DE BORAT E BUSH: SUB-VERSÕES HUMORÍSTICAS E HUMOR
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DE BORAT E BUSH: SUB-VERSÕES HUMORÍSTICAS E HUMOR
JoLIE 2:2 (2009) DE BORAT E BUSH: SUB-VERSÕES HUMORÍSTICAS E HUMOR SUBVERSIVO EM TORNO DA REALIDADE Paulo Alexandre e Castro Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Portugal Abstract Massimo Bontempelli said on the verge of the last century that humour is the only medium which one does not take seriously even when one says serious things. In fact, everyday discourse practices necessarily demand and call for a sense of humour as a hermeneutic procedure and a way to perceive reality (be it, for example, of political, social, economical kind). Yet, more than a process of demystification and deconstruction of reality, humour is a kind of quasi-disclosure of truth, which allows for the advent of critical judgement and of social criticism. We find out, for example, in Borat’s sort of humour, not only a cultural subversion of Kazakhstan but also a certain presentation of human nature, which filed Sacha Baron Cohen with a lawsuit with several accusations. On the one hand, he passes on to us a certain insight on the United States of America, which can only be perceived in a humorous scenario. On the other hand, if Bush makes us laugh, it is not because he is gifted by theatrical representation but because 20 million of Americans believe that Elvis can become alive. How could we understand Bowling for Columbine (Michael Moore) or Life is a Miracle (Emir Kusturica) without the subversive exercise of humour? Or how could we learn about the ‘truth’ of the contemporary society from the movie Shrek? Key-Words: Subversive humour; Intelligence, Borat; Reality; Society; Beliefs; Tolerance. O pensamento de Massimo Bontempelli apontava no princípio do século passado para o entendimento do humor como o único meio de não sermos tomados a sério, mesmo quando dizemos coisas sérias. De facto, o diálogo na contemporaneidade exige e reclama a presença assídua do humor como procedimento hermenêutico e de visão da realidade (política, social, económica, etc), à semelhança do que aconteceu em séculos passados. Das fábulas antigas de Aristófanes – misto de elementos risíveis e ironia –, ao bobo da corte, às cantigas de escárnio e maldizer, aos autos de Gil Vicente e às personagens que povoavam o nosso imaginário colectivo – e que de algum modo ainda povoam, como o Dr. da Mula ruça do século XV, ou o Zé Povinho de Bordalo Pinheiro – é o sentimento crítico, o espírito de denúncia, a marcar presença. Recorde-se, por exemplo, o fim do semanário humorístico “A Bomba” e o aparecimento dos “parodiantes de Lisboa” no ano de 1947. Chegava-nos também o “Zip Zip” com Raul Solnado, e uns anos mais tarde o Tal Canal de Herman José, a subverter géneros e padrões, a desafiar paradigmas, com Benny Hill e Monty Python em fundo. Hoje, são os bonecos do 76 Paulo Alexandre e CASTRO Contra-informação, os Gatos Fedorentos, a traçar esse novo rumo democrático em torno da sociedade e da política nacional. Esta crítica prende-se com o desejo de denunciar, de questionar e analisar as ordens instituídas, constituindo, afinal, uma marca do humor de carácter subversivo. Mas mais do que um processo de desmistificação e de desmontagem da realidade, o humor exige como que uma quasi-mostração da verdade, o que permite o advento de realidades como o juízo crítico, – tão seriamente guardado no baú da aldeia global –, lembremo-nos a este propósito da crítica que Luís Sepúlveda traça em torno da televisão moderna, fazendo uso de um programa argentino da década de 70 protagonizado por Les Luthiers «Quem pensa…perde!», e quão premonitório isso foi da sociedade actual (Sepúlveda 2006:57-61). O humor é um exercício de inteligência, um exercício mergulhado na realidade e que fornece uma certa perspectiva sobre a verdade, e é tão mais cómico quanto a seriedade do tema envolvido e tão mais empenhado quanto for a comicidade atingida. Bergson refere mesmo que o humor «tem qualquer coisa de mais científico» face, por exemplo, à ironia, uma vez que «descendo cada vez mais ao interior do mal real, [se faz] notar as suas particularidades com uma mais fria indiferença» (Bergson 1993:92). O humorista ou aquele que procura pensar sobre a