O SINCRETISMO RELIGIOSO NO BRASIL 1.1 O
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O SINCRETISMO RELIGIOSO NO BRASIL 1.1 O
1 1. INTRODUÇÃO - O SINCRETISMO RELIGIOSO NO BRASIL 1.1 O CONCEITO DE SINCRETISMO Nos modernos dicionários da língua culta portuguesa, o verbete sincretismo significa: Filosoficamente, um “sistema que combinava os princípios de diversos sistemas” ou um “amálgama de concepções heterogêneas”; Sociologicamente, uma “fusão de dois ou mais elementos culturais antagônicos num só elemento, continuando, porém, perceptíveis alguns sinais de suas origens diversas”. Assim, como nos mostra os referidos dicionários, o termo sincretismo significa a combinação ou fusão de dois ou mais elementos culturais de diversas origens (e distintos entre si) num só elemento. Só que essa combinação ou fusão num só elemento ainda tornam perceptíveis (ou seja, não faz desaparecer) alguns sinais de suas origens, caracterizando-se assim certo “ecletismo” neste “novo” elemento. 1.2 O CONCEITO DE SINCRETISMO RELIGIOSO Na famosa enciclopédia on-line Wikipédia, sincretismo “é uma fusão de doutrinas de diversas origens, seja na esfera das crenças religiosas, seja nas filosóficas”. No que diz respeito à religião, a mesma enciclopédia (bem como outras fontes) afirma, em resumo, que sincretismo religioso é uma “fusão de concepções religiosas diferentes, ou, a influência exercida por uma religião nas práticas de uma outra”. Assim, sincretismo religioso seria a combinação de duas ou mais concepções religiosas diferentes entre si (ou a influência de uma nas práticas de outra) até atingir uma forma religiosa comum ou nova (na qual, em certo sentido, essa “nova” pode ser híbrida ou eclética). 1.3 COMO OCORRE O SINCRETISMO RELIGIOSO? O sincretismo religioso ocorre na própria dinâmica da história (ou dos processos históricos). Como este é a combinação de duas ou mais concepções religiosas distintas entre si (ou a influência de uma nas práticas de outra, indicando uma combinação de ritos até atingir uma forma comum ou nova), o processo de sincretismo ocorre por meio da relação (ou contato) entre duas ou mais sociedades diferentes (cada qual com sua respectiva religião). Por sua vez, essa relação entre dois ou mais povos são causados por eventos históricos de grande significado, tais como invasões, guerras, colonizações (e sua consequência mais comum: a relação de dominação que aí se estabelece). Considerando que eventos históricos dessa magnitude (e a relação que aí se estabelece entre os povos) moldam de uma maneira geral tanto a cultura do povo dominante como do povo dominado, é possível dizer que estes eventos (e as relações daí provenientes) também moldam direta e/ou indiretamente a religião de ambas as sociedades, ocorrendo aí o sincretismo religioso. Portanto, é só investigando os processos históricos que se pode compreender como ocorreram sincretismos religiosos, principalmente no Brasil, um dos casos mais complexos e clássico de sincretismo religioso do mundo, por meio da relação de três povos distintos (aborígenes, europeus e africanos) que mesclaram entre si ao longo do tempo elementos 2 religiosos distintos, resultando num dos quadros religiosos mais diversos e ricos do mundo, culturalmente. 2. BREVE HISTÓRICO DO SINCRETISMO RELIGIOSO NO BRASIL O Brasil é considerado um dos países mais religiosos do mundo. Uma das causas desta característica tão marcante (a religiosidade) é o profundo e complexo sincretismo religioso ocorrido ao longo de sua história, que mistura, num primeiro e longo momento, elementos do catolicismo com elementos religiosos nativos e tribais (indígenas e africanos), bem como, num segundo momento (mais recente), a combinação dessas três denominações com o espiritismo e outra vertente cristã (o neopentecostalismo), processo estes que resultaram numa riqueza e diversidade religiosa marcantes, ou seja, resultando num sincretismo único no mundo. Todas essas mudanças ocorreram de modo único no Brasil; o catolicismo brasileiro, um dos maiores do mundo, assumiu ao longo da história traços característicos absorvidos das outras religiões com as quais coabitou o Brasil durante os últimos cinco séculos. (RIBEIRO, 2012, p. 19). Em virtude do profundo sincretismo religioso ocorrido no Brasil ao longo de sua história, o fato do país possuir uma população majoritariamente cristã (89% da população, sendo 73,6% católicos e 15,4% evangélicos, segundo dados do IBGE de 2012) não significa que essas pessoas são pura ou essencialmente cristãs. Na verdade, esse número: [...] é o perfil esperado de um país colonizado por portugueses há mais de 500 anos, pois durante boa parte da história, a religião oficial da colônia, depois Império, era a católica. Aliado a isso, havia verdadeira intolerância religiosa nos séculos de história brasileira, aliada ao poder de que dispunha a Igreja Católica na Europa, tornando o culto de outras crenças quase impraticável. (RIBEIRO, 2012, p. 08). No entanto, no Brasil, essa intolerância praticada pela religião oficial não significou eliminação das outras, mas sim na combinação tácita e gradual (mesmo que conflituosamente) de ritos das religiões dominadas. Por outro lado: Na tentativa de preservação dos princípios e práticas religiosas indígenas e africanas, por meio da conciliação com os princípios e práticas católicas, acabaram levando ao nascimento de várias manifestações sincréticas em solo brasileiro, únicas no mundo, algumas delas existentes até os dias de hoje. (ESTUDO DA UMBAND, 2009). É por isso que, como veremos mais adiante, iniciou-se aqui um dos maiores processos de sincretismo religioso do mundo. No processo de formação da nacionalidade brasileira, o que em demografia representa a miscigenação, se traduz no campo religioso como sincretismo. (NOGUEIRA, 2009). 