Políticas Públicas 9

Transcrição

Políticas Públicas 9
COLEÇÃO ABIA
Políticas Públicas
9
Apreensões de Medicamentos
Genéricos em Portos Europeus
e a Agenda Anticontrafação:
implicações para o acesso a medicamentos
JANAÍNA ELISA PATTI DE FARIA
COLEÇÃO ABIA
Políticas Públicas
9
Apreensões de medicamentos
genéricos em portos europeus
e a agenda anticontrafação:
implicações para o acesso a medicamentos
JANAÍNA ELISA PATTI DE FARIA
Rio de Janeiro, 2011
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição Proibição de Obras Derivadas 3.0 Não Adaptada.
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Apoio:
Tiragem: 500 exemplares
Impressão: Gráfica MEC
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F234a
Faria, Janaína Elisa Patti
Apreensões de medicamentos genéricos em portos europeus e a agenda anticontrafação : implicações para o acesso a medicamentos / Janaína Elisa Patti Faria. - Rio de Janeiro : ABIA, 2011.
53p.
(Coleção ABIA. Políticas públicas ; 9)
ISBN 978-85-88684-51-5
1. Propriedade intelectual. 2. Ação de contrafação. 3. Medicamentos - Patentes. 4. Acesso a
medicamentos. I. Título.
11-1771.
CDU: 347.77
É permitida a reprodução total ou parcial desta publicação, desde que citada a fonte e a autoria.
Agradecimentos
E
m primeiro lugar, devo agradecer à Renata Reis (ABIA e GTPI/REBRIP),
quem me convidou a fazer a pesquisa e redigir o documento que deu
subsídios à petição enviada ao Tribunal Permanente dos Povos, embrião do
presente livro. Agradeço à Renata por ter depositado enorme confiança no
meu trabalho, fornecendo prontamente todo o apoio necessário.
A realização desse trabalho só foi possível graças às enriquecedoras
contribuições de muitas pessoas. Agradeço especialmente à Marcela Vieira
(Conectas, ABIA e GTPI/REBRIP), Pedro Villardi (ABIA e GTPI/REBRIP) e Gabriela C. Chaves (MSF e GTPI/REBRIP) pelos materiais, sugestões, orientações
e pela revisão cuidadosa das diferentes versões do texto.
Gostaria de agradecer também ao Rohit Malpani (OXFAM) e à Sophie
Bloemen (HAI) pelas entrevistas concedidas, bem como pelos documentos
enviados.
Somos especialmente gratos ao Juan Hernandez (Universidade do País
Basco) e ao German Holguín (Fundación Misión Salud) pela redação dos
prólogos.
Prólogos
A
falta de acesso regular aos medicamentos
essenciais constitui uma das maiores violações aos direitos humanos que se comete hoje
no mundo. Não só porque compromete o direito
à saúde e à vida, o primeiro e mais precioso dos
direitos, mas também porque afeta mais de 2,2
milhões de pessoas1, das quais metade não dispõe desses bens necessários em quantidade suficiente quando deles necessita e a outra metade
praticamente nem os conhece.
Como consequência desse drama, anualmente morrem no mundo em desenvolvimento,
que representa 70% da população do planeta2,
cerca de 28 milhões de seres humanos, a metade
por causa de doenças infecciosas tratáveis e a
outra metade por doenças não transmissíveis
para as quais existem tratamentos, mas que por
qualquer razão não chegam a essas pessoas3.
Isso equivale a uma população de 70 mil pessoas a cada dia.
Segundo um estudo publicado pela revista
médica britânica The Lancet4, em 2008, faleceram
no mundo 8,8 milhões de crianças menores de
cinco anos, 99% delas viviam em países de pou-
cos recursos. Há evidências de que 80% poderiam ter sido salvas com um acesso regular às
campanhas de vacinação e prevenção, aos testes
de diagnóstico e aos tratamentos existentes.
Algo semelhante acontece com as mulheres. A OMS estima que em 2009 cerca de meio
milhão de mulheres morreram de AIDS, outras
tantas de tuberculose e quase 300 mil por causa de câncer de colo de útero, a maior parte
devido a dificuldades que elas têm para obter
assistência médica e sanitária nos países em desenvolvimento5.
Os homens também são, evidentemente,
vítimas desta injustiça. Milhões falecem a cada
ano nos países em desenvolvimento por causa
de doenças infecciosas diagnosticáveis e tratáveis,
entre elas o HIV-AIDS, a pneumonia, a tuberculose e as “doenças negligenciadas”. Além disso,
nesses países, 80% dos falecimentos são por patologias não transmissíveis, como o câncer, problemas cardiovasculares, diabetes, entre outras6.
A América Latina não é exceção, já que nos
vinte países onde existe seguro de saúde, este só
cobre em média 45% da população, o que significa que mais da metade das pessoas, na sua
imensa maioria pessoas vivendo em condições
de pobreza e miséria, devem pagar pelos medicamentos com dinheiro do próprio bolso, o
que com frequência é simplesmente impossível.
Lamentavelmente, na região, o gasto médio per
capita em fármacos é só a metade do gasto em
produtos veterinários por cada vaca na Europa7.
SEUBA, Xavier; “La protección de la salud ante la regulación internacional de los productos farmacéuticos”, Marcial Pons, Edições Jurídicas y Sociales S.A., Madrid, 2010,
p.27.
1
Segundo a OMS, a população dos países em desenvolvimento é de 4,8 milhões de habitantes, cifra equivalente a
70% da população mundial: <http://www.who. int/mediacentre/ news/releases/ 2010/>.
2
Carta de um grupo de congressistas dos Estados Unidos
à Representante Comercial do seu país, Susan Schwab,
Congresso de Estados Unidos, Washington D.C. 20515,
12/03/2007.
3
“As mulheres e a saúde”, informe da OMS 2009, citado por
El Tiempo, 10 de novembro de 2009, p.1-16.
5
Oxfam International, Patentes contra pacientes: cinco
anos depois da Declaração de Doha, novembro de 2006.
[email protected].
6
Estudo sobre a evolução da mortalidade infantil entre
1970 e 2010, do Instituto de Métrica e Avaliação em Saúde
(IHME, sigla em inglês) da Universidade de Washington,
Estados Unidos, publicado pela revista médica The Lancet,
maio 2010. <http:/www.thelancet.com>.
4
Federico Tobar, Déficit de salud en América Latina, Tribuna 2006.
7
i
Não é concebível uma transgressão mais
grave ao direito fundamental à saúde e à vida,
que está consagrado na Declaração Universal
dos Direitos Humanos e outros acordos internacionais complementares, entre eles: o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC), que “reconhece o direito de
toda pessoa de usufruir do nível mais elevado
possível de saúde física e mental”; a Convenção
de Direitos da Criança de 1989, que traz o direito
das crianças a desfrutar do mais alto nível de
saúde possível; e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que obriga os Estados
a tomarem medidas para garantir o acesso não
discriminatório da mulher aos cuidados médicos.
Ainda que a pobreza explique uma parte
importante do drama da falta de acesso a medicamentos, há vários fatores que o acentuam, entre eles a falta de inovação farmacêutica para as
doenças prevalentes no mundo em desenvolvimento, a concentração dos fármacos existentes
por parte das nações ricas8 e os preços proibitivos dos medicamentos sob monopólio.
Mas o fator de maior incidência, e que pela
sua capacidade de dano à saúde imprime ao
quebra-cabeça características literalmente dantescas, é o que proponho denominar a “guerra
contra os genéricos”. Esta “guerra” compreende
um conjunto de medidas de propriedade intelectual, práticas comerciais e estratégias de diversas
naturezas – algumas legítimas e a maioria ilegítima – usadas pelas grandes empresas farmacêuticas multinacionais (a Big Pharma), com a
cumplicidade de seus governos de origem e dos
governos dos países onde atuam, para bloquear
e atrasar a oferta de genéricos. A finalidade é
o domínio dos mercados farmacêuticos e a imposição de altos preços de monopólio, o que
priva a maior parte da população dos medica-
mentos necessários e, com isto, causa grande sofrimento e perda de milhões de vidas humanas.
A presente publicação se ocupa da mais
“moderna” destas práticas: a apreensão de
genéricos em trânsito em portos europeus. Esta
“arma”, fruto do talento inovador da Big Pharma em conluio com a União Europeia (EU) e
seus Estados, foi inventada há apenas sete anos,
quando o Regulamento CE 1383, de 2003, permitiu às autoridades alfandegárias dos países
membros apreenderem medicamentos genéricos
em trânsito pelos portos europeus, sob a simples
suspeita de violação de patentes europeias.
A aplicação desse Regulamento provocou
entre 2008 e 2009 a apreensão arbitrária, nos
portos europeus, de pelo menos 18 carregamentos de medicamentos genéricos legítimos provenientes da Índia e China e destinados a vários
países em desenvolvimento, especialmente da
América Latina. As cargas continham versões
genéricas de medicamentos essenciais utilizados
no tratamento de doenças coronárias, esquizofrenia, Alzheimer, colesterol, hipertensão e HIVAids, entre outras.
Essas apreensões foram arbitrárias porque
nenhum dos medicamentos apreendidos estava
protegido por patentes nos países de origem nem
nos de destino. Com elas a UE violou as regras
de livre trânsito do comércio legítimo e a territorialidade das patentes, entre outros princípios
do direito internacional, e também, é claro, o
princípio da primazia da saúde e da vida sobre
os direitos de propriedade intelectual. Segundo a
avaliação das organizações denunciantes dessas
violações perante o Tribunal Permanente dos Povos (TPP), é provável que os autores e seus cúmplices “tenham tirado a vida de muitas pessoas”.
Tendo em consideração essa situação, o
TPP, acolhendo uma demanda interposta pela
sociedade civil dos países afetados, “após um
longo processo de pesquisa e audiências públicas”, que abrangeu vários casos de violação de
direitos humanos na América Latina por parte
das empresas multinacionais (as “multis”), re-
Com relação à concentração, cabe aqui a conhecida equação do 80-20, que significa que 80% dos medicamentos são
consumidos nos países desenvolvidos, que representam
perto de 20% da população mundial.
8
ii
solveu “denunciar perante a opinião mundial
como imoral” a atitude das “multis” envolvidas
em tais violações, e a atitude da UE e seus Estados Membros por suas políticas de apoio incondicional a essas empresas e por não adotar
as medidas que estão a seu alcance para modificar radicalmente o estado das coisas, o que os
torna cúmplices dos abusos. Da mesma forma,
condenou a atitude dos Estados receptores das
atividades das “multis” por terem construído um
marco jurídico que lhes permite violar os direitos
humanos da sua própria população, o que também os converte em cúmplices.
Nesse contexto, referindo-se especificamente ao caso das apreensões de genéricos, o
TPP proferiu uma sentença importantíssima, cujo
texto é o seguinte:
imediato das apreensões arbitrárias e a revogação do Regulamento CE 1383 de 2003.
Com esperança, porque é a primeira vez
que o TPP, em seus trinta anos de existência,
emite uma condenação contra as “multis” e os
Estados cúmplices por condutas que afetam
negativamente o direito de acesso aos medicamentos genéricos, elemento essencial para o
pleno exercício do direito fundamental à saúde
e à vida nos países em desenvolvimento. Este
precedente abre o caminho para futuras condenações por outras condutas dos mesmos autores
com o mesmo fim idêntico fim, fato de ocorrência frequente no terceiro mundo.
E com espírito de compromisso – e isto
é o mais importante da sentença – porque o
precedente nos anima a propor à comunidade
internacional o debate sobre se a “guerra contra os genéricos”, considerada como um todo,
pode ou não ser qualificada como crime contra
a humanidade. Debate de cujas conclusões dependem os passos conducentes ao reconhecimento e julgamento do caso por parte do Tribunal Penal Internacional (TPI), a penalização dos
protagonistas e seus cúmplices, e a reparação
integral das vítimas.
Para alimentar o bate, trago a tese de que
o conjunto de “armas” utilizadas pelas “multis”
farmacêuticas para a “guerra contra os genéricos”, ao privar os povos dos países em desenvolvimento dos medicamentos essenciais,
reúne os requisitos estabelecidos pelo Estatuto
de Roma para a tipificação dos crimes contra a
humanidade, quais sejam: i) “ato desumano”; ii)
“contra uma população civil”; iii) “como parte
de um ataque generalizado ou sistemático”; iv)
“de acordo com a política de um Estado ou uma
organização”; v) que cause “grandes sofrimentos ou afete gravemente a integridade física ou a
saúde física ou mental”; e vi) “com intenção de
causar o dano”.
Entendo que há evidente ocorrência dos
requisitos i, ii e v diante da evidência de que privar pessoas dos medicamentos com capacidade
O Tribunal Permanente dos Povos “Pede às
instituições da UE que reconheçam que o uso
de medicamentos genéricos é uma necessidade
fundamental para garantir o acesso a medicamentos para os mais pobres, que eliminem
as patentes sobre medicamentos básicos e que
cessem as práticas de apreender medicamentos
em trânsito e de gerar confusão entre os medicamentos genéricos e os medicamentos de má
qualidade” (Ponto 10 da Sentença).
A Missão Saúde e a Aliança-LAC Global
pelo Acesso a Medicamentos (Misión Salud e
Alianza LAC-Global por el Acceso a Medicamentos), cujas ações eu tenho a honra de coordenar,
acolhem com alegria, esperança e espírito de
compromisso esta sentença do TPP. Com alegria,
porque, mesmo que se trate de uma sentença
de caráter moral, não vinculante, o prestígio e o
respeito bem merecidos do Tribunal que o profere e o fato de estar destinado a todos os participantes da Cúpula de Chefes de Estado e de
Governo dos países da América Latina, Caribe e
da União Europeia permitem presumir que será
acatada em alguma medida tanto pelas “multis”
causadoras das apreensões quanto pelos Estados
que as praticaram. É de se esperar, então, o fim
iii
para superar as doenças e evitar-lhes a morte é
um ato desumano contra uma população civil e
que atenta gravemente contra a saúde.
Em relação aos outros requisitos, para aceitar a sua ocorrência é pertinente levar em consideração os seguintes esclarecimentos: sobre o
requisito iii, que, segundo a doutrina, o termo
“ataque” não denota uma agressão militar, mas
é também aplicável às leis e a medidas empresariais, e o termo “sistemático” diz respeito a um
“sistema”, isto é, a um conjunto organizado de
normas e procedimentos dirigidos a atingir um
propósito predeterminado, por exemplo, bloquear a oferta da concorrência. Sobre o requisito iv, que o termo “organização” é amplo, no
sentido que cobre qualquer grupo de pessoas
que tenham uma finalidade comum, público ou
privado, legal ou ilegal, por exemplo, uma empresa farmacêutica ou um grupo empresarial. No
que diz respeito ao requisito vi, de intencionalidade, que, de acordo com o artigo 30.2.b do
Estatuto de Roma, entende-se que comete intencionalmente um crime quem “atue com vontade
de o cometer e conhecimento dos seus elementos materiais” e “relativamente a um efeito do
crime, se propuser causá-lo ou estiver ciente de
que ele terá lugar em uma ordem normal dos
acontecimentos”. É indiscutível que o objetivo
de uma farmacêutica ao bloquear os genéricos
em um determinado mercado não é causar dano
à população, mas sim aumentar seus lucros; mas
também é indiscutível que seus gestores estão
cientes que o dano à saúde e à vida “terá lugar
em uma ordem normal dos acontecimentos”.
É provável que no curso do debate surja,
entre muitas outras, a objeção de que, mesmo
que se cumpram os seis requisitos, a tipificação da “guerra conta os genéricos” como crime
contra a humanidade não é procedente porque
não faz parte dos crimes aos quais o Estatuto de
Roma atribui tal característica e, como é bem sabido, em matéria penal o princípio de legalidade
e tipicidade proíbe a analogia. Nossa resposta
é o artigo 7 do Estatuto, que após enumerar os
crimes considerados como crimes contra a humanidade nas alíneas “a” a “j”, na alínea “k” reconhece a mesma qualidade para “outros atos
desumanos de caráter semelhante, que causem
intencionalmente grande sofrimento, ou afetem
gravemente a integridade física ou a saúde física
ou mental”. Ou seja, a analogia vigora neste caso
por comando do próprio Estatuto. Haverá argumentos para aplicá-la ao assassinato, ao genocídio ou a tortura, por exemplo.
Em todo caso, o importante é encontrar
caminhos para por fim à impunidade dos autores da “guerra contra os genéricos” e contribuir
assim para evitar que seus efeitos devastadores
sobre os direitos dos povos se repitam no futuro.
É inconcebível que em pleno século XXI sejam
concedidas “patentes de corso” a condutas causadoras de grandes sofrimentos e graves violações
do direito humano à saúde e à vida de milhões
de seres humanos e nada aconteça porque são
vistas por alguns como naturais e até necessárias
para o desenvolvimento econômico dos países.
Tem que existir um Tribunal competente para
julgar os supostos responsáveis, penalizar os
culpados e ressarcir as vítimas. E se para que o
TPI o seja for necessário adicionar uma alínea
adicional ao artigo 7 de seu Estatuto, que ele
seja adicionado. Não se pode continuar negando
para sempre a condição de “pessoa com dignidade e com direitos” às milhões de vítimas desta
“guerra”. Não se pode continuar condenado-as à
“invisibilidade”. À “inexistência inclusive como
vítimas”. A dignidade humana é inviolável.
Muito obrigado pela sentença do TPP aqui
publicada e pela iniciativa de quem em boa hora
apresentou o caso ao tribunal, o debate está
aberto. Que seja para benefício de toda a humanidade!
Bogotá - Colômbia, 13 de Julho de 2010.
Germán Holguin
Diretor Geral Missão Saúde
iv
A
publicação que você tem em mãos é um
trabalho rigoroso e comprometido com
o controle das corporações transnacionais.
Em suas páginas, é analisado um dos casos
emblemáticos apresentados perante o Tribunal
Permanente dos Povos (TPP) na sua sessão de
Madrid e a sentença desse mesmo tribunal. Nele
são descritas ideias essenciais para a construção
de redes contra hegemônicas transnacionais.
O caso trata da violação do direito à
saúde e à vida na América Latina pela União
Europeia e se adapta perfeitamente às condições
nas quais foi articulada a acusação ao TPP (A
União Europeia e as Empresas Transnacionais na
América Latina: Políticas, instrumentos e atores
cúmplices de violações dos Direitos dos Povos).
A hipótese geral inicial refere-se à forma
como o poder político, econômico e jurídico ���
detido pelas empresas transnacionais lhes permite
atuar com um alto grau de impunidade, sendo
seu controle normativo muito desigual, já que
os seus direitos são protegidos por uma nova
Lex Mercatoria integrada por um conjunto de
contratos, regras comerciais e de investimento
de caráter multilateral, regional e bilateral e
pelas decisões dos tribunais arbitrais e Sistema
de Solução de Controvérsias da Organização
Mundial do Comércio.
No entanto, as suas obrigações são volta������
das para as legislações nacionais dos países de
destino, submetidos a políticas neoliberais de
desregulamentação, privatização e redução do
Estado em políticas públicas e fortalecimento
do aparelhamento militar e do controle social.
Isto é, são criadas leis ad hoc para defender os
interesses das transnacionais.
