14/01/2007
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14/01/2007
Artigo apresentado no I ENCONTRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS – ENET promovido pelo Instituto de Direito Tributário de Londrina de 30/08 a 02/09/06 (Selecionado pela Comissão Organizadora). EXTRAFISCALIDADE E PROGRESSIVIDADE COMO REALIZADORAS DA SOLIDARIEDADE SOCIAL E SEUS LIMITES Ricardo Kleine de Maria Sobrinho [1] Sumário: 1 - Introdução; 2 - Solidariedade Social Tributária; 3 - Extrafiscalidade e Progressividade; 4 - Segurança Jurídica: Estabelecendo Limites ao Uso da Extrafiscalidade e da Progressividade; 5 - Conclusões; 6 – Bibliografia. 1 - INTRODUÇÃO Um dos mais recentes e interessantes temas postos em debate no Direito Tributário é o da função social do tributo, ou da solidariedade social tributária. Essa é uma temática complexa e repleta de dificuldades, não só por ser pouco estudada, mas também porque envolve, em grande medida, a rediscussão de outros temas que perpassam a disciplina tributária. E talvez o maior desafio resida na compreensão harmônica entre (i) a necessidade premente de uma solidariedade tributária como fundamentadora das exações fiscais e (ii) a imperativa segurança jurídica que deve informar e limitar o sistema — constitucional, como um todo, e tributário, de modo específico. Diversos são, assim, os aspectos que poderiam ser estudados no concernente a esse tópico (solidariedade tributária versus segurança jurídica). Todavia, pela complexidade e amplitude da investigação, bem como pela restrição de espaço que aqui nos é imposta, escolhemos tratar, ainda que em linhas gerais, da problemática referente ao controle do uso extrafiscal do tributo voltado à consecução da solidariedade, tocando especialmente na temática da implementação de uma progressividade tributária, que certos autores entendem extrafiscal. O recorte assim promovido traduz, pois, preocupação mais ampla, que não se restringe apenas ao Direito Tributário, mas busca parâmetros no todo da Constituição, em especial em suas bases normativas mais fundamentais (com ênfase nos princípios do art. 1º e nos objetivos do art. 3º) e no desenho dos ordenamentos econômico e social. De outro lado, é essencial restar claro que, a despeito dessa ampliação na leitura, limites encontráveis no sistema ainda subsistem, delimitando o formato possível da atuação funcional-solidária. Se a segurança jurídica (traduzida em legalidade e exigência de capacidade contributiva) não pode servir de anteparo a uma realização social, também não lhe pode ser submissa. Seu papel, diversamente, é exercido no controle da própria política social-tributária realizada. Assim é que, para ao menos esquadrinharmos em vôo panorâmico as indagações por nós concebidas, (i) traçaremos uma noção do que se possa entender por solidariedade tributária (ou função social do tributo); (ii) encontraremos a conexão que vincula a extrafiscalidade e a progressividade e em que medida ela atua; (iii) intuiremos onde se localizam as limitações ao uso extrafiscal e progressivo do tributo; e finalmente (iv) aduziremos breve síntese conclusiva dos pontos tratados. 2 - SOLIDARIEDADE SOCIAL TRIBUTÁRIA A atividade tributária realiza-se, em termos concretos, pelo translado de recursos próprios dos particulares para a titularidade do Estado. Paga-se o tributo para financiar a atividade estatal, o que significa dizer que se paga o tributo para a realização dos fins do Estado, fins esses que, na conformação estatal efetivada pela Constituição da República de [2] 1988, devem ser voltados ao cumprimento de funções solidárias . Daí decorre que a função tributária deva ser lida com outros olhos: não se trata de uma mera subtração de patrimônio particular, mas de um dever de colaboração [3] solidário . E a identificação desse dever solidário — enfim, a justificação da tributação como um todo — não é encontrável no capítulo tributário da Constituição da República. A exigência de solidariedade — e a própria imposição de realização de solidariedade por parte do Estado — é mais geral, e vem deduzida nos artigos iniciais da Carta Constitucional, que delineiam princípios e objetivos da República Federativa do Brasil. É nos artigos 1º e 3º que está alocada a idéia de solidariedade na Constituição brasileira. A cidadania e a dignidade da pessoa humana, enquanto fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito, carregam em seu bojo a noção solidária, que pouco adiante, no texto, será desdobrada no objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Portanto, é de absoluta clareza a exigência premente, na construção do Estado, do respeito à solidariedade, que deve informar toda e qualquer ação estatal, ainda que de modo indireto. Sem a noção de solidariedade, sem a busca dessa solidariedade — em composição, é evidente, com outros valores e objetivos —, o Estado brasileiro não teria sentido ou razão de ser. Essa opção radical pela solidariedade reflete-se, de modo muito firme, por quase todas as disposições constitucionais. Interessante é a leitura de JOSÉ CASALTA NABAIS, para quem a solidariedade chega mesmo a constituir um [4] aspecto da cidadania, como globalmente compreendida . Aliás, é esta noção de cidadania solidária, portadora dos deveres de solidariedade do indivíduo enquanto cidadão (i.e., inserto no contexto estatal), que permite uma releitura da relação Estado/sociedade, possibilitando que se compreenda não haver uma dicotomia rígida entre essas duas realidades (Estado e sociedade), mas uma relação de estreita implicação e conseqüente colaboração. Daí dizer CASALTA NABAIS que “...a dimensão solidária da cidadania implica o empenhamento simultaneamente estadual e social de permanente inclusão de todos os membros na respectiva comunidade de modo a todos partilharem um mesmo [5] denominador comum, um mesmo ‘chão comum’, que assim os torne cidadãos de corpo inteiro dessa comunidade” . O que se busca, portanto, na via da cidadania, é uma relação harmônica entre as esferas estatal e social, tornando possível uma convivência mais justa e que possa cumprir a dignidade da pessoa humana, valor estrutural fundante da Constituição da República. Para que seja possível essa relação, a arrecadação tributária revela-se de importância suprema. A fiscalidade é um instrumento essencial no cumprimento da solidariedade social, e isso nas duas pontas da relação tributária, ou seja, tanto em referência aos contribuintes quanto em referência ao próprio Estado. De fato, e desenvolvendo melhor a idéia, o montante arrecadado tem como objetivo principal preencher os cofres estatais, capacitando o Estado a ter a verba necessária a ser despendida em diversos programas realizadores de seus objetivos fundamentais. Os direitos — sejam eles sociais ou individuais — só podem existir e ser realizados e [6] garantidos se e quando o Estado tiver a verba necessária para tanto, o que somente se realiza por via da fiscalidade . Ou seja, a solidariedade realiza-se pela própria arrecadação, que será capacitadora da ação do Estado. De outro lado, a fiscalidade, insuflada pelo princípio da capacidade contributiva, também é realizadora da solidariedade, em duas vias específicas: (i) na atuação das imunidades e das isenções tributárias e (ii) na percussão progressiva da tributação. Vejamos, ainda que de maneira breve, cada uma delas em separado. [7] Em primeiro lugar, as imunidades e isenções . Ora, é bastante evidente o fundo social do rol de imunidades constante na Constituição da República. A maior parte das imunidades ali encontráveis dizem respeito a entidades que cumprem papel fundamental na formação social e política dos cidadãos. Mas merecem destaque, neste tópico, as imunidades respeitantes às instituições de educação e de assistência social, uma vez que elas refletem de maneira inteiramente direta a idéia de solidariedade social. É que tais entidades cumprem papel absolutamente fundamental na construção de uma sociedade mais justa e solidária, atendendo com exatidão à determinação constitucional. Daí que, se [8] fossem tributadas normalmente, contribuiriam duplamente para a consecução de objetivos sociais . No tocante às isenções, o raciocínio já desenvolvido para as imunidades pode também ser aplicado, mas para tanto é preciso fazer previamente uma ponderação relevante: nem todas as isenções, e muitas vezes nem mesmo a maioria das isenções, estarão afinadas diretamente com uma solidariedade social. Várias delas apenas visam mais diretamente ao cumprimento de finalidades econômicas e regionais, como é o caso daquelas isenções conferidas por Municípios a empresas que se venham a instalar no local. Claramente, esses tipos de isenções têm objetivos econômicos diretos, mas é evidente que nem por isso deixam de buscar atingir, em certa medida, finalidades sociais, já que a instalação de certas empresas ou indústrias em determinadas regiões pode ser importante fator de desenvolvimento social, beneficiando assim os cidadãos que ali residam. Essa visão, contudo, embora correta, deve ser adequadamente relativizada, pois, como mencionamos ainda agora, o objetivo social dessas isenções não é direto, e, se e quando existente, é conseguido apenas por via indireta. Com essa importante ponderação em mente, o que se disse a respeito das imunidades também é aplicável às isenções. Em segundo lugar, devemos fazer breve visita à idéia de progressividade tributária. Por evidente que ela cumpre objetivos sociais, na medida em que distribui o encargo tributário pelas várias camadas sociais que atinge. Assim, o objetivo primordial das alíquotas progressivas é permitir que quem tem menos pague menos, e quem tem mais [9] pague mais na medida e proporção de suas possibilidades É a redistribuição de riqueza que assim se opera e por [10] isso há autores que alocam a progressividade como um reflexo da extrafiscalidade . Isto é, na medida em que a progressividade determina faixas de alíquotas diferenciadas para contribuintes que se encontram em situação diversa, o que se tem, fundamentalmente, é o cumprimento da capacidade contributiva, e o resultado obtido é o financiamento do Estado — naquela parcela de função fiscal que antes mencionamos — em proporções desiguais, de modo que os mais abastados e menos necessitados financiem com maior vigor a máquina estatal que reverterá em benefício daqueles que, menos abastados e mais necessitados, proporcionarão financiamento da atividade estatal em níveis mais baixos — compatíveis, por evidente, com sua capacidade econômica. É, portanto, a combinação das duas vertentes, de modo a que se tenha uma fiscalidade progressiva, que exprime a solidariedade social no sistema tributário. Trata-se, pois, de enxergar no tributo não apenas uma função fiscal, mas uma verdadeira função social, que, aliás, passa a ser o objetivo último da própria arrecadação, como já expressamos linhas acima. 