Camarim 45 - Cooperativa Paulista de Teatro
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Camarim 45 - Cooperativa Paulista de Teatro
teatro pelo mundo brAsil CHile C o lÔ m b i A AngolA porTUgAl e s pA n H A AlemAnHA volksbühne, fundado em 1914 2º semestre • 2010 • 1 palavra da cooperativa 2 • Camarim • nº 45 Depois de um período de recuo, devido à crise de 2008/09, a problemas com órgãos públicos que teimam em não reconhecer o cooperativismo cultural e à questões internas, a Cooperativa Paulista de Teatro retoma seu curso e uma nova edição da Revista Camarim, a No. 45, é um sinal de que as coisas voltam à normalidade e, com isso, a produtividade cultural ganha seu merecido espaço. A própria Camarim, que neste número se dedica ao teatro progressista em várias partes do mundo, foi recentemente contemplada no Edital Cultura e Pensamento do Ministério da Cultura e, salvo alguma surpresa do MINC, terá, em seus próximos seis números, uma nova linha editorial, de caráter especial. A Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo chegou ao seu quinto ano e o Teatro nos Parques chega a sua segunda edição ampliada em 2010, de setembro a novembro, com 26 atrações e 97 apresentações em 41 parques da cidade de São Paulo. Ambas ações gratuitas, ambas propostas de formação de público. Em um país com tamanho déficit de acesso às atividades culturais, a Cooperativa tem priorizado a inclusão de novos públicos em seus projetos, como plataforma primeira. A frente internacional da sociedade está em pleno desenvolvimento com a criação da representação brasileira do Instituto Internacional de Teatro – ITI – ligado à UNESCO, feito da Cooperativa, no intuito de ampliar as possibilidades de atuação da agremiação e de seus associados (leia texto sobre o ITI nesta edição). No campo doméstico tivemos, entre o final de 2009 e o início de 2010, mais um embate político/jurídico com a Prefeitura de São Paulo, em relação à Lei de Fomento ao Teatro. O impasse foi superado graças à mobilização da sociedade e da classe teatral como um todo, o que confirmou a ampla penetração que a Cooperativa tem hoje na cidade. Em março foi a vez de nos dirigirmos às questões federais, visto que, depois da histórica ocupação da Funarte/ MINC em 27 de março de 2009, o governo aceitou negociar nossas propostas e o projeto Prêmio Teatro Brasileiro, um programa para o teatro no país, gestado no movimento teatral nacional Redemoinho, ganhou oficialmente espaço no novo projeto de lei para a cultura do Brasil, o ProCultura. Porém, pela falta de destreza política do governo, uma grande ação que estava preparada para o Dia Mundial do Teatro de 2010, foi cancelada e desde então as negociações com as esferas federais não têm sido fáceis. Tudo indica que, apesar dos inúmeros esforços nesses oito anos de Lula como Presidente, mesmo com a possibilidade dos fundos setoriais serem lançados ainda em 2010, neles incluído o Fundo Setorial de Artes Cênicas, um projeto de médio ou longo prazo, estruturante para o teatro brasileiro, como a proposta do Prêmio Teatro Brasileiro, ficará para ser discutida com o novo Governo e o novo Congresso, que assumirão em 2011. Os problemas internos e externos, os progressos e regressões, demonstram que, para um coletivo com três décadas de vida intensa e ativa, os percalços não irão cessar e, se quisermos fazer mais 30 anos de história no Teatro Brasileiro, muita dedicação e engajamento serão, cada vez mais, imprescindíveis. Ney Piacentini Presidente 4 16 17 24 34 36 42 50 54 Expediente 57 Entrevista com Zé Renato, Eduardo Tolentino e Zé Fernando Valmir Santos, Alessandra Perrechil e Maurício Hiroshi Teatro Chileno Guillermo Calderón Teatro Chileno em Democracia – Historicidade e Autoreflexão Maria de La Luz Hurtado O teatro é sempre político Carlos Zatizábal Os escravos da fila Valmir Santos Alemanha: Entrevista com Frank Castorf Valmir Santos, Alessandra Perrechil e Maurício Hiroshi A Cena contemporânea espanhola José Henríquez Um panorama do teatro em Portugal Jorge Louraço Figueira O teatro em Angola: um pouco de história José Mena Abrantes Cooperativa no mapa Luiz Amorim e Ney Piacentini Camarim é uma publicação da Cooperativa Paulista de Teatro – Ano 13 – Número 45 – 2º semestre de 2010 • Editor: Ney Piacentini / Mauricio Hiroshi Kanashiro • Jornalista: Alessandra Perrechil • Revisão: Alessandra Perrechil, Mauricio Hiroshi Kanashiro • Diagramação: Pedro Penafiel • Impressão: Corprint • Tiragem: 2000 exemplares • Distribuição Gratuita Praça Dom José Gaspar, 30 • 4º andar A • Centro • CEP: 01047-010 • São Paulo • SP Novo telefone: (11) 2117-4700 • [email protected] 2º semestre • 2010 • 3 Alessandra Perrechil “Um trabalho tão precário e flexível como o de um sapateiro” Por Valmir Santos, Alessandra Perrechil e Maurício Hiroshi José Fernando, Eduardo Tolentino e José Renato 4 • Camarim • nº 45 Numa quarta-feira cinza de março passado, a sede da Cooperativa Paulista de Teatro, na região central de São Paulo, abrigou um encontro de três gerações de diretores brasileiros. José Renato, Eduardo Tolentino e José Fernando de Azevedo reuniram-se a convite da Revista Camarim, estimulados a cotejar suas trajetórias e os contextos históricos percorridos até aqui. O paulistano José Renato (1926) é cofundador e idealizador do histórico Teatro de Arena, diretor do espetáculo “Eles Não Usam Black-Tie” (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, considerado um marco da dramaturgia nacional. Iniciando suas atividades no final dos anos 1970, o carioca Eduardo Tolentino de Araújo (1954) cofundou o Grupo Tapa, criado no Rio de Janeiro e radicado em São Paulo a partir de 1986. Mais contemporâneo, José Fernando Azevedo (1974), é professor na Escola de Artes Dramáticas (EAD/USP), dramaturgo e diretor do grupo Teatro de Narradores, do qual também foi um dos precursores. Entre os pontos comuns, o trio envolveu-se direta ou indiretamente com o Movimento Arte contra a Barbárie. A conversa foi permeada por temas como modos de produção e criação, o Teatro de Grupo, a relação com o espectador contemporâneo, os espaços públicos, a sustentabilidade dos núcleos artísticos, o papel do diretor nos dias que correm e a televisão. Camarim – O que os movia quando jovens, no início da carreira? Quais eram as motivações nos anos 1950, no final dos 70 e nos anos 90? Zé Renato – Posso começar? [risos] Eduardo Tolentino – Claro... Você tem prioridade. Zé Renato – Eu não sei se esse tipo de preocupação existia no momento em que começamos a trabalhar. O que existia era fundamentalmente uma vontade de fazer teatro, renovar, contribuir de alguma maneira com a sobrevivência da carreira, da profissão que tínhamos indicado que seria a nossa. Naquela época, uma coisa era certa: o único apoio que a gente tinha era do público. Contávamos com a experiência da relação público/ator e fazíamos espetáculo praticamente a semana inteira, de terça a domingo. O desespero acontecia quando a gente não fazia sucesso, quando o público não vinha ver o espetáculo. Nesse momento, a gente ficava assustado e pensava em outra saída. Ir ao banco pedir empréstimo, por exemplo, porque era fácil naquele tempo. Você fazia empréstimos e pagava com a próxima peça. Era comum isso acontecer. Tinha um banco aqui na Rua 24 de Maio, uma agência do Banco Mercantil. Sempre ia lá e o gerente já me conhecia. “Está precisando de empréstimo de novo?”, ele perguntava. “Vou precisar, mas vou pagar logo”, respondia. A gente sobrevivia da relação público/ator, público/espetáculo. E isso era fundamental. Camarim – Você [Zé Renato] tinha saído da EAD nos anos 50. Três anos depois começa o Arena. Esses parceiros, esses colegas de grupo, eles estavam movidos por qual desejo ou visão estética? Zé Renato – Eles vinham também da EAD e eram movidos pelo mesmo interesse: ter um grupo. Era Geraldo Mateus, Sérgio Sampaio, [Emilio] Fontana. Naquela época só existia praticamente uma companhia que poderia nos contratar ou contratar alguém, a do TBC. E esta tinha lá os seus “medalhões”, ficando difícil de penetrar no grupo. Havia os diretores italianos que a gente respeitava muito, mas, fundamentalmente, o que queríamos era encontrar um caminho nosso. Sabia que o caminho existia, porque a concorrência era relativamente pequena. Existiam também outras grandes companhias, como os Oficinas da vida, os Procópios da vida, mas esses eram “medalhões” dos quais a gente nem sequer chegava perto. Camarim – Havia um espírito amador nesse princípio, podíamos pensar assim? Zé Renato – Sim, porque a maioria de nós não vivia só de teatro. Eu, por exemplo, tinha uma profissão, ganhava um pouco de dinheiro disso. Eu era protético, tinha um laboratório na Praça da Sé, sobrevivia muito mais disso. Assim, tinha um espírito amador nesse começo, claro. Pouco a pouco a gente foi sentindo a importância dessa outra profissão e se dedicando mais a ela. Os meus clientes, os dentistas com quem eu trabalhava, às vezes me surpreendiam quando perguntavam sobre teatro ao invés de solicitar o serviço de prótese dentária: “Qual é a peça boa que está passando hoje?” Camarim – E quem os inspirava naquela época? Zé Renato – A inspiração veio dos diretores italianos, e de um nome fundamental para nós todos aquela época, o Ruggero Jacobbi (1920-1981), com quem tive contato no Teatro Brasileiro de Comédia. Ele era um gênio, um péssimo diretor de teatro – dormia nos ensaios, as soluções que ele dava em cena eram ruins e fracas -, mas quando começava a falar, você ficava arrepiado, porque era um monumento de sabedoria, de inteligência, de uma sensibilidade impressionante. Esse homem nos orientava e nos dirigia. Jacobbi formou um grupo de teatro de estudantes, com bases política e marxista. Foi aí que surgiu o Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho], o [Gianfrancesco] Guarnieri, entre outros. Tinha outro italiano, Fabio Carpi, diretor do núcleo de dramaturgia da Vera Cruz na época em que trabalhei lá. Era um sujeito fantástico também. Ele e o Ruggero eram os grandes orientadores intelectuais. Trabalhei com o Ruggero quando a televisão se instaurou. A primeira novela foi uma adaptação de “Helena”, de Machado de Assis, em 12 capítulos, escrita e dirigida por nós dois, na TV Paulista. 2º semestre • 2010 • 5 Com esse contato, nasceu um interesse intelectual. Foi quando senti a importância maior da nossa profissão, a carreira e a arte. Camarim – E a tomada de consciência política e social foi se dando mais tarde? Zé Renato – Já tínhamos uma consciência, mas o engajamento político começou depois que conhecemos o Ruggero, quando ele pediu para a gente fazer uma parceria com o Teatro Paulista de Estudantes. Então, lá pelo ano de 1956, unimos nossos esforços ao grupo deles e formamos um só. Foi quando se incorporaram o Vianinha, entre outros. Camarim – E como foi com você, Tolentino? Na cidade do Rio de Janeiro no final dos anos 1970? Tolentino – Vamos por faixa etária [risos]. Eu posso dizer que sou filho de uma incipiente democracia brasileira. Nasci em 1954, dois meses depois do Getúlio [Vargas] ter dado um tiro no coração. Então, nasci em um Brasil muito esperançoso. O país do amanhã. Num país que foi cortado ao meio nessa sua trajetória. Não que esse amanhã fosse completamente real, mas a gente nasceu sob esse espírito. Assim, quando entrei na faculdade, em 1973, nós tínhamos as consequências dos dois lados. As consequências de uma democracia na qual nascemos, que gerou tudo o que foi falado – o Arena, o Oficina, Bossa Nova, o boom da MPB. Fui jovem na época dos grandes festivais de música popular brasileira. E é uma geração que vivia a arte o tempo inteiro. Mesmo quem não fosse ser artista, era de alguma maneira ligado a um processo artístico ou espectador que seja. Era impossível, na faculdade, quem não ia ao cinema duas ou três vezes por semana, no teatro pelo menos uma vez por semana, ou em um show de MPB. Isso de estudantes de todas as áreas, não só da área de ciências sociais, mas nas técnicas também. Pelo menos nessa utopia que era Ipanema dos anos 70. Ao mesmo tempo, como foi uma geração que tinha a arte como cotidiano no Rio de Janeiro, foi a época do boom dos grupos de teatro. Foi a partir do Asdrúbal Trouxe o Trombone que de alguma maneira se instaurou alguns processos utilizados até hoje, quer pela produção comercial do teatro que até por algumas alternativas. Eles fizeram o próprio núcleo deles e isso foi de certa maneira um emblema para uma geração que poderia produzir seus próprios trabalhos. Então é nesse o mundo em que a gente nasceu, em que tudo se formou. Camarim – E para você, Zé Fernando, como foi nos anos 1990? Zé Fernando Azevedo – Eu tenho a impressão de que faço parte de uma leva de artistas e de grupos surgidos no final dos anos 1990, entre 1997 e 2000, em São Paulo. 6 • Camarim • nº 45 Houve uma espécie de explosão de grupos de teatro, uma grande parte saída da universidade, e é um movimento que coincide com a criação do Arte contra a Barbárie. O que foi decisivo para a formação, e talvez para a manutenção desses coletivos, foi a experiência do Arte contra a Barbárie, porque é também um momento em que essa ideia de geração é confusa. Nesse momento do teatro, conviviam numa reunião 40 anos de teatro – Zé Renato, Zé Celso, Oficina, Tapa, Folias D’Arte, [Reinaldo] Maia, o Sérgio de Carvalho, Fernando Peixoto –, e por isso eu tenho a impressão que, esboçando a fisionomia dessa geração, ela é bastante híbrida, não tem uma cara definida. Mas essa experiência do Arte contra a Barbárie, de certo modo, colocou questões decisivas para o teatro desses grupos que começam a se formar a partir de 1997 em São Paulo; núcleos como o Bartolomeu, a São Jorge, o pessoal da Estável. Essas questões são estéticas, porque a própria realidade dos grupos exigia pensar o tipo de teatro que estavam fazendo – as condições de manutenção, de organização, de relação com a cidade, relação com o público, coisas que não eram muito claras, mas também questões políticas. Embora seja uma geração que não tivesse necessariamente um ímpeto político, foi forçada a pensar nisso e elaborar isso artisticamente. É um pouco a força que essa fisionomia vai se definindo na trajetória desses grupos. Camarim – Na bibliografia do Zé Renato, lançada recentemente pela coleção Aplauso [“José Renato – Energia Eterna”, por Hersch Basbaum], há um trecho publicado em 1º de fevereiro de 1955 no jornal O Estado de S.Paulo que diz o seguinte sobre o modo de produção do Arena: “Não haverá salário, mas repartição dos lucros. Cada ator receberá uma cota, correspondente a uma parte do total da bilheteria. Assim, a estabilidade econômica da empresa parece garantida.” Quer dizer, a questão econômica, de alguma forma ainda permanece no centro do fazer teatral na cidade. Zé Renato – Naquela época tinha também uma novidade que não falei. Fizemos uma sociedade de cotistas, pessoas amigas que contribuíam com o equivalente a R$ 40,00, R$ 60,00 por mês. Então eles tinham direito a ingresso para a estreia, depois a gente cedia mais entradas, enfim, chegou a quase 200 associados naquela época. E isso contribuiu muito para que a gente pudesse estrear e manter essa temporada de três peças diferentes por semana. A gente estreou às terças e quartas-feiras com “A Rosa dos Ventos”, depois foi “Esta Noite é Nossa”, uma comédia inglesa, e no fim de semana a gente fazia “Uma Mulher e Três Palhaços”, que era o grande carro-chefe nosso à época. Camarim – E já tinha uma premissa do formato de arena, como se ele pudesse ter sido uma possibilidade de fazer um teatro mais barato? Zé Renato – Claro. Essa foi a primeira saída nossa, a gente procurava o teatro que fosse barato, que pudesse fazer com poucos recursos. Que não precisasse despender muito de cenografia, de espaço, de aluguel, tudo isso contado. Foi por ai que a gente entrou no formato arena, a busca de um espaço que não custasse muito. Isso aconteceu nas primeiras apresentações nossas – gastávamos muito menos do que se gastava normalmente nesses espaços comerciais. De repente verificamos que o comprometimento do intérprete era muito maior. A gente se exigia muito mais. E depois analisando com mais detalhes, verificamos que a ideia da peça se transmitia com muito mais interesse, muito mais integridade, o público entendia com mais profundidade tudo o que se discutida em cena. Ele era muito mais obrigado a prestar atenção no que via do que o era num palco convencional. Esse espetáculo feito no meio do público, mais próximo a ele, fazia o espectador se comprometer tanto quanto um ator. Camarim – E como você [Tolentino] vê essa questão da sustentabilidade no fazer teatral? Tolentino – Eu comecei falando que era filho da democracia. Eu comecei a fazer teatro com os filhos e netos da ditadura, mesmo esses sendo contestadores, a escola brasileira “de pensamento” estava de certa maneira desmontada. O Oficina, quando estreava, tinha três semanas vendidas, acho que o Arena também, para universitários. E eu fui a geração que ia correndo ver essas estreias e era um consumidor de teatro. Hoje, a universidade é desmontada no Brasil. Espero que o ensino básico esteja sendo desenvolvido e daqui a alguns anos, os filhos da nova democracia brasileira possam usufruir, daqui a 20 anos, de outra escola, outra universidade melhor. Agora, existe outro golpe causado pelos filhos da ditadura, que é o golpe econômico. Quer dizer: até a entrada do [Fernando] Collor no governo, em 1989, nós vivíamos de bilheteria. De 1979 a 89, raramente a gente precisava de dinheiro público, concorria-se a um edital, a um auxílio montagem, mas você não dependia de dinheiro público. Porque você fazia teatro de cinco a seis vezes por semana. Você tinha um público consumidor de teatro que ia a sete sessões. Quando caía para cerca de 120 ou 80 espectadores, dizíamos “Que desgraça! Vamos tirar a peça de cartaz e vamos pensar em outra”. Isso mudou muito, porque houve uma guinada econômica no Brasil muito grande, nos grandes centros. Hoje, raramente os teatros dão lucro. Apesar de ter tido alguns grandes sucessos de público, mas o tratamento não era empresarial, o pensamento era que aquela companhia sobrevivesse e montasse mais um espetáculo. A ideia não era que as pessoas ficassem ricas. A gente ainda procura manter isso no teatro. De vez em quando, temos que recorrer ao dinheiro público. Mas eu evito ao máximo que posso. Recorrer ao dinheiro público é, para mim, quase como recorrer ao FMI. Eu prefiro quando a gente consegue achar os meios de sobrevivência com o público. O teatro brasileiro precisa dar esse salto, quer dizer, voltar a ter uma relação com o espectador. Não depender do dinheiro público... Zé Renato – Desculpa interromper, mas houve uma transformação importantíssima no fim dos anos 50: a televisão que apareceu de repente e transformou todos os hábitos do brasileiro. Era muito mais fácil assistir em sua casa, sentado na sua poltrona, do que ir ao teatro. É violento. Tolentino – O Brasil chegou a ter a quarta televisão do mundo. A televisão aconteceu no mundo inteiro... Zé Renato – Não com esse efeito... Tolentino – Não com esse efeito. Então você é capaz de pegar a BBC e ver as peças dos dramaturgos que estão aparecendo, do [Harold] Pinter. Bibi Andersson [atriz sueca], quando foi assistir ao espetáculo “A Volta ao Lar”, do Pinter, no Rio de Janeiro, disse – “Ah, fiz essa peça no rádio”. Camarim – O problema não é o veículo. Tolentino – O problema é como o veículo foi usado no Brasil, como um mecanismo entorpecedor. Não que a televisão não seja entorpecedora também no resto do mundo, pelo menos as televisões estatais tentam manter um equilíbrio. O que aconteceu aqui, o que a televisão estatal não fez, a rede privada fez: contratou os maiores atores, os grandes diretores. Zé Renato – Mundialmente, eles respeitavam o horário dos espetáculos teatrais. Havia um intercâmbio útil nesse sentido. Aqui, de repente, a televisão começou a lançar o grande boom das novelas no horário do teatro. Isso só aconteceu aqui. Tolentino – Aqui mudou até futebol. Em qualquer lugar do mundo o jogo é às 19h, que é para o trabalhador ir ao estádio. Eles botaram às 21h30. Isso é um fenômeno inacreditável: para não atrapalhar o horário das novelas, nós temos futebol às 21h30. Não tem país no mundo que tenha basquete, futebol às 21h30. Zé Renato – Houve uma acomodação, infelizmente, por parte do pessoal do teatro. Naquela época, lembrome que fizemos uma reunião, por volta de 1960. E o Túlio Lemos [ator paranaense destacado no rádio], que era também de televisão e fazia parte do grupo em que dirigi “A Ópera dos três Vinténs”, ele dizia: “Esse negócio de televisão, novela e televisão, não se preocupem, vai acabar em dois anos. Em dois anos não existirá mais esse negócio de novela de televisão”. 2º semestre • 2010 • 7 Cloaca – Grupo Tapa Tolentino – Existe outro mecanismo que a televisão fez, sem querer falar da televisão demais. Tem a questão dos atores, a terça-feira foi tirada [da programação de teatro] porque era dia de [gravação] noturna na televisão. E teve uma geração, que fazia televisão na segunda-feira; assim a TV foi sucessivamente cortando a possibilidade dos atores. Então, não pode trabalhar na quarta, não pode trabalhar na quinta, os salários começaram a ficar exorbitantes. Se todos nós fizéssemos um pacto de fazer teatro de terça a domingo, isso mudaria alguma coisa, porque isso repercutiria nos jornais. Zé Renato – Mas economicamente ninguém agüenta isso... Tolentino – Acho que qualquer apoio governamental deveria exigir o teatro de terça a domingo a preços populares, a preços popularíssimos. Não importa, não importa o preço que você faça, porque acho que teatro tem que cobrar. É um ofício, e não tem que ser dado de graça. A não ser que toda a sociedade funcionasse de graça – que o dentista fosse de graça, que o médico fosse de graça, e nós tivéssemos uma sociedade completamente socializada, então a arte também seria de graça. Agora, quando o governo dá algum tipo de verba para o teatro, deveria ter como meta a formação de uma vida teatral possível. Não há possibilidade de fazer teatro duas vezes por semana e ser bom. Teatro é um tipo de trabalho que, se você se desliga três vezes por semana daquilo... Ao contrário do cinema ou da televisão, que é o frescor do que você faz, no teatro quanto mais se repete a cena, mais se consegue uma qualidade intrínseca daquilo que é feito. Estamos entrando num ponto de vista artístico com mais qualidade. Eu prefiro fazer uma peça 8 • Camarim • nº 45 quinze dias direto do que dividir esses quinze dias por três meses, duas vezes por semana. Inclusive, economicamente, se nós temos público para quinze dias, deveríamos fazer quinze dias direto, porque isso é inerente à arte teatral. Se houvesse um pacto entre os artistas, de fazer espetáculos de terça a domingo, cada um com a sua potência de público... Agora, você vai enfrentar [resistência] dos teatros, vai enfrentar uma porrada de coisas. Os teatros públicos são necessários. Nós não temos nem mais roteiro em jornal. Porque o teatro não tem importância, acontece duas vezes por semana, não tem problema. Tirem o roteiro de cinema para ver o que acontece com o leitor de jornal. Zé Fernando – Eu concordo com tudo isso, mas comecei a fazer teatro no momento em que algumas coisas já estavam acontecendo. E quando a gente decide formar um coletivo, isso não era a única alternativa, existiam outras. Por exemplo, não fazer teatro. Eu não fiz escola de teatro, fazer teatro e montar um grupo era uma escolha. Meu grupo se formou na Faculdade de Filosofia (FFLCH-USP). Então, imediatamente, algumas questões se colocam. Não existe um público preestabelecido. E vamos descobrindo durante o trabalho que essa ideia de formação de público está muito ligada também ao desenvolvimento estético daquele coletivo. Um certo público vai se formando à medida que uma poética vai se definindo. E a ligação com a universidade é muito decisiva. Nosso público é potencialmente universitário. Outra questão que se coloca é: nós ainda não tínhamos um programa público que pudesse servir como modelo. Precisávamos também buscar alternativas e, nesse processo, precisávamos inventar lugares para poder fazer teatro. Não tínhamos os teatros comerciais da cidade. Então, a questão da sede aparece como algo decisivo. E depois tem que se manter o coletivo. Manter um coletivo significa manter um espaço de trabalho, e manter um espaço de trabalho significa, de algum modo, pôr algumas questões para a cidade, na relação com o público. Em alguma medida, essa questão da manutenção de um coletivo é algo decisivo para a gente. Eu sou de uma geração que ajudou a inaugurar o Fomento [Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, 2002], mas que também teve o Fomento como um porto, não seguro, mas como possibilidade de vislumbrar essa perspectiva da manutenção. Mas também a gente não teve o Fomento o tempo todo. Então é um problema muito sério para a nós quando passamos um ano e meio sem o Fomento, como fazemos? Você tem que inventar formas de manutenção, não de sustentabilidade, como o Celso Frateschi dizia nas discussões sobre o Fomento, mas formas alternativas. Isso implica um certo amadorismo. Teatro de Grupo é um pouco amador. Não necessariamente na qualidade estética, mas não é um teatro profissional no sentido estrito da palavra. Isso talvez coloque questões, porque talvez o objetivo não seja ser profissional. Talvez o objetivo seja outra coisa, que a gente teria que discutir. Mas tudo isso mudou a relação da gente com a ideia de uma política pública. Eu não concordo com o Tolentino. Eu tenho a impressão que o teatro vive ciclos no Brasil que, ironicamente, duram mais ou menos 10 anos. Se for pensar, na experiência paulista, na virada do TBC (1948) até o Arena, em 58, são 10 anos. A experiência que vai se radicalizando a partir do “Black-Tie”, em 58, até o AI-5, em 68, são mais 10 anos. A resistência que São Paulo deu na reorganização dos coletivos, de um lado, e na ida de outros para a periferia, entre 68 e 78, são mais 10 anos. E da fundação da Cooperativa em 79 até o Collor, em 89, são mais 10 anos. Zé Renato – Mas isso é inexorável? Zé Fernando – Não. O que estou querendo dizer é que, de tempos em tempos, algo acontece no país, que leva o teatro a ter que responder de alguma forma. Mesmo entre o Collor e o Arte contra a Barbárie, em 98, você tem um ciclo, e a experiência que temos do Arte contra a Barbárie até agora com o Fomento, é um outro ciclo. A fisionomia do teatro muda com o esforço de responder ao que está acontecendo fora dele. E nesse sentido, para a minha geração, a relação do teatro com o poder público ou com a ideia de uma política pública para o teatro, tem a ver com a percepção disso que estou chamando de “ciclos”, com momentos em que o teatro esboça uma relação com a sociedade. É como se a gente pudesse vislumbrar na experiência teatral a formação de um campo público de discussão que, por alguma razão externa, tem essa formação interrompida. E essas interrupções fazem com que a gente esteja o tempo todo condenado a retomar. Zé Renato – Essa análise é interessantíssima. De repente nos faz pensar: “O que vai acontecer nesse ciclo que começou agora, em 2008? Qual é a modificação que vai acontecer? Zé Fernando – Considerando o Arte contra a Barbárie, a formação da Lei de Fomento hoje, a gente vive o limite dessa experiência com o Fomento. Porque é óbvio que a lei potencializou uma perspectiva, mas ela não sustenta isso. Os grupos não conseguiram produziram uma alternativa, e agora isso está no limite, que condena a própria existência dos grupos fundadores desse processo. Tolentino – Eu só quero reiterar: na abertura de um campo, foi maravilhoso. Mas o problema é que não se pode ficar dependente disso. Zé Fernando – Quando digo que divirjo, na verdade a divergência talvez seja mais nominal. Tenho a impressão que a gente precisa criar alternativas, mas que a bilheteria, como ela é entendida comercialmente, talvez não seja a única alternativa. Tolentino – Olha, aprofundando um pouco isso. Você, viajando para fora do Brasil, vê que os países que geraram um melhor uso do teatro como meio alternativo de contato social são aqueles aonde existe um teatro profissional mais sólido. Zé Fernando – Você está pensando em que modelo? Por exemplo, com exceção talvez dos EUA, o modelo francês e o modelo alemão têm investimento do Estado. Mas o Estado é entendido de uma maneira muito diferente. A França é diferente da Alemanha. Se pensar no modelo francês, o Estado repõe, pelo menos ideologicamente, essa ideia de uma esfera pública, que tem a ver com a história da França e o modo como a França entende essa esfera pública. A Alemanha se apropriou do modelo dos teatros livres e do teatro proletário no início da República de Weimar, e de certo modo assimilou isso a uma política de Estado. Então são alternativas. Tolentino – A Argentina, por exemplo. A Argentina vive hoje um teatro comercial em um momento pleno e um teatro alternativo, independente, que vem também da tradição deles. E a coisa mais interessante é o trânsito de artistas e público pelos dois tipos de teatro. Camarim – Esse teatro alternativo na Argentina é subsidiado? Tolentino – É subsidiado, mas, você conversa, por exemplo, com o Daniel Veronese, que faz peças no teatro comercial e consegue arrastar um pouco do empresariado para experiências alternativas. Quando falava de modelos, estava pensando mais na Argentina antes de tudo. Zé Fernando – Já é diferente da perspectiva da mera bilheteria. Existe uma tradição do teatro público dos anos 2º semestre • 2010 • 9 30, a ideia da associação de