Por outro lado, o Direito Internacional dos
Direitos Humanos e o Direito Internacional do
Trabalho apresentam uma clara fraqueza para a
proteção dos direitos das maiorias sociais. Nos
contornos das realidades jurídicas mencionadas,
surge a Responsabilidade Social Corporativa e
os códigos de conduta como uma espécie de
Soft Law para limitar o poder das empresas
transnacionais.
Em suma, os direitos das empresas transnacionais são protegidos por um ordenamento
jurídico global baseado em regras de comércio e
de investimentos que são obrigatórias, coercitivas
e executivas, enquanto as suas obrigações se
remetem a jurisdições nacionais sujeitas à lógica
neoliberal, a um Direito Internacional dos
Direitos Humanos claramente frágil e a uma
Responsabilidade Social Corporativa voluntária,
unilateral e sem exigibilidade jurídica. A assimetria de regulamentação é evidente.
O conteúdo da sentença do TPP transitou
em torno das ideias apresentadas. No entanto,
gostaria de destacar duas questões relacionadas
a violação do direito humano à saúde e à vida
dos cidadãos do Brasil, Colômbia e Equador.
Primeiro, a sentença considera que os casos
relacionados com a política europeia de direitos
de propriedade intelectual e regulamentos
aduaneiros teriam dificultado o acesso dos povos
latino-americanos aos medicamentos genéricos,
o que implica uma violação grave dos direitos
dos povos. A retenção de 18 carregamentos de
genéricos em portos europeus levaram homens
e mulheres de países latino-americanos, os
beneficiários desses medicamentos, a ficarem,
por falta de recursos econômicos, sem tratamento
médico e, portanto, com o risco da doença e
morte. A ganância desenfreada da indústria
farmacêutica e a cumplicidade dos governos e
instituições da União Europeia podem levar a
comportamentos que deveriam ser caracterizados
como crimes contra a humanidade.
v
Em segundo lugar, o TPP entendeu
que a lógica que expressa o modus operandi
das transnacionais faz com que as pessoas
afetadas sejam condenados à invisibilidade
e à inexistência, até mesmo como vítimas. O
relatório anual do Relator Especial sobre o direito
à saúde, o Sr. Anand Grover, que foi apresentado
na 11ª sessão do Conselho de Direitos Humanos
da ONU em março de 2009, mostrou a existência
real e dramática das vítimas. Ele ressaltou que
mais de dois bilhões de pessoas não tem acesso a
medicamentos essenciais, principalmente devido
ao seu preço e, neste contexto, constatou que as
doenças da pobreza causam cerca de 50% das
mortes nos países pobres, dez vezes mais do que
em países ricos. Mais de cem milhões de pessoas
“caem” para a pobreza a cada ano, porque tem
que pagar os seus cuidados de saúde. Nos países
pobres, os doentes têm de pagar entre 50% e
90% do custo de medicamentos essenciais.
A invisibilidade das vítimas está ligada
também à manipulação e mercantilização da ética
realizada por empresas transnacionais e que é
refletida nos relatórios de Responsabilidade Social
Corporativa. Nem uma única página, nem uma
única linha, refere-se às vítimas dessas práticas.
As transnacionais farmacêuticas atuam com o uso
contínuo de padrões morais duplos, discursos
em que os valores empresariais são verificados
e se expressam as pseudo regras dos códigos
de conduta. Não nos esqueçamos, genéricos
são retidos ainda que homens e mulheres não
possam pagar pelos medicamentos protegidos
por patentes, uma vez que o lucro e a ganância
ilimitados, estão acima dos direitos humanos.
O ápice da pirâmide do direito internacional,
nomeadamente a protecção dos interesses de
empresas farmacêuticas multinacionais, deve
ser substituído pelos direitos da maioria mais
vulnerável da humanidade. O acesso aos medicamentos deve ser universal e financiado pelos
poderes públicos nacionais e internacionais.
O caso descrito apresenta, por sua vez,
muito claramente algumas ideias-chave que
sustentam o sistema capitalista. A concentração
ilimitada da riqueza em poucas mãos gera o
empobrecimento das maiorias sociais do planeta,
e tudo sob a máxima de poder transformar em
mercadoria o que são direitos universais, como
saúde e acesso aos medicamentos. O Relator
Especial sobre direito à saúde denunciou o
domínio das empresas farmacêuticas por meio
das patentes. Considerou que os direitos de
propriedade intelectual afetam o direito à saúde,
já que impactam diretamente no custo dos
medicamentos. Também entendeu que a saúde
está ligada à pobreza.
Não há dúvida de que o sistema capitalista
e, no caso em questão, a expressão jurídica em
torno da propriedade intelectual e das patentes,
permite o controle oligopolista das grandes
empresas sobre os medicamentos. Além disso,
os interesses privados prejudicam a saúde
pública e o lobby farmacêutico exerce pressão
sobre as instituições públicas e governos dos
quais obtém benefícios económicos, tais como
incentivos fiscais, políticos e normativos. A
rede público-privada, incluindo a maioria das
universidades e centros de pesquisa, servem
mais aos interesses privados das empresas
farmacêuticas do que à saúde das maiorias
sociais. Não podemos esquecer que a sua
rentabilidade depende muito da experiência de
seus pesquisadores e da rapidez e sigilo com
que estas alcançam resultados comercializáveis
e, portanto, protegidos por patentes.
Por outro lado, a própria estrutura jurídica
da Organização Mundial do Comércio (OMC)
sobre propriedade intelectual, o Acordo TRIPS (si����
gla em inglês), foi reinterpretada continuamente
e de forma unilateral em favor dos interesses das
empresas farmacêuticas. A literalidade do Acordo
e os consensos alcançados em 2001 em Doha,
foram bloqueados pelos Estados Unidos com
uma proposta apresentada em 16 de dezembro
de 2002. As exceções ao regime de patentes
por razões de saúde pública, que permitem a
importação de medicamentos provenientes de
vi
países que os produzem mais baratos e autorizam
aos governos a produção de medicamentos
genéricos, foram re-interpretadas de forma
restritiva ao limitarem-se a três pandemias e
outras 19 doenças transmissíveis. O resultado
final foi a inaplicabilidade das exceções por
��������
causa da pressão das empresas farmacêuticas e o
surgimento de inúmeras ações judiciais.
Foi daí que as classes dominantes inventaram e ativaram princípios tais como o dos vasos
comunicantes entre as regras comerciais e de
investimento e entre as instituições e governos,
isto é, o que não é alcançado no âmbito da OMC
será obtido por meio de tratados ou acordos
comerciais ou de investimento de caráter bilateral
ou regional. No caso em questão, foram criadas
regras TRIPS-plus, ou seja, se incorporaram
aos tratados as interpretações mais restritivas,
se blindaram os direitos de propriedade sobre
patentes e se esvaziaram de conteúdo as exceções
acima referidas. Além disso, os períodos de
transição e as flexibilidades na aplicação das
patentes para os países pobres, previstos no
texto original do TRIPS, ficaram sem efeito após
a ratificação desses tratados e acordos sobre o
comércio ou investimento.
Mas o poder das empresas farmacêuticas se
estende também no aumento no período de 20
anos de patentes, através das chamadas “inovações
incrementais”, que não envolvem mais do que
pequenas alterações, ou pior, na comercialização
de novos medicamentos cujos efeitos secundários
não foram suficientemente comprovados.
Finalmente, a desterritorialização que a
legislação da UE promove, com a aplicação
de um regulamento comunitário e aprovado
exclusivamente pelo e para o território europeu,
se materializa na apreensão de medicamentos
genéricos legais em trânsito. No entanto, de
acordo com a lei do país de origem e do país de
destino e pelas regras multilaterais de comércio
internacional e de proteção à propriedade
intelectual, os genéricos estão em plena conformidade com a lei. As autoridades da UE
justificaram a medida alegando suposta violação
de patentes, mas �������������������������������
falta �������������������������
acrescentar��������������
que essa alegação é feita pela União Europeia em defesa
das empresas transnacionais europeias. Além
disso, a apreensão não se justifica em qualquer
caso, por estarem os genéricos em trânsito, não
poderia haver qualquer dano comercial sobre os
interesses das empresas transnacionais. É uma
medida unilateral que estabelece claramente os
contornos de um novo imperialismo jurídico.
Esta legislação extraterritorial em favor
dos interesses das transnacionais se choca com a
recusa das instituições da UE em adotar um marco
normativo no qual as empresas transnacionais
europeias sejam obrigadas a respeitar os direitos
humanos em todos os lugares e países onde
operam, caso contrário, poderiam ser convoca��������
das perante os tribunais europeus. A assimetria
é evidente, desterritorializam a proteção dos
seus direitos e se opõem a das suas obrigações.
Além disso, em ambos os casos se quebram os
princípios da hierarquia normativa e do Estado
de Direito, já que o Direito Internacional dos
Direitos Humanos está no topo das normas
internacionais. E nos contornos de ambas as
interpretações, o direito universal à saúde e
aos medicamentos fica sujeito à capacidade
econômica para adquiri-los.
Finalmente, além de avaliações legais, a
sessão do TPP de Madrid e a gravidade dos casos
apresentados ratificou uma ideia: a construção
de redes transnacionais contra-hegemônica e a
utilização de instrumentos legítimos e legais são
necessários para reverter a pirâmide normativa e
colocar os interesses das empresas farmacêuticas
a serviço das maiorias sociais.
A saúde é um direito universal, independentemente de quaisquer leis de propriedade
intelectual e patentes.
Bilbao, 14 de junho de 2010
País Basco
Juan Hernández Zubizarreta
Professor da Universidad del País Basco
vii
Lista de Siglas e Abreviaturas
ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de
AIDS
ACTA – Anti-Counterfeiting Trade Agreement
(Acordo Comercial Anticontrafação)
AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA, sigla em português)
AMS – Assembléia Mundial de Saúde
BPF – Boas Práticas de Fabricação
CAFTA – Central American Free Trade Agreement (Tratado de Livre Comércio da América
Central) CUP – Convenção da União de Paris
IMPACT – International Medical Products AntiCounterfeiting Taskforce (Força-Tarefa Internacional Anticontrafação de Produtos Médicos)
INTERPOL – International Criminal Police Organization (Organização Internacional de Polícia Criminal)
KEI – Knowledge Ecology International (Ecologia
do Conhecimento Internacional)
LOS – Lei Orgânica da Saúde
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
MRE – Ministério das Relações Exteriores
DH – Direitos Humanos
MS – Ministério da Saúde
DPIs – Direitos de Propriedade Intelectual
MSD – Merck Sharp & Dohme
EFPIA – European Federation of Pharmaceutical
Industries and Associations (Federação Europeia
de Associações e Indústrias Farmacêuticas)
MSF – Médicos Sem Fronteiras
EUA – Estados Unidos da América
FMI – Fundo Monetário Internacional
GATT – General Agreement on Tariffs and Trade
(Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio)
GSK – GlaxoSmithKline
GTPI – Grupo de Trabalho sobre Propriedade
Intelectual
HAI – Health Action International (Ação Saúde
Internacional)
HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana
IFPMA – International Federation of Pharmaceutical Manufacturers and Associations (Federação Internacional de Associações e Produtores
Farmacêuticos)
NAFTA – North American Free Trade Agreement
(Tratado Norte-Americano de Livre Comércio)
OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
OEA – Organização dos Estados Americanos
OMA – Organização Mundial de Aduanas
OMC – Organização Mundial do Comércio
OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual
OMS – Organização Mundial de Saúde
ONG – Organização Não-Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
OXFAM – Oxford Committee for Famine Relief
(Comitê de Oxford de Combate à Fome)
P&D – Pesquisa e Desenvolvimento
PhRMA – Pharmaceutical Research and Manufacturers of America
REBRIP – Rede Brasileira pela Integração dos
Povos
Sumário
Introdução .......................................................................................................................
9
1. O Direito Humano à Saúde, o impacto do Sistema Internacional de Propriedade
Intelectual para o acesso a medicamentos e os mecanismos de proteção à
Saúde Pública ................................................................................................................. 11
2. Apreensões de medicamentos em portos europeus: a confusão deliberada entre
contrafação e genéricos .................................................................................................15
2.1 A qualidade e legitimidade de medicamentos ................................................... 16
2.2 Contrafação, medicamento falso e medicamento de baixa qualidade:
esclarecendo conceitos ........................................................................................18
2.3 O Regulamento CE nº 1383/2003 da União Europeia .......................................21
2.4 A apreensão em portos europeus de medicamentos genéricos em trânsito ....23
2.5 A ilegitimidade do Regulamento CE nº 1383/2003 da União Europeia ............ 26
2.6 O questionamento brasileiro frente às apreensões na OMS e OMC ................. 29
2.7 Tribunal Permanente dos Povos condena a União Europeia ............................ 31
2.8 A Consulta Pública sobre o Regulamento CE nº 1383/2003 da União
Europeia ............................................................................................................... 33
3. A legislação europeia e a agenda internacional de enforcement dos DPIs ...........
3.1 IMPACT/OMS .......................................................................................................
3.2 Os Tratados de Livre Comércio (TLCs) ...............................................................
3.3 ACTA .....................................................................................................................
3.4 Outras Iniciativas promovidas pela União Europeia ..........................................
34
35
36
37
39
Considerações Finais ......................................................................................................... 40
Referências Bibliográficas ................................................................................................. 41
Apreensões de medicamentos genéricos
em portos europeus e a agenda
anticontrafação:
implicações para o acesso a medicamentos
JANAÍNA ELISA PATTI DE FARIA
Introdução
As sistemáticas apreensões de medicamentos em trânsito executadas por autoridades
aduaneiras da União Europeia (UE) entre 2008 e
2009 têm sido objeto de polêmico debate. A UE
alegou que os medicamentos foram detidos em
seus portos pela suspeita de infração de Direitos
de Propriedade Intelectual (DPIs), com base em
seu Regulamento CE nº 1383 de 22 de Julho de
2003 – relativo à intervenção das autoridades
aduaneiras em relação às mercadorias suspeitas
de violarem certos direitos de propriedade intelectual e as medidas contra mercadorias que
violem esses direitos1. A polêmica se dá porque
o Regulamento permite a apreensão de mercadorias cujas patentes ou outros DPIs, embora
válidos na Europa, não encontram lastro de proteção nem no país de origem nem no país de
destino da mercadoria.
Em conformidade com as leis do país
exportador e importador, bem como com os
acordos multilaterais que regem o comércio inRegulamento disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/
LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2003:196:0007:0014:PT:
PDF>.
1
ternacional, medicamentos genéricos legítimos
provenientes da Índia e da China em rota para
países da América Latina, África e Oceania foram
confiscados em portos europeus, e, em alguns
casos, destruídos. A questão tem sido discutida
em diversos foros internacionais, como a Organização Mundial de Comércio (OMC) e Organização Mundial de Saúde (OMS), bem como por
grupos da sociedade civil organizada.
O Regulamento CE nº 1383/2003 da UE
tem como objetivo central combater violações
de Direitos de Propriedade Intelectual, incluindo
a contrafação, popularmente difundida como
‘pirataria’. O uso do termo ‘contrafação’ tem sido
estrategicamente associado aos medicamentos
genéricos para equivocadamente indicar falta
de qualidade e falsificação, enquanto, na realidade, o termo designa violação de Direitos de
Propriedade Intelectual, o que não tem relação
com qualidade de medicamentos. Medicamentos
genéricos não são contrafeitos, mas bens fundamentais para expandir o acesso à assistência
farmacêutica.
O direito de patente é um Direito de Propriedade Intelectual que confere ao seu titular
o monopólio de vinte anos de exploração do
produto, conforme estabelecido pelo Acordo so-
9
bre os Aspectos dos Direitos de Propriedade
Intelectual relacionados ao Comércio (TradeRelated Aspects of Intellectual Property Rights –
TRIPS ou ADPIC) da OMC. Estudos (COMISSÃO
EUROPEIA, 2009d) indicam que as patentes
vêm sendo utilizadas pela indústria farmacêutica para impedir a entrada de versões genéricas no mercado, que, devido à concorrência,
são comercializados a preços significativamente
mais baixos.
Os medicamentos são um componente
fundamental para a garantia do direito humano
inalienável à saúde e à vida, devendo estar acessíveis a todos que deles necessitam. No entanto,
estimativas da OMS revelam que apenas 15% da
população mundial consome mais de 90% da
produção mundial de medicamentos, em termos
de valor (OMS, 2004a, p. 2). A OMS calcula ainda que a morte de 18 milhões de pessoas, um
terço do total de mortes humanas no mundo por
ano, é decorrente de condições de saúde para as
quais há tratamento (OMS, 2004b, p. 95). Ainda
que fatores como infraestrutura sanitária e suporte profissional desempenhem um papel importante, a promoção do acesso a medicamentos
essenciais, especialmente nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, é um fatorchave para reverter a situação. Contudo, os altos
preços praticados pela indústria farmacêutica
transnacional e o abuso de seus direitos criam
graves barreiras ao acesso aos medicamentos,
colocando em xeque, em última instância, a vida
das pessoas.
Os medicamentos detidos pela UE seriam
utilizados no tratamento de pacientes de países
em desenvolvimento e menos desenvolvidos vivendo com HIV/AIDS, esquizofrenia, Alzheimer
e hipertensão, entre outras doenças. As apreensões foram realizadas sob justificativas legais
infundadas ao acusar empresas produtoras de
genéricos de infringir patentes, quando na verdade os medicamentos estavam sob patente em
países da Europa, mas não nos países de origem
e de destino dos medicamentos. A UE declarou
10
que sua atuação tem contribuído para salvar
vidas2.
O presente trabalho é fruto da indignação da sociedade civil organizada em relação à
política da União Europeia que ilegitimamente
impede que medicamentos alcancem pacientes
de outros países, sob o falso pretexto de combate à contrafação. O estudo teve início como
preparação do caso levado ao IV Tribunal Permanente dos Povos (TPP), realizado em Madrid
em maio de 2010, por organizações da sociedade civil da América Latina e sob coordenação
da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
(ABIA).
O primeiro capítulo introduz os principais
tratados internacionais que garantem o Direito
Humano à Saúde como direito fundamental, discute o impacto do atual sistema internacional de
DPIs para o acesso a medicamentos e identifica
os tratados e documentos internacionais que estabelecem a primazia do Direito à Saúde sobre
os direitos patentários da indústria farmacêutica
no cenário pós-TRIPS.
O segundo capítulo examina detalhadamente a política da União Europeia de apreensão de medicamentos em trânsito sob acusação
de ‘contrafação’. O uso vulgar do termo simultaneamente designa violação de DPIs, falta de
qualidade e falsificação, promovendo uma confusão conceitual proposital com vistas a dificultar a produção e comercialização de drogas
genéricas legítimas. Buscamos primeiramente
esclarecer os conceitos com o intuito de combater a confusão promovida pelo uso político,
mascarado de caráter técnico, do termo ‘contrafação’. Em seguida, pontuamos as inconsistências legais do Regulamento CE nº 1383/2003,
Ver pronunciamento da UE na reunião do Conselho TRIPS
de junho de 2009: <http://www.ip-watch.org/weblog/wpcontent/uploads/2009/06/trips-council-rs-june-2009-ecstatement.doc>. O documento também pode ser acessado aqui:
<http://www.ip-watch.org/weblog/2009/06/09/genericdrug-delay-called-%E2%80%9Csystemic%E2%80%9Dproblem-at-trips-council/>.
2
os embates políticos internacionais acarretados
pelas apreensões de genéricos em trânsito pelos portos europeus e suas consequências para
a saúde pública.