essência do riso, da comédia, etc., assume um tão ingrato papel e é tão mais temido quanto a seriedade da sua reflexão. A Comédia de Aristóteles desapareceu não por ser cómica, mas por desafiar os cânones instituídos, quer à época, quer tardiamente (os comediantes não eram tolerados na cidade), e se o filósofo era o mestre da ironia de que encontramos o perfeito exemplo em Sócrates, isso não significava a procura da comicidade, mas a forma de discursar sobre as mais sérias matérias. Esta seriedade chega a toda mentalidade cristã, associando-se o homem sábio com o homem sério – não se crê que Deus tenha rido quando criou o homem, mas pode ter sorrido certamente – e o riso prefigura e configura o homem inferior na sua proximidade a Satã (teríamos de esperar por Nietzsche para desfazer e ridicularizar a seriedade do homem sábio). O riso é aqui da ordem demoníaca. A dificuldade em associar o carácter primordial e diferenciador do riso do homem na articulação com a dimensão divina sempre preocupou a escolástica medieval, de que O Nome da Rosa de Umberto Eco dá bem conta. Esta dificuldade está ironicamente bem expressa em Charles Baudelaire no seu ensaio Da Essência do Riso, quando refere: «o homem sábio treme por ter rido; o homem sábio receia o riso, assim como receia os espectáculos mundanos, a concupiscência. Detém-se à beira do riso como à beira da tentação» (Baudelaire 2001:37). É curioso também que numa obra com mais de um século, o Dicionário do Diabo de Ambrose Bierce, o riso seja definido como «uma convulsão interior, que produz uma distorção da expressão facial e que é acompanhada por sons desarticulados. É contagioso e, embora intermitente, incurável» (Bierce 2006:144). Esta perda de controlo de si radica em análises anteriores como as de Descartes ou Hobbes. Considerado certamente por alguns como demoníaco, Sacha Baron Cohen é o humorista que se encaixa no perfil do homem sério que diz coisas cómicas, ou De Borat e Bush ... 77 do homem cómico que diz coisas sérias, ou ambas. Naturalmente enquanto Borat, Sacha também poderia se encaixar no perfil do louco e aí abrir-se-iam as portas para todo um novo conjunto de figurações e divagações. Aliás, considerado como um paradigma de interpretação, o par conceptual loucura-humor faria de Borat um marco cinematográfico intransponível, ao testemunhar o nível do absurdo cómico em que a sociedade contemporânea se vê mergulhada (alerta dado muito anteriormente por Beckett ou Ionesco). No exercício de humor da personagem Borat, encontramos não só uma sub-versão cultural (legítima ou não) do Cazaquistão, como igualmente uma apresentação filosófica (para não usarmos uma outra forma de adjectivação) da natureza humana, que valeram, de resto, a Sacha Baron Cohen diversos processos jurídicos, mas é sobretudo a (uma certa) visão que nos dá dos Estados Unidos da América que nos interessa considerar, e que só foi/é possível em contexto humorístico. Borat personifica e exalta o ridículo, demonstra o absurdo, revela a imbecilidade do mundo contemporâneo numa representação sem igual. O autor associa-lhe o grotesco em alguns momentos, não para acentuar o carácter cómico da situação, mas para revelar o mais profundo da natureza humana, as suas convicções e crenças. O que Borat realiza, parece-nos, e de forma tão subtilmente conseguida, é jogar com os (supostos) extremos de comparação, efectuando termos de contraste, ora direccionando-se para um sentido, ora para outro, isto é, transportando-se entre o muito bom e o muito mau, entre o pequeno e o grande, entre o correcto e o incorrecto, entre o bem e o mau, entre o real e o ideal. Relembremos uma vez mais, para a compreensão desta figura, o que escreve Bergson acerca dos dois extremos de comparação: «diminuindo pouco a pouco o intervalo obter-se-ão termos de contraste cada vez menos brutais e efeitos de transposição cómica cada vez mais subtis. [E acrescenta] A mais generalizada destas oposições é certamente a do real ao ideal, do que é ao que devia ser. […] Umas vezes falar-se-á naquilo que devia ser, fingindo que se acredita que é precisamente o que é: nisto consiste a ironia; outras vezes, pelo contrário, descreve-se minuciosamente e meticulosamente o que é, fingindo acreditar que é isso que as coisas deviam ser: é este, a maior parte das