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DIRECTOR Eduardo Lourenço DIRECTORES-ADJUNTOS António Reis Fernando Pereira Marques COORDENADOR Joaquim Jorge Veiguinha CONSELHO DE REDACÇÃO Alberto Martins, Alfredo Margarido, Diogo Moreira, Eduardo Geada, Glória Rebelo, Guilherme d’Oliveira Martins, Filipe Nunes, João Soares Santos, José Medeiros Ferreira, Mónica Dias, Pedro Adão e Silva, Pedro Delgado Alves, Pedro Nuno Santos, Rui Pena Pires CONSELHO EDITORIAL André Freire, António Coimbra Martins, António Vitorino, Augusto Santos Silva, Carlos Brito, Carlos Gaspar, Carlos Zorrinho, Edite Estrela, Eduardo Ferro Rodrigues, Fernando Catroga, Francisco Assis, Helena Roseta, João de Almeida Santos, João Cravinho, João Proença, Jorge Lacão, José Lamego, José Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha, Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 69/70 – Primavera/Verão 2010 Design e Produção: Garra Publicidade, SA Apoio à Redacção: Sofia Nascimento Registo de Título nº 113 463 Depósito Legal nº 43 418/91 Editora: Fundação Res Publica, Lisboa, 2011 Redacção e Administração: Av. das Descobertas, 17 | 1400 Lisboa Telfs.: 21 301 39 09 | Fax: 21 301 59 56 E-mail: [email protected] 1. Os originais destinados a publicação deverão ser dactilografados a dois espaços em páginas A4 de 25 linhas. 2. A revista não se compromete a devolver textos não solicitados. 3. Os artigos assinados são da responsabilidade dos seus autores. 4. A reprodução parcial ou integral dos textos publicados na Finisterra é permitida mediante a autorização da Direcção e indicação da origem. ÍNDICE O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMO A Esquerda como Problema e como Esperança (Sobre a Crise de Imagem da Esquerda) Eduardo Lourenço 7 República Moderna e Responsabilidade Social Guilherme d’Oliveira Martins 19 Novas e Velhas Dimensões do Conflito Político André Freire 27 A Crise da Liberal Democracia Joaquim Jorge Veiguinha 43 O Futuro da Terceira Via: Tendências e Alternativas, na Perspectiva de um Socialismo Cognitivo José Nuno Lacerda da Fonseca 67 Democracia e Economia Social: Que Futuro? Glória Rebelo 85 PARLAMENTO: A I REPÚBLICA E NÓS Nós e a Primeira República Augusto Santos Silva 93 O Partido Socialista nos Primeiros Anos da Ditadura Constantino Oliveira Gonçalves 109 Afonso Costa e o Socialismo Integral José Reis Santos 141 Bernardino Machado Visto por Luís Morote António Ventura 161 MEMÓRIA In Memoriam – Alfredo (Augusto) Margarido (1928-2010) Fernando Pereira Marques 173 O Direito ao Sonho Alfredo Margarido 175 Memória e Futuro dos Campos de Concentração Alfredo Margarido 181 Os Malefícios do Luso-Tropicalismo Alfredo Margarido 185 IDEIAS 191 Do Jovem Socialista ao “Elder Statesman” – A Relação de Willy Brandt com os EUA Karsten D. Voigt 197 Superar a Crise Global do Ambiente Pedro Miguel Cardoso 213 Segurança, Ameaças e Respostas: O Ciberterrorismo Carolina Antunes Barata Pires Varela CULTURA 229 Carta Aberta à Ministra da Cultura Fernando Mora Ramos 235 Ecos de um Perpétuo Desvanecimento João Soares Santos LIVROS 253 A Esquerda e o Socialismo Joaquim Jorge Veiguinha 257 Para onde Vai a Social-Democracia? Joaquim Jorge Veiguinha 265 As Direitas Radicais Portuguesas no Fim do Estado Novo Beja Santos 269 A Odisseia do Consumidor que Queria Viver sem Causar Impacte Ambiental Beja Santos 273 Estranho Quotidiano Beja Santos 277 Joaquim Jorge Veiguinha – Inquérito ao Capitalismo Realmente Existente Porto: Edições Afrontamento, 2009 Fernando Pereira Marques COLABORAM NESTE NÚMERO Eduardo Lourenço – Ensaísta Guilherme d’Oliveira Martins – Jurista e Presidente do Tribunal de Contas André Freire – Professor Universitário Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta José Nuno Lacerda da Fonseca – Engenheiro Agrónomo Glória Rebelo – Professora Universitária Constantino Oliveira Gonçalves – Investigador Augusto Santos Silva – Sociólogo José Reis Santos – Historiador António Ventura – Professor Universitário Fernando Pereira Marques – Professor Universitário Alfredo Margarido – Professor Universitário Karsten D. Voigt – Especialista em Questões de Segurança e Defesa Carolina Antunes Barata Pires Varela – Professora Universitária Pedro Miguel Cardoso – Formando da Fundação Res Publica Fernando Mora Ramos – Encenador João Soares Santos – Ensaísta Beja Santos – Sociólogo Carlos Brito – Cartoonista O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL-LIBERALISMO A Esquerda como problema e como esperança (Sobre a crise de imagem da Esquerda)1 Eduardo Lourenço Ao contrário do que é costume pensar-se, a tragédia não resulta de um conflito entre o bem e o mal, mas do conflito entre duas ordens de bens. Hegel N ão se pode ganhar uma partida de xadrez sem que o adversário cometa erros. Esta máxima não é apenas verdadeira para o mais subtil e cruel dos jogos que os homens inventaram. Se neste momento a Esquerda europeia está, ou parece estar, numa situação particularmente melindrosa, é talvez apenas por ter imaginado que os erros ou pecados políticos, sociais e económicos só podiam ser cometidos pela Direita ou, talvez melhor, que a Direita era a expressão, nessa ordem, da História como pecado. Consciente e convicta — não sem fundas razões, que convém repensar — de representar a consciência aguda da injustiça, da opressão, do privilégio inaceitável, a Esquerda viveu-se durante os quase dois séculos da sua manifestação histórica — justamente aquela que se materializou na Convenção como primeiro movimento revolucionário moderno — como se estivesse imune, por princípio, ao erro, ao desvio, à desfiguração, ou até à traição ao ideário transparente com que se definiu. Quando erros, desvios ou horrores demasiado gritantes afectaram esta ideia imaculada de si mesma, a Esquerda tinha sempre a possibilidade de os inscrever na categoria do acidental, do mal necessário, da inexperiência, ou considerá-los como resposta à violência nunca extinta ou ao maquiavelismo ingénito de um adversário, descrito de uma vez por todas como anti-História. Este comportamento voluntarista, necessário para fazer face a essa Direita — expressão efectiva de um poder discriminatório, dispensado de fornecer as suas credenciais, simples emanação das forças hegemónicas no domínio da produção, do seu usufruto social, legitimado ao nível do simbólico e do 1 Publicado em A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?. Lisboa: Gradiva, 2009, pp. 35-51. O texto foi originalmente redigido em 1986, mas mantém toda a sua actualidade. A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA cultural por uma ideologia que nem precisava de se exprimir, a tal ponto se confundia com a natureza da vida social — acabou por perverter aos poucos e enfraquecer por dentro a razão de ser de uma Esquerda que nascera como consciência crítica e legítima desse poder. É necessário e urgente numa Europa ao mesmo tempo transbordante de riqueza, de ciência e tecnologia de ponta, e em crise, que a Esquerda, tal como ela nasceu da sua história implacável, recupere, não a inocência e a transparência de sonho com que se pôde teorizar e existir enquanto a Direita era a expressão histórica de desigualdades sociais, de violência económica, social e política, palpáveis e visíveis a olho nu, mas a sua função de contrapoder, e até de antipoder mesmo no poder. Bem o precisa num momento em que sob roupagem mais sedutora, servida por efeitos especiais dignos de um super-Spielberg, uma Direita repintada, repensada, eficaz, se apresenta no palco da História contemporânea como a solução inevitável e quase inelutável do nosso Destino. Como foi possível que, num século, aquilo que para a intelligentsia hegemónica da Europa era o espectro ou o somatório político e social de uma visão alienante ou conservadora da sociedade, se tenha transformado, não apenas em mal menor, mas, numa perspectiva dinâmica, em sintonia com o ritmo imprevisível e fantástico de uma criatividade científica e tecnológica de um género novo, recuperando, num passe de mágica, a referência mesma da liberdade — de empreender, de imaginar, de surpreender sem fim — que é hoje glosado em todos os tons pelos arautos de um liberalismo proclamado como a essência mesma da Modernidade? Que sentido tem ainda o conceito e a realidade da Esquerda num mundo que parece uma imensa máquina desejante, sem autêntico sujeito, num mundo que produz o espectáculo do seu presente com as cores do fantástico distribuído noite e dia a domicílio? Que vazio pode preencher o ideal, tradicionalmente exigente e ascético de uma Esquerda preocupada pela solução das misérias do mundo, quando esta Direita europeia ou ocidental dos fins do nosso século tem os instrumentos e os poderes de converter até essa mesma miséria em distracção e espectáculo? Não é apenas na ordem económica e na ordem política que a imagem de marca da Esquerda, e em particular do Socialismo, aceite, e imaginada ainda há uns vinte anos como a mais adequada a uma solução histórica e social conciliadora da Modernidade e da Liberdade, sofre neste momento um eclipse manifesto no Ocidente europeu. Se na Península Ibérica isso se sente EDUARDO LOURENÇO ou se vê menos, talvez o devamos à distância que nos protege do centro do ciclone neodireitista ou simplesmente porque o sol da História já não bate de chapa no nosso rosto. Onde estávamos habituados a vê-lo brilhar sem problemas, onde a Esquerda era escrita ou inscrição na História, a sua luz empalideceu e alguns já a festejam como extinta. Não apenas os adversários de sempre, a eterna e nunca defunta Direita orgânica que de Edmund Burke a Joseph de Maistre, de Maurras a Salazar teorizou com talento a contra-revolução, mas até aqueles que há uma dúzia de anos consideravam honroso rotularem-se de sociais-democratas, se passaram com armas e bagagens para o, na aparência, irresistível liberalismo. Quer dizer, mesmo na sua encarnação mais suave de tigre doméstico, a Esquerda em geral desde a social-democracia àquela que não renega a sua vocação socialista, vive horas difíceis, exceptuando a sempre excepcional Suécia. Assim, pondo de parte aquelas áreas de subdesenvolvimento económico e tecnológico, ou de herança não superada de desenvolvimento tardio, como em muitos países da Ásia ou da América Latina, a perspectiva de esquerda democrática de tipo europeu, sobretudo sob a forma socialista, ou não existe, ou existe sob formas tão caricaturais que nem é preciso ser reaccionário para a recusar como solução económica, ideológica, política ou cultural, com um mínimo de futuro ou, pelo menos, de espaço e aceitação. É a perspectiva de uma Esquerda democrática realmente uma mera ilusão consoladora, um mito sem viabilidade histórica neste fim do século xx? A sessenta anos de distância, compreende-se hoje melhor, ou de outra maneira, a famigerada fórmula estalinista do Socialismo num só país que sintetizava, ao menos, a evidência de que, como projecto universal, a remoção plausível das estruturas capitalistas do mundo mais desenvolvido era inviável. Conhece-se, ou imaginamos conhecer, o preço histórico do famoso «Socialismo num só país» que aliás era (é) mais do que um país: um continente potencial onde podia ser levada até às últimas consequências uma escolha que, se não mudou (ainda?) a face da História, a modificou e deslocou para horizontes imprevisíveis. Maldito, inaceitável, contestado ou contestável em função de uma outra tradição europeia de tipo socialista ou liberal, esse Socialismo teve o mérito de existir como referência ideológica e caução histórica de uma potência mundial que nestes últimos 70 anos se constituiu como um império perto do qual o da Roma antiga ou da Inglaterra moderna pareciam A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA uma construção bucólica. Todas as Helenas d’Encausse, todos os Emmanuéis Todd, mesmo o