Por fim, o terceiro capítulo mostra como a
política europeia de apreensão de medicamentos genéricos está inserida numa agenda internacional de ‘Enforcement dos DPIs’ que está sendo
imposta em diversas instâncias como Organização Mundial da Saúde (OMC), em negociações
de Tratados de Livre Comércio (TLCs) e no Acordo Comercial Anticontrafação (Anti-Counterfeiting Trade Agreement – ACTA).
1. O dieito humano à saúde, o impacto do sistema internacional de propriedade Intelectual
para o acesso a medicamentos e os mecanismos
de proteção à saúde pública
A legislação internacional de Direitos Humanos (DH) é um conjunto de normas legais
que os Estados acordaram com o propósito de
promover e proteger tais direitos. Os tratados
internacionais não somente proíbem violações
diretas aos direitos humanos, mas também
atribuem aos governos a responsabilidade de
assegurar às pessoas as condições necessárias
para a realização plena de seus direitos. No caso
do direito humano à saúde, os países são responsáveis pela prevenção, tratamento e controle de
doenças, bem como a criação de condições que
assegurem o acesso a serviços e bens de saúde
(BRAVEMAN & GRUSKIN, 2003, p. 540).
Entre os documentos internacionais que
estabelecem o direito à saúde como um direito
humano fundamental e inalienável destacamos
a Declaração Universal dos Direitos do Homem
de 1948 e o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ambos
assinados no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Apresentamos a seguir os
artigos desses documentos relativos ao direito
à saúde.
Declaração
Universal dos
Direitos do
Homem de 1948
Artigo XXV. Todo homem tem
direito a um padrão de vida
capaz de assegurar a si e à sua
família saúde e bem estar.
Pacto
Internacional
sobre Direitos
Econômicos,
Sociais e
Culturais de
1966
Artigo 2.1. Os Estados-Partes
do presente Pacto reconhecem
o direito de toda pessoa de
desfrutar do mais elevado
nível possível de saúde física e
mental.
A maioria dos países do continente americano conta ainda com o sistema regional de
proteção da Organização dos Estados Americanos (OEA), que inclui a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 e a
Convenção Americana de Direitos Humanos de
1969. Em 1988, foi aprovado o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também conhecido por Protocolo
de San Salvador. O direito à saúde é igualmente
garantido no âmbito da OEA, tal como exposto
no quadro a seguir.
Declaração
Americana
dos Direitos
e Deveres do
Homem de 1948
Artigo XI. Toda pessoa tem
direito a que sua saúde seja
resguardada por medidas
sanitárias e sociais relativas
à alimentação, roupas,
habitação e cuidados médicos
correspondentes ao nível
permitido pelos recursos
públicos e os da coletividade.
Convenção
Americana
sobre Direitos
Humanos /
Protocolo de San
Salvador de 1988
Artigo 10.1. Toda pessoa tem
direito à saúde, entendida
como o gozo do mais alto nível
de bem-estar físico, mental e
social.
11
O Brasil, além de ter ratificado os tratados
supracitados, reconhece em sua Constituição Federal de 1988 o direito humano à saúde como
um direito social (artigo 6), estabelecendo-o como
um direito de todos e dever do Estado (artigo
196). A Constituição brasileira prevê ainda a garantia de atendimento integral a saúde, que inclui o acesso dos cidadãos a tratamento médico
adequado, inclusive a assistência farmacêutica
(artigo 198). Os dispositivos constitucionais referentes ao direito fundamental à saúde foram
também regulamentados pela legislação brasileira
infraconstitucional, em especial a Lei nº 8.080/90,
conhecida por Lei Orgânica da Saúde (LOS).
Segundo Braveman & Gruskin (2003, p.
539 e 542), ainda que muitos considerem o direito à saúde como um conceito abstrato com
pouca aplicação prática, sua realização depende
da operacionalização de políticas concretas em
todos os setores que afetam a saúde. Entre essas políticas, promover o acesso a medicamentos
essenciais é prioritário, especialmente nos países
em desenvolvimento e menos desenvolvidos,
em que uma parcela considerável da população
vive marginalizada. De acordo com o relatório
do Projeto do Milênio das Nações Unidas (2005,
p. 1), “a falta de acesso a medicamentos que
salvam e prolongam vidas para um número estimado de 2 bilhões de pessoas pobres é uma
contradição direta com princípio fundamental da
saúde como um direito humano”.
Ainda que fatores como infraestrutura e
suporte profissional desempenhem um papel importante, os altos preços dos medicamentos cobrados pela indústria farmacêutica representam
verdadeiras barreiras à formulação e execução
de políticas públicas de saúde que visam à realização do direito humano à saúde. É de crucial
relevância ressaltar que os elevados preços dos
medicamentos se devem, em grande medida, ao
monopólio de exploração conferido pelos Direitos de Propriedade Intelectual (DPIs), sendo
que as patentes representam a principal forma
de proteção para medicamentos.
12
Atualmente, o padrão internacional de DPIs
é regido pelo Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao
Comércio (Trade-Related Aspects od Intellectual
Property Rights – TRIPS) da Organização Mundial de Comércio (OMC). Assinado em 1994, o
Acordo estabeleceu para os países-membros da
OMC um padrão mínimo de DPIs. Antes da assinatura do Acordo, as relações internacionais
relativas à propriedade intelectual eram administradas por regras mais flexíveis, estabelecidas pela Convenção da União de Paris (CUP),
firmada em 1883. Os países signatários, dentre
eles o Brasil, tinham maior liberdade para definir
seus sistemas de DPIs, estabelecendo o que era
patenteável conforme seus interesses nacionais.
A flexibilidade legislativa no campo da propriedade industrial permitia aos países, de acordo
com o nível de desenvolvimento de cada setor
tecnológico, optar por proteger ou não os inventos relacionados a cada campo do conhecimento. Dessa forma, havia grande heterogeneidade entre as legislações de DPIs dos diferentes
países, apesar de uma harmonização em relação
às regras básicas estabelecida pela CUP (CORIAT
& ORSI, 2006, p. 13-15).
Em 1970, os temas relacionados à propriedade intelectual passaram a ser tratados pela
Organização Mundial de Propriedade Intelectual
(OMPI), a qual se tornou organismo especializado das Nações Unidas em 1974. O papel da
OMPI no sistema internacional de propriedade
intelectual começou a dar sinais de enfraquecimento quando o tema dos DPIs passou a ser discutido no âmbito do comércio internacional, durante a chamada Rodada Uruguai do Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio (General Agreement
on Tariffs and Trade – GATT), que ocorreu entre
1986 e 1994. Esta Rodada culminou na criação da
OMC e a assinatura de acordos multilaterais como
o GATT 1994, o qual inclui, em seu Anexo 1C, o
Acordo TRIPS (CHAVES et al., 2007, p. 258-259).
O fato de o Acordo da OMC ter sido negociado como um pacote único facilitou a tarefa
de convencer os países em desenvolvimento a
aceitarem regras mais rígidas de DPIs em troca
de promessas de compensações em outras áreas
comerciais, como a agrícola. É importante observar ainda que a inclusão no âmbito da OMC
permite aos países-membros recorrer ao Órgão
de Solução de Controvérsia (CORREA & MUSUNGU, 2002, p. 15).
A obrigação de reconhecimento de patentes para produtos e processos farmacêuticos
estabelecida pelo TRIPS modificou a natureza
jurídica que regula o acesso a medicamentos e
assistência médica, pois garante o monopólio de
produção e comercialização do fármaco patenteado por um período mínimo de vinte anos.
Destaca-se que, quando as negociações comerciais da Rodada Uruguai se iniciaram em 1986,
mais de 50 países não concediam patentes para
fármacos (MSF, 2003, p. 5). A preocupação com
a radical ruptura que a assinatura e a implementação do TRIPS representariam com a submissão
de invenções claramente de interesse social a regimes rígidos de patentes é expressa no Artigo 8
do Acordo, que estabelece que:
Os Membros ao formular ou emendar suas
leis e regulamentos, podem adotar medidas
necessárias para proteger a saúde e a nutrição
públicas e para promover o interesse público
em setores de vital importância para o seu desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico,
desde que estas medidas sejam compatíveis
com o disposto neste Acordo.
Estas medidas, conhecidas pelo termo
“flexibilidades” – antecipando que o novo sistema de DPIs a ser instituído produziria um impacto desproporcional nos países, em prejuízo
das nações em desenvolvimento e menos desenvolvidas – visam mitigar os efeitos perversos
dos direitos de monopólio conferidos aos titulares de DPIs. Vale lembrar que, para fazerem uso
das flexibilidades, os países devem incorporá-las
a suas legislações nacionais. Algumas flexibilidades de interesse para a saúde pública previstas
no TRIPS são: Períodos de Transição (artigos 65
e 66); Licenciamento Compulsório (artigo 31);
Importação Paralela (artigo 6); Uso experimental
e Exceção Bolar (artigo 30) (CHAVES et al., 2007,
p. 260-262).
É sabido que a implementação do Acordo
TRIPS gerou um impacto negativo para as políticas de saúde pública, pois o monopólio patentário eleva o preço dos medicamentos a um patamar inacessível para a maioria da população,
como enfatiza Velasquez (2003):
Ora, estes preços impedem a maior parte das
pessoas que têm necessidade deles de conseguir estes novos produtos. Se é preciso preservar a pesquisa e o desenvolvimento de novos
medicamentos3, é também essencial que eles
possam salvar as vidas a partir do momento de
sua descoberta e não 20 anos depois.
Segundo a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), a produção de medicamentos genéricos é a resposta mais eficaz e
sustentável para lidar com os altos preços dos
medicamentos sob patente, pois rompe com o
monopólio e promove a competição no mercado entre diferentes produtores (MSF, 2009a).
Nesse sentido, o uso do licenciamento compulsório4 pelos países em desenvolvimento, flexibilidade assegurada pelo TRIPS, é de importância
inestimável.
Sobre a relação entre patentes e inovação no setor
farmacêutico, ver: ANGELL (2007) e HELLER & EISENBER
(1998).
3
O licenciamento compulsório está previsto no Artigo 31 e
é a flexibilidade mais polêmica do TRIPS. Trata-se de uma
autorização concedida pelo Estado para produção, uso ou
venda da invenção patenteada sem a permissão do detentor da patente. As condições estabelecidas pelo TRIPS para
a emissão da licença compulsória são: falta de exploração
da patente, interesse público, situações de emergência nacional e extrema urgência, para remediar práticas anticompetitivas e de concorrência desleal, e na existência de patentes dependentes. Mesmo com o licenciamento compulsório, o pagamento de royalties para o detentor da patente
é garantido pelo TRIPS (alínea h do Artigo 31) (CHAVES et
al., 2007, p.261).
4
13
Em junho de 2009, o Relator Especial de
Direitos Humanos da ONU, Anand Grover, em
pronunciamento acerca de seu relatório sobre
acesso a medicamentos e leis de propriedade
intelectual, expressou sua preocupação com
o fim do período para a adequação ao TRIPS
pelos países em desenvolvimento, em especial
os produtores de genéricos. Segundo Grover,
a produção de medicamentos genéricos já teria ajudado a reduzir em mais de 99% o preço
de medicamentos antiretrovirais de primeira geração, promovendo a competitividade no setor
farmacêutico e contribuindo efetivamente para o
acesso a medicamentos. Nas palavras de Grover
(CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009):
A competição dos genéricos no campo de fármacos tem o potencial de diminuir significativamente os preços e aumentar o acesso. [...] Na
realidade, a disponibilidade de medicamentos
genéricos oriundos de países como Brasil, Índia, África do Sul e Tailândia tem exercido uma
pressão para queda nos preços e aumentado a
variedade de opções de baixo custo para programas nacionais de tratamento.
Grover recomenda em seu relatório que os
países em desenvolvimento e menos desenvolvidos incorporem em suas legislações as flexibilidades do TRIPS para que possam utilizar plenamente os mecanismos de proteção de saúde
pública previstos no Acordo.
Entretanto, a inclusão nas legislações nacionais e a utilização das flexibilidades do TRIPS
pelos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos têm sido bastante limitadas devido
a pressões exercidas diretamente pela indústria
farmacêutica5 bem como por governos6 que agem
Cita-se o caso da transnacional Abbott, que em 2007 ameaçou retirar os pedidos de registro sanitário de sete medicamentos na Tailândia como retaliação da concessão de
licença compulsória do antirretroviral Kaletra no país. Ver:
ZAMISKA (2007).
5
6
A partir de informações fornecidas pelo setor privado
14
seguindo os interesses dessa indústria. Além
disso, muitos países desenvolvidos têm pressionado países em desenvolvimento para a adoção
de regras de DPIs mais rigorosas – conhecidas
como dispositivos TRIPS-plus – sobretudo por
meio de Tratados de Livre Comércio (TLCs). Para
contornar o problema, várias resoluções vêm
sendo aprovadas em âmbito internacional que
reafirmam a importância da implementação das
flexibilidades do TRIPS de interesse para saúde,
de modo a minimizar os efeitos negativos decorrentes do sistema de patentes.
No âmbito da OMC, a principal delas é a
Declaração Ministerial Sobre o Acordo TRIPS e
a Saúde Pública, amplamente conhecida como
Declaração de Doha, adotada na IV Conferência
Ministerial da OMC de novembro de 2001, em
Doha, Qatar, após três dias de discussão sobre a
questão específica dos DPIs e o acesso a medicamentos. A Declaração de Doha reconhece
formalmente a ameaça que o TRIPS representa
para a Saúde Pública e enfatiza a possibilidade
de os países-membros de se utilizarem dos dispositivos previstos no Acordo para protegerem a
saúde pública (CHAVES et al., 2007, p. 262). Os
seguintes termos estão presentes na Declaração:
1. Nós reconhecemos a gravidade dos problemas de saúde pública que afligem muitos
países em desenvolvimento e países menos
desenvolvidos, especialmente aqueles que resultam do HIV/AIDS, da tuberculose, da malária e de outras epidemias.
4. Nós concordamos que o Acordo TRIPS não
deve e não pode prevenir os países membros
de adotar medidas para proteger a saúde pública. Consequentemente, enquanto reiteramos
nosso compromisso com o Acordo TRIPS, nós
norte-americano (indústria farmacêutica, de software, cinematográfica, editorial, fonográfica, entre outras), o Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) publica
todos os anos um relatório contendo listas de países (Special 301) que, na visão dos EUA, não oferecem “adequada
e efetiva” proteção à propriedade intelectual, mesmo que
as legislações desses países estejam de acordo com as prerrogativas do TRIPS.
afirmamos que o Acordo pode e deve ser interpretado e implementado de maneira a apoiar os
membros da OMC a proteger a saúde pública e,
em particular, promover o acesso a medicamentos para todos.
No âmbito da OMS, diversas resoluções,
muitas delas propostas e lideradas pelo governo
brasileiro, também foram aprovadas ressaltando
a importância de garantir o acesso a medicamentos7. Dentre elas, citamos a Estratégia Global e
Plano de Ação sobre Saúde Pública, Inovação e
Propriedade Intelectual, adotada em 2008 pela
61ª Assembléia Mundial da Saúde da OMS, com
o intuito de desenvolver mecanismos que incentivem a pesquisa sobre as doenças negligenciadas e aumentem o acesso a medicamentos, sobretudo das populações mais pobres. (MS, 2005,
p. 35-36).
Podemos citar ainda os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)8 – documento
acordado em 2000 no âmbito da ONU –, que
estabelece oito objetivos a serem alcançados até
2015, entre eles a erradicação da pobreza extreOrganização Mundial da Saúde – Resoluções das Assembleias Mundiais de Saúde:
7
•1999: Estratégia Revisada em Matéria de Medicamentos
(AMS 52.19);
ma e da fome. O sexto objetivo é o combate a
AIDS/HIV, malária e tuberculose, entre outras
doenças. Para alcançar esse objetivo, está previsto atingir o acesso universal ao tratamento da
AIDS/HIV a todos que precisam (Meta 6b). O
oitavo objetivo é promover uma parceria global para o desenvolvimento e uma das metas a
serem contempladas para atingir esse objetivo é
“prover o acesso a medicamentos essenciais nos
países em desenvolvimento a preços acessíveis
em cooperação com as companhias farmacêuticas” (Meta 8e).
De maneira geral, nota-se uma preocupação global em garantir a primazia da saúde
pública sobre os interesses comerciais para que
os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos possam assegurar a todos os seus cidadãos medicamentos a preços acessíveis. Os
medicamentos genéricos são, dessa forma, de
relevância vital para atingir esse objetivo. A sociedade civil organizada deve desempenhar o
papel de assegurar que a preocupação global
com o acesso a medicamentos não seja mera
retórica eloquente, tal como nos sinaliza as recentes políticas de apreensão de genéricos legítimos com destino a países em desenvolvimento
por parte das autoridades aduaneiras europeias.
•2001: Estratégia de Medicamentos da OMS (AMS 54.11);
•2003: Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e
Saúde Pública (AMS 56.27) e Estratégia Mundial do Setor
Saúde para o HIV/AIDS (AMS 56.30);
•2004: Ampliando o tratamento e cuidado dentro de uma
resposta coordenada e abrangente ao HIV/AIDS (AMS
57.14);
•2006: Saúde pública, inovação, pesquisa essencial em
saúde e direitos de propriedade intelectual: em direção a
uma estratégia global e a um plano de ação (AMS 59.24);
•2007: Saúde pública, inovação e propriedade intelectual
(AMS 60.30);
•2008: Estratégia global e plano de ação sobre saúde
pública, inovação e propriedade intelectual (AMS 61.21);
•2009: Estratégia global e plano de ação sobre saúde
pública, inovação e propriedade intelectual (AMS 62.16).
Para mais informações sobre os ODM, consultar: <http://
www.undp.org/mdg/basics.shtml>.
8
2. Apreensões de Medicamentos
Europeus: a Confusão Deliberada
trafração e Genéricos
em
Portos
Con-
entre
A União Europeia (UE) tem recentemente
adotado políticas internas de aduana com impacto extremamente nocivo para o acesso a medicamentos de populações de países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, em benefício dos interesses comerciais das transnacionais
farmacêuticas. A aplicação do Regulamento CE
nº 1383 de 22 de Julho de 2003 – relativo à intervenção das autoridades aduaneiras em relação às
mercadorias suspeitas de violarem certos direitos
de propriedade intelectual e as medidas contra
15
mercadorias que violem esses direitos9 – tem
significado efetivas barreiras ao comércio internacional legítimo de medicamentos genéricos.
O combate à contrafação é o propósito
central dessa legislação europeia. Contrafação
– popularmente difundida como sinônimo de
pirataria – é o termo técnico para designar a reprodução de um produto não autorizada pelo
titular de um direito, nesse caso um direito de
propriedade intelectual. Porém, quando se trata especificamente de contrafação de produtos
farmacêuticos, o uso vago do termo “contrafeito”
para designar qualquer tipo de violação de DPI e
simultaneamente indicar a falta de qualidade de
um produto – uso cada vez mais frequente entre
instituições internacionais, países desenvolvidos
e empresas multinacionais com foco em P&D –
acarreta graves consequências à saúde pública
(SEUBA, 2009, p. vii-viii).
