Não consegui dormir, mas não estava cansada

Transcrição

Não consegui dormir, mas não estava cansada
Não consegui
dormir,
mas
não estava
cansada. Tentava não pensar nas próximas horas
para não ficar ansiosa. Tentei não planejar demais,
não criar expectativas e, assim, tudo seria ótimo.
Eram quatro horas da manhã quando desci para
tomar café, com a mochila já pronta para aguentar
30 dias de viagem e o coração que parecia ter
parado, como se tudo fosse uma encenação.
Definitivamente,
não
estava
ansiosa.
Estava
apreensiva.
Quase um ano antes, em uma madrugada de
tédio na internet, comprei uma viagem para Las
Vegas num site de compras coletivas com uma
amiga. Ela estava relutante, mas a convenci que, em
um ano, teríamos dinheiro o bastante para pagar as
passagens. No fim, em menos de um ano acabamos
nos afastando e ela, que nunca esteve empolgada
com a viagem, decidiu que não iria. Eu, que a essa
altura já havia pesquisado um monte de informações
sobre outras cidades, passeios e preços, não quis
desistir. Dei uma olhada na minha poupança-cagada
(foi o nome que dei para o dinheiro que guardava
para imprevistos, como multas de trânsito, despesas
médicas, abortos e tal) e, pelo que havia pesquisado,
os cinco mil e quinhentos reais que pulavam na
minha frente, loucos para serem gastos, eram
suficientes para fazer uma viagem para o exterior.
Alinhei objetivos a datas, locais e orçamento
e planejei um mês de turismo pelos Estados Unidos
com o pouco dinheiro que tinha. Me sobraram cerca
de 10 dólares por dia para alimentação. Souvenir,
lembrancinha para a família, nem pensar. Isso sem
falar nos imprevistos, como ter que pegar um táxi
para voltar para casa; fora de cogitação. Mas aceitei
o desafio (e coloquei um monte de barrinhas de
cereais na mochila para conseguir aproveitar ao
máximo os 10 dólares diários de alimentação, quem
sabe até desviá-los).
Contei para a minha mãe quando faltava um
mês para embarcar. Sentei com o notebook ao lado
dela, mostrei cada um dos lugares e refiz todos os
cálculos, enquanto ela empalidecia e espremia os
lábios. Ninguém da minha família nunca havia
viajado para o exterior, a gente não sabia como era
lá. Meus pais são cuidadosos, fazem planos, não
pisam sem ter a certeza de que há chão. Meu irmão
aprendeu com eles; eu sempre fui impulsiva, de fazer
as
coisas sem
pensar (provavelmente
porque
sempre soube que, se desse algum problema, teria
meus pais para me ajudarem). O resultado disso é
que eu sempre entro de cabeça em várias coisas
para concluir apenas algumas. A viagem seria uma
delas.
Na semana seguinte à que detalhei tudo para
minha mãe, ela me contou que acordou de
madrugada e falou para o meu pai que não me
deixaria ir. Ele falou que deixaria, sim, pois eu já era
maior de idade e tinha dinheiro para pagar as
despesas. Eu nunca entendi direito meu pai. Ele
nunca pediu para ver nenhuma foto, nem desejou
boa viagem, mas minha mãe diz que ele sabia todos
os lugares que eu estava e contava para todo
mundo, cheio de orgulho. Na verdade, a primeira vez
que me perguntou da viagem foi cerca de oito meses
depois, enquanto assistia Trato Feito, e quis saber se
eu havia visto a loja em Las Vegas.
Enfim, as semanas passaram sem decidir se
era rápido ou devagar demais. Quando percebi, era
dia 8 de maio de 2012 e eu estava embarcando para
Nova York com escala em Bogotá.
