Dietrich Briesemeister - Universidade Católica Portuguesa
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Dietrich Briesemeister - Universidade Católica Portuguesa
UMA “FESTA BRASILEIRA” CELEBRADA EM ROUEN (1550) POR MOTIVO DA ENTRADA SOLENE DO REI HENRIQUE II DA FRANÇA E DE CATARINA DE MÉDICIS DIETRICH BRIESEMEISTER Nas primícias da Idade Moderna, as descobertas, a reforma luterana e a ameaça otomana desencadeiam uma luta de imagens (ou com imagens) de dimensões até aquela data inéditas. Imagens que se transmudam em marcas demonstrativas de concepções do mundo e de intenções ideológicas, tornam-se instrumentos do combate propagandístico, que servem tanto de senhas de identidade como para o deslinde de outrem, percebido principalmente como inimigo nefasto. A transmissão, recepção, interpretação e utilização das notícias e conhecimentos ou ainda rumores sobre o Novo Mundo e os “outros” dão origem a um processo comunicativo muito complexo por palavras (textos) e imagens, cujo mecanismo reprodutivo por meio da tipografia e de estampas se vai emancipando rapidamente. Assim não só se difundem novas experiências baseadas em observações empíricas e factos reais, mas também o intento mesmo de classificar e integrar os fenómenos e percepções inauditas dentro das coordenadas directrizes do saber já adquirido e transmitido pelas autoridades clássicas causa profundos deslocamentos que questionam ou até mesmo fazem abalar os autoconceitos tradicionalmente vigentes. Com frequência chegam a deformar as informações em contra-imagens desvirtuadas, que servem de tela de projecção para dar relevo aos próprios anelos, temores e encantamentos por intermédio dos correspondentes representações irónicas, por exemplo do Paraíso Terreal, do Eldorado e do Bom Selvagem. Como o demonstra visivelmente a imagem primitiva da América e do índio, o próprio mundo europeu define-se com base em diferenças relativamente ao mundo “bárbaro” e vai-se legitimando pela delimitação do 146 DIETRICH BRIESEMEISTER outro. Ao largo dos séculos, as artes e letras produziram e fixaram permanentemente imaginações exóticas – estranhas, raras e alienadas – nas mentes europeias. Em tais imaginações assentam os rituais discursivos sobre os “outros” e a compreensão deles. Plasmam, transmitem, definem e justificam as pautas de percepção e os modos de representação sobre a base dos motivos condutores mais diversos (religiosos, políticos ou culturais), sem que seja possível diferençar sempre com nitidez entre realidade e imaginação, história e ficção, verdade e fingimento. As pompas organizadas em Rouen pelo município nos dias um e dois de Outubro de 1550 por ocasião da entrada do soberano francês e de sua esposa oferecem uma das encenações mais aparatosas do Novo Mundo conhecidas na Renascença europeia. Conservam-se três documentos sobre o evento que se situa numa série de semelhantes actos festivos em Lião (1548), Troyes e Paris (1549). Um manuscrito primoroso, conservado na Biblioteca Municipal de Rouen com a assinatura Y28-1268, proporciona uma relação minuciosa em versos desta “performance”; L’entrée du tres magnanime tres puissant et victorieux roy de France Henry deuxisme de ce nom en sa noble cité de Rouen1. Este manuscrito contém dez finas miniaturas em aguarela e foi feito provavelmente em homenagem ao monarca. O autor anónimo dos versos dedicados a Henrique II descreve as entidades do séquito régio com sua indumentária, os grupos e carros de triunfo que integram a procissão, os quadros animados e a arquitectura efémera edificada nas praças públicas para demonstrar a riqueza e o poder da cidade portuária normanda. Com um gesto peremptório de orgulho, os 1 Reprodução em branco e negro com as cópias das aguarelas em gravuras: [L’Entrée de Henri II roi de France à Rouen au mois d’octobre 1550]. Imprimé pour la première fois d’après un manuscrit de la Bibliothèque de Rouen, orné de dix planches gravées à l’eau fort par Louis de Merval accompagné de notes bibliographiques et historiques par Stéphane de Merval, Rouen 1868; Chartron, Josèphe: Les entrées solennelles et triomphales à la Renaissance (14841551), Paris 1928; Strong, Roy: Splendor at Court. Renaissance Spectacle and the Theatre of Power, Boston 1973, 88-89; McGowan, Margaret M.: “Form and Themes in Henri II’s Entry into Rouen”, em: Renaissance Drama 3, 1968, 199-251. Reprodução colorida da miniatura que mostra o desfile sobre a ponte com o panorama da cidade, em Belluzzo, obra cit., t. 1, pág. 30. FESTA BRASILEIRA 147 versos aludem às proezas francesas no Atlântico como antecipação e motivo da festa brasileira: Voyez vous soubs votre nom & port Brésiliens ancrez en nostre port. On voit par la que par vous tout dangier Est assoupy voyant tout estranger Qui seurement a notre rive applicque Ainsy que nous a la leur pour traffique. Vous les verrez d’un cueur au nostre egal Faire fuir l’ennemy Portugal. Diante da silhueta airosa da cidade francesa, o desenho do fólio 28 mostra uma cena chave para entender o significado simbólico e o desígnio político do festejo. A comitiva pára no meio da ponte sobre o rio Sena. Na margem oposta à cidade ergue-se como uma montanha informe uma porta maciça arruinada de 150 pés de altura, que contrasta estranhamente com o panorama harmonioso da arquitectura urbana. As pedras adustas desta construção “taillée sur le naturel” estão cobertas de musgo, hera e ervas. Na abóbada do arco superior do portão de rocha aparecem as figuras de