genial Alexandre Soljenitsine, puderam denunciar os defeitos visíveis ou invisíveis dessa potência oficialmente socialista sem que tal império se perspective como éclaté, ou em vias de deslocação interna ou externa. É no interior dos seus limites, nas fronteiras das suas próprias possibilidades histórico-militares, políticas e económicas, que esse Socialismo imperial ou esse Imperialismo socialista encontra os seus obstáculos sérios e a sua utopia, geradora de monstros e monstruosidades, aos poucos se corrige ou adoça, mas sem dar mostras de se querer converter àquele modelo democrático que é coessencial à tradição e ao projecto do Socialismo e da Esquerda na sua versão ocidental. Está este condenado a estiolar-se entre a bigorna ultra-sofisticada do capitalismo e o martelo rude do comunismo? Se a versão socialista na sua encarnação soviética ou para-soviética perdeu realmente a sua capacidade de fascínio e de exemplo, só no Ocidente e, em particular, na expressão cultural hegemónica que lhe dava sentido, tal versão se converteu no símbolo do inaceitável e todo o Ocidente politicamente organizado e culturalmente significativo se encontra mobilizado noite e dia para a recusar, refutar ou conter nos seus limites orientais, o paradoxo é que um tal descrédito não redundou em reforço da versão não-soviética ou anti-soviética do socialismo ocidental. Podemos — e devemos — lamentá-lo, mas o que não há dúvida é que o Socialismo à europeia, o celebrado Socialismo de rosto humano, não suscita hoje aquele entusiasmo ou pelo menos aquela esperança viva que era ainda comum nos anos 60, a que emprestou a sua dinâmica a Maio de 68 e de algum modo ajudou a jovem democracia portuguesa dos anos 70 a imaginar que um tal Socialismo era o seu óbvio e salutar destino. Tudo se passa como se a derrocada cultural de referência marxista tivesse também ferido de morte o outro Socialismo ou, pelo menos, o tivesse deixado sem alicerce teórico convincente. E esta é, afinal, a tragédia da Esquerda, a nossa tragédia, aquela que não devemos esconder. Ao contrário, devemos expô-da em plena luz, para lhe encontrar o remédio e lhe insuflar um espírito autónomo, uma alma sem a qual, por mais razões que nos assistam, essa Esquerda, esta que estamos revisitando, será sempre uma perspectiva frágil, vulnerável, vivendo mais do que recusa do que daquilo que propõe como solução histórica à altura dos tempos que vivemos, como diria Ortega y Gasset. Com efeito, não se creia que o actual crepúsculo da ideia e da prática 10 EDUARDO LOURENÇO socialistas em países altamente desenvolvidos do Ocidente, como a Inglaterra, a Alemanha, a França, a Itália ou a Áustria, é um mero acidente de ordem política, ao fim e ao cabo natural no quadro da democracia onde a alternância no poder é uma instituição. O que está em crise não é o Socialismo apenas como aposta política ritualizada nesse horizonte de real-pseudo-alternância (a direita europeia nunca aceitou tal alternância, que é uma ilusão da «Esquerda», e nem de toda...). O que está em causa nem é sequer o Socialismo como utopia ou perspectiva mais ou menos irrealista na ordem económica e, em especial, na da economia-mundo, completamente revolucionada, da esfera ocidental. O que está em crise é a ideia mesma do Socialismo — ou de uma certa tradição socialista — e não vale a pena supor que iniciativas tão necessárias, tão urgentes e tão vitais como aquela que aqui nos congrega, possam ter um começo com sucesso sem o exame radical e incomplacente dessa crise da ideia e de ideal no Ocidente. Sem esse exame, sem a reformulação a que fatalmente dará lugar, não será possível mobilizar a fundo, e não apenas no quadro empírico da mera política a prazo, milhões de homens e mulheres — todos nós — condenados a viver passivamente uma outra espécie de crise — a crise estrutural de uma sociedade em mutação vertiginosa — para a qual, durante mais de um século imaginámos — e no fundo com razão — que o socialismo seria ao mesmo tempo a leitura adequada e a solução histórica inevitável, razoável, racional e libertadora. Invejo, não só por isso, mas também por isso, os meus camaradas socialistas que vivem em Portugal. Nem sempre estar na margem desta Europa onde sempre imaginámos que a História com maiúscula se fazia, ou escrevia (em especial, a da luta nunca desmentida por uma sociedade onde as relações de classe fossem mais igualitárias ou menos injustas que na Península), é uma desvantagem. Talvez nem os mais bem informados dos portugueses — e todos o somos muito — tenham uma ideia realmente exacta da degradação, por assim dizer semântica, da ideia, do modelo, da própria esperança com as cores do Socialismo nesse país donde alguns (entre eles eu mesmo) esperavam a partir de 1981 que a versão europeia do Socialismo ecoasse ou reforçasse as forças de esquerda que se reclamavam do mesmo ou análogo ideário. Em Portugal, caros camaradas, nós temos o privilégio de viver ainda o nosso estatuto de homens de esquerda ou de socialistas, numa espécie de felicidade semelhante à dos sonhos. À Revolução o devemos, naturalmente, ao capital de intervenção 11 A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA social então acumulado. A nossa Revolução serviu realmente para alguma coisa de irreversível, mas não é possível crer cegamente que a nossa situação relativamente confortável de homens de Esquerda e de socialistas — refiro-me à nossa recuperação da dignidade cívica, à sua expressão política, à esperança de poder intervir com êxito no campo social — possa manter-se sem vigilância extrema e renovação profunda neste cantinho preservado de uma Europa que neste momento não é só pouco socialista, mas militante e determinadamente anti-socialista. O caso espanhol é uma ilusão. A alacridade do «Socialismo espanhol», o seu sucesso político, com tudo o que significa de positivo como autodemocratização, só existe em função de um acordo tácito de todas as forças do país vizinho de fazer de conta que é socialista a hábil versão de democracia social em registo mínimo que a Espanha teve o bom senso ou a necessidade de adoptar. Só não há crise do Socialismo europeu onde nunca houve, nem há, um mínimo de mudança social inspirada no ideal socialista ou no que, até hoje, passava por sê-lo. Nesses países nunca foi preciso meter o Socialismo na gaveta porque nunca lá tinha estado. Como muitos de nós, certamente, mas com a liberdade que me dava a minha irresponsabilidade militante, indignei-me quando o antigo secretário-geral do PS e actual Presidente da República empregou a fórmula tão famosa. Era apenas um gesto profético ou uma intuição justa dos ventos da História que já não sopravam a favor do Socialismo e não melhoraram muito desde então. É a Europa inteira — esta Europa que inventou a noção de Socialismo e o sonho que nela existe — que tenta rejeitar o Socialismo europeu, ou para sermos justos, que empurra o que resta dele — e é ainda considerável — (esperemos que momentaneamente) para a célebre caixa do lixo da História. Não me atreveria a tão escandalosa alusão aos avatares recentes e deprimentes do Socialismo como linha de fuga da Esquerda, se não pensasse que numa outra perspectiva, mais séria, mais preparada, apesar das aparências em contrário, o socialismo não constituísse ainda, nesta sociedade em mutação, uma ideologia, uma prática da análise e intervenção social e uma leitura da aventura humana, susceptível de credibilidade, de renovação e inventividade. Em suma, para além da sua actual expressão política, uma cultura e, sobretudo, uma aventura, quer dizer, uma opção sobre o imprevisível. Quero dizer, penso, sobretudo, que é possível rectificar seriamente a actual imagem 12 EDUARDO LOURENÇO que a Direita modernista conseguiu, com algum sucesso, dar da Esquerda e do Socialismo como soluções feridas de morte pelo seu arcaísmo. Nenhum argumento é hoje utilizado com maior sucesso, em certos países — e, em particular, em França, mãe de todas as modas — do que esse do arcaísmo, do envelhecimento de uma proposta que, segundo ela, já nada diz nem pode dizer a uma juventude que mal tem tempo para aderir, fruir, explorar e explodir a sua energia desocupada num mundo que se oferece com um presente inesgotável, mundo (ocidental) na aparência aproblemático, em que a urgência e as necessidades vitais das gerações anteriores se encontram como parecem postas entre parênteses e, por isso mesmo, tudo quanto é de ordem ideológica resulta sem interesse nem função. Tudo se passaria como se a essência mesma da cultura ocidental enquanto cultura do espectáculo e do jogo, ou mesmo como cultura de uma civilização potencialmente do não-trabalho, não pudesse sintonizar ou fosse incompatível com o antigo perfil da exigência socialista de luta por uma sociedade mais racional, mais justa e, pensava-se, mais livre. A liberdade, na sua forma imediata de não-responsabilidade, de expressão mágica da pulsão jovem, é o que as novas gerações encontram, por assim dizer, no berço, malgrado a angústia latente ou o pesadelo adiado da não inserção social futura, que consciente ou inconscientemente as pode trazer à rua, numa festa apolítica de um género novo, como anteontem em Paris e Madrid. E o que explica que a paixão mítica, o sinal de baptismo da Esquerda europeia e do socialismo na sua origem — a luta pela liberdade — tenha sido recuperada por um pretenso liberalismo que ainda há cinquenta anos a Igreja condenava como expressão da violência histórica de um capitalismo sem fé nem lei, atentatória da dignidade Humana. Esta espectacular rasura da própria razão de ser da Esquerda seria um mistério ou pura mistificação — o que também é — se a única encarnação do «Socialismo» como expressão universal que conhecemos não tivesse alargado ao máximo a contradição entre o ideal de justiça social e de liberdade, sem que mesmo o sacrifício deste último servisse de contrapeso ao sucesso do primeiro. No contexto de neutralização e apagamento da ideia de liberdade no interior de um sistema ligado à versão leninista-estalinista do Socialismo, a superioridade ética, a eficácia cultural do discurso da Esquerda herdado do século XÍX, tinha fatalmente de perder o seu condão e a sua magia. Primeiro, sob a forma virulenta ou sarcástica da ideia mesma de liberdade (reduzida a conceito formal ou vazio) como no 13 A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA fascismo e no totalitarismo, e hoje, como arma-boomerang contra essa Esquerda que se julgava identificada com ela para a eternidade. É o Socialismo e a Esquerda em geral, uma ideologia historicamente esvaziada, desconsiderada pelos seus efeitos e culturalmente morta e indefensável? As revistas de luxo do liberalismo triunfante celebram todas as semanas pelas plumas ágeis dos émulos indigentes dos Pauwels, dos Guy Sorman à la page, dos próprios tenores da antiga ultra-Esquerda convertidos pelos seus inimigos, Glucksmann e companhia, o descalabro, o fim dà hegemonia cultural da Esquerda. Isto mostra ao menos até que ponto era natural — e talvez demasiado óbvio e fácil — desde os bons tempos de Michelet, de Hugo, de Tolstoi, de Brecht, de Thomas Mann, até aos de Malraux, Sartre ou Gunter Grass, para não falar dos nossos Herculano, Antero, Eça, Oliveira Martins ou Sérgio — não ser de Direita, tão flagrante era então a injustiça social, a arrogância de casta ou de classe, a loucura objectiva e guerreira da classe dirigente da alta burguesia europeia. Mesmo, os grandes homens de «Direita» na ordem política, os Chateaubriand, os Balzac e os Proust, eram de «Esquerda» na sua visão impiedosa da sociedade inumana que os cercava. As excepções contam-se pelos dedos. Alguma vez teria de chegar o tempo em que homens de Esquerda se arrependeriam de o ser e, depois de algum namoro político com a Direita, acabariam por ser os dignos faróis de uma nova cultura