espectadores. Eu não sou contra o trânsito das esferas, muito pelo contrário. Mas acho que teríamos que repensar esses modelos e, na verdade, estabelecer outros modelos. Zé Renato – Você acha que o poder público não desenvolveu o interesse pela cultura? Zé Fernando – É que a gente fala “o poder público” de maneira abstrata. Não podemos esquecer que o Estado brasileiro está a serviço de alguma coisa que não é a dimensão pública. E que, no entanto, o teatro que a gente faz, coloca em discussão a necessidade de uma dimensão pública. Essa contradição temos que entender. Quando reclamamos do programa público, não estamos reclamando um programa estatal, estamos estabelecendo uma contradição no interior de algo que não é público no Brasil. O Estado não é público no Brasil. Tolentino – Eu só quero voltar um pouco, vamos falar dos modelos europeus, são outros modelos de cultura, mas aonde a relação com o público é fundamental. Por exemplo, no caso de um Peter Brook, o Estado cobre o que o público não cobre. Zé Fernando – Na Alemanha o modelo é 80% estatal e 20% bilheteria. E tem que ter esses 20%. Se o teatro não consegue... Tolentino – Mas essa é a questão que estou dizendo, não que a bilheteria mantenha completamente, mas que a bilheteria seja uma parte. Zé Fernando – Ela codifica uma relação. Tolentino – Ela codifica uma relação. Mesmo que seja a preços populares, mesmo que se faça programa para públicos de baixa renda, mesmo que se faça todo tipo de coisa possível, mas é importante que o espectador pague pelo que ele assiste. Zé Renato – Essa foi uma briga que tivemos durante muito tempo, no começo do Sesi [Teatro Popular do Sesi, 1948], com o Osmar Rodrigues da Cruz, que implantou essa política de não cobrar seus ingressos [Cruz dirige o espaço a partir de 1951]. Briguei muito com ele. Agora, quando eles começaram a querer cobrar, diminuiu muito a freqüência, o que é um problema. Zé Fernando – Com a experiência do Fomento, a gente só se pôs a cobrar bilheteria por conta da manutenção do espaço, porque mais ou menos vinculado ao fato de ter um financiamento público com a necessidade de uma bilheteria no mínimo popular. Mas há a necessidade de manter o espaço, isso coloca questões que vão para além do Fomento. Tolentino – Essa é outra questão, quer dizer, você está em uma cidade imensa, com desigualdades brutais, alguns programas poderiam ser implantados para o acesso de um público que está excluído, que não faz parte. Mas isso 10 • Camarim • nº 45 é outra questão. E acho que, ai, nesse sentido, o Fomento pode ter aberto muitas portas, ter gerado teatros em regiões que não tinham antes. Zé Renato – Eu tenho uma experiência agora que é o seguinte. Fui fazer apresentações em periferias de um espetáculo que montei do Carlos Gomes, nos CEUS. Fizemos 20 apresentações em espaços que eu não conhecia. Fiquei fascinado com a possibilidade. Eles têm teatros ótimos, muitíssimos bem montados. É uma estrutura fantástica. Eu acho que, de repente, o Fomento podia fazer isso. Colocar um grupo que tenha demonstrado a sua continuidade de trabalho, qualidade de trabalho, num desses teatros, durante cinco ou seis anos. Tolentino – Ou aproveitar um grupo do local. É o mais indicado, na verdade. Zé Renato – Mas isso tinha que ser feito, daqui a pouco o teatro vai se deteriorar se não tiver gente interessada em desenvolver um trabalho lá. Zé Fernando – Independentemente da tendência política, o modo como essa dimensão pública do teatro é encarada pelo governo de ocasião é que é determinante. Se há alguma coisa produtiva na experiência dos coletivos, é que várias coisas se explicitaram. Primeira, é que não existe teatro sem dimensão pública. Não existe dimensão pública se não há continuidade dos projetos sociais e culturais. E no Brasil, isso não é a lei. Tolentino – E no próprio governo, a mudança de um secretário pode gerar uma mudança radical. Independente do que ele seja, de direita, de esquerda ou de centro. Zé Fernando – A gente pega a experiência em âmbito nacional do que foi o [movimento] Redemoinho, todas as contradições se evidenciaram nos últimos 5 anos, dentro de um único governo, e na relação com esse governo. Eu não estou criticando simplesmente esse ou aquele, o que eu estou querendo dizer é que essa dimensão pública não é uma evidência. Quando se fala “público”, se confunde com estatal e eu acho que os movimentos elaboram isso de maneira muito confusa. Zé Renato – E como é que está seu grupo agora? Zé Fernando – Meu grupo vem de uma crise... [risos] Mas veja, é um processo. Na passagem dos 20 para os 30 anos, muitas definições se estabelecem. As pessoas precisam de casa, ter filhos etc. Mas a grande questão para a gente se deve a essa relação entre manutenção e necessidades. Eu fico pensando, se a gente olha a fisionomia desses grupos surgidos nos anos 90, como eles eram lá e como eles são hoje, houve uma mudança interna em todos esses coletivos, ou na grande maioria deles. E essa mudança de fisionomia, [integrantes que saíram, entraram], essas mudanças todas, penso, têm a ver com o processo de definição. Certamente iniciamos um outro ciclo, que é um “sobreviver ao Fomento”, dar um outro destino a ele e pensar alternativas que até agora não apareceram. Camarim – No Tapa, por exemplo, como é que você [Tolentino] pontua essas questões? Tolentino – É isso que o Zé [Fernando] está falando. A Fernanda Montenegro falou uma coisa maravilhosa. Que o teatro brasileiro era um e eles partiram no trem do mambembe no início dos anos 60 e isso consome. Aquele trenzinho do mambembe que atravessava o Teatro Municipal, até que o Jânio [Quadros] saiu pelas portas do fundo, bateu a porta, e aí todas as ilusões foram por água abaixo. Temos ciclos de prosperidade, de dívidas, de crises internas. E você está constantemente mudando sua feição. Por outro lado, você vai afirmando sua feição. Essa ideia, por exemplo, que os dois “Zés” falaram sobre o amadorismo, foi uma ideia que permeou o Tapa, isso está no nome do Tapa [Teatro Amador Produções Artísticas]. E acho que a grande dificuldade é você fazer conviver o profissionalismo com o amadorismo. É você congregar essas duas coisas ao mesmo tempo. E você tendo que viver disso... Eu acho honrado viver do seu ofício. O que não quer dizer: você vai ficar milionário com o seu ofício. São coisas muito diferentes. É um trabalho como o de um sapateiro... Zé Fernando – Tão precário e flexível quanto de um sapateiro... Tolentino – Mas existem sapateiros amadores que são maravilhosos. E existem sapateiros que não são artesãos, que deixam de ser artesãos. Essa convivência do artesanato com a sobrevivência é o equilíbrio que você precisa rever constantemente. Zé Fernando – Mas também temos que desmistificar uma questão sobre o “grupo”. Porque é evidente que para a minha “geração” a experiência do grupo é decisiva, mas dando aula na EAD e vendo como as coisas acontecem, eu tenho a impressão de que, a partir de um certo momento, e essa é uma das contradições do Fomento, o Teatro de Grupo aparece como mais uma alternativa econômica, e isso é um problema. Todas as questões que antes vinham com a ideia de grupo, que tem a ver com as crises desses coletivos, hoje elas estão amenizadas ou há uma espécie de “ideologia” do grupo que é muito precária. Eu sinto, há uma espécie de politização forçada no movimento teatral, que faz com que o grupo seja a única alternativa, e não é. Tolentino – Quando eu falo da questão do FMI, é isso. De vez em quando você tem que recorrer ao dinheiro público porque você precisa sair de uma crise fora do normal. Mas quando você se acomoda nisso, vira a única alternativa que você tem, isso pode ser meio doentio. Zé Fernando – É uma contradição. O teatro tem o tamanho do espaço público nesse país, portanto ele é muito pequeno. E teatro é espaço público. Quando a gente perde essa dimensão, e a discussão se dá só no âmbito econômico, nós não estamos mais discutindo teatro. Camarim – Saindo um pouco da questão econômica e da manutenção, pensando no plano estético e de linguagem, vocês têm prazer no teatro que vocês assistem hoje? Zé Fernando – Isso me interessa muito como uma questão. Nós vivemos uma experiência que não está sendo percebida criticamente. Ela pode ser lida como uma catástrofe, ou mediocridade, mas também como um momento decisivo para o teatro. Porque que nos últimos anos – e a experiência dos coletivos têm muito a ver com isso – os grupos e, portanto, a dramaturgia, foram empurrados por um choque de experiência que não é pequeno. E isso tem produzido um tipo de cena e um tipo de dramaturgia que podem até ser precários, mas que estão elaborando, com os instrumentos que têm, uma experiência que é nova. Temos um esboço de uma estética que tem muito a ver com a precariedade de manutenção, de formação, de contato com a sociedade. Mas essa precariedade, ela está ganhando uma forma em cena, que é nova. E que a gente não está conseguindo, do ponto de vista crítico, perceber o funcionamento disso. E portanto debater isso e dar consequência a isso. A gente vive um momento decisivo, que é um momento de limite e esse limite está sendo intuído cênica e dramaturgicamente. Mas essa intuição, que é também uma forma, precisa ser discutida, precisa ser elaborada criticamente. Acho que esse é o impasse atual. Nesse sentido, eu acho que ou damos um salto ou recuamos. E acho que nós já estamos começando a recuar, porque o outro lado disso seria alguma coisa acontecer na sociedade, e nada está acontecendo na sociedade. E o teatro não é campo de milagre. Então vivemos um limite que é social também. Tolentino – Mas acho que essa dificuldade é inerente ao próprio fazer teatral. Uma vez me perguntaram: “Quem são os bons dramaturgos brasileiros de hoje?” Eu não posso dizer. Porque eu estou num momento “X”, além disso tem meu gosto estético, a questão do que é oportuno e o que não é oportuno. É difícil você analisar criticamente o teatro no momento em que ele está acontecendo. Dando um salto no passado, aconteceram experiências que foram hipervalorizadas, ou sub-valorizadas, e que se revelaram de outra maneira quando o tempo passou. Então acho que isso que o Zé [Fernando] está falando é superimportante. É muito difícil você olhar para o que está acontecendo e dizer: “Isso é o laboratório de uma coisa que vai ser importante”. Tomara que seja. Mas é difícil você dizer que é uma porcaria ou que é uma coisa importante. Você não sabe com que grau de comprometimento você está analisando isso. Eu acho que essa é a grande dificuldade para analisar alguma coisa no 2º semestre • 2010 • 11 calor da luta no campo da arte. Além disso o teatro acontece em um momento e no seguinte ele acaba. Você pode rever o Van Gogh cem anos depois. Mas uma obra teatral você não pode rever cem anos depois. Então, essa é a grande dificuldade crítica do teatro. Zé Fernando – Mas isso também coloca uma questão: talvez a gente tenha que mudar os critérios de avaliação dessa profissão. Zé Renato – Houve um hiato importante na história desse desenvolvimento, que foi a época da ditadura. Produziuse, sim, na época da ditadura, mas houve muitos problemas. Então, todo mundo esperava que de repente acontecesse um boom do teatro com a democracia e isso, eu acho, só está acontecendo agora. Você [Zé Fernando] não acha? Zé Fernando – Certamente. Como o século XX ainda continua no século XXI, talvez a ditadura só esteja acabando agora, como processo social. Talvez aquele processo só agora seja realmente abertura. Zé Renato – Pessoalmente, a partir dos anos 60, comecei a deixar um pouco de lado a literatura estrangeira ligada ao 12 • Camarim • nº 45 Eles não usam black tie – Teatro de Arena teatro e mergulhei muito mais na dramaturgia brasileira. Teve o “Eles Não Usam Black-Tie”, e eu comecei a me interessar profundamente pela dramaturgia brasileira. Arrependi-me em determinado momento e retomei o estudo de autores estrangeiros. Eu participei recentemente de um júri de um concurso de dramaturgia Brasil-Portugal e é impressionante a diferença entre os interesses dramatúrgicos dos autores do Brasil e de Portugal. O número de autores brasileiros que escrevem sobre a realidade brasileira – mal ou bem -, é maior do que os portugueses que escrevem sobre Portugal. É impressionante como lá o lírico, o lúdico, é muito mais desenvolvido do que o nosso lado lúdico aqui. A dramaturgia brasileira está preocupada com a relação humana muito mais do que com outras questões. É impressionante a quantidade de textos que a gente vê ligados a essa problemática no Brasil todo. Eu acho que nós vivemos um momento extremamente importante. Se houvesse um governo que se interessasse em pesquisar essa questão, levantar isso, concretamente, através dos grupos ou através de uma secretaria especializada em desenvolver essa cultura, esse lado cultural da dramaturgia, nesse momento encontraria coisas fantásticas. Tolentino – Isso tudo que o Zé Renato está falando está acontecendo de alguma maneira. Está surgindo uma dramaturgia e um fazer teatral diferentes. Isso não tenho dúvida. Sou mais otimista que você [Zé Fernando], não acho que a gente vai retroceder não. Acho que a gente vai caminhar. Zé Fernando – Eu vejo isso na experiência do meu coletivo. Às vezes você aponta para caminhos que a realidade, inclusive a econômica e a política, te forçam a recuar, a desviar, a interromper. Tolentino – Pareço um velhinho falando [risos]. O que minha experiência me diz é que você retoma esse caminho depois. Você retoma a armadura, entendeu? Zé Fernando – Mas, às vezes, num processo coletivo, o custo desses recursos é muito alto. Tolentino – Claro, mas você retoma. Você retoma e vai vendo o enraizamento desse trabalho. Eu não consigo ser pessimista nesse sentido. Acho que na sua idade [risos], eu me desesperava quando acontecia isso, entende? Porque você vê que está avançando, mas de repente está recuando. Contudo, daqui a pouco, retoma o trabalho mais preparado. E o próprio coletivo retoma isso de uma maneira mais madura. Zé Fernando – Quando eles sobrevivem... Tolentino – Quando eles sobrevivem. Mas isso é nossa função. Zé Fernando – Sim, mas eu digo: isso que o Zé [Renato] está falando tem um dado decisivo, eu não acho que seja o Estado que deva incentivar essa dramaturgia, não se trata de um balanço de produção, ou de uma mera pesquisa. Eu acho que falta à nossa experiência uma tomada de posição política, não no sentido partidário, mas de perceber a divisão política. Tolentino – Misturamos a questão da polis na política, do sentido do termo, com partidarismo. Zé Fernando – Agora, a dimensão política da nossa experiência implicaria perceber o que há de esteticamente comum naquilo que fazemos. E quando digo esteticamente comum, não é que a poética dos Narradores tem a ver com a poética do Tapa, muito pelo contrário. Mas talvez possamos encontrar um tipo de interrogação que atravessa essa produção e que faz com que a gente possa estar aqui conversando. Essa dimensão coletiva, que perdemos no sentido de que não há uma estratégia que nos mobilize, por conta da sobrevivência, estamos o tempo todo inventando pequenas táticas de sobrevivência e com isso vamos seguindo, mas também nos atropelando. Zé Renato – Talvez seja o fato de eu ter muito mais idade que você, sinto uma urgência de resolver... [risos] Camarim – Vamos pensar um pouquinho na recepção das obras, no espectador. Com quem que vocês conversam hoje? Na medida em que avançam os grupos, os experimentos aumentam, esse espectador também está entrando por essa porta, permite-se assistir a um clássico e a outro trabalho mais radical, mais experimental? Tolentino – Em uma cidade desse tamanho, se a gente falar do público, é uma loucura. Zé Renato – Eu não sei, acho isso meio ridículo, você me desculpe. Eu ouvi a Maria Della Costa dizendo: “Porque o meu público quer isso...” A gente achava isso muito engraçado numa determinada época. Eu, pessoalmente, acho que não há diferença nenhuma entre o público dos anos 50 e o público de agora. Apenas o público de agora tem informações da televisão que o público daquela época não tinha. O público de 1950 tinha mais abertura de pensamento. Você podia discutir com o público. Hoje em dia você não pode discutir com o público que vai ao teatro, porque ele já tem ideias preconcebidas. Eu acho que muito mais do que naquela época. Não sei se eu estou enganado, mas à primeira impressão é o que eu sinto. Zé Fernando – Eu não posso comparar. Mas eu tenho impressão que, pelo menos no meu grupo, eu reconheço que há pessoas que vão assistir aos nossos espetáculos e que assistem a espetáculos de outros grupos, que comparam e discutem esses espetáculos. Isso porque são pessoas que participam de atividades, não só do espetáculo, mas outras atividades que a gente faz, sei porque reconheço a fisionomia desses espectadores. Às vezes, é quase como se você tivesse uma relação de comparsa do que de público, e isso talvez tenha a ver com a especificidade da nossa trajetória. Não acho que dá pra generalizar. Nós não temos uma experiência de grande público, se puser nossos espetáculos num teatro de 700 pessoas, esgotamos em um dia os espectadores que costumam nos assistir. No entanto, esse público é o que tem mantido o trabalho, e ajudado a desenvolver o trabalho nos últimos 10 anos. Acho que também a gente teria que pensar público de outra maneira. Tolentino – E tem uma coisa que é a cidade, o tamanho da cidade. Quando o Zé [Renato] falou isso dos anos 50, o cara demorava 10 minutos para chegar aonde queria. Hoje, a pessoa demora 10 horas se quiser se deslocar. Penso, que uma das grandes questões, e isso sim o Estado poderia fazer, é descentralizar, construir teatro, ou aproveitar os CEUS. A experiência dos grupos ocupando espaços públicos seria uma grande saída. Zé Renato – Mas não por seis meses. Tolentino – Não, por três, quatro anos, o grupo poderia criar uma identidade, convidar outros coletivos para participar disso, como a experiência que teve a Fraternal na Zona Sul [Teatro Paulo Eiró], que teve a Companhia Estável no Flávio Império [Zona Leste]. Mais do que verba, do que a questão econômica, a ocupação espacial seria uma coisa fundamental em uma cidade. Zé Fernando – Isso força os coletivos a se pensarem no tempo. Tolentino – E pensarem no espaço em que eles estão. O que eles querem com aquele espaço. Na verdade, se a gente fosse falar num salto qualitativo seria esse... Zé Renato – Poderiam ocupar os CEUs, por exemplo. Tolentino – Mas não com as pessoas rondando pelos CEUs, devem ser ocupados com calma, não eleitoreiramente. Precisamos de 20 ou 30 anos ocupando quatro CEUS depois oito e essa experiência vai sendo analisada aos poucos. Zé Renato – A exemplo da França. Tolentino – Onde o teatro é descentralizado. Você ocupou o Arthur Azevedo [Mooca], sabe a guerra que é você trabalhar com o funcionalismo público. Você não trata com o secretário. Zé Fernando – O administrador do teatro, que não tem formação nenhuma. Tolentino – Poderíamos ter um avanço total com essa experiência, em que diferentes estéticas fossem se desenvolvendo pela cidade, repensando o lugar onde essas pessoas estão, com que público estão lidando. Porque, sem dúvida, o público da Zona Sul é diferente do público da Zona Leste. Mesmo você falando genericamente do público de baixa renda. Você tem públicos diferentes. Ai, então, poderíamos discutir o que é o público. Zé Fernando – Se você considera os CEUs e os distritais, claro que para o tamanho da cidade é uma rede muito pequena, mas ainda assim é um aparelho teatral considerável. 2º semestre • 2010 • 13 Tolentino – Voltando à questão de verba, eu não vi, nas vezes em que o Tapa ganhou o Fomento, as pessoas que tinham votado no nosso projeto indo assistir aos espetáculos, indo assisti ao processo. A massa crítica falta. Porque entre o que eu escrevo e o que eu faço, pode ter uma diferença. Entre o que eu escrevo para ganhar um projeto e o que eu faço, pode ter uma diferença. Se isso acontece eu não posso ser contemplado. Não estou dizendo de ser cobrado radicalmente, mas que haja uma discussão crítica entre quem analisou os projetos e quem está executando. E ninguém quer mexer muito nisso. A comissão que julgou os projetos poderia visitar os grupos e discutir, colocar um pouco o dedo na ferida das nossas contradições ao fazer aquele projeto, e com isso teríamos uma nova dimensão crítica. Zé Fernando – Considerando aqui, no caso do Fomento, parte da comissão indicada pela própria categoria, o processo que leva à escolha dessa parte também precisaria ser repensado. Isso faz parte do problema. Camarim – Pode pensar também na crítica na imprensa mesmo. Zé Fernando – Ontem, eu li na Folha de S.Paulo, é verdade aquilo? Procura-se crítico de teatro? Camarim – É um episódio histórico, anúncio de crítico de teatro. Tolentino – Isso também é reflexo de uma crise que não se sabe onde começa, se é dentro do teatro ou dentro do jornal. Ou talvez as duas coisas. Zé Fernando – Mas acho que isso não incide sobre a nossa prática. Porque essa relação do teatro com a dimensão do espetáculo sempre vai existir. Eu acho que a grande questão é que os atores continuarão fazendo televisão, cada vez mais farão televisão, e o teatro é uma arte que... Não é que ela vai deixar de existir, mas ela vai ter que responder a isso e portanto vai ter que se transformar. Eu acho que a gente às vezes perde o bonde nessa transformação. E acho que a gente vive o momento que, querendo ou não, o teatro está mudando, a relação com a cidade está mudando. Não estamos conseguindo reinventar essas relações. E esse é o limite, inclusive, da crítica em relação à produção. A crítica continua analisando os procedimentos de cena, se é épico e se não é, claro que passa por ai. Mas a questão principal é se esses grupos têm reinventado a sua relação com a platéia poeticamente. Isso tem acontecido? Zé Renato – Você não acha que de repente o cinema sofreu o mesmo problema que o teatro, e reagiu de maneira diferente? Conseguiu encontrar uma saída? Zé Fernando – A diferença é que cinema é indústria. E portanto ele se resolve comercialmente. 14 • Camarim • nº 45 Tolentino – Cinema é indústria. Ai eu concordo inteiramente. Zé Renato – Só isso? Levaram os cinemas para outros caminhos, que não permitiram que a concorrência diminuísse. Zé Fernando – Eu acho que a saída é econômica e é interessante economicamente se produzir uma certa imagem do Brasil. Ontem eu fui assistir a um filme francês e o cineasta disse que começou a fazer cinema porque assistiu a “Pixote” [Hector Babenco, 1981]. O filme mostra um “Pixote” francês, e você começa entender que está acontecendo uma coisa na Europa que é um processo de degradação radical da sociedade que faz com que a imagem que eles produzem dessa sociedade seja completamente diferente. No Brasil, acho que o processo é contrário: cada vez mais o cinema vai produzindo uma estetização da miséria, uma estetização da política, que é muito perigosa. Filmes como o “Lula” [Fábio Barreto, 2009], ou mesmo filmes como “Cidade de Deus” [Fernando Meireles, 2002], têm um elemento de estetização que é mercadoria. Cinema é mercadoria, como no limite teatro também é mercadoria, mas a grande questão é como se elabora as contradições esteticamente falando. E acho que o cinema não está tão disposto a elaborar essas contradições. Camarim – Um ponto que vai fechando nossa conversa: pensar a figura do diretor. Temos três diretores aqui. O Zé Renato viu uma época em que era o primeiro ator, a primeira atriz, e depois isso foi se transformando. A gente tem uma recorrência que se fala do império dos diretores nos anos 80. Como é a relação de vocês como diretores dentro de seus trabalhos atuais? Como vocês se colocam, como é que vocês percebem a figura do diretor no teatro brasileiro hoje? Zé Renato – Eu sinto o diretor atuando cada vez menos no espetáculo. Claro que ainda orientando, criando e tendo a consciência da unidade necessária. Mas eu vejo crescer a importância do bom ator. Acho que a presença do ator no espetáculo determina o diretor. A troca entre o diretor e o ator é fundamental hoje. Muito mais importante do que era no passado. Eu sinto que se você não tem na mão um bom ator não consegue fazer nada. Você se esgota, se desgasta, e não consegue produzir o que você quer. No passado dizíamos: “Com esse espetáculo eu consegui chegar a 60% do que a montagem me sugeria quando li a peça”. Depois, na outra peça: “Acho que eu cheguei a 80% do que eu esperava alcançar com esse espetáculo”. Hoje, você está na mão do ator. Outro dia assisti a “Rainhas” [Cibele Forjaz, Isabel Teixeira, Georgette Fadel, 2008] com aquelas duas meninas ótimas. É um alívio ver, de repente, pessoas tão dedicadas que se entregam a criar um espetáculo desse nível. Vários espetáculos que assistimos ficamos desanimados de ver como o ator hoje em dia é relaxado. Isso é uma dificuldade que o diretor tem. Criar um grupo, desenvolver um grupo é fundamental. É importante que um diretor tenha nas mãos um núcleo de grupo, pelo menos, no qual ele conheça os atores e com isso consiga criar um resultado bom. É o caso do Tapa. O Tapa é um grupo de atores ótimos, é um grupo ideal para desenvolver um trabalho. Mas se você não tem isso, você fica batendo com a cabeça na parede. Zé Fernando – Eu comecei a fazer teatro em uma época em que essa figura do grande encenador ou não existia como uma evidência ou estava sendo colocada em xeque. Mas também era uma época em que você começava a ter outros modelos. Por exemplo, meu primeiro curso de teatro foi no Tapa. Entrei lá há 17 anos. Tínhamos modelos, era minha relação com atores, modelos que começavam a se estabelecer, como o Vertigem ou a Companhia do Latão. É um momento em que essa dimensão colaborativa do trabalho coletivo começa a aparecer como uma questão. Isso não elimina os autoritarismos, os egocentrismos, mas isso coloca no mínimo uma outra dinâmica de trabalho. Os coletivos que começam a surgir nesse período, são devedores dessa perspectiva, que é colaborativa, mas que funciona de formas diferentes em cada coletivo. Há coletivos em que a dramaturgia é mais decisiva para o trabalho. Em outros, a figura do diretor acaba redimensionando o trabalho dos atores. E há coletivos, como a São Jorge [de Variedades], que, embora tenha uma diretora, o funcionamento deles faz com que o trabalho do ator venha e organize essa dinâmica. Temos modelos diferentes, mas que, mais ou menos, colocam questões sobre o que é essa colaboração de funções, que estão preservadas e redimensionadas a cada caso. Não há um modelo único, você pega um grupo como o Folias, certamente a figura do diretor é decisiva. Mas se alguns atores não estivessem ali, o trabalho seria outro. E a ausência do dramaturgo atualmente faz com que o trabalho sofra um choque. Então, são dinâmicas de funcionamento que têm que ser repensadas a cada momento. Tolentino – Sempre fui muito fascinado pelo trabalho do ator. Acima de tudo é o que me interessa no teatro. Quando comecei a fazer teatro, não sabia nada, não sabia o que dizer para um ator. Eu ia dizendo intuitivamente. Depois de uns 10, 12 anos de carreira, comecei a me entender um pouco. Para mim o centro são os atores, não um ator. Às vezes você ouve: “O teatro é a arte do ator”. De um ator. Isso é o modelo de teatro do século XIX, ainda temos o sonho do João Caetano na cabeça. E às vezes isso acontece até dentro de modelos alternativos. Quer dizer, o grupo tem um discurso, tem uma estética, mas tem um protagonista absoluto. Tem outro modelo que é do diretor absoluto. São dois modelos que se contrapõem. Eu gosto do modelo conjunto, acho que comecei a fazer teatro por causa disso. Gosto dessa ideia de conjunto. Eu não me refuto do meu papel de diretor, mas gosto do todo. Quando entra um ator excepcional e outro péssimo, mesmo que façam um pequeno papel, para mim acaba o espetáculo. Acaba de uma maneira brutal. Cada um tem sua experiência nisso. A minha foi brigar pela ideia de um conjunto que jogue bem. Eu gosto de um bom jogo. Nossa Casa de Boneca – Teatro de Narradores 2º semestre • 2010 • 15 Teatro Chileno Eu creio que a maioria das pessoas que fazem teatro no Chile estão de acordo que esse teatro é bom, diverso e interessante. Nos últimos 20 anos novas gerações renovaram o cenário e as escolas de teatro. O Festival Internacional de Santiago a Mil é o principal evento cultural do país. Sem dúvida persistem problemas que turvam esse panorama. Por exemplo, o teatro segue como algo que ocorre exclusivamente na capital, Santiago. Por outro lado nem o público nem as subvenções do Estado são capazes de permitir que as pessoas de teatro sobrevivam exclusivamente de seu trabalho criativo. Sem dúvidas o teatro Chileno é um dos principais espaços de reflexões a cerca da história e cultura contemporâneas. Se faz com pouco dinheiro e salas que cabem cerca de 150 pessoas, o fundo estatal para as artes cênicas permite financiar produções modestas, dessa forma, o dinheiro não é suficiente para uma grande expansão cênica. Em geral, esse dinheiro, é acessível para uma companhia que está começando a aparecer nos meios de comunicação e a terem seus trabalhos criticados nos jornais. O teatro chileno não está organizado em torno de uma instituição ou personalidade, no entanto o público está atento para os grupos que estão surgindo. Quase todo o teatro chileno é independente. O principal esforço coletivo do teatro nos últimos 20 anos foi se encarregar do trauma da ditadura militar e a ansiedade gerada pela volta da democracia no ano de 1990. Durante a ditadura o teatro sobreviveu vital e criativo. Foi uma das principais 16 • Camarim • nº 45 