débito alimentar). Nesse sentido é o entendimento dos professores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart: A visualização da prisão civil como meio de execução – meio de coerção indireta, assim como a multa –, exige a análise do art. 5.º, LXVII, da Constituição Federal, que assim dispõe: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Esta norma proíbe a prisão civil por descumprimento de obrigação que dependa, para seu adimplemento, da disposição de dinheiro, podendo ser dito, neste sentido, que tal norma proibiu a prisão por “dívidas pecuniárias”. As hipóteses do depositário infiel e a do devedor de alimentos possuem características próprias, as quais conduziram a Constituição a traçá-las como exceções. Isto apenas para deixar evidenciada a possibilidade de prisão no caso de depositário infiel e de não pagamento de alimentos. Bruno Garcia 395 É certo que o débito alimentar não tem origem em obrigação, mas constitui dever legal com repercussão não-patrimonial e, assim, não pode ser comparado a uma simples dívida pecuniária. Mas a Constituição se preocupou em deixar clara a possibilidade de se conferir tratamento diferenciado ao crédito alimentar e, por esta razão, excepcionou a possibilidade de prisão do devedor de alimentos. Portanto, a intenção da Constituição, ao estabelecer as referidas exceções, foi apenas evidenciar que, em tais casos, a prisão é possível. Caso o objetivo da norma fosse o de proibir toda e qualquer prisão, com exceção dos casos do devedor de alimentos e do depositário infiel, não haveria com explicar a razão pela qual deu conteúdo à prisão civil, dizendo que “não haverá prisão por dívida”. É pouco mais do que evidente que a norma desejou proibir uma determinada espécie de prisão civil, e não toda e qualquer prisão civil. O que importa saber, assim, é a espécie de prisão civil que foi vedada. Se não há como fugir da idéia de que foi proibida somente uma espécie de prisão civil, e não toda e qualquer prisão civil, a prisão vedada somente pode ser a prisão por “débito”.7 (grifos editados) Outro renomado autor que adere à “tese ampliativa” da prisão civil é o professor Marcelo Lima Guerra: Logo, em defesa da “tese ampliativa” da prisão civil – aquela que atribui à expressão “dívida” o significado de “obrigação pecuniária” – já se pode argumentar que ela não implica, necessariamente, em deixar de levar em consideração e proteger, em medida proporcional, o valor fundamental da proteção da liberdade. Com efeito, uma interpretação que, no marco da teoria dos direitos fundamentais, venha a considerar possível o uso da prisão civil fora das hipóteses do mencionado dispositivo constitucional, não permitiria, de forma alguma, o uso concreto desta medida, em situações concretas, onde não se revelasse necessário, exigível e proporcional proteger um outro direito fundamental, com sacrifício da liberdade individual. Insista-se, portanto, que o uso de prisão civil é capaz de favorecer a realização de outros direitos fundamentais, o que consiste em forte argumento em favor da “tese ampliativa”. Assim, como 396 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... medida coercitiva de eficácia comprovada, a prisão civil favorece, desde logo, o direito fundamental à tutela executiva. Além disso, se a própria situação material – vale dizer o crédito a ser satisfeito in executivis – também consistir na expressão subjetiva de algum direito fundamental, como por exemplo, a proteção ao meio ambiente, à saúde, à privacidade, à integridade física e à própria vida do credor, esses outros valores reforçam a defesa, sempre na perspectiva do caso concreto, do uso de prisão civil. Por tais razões, acredita-se racionalmente justificada a opção por atribuir à expressão “dívida” o sentido de “obrigação pecuniária”, aderindo à aqui chamada “tese ampliativa”. Tal decisão está metodologicamente justificada, por ser resultante do uso de uma interpretação especificamente constitucional, adequada à teoria dos direitos fundamentais e às peculiaridades específicas das normas jusfundamentais como mandamentos de otimização – as quais, repita-se, não se compadecem com soluções que privilegiem, absoluta e abstratamente, qualquer direito fundamental – assim como está também materialmente justificada por permitir uma maior proteção a todos os direitos fundamentais que possam estar envolvidos numa situação concreta, onde se discuta o cabimento ou não de prisão civil, fora das hipóteses do inc. LXVII do art. 5.º da CF.8 Outro adepto desta corrente é o sempre atual Pontes de Miranda. O ilustre professor alagoano, ao comentar a o parágrafo 17 do art. 150 da Constituição de 1967, posicionou-se a favor da possibilidade de utilização da prisão civil por inadimplemento de obrigações não pecuniárias. Ver-se-á adiante que, nada obstante tenha ele feito tal comentário diante de uma outra ordem constitucional, o inciso LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988 praticamente reproduziu a previsão do parágrafo 17 do art. 150 da Constituição de 1967, que foi assim comentado pelo mencionado autor: A prisão civil por inadimplemento de obrigações, que não sejam pecuniárias, é sempre possível na legislação. Não a veda o texto constitucional. Outrossim, em se tratando de obrigações que não sejam de dívidas no sentido estrito [...].9 Bruno Garcia 397 Esta corrente defende, em sua versão mais atual e moderna, a existência do Contempt of Court no Brasil. Tal sistema se constitui nos poderes que os juízes ingleses e americanos possuem para imporem suas decisões, o que justifica a grande credibilidade atribuída aos sistemas judiciários inglês e americano. Através de uma injuction (para as obrigações de não fazer) ou de uma specific performance (para as obrigações de fazer), o Tribunal emite uma ordem ao obrigado, que, se desobedecê-la, estará desacatando o Tribunal, caracterizando-se aí o Contempt of Court, que prevê a aplicação de multas e até pena de prisão ao demandado até que ele cumpra a decisão. É de se ressaltar ainda o fato de, no direito inglês e no americano, tal como no direito brasileiro, também ser vedada a prisão civil por dívida, justificando-se a prisão imposta pelo Contempt of Court, não pelo inadimplemento da obrigação, mas sim pelo descumprimento de ordem judicial.10 O professor Marcelo Lima Guerra também se prestou a fazer a relação das recentes alterações no Código de Processo Civil Brasileiro com o sistema norte-americano representado pelo Contempt of Court: Essa brevíssima referência ao direito norte-americano é oportuna, para melhor compreender as recentes evoluções do direito brasileiro, inserindo-as no contexto histórico maior, representado pelo direito comparado. Isso porque, como se verá melhor, foi adotado no direito brasileiro um modelo de tutela executiva (das obrigações de fazer e não fazer) idêntico no seu princípio fundamental, àquele do direito norte-americano, atribuindo-se ao juiz, no § 5.º do art. 461 do CPC, poderes indeterminados para a fixação dos meios executivos (sub-rogatórios e coercitivos) mais adequados ao conteúdo do direito a ser satisfeito.11 Sobre essa matéria, o professor Araken de Assis conclui que o ordenamento brasileiro caminha no sentido do Contempt of Court: Caminha o ordenamento, portanto, nos rumos do Contempt of Court, que a generalização da eficácia mandamental tanto clama.12 398 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... Existem outros doutrinadores de grande renome que defendem a adoção desse sistema no Brasil, muito embora acharem que tal sistema só poderia ser recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro mediante algumas alterações legislativas, cada autor possuindo diferentes razões. São os casos dos professores Kazuo Watanabe, Ovídio Batista e da professora Ada Pelegrini Grinover.13 2.3.3. Nossa opinião. Análise do texto do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988. Para se chegar a uma embasada opinião acerca do tema, necessária se faz uma ponderação no que tange à origem do dispositivo constitucional em voga, o inciso LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988. Façamos, então, uma breve retrospectiva dos dispositivos correlatos a ele na história das constituições brasileiras para vermos a sua evolução, nunca se afastando das peculiaridades relacionadas ao momento social e político vivido em cada época. A Constituição Imperial de 1824 e a primeira Constituição Republicana, de 1891, autorizavam a utilização pelo juiz do instituto da prisão civil, desde que a lei previsse tal medida para o caso em espécie. Vejamos, então, os dispositivos constitucionais que tratavam da matéria: CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824: Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] O que fica disposto acerca da prisão antes de culpa formada, não comprehende as Ordenanças Militares, estabelecidas como necessárias á disciplina, e recrutamento do Exercito; nem os casos, que não são puramente criminaes, e em que a Lei determina todavia a prisão de alguma pessoa, por desobedecer aos Bruno Garcia 399 mandados da justiça, ou não cumprir alguma obrigação dentro do determinado prazo. (grifos editados) CONSTITUIÇÃO DE 1891: Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 13 – A exceção do flagrante delito, a prisão não poderá executar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente. (grifos editados) Após 1891, a ideologia liberal continuou a ganhar ainda mais terreno, influenciando muito fortemente todos os países do mundo, sobretudo os da Europa, berço do direito brasileiro. Com isso, a Constituição de 1934, promulgada ainda na “democrática” primeira fase da Era Vargas, inconscientemente, atendeu aos ditames liberais, rompendo bruscamente com os valores do período imperial e da República Velha. É esse o contexto que fez com que a Constituição Federal de 1934 vedasse radicalmente, sem qualquer ressalva, a utilização da prisão civil, como forma de coibir os possíveis arbítrios dos magistrados, o que era uma grande preocupação liberal. Transcrevamos então, o mencionado dispositivo da Constituição de 1934: Art 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 30) Não haverá prisão por dívidas, multas ou custas. (grifos editados) Superado aquele momento de ruptura que a promulgação da Constituição de 1934 representou, percebeu-se o radicalismo 400 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... garantista que havia sido implementado naquela constituição e, com o término da Segunda Guerra Mundial, ganhou destaque o Estado intervencionista em detrimento do há muito decadente Estado Liberal. Resolveu-se, então, quando da promulgação da Constituição de 1946, ainda sob os resquícios dos valores liberais que perduram, inclusive, até os dias atuais, promover ressalvas àquele dispositivo que vedava toda e qualquer prisão civil por dívida, multa ou custas: Art 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 32 – Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel e o de inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei. (grifos editados) É de se observar, pois, que o constituinte, naquela oportunidade, ressalvou hipóteses em que a prisão civil seria cabível, já indicando assim uma relativização do direito à liberdade, elegendo outros para serem colocados à frente daquele, e evidenciando assim a não absolutidão do direito à liberdade, assim como não o era nenhum outro direito fundamental. A Constituição de 1967 reproduziu ipsis literis o supratranscrito dispositivo, no seu art. 150, § 17: Art 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 17 – Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel, ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei. (grifos editados) Bruno Garcia 401 Na Constituição de 1988, como já dito, o inciso LXVII do art. 5.