3 - EXTRAFISCALIDADE E PROGRESSIVIDADE A função social do tributo, todavia, não se esgota no cumprimento de sua função fiscal, até porque a fiscalidade não é exclusiva nos tributos: há sempre uma função extrafiscal embutida em toda e qualquer espécie de tributação, que pode ou não ser utilizada de modo consciente. Isto é, a função extrafiscal tributária é a utilização consciente de uma característica do tributo — a imposição, ao particular, de custos em suas atividades — com o objetivo de atingir uma [11] outra finalidade que não a arrecadatória . Daí dizer-se que a extrafiscalidade, ao passo que funcionaliza de maneira forte (consciente) o tributo, utiliza-o também para a promoção de outros objetivos que não a mera arrecadação. Trata-se da utilização de uma função do Direito que não é mais somente aquela coativa, tradicional, mas uma função promocional que, positiva ou negativa, pretende induzir o contribuinte a produzir certos comportamentos desejados [12] através do estímulo ou desestímulo embutidos na normatividade . No caso tributário o que se busca é um reflexo na [13] composição de custos do contribuinte, induzindo (estimulando ou desestimulando) os comportamentos desejados . É sobretudo importante, todavia, desenhar qual o exato âmbito de atuação dessa extrafiscalidade a que aqui nos referimos, e que não é, de modo algum, uma extrafiscalidade lato sensu. Como bem esclarece LUÍS EDUARDO SCHOUERI, a doutrina nacional utiliza o vocábulo extrafiscalidade em dois diferentes sentidos. Na primeira acepção, mais larga — e que aqui denominamos extrafiscalidade lato sensu —, extrafiscalidade abrange uma categoria normativa bastante ampla, incluindo normas que não são necessariamente tributárias, isto é, “...inclui todos os casos não [14] vinculados nem à distribuição eqüitativa da carga tributária, nem à simplificação do sistema tributário” . De outro lado, aquela espécie que poderia ser designada por extrafiscalidade stricto sensu limita sua abrangência à utilização do instrumental tributário com objetivos ordinatórios, modificadores da realidade, sendo esse sentido estrito o mais [15] comumente empregado pela doutrina . Portanto, e separados gênero e espécie, estamos aptos a entender que há duas maneiras diferentes de realizar a solidariedade social por via da tributação. A primeira delas é a via fiscal, e a segunda a via extrafiscal. Na primeira das modalidades, como vimos, utilizava-se a fiscalidade com o objetivo de arrecadar verbas à atuação do Estado, cujos objetivos mais relevantes são sociais. Nessa medida, era possível que a obtenção de receitas se fizesse de modo proporcional, isto é, aplicando a capacidade contributiva e possibilitando que cada contribuinte exercesse seu papel de acordo com a sua capacidade. Essa função era claramente social, na medida em que se pretendia (re)distribuir a riqueza existente na sociedade, e aqui o princípio da progressividade tinha papel absolutamente relevante. Essa não é, contudo, a única via possível de atuação social para o tributo. Outro modo do atuar tributário fundamental à produção de comportamentos mais adequados à solidariedade é a utilização da função extrafiscal, que, como já procuramos demonstrar, induz determinados comportamentos pretendidos, influindo diretamente no custo das atividades realizadas pelo contribuinte. Assim, a concessão de benefícios fiscais implicará diretamente a redução de custos para a atividade tributada, fato que tende a estimular maiores investimentos nos negócios que se utilizem daquela específica atividade. De outro lado, caso a alíquota seja elevada, o custo também será aumentado, produzindo desestímulo no comportamento do contribuinte, que certamente relutará em utilizar ou ofertar a atividade com [16] tributação agravada . Aqui se vê que não há papel, ao menos em princípio, para a progressividade tributária atuar de modo extrafiscal. Esta afirmação, contudo, como se verá, deve ser relativizada, para dizermos que não há papel, ao menos, para aquela progressividade fundada na capacidade contributiva, que separa os contribuintes por faixas de possibilidade econômica, delegando a cada qual um diferente dever tributário ajustado à sua capacidade. Isso porque a progressividade também pode combinar-se com um atuar extrafiscal, ou melhor, pode ser um instrumento reprodutor dos objetivos extrafiscais. Importa observarmos, no ponto, que o sistema tributário permite o escalonamento de alíquotas (progressividade) com o objetivo único de desestimular os contribuintes a adotarem certos comportamentos. Assim, quanto menos interessante for um determinado comportamento para determinada faixa de consumo econômico, mais [17] alta será a alíquota . Há vários exemplos possíveis desse tipo de tributação, e que, aliás, não precisa ser restrita aos impostos, podendo estender-se às taxas ou às contribuições. Delinearemos duas situações exemplificativas para esclarecer a questão. Uma das possibilidades, acolhida pelo próprio texto constitucional, é a progressividade