Revista Escrita
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Revista Escrita
REVISTA ESCRITA Literatura e Cultura revistaescrita.wordpress.com – Número 2 – Maio/Junho de 2015 EXPEDIENTE Revista Escrita: [email protected] issuu.com/revistaescrita revistaescrita.wordpress.com Equipe editorial: Daniel Costa João Paulo Moreto Daniela Vitor Giovana Ciccolani Flávia Mendes Contribuições: Cecília Infanti Joseli Moreto Daniela Vitor Maria Gabriela Gianini Giovana Ciccolani Maria Gabriela Veridiano Gustavo Machado Marina Laurentiis Jefferson Vasques Paulo Costa João Paulo Moreto Syara de Noronha Capa: Quadro do Louis Boilly. Natureza morta de flores num vaso de vidro. 1790. Disponível na Web Gallery of Art: www.wga.hu. 2 EDITORIAL Neste bimestre, a Revista Escrita fez uma proposta temática de ensaios sobre a mudança. A escolha de um tema vinha da preocupação em evitar que nos tornássemos uma vitrine desorganizada de textos desconexos frente aos quais os leitores poderiam adotar uma postura de pescador, pegando, aqui e ali, mais ou menos ao acaso, algo pontualmente relevante para seu gosto e sensibilidade. Por outro lado, entendemos que a proposta temática impõe uma dificuldade maior aos autores, principalmente frente à proposta de publicarmos pequenos conjuntos de textos. Não é fácil produzir uma coletânea temática e, nem sempre, trabalhos já realizados podem ser aproveitados. Para a próxima edição, nos propomos a alterar o pedido: apenas um texto necessariamente dentro do tema e até outros quatro de livre escolha. Não obstante, os comentários sobre a mudança surpreenderam. Por um lado, apareceu exclusivamente como uma experiência pessoal, individualizada, apesar do momento político e das tensões sociais atuais. Por outro, em diferentes graus, as contribuições apareceram carregadas da tensão entre o controle e a alienação frene à mudança que se sofre como um efeito tão autônomo quanto a passagem do tempo. Boa leitura a todXs. – Equipe Editorial. 3 ENVIE SEU TRABALHO A REVISTA recebe trabalhos (em diferentes gêneros) de qualquer interessadX em colaborar dentro da proposta temática. Na seleção, serão priorizadas as contribuições de quem enviar mais de um trabalho, até o limite de cinco, sendo pelo menos um no tema da edição e os outros livres. Com isso, esperamos conseguir expor consistentemente os estilos dXs autorXs. Seu trabalho deverá ser enviado em um arquivo de Word (.docx) para o e-mail: [email protected], descrevendo no assunto: “Contribuição para Edição”. A formatação do arquivo deve seguir: fonte Arial 12, espaçamento 1,5 linhas, padrão de margens Normal, papel A4. A primeira página deve conter um parágrafo de apresentação do autor, nome completo, pseudônimo a ser publicado (se desejado) e endereço do site pessoal ou blog. O TEMA DA PRÓXIMA EDIÇÃO SERÁ A BRASILIDADE: O CARÁTER, O COMPORTAMENTO E OS TRAÇOS DAQUILO OU DE QUEM É BRASILEIRO. AS CONTRIBUIÇÕES DEVEM SER ENTREGUES ATÉ O DIA 15/06 NO EMAIL DA REVISTA. O site da REVISTA está aberto para receber contribuições continuamente para publicação imediata. Essas contribuições devem ser enviadas através do formulário (ou por e-mail, no caso de ilustrações, quadrinhos, músicas, vídeos, animações ou fotografias), abrangendo crônicas, contos, poemas e também resenhas de livros, bandas, séries, filmes, shows, etc. 4 SUMARIO EXPEDIENTE 2 EDITORIAL 3 ENTREVISTA: JEFFERSON VASQUES 7 DANIELA VITOR 14 GIOVANA CICCOLANI 20 GUSTAVO MACHADO 25 JOÃO PAULO MORETO 29 MARIA GABRIELA GIANINI 37 MARIA GABRIELA VERIDIANO 44 MARINA LAURENTIIS 49 PAULO COSTA 54 SYARA DE NORONHA 62 CECÍLIA INFANTI 66 JOSELI MORETO 69 5 Artigo II: Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo. (Thiago de Mello – Os Estatutos do Homem) 6 ENTREVISTA: JEFFERSON VASQUES Poeta, palhaço e comunista, Jeff Vasques tem quatro livros publicados de forma independente: "Subverso" (2009), "Nada comum dia após o outro" (2011), "Te dou a minha palavra" (2013) e "Amor livre-se" (2014, reeditado em 2015 e disponível junto ao autor: ). Já fui publicado em Portugal, numa antologia organizada pela Central Geral dos Trabalhadores de Portugal. Traduziu o livro "Nascimento Volátil" da poeta colombiana Angye Gaona, perseguida politicamente pelo governoditatorial colombiano. Também contribui com a revista "Territórios Transversais" do MTST, falando sobre poesia e luta, além de Traduzir e divulgar a poesia de luta de Nuestra América através do blog www.eupassarin.wordpress.com (além de: www.facebook.com/eupassarin). Ele, generosamente, concedeu aos editores da Revista agradáveis duas horas de conversa sobre a política e a poesia latinoamericana, das quais segue uma síntese de seu percurso: partindo dos fundamentos do pensamento comunista, por nossos versos revolucionários, até o engajamento do presente. Para xs leitorxs, fica o aviso de que foram sequestrados seus palpites sobre a libertação do amor de sua posse romântica até que tomem o necessário contato com seu trabalho (livre). “Só te peço isto: coerente, coeso, fictício) não me ames ama sempre outrem (a este „eu‟ tão íntegro, me traia comigo.” 7 REVISTA ESCRITA: Prezado Jeff Vasques, é algo presente em sua apresentação a natureza de sua orientação política. Gostaríamos que você nos explicasse seu comunismo. JEFF VASQUES: De início, eu parto da ideia de que vivemos uma crise. Não é uma crise do ser humano, uma crise genérica. É uma crise da sociedade capitalista. E é muito fácil visualizar isso, basta uma caminhada na rua e é possível ver a desigualdade se manifestando de alguma forma, ou ainda mais perto, basta olharmos no espelho: a crise do capitalismo se manifesta em nossas crises ditas “existenciais” também, o capitalismo nos faz sem-sentidos. Podemos ver essa crise se manifestando em diversas áreas: saúde, educação, transporte... é sistêmica. A crise se manifesta na desigualdade de uns poucos que têm acesso a quase todas as riquezas e uma grande maioria que não tem acesso a quase nada. Muitos filósofos tentaram entender essa desigualdade. Um deles ao qual eu me filio é Marx, que procurou se perguntar se essa desigualdade é natural, se sempre foi assim. Para responder a isso ele fez um “pequeno” estudo sobre a história da humanidade e as formas de organização para produzir sua própria vida. Marx observou que a realidade de exploração que vivemos hoje é resultado da propriedade privada dos meios de produção e da exploração do trabalho (que separa os que pensam – organizadores do trabalho – e os que fazem, trabalhadores). Essa forma de produzir a vida, própria do sistema capitalista foi criado pelo ser humano, não é natural, logo pode ser superada. Por que a grande maioria dos explorados não se revolta? Graças ao poder de convencimento da classe dominante, que os faz acreditar que essa desigualdade sempre existiu, é assim mesmo, sempre será. 8 Contudo, nas palavras de Marx, a contradição está sempre viva. E a contradição é o trabalhador imaginar que trabalhando pode crescer na vida, mas depois de uma vida de trabalho ele nunca ter saído do lugar. Pode ser que essa contradição, vivida como agonia individual exploda nele mesmo como uma autocrítica pessoal, a sensação de incapacidade, incompetência, a fuga para um vício, violência explosiva contra si ou contra outro. Mas, pode ser que o trabalhador perceba em outros ao seu redor a ocorrência das mesmas angústias, das mesmas dificuldades, das mesmas provações, que começam a se articular com revolta comum. Isso permite um salto de consciência através da identificação grupal, esse trabalhador passa a perceber que o problema não está em si, mas fora dele (já que outros também sentem o mesmo problema) e que, logo, pode ser superado através da luta coletiva: lutas em torno do trabalho, da terra, da moradia. Mas conquistar melhores salários, terra ou casa não resolvem o problema sistêmico, que está continuamente tirando terra, casa e salários. Eu não quero mais só casa, porque não me basta resolver particularmente minha posição na desigualdade se ela continua se reproduzindo em toda a coletividade. Daí a necessidade da luta revolucionária, buscando superar o modo capitalista de produção. É essa superação que buscam os comunistas: socializar os meios de produção e fazer de todos tudo que se produz. REVISTA ESCRITA: O que faz dessa minoria dona da riqueza, dona de um poder de convencimento? JEFF VASQUES: O poder de financiar a cultura, a arte, a mídia, a educação. A dominação econômica estabelece a dominação cultural. 