vezes, o processo de humor» (Bergson 1993:91-92). Esta forma de compreensão do humor é partilhada genericamente por outros autores, como Luigi Pirandello e Sigmund Freud. Pirandello fala-nos de um “sentimento de contrário” que permite ao espírito encontrar as relações impensadas nas imagens em contraste, (Pirandello 1996) ao passo que Freud vê no humorismo uma forma de rebeldia e triunfo do narcisismo ao conferir à atitude humorística a capacidade de afastar o sofrimento (afirmando-se assim em consonância com o princípio de prazer) (Freud 1973). Um bom exemplo surge-nos pela mão dos Monty Python, no qual o jogo de comparação e termos de contraste é-nos fornecido através do filme «A Vida de Brian», em que um indivíduo nasce no mesmo dia e na mesma hora que Jesus Cristo, mas na manjedoura ao lado e passa toda a sua vida a ser confundido com o Messias. 78 Paulo Alexandre e CASTRO A personagem criada por Sacha Baron Cohen começa por desenvolver a irreverência do seu humor a partir do título em que se apresenta o filme: Borat: Cultural Learning of America for make Benefit Glorious Nation of Kazakstan. Trata-se de definir à partida a situação de dois países, de duas culturas, cuja superioridade de um se afirma face ao outro. Ora, as primeiras e sub-reptícias lições que se escondem no título denunciam as crenças enraizadas não só da superioridade do povo americano, jogando-se aqui com a ironia de uma “gloriosa nação”, como também a existência de paradoxos, preconceitos e povos substancialmente atrasados. Convém ainda referir que o filme é realizado sob a forma de documentário, e é realizado apostando fortemente na capacidade de Borat em afirmar a sua identidade. Isto significa que grande parte do documentário/filme é filmado em situações reais, com pessoas que tomaram Borat realmente como um jornalista do Cazaquistão em digressão pelos Estados Unidos, numa espécie de Road-Movie. Se este artifício permitiu a Sacha Baron Cohen filmar as cenas com um realismo inultrapassável – diga-se que Borat referia perante as perguntas absurdas que fazia que o documentário só seria passado na Europa –, também lhe valeu inúmeros processos judiciais (sobretudo nos EUA) por ter usado imagens de pessoas e situações reais. Houve situações, inclusivamente, em que alguns estudantes entrevistados viriam a afirmar terem sido embriagados e induzidos a proferirem as frases machistas e racistas que aparecem no filme. A descrição visual e inicial do filme, os primeiros segundos – filmados na Roménia e não no Cazaquistão –, apresenta com efectivo realismo o retrato dos países que sofreram com a desagregação do bloco de leste, ressaltando a precaridade e a fragilidade das estruturas básicas da sociedade. Todavia, estes breves planos iniciais servem, no fundo, de estímulo ao espectador a crer naquilo que se seguirá no filme. O Salto é evidente quando o realizador apresenta planos de fundo e Borat passa a apresentar, ao longo de uma caminhada pela cidade de Kucek, algumas das personagens: Urkin, o violador da cidade (que vai numa carroça puxada por uma mulher); o jardim infantil da cidade, em que se vê um grupo de crianças com Shotguns, Klashnikov’s, etc.; Muktar Sakanov, mecânico da cidade e abortador; Natalya, que Borat beija longamente na boca, é a irmã e é apresentada como a prostituta número quatro em todo o Cazaquistão; a mãe, como a mulher mais velha de todo o Cazaquistão, tem 43 anos. Na cena seguinte, Borat afirma ter chegado à América com roupa, dólares americanos e um frasco de lágrimas de ciganas para o protegerem da SIDA. Estas apresentações, longe de serem tomadas em isolado como elementos cómicos, procuram situar o espectador num determinado contexto socio-económico e cultural, criando, ao mesmo tempo, um distanciamento cultural profundo que enriquecerá e servirá de base a grande parte dos pressupostos de que o filme viverá. A primeira referência explícita aos Estados Unidos surge quando Borat está a ser penteado por Azamat num curto diálogo: «a América é conhecida pelo seu sentido de humor. Uma pesquisa da ONU diz que o Cazaquistão tem o 98º humor mais baixo. Temos que melhorar». Segue-se um encontro com Pat De Borat e Bush ... 