Para tratarmos do conteúdo e aplicação
da legislação da UE, além da compreensão do
contexto político em que se insere essa legislação, é crucial pontuarmos as substanciais diferenças conceituais entre medicamentos genéricos, medicamentos falsificados e medicamentos
de baixa qualidade. Entretanto, para que essas
diferenças sejam esclarecidas com precisão, necessitamos primeiramente nos munir de informações técnicas sobre o conjunto de elementos que
de fato garante a qualidade e legitimidade dos
medicamentos.
2.1 – A qualidade e legitimidade de medicamentos
Preocupações relacionadas à qualidade
dos medicamentos são tão antigas quanto os
próprios medicamentos. As consequências para
a saúde pública da administração de medicamentos que não atendem a padrões adequados
de qualidade são muitas vezes letais para os paRegulamento disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/
LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2003:196:0007:0014:PT:
PDF>.
cientes. Nos Estados Unidos, 107 crianças morreram intoxicadas com Dietilenoglicol (DEG) em
1937. A substância fora usada em substituição da
glicerina, que fazia parte da fórmula original de
um elixir de sulfanilamida. Em 2006, a mesma
substância provocou a intoxicação no Panamá
de 82 pessoas, causando a morte de 38 delas.
Apesar do significativo aprimoramento técnico
adquirido desde 1937 no que tange a métodos de
identificação e controle de desvios qualidade, o
problema reconhecido foi a falta de controle de
qualidade nos ingredientes usados na produção
do medicamento (RUIZ & OSÓRIO-DE-CASTRO,
2008, p. 13-14). Esses são apenas dois de muitos
casos em que a falta de qualidade dos medicamentos teve consequências fatais.
É necessário deixar claro que não há um
conceito rígido de qualidade de medicamento
aceito internacionalmente. A definição do conceito de qualidade tem sido bastante debatida
em fóruns internacionais, mas o debate está distante de ser consensual. Cada país possui autonomia para definir nacionalmente o conceito de
qualidade, estabelecendo mecanismos diferentes
para aprovação e controle de medicamentos pelo
órgão sanitário local (RUIZ & OSÓRIO-DE-CASTRO, 2008, p. 26).
O caminho do medicamento – desde a
transformação da matéria prima até o consumo
do paciente – envolve um complexo processo
técnico e os laboratórios farmacêuticos, autoridades reguladoras, instituições e profissionais
de saúde são responsáveis por diferentes etapas
desse processo. Todo medicamento deve ser:
seguro, isto é, apresentar níveis aceitáveis de
toxidade; eficaz, ou seja, atingir os efeitos a que
se propõe; e de qualidade, isto é, possuir propriedades como identidade, pureza, potência,
concentração, uniformidade, estabilidade e biodisponibilidade10 (RUIZ & OSÓRIO-DE-CASTRO,
2008, p. 20-22).
9
16
A biodisponibilidade refere-se à capacidade que o medicamento tem de exercer sua função terapêutica no or10
Na maioria dos países, os testes de biodisponibilidade – devido a impedimentos de ordem
ética e moral, pois esses testes envolvem riscos à
saúde de seres humanos – só são requeridos na
primeira vez que um determinado medicamento
entra no mercado. Em geral, esses medicamentos são introduzidos no mercado pela empresa
que realizou a pesquisa e desenvolvimento do
princípio ativo. No Brasil, eles são chamados
de medicamentos de referência e internacionalmente eles são conhecidos como medicamentos
de marca.
No que se refere a medicamento genérico, tampouco há uma definição universal. Em
alguns países, os medicamentos genéricos são
definidos apenas como aqueles comercializados
sob o nome oficial da substância farmacológica,
a Denominação Comum Internacional (DCI).
Nesses países não há a exigência de que o medicamento tenha a mesma concentração e forma
farmacêutica que o medicamento de referência,
nem a comprovação de bioequivalência11 para a
concessão do registro sanitário. Isso não significa, porém, que esses medicamentos não são de
ganismo. Ela é medida pela relação entre a quantidade do
fármaco e a velocidade de absorção dessa quantidade na
corrente sanguínea. Assim que o medicamento é liberado
no organismo e começa a ser absorvido, a sua concentração no sangue vai aumentando até atingir sua concentração
máxima. Depois ele é eliminado, até desaparecer. É preciso que a concentração de cada fármaco na corrente sanguínea seja suficiente para assegurar tanto a eficácia quanto
a segurança do medicamento. É o que chamamos de faixa
terapêutica. Se em qualquer momento do tratamento a concentração máxima no sangue não for suficiente, o fármaco
não terá o efeito planejado, ou seja, será ineficaz. Se a concentração máxima no sangue estiver acima do ideal, em
algum momento do tratamento, o fármaco causará efeitos
tóxicos maiores do que os esperados, não garantindo segurança à saúde do paciente. Portanto, é preciso certificar de
que todo medicamento apresente adequada biodisponibilidade, atuando dentro da faixa terapêutica.
O teste de bioequivalência se faz pela comparação estatística entre a biodisponibilidade do medicamento de
referência e a biodisponibilidade do medicamento genérico
em teste, dada a equivalência farmacêutica dos medicamentos em comparação.
11
qualidade. A OMS, reconhecendo e respeitando
essas diferenças, decidiu adotar o termo medicamento “multifonte” ou “multiorigem”, pelo fato
de serem produzidos por mais de um fabricante.
Entretanto, tem-se a necessidade de unificação
da linguagem para lidar com as diferenças, de
modo que a análise de qualidade dos medicamentos possa ser feita de forma precisa (VACCA
GONZÁLEZ et al, 2006). Destacamos no quadro
a seguir a definição brasileira instituída pela Lei
nº 9.787/99, conhecida como Lei dos Genéricos.
MEDICAMENTO
GENÉRICO
Lei nº 9787/99
Segundo a definição brasileira, medicamento genérico é aquele que
contém o mesmo fármaco (princípio ativo), na mesma dose e forma
farmacêutica, é administrado pela
mesma via e com a mesma indicação terapêutica do medicamento de
referência, apresentando a mesma
segurança, eficácia e qualidade,
sendo, dessa forma, intercambiável
com o medicamento de marca. A
intercambialidade é a segura substituição do medicamento de referência pelo seu genérico, certificada
pelo teste de bioequivalência.
Segundo Vacca González et al., é bastante comum a alusão ao medicamento genérico
como se fosse de qualidade inferior ao medicamento de marca, produzido pelo laboratório
que realizou a pesquisa e desenvolvimento do
princípio ativo (VACCA GONZÁLEZ et al, 2006,
p. 315). No entanto, deve-se esclarecer que a
qualidade do medicamento – seja ele de referência ou genérico – é constituída principalmente
pelos seguintes elementos: a comprovação de que
possui efeitos terapêuticos adequados e o cumprimento de práticas adequadas de fabricação12
A OMS estabelece as Boas Práticas de Fabricação, um conjunto de normas e padrões de produção que devem ser observados pelos fabricantes de produtos farmacêuticos com
vistas a resguardar a qualidade dos produtos. Não se trata
de instruções prescritivas sobre como produzir um medica12
17
em todas as etapas de seu processo produtivo,
além da adoção de práticas apropriadas de armazenamento e distribuição. Tais elementos devem
ser rigorosamente controlados por parte das autoridades reguladoras nacionais.
2.2 – Contrafação, medicamento falso e medicamento de baixa qualidade: esclarecendo
conceitos
Recentemente, o termo ‘contrafação’ tem
sido estrategicamente associado aos medicamentos para designar genericamente falta de qualidade. A confusão conceitual está ligada a variantes relativas à qualidade, fraude e direitos de
propriedade intelectual (MSF, 2009b). Deveria ser
desnecessário lembrar que o emprego de terminologia precisa é uma questão essencial quando
se trata tanto de medicamentos e saúde pública
quanto de assuntos jurídicos, em especial de legislações que impactam diretamente o comércio
internacional. Dessa forma, é de extrema relevância esclarecer os conceitos para que se possa
compreender a razão estratégica dessa confusão,
bem como promover políticas apropriadas para
combater medicamentos que oferecem riscos à
saúde pública. Com o intuito de combater tal
confusão, inicialmente exporemos o conceito de
contrafação presente no Acordo TRIPS e, em
seguida, discutiremos a falta de qualidade de
medicamentos, em que são identificados dois
problemas principais e distintos, que requerem
diferentes soluções: medicamentos falsos e medicamentos de baixa qualidade.
mento, mas de um guia contendo uma série de princípios
gerais concernentes ao controle de qualidade durante todo
processo produtivo. Ressalta-se que, como há diversas formas de adequar o processo produtivo e o programa de
qualidade da companhia farmacêutica às Boas Práticas de
Fabricação, é responsabilidade da empresa produtora adotar os procedimentos mais eficientes para tanto. Para mais
informações sobre as Boas Práticas de Fabricação da OMS,
consultar: <http://www.who.int/medicines/areas/quality_sa fe
ty/quality_assurance/production/en/index.html>.
18
No Acordo TRIPS, conforme estabelecido
na nota de rodapé do artigo 51, contrafação –
conceito presente nos artigos 46, 51, 59 e 69 – se
refere apenas à violação de direitos de marca. O
Artigo 15 do TRIPS define que o objeto de proteção do direito de marca pode ser um sinal ou
combinação de sinais usados para distinguir os
produtos ou serviços de empresas diferentes. Esses sinais podem ser palavras, incluindo nomes
próprios, letras, números, elementos figurativos
e combinações de cores. A contrafação, por se
referir apenas à infração dos direitos de marca, é
apenas uma das características dos medicamentos falsos.
Conceito de contrafração do TRIPS
Nota de rodapé do
Artigo 51 do TRIPS
“Bens de marca contrafeita” significam quaisquer bens, incluindo
embalagens, que ostentem sem
autorização uma marca que seja
idêntica à marca validamente
registrada para tais bens, ou que
não pode ser distinguida em seus
aspectos essenciais dessa marca, e
que, portanto, infringe os direitos
do titular da marca registrada em
questão na legislação do país de
importação.
A principal característica dos medicamentos falsos é que eles apresentam conteúdo falsificado, ingredientes tóxicos ou quantidades
erradas dos ingredientes, sendo extremamente
nocivos à saúde. Tanto os medicamentos de referência como os genéricos podem ser alvos de
falsificação. Produzidos com propósitos criminosos, os medicamentos falsificados são identificados de forma deliberadamente errônea e de
maneira fraudulenta, dando uma representação
falsa sobre a identidade e/ou origem para que
as pessoas pensem que são medicamentos legítimos (MSF, 2009b).
O termo “contrafeito” é geralmente usado para designar medicamentos falsos porque
há a cópia deliberada e fraudulenta de logos,
marcas e até mesmo formatos e cores de um
medicamento legítimo, seja ele de referência ou
genérico. Mas é importante deixar claro que não
é a violação do direito de marca que é prejudicial
à saúde, mas o conteúdo do medicamento falso
(CORREA, 2009a, p. 56).
A violação do direito de patente, por sua
vez, só ocorre se a cópia falsificada do medicamento tiver conteúdo exatamente idêntico ao
produto original sob patente válida (patente de
produto), contendo as mesmas substâncias nas
mesmas quantidades, ou tiver sido produzida pelo
processo produtivo sob patente válida (patente
de processo). Essas violações só podem ser identificadas a partir de testes apropriados realizados
por profissionais tecnicamente capacitados (CORREA, 2009a, p. 49). Segundo Correa (2009a, p. 56),
a violação de patente se manifesta em menos
1% dos medicamentos vulgarmente classificados
como ‘contrafeitos’ – vulgarmente porque contrafação não designa violação de patente.
Os medicamentos falsos interferem diretamente tanto na saúde pública como nos interesses da indústria farmacêutica. É evidente que
eles são prejudiciais à saúde, pois o conteúdo
do produto é incerto quanto às características de
eficácia, segurança e qualidade, devendo, portanto, ser fortemente combatidos. Além disso,
os medicamentos falsos prejudicam a indústria
farmacêutica, dado que a marca do medicamento legítimo perde credibilidade ao ser associada
a produtos de qualidade indeterminada e potencialmente nocivos.
Reiteramos que DPIs – sejam os direitos de
marca ou patentes – não garantem a eficácia, segurança e qualidade de medicamento. O direito
de marca, como vimos, protege, grosso modo, os
símbolos e palavras que constituem a marca da
empresa proprietária do direito. A patente garante a seu titular o direito de monopólio de exploração do produto ou processo por um período
mínimo de 20 anos. Ressaltamos também que
grande parte dos medicamentos referidos como
‘contrafeitos’ são, na verdade, medicamentos
de baixa qualidade, isto é, medicamentos que
não violam DPIs, mas que são nocivos à saúde
(CAUDRON et al., 2008, p. 1068).
Os medicamentos de baixa qualidade são
medicamentos autênticos fabricados por empresas produtoras de medicamentos de referência e
genéricos devidamente registrados, mas que não
atendem aos requisitos de qualidade estabelecidos pelo órgão sanitário competente. Esses requisitos incluem, por exemplo: identidade, pureza,
potência, concentração, estabilidade e biodisponibilidade, além do cumprimento de práticas
adequadas de fabricação e outros fatores como
condições de armazenamento e transporte ou
mesmo expiração do prazo de validade. Problemas comuns associados aos medicamentos de
baixa qualidade incluem contaminação, concentração abaixo ou acima do padrão, estabilidade
irregular e embalagem inadequada (CAUDRON
et al, 2008, p. 1064). Os medicamentos de baixa
qualidade devem ser, assim que identificados,
imediatamente retirados do mercado, pois representam grande risco à saúde pública.
O escândalo da produção em massa de
medicamentos contaminados pela transnacional GlaxoSmithKline (GSK) é um exemplo expressivo de medicamentos de baixa qualidade.
A empresa estava ciente das irregularidades na
produção desde 2002, mas ignorou o problema.
A mais importante unidade da GSK, localizada
em Cidra, Porto Rico, responsável pela produção
US$ 5,5 bilhões de produto ao ano, operava com
problemas como contaminação cruzada entre
produtos pelo sistema de ar, contaminação do
sistema de água, mistura de medicamentos de
diferentes potências no mesmo frasco, esterilidade não garantida de drogas intravenosas e estoque de medicamentos em vans alugadas devido esgotamento da capacidade do almoxarifado.
O caso recentemente veio a público a partir da
denúncia de uma ex-funcionária da própria GSK
que havia pressionado a empresa em 2002 para
que providências fossem tomadas, mas acabou
19
sendo demitida em 2003. A fábrica em Cidra
foi fechada em 2009 e a GSK terá que pagar indenizações que somam US$750 milhões. Desde
2002, vinte tipos de medicamentos de qualidade
incerta foram produzidos e vendidos, incluindo
Paxil CR (antidepressivo), Bactroban (pomada
antibiótica), Coreg (patologias cardíacas), Avandia (diabetes) e Tagamet (distúrbios gástricos)
(HARRIS & WILSON, 2010). Nenhum desses
medicamentos infringiam DPIs
Outro exemplo bastante representativo de
medicamento de baixa qualidade foi o caso da
contaminação do antiretroviral nelfinavir, produzido e patenteado pela Roche. Em junho de 2007,
a Roche comunicou ao Ministério da Saúde (MS)
brasileiro o recolhimento do medicamento mesilato de nelfinavir (comercializado pela marca
Viracept®) em toda a Europa e Brasil, por terem
sido identificados problemas na qualidade do
produto. Conforme declarou a empresa, alguns
lotes produzidos e comercializados para o Brasil
e para a Europa foram contaminados com ácido
etil éster metanossulfônico durante o processo
de produção da matéria-prima, que é realizado
de forma centralizada pelo laboratório Roche na
Basiléia, Suíça. O ácido etil éster metassulfônico tem potencial carcinogênico para as pessoas
(MS, 2007).
Uma importante medida para combater o
problema é garantir que as empresas farmacêuticas sigam as Boas Práticas de Fabricação da
OMS e melhorem continuamente seus processos
produtivos. A melhora dos padrões de prática
em todos os estágios da rede de produção e distribuição é vital. Vale lembrar que questões de
qualidade afetam produtores do Norte e do Sul e
por isso sistemas efetivos de regulação têm que
ser aplicados a todos (MSF, 2009b).
Conceito
Definição
Risco à Saúde?
Infringe DPI?
Medicamento de
baixa qualidade
Medicamento autêntico produzido
legitimamente, mas que não atende
satisfatoriamente aos padrões de qualidade.
SIM
NÃO
Medicamento
Falso
Medicamento produzido de forma
deliberadamente fraudulenta, com conteúdo
indeterminado. Há a utilização ilegal de logos,
marcas, formatos e cores para dar a falsa
representação de um medicamento legítimo.
SIM
SIM
Direitos
de marca,
principalmente.
Um estudo promovido pela organização
MSF concluiu que o problema dos medicamentos
de baixa qualidade é muito mais frequente do
que dos medicamentos falsos e que a ausência
de distinção precisa entre os conceitos é um fator agravante para a promoção de políticas de
combate a todos os tipos de medicamentos que
oferecem riscos à saúde pública, como explicita
a seguinte passagem (CAUDRON et al., 2008,
p. 1068):
20
Determinar se um medicamento é contrafeito é
problemático. Os poucos relatórios publicados
que diferenciaram os dois problemas constataram que a maioria dos medicamentos de qualidade insatisfatória era autêntica, mas de baixa
qualidade, e não resultado de contrafação. Um
estudo da OMS constatou que quase todos os
medicamentos de qualidade insatisfatória eram
genuínos, mas esse estudo tem sido amplamente citado pela própria OMS como indicação de contrafação. Porque os medicamentos
de baixa qualidade são frequentemente enquadrados como consequência de contrafação,
é surpreendentemente difícil que a maioria da
atenção e ação internacional seja dirigida aos
medicamentos legítimos de baixa qualidade.
Isso se deve em partes porque medicamentos
contrafeitos arruínam os mercados das companhias farmacêuticas, que investem energias
expressivas para atacar o problema.
Vale pontuar aqui como a OMS tem lidado
com o conceito de contrafação. Em 1992, a OMS
organizou conjuntamente com a Federação Internacional de Associações e Produtores Farmacêuticos (International Federation of Pharmaceutical Manufacturers and Associations – IFPMA)
um seminário em Genebra onde foi acordada a
seguinte definição para medicamento contrafeito:
Medicamento
Contrafeito
OMS - IFPMA13
Um medicamento contrafeito é
aquele que é deliberada e fraudulentamente rotulado no que
diz respeito à identidade e/ou
origem. Contrafação pode ser
aplicada a produtos de marca
e genéricos e produtos contrafeitos podem incluir produtos
com os ingredientes corretos
ou com ingredientes incorretos,
sem ingredientes ativos, com
ingredientes ativos insuficientes, ou com embalagem falsa.
Ressalta-se que essa definição não foi
formalmente adotada pelos membros da OMS.
Nota-se, sobretudo, que a definição é deficiente
por não tratar a contrafação como apenas um
aspecto dos medicamentos falsos (infração de
direito de marca) e por não distinguir questões
sanitárias de direitos comerciais, o que é muito
conveniente aos titulares desses direitos, como
enfatizado a seguir:
Ver definição em: http://www.who.int/medicines/services/
counterfeit/overview/en/.