9 No pouco tempo “livre” que o trabalhador possui ele é bombardeado pela cultura dominante, seja para anestesiá-lo e fazê-lo esquecer das contradições e angústias, seja para (de)formar sua consciência, fazendo entender suas dificuldades e aflições como um problema individual, particular, de alguém que não se esforçou o bastante ou qualquer outra responsabilidade, como um problema natural, que não pode ser transformado. REVISTA ESCRITA: Dentro da sua perspectiva e atuação, o que é a arte engajada? JEFF VASQUES: Num certo sentido, toda arte, toda literatura é engajada, ela parte de um contexto específico e se propõe a algo. Eu não acredito que exista arte ou literatura ou poesia que não queira nada, mesmo que seja fruição: é então a fruição o objetivo dela. E ela tem sempre um objetivo e uma finalidade que vai além daquilo que está colocado explicitamente. Além da fruição, o conjunto dessa obra, desse autor, aponta para onde? Nesse sentido, toda arte, literatura, é engajada, porque tem propósito e se coloca num sentido mais amplo diante das grandes questões da sociedade. Se você está vendo as pessoas se matando na sua frente e está só na fruição, isto é uma opção. É sempre a vida antes da arte. O que é a pessoa no mundo? Como ela olha o mundo? Como ela se relaciona com o mundo? A gente hierarquiza o mundo de alguma forma. O que é importante para mim, o que não é, a gente concretamente, na vida, vai estabelecendo isso. E isso, vai se refletir na minha arte. Nesse sentido, toda arte é engajada, mas é claro que eu entendo quando vocês perguntaram a questão de saber de outra arte 10 específica que mais diretamente se dirige à questão social, à luta, e aí eu vou me basear no Mario Benedetti, já ouviram falar? Ele é um poeta uruguaio que eu amo, gosto muito, uma referência muito forte para mim também, ele inclusive é um dos poucos que já fez o que eu quero fazer, essa antologia de poesia de luta. Benedetti tem uma boa classificação pra esse tipo de poesia de luta: diz que existem os que são grandes lutadores e igualmente grandes poetas, por exemplo, o José Martí, em Cuba, que foi o mártir da independência cubana, e é um poeta fantástico; ou o Roque Dalton, de El Salvador, a quem eu considero um dos maiores poetas da América, do século, autor de “O livro vermelho para Lênin”. E era, também, um puta militante, guerrilheiro. Além desses, há também os lutadores-poetas, que são, acima de tudo, lutadores, e em segundo plano, poetas, como o Marighella no Brasil. E, por fim, os poetaslutadores, como o (finado) Ferreira Gullar, que já era poeta e em certo período da sua vida se engajou na luta. Falo “finado” Ferreira Gullar, porque há muito ele abandonou a perspectiva de transformação e se tornou um reacionário escroque. REVISTA ESCRITA: Onde é que a sua perspectiva de mudança encontra uma representação artística atualmente? JEFF VASQUES: Apesar da arte produzida por comunistas estar em baixa, dado o momento histórico difícil que vivemos, pode-se encontrar ressurgindo e fervilhando uma poesia contestatória, nascendo das periferias com uma vitalidade impressionante. É a poesia daqueles que a sociedade não quer ver nem ouvir buscando fazer sua voz vibrar, voz que nasce carregada de perspectiva de transformação, e sem dúvida com grande influência do Rap... 11 “Racionais”, “Facção Central”, são grandes nomes importantes dessa poesia, pra mim, não só da música. RE: O que você considera, poeticamente, como bom ou ruim? Existem exigências técnicas para um poema? JEFF VASQUES: A técnica é a forma, e uma forma sempre vai existir, mais ou menos consciente. Um garoto da 5ª série que vai escrever seu primeiro poema na vida, ele não está escrevendo do nada, ele leu em algum lugar ou ele ouviu um Rap e está copiando a forma, aí tem técnica, ele não inventou do nada aquilo. Então quando eu vou produzir arte, aquilo que acredito que seja arte, ela será tão mais rica, quanto mais eu bebi na história dessa ferramenta. A poesia, ao longo de sua história, foi produzia com diferentes técnicas, diferentes formas. Quanto mais é possível beber nessas diferentes técnicas, mais se enriquece o leque de possibilidades para se construir um poema. Talvez conhecer a história seja menos necessário do que o motivo “para quê estou querendo fazer a minha arte”. Por isso que é difícil falar do bom ou ruim, depende do “para quê” e “para quem”. Muitos falam que o Gullar, que na época em que ele se engajou, sua poesia ficou menor, mas porque eles não têm essa visão para além da palavra em si, de saber a finalidade, qual era a atitude que estava por trás da produção. Se para aquilo que ele queria funcionou, então cumpriu seu papel. Nesse caso é necessário entrar dentro do paradigma que rege aquela poesia, o gênero da poesia de luta, para que seja feita uma avaliação consistente. 12 Mas, para mim, é importante conhecer a história e as diferentes técnicas. Quanto mais eu conheço, mais me enriqueço. Quando eu só conhecia o Gullar, a minha poesia soava Gullar, depois que eu comecei a ler outras pessoas, isso chacoalhou minha poesia. A possibilidade de você construir uma dicção própria aumenta. Se se conhecem, vários, pode-se ir misturando e achando sua voz própria. Nesse sentido, alguém que escreve um poema pela primeira vez, talvez nem tenha consciência daquela técnica que está usando, está só reproduzindo algo mecanicamente. Claro que isso afeta a qualidade. Se há consciência da técnica em uso, aumenta a chance de domínio sobre aquilo e a qualidade é potencializada. “ENQUANTO É TEMPO Nesta vida fadada – que se arrasta – se não fores fardo és farda. Decide rápido. Te prepara. O ontem, o hoje, o amanhã… quase sono algum os separa.” (em memória de Cláudia Sílvia Ferreira, que teve sua vida arrastada e tirada covardemente por PMs no Rio de Janeiro) 13 DANI VITOR Daniela Vitor nasceu em São Paulo, em 1979, mas mora em Campinas há muitos anos. É escritora desde sempre, mas nunca achou que tivesse uma escrita realmente relevante. Conforme foi se descobrindo, também descobriu que bastava que sua escrita fosse relevante para si mesma. É também esposa, educadora e vê no bailar do Flamenco sua paz para a alma. Apaixonada por Literatura, sempre voltada à busca interna e espiritualidade, viu em Clarice Lispector uma unidade de pensamento sobre si mesma e sobre o mundo. Hoje, mestranda, também é pesquisadora apaixonada de Clarice. Percebe o dom da escrita como uma missão e sonha em poder viver somente disso um dia. [email protected] 14 FINALMENTE Arrumou a flor vermelha sangue nos cabelos negros, ajeitou a saia provocante, e entrou para a aula. Bailou como quem consagra o fim de um tempo e o início de uma nova era. Sentiu cada gota de suor, cada batida do sapato, de forma intensamente deliciosa. Era sua cerimônia particular, e divina, de um novo começo. Cada passo marcante, significava cada pequena vitória em todo esse tempo em que esteve adormecida. Cada nota cantada daquela música exótica e quente, limpava e benzia todos os seus corpos. A expressão corporal utilizada, naqueles passos benditos, nunca foi tão digna de tanta profundidade. Era dela e somente para ela todo aquele cenário de magia Flamenca. As batidas certeiras e elegantes da castanhola, tão naturalmente madura, anunciavam um poder pessoal que ninguém jamais ousou sentir. Estava, finalmente, livre. Tinha nos lábios o sorriso erótico dos vencedores da vida. Alguma textura de simplicidade e comoção num olhar totalmente misterioso, corajoso e original. A música cessou. A respiração ofegante e triunfante tomou conta do espaço e fez com que ela voltasse, cá para este lado. Os pés doendo, que sentia ao tirar os sapatos, faziam rir um riso desajeitado de euforia e vitória. Aos poucos voltava a si. Sentia o suor gelado queimar seu rosto e molhar de vertigem eufórica seus cabelos tão soltos. 