35 Fissura labiopalatal, fístula traqueoesofágica e defeito
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35 Fissura labiopalatal, fístula traqueoesofágica e defeito
Luís Francisco Gomes Reis et al. Fissura labiopalatal, fístula traqueoesofágica e defeito vertebral relato de caso Luís Francisco Gomes Reis (Doutor) Curso de Odontologia – Universidade Tuiuti do Paraná Emerson Chaves Furlaneto (Doutorando) Programa de Pós-graduação em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial - PUC/RS Maria Regina Borges-Osório (Doutora) Programa de Pós-graduação em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial - PUC/RS Wanyce Miriam Robinson (Doutora) Programa de Pós-graduação em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial - PUC/RS Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 35 36 Fissura labiopalatal, fístula traqueoesofágica... Resumo Como profissionais da área da saúde, temos que estar cientes dos diversos tipos de anomalia que podem vir a afetar a área de interesse e trabalho do cirurgião-dentista. Sendo assim, procuramos, neste trabalho, caracterizar a associação VACTERL, um acrônimo para alterações vertebrais (V), atresia anal (A), alterações cardíacas (C), fístula traqueoesofágica (TE), anomalias renais (R) e anomalias de extremidades (L, do inglês limb, membro), pois pacientes com estes padrões de alterações podem apresentar fissuras de lábio e palato. Desta forma, o profissional estará exercendo o seu papel na forma mais ampla e o principal beneficiado será o real alvo de nossa atenção: o paciente. Foi realizada uma breve revisão de literatura e, em seguida, descrito um caso onde a sensibilidade do profissional possibilitou um correto diagnóstico, proporcionando ao paciente um aconselhamento genético adequado. Palavras-chave: VACTERL, defeitos congênitos, odontologia, fissuras labiopalatais. Abstract As health care professionals, dentists must be aware of the different anomalies that may emerge in their working field. In this paper, we described the VACTERL Association, an acronym for vertebral defects (V), anal atresia (A), cardiac anomalies (C), traqueoesophageal fistula (TE), renal (R) and limb (L) anomalies, which patients may present with cleft lip and/or palate. It is necessary to recognize these conditions, so that our patients can have adequate information regarding diagnosis, recorrence risks and genetic counseling. We reviewd the literature and report a case that was first suspected by the dentist. Key words: VACTERL, congenital malformation, dentistry, cleft lip, cleft palate. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 Luís Francisco Gomes Reis et al. Introdução Embora seja de uso corrente a expressão “malformação congênita” para designar qualquer tipo de anomalia estrutural que possa ocorrer em um embrião, feto ou recém-nascido, existem conceitos mais específicos que fornecem indicações sobre a etiologia e a caracterização clínica destas anomalias (BorgesOsório & Robinson, 2001). Malformação é um defeito morfológico primário de um órgão, parte de um órgão ou de uma região maior do corpo, resultante de um processo de desenvolvimento anormal e podem ocorrer em qualquer parte do corpo, surgindo a maioria durante os primeiros três meses de vida intra-uterina (Garver, 2000). Algumas destas anomalias são desprezíveis ou têm apenas significado cosmético, mas aproximadamente 3% das crianças nascem com defeitos estruturais graves que interferem no funcionamento normal do corpo e podem levar a prejuízos por toda a vida ou até a uma morte precoce. As malformações congênitas são divididas em primárias (maiores) e secundárias (menores). Uma malformação primária é a que pode ser letal ou ter grave importância cirúrgica, médica ou cosmética para o paciente. Os exemplos são: fenda labial e palatina, anencefalia, espinha bífida cística e transposição de grandes vasos. Uma malformação secundária é um Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 pequeno defeito físico que ocorre em menos de 4% dos nascidos vivos. Exemplos de pequenas malformações são o sulco palmar único, unhas hipoplásicas, pregas epicânticas internas, polegar bífido, edema das extremidades, implantação baixa das orelhas e sindactilia do segundo e terceiro artelhos. As malformações secundárias (menores) podem servir como indicadores de morfogênese alterada em um