13
[...] usar uma definição expandida de ‘contrafação’, que inclui elementos de infração de PI e
saúde pública (como a definição IFPMA-OMS
faz), proporciona uma oportunidade ideal para
os protagonistas de um regime rígido de PI a
usar questões de saúde pública como frente
para fortalecer DPIs [...]. (GOPAKUMAR,& SHASHIKANT, 2010, p.7)
É o que de fato vem acontecendo. Um
programa internacional de combate a produtos
farmacêuticos contrafeitos denominado ForçaTarefa Internacional Anticontrafação de Produtos Médicos (International Medical Product
Anti-Counterfeiting Taskforce – IMPACT) – promovido, entre outros, pela IFPMA, OMC, OMPI,
Organização Mundial de Aduanas (OMA), Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Comissão
Européia – foi endossado pela OMS sem aprovação da Assembléia Mundial de Saúde. A participação da OMS no IMPACT tem sido duramente
criticada por ONGs e países em desenvolvimento, especialmente nas Assembléias Mundiais de
Saúde de 2009 e 2010.
2.3 – O Regulamento CE nº 1383/2003 da
União Europeia
O Regulamento CE nº 1383 de 22 de Julho
de 2003 – relativo à intervenção das autoridades
aduaneiras em relação às mercadorias suspeitas
de violarem certos direitos de propriedade intelectual e as medidas contra mercadorias que
violem esses direitos – tem por objetivo central
combater a circulação de mercadorias que infringem DPIs. Trata-se de uma medida de enforcement dos DPIs globalmente, uma vez que a UE
aplica sua legislação de fronteira a produtos em
trânsito pelos portos europeus, isto é, produtos
que não são destinados aos países pertencentes
à UE. A aplicação do Regulamento resultou em
diversas apreensões de produtos suspeitos de infringir DPIs, incluindo medicamentos genéricos
21
legítimos, por parte das autoridades aduaneiras
de países europeus. A União Europeia, para justificar sua política, recorre frequentemente aos
danos que o comércio internacional de medicamentos falsos representa para a saúde pública
(COMISSÃO EUROPEIA, 2009a, p.5):
Bens que violam DPIs prejudicam a sociedade
de diversas formas, que nem sempre são óbvias. Isso é particularmente verdadeiro para
medicamentos falsos e bens de consumo que
não são testados de acordo com os mesmos
padrões de segurança que os produtos genuínos. Esses produtos falsos podem prejudicar
seriamente os consumidores, ou, no mínimo,
não atendem às expectativas e resultados assegurados pelo produto real.
Apesar de os Direitos de Propriedade Intelectual sobre medicamentos não terem relação com a garantia de qualidade do produto, a
legislação europeia usa de forma equivocada o
argumento de que ela contribui para a defesa
da saúde pública. O ponto 2 do Preâmbulo do
Regulamento assinala:
EUA estão fazendo a parte delas para ajudar a
combater abusos de propriedade intelectual e a
contrafação, que é o resultado de tal abuso”.
De acordo com PhRMA, contrafeitos “estão roubando a paz dos pacientes do mundo todo que
confiam nos medicamentos seguros e eficazes”.
O termo ‘contrafação’ tem sido amplamente empregado como sinônimo de infração
de qualquer tipo de DPI e falta de qualidade de
medicamentos, tal como identificamos na declaração da PhARMA. Como vimos, o conceito de
contrafação do Acordo TRIPS se refere apenas
à violação de direitos de marca. O conceito de
contrafação do Regulamento europeu é bastante
similar ao do TRIPS – restrito a violação de direito de marca. Contudo, a legislação europeia
atua sobre ‘mercadorias que violam direitos de
propriedade intelectual’, isto é, bens que infringem, segundo definição do Artigo 2 do Regulamento, os DPIs listados abaixo.
Bens violadores de direito de
propriedade intelectual são bens
que infringem:
A comercialização de mercadorias contrafeitas
e piratas, e, de um modo geral, de quaisquer
mercadorias que violem direitos de propriedade intelectual, prejudica consideravelmente
os fabricantes e comerciantes que respeitam a
lei, bem como os titulares de direitos, e engana
os consumidores fazendo-os por vezes correr
riscos para sua saúde e segurança.
A confusão entre infração de DPIs e qualidade de medicamento está intimamente ligada
aos interesses comerciais da indústria farmacêutica. Tais interesses ficam explícitos, por exemplo, na declaração da associação dos produtores
farmacêuticos dos Estados Unidos da América
(EUA), a PhRMA (sigla em inglês para Pharmaceutical Research and Manufacturers of America), como expõe Seuba (2009, p.23):
Artigo 2 do
Regulamento
CE nº
1383/2003
Muitas das apreensões de medicamentos
em portos europeus com base no Regulamento
CE nº 1383/2003 foram feitas por suspeita de
violação de patente14, como foi o caso da apreConsultar carta enviada pelos advogados da Merck e Du
Pont (Lovells) para Dr. Reddy em 24/12/2008 (disponível
em: <http://online.wsj.com/public/resources/documents/eu
14
De maneira similar, a PhRMA declarou que “as
companhias farmacêuticas de pesquisa dos
22
•Direito de marca (mercadorias
de contrafação);
•Direito autoral, direito
de desenho ou modelo
(mercadorias-pirata);
•Patente e Certificado
Complementar de Proteção;
•Direito de variedade;
•Denominações Geográficas,
Denominações de Origem ou
Indicadores Geográficos.
ensão do princípio ativo Losartan produzido na
Índia em rota para o Brasil. Entretanto, não é
rara a referência às apreensões como atuação da
UE contra ‘medicamentos contrafeitos que oferecem risco à saúde’, corroborando com a associação entre DPIs, especialmente os direitos patentários, e a falta de qualidade de medicamento
(CORREA, 2009a, p. 55-57).
Colocar os Direitos de Propriedade Intelectual no centro do debate sobre a qualidade
de medicamentos, como tem feito a União Europeia e a indústria farmacêutica, só favorece,
portanto, os interesses de grandes laboratórios
transnacionais em confundir questões distintas
para dificultar a presença no mercado de medicamentos genéricos – cópias legais de medicamentos de referência a preços mais acessíveis. A
confusão entre questões comerciais e questões
sanitárias gera uma desconfiança e potencial
rejeição da população a medicamentos genéricos ao confundi-los com medicamentos falsos
e, além disso, dificulta que medidas apropriadas
sejam tomadas para combater os medicamentos
de baixa qualidade e os medicamentos falsos,
que de fato oferecem risco à saúde.
2.4 – A apreensão em portos europeus de
medicamentos genéricos em trânsito
O Regulamento CE nº 1383/2003, expandindo as provisões do Artigo 51 do TRIPS, estende seu escopo de atuação a produtos em trânsito
pelos portos europeus. Define-se como bens em
trânsito externo aqueles oriundos de países nãopertencentes à União Européia e que estão sendo transportados, passando pelo território europeu, para outro país não-europeu. Na prática,
essa medida tem imposto a jurisdição interna de
DPIs da UE ao comércio internacional.
drugs2009letter1.pdf>) e carta enviada pelos advogados da
Eli Lilly (Baker and Mckenzie) para Cipla em 09/12/2008
(disponível em: <http://online.wsj.com/public/resources/
documents/eudrugs2009letter3.pdf>).
Trata-se de um dispositivo TRIPS-plus, uma
vez que o Artigo 51 do TRIPS estabelece obrigatoriedade de intervenção das autoridades aduaneiras a produtos de importação, com aplicação
apenas a produtos infratores de direito de marca
(contrafeitos) e de direito autoral (piratas). A extensão da aplicação das medidas de fronteira a
outros tipos de DPIs, em especial às patentes, é
extremamente problemática, como pontua Carlos Correa (2009a, p. 49):
[...] a referida provisão do TRIPS [Artigo 51] não
se aplica a outros tipos de DPIs, como as patentes. Essa diferenciação é crucial. Ao passo
que contrafação de direito de marca e pirataria
de direito autoral podem ser facilmente identificadas por inspeção visual, é extremamente
difícil determinar se há infração de patente de
produto ou processo, mesmo se literal, sem testes apropriados ou outras provas, e sem conhecimento técnico e legal.
A aplicação do Regulamento CE nº 1383/
2003 resultou na apreensão, executada por autoridades aduaneiras europeias, de medicamentos genéricos legítimos destinados a países em
desenvolvimento e menos desenvolvidos. Entretanto, os medicamentos apreendidos estavam
em conformidade com as leis do país exportador
e importador, bem como com os acordos multilaterais que regem o comércio internacional.
Os medicamentos genéricos apreendidos
não infringiam DPIs nem no país produtor/exportador nem no país importador. Ao transitarem por portos europeus, esses medicamentos
foram acusados de violar DPIs concedidos por
países europeus a transnacionais farmacêuticas
e válidos apenas em âmbito nacional15. Dessa
forma, as apreensões estão sendo realizadas sob
justificativas legais infundadas ao acusar empresas produtoras de genéricos de infringir DPIs,
O princípio de ‘territorialidade das patentes’, instituído
pelo artigo 4º bis da Convenção da União de Paris (CUP),
limita a validade e vigência da patente dentro dos limites
territoriais do país que a concede.
15
23
quando na verdade os medicamentos estavam sob
patente em países da Europa, mas não nos países
de origem e de destino dos medicamentos.
A posição geográfica favorável e a pujança econômica dos países europeus explicam o
significativo papel de seus portos como importante rota do comércio internacional de medicamentos, inclusive entre países do Sul. Ademais,
muitas ONGs relacionadas à saúde e agências
humanitárias possuem suas matrizes na Europa
e os produtos que elas enviam para os diferentes países passam pelas autoridades europeias de fronteira. Nesse sentido, se suplementos
farmacêuticos legais em trânsito forem regularmente interceptados por autoridades aduaneiras
sob a suspeita de infração de direitos patentários ou outros DPIs, o comércio internacional de
genéricos e, consequentemente, as políticas de
saúde principalmente dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos serão gravemente
ameaçadas (SEUBA, 2009, p. 1).
Em 2008, as autoridades aduaneiras holandesas detiveram ao menos quinze carregamentos de medicamentos genéricos em trânsito16 sob
a acusação de que eram suspeitos de infringir
DPIs concedidos naquele país a transnacionais
farmacêuticas. As cargas eram destinadas majoritariamente a países da América Latina, mas inclui
também um país da África. Segundo informações
divulgadas pelo governo holandês17, foram interceptadas cinco cargas destinadas ao Peru, quatro
à Colômbia, duas ao Equador, duas ao México,
uma ao Brasil e uma à Nigéria. Os carregamentos vinham da Índia, com exceção de um, oriundo da China.
No total, foram 17 apreensões de medicamentos em 2008
divulgadas pelo governo holandês, mas dois casos não podem ser incluídos no conceito de trânsito externo conforme
definido anteriormente, pois os medicamentos apreendidos tinham como destino final países-membros da União
Europeia.
16
Carta do governo holandês em resposta à ONG Health
Action International (HAI), disponível em: <http://www.
ip-watch.org/weblog/wp-content/uploads/2009/06/wobverzoek-antwoord.pdf>.
17
24
O caso da apreensão do antiretroviral Abacavir em trânsito com destino final à Nigéria em
novembro de 2008 é exemplo expressivo de
como as alfândegas europeias estão agindo em
detrimento do direito humano à saúde. O medicamento genérico havia sido produzido pelo
laboratório pré-qualificado pela OMS Aurobindo
na Índia, onde não há proteção patentária para
esse medicamento. Contudo, a GlaxoSmithKline
detém a patente do Abacavir na Holanda, onde
a carga foi detida. Salienta-se que os medicamentos haviam sido comprados pela Fundação
Clinton, por meio da Central Internacional para
Compra de Medicamentos (International Drug
Purchase Facility – UNITAID), instituição ligada
à ONU e OMS. A quantidade apreendida seria
destinada ao tratamento de 166 pessoas que vivem
com HIV/AIDS por três meses (PANDEYA, 2009).
Em 2009, ocorreram ao menos outras duas
apreensões de medicamentos genéricos em portos europeus provenientes da Índia. No dia 5 de
maio, mais de três milhões de pílulas do antibiótico Amoxicilina, quantidade suficiente para
tratar 76 mil adultos, com destino a República
do Vanuatu, Oceania, foi interceptado na Alemanha. A Amoxicilina é um medicamento básico,
livre de Direitos de Propriedade Intelectual. Apesar disso, as autoridades alemãs infundadamente
apreenderam o medicamento sob suspeita de violar o direito da marca ‘Amoxil’ da GlaxoSmithKline e enviaram uma amostra para a empresa, a
qual declarou que era a antiga titular da patente
do medicamento e solicitou a liberação da carga,
realizada no dia 20 de maio.
Em 12 de outubro de 2009, 1.740.000 pílulas de Clopidogrel, medicamento usado no tratamento de trombose arterial, com destino a Venezuela foram apreendidas na França sob suspeita
de violar os direitos de patente da farmacêutica
Sanofi-Aventis. O caso francês é o último que se
tem notícia até o presente momento.
A tabela 1 a seguir sintetiza as apreensões
de medicamentos genéricos ocorridas em portos
europeus.
Tabela 1. Apreensões de medicamentos genéricos ocorridas em portos europeus no
período de março de 2008 a outubro de 2009
Data
Medicamento
Quantidade
Tratamento
Origem
País de
Apreensão
Titular de
DPI na
Europa
Destino
Medida
tomada
Mar 08
Sildenafil
114 kg
Disfunção
erétil
Índia
(Smilax)
Holanda
Pfizer
Equador
Carga
destruída
Abr 08
Atorvastatina
100 mil
pílulas
Colesterol
Índia
(Ind-Swift)
Holanda
WarnerLambert
Colômbia
Carga
destruída
Abr 08
Sildenafil
112 kg
Disfunção
erétil
Índia
(Smilax)
Holanda
Pfizer
Colômbia
Carga
destruída
Abr 08
Sildenafil
140 kg
Disfunção
erétil
Índia
(RakshitDrug)
Holanda
Pfizer
México
Carga
destruída
Ago 08
Sildenafil
23 kg
Disfunção
erétil
Índia
(Cipla)
Holanda
Pfizer
Peru
Carga
destruída
Out 08
Clopidogrel
60 kg
Trombose
arterial
Índia
(Ind-Swift)
Holanda
SanofiAventis
Colômbia
Carga
destruída
Out 08
Losartan
57 kg
Hipertensão
Índia
(Aurobindo)
Holanda
MS&D e
Du Pont
Portugal
?
Nov 08
Valsartan
400 kg
Hipertensão
Índia
(Matrix)
Holanda
Novartis
Colômbia
?
Nov 08
Atorvastatina
120 kg
Colesterol
Índia
(SK Age
Exorts)
Holanda
WarnerLambert
Peru
?
Nov 08
Rivastigmina
94.350
pílulas
Alzheimer
Índia
(Cipla)
Holanda
Novartis
Peru
Carga
destruída
Nov 08
Olanzapina
500 mil
pílulas
Esquizofrenia
Índia
(Cipla)
Holanda
Eli Lilly &
Co.
Peru
Carga
destruída
Nov 08
Zidovudina
24 kg
HIV/AIDS
Índia
(Hetero)
Holanda
GSK
México
?
Nov 08
Abacavir
49 kg
HIV/AIDS
Índia
(Aurobindo)
Holanda
GSK
Nigéria
Carga
liberada
Dez 08
Losartan
570 kg
Hipertensão
Índia
(Dr. Reddy)
Holanda
MS&D e
Du Pont
Brasil
Retornou à
Índia
Dez 08
Sildenafil
6,5 kg
Disfunção
erétil
Holanda
Pfizer
Equador
?
Dez 08
Losartan
577 kg
Hipertensão
Holanda
MS&D e
Du Pont
Portugal
?
Mai 09
Amoxicilina
3.047.000
pílulas
Infecções
bacterianas
Índia
Alemanha
NÃO HÁ
Vanuatu
Carga
liberada
Out 09
Clopidogrel
1.740.000
pílulas
Trombose
arterial
Índia
(Macleods)
França
SanofiAventis
Venezuela
?
Índia
(Eurasia
Transcont.)
China
(Zhejiang
Linhai)
Fonte: Elaboração própria com base em todos os dados aos quais tivemos acesso, seja por meio de informações públicas,
documentos oficiais ou conversas informais.
25
As informações divulgadas à sociedade
são extremamente limitadas e às vezes divergentes18. Em abril de 2009, a Organização Health
Action International (HAI) enviou um ofício19
ao governo holandês, país onde a maioria dos
carregamentos de genéricos foi interceptada,
solicitando a abertura dos documentos relacionados às apreensões para identificar os procedimentos que levaram à detenção e, em muitos
casos, a destruição de medicamentos legítimos.
Em resposta oficial20, o governo holandês negou
o pedido da HAI alegando confidencialidade de
informações, inserida no artigo 15 do Código
Aduaneiro Europeu. O embaixador indiano na
OMC, Ujal Singh Bhatia, disse que o país pediu
repetidamente às autoridades da UE e da Holanda por uma lista das apreensões, mas não obteve
sucesso: “Até hoje não recebemos detalhes de
sequer uma remessa onde houvesse alegação de
medicamentos fora dos padrões” (LYNN, 2010).
De acordo com o Regulamento aduaneiro,
titulares de DPIs podem enviar requerimentos às
autoridades de fronteira solicitando ação contra
produtos suspeitos de infringir seus direitos. Entretanto, essa não é pré-condição para atuação
das autoridades aduaneiras contra esses bens,
isto é, elas podem – e são estimuladas a – agir
ex officio. Se a autoridade aduaneira de um país
europeu suspeitar que um produto infringe DPI
concedidos nesse país, ela deve suspender a liberação do produto e notificar o titular do direito
e o declarante ou proprietário das mercadorias
suspeitas. A partir disso, diferentes medidas podem ser tomadas, incluindo desde a liberação
da carga ao seu destino final até sua destruição.
Entende-se que a atuação ex officio transforma as instituições europeias de aduana – orDevido à imprecisão das informações divulgadas, a tabela
acima pode conter erros.
18
Ver carta aberta da HAI à sociedade notificando envio de
ofício ao governo holandês: <http://www.haiweb.org/1906
2009/3%20Apr%202009%20HAI%20requests%20gover
nment%20documents%20on%20seizures.pdf>.
19
20
Carta do governo holandês em resposta à HAI, Op. cit.
26
ganismos públicos custeados com recursos dos
contribuintes – em um longa manus das transnacionais, pois agem em nome da União Europeia
defendendo interesses de empresas privadas.
Ademais, os funcionários de fronteira não são
aptos a analisar se há violação de marca, patente ou se o medicamento oferece riscos à saúde
pública – o que só é possível a partir de pesquisas apropriadas (CORREA, 2009a, p. 49).
A magnitude da aplicação do Regulamento CE nº 1383/2003 pelas instituições alfandegárias europeias pode ser observada a partir dos
dados contidos no relatório de 2008 divulgado
pela União Europeia. De acordo com esse documento, houve um aumento de 118% no número
de medicamentos detidos em comparação com
o ano anterior, tornando os medicamentos o
terceiro produto mais interceptado pelas autoridades aduaneiras europeias em termos de quantidade de artigos, ficando atrás somente dos CD/
DVD e cigarros (COMISSÃO EUROPEIA, 2009a,
p. 12).
2.5 – A ilegitimidade do Regulamento CE nº
1383/2003 da União Europeia
O Regulamento CE nº 1383/2003 tem sido
objeto de diversos questionamentos majoritariamente relativos à sua compatibilidade com acordos internacionais relacionados tanto ao direito
à saúde como às regras que regem o comércio
internacional. Na maioria das vezes, os Acordos
da OMC são cumulativos, isto é, quando dois
ou mais acordos são de relevância para uma
matéria, todos devem ser considerados. Dessa
forma, no que tange à conformidade do Regulamento europeu em questão com a legislação da
OMC, atenção deve ser dispensada ao GATT e
ao TRIPS, bem como textos subsequentes como
a Declaração de Doha (SEUBA, 2009, p. 7).