15 Esse súbito desemprego, que hoje a acolheu, trazia um estranho misto de esperança e paz. Nenhum dinheiro, mas todas as possibilidades do mundo esperando de braços abertos. Vendeu o carro, o apartamento e, em menos de dois meses, estava arrumando a flor vermelha sangue, nos cabelos negros, em terras espanholas. A nova vida, a nova chance, a felicidade intensa e continuamente por um triz. E era só disso que ela precisava. E foi, finalmente, viver. 16 ELA Abriu o livro capa cor verde limão e saboreou mais um gole de café. Sabia que ficar atordoada, nada resolveria e tudo complicaria. Era uma tarde traiçoeira de domingo, daquelas onde a preguiça chega, mas não avisa que a segunda logo vem junto. O céu limpo pela última chuva, continha os traços secretos de fim do dia, belos, daqueles que nem toda alma consegue captar com clareza. Tinha os lábios vermelhos e o coração em prantos. Escapar para um bonito e requintado café para ler, refletir, observar, fazia dela uma fugitiva sagaz e sedutora. O sorriso lhe escapava toda vez que um charmoso homem tentava alguma aproximação. Sim, uma bonita e misteriosa mulher, sozinha num café, desperta todos os sentidos mais estranhos dos homens à caça. Achava graça, mas não queria nada daquilo. Sua fuga tinha mesmo um único e real objetivo: não pensar. Era, para ela, o mais rico desejo de saborear cada gole daquele livro encantador e ler cada gota do sublime café, assim como o último conforto existente e possível. Não, nada demais, nenhum drama em especial. Era mesmo o momento de aprender a não pensar. Sentir, fluir, seguir, nada mais. Essa era a maior e mais revolucionária nova forma de viver que ela estava aprendendo até então. Tudo isso era novo, assustador, mas ao mesmo tempo incrível e libertador! 17 E como reagir ao medo que vem do que é novo? Como admitir que do jeito antigo (aquele bem acomodado, feito roupa velha e gostosa que a gente tem dó de dar) era mais fácil e acolhedor? O que fazer com isso? Não, voltar atrás era a única opção que não mais existia. Melhor mesmo era o batom vermelho arranhando a alma, com gosto de café amargo e graça doce dos olhares que se achavam sedutores, mas que eram motivo de riso escancarado e desafiador. Quando nada se pode fazer, melhor mesmo aceitar com estilo e aprender com ousadia. É isso e é só. 18 QUANDO DÓI A dor salta à boca, amarga, seca, triste. Os olhos pesam uma desesperança de quem perde o sono quase às três da madrugada. As mãos, juntas e em silêncio, oram por uma resposta. Nada. E mais nada. A impressão de que tudo se esvai é tão grande que as lágrimas tomam conta de cada despedaçar da alma. Inunda, embaça, mas lava por desespero. Enquanto escreve seu dom, em meio a tanto caos silencioso da noite, brilha a insistente estrela no céu. Não sabe mais o que faz. Tenta, muito, mas cai em meio a tantas distorções, lamúrias, pressões. O tórax de sua alma é esmagado pelo medo e sufocado pela falta de resposta. Ela já não sabe mais como continuar respirando. Precisa ainda realizar tantas coisas, mas foge de outras tantas. Medo. Nada é seguro, confiável, romântico. Nada, o nada em absoluto. O que ser então? Como? E para que? Respira, observa o bonito lustre da sala. Não se conforma com o fato de ter se iludido tanto, achando que tudo ia bem, de novo. E de novo. Até quando? Os olhos pesam o sono dos justos. E ela tenta adormecer. Talvez, a melhor saída para acordar seja mesmo dormir. 19 GIOVANA CICCOLANI Giovana A. Ciccolani, 17 anos, natural de Campinas, faz graduação em Administração. Detém amor pela escrita, além de deslumbramento por paisagens, animais, pelo céu à noite e o que é simples, porém possui uma essência profunda. Escreve por prazer, desopressão de pensamentos e sentimentos. https://suspirosnaspalavras.wordpress.com [email protected] 20 SAPATO DE SALTO Casaco, manga curta ou regata. Viela, rua ou estrada. Descontrolada, sem rumo ou sensata. Com conhecida, estranha ou namorada, Ela sempre saia com seu sapato de salto. Com ele, se mostrava equilibrada, amparada, sensualizada. Furava, pisava, esbanjava. Impunha, dispunha, para ela, nunca supunha. Mudar, desbancar seu discurso, sua opinião, Nem moleque, nem culto, nem doidão. Mas quando chegava em casa e punha os pés no chão, Parecia que perdia a convicção. Não tinha mais certeza do que defendia. Sem pedir ajuda, chorava com seu travesseiro, Se sentindo brinquedo, do seu sapato de salto. 21 ESTAÇÕES De mãos dadas foram andando, E o plano de fundo era apenas o colorido do mundo. Ela sentindo o prazer da descoberta... De que a vida tinha primavera, verão e outono, E a existência, azul, amarelo e rosa. Trilhando em direção ao fim como boa recém-chegada, Deslumbrada se esqueceu, Que cinza ainda fazia parte das cores do universo, Que inverno ainda era uma das estações, Que a mão que se dá hoje, pode não ser dada amanhã. Depois de muito tempo se deparou com um clima cinza e frio, sem mão para segurar, Com medo, refez desesperadamente os próprios passos Em busca de sua bolha, Da bolha cinza e frígida, Do tempo em que desconhecia a cor e o calor, jamais podendo perceber seu frio e falta de tom. Ela procurou por todo o tempo que nada procurara, Mas já era tarde, Ainda bem, Assim chegou até a entender que há beleza do inverno, Que nada é perfeito, Na primavera o aroma das flores pode dar alergia, no verão as massas frias tende ir embora, no outono as folhas acabam caindo... Até o fim. 22 CARA MUDANÇA, Se clamasse que te amo, seria a mais desleal farsante, em contrapartida se dissesse que te odeio seria a mais modesta de todas as pessoas. Embora tenha caminhado cautelosamente por boa parte de minha vida, e eu só te olhava de soslaio, agora posso encará-la frente a frente no espelho de minha memória, sem medo, já que hoje vejo que todos os tipos de reviravoltas ocasionadas, acabam sendo válidas a qualquer indivíduo. Sendo assim, você sem titubear na trilha de minha vida ou na de qualquer ser humano, proporcionou reviravoltas inesperadas que causaram danos irrefutáveis e incalculáveis, como um tsunami, que chega não mais que de repente, porém que fez-nos reconstruir com as fortificações necessárias, para que nossos lares interiores não mais se desfizessem tão facilmente, afinal nossas almas não são blindadas. Além disso, não deixou de trazer àquelas trocas sutis de estágio na escola, nos gostos, nas ideologias, que foram se expandindo, se corrigindo, conjuntamente com aquelas transmutações doloridas em que forçaste que tomássemos uma decisão, que cortássemos laços, escolhêssemos um caminho dentre cinco, porque era preciso. Que fez chorar, já que deixou de gostar, amou, mas não recebeu, adiou e perdeu, todavia que fez rir ao final, por sentir o vento bater no rosto como se levasse todas as agonias embora, deixando apenas a face nua da realidade de quem busca a felicidade. Em suma, que me fez entre as passadas rápidas até o ponto de ônibus, olhar para meus pés e avistar a sapatilha preta que comprara ano passado. Piscar, e notar que já usava a amarela, que troquei pela rasteirinha, todavia choveu, experimentei o coturno, porém fez sol, passei para o tênis, tropecei e caí, levantando depressa, visto que “se parasse pensava, se pensava eu chorava”, como diria Moacyr Franco, entretanto por que motivo ter medo de chorar, visto que se não penso, 23 não reflito, não avalio, não questiono, não aprendo, não evoluo, não mudo? À velha e nova mudança, a melhor amiga e arque inimiga, que dá e tira, a ti devo meu tudo. Giovana. 