Orfeu sentado com a lira num trono de mármore, ao seu lado as nove Musas tocam instrumentos. Do fundo duma gruta adianta-se Hércules, vestido de pele de leão para degolar a serpente monstruosa de sete cabeças. Orfeu, além de encantar as feras e a natureza bruta com o som da música, participou da expedição dos Argonautas. Com a alusão à travessia heróica do Oceano prefigura-se um modelo mitológico-emblemático para os franceses, que com igual ânimo valoroso acometem os empreendimentos transatlânticos que levariam à fundação da “França Antárctica”. Noutro momento do programa festivo, Orfeu cantará elogios ao rei. Hércules, protótipo do monarca como príncipe de paz e vencedor glorioso em tantas campanhas militares (evocadas também nalguns quadros cénicos do desfile triunfal), extermina os distúrbios que agitam o reino. Diana, a quem alude a inscrição latina da miniatura, é a divindade da casa e dos bosques. Corresponde-lhe a paisagem ribeirinha povoada de árvores, entre as quais se amontoa uma multidão de espectadores ingénuos. São “homines silvatici”, habitantes das selvas ou selvagens, despidos, alguns armados de arcos e escudos. São homens, mulheres e meninos maquilhados de vermelho por entre troncos pintados também de cor avermelhada como o pau- 148 DIETRICH BRIESEMEISTER brasil. Em Roma, os escravos e a plebe veneravam Diana como deusa da federação de Lácio e como patrona da vida comunitária. No outro extremo da ponte, a figura bronzeada de Saturno fica colocada sobre a lua crescente (de prata) no tímpano do portão de entrada da cidade. Sustentam-no duas sibilas, a Cumana e a Tiburtina. A Saturno associa-se a ideia da Idade de Ouro. A lua crescente corresponde à divisa do rei “Donec totum impleat orbem”. A ponte forma ao mesmo tempo uma espécie de muralha que protege o porto e uma tribuna grandiosa de onde o soberano goza de uma vista panorâmica do cenário natural e artificial. Olha para as diversas acções dramáticas em curso. O rei encontra-se não só no centro da miniatura, mas também no meio dos acontecimentos teatrais montados em diversos lugares. Desviando o olhar dos selvagens, o rei observa dois quadros marítimos espectaculares, o “Triumphe de la Riviere”. Em companhia de Enipeo, Palemão e Glauco, Neptuno sai das águas ao encontro do soberano sobre a terra e entrega-lhe o seu tridente, símbolo do domínio sobre os mares. Com este acolhimento mitológico-protocolar, o monarca como espectador homenageado integra-se, por sua vez, como figura na encenação. Ao despedirem-se, as criaturas marinhas precipitam-se de cabeça para baixo no rio, em acrobacia atrevida, tão do gosto do ilustre visitante. Em seguida, Neptuno assume a presidência dos jogos náuticos preludiados com música. Montado sobre um delfim azul caprichoso, Arião toca a lira em acção de graças por ter sido salvo pelo animal do perigo de morrer afogado. Uma baleia vomita peixes, outros tritões levam instrumentos musicais, tartarugas e arpões. No centro do bailado náutico está Neptuno sobre o trono do seu carro triunfal puxado por dois hipopótamos. Sob o mando de Eolo sopram os ventos. O desfile de Neptuno com o seu séquito representa a Corte num espelho mitológico-alegórico e em forma dum triunfo marítimo acompanhado de música aquática. Da varanda de uma torre, a rainha observava o espectáculo teatral tão deslumbrada, que se esqueceu de saborear os doces que se lhe ofereciam, como aponta o cronista. A continuação, uma batalha naval entre uma caravela portuguesa e um barco francês, trava-se perante o rei, visualização simbólica da rivalidade entre duas potências marítimas. Das muralhas da cidade, os franceses atiram contra a embarcação inimiga, que se afunda. Os marinheiros salvam sua vida, nadando. Selvagens numa canoa acodem em socorro dos franceses, em apoio semelhante ao dos tupinambás no Brasil, contra os portugueses. A coberto das fortificações, outro grupo de peles-vermelhas está correndo ao redor das suas cabanas, que se FESTA BRASILEIRA 149 incendiaram. No porto seguro atrás do monarca, situado entre uma paisagem arranjada artificialmente à brasileira e a metrópole na margem do Sena, vêm-se nove barcos ancorados. A aguarela traduz a constelação competidora da época em imagens cénicas vivas e impressionantes. Trata-se, por um lado, de uma espécie de “teatro dentro do teatro”. Os selvagens são os espectadores de um desfile solene e pomposo da corte, cujo cerimonial se reveste de um acentuado carácter teatral. As pessoas que cercam o soberano deleitam-se com as festas mitológicas operísticas e a representação de uma naumaquia simulada. Ambos os intermédios vivos ostentam um aparato técnico engenhoso, que inclui música, fogos de artifício, exibições acrobáticas, carros alegóricos, desfiles de animais, cartazes pintados e grupos de figuras. Neste contexto o rei vê-se representado a si mesmo, por exemplo, sentado num trono sobre um carro triunfal, onde a Fortuna impõe a coroa imperial ao soberano rodeado dos seus quatro filhos. Noutro momento incorpora-se na acção teatral, quando Neptuno sai das águas para render homenagem ao rei no acolhimento cerimonioso na ponte. Espectáculo, cerimónia protocolar e vida confundem-se constantemente, fazendo sobressair a teatralidade dos actos. Esta teatralidade será potenciada ao extremo quando os espectadores reunidos na floresta (artificial) junto ao rio começam a brincar “ao Brasil”. Formam um público à margem das festividades, o populacho, em contraste com a multidão