do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), prevista no artigo 182, § 4º, combinado com o artigo 156, § 1º. Nesses dispositivos encontra-se a possibilidade de instituição de imposto progressivo nos casos em que a propriedade não esteja sendo utilizada adequadamente, ou a ela seja dada subutilização. Quando isso ocorrer, é possível a incidência de alíquotas diferenciadas, mais altas, que desestimulem o proprietário a manter o imóvel nas condições indesejadas. Nesse caso, é possível, ainda, o agravamento das alíquotas também em função da área em que se localiza o imóvel. Tudo isso significa que um imóvel subutilizado localizado em uma área de periferia pode ter uma alíquota mais alta, estimulando seu proprietário a dar destinação diferente ao imóvel, dando-lhe papel social mais relevante, e desestimulando a especulação imobiliária. A situação, evidentemente, é sobremodo mais grave se a localização do imóvel for no centro da cidade, de maneira que nessas hipóteses a Constituição abre a possibilidade de aumentar ainda mais alíquota, pois o proprietário está subutilizando imóvel em região na qual sua função social é mais aguda, ou seja, em pleno coração da urbe. Outro exemplo de progressividade com fundo extrafiscal é a instituição de “sobretarifas” para certos serviços públicos, como ocorreu com o advento da crise energética em 2001. Naquela oportunidade, essas “sobretarifas” foram fixadas com o intuito de desestimular os consumidores de energia elétrica a utilizar níveis energéticos superiores a [18] determinada quantia, tudo com o objetivo de possibilitar a poupança energética e a recuperação breve do setor . É cristalina, nessas hipóteses, a idéia de solidariedade social possibilitando a utilização combinada de alíquotas progressivas com função extrafiscal. Claramente, contudo, essas possibilidades encontram alguns limites constitucionais. É o que passaremos a tratar no próximo item. 4 - SEGURANÇA JURÍDICA: ESTABELECENDO LIMITES AO USO DA EXTRAFISCALIDADE E DA PROGRESSIVIDADE Estabelecemos, nas páginas precedentes, a idéia de uso (extra)fiscal e progressivo do tributo de modo a cumprir funções sociais, arrecadando e redistribuindo a riqueza existente no país e adequando o comportamento dos agentes econômicos. Certamente o instrumento tributário é importante e não pode ser ignorado. A sua utilização, contudo, não pode ser desenfreada e ultrapassar os próprios limites desenhados no bojo do texto constitucional, especialmente porque o sistema é informado de modo muito firme pelo princípio da segurança jurídica. O valor residente no cerne do princípio da segurança jurídica, entretanto, guarda grande compatibilidade com a [19] idéia de justiça, daí a dificuldade de sua determinação . De todo modo, não é fácil a constatação da existência de [20] . Assim, pode ser uma exigência de segurança jurídica, que é princípio implícito no ordenamento jurídico tributário deduzida da composição principiológica que informa todo o sistema tributário. Nesse sentido, e no esforço pela compreensão do significado de segurança jurídica, a primeira noção que encontramos é a de certeza. Ordenamento jurídico seguro é aquele certo, no qual o destinatário da norma sabe exatamente o que e como fazer, sem qualquer possível oscilação decisória — ou com uma mínima oscilação possível. O procedimento jurídico para a determinação de direitos e deveres, nas hipóteses em que se pretenda atingir a máxima certeza possível, é cognoscível, facilmente apreensível pelo sujeito passivo. Ou seja, a segurança jurídica, em seu quadrante de certeza, é traduzível como exigência premente e incontornável de legalidade: a ninguém será obrigada certa conduta, quanto mais condutas depreciadoras da propriedade privada — protegida constitucionalmente —, se não [21] houver prévio delineamento legal . Mas a noção de segurança jurídica não se esgota na certeza. Para que haja, verdadeiramente, segurança, é preciso mais: faz-se mister a existência de previsibilidade, afastando surpresas que possam atingir de modo drástico os sujeitos passivos. Trata-se, aqui, de conferir ao sujeito passivo a possibilidade de prever adequadamente a [22] tributação a que estará submetido caso pratique determinados atos . Pode-se traduzir a previsibilidade como proteção da confiança, que pode ser desdobrada especialmente dos princípios da boa-fé e da anterioridade. O terreno coberto até agora por nossa investigação levou-nos a entender que a legalidade é fator determinante [23] . Mas há outro fator importante e pouco explorado a merecer nossa atenção: o na consecução da segurança jurídica princípio da capacidade contributiva. Efetivamente, ele é muito identificado com a justiça tributária, sobretudo no sentido de distribuir adequadamente a carga tributária suportada por cada qual — o que resulta na importante idéia de progressividade. Mas essa faceta do princípio da capacidade contributiva, que diríamos positiva, não é a única. Há um lado menos estudado do princípio, e que se exprime como uma sua faceta negativa: a capacidade contributiva também serve de limite à atividade tributária, mormente porque, em sua atuação, imprime um mínimo e um máximo possíveis à tributação. Há dois parâmetros fundamentais que guiam a atuação da capacidade contributiva: (i) o respeito a um mínimo