O artigo V do GATT estabelece o princípio
de “liberdade de trânsito” para bens sendo transportados pelos portos e aeroportos pelas rotas
mais cômodas para o comércio internacional.
Tal princípio fundamental foi tão amplamente e
consistentemente implementado que, apesar de
bens estarem constantemente em trânsito, não
houve praticamente controvérsias na história
do GATT/OMC relacionadas a esse princípio.
Ele pode ser visto como um pressuposto do comércio internacional, pois as autoridades aduaneiras dos países não detêm bens em rota para
destinos estrangeiros sem uma razão plausível.
Além disso, o artigo V do GATT também proíbe
os membros de impor exigências inapropriadas
para bens em trânsito (ABBOTT, 2009, p.45).
O Regulamento CE nº 1383/2003 também vai além do disposto nos artigos 51 e 41
do Acordo TRIPS. O artigo 51 do TRIPS, relativo
à “Suspensão de Liberação pelas Autoridades
Aduaneiras”, não prevê sua aplicação para bens
suspeitos de infração de patente, mas apenas
suspeitos de violação de direitos de marca (‘bens
de marca contrafeita’) e direitos autorais (‘bens
pirateados’), e, no que tange a bens em trânsito, a aplicação não é obrigatória. Ressalta-se
que o TRIPS é parte de um sistema mais amplo
de “redução de distorções e impedimentos ao
comércio internacional” e busca “assegurar que
medidas e procedimentos para reforçar os direitos de propriedade intelectual não se tornem
eles mesmos barreiras ao comércio legítimo”
(Preâmbulo do Acordo TRIPS). O artigo 41.1 do
TRIPS estipula que os procedimentos “deverão
ser aplicados de tal maneira a evitar a criação de
barreiras ao comércio legítimo e prover proteção
contra seus abusos” e o artigo 41.2 estabelece
que os procedimentos deverão ser “justos e equitativos” (SEUBA, 2009, p. 8).
A legislação europeia é incompatível também com a Convenção da União de Paris (CUP),
que institui em seu artigo 4o bis o princípio de
‘independência de patentes’ e o princípio de ‘territorialidade das patentes’. Tais princípios asseguram a soberania dos estados nacionais para
a concessão de patente, independentemente da
concessão ou não da patente em qualquer outro
país e limitam a validade e vigência da patente
apenas dentro dos limites territoriais do país que
a concede. Todos os tratados internacionais e
leis nacionais de propriedade intelectual implicitamente reconhecem o princípio da territorialidade. A Lei de Patentes dos EUA, por exemplo,
estabelece que uma pessoa pode ser acusada de
infração de patente se “produzir, usar, oferecer a
venda ou vender qualquer invenção patenteada
dentro dos EUA”. O Acordo TRIPS não modificou o princípio da independência e territorialidade das patentes: os escritórios nacionais de
DPIs dos países-membros, baseados na legislação nacional, continuaram como os responsáveis
por conceder ou negar os pedidos de proteção
de Propriedade Intelectual no país. Ao impedir o
trânsito de medicamentos que não foram produzidos e não são destinados ao território europeu
sob acusação de infração de PI concedida nacionalmente, o Regulamento aduaneiro europeu
fere a soberania dos estados nacionais (SEUBA,
2009, p. 13; ABBOTT, 2009, p. 46).
Os medicamentos apreendidos nos portos
europeus foram produzidos em países onde não
há patentes para tais medicamentos. Vale lembrar que determinados medicamentos podem
ser protegidos por patentes em um país-membro
da OMC, mas não em outros por algumas razões
como: (a) o pedido de patente nunca foi depositado no país; (b) a patente expirou; (c) o pedido de patente foi rejeitado porque a “invenção”
não atendia os requisitos de patenteabilidade segundo critérios nacionais (como, por exemplo,
novidade e atividade inventiva); (d) a “invenção”
não constituía objeto de patente dentro da lei
nacional, como, por exemplo, durante vigência
do período de transição para incorporação do
TRIPS nos países em desenvolvimento e menos
desenvolvidos (ABBOTT, 2009, p. 46).
A Índia, por exemplo, se utilizou de todo
o período de transição permitido a países em
desenvolvimento (10 anos) para incorporar a
proteção patentária a produtos farmacêuticos
em sua legislação nacional. A principal consequência disso é que versões genéricas de muitos
27
medicamentos sob patente em diversos países
do mundo podem ser produzidas na Índia e exportadas a preços significativamente mais baixos
para países em desenvolvimento e menos desenvolvidos. Dessa forma, muitos pacientes e sistemas públicos de saúde de todo o mundo dependem do suprimento de medicamentos de genéricos provenientes da Índia. O país, portanto, possui um papel-chave na promoção do acesso a
medicamentos legítimos e de qualidade em todo
o mundo. Entretanto, esse papel está em risco
devido à política europeia de apreensão dos
genéricos indianos em trânsito, como comprova
os dados referentes à Índia contidos no relatório
de 2009 da Comissão Européia (2009b, p. 10):
O grande número de detenções de bens produzidos na Índia permanece fonte de séria
preocupação, especialmente no que se refere
à violação de patentes e direitos de marca.
Detenções de bens de origem indiana por autoridades aduaneiras europeias são particularmente alarmantes para produtos farmacêuticos
(setor no qual a Índia representou mais de 50%
de todas apreensões em 2008).
As apreensões de medicamentos genéricos
indianos em trânsito acusados infundadamente
de contrafação/violação de DPIs representam um
ataque frontal às interpretações pró-saúde pública do Acordo TRIPS e à Declaração de Doha.
O Regulamento CE nº 1383/2003 é contraditório
com o status particular conferido aos produtos
farmacêuticos no sistema de DPIs da OMC. A
Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a
Saúde Pública estabelece que o Acordo deve ser
interpretado e implementado de forma a proteger a saúde pública e promover o acesso a medicamentos, enfatizando direito dos países signatários de implementar as flexibilidades do TRIPS.
Para além do âmbito da OMC, o Regulamento CE nº 1383/2003 viola também o direito
humano fundamental a saúde, estabelecido na
Declaração Universal dos Direitos do Homem e
no Pacto Internacional sobre Direitos Econômi-
28
cos, Sociais e Culturais de 1966, uma vez que
impede diretamente o acesso a assistência
farmacêutica principalmente nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos. Infelizmente, pacientes do mundo inteiro sofrem os
efeitos imediatos na saúde com a aplicação do
Regulamento europeu.
No âmbito da OMS, o Regulamento CE nº
1383/2003 é incoerente com a Estratégia Global
e Plano de Ação sobre Saúde Pública, Inovação
e Propriedade Intelectual, adotada em 2008 pela
Assembléia Mundial de Saúde. O sexto elemento
da Estratégia – “Melhoramento da distribuição e
acesso” – prevê a promoção da competição para
melhorar a disponibilidade e preços dos produtos de saúde (6.3), fazendo menção direta ao
apoio e estímulo à introdução de versões genéricas, em especial dos medicamentos essenciais,
nos países em desenvolvimento (6.3a) (OMS,
2008, p.18).
Quando questionado sobre as apreensões
dos medicamentos genéricos, o governo holandês declarou que as ações de suas alfândegas
estão sendo aplicadas com base na legislação da
União Europeia e que, na Holanda, alguns ministros estão estudando a relação do Regulamento CE nº 1383/2003 com acordos e legislações
internacionais, incluindo a Declaração de Doha.
O governo holandês salientou ainda a importância desse documento para a garantia do acesso a
medicamentos nos países em desenvolvimento,
a qual a Declaração busca assegurar.
A União Europeia, para justificar a implementação do Regulamento CE nº 1383/2003,
afirma que o objetivo da sua legislação é combater efetivamente a circulação de medicamentos contrafeitos. Dado que ninguém aprova contrafação de medicamentos, a União Europeia
presume equivocadamente que a sociedade e
legisladores ignorarão, em favor do “bem público”, as questões legais fundamentais que envolvem o termo. Por mais contraditório que seja,
a União Europeia declarou que as ações de suas
autoridades aduaneiras provavelmente salvaram
vidas de pessoas dos países em desenvolvimento,
destino final da maioria dos medicamentos “contrafeitos” apreendidos21.
Em fevereiro de 2009, uma carta aberta22,
assinada por representantes de 16 ONGs de diversos países, foi enviada ao Diretor Geral da
OMC, Pascal Lamy. A carta solicita que a autoridade analise a inconsistência da legislação europeia com a Declaração de Doha e aja ex officio
com base no artigo 5 do acordo de Resolução de
Disputa da OMC, dada a gravidade da questão.
Pascal Lamy23 respondeu que a questão de fato
é muito importante e sensível e que certamente
a determinação de todos os países da OMC em
promover o acesso a medicamentos para todos
foi explicitamente confirmada com a Declaração
de Doha, mas que no entendimento dele não há
a necessidade de agir ex officio, pois soluções
estavam sendo negociadas bilateralmente entre
os países envolvidos.
As mesmas organizações também redigiram uma carta24 à Diretora Geral da OMS, Dra.
Margaret Chan, solicitando ação imediata por
parte da OMS, tal como segue: “Nós pedimos
à OMS que imediatamente se comprometa a
avaliar os riscos para os programas de saúde
pública acarretados pelas apreensões e todas
as provisões anti-bens-em-trânsito que existam
atualmente, ou que estão sendo propostas por
Ver pronunciamento da UE na reunião do Conselho TRIPS
de junho de 2009: <http://www.ip-watch.org/weblog/wpcontent/uploads/2009/06/trips-council-rs-june-2009-ecstatement.doc>. O documento também pode ser acessado aqui:
<http://www.ip-watch.org/weblog/2009/06/09/genericdrug-delay-called-%E2%80%9Csystemic%E2%80%9Dproblem-at-trips-council/>.
acordos de comércio, incluindo aqueles relacionados a iniciativas anticontrafação.” Segundo a
organização Knowledge Ecology International
(KEI), não houve resposta à carta25.
Em setembro de 2009, uma reunião entre a Comissão Européia, especialistas em aduanas dos países da União Europeia e membros
da Federação Européia de Associações e Indústrias Farmacêuticas (European Federation
of Pharmaceutical Industries and Associations
– EFPIA) resultou em uma declaração conjunta
sobre as apreensões dos medicamentos genéricos em trânsito. O conteúdo dessa declaração é
extremamente ambíguo, pois ao mesmo tempo
em que reafirma a “importância das políticas de
fronteira para garantir a proteção efetiva dos direitos de propriedade intelectual das companhias
farmacêuticas” também assume que “o fluxo de
medicamentos genéricos legítimos deve ser assegurado”, como se a atual legislação europeia
garantisse tal fluxo (COMISSÃO EUROPEIA,
2009c). O documento mais explicita a íntima relação da indústria farmacêutica com os legisladores europeus, o que pode ser caracterizado
como lobby, do que comprova o comprometimento deles com a garantia do comércio legítimo de medicamentos genéricos.
2.6 – O questionamento brasileiro frente às
apreensões na OMS e OMC
21
Carta das ONGs para Pascal Lamy, disponível em: <http://
keionline.org/misc-docs/seizures/WTO_seizures_18feb.
pdf>.
22
Carta de Lamy em resposta às ONGs, disponível em:
<http://www.keionline.org/misc-docs/seizures/dglamyresponse.pdf>.
23
Carta das ONGs para Margaret Chan disponível em:
<http://www.keionline.org/misc-docs/seizures/WHO_
seizures_18feb.pdf>.
No dia 04 de Dezembro de 2008, 570 kg
de Losartan Potassium, um ingrediente ativo
farmacêutico usado para a produção de medicamentos para a hipertensão arterial, foi apreendido pela autoridade aduaneira holandesa no
Porto de Roterdã. O produto, avaliado em $55
mil euros, havia sido negociado entre a empresa
indiana Dr. Reddy`s e a brasileira EMS, e estava
a caminho do Brasil. Apesar de o fármaco não
ser protegido por patente nem na Índia nem no
24
Ver <http://keionline.org/blogs/2009/03/13/who-silencegoods-in-transit>.
25
29
Brasil, a carga foi confiscada na Holanda, país
onde a transnacional Merck Sharp & Dohme
(MSD), em conjunto com a Du Pont, detém
sua patente26. A MSD enviou uma carta27 à Dr.
Reddy`s por meio de seus advogados em 24 de
dezembro, informando a empresa da retenção
e exigindo a renúncia da carga, sob ameaça de
destruição do produto. Segundo nota de esclarecimento28 da Merck do Brasil, a carga retornou
à Índia por solicitação da Dr. Reddy, depois de
permanecer retida por 36 dias no porto europeu.
O Ministério da Saúde emitiu uma nota informativa para subsidiar o Ministério das Relações Exteriores (MRE) brasileiro acerca do caso
Losartan, salientando que a hipertensão é uma
das principais causas de morte no Brasil. Segundo a nota, cerca de dez milhões de brasileiros
sofrem de hipertensão, sem contabilizar os casos
ainda não diagnosticados. O Sistema Único de
Saúde (SUS) distribui anti-hipertensivos (o Losartan é um deles) gratuitamente e a preços simbólicos nas farmácias populares, mas o mercado
privado é também muito importante. De acordo
com a nota do MS, graças à fabricação de genéricos, estima-se que o custo dos remédios antihipertensivos tenha caído cerca de 40%. Para a
maior parte da população brasileira, isso representa a possibilidade de acesso a esses medicamentos essenciais (MS, 2010).
Um estudo realizado por Vieira & Mendes
(2007) demonstra que entre 2002 e 2006 o gasto em saúde do Ministério da Saúde no Brasil
aumentou 9.6%, enquanto o gasto com medicamentos aumentou 123.9% no mesmo período.
A Du Pont possuía o Certificado de Proteção Suplementar 950009, expirado em 1º de setembro de 2009, o qual
protegia o sal farmacêutico kaliumlosartan na Holanda. A
Du Pont e a MerckSharp&Dohme detêm conjuntamente a
patente do processo farmacêutico do Losartan (Patente Européia 643704, válida até 18 de novembro de 2012).
26
Carta disponível em: <http://online.wsj.com/public/resour
ces/documents/eudrugs2009letter1.pdf>.
27
Nota disponível em: <http://www.saudebusinessweb.com.
br/noticias/index.asp?cod=54625>.
28
30
Nesse sentido, a política de genéricos brasileira
se torna um dos pilares da execução da política
nacional de medicamentos. A produção nacional se baseia fundamentalmente na transformação de princípios ativos importados em formas
farmacêuticas acabadas. Como a Índia e a China
são os grandes fornecedores de princípios ativos
para o Brasil, inviabilizar a importação desses
produtos afeta essencialmente a cadeia produtiva farmacêutica brasileira e atinge, portanto, o
direito à assistência farmacêutica da população,
garantida pela Constituição Federal brasileira.
Em busca de uma solução para a questão,
a Índia e o Brasil levantaram algumas das inconsistências da legislação europeia em instâncias internacionais. Durante reunião do Conselho Executivo da OMS, realizada em janeiro de 2009, os
negociadores brasileiros criticaram o programa
anticontrafação da OMS (IMPACT), argumentando que a instituição só deve tratar de falsificação de medicamentos quando os parâmetros são
sanitários e não baseados em patentes ou outros
Direitos de Propriedade Intelectual. A delegação brasileira, liderada pela embaixadora Maria
Nazareth Azevedo, citou a apreensão holandesa
como um antecedente perigoso, mencionando
que o Brasil levaria o caso à OMC. A manifestação brasileira foi maciçamente apoiada pelos
países em desenvolvimento presentes à reunião
(MS, 2010). Em 03 de fevereiro de 2009, durante
a reunião do Conselho-Geral da OMC em Genebra, o embaixador brasileiro Roberto Azevedo29
incluiu o item na agenda de discussões e destacou que a decisão holandesa de apreensão é
incompatível com as disciplinas multilaterais de
comércio, pois fere o princípio da liberdade de
trânsito, viola o princípio da territorialidade dos
Direitos de Propriedade Intelectual, afronta os
objetivos e princípios gerais do TRIPS e, sobretudo, contraria o espírito da Declaração de Doha
Pronunciamento do embaixador brasileiro disponível na
íntegra em: <http://keionline.org/blogs/2009/02/03/interven
tion-by-brazil-at-wto-general-council-on-seizure-of-500kilos-of-generic-medicines-by-dutch-customs-aut>.
29
sobre TRIPS e Saúde Pública. O embaixador ressaltou ainda que este tipo de conduta cria precedente negativo para o comércio internacional
de medicamentos genéricos e ameaça a viabilidade da emenda ao Acordo TRIPS, pela qual
se estabeleceu exceção para que um país sem
capacidade de manufatura possa importar medicamentos genéricos sob concessão de licenças
compulsórias cruzadas (o sistema do parágrafo
6 da Declaração de Doha). Sobretudo, criticou
duramente a estratégia dos países desenvolvidos
de cercear o trânsito de medicamentos genéricos
por meio da promoção de padrões TRIPS-plus
em foros não especializados em propriedade intelectual como a Organização Mundial de Aduanas (SECURE) e a Organização Mundial da Saúde
(IMPACT).
A intervenção brasileira foi seguida do discurso do embaixador indiano Ujal Singh Bhatia30,
que pontuou que o carregamento de Losartan
foi apenas um dos muitos medicamentos indianos detidos em portos europeus. Bhatia caracterizou a política europeia como irônica, dado
que ao mesmo tempo em que a OMC tomou
iniciativas no sentido de promover o acesso a
medicamentos baratos e remover obstáculos ao
uso das flexibilidades do TRIPS, alguns membros
buscam inviabilizar essas iniciativas confiscando
medicamentos em trânsito. O discurso indiano
foi apoiado por diversos países em desenvolvimento (África do Sul, Argentina, Bolívia, Burkina
Faso, China, Costa Rica, Cuba, Egito, Equador,
Indonésia, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Peru,
Tailândia, Venezuela e Israel).
Depois de esperar durante meses por uma
solução do lado europeu, o Brasil e a Índia decidiram recorrer oficialmente em 12 de maio de
2010 ao Mecanismo de Solução de Controvérsia
da OMC contra a União Europeia e a Holanda
(DS408 – Índia / DS409 – Brasil). Duas rodaPronunciamento do embaixador indiano disponível na
íntegra em: <http://indiainthewto.wordpress.com/2009/02/
04/indian-statement-on-the-generics-seizure-issue-to-thewto-general-council/>.
30
das de consultas foram realizadas em Genebra
(Suíça), nos dias 7 e 8 de julho e 13 e 14 setembro de 2010, no contencioso “UE – Apreensão de
Medicamentos Genéricos em Trânsito” sobre o
Regulamento CE nº 1383/2003, decisões judiciais
aplicáveis ao caso, direitos de patentes e liberdade de trânsito de medicamentos genéricos
(MRE, 2010a e 2010b). Segundo Roberto Azevedo, embaixador brasileiro na OMC, “o Regulamento [CE nº 1383/2003] em si é ilegal” (LYNN,
2010).
Em outubro de 2010, o Ministro de Comércio e Indústria da Índia, Anand Sharma, declarou
que o Comissário de Comércio da UE, Karel de
Gucht, se comprometeu a modificar o Regulamento europeu que provocou as detenções de
medicamentos indianos (MARA, 2010a, p. 11).
