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colecionador texto e curadoria cynthia garcia fotografias romulo fialdini Arte tribal REVISTA VERSATILLE Em seu acervo, o francês Christian Heymès desvenda simbologias dos povos de África, Ásia e Oceania 80 Estátuas Dogon do Máli, relicários Fang do Gabão, peças Kota Maongue do Congo e placas de bronze do Benin são nomes correntes em um bate-papo com Christian Heymès, o maior perito do País em arte tribal de África, Ásia e Oceania. Este parisiense culto e cool, que vive em São Paulo há 40 anos, viaja desde os anos 1980 pelo interior de Senegal, Gâmbia, Costa do Marfim, Mali, Burkina Faso, Togo, Benin, Camarões e África do Sul. “Na virada do século 20, com as teorias de Charles Darwin, os estudos de Sigmund Freud, o cubismo de Pablo Picasso e a influência do jazz, o Ocidente se abriu para essa manifestação”, diz o especialista, que se divide entre o antiquariato e o design, mas tem no colecionismo sua principal paixão. Para mergulhar nesse universo é preciso, antes, compreender que a arte ocidental foi conceituada no século 16, durante a Renascença, e sua função é ser estética, promover a originalidade e valorizar o autor. Tais valores inexistem na cultura tribal porque nessas regiões não há o conceito de arte como o conhecemos. “O que se denomina arte tribal são artefatos produzidos para serem consumidos no dia a dia da tribo. Eles compõem um conjunto de imagens reproduzidas ad eternum porque inexiste a escrita na cultura tribal africana – a tradição é passada via oral pelos griot (contadores de histórias) e por meio de objetos, rituais e festas. O fato de não possuírem escrita conferiu ao objeto o valor de se comunicar, ser reconhecido, passar informação, enfim, ser lido, o que leva à reprodução das mesmas imagens simbólicas há milênios”, esmiuça o perito. Estatuetas, máscaras e objetos do cotidiano são reproduzidos para resolver questões como se apoderar de algum tipo de força ou conhecimento, honrar um morto, pedir chuva, boa colheita, filhos. Por isso todos são sacros: desde uma colher até uma máscara elaborada. “São expressões de simbologia zoomorfa, capazes de transferir ao homem características dos animais como resistência, força ou riqueza. Por exemplo, o coelho, com seus pulos, engana quem está atrás dele; o elefante simboliza a memória e a força; o zebu, a vaca e o búfalo representam o leite e a riqueza (na África, quem é rico tem gado); a tartaruga é a longevidade; e, por sua capacidade de repelir os predadores, o porco-espinho simboliza a proteção”, arremata Heymès. Confira a seguir um trecho da conversa que Versatille teve com o expert. “Diferentemente da ocidental, a arte tribal africana não se baseia na criatividade. É uma arte funcional, representativa, na qual todos os objetos são sacros, do mais simples, como uma colher, ao mais elaboradO, como uma máscara.” colecionador Ty Wara bamana, Máli, oeste da África, madeira “Esta máscara zoomorfa representa a fertilidade e é composta de uma tríade de animais: antílope, pangolin e porco selvagem. É o tipo de arte tribal que inspirou os cubistas e o movimento machine age do início do século 20.” Ibeji dos Iorubá, Nigéria/Benin, África, madeira e búzios “Os ibejis são gêmeos, uma benção dos deuses para os iorubás. Caso um morra, a mãe cuida da imagem dele, como uma verdadeira criança, lavando, consolando, para atrair mais filhos ao seu útero. A roupa de búzios é um valor tanto monetário quanto sagrado. A maioria dos escravos no Brasil veio dessa região.” Pente de tartaruga, Timor Leste, Oceania “Este tipo de pente levou el arte de lo peinado (a arte do penteado) à cultura ibérica durante a invasão sarracena no século 8, imprimindo nos pentes das espanholas uma estética que gradativamente evoluiu para o Barroco. Do Timor Leste à ilha de Sumba, na Indonésia, objetos zoomorfos com galo, veado, peixe e caranguejo são decorativos, mas também contam lendas.” REVISTA VERSATILLE Apoio para nuca Pokomo do Quênia, Centro-Leste africano, madeira 82 “Este ‘travesseiro’ é bem alto, porque tanto os homens quanto as mulheres usam penteados grandes e muito elaborados. Simbolicamente, o apoio para nuca é um isolante entre a cabeça e a terra, mas também é um fio terra entre a nuca, o lugar dos sonhos e a Mãe Terra.” Relicário Kota, Congo, CentroOeste africano, madeira e latão “Representa o ancestral do clã. É uma figura protetora que aconselha os membros da família. O fato de ser de metal, cobre ou latão mostra a riqueza e facilita a conservação. O metal vinha da recuperação das balas de armas roubadas dos militares franceses e belgas.” 