º apenas suprimiu as locuções “multa ou custas” e “na forma da lei”: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel; Ora, da análise feita no capítulo mencionado e aqui recuperada, extrai-se que o inciso LXVII, do art. 5.º da Constituição Federal de 1988 reproduziu o art. 150, § 17 da Constituição de 1967, suprimindo-se apenas as locuções na “forma da lei”, empregada no final do texto, e “multa ou custas”, que, ao lado da palavra dívida, compunham as espécies de prisão civil que estariam vedadas pela ordem constitucional posta à época. Diante da supressão noticiada, torna-se necessário que sejam investigadas as causas e intenções do legislador constituinte ao praticá-la. São dois os vieses interpretativos do tema: o legislador constituinte de 1987/1988 veio corrigir uma atecnia da Constituição de 1967, com o intuito de enxugar o texto constitucional, pois que multa e custas são espécies de dívida e vinham sendo tratadas como coisas distintas; ou, realmente, a intenção foi a de vedar apenas a prisão civil por dívida, estando multa e custas fora do conceito de dívida adotado, ampliando-se assim as hipóteses de prisão civil constitucionalmente autorizadas. Diante dessa dúvida, cumpre trazer à colação novamente os ensinamentos do professor Pontes de Miranda, que comentou as ressalvas das expressões “multas” e “custas” no parágrafo 17 do art. 150 da Constituição de 1967, propondo, por meio de interpretação do dispositivo, alternativas de sanções para superá-las: 402 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... A exclusão da prisão por multa não compreende: as penas alternativas – prisão ou pena pecuniária; a pena de prisão por desvio de haveres individuais ou de sociedade, ou outra pessoa jurídica, para que se evite a execução das multas; a pena de prisão como pena de reincidência, tendo sido a primeira pena de multa. O mesmo há de se entender quanto a custas: o desvio de haveres para fraudar a execução constitui infração à parte, suscetível da pena de prisão.14 Ao que nos parece, fazendo uma análise histórica do dispositivo, a supressão em comento veio para acabar com qualquer dúvida existente e foi feita com o fito de ampliar as hipóteses autorizativas da prisão civil, visto que, ao contrário do sistema penal brasileiro que tem caminhado no sentido do abolicionismo das prisões, no âmbito civil, é perceptível um forte movimento em favor da efetividade da tutela jurisdicional, com sua elevação ao status de direito fundamental, e, junto com isso, a ampliação das possibilidades de utilização da prisão civil como instrumento para tanto. Ademais, cumpre fazer uma defesa prévia da nossa opinião antes que se invoque o argumento de que ela seria conservadora, já que restauraria o tratamento dado à prisão civil da Constituição Imperial de 1824, obviamente que guardadas as devidas peculiaridades daquele sistema constitucional e o atual. Pois bem, fazendo-se uma análise da evolução da tutela executiva desde o seu surgimento na Roma Antiga, observou-se que os sistemas executivos, em muitos momentos da história, oscilaram aos extremos por várias vezes, constituindo um movimento cíclico, de alternância entre os modelos existentes. Tanto isso é verdade que, o sistema executivo atualmente adotado pelo nosso Código de Processo Civil, após as sucessivas reformas a que foi submetido, remonta aos tempos da executio parata e da per officium iudicis, datadas da Idade Média. Isso se deu após ter ocorrido um suposto “aprimoramento” do sistema, que deu origem ao sistema desenvolvido por Liebman e inicialmente adotado pelo Bruno Garcia 403 nosso Código de Ritos. Ocorre que, para que se impute a um sistema as qualidades de conservador ou avançado, é mister que não sejam afastados os aspectos contextuais (jurídicos e sociológicos), nem o momento histórico que se vive. Diante disso, considerando o momento atual do nosso país em que é da ordem do dia a preocupação com a efetividade da tutela jurisdicional – vide a sua elevação ao status de direito fundamental -, pode-se considerar um avanço – e não um retrocesso, como muitos podem pensar – o retorno, mesmo que parcial e por outras razões, da autorização constitucional para que, em algumas situações limítrofes, seja utilizada a prisão civil de uma determinada pessoa “por desobediência aos mandados da justiça, ou não cumprir alguma obrigação dentro do determinado prazo”, como previa a Constituição de 1824. Cumpre ressaltar que os valores sociológicos atuais não são mais aqueles de 1824, bem como as causas dessa autorização de utilização da prisão civil como medida coercitiva também são outras, visto que, em 1824, a prisão civil servia como instrumento de repressão de um Estado absolutista, enquanto que, paradoxalmente, esse mesmo instituto da prisão civil, no contexto atual, serviria como um instrumento de fortalecimento do Estado Democrático de Direito, que faz com que seus comandos normativos e jurisdicionais sejam cumpridos. Devemos advertir também que o que ora se propõe não é uma prisão civil com caráter punitivo, e sim eminentemente coercitivo, cujos efeitos são cessados imediatamente quando do cumprimento da decisão judicial na espécie. 3. Conclusão Tudo quanto dissertado conduz ao entendimento de que o conceito de dívida deve ser dado através de uma interpretação restritiva (apenas dívidas pecuniárias), ampliando-se as hipóteses 404 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... de cabimento da prisão civil, quer pela própria evolução do tratamento da matéria nas constituições brasileiras, quer pela imposição do contexto histórico atual. Essa tese abre caminho para que o magistrado, em determinados casos, homenageando o direito fundamental à tutela executiva, em último caso, utilize-se do instituto da prisão civil como medida coercitiva inominada autorizada pelo parágrafo 5.º do art. 461 do CPC. Mesmo que se adira à tese restritiva da prisão civil, considerando que o inciso LXVII da Constituição Federal de 1988 quis vedar toda e qualquer espécie de prisão civil, ressalvadas apenas aquelas hipóteses expressamente excetuadas, não se pode ignorar o fato de que nenhum direito fundamental é absoluto, nem mesmo o direito à liberdade, podendo haver, portanto, no caso concreto, ponderações das normas jusfundamentais conflitantes no sentido de uma sobrepor-se à outra, mitigando-a. Afora isso, outro argumento que merece destaque é o fato de que o próprio poder constituinte originário relativizou o direito fundamental à liberdade no momento que ressalvou a possibilidade de prisão civil nos casos de depositário infiel e débito alimentar. Ora, a previsão de tais ressalvas, por si só, já se configuram em uma evidente opção do legislador em colocar outros interesses à frente da liberdade individual do cidadão brasileiro, cujos motivos – se políticos ou não – por ora não discutiremos. Daí pergunta-se: será que os interesses resguardados nas mencionadas ressalvas - prisão civil por alimentos e, sobretudo, por depositário infiel – são mais louváveis e carentes de proteção do que outros porventura em questão numa lide, tais como os direitos fundamentais à vida e à efetividade? A resposta, definitivamente, não pode ser dada em apartado às peculiaridades de cada suporte fático, nem para ampliar as hipóteses de cabimento da prisão, muito menos para negar a possibilidade dessa ampliação. É de se concluir, portanto, que Bruno Garcia 405 jamais poderia haver uma resolução em tese acerca da possibilidade da utilização ou não da prisão civil como medida coercitiva atípica no caso concreto, já que do outro lado, invariavelmente, há de estar o direito fundamental à efetividade (ou do acesso à justiça substancial), além de outros possíveis que se constituam como o direito material tutelado naquele determinado “case”. Deve, portanto, o conceito de dívida ser dado de acordo com a ponderação dos interesses envolvidos na questão, para que se possa chegar à conclusão da possibilidade ou não da utilização da prisão civil em outros casos que não os de depositário infiel e devedor de alimentos, cujas permissões se encontram expressamente previstas no inciso LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988. 4. Referências AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 149-150. ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7.ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. IV: arts. 332 a 475. 2.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: 2003. Dicionário Aurélio. Disponível no endereço eletrônico 200.225.157.123/dicaureliopos/home.asp?logado=true - 5k –. Acessado no dia 02 de setembro de 2007. GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003. Índice Fundamental do Direito. Disponível no endereço http:// dji.com.br/processo_civil/divida.htm. Acessado no dia 02 de setembro de 2007. 