24 GUSTAVO MACHADO Gustavo Machado (Gustavo de Freitas Pereira Machado; apelido Capira) é escritor, músico compositor e arranjador. Iniciou seus trabalhos com a arte por volta de 2010, onde começou um blog em parceria com seus amigos, chamado Polindo os Neurônios (tudo-flui.blogspot.com), onde faz a divulgação de uma miscelânea de poemas, todos autorais, feitos pelo grupo Os Madeixos. Na mesma época se dedicou a música, onde criou o grupo Caipira Vellocet, que reúne canções, também de autoria própria e com parcerias. Em 2013, escreveu seu primeiro livro, intitulado 1. Artigo Indefinido, que tem como inspiração a obra leminskiana, que é caracterizada por poemas curtos, brincando com as palavras. Assim como pequenos escritos, o livro também é pocket (livro de bolso). Em 2015, fez seu segundo livro, Das Coisas e Suas Verdades, o qual caminha pelo seu próprio universo, revelando intimidades e pensamentos do autor. Diferente do primeiro, esse já contém poesias mais extensas, sem muita preocupação com forma. Contato: facebook.com/caipichado 25 CRISE CONTEMPORÂNEA-ATEMPORAL Que é Que é que não é repetido? que poderia mudar As mesmas falas, Se tudo os mesmos ouvidos, aqui é 2 + 2 = 4 as mesmas bocas, e não se fala mais nisso? os mesmos cochichos. São os mesmos interesses, As mesmas roupas, os mesmos risos frouxos, os mesmos copos, a mesma visão de sempre, as mesmas visões, os mesmos planos tolos. o mesmo golo. Que é Que é que não permuta que aqui não se repete? nessa alcateia As mesmas pessoas, de nós-lobos? os mesmos delírios, Novidade, entre nós, é utopia! os mesmos papos, Não existe mais o novo! os mesmos fetiches. 26 FIM da sociedade moderna foi depositado na Terra preceitos ancestrais. Transpassado da terra ao meio, estamos todos sujeitos à transformação - Rumo ao desenvolvimento são novos pensamentos novos ideais. E o que pregava mudanças ruiu em modelo de usurpas e tudo que era visado sair do passado e entrar no futuro saiu de maciota do destino que cantem um hino anti-corrupção. Escravos somos de um mundo que continua pretérito mundano. Os sonhos são desviados: - Preste atenção, soldado! Sua vida é a guerra! Queimados estamos de um sistema vivendo dilemas de soluções despropositais. Pós-contemporâneo que se faz atual é moldado em mercantilismo: "Vendamos, pois assim ganhamos mais!" Utópica liberdade de expressão: - Preste atenção, garoto, essa é a globalização! 27 O avesso se transforma na universalidade do tempo. O tempo se transforma na universalidade da vida. A vida se transforma na universalidade de tudo. Tudo se transforma na universalidade de nada. 28 JOÃO PAULO MORETO 27 anos, natural de Campinas (SP), apaixonado por música com essência (ou pela essência da música), pela família, amigos e natureza. Não sou escritor, escrevo por desafogo e pelo ímpeto de arriscar. [email protected] 29 O ENCONTRO DO RIO COM O NADA Numa dessas noites que as coisas já não cabem em nós, Nessa cama dura do deitar e levantar Onde o suor sufoca Onde o cansaço de estar cansado te toma pelas mãos pelos pés pela alma E te convida a dançar essa valsa esteticamente falha Sem ritmo, sem melodia sem saída E sua vontade é abrir a janela gritar o grito dos injustiçados dos desesperados Acordar os vizinhos Desintegrar essa calmaria que se tornou o caos O caos da indústria, Do livre mercado Da política internacional Do comprar, do vender, do vender-se do ter, do ter. Do ter!!! Essa grande riqueza 30 Ah! Essa grande miséria O caos da homofobia do racismo do consumo Dos pobres que morrem nos guetos do meu país Do negativo para que se sinta, entre pratos finos, o fútil glamour do “positivo” Esse caos, amigo aceito Esse engano chamado: sociedade E essa enxurrada vem vem com força, vem avassaladora Mas a janela está trancada Há cadeados em todas as portas, em todas as portas. Há tantas paredes, tantas fotos de ídolos coladas tantos heróis a maquiar nossa covardia O grito entala na garganta A última gota de suor escorre pela minha testa, engulo seco A caneta cai da mão do escritor Durmo aguardando o toque estridente do despertador E é apenas segunda-feira. 31 DIVISOR DE ÁGUA PARA ÁGUA Era a mácula de olhar-me no espelho, e ver nos olhos do reflexo olhos que não eram meus Então rasguei aquela camisa xadrez troquei calçados e passos Desfiz dos laços Desfiz os laços E me encarei E vi Erros que não eram meus Então clamei a Deus sacramento debaixo dos braços De penitência a celibatos Vestindo as vestes da culpa Sempre um olhar baixo E no espelho olhei e vi Um silêncio que não era meu Então abracei, por condescendência, o ódio e gritei o mais alto que pude Difamando tudo e todos 32 Briguei nos bares da cidade Embriaguei meu sangue com todas as cores Bebi às sarjetas com as putas Traí amigos e amores Sangrei as mãos com dor e terra e ao me encarar Vi um vazio que não era meu Então me vi cansado Desse caminho, desses pés Dessa dor de caminhar E numa fuga, num atalho Queria mão em minhas mãos Para dizer “Garoto não tema” E longe da dor me guiar Mas eis que De canto de olho me vi E ao me ver eu vi Um tombo que não era meu Agora, Defronte o privilégio ou fardo do acordar Após querer quebrar todos os espelhos, 33 (Mas como quebrar aquele da alma?) Posso ver Não eram os olhos que eu olhava Eram os olhos com que olhava Suspirei, e finalmente chorei minhas lágrimas infinitas Para, liberto Viver meus erros Meu silêncio e o meu vazio. 34 POMADA PARA QUEIMADURA Despi minhas roupas, a vela recém acesa em mãos, parei frente à janela. Dez andares eram a distância entre eu e o chão e um passo a distância entre o desespero e a serenidade. Deixei a vela na moldura, senti a velha vontade de voar. Olhei para fora de mim, na cidade iluminada, vi as rodas de garotos jovens enfeitados de testosterona e rebeldia, eu enxergava o erro que eles não conseguiam ver, vi os comércios lotados e uma infância perdida entre trabalho escravo e linhas de produção, vi homens de quepe marchando em braile, brincando de senhor de engenho, dançando um ritmo sem som, proliferando o silêncio por onde pisavam, em favor do pão e do nada. Muito cedo, eu enxergava o que ninguém mais via e esse passo à frente me tornou leve demais, insustentável, e eu queria voar, voar para longe desse presente, dessas garras e venenos, como numa sobra de um sonho louco desse salto que nunca saltei. Parei breve momento, pensei no voo calmo, as asas de um urubu selvagem – liberdade e solidão são o seu destino, mas tinha um fantasma em mim em forma de fome, fome de justiça, fome de um feixe de luz, fome de liberdade, fome de encontrar sentido, e pés cravados na terra. Dessas raízes, quis me doar, ensinar os meninos rebeldes, como num círculo dentro de uma sala de aula, para furarmos cada um de nós a bolha cinza que nos envolve, queria fazer cantar a música em cordas de veludo ou num sopro de gaita, queria tirar a isca da boca de um peixe que morde por ter fome sem o saber que, ele mesmo, é o verdadeiro alimento dessa selva. Queria voar e rebentar com escudos, mas fui rendido pelas armas, as armas da alienação, as armas da mídia, as armas da religião, as armas da falta de amor, e leis, 35 sozinho em minhas leis. Não se vence guerra sem soldados, então para que lutar? Cedi a vertigem. Estava ainda na janela, braços abertos, dei outro passo à frente, a brisa suave cortava meu rosto e a cidade era fria, fui tomado pelo frio do homem, iria voar, meu quarto, agora, era todo escuridão. Vi suor escorrer pelo vidro cristalino do relógio. Era tempo, tinha decidido saltar. Nem por fé ou vaidade, é por essa larga altura acima do mundo, que não podemos tocar, mas arde no coração dos homens mais sensíveis, é que o silêncio se calou e senti aqueles braços generosos envolverem os meus, seu cheiro cítrico penetrar no íntimo, ela era toda cítrica, geniosa, e seu calor me acalentava e tomava para si a fúria de um incendiário, ela saberia o que fazer com isso, ela nunca um passo a frente, mas sempre no passo certo, e se trazia consigo outra vela em sua mão foi para me clarear sentido, eu me contive. Não se soma a exposição dessa fratura, só acalenta e faz um coração pulsar. Se por toda dor, toda busca, eu daria a vida pelo mundo, por ela dei o mundo e aqui fiquei. 