2.1. A transformação (ou sincretização) do catolicismo Se por um lado a história nos ensina que o povo dominante sempre impõe sua cultura e costumes ao povo dominado (e que, quando feita de modo radical e violento, essa imposição ocasiona na supressão completa da cultura dominada), por outro lado, no Brasil, em termos de religiosidade, as coisas não foram bem assim. 3 No Brasil o catolicismo sofreu forte resistência dos povos os quais estava tentando converter. O que é mais curioso no caso brasileiro é: [...] o fato da própria religião dominante ter sofrido influência das culturas dominadas ao longo do tempo, principalmente no modo popular da doutrina, praticada no dia a dia na casa das pessoas. (RIBEIRO, 2012, p. 17). A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: da sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à religião da família e influenciado pelas crendices da senzala. (FREYRE, 2000, p. 56). Esse processo foi bem sutil, muitas vezes indireto e lento, levando gerações; ou seja, um processo tipicamente sincrético. Nas suas relações diárias com os senhores de engenho e demais colonos, os índios e (mais tarde) os africanos, adicionaram indiretamente superstições e práticas de curandeirismo que iam moldando gradualmente o imaginário religioso oficial. O medo do desconhecido, dos mortos, o respeito com os falecidos e toda sorte de mandingas locais foram gradual e sutilmente absorvidas pelos católicos na relação com ambas as culturas pagãs (indígena e africana). 2.2. Sincretismo entre catolicismo e cultura indígena Aqui o sincretismo religioso começa com a chegada dos portugueses que, inicialmente, tentaram catequizar os índios. A função dos jesuítas era a conversão e educação dos índios brasileiros, até então considerados povos bárbaros pelos portugueses. Uma vez convertidos e educados, os índios poderiam receber ordens mais facilmente e servir como melhor mão-de-obra. (RIBEIRO, 2012, p. 10). Visando tornar a religião católica mais fácil de ser assimilada pelos indígenas, os jesuítas, num primeiro momento, utilizaram as crenças indígenas como base, moldando a maioria dos deuses da mata como demônios, de modo que os índios aprendessem o cristianismo, e num segundo momento, associaram ao seu deus e santos os nomes de algumas divindades tupis. Com esse processo começou o contato do catolicismo com a cultura e religião indígena, estabelecendo assim os primeiros processos de sincretismo religioso no território brasileiro. 2.3. Sincretismo entre catolicismo e cultura africana A segunda ocorrência de sincretismo religioso advém com a chegada dos negros escravos, originários de vários pontos da África. Uma vez em terras brasileiras, a responsabilidade pela catequização dos negros era de seus donos: a Igreja Católica confiou aos senhores de engenho a educação religiosa básica dos escravos, que não adotavam procedimentos rígidos de conversão destes, apenas batizando e nomeando-os com um nome cristão. Soubesse rezar o padre-nosso e a ave Maria, dizer o Creio-em-DeusPadre, fazer o pelo-sinal-da-Santa-Cruz, o estranho era bem vindo no Brasil colonial, [...]. (FREYRE, 2000, p. 103). 4 Esse processo simplório, acomodado e esculachado de educação religiosa, aliado a outros fatores, permitiu aos escravos conservarem suas tradições culturais. Nas senzalas, o sincretismo ocorreu numa tentativa dos negros de mascarar suas crenças usando paradigmas católicos. Assim, os escravos adotaram tranquilamente imagens católicas e as cultuavam como tais nas pregações, mas, na verdade, sob as invocações dos santos, adoravam os deuses africanos. Foi a partir desse momento que se iniciou o processo de sincretismo das religiões afro e o catolicismo, sendo comum o ocultamento de rituais de candomblé sob rótulos de maracatus, clubes carnavalescos, caboclinhos, bumbas-meu-boi (RIBEIRO, 2012). [...] os negros reinterpretam inúmeras festas católicas: Exu é festejado no dia de São Bartolomeu; Xangô, no dia de São João; Ogum divide as comemorações com São Jorge; Omolu, com São Sebastião; os Ibejis (orixás da infância), na festa de Cosme e Damião; Oxalá brilha nos festejos do ano novo (na Bahia, na festa do Senhor do Bonfim); e Iansã, no dia de Santa Bárbara. (LIGORIO apud NOGUEIRA, 2009). Este sincretismo por correspondência entre deuses e santos pode ser assim explicado pela necessidade que tinha os escravos, na época colonial e imperial, de dissimular aos olhos dos brancos suas cerimônias pagãs. Com o tempo os negros aceitaram “a convivência dos santos católicos com as divindades africanas, chegando mesmo a considerarem, em alguns casos, que estes faziam parte do mesmo universo religioso” (RIBEIRO, 2012, p. 13), dando origem a um sincretismo profundo entre catolicismo e crenças africanas, resultando mais tarde (com a vinda e contato com o espiritismo no fim do século XIX) numa nova religião genuinamente brasileira, que plasma todas estas crenças: a Umbanda. 