apóstata na demolição da mitologia cultural de esquerda e, sobretudo, da de tradição socialista. Estes últimos cinco anos, naquela mesma pátria que foi a da origem do ideário socialista e terra de eleição das primeiras tentativas de inscrição prática na vida social — 1848, comuna, leis sociais de 1936, nacionalizações do pós-guerra — assistimos a uma autêntica contra-revolução política e cultural, a uma demolição que se deseja irreversível, não só de uma certa mitologia cultural de Esquerda, mas de muitas conquistas mais exemplares e de irradiação universal que desde há um século traziam a marca inequívoca do combate ideológico e social da Esquerda. Escola laica gratuita, ensino secundário e universitário acessível, em princípio, a todos, conquistas sindicais e sociais que pareciam irreversíveis, tudo tem sido passado pelo crivo e pela crítica eufórica da era do liberalismo-modelo USA, de súbito revestido das cores adoráveis da liberdade, da defesa do indivíduo e da sua criatividade em todos os domínios, ficando para a Esquerda o culto fúnebre do Estado como asilo 14 EDUARDO LOURENÇO ou caixa de previdência contra os riscos de uma existência digna de ser vivida, máquina niveladora por baixo, Estado Providência pago em bilhetes de prisão voluntária, resumo e explicação para uma sociedade decadente que, depois de ter dominado e explorado o universo, quer dormir nos lençóis do baixo-império da droga na rua, ou da cultura como droga de luxo obrigatório e álibi supremo da irresponsabilidade social e da total permissividade. Sejamos justos: algumas destas críticas a um modelo de sociedade, mal ou bem designado de social-democrata ou coberto com a referência da Esquerda, não são totalmente infundadas. Por generosidade excessiva, por utopismo, a esquerda tem muitas vezes tendência a imaginar que pode ir de Wagon-lit para um futuro com as cores do Socialismo. Durante um século, a Esquerda como cultura teve tendência a identificar-se com a História, a pensar essa história sua como destino transparente e óbvio da humanidade e a conviver com ela como se fosse sua amante complacente ou até criada de quarto. Não é de todo mau que acordemos deste erotismo histórico-ideológico, desta ilusão de que é natural e fácil ser esquerda, quando o contrário é que é exacto: é difícil, não é natural, e por não ser nem fácil nem natural é que a Esquerda não é a filha, nem a amante querida da História, mas a luta, mais que milenária, para que a História que não existe senão como sombra das lutas e dos combates humanos se torne cada vez mais humana. É a Direita nas suas históricas versões que ê natural, ou que se pensa como conforme à Natureza, como expressão de uma vontade de poderio, de triunfo da força sobre a fraqueza, como fazendo corpo com os privilégios de toda a espécie, sejam de nascimento, de fortuna, de casta, de raça, de cor — ou mesmo de valores positivos como os da inteligência, do talento, do génio ou da beleza, mas assumidos e vividos como formas de privilégio social e linha de separação da humanidade entre si. A Direita, nos seus expoentes clássicos, fez sempre o processo do ressentimento, da inveja, da tentativa de inversão da desigualdade natural dos homens, mas é a Direita o lugar histórico da divisão humana, é ela a instauradora dos antagonismos e das barreiras, o lugar do poder por direito divino ou seus avatares humanos, é ela a guerra instalada no corpo social e é contra essa pretensão que a Esquerda se insurgiu ao longo dos séculos, demolindo sempre que pôde essas barreiras puramente históricas, nada naturais, que a humanidade, na sua dupla, face, instituiu dentro de si. Se é a isto que se chama Utopia, a Esquerda é utópica e só poderá deixar de o ser quando a Direita deixar de se considerar como a natureza social, o natural da sociedade. 15 A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA Ao lado da boa consciência ou da mitologia cultural que a Esquerda efectivamente gerou à medida que o seu combate cultural e político modificava a realidade social e a face da História, a da Direita é uma montanha maciça, inexpugnável. No fundo, o que realmente separa, histórica, ideológica, política e metafisicamente, a Direita da Esquerda — apesar dos esforços que a Esquerda, e a Esquerda só, fez ao longo dos séculos para unir em si como um destino, único a História humana — é que a Direita é uma realidade sociológica, uma expressão histórica e política da humanidade que não se pode realmente pensar sem pôr em causa os fundamentos da sua boa consciência e da sua legitimidade. Por isso foram vãos e gorados todos os esforços, todas as astúcias, mesmo as mais sofisticadas, para outorgar uma dignidade teórica, uma respeitabilidade social, à nova cultura, ao novo discurso neodireitista, pseudoliberal, que imagina reenviar para um passado sem futuro plausível, a história da Esquerda, e a Esquerda como História. O único inimigo que a Esquerda tem, nas suas diversas modalidades, é ela mesma enquanto inconsequente, enquanto esquecimento da sua própria aventura, que nunca foi fácil nem mãe de facilidades, mas exigente, dura, contraditória, enigmática, até porque a Direita, quer dizer, a tentação do poderio, a ilusão de deter com a verdade que tem a Verdade toda, com a cultura que é, o monopólio da cultura, está também aninhada no seu coração. A luta pela Esquerda é também a luta contra essa Direita em nós. A outra, a que nos combate por ser essa a sua fatalidade, por mais sinistra ou sedutora que se apresente, nem sequer devia ser o objecto principal das nossas ocupações e preocupações. Nesse sentido, e profundamente, como da Igreja disse um dia João XXIII, a Esquerda não tem inimigos. Ela é o lugar histórico da tolerância, a vitória lenta mas constante do diálogo imposto aos que não querem ou não precisam de dialogar, ela é ou deve ser o lugar da máxima transparência de que uma sociedade é capaz e se, por graça dos deuses, aqueles que se dizem de Direita ou são de Direita partilham deste espaço de diálogo, são também, saibam-no ou não, povo de Esquerda. Mas isso é problema dela e não nosso. O nosso, aqui, de homens assumidamente de Esquerda democrática, num tempo na aparência pouco propício, é o de lembrar que esse espaço de diálogo intra-humano é o da esperança, não apenas meramente conjectural e política, mas de uma esperança histórica, de uma solução plausível para um mundo de paz armado até às estrelas, para uma humanidade dividida em duas pela presença numa delas 16 EDUARDO LOURENÇO dos espectros medievais da fome, da ignorância e da repressão, e na outra pelo triunfo de uma Disneylândia de pacotilha, onde já não distinguimos com um mínimo de senso o que nos perde e o que nos salva. O que se espera de um modesto encontro como o nosso, de um país modesto mas herdeiro de grande passado não é que salvemos o mundo que parece ninguém estar em condições de salvar. O que se espera é que pensemos e repensemos a Esquerda portuguesa na sua virtualidade dialogante e conciliadora, unificandonos por dentro antes de nos oferecer desarmados a unanimismos sem unidade possível nem desejável. Se aqui recomeçamos esse trabalho de Penélope, herdeiro do mais antigo e sempre inacabado combate do povo de Esquerda através da História, ou simplesmente do Povo na sua definição de simples e quotidiana humanidade em busca de si mesma, não teremos perdido nem o nosso tempo nem o tempo de todos. 17 República Moderna e Responsabilidade Social Guilherme d’Oliveira Martins T ornou-se quase um lugar-comum falar da crise do modelo social-democrata e do socialismo democrático. Já em 1989 o tema veio à baila e agora, depois da crise de 2008, volta a falar-se disso. Do que se trata é de cair na simplificação sobre o Estado democrático moderno, a partir da ideia errónea segundo a qual o Estado-Providência estaria esgotado e sem capacidade de regerneração. É verdade que há uma crise do Estado-Providência, já diagnosticada há muito por Pierre Rosanvallon e por Jurgen Habermas, no entanto essa situação, decorrente da evolução demográfica do ocidente e da insustentabilidade dos sistemas universalistas de cobertura dos riscos sociais não pode dar lugar à desistência relativamente às obrigações sociais ante o risco do fundamentalismo do mercado e da ilusão contabilística que culminou no “crash” do Outono de 2008. Há novas exigências que importa considerar e que obrigam a que o Estado social contemporâneo se reforme a partir da recomposição do Estado-Providência em ligação como o novo conceito de Sociedade-Providência. Os acontecimentos recentes no mundo da economia e das finanças obrigam a que tiremos lições no campo da organização da sociedade. Depois dos “trinta gloriosos anos” (1945-75) e da transição dos anos oitenta e noventa dominada pela massificação e popularização da revolução tecnológica e pela ocorrência da chamada “bolha imobiliária”, estamos chegados a um momento em que é indispensável repensar os fundamentos das economias, sem a tentação de recorrer a receitas uniformizadas nem ao erro de persistir nas soluções que conduziram à grave situação a que chegámos. O fundamentalismo do mercado revela-se incapaz de responder às exigências do desenvolvimento humano. O estatismo centralizado e burocrático não permite a eficiência económica e social e a equidade. Os modelos mistos, que se multiplicam, apresentam tal variedade de soluções, que, só por si, não constituem respostas aos problemas actuais – pelo que se torna necessário aproveitar a sua plasticidade 19 REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL para que correspondam à complexidade das novas situações. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, as mudanças a introduzir no contrato social obrigam a uma tomada de consciência sobre a importância da coesão económica, social e territorial, da confiança e do capital social, que terão de ser salvaguardados, através da consideração das circunstâncias que mudam e dos novos factores que a cada passo se manifestam. No Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e Exclusão Social (2010) estas questões têm de ser pensadas, não isolando o tema da pobreza e da exclusão, mas integrando-o na concepção e concretização das políticas públicas e das respostas sociais. Nas sociedades europeias desenvolvidas, o Estado Social é afectado pela evolução demográfica, pela descida das taxas de natalidade, pelo aumento da esperança de vida, pelo envelhecimento da população e pela alteração da relação entre os contribuintes e os beneficiários dos sistemas de cobertura de riscos sociais. Nas sociedades menos desenvolvidas as necessidades fundamentais não se encontram satisfeitas e a pobreza, a fome, a doença e a ignorância pesam tragicamente. Como afirma o próprio Papa Bento XVI: «Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua «o escândalo de desproporções revoltantes». Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários.» (Caritas in Veritate, 22). Se lermos autores como Norberto Bobbio, John Rawls, Michael Walzer e Jurgen Habermas depressa percebemos que este «escândalo de desproporções revoltantes» obriga à acção no sentido da democracia e da justiça. O fenómeno da fragmentação social, que é transversal, determina a diferenciação e a complexidade dos problemas da sociedade com raízes diversificadas – o desemprego estrutural nas faixas etárias mais elevadas a que 20 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS se soma o desemprego dos mais jovens, com especial incidência para os que têm menores qualificações. A quebra das taxas de poupança (muito significativa em Portugal) e o aumento do endividamento geram fragilidades no desenvolvimento das economias e nas perspectivas de crescimento potencial. O mercado, só por si, e a lógica produtivista não têm respostas para estes novos problemas. As economias dos serviços não geram os recursos indispensáveis para a sustentabilidade do desenvolvimento. O aumento das desigualdades e o agravamento das disparidades sociais exigem a adopção de medidas que reforcem a justiça distributiva – ligando a livre iniciativa e a responsabilidade social. As economias mistas têm de recusar, a um tempo, o excesso do centralismo do Estado e a ilusão da concorrência mercantil – a propriedade privada, a livre iniciativa económica, o respeito pelo mercado têm de ser completados pela iniciativa social e pela economia solidária, que terão de encontrar instrumentos que favoreçam a criação, a inovação e a criatividade. A crise do Estado-providência, a um tempo financeira, social e política, obriga a encontrar, através da diferenciação positiva, mecanismos de repartição que garantam a igualdade de oportunidades e a correcção das desigualdades. A lógica universalista indiferenciada não permite corresponder às situações reais de carência. A pobreza e a exclusão social obrigam à procura das novas situações de injustiça, uma vez que a sociedade não descobre o fenómeno espontaneamente. Daí a exigência de repensar o Estado Social, a Economia Social e a Responsabilidade Partilhada. Mais iniciativa social é condição necessária para responder às dificuldades, à pobreza e à exclusão hoje sentidas. Como poderemos ficar indiferentes à persistência da grande pobreza mundial, aos mecanismos injustos de apropriação da riqueza produzida, à perda ou ao enfraquecimento dos valores humanos básicos de verdade, lealdade nos negócios, solidariedade, cooperação, serviço à colectividade ou defesa dos mais fracos? Em “La Legitimité Démocratique”, Pierre Rosanvallon (Seuil, 2008) põe-nos perante os problemas suscitados pela institucionalização da democracia na sociedade contemporânea. Mais do que o tradicional dilema entre democracia representativa e democracia participativa, Rosanvallon analisa a sociedade complexa dos dias de hoje, à luz das mudanças ocorridas nas últimas décadas, pondo sobre a mesa as questões suscitadas pela legitimação 21 REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL cidadã. O governo de maioria deve ser prosaicamente compreendido como uma «convenção empírica». E essa convenção repousa numa legitimidade imperfeita, que precisa de ser confrontada com outras formas de legitimação democrática. Se há dualismo nas instituições (o consenso e o conflito), tem de haver também dois pólos estruturantes da democracia como governo. As reformas estruturais devem buscar o consenso e a durabilidade. De facto, importa compatibilizar o geral e o particular, o global e o local – de um lado, a democracia das decisões (decorrente da legitimidade do voto) e de outro a democracia das condutas (ligada à legitimidade do exercício e à cidadania). E é assim que a sociedade dos indivíduos livres e iguais tem de se articular com um regime de soberania colectiva, a partir da clarificação da democracia das decisões e da democracia das condutas. A democracia reúne, desse modo, as múltiplas histórias de liberdade, de emancipação e de autonomia, que marcaram a experiência humana. Essas experiências são fundamentais, em cada um dos seus contributos e na sua diversidade. Não bastam fórmulas vagas (poder do povo, soberania popular) nem referências a uma oposição entre poder colectivo e garantia das liberdades pessoais. É fundamental perceber a complexidade social, e ver a democracia como ordem de uma actividade cívica, de um regime político, de uma forma de sociedade e de um modo de governo. E o certo é que essa relação estabelece-se de modo separado, concorrente ou simultâneo. Ora, a complexidade social obriga a integrar estes diferentes aspectos a fim de que a legitimação se aperfeiçoe em nome da representatividade, da participação, da confiança, da coesão e da eficiência. Os mecanismos públicos são importantes, mas não podem ser exclusivamente estatais – Estado e sociedade civil precisam de se completar, através de uma ideia renovada de “serviço público” não confundível com “serviço estatal” nem redutível à opção Estado / mercado. A noção de “serviço público” não é confundível com serviço do Estado – pelo que o Estado democrático e de direito deve fortalecer-se e consolidar-se através das iniciativas sociais autónomas e voluntárias. A justiça distributiva tem de se ligar à ideia de diferenciação positiva – uma vez que quem é mais carenciado deve ser mais apoiado, devendo a ideia de partilha de recursos prevalecer sobre o consumo egoísta e o desperdício. As desigualdades sociais, a pobreza e a exclusão devem ser combatidas através de instrumentos públicos e de iniciativas solidárias, do sistema fiscal, da subsidiariedade, da participação activa dos cidadãos – quer 22 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS para defesa dos recursos disponíveis quer para salvaguarda da justiça, da coesão e da confiança. O valor da poupança e do trabalho têm de ser enaltecidos e incentivados – por contraponto ao endividamento e em defesa da equidade entre gerações. A luta contra a pobreza e a exclusão social obriga ao primado do cuidado dos outros, que nos leva do mundo dos sócios aos próximos, na expressão de Paul Ricoeur, factor fundamental na economia social moderna. Etimologicamente a palavra crise significa uma encruzilhada de situações que abrem oportunidades. Hipócrates falava da crise como o momento em que o enfermo vencia a doença ou era vencido por ela. É indispensável compreender-se que precisamos de usar a inteligência e a capacidade criadora para superar as dificuldades perante as quais nos encontramos. Se a situação que vivemos se deve à prevalência da ilusão contabilística sobre a economia real, é tempo de ligar as estratégias de inteligência e de criação à verdade. Não poderemos continuar a usar meios que não temos nem a comprometer a equidade entre gerações. Daí que a responsabilidade social das empresas e da vida económica tenha de entrar na ordem do dia como elemento prioritário. A coesão e a confiança, o rigor e a sustentabilidade têm de ocupar o lugar dos resultados fictícios. As pessoas e a sua dignidade, a justa distribuição de recursos e a partilha de responsabilidades têm de se tornar factores essenciais. Eis por que razão a responsabilidade social não pode ser vista como uma abstracção, mas como um sinal de que a economia é feita para as pessoas. Em suma, a economia moderna não pode basear-se apenas na noção de ganho individual ilimitado. Se é verdade que o incentivo da contrapartida material tem de existir na actividade económica, o certo é que a melhor recompensa é de carácter pessoal – ligada à realização humana e à entre-ajuda. Liberdade e justiça ligam-se, assim, intimamente. A ideia de realização humana pressupõe equilíbrio entre os aspectos materiais e espirituais a considerar nos resultados obtidos. Se é certo que a utilidade obtida para cada um tem um peso significativo, a realidade é que há sempre uma relação biunívoca entre o dar e o receber, que conduz à entre-ajuda e à solidariedade. Em tempo de crise, quando há maiores carências e dificuldades, a lógica da competição e da concorrência é insuficiente, uma vez que, nesses 23 REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL momentos, se exigem estratégias cooperativas que considerem os sujeitos mais frágeis. O pensamento de António Sérgio ganha uma nova actualidade uma vez que o Estado moderno e o novo contrato social tem de ser mais claramente cooperativo. A capacidade inovadora da sociedade perante novos desafios exigentes obriga à ligação forte entre a iniciativa individual e o espírito de equipa, entre a liberdade e a cooperação. A necessidade aguça o engenho. Assim, nas estratégias sociais inovadoras somos obrigados a uma sábia coordenação entre a competitividade e o espírito de risco, por um lado, e o reforço da solidariedade voluntária e da cooperação activa, por outro. A ideia de justiça exige, deste modo, a diferenciação e a responsabilidade: a diferenciação, uma vez que o que é diferente tem de ser tratado diversamente, cabendo a cada um o que lhe é devido (diferenciação positiva), e a responsabilidade, uma vez que tem de haver capacidade de resposta perante os outros de modo a defender os interesses e valores comuns. As ideias de Michael Walzer de esferas da justiça e de justiça complexa põem estes temas na ordem do dia, recusando a lógica formalista da justiça distributiva e exigindo uma mais efectiva responsabilidade e uma maior participação dos cidadãos. Entende-se, deste modo, por que razão Norberto Bobbio insiste na importância da igualdade, como contrapartida natural e necessária da liberdade. Nesta ordem de ideias se a responsabilidade social não for exercida no seio das actividades económicas, a coesão e a confiança (de que fala Robert Putnam, a propósito do “capital social”) são postas em causa – o que obriga a colocar a dignidade humana e o bem comum no centro das preocupações de todos e no horizonte do desenvolvimento humano. Eis por que motivo a sustentabilidade económica e financeira, o rigor e a prestação de contas, a salvaguarda de qualidade de vida e o equilíbrio ambiental, a preservação do emprego, a realização de investimentos reprodutivos e a consideração da ciência e da cultura como factores de criação não são abstracções e fazem parte da responsabilidade social do Estado, da sociedade e da economia. É, deste modo, o desenvolvimento humano, como noção qualitativa, que tem de estar em causa como encruzilhada da disciplina, do rigor, da criatividade, da inovação e da justiça. François Perroux falava, por isso, no primado da pessoa humana e da sua dignidade como pedra angular de uma economia livre, igual e justa. A responsabilidade social liga-se, pois, à justiça na distribuição de recursos, 24 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS mas também à verdade na prestação de contas, ao emprego, à formação, ao investimento reprodutivo e à dignidade da pessoa humana – elemento essencial de uma economia em que o dom e a troca se articulem criativamente. Muito sucintamente, e perante o que acaba de ser dito, importa tirar sete conclusões da reflexão aqui formulada, em que temos vindo a insistir: (i) O Estado moderno deixou de ter condições para garantir a cobertura integral de compromissos sociais para o futuro, correspondentes a um sistema universalista e exclusivamente assente num sistema não contributivo e de repartição; (ii) A crise do Estado-Providência obriga a introduzir nos sistemas de cobertura de riscos sociais correcções no sentido da consagração do princípio da diferenciação positiva (tratando diferentemente o que é diferente e centrando-se na resposta necessária aos mais carenciados) e da adequação entre os compromissos sociais e a evolução social registada (p. ex. esperança média de vida); (iii) Só há resposta à crise do Estado-Providência, tornando a democracia um “mundo comum” que reconheça quais os valores partilhados, que permitam regular conflitos e evitar as “guerras civis”. Daí a distinção necessária entre instituições de consenso e de conflito – para que se possa abrir caminho à consideração de equilíbrio entre a regulação social imediata e a criação de condições duradouras aptas a favorecer a coesão; (iv) As mudanças estruturais no sentido da diferenciação positiva e da justiça plural e complexa obrigam à adopção de consensos políticos duradouros, envolvendo governos e oposições – assentes na subsidiariedade (resolver os problemas o mais próximo possível dos cidadãos), na liberdade, na coesão, na confiança, na sustentabilidade e na igualdade; (v) O Estado moderno tem de se basear na liberdade igual e na igualdade livre, de modo a superar as tensões entre liberdade e igualdade e entre igualdade e diferença – a igualdade de oportunidades tem, pois, de ser corrigida momento a momento, de modo a que a justiça realizada não seja puramente formal; (vi) Ao Estado-Providência do pós-guerra temos de contrapor a ideia de Sociedade-Providência, em que a noção de serviço público tem de deixar de se confundir com serviço estatal – o moderno serviço público tem de envolver, além do Estado democrático, a sociedade civil, a solidariedade voluntária e as instituições de cidadania, voluntariado e cooperação. A subsidiariedade só funcionará de facto se o serviço público se tornar serviço da sociedade toda; (vii) A sustentabilidade do Estado democrático contemporâneo exige, deste modo, maior partilha de 25 REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL recursos e responsabilidades em torno da ideia de serviço público, enquanto serviço das pessoas. O povo eleitoral, o povo social e o povo-princípio coexistem e completam-se, ora porque votam, ora porque vivem, ora porque afirmam a igualdade jurídica e cívica. Impõe-se, assim, favorecer a expressão de cada um desses domínios. 