36 MARIA GABRIELA VERIDIANO Formada em Literatura, estudante de inglês, atualmente trabalha com revisão de textos, escreve no blog da Obvious e mantém seu blog pessoal. Libriana com ascendente em sagitário, Maria tem a estranha mania de ter fé na vida, Gabriela tem passos desengonçados e olhos atentos. As duas escrevem em catarse. http://lounge.obviousmag.org/descortinada/autor/ http://gabipardal.blogspot.com.br/ 37 HIPOTERMIA Eis que depois de tanta serpentina, depois de tanto carnaval, depois de tanta história para contar, me vejo enclausurada com você numa eterna quarta-feira de cinzas. Nosso conto virou pó, meu bem. A emoção acabou, o choro não veio, o riso também faltou. Eu que me via inebriada, que dançava para você, ando ressabiada, com a cara dormente e não sinto mais nada. É como se eu estivesse presa em um estado de congelamento. Duas caras: uma que não ri e a outra que não chora. É pior que AVC. Antes tivesse com os sentimentos todos tortos dentro de mim. Mas não, eles estão lineares, íntegros e sóbrios como nunca estiveram na vida. Você não me bagunça mais. Nem você, nem mais ninguém. Compreendi que essa gente toda que eu chamava de covarde, já tinha tido na vida alguma coragem. Já tinha colocado a cara para bater. Esse alguém covarde, a quem eu tanto julgava, já tinha levantado a minha bandeira. ''Amar sem limites, ao infinito e além''. Agora estou aqui, sem graça, pálida, congelada preferindo assistir série de TV a me aventurar no bar da esquina. Acabou o confete. Acabou o comercial de margarina. Seu marketing não me convence mais. Quando o produto é ruim, não há propaganda que salva, amor. Eu que também já não sei em qual porta entrei ou saí, estacionei nessa zona de incerteza. Como duas gotas de adoçante, eu me tornei a miss-artificial. O deus que não rejeita o frio nem o quente, mas vomita os mornos, teve ânsia quando me viu. Eu estou debaixo da língua de deus, pronta para ser cuspida. Quem sabe se a boca do deus me projetar para fora, eu não viro uma espécie de milagre? Um prodígio. Um arranha-céu. Mas eu já fui dessas quenturas de queimar a língua 38 alheia. Já fui, sim, moço. Você lembra bem. E eu lembro do seu inverno. Do seu grau abaixo de zero. Abaixo do mínimo de lealdade. Eis que da tempestade, da noite regada de vodka e Paloma Negra fez-se o silêncio. E o espírito do deus pairou sobre as águas... Sobre meus poços... e ele disse: Haja luz. E houve. 39 ADEUS A VOCÊ Crise de mau humor. Crise de riso. Crise existencial. Crise literária. Crise profissional. Crise pessoal. Crise financeira. Crise alcoólica. Crise de abstinência. Eu dou 450 voltas, me seguro na corda bamba e você espera eu cair pra me segurar. De quantos abismos eu preciso me jogar? Em qual deles você encontrou meu corpo jogado no chão? Eu me jogo só pra ter certeza se vai doer. Só para saber se vou me quebrar inteira e me refazer. Pra re-existir. Sob-existir. Estou viciada na adrenalina do abismo, do caos. Porque doer é poético, é bonito. Você fica só assistindo a minha megalomania. Você sabe da minha loucura. Sabe que é melhor eu xingar do que matar alguém. E, então, você perdoa meus palavrões. Eu te mando para casa do caralho e você ri. Você fala que caralho é uma coisa muito bonita, que na sua casa tem um só pra mim. Eu fico com raiva, porque palavrão é pra gente extravasar, não é pra fazer sacanagem. Eu tenho preguiça da minha gramática e deixo sair tudo errado. Do jeito que as palavras voam, eu caço algumas e coloco em qualquer lugar. Você acha graça. A sua paciência me irrita. Eu tenho, pelo menos, cinco crises por dia, e você tolera. Você nem dá bola. Eu surto, eu xingo, até ficar cansada e deixar pra lá também. Eu sempre digo que o problema é todo meu, que eu não sou da sua conta. Meu discurso é pronto, eu brigo e estufo o peito igual galo garnisé. Você me quebra e diz que eu sou da sua conta, sim. Meu feminismo volta para dentro da minha garganta. Você não está nem ai para a minha ideologia de machi-e-fêmea. Você não está nem ai para as minhas crises. Toda vez que eu vou embora, você me deixa fazer as malas, comprar o bilhete e esperar na estação. Você me deixa ir, só para ter o prazer de me ver voltar. Eu volto, faço café e ligo a TV como se nada tivesse acontecido. E você, me beija como se eu nunca tivesse ido. Eu tenho vontade de me dissolver. Você me bebe. Eu gosto de morrer todo dia. Você me ressuscita, porque gosta do calor da minha 40 vida. Eu me pergunto se viver de um jeito mais fácil significa viver de um jeito mais feliz. Menos dramático. Mas eu nunca quis o fácil, o regular, o óbvio. Eu penso em desistir todo dia, e te digo que não suportaria conviver com outro igual a mim. Você é só calma. Só paciência. Eu invejo e testo seus limites. Eu sou rainha em desistir e você rei em permanecer. Eu faço de tudo pra cansar, pra acelerar o processo de partidas e vindas. Eu sou urgente, não espero nada. Você já conhece meu cronômetro. Eu quero descer pelo ralo e você fala que não. Que não nasci que pra isso. Eu seguro a onda. Eu sou uma bomba relógio e você sabe me desarmar. Naqueles dias que eu perco o ar, a paciência e meu fio de bom humor, você é o único que conversa comigo em silêncio. Mas a vida nos obriga a ver tanta gente partir, tanta gente ir, sem despedidas, que eu ensaio também. Eu gosto de ir sem ter muito o que dizer, e mesmo assim, ainda acho que falo demais. Você paga pra ver o dia que eu não vou voltar. Aposta todas suas fichas no meu sentimento de novela mexicana e na minha infantilidade. Acredita que é só mais uma das minhas crises. Mas você não sabe quantas coisas já deixei para trás. Não sabe quantas vezes já fui sem acreditar se teria coragem de não voltar. Eu erro quando te superestimo e você quando me subestima. Eu estou quase batendo palmas pra você. Vejo você errar do mesmo jeito que os outros erraram. Excesso de autoconfiança. Eu vejo você monocromático. Igual. E digo: ok, tudo bem. Quem sabe numa próxima vida? Me jogo, mais uma vez, e flutuo numa bolsa de ar. F-u-i. 41 JÁ VOLTO Hoje é seu aniversário, você me disse que estou fazendo falta. É que ultimamente, tudo faz falta em mim. De novo, as coisas estão fora do lugar. Acho que é por isso que tenho feito ausências em lugares que sempre estive presente. Há um ano, eu estou vivendo de faltas. Estou vivendo de arrumar espaço dentro de mim. Quando a gente está assim, o melhor a se fazer é fechar as janelas, a porta e não atender a campainha. Mas acontece que eu, curiosa que sou, abri a porta. Eu precisava respirar, sabe? E ai, que entrou um moço. O moço me abraçou tão bonito, tão amarelo, tão sábado, tão mar, tão vento. Eu disse a ele que não, que ele não podia chegar abraçando tão assim. Disse também, que ele tinha que ir embora. Que eu não podia recebêlo com uma casa tão desajustada como um quadro surrealista. O moço dizia que queria me ajudar. E eu queria dizer não. Não consegui. Eu disse: “Seu moço, esse trabalho é meu. Eu tenho que fazer sozinha. Não está vendo a quantidade de cacos no chão? Não está vendo os botões, as flores e as histórias flutuando aqui? Como você poderia me ajudar com tudo isso? Como saberia a inutilidade de uma e a importância de outra?”. O moço me abraçou tão paciência, tão afeto, tão amor que eu fiquei ausente de mim. Agora, você está me dizendo que sente minha falta, moça. Mais pessoas me disseram isso. Eu estou ausente de mim. Estou vivendo de vãos. Vivendo entre os dentes, entre as folhas, entre as estações, entre atrasos, entre cafés e entre letras. Esses dias, no meu peito tocou um samba tão alto que o moço ouviu. Eu o culpei de ter invadido meu silêncio tão tiranamente. Eu quis mandar ele embora, de novo. Eu estou perdendo datas, perdendo dedos, perdendo minha boca. Eu não quero dizer mais nada. Não consigo mais justificar porque estou fora de órbita. Eu pareço uma canalha egocêntrica. Aliás, eu sou. Eu sei que tenho feito ausências. Eu sei que 42 só consigo pensar em ajustar a minha sintonia do que cantar outras músicas. Eu-falta. Eu-ausente. Fui sem saber como voltar. No outono, minhas folhas caíram, e eu pude ver mais claramente meus galhos, meus braços e você. O inverno chegou aconchegante. Eu estou quase me encontrando. Falta pouco, tenha paciência. Na primavera, prometo, eu volto. Desculpa minha ausência, moça. Já volto. 