Segundo Sharma, a UE havia proposto notificar
todas as autoridades aduaneiras contra as apreensões, mas a Índia não aceitou nada menos que
a alteração das regras de fronteira. Apesar do
compromisso assumido pela UE, a Índia não retirará sua queixa na OMC até que o Regulamento
CE nº 1383/2003 seja modificado: “Nós preferimos esperar que a UE cumpra sua promessa antes de retirarmos a questão da OMC”, declarou
Sharma (SEN, 2010).
2.7 – Tribunal Permanente dos Povos condena a União Europeia
Tendo em vista que o acesso a medicamentos é um elemento-chave para a efetivação do
direito humano à saúde, a imposição de entraves
legais ou burocráticos ao acesso das populações
a medicamentos deve ser denunciada e combatida. Foi nesse sentido que organizações da sociedade civil do Brasil, Colômbia, Peru e Equador31
O trabalho de apresentação do caso foi coordenado pelo
Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da
REBRIP (outras informações em: <www.deolhonaspatentes.
org.br>). As organizações dos países latino-americanos
que participaram do caso foram: GTPI/ REBRIP (Brasil),
IFARMA (Colômbia), Fundación Misión Salud (Colômbia),
31
31
decidiram denunciar apreensões ilegítimas de
medicamentos executadas pela União Europeia
ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) (REIS
& FARIA, 2010).
O TPP é um tribunal de caráter não-governamental, do gênero dos tribunais de opinião,
que teve sua origem no julgamento dos crimes
contra a humanidade cometidos pelos EUA na
Guerra do Vietnã, julgamento que ficou conhecido como “Tribunal Russell”, realizado entre
1966 e 1967. Após o assassinato do presidente democrático Salvador Allende e o golpe de
Estado de Pinochet no Chile, o jurista italiano
Lélio Basso, relator do Tribunal Russell, fundou
e presidiu o Tribunal Russell II, realizado entre
1974 e 1976, para julgar as ditaduras militares na
América Latina. Ao fim desta sessão foram criados diversos organismos que assumiram a luta
pelos direitos dos povos, dentre eles o TPP. Formalmente constituído na Itália em 1979, o TPP é
vinculado à Fun­dação Internacional Lélio Basso
pelos Direitos e pela Libertação dos Po­vos32.
O Tribunal já se reuniu em mais de 30 ocasiões para julgar diversas situações de violação
aos direitos humanos, desde genocídios, torturas, invasões estrangeiras e destruição do meio
ambiente até questões relacionadas a instituições
financeiras internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI)
(ZUBIZARRETA, 2009, p. 642-643). Entre 2006 e
2010, o TPP realizou sessões destinadas a julgar
violações de direitos humanos executadas por
empresas transnacionais na América Latina, tendo em vista o papel central do poder econômico
das grandes corporações transnacionais e de
suas alianças estruturais com os atores institucionais estatais.
Mesa de ONGs que trabajan con VIH/Sida (Colômbia), Red
Colombiana de Personas viviendo con VIH/Sida (Colômbia), Acción International para la Salud – Latino America y
Caribe (Peru) e Coalición Ecuatoriana de Personas Viviendo
Con VIH/SIDA (Equador).
Para mais informações sobre a Fundação Lélio Basso,
consultar: <www.internazionaleleliobasso.it>.
32
32
Em 2010, com o tema “A União Europeia
e as transnacionais na América Latina: políticas,
instrumentos e atores cúmplices das violações dos
Direitos dos Povos”, a sessão do TPP foi realizada em Madri (Espanha) no marco da Cúpula
dos Povos Enlazando Alternativas IV entre 14
e 17 de maio – paralelamente a VI Cúpula de
Chefes de Estado e Governo da UE, América
Latina e Caribe. A sessão teve como finalidade
denunciar os crimes realizados pelas transnacionais e os impactos das atividades delas nos
direitos econômicos, sociais e culturais das nações latino-americanas e caribenhas, revelando a
cumplicidade da UE, dos Estados-membros e de
instituições internacionais.
As organizações latino-americanas que levaram o caso das apreensões de medicamentos
em portos europeus demandaram ao Tribunal
que a UE fosse declarada culpada por violar o
direito humano à saúde e à vida das populações dos países atingidos – direitos amplamente
reconhecidos em tratados internacionais e na
legislação nacional dos países envolvidos – ao
impor obstáculos ilegítimos e ilegais ao acesso
a medicamentos genéricos utilizados no tratamento de diversas enfermidades (GTPI, 2010a).
A iniciativa foi amplamente apoiada. Mais
de dez organizações da sociedade civil indiana
assinaram uma carta33 em apoio à petição enviada ao TPP pelos grupos latino-americanos. A
organização humanitária MSF também redigiu
uma carta manifestando solidariedade aos grupos latino-americanos no TPP (MSF, 2010).
A carta, com o título “Representation from Indian Civil
Society to the Madrid Session of the Permanent Peloples Tribunal” (mimeo), datada de 24 de abril de 2010, foi assinada
pelas seguintes organizações: Aadhar Trust, All India Drug
Action Network (AIDAN), Delhi Network of Positive People
(DNP+), Drug Action Forum – Karnataka (DAF-K), International Peoples Health Council (South Asia), Peoples Health
Movement – India, All India Peoples Science Network, Centre for Trade and Development (Centad), Diverse Women
for Diversity, Initiative for Health Equity and Society, International Treatment Preparedness Coalition – India, Udaan
Trust.
33
O caso obteve ampla repercussão: peritos
e jurados mostraram especial preocupação com
as políticas da UE sobre propriedade intelectual
e regulamentação aduaneira e a UE foi condenada pelos jurados. A sentença34 do TPP solicitou que as instituições da UE assumissem que o
uso de medicamentos genéricos constitui uma
necessidade fundamental das populações menos
favorecidas e pediu que a UE eliminasse as patentes sobre os medicamentos essenciais. A seguinte passagem da sentença reafirma a primazia
do direito à saúde frente aos direitos patentários
das transnacionais farmacêuticas, mencionando
a importância dos medicamentos genéricos, tal
como segue (TPP, 2010, p. 25):
A sociedade civil deve rechaçar, por exemplo,
que as empresas farmacêuticas defendam seus
enormes privilégios a qualquer preço, amparando-se nas patentes. O direito de propriedade intelectual não pode prevalecer sobre os
direitos humanos de boa parte da população
da África e da América Latina, que está sendo
dizimada por enfermidades, ainda mais tendo
em vista que os preços cobrados pelos grandes
laboratórios transnacionais donos de patentes
são muitas vezes maiores que dos mesmos
medicamentos produzidos pelo Brasil, Índia,
África do Sul e Tailândia.
Por fim, a sentença solicitou que as práticas de apreensão de medicamentos em trânsito
fossem imediatamente interrompidas e que a UE
parasse de gerar confusão entre medicamentos
genéricos e falsos.
Apesar da sentença do TPP não ter cogência, o Tribunal representa um importante instrumento político da sociedade em um mundo em
que os direitos humanos são caracterizados pela
fragilidade normativa frente à soberania do ordenamento jurídico coercitivo dos direitos comerciais, que privilegiam os interesses das empresas
transnacionais, como é o caso do Regulamento
aduaneiro europeu CE nº 1383/2003. Nesse sentido, o TPP constitui foro imprescindível para a
construção de redes de denúncia, visibilidade e
condenação moral de violações de direitos humanos (ZUBIZARRETA, 2009).
2.8 – A Consulta Pública sobre o Regulamento CE nº 1383/2003 da União Europeia
Em março de 2010, a Comissão Europeia
abriu uma Consulta Pública sobre o Regulamento CE nº 1383/2003. O edital da Consulta
apresentou questões sobre a extensão de DPIs
coberta pelo Regulamento, bem como sobre as
situações nas quais competiria a atuação das autoridades aduaneiras europeias. Organizações,
autoridades públicas e cidadãos puderam enviar
comentários sobre a referida lei até 25 de maio
de 2010. Destaca-se que o edital35 cita claramente
as intervenções brasileira e indiana na OMC, tal
como segue: “Atenção particular deve ser dada
às preocupações expressas por alguns membros
da OMC, a saber, Índia e Brasil, relacionadas ao
controle das aduanas europeias sobre medicamentos em trânsito pela União Europeia”. Entre
as organizações que participaram formalmente
da Consulta Pública enviando suas considerações críticas destacam-se: Grupo de Trabalho
sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira
pela Integração dos Povos (GTPI/ REBRIP), Public
Citizen e OXFAM (sigla do inglês para Oxford
Committee for Famine Relief).
O GTPI apontou as inconsistências do Regulamento CE nº 1383/2003 com diversos acordos e documentos internacionais, a saber: GATT,
TRIPS-OMC, Declaração de Doha-OMC, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio-ONU, Estratégia Global e Plano de Ação sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual-OMS,
Declaração Universal dos Direitos do Homem e
o Pacto Internacional sobre direitos EconômiEdital da Consulta Pública disponível em: <http://ec.euro
pa.eu/taxation_customs/common/consultations/customs/
ipr_2010_03_en.htm>.
35
A Sentença pode ser acessada em: <http://www.enlazandoalternativas.org/spip.php?article731*>.
34
33
cos, Sociais e Culturais. A atuação ex officio das
autoridades aduaneiras e a aplicação do Regulamento a bens em trânsito também foram criticadas, visto que interferem no comércio entre
países que não pertencem à jurisdição europeia.
O GTPI salientou os danos à saúde pública que
a confusão relacionada ao termo ‘contrafação’
acarretou para os pacientes dos países em desenvolvimento, especialmente os latino-americanos, que foram os mais atingidos. Por fim, o
documento do GTPI mencionou a condenação
da UE pelo TPP (GTPI, 2010b; ABIA, 2010).
A Public Citizen36 recomendou a exclusão
de infração de patente, marcas similares e outras infrações civis de DPIs do escopo do Regulamento e ressaltou que a atuação da legislação
deve atingir apenas bens destinados aos países
europeus, pois “parar o trânsito legítimo de bens
pode criar de facto um novo regime internacional
de propriedade intelectual, para além do escopo
apropriado da autoridade da União Europeia,
com custos globais para a competição.” A organização solicitou limitação da ação ex officio a casos de contrafação intencional em escala comercial de direito de marca e pirataria de copyrights.
Além de requerer o fim da aplicação do
Regulamento para bens em trânsito e a exclusão
das patentes e dos certificados complementares
de proteção do escopo de atuação do Regulamento, a OXFAM defendeu que o Regulamento
deveria prever salvaguardas para prevenir abuso
por parte dos titulares de DPIs. Segundo a organização, apesar de a UE afirmar que o Regulamento ajuda a salvar vidas, ele faz o inverso:
“Contudo, a Regulamento faz o oposto, confiscando medicamentos genéricos legítimos destinados a países em desenvolvimento rotulando-os
de contrafeitos, o que pode ter o efeito perverso
de estimular a demanda por medicamentos falsificados entre as populações pobres ao reduzir
Documento da Public Citizen disponível em: <http://
www.citizen.org/documents/Public%20Citizen%20comments%20submitted%20to%20DG%20TAXUD%20on%20
1383.pdf>.
36
34
a disponibilidade de medicamentos genéricos a
preços acessíveis” (OXFAM, 2010). A organização argumentou ainda que o Regulamento não
ataca o problema dos medicamentos de baixa
qualidade, que são a verdadeira ameaça à saúde.
Até o presente momento, não foram divulgados resultados da Consulta Pública e o Regulamento CE nº 1383/2003 permanece em vigor,
sem alterações.
3. A Legislação Europeia e a Agenda Internacional de Enforcement dos DPIs
É de extrema relevância enfatizar que o
Regulamento CE nº 1383/2003 faz parte de uma
agenda mais ampla de mecanismos para pressionar os países em desenvolvimento a adotarem níveis mais rígidos de DPI, em benefício das
companhias transnacionais, sob a bandeira estratégica de combate à contrafação. Esses mecanismos são conhecidos internacionalmente como
políticas de enforcement dos Direitos de Propriedade Intelectual e estão sendo promovidos em
diversas instâncias, como apontam Gopakumar
& Shashikant (2010, p.10):
Em resumo, os proponentes, majoritariamente
empresas multinacionais e governos dos países
da OCDE, estão fazendo uso de tratados de comércio, iniciativas governamentais plurilaterais
e programas de agências internacionais para
empurrar suas agendas com intuito de estabelecer ou fortalecer padrões mais elevados de
Propriedade Intelectual, usando os três conceitos de ‘contrafação’, ‘pirataria’ e ‘enforcement’.
Entre as iniciativas anticontrafação que
emergiram nos últimos anos, podemos citar a da
Organização Mundial de Aduanas (Provisional
Standards Employed by Customs for Uniform
Rights Enforcement – SECURE), o Comitê de enforcement da OMPI (Advisory Committee on Enforcement – ACE), a Força-Tarefa anticontrafação
da OMS (International Medical Products Anti-
Counterfeiting Taskforce – IMPACT), o Acordo
Comercial Anticontrafação (Anti-Counterfeiting
Trade Agreement – ACTA), as cláusulas de enforcement em TLCs que os EUA e a UE pressionam os países em desenvolvimento e menos
desenvolvidos a adotarem, além das iniciativas
da INTERPOL e do G-8 (GOPAKUMAR & SHASHIKANT, 2010, p. 9-18).
Segundo Sell (2008, p. 5), à medida que
países em desenvolvimento e ONGs se mobilizam para defender suas demandas em fóruns
multilaterais como a OMC – por exemplo, o
acesso a medicamentos –, os protagonistas de
um regime mais elevado de DPIs transferem as
negociações que lhes interessam para outros
fóruns onde eles têm melhores condições de
atingir seus objetivos. Essa estratégia, conhecida
por forum shifting, tem sido amplamente utilizada, uma das razões que explica as numerosas iniciativas anticontrafação e de enforcement.
Tendo em vista, sobretudo, o impacto para o
acesso a medicamentos, abordaremos a seguir
algumas dessas iniciativas.
Em novembro de 2006, a OMS lançou
durante uma conferência em Roma organizada
juntamente com a IFPMA a Força-Tarefa Internacional Anticontrafação de Produtos Médicos37
(International Medical Products Anti-Counterfeiting Taskforce – IMPACT). O programa visa
o combate de medicamentos ‘contrafeitos’ e
possui o apoio de diversas instituições, entre
as quais destacamos: INTERPOL, OCDE, OMA,
OMPI, OMC, Banco Mundial, Comissão Européia e IFPMA. A forte participação do setor
privado nas atividades do IMPACT, bem como a
falta de transparência em relação à composição
dos membros, decisões e financiamento da iniciativa colocam em dúvida seus reais objetivos.
Além disso, a adesão da OMS ao IMPACT não
foi aprovada pela Assembléia Mundial de Saúde
(GOPAKUMAR & SHASHIKANT, 2010, p. 21-31).
Há pouca informação disponível sobre
o funcionamento da Força-Tarefa e suas atividades, bem como sobre a natureza da participação dos Estados-membros da OMS nas instâncias de decisão. As provisões do IMPACT
são extremamente preocupantes. Em 2007, foi
aprovado no Comitê Geral do IMPACT, órgão
deliberativo máximo do Programa, o documento
Princípios e Elementos para Legislação Nacional contra Produtos Médicos Contrafeitos, que
além de não reconhecer explicitamente algumas
flexibilidades previstas no TRIPS, contém diversos dispositivos TRIPS-plus, como a inclusão de
apreensão de medicamentos ‘contrafeitos’ em
trânsito por autoridades aduaneiras, nos moldes
do Regulamento CE nº 1383/2003. Ressalta-se
que o documento é um guia para implantação
de legislações nacionais com vistas ao combate a
medicamentos ditos ‘contrafeitos’ (GOPAKUMAR
& SHASHIKANT, 2010, p. 23-24).
A tentativa de legitimar o IMPACT nas instâncias democráticas da OMS tem sido duramente criticada por diversos países em desenvolvimento, entre eles, Brasil, Índia, Argentina,
Tailândia, Venezuela, Cuba, Indonésia, Jamaica,
Suriname, Paraguai, Bangladesh, Irã, Equador,
Egito, Chile, Bahamas e Malawi. A principal crítica feita é a inclusão de questões relativas aos
DPIs no uso do termo ‘contrafação’ (TWN, 2010,
p. 8-10 e 31-39).
No dia 11 de maio de 2010, uma carta38 assinada por 50 ONGs foi enviada à Dra. Margaret
Chan, Diretora Geral da OMS, solicitando que
a OMS cessasse imediatamente sua participação
no IMPACT, pois “o envolvimento da OMS no
IMPACT ameaça arruinar a credibilidade da OMS
como uma organização que é imparcial e preserva os interesses da saúde pública”.
Ver <http://www.who.int/impact/FinalBrochureWHA200
8a.pdf,>.
Carta disponível em: <http://www.twnside.org.sg/announ
cement/Open.Letter.to.WHO.DG.final.PDF>.
3.1 – IMPACT/ OMS
37
38
35
A participação da OMS no IMPACT corrobora com a confusão acerca do termo contrafação,
que promove o uso indistinto entre medicamentos falsos, medicamentos de baixa qualidade e
medicamentos genéricos como se fossem sinônimos, dificultando que medidas apropriadas sejam tomadas para erradicar a circulação e consumo de medicamentos que oferecem de fato riscos à saúde dos pacientes, além de criar efetivas
barreiras ao acesso a medicamentos genéricos
pela população dos países em desenvolvimento
e menos desenvolvidos (SHASHIKANT, 2009).
Na última Assembléia Mundial de Saúde
(63ª AMS) realizada em maio de 2010, o Brasil
defendeu a circulação de medicamentos genéricos e questionou o uso do termo contrafação
pela OMS, que abarca questões de DPIs. Em seu
discurso, o Ministro da Saúde José Gomes Temporão declarou: “Vítimas de violações aos direitos de propriedade intelectual são empresas; vítimas de medicamentos falsificados são pacientes
– e são estes que requerem a proteção da OMS”
(FORMENTI, 2010). O Ministério da Saúde e o
Itamaraty lideraram a negociação na AMS que
culminou com a criação de um grupo de trabalho, composto pelos países-membros da OMS,
que analisará o problema dos “produtos medicinais de baixa qualidade/ espúrios/ falsamente
rotulados/ falsificados/ contrafeitos” a partir da
perspectiva de saúde pública, excluindo considerações comerciais e de PI. O grupo examinará
ainda a relação da OMS com o IMPACT.
3.2 – Os Tratados de Livre Comércio (TLCs)
Os Tratados de Livre Comércio são acordos bilaterais ou regionais firmados entre países
que buscam maior liberalização comercial entre si. Tendo em vista a assimetria no poder de
negociação, os países desenvolvidos têm se utilizado dos TLCs para pressionar os países em
desenvolvimento e menos desenvolvidos a aceitarem suas demandas, por mais que tais demandas muitas vezes prejudiquem esses países. São
36
exemplos de TLCs: UE-México; EUA- Peru; EUAChile; NAFTA (sigla em inglês para North American Free Trade Agreement), do qual fazem parte
EUA, Canadá e México; DR-CAFTA (sigla em inglês para Republic Dominican-Central American
Free Trade Agreement), o qual engloba EUA,
República Dominicana, El Salvador, Guatemala,
Honduras, Nicarágua e Costa Rica; UE – América
Central39, que inclui a UE, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá.