26 Novas e Velhas Dimensões de Conflito Político André Freire A importância da divisão entre esquerda e direita na política de massas Desde a Revolução Francesa que a divisão entre esquerda e direita tem uma importância fundamental na moderna política de massas, sobretudo na Europa Continental, já que no universo anglo-saxónico a divisão liberal-conservador é mais comum e apenas durante a segunda metade do século XX aquela outra terá ganho maior difusão1. Desde a Revolução Francesa, portanto, que a divisão entre esquerda e direita funciona como um meio de classificação das ideologias, permitindo reduzir a complexidade do universo político (Fuchs e Klingemann, 1990, p. 205; Luhmann, 1982) e, por isso, resultando como um mecanismo de redução de custos na recolha e processamento de informação, bem como na tomada de decisões. Adicionalmente, funciona como um código na comunicação política. Apesar de todas as teses sobre o “fim da ideologia” (Bell, 1960; Lipset, 1981; etc.), sobre o “fim da história” (Fukuyama, 1989 e 1992), sobre uma certa superação da divisão entre esquerda e direita (Giddens, 1994), a verdade é que estas mesmas teses se revestem de um carácter ideológico e, pouco depois de serem formuladas foram sucedidas pelo aparecimento de novas formas ideológicas ou pela acrescida saliência de ‘velhas’ ideologias (Heywood, 2003, pp. 319-323; Eatwell, 2003a, pp. 279-290; Fernandes, 2007; Callinicos, 2002, pp. 93 e seguintes; Held e McGrew, 2002, pp. 98-117; Rodríguez-Araujo, 2004, pp. 190 e seguintes; Tormey, 2004, especialmente pp. 38 e seguintes). Adicionalmente, vários estudos têm documentado a importância crescente da posição dos eleitores na escala esquerda-direita enquanto factor explicativo da sua opção de voto (Gunther e Montero, 2001, pp. 124-126; 1 Nas quatro primeiras secções deste artigo retomo parte das análises desenvolvidas em Freire, 2006 e 2001. 27 NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO Franklin et al, 1992b; Eijk et al, 2005; Freire, 2006a, 2008, 2009a). Tendo em conta o tema do dossiê deste número 69 da Finisterra, o qual se propõe abordar o tema do “socialismo democrático perante o liberalismo social”, pareceu-nos pertinente abordar a questão das velhas e novas dimensões do conflito político, seja em termos de temas, seja em termos de bases sociais. Assim, na primeira secção do artigo analisamos as diversas perspectivas e significados associados à divisão entre esquerda e direita na Europa. Na secção subsequente abordamos os correlatos da divisão esquerda e direita em termos de clivagens, nomeadamente em termos da chamada ‘velha’ e ‘nova política’. Terminamos com breves notas conclusivas. Raízes históricas da divisão entre esquerda e direita Em termos históricos, a divisão entre esquerda e direita tem a sua origem na Revolução Francesa de 1789 (Laponce, 1981, pp. 47-68; Eatwell, 1992, pp. 32-37; Laver e Hunt, 1992, pp. 11-15). De acordo com Eatwell (1992, pp. 33-34), no contexto imediato à Revolução Francesa o significado substantivo da divisão entre direita e esquerda concretizava-se em três áreas fundamentais. Em primeiro lugar, no domínio político a primeira estava associada à defesa da monarquia absoluta, enquanto que a segunda defendia uma representação política baseada no sufrágio igual e universal; esta tendia ainda a ser republicana e não monárquica. Segundo, em matéria económica a direita defendia a ordem feudal e os monopólios governamentais, ao passo que o pólo oposto se posicionava como defensor do mercado livre, ainda que aceitando a acção governamental para defender os pobres. Finalmente, na arena social a direita defendia o papel da Igreja e, mais geralmente, da autoridade e da tradição; nesta matéria, a esquerda tendia a ser secular, por vezes até ateísta, e colocava a razão e a expressão individuais acima da crença religiosa e do dever. Na perspectiva de Eatwell (1992, pp. 34-37), a utilização deste instrumento de simplificação do universo da política coloca quatro problemas fundamentais. A primeira questão, surgida logo na França de finais do século XIX, era a grande diversidade interna dos grupos e movimentos classificados como sendo de direita. Um segundo problema está relacionado com o significado diverso daquela clivagem política nos diferentes países. Uma terceira 28 ANDRÉ FREIRE questão está relacionada com o grau de difusão deste código enquanto instrumento de comunicação política. Tal instrumento era/é de uso frequente em França e na Alemanha, mas raramente utilizado na Grã-Bretanha ou nos EUA. O quarto problema fundamental com a utilização da dicotomia, ou continuum, esquerda-direita tem a ver com a diversidade das posições em relações aos mesmos temas políticos, em diferentes épocas históricas, assumidas por grupos políticos classificados na mesma área ideológica. Perspectivas “essencialistas” e “plurais” sobre a divisão esquerda-direita No seu estudo sobre a direita, Eatwell (1992, p. 33) define quatro enfoques básicos: uma abordagem histórica; uma visão baseada nas discussões das ciências sociais; uma perspectiva que tenta encontrar uma base filosófica comum às diferentes tendências de direita (e outra para as de esquerda), designada como “modelo filosófico essencialista”; ou um enfoque da direita (e da esquerda) como sendo fundamentalmente plural(is), consistindo mais em “estilos de pensamento surgidos como respostas aos desafios suscitados pelas esquerdas” (pelas direitas). Quanto às perspectivas essencialistas, deve sublinhar-se que todas elas reconhecem a diversidade no seio dos vários grupos de esquerda e de direita. Ou seja, aquilo que as distingue das perspectivas pluralistas é, em certa medida, uma questão de ênfase nos traços comuns às diferentes correntes de cada bloco ideológico. Pelo contrário, as perspectivas pluralistas enfatizam, sobretudo, as diferenças no seio de cada grupo ideológico e, por isso, preferem falar em “direitas” e “esquerdas”. Quadro 1: Conceitos associados com a divisão esquerda-direita de forma consistente Contrastes políticos Contrastes económicos Contrastes religiosos Orientação face ao tempo ESQUERDA DIREITA Igualitária Hierárquica Pobre Rico Livre Pensamento Religião Discontinuidade Continuidade Fonte: Laponce, 1981, p. 119. 29 NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO Laponce (1981) identificou os elementos nucleares e periféricos do sentido da divisão esquerda-direita: à direita, a aceitação das hierarquias sociais e religiosas; à esquerda, a afirmação da igualização das condições de vida através do desafio da dominação de origem divina (“de Deus”) e secular (“do Príncipe”) (Quadro 1). Como traços periféricos da divisão entre direita e esquerda temos: para o primeiro sector político, o passado, o status quo, a livre empresa e os EUA; para a segunda orientação ideológica, o futuro, a mudança, a intervenção do Estado na economia e a URSS. Portanto, daqui ressalta o carácter central da ordem (social, política e religiosa) hierárquica para a definição desta divisão política, ao contrário das questões económicas e relacionadas com o papel do Estado. Bobbio (1994) apontou também os traços fundamentais da divisão esquerda-direita (1994, p. 58). O critério fundamental para distinguir a esquerda da direita é a diferença de atitude dos homens face ao ideal da igualdade (1994, pp. 76). Mas o filósofo italiano adverte que este conceito não é absoluto. Por isso, supõe sempre a resposta a três questões fundamentais: entre quem devem os bens ou os encargos ser repartidos? Quais os bens ou encargos a repartir? Qual o critério usado na repartição? Segundo o autor, as respostas a estas questões podem ser muito variadas e, por isso, o espectro de respostas/ideologias pode ser bastante diverso, seja entre as filosofias mais igualitárias, seja entre as mais inigualitárias: “Os indivíduos podem ser todos, muitos ou poucos, ou um só; os bens a distribuir podem ser direitos, vantagens ou facilidades económicas, posições de poder; os critérios podem ser o mérito, a capacidade, a classe social, o esforço ou outros ainda, e mesmo, em última hipótese, a ausência de qualquer critério, que caracteriza o princípio supremamente igualitário, a que proponho seja dada a designação de «igualitarista»: «o mesmo para todos» (Bobbio, 1994, 77-78).” Para distinguir as várias famílias políticas no seio de cada área ideológica, Bobbio recorre a um critério adicional, “liberdade versus autoridade”, relacionado com a atitude perante os procedimentos democráticos. Este elemento permite diferenciar os extremistas dos moderados em cada campo: na extrema-esquerda estão os movimentos simultaneamente igualitários e autoritários, os jacobinos e seus continuadores; no centro esquerda está 30 ANDRÉ FREIRE o ‘socialismo liberal’ e a social-democracia, simultaneamente igualitária e ‘libertária’; situados nos centro-direita estão os movimentos e doutrinas simultaneamente ‘libertários’ e inigualitários; na extrema-direita situam-se as famílias políticas antiliberais e anti-igualitárias (Bobbio, 1994, pp. 8894, especialmente 93). Quadro 2: Temas essenciais na divisão entre direita e esquerda DIREITA ESQUERDA Pessimismo antropológico Optimismo antropológico Anti-utopismo Utopismo Racionalismo Linearismo evolutivo Organicismo Direito à diferença Igualitarismo Elitismo Democratismo Socialismo Propriedade e anti-economicismo Economicismo Nacionalismo Internacionalismo Humanitarismo Fonte: Pinto, 1996, pp. 30-43. Jaime Nogueira Pinto fez também uma resenha dos traços essenciais da divisão esquerda-direita (Pinto, 1996, p. 30): Quadro 2. Um elemento fundamental de diferenciação reside no optimismo e no pessimismo antropológicos, respectivamente para a esquerda e a direita, princípios dos quais decorrem várias outras características de cada uma das duas famílias. O pessimismo antropológico da direita consiste na recusa da visão de Jean Jacques Rousseau sobre a “bondade natural do homem”, estando esta família política mais próxima da visão de Thomas Hobbes. Ou seja, a direita defende que o estado da natureza seria não uma espécie de paraíso perdido, mas sim uma situação caracterizada pela “luta de todos contra todos”. Daqui decorre a rejeição da ideia sobre a possibilidade de construção racional da sociedade perfeita (utopia), bem como da concepção linear da evolução humana e da crença no progresso (Pinto, 1996, p. 31). Pelo contrário, a esquerda 31 NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO acredita que o “homem é um ser naturalmente bom” e, na senda do racionalismo iluminista, crê nas possibilidades de transformação da razão e acção humanas. Daqui decorrem as crenças na possibilidade de construção de sociedades idealmente perfeitas e justas (igualitárias), bem como na ideia de progresso e de evolução linear da história. Adicionalmente, a direita caracteriza-se