2.4. O papel do Espiritismo no sincretismo religioso: a origem da Umbanda Uma vez que a liberdade religiosa já havia sido garantida no fim do século XIX, e a Igreja católica separada oficialmente do Estado pela Constituição de 1891, o espiritismo não encontrou muita resistência para chegar ao Brasil. Por tratar de temas que sempre esteve no imaginário popular (forças sobrenaturais, almas, espíritos de mortos, incorporações), o espiritismo ganhou fácil simpatia, influenciando tranquilamente as outras matrizes, participando ativamente do sincretismo religioso nacional. Muito embora a doutrina não tenha sofrido muita influência externa, pode-se dizer com certeza que ela influenciou várias das outras correntes religiosas no Brasil. Por tratar do sobrenatural e explicar as manifestações dos espíritos, essa religião se alinhou bastante com as crenças populares brasileiras. (RIBEIRO, 2012, p. 24). Angariando espaço no país rapidamente, bem como influenciando outras matrizes pela afinidade de temas: [...] surge em 1930 no Rio de Janeiro, a partir do Candomblé, a Umbanda, religião tipicamente brasileira. Assim como o candomblé, a umbanda também cultua os orixás. Mas os umbandistas representam essas divindades com imagens diferentes, além de cultuarem outros três espíritos, o preto-velho, o caboclo e a pomba-gira (RIBEIRO, p. 21-22). A diferença básica entre o candomblé e a umbanda está no que se cultua: [...] enquanto o candomblé cultua as forças da natureza, chamadas de orixás, a umbanda pratica o culto de diversos espíritos ancestrais, 5 chamadas de entidades, como pretos-velhos (sic), cablocos, exus [...] é um culto chamado de sincrético, pois há uma certa (sic) mistura de cultos africanos aos ancestrais, culto aos ancestrais indígenas e há também alguns símbolos católicos. (OLIVEIRA; COSTA, 2007, p. 202). Assim o Espiritismo, mesmo jovem no país, foi fundamental para moldar as matrizes religiosas brasileiras, influenciando-as com temas que já eram comuns às outras matrizes. 2.5. Os Pentecostais Conhecidos atualmente pelo nome de “evangélicos”, essa corrente não é única, mas composta por vários grupos (luteranos, batistas, metodistas) e subgrupos (ministérios e/ou congregações) independentes, tendo em comum a livre interpretação da Bíblia Cristã, como pregava Martinho Lutero no século XVI, razão pela qual são chamados originalmente de protestantes. O grupo protestante conhecido como Pentecostal chegou ao Brasil em 1910 através da Congregação Cristã do Brasil e da Assembleia de Deus. Os Pentecostais: [...] vivem à espera de uma segunda vinda de Cristo, enquanto praticam os dons e carismas do Espírito Santo, onde creem que sua ação promove a cura dos males do corpo e da alma. Esse ramo da crença protestante se desenvolveu muito nas décadas seguintes, dando origem a várias outras dissidências, cada uma absorvendo características culturais e religiosas próprias do fundador e do local onde surgiu. Exemplos são a Igreja Brasil para Cristo, a Igreja Deus é Amor e a Igreja de Cristo no Brasil. (RIBEIRO, 2012, p. 22). Apesar do crescimento e desenvolvimento desta corrente, sua máxima de livre interpretação da Bíblia promoveu vários subgrupos independentes e fragmentados entre si, não formando assim um corpo religioso organizado que pudesse influenciar diretamente as religiões de outras matrizes. Dotados de uma prática puritana e ascética da vida, bem como por preceitos e valores morais rígidos e rigorosamente alinhados à Bíblia Cristã, os pentecostais assumiram assim uma prática religiosa ortodoxa e pouco simpática aos olhos dos praticantes das outras matrizes, razão pela qual não conseguiram influenciar muito as religiosidades brasileiras. No entanto, esse quadro muda radicalmente a partir da década de 1970, com a origem, desenvolvimento e consolidação do movimento neopentecostal e suas táticas fantásticas de sincretismo religioso, combinando em seus rituais elementos do Candomblé e Umbanda, visando obter sucesso na corrida pela conversão do maior número possível de fiéis. (NOGUEIRA, 2009). 2.6. O sincretismo fantástico do Neopentecostalismo Segundo Nogueira (2009), os neopentecostais distinguem-se dos pentecostais por assumirem uma postura menos ortodoxa aos costumes cristãos. Eles adotam essa postura mais liberal porque, através de um confronto direto com a Umbanda, faz usos propositais de elementos desta e outras religiões para reforçar sua doutrina e obter um número cada vez maior de fiéis à sua corrente. O lado interessante desse movimento neopentecostal é o fato de ser visível nele a influência de outras religiões [...]