sentido geral e podem ajudar no diagnóstico de uma síndrome específica. A suspeita de morfogênese alterada pode levar à procura de anomalias importantes ocultas, que podem ser atenuadas com tratamento (Garver, 2000). Disrupção é um defeito morfológico de um órgão, parte de um órgão ou de uma região maior do corpo, resultante de uma interferência extrínseca em um processo de desenvolvimento originalmente normal. Seqüência é um padrão de anomalias múltiplas derivadas de uma única anomalia ou fator mecânico anterior. Ocorre em conseqüência a uma cascata de eventos iniciados por um único fator primário. Síndrome é a denominação dada a padrões consistentes de múltiplas anomalias patogenicamente relacionadas, que não representam uma seqüência simples ou defeito de campo politópico e devem poder ser atribuídas a causas subjacentes conhecidas. 37 38 Fissura labiopalatal, fístula traqueoesofágica... Associação é o termo usado para os casos em que certas anomalias ocorrem conjuntamente com maior freqüência do que a esperada ao acaso, mas tal fato não pode ser explicado com base em uma seqüência, síndrome ou defeito de campo politópico. Os pacientes não podem ser diagnosticados como “tendo uma associação” no sentido de ter ocorrido um processo de produção da desordem (Spranger et al., 1982). Os pacientes apresentam uma combinação de manifestações estatisticamente relacionadas. A importância do termo reside no fato de alertar o clínico para a procura de defeitos associados, ocultos. A presença de polegares hipoplásicos em neonatos deve alertar o clínico na busca de evidências de atresia esofagiana, ânus imperfurado, anormalidades renais e outros defeitos presentes na associação VACTERL. Um defeito de campo politópico é caracterizado por anomalias derivadas de um distúrbio em um único campo de desenvolvimento (Spranger et al., 1982). A maior parte das malformações, senão todas, seriam defeitos de campo. Um campo morfogenético (ou de desenvolvimento) é uma região ou parte de um embrião que responde como uma unidade coordenada à interação embrionária resultando em estruturas anatômicas múltiplas ou complexas. Interação embrionária se refere à influência (química ou física) recíproca de um tecido de desenvolvimento em ou- tro (ou outros) durante a embriogênese. Um distúrbio intrínseco, não perturbador, de um campo de desenvolvimento levará a um defeito de campo manifestado como anomalias múltiplas, relativamente próximas do ponto de vista anatômico (Opitz, 1979). A importância da correta definição e uso dos termos supracitados é bastante grande. A maior parte das malformações isoladas têm herança multifatorial, enquanto as displasias geralmente são monogênicas. As deformações e associações normalmente não têm origem genética (Mueller & Young, 1998). Revisão de literatura Em 1983, Khoury et al. pela primeira vez analisaram uma extensa amostra em busca da confirmação da associação clinicamente reconhecida chamada VACTERL. Os autores observaram que esta inclui várias combinações de defeitos em seis grupos distintos, os quais tendem a ocorrer concomitantemente nos recém-nascidos com uma freqüência maior que a esperada. Fissuras de lábio/palato foram encontradas em 9% dos pacientes com a associação referida. A patogênese desta associação poderia ser explicada pelo conceito de complexo de campo de desenvolvimento. O complexo de campo de desenvolvimento seria a parte do embrião que reagiria a forças localizadas de organização e diferenciação como uma unidade coTuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 Luís Francisco Gomes Reis et al. ordenada temporal e espacialmente. Uma disrupção de um campo poderia ser causada por diferentes agentes, resultando em anomalias múltiplas, usualmente contíguas (porém, por vezes, distantes). Sendo assim, os defeitos relacionados A esta associação poderiam ser vistos como uma seqüela da disrupção de um único campo de desenvolvimento. A associação VACTERL é relativamente esporádica, casual. Não existe uma causa específica, assim causas heterogenéticas parecem ser as mais aceitáveis para definir a presença da associação. Uma das hipóteses é um defeito no desenvolvimento mesodérmico durante a embriogênese (Khoury et al., 1983). Um cuidadoso delineamento fenotípico pode contribuir no diagnóstico, ajudando no tratamento das crianças afetadas. Quando o diagnóstico da