406 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol. 3: execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 84-85. MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição Federal de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987. TALAMINI, Eduardo. Prisão Civil e Penal e “Execução Indireta” (A Garantia do art. 5.º, LXVII, da Constituição Federal). In Leituras Complementares de Processo Civil. DIDIER JR., Fredie (Org.). 5.ª ed. rev. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2007. 5. Notas 1 DICIONÁRIO AURÉLIO. Disponível no endereço eletrônico 200.225.157.123/ dicaurelio aureliopos/home.asp?logado=true - 5k –. Acessado no dia 02 de setembro de 2007. aurelio 2 Índice Fundamental do Direito. Disponível no endereço http://dji.com.br/ processo_civil/divida.htm. Acessado no dia 02 de setembro de 2007. 3 TALAMINI, Eduardo. Prisão Civil e Penal e “Execução Indireta” (A Garantia do art. 5.º, LXVII, da Constituição Federal). In Leituras Complementares de Processo Civil. DIDIER JR., Fredie (Org.). 5.ª ed. rev. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2007. 289 4 TALAMINI, Eduardo. Prisão Civil e Penal e “Execução Indireta” (A Garantia do art. 5.º, LXVII, da Constituição Federal). In Leituras Complementares de Processo Civil. DIDIER JR., Fredie (Org.). 5.ª ed. rev. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2007. p. 299. 5 AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 149-150. 6 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. IV: arts. 332 a 475. 2.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: 2003. p. 149-150. 7 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol. 3: execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 84-85. 8 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003. p. 136 9 MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição Federal de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 266. 10 AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 146-147. Bruno Garcia 407 11 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003. p. 122 12 ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7.ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 122. 13 AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 148-149. 14 MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição Federal de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 266. 408 O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º... REVISITANDO A DIALÉTICA GESELLSCHAFT UND GEMEINSCHAFT TÖNNIESIANA Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira1 1 Acadêmico de Direito da UFBA. I Propomos, como paradigma deste breve ensaio, o confronto entre as idéias de Gesellschaft und Gemeinschaft, societas e communitas, sociedade e comunidade, deixadas pioneiramente a nós pelo sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, que, através de sua obra (1947) publicada em 1887, influenciou, principalmente, os trabalhos de investigação da escola sociológica de Chicago (1915 - 1940) e as obras de Max Weber e Georg Simmel. Tais concepções nos remetem a buscar que tipo de racionalidade vivenciamos no direito hoje. Assim, estas breves linhas têm como humilde objetivo servir como primeiros passos filosóficos para futuros vôos mais altos na temática da Filosofia do Direito e da Hermenêutica Filosófica, no que tange as concepções de comunidade e sociedade. Buscar saber as distinções entre estas não se reduz a mero capricho semântico de pouca relevância, mas sim distinção que vai repercutir diretamente na forma de julgar do intérprete do direito, a depender da concepção a que ele esteja vinculado. O ponto de partida para esta teoria é a “interação” (TÖNNIES, 1947). O contínuo processo de interações humanas dá-se através da “vontade”, que seria, antes de tudo, uma “vontade natural”: unidade biológica dirigida por instintos, orientada por motivações de origem orgânica como a nutrição, a autopreservação e a reprodução; aquela vontade humana no estado mais “bruto”, a zoé grega, a vida nua2 em seu anonimato, concepção esta que vai 409 beber de fontes aristotélicas que entendiam o homem como animal gregário e vivente. O conceito de vida para os gregos tinha dois termos distintos morfológica e semânticamente: a zoé, simples fato de viver em comum a todos os seres vivos - animais, homens e deuses; e a bíos, forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo (AGAMBEN, 2002). Desta forma, aquela “vontade natural”, através de ações executadas em múltiplas relações, quando assume o sentido de conservação - ou destruição, por exemplo - dá origem a uma “união”. Pois bem, fixemos então que o tipo de “vontade” humana vai originar o tipo de “união” formado por estes homens. Assim, esta “vontade natural” daria origem à comunidade-Gemeinschaft, ao passo que um outro tipo de vontade humana, a “vontade arbitrária”, originaria a formação da sociedadeGesellschaft, já que esta vontade, por ser arbitrária, transcederia os determinantes do “orgânico”, assumindo o caráter bíos grego, deliberativo, propositivo e racional. Na societas a vontade parte de representações artificiais e ideais sobre o mundo ao seu redor e os homens e é motivada sempre por finalidades exteriores às relações estabelecidas socialmente. Já na communitas as relações entre os homens teriam valor por si só, não dependendo de propósitos exteriores a elas. Assim, considerando tais aspectos, podemos afirmar que aquela “união” fundada na idéia de Gemeinschaft é concebida como entidade natural e durável, ao passo que incidindo nos ideais da Gesellschaft se assume uma entidade artificial e mutável, submetida a interesses individuais. Este confronto pode ser traduzido na visão de Foucault, que relembra que para Aristóteles, “por milênios, o homem permaneceu um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente” (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2002, p. 11). 410 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana II A noção de sociedade está relacionada com a idéia de humanidade civilizada e progressista própria dos filósofos do iluminismo como Diderot, Montesquieu e Kant. Esta visão nos leva à concepção de uma racionalidade abstrata3, em que o homem se vê vinculado ao contrato social (Cf. ROUSSEAU, 1996); uma razão que se pretende livre (Cf. MCINTYRE, 1988) e ganha força com os estudos jusnaturalistas do século XVIII, a partir da releitura do contratualismo. Assim, a sociedade é criada a partir de uma idéia de pacto social, através de uma emancipação de interesses, processo este que vai culminar em uma crise de valores, o que vai exigir que o homem trate suas convicções como opções de fins, de preferência. O que é importante notar aqui é que a societas não tem projeto além daquela forma de viver que permite a convivência dessas diferenças e que permita hierarquizar estes interesses diversos. Para a teoria da societas os homens permanecem separados apesar de todas as “uniões” das quais participem, nas quais interajam, já que cada vontade se configuraria como uma unidade autônoma no aspecto moral, unidade esta auto-suficiente, independente (TÖNNIES, 1947). Cresce a importância da unidade, dando-se ao indivíduo restrito o protagonismo da razão. Importante, ainda, observar que esta vontade autônoma está para si em um permanente estado de tensão com as demais, sendo a perturbação de outras vontades entendida como um ato hostil, o que vai remontar um cenário construído pelo iluminismo, que privilegiara a autonomia da vontade, em face da responsabilidade, dando aos direitos do homem um caráter individualista. Assim, exacerbam-se as atenções para a autonomia – na tentativa de expurgar o fantasma do absolutismo – sem se preocupar, contudo, com os deveres que agora sabemos que são conseqüentes do exercício de direitos. Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 411 Tal concepção se coaduna àquela racionalidade liberalista exposta por McIntyre (1988) que se pretende livre e universal. Esta concepção baseada na Gesellschaft, que fora criada ainda na prémodernidade, aprisionou o homem ao contrato social, homoneigizando a razão. Esta sociedade teria, então, valores universais - naturais do homem - que vinculariam a todos, independente de qual cultura tivessem. É a idéia moderna de direito. Ou seja, os grupos humanos, a partir das idéias fundadas no fim da pré-modernidade, abandonam paulatinamente a comunidade em direção à modernidade e à idéia de sociedade, seguindo a proposta de universalidade de valores, de forma a consagrar o projeto de hospitalidade universal de Kant (1988, p. 127-140), fundado basicamente nas idéias do direito de visita (das Besuchsrecht) – aquele direito de ser acolhido, recebido por outro Estado – e na de Jus cosmopoliticum (Weltre publik Weltbürger), que expressa o direito de todos, de forma cosmopolita. Ora, se de uma lei abtrai-se toda a matéria, ou seja, todo o objeto da vontade - como motivo determinante -, nada mais resta a não ser a simples forma de uma legislação universal (KANT, 1992). Contudo, antes de prosseguir, cabe a nós perguntar: até que ponto o movimento de passagem do Gemeinschaft ao Gesellschaft não respondia às aflições coletivas e pessoais em relação aos desafios de um povo pulverizado que buscava se articular em Estado-Nação para concretizar um projeto de unidade geopolítica? Primeiramente, este suposto projeto da societas, como por nós já dito, teria única e exclusivamente como finalidade possibilitar a convivência de diferentes “vontades” em uma mesma “união”. E para possibilitar esta passagem e mudança de paradigma em direção à sociedade foi adotado o modelo de unidade geopolítica, que podemos chamar de cívico-territorial, desenvolvendo a idéia 412 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana de correlação entre povo e território – historic territory and legalpolitical community and equaty. Através da fixação destes objetivos, o homem se organizou em Estado e através de processos de subjetivação, na passagem entre o mundo antigo e o moderno, o indivíduo foi levado a objetivar o próprio eu e a constituir-se como sujeito, ganhando status de cidadão. Entretanto, ao mesmo tempo, quase que sem perceber, este indivíduo, que se livrara do absolutismo, se vinculou a um poder de controle externo, “e não transferiu suas próprias escavações, como teria sido até mesmo legítimo