estratégias de expor a brutalidade da ditadura evitando a censura retratou a marginalidade. O cenário se transformou em um espaço naturalista poético e onde a vida do pobre era a principal metáfora coletiva da submissão. Esta idéia foi desenvolvida principalmente pelo dramaturgo Juan Radrigan em obras como: El loco y La Triste. Mas essa não foi a única forma de pensar a ditadura na cena. O diretor e dramaturgo Ramon Griffero criou um teatro de grande sofisticação visual e complexidade dramática muito alinhado com a estética pós-moderna do teatro internacional dos anos 80. Griffero conseguiu influenciar gerações de criadores que começaram a ver a ditadura e seu modelo econômico como a expressão de um sistema de dominação muito mais completo e corrosivo que a simples repressão de fuzis. Até o final da ditadura Andrés Perez e seu Grande Circo Teatro impulsionaram um teatro espetacular que resgatava o mundo popular chileno, que se transformou. Sua obra, La negra Ester, era o principal evento cultural no final da década de 80 e em uma espécie de celebração da nova democracia. O que aconteceu nos 20 anos seguintes? É difícil dizer, muitos grupos renovaram outra vez o panorama teatral. Toda via, pensar o teatro hoje é um exercício mental necessário e urgente, porque há sinais claros que estamos diante do fim de um ciclo. Por um lado a direita voltou ao poder, pela primeira vez desde a ditadura de Pinochet. Por Tainá Azeredo Por Guillermo Calderón Pedro de Valdivia: la Gesta Inconclusa, da Companhia Tryo Teatro Banda outro lado o terremoto de fevereiro deste ano, que pos um ponto final dramático para muitos que pensavam que o regresso da direta já era tragédia suficiente. Muitos tentam explicar como uma presidenta socialista que terminou seu mandato com 84% de aprovação teve que entregar o poder a um candidato que é apoiador da direita “pinochetista”. Uma das opiniões que acredito consiste no seguinte: como o governo que sucedeu a ditadura se limitou a fazer pequenas reformas ao sistema econômico e político, depois de 20 anos a direita e a esquerda acabaram se tornando ridiculamente parecidas. Assim a alternância de poder não é possibilidade de mudança real, mas, significa somente a mudança dos técnicos administrativos que fazem o mesmo governo. E como a direita se entrincheirou dentro das empresas privadas celebrando seu milagre econômico, agora aparecem como os técnicos que vem para aperfeiçoar um sistema que precisa desesperadamente de mais empregos. Muitos previram esta crise... Especialmente porque os partidos de centro esquerda sacrificaram muito para manter a estabilidade e o status quo. Na verdade o poder nunca conseguiu resolver claramente os problemas de violações dos direitos humanos da ditadura. Nunca afastaram da vida pública os que apoiaram ou foram cúmplices de Pinochet, e que agora voltam ao poder com a superioridade moral concedida pela maioria dos votos nas eleições. Toda esta crise atual estava anunciada. E isso criou desde sempre um mal estar na cultura e no teatro. Muitos diretores e dramaturgos se afastaram das comemorações dos 20 anos de democracia e se transformaram em permanentes mensageiros das más noticias. A mensagem era que não podíamos comemorar um sistema que se convertia em um perigoso sucessor da ditadura. Isso pode soar como Teatro Chileno em Democracia – Historicidade e Autoreflexão Por Maria de La Luz Hurtado exagero, e até certo ponto é. Os planos sociais desenvolvidos na democracia e o desenvolvimento de uma clara institucionalização cultural são ganhos inegáveis da democracia, a vida do nosso país. Mas, o teatro entendido desde um certo princípio tinha que se encarregar do sentimento de toda uma geração que pensava que a nova democracia era uma grande decepção. Alfredo Castro e seu teatro das Mamórias é o principal criador desta geração. Rodrigo Perez, um dos seus antigos atores se tornou um dos principais diretores contemporâneos. Criou uma dramaturgia cênica para explorar temas como a tortura e a memória da ditadura, assim como novas apostas do teatro, como Juan Radrigan. Seus textos continuam sendo leavados a cena. O jovem dramaturgo Luis Barra o segue explorando o mundo da pobreza, o crime e a violência, revitalizando e renovando a energia do protesto anti-ditadura. O Teatro La Maria de Aléxis Moreno e Alexandra Von Hummel junto ao Teatro do Chile de Infante renovou a aposta na cena e na dramaturgia da última década. O trabalho de destaque do diretor Vitor Carrasco com texto Norte de Alejandro Moreno também foi um marco importante dos últimos anos. Se pode dizer que o trabalho do teatro chileno vai continuar vinculado a evolução política do país. A nova situação cultural vai criar condições para que o teatro se veja obrigado a assumir sua postura de protesto, compromisso e de elaboração intelectual e estética para dar conta das mudanças recentes do país. Desenhar um quadro das diferentes tendências do teatro chileno desde o regresso da democracia em 1990 até ao princípio do séc. XXI é um desafio que comporta várias dificuldades. Com vista a cumprir corretamente essa tarefa, é importante usar a noção de “historicidade”, dado crucial na elaboração da realidade feita pelo criador a partir de territórios marcados, desmarcados e levados por uma relação sujeito/ corpo histórica que implica, por sua vez, “a tarefa de encontrar a sua imagem ou as suas imagens que terão um impacto na sensibilidade histórica do espectador que se confronta com os eventos representados em cena”1. É importante notar que o campo teatral de Santiago, sede principal do teatro profissional chileno, é tanto denso como múltiplo, visto que ao núcleo sólido de teatro universitário e independente, que manteve as suas atividades durante a ditadura militar [1973 – 1990], é necessário acrescentar os grupos formados 1 Ver Leslie Damasceno, 2003, “The gestural art of reclaiming utopia: Dense Stocklos at play with the Hysterical-historica”, Holy terrors, Latin American women perform, edição Diana Taylor et Roselyn. 2º semestre • 2010 • 17 nas escolas universitárias2, o que representa um conjunto que contém dezenas de companhias em atividade nas antigas e novas salas ou espaços não-tradicionais. O crescimento é exponencial: em 2006, houve cerca de duzentas criações [contra vinte em 1960, quarenta em 1970; em 2000, contávamos cerca de cem criações de autores nacionais e sessenta de autores estrangeiros]. Será que o número abre espaço a saltos qualitativos? Poderemos ver alguma constante neste campo plural e heterogêneo? Creio que existem correntes subterrâneas, as séries em potências; as tradições representativas e as estéticas revisitadas. As escolas que podemos claramente identificar, apesar do seu caráter móvel. Para as compreender, é importante considerar dois momentos históricos que se opõe claramente, mas que apresentam, o que é meu postulado, uma ligação subjacente. Durante os dezessete anos do Governo Militar liderados por Pinochet, a resistência cultural centrou-se fortemente no teatro, pois o cinema, a televisão e a indústria editorial estavam sobre o controle de uma censura densa. O teatro acompanhou de muito perto os discursos críticos, a denúncia, a expressão de uma sensibilidade ferida pelas claras mudanças culturais e sociais que o país vivia. Com a distância, poderemos ver ai um período histórico onde se tomavam tanto riscos pessoais como riscos artísticos apoiados por um público que festejava e partilhava tal posição. Havia um “sentido” que unia o trabalho teatral à sua própria identidade. Numa segunda fase, quando a ditadura foi suprimida em 1990 por um primeiro governo de centro-esquerda da Concertação para a democracia, os diagnósticos das práticas culturais deixaram de ser claros e consensuais. Uma opinião bastante difundida afirma que o teatro pós-ditatorial na América Latina, incluindo o Chile, responde às obsessões dos autores ancorados nas 18 • Camarim • nº 45 Atualmente, contam-se vinte e seis escolas universitárias em Santiago e nas regiões, sem contar com os muitos institutos profissionais nãouniversitários. 3 institucionalmente, assistimos à aplicação de políticas de incitação à atividade teatral: concursos do Conselho Cultural para as criações, pesquisas, infraestruturas, etc. Concursos de Dramaturgia e da Secretaria Geral do Governo, abertura de salas nas comunas e centros culturais, etc. 2 biografias particulares que não são representativas nem de um pretenso espaço nacional nem de uma época em curso. Esta apropriação do privado seria uma invasão da memória, uma vontade de esquecer uma das histórias políticosociais mais dolorosas e conflituosas que se viveram recentemente. Seria um teatro despolitizado, virado para grupos cuja capacidade em reunir um público diminuiria ao mesmo tempo que a sua historicidade. Coloco-me contra este diagnóstico: penso que a memória histórica, assim como os temas mais urgentes da atualidade, constituem o material e a referência do teatro chileno pósditatorial, mas são abordados de uma maneira muito diferente daquela do movimento teatral anterior. Testemunhar ou denunciar já não chega: o retomar de práticas políticas e dos movimentos sociais que fizeram o fim da ditadura assumiram esta tarefa. Isto levou a pôr em prática uma corrente de reteatralização da cena para aceder a outras dimensões ainda ausentes da consciência social: passamos da crônica sociopolítica à simbolização artística da experiência. Novos paradigmas estéticos surgiram, tendo-se traduzido numa explosão de formas de expressão vindas da ambiguidade ou da poesia. conjugando dados pessoais e históricos. Trata-se de uma transição difícil, que consiste em redefinir o papel do teatro e repensar as suas necessidades e os seus modos de expressão3. Ao fixar o olhar sobre si mesmo, o dramaturgo reconhece-se como sujeito em situação de conflito e em autoreflexão. Muitas peças tomam como protagonistas os criadores do campo poético, dramático ou o pensamento científico inovador, considerando que os conflitos existenciais e políticos da criação são comparáveis e servem de ponto de partida para uma reflexão sobre os aspectos sociais no seu conjunto. No início deste novo movimento, próximo da instauração do governo da Concertação, um teatro mais simbólico e hermético coloca-se em prática, e, à medida que os dezessete anos destes governos decorrem e que os problemas do modelo econômico neocapitalista e da política do consenso surgem, os temas não-resolvidos, da memória e da equidade regressam a um teatro crítico e referencial. Desenvolverei estas duas transformações, ao evocar dois períodos desta transformação: os anos 1990 e o princípio dos anos 2000. Sensibilidades de fim de século, os Anos Noventa Os anos noventa abrem-se sobre uma nova sensibilidade, um novo posicionamento do teatro face a ele mesmo e à sociedade. É uma geração de renovação que assegura a postura, particularmente debaixo da disciplina dos encenadores que criam as suas próprias peças, que projetam e promovem, assim, a sua estética cênica. Esta é a geração que não viveu o período anterior ao governo militar e não respirou o contexto restritivo dos anos setenta e de grande parte dos anos oitenta. A re-ligação que se segue adota as chaves da interpretação mundial de final de século, que coincide com a queda das utopias e com um clima Intelectual pós-moderno que, longe de pregar radicalmente as suas próprias posições face à era moderna, abre-se, ao contrário, a uma quantidade de experiências e de fontes de inspiração, indo das mais arcaicas, às da cultura audiovisual globalizada. A vontade de construção dramática e cênica coloca uma série de questões que revelam mais uma exploração sensível do que certezas racionais; traduz-se por uma linguagem da distorção, da extrapolação, da fragmentação da história e das personagens. O realismo cede perante o grotesco, o excessivo e carnavalesco, ou a estilização onírica fortemente simbólica, que despe a cena e leva-a para o minimalismo. Lucidez carnavalesca O grotesco faz a sua aparição com toda a panóplia de uma mascarada medieval e num jogo de elementos cênicos. As personagens evidenciadas pelas máscaras, roupa, e disfarces arquetípicos, deslocam-se em palcos imensos, com uma gestualidade dinâmica, por vezes expressionista, evocando um ritual ancorado nas tradições populares, recuperadas debaixo de um olhar irônico, festivo e desprovido de preconceitos. Este teatro sincrético por excelência reúne as correntes americanas, européias e orientais mais diversas, misturando teatro, circo e guignol, commedia dell’arte e teatro stanislavskiano. Esta corrente cresce na capacidade do grande espetáculo teatral em reunir multidões para partilhar uma festa de sentidos e renovar-se com uma dramaticidade inscrita nas suas raízes e na sua Identidade coletiva. A história e o passado tornam-se em metáforas do presente, e a atualização teatral recupera, simultaneamente, o sentido da comédia grotesca e da tragédia. Neste movimento, podemos reparar nas criações de Andrés Pérez e do seu Gran Circo Teatro (La Negra Ester, 1988), Popol Vuh, La Consagración De La Pobreza, Madame de Sade, Nemesio Pelao, Oué Te Ha Passo [1995]; os trabalhos da companhia EI Sombrero Verde, El desquite [1995]; assim como os mimodramas de Maurício Celedón (Ocho Horas, Taca-Taca Mon Amour); os do Circo Imaginário de Andrés del Bosque (El Tony Calunga ou EI Papa Y La Virgen): a produção polivalente do Teatro Imagen sob a direção e criação autoral de Gustavo Meza), Murmuraciones Acerca De La Muerte De Un Juez; La Rema Isabel Cantaba Rancheras. Algumas destas obras são baseadas em autores chilenos (Roberto Parra. Alfonso Alcalde. Hernán Rivera. Cristian SotoJ), em autores americanos ou em autores de A companhia esteve já no Festival de Almada 4 Tainá Azeredo Neva, do En el Blanco outras latitudes (Dário Fo, Mishima) O grupo La Troppe partilha este logo carnavalesco, mas, no seu percurso pelo conto Fantástico, utiliza um Jogo de Imagens mágico, surpreendente e superabundante em efeitos cênicos. Paralelamente ao seu arcaísmo referencial, convoca a linguagem da banda-desenhada e do cinema, com gags, mudanças de enquadramento e pontos de vista. E torce a história até extrair dela a sua essência. O grupo adapta, com uma carga pessoal forte, histórias de aventuras que colocam em cena o percurso iniciático do herói à procura da sua humanização, tal como em El Quijote [Cervantes, em Et Rap Dei Quijote, 1989). Pinocchio (Collodi), Viaje Al Centro De La Trerra, (Verne), Gemelos. (1999). baseados em Le Grand Cahier de Agotha Kristotf. e Jesus Betz (2003. Bernard y Roca)4 A vivacidade deste teatro, que exorcisa as sequelas geradas pelo fato de ter sido “filho da ditadura”, de ter crescido sem pais, sem mestres e que, durante os anos 90, levou o grupo a mudar de 2º semestre • 2010 • 19 nome – Los que No Estaban Muertos tornou-se em La Troppa – revela-nos um espírito novo, inimaginável para um Chile das décadas anterior. Poetização da cena A estilização simbólica é uma das características que define o teatro mais intimista. Tal ideia vai de um teatro grotowskiano a uma forte gestualidade corporal, com uma composição bordada de ícones e uma vocalização em contrapontos polifônicos, e formas, semelhantes às distroções artaudianas, que criam uma ruptura áspera com esta estética. O palco é concebido como um local escritural de uma experiência polimórfica que convoca um espaço inconsciente, onde entrem as emoções, os sonhos, e todos os tipos de transgressões da ordem social estabelecida, tudo o que palpita nas zonas de sombra e que apenas pode aflorar num jogo de espelhos côncavos. A fragmentação do texto vem apoiar-se na pesquisa interior implacável, para atingir o fundo das coisas e associá-Ias aos espectadores, dentro do seu processo. Esta aplicação excessiva alimenta-se da memória pessoal dos criadores e tende para uma poetização da sua experiência para a abordar, a partir da rede simbólica, sob diferentes ângulos. Uma das suas motivações é mostrar uma experiência coletiva da dor e da morte, da angústia e da loucura, da transgressão da corporalidade e da dignidade humana. A violência física que supõe a tortura dos corpos trabalha numa translação do campo subjetivo para o campo social, do campo de imagens pessoal àquele inscrito na coletividade, da memória pessoal à memória histórica. O autor e dramaturgo Ramón Griffero e a sua companhia Fin de Siglo adoptam cedo esta tendência em obras como Cinema Utoppia (1984), cujo sujeito é o caminho de perdição vivido no exílio. La Morgue 99, pesquisa onírica à volta dos presos desaparecidos, 20 • Camarim • nº 45 e o regresso nos anos 90 em Extasis (1993). De seguida, particularmente com Brunch, o autor volta à temática do fechamento metafísico e reflete sobre o caráter absurdo que recai sobre a morte nas prisões clandestinas, onde o detido é despossuído de qualquer identidade. É provavelmente Alfredo Castro, com o Teatro de Ia Memoria, que refina melhor esta expressão. Na sua Trilogia Testimonial De Chile, especialmente com as peças La Manzana De Adán (1990) e Historia De La Sangre (1992), interroga personagens altamente transgressivas, que coabitam com a morte devido a uma consumação impossível do desejo amoroso, a base de uma identidade perdida entre o ser e o dever-ser [travestis prostituídos, criminosos passionais]. As criações de Claudia Echenique no teatro da Universidade Católica são igualmente emblemáticas, assim como as peças de lnês M. Stranger: Cariño Malo e Malinche (1993). Na primeira peça, interrogamos as experiências femininas de abandono, dentro dos papéis tradicionais do gênero, da maneira de as ultrapassar através dos rituais de assassinato do ser amado, do luto e do regresso às origens, e de como elaborar uma nova identidade feminina. Na segunda, é a conquista ancestral do corpo e da alma feminina, na guerra de invasão territorial e étnica, que funda a reflexão sobre a nossa mestiçagem e a dualidade seduçãoviolência. O quinto centenário da conquiste (1992) é uma data central para a releitura da nossa identidade, à qual outros autores se tentaram, como Jorge Diaz (EI Guante De Hierro). Algumas peças do dramaturgo Marco Antonio de Ia Parra inscrevemse também nesta tendência. Elas mergulham nas zonas sombrias do amor trágico, nas feridas do corpo causadas pelas insatisfações tortuosas do espírito, dos caminhos acidentados e ameaçadores da violência política do Estado ditatorial, dos desvios perversos da memória e do esquecimento face ao traumatismo coletivo das feridas provocadas. A particularidade de Parra está em realizar fusões e colocar luz entre o substrato obsessivo da nossa histórica recente, assim como os mitos, as personagens e os cantos centrais das tragédias gregas e do renascimento: entre os mais representativos, encontramos Ofelia O La Madre Muerta, encenado por Rodrigo Pérez,e La Puta Madre (que retoma o mito de Cassandra), dirigido por Viviana Steiner. O tema da memória e da identidade também é abordado, de maneira alegórica, por De la Parra em La Pequeña Historia De Chile (1995) no Teatro Nacional da Universidade do Chile, sob a direção de Raúl Osorio. Este encenador realizou a adaptação do romance de Carlos Cerda Una Casa Vacía, no qual o espaço nacional que é reencontrado opera como um veículo da memória: um exilado que regressa ao país descobre, por diferentes e sensíveis caminhos emocionais que a sua casa de infância, onde deveria haver uma reconciliação com a sua ex, está repleta de marcas dolorosas da sua utilização como centro de tortura. É preciso lembrar as criações, nessa década, de autores franceses e alemães, cujas obras são uma imagem crua das sociedades que apresentam, de forma angustiante, como um cruzamento entre vidas privadas e projetos sociais abandonados. É o caso Heiner Müller, cujas peças Quartett (R. Pérez), Médée Matériau (V. Steiner)e La Mission (A. Stilmarck) foram objeto de encenações inovadoras quanto à cenografia e interpretação. Do mesmo modo, a criação de várias peças de Bernard Marie Koltès por Viclor Carrasco e Tito Bustamante introduziram no Chile a palavra poética e desencantada das personagens marginalizadas das sociedades urbanas pós- intelectuais. Croisades, de Michel Azama ou Exécuteur 14 de Abel, Hakim (interpretado por Héctor Noguera e o Teatro Camino), situamos num estado de desconstrução perversa causado pela guerra. Teatro político e teatro do corpo no teatro chileno do novo século Uma vez explorados, na última década, os interstícios entre subjetividade e história, o novo século, mesmo quando mantido nesta tendência, regressa a uma história factual, testemunhal e concreta: urna das grandes fontes do teatro chileno nos primeiros cinco anos dos anos 2000, enquanto construção/convocação da sua história, e o veículo dentro do espaço real. Não regressamos ao realismo, mas descompomos e voltamos a compor os elementos teatrais, onde a palavra e o corpo do ator reencontram um papel importante. Aqui estão algumas das características: Poder da palavra em cena Alguns encenadores e dramaturgos, como Rodrigo Pérez, centram o seu teatro numa potência crítica e subversiva que supõe a colocação de um texto forte em cena. Depois da encenação nos anos 90 de Malentendu de Camus e de Madame De Sade de Mishima (num duelo teatral com Andrés Pérez que propõe simultaneamente um tipo de encenação mas com uma estética oposta), até a Troyennes de Eurípides, Rodrigo Pérez coloca o ator numa cena vazia e despida de qualquer artifício. A gestualidade e a caracterização dos atores concentramse mais na interpretação do texto do que na personagem, mais na pesquisa da justeza do texto que na maneira de o dizer justamente. Rodrigo Pérez afirma que subtrair a palavra à manipulação é um procedimento político, tal como a alienação e a duplicidade às quais ela é submetida na retórica oficial, onde funciona como uma arma hipócrita de camuflagem. Esta linha teatral culmina em 20052006 com a trilogia La Patria, que junta as peças Madre, Padre e Cuerpo, escritas e encenadas por R. Pérez, Em Cuerpo, por exemplo, uma parte da peça é construída com declarações feitas aos chilenos sobre as suas experiências em prisões políticas e as torturas que receberam, presentes no relatório Valesh (1990). Estes textos, marcados por sinais da identidade nacional de vários emissores, tornaram-se numa metáfora coletiva, ao terem sido tornados publicamente visíveis e audíveis. O caráter cru deste tema é abordado por Pérez com estilização e contenção; as narrações são realizadas em tom neutro e provocam reações nos corpos dos bailarinos e dos atores que se movimentam. Os corpos dão a ver a sua fragilidade e vulnerabilidade a um nível máximo, pois existe urna ruptura na diferenciação entre vida privada e pública, entre o imperativo ético de se cuidar, respeitar e preservar a vida, e o impulso transgressivo de a violar, de a expor e de se magoar por e nos corpos das vítimas. Aqui, a escolha de R. Pérez é inverter as modalidades clássicas: na tragédia grega, o que assusta não é o ato de violência sobre o corpo em si [que está excluído da cena], mas o fato de se ouvir as palavras que nomeiam o ato culpado, ao situá-lo no território da cultura. Hoje, em que as palavras estão desnaturadas, o que provoca o horror é o regresso às origens: o ato contra o corpo, a materialidade do ato de violência. O corpo é posto em contato com as palavras que falam da ação exercida sobre si (desta forma, a sabedoria do corpo e a sabedoria sobre o corpo entrecruzam-se). O ato de tortura sofrido ou realizado pelo ator explica que a segunda cadeia de textos em Cuerpo sejam citações de Pour Louis De Funès, de Valère Novarina5, sobre a violência psíquica e física que sente o ator em cena. Um outro tipo de exploração da relação teatral entre a experiência e o corpo entra naquilo que chamamos de texto-ação, onde as palavras percorrem e põem em prática a aliança entre um empirismo e uma realidade brutal, entre um sonho e o imaginário. É o caso de Hombre Con Pie Sobre Una Espalda De Niño6, de Juan Claudio Burgos, onde, através de um exercício exacerbado da palavra, se chega ao momento psíquico em que se fundem a sexualidade e o poder, entre o delírio místico e a dissecação detalhada e sensorial do corpo factual. A história da percepção deste pé de homem sobre as costas da criança num ambiente sagrado, problematiza a ambiguidade de senti-lo como uma agressão humilhante, abusiva e traumatizante, como cumprimento do desejo obscuro de uma iniciação erótica homossexual. Face à ausência dos pais – uma mãe que não vê o que não deseja ver e a onipresença do pai –, este pé representa, no fundo, a bota militar, dentro de um salto metafórico que vai do privado ao público, e que marca o contexto biográfico, histórico e político do autor. Recriação de períodos traumáticos da história coletiva O teatro do início deste século voltou aos antigos mártires coletivos, como, por exemplo, na peça Santa Maria De Las Flores Negras, da companhia Patogallina, tirada de um romance histórico de Rivera Letelier sobre a matança brutal de mineiros de salitre e das suas famílias no princípio do séc. XX no norte do Chile. O teatro das marionetes, a maquinaria cenográfica, as personagens arquetípicas, a cadência imposta pela música ao vivo que impõe o ritmo dos movimentos convencionais dos atores e das marionetes, dão ao espetáculo um caráter épico de grande envergadura, seguindo a amplitude do horror que se conta. Este texto é apresentado no Festival de Almada pela Artistas Unidos no instituto FrancoPortuguês. 6 Texto publicado na Revista Apuntes N°126- 127, Santiago: Escola de Teatro PUC. Especial 2005, p. 135-144. 