. Além disso, algumas dessas igrejas foram fundadas por pessoas com profundo conhecimento 6 da religiosidade brasileira como um todo, objetivando satisfazer o imaginário coletivo das pessoas e atrair fiéis. Outros elementos destacadamente sincréticos nesse ramo do evangelismo é o uso de artifícios por pastores durante as cerimônias, como óleos, água, fogueiras santa [...]; tudo uma grande mistura de elementos africanos, ameríndios e provenientes do catolicismo popular. (RIBEIRO, 2012, p. 23). A maior representante desse grupo é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada em 1977 por Edir Macedo. As estratégias doutrinárias da IURD a distingue das demais denominações protestantes, pois o elemento central de sua doutrina é o combate espiritual, a luta entre o “bem” e o “mau”. (NOGUEIRA, 2009). A IURD aceita a existência de formas mágicas, mas confere a elas um caráter negativo, oferecendo armas sobrenaturais para combatê-las. É exatamente o confronto direto com as crenças da Umbanda, onde o ponto máximo de seus cultos são as sessões de exorcismos, e esta doutrinação se relaciona diretamente com os espíritos umbandistas. (RIBEIRO, 2012, p. 23). Já o vasto vocabulário de palavras utilizados nas suas sessões de exorcismos também retirados de outras matrizes além da Umbanda: Diga-se de passagem, que essas entidades de Umbanda são chamadas de “encostos” – outro termo retirado do espiritismo. Assim, o vocabulário da IURD se refere a “Pai de Encosto” (“Pai de Santo”),“Casa de Encosto” (Terreiro) e “Casa de Encosto de maior nível” (Centro Kardecista, no qual geralmente os participantes possuem maior nível econômico e educacional). (REFKALEFSKY, 2006, p. 06). NOGEUIRA (2009) destaca o profundo sincretismo entre neopentecostais da IURD matrizes africanas e espiritualistas no que diz respeito à comunicação visual, gestual, oral e textual desta: As sessões na IURD são chamadas de “sessão espiritual do descarrego”. Os três termos são típicos da Umbanda e do espiritismo de modo geral. Há uma aproximação semântica nítida; Pastores da IURD vestem roupas brancas nas desobsessões, semelhante às dos sacerdotes da Umbanda. Não é um vestuário típico de evangélicos, que em geral usam o terno e gravata; Sacerdotes de Umbanda e Pastores da IURD “chamam” os espíritos ruis para se manifestarem. Ambos usam o termo “preso e amarrado”, só que a IURD se acrescenta “em nome de Deus”. As manifestações dos “espíritos” são muito semelhantes: gritam, se debatem, mostram rebeldia, mudam o tom de voz, rolam no chão. Em ambas as religiões, os sacerdotes falam de modo ríspido com “eles” para que se comportem. (NOGUEIRA, 2009). Este é o sincretismo fantástico do movimento neopentecostal, cujo ícone máximo é a IURD, que mistura propositalmente elementos típicos do pentecostalismo com outros pertencentes às religiões espiritualistas e africanas, principalmente elementos provenientes da 7 Umbanda, uma religião tipicamente brasileira que mescla, combina ou plasma elementos das matrizes anteriores. A umbanda é o alvo-central da IURD (e das demais correntes neopentecostais que seguem sua linha eloquente) porque seus líderes sabem que ela é uma religião tipicamente brasileira e que sintetiza em suas práticas elementos das matrizes anteriores. Para qualquer sacerdote ou obreiro da IURD, as obras de Gilberto Freyre (2003), Sérgio Buarque de Hollanda (1975), Antônio Gouvêa de Mendonça (1997), Roberto Damatta (1997), Muniz Sodré (1996), Yvonne Maggie (1975) ou Eneida Duarte Gaspar (2002) são mais importantes para o “marketing” do que a maioria dos livros de administração, negócios e comunicação – mesmo Marketing for Congregations, de Philip Kotler (1992) ou qualquer obra importada. (REFKALEFSKY, p. 6). Assim, os líderes neopentecostais sabem que ao combater a umbanda estarão combatendo todos os pontos comuns das matrizes religiosas brasileiras, bem como todo um corpo de imaginário cultural religioso nacional fruto de um processo histórico de sincretismo, baseado num mundo espiritual profundamente diverso e eclético. 3. O FENÔMENO DA INCORPORAÇÃO COMO FATOR RELIGIOSIDADE (OU IMAGINÁRIO RELIGIOSO) BRASILEIRO IMANENTE À Diante desse conhecimento da religiosidade brasileira por parte dos membros do neopentecostalismo, chama-nos a atenção um ponto específico: os fenômenos de incorporação de espíritos (entidades sobrenaturais) em seus ritos. Eis aí um ponto ou uma característica peculiar, mas ao mesmo tempo comum, em todas as matrizes religiosas nacionais, motivo de fascínio e temor em todas elas. Segundo SCHMIDT (2011, p. 188): [...] essa prática é enormemente importante para o nosso estudo das Ciências da Religião porque é um fenômeno que acontece no mundo inteiro, e não está restrito somente a um contexto cristão, mas em todas as religiões aparecem alguns aspectos do transe espiritual. Às vezes esses aspectos são tidos como uma manifestação mais demoníaca, em outros, são vistos como divinos. Mas estão no mundo inteiro, em diferentes religiões e culturas. Eu acho que esse, no fundo, é o ponto central de algumas experiências religiosas. Apesar de presente em todas as religiões no mundo inteiro, esse fenômeno adquire contornos específicos no caso brasileiro essencialmente em razão do sincretismo religioso, como diz a mesma autora: Há grandes diferenças entre as três tradições religiosas com as quais eu trabalho: Umbanda, Candomblé e o Centro Espírita. É claro que, às vezes, elas se misturam. Pessoas que tenho entrevistado frequentam o Candomblé e a Umbanda ao mesmo tempo, mas, normalmente, estão divididas. Diferentes hierarquias, cerimônias, mesmo a possessão espiritual é diferente. Algumas estruturas e funções, no entanto, são idênticas, o conteúdo da prática é que difere. Os orixás, por exemplo, são diferentes. Eles se apresentam de forma diferente no Candomblé e na 8 Umbanda. Já o Espiritismo é uma mistura. A Umbanda é uma mistura, claro. Mas um recebe a influência do outro (SCHMIDT, 2011, p. 191). É impressionante notar como os fenômenos de incorporação de espíritos são e estão presentes em todas as matrizes (e suas vertentes) acima discorridas, sendo tanto um elemento comum às suas matrizes quanto, no caso brasileiro, produto do sincretismo, como pode perceber nos rituais do candomblé, umbanda, espiritismo, neopentecostalismo e, claro, no catolicismo. Tudo indica que o fenômeno da incorporação de espíritos ou entidades sobrenaturais é o ponto nevrálgico em todas as religiões descritas e, mais interessante ainda, em todas elas o fenômeno possui elementos comuns, dialogando intimamente entre si, como afirmou SCHMIDT (2011). Eis o que despertou nosso interesse de pesquisa para a disciplina de Identidade e Cultura. Eis aí o nosso objeto. 