existencial, abaixo do qual nenhuma tributação é autorizada, e (ii) a vedação ao confisco, que estipula um delineamento máximo acima do qual a atuação estatal caracteriza, nas palavras de HETTLAGE citadas por CASALTA [24] NABAIS, verdadeiro “...cavalo de Troia do socialismo no estado de direito burguês” . Desse modo, o princípio da capacidade contributiva delineia limite intransponível, sob pena de inconstitucionalidade da norma tributária que o extravasar. Não basta, pois, a expressão tributária em lei: mister que essa lei respeite parâmetros máximos e mínimos, dentro dos quais se poderá estabelecer a adequada gradação tributária, [25] ou para cumprir objetivos fiscais ou extrafiscais . Cabe, nesse ponto, anotar que também a extrafiscalidade deve estar submetida aos limites que lhe impõe o sistema tributário. O tributo extrafiscal é, ainda, tributo, e como tal deve se comportar. Isso não quer dizer que a raiz mais profunda da tributação extrafiscal não brote da Constituição Econômica: ela o faz, como bem observa CASALTA [26] NABAIS . Todavia, se o pressuposto material da tributação extrafiscal reside na Constituição Econômica, seu pressuposto formal vem estipulado pela Constituição Tributária, com todas as limitações e possibilidades inerentes a qualquer outro tributo. A normatividade extrafiscal precisa, pois, respeitar também a principiologia que orienta a [27] normatividade fiscal . Em suma, a tributação, quer fiscal, quer extrafiscal, utilize-se ou não da progressividade como instrumento, tem como limite intransponível a aplicação de dois princípios medulares do ordenamento: a legalidade e a capacidade contributiva (ainda que esta última em sua dimensão negativa). 5 - CONCLUSÕES Do quanto aqui debatemos, podemos tirar as seguintes conclusões: 1 — A atividade tributária do Estado funda-se na idéia de solidariedade social, que pode ser realizada tanto pela via fiscal quanto pela via extrafiscal. 2 — Quando a solidariedade social realizar-se pela via fiscal, ela poderá fazê-lo de dois modos: (i) proporcionando a arrecadação que servirá ao financiamento das atividades sociais desenvolvidas pelo Estado; e (ii) no uso da progressividade, que atenderá à redistribuição de riqueza na sociedade. 3 — Quando a solidariedade social realizar-se pela via extrafiscal, ela se utilizará da função promocional do Direito, estimulando ou desestimulando o comportamento dos agentes econômicos e, nesses casos, poderá se utilizar, ou não, da progressividade. 4 — A busca de realização de solidariedade social por via tributária encontra limites na segurança jurídica, que pode ser traduzida em certeza e previsibilidade, especialmente no tocante a dois de seus princípios componentes: a legalidade e a capacidade contributiva (em sua dimensão negativa). 5 — A capacidade contributiva (em sua dimensão negativa) estabelece duas limitações claras á tributação: (i) o mínimo existencial, abaixo do qual nenhuma tributação é possível; e (ii) a vedação ao confisco, acima do qual toda a tributação está desautorizada. 6 - BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norberto. 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Os direitos políticos e individuais apenas surgiam no texto a partir do artigo 140, dando a entender que “...a primeira preocupação da Constituição era o aparato estatal e o exercício do poder de que estava investido, em suas diversas manifestações”, daí ser esta “...uma ´Constituição’ que tinha por objeto primordial o Estado, enquanto a sociedade civil surgia como preocupação constitucional depois do Estado que perante ele se posicionava e merecia a devida proteção” (Solidariedade Social e Tributação. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra (coord.). Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 170). Diversamente, o novel diploma constitucional radica-se em opção de outra ordem, na medida em que estrutura, primeiramente, os direitos e garantias fundamentais, ligado-os indelevelmente aos objetivos do Estado (especialmente ao referir, já no preâmbulo, o intento de “...instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”), relegando a organização estatal a dispositivos posteriores (artigos 18 et seq.) e levando a entender que “O foco central da CF/88 (...) não é mais o ‘Estado’ (aparato), mas a sociedade civil. A CF/88 passa a assumir o papel de definir a tessitura fundamental do convívio social que deve ser assegurada por esse instrumento (aparato público)” (Ibid., p. 171). [3] CLÁUDIO SACCHETTO estabelece, com propriedade, que “É um fato cultural, histórico, desconfiar do Estado e ver a arrecadação dos impostos como ‘subtração’, ao invés de contribuição a um Erário comum” (O Dever de Solidariedade no Direito Tributário: O Ordenamento Italiano. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 11). A temática da solidariedade inverte tal raciocínio, para nela radicar a própria razão de existência do tributo. Aliás, é o próprio SACCHETTO quem observa que “O tema da solidariedade é fundamental porque leva a perguntar porque se pagam tributos, porque deve existir uma lealdade fiscal” (Id.). [4] O autor divide a cidadania em três aspectos principais, e aduz haver “...uma linha divisória muito marcada entre, por um lado, a cidadania pessoal, traduzida nos diversos direitos e liberdades pessoais e, por outro, a cidadania política, consubstanciada nos direitos de participação política, e a cidadania social, concretizada nos direitos e deveres económicos socais e culturais” (Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal. In: NABAIS, José Casalta. Por um Estado Fiscal Suportável: Estudos de Direito Fiscal. Coimbra: Almedina, 2005, p. 97). [5] Ibid., p. 100-101. [6] É o que também pensam J. L. SALDANHA SANCHES e JOÃO TABORDA DA GAMA, que consignam com vigor: “Todas as tarefas que uma Constituição dirige ao Estado não passam das páginas impressas das constituições sem o mínimo de substrato financeiro. Assentam, por isso, na concretização que se for dando (ao princípio do) Estado Fiscal” (Pressuposto Administrativo e Pressuposto Metodológico do Princípio da Solidariedade Social: A Derrogação do Sigilo Bancário e a Cláusula Geral Anti-abuso. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 92). Por isso, entendem os autores que “A solidariedade entre os cidadãos — incentivada, realizada e protegida através do Estado — não é, pois, possível quando não coberta por receitas periódicas cobradas aos cidadãos. (...) Hoje, falar do Estado é, portanto, falar de impostos. (...) O Estado, a se, não paga nada. Em termos financeiros, o Estado é uma entidade transparente detida pelos contribuintes” (Id.). Também desenvolvendo a idéia de que a tributação é pressuposto fundamental para a existência e manutenção de direitos, inclusive do direito de liberdade, cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York, London: W. W. Norton & Company, 2000. No Brasil, cf. GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: Direitos não Nascem em Árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. [7] Em traços rápidos, podemos dizer que as imunidades são limitações competenciais estabelecidas pela Constituição para a criação tributária, que não poderá alcançar aqueles fatos imunizados. Já as isenções, diferentemente, compõe a regra-matriz de incidência tributária, de modo a desenhar, por via do critério material, contornos de incidência que admitam certos fatos e excluam outros. Para estudos mais aprofundados no tema, cf. BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3 ed., rev. e atualiz. São Paulo: Malheiros, 2001; e COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo, da Interpretação e da Exoneração Tributária (O Significado do art. 116, Parágrafo Único, do CTN). 3 ed. São Paulo: Dialética, 2003. [8] O mesmo raciocínio, aliás, é desenvolvido por CASALTA NABAIS, para quem estas entidades “...contribuem para as despesas públicas em dois momentos e por duas vias: de um lado, pela satisfação de interesses gerais ou sociais, suportando directamente as correspondentes despesas; de outro, pela sujeição a impostos arcando com os correspondentes encargos” (Solidariedade..., op. cit., p. 107). [9] O que remete-nos, diretamente, à discussão da progressividade como meio realizador da capacidade contributiva. Sobre essa idéia, cf. TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, especialmente p. 43-44. [10] Nesse sentido, cf. YAMASHITA, Douglas. Princípio da Solidariedade em Direito Tributário. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de. Solidariedade..., op. cit., p. 53-67. Aqui, temos o dever de observar que, ainda que possamos concordar que a progressividade seja encampada pela extrafiscalidade em um sentido lato, ela não o é — ao menos não em sua totalidade — em um sentido estrito. Esse detalhamento da questão, contudo, será mais bem desenvolvido no item a seguir, quando passaremos a tratar com maior especificidade da funcionalidade tributária e, mais diretamente, da extrafiscalidade como instrumento indutor de comportamentos. [11] Por isso é possível dizer que a extrafiscalidade é a funcionalização consciente do tributo. Abrimos parêntesis, neste passo, para esclarecer que a “consciência” a que nos referimos nada tem a ver com a possibilidade de o hermeneuta desvendar a real intenção do legislador ao elaborar o texto normativo. Antes, essa consciência deverá se fazer presente no próprio corpo do texto, de modo explícito ou implícito. É que, se permanecer a “consciência” na esfera íntima do legislador, o controle da extrafiscalidade e de sua compatibilidade com as funções constitucionalmente designadas será extremamente dificultado, quando não impossibilitado de todo. Por isso, entendemos adequado que o hermeneuta realize alguma pesquisa, não apenas a respeito dos efeitos sociais que serão produzidos pela norma, mas também dos efeitos pretendidos pelos dispositivos constitucionais em que está fundada a específica exação sob exame. Entendemos, ainda, que a busca na exposição de motivos do texto legislativo e em outros dispositivos no corpo do texto legal que explicitem finalidades para a norma sob exame é essencial a uma exegese compromissada com a funcionalidade normativa. [12] Sobre a função promocional do Direito, cf. BOBBIO, Norberto. Dalla Struttura alla Funzione. Milano: Edizione di Comunità, 1977. [13] Todo o tributo traz em seu bojo um custo, de modo que sempre haverá um efeito produzido sobre os contribuintes. A tributação neutra, de fato, não existe. Para um tratamento algo mais detalhado dessas questões, cf. nosso Perfil Constitucional das Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico. Curitiba, 2006. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal do Paraná, p. 96-108. [14] SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 32. [15] Ibid., p. 33. É este sentido mais estrito que JOSÉ CASALTA NABAIS utiliza para definir a extrafiscalidade, ao dizer que ela “...traduz-se no conjunto de normas que, embora formalmente integrem o direito fiscal, tem por finalidade principal ou dominante a consecução de determinados resultados económicos ou sociais através da utilização do instrumento fiscal e não a obtenção de receitas para fazer face às despesas públicas. Trata-se assim de normas (fiscais) que, ao preverem uma tributação, isto é, uma ablação ou amputação pecuniária (impostos), ou uma não tributação ou uma tributação menor à requerida pelo critério da capacidade contributiva, isto é, uma renuncia total ou parcial a essa ablação ou amputação (benefícios fiscais), estão dominadas pelo intuito de actuar directamente sobre os comportamentos económicos e sociais dos seus destinatários, desincentivando-os, neutralizando-os nos seus efeitos económicos e sociais ou fomentando-os, ou seja, de normas que contêm medidas de política económica e social” (O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 629). [16] Para JOSÉ CASALTA NABAIS, a extrafiscalidade não é uma função especificamente tributária, mas radica-se e tem seus contornos determinados pela Constituição Econômica, ou seja, pela parte da Constituição responsável pela estruturação das normas de Direito Econômico. Isso significa, segundo o autor português, que a disciplina da tributação extrafiscal é muito mais econômica do que tributária, de modo que as limitações tributárias não lhe são diretamente aplicáveis. Trata-se do que o autor chama de um Direito Fiscal Econômico. Para ele, “...tendo presente nomeadamente as ideias de selecção e flexibilidade, próprias dos instrumentos de política económica e social, é fácil concluir que a extrafiscalidade, não pode ser objecto dos exigentes princípios ou limites constitucionais próprios do direito fiscal” (Solidariedade..., op. cit., p. 109). Voltaremos ao tema ainda à frente, no próximo item, quando tratarmos dos limites impostos à atuação da solidariedade social pelas vias da extrafiscalidade e da progressividade. [17] A razão para isso, observe-se, nem sempre será a prática de um consumo econômico muito alto por parte do sujeito passivo. Todavia, qualquer que seja a razão residente na base dessa progressividade, ela sempre será remetida à solidariedade social, seja preservando interesses solidários econômicos, ou de uso adequado de propriedade imóvel, ou outros possíveis. [18] Para que o exemplo funcione, todavia, o leitor deve assumir que é possível a cobrança de taxas no setor elétrico. Porque entendemos que nesses casos — especialmente no momento pós-privartização em que vivemos — não há taxa, mas preço privado, o exemplo permanece hipotético. Todavia, o raciocínio pode ser transportado com tranqüilidade para situações outras nas quais haja cobrança de taxas. Sobre a problemática taxa/tarifa/preço privado, cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 340-350. Além disso, o caso do setor elétrico é ainda peculiar, pois a situação que ensejou a instituição das mencionadas “sobretarifas” foi produzida pelo próprio Estado, que privatizou o setor sem prévio planejamento e possibilitou a ocorrência de déficit regulatório que só agravou a situação. Sobre o tema, cf. PIRES, José Cláudio Linhares; REIS, José Guilherme. O Setor Elétrico: A Reforma Inacabada. In: GIAMBIAGI, Fábio; REIS, José Guilherme; URANI, André (org.). Reformas no Brasil: Balanço e Agenda. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2004, p. 385-408, especialmente às páginas 389-391. [19] No mesmo sentido é a expressão de RICARDO LOBO TORRES: “Segurança jurídica é certeza e garantia dos direitos. É paz. Como todos os valores jurídicos é aberta, variável, bipolar e indefinível. A segurança jurídica significa sobretudo segurança dos direitos fundamentais” (Limitações ao Poder Impositivo e Segurança Jurídica. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Limitações ao Poder Impositivo e Segurança Jurídica. São Paulo: Centro de Extensão Universitária e Revista dos Tribunais, 2005, p. 74). [20] No âmbito da anterior Constituição, a segurança jurídica não encontrava guarida expressa no texto em lugar algum, exigindo esforço hermenêutico continuado para sua detecção. Hoje, sob a égide da atual Carta Política, a segurança jurídica, enquanto direito fundamental, pode ser explicitamente encontrada no texto constitucional inscrita no artigo 5º, caput, como deixa consignado com clareza JOSÉ ROBERTO VIEIRA (Medidas Provisórias Tributárias e Segurança Jurídica: A Insólita Opção Estatal pelo “Viver Perigosamente”. In: CARVALHO, Paulo de Barros (pres.); SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.). Segurança Jurídica na Tributação e Estado de Direito. São Paulo: Noeses, 2005, p. 320). Sua expressão específica, contudo, no capítulo tributário, inexiste, de modo que em matéria tributária o princípio pode ser considerado implícito e dedutível da própria composição principiológica informadora do sistema tributário, daí as várias facetas em que a