5 2º semestre • 2010 • 21 Tainá Azeredo As décadas anteriores ao Golpe Militar de 1973, e os anos imediatamente posteriores, atraem jovens que não viveram esse período e que trabalham na recreação do mundo sociocultural, pessoal e político de sujeitos e de grupos sociais que fizeram, de forma significativa, a história chilena a partir de urna base social. Citemos Machasa, encenado por Guillermo Alfaro, que aborda o mundo operário sindicalizado das grandes fábricas téxteis durante o apogeu do movimento popular dos anos 1960 e 1970, e Liceo A-73, da Universidade Arcis, encenado por Cristián Soto, que fala sobre o meio estudantil dos anos mais autoritários e repressivos da ditadura. Estas peças baseiam-se em documentos e numa compilação de testemunhos em primeira mão que reatualizam a memória coletiva. Existe um certo número de peças que se articulam à volta de pessoas salientes na história próxima ou passada, muitas vezes ícones ancorados no imaginário nacional, latino-americano ou mundial. Nesta linha teatral, encontramos obras maiores como La Huida, de Andrés Pérez, de 2001, a cavalo sobre o testemunho pessoal, a denúncia e a homenagem a outros assuntos da repressão do Estado, como os homossexuais assassinados pelo governo de González Videla [1949] durante a caça planetária às bruxas implementada durante a Guerra Fria (o macartismo e o estalinismo). Citemos também a peça Tengo Miedo Torero, do grupo Chilean Business, baseado no romance autobiográfico do escritor Pedro Lemebel, que testemunha a experiência de uma outra marginalização a partir do regime militar: a das minorias sexuais. Manuela Oyarzún e a sua companhia Teatro del Hijo entra nesta veia com La Mujer Gallina, baseado na história real de uma mulher presa durante décadas num poleiro, onde viveu debaixo de uma grande carência afetiva, psicológica e material, revelando 22 • Camarim • nº 45 também a existência de uma cultura da crueldade e da exterminação perversa do outro. Um outro trabalho consiste em pegar em personagens da ficção latino-americana para recriar situações, ambientes e personagens de uma forte carga mágica e/ou assustadora, como em AI Otro Lado Del Muro, encenado por F. Matte e baseado no conto La Gallina Degollada, de H. Quiroga, onde uma rapariga é assassinada pelos seus irmãos deficientes mentais. No que toca a figuras históricas emblemáticas, Juana, de Manuel Infante, é uma recriação brilhante de teatro dentro do teatro, do drama da fé de Joana d’Arc implicada na guerra física das tortuosas estratégias de poder, e Confesión Lúcida De Motivos, encenado por Eduardo Luna, que tende, através de uma expressão artaudiana, a adotar as modalidades do teatro de Peter Weiss, baseado na época e na figura de sacrifício de Marie Stuart. Romper uma grande quantidade de referências e torná-las híbridas: ai está a maneira de sugestão, mais do que descrever ou contar estes locus sociais e históricos, que permitem filtrar a subjetividade, a memória de cada um, os ícones identitários, a rua e a cidade e, naturalmente, uma grande metáfora coletiva do país e da era pós-moderna que exclui os subalternos, os marginais e todos os seres diferentes. Espetacularização satírica da pós-ditadura neo-liberal e da globalização Uma plêiade de peças remetenos para o contexto político-cultural Karrocerias de la alegria – Patogallina dos anos 2000, para a sociedade de consumo globalizado e a política do consenso e das transações da democracia atual. Ultrapassando o esquema antes/depois da ditadura militar e dos seus eixos binários de bem/mal, o pós-ditadura pensase a partir da ditadura em termos de continuidade, no que toca à manipulação dos corpos e das ideologias. Afinamos a crítica da impostura e da violência cultural e factual, que veicula outras (as mesmas) traições e abusos contra o mais fraco (étnico, social, geracional, sexogenérico). A prolífica e brilhante produção dramatúrgica de Benjamín Galemiri, encenado pela companhia El Bufón Negro, desenvolve uma sátira implacável e irônica contra a sedução amorosa de personagens em crise de identidade e oprimidas por uma sociedade neo-liberal, onde o sucesso sexual, financeiro e intelectual simbolizam o poder fálico. As máscaras e o jogo deslocado destes personagens, que atingem limites delirantes, inscrevem-se numa reflexão que o autor leva sobre a sua própria escrita e a sua encenação desta. Entre as peças mais representativas, podemos citar Déjala Sangrar, criada no Teatro Nacional da Universidade do Chile, e lnfamante Electra, criada no Teatro Camino, encenado por Raúl Ruiz, assim como El Neo-Proceso (2006), criado no Teatro da Universidade Católica. A era da Concertação está também no alvo da critica. Sendo uma peça particularmente interessante, La María Cochina Tratada En Libre Comercio opera sobre o livre comércio, caindo sobre a globalização que invade o mundo agrícola através de uma comédia musical escrita e encenada por Cristián Soto. Neste tipo de peças, a paródia descabida e delirante prima sobre os outros gêneros da indústria cultural e do divertimento das massas: a citação e o contra-emprego são um recurso transtextual da ligação a outros gêneros de ficção que fazem parte do nosso imaginário comum, incluindo o kitch, o melodrama, os ícones urbanos, os gestos geracionais hiperbolizados, satirizados, ironizados, exagerados,levados até aos limites do absurdo, e apresentando um exagerado redundante de certos elementos (thriller, jogos de vídeo) numa espiral kafkiana, ou melhor, borqesiana, que termina, apesar de uma passagem pela festa, inevitavelmente, na morte e no assassinato. A uma escala menos épica, a vida do homem urbano médio, do empregado, nos seus espaços rotineiros, nos seus falhanços, defeitos e truculências, intriga o teatro. Este mundo é abordado de novo através da tragicomédia, do excesso e do kitch estridente, onde correr riscos é importante. Entre as obras mais representativas encontram-se Mano De Obra, baseada num romance de Diamela Eltit et encenada por Alfredo Castro. A companhia La María, dirigida por Alexis Moreno, apresenta uma dramaturgia que explora os mitos urbanos e encontra a sua matriz em gêneros populares criados e satirizados: Superhéroes, Empleados Públicos e Trauma, um melodrama negro ou de terror num ambiente familiar, tratando estes meios de uma maneira mais humorística, mas também cáustica. O suicídio ameaça como clímax trágico da sociedade hiper-industrial, desumanizada, e da superabundância vazia de sentido: é o tema principal de Narciso, de Manuela Infante, através de um jogo preciso de espelhos, ou, em termos futuristas, da peça Santiago High- Tech, de Cristián Soto. Um outro tema é o da vida urbana inquietante que não conduz mais ao suicídio, mas à ação do corpo na sua mais alta expressão da intimidade (Vida De Otros, de Ana López), com próteses de alta tecnologia que anulam cruel e cinicamente a fronteira entre o que se guarda para si e o que se expõe, entre a autodefesa e a dor, entre o disfarce que esconde e o exibicionismo que coloca o indivíduo no centro do espetáculo de forma implacável. É preciso acrescentar que muitos grupos desta nova geração abrem espaços teatrais não-convencionais, com cenografias e guarda-roupas que fazem alusão à sociedade de consumo em decomposição, através da utilização de materiais reciclados que mostram o que são: um pastiche de costuras e colagens exposto de forma ostensiva. São sinais que visam, a partir da sátira ou da paródia lúdica, a performance social dominante. Existe neste teatro, realizado no Chile no princípio dos anos 2000, um ponto de testemunho pessoal que associa a identidade do ator e do criador à história e ao público, uma experiência corporal total que mistura realidade e ficção, e cujos mecanismos teatrais estão à vista: não existem truques, tudo se encontra exposto. No interstício entre real e ficção, entre citação cultural e senso comum, entre estilização apurada e superabundância grotesca, estamos perante um teatro fortemente político e estético. O teatro chileno contemporâneo elabora a sua historicidade a partir de linguagens teatrais hiperbólicas, incluindo por aí o teatro como uma outra prática marcada pela sua historicidade, que é preciso elaborar e reconstruir através da crítica e da maneira de re-apresentar a representação. Texto publicado em colaboração com a Alternatives Théâtrales, onde foi originalmente publicado (nº 93-94). A autora é licenciada em sociologia. É atualmente professora na Universidade Católica do Chile, no departamento de Estudos e Experimentação Teatral. É igualmente diretora da revista Apuntes e autora de diversos livros sobre o teatro chileno. 2º semestre • 2010 • 23 Velada Metafísica – Teatro Matacandelas Teatro político e estética teatral em um novo teatro colombiano O teatro é sempre político Por Carlos Zatizábal Carlos Zatizábal é diretor do grupo Rapsoda Teatro e professor da Universidade Nacional da Colômbia. Seja tratando da vida coletiva, das contradições e lutas entre classes sociais, da rebelião contra os impérios, ou qualquer um dos grandes conflitos sociais de uma época, mesmo que trate sobre a vida privada, o teatro é sempre político. Claro, sempre que seja teatro, que não seja ruído complacente, que não busque a simples identificação e o entretenimento vazio. Quer dizer, sempre que seja revelador, analítico, investigador, gerador de perguntas, e não mera decoração que reafirma no público os ideais de consumo e as cômodas aparências do consumidor no status quo. Mesmo sobre esse teatro “light”, complacente, alguns podem dizer que é também um teatro político, um teatro que atende aos interesses políticos de quem prefere ocultar, esconder, de quem prefere que tudo permaneça igual, que nada mude, um teatro que busca embrutecer o espectador, fazer lhe invisível o mundo real: a miséria, o horror das fossas comuns, o crime tramado, 24 • Camarim • nº 45 inumanidades, exploração e roubo sobre o que existe na ordem monstruosa em que vivemos. Um teatro da política do embrutecimento coletivo. Mas, isso nem é teatro nem é política. A política explora a arte de viver em comunidade com liberdade e direitos. E o teatro uma arte que investiga o que desconhecemos como nosso, o que se oculta de nossa sensibilidade, uma arte para ver e para nos vermos, para celebrar a vida. Um teatro que cria, por exemplo, a reinvenção e a pesquisa estética de uma pergunta vital e que elabora a revelação dos conflitos humanos das misérias e das felicidades da vida pessoal e coletiva. Esse teatro é necessariamente político. O movimento feminista nos revelou que o intimo, o privado, é político, profundamente político. Nos papéis da intimidade cotidiana o arquétipo patriarcal reafirma e produz seu poder de dominação. A mulher é um corpo para satisfazer o homem e ela faz o trabalho de empregada agradável. A submissão da mulher ao arquétipo patriarcal serviu a sociedade de classes como modelo de servidão. Na sociedade patriarcal a herança é “patrilinear”, masculina. Simon, um menino de seis anos, enquanto brincava, perguntou a sua mãe, grávida: – mamãe as mulheres não tem sobrenome? Claro que sim, respondeu sua mãe, eu tenho sobrenome. Sim mas esse é do meu avô, não seu, replicou o menino. Bom, também tenho o de sua avó, acrescentou a mãe. Sim, mas o sobrenome da vovó também não é dela, é do pai da vovó... Assim como a mulher, a herança patriarcal lhe nega o nome próprio, da mesma forma a herança garante a divisão de classes e a expropriação de uma sobre a outra. Sobre a herança se levanta a apropriação privada. E por que devem ser proprietários quem nada fez para construir o patrimônio, a não ser filho da família? A herança patriarcal, vista assim, mostra que há verdade na celebre frase de Proudhon: “a propriedade é um roubo”. A perpetuação do roubo se funda nos arquétipos patriarcais, classe e herança é mostrada na obra “De Caos y Deca Caos”, do Teatro de la Candelária, uma peça que estuda as elites, a riqueza, por dentro: as relações das famílias da elite com seus serviçais; as relações íntimas entre os casais da famílias da elite; as cerimônias dessas famílias: almoços, velórios, festas, a vida íntima. Dez cenas independentes que se estruturam internamente como pequenas peças que avançam até uma turbulência, um estalo revelador da desordem humana. Então, se o teatro fala dos conflitos sociais ou dos conflitos da vida íntima, será necessariamente político. Agora, há certo teatro muito bem intencionado e que se chama a si mesmo de político, por suas intenções de promover certas idéias, argumentos, pensamento. O problema com os argumentos é que sempre se podem refutar, se podem contra argumentar. A arte não responde, sugere, cria metáforas estéticas, sensíveis, que nos convidam a descobrir por nós mesmos, a participar da criação estética. O inesquecível mestre Henrique Buenaventura dizia: o teatro político sem estética é mau teatro e pior política. Também há algumas revelações que vestidas esteticamente são paralisantes, como as revelações sagradas que buscam a fé e o dogma. Essas razões nos deixam mudos; credulamente mudos e cegos, como os que crêem na verdade que salva. Essas revelações não fazem de uma arte política, não nos revelam segredos da vida pessoal e coletiva, que nos convidam não ao dogma sem nada a descobrir, e sim a pensar ou agir. A poeta Emily Dickinson escreveu: “Diga a verdade, mas não a diga claramente. A arte está em dizer a verdade de forma obliqua, a verdade com seu resplendor pode te cegar como a uma criança.” Kant em sua Critica de Juízo, argumenta que o filósofo recorre a arte quando não lhe servem os conceitos da razão. Aristóteles dizia que a poesia busca o gozo estético: a edoné. Poderíamos, então, provisoriamente dizer que o particular goza da elaboração estética, artística, de um tema, de um problema ou de um conflito humano. Este gozo é sensitivo, intelectual e por sua vez: toca o sentimento, a paixão, a imaginação e a inteligência compreensiva. O gozo estético revela a trama de causas e efeitos de um assunto humano, mas com imagens e metáforas, sem interpretações, deixando a inquietação, as perguntas para o espectador. O mestre Santiago Garcia sempre insiste que na arte teatral buscamos uma imagem complexa e polifônica que acontece na cena, mas que aspira a deixar uma imagem no espectador. Então, digamos que a imagem e o gozo estético são resultados de uma espécie de imagem e gozo em colaboração. Como diz o poeta Borges, um livro de poemas é um objeto, mas, a poesia acontece ao lê-lo. A imagem estética e o gozo teatral acontecem no dialogo vivo entre a cena e o espectador em um gozo em colaboração: o espectador também é criador; não um consumidor de seduções, mensagens ou verdades reveladas. Uma imagem que o espectador, já fora do espetáculo, pensativo, sozinho ou em conversas, renova e reinventa, como um sonhador que segue sonhando ao pensar em seu sonho. A revelação que produz a cena teatral, no entanto nos convida a ser participantes do gozo da invenção estética, da poesia nos fazemos perguntas, problematizamos, e podemos fazer mudar o olhar e levar-nos a agir. Faz-nos “publico poeta” que pode atuar porque sente e compreende, como Antígona age, como procede Hamlet. Levado pela certeza poética e estética, pelo amor, por certa loucura que desafiam a morte. Um teatro assim é necessariamente politico. Tratarei de alguns projetos teatrais, e de obras de grupos de teatro colombianos que fazem ou buscam um teatro politico e contundente, por sua influencia no pensamento teatral e na cultura viva. Serei parcial. Não poderia falar de todos, isso excede minhas possibilidades, e as de todo esse artigo. Falarei de uma parte do que tenho de mais próximo. Tratarei das tendências temáticas e da exploração da linguagem teatral – da vida-, na teatralidade colombiana hoje: o teatro de gênero; o teatro de grupo; a performance; o contraponto ao teatro de representação (dramático) e da memória; o teatro de grupos sociais mais excluído e marginalizados e com as vitimas da guerra civil. Começo por este teatro e canto dos excluídos. A exploração da exclusão, a marginalidade e a clandestinidade tem sido uma marca do teatro colombiano. Talvez seu precursor no teatro de representação foi o mestre Enrique Buenaventura nos anos 2º semestre • 2010 • 25 setenta com “El Menú e La Orgia” obras de grotescas personagens sem classe social, lumpem e famintos. Em “La Orgia” – recriada há pouco por Barcoebrio em uma bela montagem dirigida por Beatriz Monsalve – os “sem classe” brincam de ser gente importante em uma refeição que no final de cada mês é organizada por uma senhora que empobreceu, participam da refeição além da mulher: um general, um bispo, um ministro e um engraxate mudo, filho da mulher e seu fatal assassino. O mundo dos poderes é desnudado nesse jogo da fome. Em 1992 o grupo de teatro La Candelária estreou “En la raya”, aqui representam um grupo de moradores de rua que ensaiam, para reabilitar-se, uma versão teatral da “Crônica de uma morte anunciada” (Gabriel García Márquez). Paralelo a montagem de “La Raya”, da Candelaria, Patricia Ariza, integrante e co-fundadora desse grupo histórico, desenvolvia na Corporación Colombiana de Teatro (CCT) o Projeto Cultural de la Calle, com moradores de rua, em Bogotá. Deste projeto também participaram pintores conhecidos, que com os sem teto fizeram murais em telas, ou embaixo das pontes, ou nas ruas onde dormiam os ñeros (companheiro) e ñeras (companheiras) – como se chamam a si mesmos os moradores das ruas. Também participaram deste projeto poetas, escritores, videoartistas e outras pessoas de teatro. Trabalhei com Patricia nesse projeto. Fizemos um jornal, publicamos livros de poesia e realizamos um documentário -“Calle adentro”, e fizemos Teatro. Um teatro criado coletivamente por “ñeros” e “ñeras”, cenas coletivas e números individuais que apresentam seu mundo e suas vidas por dentro, suas vidas na rua: a cultura da rua. Um teatro da revelação, que nos permitiu ver e pensar a grande metrópole latino americana de outro modo, que nos revelou a nossa sociedade na integra, nosso medo da rua e nossa própria violência íntima, oculta. Nós? Nós somos a rua, conhecemos os medos dos que caminham por ela; não gostamos do silêncio, gostamos do barulho, gostamos do ruído, seu borbulho e seu swing. Diz o narrador de uma das obras: “é que somos pessoas publicas, vivemos na rua, se eu brigo com minha ñera e nos batemos, ou se fumo marijuana, todo mundo vê. Percebem? Mas o mesmo faz o senhor ministro em sua casa”. Um projeto de caráter performático onde os ñeros e ñeras se apresentam, fazem uma representação de sua existência. Um trabalho de grande repercussão na politicas de inclusão na cidade. Deste projeto fizemos uma réplica na cidade de São Paulo, com pintores, músicos e atores brasileiros, em homenagem a Patricia Ariza, organizado por um festival de Teatro da cidade e o dramaturgo Aimar Labacki. Dessa experiência há um pequeno documentário: Rua, ator e cidadão. 26 • Camarim • nº 45 Rapsoda Teatro No trabalho com os moradores de rua nos aproximamos do movimento rap da cidade (Bogotá). Fizemos um filme com o grupo Gota de Rap: Rapsoda, e sobre esse documentário um espetáculo de teatro com o grupo. Opera Rap, uma peça sobre a cultura Hip Hop. O MC canta à sua noiva. O pai da noiva contrata um capitão, matam o MC. A morte chega; ele negocia com ela de que lhe ensinaria rap e break se ela o deixasse cumprir seu sonho: ir ver o mar com sua noiva. Paralelamente os rappers o desenterram, em seguida uma viajem perigosa, à noite chegam ao mar. Uma obra sobre a violência, a intolerância, e o ódio, que uma sociedade em guerra tem contra seus jovens. E igualmente explora a presença corporal e a teatralidade da atitude- “a cultura” (Hip Hop), o chamam- dos rappers e breakdancers. Deste projeto nasceu em 1996 Rapsoda Teatro, grupo que assume diversas temáticas no seu teatro: a história e a memória, o biográfico e o poético, o feminino e a feminista e o gênero, os quadros de urgência e as performances politicopoéticas. Suas montagens: “Guadalupe años sin cuenta”; “Borges, el otro el mismo”; “Mujeres desplazadas”; “Emily Dickson”; “De trás de nosotros”; “Antigona Atriz”; “Los papeles de Antigona”; “Olimpia de Gouges”; “Nuevas Masculinidades: uma conferência de Ator”; “Tierra em la boca o el hombre que soñó parir uma niña por el ombigo”; “Rosita contra todos”. Mapa teatro O grupo Mapa Teatro fez ações estético-politicas com os marginalizados urbanos criando uma memória performática do processo de demolição de um bairro para a transformação no parque público chamado “El Cartucho”, antigo bairro elegante do centro de Bogotá, transformado em zona de desterrados, coração mítico da degradação social e nervoso da cultura da rua e do lumpem/proletariado bogotano. Mapa realizou uma série de instalações e vídeo ações sobre a demolição do bairro e a construção de um parque em seu lugar. Trabalhos de provocação politico-estética e mistura de linguagens que escapam ao teatro de representação para aproximarse de um jogo com a vida nômade, violenta e frágil, dos habitantes da rua, os recicladores e os ñeros desterrados do Cartucho. Rolf e Heidi Abderhalden, diretores de Mapa Teatro, defendem a exploração performática do teatral, eles preferem assumir o corpo do artista como operador e não como ator e suporte de uma ficção. Após esta experiência, criaram “Exxtrañas Amazonas”, com artistas bogotanas, emulando a estética do cabaré crioulo e do cinema mexicano de luta livre. La Mascara No trabalho com os excluídos também se destacou La Mascara, da cidade de Cali, que realizou nos anos 80 montagens teatrais de peças clássicas do teatro mundial como Macbeth com tradução e direção do mestre Buenaventura e Os fuziveis da senhora Carrar, de Brecht. La Mascara hoje trabalha em um dos principais assuntos políticos no teatro colombiano: o feminino, as questões sobre os arquétipos patriarcais pelos quais se fundam a submissão, o poder e a herança: a arcaica e milenar desvalorização da mulher frente ao homem. La Mascara iniciou esta investigação pelo feminino nos anos 1980 com as obras como: “Histórias de Mulheres” e “Noticias de Maria”, com direção de Jacqueline Vidal. Depois montaram “Mujeres en trance de viaje” e “Luna Menguane”, escrita e dirigida por Patricia Ariza. “Luna Menguane” é uma análise de vários dos mitos de exclusão e encarceramento que a sociedade patriarcal impôs as mulheres em diversos momentos da vida: a puberdade e a primeira menstruação, o alimento e o trabalho, a menopausa e a loucura senil. Com Wilson Pico, visionário, coreografo bailarino equatoriano, montaram “Bocas de Bolero” e “Los perfiles de la espera”, recentemente montaram a “Casa Matríz”, de Diana Raznovich, e “La Cabellera”, uma investigação cênica do grupo sobre os valore simbólico do cabelo. E “La Raina de los Bandidos”, uma obra sobre a líder das politicas aos sem castas e pobres no Panjab Indú: Phoolan Devi, bela peça que pode sugerir uma metáfora sobre a luta e a tenacidade de uma mulher oprimidas da Colômbia. A Corporación Colombiana de Teatro (CCT) Dirigida por Patricia Ariza a CCT é o nervo vital de projetos cênicos, políticos-estéticos e feministas que convocam a grupos e artistas da cena colombiana e internacional: o “Festival de Teatro Alternativo”, o “Festival de Mujeres en Escena”; “La Expedición por El Éxodo”, que é uma expedição pela arte e a cultura a partir do exílio e do êxodo na Colômbia, a maior tragédia humanitária do hemisfério ocidental. O projeto “Mujeres arte y parte en paz en Colombia”, que criou sete grupos estáveis de teatro por todo país, com mulheres que viveram a tragédia da guerra civil; grupos dirigidos por encenadores com uma trajetória reconhecida no país. A CCT organiza há 20 anos oficinas de pesquisa teatral dirigidas pelo mestre Santiago García. Igualmente com a direção de Patricia Ariza, o CCT há 40 anos atrás foi pioneiro em ações teatrais- performáticas e político-estéticas em ruas e praças para lembrar passagens históricas dolorosas e sobre as quais não se fala: os desaparecidos, o genocídio 1 Na Colômbia, o termo “positivo”, em linguagem militar, significa capturar e eliminar pessoas consideradas inimigas do Estado. Foi esse abominável procedimento do Estado, ligado à Doutrina de Segurança Nacional, que criou na Colômbia os “falsos positivos”. Depois de assassinados as pessoas são apresentadas como se tivessem sido mortas em combate. político, a migração forçada, a violência de gênero e a massiva violação de direitos. As ações mais recentes são: “Siembra y canto em La Plaza” (Semeadura e canto na praça): realizada no dia 27 de julho de 2007 na praça Bolívar, centro do poder político da capital do país e local de todas as manifestações populares. A ação consistia em, a partir da estatua de Simón Bolívar fazer com terra uma espiral dividida em nove partes, que foram semeadas com sementes de frutos de várias regiões do país, cada área era cuidada por trabalhadores campesinos que foram expulsos de suas terras. Fora da espiral uma área queimada onde atrizes do Rapsoda Teatro e do Aero Danza lançavam milho à galinha imaginárias enquanto se enterravam e desenterravam a si próprias. Nas esquinas da praça e no meio de cada área dividida havia um tablado onde desde o amanhecer aconteciam apresentações de musica, dança e teatro. Passaram pela ação cerca de 50.000 visitante e 10.000 estudantes de escolas da cidade. Os campesinos ensinavam aos presentes sobre o cultivo de milho, mandioca e banana. Outra ação foi, “Qué floresca la memória”, familiares das vitimas do genocídio cometido contra a “Unión Patriotica” (UP): 1000 mesas cobertas com toalhas brancas na Praça Bolívar: em cada mesa uma foto e objetos dos mortos ou desaparecidos da UP, postos ali por seus familiares. Uma instalação de comovedora beleza plástica e política. Simultaneamente no congresso nacional- com transmissão de TV para todo país, Rapsoda Teatro representava a peça, “Qué floresca la memória: El caso de genocídio contra UP em el Urubá”. Em 27 de agosto de 2009, na data do Encontro Hemisférico de Performance, realizado em Bogotá, Patricia Ariza dirigiu com 350 mulheres participantes de organizações de familiares de desaparecidos, as mães dos chamados “falsos positivos1” e um grupo de bailarinas, atrizes e músicos. A performance Mulheres na praça: memória da ausência: onde estão os mortos onde estão os desaparecidos... A ação teatral e performática “Pasarela: vozes y pasos de mujeres contra a guerra, a violência”. Um espetáculo teatral, musical e de dança que utiliza a forma de uma passarela de moda, cada intervenção é um numero que revela algo da artista que se apresenta. Na passarela as mulheres mostram as roupas e o corpo como objeto de desejo para o consumo. “Na passarela mostramos nossa alma”, diz a diretora Patricia Ariza. No ultimo mês de novembro com o Rapsoda Teatro em conjunto com as mulheres do grupo Yuyachkani e a participação de um numeroso e diverso grupo de mulheres peruanas, se fez na cidade de Lima uma versão desta performance. Os projetos da CCT com as comunidades de excluídos e de vitimas da guerra civil convocam 2º semestre • 2010 • 27 Tainá Azeredo personalidades e grupos vinculados ao movimento teatral para constituírem grupos estáveis de criação teatral nas comunidades deslocadas pela guerra. Nestes trabalhos utilizam o processo de criação coletiva para contar a memória dos despojos e do horror vivido por essas pessoas. São também formas de teatro de memória: os corpos que viveram a dor da guerra contam seus feitos; criando assim um teatro de “cura”: com seus praticantes voltando a habitar seus próprios corpos e nos dando a esperança de habitar humana e poeticamente, algum dia, esta terra. Os corpos escritos e a criação coletiva de um teatro da memória Rosita contratodos – Rapsoda Teatro 28 • Camarim • nº 45 Seus olhos fogem do olhar, quase sem luz ou com sua luz afundada em uma tristeza indescritível, uma raiva muda e impotente, pensei. Seus corpos envergados. Assim vi os olhos e corpos de alguns quando começamos a ensaiar, improvisar, e jogar como as crianças quando brincam. A primeira coisa para este jogo é se organizar em grupos. Cada um desses grupos combina e prepara uma cena, a partir das experiências pessoais que cada um dos participantes conta ao seu grupo, que podem ter ocorrido com eles próprios, com um amigo ou familiar. Depois se apresentam e avaliam as cenas. Analisar é a segunda parte do jogo. Os que assistiram ao jogo contam o que viram: descrevendo somente as ações sem atribuir significado ou interpretação, separando o signo do significado, diria um lingüista. Uma vez escrita a cadeia de ações, os que assistiram falam o que pensam da cena, o que significa, o que diz, o que lhes faz lembrar. O grupo que executou a cena somente fala no final – é outra regra. A tarefa do ator que dirige o jogo é manter as regras até o final. Insistir nas regras, ser o arbitro. Isso, estranhamente alegra as coisas, da graça. Ao final do jogo o grupo que apresentou conta como se puseram de acordo, de onde saiu a história ou as histórias que mostraram, o que lhes pareceu, as mudanças e imprevistos que aconteceram durante a improvisação etc. A memória desperta ao improvisar. Se desperta no corpo que improvisa, e se desperta no pensamento dos que assistem e depois contam o que viram. Na analise ouvimos contar feitos tremendos. Imagens que logo serão usadas para novas improvisações. Em cada grupo há “secretários” que anotam tudo que é falado da mesma forma que o diretor. O que mostra a construção coletiva é que a memória não é algo dormente na imaginação ou na mente, que a memória está escrita no corpo, que pensamos e imaginamos com o corpo, que nosso corpo também é nossa mente e nossa memória desperta quando nosso corpo faz, mostra, atua e lembra. A memória está escrita no corpo, no olhar, no tom da voz, na intenção, no que é balbuciado, no que não é dito. Terminada a montagem. Vem a estréia, a apresentação. E depois a apresentação em diversos eventos, protestos, performances e ações públicas onde essa memória estética começa a cumprir sua função de denúncia e reparação psicológica e social. Frequentemente uma cena criada e executada pelas próprias vitimas é muito mais eloquente, tem a força, a verdade, a presença, a atitude, os olhares, a presença dos corpos na cena e depois fora dela. Depois, da apresentação os atores diferem daqueles dias. Agora voltaram a habitar seus corpos. A esposa de um membro disse que a memória de seu companheiro assassinado: “é como um piano que você carrega nas costas, sai com ele pelas ruas, um dia consegue colocá-lo no chão da sala de casa e o toca.” Converter em canto coletivo a memória foi o grande projeto da arte colombiano. Teatro político: um teatro entre a representação e a apresentação Creio que entre nós, do teatro e da encenação, o trabalho com as vitimas da violência, de estimular a criação de relatos do que elas viveram, influenciou nosso trabalho. As pessoas vitimas desta tragédia contam por elas mesmas, não são contadas por outros, não estão na terceira pessoa, não emprestam um corpo a um personagem. Elas falam na primeira pessoa sobre elas próprias, do que passou e do que passa em suas vidas. Com o trabalho junto a essas pessoas nos demos conta que estávamos falando em primeira pessoa, que o projeto de dramaturgia nacional, que contasse nossa história e falasse de nós mesmos é um projeto em primeira pessoa, um teatro de “apresentação”. Que o teatro da apresentação não só nasce das tendências de explorar os limites do teatral, assunto que sempre foi próprio do teatro em quanto uma arte polifônica que usa múltiplas linguagens artísticas. Nós aprendemos fundamentalmente ao fazer teatro com as pessoas marginalizadas, com os moradores de rua, com os rappers dos bairros populares, com os sobreviventes de guerra, os desterrados do campo refugiados nas cidades, com os ativistas sociais e de direitos humanos. Nosso teatro da memória é conseqüência deste trabalho, e não das modas que assolam os caminhos da arte, hoje, influenciado por essas vozes dos não-artistas que falam com tanta verdade e presença, o novo teatro colombiano se deparou com o jogo da memória, coma necessidade dos atores e atrizes contarem suas vidas, observarem suas vidas, e essas pessoas, por sua vez, poderem observar o que o artista viu. Investigar os personagens que somos e que podemos ser. A ultima obra de teatro do grupo La Candelária, o grupo mais antigo, mais conhecido e que mais experimental do teatro colombiano, são as peça de criação coletiva “A titulo personal”. Um olhar a partir das vidas das atrizes e dos atores do grupo, sobre a tragédia dos mortos e desaparecidos, as fossas comuns, a violência patriarcal masculina, a máscara desumanizada, das festas e dos laços do vínculos partidos pela espera sem esperança, o desafeto e a violência. Mas também a festiva morte carnavalesca viva na musica e nas festas populares. Três das ultimas montagens de Rapsoda Teatro trabalham sobre este jogo entre a representação e a memória, em cada uma das montagens de maneira diferente: Olimpia, “La revolución y los derechos de las mujeres”, espetáculo sobre Olimpia de Gouges, líder da revolução francesa e seu fatal confronto com Robespierre, exigindo os direitos das mulheres e que parassem as execuções na guilhotina; “Tierra en la boca o Un homen que soño parir uma ninã por el ombligo” e “Nuevas masculinidades”: falam em primeira pessoa, a partir da vida pessoal e os olhares particulares de atrizes e atores do grupo. Quando falamos em primeira pessoa se faz mais inquietante o jogo da representação, de emprestar nosso corpo, nossa imaginação