3.1. Espíritos: fator comum à religiosidade brasileira Vimos que no Brasil o sincretismo religioso significou não uma subtração de elementos constitutivos desta ou daquela crença religiosa; ao contrário, significou um fortalecimento das diversas expressões da religiosidade brasileira. Segundo NOGUEIRA (2009): Um fator que liga todas as formas de expressão da religiosidade brasileira é a existência de um mundo espiritual, onde espíritos, santos, divindades, entidades, anjos ou a ação do Espírito Santo, são considerados elementos intercessores e protetores a quem os fiéis se apegam nas suas aflições, e atribuem curas e todo o tipo de favor. Todos estes recursos pressupõem, por sua vez, a crença na existência de espíritos maus, demônios que são capazes de interferir na vida e no destino das pessoas, trazendo as mais variadas desordens, sejam espirituais, econômicas ou emocionais. Esta busca na religiosidade, no ocultismo e no sobrenatural para os problemas do cotidiano faz parte da história do povo brasileiro. Segundo FREYRE (2000, p. 209): O brasileiro é por excelência o povo da crença no sobrenatural: em tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influências estranhas; de vez em quando os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos. Daí o sucesso em nosso meio do alto e do baixo espiritismo. Esta relação entre o mundo visível e o mundo invisível e desconhecido permeia o imaginário brasileiro e tem raízes no sincretismo religioso que deu origem à nossa Matriz Religiosa. Apesar dos fenômenos de transe e/ou possessão estar presente em quase todas as religiões como afirmou SCHMIDT (2011), segundo NOGUEIRA (2009), essa é talvez a característica principal da religiosidade e da matriz religiosa brasileira reduzida a um denominador comum, fruto de um profundo sincretismo religioso entre as vertentes citadas. Esse denominador comum da religiosidade brasileira tem por característica o: [...] contato direto com o sagrado através das incorporações de “espíritos”; o uso intensivo de elementos sincréticos, provenientes de diversas origens religiosas; o caráter de magia prática para solução de problemas cotidianos; a relação de trocas (eu te ajudo para que você me ajude) com estas entidades e o Sagrado, de modo geral; e a prática de 9 uma religiosidade individual, à margem das instituições eclesiásticas. (REFKALEFSKY apud NOGUEIRA, 2009). Isso é percebido historicamente, como vimos anteriormente; mas vale ressaltar alguns outros exemplos de como essa relação com entidades espirituais por meio do fenômeno da incorporação era e é comum no caso brasileiro. No caso dos índios, o exorcismo era praticado como forma de limpar o corpo e a alma. Espancar a pessoa até tirar-lhe, ou sarjá-la com dente agudo de animal era para o primitivo um processo de purificação e de esconjuração, aplicado com particular rigor ao menino ou à menina ao iniciar-se na puberdade. [...] Pelo suor, como pelo sangue, supunha o primitivo eliminar-se o demônio do corpo do indivíduo. [...] não é o suor lúbrico, mas o místico que se procura nessas danças, durante as quais é comum os indivíduos se espancarem uns aos outros. (FREYRE, 2000, p.206). No caso dos pastores neopentecostais da IURD, como também vimos anteriormente, o papel das incorporações de espíritos ocupava papel central em sua doutrina e práticas. Estes popularizaram o fenômeno do exorcismo como estratégia, também, de atrair fiéis. [...] a posse dos “dons” ou “carismas” do “Espírito Santo”, e as práticas exorcistas de ataques ao demônio em suas mais variadas faces: belzebu, satanás etc. estão presentes também nas igrejas evangélicas pentecostais, mas a IURD se diferencia por tornar público estas práticas, em sessões televisionadas, onde entidades da Umbanda (“Exus”, “Pombas-Gira”, “Cablocos”, “Preto-Velhos”, ”Boiadeiros” etc.) são evocadas em sessões especiais, e expulsas do corpo dos fiéis [ao vivo, em rede nacional]. Com base em todo o exposto, não há como não se sentir instigado em investigar esses fenômenos não no sentido de comprovar suas evidências e realidade, mas de estudá-los como e enquanto um fator peculiar comum à gama de religiões brasileiras que se desenvolveram aqui ao longo do tempo, relacionando-se conflituosamente de um lado e harmoniosamente de outro, formando um imaginário popular permeado por estórias de assombrações, lendas e relatos de espíritos e incorporação espiritual, ora considerando-as como simples espíritos, entidades, deuses, ora como demônios e seus intermináveis nomes dada a cada uma destas entidades por suas respectivas matrizes e vertentes. A seguir, segue uma espécie de “diário de bordo” da nossa pesquisa de campo. 