A viagem demorou cerca de cinco horas e
não consigo agradecer o bastante pelo sistema de
entretenimento da Avianca. Tinha filmes, séries e
shows bastante atuais; eu assisti o The Fame Ball da
Lady Gaga no Madison Square Garden e Os
Muppets. Os dois se passam em cidades que eu iria
visitar: o primeiro em Nova York e o segundo em Los
Angeles (ou uma cidade equivalente a ela, não
lembro bem). O filme é divertido, mas foi o show que
realmente me emocionou e me fez chorar várias
vezes, não sei direito porquê. Acho que foi uma
liberação de estresse e qualquer coisa me faria
chorar. Isso, aliado ao fato de que a história do show
se passa em Nova York, fizeram com que eu
recebesse vários olhares preocupados da pessoa
sentada ao meu lado. Durante Yoü And I, achei que
fosse morrer de desidratação, de tanto que eu
chorava.
Faltando cerca de quatro minutos para
acabar
o
filme
dos
Muppets,
o
sistema
de
entretenimento desligou para o pouso na Colômbia.
Metade da viagem até Nova York estava concluída,
pensei, e sem sofrimento. As horas que seguiram, no
entanto, não foram fáceis.
Acontece que passagens de avião são caras
e, se você quiser pagar um pouco mais barato por
elas, vai ter que enfrentar muitas horas de espera em
escalas intermináveis. Aprendi isso lá pela minha
quarta hora perambulando pela pequena sala de
embarque do aeroporto El Dorado em Bogotá; ainda
faltavam seis até a hora do meu vôo. Eu só chegaria
em Nova York na manhã seguinte, totalizando quase
24 horas desde São Paulo.
O que fazer durante uma escala de 10 horas
em um aeroporto minúsculo em que você não
entende o que ninguém diz, não pode gastar
dinheiro, sem internet e sem bateria no celular
porque o padrão brasileiro da tomada não é o
mesmo que o internacional e 15 dólares por um
adaptador é um preço absurdo? Isso mesmo: entra
em desespero.
Antes mesmo de chegar ao meu destino, tive
o primeiro teste de sair da zona de conforto. Não foi
nem um pouco fácil ficar tanto tempo incomunicável,
sem ter absolutamente nada para fazer e ninguém
para conversar. A gente sabe que português e
espanhol
são
línguas
bem
parecidas,
mas
colombianos falam muito rápido e é praticamente
impossível entender o que eles diziam. Isso, aliado à
minha falta de grana, fez com que eu também
passasse fome pela primeira vez. Tinha algumas
centenas de dólares no Visa Travel Money, mas era
tudo contado. Se gastasse lá, não poderia gastar ao
longo da viagem, ou seja, um almoço na Colômbia
era um dia sem almoço nos EUA – talvez até dois, já
que a comida do aeroporto era bem cara.
Cheguei a pagar um trocado por meia hora
de internet para avisar que tinha chegado na
Colômbia e falar com alguém no Facebook por
alguns minutos, me sentir menos sozinha. Mas foi só
isso.
Houve
dois
momentos
particularmente
especiais nesse aeroporto. Um deles, quando estava
sentada no chão ao lado de um telefone, em que um
cara bem charmoso de uns 40 e poucos anos, com o
cabelo meio grisalho, penteado e com um sorriso
lindo, ligou para a filha no Brasil. Ele parecia muito
carinhoso
e
extremamente
afobado,
como
se
precisasse provar para ela que a amava. Daria para
dizer que havia sido um pai ausente que, de repente,
quis participar da vida da filha, mas essa é uma
suposição minha.
Em um ponto da conversa, ele deu um murro
no telefone e falou um pouco alto demais “você é
foda! Eu sabia que você ia conseguir! Eu sou muito
seu fã, você é muito foda, filha!”. Ela havia recebido
uma bolsa de estudos. E eu nunca senti tanta inveja
de alguém na vida, não pela bolsa de estudos (eu
mesma já havia recebido pelo menos duas durante a
faculdade), mas pelo pai dela ter ligado da Colômbia
para ter notícias e mostrar para o aeroporto inteiro o
orgulho que ele tinha. Eu estava prestes a passar um
mês em outro país, onde não conhecia nada, e meu
pai nem quis saber as cidades pelas quais eu
passaria. Nesse momento, eu também me senti
sozinha pela primeira vez em Bogotá, e escolhi não
chorar para não desistir de tudo. Não podia desabar
na primeira vez que me sentisse sozinha; isso ainda
aconteceria muitas vezes.