por acentuar “a perspectiva hierárquica e elitista de qualquer sociedade e considera a anarquia e o igualitarismo como utopias ou discurso justificativo de oligarquias dominantes que governam sociedades desiguais em nome de tais «fórmulas políticas igualitárias»” (Pinto, 1996, p. 33). Esta família ideológica dá ainda prioridade às comunidades «naturais» sobre o indivíduo: organicismo (Pinto, 1996, p. 32). O contributo de Nogueira Pinto, para além dos méritos associados a uma maior exaustividade na descrição da(s) direita(s) e da(s) esquerda(s), enferma de duas limitações fundamentais. Primeiro, a tentativa de sumariar os elementos essenciais de cada uma das duas famílias políticas apresenta um claro défice de parcimónia. Segundo, é óbvio que muitos dos elementos caracterizam algumas correntes de determinada família ideológica, mas são bastante parciais. São estas e outras contradições internas nas abordagens essencialistas da direita (e da esquerda) que levam Roger Eatwell (1992, pp. 48-59) a defender que a forma mais adequada de entender a natureza da direita (e da esquerda) é considerá-la em termos de “uma variedade de estilos de pensamento” (Eatwell, 1992, p. 60). Este autor vê dois problemas básicos com as abordagens essencialistas. Primeiro, os conceitos usados em representações unilineares ou circulares da competição política são multi-facetados. Segundo, as ideologias são dinâmicas e necessitam de um enquadramento bastante mais complexo do que aquele que é normalmente fornecido pelas representações espaciais da competição política. Apesar das evidentes limitações em termos filosóficos e históricos, a verdade é que, por um lado, as representações espaciais da competição política, sobretudo esquerda-direita, têm um forte poder heurístico, em termos de explicação e predição de atitudes e comportamentos políticos dos eleitores. Por outro lado, vários cientistas sociais têm sublinhado a flexibilidade da escala esquerda-direita para abarcar a multidimensionalidade da competição política (Inglehart e Klingemann, 1976; Laponce, 1981; Inglehart, 1984; Sani e Montero, 1985; Knutsen, 1995a-2000; Freire, 2006a). 32 ANDRÉ FREIRE Clivagens sociais, conflitos políticos e divisão esquerda-direita Em ciências políticas, quando falamos de fontes sociais do conflito político pensamos imediatamente em divisões nas estruturas socioculturais e, sobretudo, em clivagens. As teorias sobre as clivagens remontam fundamentalmente aos trabalhos de Lipset e Rokkan (1967), sobretudo deste último (Rokkan, 1999). Segundo este modelo, há quatro linhas fundamentais de clivagem, extensíveis à generalidade das democracias Ocidentais, sobretudo as europeias, as quais estão relacionadas com duas grandes revoluções. O primeiro conflito político tem a sua origem na “revolução nacional” e teve depois a sua tradução naquilo a que Lipset e Rokkan (1967) chamaram a clivagem Estado-Igreja, ou religiosidade-secularização. Trata-se de uma clivagem cujo impacto ainda hoje se faz sentir nas democracias modernas, embora cada vez menos devido às tendências de secularização. Opõe geralmente as populações mais integradas no universo religioso aos indivíduos mais secularizados. Geralmente, as primeiras tendem a posicionar-se à direita no espectro ideológico e as segundas à esquerda, seja em termos ideológicos estritos seja em termos de sentido de voto (Freire, 2001, pp. 24-40). A “revolução nacional” esteve na origem de uma outra clivagem, entre o “centro” e a “periferia” (Lipset e Rokkan, 1967b, pp. 13-14 e 23-43). Esta clivagem resultou de uma reacção das periferias às medidas tendentes à uniformização impostas pelos “construtores nacionais”. Ou seja, as minorias linguísticas e as populações culturalmente ameaçadas pela uniformização estatal opuseram-se às elites nacionais dominantes gerando clivagens territoriais, muitas vezes com uma base étnico-cultural. Porém, por um lado, na maioria dos países ocidentais esta dimensão de clivagem é actualmente pouco ou nada saliente, sobretudo perante as outras três clivagens, embora não deixe de ter relevo nalgumas sociedades (Franklin et al, 1992b). Por outro lado, nos países onde ela é politicamente saliente, usualmente corta transversalmente a divisão entre esquerda e direita. A revolução industrial esteve na origem de outros dois tipos de clivagens: urbano-rural e capital-trabalho. A defesa dos interesses rurais deu algumas vezes origem à formação de partidos agrários, especialmente na Escandinávia (Lane e Ersson, 1996: 263). Historicamente, esta clivagem encontrou expressão na oposição “(...) entre os partidos conservadores-agrários e os liberais-radicais” (Lipset e Rokkan, 1967: 189). 33 NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO A clivagem capital-trabalho opôs as populações de assalariados, quer na agricultura quer na indústria, aos proprietários e aos patrões: aqueles lutavam contra a insegurança dos contratos, as baixas remunerações e a alienação sociocultural a que estes os submetiam (Lipset e Rokkan, 1967, pp. 21). Desta divisão surgiram os sindicatos nacionais e os partidos socialistas e comunistas, que combatiam os partidos conservadores e liberais (Lipset e Rokkan, 1967, pp. 21-22 e 46-50). Este conflito consubstancia-se principalmente em duas ideias chave, nomeadamente em matéria de políticas económicas. Primeiro, à direita, a forte valorização do mercado; dela decorre a defesa de um Estado pouco interventor nas esferas económica e social, bem como a oposição às noções de igualdade social e económica. Segundo, à esquerda, o sistema de valores baseia-se, sobretudo, na concepção de que o Estado deve ter um papel activo na prossecução de certos objectivos sociais, nomeadamente na segurança económica dos cidadãos, na solidariedade social e na igualização dos rendimentos, das condições de vida e das oportunidades entre as classes e os estratos sociais (Knutsen, 1995a, pp. 160-162). Quadro 3: Velha esquerda e velha direita versus temas centrais do conflito político e base social de apoio preferencial VELHOS TEMAS/ ”VELHA POLÍTICA” VELHA ESQUERDA VELHA DIREITA Temas Socioeconómicos Igualdade de oportunidades e condições de vida; papel central do Estado enquanto instrumento de igualização das condições e oportunidades de vida Forte valorização do mercado; defesa de um Estado pouco interventor; oposição às noções de igualdade social e económica Temas morais e religiosos Crenças mais secularizadas: crentes na capacidade transformadora da razão e acção humanas Crença numa ordenação natural do mundo com origem divina; deferência face à ordem social existente e às autoridades seculares e religiosas Bases sociais Indivíduos de baixo estatuto socioeconómico e secularizados Indivíduos de médio e elevado estatuto socioeconómico e com um maior nível de integração no universo religioso Fonte: elaboração do autor 34 ANDRÉ FREIRE Para uma síntese das principais características da velha esquerda e da velha direita, isto é, daquelas famílias políticas cujos alinhamentos assentavam primordialmente nas chamadas “velhas clivagens” sociais, ver Quadro 3. Desde os anos 1970 que vários autores, nomeadamente Inglehart, têm defendido o aparecimento de um novo eixo de conflito político entre valores materialistas e valores pós materialistas, ou, mais recentemente, entre valores modernos e pós-modernos (Inglehart, 1997; Freire, 2001, capítulo 4). Outros autores têm contestado a teoria de Inglehart, nomeadamente a saliência que este autor dá à divisão entre valores materialistas e pós-materialistas, e têm defendido que a divisão fundamental associada à “nova política” é entre valores “libertários” e “autoritários” (Flanagan, 1987; Kitschelt, 1988, 1994 e 1995; ver também Ignazi, 1992, e Flanagan e Lee, 2003). Segundo a teoria da mudança de valores de Ronald Inglehart (19711997), os indivíduos socializados em ambientes de relativa escassez material, ténues redes de protecção social e significativa insegurança física (guerras, etc.) valorizam mais o crescimento económico e a segurança física e material (valores materialistas). Pelo contrário, os cidadãos criados em ambientes de paz, extensas redes de protecção social e relativa abundância de bens materiais, dão maior importância relativa a questões como a qualidade de vida, a protecção do ambiente, a expressão e realização individuais, e a uma maior participação dos cidadãos na tomada de decisões nas empresas e nos sistemas políticos (valores pós-materialistas). De acordo com o autor referido, as sociedades industriais avançadas têm conhecido um processo de crescente saliência dos valores pós-materialistas, que atinge sobretudo as gerações mais jovens, mais escolarizadas, pertencentes às “novas classes médias” e oriundas de meios sociais de nível socioeconómico elevado. Estes dois últimos sistemas de valores, materialistas versus pós-materialistas, ou modernos versus pós-modernos (Inglehart, 1997, pp. 74-81), têm implicações nos vários domínios da vida. Por exemplo, no domínio da política os valores associados a ambientes inseguros (insegurança física e escassez relativa a nível material) tendem a enfatizar a necessidade de líderes fortes, de ordem/autoridade nas esferas social e política, bem como a gerar uma certa tendência para a intolerância perante os estrangeiros e imigrantes (xenofobia), os quais são vistos como (mais) uma ameaça à segurança material e à ordem social. Pelo contrário, as condições de segurança (sobrevivência 35 NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO adquirida: bem estar material e paz) em que são criadas as gerações nascidas nas sociedades pós-modernas (pós industriais) tendem a gerar uma certa desconfiança e criticismo perante as autoridades políticas. Ou seja, de acordo com esta perspectiva, cada vez mais os cidadãos comuns socializados nestes ambientes tenderão a assumir-se como sujeitos activos nos processos de tomada de decisões políticas. Os valores pós-modernos estão também associados a uma tolerância maior perante os estrangeiros (imigrantes). Para Flanagan, aquilo que ele designa como atitudes “libertárias” e outros chamam valores pós-materialistas são duas coisas “essencialmente idênticas” (1987, p. 1304). Nesta designação incluem-se itens que dão conta dos seguintes temas: ênfase na liberdade pessoal e política; maior participação dos cidadãos (no governo, na sociedade, no emprego); igualdade; tolerância face às minorias (e opiniões divergentes); abertura a novas ideias e estilos de vida; protecção ambiental e importância das questões ligadas à qualidade de vida. Para Flanagan, estes temas fazem parte quer da síndrome pós materialista, quer da síndrome “libertário”, embora o autor considere esta última designação como mais apropriada. Quadro 4: Nova esquerda e nova direita versus temas centrais do conflito político e base social de apoio preferencial NOVA ESQUERDA NOVA DIREITA Novos temas/ “nova política” Pacifismo; Ambientalismo; Direitos das mulheres; Igualdade de direitos para maiorias e minorias sexuais; Direitos dos imigrantes; Maior participação dos cidadãos nas decisões políticas e dos trabalhadores na gestão das empresas; Igualdade socioeconómica, mas associada a uma crítica das grandes organizações burocráticas (Estado, etc.);Globalização alternativa: controle dos movimentos de capitais (taxa TOBIN, etc.); imposição de padrões básicos em termos políticos, sociais e ambientais no âmbito do comércio internacional: universalismo Ênfase na ideia de autoridade social e política; Defesa de líderes fortes; Defesa das hierarquias sociais; Atitude xenófoba face aos imigrantes; Defesa de valores tradicionais (contra a liberdade de escolha das mulheres no aborto, contra direitos iguais entre maiorias e minorias sexuais, etc.); Ao contrário da extrema-direita tradicional, que associava autoritarismo com nacionalismo e uma política económica corporativista, a nova direita associa autoritarismo, particularismo étnico e liberalismo económico; Globalização: Proteccionismo e Particularismo étnico. Bases sociais Classe médias, jovens, grupos com maior instrução; indivíduos secularizados ou com baixo nível de integração no universo religioso; minorias étnicas Pequena burguesia, franjas mais inseguras do operariado; indivíduos secularizados ou com baixo nível de integração no universo religioso; maiorias étnicas Fonte: elaboração do autor. 