associação é realizado, mais cuidado deve ser tomado no exame da criança, averiguando a possível presença de outras anomalias. Rittler et al. (1996) analisaram uma amostra de 524 pacientes portadores de VACTERL em uma população de aproximadamente 3 milhões de nascimentos registrados no Estudo Colaborativo Latino-americano para Malformações Congênitas (ECLAMC). A prevalência na referida amostra foi de 2,1/10.000 na presença de pelo menos dois componentes da associação. Não foi possível definir se a associação deve ser caracterizada na presença de dois ou três defeitos. Pela Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 análise de combinações realizada, os referidos autores concluíram, ainda, que as malformações cardíacas não fazem parte da dita associação, propondo, por esta razão, um novo acrônimo: VACTERL. Para Botto et al. (1997), o delineamento da associação VACTERL e de suas variações tem várias implicações. Primeiramente, o conhecimento das diversas combinações de defeitos deve proporcionar um exame mais cuidadoso do recém-nascido, favorecendo assim sua sobrevida e melhorando seu prognóstico. Em segundo lugar, o conhecimento desta variabilidade sugere a existência de mecanismos patogenéticos específicos, fato este importante do ponto de vista epidemiológico. Nessa amostra, 5,2% dos pacientes apresentava fissura de lábio/ palato associada a VACTERL. Nora & Nora (1975) sugeriram que a associação VACTERL tivesse relação com uso de hormônios sexuais durante a embriogênese e que este fato predispunha ao desenvolvimento das anomalias na criança. A patogênese da associação também poderia ser explicada baseada no complexo de campo de desenvolvimento (CCD). A partir de um levantamento de prontuários da escola de Medicina de Indiana, Weaver et al. (1986) encontraram 46 pacientes, 24 do sexo masculino e 22 do feminino. Desses, 31 tinham procurado o Depar- 39 40 Fissura labiopalatal, fístula traqueoesofágica... tamento de Medicina Genética entre os anos 1960 e 1982. Os pacientes apresentavam dois ou mais defeitos referentes à associação VACTERL. Os autores verificaram que algumas anormalidades aparecem com maior freqüência, e concluíram que cinco defeitos estiveram presentes em 60% ou mais dos pacientes. Nesse estudo, foram diagnosticados 27 casos de anomalias vertebrais, 26 de ânus imperfurado, 31 malformações traqueoesofágicas, 29 pacientes com displasia ou agenesia renal e 36 com defeitos congênitos cardíacos. Entre as de menor freqüência, estavam as anomalias auriculares, defeitos nas extremidades de membros inferiores, anomalias genitais e gonadais, fissura labial e/ou palatina, hérnia inguinal e atresia coanal. Nesse estudo, os autores excluíram dois pacientes que apresentavam anor malidades cromossômicas, com trissomia do 18 e com Síndrome de Goldenhar. Histórias sobre a gravidez e o parto eram colhidas com detalhes, assim como todas as cirurgias e hospitalizações que foram realizadas. As complicações durante a gravidez incluíram poliidrâmnios, diminuição da atividade fetal e oligoidrâmnios. A média da idade materna era de 24,1 anos e a idade média paterna de 26 anos. Aproximadamente 47,8% estavam gerando um filho pela primeira vez e cinco mães já tinham abortado anteriormente. Cinco mulheres eram diabéticas, qua- tro fizeram uso de progesterona e estrogênio durante o primeiro mês de gravidez, outras usaram antieméticos, diazepam e drogas para estimular a ovulação. Nezarati & McLeod (1996) relatam a manifestação da associação VACTERL em duas gerações de uma família, sendo afetados a mãe e um filho. Para esses autores, a associação é esporádica, com risco de recorrência de1% ou menos. A criança nasceu através de cesárea e sem história de complicações durante a gravidez. A mesma apresentava polidactilia, anomalias cardíacas e crescimento facial assimétrinco. A mãe ao nascer tinha fístula traqueoesofágica, ânus imperfurado e anomalias vertebrais. A literatura ainda cita outros casos da associação de VACTERL na mesma família, como no trabalho de Say et al. (1971), no qual pacientes de três gerações apresentavam duas ou mais anomalias da associação e em 1982, Auchtuchterlonie & White, relataram um caso de associação VACTERL em dois irmãos, filhos de pais não consangüíneos. Martinez-Frias et al. (2000) concluíram que a associação entre atresia anal, defeitos vertebrais, anomalias