citadina e burguesa que se atropela nas ruas e praças de Rouen. São peles-vermelhas que moram fora do recinto municipal. De imediato se transformam em agentes dum espectáculo extraordinário, que representa a oposição fundamental entre civilização e barbaria: desnudez e vida despreocupada no meio da “natureza” contrastam com o rígido protocolo cortesão, o luxo e a pompa cerimonial. A natureza opõe-se à cidade como a arquitectura às ruínas ou cabanas primitivas. A exibição teatral muda (pantomímica) da realidade fingida que a aguarela evoca, com a presença dos indígenas na cena à margem esquerda, fica documentada em dois relatos impressos, um mais sucinto de Robert Masselin, L’Entree du Roy nostre sire en sa ville de Rouen, Paris 1550, e outro muito minucioso, acompanhado de uma série de gravuras que foi publicada anonimamente em Rouen por Robert le Hoy e Jean du Gord em 1551 sob o título C’est la dedvction du sumptueux ordre plaisantz Spectacles et magnifiques theatres dresses, et exhibes par les citoiens de Rouen ville Metropolitaine du 150 DIETRICH BRIESEMEISTER pays de Normandie. A la sacree Maieste du Treschristian Roy de France, Henry Second leur souuerain, Et à Tresillustre dame, ma Dame Katharine de Medicis, La Royne son espouze, lors de leur triumphant ioyeulx & nouuel aduenement en icelle ville. Et pour plus expresse intelligence de ce tant excellent triumphe Les figures & pourtraictz des principaulx aornements d’iceluy y sont apposez chascun en son lieu comme l’on pourra veoir par le discours de l’histoire (exemplar na Biblioteca Ducal Augusta de Wolfenbüttel, cota 70.34 Hist.). Este livro constitui um guia da cenografia e explica o programa com os seus argumentos iconográficos em 29 gravuras magistralmente executadas por um artista anónimo. A atribuição a Jean Cousin carece de provas convincentes. O relator, que no texto em prosa fala na primeira pessoa como testemunha ocular muito erudita – por acaso foi quem engenhou o programa – também fica desconhecido. Em 1557 saiu uma nova edição2 da oficina de Jean du Gord, livreiro e negociante ruanês, que reproduz as ilustrações de 1551, mas com a descrição versificada do manuscrito da Biblioteca Municipal, sem as anotações musicais dos hinos e sem a parte correspondente às celebrações dedicadas à rainha Catarina de Médicis, em 2 de Outubro de 1550. A xilografia intitulada “Figure des Brisilians”, que cobre duas páginas, mostra os acontecimentos dramáticos numa composição cénica simultânea e múltipla. Nesta folha figura pela primeira vez o continente descoberto 50 anos atrás como fundo de um espectáculo que durante dois dias converteu uma pequena parcela ribeirinha de uma cidade francesa numa América artificial, inventada e imaginária. Para impressionar o rei com uma demonstração do poderio e das aspirações da cidade normanda, os vereadores não só mandaram realizar no rio Sena um corso de figuras marinhas com música e um combate naval, mas também um espectáculo que Henrique II observava a partir de um miradouro especial. Para destacar o realismo e a ilusão do “show” montado fora das muralhas, uma pradaria que media 200 passos de comprimento e 30 passos de largura, serviu de cenário natural e foi transformada numa selva artificial com troncos pintados de vermelho como se fossem madeira de pau-brasil. As copas 2 Com o título: Les pourtres et figures du sumptueux ordre plaisantz spectacles & magnifiques Theatres dresses & exhibes par les citoiens de Rouen. Ville metropolitaine du pai de Normandie. Faictz a l’entree de la sacree Maieste du treschrestien Roy de France Henri second, leur souuerain Seigneur. Et a tresillustre Dame, ma Dame Katherine de Medicis la Royne, son espouze, exemplares nas Bibliotecas Nacionais de Paris e Rio de Janeiro. FESTA BRASILEIRA 151 frondosas das árvores com os frutos pendurados nos ramos (já era a estação outonal!) pareciam verdadeiramente tropicais (“rapportant assez près du naturel aux feuilles des arbres du Brésil”). Macacos, papagaios e outros animais exóticos que os marinheiros trouxeram do Novo Mundo povoavam o mato umbroso como “Hortus conclusus” fora do recinto urbano e muito diferente daquela “figure du pont de Robec” (pag. N IVv), instalada numa praça da cidade como lugar de delícias para o rei Francisco I, em companhia de duas damas alegóricas, as ninfas de Boa Memória (com um livro na mão) e a Generosidade com as artes e letras simbolizada por Egéria, conselheira de um rei de Roma no propósito de fazer dos seus súbditos bárbaros homens cultos e virtuosos. As cabanas primitivas dos homens selváticos na ribeira foram construídas sem “art de charpenterie” e “en la forme et maniere des habitations des Brisilians”, enquanto que a cidade de Rouen, as maquetas de fortalezas conquistadas que vários grupos levavam no desfile e os monumentos efémeros, que serviam de decoração festiva, foram todas construídas “selon l’art d’architecture”. As cabanas dos índios, ao contrário, estavam cobertas de ramalhos e protegidas por terraplenos e paliçadas. Cinquenta aborígenes, que os navegantes normandos raptaram no Brasil, viviam espalhados na selva, o seu habitat natural perdido. Um grupo de índios cativos marchava também no Triunfo conduzido pelas ruas em homenagem ao rei. 250 marinheiros e comerciantes franceses que conheciam o Brasil por experiência própria e que, segundo diz o relato, falavam o idioma tupi, desempenham o papel de índios. O comentarista utiliza o verbo simular, fingir ou