e nossa memória para criar o simulacro do personagem: Hamlet, Antigona ou Estragon. E começamos a escapar dos nossos heróis míticos (Guadalupe, Bolívar ou Manuelita Sáenz). Não porque já não tenhamos o que falar sobre eles. Mas pelo tom e ponto de vista da obra do outro. Assim, nas obras do La Candelária sobre os “Comuneros” ou as “Guerrilhas da Planice”, Guadalupe ou José Antonio Galán, heróis destas ações, são recriados como figuras ausentes. Os personagens são as pessoas comuns, sem aparente importância na história, carregador, a verdureira, os corações dessas lutas. Como no famoso quadro da Liberdade guiando o povo. Este teatro não fala diretamente sobre esses heróis para nos tirar da insignificância antiheroica, mas pelo contrário, para compreender nossas as lendas, quem somos, porque desejamos dessa maneira; para olhar com perspicácia o papel central do cidadão comum na criação desse destino. Por isso o Novo Teatro é um teatro de memória e representação, um teatro no qual não se apaga o corpo do ator ou da atriz quando interpretam um personagem, mas que joga ao representar, entrando e saindo do personagem, a se mostrar: este sou eu, aquela é minha personagem. Falar em primeira pessoa é primeira pessoa é aparentemente um modo muito antigo de pensar a 2º semestre • 2010 • 29 ficção: San Agustín se espelha em suas Confissões, Dante é personagem da Divina Comédia assim como Proust em seu romance. Os performer e atores, como os do Living Theater, usam de seus corpos e suas verdades pessoais como assunto teatral. Não para confessar intimidades como faz o showbiz e o star system televisivo e cinematográfico, mas para explorar outros modos do que é teatral. A representação sofreu um ganho ao retirar o prefixo “re” e ao aceitarmos que também se pode jogar ao nos apresentarmos. Teatro politico: um teatro entre a representação e a memória Um grande projeto de representação das vozes que sentem necessidade de contar o que viveram, é necessário para sanar a dor do inconsciente coletivo. E por isso vejo coincidências com o que defendem as comissões de memória. Alvaro Camacho, que trabalha em uma dessas comissões, escreveu sobre o livro de memórias da Associação das Vitimas do massacre de Trujilo: “Uma nova narrativa dos acontecimentos, é necessário não só para as vitimas e suas comunidades, mas para as comunidades colombianas em geral (...) o público leitor poderá lembrar do que não viveu mas lhe foi passado por relato...” é justamente isso o que produz o trabalho da arte: fazer que o publico preste atenção ao que lhe era invisível. Que produzamos uma imagem que possibilite ao espectador viver, ou reviver, o que lhe era desconhecido, para que possa compreender o que não compreendia. Junto ao grande numero de pessoas desarmadas que morreram na guerra civil, também desapareceu a verdade dos acontecimentos. A narração do que ocorreu também é um território de guerra. A guerra dos números e suas interpretações são um exemplo. É uma guerra de infâmias, de mentiras e negações, de soma, restos e estatísticas. De negar o que aconteceu. Negação que oscila do “aqui não aconteceu nada” e a maquiagem e a falsificação do “aconteceu, mas não foi bem assim.” As vozes de quem sobrevive para contar, o relato dos que “ressuscitaram”, das vitimas, de seus familiares e vizinhos, são suplantadas e distorcidas, são lidas ou contadas por outros, são interpretadas e mediadas. Dessa maneira as vozes dos mortos se mantêm caladas. Mas essas vozes do silêncio seguirão falando, se manifestando, produzindo uma linguagem perturbadora, que leva a repetição doentia do que passou. Isto que acontece já aconteceu antes. Os novos massacres dos neo-paramilitares, replicam os massacres dos paramilitares de antes, e estes reproduzem a chacina dos “pájaros” e “chulavistas” e dos plantadores de banana e das ligas campesinas do começo do século XX, que 30 • Camarim • nº 45 por sua vez repetem as guerras do século XIX, as batalhas da Guerra dos Mil dias e a perseguição e assassinato dos radicais e dos artesãos na revolução do General Melo e da independência, até chegar na degolação em massa da conquista espanhola. Que foi chamada de lenda negra pelos historiadores espanhóis, realistas, carlistas ou franquistas. Mas ignoramos tudo isso, cremos que tudo isso já passou, ou que acontece hoje é outra coisa. Então a ignorância e o silencio logo se transformam em uma nova repetição desses fatos. Somente com a verdade teremos condição de parar de repetir. E isso já é de conhecimento dos juristas, dos psicanalistas, e também a quem se dedica a arte e qualquer pessoa que pense por si mesma. A cena traumática cai no ouvido, e segue falando, se torna causa de um novo sintoma, de uma nova dor. Somente quando a dor da tragédia se reconhecer a si mesma e escutemos a voz dos que padeceram, cessará a repetição e o feito trágico deixará de ser causa de outra catástrofe para se tornar apenas memória, relato, linguagem. Por isso precisamos escutar quem sofreu com essa matança e que resistiram a ela, os que se organizaram para denuncia-la cantando e contando em múltiplas vozes. E se não deixarmos que nossas vozes nos contem o que viveram não saberemos que seguimos ameaçados, nós todos somos vitimas, que todos estamos doentes do esquecimento que arrasou Macondo e silenciosamente nos mata em seu forno. El teatro politico revela as causas das tragédias humana e cultural da guerra Nas peças criadas pelas pessoas refugiadas: mulheres, crianças, e idosos, nas canções compostas por estas pessoas, a causa econômica central do conflito interno colombiano: na Colômbia há deslocamento (de refugiados) porque há guerra, mas que há guerra por que existe deslocamento. Essa politica da guerra continua o processo de acumulação e poder originados em cima dos despojos, sangue e horrores que remontam a invasão espanhola. Os anos que vão do renascimento a modernidade e o capitalismo industrial europeu, fundaram sua prosperidade sobre a acumulação originária da exploração do trabalho escravo de indígenas, africanos e mestiços ou no saque de ouro, prata, pérolas e em latifúndios. Nos últimos 20 anos a guerra interna na Colômbia, vem reproduzindo o modelo colonial de acumulação violenta, produziu o despejo de quatro milhões de famílias campesinas, que representam entre seis e oito milhões de hectares de terras que eram cultivadas por essas famílias. Em uma astuta estratégia de enganação, ocultamento, e inversão dramatúrgica dos acontecimentos, essa guerra é vendida como sendo uma guerra antiterrorista e contra o narcotráfico, porém, na realidade serve a uma velha tática de despejo e domínio que era praticado pelo império espanhol. Que se deixa evidenciar quando vemos que as terras das famílias despejadas acabam nas mãos das famílias de políticos e latifundiários. Os campesinos sabem disso. Várias peças criadas com essas pessoas junto a Corporación Colombiana de Teatro revelam isso. Assim como várias das obras criadas nos últimos vinte anos por grupos teatrais de dedicação exclusiva. “Detrás de nosotros”, criação coletiva de Rapsoda Teatro. As montagens de “Guadalupe años sin cuenta” e “Soldados, do Teatro La Candelaria”, realizados também por Rapsoda Teatro. “Kilele de Varasanta” a nova montagem La maestra, realizada por Barcoebrio, de Cali, esta é uma das peças de “Papeles del Infierno”, textos emblemáticos do Novo Teatro e do teatro latino-americano nos quais o querido mestre Enríque Buenaventura estudou esses anos de violência. Parece que o artigo “La” (de La Maestra), ao individualizar, sublinha o horror, as praticas atrozes sobre os corpos das vitimas, os corpos insepultos, esquartejamentos e todo terror usual da guerra que impressionantemente lembram os rituais da conquista pintados por De Brye em 1555 nas ilustrações do livro do padre Las Casas no seu livro Brevissimo relato da destruição das Indias. O teatro e as outras artes vem mostrando que a violência de hoje é herdada dos anos 50, anos de guerra que obrigaram aos artistas a pesquisarem a história Colômbiana a partir das mais diversas linguagens e pensamentos artísticos. A essa geração pertence o poeta Gabriel Garcia Márquez e Alvaro Camponeda Samudio e os mestres encenadores Santiago García e Enrique Buenaventura. Este últimos, além de ser um dos mais importantes dramaturgos latino-americanos, é um notável teórico teatral; demonstrando grande visão em 1958 publicou o ensaio “De Stanislavsky a Brecht” que poderíamos considerar um formidável mapa, ou manifesto do que foi o novo teatro colombiano. Buenaventura diz: “não nos emocionamos frente a um quadro de Picasso ou uma obra de Stravinsky pela semelhança dessas obras com a realidade, mas pelas ideias, imagens, julgamentos e raciocínio que estas obras provocam em nós sobre a realidade.” A partir do romance “La Casa Grande” de Alvaro Camponeda Samudio – um dos mais entranhado companheiro da aventura literária garciamarquiana- La Candelaria estreou sua primeira obra: Soldados, sobre a greve e matança desses grevistas nas plantações de banana em 1929. Um cruel episódio das plantações imperiais que também ocorreu em diversas nações caribenhas, e deu origem a expressão imperialista: banana republic ou republica de banana. É também um episodio de Cem anos de solidão. Da pesquisa sobre a violência La Candelaria criou “Años Sin Cuenta”, obra emblemática do teatro latino-americano, e que alguns pelo afã de traçar diferenças com o teatro de entretenimento e de outras tradições culturais, chamaram de teatro político, porque reconstroem a memória de feitos fundadores da vida coletiva de uma nação como os acontecimentos que por decisão das elites são apagados da história oficial, ocultados, negados, como tentaram fazer, por exemplo, com o caso dos plantadores de banana, ou com a memória dos horrores da Conquista da colônia, da Independência e da Resistência de 200 anos de Republica “independente”. Tudo isso foi revelado em obras emblemáticas do novo teatro colombiano, como: “La Tragedia Del Henri Christophe”; “Un Requiem por El Padre lãs Casas”; “Crónica”; “Historia de uma bala de plata”; entre outras que escreveu o mestre Enrique Buenaventura, que montou com o TEC – Teatro experimental de Cali. Igualmente as obras de La Candelaria: “Nosotros no comunes” (criação coletiva sobre a rebelião de camponeses, um prelúdio andino da independência do império espanhol); “Corre, corre, chasqui Carigüeta” ( escrita pelo mestre Santiago García a partir de um texto quéchua sobre a tragédia de Atahualpa) ; “El viento y La ceniza” (obra escrita por Patricia Ariza a partir das crônicas da conquista: que conta a história de conquistadores que com 500 anos sobrevivem moribundos e quase decrépitos, como uma metáfora das grande feridas culturais que se arrastam em nossas vidas e que funcionam como um lastro de horror e loucura.) Um novo tipo de ator. Um novo modo de produção teatral As pesquisas da relação entre guerra, despojos e imperialismo é uma tradição do teatro dos últimos 50 anos na Colômbia, o teatro que nossos mestres chamaram Novo Teatro Colombiano e que tiveram sua base na criação coletiva, na qual atores e atrizes se apresentam como pesquisadores, como suportes de uma verdade, de feitos históricos vivos, de uma memória histórica explorada por estes artistas, em grupo, no coletivo em processo de criação. É um teatro onde a representação é permanente rota por essa memória. Isso faz o teatro político em um sentido teatral muito complexo: o teatro da busca de outras estéticas teatrais para a investigação, criação e produção do teatro, de uma nova dramaturgia, sob uma estratégias diferentes da representação burguesa que busca a mera identificação com a emoção. É um teatro ao que interessa que a imagem da cena provoque ao espectador uma reflexão pessoal, sobre a realidade. 2º semestre • 2010 • 31 A representação é também um modelo de dominação e engano, que é utilizado pela sociedade do espetáculo como ferramenta de alienação, imbecialização, submissão cultural e midiático das consciências e desejos: o drama em três atos é utilizado pelos criadores comerciais, pelo seriados e novelas televisivos para vender os ideais da sociedade de consumo. O Novo Teatro quebrou essa representação de diversas formas como, por exemplo: o ator mostra que representa, faz um apresentação de sua representação –“este é meu personagem, este sou eu.” Rupturas que funcionam como efeito de distanciamento para mostrar perguntas sobre o conflito: o problema não é que Othelo seja ciumento, o arquétipo do ciúmes e por ele Yago, o arquétipo do perverso, personificação do mal, que pode enganar com um lenço. O problema é que, por que um homem tão inteligente como Othelo pode ser enganado por Yago e matar Desdemona, como diria Freud: fracassa ao triunfar e se converte em criminoso pela culpa: tem culpa porque é traidor de seu povo, dos mouros; ele não merece o titulo patriarcal de guerreiro triunfante: Desdemona, filha do rei. Shakespeare insinua sutilmente este problema: Othelo nem sequer tem que combater os mouros, uma tormenta destrói a frota moura antes que chegasse a costa do Chipre onde Othelo a esperava. Triunfa por azar, mata por culpa. E se revela o universo do traidor e os sistemas de lutas pelo controle do mediterrâneo e pela destruição do império mouro no mediterrâneo medieval. Também, a estrutura de poder piramidal tradicional se denuncia e se desfaz: o conceito de teatral não sai do escritório do produtor para o escritório do dramaturgo, que por sua vez vai para o diretor, que contrata algumas atrizes e atores que reproduzem a propaganda e a palavra teológica do poder de deus. O teatro é a ação cênica, plástica, poética, polifônica, produzida por atores e atrizes de um novo tipo: atores e atrizes criadores. Inclusive se na montagem parte de uma literatura dramática, essa literatura é levado a um processo de invenção e reinvenção das imagens cênicas físicas através de improvisações, provas e ensaios que terminam por reescrevê-la completamente. Isso é algo que o teatro moderno sabe de antemão: Meyerhold dizia que preferia “ter o dramaturgo do seu lado”, porque sempre a obra terminava despedaçada no processo de montagem e reescrita. A dramaturgia literária entre nós é claramente uma escrita aberta, a espera de outras dramaturgias da montagem que compõe a polifonia teatral (as dramaturgias do ator, do diretor, da luz e os projetos cenográfico, sonoro e visual). Vozes da polifonia cênica nas quais agem também os atores no processo de criação, com suas propostas, com suas improvisações, que são freqüentes de uma polifonia refinada e elaborada. 32 • Camarim • nº 45 Então, um pintor ou cenógrafo, o musico, o projetista sonoro, o iluminador, vem trabalhar sobre propostas que atores e atrizes esboçaram. Este é, em linhas gerais, o modo como se criam os espetáculos mencionados aqui. De modo semelhante procedemos na montagem do nosso ultimo espetáculo “Rosita contra todos”. O Teatro La Candelaria apresentou nos últimos 20 anos várias obras de enorme importância para o pensamento e a linguagem teatral e reflexão estética sobre a vida, cultura e política colombianas. Por razões de extensão me limitarei a uma brevíssima alusão a “El paso”, que leva 20 anos em cartaz: uma taberna ou cantina em um cruzamento de estradas, onde tudo é monótono e longe, um lugar onde nada acontece, um grupo de viajantes fica preso porque o carro quebra, esperam, com uma linguagem quase não verbal de troca de olhares, gestos mínimos, sussurros, ruídos quase silenciosos, canções tradicionais, uma chuva insistente, bela e misteriosa música incidental tocada por cordas. Que nos sugerem um tempo quase suspenso, de relações e pequenos dramas humanos da vida “campechana”. Mas, chega uma dupla de estranhos em seu jeep e a atmosfera muda, eles poderiam tirar o grupo dali, todos se animam, querem pedir o favor, explicar sua situação a esses sujeitos desconhecidos. Na realidade eles não a morte e a tragédia, são traficantes que trazem dinheiro, armas, a guerra e o crime a esse lugar perdido em que nada ocorria. “El paso”, El paso – La Candelária Tainá Azeredo como frequentemente acontece com a arte, é uma metáfora profética que se adiantou a realidade colombiana e advertiu há 20 anos o que hoje vivemos na Colombia e em regiões da América-Latina e do mundo. O controle de uma boa parte do poder, da economia, e da cultura por máfias de políticos e empresários narcoparamilitares. El matacandela, de Medellín. Outro grupo histórico do teatro colombiano, com 31 anos de trabalho permanente de invenção e experimentação teatral e musical em quase 50 obras, montada a partir de textos literários de diversas tendências e estéticas, mas também, quase metade delas é dramaturgia coletiva. Um olhar superficial sobre a produção deste grupo revela a persistência de alguns temas. O gosto por levar a arte literária a cena e a exploração de personagens complexos da vida, da história e da produção de escritores, filósofos, dramaturgos e poetas, como Andrés Caicedo, Fernando Gonzáles, Alfred Jarry, Edgard A. Poe, Silva Pplath, Séneca, Jean Cocteau, Bertold Brecht, Samuel Beckett, Fernando Pessoa, Tennessee Williams, Marco Tulio Aguilera Garramuño, Maurice Maeterlinck, Garcia Lorca e Augusto Boal. Igualmente como fez o TEC, o grupo do mestre Buenaventura, Matacandelas desenvolve um permanente trabalho de montagens para o público infantil. Teatro La Mosca Negra. Dos novos e mais valiosos grupos de teatro independente de Medellín. Vem explorando as personagens do submundo lumpen e desestruturado, da dor, do sexo enlouquecido e a violência, mostrando como afloram entre os filhos e filhas da exclusão, do ódio e da pobreza, os fundadores dessa era de 20 mil anos de patriarcado que ainda vivemos, e quem sabe estejamos assistindo sua lenta morte. O fim da culpa pela morte do pai, sobre o qual a nova era se levanta. Barcoebrio, de Calí, que vem desenvolvendo uma pesquisa sobre o mestre Enrique Buenaventura, em particular sobre a histórica série de peças “Los papeles Del Inferno”. Montaram uma bela versão de “La maestra” faz um ano e logo depois estrearam sua versão e adaptação de “La Orgia”. Varasanta de Bogotá. Um coletivo de artistas, poetas e músicos que se inspiram em sua própria leitura do universo grotowskiano, em uma versão colombiana, muito criativamente “varasantera.” Nos últimos anos essa versão esteve atravessada pela preocupação pelas histórias de terror e as matanças e do deslocamento forçado e a memória coletiva colombiana. Seu ultimo trabalho explora as perguntas de liberdade e dependência, seu nome é eloqüente sobre a busca e os resultados ( “Fragmentos de libertad”, 200 años, libertad em proceso.” Uma especulação final sobre as tendências temáticas e de linguagem do teatro na Colombia de hoje. Como em toda nossa América, há um teatro popular relacionado com o festivo e carnavalesco. Há também um teatro feminino e feminista e de gênero que se pergunta igualmente por umas novas masculinidades: um teatro que está buscando romper o arquétipo patriarcal. Há um teatro de experimentação sobre as linguagens, um teatro que rompe os arquétipos de poder, as imagens míticas do poder, que rompe com as linguagens e as formas tradicionais do teatro de memória. Um teatro que usa a performance, as artes plásticas, as artes “vivas”, sem deixar de ser teatro. Pensa e inventa as fronteiras do teatral: o teatro da representação e da memória e da representação da memória e da revelação da apresentação. Que trabalha sobre a crise da representação e da representatividade, um teatro em que o drama é o teatro mesmo e suas personagens os artistas, nós mesmos e nosso oficio. Há um teatro que desenha o personagem da vida e da história, do pensamento, do poder, da poesia, das lutas populares, das revoluções , um teatro que fala da memória poética. Emily Dickison; Borges; Pessoa, o filósofo Fernando Gonzales; os grupos da elite; Manuelit Sáenz, Simón Bolivar... É provável que estas tendências aqui enumeradas excluam ou esqueçam outras. Por eles esta enumeração como as demais reflexões de risco, são só uma tentativa de responder as perguntas que nos fizeram as irmãs e irmão da Revista Camarim, da Cooperativa Paulista de Teatro sobre o tipo de teatro político que fazemos e uma tentativa de refletir a partir de nossa própria pratica. 2º semestre • 2010 • 33 34 • Camarim • nº 45 Todas as filas carregam esperanças que nem sempre são cumpridas. Os espermatozóides que o digam. No caso do teatro, as pessoas ocupam a calçada, o saguão ou o bar do edifício com um objetivo simples e direto: querem ser abduzidas da realidade por alguns minutos, horas. Cruzar a porta da sala de espetáculo é como fazer um pacto com o desconhecido. Dependendo da ousadia dos artistas em cartaz, a tensão pode roçar com aquela experimentada por Fausto diante de Mephisto. O espectador dispõe-se a vender a alma, paga por isso e torce para que a montagem o compense com arte. Ele ambiciona ser transportado a outro espaço, o imaginário, por atores que são outros em cena. Público e atores são eles mesmos e os outros. Mas aqui não vamos pisar o terreno da ficção e seu círculo de alteridades. Os conflitos de uma fila de teatro, lá fora, são de outra ordem. E no âmbito de um festival com ingressos disputados por causa das atrações internacionais que aportam de dois em dois anos em Bogotá, a angústia multiplica-se. Estamos como que condenados às situações de espera: pelo transporte público, pelo caixa do banco, pela mesa no restaurante, pela doação de uma córnea. Na entrada do teatro não é diferente, um território de afetos e de tensões. Nesse ambiente, bastam os sessenta minutos antes da sessão para vislumbrar o espírito de uma fila teatral, seus personagens, suas micro-histórias. O desenhista Por Valmir Santos Espectadores na bilheteria do teatro Gaitán, em Bogotá. arte após submissão ao detector de metais e os cuidados em não ter a carteira afanada Bogotá. Sina de espectador que a cada dois anos torce para encontrar espetáculos que o capturem com a A calçada e o saguão do teatro são lugares de esperança e suspeição no Festival Iberoamericano de OS ESCRAVOS DA FILA Natalia Gomez Carvajal/FNPI 2º semestre • 2010 • 35 Fernando Sierra cobre a cabeça com um gorro colorido que destoa da calça e da camisa jeans desbotadas. Ele conta que foi testemunha do roubo de um aparelho celular na noite da abertura do Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá. A vida como ela é passou em sua frente antes da sessão de A vida é sonho, um texto do século XVII de Calderón de La Barca sobre um príncipe mantido preso num torre a mando do pai. O cenário – do furto, não da peça – foram as centenárias calçadas do imponente Centro Cultural Teatro Municipal Jorge Eliécer Gaitán, palco dos mais nobres na cidade em noites de música ou de artes cênicas. Abraçada a um livro do gênero de mistério, o romance Os homens que não amavam as mulheres, do sueco e best-seller Stieg Larsson, a economista Adriana Morales consola-se em ser revistada por um segurança com detector de metais. Em vestido discreto, de tons cinzas, ela é uma das integrantes da fila à porta de vidro que compõe a paisagem humana na fachada do Teatro de Bellas Artes, edifício de arquitetura moderna localizado num complexo comercial que já é dotado de esquema de segurança. Cães farejam os bagageiros de todos os carros que entram na área. Para Adriana, sua condição de espectadora suspeita, assim como a do restante do público que habitará os cerca de setecentos lugares da plateia e do balcão, é sintoma do medo na sociedade colombiana, não é de hoje. E ponto. Essa mulher de rosto e fala serenas não questiona a mediação ostensiva em pleno espaço da arte e da beleza. E da dor, afinal, todos ali aguardam o primeiro dos três sinais para o início da versão de A metamorfose por uma companhia islandesa. Na obra de Kafka, o pai espanca o filho, transformado em inseto numa manhã incerta, e defende exterminar o “câncer” em nome da paz e do silêncio de outros tempos. De volta à fila do Gaitán, agora no hall, em noite de sessão de Calígula, texto do argelino-francês Albert Camus com atores da Croácia e da Eslovênia, a estudante Daniela Matiz carrega uma única expectativa: a de que a obra seja boa. É o que de certa forma também desejam as três amigas que a acompanham. Esses minutos no saguão são propícios àqueles que vão ao teatro não só para ver, mas, sobretudo, para ser visto. Parte do público gosta de fazer isso, garante o psicólogo calvo e de óculos com lentes grossas, a quem pedi anotar seu nome em meu bloquinho porque temia não compreender a pronuncia na hora de grafar. Esse senhor simpático fez tal gentileza, mas constato que escreveu seu nome no papel de maneira ilegível, feito garatujas de médico. Pois seguirá PS: Texto produzido a partir da oficina de crônica Las historias del Festival Iberoamericano de Teatro, ministrada pelo jornalista peruano Julio Villanueva Chang, realizada entre 24 e 28 de março de 2010 e organizada pela Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (www. fnpi.org) em parceria com o 12º Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá (http://www.festivaldeteatro.com.co/). tomando parte nesta narrativa como o psicólogo anônimo que disserta sobre quem chega às filas mais cedo só para ver os ditos famosos, subvertendo a expressão grega “theatron” que designa o lugar de onde se vê a cena, e não o jardim do voyeurismo. Um homem de terno bem cortado lança olhar panorâmico sobre as pessoas plantadas no hall lotado do mesmo Gaitán. O designer gráfico Albert Vargas está longe do retrato de bisbilhoteiro pintado pelo psicólogo. Saudoso dos tempos de bailarino, ele fala com o conhecimento de causa de quem abandonou as sapatilhas há 20 anos e nunca deixou de frequentar as artes cênicas, ao contrário dos shows que os fez tomar pavor das multidões. A fila do teatro, ele resume a ópera, é um lugar mais relaxado, sem estresse. O historiador Orlando Bolivar concorda com essa tranquilidade de largada. Para o rapaz de cabelos encaracolados e óculos que não traem a profissão, o problema está na saída, quando a ansiedade dos espectadores em abandonar o edifício pode gerar tumulto. O artista plástico Alfredo Bonzales Reys é outro entusiasta e destaca a dimensão pública que o teatro deu à cidade a partir do festival que chegou à décima segunda edição. Não é o que pensa o desempregado Edgar Sanchez na fila de outro festival, o Alternativo. O encontro paralelo gravita em torno do Grupo Teatro La Candelaria no bairro de mesmo nome. Sanchez considera que o Iberoamericano é refém do riso que estampa suas peças publicitárias, como se o teatro batesse apenas na tecla do entretenimento. Enquanto fala, ele guarda vaga na fila para os familiares. Súbito, seis pessoas, inclusive crianças, entram em sua frente e abarrotam ainda mais a calçada. Uma prova de que mesmo o último bastião socialista está fadado a furar fila. Lá dentro do galpão, cabem e são preenchidos os 250 assentos para a sessão de A título personal no Festival Alternativo. Uma criação coletiva do La Candelaria, um grupo há 43 anos decidido a “fidelizar” o seu público com a dimensão teatral costurada a todas as filas dialéticas e esperançosas do país e em que vive. Alessandra Perrechil “A rejeição, no fundo, é uma reação ativa do espectador” Frank Castorf Por Valmir Santos, Alessandra Perrechil e Maurício Hiroshi Três anos após a queda do Muro de Berlim, em 1989, Frank Castorf assumiu a direção artística do Volksbühne, ou Teatro do Povo, fundado em 1914 por operários. O espaço da Praça Rosa Luxemburgo, no centro antigo da capital, ex-Alemanha Oriental, tornou-se sinônimo de experimentos radicais, vide os nomes que o precederam no cargo, como o diretor Erwin Piscator e o dramaturgo 36 • Camarim • nº 45 Heiner Müller. A gestão do atual encenador caracteriza-se pelo pendor aos clássicos e releituras polêmicas de textos de William Shakespeare, Bertolt Brecht e Tennessee Williams, entre outros. O encontro com Camarim aconteceu em dezembro de 2009, num hotel do bairro paulistano dos Jardins. Ele veio à cidade, entre outras coisas, para exibir a versão cinematográfica de “O Idiota” (2002), a sua livre adaptação para o palco do romance homônimo do russo Fiódor Dostoiévski, autor que visita com recorrência. O espectador brasileiro conhece suas produções desde a década passada. Nelas, predominam a narrativa não linear, a atuação conclusiva, o cenário realista e a convicção permanente do criador e sua equipe em nadar contra a corrente das expectativas na forma e no conteúdo. Na entrevista a seguir, Castorf fala do custo da liberdade, da sua fidelidade a Brecht, das experiências com artistas brasileiros ligados ao Teatro de Grupo, dos atalhos para o cinema e do que o move ou o provoca, melhor dizendo, política e esteticamente, na arte ao vivo. Camarim – O sr. se considera um diretor brechtiano com fidelidade ou traição a Brecht? Castorf – Brecht trata de certo método de como fazer a arte teatral. É uma visão bastante materialista, fala da liberdade que pode acontecer entre os seres humanos. Falar o que se deseja é uma coisa, mas ganha uma verdade outra quando você relaciona isso à interação entre eles, de si com os outros, o que se faz juntos, se um sujeito famoso ou um anônimo na rua. É claro que eu aprendi muito com o teatro de Brecht. Aprendi com mais fidelidade do que traição. Camarim – Parece que Brecht tinha uma visão bastante positiva do cinema como meio de expressar-se artisticamente e propagar consciência crítica. Ele o influenciou ao decidir filmar sua montagem de “O Idiota”? Castorf – Não teve muito a ver com Brecht, mas a gente tinha as possibilidades