83 colecionador Figura de altar Dogon, Máli, Oeste da África, madeira “Esta placa é quase abstrata. Representa os quatro irmãos da cosmogonia Dogon: terra, fogo, ar e água. É usada pelo hogon, chefe religioso, sobretudo da adivinhação.” Máscara Teke, tribo Kiduma, Congo, Centro-Oeste africano, madeira “Máscara em dois planos separados horizontalmente. A parte superior representa um rosto redondo, a inferior, uma composição simbólico-geométrica com olhos, boca e nariz. Hoje é usada em festas e comemorações, já que as religiões estão se perdendo.” Pulseira protetora contra tigre com dentes de felinos e porcos selvagens, Norte da Tailândia “Para se proteger, o homem coloca o punho com a pulseira na frente da garganta, o alvo preferido do tigre. Quando o felino a vê, pensa se tratar de outro animal, diminuindo a chance de um ataque. É usada no Triângulo do Ouro, região produtora de ópio.” Versatille – O que levou Picasso, Modigliani, Dérain e Matisse a buscarem inspiração na arte africana? Christian Heymès – Eles consideravam a arte do final do século 19 decadente, acadêmica e realista. E foi nessa época que surgiu a fotografia. Viviam em Montparnasse, onde também estavam os franceses que haviam lutado no Norte da África, e traziam peças de lá para vender nos brechós de Paris. Em 1905, Picasso foi à casa de Paul Éluard (poeta do surrealismo), que era casado com Gala, futura mulher de Salvador Dalí, e encontrou Matisse com uma estatueta africana. Ele gostou tanto que Matisse o presenteou com ela. Dois anos depois, Picasso pintou a revolucionária Les Demoiselles d’Avignon (1907), inspirado nas máscaras africanas e iniciando o Cubismo. Bonecas do Togo, Oeste da África, madeira “Nelas, está clara a influência da arte africana no Cubismo de Pablo Picasso e, consequentemente, na Arte Moderna. Estes brinquedos da região lacustre do Togo também têm a função de ensinar o futuro papel de mãe à menina.” REVISTA VERSATILLE Cabeça reduzida, Nova Guiné, Arquipélago Malaio 84 “Foi a primeira peça que comprei durante o serviço militar no Taiti. É da região do Rio Sepic, habitada até pouco tempo por canibais. A cabeça é cozida, limpa e recheada de barro, depois adornada com madeira, cabelos naturais e pintada com barros de diferentes cores.” V – Como entender a arte tribal sem preconceitos? CH – Nossa visão ocidental, cartesiana, vem sofrendo uma reavaliação. Temos que acabar com os tabus e entender a intenção. Na arte ocidental, a intenção é a representação do corpo em sua perfeição. Na tribal, o artesão materializa uma ideia, não se preocupa com a imagem fotográfica, realista. Em algumas tribos existem máscaras com seis olhos. Em outras, a máscara não tem boca porque, dentro da cosmogonia deles, o deus não fala por meio da boca. Então, para que a boca? É um universo que não se baseia na racionalidade ocidental. V – Onde está o grande núcleo de arte tribal no continente africano? CH – A África é complexa e vasta. As grandes tribos são mais de 600, muitas das quais nômades. Cerca de 80% da arte tribal se concentram na África do Oeste, que inclui Senegal, Guiné-Bissau (antiga colônia portuguesa), Guiné-Conacry, Gana, Costa do Marfim, Togo, Benin, Nigéria, Burkina Faso e Mali. V – E a questão do sacro, do significado religioso? CH – Para o africano, todos os objetos são sacros porque é uma cultura animista, ou seja, que acredita nos espíritos: do vento, da água, dos bichos, etc. Segundo esse povo, os seres da natureza são dotados de vida e capazes de agir conforme uma finalidade. Consequentemente, tudo tem significado religioso. Não há nada de diabólico em máscaras, danças, cerimônias e rituais. Eles foram criados para reequilibrar o homem frente a seus medos, traumas, angústias. Cada tribo tem uma linguagem. Por exemplo, na Costa do Marfim, todo casal baulê possui estatuetas que os representam. Quando o marido quer brigar com a mulher, briga com a imagem dela, quando ela quer algo dele, pede à imagem dele. Isso evita muito conflito. Interessante, não? 85