79 Haggerty, professor de Humor, que refere: «na América tentamos não nos rirmos em fazer piadas sobre coisas que as pessoas não escolhem». Note-se como esta afirmação, interpretada literalmente, traria consequências imediatas, nomeadamente na escolha em participar em guerras de países distantes, mas é de realçar também que fica anunciado o que seria fazer um humor “politicamente correcto”, o que Borat não parece aceitar, por não lhe ver o sentido. Por isso, a tónica humorística de Borat acentuará muita mais o que não diz, e fica por dizer, do que o que os outros dizem por si, isto é, aquilo que é mais seu nos outros. Nesse sentido, o jogo preconizado por Borat entre ignorância e inteligência revela-se em curtas tiradas, como na passagem por Washington D.C., em que surge de forma natural o comentário acerca de Bush: «terra do poderoso senhor da guerra dos EU e A». Borat interpreta uma parada gay como uma festa tradicional de rua, na qual todos se mostram bastante mais sociáveis, ao contrário da maioria dos americanos, o que se pode interpretar como uma paródia relativa aos costumes e preconceitos nacionais, evidenciados ao longo do filme. A crítica implícita de Sacha Boran Cohen aos estereótipos e preconceitos da América profunda atinge, a nosso ver, o seu ponto alto no «Campeonato de Rodeo Kroger». Borat conversa com Bobby Rowe (gerente) e adopta a postura de ignorante, fazendo assim revelar as convicções e contradições do americano: «Todas as fotografias que nos enviam dos terroristas ou de outros… dos muçulmanos, são parecidas consigo… de cabelo negro e bigode negro. Tire esse raio de bigode para não parecer tão conspícuo, para parecer, talvez, como um italiano ou qualquer outra coisa… quando as pessoas olham para si. Vejo muita gente e penso: «Lá está um maldito de um muçulmano!» Fico a pensar: «Que espécie de bomba traz agarrada a ele?» Você se calhar não é muçulmano. Talvez não seja essa a sua religião.» Borat responde: «Não, sou Casaque. Sigo o Falcão». Bobby Rowe declara novamente: «Mas você parece um deles. Quando isto acabar, quando ganharmos e lhe dermos um pontapé no cu… e todos aqueles filhos da mãe forem pendurados na forca… então, você já terá provado ser de confiança, eles compreenderão e será aceite». Na continuação do diálogo, quando Borat tenta dar um beijo como saudação, Bobby Rowe afasta-se e demonstra que isso é coisa de homossexuais. Sacha funde-se aqui com Borat e declara como forma de provocação: «no meu país, prendem-nos e acabam com eles», ao que Rowe responde: «Levam-nos e enforcam-nos. É o que estamos a tentar que se faça aqui». Quando Borat se prepara para cantar o hino (música do hino americano com a suposta letra do hino casaque), afirma que gostaria de dizer, em primeiro lugar, umas palavras. Apesar de muito saudado, passa completamente despercebido o peso real do seu discurso e o ponto de vista que expõe: «Nós apoiamos a vossa guerra de terror!». Note-se que a expressão utilizada é “war of terror”, mas é saudada efusivamente pelo público, o que pode revelar ou uma má compreensão das palavras de Borat ou a viragem que já se fazia sentir na opinião pública americana. No seguimento do diálogo, diz a personagem: «Vamos mostrar o nosso apoio aos vossos rapazes no Iraque! Que os EU e A matem todos os terroristas! 80 Paulo Alexandre e CASTRO Que George Bush beba o sangue… de cada homem, mulher e criança do Iraque! Destruam o país deles e que nos próximos mil anos nem um lagarto sobreviva no deserto deles!». Também esta referência a Bush é bastante aplaudida e demasiado evidente por si mesma para nos determos a comentá-la. Um outro tema aflorado pela nossa personagem diz respeito às armas: encontramos Borat no seu papel habitual de imbecil, a revelar o espírito americano e a liberdade de reclamar o direito à auto-defesa. Pergunta Borat: «qual a melhor arma para defender de judeu?». O armeiro responde: «Eu recomendava uma 9mm ou uma 45!». O que poderia ser entendido como despropositado denuncia a mesma problemática que Michael Moore retrata em Bowling for Columbine. Não se pense que as referências às armas, por um lado, e aos judeus, muçulmanos e Cazaques, por outro, são motivo de ridículo para Borat. Estas referências prendem-se com a visão estereotipada dos americanos revistos em Borat. É o pensamento conservador norte-americano que é colocado em causa, sendo aproximado pela personagem a um certo pensamento