e isso facilitou a escolha. O primeiro passo para filmar esse espetáculo foi o fato de a gente utilizar o vídeo em cena como um recurso para “falar” com mais intimidade, mostrar com mais proximidade algumas das histórias que se passam no palco. Era possível fazer um close das pessoas em diferentes situações. E o jeito de atuar muda bastante, porque trabalhamos com ênfase na expressão, com gestos minimalistas. A criação de um filme a partir do teatro resulta como que uma vivificação. A estrutura do texto, da versão teatral para o romance de Dostoiévski, serviu de base ao filme. Mas é claro que a gente mudou muito porque, virou uma mídia soberana. Quando se faz cinema, tenta-se captar imagens, criar imagens. É mais importante do que a língua, a palavra. Normalmente, o uso do verbo é reduzido, concentrado. No meu caso, foi diferente porque realmente pensei que esses grandes textos, monólogos gigantescos de Dostoievski de fato criam as imagens e influenciam bastante em seu resultado. Claro, a gente também se serviu dessa ideia de Brecht em relação às novas mídias, da potencialidade de criar por meio de ferramentas como o cinema. Camarim – Comente sua relação com os textos de Dostoievski. Castorf – O primeiro trabalho se deu a partir de uma aproximação com o Camus, sua versão teatral para “Os Possuídos”. Para Camus, uma questão básica do existencialismo que ele pegou com Dostoievski foi, então, que vale a pena viver. Assim, Camus chegou a Dostoievski, mas claro que a adaptação dele foi bastante ideológica, com traços de Marx, de Brecht. Concebemos que o Camus foi de certa forma bastante político, um ponto de vista que denunciou essa perspectiva social revolucionário em Dostoiévski. A questão era: a revolução é necessária, faz sentido, faria sentido? Dostoiévski está colocando isso no romance, mas não dá a opinião dele. Eu também não acho que Dostoiévski coloca em xeque a questão se devemos viver ou não. Em “Os Demônios”, pegamos os grandes monólogos, os grandes blocos de texto do Dostoievski e colocamos nessa montagem. Usávamos como cenário um grande contêiner. As pessoas viviam dentro dele. De repente, as portas dessa “casa” eram fechadas e o espectador podia assistir através das imagens de câmeras internas, pequenas janelas que transmitiam tudo que se passava lá dentro na intimidade dos personagens. Dava para compreendêlos por meio do áudio, mas não se sabia exatamente o que estavam fazendo. Ou seja, “Os Demônios” foi um espetáculo sobre a impossibilidade de fazer teatro. Afinal, todas as leis do teatro, as convenções do teatro, obviamente partem do princípio de que você possa assistir a algo. Os atores têm boa projeção de voz, podem ser vistos, criticados dentro da unidade de tempo, de ação e de espaço. Tudo que nessa montagem não existia e ainda por cima não se podia ver. Lembro-me que depois de meia hora do início da sessão, as primeiras pessoas da plateia começavam a sair pela porta da frente do teatro. Mas, como chovia forte lá fora, acabaram ficando. Foi bastante irritante. No ensaio geral, aberto, o espetáculo teve mais de dez horas. Absolutamente impossível... Como o é, na verdade, o romance de Dostoiévski: uma coisa inaceitável. E quando a gente fez a versão cinematográfica da obra, saiu naturalmente. A gente tinha esses planos grandes e, no meio, esses closes nas pessoas. Creio que assim a história ficou mais (fácil) de entender do que no teatro. Mas as duas coisas são muito importantes para entender esses textos. São dez personagens que não tinham direito de exprimir e de falar sobre os seus pensamentos, ideias, tudo o que aconteceu no passado, na Alemanha, em Zurique, na França, na Rússia. De poder falar sobre essas lembranças. Os demônios, os anjos caídos, esses eram mais presentes do que a vida cotidiana. Honestamente, a vida, no momento em que surge a ação no teatro, o filme inicia, já acabou. É por meio do passado que eles refletem todos esses sentimentos e pensamentos. O filme “Os Demônios” acaba junto com o social revolucionário Vierkhoviénski [um obscuro exprofessor universitário] numa estação de trem, esperando o trem chegar em direção à Alemanha, quando um velho afirma: “O que me interessa, minha querida pátria Rússia, é que eu virei alemão. Interessa-me o sistema de esgoto da cidade, muito mais do que todas as questões nacionais da minha pátria”. Como Beckett também: em uma ação dramática não existe mais decepção e esperança, somente uma clareza pura na profissão de uma pessoa. Camarim – O sr. costuma visitar os clássicos e instaurar provocação ou desconstrução. Quais as razões que o motivam a reler Dostoievski hoje? Castorf – [Mikhail] Bakunin disse: “O prazer de destruir também é prazer construtor”. Se algo que existe fica destruído, nessas ruínas algo novo aparece. Claro que tudo isso dentro de um processo dialético. Acredito que Dostoiévski é de certa forma mais conservador. Todos os seus personagens, o que eles ou o narrador dizem, nunca tem a ver com o oportunismo pequeno burguês, por exemplo. 2º semestre • 2010 • 37 Os “demônios” falam: primeiro, precisamos de 100 milhões de mortos, precisamos fomentar o caos na humanidade, precisamos acabar com a educação, não existe igualdade, e nivelam tudo. Os únicos privilégios que ainda têm são da opressão terrorista. Talvez isso seja profético, como Cassandra [personagem da mitologia grega cujo dom da profecia é desdenhado]. Ou talvez seja somente um sentido para a história, uma história que não é má, não é boa, que acontece. Eles pegam a história, apropriamse dela, pensam basicamente que a história é uma história de sítio permanente. Obviamente, é só uma visão da história. E, claro, também é só uma opinião dentro de Dostoiévski, uma opinião importante. Se for uma boa ou má opinião, é uma questão moral, mas não é uma questão dentro da história do escritor. E esse Estado é triste. Mas ele é igualmente triste como hoje o nosso Estado é triste. Ninguém sabe como vamos lidar ou controlar esse mercado financeiro incontrolável, esse capitalismo, ninguém sabe. Isso é um grande ponto de interrogação. Mas talvez seja uma contrapartida para algo que existe do outro lado, uma fidelidade, uma fé. Eis o lado contrário do ateísmo, mas não dá pra viver com o ateísmo porque ele deixa um grande vazio. Só que a fé também é uma quimera, um fantasma, um espectro. Mas todo mundo, acredito, pode virar uma força metafísica. Acredito também que Dostoiévski, nos últimos anos de vida, apelou tanto à fé ortodoxa para nunca, nunca mais precisar pensar de novo no próprio ateísmo da juventude dele. Camarim – Repercutiu muito este ano [2009] as duas décadas da queda do Muro de Berlim. Como os alemães orientais estão encarando esse momento? E como esse episódio histórico influenciou o teatro que o sr. faz? 38 • Camarim • nº 45 Castorf – Eu acho que o país é pequeno demais. Agora todo mundo se acostumou com a nova liberdade. A liberdade de pensar e falar o que se pensa. Agora, naturalmente, isso também tem uma fronteira... Posso falar tudo contra a chanceler alemã [Angela Merkel], candidata. Posso xingá-la, questioná-la. Mas, para o meu chefe, para a empresa na qual trabalho, não posso fazer isso. Porque se faço isso lá, sou dispensado do meu emprego. Essa é a diferença. Antigamente, não podia falar nada contra o Stálin, mas poderia falar tudo contra o meu diretor no trabalho. Isso mudou. O que fazer com a liberdade? É preciso fazer algo especial, é preciso ter sucesso com isso, ainda mais se eu tenho um bom emprego e posso comprar tudo que a sociedade me oferece. Se não tenho isso, começo a duvidar de mim mesmo, vou ficar depressivo, eu sou um fracasso. Em oposição se coloca: “Qual o meu lucro com isso?” Talvez eu tenha uma fé, uma fé que não é na democracia, mas talvez eu tenha um deus, uma Jerusalém dourada ou uma Alemanha Ocidental. Ou quem sabe exista um grande líder com seu uniforme. E, talvez, esse cidadão contemporâneo se reúna com outros jovens que não têm emprego nem esperança, ou alguém que é negro, amarelo ou usa óculos, para juntar esses complexos todos. Já que não posso usufruir essa liberdade, eu vou compensá-la. Vinte anos depois, a Alemanha é um perigo. Se a Alemanha permanecer rica, a democracia continua estável. Se não, outras coisas vão aparecer. Aliás, isso não é nada especifico para a Alemanha, na Rússia isso também é assim, em Paris, em Belgrado, etc. Mas, afinal, qual o sentido da liberdade para mim? Isso tem muito a ver com teatro. Prezo a autenticidade do individuo. Atores não são instrumentos da minha fantasia como diretor, da genialidade de Brecht ou de Shakespeare. Mas são entes autônomos, livres no âmbito da produção da arte, da criação do espetáculo. Os atores não são definidos por outros, não são controlados, mas são seres com toda a autonomia mesmo diante da fraqueza deles. Diferente do intérprete na ópera, que não consegue se enxergar a si mesmo. Não diria que o intérprete na ópera é só uma instituição da perfeição, mas um desejo de certo tipo de público que nem sempre o enxerga. Como numa corrida de 100 metros rasos que, sem doping, um atleta não consegue cruzá-la abaixo dos dez segundos. Camarim – Há uma declaração do Heiner Müller, uma definição do teatro como Der Idiot – Volksbühne sendo um laboratório do imaginário social. O sr. assina embaixo? Castorf – Eu também sigo esse pensamento. Tem a ver com os extremos dos campos de experimentação, essas constelações de experimentações de tudo que pensamos e sentimos; todas as extravagâncias que o diabo Stalin ou um Marquês de Sade tinham. Essas experiências sociais se apresentam para nós e posso trabalhar com tudo isso no teatro. Posso passar por todas essas faces abomináveis do comportamento humano. E passar por isso no teatro tem um efeito contrário, porque, depois o espectador sai e sabe que assim não pode ser. Teatro não tem nada a ver com o politicamente correto das mídias, mas com o apocalipse. representação da realidade através do teatro. Eis a chance, a potencialidade para criar uma nova forma de dialogo social com muitos grupos diferentes. Já no modelo americano, em que a arte é dependente de financiadores particulares, há dois perigos. Primeiro, o “curadorismo” do que é programado ou divulgado. Segundo, você pode assistir a uma ópera no Metropolitan, em Nova York, para encontrar só diversão ou mesmo ir ao circuito off, underground; contudo, você e seus amigos não encontrarão lá a possibilidade de diálogo com uma sociedade diferenciada. Reconheço que somos privilegiados em Berlim como artistas: a sociedade me dá dinheiro, não preciso prestar conta desse dinheiro, e eu posso representar o meu protesto... Camarim – Um sentido catártico? Castorf – Claro, num sentido antigo, grego, de rir sobre o humano, sobre as hipertrofias humanas. Isso é uma libertação. Camarim – ... Contra o seu patrão... Castorf – [Risos] Mais ou menos... Falar mal do patrão é um fenômeno mundial... Falando sério, eu vivo na Alemanha e, se todos os superintendentes, diretores artísticos dos teatros decidirem que sim, então assim será. Não existe uma junta militar que vai nos torturar. Eles [os diretores] não ganhariam menos dinheiro se fizessem isso. Talvez, de vez em quando haveria criticas piores se acontecessem criações mais arriscadas. Talvez isso valesse a pena para dar mais coragem. Camarim – O teatro é necessário? Castorf – Talvez... Mas que crianças sobrevivam, isso é mais importante... No entanto, sem teatro não temos algo que seja autônomo de nós, não podemos manifestar com paixão o que é cultura. Se isso nos falta, de certa forma, é uma volta à caverna dos homens e das mulheres de neandertal. Há uma velha tradição que vem da época dos nobres, em que o duque ou o rei financiavam a arte para sua corte. E disso surgiu no final do século XIX, início do século XX, a subvenção governamental ao teatro, à ópera, às universidades. Obviamente, eu acho que é certo a sociedade financiar. Claro que com um patrocinador particular sua independência vai ser maior do que com um dinheiro institucionalmente garantido. Porque questões políticas viram questões econômicas e questões econômicas viram questões estéticas. Quem te dá dinheiro vai querer definir o que é a arte do presente e do futuro. Camarim – Quanto ao subsídio público para os artistas, boa parte dos grupos do Brasil se mobiliza por políticas públicas de Estado. Como o sr. vê essa discussão na Alemanha? O “cobertor” lá não estaria diminuindo? Castorf – A questão é o que você faz nesse mundo: se você tem dividas de centenas de milhares de dólares e ninguém fala sobre isso, quem Camarim – Como é composta a subvenção do Volksbühne? Castorf – Vem do governo estadual de Berlim. Na Alemanha, há 16 estados, alguns são grandes, além de outras cidades de peso. O Governo de Berlim dá um subsídio básico para os estatais Deutsche Theater, o Volksbühne, o Berliner Ensemble e duas casas de óperas. No Volksbühne, somos cerca de 250 funcionários entre atores, técnicos, trabalhadores das Camarim – Aqui em São Paulo, por conta do Teatro de Grupo, tem ficado cada vez mais evidente a relação teatro/cidade, trazendo uma fricção com a realidade social e política. Essa “fricção” se dá no contexto de Berlim? Castorf – Creio que na Alemanha e na Europa Oriental temos um grande privilégio: o teatro é bastante subvencionado e ocupa grandes espaços públicos em que 600, 700 ou até 2.000 pessoas se encontram por noite. Esses espectadores não são amigos, não são da mesma idade, não nutrem o mesmo pensamento, o mesmo sentimento. Mas compõem um auditório, uma ágora como na Grécia Antiga, onde as mais diferentes opiniões se encontram provocadas por um evento teatral, por uma está financiando isso, quem paga por isso? Qual geração será tributada por isso? O que vai acontecer? Ninguém sabe e ninguém fala sobre isso. Mas, aprendeu-se com a crise econômica mundial recente, com o fascismo do sistema, que obviamente, diante desse panorama, o teatro não é necessário por causa da sua vocação crítica. No momento, é o contrário. 2º semestre • 2010 • 39 Volksbühne oficinas de cenografia e figurinos, da administração, etc. Para isso, o teatro recebe anualmente 14 milhões de euros [cerca de 32 milhões de reais em julho deste ano ou seis edições de Programa Municipal de Fomento ao Teatro]. Isso ocorre com os outros teatros. O Deutsche Theater, por exemplo, recebe 18 milhões de euros. Camarim – E o Berliner Ensemble? Castorf – O Berliner Ensemble recebe mais ou menos a mesma coisa que a gente, 14 ou 15 milhões de euros. Isso é o básico. E é possível fazer muito teatro com isso, e com independência, por um tempo médio de cinco anos. Depois o diretor artístico pode ir embora, pode ser mandado e outro assume, e tudo bem. Durante essa relação de trabalho eu sou politicamente, economicamente, esteticamente independente. Essa também era a situação na Alemanha Oriental antes de 1989. Existiam outras intenções políticas, a princípio. Como transgressor dentro de um sistema totalitário, foi mais importante o teatro naquela parte da Alemanha, pois podíamos falar e exprimir coisas que a televisão, o cinema e os jornais não podiam. Mas isso no Brasil foi a mesma coisa. Em qualquer estrutura mais totalitarista. 40 • Camarim • nº 45 Camarim – O Berliner Ensemble e o Volksbühne trilham caminhos antagônicos? Castorf – Difícil dizer. Não sei. Acredito que Berliner e Deutsche fazem um teatro muito elaborado, com textos clássicos e modernos também. Correspondem mais a um teatro clássico no sentido da fala. O problema que temos tido é que o Volksbühne precisa se diferenciar desses espaços clássicos. Oferecer uma programação bem mais especifica até mesmo do que eu até o momento. Somente na condição de completos marginais teremos uma chance. Se a gente começar a ter muito sucesso no sentido burguês, então a crise começa aí. Camarim – A vocação do Volksbühne é o experimento, a cena pós-moderna? Castorf – No inicio foi assim. Em cima do nome Volksbühne se lia os seguintes dizeres: “A arte é o povo”. Ele foi fundado por um sindicato, que na verdade foi uma associação de trabalhadores. Hoje, de certa forma modificada, essa missão continua a existir. Camarim – O teatrólogo Hans-Thies Lehmann, seu compatriota, esteve em São Paulo no mês passado e disse que o teatro é mais político quando justo interrompe o discurso político. Ou seja, que o teatro é mais político quando essa política é contida na linguagem da cena e não no discurso sobre ela. O sr. concorda? Castorf – É um absurdo tentar ilustrar no teatro a situação econômica e política no mundo. Você precisa apresentar outro tipo de pensamento que a priori é anticapitalista. O pensamento protestante na Alemanha representa o nascimento do capitalismo. Isso é uma frase tirada de um texto de Dostoiévski. Seu conteúdo é bastante político. Ontem, eu fiz uma palestra sobre isso. Qualquer frase radical política que você tira do contexto provoca uma “obsessão” por causa da rápida troca de informações, a realidade que se vive hoje em dia. Troca rápida, intercâmbio rápido, eis a lógica do capitalismo. Não se pode bloquear o fluxo do capital e então é preciso acabar com o que representa obstáculo. É por isso que o teatro precisa apresentar um pensamento crítico, colocar obstáculos. E o pensamento de Dostoiévski coloca barreiras nesse sentido. Camarim – Durante a sessão de “Na Selva das Cidades” no Sesc Pinheiros, em 2006, a recepção foi muito difícil, parte do público levantou com raiva, reclamou-se muito também das legendas que não funcionaram. Qual o papel do espectador? A submissão a ele seria uma doença da cultura atual? Castorf – Eu acho que é um processo intimo. Quando um homem procura uma prostituta, podemos questionar se o faz por amor. É um processo que se dá no nível dos olhos, e nos dois lados: “Eu pago e você tem que fazer isso”. Não se trata, por outro lado, de humilhar o espectador. Como artista, se trata da necessidade Camarim – Quer dizer que houve dialogo? Castorf – Sim. E, na verdade, “Na Selva das Cidades” é uma peça realizada a partir da luta de iguais, um homem é igual a outro. Camarim – E na fusão de “O Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues, com “A Missão”, de Heiner Müller, projeto a que assistimos no mesmo 2006, o sr. se aproximou da cultura brasileira, tocou a ferida do racismo a partir de um mito da dramaturgia brasileira, Nelson Rodrigues. Como o sr. reflete aquela experiência? Castorf – Foi importante unir Heiner Müller e Nelson Rodrigues, promover o choque cultural entre esses dois materiais. Mas, para mim, por exemplo, trabalhar com esses jovens atores da cidade, com o grupo Os Crespos, trabalhar com os afrobrasileiros, que a meu ver acharam um lugar em Heiner Müller, isso foi importante. Houve como que um estado de sitio emocional no qual a atriz Denise Assunção, que também fazia parte do elenco, se movimentou quando ela se abriu e contou coisas de seu segredo pessoal, ela me presenteou com isso. Tem a ver com o charme, é claro. Quando ela fica no palco, quando está fazendo um vodu, uma personagem branca em transe com o próprio canto da atriz, isso que me interessa exprimir, tocar. Acho que o ator quer tocar também, no seu entendimento de teatro. O teatro pode ser, de vez em quando, um sol forte e estranho. Ser contra a previsibilidade de tudo que acontece. Uma coisa de “guerrilheiro” Dramaturgista vive em São Paulo A entrevista em alemão com Frank Castorf foi traduzida pelo seu compatriota Matthias Pees, radicado no Brasil desde meados da década. Entre 1995 e 2000, ele foi programador, produtor, dramaturgo e dramaturgista-chefe do diretor artístico do Volksbühne am Rosa- que surpreende, que contra-ataca. Se você tem quatro semanas para fazer, então isso para o teatro é bom: você não tem que pensar tanto, vai e faz. Você não discute, é como fazer musica. Aquilo resultou para mim um trabalho muito importante: superar o estranho e ser estranho através do trabalho. Camarim – O sr. tem algum interesse especifico no teatro brasileiro? Castorf – Não conheço tanto ainda... Só conheço um pouco do Grupo Oficina porque trabalhei com eles na Alemanha. Quanto a outros processos, conheço pouquíssimo. Camarim – E qual sua impressão sobre o trabalho do Oficina de Zé Celso? Castorf – É algo muito específico, muito dionisíaco na maneira de entender o teatro. Como alemão, me falta uma parte racional. E clareza nas ações mais contínuas no sentido político e social dessa cena. Mas, o mais importante é que os espetáculos não me cansam, não percebo as horas passarem. Alessandra Perrechil de introduzi-lo em um segredo, em um pensamento diferente, penetrar um mundo que lhe pode ser entranho. Quando ando pelas ruas de São Paulo, não conheço a língua, mas entendo o que acontece entre dois seres humanos de determinado bairro, de determinada rua. Isso é uma forma de segredo, de comunicação. Que inclui a afirmação pelo outro, o amor ou a proximidade. Ou ainda o contrário de tudo isso, a rejeição. E a rejeição, no fundo, é uma reação ativa do espectador. Luxemburg-Platz, em Berlim. Antes, Pees fora conselheiro artístico do dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller no Berliner Ensemble, justo sob comando do autor de “Hamletmachine”. Desde 2004, é curador e produtor em São Paulo. Mesmo vivendo no Brasil, realiza projetos internacionais como responder, ao lado de Castorf, pela edição de 2004 do festival internacional Ruhrfestspiele, na cidade de Recklinghausen, oeste da Alemanha, fundado pela união dos sindicatos do país. Pees lembra que o destaque daquele ano foi a reconstrução arquitetônica do projeto da Lina Bo Bardi para o Teatro Oficina numa antiga mina de carvão. Lá, ocorreram dez apresentações de “Os Sertões”, a “transcriação” de José Celso Martinez Corrêa para a obra de mesmo nome de Euclydes da Cunha. 2º semestre • 2010 • 41 A Cena contemporânea e Manuel Fernández Algumas expressões significativas Versus, de Rodrigo García Por José Henríquez Neste trabalho faço uma apreciação muito parcial e subjetiva de expressões cênicas contemporâneas que foram criadas na Espanha nesta ultima década. Parcial, porque o desenvolvimento do Estado e das Comunidades Autônomas está, ainda, em uma fase de certo “protecionismo” das criações de suas próprias regiões (e suas línguas, no caso do bilinguismo), que trás como consequência uma mínima circulação das obras fora da sua região de origem, questão razoavelmente favorável para as companhias de artistas independentes e as criações de maior risco. Subjetiva porque escrevo sobre aqueles grupos cujo trabalho eu conheço por conta do meu oficio como jornalista especializado em teatro em Madrid. Faço, pois, uma seleção, pontuando todos os trabalhos que circularam pela Espanha e para fora dela. Das experiências comentadas nestas páginas podemos vislumbrar uma forte corrente até a “hibridação” das artes, até a busca de novas formas de relação com o publico, que operam tanto na dança como no teatro. Sendo que neste ultimo se destacam os esforços para desenvolver 42 • Camarim • nº 45 uma dramaturgia diferente. Por ultimo, foi uma década rica em de iniciativas associativas de artistas e coletivos contemporâneos. Autores Entre os autores de textos teatrais que mais se destacaram na década, me parece que a obra mais importante é da catalã Lluïsa Cunillé, que em suas ultimas estréias mostrou seu texto carregado de elipses, enigmas e jogos de teatralidade em assuntos explicitamente sociais e políticos (em sua vasta obra anterior eram mais concentrados na vida íntima e pessoal ). Em “Barcelona Mapa de sombras” constrói um quebra cabeça da memoria social, política e urbana da cidade, desde a pós-guerra até o presente, em torno de hóspedes de uma pensão, com personagens de varias gerações e origens (incluindo uma imigrante latino-americana), o cenário é o que foi uma casa familiar de uma rua do centro da cidade a ponto de desaparecer com a remodelação urbana e pelos negócios imobiliários. Après moi ledéluge (“Depois do meu diluvio”) é um inquietante confronto da visão européia a espanhola sobre a exploração da África subsaariana e a contraditória visão e expectativa que um africano pobre tem da Europa, apresentado em um inteligente e enigmático dialogo de três personagens: um empresário europeu, uma interprete européia que vive na África e um velho negro (personagem invisível no espetáculo, sua presença é criada e sugerida pela “tradução” da interprete), que quer colocar o empresário a prova. Paralelo ao intenso trabalho em teatros públicos e alternativos catalães, Cunillé estreia periodicamente com sua própria companhia, La Hogaresa (A hungara), um veterano coletivo de Valencia, obras suas ou escritas a quatro mãos junto a Paco Zarzoso, principalmente em salas alternativas. Suas montagens são como “vasos comunicadores” com temas e personagens em obras como a “Barcelona”, citada anteriormente. No mais recente trabalho de La Hongaresa: “Madrid El Alma Serena” (dezembro de 2009), três vizinhos resistem à demolição de um velho edifício e abraçam utopias de maneira muito peculiar, paralelamente, outra cena de forma surrealista, se passa em um velho bairro portuário valenciano, um grupo de vizinhos luta para evitar que suas residências sejam desapropriadas em uma operação imobiliária municipal. Entre os autores castelhanos, de toda a considerável obra própria e como adaptador o madrilenho Juan Mayorga de seus trabalhos eu destaco: “Animales Nocturnos”, uma peça escrita em processo colaborativo com o grupo independente. “Gundalera”, que indaga com profundidade e desassossego, as raízes do racismo e da xenofobia crescentes na Europa, através do desenvolvimento de uma terrível tensão entre dois casais de vizinhos, ambos brancos, sendo que um deles é autóctone e outro é estrangeiro e reside ilegalmente no país, levando a uma ralação de escravidão entre as personagens. Nesta mesma linha dialética de dominação, “El Chico de La ultima fila”, também encenado por um grupo independente, “Ur Teatro”, de Guipúscoa, enfoca a inquietante inversão de poder e de sentido de ensinar que acontece entre um professor de literatura que quer encenar “Pigmaleão” e um inteligente aluno que acaba escrevendo sobre a vida de seu professor e sua família e assim interferindo nelas. “Mayorga” colaborou também com outro coletivo importante, “Animarlario” – cujo o trabalho recebe grande apoio midiático e com o qual fez vários trabalhos , entre eles “Hamelin”, um drama sobre a pederastia e suas cumplicidades sociais. Uma das obras mais representadas de Mayorga, dentro e fora da Espanha, tendo diversas traduções, e que fez sua estreia em um teatro publico, é “Himmelweg” (Caminho do céu), um interessante texto sobre as cumplicidades e a operação teatral que encobriu o massacre de judeus nos campos de extermínio nazistas. A madrilenha Laila Ripoll, atriz, autora e diretora, em paralelo a um trabalho continuo de recriação de clássicos do Século de Ouro encenou com sua companhia “Micomicón” uma série de obras que desenvolvem um teatro grotesco e fantasmagórico enraizado na estrela de Valle-Ynclán e o “esperpento1”. Entre suas obras, “AtraBilis” (Quando estaremos mais tranquilas), uma negra perversão do drama rural da Casa de Bernada Alba, de Lorca (quatro mulheres interpretadas por homens, velam o invisível cadáver do “macho” e patriarca familiar, que vai diminuindo a medida que os segredos de cada uma das personagens com o morto vai sendo revelado). Em “Los niños perdidos”, os fantasmas de um grupo de órfãos seqüestrados em um orfanato religioso durante a Guerra Civil, relembram em jogos e teatralização a tragédia que os levou a morte. Ripoll também colaborou com outros coletivos independentes de Madrid, que encenaram peças como “Que nos quiten lo bailao” (um paralelo entre o exílio republicano e a atual imigração latino-americana na Espanha), “Restos” (duas peças curtas em um mesmo espetáculo, que fazem uma ironia com as fossas comuns de republicanos executados por tropas franquistas), ou “Unos cuantos piquetitos”, peça pioneira em um tratamento grotesco sobre o assassinato de mulheres. Outras formas A maior parte das experiências cênicas que aconteceram na ultima década ocorreram na chamadas salas alternativas, que surgiram nos fins da década de 80 principalmente em Madrid e Barcelona. Não como um movimento social e politico, mas basicamente como uma via de expressão artística de escolas, companhias ou artistas que não tinham espaço nos programas e teatros públicos ou privados. A citada obra de Cunillé “Barcelona mapa de sombras”, por exemplo, nasce de um convite a vários autores pela sala Beckett, de Barcelona, a escreverem sobre sua cidade. Em duas décadas e por iniciativa de seus incentivadores, o dramaturgo José Sanchis Sinisterra, esta sala se tornou uma grande oficina de formação de dramaturgos, que atualmente tem programas de intercâmbio, de traduções e publicações com vários países europeus. Outra sala alternativa, a “Cuarta Pared” (Madrid), realizou nos primeiros cinco anos desta década uma importante experiência cênica que teve grande repercussão 1 O esperpento foi criado por Ramón del Valle-Ynclán se caracteriza pela distorção da realidade buscando suas características grotescas. 