43 MARIA GABRIELA GIANINI Oi, tudo bem? Com essas poucas palavras se começam as amizades, os amores, as decepções e também as apresentações, contudo a poesia fala, e melhor do que conhecer o que se diz essa breve descrição, é descrever o que se diz a poesia do coração, então me leiam, meus futuros amigos, amores e decepções. Maria Gabriela Gianini Duarte, 17, mineira e o prazer é todo meu. [email protected] 44 SOBRE A MUDANÇA Minha bandeira nunca será vermelha! E não, não é da bandeira dos revolucionários que falo. Falo não a bandeira vermelha cor sangue Sangue da mulata que tem os calcanhares em carne viva De ir e vir com a bandeja de cerveja na mão Que tem marca de mãos na bunda carnuda Como recompensa pela cerveja gelada Essa que mantém a bochecha paralisada num sorriso amarelo Amarelo como o time que joga o marido, paralisada como o patriarcado. E se divirta mulata! Porque precisamos nos orgulhar do futebol Dessas peladas Principalmente dessas que jogam Com as bolas do trans Que acabou de ser assassinado Para manter o que chamam de família Para regar o orgulho de sangue Pelo motivo: Por que sim. 45 E se divirta mulata! Por que tapas são o que te resta Já que nasceu na favela E o ensino fundamental não foi suficiente Para contar cotas! Para ler os sonhos! Por sua sorte mulata Acreditar não precisa de diploma Então reze mulata! Para que se acredite Nesse deus milagroso Que dá mansões a pastores Que vende chaves do céu aos fiéis E fronhas de doação de fé e amor E doe essa bandeira vermelha Para que se possa ter fé Para que possa dar de comer Esse seu cérebro de frango com catupiry! Amém. 46 FAR AWAY Essa falta que o álcool faz Esse rodeio de desconforto Que vem de baixo e sobe E faz as borboletas gritarem Faz o nó dar cambalhotas na garganta Faz com que eu esteja sóbria Jogada, sozinha, para esses macacos Chamados de primeiro mundo Esses, rodeados de hormônios Que eu quero, mais do que tudo Testar, provar, aproveitar o máximo possível! Provar esses seus lábios vermelhos E ouvir você cantar, dançar para mim E dance princesa Porque em minha mente já fomos ao céu! E vem para mim E testa, como posso ser esse pesadelo Fantasiado de paraíso Então nessa madrugada Sonhe comigo. 47 QUERIDO GABRIEL, Me lembrei de você, não sei se pela naturalidade da perda, ou por simplesmente não querer lidar com ela, e os dias são frios meu amigo e os ventos fortes, se eu não me engano esses levaram os últimos restos do calor que eu tinha de casa, me sinto completamente sem mãe, sem colo. As pessoas daqui dificilmente sorriem, não se enxergam as almas, são sim polidas, mas numa obrigatoriedade de educação que tira todo o abraço que os sorrisos guardam, me sinto sem abraço, sem laços. Eu sinto falta de vocês, da implicância para qualquer desimportante que nos define, dessas divergências de ser, da variedade sabe? De ter dias, pessoas, saudades que sejam frias, quentes ou mornas. Não importa, sinto falta de vocês, do calor de casa, as risadas, das mágicas fajutas que sou desastrada, desligada demais para achar o truque, mas eu amo isso, por favor mantenha segredo, mas sim, eu amo a verdade da mágica até mesmo dessas de contos de fadas, do desconhecido, do tudo é possível, eu amo a magia dessas suas cartas bobas, desse sorriso quente, daquela caipirinha, se lembra? Do empório que quase viramos sócios... Quase, por que eu vim para cá sentir saudades de vocês, mas ainda tenho o céu e tempo de ir vasculhar as constelações como fazíamos e sentir por mais uma vez o gosto da magia de ver bolas de fogos explodindo a milhões de anos luz se transformarem em história, em arqueiros e escorpiões, em um modo de me lembrar do calor de casa. Me lembrei de você, não sei se é pela madrugada e eu estou sozinha, ou se é pelo calor das lágrimas que escorrem rumo ao meu riso, para poder me esquentar um pouco, é uma noite fria meu bem, e os ventos me levaram para longe da magia de se ter você. Maria. Richland, Washington. 31 de março de 2015 Ps. Continuo me lembrando de você, não se preocupe, estou quente. 48 MARINA LAURENTIIS Marina Barzaghi De Laurentiis, 26 anos, lua ascendente em touro, apaixonada por versos, economista de formação, poeta de coração. Encara a escrita como um exercício de conhecimento de si e da relação entre seu corpo e a imensidão do mundo. Recém-ingressante no curso de Letras, da Universidade Federal Fluminense, em que pretende aprofundar seus conhecimentos em literatura e escrita, a fim de externalizar com maior clareza e precisão o sentir que, de tanto, faz doer a alma. Os dois últimos poemas fazem parte de diálogos poéticos realizados durante o ano de 2014 na companhia de Tomas Fava (Tom Zim) e foram pensados, inicialmente, sob o nome de Leonor B.: poeta de meia-idade e muitas identidades. Morte de causa desconhecida, provável suicídio. Seu corpo foi encontrado no mar perto de Ilha Grande, Rio de Janeiro. [email protected] 49 GUANABARA Pés na água marrom e fria. Admiro a vista. Estrangeira de qualquer lugar. “Do alto do corcovado deve dar para ver o mundo!” Talvez pareça uma boca banguela. Mas é bela. Como é bela. Nas costas som de motor. o mar de prédios da forma à cidade. Na costa areia branca. plástico e vidro compõe a paisagem Urubus comem qualquer coisa morta - ou tóxica. A vida é como o mar na baía. Movimento calmo e continuo despeja, na praia, o lixo a tempo jogado no mar O letreiro acusa: não recomendado banhar. Crianças se banham. Homens recolhem a vara de pescar. Mas é bela. Como é bela a Guanabara. 50 DO AMOR I. Quem vive de amor não vive revira-se II. O amor é uma ferida de tão profunda cria vida não cicatriza e permanece moribunda, na pele, a incomodar III. Amor é Um instante de falta de vaidade Que entra e invade Sem ser convidado E deixa enlouquecer O coração cansado Até que já não possa Nem mais respirar E morre De amor Ou de saudade IV. Vê? Eu te trouxe um bife suculento, Mal passado e sanguinolento 51 Eu mesma arranquei das minhas entranhas para te dar. Ah! ao menos não tomasses Meus prantos Por psicose... 52 DA LOUCURA I. Abri a janela essa manhã Vi o sol que entra sem perguntar Se quero amanhecer. II. Temo pela minha sanidade Em tempo Medico-me Medito e esqueço A sanidade tem seu preço III. se essa teimosia não for mais que azia de quem engole o mundo com a pança vazia? IV. Insônia o grilo canta lá fora, ouço na orelha 53 PAULO COSTA Quem escreve é Paulo Costa, um jovem de vinte e um anos, estudante de Jornalismo que recentemente tornou-se escritor. Faz parte do Coletivo “Jornal P’atuá”, uma publicação independente que debate sobre Arquitetura, Cidade e Educação. Também escreve para o Blog “Alegorias da Inércia” em conjunto com um par de amigos (a Rê e o Mat), e pretende publicar neste ano seu primeiro livro de contos sem intermédio de editoras. Paulo Henrique da Costa Lopes escreve como Paulo Costa para o Blog http://alegoriasdainercia.blogspot.com.br/ e para o impresso Jornal P’atuá. 54 FERRUGEM José puxa mais um trago de seu cigarro Eight, toma mais um gole de seu café misturado ao leite, ao lado do prato servido com algumas migalhas do pão que já o alimentou. São seis e cinquenta da manhã enquanto José, sentado na mesa do boteco da esquina entre as ruas Coronel Xavier de Toledo e Sete de Abril, se distrai com os sons do Vale do Anhangabaú. O jornal matinal permanece debaixo do braço, e o bolso da camisa branca sobre o peito, com o volume do maço de cigarros que acabara de comprar. O filho único de Dona Aldelina - mulher rígida e carinhosa, de berço nordestino - com Seu Ubaldo - criado na roça mineira, lidando com a pobreza desde muito cedo - caminha pela Rua Sete de Abril em direção de seu trabalho. Chegado à Rua Barão de Itapetininga, ele sobe as escadas do prédio comercial, para no segundo andar e mal entra no hall do escritório de advocacia, onde foi empregado como escrevente, e já recebe notificação pelo cheiro alcoólico, aroma de diversas manhãs no trabalho, e pela calça jeans surrada, que, se dependesse, usaria todos os dias. José se senta e prepara-se para mais um dia cheio. Seu ofício é redigir cartas, contratos, e quaisquer documentos que lhe apareçam sobre a mesa. Essa mesma mesa que José agora encara com seus olhos cinzentos e que abriga um grande computador