bárbaro e primitivo simbolizado por um Cazaquistão inexistente. O mesmo pensamento ridículo que a série Simpsons põe a descoberto. Daí uma certa constância nas irónicas referências aos judeus, como no comentário, «vamos para Nova Iorque que lá não há judeus!». Um capítulo interessante do filme apresenta Borat a entrar numa congregação cristã, dando-nos planos sucessivos de uma certa encenação da cerimónia. A dado momento, refere um dos pastores: «Somos uma nação cristã e iremos ser sempre até que Deus regresse». Logo a seguir, um outro acrescenta: «Não evolui de um macaco. Não era uma larva». É curioso notar como nesta parte do filme se seguem dois ou três excertos breves para reforçar uma mesma ideia, de resto muito em voga nos últimos anos nos Estados Unidos, ligada ao debate entre criacionistas e evolucionistas. As teorias são defendidas acerrimamente e parecem guardar surpresas, tal como no caso do sucesso da teoria do desenho/desenhador inteligente, defendida de forma entusiástica pelo “Discovery Institute” de Seattle. Esta teoria começou , inclusivamente, a figurar nos manuais escolares, opondo-se deliberadamente à teoria darwiniana em particular e às teorias evolucionistas em geral. Nota-se um certo conservadorismo militante que perpassa em todas as áreas de actuação da sociedade norte-americana e que Borat põe a descoberto. O repórter do Cazaquistão cruza-se nesta sua viagem pela América com associações culturais, étnicas e sexuais, que anunciam a sua tolerância para com a diferença, mas acabam por revelar uma atitude reaccionária de pouca tolerância, de resto bem espelhada numa qualquer máxima como «quem não está connosco, está contra nós». A intolerância surge nesse quadro como defesa daquilo que se pensa ser o correcto só porque mais ocidentalizado ou mesmo americanizado. Num jantar social que Azamat agendou para Borat, depois de um conjunto de peripécias em relação à higiene e ao uso da retrete, uma das anfitriãs declara: «Acho que as diferenças culturais são vastas… e penso que é um homem delicioso e não levava muito tempo a ficar verdadeiramente americanizado». É de novo expressa a presunção de De Borat e Bush ... 81 superioridade de uma nação a subjugar um cidadão do glorioso Cazaquistão. Esta é uma sub-versão cultural realizada por um imperialismo de costumes que se estende à máquina do hiper-consumismo, para utilizarmos uma expressão recente de Lipovetsky. Borat faz-nos rir, porque é o absurdo do mundo real que é transportado para a imbecilidade do quotidiano de um não americanizado. O humor de Borat não é comovente e nem pretende ser, é apenas um caminho de quasi-mostração da verdade. Como refere Bergson, «a comédia só começa naquele ponto em que a pessoa de outrem deixa de nos comover. E começa com o que se poderia chamar a rigidez contra a vida social. É cómica a personagem que segue automaticamente o seu caminho sem tratar de tomar contacto com os outros» (1993:98). É a obstinação de Borat em procurar Pamela, fazendo um caminho solitário, que o leva a descobrir no vídeo íntimo que esta protagoniza com Tommy Lee uma outra Pamela, uma outra realidade. Aqui, o carácter de desilusão personificado por Borat revela mais uma ironia profunda, a da América moderna que deifica figuras com pés de barro: fabricações de Hollywood a re-criar a economia e a indústria do lazer com novos e velhos mitos, a alimentá-la com ilusões e fantasias de cidadãos patrióticos. O que fica desta análise é que se Borat coloca perguntas absurdas e se se apresenta como um profundo idiota, mais reveladoras acabam por ser as respostas daqueles que participam no filme. As respostas evidenciam uma aproximação às considerações supostamente mais retrógradas de Borat. É a inversão de valores, é a subversão dos limites que o humor de Borat revela. Dito de outra forma, Borat espelha-nos a sociedade ocidental naquilo que tem de mais revelador, a capacidade de rir de si própria. O segredo da evolução social e humana liga-se ao facto de uma sociedade conseguir rir de si própria. Quando a sociedade norte-americana poder rir dos seus cerca de 20 milhões de americanos que acreditam no ressuscitar de Elvis, atingirá uma outra visão de si própria. Note-se, por exemplo, como Emir Kusturica é saudado entre os seus, quando revela nos seus filmes