esperar, ao que poderia apresentar-se como o local por excelência da biopolítica moderna: a política dos grandes Estados totalitários do Novecentos” (AGAMBEN, 2002, p. 125). Desta forma, o que estava no centro da luta com o absolutismo, perceba-se, não era a bíos grega, a vida qualificada de cidadão, mas sim a zoé, o simples fato de viver, comum ao homem e ao animal, a própria vida nua em seu anonimato (AGAMBEN, 2002). Afirmamos isto, pois a liberdade na época moderna vai assumir outro significado, diferente daquele entendido na época histórica precedente. Neste embate com o antigo regime, o que se busca defender não é propriamente o homem livre, com suas prerrogativas e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente homo, mas sim o corpus. Esta figura vai se estabelecer como o novo sujeito da política e a democracia moderna vai nascer propriamente como reivindicação e exposição deste “corpo” - habeas corpus ad subjiciendum, derevás ter um corpo para mostrar (Agamben, 2002, p. 129-130). Como prova desta mudança de paradigma, com a colocação do corpus no protagonismo da política moderna, podemos citar a figura do habeas corpus, que, na sua origem, era usado para assegurar a presença do réu no processo, impedindo que ele se subtraísse ao juízo, entretanto em uma nova roupagem Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 413 moderna passou a ser enxergado como uma obrigação para o “xerife” de exibir o corpo do réu e motivar sua detenção (AGAMBEN, 2002, p. 130). Além disso, temos ainda a consagração, no direito processual, do princípio de que toda execução é real, dando liberdade ao corpo do devedor, passando a execução a recair apenas sobre os bens deste. Ou seja, ser cidadão, mais do que tudo, passou a ser ganhar o direito de ser incluído para ser excluído. O homem passa a ser cidadão quando ele deixa a condição res para tornar-se réu, e deixa suas impressões digitais registradas como símbolo de sua inclusão do sistema da societas, onde ele terá direito a toda uma máquina que por ele trabalha e a ele confere direitos: um defensor público, um tribunal do juri... O homem é incluído, somente para logo após ser excluído. Imbuída deste complexo processo de cambio de racionalidades, a Gesellschaft transforma o antigo “súdito” em cidadão, dando origem àquilo que Habermas chamou de “nação de cidadãos” (1996). O que é imperioso atentar é que, pela primeira vez, o nascimento, a vida nua como tal, torna-se o portador imediato da soberania – interação povo-território (Agamben, 2002), o que contrapõe abruptamente aquela idéia de racionalidade historicizada presente na pré-modernidade. Na Grécia antiga, por exemplo, o portador da soberania era a bíos, ou seja, aquela vida política qualificada, sendo a zoé confinada como mera vida reprodutiva. A formação desta bíos grega teve início com a crise das comunidades gentílicas – proveniente de genos, famílias coletivas constituídas por um grande número de pessoas sob a liderança de um patriarca-pater – em que a terra deixou de constituir propriedade coletiva, sendo, a partir daí, dividida de modo desigual entre os membros dos genos. Esta evolução da vida política se acentuou com a crise da realeza homérica, quando a aristocracia progressivamente se apropriou das prerrogativas do poder, relegando aos descendentes da 414 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana realeza apenas funções religiosas. Nesse primeiro passo, mesmo que ainda nas mãos da aristocracia, o poder começou a sair da esfera do privado - onde se localizava sob controle do rei - e avançou no sentido do estabelecimento da ordem pública. O poder não é mais a pessoa; agora, o poder é a função. Para o exercício desta, escolhe-se por eleição indivíduos que exercerão esses cargos por um período determinado. O poder - a arché – passou, então, a circular entre a comunidade que possuía plenos direitos de cidadania. Nessa transição entre a monarquia e a nascente pólis aristocrática, surge a concepção de que o poder do Estado deveria estar sujeito ao interesse público e que esse público – a comunidade cidadã – devia exercê-lo por si mesmo, e não delegar a uma autoridade real com poderes ilimitados. A história política de Atenas, entre os séculos VIII e IV, vai caracterizar-se por um crescente processo de alargamento das prerrogativas políticas entre o grupo dos homens livres, resultando no regime democrático ateniense, denominado pelos mesmos, não como democracia, mas como “isonomia” – a garantia da igualdade perante a lei. A peculiaridade desse regime é instaurar um complexo sistema de circulação, rotatividade e controle do poder, assegurando maiores níveis de participação aos cidadãos, evitando a concentração de poder e submetendo-o à vontade pública, fazendo com que este fosse exercido não em nome do interesse de particulares, mas em prol da maioria dos cidadãos. Nesse novo regime, desenvolveu-se um sistema de participação pelo qual a maioria da população pertencente à categoria dos cidadãos atua em algum momento da vida como governante. Dissolvem-se as fronteiras entre governante e governado, uma vez que um se confunde com o outro. A nação de cidadãos se vê dona de suas próprias decisões e responsável pela execução das mesmas. Portanto, era cidadão aquele que possuía uma vida qualificada, uma vida política – como os demiurgos, classe que reunía aqueles Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 415 homens originários dos genos. Todos estes homens eram políticos. Sistema de isonomia, lembra-se, meramente formal: perante a lei. Contudo, os escravos, tidos como bens móveis, geralmente prisioneiros de guerra e as mulheres mesmo nascidas no território grego não possuíam direitos políticos e por isso não eram considerados cidadãos. Desta forma, como ressalta Marilena Chauí (2000), menos de 10% dos habitantes da pólis tinha direito à cidadania. Ou seja, o sistema democrático-isonômico grego se fundava, justamente, na condição de igualdade perante a lei dos cidadãos, mas, ao mesmo tempo, se alicerçava na total desigualdade material entre os homens. Aí se revela a ruptura traumática entre as concepções de homem e cidadão (!), zoé e bíos, que fora desafiada já por Sócrates quando questionara, perante aos cidadãos gregos, porque homens que falavam, respiravam e olhavam como eles podiam ser considerados coisa. Os direitos destes cidadãos, na fase moderna, sob esta influência da societas, encontraram abrigo nas Declarações de Direitos, que, como aponta Agamben, ao contrário de simbolizar a defesa de princípios éticos eternos, através de proclamações gratuitas de valores metajurídicos, “representam aquela figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estadonação. Aquela vida nua natural... [que] entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se, aliás, o fundamento terreno de sua legitimidade e da sua soberania”. Desta forma, se observarmos atentamente, “um simples exame do texto da declaração de 1789 mostra, de fato, que é justamente a vida natural, ou seja, o puro fato do nascimento, a apresentar-se aqui como fonte e portador de direito” (AGAMBEN, 2002, p. 134). Reafirmamos insistentemente esta realidade, apenas porque se faz impossível seguir em direção às posteriores análises deste ensaio se não compreendermos que o fundamento de todo o desenvolvimento e da vocação nacional e biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX não é o 416 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana homem consciente como sujeito político, mas sim o fato do nascimento, a vida nua daquele em seu anonimato. É este homem, vinculado a um contrato social e controlado externamente, que será posto como protagonista da política moderna de sociedades. Assim, os Estados nacionais acabam por privar a vida nua de qualquer valor político e “os direitos do homem, que faziam sentido apenas como pressuposto dos direitos do cidadão, separam-se progressivamente destes e são utilizados fora do contexto da cidadania, com o suposto fim de representar e proteger uma vida nua que vem a encontrar-se, em proporção crescente, expulsa às margens dos Estados-nação, para ser então posteriormente recodificada em uma nova identidade nacional” (Agamben, 2002, p. 139). É como se os cidadãos fossem apenas aqueles que tivessem condições de exercer a soberania dada pelo Estado-nacional, sujeitos estes que teriam seus direitos próprios – direitos do cidadão –, ao passo que os direitos dos homens estaria relegado àqueles que não são capazes de serem portadores da soberania estatal, àqueles representantes da vida nua, ao homo sacer. Apoiando-nos nas idéias de Marx, podemos observar que se opera, então, uma separação entre humanitário e político, entre homem e cidadão, dando origem a duas concepções distintas de povo que vão dominar toda a época moderna: a vida nua, a zoé (povo) e a vida política, a bíos (Povo). Ou seja, as duas concepções de vida gregas passam a viver simultaneamente, num contínuo processo de inclusão/exclusão. Assim, a partir da Revolução Francesa, o “Povo” torna-se o único depositário de soberania e o “povo” torna-se uma presença incômoda, pois carrega consigo uma fratura biopolítica fundamental: “ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído” (Agamben, 2002, p. 184). Conclui-se, assim, que aquela mesma razão universal, discurso dominante da Gesellschaft, que se propõe incluir, também Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 417 exclui. Ao tentar estabelecer a convivência entre as diferentes e singulares vontades arbitrárias em uma determinada “união” inclusão -, o que acaba por acontecer é que, através daqueles já citados atos de hostilidade, consequência da presença em um mesmo círculo ambiental unitário de distintas vontades, os agentes politizados excluem aqueles naturais. Neste momento, antes de passarmos à análise das comunidades, é necessário realizarmos uma análise fundamental acerca da releitura do mito da fundação da cidade moderna, de Hobbes a Rosseau, reflexão proposta por Agamben, quando afirma que o: ...estado da natureza é, na verdade, um estado de exceção, em que a cidade se apresenta por um instante (que é, ao mesmo tempo, intervalo cronológico e átimo intemporal) tanquam dissoluta. A fundação não é, portanto, um evento que se cumpre de uma vez por todas in illo tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão soberana. Esta, por outro lado, refere-se imediatamente à vida (e não à livre vontade) dos cidadãos, que surge, assim, como o elemento político originário, o Urphänomenon da política: mas esta vida não é simplesmente a vida natural reprodutiva, a zoé dos gregos, nem o bíos, uma forma de vida qualificada; é, sobretudo, a vida nua do homo sacer e do wargus, zona de indiferença e de trânsito contínuo entre o homem e fera, a natureza e a cultura. (AGAMBEN, 2002, p-115) Ou seja, aquele “povo” estaria permanentemente subjulgado a um estado de exceção, incluído na esfera do biopoder. Na Idade Moderna, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos do poder estatal e a política se transforma em biopolítica. Aí, uns são políticos e outros são vida nua em seu anonimato. Tal processo desenboca, apenas como elemento exemplificativo, na sociedade nazista alemã de Hitler, imbuída do paradigma que significa valores como fins, em que os hebreus representaram fielmente aquilo que nomeamos preteritamente como homo sacer – vida matável e 418 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana insacrificável -, fazendo as vezes do “povo”, o desprivilegiado da nova soberania biopolítica. O extermínio deste povo não vai configurar uma série de execuções capitais, tampouco um sacrifício, mas única e exclusivamente a realização de uma mera “matabilidade” que era inerente à condição de hebreu como tal. “A verdade difícil de ser aceita pelas próprias vítimas, mas que mesmo assim devemos ter coragem de não cobrir com véus sacrificiais, é que os hebreus não foram exterminados no curso de um louco e gigantesco holocausto, mas literalmente, como Hitler havia anunciado, ‘como piolhos’, ou seja, como vida nua” (AGAMBEN, 2002, p. 121). Vida a vida. Existêntia a existência. Uma a uma. Realidade que nos chama atenção para o fato de que este extermínio se localizou não na dimensão do direito ou da religião, mas sim naquela da biopolítica. Desta forma, neste cenário biopolítico, os tempos de hoje nada mais seriam senão uma tentativa de reparar aquela fissura deixada pelo modelo de sociedade universal que dividiu o povo, tentando igualá-los. Esta tentativa, então, coaduna, através de quaisquer horizontes por nós presenciados atualmente - sejam de direita, sejam de esquerda, sejam capitalistas, sejam socialistas - com a união de todos em prol de um único projeto, que busca, por sua vez, produzir um povo uno e indiviso, já que a distinção de “povo” e “Povo” revelou a faceta da exclusão e, por conseguinte, da miséria. Esta verdadeira obsessão que o homem moderno tem pelo desenvolvimento é tão eficaz em nosso tempo porque vai coincidir com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura (AGAMBEN, 2002). Entretanto, é preciso ter coragem para dizer que é impossível que a sociedade atinja a isonomia, pois esta é desde sempre, como vimos, fundada no paradigma da desigualdade. Norberto Bobbio (1996) coaduna com esta posição, afirmando que o máximo que pode ser atingido pela Gesellschaft é uma igualdade formal – a posta pela lei -, mas nunca uma igualdade material – fundada Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 419 nas vivências, da prática. Ora, já na Grécia antiga os detentos do poder descobriram que aquele sistema democrático poderia sustentar esta desigualdade presente entre os homens. A lógica da racionalidade da sociedade dos tempos de hoje segue a mesma e é justamente concluindo isto que Marilena Chauí (2000) deixa claro que o regime democrático moderno retorna à sua matriz grega. O fracasso do modelo de sociedade para curar aquela malfadada fratura entre “Povo” e “povo” nos revela uma verdadeira crise de identidade do Direito. Ora, se crise não fosse não estaríamos a tanto debatendo e (re)estudando este tema. E para crises se buscam soluções, se buscam saídas. Respostas estas que, sobretudo, não podem, sob nenhum prisma, reduzir a extensão das possibilidades, tampouco impor a estas territórios estanques. São necessárias, contudo, áreas de escape que consigam realmente respeitar a estrutura heterotópica que os diversos projetos e discursos compõe. III Para isto, ainda que apenas para surpreender as vozes do sistema, admitimos como uma tentativa de reconhecimentomapping aquele “filtro de inteligibilidade” já exposto por Hegel, em sua Filosofia do Direito, e oriundo de uma releitura realizada por Aroso Linhares (2007): o regresso da comunidade. Regresso não àquela “bruta” Gemeinschaft pré-moderna, mas apenas à possibilidade de reinventar a communitas na plenitude de seus aspectos simbólico-culturais - não naturais -, possibilidade esta que assumiria a comunidade na racionalidade constitutiva historicizada do seu processo de realização. Começaremos, a partir daqui, então, a esboçar uma releitura daquela comunidade de valores, entretanto, agora, preocupada em absorver uma fundamental lição do século XX: a experiência da historicidade constitutiva, dada através de construções culturais, 420 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana recusando, assim, de logo, aquela racionalidade teorética, característica marcante da Gesellschaft. Trataremos, aqui, de buscar recuperar a racionalidade jurídica prático-jusprudencial-poiética, com apoio na tópica e na retórica. Recuperar para que não nos lamentemos mais de sermos órfãos do normativismo e, por fim, tentarmos nos livrar da síndrome do menor abandonado. Necessitamos, assim, trazer novamente a esta dialética a racionalidade sujeito-sujeito: aquela matriz de razão do pensamento que quando enxerga o problema no direito, vê fundamentalmente os sujeitos. Ou seja, mais do que institutos, discutiremos argumentos, sem por isso – para increduliadade daquelas vozes – deixar de encarar o direito como jus, mas sim, enxergando-o além deste limitado horizonte, para reconhecê-lo como experiência de realização, quando visto através da lente da filosofia prática (LINHARES, 2007). Postura esta em contraponto à resposta do pai da filosofia do direito, Hegel, a um aluno seu, durante uma exposição, em que, ao ser questionado por este como o mestre podia falar sobre a fenomenologia do espírito com bombas caíndo ao redor e se isto não conflitaria com a realidade, respondera: azar da realidade. Conheceremos, então, novamente o direito, contudo, agora, através de um discurso racional que busca sustentar o caso concreto. A Gemeinschaft se mostra, então, retomando o pensamento Tönniesiano, como aquela “união” formada através de valores – racionalidade prática – e não aquela “união” da societas, formada a partir de representações ideiais e artificiais dos homens – racionalidade teorética. Ou seja, para a communitas o que vale é a interação que se dá através da “vontade natural” do homem (TÖNNIES, 1947). Através desta vontade as relações humanas ganhariam valor por si mesmo, sendo, portanto, intrínsecas, sem depender de propósitos exteriores ou ulteriores a elas, concebidas pelos agentes em “interação” como entidade durável e natural, ao Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 421 passo que a “vontade arbitrária” se pautaria na diferença entre meios e fins, pautada por interesses individuais, constituindo, assim, uma entidade artificial e mutável. De fato, a idéia de comunidade revela no seu sentido a participação dos homens que a compõem num núcleo aglutinado de valores (bem) que lhes são comuns, ao passo que a sociedade enuncia antes a aceitação por parte dos seus membros de um conjunto de normas (deveres) que regulam a relação entre eles. Notamos, nitidamente, como a teoria liberal, desde o pensamento de Kant até as teorias de Rawls, estabelece a primazia do dever e do direito sobre o bem, revelando aquela racionalidade abstrata e universal, que provocara a ruptura entre “povo” e “Povo”. Em contraponto, a teoria social-comunitária, a Gemeinschaft, desde Aristóteles, com seu pensamento de homem gregário e político, até McIntyre e suas teorias de razão comunitária e liberal dá aos valores a primazia sobre o direito e os deveres. Em Tönnies, tanto quanto em Durkheim, comunidades se caracterizam por uma similaridade básica e uma identidade de valores e atitudes entre todos os seus membros. Não somente todos compartem os mesmos valores e atitudes, mas este fato é conhecido e vivido por todos; a communitas é transparente e existe um sentimento generalizado de pertencer ao mesmo todo. O oposto é aquela idéia que já vimos: a Gesellschaft, em que as interações se baseiam na especificidade dos papéis, na ausência de afetividade, no universalismo, na auto-orientação e na ausência de características sociais adquiridas, para utilizarmo-nos das “variáveis padrão” de Parsons (1952). Podemos comparar a idéia de comunidade, àquela de solidarité mécanique – solidariedade baseada nas identidades –, ao passo que a societas seria a solidarité organique – baseada nas diferenças e nas complementaridades (DURKHEIM, 1995, p. 85-96) 422 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana Desta forma, uma entidade comunitária existiria muito antes da constituição social de indivíduos e seus fins – sem restringir-se a condições genéticas. Surgiria através de uma união natural e até mesmo orgânica do homem à sua pátria. Aqui se faria presente aquela cultura holista, fundada em hombres que se sienten y saben como perteneciéndose unos a otros, fundados en la proximidad natural de sus espíritus (TÖNNIES, 1942, p. 45), de modo que estas relações de comunidade prescindiriam, pelo menos a priori, da necessidade de igualdade e liberdade de vontades. Na Gemeinschaft, fruto da cultura do povo que ela representa, os homens permaneceriam unidos apesar de todas as separações e este elo de união seria composto pelos valores em comum a esta cultura, a esta comunidade, revelando um caráter prático-poiético que vai se contrapor àquela concepção abstrato-artificial-teorética da societas, que, de maneira intrínseca, se vincula à idéia de Estado, como espírito humano projetado e vinculado àquele já dito controle externo. As relações comunitárias teriam, então, um forte poder de construir, através de um processo historicizado, identidades locais, culturas, revelando um cenário apto a mudanças e a participar das dinâmicas de sociabilidade, que vão levar em consideração o aspecto singular, o aspecto daquela comunidade em específico, daquela cultura pontual. Pensamento vinculado a uma cultura do povo-folk que, como já vimos, se contrapõe àquela idéia de uma civilização do Estado (TÖNNIES, 1947, p. 304), que se articula através de identidades extra-locais, revelando o aspecto universal, aquele ideal de humanidade (ELIAS, 1993). Así hay que entender todo derecho comunal como producto del espíritu humano, pensador: un sistema de ideas, reglas, normas, comparable, como tal, a un órgano o obra, surgido por la reiterada actividad correspondiente de si mismo, por ejercicio, como modificación de un substancial de la misma índole ya anteriormente existente, progresando de lo general al especial. Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira 423 De esta suerte, es fin de sí mismo, aunque en relación necesaria con aquél todo a que pertenece y donde procede, que es él mismo manifestándose de modo peculiar. Con ello se presupone una humanidad unida como existencia natural y necesaria; es más, se presupone un protoplasma de derecho como producto originario y necesario de la vida y pensamiento conjuntos de la humanidad (TÖNNIES, 1947, p. 201-202) Desta forma, apoiando-nos no pensamento de McIntyre (1988), observamos que a razão na communitas se confessaria vinculada a esta identidade local, a este aspecto singular do homem, estando, portanto, comprometida com esta realidade, com estes valores. Diferente da societas, onde esta mesma razão se pretende livre desvinculada da identidade local, buscando, mais do que isso, a universalização das idéias, a internacionalização abstrata do pensamento – conclusões próximas àquele conceito de comunidades de idéias formulado por Robert Fowler (1995). Já que a idéia da Gemeinschaft parte do princípio de que existem valores que são comuns a seus membros, as atitudes do agente podem ser apenas duas: preferi-los ou preteri-los. Não há nenhum espaço, nesta racionalidade, para aquela conduta neutra defendida pela proposta liberal de Estado neutro. A vinculação dos membros da comunidade é existencial; não através de um contrato social, mas sim a partir de um estado4 social. A solidariedade, como nos diz Weber (1994), é subjetivamente sentida pelos seus membros, enquanto que na sociedade se limita somente ao prescrito pelas normas legais, à razão teorética abstrata. Posto isto, cabe-nos uma reflexão acerca do tema debatido, pois, sem nenhuma sombra de dúvidas, a interpretação que vamos dar aos princípios formadores das Constituições estatais dependerá de como enxergarmos o ambiente em que se opera o sistema jurídico. Rogo, ainda, para que com esta leitura - apesar de ponto de vista atraente - não se faça uma dicotomia absoluta 424 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana entre sociedade e comunidade, pois se assim procedermos estaremos nada mais do que reafirmando a modernidade, que possui uma imensa dificuldade em somar concepções. Não partamos de “sociedade versus comunidade”, mas sim busquemos com elas aprender um caminho rumo à pós-modernidade, em que, mais do que extremista, cabe ao intérprete ser humilde, por assim dizer, já que o importante não é compor uma teoria universal, nem gerar um homem natural, mas sim um homem cultural-tradutor: aquele que olha a cultura alheia, a respeita e insere em sua cultura aqueles valores que lhe convier. Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, c1996. 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Para esta figura do direito romano arcaico, a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão – matabilidade. Ou seja, a vida que se pode matar sem cometer homicídio, entretanto não pode ser sacrificada; a vida exposta à morte. 3 TÖNNIES é categórico ao afirmar que “sociedad no es otra cosa que la razón abstracta” (1947, p. 72) 4 Não confundir com Estado-nação. A expressão é aqui utilizada como modo de ser ou estar. 426 Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS NO CASAMENTO DO MAIOR DE SESSENTA ANOS1 Ciro de Lopes e Barbuda Graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2007.2). “Não sei... se a vida é curta Não sei... Não sei... se a vida é curta ou longa demais para nós. Mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.” – Cora Coralina Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico. 3. Da ratio legis do instituto. 3.1. Incompatibilidades interdisciplinares: problemáticas sociais, etárias e morais. 3.2 Incompatibilidades jurídicas: União Estável, Estatuto do Idoso e Súmula n.° 377 do Supremo Tribunal Federal. 4. Conclusões necessárias. 5. Fontes de consulta. Resumo: Exame da constitucionalidade da separação compulsória de bens para casamento com maior de sessenta anos de idade, estabelecida pelo art. 1.641, II do Novo Código Civil (Lei n.° 10.406/2002). Análise histórica, teleológica e sociológica do instituto, confrontando-o com o atual ordenamento jurídico brasileiro. Palavras-Chave: Direito de Família. Casamento. Regimes de bens. Separação obrigatória. Idoso. Separ77ação por implemento de idade. 427 1. Introdução O presente artigo tem por finalidade discutir a constitucionalidade da restrição à livre escolha do regime matrimonial de bens para o contraente maior de sessenta anos, imposta pelo artigo 1641, inciso II do vigente Código Civil (Lei Federal n.° 10.406/2002). Também, analisar o impacto sóciojurídico do referido dispositivo legal, sobretudo em face da Súmula n° 377 do Supremo Tribunal Federal (STF) e da recente aprovação do Estatuto do Idoso (Lei Federal n.° 10.741/2003). Finalmente, propor uma alternativa mais técnica, coerente e justa, que discipline o direito patrimonial no casamento do cônjuge idoso à luz do Texto Constitucional. 2. Histórico A obrigatoriedade do regime da separação de bens para o casamento do idoso já figurava no revogado Código Civil de 1916 (Lei n.° 3.071/1916), que impunha essa limitação, em caráter protetivo ou punitivo, dentre outras hipóteses (incs. I, III e IV do parágrafo único do art. 258) sempre que o contraente fosse maior de sessenta ou a contraente, maior de cinqüenta anos de idade (inc. II daquele mesmo dispositivo legal). O professor e exdesembargador paulista Washington de Barros Monteiro lembra que essa regra foi herdada do direito romano, em cuja Lei Papia Poppaea proibia-se, até mesmo, o casamento entre as pessoas com aqueles limites de idade. Não obstante, já no séc. IV d. C., essa despropositada norma foi revogada pelo imperador Constantino, por atentar contra a esfera de liberdade dos cidadãos romanos. (MONTEIRO, 1997, p. 180) É preciso, também, aludir à vetusta discriminação perpetrada pelo idealizador do extinta Lei Civil, Clóvis Beviláqua, ao impor o regime de separação legal para o homem com sessenta anos, 428 A separação obrigatória de bens no casamento... mas para a mulher de cinqüenta. À luz do princípio da isonomia, consagrado no caput do art. 5° da vigente Constituição Federal de 1988, essa norma padeceria de evidente inconstitucionalidade, ferindo de morte o inciso I do mencionado artigo, que estabelece serem homens e mulheres iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição, bem como o § 5° do art. 226 da Estatuto Fundamental da República, que prescreve a igualdade de direitos e deveres conjugais entre as pessoas dos sexos masculino e feminino. Exatamente por conta disso, aduz Sílvio Venosa que “o novo Código, em atendimento à perfeita igualdade constitucional do homem e da mulher, estabelece a idade de 60 anos para ambos os sexos” (VENOSA, 2003, p. 175). A incomunicabilidade dos bens amealhados na constância do matrimônio, nos casos de separação compulsória, contudo, sempre foi muito polêmica, despertando doutrinariamente posicionamentos favoráveis e contrários à meação dos aqüestos. Data de 1964 a Súmula n.° 377 do Supremo Tribunal Federal, a qual, ipsis litteris, define que: “No regime de separação legal de bens, comunicamse os adquiridos na constância do casamento”. A aplicabilidade deste enunciado pretoriano será examinada ulteriormente, neste artigo. 3. Da ratio legis do instituto Nesse ponto, há que se perguntar qual a razão de ser encontrada por Beviláqua – e endossada pelo Código Civil de 2002 – para legitimar a obrigatoriedade do regime de separação de bens para os idosos. Festejado doutrinador esclarece a esse respeito que (…) o legislador compreendeu que, nessa fase da vida, na qual presumivelmente o patrimônio de um ou de ambos os nubentes já está estabilizado, e quando não mais se consorciam no arroubo da juventude, o conteúdo patrimonial deve ser peremptoriamente afastado. A idéia é afastar o incentivo Ciro de Lopes e Barbuda 429 patrimonial do casamento de uma pessoa jovem que se consorcia com alguém mais idoso. (VENOSA, 2003, p. 175) O civilista baiano Orlando Gomes pontua que “tal restrição se explicava e justificava porque tal regime [comunhão universal de bens], importando comunicação de todos os bens presentes e futuros, poderia estimular a realização de casamentos de pessoas idosas no interesse de enriquecimento instantâneo do parceiro” (GOMES, 1999, p. 175). A ampla literatura jurídica explica que a separação legal é regime matrimonial de bens que se impõe por interesse público, possuindo finalidade protetiva (em relação aos maiores de sessenta anos e àqueles que carecerem de suprimento judicial para convolar as núpcias) ou punitiva (para os que se casam em inobservância das causas suspensivas do art. 1523 do Código Civil de 2002), e, por conseguinte, independentemente da vontade das partes. É dizer, o regime de separação efetua-se sem necessidade de manifestação expressa dos contraentes em sede de pacto antenupcial, formalidade exigida na separação convencional de bens (arts. 1687 e 1688 do Código Civil de 2002), entretanto dispensada, no regime compulsório de separação, por tratar-se de imposição da lei. Data venia, não se sustenta a opinião segundo a qual a obrigatoriedade da separação de bens por implemento de idade tem por escopo defender a terceira idade de aventureiros. Parece que essa regra restritiva de direitos é absolutamente dispensável e preconceituosa, criando muito mais estorvos, constrangimentos e incoerências do que vantagens para os idosos. É temerário que o legislador, gratuitamente, presuma que todo aquele que contrai matrimônio com um maior de sessenta anos seja um aproveitador, tendo os escusos fins de amealhar o quinhão patrimonial que lhe caiba no divórcio ou na sucessão mortis causa do cônjuge idoso (em suma, dando o vulgo “golpe do baú”). 