simular em forma muito “verosímil”, quer dizer todos nús, sem cobrir as suas vergonhas, bronzeados (hâlé em francês), com os atavios típicos dos índios nos lábios, lóbulos das orelhas e faces: “Ils estoient façonnez et equipez en la mode des sauuages de l’amerique“ imitando “si nayuement les gestes et façons de faire des sauuages, comme s’ilz fussent natifz du mesmes pays”. Em reiteradas ocasiões, o relator insiste na aparência tão verídica e perfeita, que todos crêem ver alguma coisa autêntica, por exemplo, quando passa o carro triunfal com seis elefantes “aprochans si pres du naturel, pour leur forme couleur et proportion de membres, que ceulx mesme qui en avoient veu en Affrique de vivantz les eussent iugez a les veoir elephans non faintz” (fol. G iijr).3 Há muita acção no palco 3 Outros exemplos desta mania de verossimilitude autenticada, que faz coincidir perfeitamente o representante com o representado: o público podia „ayseement veoir 152 DIETRICH BRIESEMEISTER do pequeno espaço natural. Alguns vão caçando aves com arco e flecha, outros bailam ou perseguem macacos “comme les Troglodytes apres la sauuagine”4, trepam às árvores ou abatem troncos. Outros levam-nos a um depósito na ribeira que serve de embarcadouro real da mercadoria tão cobiçada. Um barco com marinheiros vestidos em traje branco e negro ou branco e verde – reconhecíveis assim pelas cores de brasão como súbditos de Henrique e Catarina – estiva a carga de paubrasil. A cena representa ao vivo o comércio de troca e o encontro pacífico entre franceses e “brisilians” (índios). Em marcado contraste com a visão tão paliada do contacto entre franceses e as gentes do Novo Mundo, prepara-se um golpe teatral inesperado, com o assalto dos tabajaras (tabagerres no texto francês, uma tribo indígena tupi no Ceará) sob o mando de seu “rei” Morbicha, que acende os ânimos dos guerreiros com uma arenga “en langaige Bresilian” contra os tupinambás (Toupinabaulx em francês do século XVI). Deve ser o primeiro momento em que ressoam palavras em linguagem indígena no âmbito teatral europeu. Só setenta anos mais tarde sai a Tragicomedia intitulada el Rey D. Manuel conquistador del Oriente do Padre Manuel de Sousa, S.I. (Lisboa 1620, exemplares na Biblioteca Ducal Augusta de Wolfenbüttel, cota 22.13 Eth., e Brasilien Bibliothek da Empresa Robert Bosch, Stuttgart), que além duma “pompa imperial” em honra do rei Manuel o Venturoso, inclui uma figura alegórica do Brasil, que entra em cena acompanhada de doze índios com seu cacique cantando hinos em língua tupi e crioulo português, no meio de um texto de teatro escolar jesuítico redigido em latim. O discurso exortativo do chefe indígena em frente à hoste reunida antes de iniciar a luta é um dos elementos típicos na historiografia clássica e medieval, que a coreografia do festejo adapta habilmente ao teatro na imaginária selva de Rouen como episódio dramático. Os tupinambás resistem com tanta bravura, que os espectadores em sério receiam um desenlace sangrento do combate entre guerreiros armados de arco e flecha, maças, escudos e lanças. As cabanas incendeiam-se. No texto francês, a investida denomina-se et contempler les diuers esbatements qui la estoient, les aucuns naturellement et sur le vif representez, les autres par subtilles faintes exprimants le naturel, industrieusement executez“ (f. K i v), ou „autres mille passetemps de nouuelle inuention, autant bien a propos conduitz et menez a fin, qu’ilz auroient esté par subtilité de bon esprit excogitez“. 4 Troglodita, membro de uma comunidade tribal pré-histórica que habitava em cavernas. ‚Troglodita’ era o nome que os geógrafos da antiguidade atribuíam a um povo primitivo africano. FESTA BRASILEIRA 153 “scyomachie”, palavra derivada do grego “skiamachia”, simulacro de ataques com golpes no ar. Este tipo de interlúdio circense já era do gosto do público na Antiguidade e naturalmente também do rei, muito aficionado pelo desporto de competição. “La scyomachie fut executee si pres de la verite, tant à raison des sauuages naturelz qui estoient meslez parmy eulx, comme pour les mariniers, qui par plusieurs voyages auoient traffique et par longtemps domestiquement reside auec les sauuages, qu’elle sembloit estre veritable et non simulee”. Europeus e indígenas americanos representam juntamente a simulação da vida dos selvagens em regiões “civilizadas” e para regozijo de um público cortesão e burguês. Todos se divertem com a ilusão óptica no meio de um espaço cénico semi natural, semi fingido. Com estes episódios dramáticos quase sem palavras nem texto (excepto as vozes bárbaras e incompreensíveis do cacique índio), ensaiam a oposição fundamental não entre campo e cidade ou entre vida áulica e vida pastoril, mas entre civilização e barbaria. Os índios autênticos e os comparsas europeus, que com grande capacidade mimética e histrionismo assumem o papel de “brisilian”, posam em cenas quotidianas, como a caça, o remo na canoa, danças e jogos, lavores e negócios. Nesta projecção de imagens vivas sobre um cenário ao ar livre não só dão curso solto à fantasia, mas aqui presenta-se também a ocasião carnavalesca que permite experimentar sem vergonha nem castigo, com desenvoltura e ao natural, tudo aquilo que os primeiros relatos sobre o país tão diferente e remoto tinham vituperado como moralmente chocante e ofensivo das convenções sociais e tabus morais. No jogo imitativo verosímil suspendem-se por um breve lapso do tempo as próprias normas e