36 ANDRÉ FREIRE É sobretudo na definição do materialismo que as diferenças de Flanagan (1987, pp. 1304-1305) perante Inglehart são mais relevantes. Flanagan concebe o materialismo como estando apenas ligado à importância dada às questões económicas, seja em termos de vida pessoal (emprego bem remunerado, habitação adequada, situação material confortável), seja em termos da sociedade no seu conjunto (economia estável, crescimento económico, estabilidade dos preços). Contudo, nas baterias usadas por Inglehart (1997: apêndices 4 e 5), os indicadores que supostamente medem o materialismo respeitam na verdade mais a orientações “autoritárias”: forças armadas fortes, lei e ordem, combate ao crime. Para Flanagan (1987, p. 1305), as orientações “autoritárias” dizem respeito aos seguintes temas: preocupações com a lei e a ordem; respeito pela autoridade, disciplina e dever; patriotismo e intolerância face às minorias; apoio a valores morais e religiosos tradicionais. Para uma síntese das principais características da nova esquerda e da nova direita, isto é, daquelas famílias políticas cujos alinhamentos em termos assentam primordialmente nas designadas “novas clivagens”, ver Quadro 4. Desde os anos 1970 e 1980 que um conjunto de novos partidos políticos tem acedido à arena eleitoral e parlamentar das democracias ocidentais. Na Europa estão nesta situação os chamados partidos “verdes” ou ecologistas (Lane e Ersson, 1999: 87-88). O aparecimento destes novos partidos está claramente associado à mudança de valores pós materialista (Inglehart, 1997: 241-243), ou no sentido de um maior apoio aos valores libertários (Kitschelt, 1988; March, 2008). Por outro lado, alguns dos pequenos partidos de extrema-esquerda europeus, que já vinham dos anos 50 e 60, são também enquadráveis na clivagem materialismo versus pós materialismo, ou entre valores libertários versus autoritários, pelo menos a partir da sua reconversão ideológica operada nos anos 60 e 70 (Knutsen, 1995: 478). Mas os novos partidos situados na ala esquerda dos sistemas partidários ocidentais não integram apenas temas pacifistas e ambientalistas nas suas plataformas políticas: situando-se numa linha ideológica claramente pós-moderna, pós-materialista ou libertária, conforme as classificações que usemos, muitos destes partidos advogam causas como o direito de as mulheres escolherem livremente a opção do aborto; a igualdade de direitos para os grupos de homossexuais e de lésbicas, face aos heterossexuais; a defesa dos direitos dos 37 NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO imigrantes; a defesa de uma maior participação dos cidadãos nas decisões políticas; a defesa de uma maior participação dos trabalhadores na gestão das empresas (Inglehart, 1997: 237-252; Kitschelt, 1988; March, 2008). Por outro lado, novos partidos de extrema-direita surgiram nos sistemas partidários ocidentais durante os anos 70, 80 e 90: a Frente Nacional, em França; os Partidos do Progresso nos países escandinavos; os Republicanos na RFA; a Frente Nacional e o Vlaams Block, na Bélgica; etc. Também neste caso as clivagens políticas são diversas da direita tradicional: defendendo geralmente políticas económicas liberais, estes partidos caracterizam-se também por uma atitude xenófoba face aos imigrantes e pela defesa de valores tradicionais (contra a liberdade de escolha das mulheres no aborto, contra a igualdade de direitos entre heterossexuais, lésbicas e homossexuais, etc.) (Andersen e Bjorklund, 1990; Kitschelt, 1995; Inglehart, 1997: 237-252). Ao contrário da extrema-direita tradicional, que associava autoritarismo com nacionalismo e uma política económica corporativista, a nova direita associa autoritarismo, particularismo étnico e liberalismo económico. Mais, a proximidade com os padrões neofascistas é inversamente proporcional ao sucesso dos partidos da “nova direita” (Kitschelt, 1995: 277). Portanto, as mudanças nos sistemas partidários das democracias ocidentais, que se tem verificado desde os anos 60 e 70, reflectem uma mudança na agenda política dos eleitorados e, sobretudo, nas suas prioridades valorativas. Estas transformações deram origem não só ao aparecimento de novos partidos, como a uma reorientação ideológica dos partidos tradicionais (Inglehart, 1971; 1977; 1985; 1990: 267-314; 1997: 237-266; Rohrschneider, 1993; Kitschelt, 1995). Em termos ideológicos e de identidades políticas, o novo eixo de polarização política não é exactamente perpendicular à tradicional clivagem esquerda versus direita (Kitschelt, 1995; Inglehart, 1997: 246). Ou seja, em muitos temas políticos há bastante maior proximidade entre a “nova esquerda” e a esquerda tradicional do que entre estas e a direita tradicional e a “nova direita”, nomeadamente em questões como a igualdade e a ênfase na necessidade de mudança da ordem social estabelecida. Em resultado dessas semelhanças, mas não só, o crescimento dos valores pós-materialistas tem também beneficiado a esquerda tradicional (socialistas e sociais-democratas) (Inglehart, 1990: 298-311). 38 ANDRÉ FREIRE Todavia, em termos de base social há uma clara demarcação entre a esquerda tradicional e a “nova esquerda”; tal como há uma muito clara demarcação entre a direita tradicional e a “nova direita”. A esquerda tradicional granjeia os seus maiores apoios eleitorais entre os indivíduos com baixo estatuto socioeconómico; a “nova esquerda” tem os seus constituintes preferenciais nas gerações mais jovens, mais educadas, oriundas das “novas classes médias” e que partilham valores pós materialistas (Inglehart, 1971:1009-1013; 1990: 267-314 e 339-373; 1997: 252-256). A direita tradicional tinha a sua base social preferencial entre os eleitores com mais elevado estatuto socioeconómico, mais próximos do pólo do capital e com maiores níveis de integração religiosa. A “nova direita” apresenta um eleitorado predominantemente captado entre a pequena burguesia tradicional e entre as franjas mais inseguras e xenófobas do operariado, bem como entre as camadas sociais com menor integração religiosa (Andersen e Bjorklund, 1990; Inglehart, 1997: 252-256; Kitschelt, 1995; Ignazi, 1992). Notas conclusivas Analisámos os vários significados da divisão esquerda e direita ao longo do tempo, isto é, ao longo da história (desde 1789) e do espaço (sobretudo dos diferentes países europeus). Deste pequeno excurso conclui-se que as questões da imigração, dos direitos das minorias e da liberalização cultural/ de costumes têm uma especial relevância para a “nova esquerda”, bem como, embora por motivos opostos, para os seus mais directos opositores no outro extremo do espectro ideológico, a “nova direita”. Ou seja, a questão da igualdade de direitos sociais e políticos para as minorias (sexuais, de género, étnicas, imigrantes, etc.) é um tema que entrou no debate político sobretudo por via dos novos movimentos sociais surgidos desde o final dos anos 1960, bem como por via dos partidos da “nova esquerda” que lhes estão geralmente mais próximos (“Verdes”, “partidos da esquerda libertária”, etc.). Foi, pelo menos em parte, como resposta ao «liberalismo cultural» associado a estes movimentos e partidos libertários, nomeadamente ao nível dos estilos de vida, a que alguns chamaram uma “revolução silenciosa na Europa” (Inglehart, 1971), que surgiu a resposta conservadora, isto é, a “nova direita”, (Ignazi, 1992). 39 NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO Mais de três décadas passadas sobre o aparecimento dos primeiros movimentos sociais e dos primeiros partidos associados à “nova esquerda”, as questões que eles propunham (bem como aquelas que, mais tarde, propuseram os seus opositores conservadores, a “nova direita”) entraram claramente no centro do debate político, mesmo para as forças mais tradicionais dos sistemas partidários europeus (ver, por exemplo, Freire, 2007). De qualquer modo, podemos dizer que os novos temas, de entre os quais surgem com particular destaque o da imigração e o da liberalização de costumes, têm pelo menos maior saliência nas agendas da “nova esquerda” (e da “nova direita”) do que da “velha” esquerda e da “velha” direita. Porém, por um lado, seja por influência das novas forças políticas (à esquerda e à direita), seja por causa dos problemas demográficos e de sustentabilidade do Estado Providência na Europa, as questões da imigração têm um lugar central nas agendas de todos os decisores políticos dos diferentes países europeus e da UE, mesmo das forças mais mainstream. Por outro lado, designadamente devido a uma certa convergência da “velha esquerda” socialista e social-democrata com o mainstream neoliberal em matéria de política social e económica, as diferenças entre o centro-esquerda e o centro-direita em matérias socioeconómicas esbateram-se significativamente (embora haja diferenças notáveis nos diferentes países europeus resultantes, entre outras coisas, da força ou fraqueza das ligações ao movimento sindical e da capacidade ou incapacidade de cooperação entre as diferentes esquerdas) – o que não quer dizer que não existam, naturalmente, apenas que se reduziram substancialmente. Daqui surge a necessidade de diferenciação do centro-esquerda face ao centro-direita por via de novos temas: pelo menos parte da ênfase dos partidos socialistas e social-democratas nos novos temas socioculturais (nomeadamente, a nova prioridade dada à igualdade de direitos sociais e políticos para as minorias sexuais, de género, étnicas, imigrantes, etc.) deve-se à procura de novos temas de diferenciação face às direitas. Naturalmente que a pressão dos movimentos sociais associados à defesa dos direitos das minorias (étnicas, sexuais, etc.), bem como a concorrência dos partidos da nova esquerda libertária, são também factores que levaram a esquerda tradicional (partidos socialistas e social-democratas) a dar maior atenção e prioridade a estes novos temas. 40 ANDRÉ FREIRE Referências bibliográficas Andersen, J. G., e T. Bjorklund (1990), “Structural changes and new cleavages: the progress parties in Denmark and Norway”, Acta Sociologica, 33 (3), pp. 195-217. 