2º semestre • 2010 • 43 13 rosas, de Arrieritos Danza em todo país: a criação da “Trilogia de la Juventud”, um processo que reúne três autores madrilenhos, José Ramón Fernándes, Yolanda Pallín e Javier García Yagüe (diretor da sala e do coletivo), também colaborando na construção do texto o elenco interviu com suas próprias contribuições. As três obras, que em momento posterior foram encenadas juntas, compõem um panorama de meio século, visto a partir de personagens que completavam vinte anos e iniciavam suas vidas no mundo do trabalho, sentimental e politico em momentos chave da história espanhola: os anos 50, o pósguerra e o êxodo do campo para a cidade (“Las manos”); os primeiros anos da década de 70; o movimento sindical e a luta contra o franquismo (“Imagina”); e os anos 2000, com a proliferação de “subempregos” e a erupção das tecnologias eletrônicas (“24/7 veitecuatro horas al dia, siete dias a la semana”). Nestes espetáculos combinam narração/ação e planos de realidade/ficção propondo diferentes disposições da plateia. Em 2008, a “Cuarta Pared” empreende o projeto “Espacio Teatro Contemporáneo, ETC”, em que se realizaram vários laboratórios e workshops de pesquisa, tanto para as áreas de novas formas e realidades dramatúrgicas como a experimentação de outras linguagens cênicas. O teatro de criação e performático Em paralelo ao tetro baseado na palavra escrita se consolidam as trajetórias de vários artistas e coletivos que integram sua dramaturgia a uma criação complexa que integram outras expressões (dança, movimento, musica, artes plásticas e visuais...), chegando, algumas vezes, a predominar nas obras. Entre esses artistas quero destacar Rodrigo García e Angélica Liddell, dois artistas de uma obra solida e contundente, de grande valor textual, teatral e “performático”, que tiveram grande influencia em seus pares e em gerações de jovens. Rodrigo García Nos anos 90, o artista hispano-argentino Rodrigo García, realiza uma dezena de trabalhos com diferentes “equipes” de sua companhia, “La Carniceria”, que têm um importante eixo textual. Contudo esse texto tem origens e registros muito diferentes da dramaturgia convencional: poemas, ensaios e relatos de autores muito diferentes, além de relatos pessoais. Sobre tudo, os textos eram escritos em forma de poesia em prosa e versos livres, combinando uma ironia singular e o lirismo do cotidiano, que os atores recitam delicadamente ao público, para si mesmos ou uns para os outros, de uma maneira coloquial, tentando distanciar os textos da interpretação e da 44 • Camarim • nº 45 declamação. Junto a este eixo, os atores executam uma série de ações paralelas, justapostas ou alternadas com as palavras, dessa maneira distorcendo e poetizando objetos e usos cotidianos, os convertendo em material cênico e ao mesmo tempo plástico; em alguns desses trabalhos os atores preparam comidas e no final comem junto com os espectadores (“Los três créditos” e “Notas de cocina”). Nestas ações, García se inspira em obras de artistas plásticos, artistas performáticos e criadores cênicos (Bruce Nauman, SashaWaltz, Jan Fabre e Pina Bausch). Nos primeiros anos desta década, García realiza uma série de montagens que tem como eixo uma critica as marcas e logotipos, fetiches da suposta sociedade do bem estar e da vida privada reduzida ao consumo passivo de produtos de baixa qualidade, exibindo as novas formas com que as multinacionais barateiam a produção e o abismo que se aprofunda entre o mundo rico e o pobre. Aftersun; “Compré uma pala en Ikea para cavar mi tumba”; “La historia de Ronald, el pallaso del Mc Donald’s”; “Esparcid mis cenizas en Eurodisney” são montagens que tiveram boa acolhida em festivais e em teatros públicos do norte da Europa. Estes teatros começam a apoiar e agendar suas peças, com tanta frequência que sua obra vem sentindo o efeito da continua demanda ”festivalera”, assumindo o risco de espetáculos que sejam uma variação de uma formula previsível. Paulatinamente, nas obras de García começa a predominar a ação, a invenção de imagens e situações não usuais em cena (ações dentro de uma barraca de acampamento, em um corredor estreito de madeira, ações com animais domésticos e com alimentos como: leite, cereais, ketchup etc), ou a incorporação de músicos, enquanto os textos vão se reduzindo a aforismos, conselhos, “anti-estlogans ”, que em muitos casos se projetam diretamente em uma tela. Em alguns trabalhos recentes Rodrigo García mescla a sua ironia da vida cotidiana com apontamentos apocalípticos e céticos sobre homens e mulheres contemporâneos e suas atitudes frente as crises econômicas – “Cruda, vuelta y vuelta, al punto, chamuscada” (2007)- assim como as guerras e as relações afetivas – “Versus” (2008)- Em ambas retoma sua conexão com a Argentina, convidando o público a intervir em uma “murga” (banda popular que toca na rua durante os carnavais de Buenos Aires) ou mostrando alguns de seus imigrantes com canções, imagens filmadas e relatos. AngelicaLiddell O teatro e as performances de Angélica Liddell se distinguem por sua integridade artísticas. Em seus trabalhos aparecem sua obra como poeta, atriz, diretora, cenógrafa e figurinista. Em uma década de criações barrocas, inspiradas em tradições teatrais e literárias, nos primeiros anos desta década realiza uma primeira trilogia de dissecação grotesca da família, a educação e a reprodução humana (“Tríptico de la Aflicción”), em seguida, estreia uma trilogia de obras explicitamente politicas e sobre assuntos públicos, reunidos sobre o título de “Actos de Resistencia contra la muerte”. A primeira, “A los peces salieron a combatir contra los hombres”, faz uma espécie de ária operística de voz e ações sobre os milhares de africanos afogados na costa do Estreito de Gibraltar em sua peripécia de chegar para ao “paraíso europeu”, integrando ao espetáculo um documentário sobre o processo de criação e ações plásticas e teatrais realizadas durante a montagem. A segunda peça da trilogia, “Y como no se pudrió: Blancanieves” toma a forma de um conto tradicional, com todo seu terror, a cerca de uma menina prisioneira de guerra, se inspirando no massacre de estudantes em Beslán (Ossétia) e convidando a meninos e meninas a participarem no começo e no final da peça, que ínicia com uma avó lendo o conto para a neta. Por ultimo, “El año de Ricardo” adota a forma de um vibrante concerto de rock em que sua estrela usa toda flexibilidade de sua voz e seu corpo, incorporando a figura de um ditador que percorre o tempo desde a época de Shakespeare até nossos dias. Nesta trilogia aparece como companheiro de cena, em ações e diálogos, o ator Gusmerindo Puche, outro fato muito importante, começa sua colaboração como veterano ator Carlos Marquerie, que realiza valiosos projetos de iluminação, que se integram as obras como uma dramaturgia e continua colaborando com Liddell até hoje (Marquerie é também o iluminador dos trabalhos de Rodrigo Garcia). Paralelamente com seus atos de resistência contra a morte, Liddell cria três performances em espaços cênicos (museus, sala de exposições e pátios), que se intitulou “La desobediência hágase em mi ventre”. Ela escreve estes textos em tom de confissão, e por meio desse tom a autora percorre momentos e reflexões decisivas em sua vida e em ser mulher com um leitmotv2 recorrente: “Meu corpo é meu protesto”. Em “Lesiones incompatibles com la vida” transcreve em um poema sua infância e sua decisão de não ter filhos, enquanto coloca seus pés no gesso, que vai se solidificando e vestindo uma máscara com sua foto de criança. Em “BrokenBlossoms” retrata com ironia uma entrevista que deu para uma tese sobre teatro contemporâneo, e em paralelo se projetam vídeos de um viagem ao campo e de um trabalho realizado em um hospital psiquiátrico onde internos interpretam vários autores espanhóis conhecidos. E finalmente em “Yo no soy bonita”, titulo retirado de uma popular canção infantil, relata a violência sexual que ela e outras meninas sofreram em um quartel da cavalaria, a humilhação e o silêncio de anos; em cena acaricia um cavalo branco em quanto se autoflagela cortando seus joelhos e bebe seu sangue. Esta trilogia tem uma forte carga politica de afirmação pessoal e rebeldia contra os papéis de dependência e maus tratos que se impõe a mulher. Em seus trabalhos seguintes Liddell integra as duas esferas de sua pesquisa (o pessoal e o politico) com total coerência e harmonia: o pessoal é politico e o público/ politico é pessoal. Em “Perro muerto em tintorería” e “Los Fuertes” feitas a partir de uma encomenda de um teatro público, manifesta sua concepção de teatro com uma paixão carnal, de ser contra que os atores sejam apenas “funcionários”. Com uma ficção futurista e um ritual de movimento inspirado em provas esportivas, que disseca a tese de Contrato Social de Rosseau, a traição e o fim trágico dos ideais, a estética da ilustração e da revolução tendo o artista como testemunha critica da sociedade. Nesta ocasião, a montagem integra junto com Liddel e Puche outros três atores e uma jovem mulçumana (que não é atriz) e que em uma determinada cena faz um irônico interrogatório aos atores sobre a situação da Europa atual. O espetáculo traz um jogo que espelha de forma grotesca: esculturas em látex dos atores, como se fossem seu reflexo nu e esvaziado, o enfrentamento no espaço de uma reprodução do quadro El columpio, de Frangonard (uma idealização ilustrada) um balanço que pende uma das esculturas e um quadro/muro com flores. Do alemão, motivo condutor ou motivo de ligação ou ainda motivo principal 2 2º semestre • 2010 • 45 Em “Casa de fuerza” (2009), uma confluência de todas as linhas e áreas que Liddell já desenvolveu nas trilogias anteriores. Com duas atrizes acompanhando Liddel, a obra entrelaça a confissão de um período de crise afetiva da artista, levando então a um aprofundamento na dissecação dos papéis, sujeições, dependências e desejos de uma relação sentimental, o entretenimento físico como anestesia para resistir a dor, cenas das três irmãs de Tchekhov, que falam de seu desejo de viajar, sua resistência e seu trabalho cotidiano, testemunho de três atrizes mexicanas de Chihuahua sobre o assassinato de mulheres no norte de seu país. Todos esses elementos textuais são alinhavados com a aparição de um grupo de mariachis e suas canções, com a bela interpretação de um violoncelista/cantor, com a ação de encher uma parte do cenário de carvão mineral e logo depois retirá-lo, temos a presença de um campeão e treinador de luta que faz uma demonstração levantando um carro fazendo e junto com a cena da citada cena das atrizes mexicanas faz um ritual plástico de lotar a cena de cruzes. É o trabalho cênico que com maior intensidade encarnou em cena a vida e a visão de uma mulher na intimidade de seus afetos, projetando com toda fluidez e naturalidade a situação social de suas pares. Liddell conseguiu em uma década um belo e vital conjunto de textos e registros cênicos em um teatro de criação que une o privado e o público. Fernando Renjifo Nesta década que termina, o ator hispano-peruano Fernando Renjifo materializa um processo radical de síntese cênica, que foram gradualmente encarnadas nas três versões de “Homo Politicus”, uma reflexão sobre o fazer e o pensar politico. As versões foram realizadas em Madrid, Cidade do México e Rio de Janeiro, de 2003 a 2006, sendo que em cada lugar foram encenadas com interpretes locais, e alguns desses atores foram reunidos em uma performance final, trazendo a apresentação da trilogia completa. A partir desta trilogia, cultiva um texto cada vez mais poético, menos explicito e uma clara vontade de compor de forma mais intensa com os corpos e seus movimentos, utilizando espaços e disposições não convencionais (salas de exposições, espectadores em circulo), textos projetados em telas. Ao mesmo tempo, materializa e questiona um olhar do mundo e dos espectadores a partir da perspectivas que tiveram de suas viagens e estadas em Beirute, Malí, Nigéria, Rio e Cidade do México. Com o espetáculo “El lugar y La palabra. Conversación interferida”. Beirute (2009) inicia uma série intitulada: “El exilio y el reino”. O espectador percorre uma Beirute de vozes e línguas (árabe, francês, inglês...) e criamos em nossas imaginações os rostos e gestos de oito vizinhos de uma cidade que “vemos” em uma tela sem 46 • Camarim • nº 45 imagens, sempre negra, e falam de suas vidas cotidianas e suas recordações, do duelo pelos mortos e seus conflitos internos (ir, ficar, agir), das culturas e religiões que se enfrentam e convivem em uma cidade que está em guerra e violência permanente. A tradução de suas palavras se alterna na tela com fragmentos de poemas de Antonio Gamoneda e leituras de versos de poetas de Al-Andalus, Palestina, Líbano, desde a idade média até nossos dias (Ibn Hazm, Mahmoud Darwish, Adonis), que poetizam guerras, destruição, exílio, servidão, ausências, que realizam em vários momentos do ator libanês Ziad Chakaroun e o madrilenho Alberto Nuñes. Entre suas leituras, os atores se levantam e deitam no solo, uns sobre os outros, invertendo a ordem de seus corpos na formação. O autor/diretor convida ao público a entrar no espaço onde estão os corpos, e prolongar sua contemplação do encontro. O segundo trabalho da série, “Tiempo como espaço” (2010), propões um jogo de espelhos e figuras até o interior e o exterior da cena, para causar estranhamento do nosso olhar sobre a África. Os atores nigerianos Pitoua Alheri e Aboubacari Oumaru desenham no ar uma série de figuras inspiradas nas alteradas e teatrais esculturas de Juan Muños, exposta no museu Rainha Sofia em 2009: seres estranhos, suspensos ou estáticos em frágeis equilíbrios sobre bordas, assentos, cadeiras ou junto a paredes da sala. Improvisam conversas em suas línguas (djerma, hausa, peul), riem, brincam, fazendo contraponto ao poema de Renjifo sobre uma viagem a África, que Alberto Nuñes lê de frente a um espelho um caderno com partes de “Tierra Baldia” (e com citações de T.S. Eliot, Peter Handke, Camus entre outros), que se converte em um inquietante exercício sobre nossos preconceitos e como olhamos, e o que olhamos, em seres e culturas diferentes da européia. Hibridismo a partir da dança. A dança tem sido o território de pesquisa e hibridação dos últimos anos, em constantes intercâmbios e integrações com expressões do teatro, da musica, instalações, artes plásticas, a fotografia, o vídeo, a performance (seu paradigma é a continua e singular obra da coreografa madrilenha La Ribot), em meio a uma grande fragilidade e da luta constante de seus coreógrafos/as e companhias para conseguir espaço de trabalho, pesquisa e programação continuadas. Comentar seu rico desenvolvimento exigiria um amplo trabalho, contudo, quero apontar alguns trabalhos e trajetórias significativos precisamente por sua hibridação e pelos temas que abordam. A companhia galega “Matarile Teatro”, de Ana Vallés, criada originalmente como um coletivo de animação de objetos, nesta década desenvolve um estilo próprio de teatro dança, que recebe influencia da Pina Bausch e Tadeusz Kantor. Em seus últimos trabalhos – “Abrazo partido, História natural (eloxio do entusiasmo)”, “Animalesartificiales”, “Cerrado por aburrimiento” – reúne bailarinos, atores, músicos para criar a partir de improvisações uma série de rituais festivos em que uma trupe de “figuras” (não-personagens), celebram e constroem o próprio ato cênico, a relação com o público, a precariedade e as contradições de sua arte no contexto atual. Textos dos escritores John Berger e Mahmoud Darwshi se integram e inspiram “Atrás los ojos”, “Testimonio de lobos” e “He visto cavalos”, trabalhos recentes da companhia catalã “Mal Pelo”, de Maria Muñoz e Pep Ramis (premio nacional de dança 2009). Neles estão presentes os conflitos atuais na Europa, a memória e as relações afetivas, em formatos que cada vez integram mais a palavra e o vídeo em interação com bailarinos. A experiente coreógrafa madrilenha Elena Córdoba empreendeu um vasto ciclo de pesquisa do corpo em movimento e suas condições históricas e politicas, Anatomia poética, que mostrou uma série de instalações fotográficas e de vídeo tendo como contraponto a dança. Acontecem nesta década, vários trabalhos de dança teatro que encaram a história da guerra civil e a pósguerra espanhol. A veterana companhia de Valencia “Ananda Dansa”, pioneira na abordagem desses temas em conjunto com uma antiga companhia de teatro de bonecos ,”BabalinaTitelles”, criaram “Pasionaria”, um belo espetáculo inspirado na vida e na luta de militantes comunistas, que em um espetáculo funde a dança contemporâneo e a animação de objetos e bonecos. O coletivo madrilenho “Arrierito Danza” cria “13 rosas”, uma peça de dança teatro, com musicas e canções ao vivo, que cria uma sutil ficção sobre o encarceramento e fuzilamento de jovens militantes socialistas por tropas franquistas ao terminar a guerra civil. A companhia catalã “Senza Tempo” cria “La canción de Marguerita”, um trabalho que funde dança contemporânea, vídeo e cenas teatrais, a partir de relatos e testemunhos das próprias interpretes sobre a repressão e a vida cotidiana no pós-guerra. Em uma visão geral os grupos que surgiram nos anos 2000 tem uma formação muito eclética compondo um mosaico que cultiva e integra as artes mais diversas, em uma criação e absorção, a autoconsciência e certo orgulho El alma se serena, de Lluïsa Cunillé 2º semestre • 2010 • 47 Julio Calvo La casa de la fuerza, de Angélica Liddell de si mesmo e uma exploração irônica das formas e do próprio ato cênico e a percepção do publico com outras realidades fictícias. ...a partir do teatro Nesse teatro fronteiriço, também há companhias veteranas e emergentes que no teatro incorporam expressões da dança, de expressão corporal e outras artes. É notável o trabalho atual do já citado Carlos Marquerie, criador de uma companhia de teatro de bonecos e objetos, que em seus últimos trabalhos com seu atual coletivo, principalmente na trilogia “El cuerpo de los amantes”, que incorpora bailarinas e atores, em três instalações plásticas, de inspiração pictórica, que indagam temas clássicos da relação do artista com seus motivos de inspiração, em seu trabalho com os materiais elementares, no ciclo do fulgor e extinção do corpo e a paixão amorosa, sempre com referências a contextos políticos reconhecíveis. Também se destacam os últimos trabalhos do autor Antonio Fernández Lera outro veterano, companheiro de projeto de Marquerie e do já citado Rodrigo García, que incorporam a dança, a intepretação e o vídeo, em ficções poéticas e profundas conotações políticas e pessoais (“Las islas Del tempo”, “Memorial Del Jardín”). Entre os grupos novos se destacam os trabalhos do coletivo catalão “Los Corderos Sc” (“Tocamos a dos balas por cabeça”, “El mal menor”), que esta elaborando um estilo singular de teatro físico com ficções apocalípticas, de textos absurdos e surrealistas, que sugerem imagens grotescas da vida contemporânea. Mais jovem que “Los Corderos Sc” o grupo valenciano “El Pont Flotant” em suas montagens, “Como piedras e Ejercicios de amor” – desenvolve um 48 • Camarim • nº 45 teatro de ações, textos, musica e imagens a partir de experiências próprias (e até de seus pais e amigos), no primeiro espetáculo o grupo transforma em material cênico de a memória viva, no segundo espetáculo a celebração da ilusão teatral em meio ao individualismo imperante. Também versa sobre sua própria experiência vital e sentimental o trabalho do grupo madrilhenho “La Tristura”, integrados por veteranos, que apresentou a “Trilogia de La educación”, em três montagens sucessivas que poetizam a herança familiar, o legado das utopias e mitos modernos e seu próprio balanço sobre a juventude, com textos de grande elaboração poética, ações, imagens e cinema e video. O teatro de grupo Sobre o conceito corrente do “teatro de grupo” há alguns sobreviventes, muito ativos, como “La Zaranga”, grupo Andaluz que desenvolveu sua própria poética, uma fusão do grotesco espanhol (Goya, Gutierrez Solana), com o ritual musical das “Pasiones andaluces” e com o teatro de fantasmas e memória de Tadeusz Kantor. Sem alcançar a altura de sua primeira obras (“Vinagre de Jerz”, “Perdonem La Trizteza”), manteve sua voz e seus estilos próprios, na criação de mundos fechados e espectrais, como o dos poetas vanguardistas perdidos pela miséria e a inveja (“Homenagem a los Malditos”), os atores/palhaços ambulantes que não renunciam a sua arte (“Los que rien los últimos”) que fala dos loucos que representam em seu asilo a história de tiranias, guerras e fratricídios, inspirados em pinturas de Goya (“Futuros Defuntos”). Nesta filosofia e prática teatral de coletivos, grupos veteranos como “Teatro Del Norte” (Asturias), em que mantêm uma linha de trabalho em que recriam as contribuições das vanguardas históricas. “Cambaleo Teatro” (Madrid), que evoluiu até um teatro contemporâneo com características performáticas, ou “Atalaya” (Servilha), que combinam a recriação contemporâneas de mitos clássicos e as versões de peças e chaves do repertório vanguardista, aparte de estabelecer uma colaboração permanente com as iniciativas e encontro do ISTA de Eugênio Barba. Outros grupos que começaram em uma linha coletiva, comprometida e experimental, como os históricos “El Joglars”,”Els Comediants”, “Dagoll Dagom”, “La Fura dels Baus”- todos da Catalunha- se mantém em atividade centrando na produção de grandes espetáculos concebidos para eventos especiais e turnês internacionais. Experiências associativas Por último, destacam este panorama as iniciativas associativas e de criação de redes que nesta década realizaram alguns coletivos de teatro, dança e teatro infantil. A Coordenadoria de Salas Alternativas, uma associação pública formada em 1992, a partir de 2003 se transforma na Rede de Teatros Alternativos, que agrupa 35 salas de 12 Comunidades Autônomas da Espanha e foca sua atividade em duas áreas: circulação de obras de companhias independentes em salas que sejam ou não associados da Rede, que se materializou em sete edições de um circuito anual de turnês de espetáculos de teatro, dança e performances e espetáculos infantis. E na celebração anual de um encontro sobre criação cênica. Os coreógrafos e companhias de dança contemporânea foram criando uma série de centros e associações de encontro, além de redes de circulação próprias, como La “Portae L’Animal a l’esquena” (Barcelona). “Arteleku”, “Azala” y “Mugatxoan” (País Vasco), ou o arquivo virtual de artes cênicas ARTEA, que também funciona como uma rede, conseguindo apoios institucionais e projetos de pesquisa, a residências artísticas, co-produções e turnês em diversos centros (“La Fundição”, em Bilbao; “La Casa encendida”, em Madrid; “La Laboral”, em Gijón; o centro “Párraga”, em Murcia). No âmbito das expressões cênicas para crianças, a “Asociación Te Veo,” criada em 1992, que reúne a 40 companhias de quase todas as Comunidades Autônomas da Espanha, além de organizar um festival internacional anual e debates com representantes de países convidados, encontros de reflexão e também publicações, desde 2004 impulsionou e ajudou a difundir um “Protocolo” ou manifesto para conseguir melhores condições de trabalhos para atender a este público, seja em lugares públicos ou privados e para enfrentar a competição selvagem que foi objeto este setor das artes cênicas. Animales nocturnos, de Juan Mayorga 2º semestre • 2010 • 49 Um panorama do teatro em Portugal O teatro em Portugal é dominado por uma geração de artistas que ganhou os palcos mais ou menos entre 1967 e 1973, e que foi consagrada nos anos seguintes, quando se deu o 25 de Abril e a mudança de regime, mais ou menos até 1979. É um período de cerca de 12 anos, que vai do final dos anos sessenta ao início dos oitenta. São criados o Teatro da Cornucópia, o Teatro Aberto, A Comuna, A Barraca, o Teatro de Almada, O Bando, em Lisboa, alguns então com outro nome, e a Seiva Trupe, no Porto (onde já havia o Teatro Experimental do Porto, de António Pedro). Os nomes dos encenadores (a maioria também atores) são Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo, João Lourenço, João Mota, Maria do Céu Guerra, Hélder Costa, Joaquim Benite, João Brites, António Reis, Júlio Cardoso. Depois disso vêm Ricardo Pais, Filipe La Féria, Mário Viegas (já falecido). Estes são os intocáveis, a quem se opõem as gerações mais novas. Quais os momentos mais relevantes do teatro português nos últimos anos? Estreada este ano no Festival de Teatro de Almada (Julho), “Dança da Morte/Danza de la Muerte”, a coDança da Morte/Danza de la Muerte, a co-produção do Teatro da Cornucópia com a companhia espanhola Nao d’Amores 50 • Camarim • nº 45 produção do Teatro da Cornucópia com a companhia espanhola Nao d’Amores, a partir de textos dos séculos XIV a XVI, com Luis Miguel Cintra no principal papel e encenação de Ana Zamora, promete reverberar na memória dos espectadores. Em 2009, o espectáculo mais importante terá sido “Esta noite improvisa-se”, de Pirandello, na encenação de Jorge Silva Melo para os Artistas Unidos e o Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa (actualmente sob a direcção de Diogo Infante, estrela do teatro, cinema e televisão em Portugal). Nuno Cardoso levou ao expoente o seu talento policromático com uma montagem de “Platonov” (2008), no Teatro Nacional de São João, no Porto, durante o mandato de Ricardo Pais. “Turismo Infinito” (2007), a partir de Fernando Pessoa, também no TNSJ, marcou o regresso do próprio Ricardo Pais ao vigor da sua estética teatral sem drama. “Todos os que caem” (2006), de Beckett, uma encenação de João Mota para o Teatro da Comuna, de Lisboa, com Maria do Céu Guerra (da Barraca) e Carlos Paulo, mostrou o talvez seja o canto do cisne de alguns dos mais importantes artistas de teatro portugueses. Pelo contrário, os chamados grupos da descentralização, as companhias municipais de Viana, Braga, Coimbra, Évora, entre outras, foram desbaratando o capital de esperança que acumularam no início da sua actividade. Luis Santos Por Jorge Louraço Figueira O Bando e o Teatro Meridional, em Lisboa, o Teatro de Marionetas do Porto e o Circolando, no Porto, mantiveram sempre o nível de excelência artística que justifica o financiamento público (por um, dois ou quatro anos, conforme os casos). São estas as companhias que conseguiram uma síntese mais feliz entre referências e contexto portugueses, mas nada provincianos, e uma linguagem artística própria. Por alguma razão são também das mais internacionais. Além disso, estes grupos preparam o seu trabalho para que possa sair em digressão pelo país e pelo estrangeiro. O Teatro Meridional teve grande sucesso com os ciclos de programação Contos em Viagem (dedicado a cada um dos países da lusofonia) e Províncias (dedicado às várias regiões de Portugal, de que fazem parte os premiados espectáculos “Para Além do Tejo” e “Por Detrás dos Montes”). Tratam-se normalmente de espectáculos para todos, com mais ênfase nos aspectos visuais e sonoros, ou às vezes na expressão lírica e narrativa, do que na ação dramática. Outra companhia de digressão, o Peripécia, grupo luso-espanhol sedeado em Trás-os-Montes, tem apresentado espectáculos de teatro de clown por todo o país com grande sucesso. O Teatro Regional da Serra do Montemuro, sedeado numa aldeia do interior, que apresentou várias peças sobre a convivência entre raízes locais e caminhos cosmopolitas, em Portugal, parece ter perdido algum do fulgor inicial, mas mantém-se em actividade regular. Grupos mais novos como os Primeiros Sintomas (com encenações de Bruno Bravo e de Gonçalo Amorim, e peças de Miguel Castro Caldas, entre outros) e o Teatro Praga (com encenações e criações colectivas onde pontificam Pedro Penim, André e. Teodósio e José Maria Vieira Mendes) são a face mais urbana, ou lisboeta, do movimento teatral. Zona Mista Teatro e dança continuam sistemas separados, com públicos distintos e artistas diferentes. Pegando nas respectivas listas dos dez melhores na dança e no teatro em 2009, por exemplo, dificilmente algum espectáculo poderia trocar de lista. Além do mais, a dimensão é incomparável. A diferença entre o teatro e a dança é tão grande que o Ministério da Cultura atribuiu, no final da década (para os anos 2009 a 2012), nos apoios agora chamados “diretos”, cerca de onze milhões e meio de euros para 80 entidades no teatro, e cerca de dois milhões para 25 entidades na dança, isto é, seis vezes mais dinheiro para três vezes mais entidades. Apesar disso, alguns dos projectos mais interessantes dos últimos anos deram-se no cruzamento das duas artes, em especial depois das duas edições do curso de encenação para teatro promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian e dado pelo grupo britânico Third Angel (por sua vez algo devedor da influência de grupos mais antigos como o Forced Entertainment). Pedro Gil (“Mona Lisa Show”) e Victor Hugo Pontes (“Ensaio”) são criadores multidisciplinares que têm produzido obras singulares, nem dramáticas nem coreográficas, muito apreciadas pela crítica e pelo público. Alguns desses artistas, todos trabalhando numa zona mista entre teatro, dança e performance, têm uma carreira internacional em nome próprio, colaborando com companhias, teatros e festivais estrangeiros: Vera Mantero, João Fiadeiro, Patrícia Portela (com a trilogia “Flatland”), Tiago Rodrigues (colaborador regular do celebrado grupo belga STAN), João Garcia Miguel (“Burger King Lear”) e Paulo Castro (“B-File”). No que diz respeito aos festivais, há que destacar a importância das quatro edições do PONTI, no Porto (entre 1997, 1999, 2001 e 2004) e das duas do Alkantara, em Lisboa (2008 e 2010), mas sobretudo dos mais antigos Festival de Almada e FITEI. Em Almada tem sido dado a conhecer muito do teatro feito em francês, mas também de países da América do Sul, nomeadamente em colaboração com o Festival de Teatro IberoAmericano de Cádiz. No FITEI, no Porto, tradicionalmente a porta de entrada do teatro brasileiro em Portugal, têm sido apresentadas recentemente algumas experiências teatrais mais