A
outra
situação
foi
quando
estava
aguardando a autorização de embarque. Já estava
há cerca de nove horas na Colômbia e não lembrava
o som da minha própria voz. Não sabia se falava
português, inglês ou arriscava um espanhol, e
também tinha medo de que, apesar de ter certeza de
que conseguia falar inglês fluentemente, eu travasse
na hora de falar.
Havia comprado um cupcake de chocolate, a
única coisa que consegui para comer na Colômbia e
custou uns três dólares. Eu o segurava como se
fosse a coisa mais preciosa na qual já havia
colocado as mãos. Me sentei na sala de embarque
apertada para comer com toda a calma do mundo.
Era difícil de andar entre as cadeiras, especialmente
com uma mala de mão, um casaco e um cupcake na
mão.
Um cara de uns 30 anos sentou ao meu lado
e começou a puxar conversa. Eu, cansada, irritada,
tentando ter um momento a sós com meu cupcake e
com uma vontade incontrolável de chegar logo em
Nova
York,
fui
respondendo
monossilábica,
esperando que ele desistisse. Não desistiu.
Eu não tive coragem de agradecê-lo depois.
Era um porto-riquenho que morava em Nova
York com a mulher e os filhos. Perguntou se eu
estava voltando da Colômbia mesmo e eu falei que
estava indo do Brasil. Ele entendeu que eu estava no
Brasil passeando e voltaria para os EUA, de onde eu
era. Como não estava afim de ninguém me dizendo
o que eu deveria fazer ou de falar o porquê de ir
viajar pela milésima vez, não desmenti e comprei a
história. Mas, na verdade, não menti nenhuma
informação:
eu
realmente
estava
indo
para
Manhattan, onde ficaria na casa de uma amiga. Ele
me contou sobre as maravilhas naturais de Porto
Rico e como era a vida no interior de Nova York. Eu
praticamente só ouvi; já sabia bastante sobre a
minha vida e achei mais produtivo ouvir o que ele
tinha a me dizer. Não foi uma conversa especial pelo
conteúdo, mas pelo significado. Naquela hora,
percebi que, se eu tivesse iniciado um papo com o
pai orgulhoso da filha, com o grupo de jovens
sentado ao meu lado no chão ou com a moça da
lojinha de doces, não teria ficado sozinha durante as
onze horas da escala. Além disso, teria mais
experiências e histórias para contar. Nesse mês, eu
teria que sair de mais uma zona de conforto: a da
timidez. Puxar papo, ajudar pessoas, ser mais ativa
na minha própria vida para extrair o máximo possível
dessa experiência. Normalmente, ando com pessoas
extrovertidas o bastante para fazerem amigos na
balada. Nunca tenho que falar com quem não
conheço porque essas pessoas fazem isso por mim,
mas elas não foram viajar comigo.
Eu percebi que estava sozinha. Mas, ao
contrário de antes, agora isso tinha se tornado algo
extremamente empolgante.
Ainda faltava cerca de oito horas para o avião
chegar em Nova York. Tinha a esperança de chegar
no avião e assistir aos quatro minutos finais de Os
Muppets, mas o sistema de entretenimento do meu
assento estava sem áudio e não pude assistir nada.
Intercalei momentos de sono com outros do mais
profundo tédio, embalado pelo silêncio da aeronave.
Foi a primeira vez, desde que me lembro, que
ninguém roncou nem havia bebês chorando.
Na fileira ao lado, uma mãe loira de cabelos
cacheados tentava administrar a calma dos dois
filhos pequenos. Era uma menina de uns cinco anos
e um menino de uns três. Achei incrível como ela mal
se sentou na poltrona e já estava com o DVD portátil
na mesinha, colocando um desenho para o garoto
assistir. A menina, sonolenta, mal ficava com os
olhos abertos. Algumas vezes, a moça me pegou
olhando para eles e sorriu. Queria que toda mãe que
viaja com filhos pequenos fosse como ela.
Após um dos meus vários cochilos, acordei e
vi o aviãozinho na TV que mostra a posição do avião
já bem perto do destino. Pelo horário, faltava cerca
de 40 minutos para chegar em Nova York e, pela
janela, dava para ver as luzes indicando onde
terminavam os EUA e começava o oceano Atlântico.