antigo, um telefone fixo e uma caderneta para anotações. Por mais que o destino de José não tenha sido acadêmico, anos de reclusão em seu quarto imerso na literatura e o ensino médio completo capacitaram-no para o cargo, que exige de seu intelecto um 55 conhecimento dos saberes gramaticais no setor jurídico, e que, curiosamente, gerou comentários pelo escritório sobre suas ótimas correções e alterações em documentos. Deu a hora do almoço e um grupo de colegas convida José para a refeição no boteco ao lado que faz um bife à cavala baratinho. Mas antes de partirem, o escrevente avisa-lhes que os encontrará já já, pois decidiu ir ao banheiro. Mija no mictório, lava as mãos na pia e joga água sobre o rosto de pele morena com a barba feita. Ele olha o próprio reflexo no espelho, seu cabelo crespo, curto e já com grisalhos, as bochechas levemente caídas, olheiras sob os olhos e seu queixo volumoso. Apesar de sua fisionomia animosa não agradar e lhe ser bem desgostosa, foi o que mais conquistou Elena, sua amada esposa que o aguarda todos os fins de tarde no portão de casa na Rua Porangaba, servida de café e um cigarro já no fim por queimar seus dedos. José dá por encerrado o dia de trabalho. São quatro da tarde, o fim do expediente, bate o ponto e parte em destino de sua casa. Sobe ao ônibus 4115-10 na Praça da República. Paga ao cobrador, roda a catraca, senta-se no banco ao fundo com elevação sobre os demais. O destino é um pouco distante, mas a viagem foi rápida e José logo chega onde desejava, os braços de sua mulher, que, como sempre, o aguardava no portão com um copo de café numa mão e o cigarro já miúdo na outra. Um beijo quente os aproxima e o casal toma o rumo do quintal até a cozinha. A janta precisa ser requentada e papo vem. O bife acebolado é servido junto ao feijão com arroz, e, do lado, um trago de cerveja os aguarda. Comidos, papo foi. José se retira para um banho enquanto Elena lava a louça. "Toma seu banho quentinho, que logo faço sua massagem, bem". 56 José se vê agora nu. Pés sobre o chão gelado branco de lajotas, cabeça sob a boca do chuveiro elétrico regulado em "verão" e seus braços percorrem mecanicamente seu corpo, que, aos poucos, se ensaboa. Nada chega na cabeça. Sua memória parece inválida e não há quem possa dizer o contrário. Enxuga-se na toalha branca pendurada numa haste instalada na parede a um metro e oitenta do chão. O escrevente não percebe, mas vestiu-se com as mesmas roupas que jogou ao chão agora a pouco. Caminha até a saída de sua casa, segue pelo quintal, calçada e cidade adentro. "Opa!" - Grita. "O que eu to fazendo aqui, caralho?" Acende um cigarro e se senta no bar vermelho com toldo amarelo mostarda, que fica de frente pra rotatória no fim de sua rua. Servido de cachaça, limão e melancolia, as engrenagens de José vão se enferrujando. Parando cada vez mais. Até que parou. Som agudo aflige os tímpanos, suor toma conta de suas mãos e o regurgito é inevitável. De sua boca, sai. Dói, mas ele não consegue impedir que saia. A ânsia domina seu corpo e seu não corpo. José encosta-se à mesa em sua frente. A cabeça pesa e não recusa o aconchego da madeira. O sono bate... 57 UMA ROSA A GULLAR suas lágrimas e sorrisos dentro de seus versos e estrofes em delírios, me acalantaram e abrigaram minha dor tomaram para si minhas amarguras livrando-me do medo vestindo-me em armaduras. assim como um escafandro de luz, que ensinou-me dois e dois são quatro; que a natureza não depende de nós; ensinou-me a aceitar que o morto está morto, mas que seu canto pode nunca cessar. 58 Entorno O sol insurge pela janela entreaberta da cozinha no sítio de João. Entregue ao chão frio e cimentado, acorda atordoado depois de mais uma noite de embriaguez. Seus olhos ainda estão marejados de uma triste ideia repentina que lhe acometera após o entoar das estrelas. Finalmente se levanta, caminha até o quintal de seu pequeno sítio. "Preciso buscar mais sementes na cidade". Olha sua horta, humilde e breve. Separa verduras para sua próxima refeição, recolhe ovos de seu galinheiro. Cozinha, corta, tempera. Alimentado, João dirige-se ao jardim. Aduba, poda, rega. A dificuldade em apanhar um ramo de flores pouco mais distante de suas mãos, força a realidade de seus sessenta e cinco anos a aparecer. Seu corpo já não suporta maiores esforços, o que dificulta a vida isolada em seu sítio no interior da cidade. O telefone toca. "Olá, papa. Feliz natal", é o que Carlos, seu primogênito, deseja. João agradece. "Vamos nos falando. Não some, papa". Depois de sua aposentadoria seguida da separação matrimonial, João partiu da cidade em busca da paz e tranquilidade no campo. Sua família pouco soube aceitar sua decisão; conviver, menos ainda. Com o tempo, as visitas de seus filhos diminuíram, e seus irmãos mantiveram-se fiéis a vida de libertinagem nas ruas e o dever de pai na casa. A noite de natal passa. João reflete, bebe. O álcool nocauteia e, novamente, ele acorda no amanhecer frio do chão de sua casa. O telefone toca. É Pedro, seu irmão caçula. O contato de natal é obrigatório, porém não impede João de se convidar para um almoço com ele. Parte para a cidade, zona nobre, casa de seu irmão. "Venho visitar Pedro. É meu irmão". "O nome do senhor, por gentileza". 59 Desconfiado, o porteiro só abre a porta após confirmar com Carla, esposa de Pedro, a existência do irmão do patrão. Lá estão familiares e amigos. Rodas de conversa se formam pelo extenso quintal com piscina e ao longo da sala de visitas. Seu irmão estava dando uma festa. Se soubesse disso, não iria comparecer; muito menos se convidar. João já não sabe se comportar diante de todas essas regras de convívio na aristocracia paulista. Logo se acanha. De frente pro bar, serve-se de um copo com vodka até a boca. Bebe tudo em uma entornada. Serve-se de novo e caminha pela casa, acompanhado de seu drink. João sobe as escadas da casa de seu irmão. Vê cinco portas fechadas ao longo do extenso corredor adornado com fotos da família e pequenos quadros. Ele abre uma por uma. Sala com tevê, banheiro, quarto de hóspede, quarto de seu sobrinho Rafael, e a grande suíte dos patrões. Retira-se. Ao descer das escadas, logo avista uma mulher entretida numa conversa com desconhecidos sobre as composições de Chico Buarque e sua Literatura. É morena, mais madura do que João se lembrava, de pele macia e belas coxas que ele tanto desejara, chegando por fim a aproveitar-se. Rosa está novamente de frente com João. Com os olhos, segue cada movimento dela. Atreve-se a tocá-la, interrompendo, assim, a conversa. Seu ombro esquerdo estava nu, devido ao decote do vestido. Os olhos de Rosa e a surpresa no sorriso denunciavam a felicidade dela em rever João. Trocaram beijos de cumprimento. Ela reclama do sumiço dele; ele, de nunca receber sua visita. Despedem-se da roda com que Rosa debatia e dividiram a taça de vinho abrigada em suas mãos finas e delicadas. Já anoitecera desde que os antigos amantes se reencontravam. O rumo que a festa tomava para os dois era nostálgico. A embriaguez aproximava-os e a sensualidade tomava conta de seus corpos. Um beijo foi suficiente para o casal despedir-se de todos e relembrar as intimidades que já compartilharam. 