4. RELATOS SINCRÉTICOS DE FENÔMENOS DE INCORPORAÇÃO ESPIRITUAL: UM ESTUDO DE CASOS De posse desse panorama histórico cultural e conceitual sobre o objeto em voga, bem como a partir da observação participante e de um conjunto de relatos de experiências sobre o fenômeno da incorporação espiritual (“possessão”) em quatro vertentes religiosas (catolicismo, evangelismo neopentecostal, espiritismo e candomblé), nosso objetivo consistiu em demonstrar que esse fenômeno é tanto fator como produto do sincretismo religioso; que apesar dessas várias vertentes terem matrizes diferentes entre si (e apesar de cada uma delas encararem de formas distintas o fenômeno da “possessão”), este fenômeno está presente nestas vertentes religiosas. Nosso foco ou ideia central está no sincretismo entre elas e, com base em todo exposto na PARTE I, entendemos que fenômeno de incorporação é o objeto que demonstra esse sincretismo religioso. 10 Nesse sentido, nossa tarefa, a partir da observação participante e de um conjunto de relatos de experiências sobre o fenômeno, consistiu em fazer entrevistas, relatar, descrever e tomar nota sobre o que significa a incorporação ou possessão para estas vertentes religiosas. Daí, as perguntas que primariamente nortearam as investigações foram: o que é a possessão para sua religião? Como sua religião entende, encara e conceitua a possessão? Isso é uma coisa central na sua religião? É normal em sua religião? 4.1 A incorporação no pentecostalismo A partir de uma entrevista com Leonardo, pastor a 7 anos em diversas igrejas e atualmente da Igreja Universal do Reino de Deus, concluímos como se dá e o que significa a incorporação no pentecostalismo. De acordo com nossa conversa com o pastor, não há possessão benigna; todas as possessões são malignas e incluem a presença de entidades e demônios – cujos nomes são os mesmos dos orixás da religião do candomblé e da umbanda. Apesar de afirmar que as religiões acima citadas são ligadas ao demônio, o pastor afirma que o intuito de sua Igreja não é denegrir a imagem de nenhuma delas, apenas alertar os fiéis sobre seus malefícios. Segundo o relato do pastor, o demônio – ou entidade – pode entrar no corpo de alguém a partir do contato desta pessoa com outra mal intencionada, da participação da pessoa de rituais de algumas outras religiões como o candomblé, umbanda e espiritismo, e de várias outras fontes. Uma pessoa não precisa “manifestar” que está endemoniada, o mal pode estar em seu corpo sem manifestá-lo, apenas trazendo o mal e a tristeza para sua vida. Para o pastor Leonardo, a 7 anos no cargo, a fé faz acreditar que, quando o pastor começa sua trajetória na Igreja, ele recebe uma autoridade, segundo ele uma “benção” do Espírito Santo para combater o mal e levar seus fiéis à libertação. A pessoa possuída deve seguir alguns passos para se libertar: 1- Reconhecer que necessita da presença de Deus em sua vida; 2- Procurar uma igreja e procurar a Deus; 3- Comparecer a um culto de libertação, ou sessão de descarrego; 4Depois de livre do mal, manter-se na Igreja para que seu corpo receba somente o espírito de Deus. Se esse passo não for seguido, as chances de uma entidade se apoderar de seu corpo novamente é grande e ele voltará sete vezes pior do que da primeira vez.” 4.1.1 Relato da sessão de descarrego/culto de libertação “Líder religioso que veste branco e invoca espíritos enquanto pessoas andam sobre o sal”. Caso essa frase fosse a instrução para completar um jogo de palavras cruzadas, seria difícil não pensar em “pai-de-santo”, mas não é o caso. Essa é a descrição de um pastor em um dia de culto da libertação (ou “Sessão do Descarrego”). Em visita a uma igreja evangélica, pudemos presenciar como o espírito cultuado em outras religiões é visto nessa e como este tema é abordado durante o culto. No primeiro momento do culto, houve uma oração do pastor enquanto os fiéis passavam sobre um caminho no chão coberto por sal grosso. Essa oração era um pedido pela saúde dos fiéis. 11 Depois desse primeiro momento, o pastor pergunta quais dos fiéis já se sentem curados e alguns deles deramdepoimentos sobre as dores que deixaram de sentir e depois de cada depoimento, havia “aplausos para Jesus”(sic). Pronto, o ritual do “Vale do Sal” estava terminado e a partir daquele momento o pastor começaria uma oração para libertar os fiéis do verdadeiro responsável pelos males que os acometiam: o demônio. Pastores auxiliares, obreiros e obreiras passavam de fiel em fiel, colocando a mão sobre suas cabeças e orando particularmente para cada um deles, regidos pelo pastor do palco que dizia frases como “Pode manifestar”, “Espírito de maldição”, “Você que já tomou um passe…”, “Você não resiste a ordem que é dada, então pode manifestar”, “Sai daí, encosto”, entre outras. Durante todo esse processo, a música de fundo era pesada, de suspense…diferente da música em todo o resto do culto. Algumas pessoas ficavam com os corpos moles durante a oração, mas nesse dia, não houve nenhum tipo de manifestação clara de possessão. Conversamos com um dos pastores da igreja que nos contou que o culto de sexta-feira (também uma “sessão de descarrego”) era o dia onde havia mais manifestações, pois o pastor que rege o culto diz o nome dos demônios. No culto de sexta não havia sal, não havia um pastor vestido de branco. O pastor estava vestindo trajes sociais e