inovadoras de grupos da cidade, em especial pelo grupo portuens Visões Úteis, com as simulações de uma viagem de táxi pela periferia da cidade (“O Resto do Mundo”, a partir de Conrad, em 2º semestre • 2010 • 51 Paulo Pimenta 2004 - Figurantes; de Jacinto Lucas Pires, encenação de Ricardo Pais, pelo TNSJ (Teatro Nacional de São João - Porto) 2007) e uma reunião político-administrativa num hotel (“A Comissão”, com texto original e verbatim, em 2010). O Citemor, em Montemor-o-Velho, tem mostrado boa parte da produção dita contemporânea, em Portugal e em Espanha, cabendo-lhe as estreias em Portugal de Rodrigo Garcia ou Angelica Lidell, de 2000 para cá, e a apresentação de trabalhos de Lúcia Sigalho ou do Teatro da Garagem, que foram de vanguarda na Lisboa dos anos noventa. Mais a Norte No Porto, as mais recentes fornadas da ESMAE estão instaladas numa fábrica abandonada cedida pela escola, organizadas em pequenos grupos cuja expressão poderá ser maior no futuro, mas já promete. “Buckett” e ”Armadilha para Condóminos”, encenações de Ricardo Alves, do Teatro da Palmilha Dentada, e “Segundo Segundo”, do Mau Artista, encenação de Rodrigo Santos, são os melhores exemplos de um movimento independentista, diria, apoiado na programação regular de um café-teatro, a Tertúlia Castelense, que lhes garantiu um público fiel e que foi profissionalizando alguns alunos. No primeiro semestre de 2010, vários destes colectivos recém-formados ocuparam temporariamente uma sala estúdio, o Teatro Latino, onde apresentaram as últimas produções, marcadas por um cepticismo crescente, e sem conseguir o boom esperado. A ver. As companhias fundadas em 1995-1997 no Porto, 52 • Camarim • nº 45 As Boas, o Visões, o Bruto, o Plástico, cujos membros hoje têm à volta de quarenta anos, e a Assédio, o Bolhão, o Ensemble, mais velhos (descendentes do TEP e da Seiva Trupe), parecem ter ficado algo inertes, com espectáculos quase sempre insatisfatórios. Apesar disso, no Estúdio Zero, encenações de Rogério de Carvalho, João Pedro Vaz e Cristina Carvalhal foram boas propostas, ainda que, por vezes, demasiado clandestinas. Os Visões têm expandido a sua intervenção além da criação teatral, como referi. Cartas fora do baralho, o Artimagem e a Panmixia, além de espectáculos para crianças, têm apresentado também textos originais, para todos, garantindo a criação dramatúrgica de Fernando Moreira e José Carretas. Paulo Castro, enfant terrible do teatro do Porto dos anos noventa, trabalha hoje entre Lisboa, Berlim e Melbourne, com sucesso no circuito alternativo. Nuno Cardoso, primeiro ligado aos Visões Úteis e depois ao Teatro Nacional São João, é hoje um dos encenadores mais destacados em Portugal, trabalhando com vários teatros. “Jardim Zoológico de Cristal”, de Tennessee Williams, foi um dos espectáculos mais bem recebidos de 2009. Não alimente os autores No campo da dramaturgia, de resto, nem os teatros nacionais, nem as companhias, nem os encenadores -- nem os dramaturgos, hélas! -- parecem ter algum tipo de política, estratégia ou interesse comum; ao mesmo tempo, a fragilidade da tradição de literatura dramática faz com que os trabalhos apresentados sejam incipientes, comparados com outras dramaturgias europeias. Ainda assim, os Artistas Unidos, de Jorge Silva Melo (encenador a quem se devem as duas principais colecções de textos teatrais dos últimos quarenta anos), têm sido os grandes divulgadores da dramaturgia estrangeira, e os promotores de dramaturgos portugueses, entre os quais se destaca, de longe, Zé Maria Vieira Mendes, autor de, entre outros textos, A Minha Mulher, prémio António José da Silva 2007, e actual membro do Teatro Praga. Nas palavras de Rita Martins, crítica do Público, os AU são “um colectivo que reuniu actores de exceção e levou a nova dramaturgia europeia para a cena, alargando o horizonte teatral português”, que merecem destaque nos últimos dez anos “pela actividade artística, editorial e de divulgação do texto contemporâneo”. De facto, a colecção Livrinhos de Teatro e a Revista dos Artistas Unidos são fundamentais para o teatro em Portugal. Instalados entre 2000 e 2002 no edifício abandonado de um antigo jornal no coração do Bairro Alto, em Lisboa (de onde foram expulsos pela autarquia por alegadas questões de segurança), os AUs foram responsáveis por uma pequena revolução nos modos de produção teatral e pelo acolhimento e formação de uma mão-cheia de autores, encenadores e actores que constituem hoje boa parte da massa crítica teatral portuguesa. Anos Zero A preponderância dos programadores é outro dos fatos relevantes dos últimos anos. Com a construção e/ ou remodelação de teatros e/ou centros culturais em Lisboa, no Porto e nas capitais de distrito, e com as respectivas transferências de fundos, estes intelectuais (raramente artistas) ditam as regras do jogo. Os mais interessantes são Mark Deputter, primeiro no festival Alkantara e agora no Teatro Maria Matos, que, segundo Rita Martins, «ancorado no presente, possibilitou a apresentação de diferentes tendências das artes performativas», com grande «dimensão auto-reflexiva e formal, mas também interventiva e política»; e Francisco Frazão, na Culturgest, destacando-se pela «coerência da programação, que privilegiou o teatro de investigação, nacional e estrangeiro». Os adiamentos, cancelamentos e alterações dos programas de apoio do Ministério da Cultura fazem da relação direta entre criadores e Estado uma roleta russa. O interesse do Estado em investir, através da administração central e local, em teatros e centros culturais que concentrem as decisões e o financiamento às artes do espectáculo parece ser o (mau) caminho para uma maior institucionalização da criação artística. As companhias independentes e os novos criadores viverão num sufoco, enquanto os teatros e centros culturais concentrarão os meios. Exemplo disto é o reforço institucional do TNSJ (que concentra três espaços: São João, Teatro Carlos Alberto, Mosteiros de São Bento da Vitória; actualmente sob a direcção do encenador Nuno Carinhas). O lugar de director será disputado de acordo com simpatias políticas e propaganda eleitoral, como mostraram o desgoverno do Teatro Nacional Dona Maria II nos últimos anos, aparentemente ultrapassado (os dados mais recentes indicam a duplicação do número de espectadores em 2009). Os Teatros Nacionais parecem servir a maioria das vezes para mostrar espectáculos pomposos mas inconsequentes. Por outro lado, o teatro comercial, composto por comédias com actores de televisão ou por musicais, está cada vez mais forte. O caso emblemático é o do Rivoli, no Porto, um teatro municipal, remodelado em 1997, onde durante quatro anos se apresentaram as principais companhias de teatro e dança da Europa, e que dispunha ainda de um pequeno auditório para as companhias locais. Em meados dos anos 2000, com a mudança de poder autárquico, foi cedido ao empresário e encenador Filipe la Féria, cujos maiores sucessos são as versões em português de musicais como Jesus Cristo Superstar ou Música no Coração. Quanto aos restantes teatros, são normalmente dirigidos por administradores cinzentos ou programadores de cores berrantes, sem que haja tempo e espaço para a criação artística, nem para carreiras decentes. Uma rede de teatros nas mãos de funcionários municipais medíocres e directores sem pensamento viabiliza um teatro de aparências sem efectiva mobilização do público, e dependente do estrelado televisivo. Pior do que isso, o jargão da economia, mal falado, invadiu o universo da criação artística. A defesa da criação de indústrias culturais, sem compreender de que se trata, é um lugar-comum dos agentes governamentais e autárquicos, confundindo arte e cultura com consumo e turismo. O Estado não só diminuiu o seu investimento, como se desresponsabilizou, limitando a sua intervenção ao financiamento da atividade. Hoje em dia não tem o mínimo controle da efetivação dos apoios, por não ter critérios de avaliação, o que faz parte dessa ideia de mercado das artes. Ironicamente, a aposta mais desinteressada dessa lógica parola do lucro e o lugar onde as propostas mais estimulantes dos últimos anos, nacionais e estrangeiras, são apresentadas regularmente é a referida Culturgest, do grupo Caixa Geral de Depósitos, um banco público, ainda assim. 2º semestre • 2010 • 53 SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA E CARACTERIZAÇÃO DO TEATRO ANGOLANO O teatro em Angola: um pouco de história Hotel Komarca – Henrique Artes Por José Mena Abrantes Será sempre redutor falar do Teatro Angolano sem antes fazer referência a toda uma série de experiências que introduziram no país essa disciplina artística na acepção em que é hoje universalmente conhecida. Em primeiro lugar estão as representações religiosas feitas nas escolas que, desde os primeiros tempos da colonização, os missionários cristãos foram espalhando um pouco por todas as principais localidades. Tão plausível é a igreja ter tido um papel de relevo na introdução do teatro em Angola que a única peça de um autor angolano publicada antes da Independência se inspira no nascimento de Cristo e que, mesmo na actualidade, a maioria dos grupos de teatro em Angola ainda surge no seio de instituições religiosas. Na sua forma laica, só em meados do século XIX, concretamente nas duas décadas compreendidas entre 1845 e 1865, se encontram referências sobre um teatro feito em Luanda por “jovens portugueses da classe do comércio’’. A estrutura encontrada para a sua produção foi a de ‘sociedades dramáticas’ e as sessões consistiam habitualmente de duas peças, uma de características dramáticas e a outra em estilo de farsa. Curiosamente, um dos grandes dinamizadores desse teatro foi o cônsul do Brasil em Angola (Saturnino de Sousa e Oliveira), que dirigiu e actuou em muitas das récitas dessas sociedades. 54 • Camarim • nº 45 Todos os espectáculos da época eram interpretados exclusivamente por homens, devendo as senhoras, mesmo na assistência, ocupar uma galeria a elas especialmente destinada. A população autóctone, pela própria diferenciação social imposta pela dominação colonial, não tinha acesso às salas de teatro. Cerca de cem anos mais tarde, e apesar de significativamente alterada a conjuntura social, económica e política da colónia, a situação mantinha-se na sua essência praticamente idêntica. A nível do teatro ‘institucional’, localizado sobretudo no Teatro Avenida (hoje desaparecido) permanecia o gosto pela alternância entre o drama e a comédia, embora não necessariamente associados numa mesma sessão como no século anterior. A par de algumas tentativas isoladas de um teatro de confecção local, o grosso das produções era constituído pelas revistas musicais, melodramas e ‘boulevards’ importados da metrópole portuguesa. Só na transição da década de 1960 para 1970 se assiste à criação de uma empresa de teatro fixada em Angola, a Companhia Teatral de Angola (CTA), com o fim confessado de ‘’ser comercial e divertir’’. Com um elenco exclusivamente branco e um repertório no mínimo incoerente, a companhia entrou em crise e extinguiu-se pouco antes da independência do país em 11 de Novembro de 1975. Sensivelmente na mesma época (1968) foi constituído o Clube de Teatro de Angola, com o propósito de ‘’divulgar o teatro e não só fazer teatro’’. Apesar de ter criado um ‘’órgão executivo de montagens teatrais’’, a sua acção foi reduzida e limitou-se quase apenas à publicação de um boletim, aliás de grande qualidade. O Teatro Angolano: antecedentes Modernos investigadores, dentro e fora de África, têm cada vez menos relutância em caracterizar como teatro certas manifestações artísticas dos povos africanos que envolvem numa expressão totalizadora o gesto, a mímica, a dança, o ritmo e o ritual. De facto, é inegável que existem dramatizações teatrais nas grandes liturgias e manifestações rituais e mitológicas do passado e do presente, tanto em Angola como na África em geral. Embora grande parte delas não façam ainda uma clara distinção entre o que é ‘representação’ e o que é ‘vivido litúrgico’, o certo é que as suas formas expressivas, miméticas e lúdicas cumprem igualmente uma ‘função teatral’. Deste modo, podemos admitir que tanto essas manifestações como outras tradições africanas (as recitações poéticas, os mimos, as narrativas orais, as danças miméticas, as procissões de máscaras, as marionetas, etc.) fornecem elementos formais e de conteúdo propícios à eclosão de um teatro angolano simultaneamente original e de acordo com as normas universais. Os primórdios de um tal teatro começam por ser encontrados em três experiências concretas ocorridas antes da Independência: a primeira nos bairros suburbanos de Luanda nos anos 1950/1960 (na acção dos grupos Gexto e Ngongo e nas dramatizações dos grupos carnavalescos Cidrália, Kabocomeu e outros), a segunda em bases guerrilheiras no Leste do país (com o chamado ‘’teatro de pioneiros na guerrilha’’) e a terceira nas escolas da capital em 1975. O grupo Gexto (Grupo Experimental de Teatro) foi criado por volta de 1950 à imagem do grupo brasileiro Teatro Experimental do Negro, de que Abdias do Nascimento é o líder e o jornal Quilombo o órgão divulgador. O grupo cultural músico-teatral Ngongo, por sua vez, nasceu em Outubro de 1961 na Liga Nacional Africana (associação cultural que na época servia já para encobrir actividades nacionalistas) e a sua estreia ocorreu em 1962. Desapareceu em 1966, apesar de no ano anterior ter sido considerado em Portugal ‘’o melhor grupo de África’’. A principal característica deste grupo foi concentrar no seu seio um grande número de compositores, músicos, coreógrafos, actores, autores, poetas, declamadores, dançarinos, vocalistas e arranjadores, o que lhes permitiu explorar vias originais e desenvolver uma múltipla actividade nas áreas da música tradicional, da música popular urbana, do teatro, da dança, da poesia e da declamação. Alguns anos mais tarde, concretamente em 1972/73, e ao contrário do Ngongo, que sempre desenvolveu a sua actividade para um público urbano e suburbano, alguns militantes do MPLA (ainda hoje o Partido no poder em Angola) tentaram, com fins pedagógicos, uma experiência de teatro com crianças nas zonas rurais onde se desenrolava a sua acção guerrilheira. Estimulados por um mote previamente proposto pelos professores, quase sempre com fortes implicações políticas e/ou sociais, os alunos (os ‘’pioneiros’’) eram levados a improvisar cenas e peças inteiras, que eram depois apresentadas em vários locais para um público eminentemente adulto, como base para discussões sobre a razão e objectivos da luta armada anti-colonial. Na mesma linha desse teatro político e de intervenção, há a registar uma experiência de ‘agit-prop’ levada a cabo por trabalhadores e estudantes mobilizados nas greves estudantis que marcaram o primeiro semestre de 1975. No seu âmbito foram realizadas várias acções teatrais para a população fugida das confrontações militares nos subúrbios e refugiada nas escolas da capital. Essas acções, inspiradas em temas da actualidade imediata, foram determinantes para a compreensão por amplos sectores da juventude das potencialidades críticas e interventivas do teatro e contribuíram assim, naturalmente, para a formação do primeiro grupo teatral da Angola independente – o grupo Tchinganje. O Teatro Angolano pós-Independência O teatro feito em Angola nos primeiros anos da Independência e até fins dos anos 80 foi irrelevante como fenómeno cultural. No período apenas estiveram activos os vários grupos ligados à Secretaria de Estado da Cultura, como o GAT (Grupo de Amadores de Teatro), o GIT (Grupo de Instrutores de Teatro) e o GET (Grupo Experimental de Teatro); o Kapa-Kapa, grupo tutelado pela UNTA (central sindical) e os dois primeiros grupos que se podem considerar independentes, o Tchinganje e o Xilenga. Para além de alguns destes grupos terem uma duração efémera ou uma produção irregular, as raras representações por eles efectuadas quase nunca tiveram em devida conta o facto de o teatro poder ser a síntese artística de qualquer projecto de transformação das consciências, do gosto estético, dos modos de comportamento e da comunhão social de um povo. Por essa razão, o movimento teatral só a partir de fins dos anos 80 começou por ganhar uma outra expressão, com a criação do grupo cultural Makote (Os Makotes), da escola 1º de Maio; do grupo da Faculdade de Medicina; do Horizonte Njinga Mbande (1986), da escola do mesmo nome; do Oásis (1988), tutelado na altura pela Anghotel, e do Elinga-Teatro (1988), herdeiro directo do Tchinganje e do Xilenga. O seu reconhecimento público foi quase imediato porque no I Concurso Nacional de Teatro, realizado em 1989 pela Secretaria de Estado da Cultura em Benguela e no Lobito, com a participação de 18 grupos de 14 províncias do país, os três primeiros classificados foram os grupos de Luanda: Makotes, Oásis e Horizonte Njinga Mbande, por esta ordem. O Elinga abriu extra-concurso o festival. Destes quatro só o Makotes desapareceu, dando lugar ao grupo Enigma, continuando os outros três a estar até hoje entre os mais activos e conhecidos do país. Contam-se assim pelos dedos de uma só mão os grupos que, superando todas as dificuldades resultantes de uma conjuntura difícil e prolongada no tempo, conseguiram manter-se em actividade por mais de duas décadas sem nunca deixarem de apresentar espectáculos, de dinamizar acções de formação e de buscarem o intercâmbio além-fronteiras. 2º semestre • 2010 • 55 De uma geração posterior sobrevivem até hoje os grupos Julú (1992), Etu-Lene (1993) e Miragens (1995) e mais recentemente têm estado a afirmar-se no plano interno e internacional o Henrique Artes (2000), o Pitabel (2001) e alguns outros. Para além destes, o que existe é uma proliferação desmesurada de pequenos grupos teatrais (mais de 100 só em Luanda e algumas dezenas nas várias capitais provinciais), quase sempre ligados a igrejas, escolas ou empresas, sem infra-estruturas, sem meios técnicos e materiais suficientes e sem formação adequada. Esses grupos, de inegável entusiasmo e com vontade de afirmação, aparecem e desaparecem à mesma velocidade e vão-se inspirando uns nos outros, retratando os mesmos temas, utilizando as mesmas técnicas e abusando dos mesmos personagens, num círculo vicioso de difícil ruptura, uma vez que aparentemente não possuem outros termos de referência. As obras raramente possuem uma base textual fixa e vivem muito da improvisação, têm cenários pouco elaborados ou nem sequer os utilizam, não atendem às convenções mínimas de tempo e espaço teatrais, não fazem recurso à iluminação ou à sonoplastia nem a outros procedimentos que podem enriquecer a cena, etc. Os resultados, portanto, quase sempre se ficam pelas boas intenções, porque curiosamente parece haver da parte da maioria dos grupos (talvez por influência das instituições religiosas a que estão ligados), uma preocupação sincera com a defesa dos valores morais e dos laços familiares; com o combate à delinquência juvenil, à violência doméstica, à droga e outros vícios e males sociais; com o alerta em relação aos perigos do sexo não protegido, desde a gravidez precoce à contracção do HIV/SIDA; com a denúncia de situações de injustiça, de manipulação da boa fé ou ignorância das populações ou do aproveitamento oportunista de certas tradições para proveito próprio, como no caso das alegadas ‘crianças feiticeiras’, etc. Qualquer destes temas, obviamente, é susceptível de um tratamento dramático superior, mas normalmente as obras ficam-se pela superficialidade e artificialismo das situações e dos diálogos, sem uma construção que explore a complexidade dos problemas abordados ou que realmente desperte para eles a consciência activa dos espectadores. Por todas estas razões, é lógico concluir que o que começa por fazer falta é uma atenção cuidada por parte do Estado e das suas instituições à formação a todos os níveis, tanto geral como especializada, aproveitando o entusiasmo e a dedicação de uma enorme franja da juventude que vê no teatro uma forma de contribuir para a transformação das mentalidades e para a construção de uma sociedade melhor para todos. 56 • Camarim • nº 45 A nível oficial, o organismo regente da Cultura em Angola subsidiou generosamente durante os primeiros anos da Independência a existência de um grupo experimental de teatro, que seria o embrião da uma futura companhia nacional de teatro, que nunca chegou a ver a luz do dia. Ao longo dos anos, de forma intermitente e sem qualquer continuidade, recorreu a monitores estrangeiros (em especial brasileiros e cubanos) para formar quadros para esse sector, sem que estes, até onde é possível vislumbrar, tenham utilizado os conhecimentos eventualmente adquiridos para dinamizar o teatro no país. Actualmente, o Ministério da Cultura mantém activo um Instituto de Formação Artística, onde, entre outras disciplinas artísticas, é leccionado um curso de teatro a nível médio, sem grande frequência nem projecção. Por essa razão, para resolverem os seus problemas, os grupos em actividade vão aprendendo teatro enquanto o fazem, aproveitando o maior ou menor conhecimento dos seus mentores ou beneficiando, ocasionalmente, de uma deslocação ao exterior ou de um estágio orientado por alguém mais informado de passagem por estas paragens. A conclusão que se impõe é a de que o teatro angolano, 35 anos depois da Independência, continua a ser com raras excepções um teatro de feição amadorística na sua concepção e representação, de temática repetitiva e pouco original, que ignora a sua própria tradição, não faz recurso às imensas potencialidades expressivas das várias manifestações culturais do país e nem dispõe de estruturas físicas, materiais ou financeiras que o suportem. Para o demonstrar basta talvez afirmar que em Luanda, cidade que se considera ter já mais de 4 ou 5 milhões de habitantes, não existe uma única sala exclusivamente vocacionada para o teatro nem uma única companhia que se possa realmente caracterizar como profissional, com estrutura técnico-administrativa funcional e com espaço próprio e repertório regular. Alguns grupos, pelo menos de acordo com declarações dos seus responsáveis, já conseguem sobreviver com as receitas dos seus espectáculos, mas a grande maioria ainda depende completamente da generosidade de patronos e amigos do teatro, uma vez que continua sem entrar em vigor uma há muito prometida Lei do Mecenato. E, no entanto, algo se move, como terá dito Galileu referindo-se ao nosso planeta. Sem directores, actores e técnicos formados, com reduzidíssimos espaços de representação, praticamente sem apoios públicos ou privados, o Teatro Angolano apesar de tudo existe (milagrosamente existe!) e procura manter a vitalidade possível num contexto de tantos contratempos e dificuldades. Luanda, Março de 2010 Cooperativa no mapa Por Luiz Amorim e Ney Piacentini Luiz Andre Cherubini No primeiro semestre de 2010 se concretizou uma idéia para lançar de vez o teatro produzido pelos núcleos e companhias de São Paulo no mundo. Foi constituído o Centro Brasil do Instituo Internacional de Teatro – ITI – ligado à UNESCO. Trata-se de uma instituição com tentáculos em todo o planeta, tendo como membros países dos cinco continentes que discute distintos pontos da área das artes cênicas. O ITI/UNESCO promove encontros, debates, intercâmbios e é responsável pela criação do Dia Mundial do Teatro (World Theatre Day - 27 de março ) e do Dia Mundial da Dança (29 de Abril), além de várias atividades sociais, em países carentes - principalmente do continente africano. Em alguns países a prioridade são as publicações, em outros o pensamento teatral, ou a organização e a profissionalização do teatro. No Brasil a intenção é dar vazão a formação de platéias para o teatro e a interface com outros países, priorizando, inicialmente, a América Latina e a África, pelos laços culturais e por razões econômicas e sociais. A primeira atividade a ser realizada em São Paulo será encontro Latino-Americano com representantes dos Centros de países vizinhos, como um mapeamento das bases do Instituto latino, levando em conta também as experiências dos encontros que a Cooperativa vem promovendo dentro das Mostras de Teatro de Grupo. O ITI dispões de vários Comitês Internacionais de discussão e promoção de projetos, e a Cooperativa e o Centro Brasil estão vinculados ao CIDC – Comitê de Identidade e Desenvolvimento Cultural que trabalha com a diversidade de Expressões Culturais, e do Espaço Teatro Mediterrâneo-América Latina. A produção teatral brasileira, principalmente a dos grupos e companhias, já está madura o suficiente para ir além das fronteiras nacionais. Muitos grupos já viajam, mas de forma isolada e intermitente. O ITI Brasil pode contribuir para uma internacionalização contínua e conseqüente em duas vias. Proporcionar o aprimoramento do teatro no Brasil pelo contato com as vanguardas internacionais e o espalhamento da evolução do teatro nacional a outros países ainda em estágio anterior ao nosso. Em termos estatutários o o Centro ITI/Brasil, tem como objetivos: Beckett – Sobrevento I - divulgar e representar, no território nacional, o Instituto Internacional de Teatro (ITI), organização ligada à UNESCO; II - difundir os objetivos da UNESCO, de paz e compreensão mútua, buscando os princípios de Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais; III – atender e aplicar o Estatuto do Instituto Internacional de Teatro (ITI) e seus valores fundamentais, como a inspiração, a inclusão, a colaboração e a transparência; IV - Promover a difusão e divulgação nacional e internacional das Artes Cênicas; V - Apoiar os profissionais relacionados às artes cênicas, proporcionando intercâmbios e colaborações com instituições e entidades do setor público e privado, de ordem nacional, internacional, regional ou local em todos os temas relativos às Artes Cênicas e seu desenvolvimento; VI - Contribuir com a ampliação e consolidação das Artes Cênicas e apoio às iniciativas que tenham estes mesmos objetivos em todo o mundo; VII - Estimular o intercâmbio de obras ou pessoas, e a participação ativa em festivais, congressos, encontros e conferências nacionais e internacionais; e VIII - Cooperar com instituições ou personalidades interessadas nas Artes Cênicas e na sua difusão por meio de oficinas, cursos, seminários e publicações, inclusive com a Cooperativa Paulista de Teatro, sociedade que disponibilizou meios e estrutura para a constituição da presente Associação. Parágrafo único: Para cumprir suas finalidades sociais, o CENTRO BRASIL ITI/UNESCO se organizará em tantas unidades quantas se fizerem necessárias, em todo o território nacional, as quais funcionarão mediante delegação expressa da matriz, e se regerão pelas disposições contidas neste estatuto e, ainda, por um regimento interno aprovado pela Assembléia Geral. 2º semestre • 2010 • 57 DIRETORIA: Presidente Vice-presidente Tesoureiro Vice-Tesoureira Secretária Vice-Secretário Ney Piacentini ([email protected]) Cenne Gots ([email protected]) Aiman Hammoud ([email protected]) Theodora Ribeiro ([email protected]) Maysa Lepique ([email protected]) Osvaldo Pinheiro ([email protected]) CONSELHO FISCAL: Emerson Natividade Hugo Oscar Melina Menghini [email protected] Eduardo Za Murilo Borges Willams Aris FUNCIONÁRIOS: Gerente Administrativo Assistente de Diretoria Coordenador Administrativo Supervisora de Setor Encarregados Setores Controle/Desenvolvimento Financeiro Atendimento/Recepção Prestação de Contas Cadastro/Banco de Dados Gestão de Cooperados Assistente Administrativo Jurídico Estagiários Jurídico Tributos Centro de Custo Compras/Estoque Serviços administrativos Copa e Limpeza Webmaster Assessoria de Imprensa Ouvidoria Edson Keniti Matushita ([email protected]) Neanddra Silva Lopes ([email protected]) Cicero Mendes Pereira ([email protected]) Rosana de Oliveira Maciel Eliana Albeiri Silva, Vânia Maria Longuinho de Souza, Wladimir dos Santos Baptista Thiago Henrique Seixas Olimpio, Tatiane Aragão de Andrade Ederson Olimpio Kishimoto Jose Davi Souza Rafael Luciana Cyntia de Campos Macário, Paula Fernanda Gomides Casagrande Andrea Veneziani, Paula Barros de Oliveira, Maria Helia de Aguiar Gomes, Elienai Lopes de Moraes, Paulo Rodrigo Brante Vilches, Diego Geraldo Nunes Deborah Passarella Gaya, Diego Costa Soares, Maira Faia Miranda, Cristina Gomes da Silva, Felissa Macedo de Freitas Flavia Lais Ferreira dos Santos, Michele dos Santos Beltran, Priscila Pamela da Silva Alessandra Pereira Lopes ([email protected]) Lidiane de Oliveira Sovires, Angélica Yukimi Noda, Agnes Aparecida Yoshimura Lariane Martins de Andrade, Priscila Mendes de Sá, Flavia Souto da Silva Miriam Jaqueline Paolombo Karina de Oliveira Minetto, Wellington Hoffmann Vittor Vinicius Marcassa de Vitto ([email protected]) Cristiane Isabel Figueiredo, Daniela Guadalupe Cardoso Alves Makoto Nishimoto ([email protected]) Fernanda Cristina de Araujo ([email protected]) Mara Regina Jose de Souza ([email protected]) Mauricio Hiroshi Kanashiro, Luis Guilherme Floro dos Santos Filipe Caue Freitas, Jefferson Roberto Ferreira, Douglas Carvalho Angela Maria Agostinho, Maria Lira de Jesus Fabiano Antonio Moreira ([email protected]) Alessandra de Assis Perrechil ([email protected]) Luiz Antonio Dias de Amorim ([email protected]) DEPARTAMENTO CONTABIL Service Keep Ass.Cons.Contabil / Almeida & Costa Ass.Cons.Contabil ([email protected]) Hitoshi Nizhimoto, Gerisvaldo Dias da Costa e Jose Magnaldo de Oliveira DEPARTAMENTO JURÍDICO: Advogados 58 • Camarim • nº 45 ([email protected]) Martha Macruz de Sá, Alvaro Paez Junqueira 2º semestre • 2010 • 59 60 • Camarim • nº 45