mecanismos de controlo. Pode-se ir saltando desnudo em público e entregar-se à permissividade sexual proibida na vida “normal”. Alguns casais fazem amor na maca ou posam na postura de Adão e Eva no Paraíso. No entanto, não se fingem cenas de antropofagia, se bem que no texto haja alusões ao Brasil como terra dos canibais. Em suma, “tudo parecia real e não em absoluto fingido”, segundo afirma o cronista na descrição da dramaturgia e coreografia festivas. Os quadros vivos do género põem os espectadores em presença de uma imitação lúdica da América. O final violento do assalto e incêndio são como a irrupção da triste realidade no recinto idêntico ao Novo Mundo apresentado no Velho Continente, mais que nunca agitado pelos conflitos bélicos entre vizinhos. A encenação do gravador mostra o teatro em plena acção, condensando todos os acontecimentos sucessivos do espectáculo numa vista simultânea. A gravura constitui um documento 154 DIETRICH BRIESEMEISTER extraordinário da forma de visualizar teatralmente as imaginações europeias do índio e do novo continente. A xilografia cifra esta visão com toda sua potencialidade dramática e ideológica. Enquanto que, por encargo do Imperador Maximiliano I, Hans Burgkmair, em colaboração com Albrecht Altdorfer e outros artistas,5 executou entre 1516-1518 um cortejo triunfal imaginário “en platte figure”, como diria o relator ruanês no seu livro (f. N iijv), a gravura de 1551 reproduz em forma de reportagem as estações, quadros e actos dum espectáculo que realmente teve lugar em Rouen num cenário que era simultaneamente produto de construção arquitectónica efémera e palco natural histórico. O Triunfo monumental dedicado a Maximiliano compõe-se de 134 gravuras, que colocadas numa fila alcançariam a enorme extensão de mais de 50 metros de largura. A marcha imaginária ficaria assim, porém, inconclusa. A série deveria compreender pelo menos 148 gravuras (55 metros de largura). O desfile estatuário encabeçado por Praeco, o Génio da Fama, compreende os cargos da corte imperial, músicos, cavaleiros, lansquenês, cativos, bobos e mascarados, pendões dos territórios hereditários dos Habsburgos, estátuas mortuárias, carros com troféus de guerra, nobres estrangeiros, representantes de povos exóticos de outros continentes e, no final, a bagagem. Esta galeria de figuras e símbolos deveria perpetuar a gloriosa memória do monarca para além da sua morte, ocorrida em 1519. No final do programa encomiástico aparece uma gravura representando a “gente de Calicut”, um grupo fantasioso de indígenas africanos, asiáticos e americanos, todos súbditos da Monarquia universal dos Habsburgos. Entre eles distingue-se um casal de índios seminus com sua plumagem, atributo característico dos selvagens brasileiros desde as primeiras ilustrações que aparecem no contexto dos relatos (pseudo) vespucianos (1505). A mulher índia leva sobre os ombros um macaco coroado de louro. La figure de Brisilians de 1551 não é, de modo nenhum, a primeira representação do índio em França nem na Europa, mas sim o primeiro documento conhecido de uma elaboração pictórica “d’après nature”, por dizer assim, “live”, que se incorpora num espectáculo teatral cuja encenação se baseia, por sua vez, numa amálgama de imaginações e projecções de imagens. A montagem combina motivos 5 Veja-se Madersbacher Lukas (ed.): Hispania Austria. Die Katholischen Könige, Maximilian I und die Anfänge der Casa de Austria in Spanien. Kunst um 1492, Mailand: Electra 1992, pp. 324-331. FESTA BRASILEIRA 155 da actualidade política, aspirações comerciais, curiosidades etnológicas e experiências individuais. A aparição em Rouen de indígenas presos em territórios brasileiros consta já no relatório da viagem (1503-1505) de Binot Paulmier de Gonneville, capitão normando que de regresso a Honfleur (perto de Rouen) em 1505 trouxe o índio chamado Essomericq6. Na travessia do Atlântico o pobre doente recebeu o baptismo de urgência depois de longos debates entre os tripulantes leigos sobre se seria lícito ministrar-lhe o sacramento sem prévia instrução catecúmena. Recebeu o nome Binot de seu padrinho, o capitão, sem filhos. Ao que se sabe, o jovem índio de pronto afrancesado terá deixado uma larga descendência em França até o século XVII. O informe oficial do capitão contém uma descrição da terra do Brasil e da vida dos seus habitantes baseada em observações recolhidas ao largo duma estada de seis meses com a tribo dos carijós, antiga denominação de um grupo étnico guarani, sob o mando do cacique Arosca. No que diz respeito à caracterização do índio, aquele relatório diferencia-se da carta de Pero Vaz de Caminha, dirigida ao rei Manuel I de Portugal em 1500, e das missivas que Vespúcio enviou aos Reis Católicos e à Lorenzo di Pier Francesco de Medici em Florença. É de particular interesse a referência que Binot faz acerca legitimidade de trazer índios para a Europa. Aponta que o chefe Arosca consentiu com a viagem de um de seus “filhos” para Europa sob o juramento de devolvê-lo à sua tribo dentro de vinte luas, o mais tardar, após ter sido habilitado na fabricação de espelhos, navalhas, machados e demais utensílios que os índios apreciavam. Acrescenta Binot que isto equivaleria a prometer ouro, prata e pedras preciosas a um cristão ou ensinar-lhe como criar a pedra filosofal. O índio ingénuo foi saudado alegremente à despedida pela comunidade, juntamente com outro indivíduo de 35 a 40 anos chamado Namos (que no trajecto morreria de febre), e provido de alimentos, plumas e artefactos, como lembranças para o rei da França. Gonneville assevera que Essomericq, aliás Binot, sempre foi bem visto tanto em Honfleur como noutros lugares por onde passou. A continuação da Crónica universal de Eusébio de Cesarea, publicada em Paris em 1512, relata a chegada de sete “caníbales desnudos” em Rouen no ano de 1509. Existem demais referências a índios desviados para França como naturalmente houve também casos 6 Edição e estudo de Leyla Perrone-Moisés, Vinte luas: viagem de Paulmier do Gonneville ao Brasil 1503-1505, São Paulo 1992, p. 21-25. 