Esses acordos incorporam capítulos sobre diversas questões econômicas estratégicas, como, por
exemplo, investimentos, serviços, compras governamentais, indústria, agricultura, tarifas e propriedade intelectual.
No que se refere à propriedade intelectual,
a maioria dos TLCs que os EUA e a UE negociam
contém cláusulas que excluem a possibilidade de
utilização das flexibilidades previstas no TRIPS e
estabelecem um padrão mais elevado de DPIs
que o instituído no Acordo da OMC. Essas cláusulas são amplamente conhecidas como dispositivos TRIPS-plus e incluem medidas como vigência das patentes acima de 20 anos, concessão de
patentes de segundo uso, proteção dos dados
dos ensaios clínicos para obtenção de registro
sanitário, linkage entre concessão de patente
e registro sanitário, restrições para o uso de licenças compulsórias e para importação paralela
(ROFFE & SPENNEMANN, 2006). Recentemente,
medidas de fronteiras concernentes a DPIs, nos
moldes da regulamentação aduaneira da UE, têm
sido incorporadas às negociações dos TLCs. Este
tipo de iniciativa torna a regulamentação da UE
como um padrão internacional “exportado” para
outros países.
Destaca-se o Tratado de Livre Comércio
que a União Europeia vem negociando de portas fechadas com a Índia desde 2007. Ao propor
provisões mais rigorosas de proteção de propriedade intelectual – como a extensão da vigência
Tratado de Livre Comércio assinado em maio de 2010,
mas ainda sob revisão jurídica (legal scrubbing).
39
de patentes, exigência de exclusividade de dados
e a inclusão de medidas de fronteira nos moldes
do Regulamento CE nº 1383/2003 –, a União Europeia ameaça criar efetivas barreiras à produção
e comercialização de genéricos indianos, colocando em risco o acesso a medicamentos para
milhões de pacientes do mundo todo, haja vista
que a Índia é atualmente a maior fornecedora
de medicamentos genéricos para os países em
desenvolvimento e menos desenvolvidos (CORREA, 2009b).
Em dezembro de 2010, quando uma rodada de negociação do TLC UE-Índia ocorria em
Bruxelas (Bélgica), o Relator Especial de Direitos
Humanos da ONU, Anand Grover, se pronunciou sobre o impacto negativo dos dispositivos
TRIPS-plus contidos no texto do TLC UE-Índia
para o acesso a medicamentos, mencionando as
provisões de exclusividade de dados, as medidas de fronteira e as provisões de investimento.
Grover criticou ainda a falta de transparência,
dado que nenhuma das partes disponibilizou
os documentos oficiais em negociação ou abriu
a questão para participação pública (NAÇÕES
UNIDAS, 2010).
Em janeiro de 2011, as negociações foram
retomadas em Nova Déli (Índia) e a sinalização
de que a Índia estaria prestes a conceder as demandas dos europeus no campo da propriedade
intelectual levou o Presidente do Conselho Internacional de MSF, Dr. Unni Karunakara, a fazer
um apelo ao Primeiro Ministro Indiano: “Pedimos fortemente que o Primeiro Ministro Indiano tenha uma posição forte contra a Europa e
defenda o papel da Índia como a farmácia do
mundo em desenvolvimento” (MSF, 2011).
A UE também está em processo de negociação de um TLC com o Mercado Comum do
Sul (MERCOSUL), do qual fazem parte o Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, sendo que a
Venezuela é atualmente candidata a adesão. As
negociações entre os dois blocos tiveram início
em 1999, mas haviam sido paralisadas em 2004
por conta de um impasse sobre liberalização do
setor agrícola. Em maio de 2010, as negociações
foram retomadas e questões relativas à propriedade intelectual já estão sendo discutidas, mas
não foram divulgadas à sociedade (COLITT,
2010). Preocupações em relação às cláusulas de
propriedade intelectual que impactam o acesso
a medicamentos, como as medidas de fronteira
e exclusividade de dados, já foram expressas
pela sociedade civil brasileira, que busca maior
participação nas negociações (CHAVES & MEY,
2010). A assinatura do TLC UE-MERCOSUL está
prevista para meados de 2011.
3.3 – ACTA
A negociação em segredo do Acordo Comercial Anticontrafação (Anti-Counterfeiting Trade
Agreemen – ACTA), entre a Austrália, Canadá,
União Europeia (representada pela Comissão
Européia), Japão, México, Marrocos, Nova
Zelândia, Coréia, Singapura, Suíça e Estados Unidos, tem gerado grande preocupação em âmbito
global. O acordo visa estabelecer padrões internacionais e vinculantes para efetivação dos direitos de propriedade intelectual a fim de combater
a contrafação e a pirataria.
Segundo Susan Sell (2008, p. 9), o ACTA
teve suas origens em 2004 durante o primeiro
Congresso Global de Combate à Contrafação, realizado em Genebra. Sediado pela INTERPOL e
pela OMPI, o evento foi patrocinado pela Aliança Global de Empresas contra a Contrafação –
a qual inclui entre seus membros a Coca-Cola,
Daimler Chrysler, Pfizer, Proctor & Gamble,
American Tobacco, Phillip Morris, Swiss Watch,
Nike e Canon. Em 2006 e 2007, ocorreram discussões técnicas preliminares sobre o ACTA entre Canadá, Comissão Europeia, Japão, Suíça e
Estados Unidos. As negociações formais se iniciaram em junho de 2008, com a participação
adicional de outros países (MELLO e SOUZA,
2010, p. 8).
Para Mello e Sousa (2010), o ACTA é parte
de uma estratégia mais ampla, adotada por um
37
grupo de empresas altamente dependentes de
DPIs e sediadas nos países desenvolvidos, com
vistas a globalizar os DPIs. De acordo com o
autor, a estratégia é baseada principalmente: “i)
na transferência das negociações para fóruns
que lhes são mais favoráveis; ii) na consolidação de propostas acordadas entre um pequeno
grupo de países e subsequentemente apresentadas a um grupo mais amplo; iii) na condução
das negociações em sigilo; e iv) na utilização de
um discurso que enfatiza os supostos perigos
da contrafação e a importância do ACTA para a
‘segurança’ do consumidor” (MELLO e SOUZA,
2010, p.10). Vale lembrar que o discurso sobre
os perigos da contrafação se apóiam em grande
medida na confusão deliberada entre medicamentos falsos e medicamentos genéricos, que
procuramos esclarecer no segundo capítulo.
A falta de transparência por parte dos negociadores do ACTA tem sido objeto de muitas
críticas e controvérsias. A própria Comissão Europeia não disponilizava os documentos oficiais referentes às negociações do ACTA para o
Parlamento Europeu, único organismo da UE
eleito por voto direto. Insatisfeito, o Parlamento emitiu uma Resolução40 questionando a falta
de transparência nas negociações do ACTA em
março de 2010. Tendo em vista que a versão
preliminar do Acordo continha medidas de aduana similares ao do Regulamento Europeu CE nº
1383/2003, a Resolução tocou de forma direta
no problema da apreensão de medicamentos
por autoridades aduaneiras sob a bandeira de
combate à contrafação, tal como segue:
[O Parlamento Europeu] Aponta que as provisões do ACTA, particularmente as medidas
com vistas ao fortalecimento de poderes de
inspeções de fronteira e apreensão de bens,
não deveriam afetar o acesso global a produtos
Resolução do Parlamento Eurupeu disponível em: <http://
www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//
EP//TEXT+TA+P7-TA-2010-0058+0+DOC+XML+V0//
EN&language=EN>.
40
38
medicinais legítimos, baratos e seguros – incluindo produtos inovadores e genéricos – com o
pretexto de combater a contrafação.
Além da Resolução, o Parlamento Europeu enviou uma carta41 ao Diretor Geral da
OMC, Pascal Lamy, solicitando uma avaliação
do ACTA. Em resposta42, Lamy negou a solicitação do Parlamento alegando que o Acordo está
sendo firmado por alguns membros da OMC que
decidiram estabelecer entre eles níveis mais elevados de DPIs. Como a OMC não participa do
ACTA, ele não poderia comentar o processo de
negociação: “Essa é uma matéria entre as partes
negociantes”, declarou Lamy.
Realizada em Tóquio (Japão) de 23 de
setembro a 1º de outubro de 2010, a décima primeira e última rodada de negociação do ACTA
resultou no texto consolidado43 do Acordo, em
que as patentes foram retiradas das provisões de
fronteira. Isso significa que as aduanas dos países
signatários não poderão confiscar medicamentos
genéricos com base no status patentário de um
medicamento. Segundo o negociador japonês,
houve consenso para excluir as patentes do
escopo de aplicação das medidas de fronteiras
(MARA & ERMERT, 2010, p. 14). O Acordo ainda
deverá ser ratificado entre as partes negociantes.
A polêmica sobre o ACTA se intensificou
nas reuniões do Conselho TRIPS da OMC, realizadas em 26 e 27 de outubro de 2010 (MARA,
2010b). Na ocasião, o Brasil declarou que, no
que concerne à propriedade intelectual, os
fóruns multilaterais com credenciais legitimadas são a OMPI e OMC, cujas deliberações não
são somente abertas aos seus 140 membros,
Carta Parlamento Europeu para Diretor Geral da OMC,
Pascal Lamy, disponível em: <http://www.erikjosefsson.eu/
sites/default/files/WTO-letter-from-Greens-EFA.html>.
41
Resposta Lamy à carta Parlamento Europeu disponível em:
<http://keionline.org/sites/default/files/WTO-Lamy_Answer-to-MEP-letter.pdf>.
42
Texto consolidado do ACTA de 2 de outubro de 2010 disponível em: <http://sites.google.com/site/iipenforcement/
acta>.
43
mas também são conduzidas da maneira mais
transparente possível, incluindo representantes
da sociedade civil e ONGs. O pronunciamento
brasileiro criticou pontualmente alguns artigos
do ACTA que ameaçam transformá-lo em uma
“verdadeira organização internacional que lida
com enforcement de DPIs, desenvolvimento cujo
impacto para a OMPI e OMC, especialmente na
capacitação e assistência técnica, é imprevisível
no momento”44.
3.4 – Outras Iniciativas promovidas pela União
Europeia
No âmbito da União Europeia, diversos esforços têm sido claramente conduzidos para a
promoção de regras mais rigorosas de DPIs. Em
2005, foi publicado o documento Estratégia para
Enforcement de Direitos de Propriedade Intelectual em Terceiros Países (UNIÃO EUROPEIA,
2005). A União Europeia produz também uma
lista de falta de observância de DPIs, em que são
incluídos países que não estão adotando adequadas políticas de proteção de propriedade intelectual, de acordo com os interesses da própria
União Europeia, e que deveriam, portanto, fortalecer seus sistemas (COMISSÃO EUROPEIA,
2009b). Entende-se que essas medidas representam um desrespeito à soberania das nações e ao
próprio sistema multilateral de solução de controvérsias, uma vez que são medidas unilaterais.
Um importante documento da União Europeia de setembro de 2008 instituiu o Plano
de Ação Anticontrafação e Antipirataria45. Esse
plano, para o período de 2009 a 2012, prioriza
o compartilhamento de informações entre as
autoridades aduaneiras e os titulares de direitos
para o combate à contrafação. A Comissão e os
países membros da União Europeia são ainda
convidados a rever suas leis de aduana com o
intuito de intensificar a base legal para que a
luta contra a contrafação seja mais eficaz46. O
Plano de Ação menciona algumas iniciativas de
diferentes organismos com o mesmo objetivo,
a saber: OMC, Organização Mundial de Aduanas (SECURE), OMPI, OCDE, OMS (IMPACT) e
G8 (Heiligendamm process). O documento faz
referência também aos acordos bilaterais, regionais (TLCs) e multilaterais da União Europeia,
bem como o acordo plurilateral anticontrafação
(ACTA).
A Comissão Européia lançou, em 2009, o
que ficou conhecido como “Pacote Farmacêutico47”, que consiste em diversos documentos
que visam modificar as leis que regulam os
medicamentos nos países europeus. Entre esses
documentos está a proposta de uma emenda à
Diretiva nº 2001/83/EC – relativa à prevenção da
entrada na cadeia de fornecimento de produtos medicinais que são falsificados em relação
à identidade, história ou origem. De relevância
vital, a Diretiva busca combater os medicamentos que oferecem risco à saúde se referindo a
eles como falsificados e não como contrafeitos.
Outra novidade da Diretiva é a criminalização
desses produtos.
O Parlamento Europeu, em relatório sobre
a proposta da Comissão, produzido pela deputada Marisa Matias em janeiro de 2010, fez comentários bastantes pertinentes relativos ao estabelecimento de definições precisas dos conceitos
para que o objetivo da Diretiva foque somente
o combate a medicamentos nocivos em favor
da garantia de qualidade, segurança e eficácia
dos medicamentos consumidos pela população
e não a defesa de interesses comercias de emVer informações contidas na seguinte página eletrônica:
http://europa.eu/legislation_summaries/fight_against_
fraud/fight_against_counterfeiting/lf0001_en.htm.
44
Pronunciamento brasileiro disponível em: <http://www.
ip-watch.org/weblog/wp-content/uploads/2010/10/BrazilonTRIPS-Enforcement-Trends.doc>.
46
Resolução disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32008G1004%2801%29:E
N:NOT.
47
45
Sobre o Pacote Farmacêutico (Pharmaceutical Package),
ver: http://ec.europa.eu/enterprise/sectors/pharmaceuticals/
human-use/package_en.htm.
39
presas privadas. Nas palavras presentes no documento48:
A diretiva não deveria abarcar direitos de propriedade intelectual e patentes, que já são
cobertos por outras estruturas legislativas específicas. [...] Para melhor proteger a rede de
distribuição de produtos medicinais, é crucial
ter claras definições não só sobre o escopo,
mas também sobre os diferentes atores da cadeia de fornecimento. O que é um produto
medicinal falsificado? O que é um ingrediente ativo ou um excipiente? A proposta da
Comissão não fornece a clareza requerida. O
mesmo se aplica para as definições dos diferentes atores da cadeia de fornecimento, esclarecendo seus papéis e responsabilidades. É
essencial fazer distinção entre os atores que já
são formalmente reconhecidos – que o papel
é considerado confiável – e aqueles que estão
fora dessa categoria, entretanto relevantes para
a confiabilidade da cadeia de fornecimento.
Portanto, é importante fazer a distinção entre os fornecedores e os “atores fora da lei”,
bem como esclarecer seus papéis e responsabilidades. O mesmo se aplica para outros
atores, como transportadores e comerciantes
paralelos. A diretiva deveria evitar a confusão
e não permitir que haja quaisquer ‘brechas’.
Ela deveria claramente identificar quais atores
e sob quais condições são competentes para
operar nesse domínio. Definições mais claras
resultarão em implementações mais simples.
A EFPIA prontamente se opôs ao uso da
expressão “produtos medicinais falsificados” pela
Comissão Européia, alegando estrategicamente
que no contexto internacional da OMS (IMPACT),
o termo “contrafeito” foi estabelecido. Segundo
essa organização defensora dos interes-ses da
indústria farmacêutica na Europa, “o uso de um
termo diferente poderia levar a interpretações
equivocadas fora da União Europeia”. A EFPIA
Draft Report on the proposal for a directive of the European Parliament and of the Council amending Directive
2001/83/EC, de 7 de janeiro de 2010 – European Parliament, Committee on the Environment, Public Health and
Food Safety.
48
40
“fortemente recomenda”, então, a harmonização
do termo europeu com a definição internacional
estabelecida usando ‘contrafeitos’ (EFPIA, 2009).
Considerações Finais
O Regulamento CE nº 1383/2003 da União
Europeia interfere ilegitimamente no comércio
internacional ao incidir sobre mercadorias em
trânsito e simultaneamente abranger patentes
em seu escopo de atuação, além de prever a
ação ex officio das autoridades aduaneiras. Essas
medidas não somente vão além das exigências
do TRIPS, mas violam os princípios fundamentais do Acordo, como indicado na declaração do
Ministro indiano Anand Sharma sobre as apreensões de medicamentos genéricos em portos
europeus executadas com base no Regulamento:
“as ações tomadas não foram somente TRIPSplus, mas ‘TRIPS-ilegais’”(MARA, 2010a, p. 10).
Como o direito patentário é concedido e
válido nacionalmente, versões genéricas de muitos medicamentos protegidos por patentes nos
países europeus são produzidas legitimamente
em outros países. Ao incidir sobre mercadorias
em trânsito, o Regulamento europeu cria barreiras à circulação de medicamentos que, embora protegidos por patentes na Europa, não
foram produzidos e não são destinados ao mercado europeu e, portanto, não afetam as empresas farmacêuticas titulares de DPIs nesses países.
Dessa forma, a UE interfere no comércio entre
países que não pertencem à sua jurisdição. O
Regulamento também permite a atuação ex officio, o que é particularmente preocupante porque
os funcionários de aduana não são tecnicamente
capacitados para identificar uma violação de patente de produto ou processo, o que só é possível a partir de testes qualificados.
Para justificar sua política, a União Europeia recorre frequentemente aos danos que o
comércio internacional de ‘medicamentos contrafeitos’ representa para a saúde pública. En-
tretanto, patente não tem relação com a garantia
de qualidade do medicamento, seja ele genérico
ou de referência. A qualidade do medicamento
está relacionada a questões sanitárias e é determinada principalmente pela comprovação de
que o medicamento possui efeitos terapêuticos
adequados e de que cumpre práticas apropriadas de fabricação em todas as etapas de seu processo produtivo. Tais elementos são controlados
pelas autoridades reguladoras nacionais. Nesse
sentido, a União Europeia usa de forma equivocada o argumento de que sua atuação contribui
para a defesa da saúde pública, quando na verdade promove uma confusão conceitual grave
que só beneficia a indústria farmacêutica. Além
disso, a UE age de forma insidiosa ao gerar uma
desconfiança e potencial rejeição da população
a medicamentos genéricos ao confundi-los com
medicamentos falsos.
Medicamentos genéricos destinados a
países da América Latina, África e Oceania foram
confiscados por autoridades aduaneiras europeias e, em alguns casos, destruídos. Os medicamentos seriam utilizados no tratamento de pacientes vivendo com HIV/AIDS, esquizofrenia,
Alzheimer e hipertensão, entre outras doenças.
A declaração da União Europeia de que as apreensões de medicamentos “contrafeitos” provavelmente salvaram vidas de pessoas dos países em
desenvolvimento é um desrespeito profundo aos
povos desses países. É provável que as políticas
europeias tenham tirado vidas de muitas pessoas,
ao impedir, em nome de interesses comerciais da
indústria farmacêutica, o acesso a medicamentos
seguros, eficazes e de qualidade.
Outras iniciativas de combate à contrafação, como o IMPACT, o ACTA e TLCs, igualmente
ameaçam a saúde pública minando a viabilidade
de ampliar o acesso medicamentos. Esperamos
que os incansáveis esforços de organizações da
sociedade civil e de governos de países em desenvolvimento e menos desenvolvidos em alertar para as consequências fatais acarretadas pelas
atuais iniciativas de combate a contrafação re-
percutam positivamente no sentido de reafirmar
o papel fundamental dos medicamentos genéricos para a saúde pública, recusando qualquer
tipo de política que promova a nociva confusão
entre medicamentos de baixa qualidade, falsos
e genéricos.
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