renais/urinárias e alterações genitais constituía um grupo de defeitos cuja tendência era aparecer concomitantemente na mesma criança por serem patogeneticamente relacionados. Como estes são de Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 Luís Francisco Gomes Reis et al. origem blastogênica, constituiriam um defeito de campo de desenvolvimento politópico primário. Para Bohring et al. (1999), a extensão das malformações dependerá do momento e do nível onde ocorreu a alteração. Isto é, quanto mais cedo for a interrupção na cascata de desenvolvimento, maior o número de campos de desenvolvimento afetados, produzindo, assim, maior número de defeitos associados. dos espaços intervertebrais, além de escoliose acentuada, caracterizando um defeito vertebral. Após encaminhamento ao geneticista clínico, o paciente foi diagnosticado como tendo a associação VACTERL, tendo sido feito o adequado aconselhamento genético e encaminhamento. O paciente encontra-se, no momento, em tratamento no Programa de Pós-Graduação em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Relato de caso Paciente E.L, 20 anos, caucasiano, masculino, procurou o Serviço de Cirurgia Bucomaxilofacial da PUCRS para tratamento orto-cirúrgico, com o objetivo de poder corrigir sua deformidade facial. À anamnese, relatou ter sido submetido à cirurgia para correção de fístula traqueoesofágica aos 28 dias de vida. Os demais dados não apontavam nada digno de nota em termos de história médica pregressa. Ao exame clínico intra bucal, apresentava sinais relativos aos procedimentos cirúrgicos para fechamento das fissuras labial e palatina (fissura trans-forame completa esquerda), com prognatismo mandibular e oclusão em relação classe III de Angle ao nível de molares. Foi solicitado, além da documentação de rotina para tratamento de deformidades dentofaciais, uma radiografia da coluna vertebral. A mesma evidenciou perda Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 Discussão e considerações finais O paciente deste trabalho apresenta uma história de fístula traqueoesofágica (TE) e anomalias vertebrais (V). De acordo com o importante trabalho realizado por Rittler et al. (1996), não é possível, do ponto de vista estatístico, definir se são necessários ao menos dois ou três defeitos para se caracterizar a associação VACTERL. Além do mais, não sabemos se o paciente apresenta anomalias anais, pois o mesmo pode ter omitido a informação por timidez. Outra possibilidade é a de que os próprios pais possam não ter contado ao paciente uma eventual cirurgia no ânus na infância. De qualquer forma, o paciente apresentava ao menos duas alterações importantes e se encaixava no critério diagnóstico do referido processo patológico. 41 42 Fissura labiopalatal, fístula traqueoesofágica... Baseado no exposto, poderíamos dizer que é de fundamental importância uma mudança de postura por parte dos profissionais da Odontologia no que diz respeito ao foco de atenção. A partir do momento em que se olhar o paciente de uma maneira global, ter-se-ão melhores resultados. Todos saem ganhando com isto, principalmente quem mais nos interessa: o paciente. Além do mais, a própria classe odontológica seria mais respeitada e vista com diferentes olhos, o que valorizaria nosso trabalho. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 26, FCBS 03, p. 35-44, Curitiba, jan. 2002 Luís Francisco Gomes Reis et al. Referências bibliográficas AUCHTERLONIE, I. A.; WHITE, M. P. (1982). “ Recurrrence of the VATER association within a sibship”. Clin Genet. v. 21, p. 122-124. BORGES-OSÓRIO, M. R.; ROBINSON, W. M. (2001). Genética humana. 2.ed. Porto Alegre: Artmed Editora. BOHRING, A.; LEWIN, S. O.;REYNOLS, J. F.; VOIGTLANDER, T.; RITTINGER,O.; CAREY, J. C.; KOPERNIK, M.; SMITH, R.; ZACKAI, E. H.; LEONARD, N. J. (1999). “Polytopic anomalies with agenesis of the lower vertebral column”. Am J Med Genet. v. 87, p. 99-114. BOTTO, L. D., KHOURY, M. J., MASTROIACOVO,P., CASTILLA, E., MOORE, A, SKJAERVEN, R. (1997). “The spectrum of congenital anomalies of the VATER association: an international study”. American Jornal of Medical Genetics. v. 71, p. 8-15. GARVER, K. L. (2000). Síndromes e dismorfologia. In: HOFFEE, P. A. Genética médica molecular. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, cap. 12, p. 252-270. 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