156 DIETRICH BRIESEMEISTER de fugitivos ou náufragos franceses que depressa se assimilaram na selva. Segundo uma tradição lendária, Diogo Alvares Correia, o chamado Filho do trovão ou Dragão do mar (Caramuru), apelido que os tupinambás puseram ao português naufragado nas costas baianas em 1510, visitou em 1547 a corte de Henrique II juntamente com a sua mulher Paraguaçu (“macaco cabeludo”!), filha dum cacique, que teria recebido o baptismo em França, sendo a madrinha a rainha Catarina. A anedota parece ser um reflexo fiel da presença de índios procedentes do Brasil em França ao longo da primeira metade do século XVI. Doze anos depois dos festejos celebrados em Rouen, Michel de Montaigne encontrou-se ali com um grupo de índios tratando de conversar com os “cannibales” por meio de um intérprete. No seu ensaio famoso (I, 31) Montaigne descreve o diálogo fracassado por causa da má qualidade do serviço do intermediário. Não obstante as dificuldades da comunicação, Montaigne reflecte sobre o sentimento de superioridade dos europeus denunciando as crueldades da conquista como “carnificina universal”.7 Nas costas atlânticas do Brasil, os navegantes e comerciantes franceses colidiram com os portugueses desde o início do século XVI e continuaram a perturbar os movimentos marítimos das frotas ibéricas nas rotas das Índias Ocidentais. A política ultramarina francesa perseguia o fim de estabelecer a França Antárctica, um objectivo que promoveu em particular o rei Henrique II e que foi propugnado por corsários, proprietários de navios como Jean Ango, navegantes e pilotos como Jean Cartier. Os portos normandos de Rouen, Le Havre, Harfleur, Honfleur e Dieppe experimentaram uma prosperidade económica conjuntural devido ao comércio com o paubrasil, base de um colorante rebuscado para a manufactura têxtil nos países do noroeste de Europa. Um vestígio inequívoco da sua repercussão sociocultural encontra-se em algumas obras artísticas, como o friso de selvagens num transepto da igreja de Santiago em Dieppe (ca. 1530), um altorelevo em mármore de três metros de largura que representa um desfile de indígenas. Entre outras sai uma família índia. Levando um papagaio o pai vai vestido de uma saia de plumagem, a mulher traz 7 Compare-se Enders, Angela: Die Legende von der ‚Neuen Welt’ Montaigne und die ‚littérature géographique’ des 16. Jahrhunderts, Tübingen: Niemeyer 1993; Soehlke Heer, Peter: El Nuevo Mundo en la visión de Montaigne o los albores del anticolonialismo, Caracas: Instituto de Altos Estudios de América Latina 1993. FESTA BRASILEIRA 157 nas mãos um adornado da flor-de-lis, distintivo heráldico da realeza de França, e um ramo de palmeira. Vêem-se, além disso, guerreiros com aljavas, dois índios com um macaco, dois dançantes e um selvagem com acha ao lado de um tronco grosso8. Outros dois baixorelevos lavrados em madeira de carvalho, que pertenciam à rica decoração interior da casa de Jean Ango em Rouen, representam índios desnudos talando e transportando troncos de pau-brasil9. Quando, em consequência do tratado de amizade firmado com Portugal, Francisco I se viu obrigado a fazer a concessão que os barcos franceses não invadissem as águas de soberania portuguesa, garantida pelo tratado de Tordesilhas, a oposição mobilizou-se imediatamente entre os comerciantes e as suas companhias de navegação, que temiam mínguas e uma desestabilização dos preços. Embora Henrique tolerasse tacitamente a pirataria, o Município de Rouen esforçou-se por demonstrar ao rei o alcance vital dos negócios ultramarinos com um enorme dispêndio propagandístico. Em íntima relação com os movimentos e interesses marítimos franco-normandos, formou-se em Dieppe desde meados dos anos trinta do século XVI uma escola de cartógrafos, que por encargo da sua clientela solvente confeccionava em grande número mapas e atlas luxuosamente adornados, usando por regra padrões portugueses. Para explicar os procedimentos de visualização e configuração cénicas do Novo Mundo, que culminam nas representações festivas dedicadas ao monarca em Rouen, convém olhar para o repertório de motivos que oferecem os mapas do Brasil. No princípio da Idade Moderna, a imagem da América é, em primeiro lugar, uma nova visão cartográfica (topográfica) que se diferencia da concepção polémica do mundo até então inquebrantável. As expedições marítimas espanholas e portuguesas abalaram esta tradição multissecular do saber autoritativo. As descobertas geográficas vão acelerando o que Hans Blumenberg chamou o processo da curiosidade teórica. O desenvolvimento da cartografia e o ajustamento das projecções geométricas do globo reflectem a transição conflictuosa da Imago Mundi medieval, como signo e símbolo duma realidade metafísico-religiosa (ou teológica), para a representação da terra em determinadas escalas matemáticas e 8 Colin, Susi: Das Bild des Indianers im 16. Jahrhundert, Idstein: Schulz-Kirchner 1988, pp. 344-345 está equivocada ao afirmar que o friso foi destruído. Fotografias em Belluzzo, t.1., pp. 26-27. 