Todo o sono foi embora e deu lugar a uma ansiedade
quieta, que crescia à medida que a luz azul-clara
brilhava no horizonte indicando o sol nascendo.
Havia toda uma poesia em um novo dia surgindo
enquanto eu chegava em um novo país, mas o que
realmente me pegou naquela hora foi a sensação de
grão de areia, aquela que dá sempre que você viaja
de avião e tira um minuto repara olhar as nuvens lá
fora, quando tem uma visão de imensidão. É como
se você se colocasse de volta no seu lugar e
percebesse que há vida além da conta negativa, dos
quilômetros longe de casa e do cara que não ligou.
Conforme o avião se aproximava do destino
e o céu ficava mais claro, comecei a pensar em
como chegar na casa da Bia, minha amiga que
morava em Nova York e que iria me fornecer um teto
durante a semana.
Conheci a Bia no final de 2009. Nós duas e
mais dez estudantes de Jornalismo do Brasil inteiro
tivemos nossas reportagens escolhidas pelo Rumos
Itaú Cultural e Jornalismo Cultural. Todos nós
passamos uma semana em São Paulo assistindo
palestras e nos conhecendo; no ano seguinte, houve
mais uma reunião. Fomos a menos palestras e mais
festas e acabamos criando um grupo bastante unido,
especialmente as meninas. No começo de 2012, Bia
foi estudar inglês em Nova York já sabendo que seria
minha hospedagem na cidade algum dia.
Esse dia chegou em 9 de maio de 2012. Ela
me explicou, na véspera do embarque, como chegar
até sua casa. Eu tinha anotado tudo em um papel
que, claro, se escondeu na minha carteira durante
meses. Só o encontrei, sem querer, em novembro,
quando já havia me perdido várias vezes entre as
linhas coloridas do MTA, o metrô de Nova York.
Como lembrava o nome das estações em que
deveria trocar de linha, decidi arriscar; não poderia
ficar para sempre no aeroporto JFK. Mas, chegando
em Manhattan, precisava dar um jeito de falar com
ela para acertar o caminho.
Saindo do aeroporto, peguei o trem em
direção à estação Babylon, que fica no Queens. Pela
janela, o clima coroava minha falta de orientação:
nublado, chuvoso, como a gente normalmente
descreve o céu em São Paulo. Pensar que eu tinha
pegado 24 horas de viagem para acabar numa
cidade igual à qual saí me fez sentir a pessoa mais
idiota do mundo e, somada ao cansaço, à solidão, à
sensação de estar perdida, e tudo isso reforçado
pela
necessidade
de
tomar
um
bom
banho,
apagaram qualquer faísca de empolgação que eu
tivesse pela cidade. Perguntei diversas vezes para
mim mesma o que estava fazendo ali. A resposta era
sempre “não faço a menor ideia”.
Chegando na estação Babylon, pedi ajuda a
um funcionário para saber qual trem me levaria à
Penn Station. Ele era bem idoso e, considerando o
clima e o horário (era bem cedo, umas 8 da manhã,
no máximo), estava anormalmente bem humorado;
me lembrava, por algum motivo, o velhinho que Dick
Van Dyke faz em Mary Poppins. E, como Mary
Poppins é o meu filme preferido da infância, me senti
confortada nos poucos segundos que falei com ele.
Seguindo sua orientação, desci uma escada e
esperei o trem na plataforma. Ali, era o metrô de
Nova York, pela primeira vez: apinhado de gente,
todos negros e latinos com os olhares perdidos,
caras de quem havia dormido pouco, dos confins do
Queens para Manhattan em mais um dia de trabalho.
E eu, com um metro e oitenta de altura e o
semblante igual ao deles, ocupando o lugar de pelo
menos duas pessoas com minha mochila gigante.
A viagem até a Penn Station demorou uma
meia hora. A cada parada, o vagão ficava mais
lotado e eu me perguntando com mais veemência o
que estava fazendo ali, atrapalhando a vida daquelas
pessoas.