demonstrava uma segurança muito grande. Começaram as orações para a libertação dos demônios e, mais uma vez, a música mudou para uma melodia mais pesada. De repente, uma manifestação (termo utilizado para caracterizar a encorporação). A pessoa foi levada para o palco para que o pastor pudesse conversar com o demônio e descobrir qual mal ele estava causando na vida daquela vítima. Para isso, o pastor perguntou o nome do demônio. Confesso que esperei diversas respostas, Leviatã, Belzebu, Asmodeu… porém, a resposta foi “Omulu”1. Ao ouvir essa resposta, fiquei surpresa, mas o pastor fez questão de explicar qual a função daquele demônio “destruidor de vida financeira” Deste momento em diante, a conversa com os possuídos era sempre relacionada a seus nomes e esses, curiosamente, estavam todos ligados a religiões de matriz africana. Houve a expulsão do demônio através de orações e o pastor pregava, continuamente, que os fiéis deveriam odiar o demônio (não gostar não era suficiente, segundo ele). A visita deixou clara a forma como o tema é abordado pela igreja visitada: qualquer espírito é um demônio, responsável por todas as mazelas na vida dos fiéis e só a presença constante na igreja e a autoridade2 do pastor são capazes de libertar os fiéis desses seres malignos. 1 “Omulu é o orixá da humildade, senhor da doença, médico dos médicos, durante o dia vem em forma de cura, sanando todos aqueles que necessitam, à noite vem como a morte, recolhendo os que de alguma forma chegou a hora.” http://www.portaldosorixas.com.br/portaldosorixas/orixa/pred15.htm 2 “O direito de exercer as funções deste ministério em determinado lugar é conferido por delegação a uma ou mais pessoas através da congregação regularmente reunida. Aceitando esta designação, o pastor ou pastores assumem em nome da congregação o exercício de deveres e direitos inerentes ao exercício público do ministério”http://www.horaluterana.org.br/duvidas/de- 12 quem-o-pastor-recebe-a-sua-autoridade-e-em-que-essa-autoridade-se-baseia-no-exercicio-deseu-ministerio/ 4.2 A incorporação no candomblé Na religião do candomblé a incorporação é vista como positiva – e as vezes como obrigatória. É considerada o modo como os deuses se fazem entre as pessoas na terra. A incorporação varia de acordo com a posição hierárquica no terreiro, quanto mais nova na religião for a pessoa mais propensa a incorporar ela está. Ela pode acontecer dentro ou fora do terreiro, inclusive em situações do cotidiano. Os ebomins, irmãos mais velhos no terreiro, recebem seu próprio orixá e apenas em festas. O incorporado primeiramente sente tontura e uma sensação de que está fora de seu corpo e, aos poucos, a força de aproxima. No começo podem ficar em estado de sofrimento ritmado pela música e pelos movimentos do corpo, fica com pouco controle do corpor e subordinados ao orixá. A também a diferença entre a incorporação por caboclos, consideradas mais violentas e pesadas para o incorporado, e a incorporação pelos orixás, que no começo é dura mas com a experiência do fiel se torna menos impactante e mais “natural”. 4.2.1 Relato da ida à festa de Mãe Nanã e Mãe Iemanjá No dia 31 de agosto, às 20h30m, na casa Asé Batistini localizada em São Bernardo do Campo, ocorreu a homenagem e saudação às orixás Nanã e Iemanjá, que dentro do contexto cultural, possuem pontos em comum: fecundidade, maternidade e associação à água do mar. Enquanto a casa está revestida de muitos tecidos, velas e pipocas (acompanhados de elementos visivelmente católicos e espíritas, como por exemplo citações enquadradas, imagens e o livro sagrado), vão chegando, em trajes característicos, como colares e enfeites e de outras regiões brasileiras, os praticantes em seu sentido mais diverso. Eles trazem muitas comidas típicas em nome da fartura que tanto cultua-se para oferecer no banquete, este realizado logo após o ritual de entrada. O ritual de entrada é ao som de três atabaques. As mulheres da festa começam adentrar o barracão em roda, saudando, cantando e dançando com muita fé. A festa dura a noite toda, a idéia de homenagem dura a semana seguinte, e a devoção a vida inteira. Os trabalhos e oferendas são intermináveis, onde o praticante está sempre em dívida com seus orixás em troca de bênçãos e proteção no decorrer de sua vida. 4.3 A incorporação no espiritismo No espiritismo existem formas de incorporação boas e ruins. Vamos tratar nessa sessão 4.3 das obssessões, incorporação maléficas e na sessão 4.3.1 relataremos uma experiência de incorporação boa. No kardecismo, a obssessão acontece quando um espírito presente em uma escala de evolução não necessariamente evoluída ou algu espírito desencarnado que ainda não conhece sua posição se relacionam com os espíritos encarnados, nem sempre os influenciando prejudicialmente de propósito, alguns apenas desconhecem seu poder. O espírito obssessor 13 sempre vai se sobressair ao espírito inerente a pessoa, fazendo com que só os seus sentimentos sejam manifestados. A desobssessão acontece quando um médiun, pessoa que tem o dom e a sensibilidade de se relacionar com espíritos, – orientado por um doutrinador que “explica” aos espíritos obssessores que eles não deveriam estar ali e que estão fazendo mal ao possuído - incorpora a entidade obssessora presente no corpo do fiel. Desse ritual pode participar qualquer tipo de pessoa, inclusive alguém que não pertence a religião, desde que tenha algum histórico de sofrimento. 