9 Colin, pp. 347-348; Belluzzo, t. 1, pp. 32-33. 158 DIETRICH BRIESEMEISTER conceitos científicos. No entanto, os mapas novos nem sempre reproduzem só a configuração topográfica e localização exacta das terras recém-encontradas – com as suas costas, promontórios, rios, desembocaduras, lagos, ilhas, lugares, etc – mas antes preenchem os novos espaços incógnitos com imagens especulativas e teorias (no sentido etimológico da palavra grega: “visões”) sobre seus habitantes, sua vida e natureza desconhecidas. Por isso animam-se os espaços ainda vazios com cenas que representam os seres humanos nas suas actividades, costumes e vestes. Tratam também de ilustrar a fauna e flora ignotas e distintas das europeias. Por conseguinte, os mapas não só registam os dados científicos e provados pela exploração, como também animam com vida imaginada aqueles sítios do hinterland que ainda fica como mancha branca. Acrescentam explicações, legendas no nobre sentido da palavra: texto explicativo que acompanha o mapa e relato cujo núcleo histórico se vai desfigurando, transfigurando e reelaborando ao largo da sua tradição indefinida. Texto, ilustração episódica e mapa combinam-se para adquirir uma função declarativa oferecendo possíveis leituras do que até agora ficava inimaginável, inexplicável e extraordinário. A imagem do índio inscreve-se literalmente e perfila-se nas representações cartográficas, que narram com a sua própria retórica e amplificação pictórica o que o puro delineamento geodésico do mapa deve deixar em suspenso. Assim o mapa transforma-se num teatro do mundo. Os mapas primitivos do Brasil transmitem numerosos episódios cénicos que desenrolam uma visão reanimada da realidade e natureza. Não se trata duma cópia exacta de assuntos realmente vistos, mas de um remodelamento mental analógico baseado noutro texto (oral ou escrito) que inspira e configura a representação pictórica. Podem apontar-se alguns exemplos para compreender o contexto em que se situa a representação teatral na gravura de 1551. Um mapa da América Central, as Caraíbas e as costas do norte do hemisfério austral esplendidamente iluminado (entre 1536 e 1540) para uso do Delfim Henrique – o futuro rei Henrique II – contém a primeira referência visual ao trabalho forçado dos índios na América.10 No mapa do Brasil (fols. 15v-16r) vê-se, além de um combate entre duas tribos inimigas – um motivo iconográfico frequente –, outra cena que mostra como os indígenas estão a falar de árvores e 10 La Haya, Biblioteca Real; veja Colin, pp. 304-305; Wolff, Hans (ed.): America. Das frühe Bild der Neuen Welt, München: Prestel 1992, pp. 54-55. FESTA BRASILEIRA 159 colaboram com os comerciantes franceses. Um grupo de índios acompanhado de dois franceses vai à frente dando sinal com um gesto do dedo em direção da terra como se quisessem convidar os forasteiros recém-chegados a explorar e tomar posse do território. Obviamente, a cena ilustra com uma finalidade propagandística a convivência amistosa entre franceses e índios, bem diferente da exportação do índio praticada nos domínios espanhóis. O cartógrafo e cosmógrafo Jean Rotz (Roze ou Ross) de Dieppe executou entre 1535-1542 um atlas de luxo para Henrique VIII, rei da Inglaterra11 que contém, entre outros, um mapa onde destacam várias cenas da vida tupinamba, reproduzidas com exactidão etnológica (povoações rodeadas de paliçadas, cabanas grandes, comércio de troca, transporte e embarcação de pau-brasil, animais, figuras humanas, danças, combates, e rituais antropofágicos). Estes elementos correspondem bem à realidade fingida que a representação cénica evocou em Rouen. Nos mapas antigos do Brasil, lenhadores, caçadores e papagaios aparecem com muita frequência como ingredientes de animação visual nos mapas estáticos. O famoso atlas Miller da Biblioteca Nacional de Paris (elaborado possivelmente por encargo de Francisco I) oferece uma série esplêndida de quadros inseridos dentro dos mapas. O plano de fol. 4r mostra a “Terra Brasilis” com selva e animais, índios no seu atavio de plumagem e homens desnudos bronzeados que estão a falar árvores e arrastar troncos.12 Com razão, Susi Colin interpreta estes mapas mudos como expressão artística do esforço feito naquela região do norte da França durante muitos anos para legalizar o comércio e defender o domínio no Atlântico. A perfeita visualização realista das terras e homens acentua em forma sugestiva o rendimento económico da colonização do Brasil para a França. Os mapa-mundi13 que Pierre Desceliers desenhou pouco antes e depois das festas organizadas em Rouen retomam igualmente motivos que se assemelham com a Figure des Brisilians de 1551. Data de 1555, ano em que Nicolas Durand de Villegagnon fundou a colónia francesa no Rio de Janeiro, o atlas de Guillaume Le 11 Londres, British Library, Royal Ms. 20 E. IX; Wolff, p. 55; Colin, pp. 305-307. Data de 1519 aproximadamente, Wolff, p. 177; Belluzzo t. 1, p. 68; Colin, pp. 298300. 13 Colin, pp 311-314. 