Finalmente chegando lá, no coração de
Manhattan, eu tinha uma sensação de que não devia
sair do metrô. Mas Alice talvez também achasse que
não deveria seguir o coelho e seria a melhor
metáfora do mundo dizer que eu segui um rato para
fora do metrô, mas na verdade segui o fluxo, subi as
escadas mais imundas que já vi na vida e lá estava
ele, do outro lado da rua: Madison Square Garden,
com seus cartazes de dezenas de metros de
jogadores de basquete que eu nunca ouvi falar e
todo aquele pessoal andando apressado com seus
bagels em papel pardo a caminho do trabalho. E
chovia, uma chuva bem fininha, das que só servem
para bagunçar o cabelo – que, no meu caso, já
estava irremediável. Mais paulistano, impossível.
Enquanto isso, eu tentava pensar em como
falar com a minha amiga. Recorri a vários telefones
públicos. Todos quebrados, mas não sem antes
engolirem minhas moedinhas. Logo eu não tinha
mais trocado para tentar falar com ela num telefone
público. Voltei ao metrô e tentei convencer um
funcionário a me deixar usar um telefone na estação.
Não consegui, mas um rapaz, vendo meu desespero,
me emprestou seu iPhone. Não adiantou: a chamada
não completava e eu já estava sem graça o
suficiente para segurá-lo ali mais tempo. Voltei à
superfície, para tentar pensar em uma saída e
segurar o pânico que começava a encher meus
olhos de lágrimas. Sem bateria no celular, sem
adaptador
para
carregá-lo
e
sem
o
roaming
internacional ativado, eu nem podia ligar para minha
mãe, passar a senha do meu Facebook e pedir que
ela falasse com a Bia para me orientar sobre como
chegar, ou ir me encontrar em Manhattan.
A solução foi jogar com as cartas que eu
tinha. Decidi voltar para o metrô e tentar chegar, pelo
menos, até a estação próxima à casa da Bia. A partir
dali, traçaria outro plano - provavelmente, sairia
pelas ruas gritando o nome dela até encontrar.
Ela morava perto da estação Gun Hill, no Bronx –
havia guardado bem o nome. Só que há duas Gun
Hill, uma na linha 5 e outra na linha 2. Fui tentar a
sorte na linha 2. Tentei errado, claro.
Como Deus escreve certo por linhas erradas,
desci na tal estação. Na esquina, bem em frente à
escada do metrô, dei de cara com uma lojinha cheia
de cartazes de operadoras. Como iria precisar de um
chip americano, fui comprá-lo ali, no lugar mais sem
procedência possível. Imaginei que eles também
poderiam me deixar carregar o celular; com sorte,
até teriam um adaptador para a tomada.
A loja era bem pequena. Ao entrar com a
mochila e me virar para o balcão, quase arrastei
todos os itens pendurados na parede atrás de mim.
Havia dois homens árabes conversando. Ao verem
que entrei na loja, um deles veio me atender,
simpático, com o sotaque bastante carregado.
- Olá! Como posso ajudar?
- Oi – sorri cansada – Preciso de um número
de telefone daqui. E, se você não se importar,
também quero carregar meu celular. Preciso ligar pra
minha amiga para chegar na casa dela, mas estou
sem bateria e...
- Onde sua amiga mora?
- Eu não sei. Por isso preciso ligar para ela.
Ele deu uma risada bem marcada.
- Ok. Vamos ver o que podemos fazer por
você.
Ele pegou um chip de celular e, enquanto
mexia no telefone para habilitá-lo, deixou meu celular
– com um adaptador de tomada – carregando no
canto. Me perguntou de onde eu era e, quando disse
que era do Brasil, tive a primeira impressão de um
estrangeiro sobre o país. Mas ele não fazia ideia do
que estava falando.
- Legal! - e fez uma pausa - É na Europa, né?
– deve ter perguntado por causa do meu cabelo ruivo
e
pele
branca
com
bochechas
rosadas
do
nervosismo; não é como eles esperam que uma
brasileira seja.
- Não, não. América do Sul.
- Ah, legal! - outra pausa – É perto do Texas?
- Não, é outro continente! Perto da Argentina.
- Ah! Legal - mais uma pausa – Legal, legal.
Conversamos
um
pouco mais sobre
a
distância do meu país e o tempo que fazia lá fora até
ter bateria o suficiente para ligar para a Bia.