430 A separação obrigatória de bens no casamento... Tampouco se pode aceitar que o legislador, outrossim, presuma a incapacidade absoluta do maior de sessenta anos para realizar um dos mais importantes atos da vida civil, que, como os demais, traz implicações patrimoniais, mas que, sobremaneira, afeta direitos potestativos do cidadão. Essa intromissão da lei autonomia da vontade do idoso colide frontalmente com o art. 1º, III e o art. 5°, I, X e LIV da Lei Maior. A seguir, delinear-se-ão os principais paradoxos decorrentes da exegese art. 1641, II, do Código. 3.1 Incompatibilidades interdisciplinares: problemáticas sociais, etárias e morais É sabido que a separação obrigatória contida no art. 1641, inc. II do Código Civil de 2002 quer precaver-se do jovem que se casa com o idoso somente para obter vantagem econômica. É forçoso admitir, todavia, que a imposição legal da separação de bens acaba por prejudicar, por tabela, aquele nubente com mais de sessenta anos que se consorcia com outro de igual faixa etária. Desse modo, abre-se a possibilidade de ser punido um “inocente” somente para que não fique sem punição um suposto “culpado”, opção legislativa que, num regime constitucional ancorado no devido processo legal, é inadmissível. O ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Arnaldo Rizzardo, assinalando a excessiva cautela do legislador de 2002, ao recepcionar a separação obrigatória por implemento de idade do Código de 1916, opina que mais correto “apresentar-se-ia excepcionar a obrigatoriedade do regime de separação de bens se ambos os nubentes fossem maiores de sessenta anos” (RIZZARDO, 2005, p. 665). A hipótese supracitada, de casamento entre dois cônjuges idosos, ganha ainda mais importância, se se levarem em consideração as últimas pesquisas estatísticas nacionais. Paloma Ciro de Lopes e Barbuda 431 Braga Araújo de Souza, advogada baiana, em recente artigo publicado virtualmente, verbera sobre isso: Segundo dados do censo demográfico realizado pelo IBGE em 2000, mais de 8% da população é formada por idosos, sendo boa parte deles provedores de seus lares, com uma renda média que equivalia a pouco mais de três salários mínimos. (...) O desejo de estabelecer uma comunhão de vida permeada pelo afeto e colaboração mútua é inerente à maior parte dos seres humanos, independente da idade. No Brasil, com a expectativa de vida média de 71,3 anos, é muito comum que esse desejo ocorra depois dos 60 anos. (SOUZA, 2007, p. 3) Ademais, as modernas medicina, psicologia e ciências sociais, especializadas, respectivamente, nas áreas da gerontologia e geriatria, da psicologia do desenvolvimento e da sociologia do envelhecimento, não mais encaram o amor e o sexo na terceira idade como um tabu, ou uma patologia, mas sim como um fenômeno perfeitamente normal, aliás, necessário à saúde somáticopsíquica do ser humano. Com a tendência de aumento da longevidade do brasileiro, é previsível que, cada vez mais, pessoas idosas, depois de estados de viuvez ou solteirice, decidam consorciar-se com novos parceiros, recomeçando uma vida conjugal e sexual. Os impedimentos de ordem física que, no século passado, obrigavam “senhores” e “senhoras” a abdicar do amor, resignando à “sala de espera da morte”, hoje, não representam mais nenhum óbice, posto que o mercado dispõe de incomensuráveis alternativas para mitigar os efeitos da menopausa e andropausa e cultivar, saudavelmente, a libido na velhice. Desse modo, são de duas naturezas apenas os entraves que subsistem, hodiernamente, para os relacionamentos da terceira idade: a) moral, devido ao pudor com que alguns idosos ainda encaram o assunto na velhice, frente ao forte preconceito social, ao medo de retaliações familiares e comunitárias e, mesmo, à desinformação e vergonha que, amiúde, as pessoas idosas têm a respeito de 432 A separação obrigatória de bens no casamento... seus corpos, num meio social onde se privilegiam a aparência e a estética; b) jurídica, cujo art. 1641, II do CC, em xeque, é o maior exemplo. Por sua vez, ainda que o casamento envolva um idoso e uma pessoa com menos de sessenta anos, nada impede que essa união dê-se pelas nobres razões do afeto recíproco, visando à comunhão de vida e à colaboração mútua. Cite-se o quarto casamento do maior gênio do cinema mudo, Charles Chaplin, milionário sexagenário, quando conhecera a sua futura e devotada esposa, Oona O’Neill, de apenas 18 anos, com quem Chaplin conviveu o resto de sua vida, nas mais absolutas felicidade e “feliz idade”, e de cuja relação ainda advieram oito filhos. Quão absurda não seria qualquer restrição ao direito patrimonial desse casal, levando-se em conta apenas a idade? Transcendendo o excessivo moralismo católico impregnado na legislação de família derrogada, é definitiva a lição de Silvio Rodrigues, ao acrescentar, ainda, na vigência do Código Beviláqua, que inexiste qualquer antijuridicidade na atração de uma pessoa mais jovem por uma mais idosa, para cuja aproximação a existência de patrimônio apenas concorre como um ingrediente a mais, nada impedindo que daí resulte um casamento tão lídimo e cúmplice quanto qualquer outro: (…) A tutela excessiva do Estado, sobre pessoa maior e capaz, decerto é descabida e injustificável. Aliás, talvez se possa dizer que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar os atrativos matrimoniais de quem a detém. Não há inconveniente social de qualquer espécie em permitir que um sexagenário ou uma qüinquagenária ricos se casem (sic) pelo regime da comunhão, se assim lhes aprouver. (RODRIGUES, 1998, p. 357) Vê-se, destarte, que resta de todo desproporcional e contrária ao princípio da razoabilidade a imposição do regime de separação para nubentes a partir de sessenta anos. Além de destilar Ciro de Lopes e Barbuda 433 preconceito e aniquilar direitos fundamentais do idoso, essa restrição revela-se especialmente maléfica, ao alargar os números do descaso de um país em que o tratamento ao idoso ainda é tão precário e desrespeitoso, cujas quilométricas filas do Sistema Único de Saúde e da Previdência vêm, constantemente, demonstrar o abandono da Administração Pública e da sociedade para com a terceira idade. 3.2 Incompatibilidades jurídicas: União Estável, Estatuto do Idoso e Súmula n.° 377 do Supremo Tribunal Federal É com perplexidade que, no sistema jurídico-civil pátrio, constatase que a união estável, entre idosos, recebe mais proteção do Estado do que o casamento civil, do ponto de vista do direito patrimonial. Na união estável, o regime legal de bens é a comunhão parcial, não havendo nenhuma ressalva quanto aos maiores de sessenta anos, ao passo que, no matrimônio onde um dos contraentes é idoso, por força do inc. II do art. 1641 do Estatuto Civil, a separação de bens é o regime matrimonial compulsório. Tal contradição evidencia a atecnia legislativa, ao estatuir a separação obrigatória de bens por implemento de idade, pois, se a união estável de maiores de sessenta anos é um minus, e a ela se aplica, em não havendo contrato que estipule regime diverso (cf. art. 1.725 do Código Civil), o regime de comunhão parcial, para o casamento, que é um plus, um ato jurídico que deixa óbvia a vontade das partes de constituírem economia comum e assumirem socialmente a condição de casados, com mais razão dever-se-ia subsumir a previsão contida no art. 1.640 do Diploma Cível, a fim de que, em caso de silêncio, vigore a comunhão parcial no casamento com cônjuge idoso, como sucederia em qualquer outro casamento válido. Portanto, a separação de bens por implemento de idade incentiva a convivência de idosos sob o regime da união estável, em 434 A separação obrigatória de bens no casamento... detrimento do casamento, postura que caminha na contramão da Carta Magna, que, no art. 226, § 3°, reconheceu a união estável como entidade familiar protegida pelo Estado, destacando, em seguida, a obrigação de a lei facilitar a sua conversão em casamento. Em sendo a união estável uma relação fática tutelada juridicamente, e em caráter supletivo em relação ao matrimônio, padece de inconstitucionalidade a previsão de benefícios aos companheiros que sejam negados aos casados, que firmaram relação jurídica sob os olhos da lei e submeteram-se aos processos de habilitação e celebração do casamento, cingindo-se ao preenchimento de todos os requisitos legais. No mesmo sentido, o seguinte entendimento de especialista em Direito Civil: (…) os cônjuges que se casaram ou vierem a se casar sob o regime de separação obrigatória de bens estarão numa situação inferior à dos conviventes, aos quais são asseguradas as mesmas regras do regime de comunhão parcial, o que implica na (sic) comunicabilidade ou na meação dos bens adquiridos na constância da união estável, não se podendo olvidar que, dentre as formas de constituição de família, o legislador constituinte deu preferência ao casamento em relação a (sic) união estável, tanto que permite a conversão desta naquele. E mais. O legislador infraconstitucional em harmonia com essa preferência, em vários pontos, inclusive em sede de direito sucessório, atribuiu mais direitos ao cônjuge do que ao convivente. Basta ver que o cônjuge supérstite, na ordem de vocação hereditária, prefere os parentes colaterais do autor da herança e o convivente com estes concorre. (NEGRÃO, 2005, p. 3) No dia 1º de outubro de 2003, foi sancionada pelo Presidente da República a Lei Federal n.° 10.741, que instituiu o Estatuto do Idoso, em complemento à Política Nacional do Idoso, concebida pela Lei n.° 8.842/94. O Estatuto, já nos arts. 2º e 3º, assegurou a proteção dos direitos fundamentais do idoso, entre eles os da liberdade, da dignidade e do respeito. O parágrafo único, inc. IV, do mesmo art. 3º estabeleceu que a garantia de prioridade no Ciro de Lopes e Barbuda 435 atendimento e efetivação dos direitos da pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos compreende a “viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações”. Ainda, o art. 4º é taxativo, ao determinar que “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei”. Não contente, o legislador previu, no art. 10, que “É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis”, delimitando, ainda, nos parágrafos daquele mesmo dispositivo legal, que o direito à liberdade do idoso compreende a “participação na vida familiar e comunitária”, que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral”, e que “É dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Possui claridade solar, destarte, o intuito de proteção ao hipossuficiente que teve o legislador do Estatuto do Idoso, ao colimar a aplicação de sanções administrativas e penais àqueles que infringirem as novas prerrogativas do maior de sessenta anos. Por último, há que se debruçar sobre a temática da atual vigência e, sendo o caso, da extensão da aplicabilidade da Súmula n.