12 160 DIETRICH BRIESEMEISTER Testu feito para o almirante Gaspard de Coligny, que contém vários mapas da América e do Brasil.14 Para além dos indígenas, desembarcaram também artefactos e outras curiosidades americanas em Rouen. Em 1522, Jean Fleury de Honfleur capturou três caravelas espanholas, carregando parte dos despojos que Hernán Cortés sacou do tesouro de Moctezuma, no México. Um ano depois, navios de Jean Ango apoderaram-se de peças procedentes do Palácio de Cuauhtémoc. Para um momo, uma procissão semidramática de figuras, organizado em 1527 com motivo da entrada de Francisco I em Rouen, Jean Ango cedeu troféus americanos e outras coisas exóticas de sua colecção para adorno dum carro triunfal. A imagem do índio brasileiro perfilou-se precisamente no âmbito normando-francês desde finais da segunda década do século XVI para culminar na gravura rotulada Figure des Brisilians com o seu repertório iconográfico. Apesar dos contactos directos com indivíduos indígenas naquela região, o interesse etnológico-antropológico não ocupa o primeiro plano na mentalidade burguesa. É certo que para Binot Paulmier os índios não aparecem como seres monstruosos. Na maneira de pensar estratégica e pragmática dos “bons burgueses” e corsários de Rouen, os índios brasileiros são provedores de matérias primas, de utilidade mercantil e aliados necessários no conflito com os rivais ibéricos. A publicação das Singularités de la Françe Antarctique (1557) de André Thevet e da Historie d’un voyage faict en la terre du Brésil (1577, ²1580) de Jean de Léry inaugura outra fase na ilustração gráfica do mundo brasileiro. Thevet era cosmógrafo do rei e acompanhou Nicolas Durand de Villegagnon na expedição de 1555 a Guanabara para fundar uma colónia francesa. Léry fez a viagem como missionário calvinista entre 1556 e 1558 e conheceu o livro de Thevet. A obra de Léry dá outra visão dramática da realidade brasileira tanto em narração como nas gravuras.15 No capítulo 9 pinta com palavras imagens do índio, insistindo, contudo, na importância que ao lado da descrição minuciosa incumbe à ilustração para visualizar o texto. Mas também experimenta a tensão insuperável que existe entre a experiência, a palavra e a imagem.16 Dadas as profundas 14 Cosmographie universelle selon des Navigateurs, Tant anciens Que modernes; Colin pp. 316-319. 15 Colin, p.137. 16 Seria interessante confrontar, por exemplo, a passagem em que Léry reproduz a sua conversa com um índio tupinambá sobre a exportação do pau-brasil como primeira FESTA BRASILEIRA 161 diferenças entre o europeu e o americano não é nada fácil descrever o índio, mesmo com a ajuda de imagens. Quem quisesse formar uma imagem deles, deveria ir vê-los no seu país – que, infelizmente, fica muito longe. Os espectáculos aparatosos organizados em 1550 para a visita oficial do monarca inserem-se num conjunto de festividades semelhantes na Europa renascentista e barroca que reelaboram elementos exóticos americanos. O autor anónimo do relato declara acertadamente a intenção do fasto de imaginaria. A cidade de Rouen “vouloit exhiber a la maiesté de son Roy non par simulachres ou platte peinture, ains par l’effet des choses viues & mouuantes, a l’imitation expresse des Romains triumphateurs” (fol. D iijr). Como prova documental, faz ilustrar profusamente a sua história ou reportagem com gravuras para todos aqueles leitores que não se contentam com “la chose en essence” cuja mensagem já foi interpretada com o olhar de conhecedor da coisa no texto do livro (fol. M iijv). Se bem que a linguagem e o texto falhem em descrever atinadamente o fasto, pelo menos as gravuras permitirão ao espectador virtual captar “le surplus de l’artifice à imaginer” (fol. N jjjv), porquanto são o fiel retrato da realidade. As formaturas, desfiles e dispositivos cénicos arranjados para o rei e a rainha durante dois dias seguidos fazem alarde da consciência política e cultural da edilidade de Rouen, segunda cidade portuária mais importante da França. A coreografia serve-se da “Terra Brasilis” colonial para uma remodelagem impressionante narrada sem texto numa revista com quadros animados (de “plaisante et artificielle structure”) que simbolicamente transplanta e incorpora o Brasil no campo de visão europeia. O Brasil apresenta-se “en la mode des sauuages de l’Amerique” como acto de ilusão teatral e com uma curiosa inversão dos papéis: os franceses assumem a parte e apariência física dos índios para “jogar ao índio”, (certo, sem querer sê-lo), enquanto que os índios autênticos se apresentam perante o público europeu sem disfarce teatralizado, tais como estão na vida desde sempre. A barbaria fica cercada numa minúscula reserva natural dentro do mundo que se crê civilizado. Ali adquire uma presença simulada e distanciada em forma lúdico-teatral. No programa pictórico-fantasioso da entrada mostra duma crítica do colonialismo europeu, com o entusiasmo manifesto nas cenas de comércio e lenhadores. 162 DIETRICH BRIESEMEISTER real, a América transforma-se sob os olhos do público estupefacto em Teatro do Mundo, com toda sua diversidade e singularidade. FESTA BRASILEIRA 163 Bibliografia: BELLUZZO, Ana Maria de Moraes (1995): Imagery of the New World, Rio de Janeiro: Odebrecht. BOORSCH, Suzanne (1976): «America in Festival Presentations», in: Chiappelli, Fredi (ed.): First Images of America. The Impact of the New World on the Old, Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, vol. 1, 503-515. BORBA DE MORAES, Rubens 1983²): Bibliographia Brasiliana, Los Angeles/Rio de Janeiro, vol. 1, 174-177, 289; vol. 2, 687. LA: UCLA Latin American Center Publications, University of California, Rio: Livraria Kosmos Editôra. BREDNICH, Rolf Wilhelm (1992): «Amerika in den frühneuzeitlichen Medien. 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