étnicos, por exemplo Gato Preto, Gato Branco ou A Vida é um Milagre, o exercício de humor subversivo dos povos dos Balcãs, ou como se riem os alemães, quando confrontados com a adopção da primeira declaração dos direitos dos animais em pleno regime nazi. Repare-se num outro exemplo, muito do agrado geral, o filme Shrek. Apesar da história clássica do herói acompanhado de um companheiro anafado e ridículo (numa espécie de re-invenção do Dom Quixote e Sancho Pança), que salva a princesa, destruindo um dragão, sente-se um humor subversivo de fundo, com desvios humorísticos que se aproximam a Brecht. É a sociedade actual que é retratada, quando durante a cerimónia do casamento se levantam as placas a dizer «riam!» ou «silêncio respeitoso!». São as referências também aos costumes e ritmos modernos, à cultura pop, incluindo sarcasmos plenos de ironia sobre a vaidade, quando, por exemplo, a bela adormecida espera um beijo e dá um jeito ao penteado. Refere Zizec que «em suma, a verdadeira função desses “desvios” e dessas subversões consiste precisamente em conformar a velha história tradicional aos cânones da nossa 82 Paulo Alexandre e CASTRO época pós-moderna – impedindo-nos, assim, de substituí-la por uma história nova… Não admira que a sequência final do filme consista numa versão irónica da canção I’m a Believer, o velho sucesso dos Monkeys, datado da década de 1960 – é a maneira como somos actualmente crentes: gozamos das nossas crenças, mas, ao mesmo tempo, continuamos a praticar a fé, isto é, continuamos a entregar-nos a ela para apoiar, sem o dizermos, os nossos actos quotidianos» (Zizec 2003:197). Ou seja, aquilo que Borat nos revela é um país que aceita as parangonas da CNN ou de outro canal, instituindo a verdade, dada em exclusivo aos Estados Unidos. Thomas de Zengotita defende com o livro Mediated: How the media shapes your world and the way you live in it que estamos nós próprios ‘mediatizados’, isto é, vivemos de tal forma rodeados de representações que nos deixamos de ver e representar a nós mesmos como aquilo que realmente somos e cremos ser. Seja a violência do Iraque ou a violência das ruas dos bairros negros americanos, seja o desejo de violência homofóbica ou anti-semita, a relação revelada por Borat é a mesma que o ensaísta Olivier Mongin nos transmite, isto é, a nossa relação com as imagens de violência tem-se metamorfoseado, quer dizer, entrámos num “estado natural” de aceitação de violência (Mongin 1998:24). Por isso, rir – sobretudo das desgraças - acaba por não ser o melhor remédio, uma vez que, como refere René Girard, acerca daquilo que poderia ser uma “praxis moderna do riso” na contemporaneidade: «o homem moderno ri constantemente quando não há razão para isso. O riso é a única forma socialmente aceite de catarse. Por conseguinte, todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso mundano» (Girard 2007:203). Acrescenta Girard, justamente, que todos estes falsos risos apenas aumentam a tensão que deveriam aliviar, e, por isso mesmo, em Borat encontramos momentos que devolvem ao espectador o seu lugar, para que o riso surja posteriormente com naturalidade. Não se trata já de ver no humor uma qualquer função terapêutica e higiénica como em Espinosa ou Voltaire, mas o retrato de uma sociedade cujo riso foi hipotecado em nome de uma catarse fictícia que as industrias do lazer insistem em vender (as indústrias de lazer têm um potencial de crescimento anual que ultrapassa os 5%), instaurando, assim, uma alienação generalizada, caracterizada naturalmente por uma ilusão de satisfação (que inibe a manifestação de qualquer forma de contestação, seja social, económica ou metafísica). É a limitação da experiência perceptiva, a simultaneidade dos tempos e espaços, a alienação generalizada. Em 1933, já Walter Benjamin escrevia que «a existência do rato Mickey é esse sonho dos homens actuais» (Benjamin 1933:172), quer dizer, é a imagem que define a cultura contemporânea como síntese no espaço de representação e que, portanto, regula, limita e define o campo da experiência, simplificando-a e consolidando o exercício de domínio do já sentido. Podemos sempre ‘ligar/desligar’ depois de um espectáculo, porque estamos no domínio da realidade fornecida – a que nos deixam viver, e, por isso, a este nível, o exercício do humor deve exigir muito mais do que apenas o riso fácil e complacente. Estamos num De Borat e Bush ... 