Ela atendeu com aquele sotaque delicioso do
Maranhão em inglês. Nunca fiquei tão feliz em ouvir
uma voz familiar em toda a minha vida.
- Hello?
- Bia! Bia, sou eu!
- Ô, mulher! Tu não chegava às oito?
- Eu cheguei às oito, mas demorou para eu
me achar.
- E onde que tu tá? - perguntei o nome das
ruas para o moço do balcão; hoje, não me lembro o
que ele disse, mas repassei para Bia – Ih, mas eu
não sei onde que é isso, não.
- Ué. É na estação Gun Hill. Eu só desci e
atravessei a rua.
- Xiii, mas em qual linha tu foste? Na 2?
Porque eu te falei que era a 5.
- Putz, sei lá. Fui na vermelha.
- Ô, é na 5.
- Puta que o pariu.
- Ó, faz exatamente o que eu te falar. Não
inventa de descobrir a cidade. Tu volta pro metrô e
pega sentindo Downtown. É Downtown, não pega
Uptown que eu não sei onde tu vai parar e não vou
te buscar. Tu pega Downtown até a estação E 180.
Daí tu desce e pega a linha 5 sentindo Uptown.
Entendeu? É pra descer e depois subir.
- Tá, eu pego Downtown até a E, daí troco
para a 5 e vou até Gun Hill de novo.
- Isso, me liga quando tu chegar. E não sai da
frente da estação, não inventa de pegar táxi e não
fala com ninguém.
Desliguei o telefone e meus ombros
abaixaram de tanto alívio. Na hora de acertar as
contas com o rapaz da loja, ele me deu o adaptador
de tomada de presente e avisou que, se pagasse no
cartão, precisaria cobrar cinco dólares a mais por
conta dos impostos. Como não pretendia passar
fome durante a viagem, paguei em dinheiro,
esperando que o Tio Sam um dia me perdoasse pela
falcatrua, e voltei ao metrô.
Chegando à estação certa, liguei para Bia e
esperei que ela viesse me buscar. Demorou cerca de
10 minutos, tempo em que eu fui medida por todo
mundo que passava por ali, taxistas suspeitos me
ofereceram carona me chamando de “honey” e
“sweetie” e um outro cara, muito alto e magro e
visivelmente chapado, se aproximava lentamente de
mim falando coisas desconexas.
Avistá-la na esquina foi a melhor coisa que
havia acontecido comigo nas últimas 24 horas!
Corri para encontrá-la e a abracei forte, tão
forte que até ela estranhou.
- Bia, eu nunca fiquei tão feliz de ver alguém
na vida!
Ela morava em uma casa pequena de dois
dormitórios que ficava embaixo de uma maior. Era
alugada de uma hostmother chamada Ellen, mas a
hostmother não morava com ela; a mulher vivia na
casa do terreno de trás. Na casa de cima, vivia seu
pai. Ela ia na casa da Bia todos os dias para limpar e
levar comida. A única regra era que Bia não podia
levar ninguém para passar a noite. Eu passaria sete,
mas minha amiga disse várias vezes que não
haveria problema, já que a hostmother só ia lá à
tarde e nós sairíamos de manhã e voltaríamos à
noite todos os dias.
Tomei um banho enquanto a Bia fez nosso
brunch: pão com ovo – ela só sabia fritar ovo – e
suco de laranja de galão. Arrumei minha mochila
menor com um agasalho, carteira, óculos, câmera e
todo o aparato turístico e fomos juntas rumo ao
metrô. Aproveitamos a viagem de cerca de 40
minutos para ela me ensinar a entender o metrô de
Nova York, que, depois da aventura da manhã,
estava se tornando quase uma fobia para mim. Mas,
no fim, é tão simples que não consegui não me sentir
uma idiota por não ter entendido de primeira. No
segundo dia, já estava ajudando outros turistas a se
entenderem com o mapa.
A Bia fazia inglês numa escola na Broadway,
colada na Times Square. Como eu não tinha um
roteiro certo, achei que seria uma boa começar a
conhecer a ilha pelo seu ponto mais turístico.
Mesmo que Nova York inteira seja um ponto
turístico.