segurança pode ser decomposta: legalidade, especialidade, anterioridade, capacidade contributiva etc. [21] Cabe aqui anotar que JOSÉ CASALTA NABAIS revela-se pessimista com a garantia de legalidade, que entende um instrumento obsoleto de proteção dos cidadãos. Busca, por isso, na idéia de Estado Fiscal, a fundamentação da proteção do particular contra a tributação excessiva e limitadora da liberdade dos vários Estados contemporâneos: “Por outras palavras, apela-se ao princípio do estado fiscal como última barreira contra um estado que, tendo atingido a dimensão fiscal que se conhece e concentrado no legislador todo o poder que esta dimensão exprime, continua paradoxalmente a servir-se de um arsenal protectivo dos cidadãos contribuintes obsoleto e, em larga medida, inoperante — o princípio da legalidade fiscal. Um princípio que actualmente se revela bastante claudicante, pois que, ao contrário do que sucedia no estado liberal, não estamos mais perante um estado mínimo, nem há garantia de que a lei seja expressão do bem comum. Daí que, enquanto não se erguem outras barreiras materiais ao estado fiscal, se tende a operar com limites decorrentes da própria ideia de estadualidade fiscal” (O Dever..., op. cit., p. 217-218). Para ele, “A ideia de estado fiscal parte do pressuposto, freqüentemente considerado ultrapassado ou superado com a instauração do estado social, de que há uma separação essencial e irredutível entre estado e sociedade” (Ibid., p. 195). E explica, citando HETTLAGE, que “...a invocação do estado fiscal, como princípio constitucional, pretende obstar a que a tributação, e sobretudo o seu aumento sem cessar, se converta no ‘cavalo de Troia do socialismo no estado de direito burguês’, ou seja, que através do aumento quantitativo dos impostos se dê uma mutação qualitativa, que ponha termo ao estado fiscal e instaure um estado de carácter patrimonial ou proprietário. Isto significa que o estado moderno, que tenha por base o princípio da repartição ou da liberdade — isto é, que seja um estado de direito —, não tem alternativa, já que a única alternativa que se lhe oferece é, ao fim e ao cabo, a sua própria anulação como estado de direito” (Ibid., p. 194-195). [22] Para JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “...a delimitação clara dos direitos e deveres (certeza) abre esanchas à capacidade de previsão, caracterizando a segurança do direito como um conceito mais ancho que o da certeza, que necessariamente o integra, ao lado da previsibilidade” (Medidas Provisórias..., op. cit., p. 323). [23] Há, evidentemente, outros princípios constitucionais em jogo, como se pode intuir das menções que fizemos à anterioridade e à boa-fé. Todavia, aqui interessa-nos apenas recorte que sublinhe de modo mais vigoroso a legalidade, até porque nos faltaria espaço a uma discussão mais completa de um princípio tão rico em conseqüências para o ordenamento como o é a segurança jurídica. [24] O Dever..., op. cit., p. 195. [25] Como observa com percuciência LUÍS EDUARDO SCHOUERI, “Quando se emprega a capacidade contributiva como critério para a graduação da tributação, a questão se resume a saber se existe um ponto, abaixo ou acima do qual descabe a incidência de um tributo, ou, ainda, até onde pode atingir a tributação; no primeiro caso, estar-se-á cogitando do mínimo de subsistência; ultrapassado o limite, versar- se-á sobre o confisco. Trata-se da aptidão econômica, i.e., a capacidade de ser contribuinte” (Normas..., op. cit., p. 283). No dizer de RICARDO LOBO TORRES, “A imunidade do mínimo existencial se situa aquém da capacidade contributiva, da mesma forma que a proibição de confisco veda a incidência além da aptidão de pagar” (Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, v. III, p. 186). [26] Ibid., p. 648. [27] JOSÉ CASALTA NABAIS desenvolve raciocínio semelhante, quando diz ser “...de opinião que há que separar dicotomicamente as normas fiscais das normas extrafiscais, ordenando aquelas, como direito fiscal (clássico) que são, aos princípios jurídicoconstitucionais da ‘constituição fiscal’, e estas, como direito económico (fiscal) que são, aos princípios jurídico-constitucionais da ‘constituição económica’. Daí que aquelas hão-de obedecer primordialmente aos princípios da legalidade económica e da igualdade e da proporcionalidade lato sensu na intervenção económico-social. Todavia, dado o instrumento utilizado nesta intervenção ser o instrumento fiscal, há que articular ou harmonizar as exigências constitucionais, válidas para este instrumento, com as válidas para aquela intervenção, não podendo, por conseguinte, relativamente às normas extrafiscais, e designadamente às disciplinadoras dos benefícios fiscais, valer exclusiva e estritamente a mencionada constituição económica. Nomeadamente, o princípio da legalidade a observar neste domínio não se contentará totalmente com as fracas exigências desse princípio no domínio do direito económico, enquanto a ideia de capacidade contributiva não pode deixar de estar presente nas medidas extrafiscais como seu pressuposto” (Id.). Essas razões, aliás, nos permitem discordar do próprio autor, quando ele assinala que a extrafiscalidade não pode ser submetida à principiologia tributária (Solidariedade..., op. cit., p. 109). Ver citação na nota 16, supra.