83 campo de hiperealismo como lhe chamaria Jean Baudrillard na sua crítica à cultura e sociedade contemporâneas. O Homo consumericus também está presente em Borat quando, numa alegoria, o realizador Azamat refere que se deveria aprender a comer bem no Cazaquistão, enquanto segura um mega copo de refrigerante e o que parecem ser donuts. É a ilusão do consumismo a alimentar as esperanças de felicidade do sujeito, é o apelo hedonista ao consumo a transmutar o desejo natural de rir ou sorrir. Veja-se, por exemplo, alguns toques de telemóvel que reproduzem ou o riso de um bebé ou o riso estridente de uma ‘bruxa’. A procura de um riso fácil parece copiar aquele dito popular que refere «muito riso pouco siso», o que não deixa de ser uma boa analogia dos tempos modernos. De facto, o sujeito, enquanto potencial consumidor, visto como alvo económico, como que é obrigado a viver não a sua vida real, mas a vida que é possível alcançar pela mediatização de um qualquer produto. É um sujeito que se passa a reconhecer nos padrões que lhe foram fornecidos, mas sem consciência desse facto, e que age e pensa segundo aqueles. Reflicta-se, por exemplo, nas palavras de Guy Debord: «a alienação do espectador em proveito do objecto contemplado (que é o resultado da sua própria actividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espectáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são os seus, mas de um outro que lhos apresenta» (Debord 1972:6). Estamos no domínio da interpassividade, como o classifica Zizec. Depositamos as nossas acções num Outro (abstracto e inidentificável) e que Zizek classifica como um sujeito-suposto-gozar, mesmo que essas acções impliquem o meu gozo, a minha satisfação, a minha realização. Zizek fornece inúmeros exemplos: para o sujeito-suposto-gozar e suposto-crer, seja dos espectáculos com risos pré-gravados em que este outro ri por mim, seja o fetichismo da mercadoria que estimula a crer através do pai natal. Um exemplo da interpassividade do sujeito, e que não podemos deixar de citar, é aquele que Zizec menciona a propósito dos fãs de DVD que gravam compulsivamente filmes e acabam por ver menos filmes do que quando não havia gravadores. A ideia é de que «apesar de não ver filmes actualmente, o facto de saber que os tenho guardados na minha videoteca dá-me uma profunda satisfação e proporciona-me, ocasionalmente, o relaxamento e o gozo da encantadora arte do far niente, como se, de certo modo, o aparelho de vídeo os estivesse a ver por mim, no meu lugar – o gravador de DVD ocupa aqui o lugar do grande Outro, é o médium da gravação simbólica» (Zizec 2006:26-27). Borat demonstra isto mesmo, de modo inverso, quando interrompe um boletim metereológico e reivindica o lugar de afirmação do seu prazer. Semelhante concepção faz-nos rir, mas também pensar, e este é o objectivo primordial de Borat. Se existe uma inter-subjectividade pautada pela passividade, urge recriar o lugar de denúncia social e política, e que melhor arma que o humor subversivo. 84 Paulo Alexandre e CASTRO Borat é de alguma forma a auto-consciência do nosso tempo, ainda que parodiada sob o signo da imbecilidade. Por isso, quando pensamos a contemporaneidade e o humorismo no seu seio, ocorrem-nos as famosas palavras de Molière numa ampliação de sentido: «é um empreendimento estranho fazer rir as pessoas sérias». References Baudelaire, C. (2001). Da essência do riso. Almada: Íman Edições. Benjamin, W. (1973/[1933]). Discursos interrumpidos I. (J. Aguire, Trans.). Madrid: Taurus. Bergson, H. (1993). Le rire. O riso – Ensaio sobre o significado do cómico. (G. de Castilho, Trans.). Lisboa: Guimarães Editores. Bierce, A. (2006). O dicionário do diabo. (R. Lopes, Trans.). Lisboa: Tinta-da-China. Freud, S. (1973). «El Humor» e «El Chiste y su relación com lo inconsciente». In Obras Completas de Sigmund Freud. (L.L.-B. y de Torres, Trans.). Madrid: Biblioteca Nuova. Debord, G. (1972). A sociedade do espetáculo. Lisboa: Afrodite. Girard, R. (2007). A voz desconhecida do real – Uma teoria dos mitos arcaicos e modernos. Trad. Filipe Duarte. Lisboa: Edição do Instituto Piaget. Mongin, O. (1998). 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