4.3.1 Relato de incorporação Uma das integrantes do nosso grupo, Laura, presenciou uma incorporação e teve a oportunidade de conversar com a pessoa envolvida. “Quando cheguei à casa de uma amiga de família, a primeira coisa que fiz foi perguntar à ela se ela se sentia a vontade para conversar sobre a incorporação. Ela me respondeu que sim. Comecei perguntando como funcionava: ela fazia algo de diferente para incorporar? Ela tinha controle sobre isso? O que ela sentia durante a incorporação? Primeiro ela me disse que isso começou muitos anos atrás. Ela começou a estudar sobre o kardecismo depois da morte de seu marido, e após ter algumas “experiências espirituais”. Ela disse que essas experiências ocorrem de diversas formas, como em sonhos ou até mesmo acordada. Ela primeiro sente a presença do espírito e depois ela pode ouvi-lo ou vê-lo. Muitas vezes ele se comunica com ela através do pensamento. Já aconteceu de serem conhecidos falecidos, ou espíritos que ela desconhece. Ela contou também que no começo, quando começou a incorporar, ela não tinha controle sobre a situação. Ela disse que bastava ela se concentrar por alguns segundos e logo um espírito incorporava. Não era qualquer espírito – isso ficou claro – mas são espíritos conhecidos. As vezes querem passar alguma mensagem, e até mesmo ajudar. Quero explicitar também que existem espíritos bons e ruins, nem todos querem o bem. Hoje em dia, ela disse que controla isso, e que muitas vezes não incorpora. Após essa conversa, começamos o evangelho. Minha família é espírita, e sempre fizemos o evangelho no lar, uma prática espírita. Escolhe-se um local calmo em casa, coloca-se uma música tranquila (normalmente para meditação) e faz-se algumas orações, completando com a leitura de um capítulo do livro ‘Evangelho Segundo o Espíritismo’ de Allan Kardec. Começamos o evangelho na casa dessa amiga, acompanhadas de algumas outras amigas que temos. Após o início da meditação, essa amiga começou a passar as mãos nas pernas, sentada. Começou a falar, com um sotaque diferente e uma voz levemente diferente, com os olhos fechados. Conversou por mais ou menos 15 minutos conosco, às vezes apontando para as pessoas com quem estava falando, às vezes falando com todos os presentes ao mesmo tempo. Se despediu, e partiu. Nossa amiga abriu os olhos e tomou um copo d’água. Seguimos com o evangelho, e tudo continuou normal. Eu já tinha visto isso outras vezes, faz parte de um cotidiano que vivi uns anos atrás. Hoje em dia nós fazemos o evangelho cada um em suas casas, o que diminuiu a frequência com que eu vejo a incorporação. Muitas pessoas tem medo quando eu conto essas histórias, mas eu não sinto. 4.4 A incorporação no catolicismo 14 No catolicismo também existem dois tipos de incorporação: a do Espírito Santo, onde os jovens iniciantes recebem o dom do Espírito ou são tocados por Ele, ou a possessão demoníaca. Nos dois casos as pessoas tem consciência do que está havendo ao seu redor; alguns ainda podem suspender o seu transe para fazer atividades corriqueiras como atender a porta ou receber um recado importante. No caso da incorporação do Espírito Santo, a pessoa incorporada pode falar – orar ou cantar – em línguas, pode ocorrer o “repouso no Espírito” - o que consiste em algum fiél mais experiente tocando outro iniciante enquanto esse, em transe, cai ao solo, amparado por outro fie – ou o “bailar no Espírito” onde o fiel, antes de cair ao solo – agora sem o amparo de ninguém -, dança embalado pelos cânticos da Igreja e seu ritmo. Já no caso da possessão demoníaca, o ritual para reverter a situação chama-se “exorcismo”. Na Igreja Católica existe o exorcismo menor, que consiste em algumas preces para que os “batizados” fiquem livres das consequências do pecado e da influência do diabo – apenas um ritual de proteção – e o exorcismo maior onde a Igreja, ou o padre, suplica para que Deus venha em auxílio do possuído. Existem padres específicos para realizar os exorcismos e estes devem seguir alguns cuidados como: não crer que o indivíduo esteja possuído apenas por estar enfermo, nem quando alguém diz estar atormentado; deve haver um exame mais profundo para saber se realmente a pessoa está incorporada com o demônio. 5. CONCLUSÃO Pudemos tirar algumas conclusões do trabalho feito: 5.1 Constatamos que o que é falado negativamente, segundo o senso-comum, sobre algumas religiões do Brasil, normalmente não tem fundamento nenhum, ou seja, muitas pessoas fazem observações quanto a essas religiões sem ao menos conhecê-las superficialmente. Além disso, entre as religiões também há certo preconceito, por exemplo, o fato de o candomblé ser visto como uma religião demoníaca no pentecostalismo. 5.2 Podemos observar certo sincretismo religioso no tema “incorporação” nas religiões estudadas como: no espiritismo e catolicismo, a incorporação pode ter seu significado positivo e negativo; os rituais de desobssessão maligna no pentecostalismo e no catolicismo tem muitas semelhanças; mas cada uma destas religiões tem um meio próprio de encarar esse tema e determinados rituais de “desobssessão”. BIBLIOGRAFIA ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Coleção Primeiros Passos). FREYRE, Gilberto. 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