60 O carro de Rosa os levava ao sítio de João. A aliança no dedo da parceira revelara o porquê da falta de visitas nos últimos anos, porém tal fato não impediu ambos de manifestar mais uma vez o romance. João acariciava os seios de Rosa, enquanto ela pilotava parte do percurso. Já no fim do caminho, sua mão esquerda toma o destino das virilhas quentes de sua cúmplice. O casal não suporta mais de tanta excitação e trocam afetos em meio a orgasmos no chão gelado e cimentado da sala. Os olhos de João se fecham após carícias de Rosa no topo da cabeça. Os sonhos tomam conta da realidade. João acorda, mas se mantém de olhos fechados. Seu sorriso é largo e suas mãos tateiam o chão a procura da amada. Nada encontra. O amante volta a adormecer. O sol insurge pleno, pela janela entreaberta da cozinha no sítio de João. Entregue ao chão quente e acolhedor, acorda realizado depois de uma noite de paixão. Rosa não está mais lá. João não lamenta sua partida. Adormece mais uma vez. 61 SYARA DE NORONHA Syara de Noronha, 33 anos. Às vezes pareço trilhar concomitantemente as dimensões do sonho e do mundo material. Hoje formada em Gestão Ambiental, após abandonar letras na USP, procuro ser pai e mãe dos três filhos que me acompanham nesta jornada terrena. Entre chaves de fenda, colheres de pau, pentes finos e giz, busco não apenas entender o processo, como viver o Aqui e Agora intensamente. Amante das palavras, no meu texto cabem as reflexões de todos os temas sobre os quais desabafo. Não há limites para a inventividade humana, e seja em prosa, verso ou teorias científicas, creio que o amor universal e a utopia visionária podem estar sempre presentes. Admiro demais Einstein, Chaplin, Leonardo da Vinci, Frida Kahlo, Gandhi, Mandela, Joana D'arc, Zumbi e todos os anônimos que deram e dão suas vidas por uma nova realidade. Considero-me feminista, agnóstica e anarquista. Meu sonho é viver em uma comunidade sustentável e libertária, com agrofloresta, mina d'água e Wi-Fi. 62 O DESPERTAR Naquela noite de bruma caminhava a esmo, absorto no vazio de seus dias. Repetidamente, acordava com sua programação artificial; seu café alheio; seu trabalho insignificante. As noites, retornos infindáveis. E o mesmo dia repetia-se, insistentemente. Quisera mudar seu destino tantas vezes, mas parecia faltar-lhe ânimo; sua coragem tão esquecida, na inércia de seu cotidiano. Que propósito tinha sua vida, então? Ninguém o esperava, nem o amava. Nem ele a si mesmo. Resolveu virar naquela esquina, aquela tão desconhecida, apesar de movimentada há anos. Observava então, transeuntes, grupos, quanta luz e movimento havia lá fora. Era um frenesi de gargalhadas, música, debates... Sentiu vontade de entrar num desses lugares, beber algo de cujo nome não se recordaria... Algumas doses... Surpreendentemente, havia agora um bem estar em si, uma completude, certa alegria... Seu peito parecia vibrar. Lembrou-se de quando era menino. Quando criança, quanta novidade o mundo lhe trazia! Paisagens, pessoas, lugares, descobertas! Sentiu sua coragem plena na meninice distante, quando a curiosidade pelo novo permitia-lhe sentir prazer em tudo. Em que tempo e espaço teria ficado para trás seu íntimo desperto? O barulho de tudo ali presente desaparecia então, no seu passado interior. Nada fazia mais sentido do que a busca por si mesmo. 63 Partiu, errante pelas ruas, contudo firme em sua própria história. Perscrutava-se, angustiadas lembranças de perda e temor. Quando a sobrevivência lhe bateu à porta, acompanhada de solidão e fome. Como um golpe lancinante, agachara-se em prantos, sentindo extravasar aquela dor que sempre sufocara para se sentir forte, mas não sabia que se sentiria morto. Por tanto tempo. A morte de sua mãe representava a abrupta perda da infância. Desde então, jamais pensara no seu prazer. O trabalho, as relações... Comumente voltados à sobrevivência. E mesmo hoje, quando a miséria já não lhe batia à porta. Não. Para aquela vida não voltaria. Nem à sua casa, pois que nada ali o representava verdadeiramente. Desejou partir para sempre, talvez para um mundo de sonhos e ilusões. Queria subir naquela mangueira outra vez, mesmo que lá desse seu derradeiro suspiro. Momentos depois adentrava o trem que o levaria de volta para casa. E a vida vazia tornou-se receptiva de novo; ainda que idoso, ao reencontro consigo. Apesar de intimista, observava todos ao seu redor. Aquela criança que o olhava assaz profundamente tinha algo de tão puro que o encantava. Era um estar presente só de alegria e descobertas. Com seu pirulito, olhava confiante o mundo. Havia também um casal, com segredos sussurrados, carinhos e cuidados que jamais conhecera. Era bruto seu coração. Até uma velha parecia contente ao tricotar, não apenas memórias, mas um futuro ainda. Percebeu-se no aqui e agora também. Além da mangueira de suas reminiscências, nenhum outro lugar seria tão seu quanto aquele vagão. 64 Na hora de descer, pôs-se distraído a caminhar, atônito de ansiedade. Sentia seu passado fluir pelo seu corpo, em alegria e suor, expectativa e coragem, rapidez e temeridade... Já não era velho, mas atemporal no seu carpe diem. Avistava, enfim, a árvore, intransponível! Suas folhas maternais convidavam-no ao balanço de outrora; e sem pensar, tirou seus sapatos, gastos de superficialidade e indiferença. Coragem não lhe faltava... Sentia seu corpo leve. Suas mãos enrugadas tocavam o tronco paternal, que o alçaria ao infinito de si mesmo. Sentia a aspereza há tanto esquecida, mas hoje venerada. Ia ganhando altura, sentindo a brisa, a liberdade... Até que, ao avistar a cidade ao longe, percebeu seu corpo tremer, involuntariamente. Não teve medo, porém. Estava onde queria estar. Sentou-se. O balanço dos galhos o fez simplesmente sentir que finalmente vivia, pulsando. Entendeu que algo mudara definitivamente. Tudo ganhava novo sentido, mesmo que não tivesse ideia do que fazer no momento seguinte. Poderia morrer ali. Estava pleno, porque rompera com sua identidade cristalizada, e ao desconstruir suas limitações, acessava o autoconhecimento. Adormecia. 65 CECÍLIA INFANTI Relações Públicas de formação, geminiana e com quase 23 anos de pura falação, irmã mais velha, geração da parceria e conselheira de mesa de bar nas horas vagas. Muitas vezes escrevo para dividir parte de mim e confabulo com meus botões em segredo. [email protected] 66 MUDAR É COLORIR Eu sempre fui oito ou oitenta, minha inspiração sempre foi colorida e meu banho, café e amor sempre foram quentes. Normalmente prefiro o sol, no entanto descobri certa paz na chuva, e passei a apreciá-la ainda mais quando sua chegada vem em dias ensolarados despertando encanto com seu presente em forma de arco-íris. Quando nova, eu costumava acreditar que no fim do arco-íris havia um pote de ouro, hoje eu já acredito que o tesouro é a junção das sete cores que cruzam o céu sem começo ou fim. Algumas coisas o tempo muda, outras não... Quando eu era menina, gostava das cores de vestido das princesas Disney, quando entrei na adolescência, preferia o preto que me fazia “rockeira”, hoje eu leio algumas revistas de moda, sei o que é tendência, mas ainda assim tenho o meu próprio estilo… E ele varia sempre de acordo com o meu humor, há dias que eu acordo rock star, outros princesa Disney, algumas vezes me faço de Pretty Woman e quando é para variar, imagino que, se eu quiser, também posso brincar de ser bonequinha de luxo. Algumas coisas o tempo muda... Das quatro estações eu sempre gostei de sentir a paz que a primavera me trazia e de viver o amor que vinha com cara de verão, essas são as estações que fogem do cinza da cidade, que intensificam as cores evidentes e ressaltam o brilho não só das pessoas, mas também da energia da cidade… E eu acreditava que só era possível ter cor em duas estações do ano... Até que ele chegou. 67 Ele chegou e nem sabe, coitada de mim, mas ele tem aquela sobriedade invernal que me fez repensar meu gosto pelo outono/inverno. Estamos em abril e a cidade já começou a ficar um pouco mais cinza que antes, porém quando passeamos por ela, esbanjando nossa alegria espontânea, é como se o monocromático da cidade se tornasse colorível e ai eu percebi que não importa qual a cor da estação, o que importa é como você a vê quando passa, e depois dele eu passei a vê-la colorível. Hoje eu levo minha caixa de lápis-de-cor dentro da minha alma e a única coisa que ultimamente eu tenho pedido é que ele me deixe ser a mudança intrínseca e subjetiva dele também e mostrar que ele também pode colorir a vida, porque no final das coisas... As coisas mudam... 68 JOSELI MORETO Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1991) e mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1997), sendo a Ética a área de concentração. Atualmente é Professora Coordenadora Pedagógica na Escola Estadual Dr Telêmaco Paioli Melges e fez escolha desta escola para assumir segundo cargo na rede pública estadual de ensino como Professora de Filosofia. 69 71 72