° 377 do Colendo STF. A questão reside na possibilidade, ou não, de, no casamento em que vigore, por força da lei, o regime obrigatório de separação de bens, comunicarem-se entre os cônjuges os bens aquinhoados durante o conluio matrimonial. E, em caso de comunicabilidade, se se incluem somente os bens provenientes do esforço comum, ou todos os supervenientes ao enlace matrimonial. O jurisconsulto Caio Mário da Silva Pereira sustenta que a redação do art. 1641 do Código não dá margem às amenizações 436 A separação obrigatória de bens no casamento... da Súmula n.º 377 do STF, a qual, por conseguinte, estaria prejudicada no novo ordenamento civil (PEREIRA, 2004, p. 195). Tal não é a orientação, no entanto, da jurisprudência mais atual, eis a ementa do acórdão que julgou o REsp n.° 442629/RJ, em 02.09.2003, da lavra da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tendo por Relator o Min. Fernando Gonçalves: CIVIL. REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. AQÜESTOS. ESFORÇO COMUM. COMUNHÃO. SÚMULA 377/STF. INCIDÊNCIA. 1. No regime da separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento pelo esforço comum dos cônjuges (art. 259 CC/1916). 2. Precedentes. 3. Recurso especial conhecido e provido. Para eminente civilista, porém, “a exegese mais correta é a que sustenta a comunicabilidade dos aqüestos, quando formados pela atuação do marido e da mulher. Se na sociedade de fato prevalece tal solução, quanto mais no casamento, que é um plus” (RIZZARDO, 2005, p. 662). Tal corrente, que parece não ser a preferível, encontra muitos adeptos doutrinária e jurisprudencialmente. Leia-se, verbi gratia, antigo acórdão da lavra da Corte Constitucional: Casamento. Regime de bens. Separação legal. Os bens havidos, na constância do casamento, por um dos cônjuges, em virtude de herança, não se comunicam. A Súmula 377 refere-se à comunicação de aqüestos, no regime de separação legal. Não é invocável, quando se cuida de bens adquiridos, na constância do matrimônio, não pela cooperação de ambos os cônjuges, mas por herança. Código Civil, arts-259 e 258, parágrafo único, inciso I. Sendo de separação legal o regime de bens, no desquite litigioso, não é de assegurar meação, quanto aos bens havidos por herança, na constância do casamento. Negativa de vigência do art-259, do CCB, que não se verifica. Recurso extraordinário Ciro de Lopes e Barbuda 437 não conhecido. (STF - RE 93168/RJ, 1ª Turma, Relator: Min. Néri da Silveira, julgado em 18.10.1984). Embora seja posicionamento minoritário, aqui se adota a comunicabilidade dos aqüestos, como regra, nos casos de separação obrigatória, a qual se já revela um instituto falível e falido. Abstrai-se, assim, a necessidade de “esforço comum”, conceito jurídico indeterminado e assaz relativo. Em 2006, o STJ cunhou o seguinte acórdão, cuja ementa é reproduzida integralmente, por representar o início da consolidação de uma mudança de paradigma: União estável. Dissolução. Partilha do patrimônio. Regime da separação obrigatória. Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes da Corte. 1. Não há violação do art. 535 do Código de Processo Civil quando o Tribunal local, expressamente, em duas oportunidades, no acórdão da apelação e no dos declaratórios, afirma que o autor não comprovou a existência de bens da mulher a partilhar. 2. As Turmas que compõem a Seção de Direito Privado desta Corte assentaram que para os efeitos da Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal não se exige a prova do esforço comum para partilhar o patrimônio adquirido na constância da união. Na verdade, para a evolução jurisprudencial e legal, já agora com o art. 1.725 do Código Civil de 2002, o que vale é a vida em comum, não sendo significativo avaliar a contribuição financeira, mas, sim, a participação direta e indireta representada pela solidariedade que deve unir o casal, medida pela comunhão da vida, na presença em todos os momentos da convivência, base da família, fonte do êxito pessoal e profissional de seus membros. 3. Não sendo comprovada a existência de bens em nome da mulher, examinada no acórdão, não há como deferir a partilha, coberta a matéria da prova pela Súmula nº 7 da Corte. 4. Recurso especial não conhecido. (STJ - Resp 736627/PR, 3ª Turma, Relator: Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 11.04.2006). Cabe, en passant, referir o auto-explicativo art. 45 da Lei n.° 6.515/1977 (Lei do Divórcio), que excetua o regime de separação 438 A separação obrigatória de bens no casamento... legal em duas hipóteses: a) se, antes do casamento, houve convivência, anterior a 28.06.1979 (data da Emenda Constitucional n° 9, que inseriu o divórcio na Constituição de 1969), que durou mais de dez anos; b) se, dessa convivência, independentemente de sua perduração, resultaram filhos. 4. Conclusões necessárias Em artigo da Internet, tece-se brilhante comentário sobre o regime da separação obrigatória de bens para o maior de sessenta anos: A imposição do regime de separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos revela-se completamente equivocada pois parte de premissas falsas. A primeira delas é a de que o novo casamento se dará entre pessoas de idade muito diversas e por um provável interesse econômico. A segunda é a de que na constância desse casamento não haverá esforço comum para aquisição / preservação do patrimônio do casal. (SOUZA, 2007, p. 3) A partir desta inferência e do quanto se discutiu anteriormente, conclui-se que: a) O instituto da separação legal de bens pelo implemento da idade de sessenta anos (art. 1641, I I do Código Civil) é flagrantemente inconstitucional, transgredindo os princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da honra, da proporcionalidade, do devido processo legal (acepções formal, na condição de limite processual, e substancial, na condição de vedação à edição de atos legislativos arbitrários), do contraditório e ampla defesa, da função social da propriedade, do direito de herança, da especial proteção da família por parte do Estado, da igualdade do exercício de direitos relativos à sociedade conjugal pelo homem e pela mulher e do dever geral de amparo aos idosos; b) É inadmissível que o legislador presuma, in abstracto, a máfé do cônjuge mais jovem ou a incapacidade do cônjuge idoso, para efeito de atrelar o casamento entre eles ao regime compulsório. Ciro de Lopes e Barbuda 439 Somente in concreto, através de um processo judicial, no qual sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa, é que respeita a democracia a interferência na esfera jurídica dos cidadãos – no caso, anulando o casamento, se esse negócio jurídico for maculado por fraude, ou interditando o idoso, se houver prova de sua incapacidade. Dessarte, urge se promovam as reformas legislativas necessárias a estender o regime de bens legal ao casamento do cônjuge a partir dos sessenta anos, fato que, de per si, não configura motivo jurídico plausível para operar tal discrímen; c) É notória e inquestionável a antinomia entre as regras do art. 1641, II da Lei 10.406/2002 e da Lei 10.741/2003, sendo que a aplicação da primeira implica colisão direta com o art. 4º da última, o que pode ensejar, de plano, a responsabilização dos culpados. Uma vez que o Código Civil é norma geral e anterior, prevalecem, pelos critérios da especialidade e da posterioridade, as disposições legais do Estatuto do Idoso; d) Permanece em vigor a Súmula n.° 377 do Pretório Excelso, cuja melhor interpretação é dada por corrente do STJ que dispensa, para comunicar os aqüestos no regime de separação obrigatória, a existência de concurso de esforços entre os cônjuges. Finaliza-se o presente artigo com um pensamento estrangeiro e uma homenagem brasileira. O primeiro é de autoria do escritor francês Henry de Montherlant, que diz que: “Os velhos morrem, porque já não são amados”. A segunda é por nós endereçada à poetisa goiana, Cora Coralina, cujo poema “Não sei” serviu de epígrafe para este trabalho e cuja vida serve de exemplo para todos. Tendo publicado o primeiro livro aos 75 anos de idade e jamais tendo desistido do amor nos 20 anos de sobrevida, Coralina, cujo nome artístico também poderia ser Coragem, ensina que o idoso merece, especialmente, respeito e atenção. 440 A separação obrigatória de bens no casamento... 5. Referências GOMES, Orlando. Direito de família. 11. ed. rev. e atualizada por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 1999. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família. 34. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 2 .NEGRÃO, Sônia Regina. Regime de bens: o novo Código Civil e a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 697, 2. jun. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=6828>. Acesso em: 12.03.07. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 14. ed. de acordo com o Código Civil de 2002. Rev. e atualizada por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 5. R IZ ZAR DO, Arnaldo. Direito de família: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 23. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 6. SOUZA, Paloma Braga Araújo de. Da inconstitucionalidade material do art. 1641, II, do Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1349, 12 mar. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=9586>. Acesso em: 12.03.07. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. (Coleção direito civil, v. 6). Notas 1 Trabalho apresentado no III Jornadas Brasileiras de Direito Privado & I Congresso Baiano de Direito de Família, realizado em 30 e 31 de março de 2007, para o II Concurso de Artigos JusPODIVM de Direito Privado. Ciro de Lopes e Barbuda 441