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Esta crise não surge, porém, por geração espontânea, nem pode ser considerada uma simples consequência da crise das subprime que, iniciada nos Estados Unidos da América de George W.Bush, atingiu a União Europeia, onde as políticas monetaristas do Banco Central Europeu, o predomínio dos governos de direita e a inconsistência política da corrente social liberal dominante dos partidos social-democratas têm contribuído para o seu agravamento. Desde os anos 80 do século passado, as desigualdades sociais não têm parado de aumentar na Europa. Os anos 90 caracterizaram-se por um agravamento ainda maior destas desigualdades em consequência da implosão da União Soviética e da conversão das antigas democracias populares a um modelo de capitalismo liberal sem dimensão social. A ascensão dos novos países emergentes, de que se destaca a China, contribuiu para instaurar uma competição a nível mundial que teve como principal consequência a degradação generalizada das condições de vida e de trabalho e uma pressão sobre os salários das actividades deslocalizáveis nos países mais desenvolvidos. Uma das características fundamentais da liberal democracia é a sua capacidade de institucionalização dos conflitos sociais. Centrada no sufrágio universal, conquista do século XX nos países da Europa e da América do Norte, esta forma de democracia permite, através do pluralismo político, a representação dos interesses divergentes dos grupos e classes sociais que se confrontam na sociedade civil. No entanto, não se pode considerar que o resultado deste confronto seja a formação de um interesse geral que concebe o Estado representativo, de que a liberal democracia é o regime político, como entidade neutra, abstracta que, no fundo, conseguiu superar as fracturas e diferenciações sociais que se reproduzem e alargam na própria sociedade civil. Isto porque o Estado representativo e a liberal democracia têm como fundamento a relação entre trabalho assalariado e 43 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA capital privado e, por conseguinte, reconhecem como elemento necessário da sua reprodução as diferenciações sociais e económicas que resultam da propriedade privada dos meios de produção. Não restam dúvidas de que a estatização da propriedade dos meios de produção nos países que se integravam na esfera do ‘socialismo real’ conduziu a um sistema económico ineficaz que acabou por implodir como um castelo de cartas porque não conseguiu acompanhar a revolução científica e tecnológica do Ocidente capitalista em que um modelo intensivo de acumulação centrado nas tecnologias light da informática substituiu um modelo de crescimento extensivo centrado no trabalho operário tradicional e nas indústrias pesadas. Além do mais, apesar das conquistas importantes que o socialismo de Estado conseguiu no âmbito social – educação, saúde, emprego para todos – situava-se, enquanto regime político, aquém da liberal democracia que vigorava no Ocidente capitalista, já que a condição da liberdade política e intelectual é o pluralismo político e o confronto de argumentos tanto na sociedade civil como nas assembleias parlamentares. A situação do actual prémio Nobel da Paz chinês, Liu Xiaobo, preso por delito de opinião, demonstra que a liberal democracia, como regime político em que me é reconhecido o direito de discordar e criticar o poder instituído, seja directamente através do exercício do meu direito à opinião, seja indirectamente através do partido que me representa ou do movimento social em que me integro, constitui o pressuposto da constituição de uma sociedade em que a liberdade de cada um deve ser a condição da liberdade de todos. E uma coisa é certa: nenhuma democracia dita ‘popular’, nenhum capitalismo de Estado de partido único podem garantir as condições para que todos possam assumir a célebre máxima kantiana na Resposta à questão: o que é o «iluminismo»?: “Sapere aude! tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento”1. As liberdades individuais que a liberal democracia garante aos cidadãos não podem, porém, ser dissociadas da manutenção de um certo nível de igualdade social. O Estado social europeu, que surgiu no período posterior à Segunda Guerra Mundial e começou a declinar na segunda 1 Kant, Emmanuel - La philosophie de l’histoire (opuscules), Denoel/Gonthier, Paris, 1976, p. 46. 44 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA metade dos anos setenta do século passado, expressou um compromisso entre as classes detentoras do poder económico e as classes trabalhadoras, a que não foi seguramente estranho o contexto de competição ideológica entre o capitalismo ocidental e o ‘socialismo real’ de inspiração soviética. Este compromisso introduziu na liberal democracia clássica uma componente de direitos sociais que eram, de certo modo, estranhos à sua natureza. Assim, no plano laboral, difundiram-se os contratos colectivos de trabalho que não se integravam nas concepções liberais clássicas que nunca reconheceram a especificidade de um direito do trabalho baseado no princípio de que as partes contratantes na relação laboral, apesar de formalmente iguais, não detinham o mesmo poder económico. Os trabalhadores desfrutavam também de um conjunto de direitos sociais – a que o liberalismo clássico com a sua concepção de uma sociedade composta de indivíduos-proprietários racionais e livres era também completamente estranha – garantidos pelo Estado: protecção no desemprego, sistemas públicos de saúde e educação, acesso a um sistema público de aposentação baseado no princípio da solidariedade e da repartição. Não podemos dissociar este compromisso ou ‘contrato social’ de três importantes eventos. O primeiro, foi o elevado crescimento económico dos trinta anos em que se construíram os alicerces do Estado social, e que os dois choques petrolíferos de 1973 e 1978 puseram em causa, em consequência de um processo mais profundo que marcou a transição de um modelo de acumulação extensiva para um modelo de acumulação intensiva, centrada nas novas tecnologias da informação e comunicação e no desmantelamento e reestruturação das indústrias pesadas tradicionais que estiveram na origem da fundação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), antepassada da Comunidade Económica Europeia (CEE). O segundo, foi o predomínio do capital industrial sobre o capital financeiro, facto que está indissociavelmente ligado à reconstrução da economia europeia no período posterior à segunda Guerra Mundial, particularmente da indústria, mas que começou a inverter-se na primeira metade dos anos oitenta do século passado com a crise da dívida e a propagação do fenómeno da titularização que teve como principal consequência a desproporção crescente entre o crescimento da capitalização bolsista e o crescimento do PIB das principais economias do G 7. O terceiro foi o fortalecimento das 45 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA associações sindicais que beneficiavam do modelo extensivo de acumulação centrado numa força de trabalho assalariada relativamente homogénea, socialmente concentrada e em que crescia a componente operária herdeira das grandes lutas pelos direitos sociais na União Europeia. Neste contexto social, tornava-se possível a institucionalização da conflitualidade social, apesar do compromisso entre a fracção hegemónica do capital industrial e os trabalhadores assalariados da indústria e uma parte dos trabalhadores dos serviços, particularmente os da Administração Pública – maioritariamente representados pelos sindicatos e pelos partidos socialistas e social-democráticos, com a excepção da Itália, em que se destacava o Partido Comunista Italiano, dirigido por Enrico Berlinguer – deixarem em mãos do capital industrial e dos managers o controlo da organização de trabalho, baseada no modelo taylorista-fordista, e a gestão do processo de acumulação de capital. Em alguns países – caso da França, Grã-Bretanha e Portugal entre 1974 e 1986 – a existência de um sector empresarial do Estado constituía um obstáculo ao predomínio exclusivo do capital privado na economia e na sociedade. Noutros, caso da Alemanha, o consenso entre o SPD e a CDU relativamente a uma economia social de mercado constituía, por sua vez, um obstáculo ao aumento das desigualdades sociais e uma garantia de defesa dos direitos sociais. O último vinténio do século XX assinalou uma alteração radical no relativo equilíbrio de forças sociais que vigorou até meados dos anos 70. Antes de tudo, a hegemonia do capital industrial deu lugar à hegemonia do capital financeiro. Esta transformação teve uma relevante importância estratégica, já que coincidiu com a crise do modelo de acumulação extensiva e com a emergência da terceira revolução científica e tecnológica que, nascida no sector militar, potenciou a expansão meteórica dos mercados financeiros que puderam negociar valores e títulos mobiliários à velocidade da luz graças à ligação em rede das grandes praças financeiras. Trata-se de um fenómeno inédito que permite aos mercados financeiros transformarem-se em protagonistas e alcançarem o estatuto de verdadeiros supra-sujeitos que ditam as suas leis aos Estados e determinam em última instância, como acontece actualmente, a elaboração dos orçamentos de Estado que constituíam no passado um dos principais símbolos da sua soberania económica e política. Esta hegemonia do capital financeiro encontra-se também associada a 46 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA um conjunto de transformações sociais e políticas que distorceram o sentido de uma revolução científico-tecnológica que poderia ter criado condições para uma redução generalizada dos horários de trabalho e para a emancipação da força de trabalho de uma organização laboral centrada na separação entre trabalho intelectual de direcção e trabalho de execução de tarefas rotineiras. Uma primeira transformação de relevante importância é a fragmentação da comunidade de trabalho que o modelo taylorista-fordista, apesar da fractura entre trabalho intelectual e trabalho manual, não tinha posto em causa, pois caracterizava-se fundamentalmente pela constituição de grandes estabelecimentos tanto na esfera da indústria como na esfera dos serviços concentrados num determinado local. O novo modelo flexível instituído pela revolução cibernética permitiu a formação de empresas mais pequenas estruturadas em rede e repartidas por um vasto território. O modelo clássico de integração vertical foi substituído por um modelo de integração horizontal em que os escalões intermédios que configuravam a tradicional empresa taylorista-fordista com a sua organização piramidal cederam o lugar a uma organização de trabalho fortemente polarizada: por um lado, um núcleo duro extremamente exíguo de trabalhadores altamente qualificados e considerados indispensáveis para a valorização do capital; por outro lado, uma legião crescente de trabalhadores com contratos atípicos ou precários – temporários, intermitentes, etc. – que vêem o seu estatuto laboral degradar-se cada vez mais e correm o risco de não conseguirem alcançar durante toda sua vida activa um mínimo de estabilidade. À tradicional contraposição entre capital e trabalho assalariado acrescenta-se uma nova fractura entre uma elite de working rich e um grupo que tende a aumentar cada vez mais de working poor. É de sublinhar ainda que estes não são apenas trabalhadores de baixas qualificações, mas abrangem um cada vez maior número de trabalhadores que, apesar de possuírem qualificações relativamente elevadas, dispõem de uma formação considerada redundante para a valorização do capital e, por conseguinte, vêem degradar-se relativamente as suas condições de existência. Uma segunda transformação que nasceu no mundo anglo-saxónico, mas acabou por generalizar-se foi a ascensão da corporate finance. Característica fundamental desta transformação, foi a ruptura do compromisso social que permitia aos trabalhadores assalariados representados pelos sindicatos 47 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA negociarem com as administrações das grandes sociedades anónimas, representadas pelos managers, a melhoria das condições de trabalho, os níveis salariais, bem como um conjunto de direitos que garantiam uma certa estabilidade de emprego e o acesso à aposentação. Ao contrário do que defendem as teorias tradicionais que se deixam encantar pelas aparências, o novo modelo de organização empresarial transferiu o poder económico para os conselhos de administração, que representam os ‘investidores’, na prática, os grandes accionistas, convertendo os managers, nomeados por estes conselhos, em meros agentes da valorização das acções detidas pelo ‘núcleo duro’ das sociedades anónimas. Uma das funções do manager já não é, como acontecia anteriormente, negociar as condições de trabalho com os sindicatos representativos dos trabalhadores assalariados. A sua função exclusiva consiste em ‘criar valor’ para os accionistas sem nenhuma consideração pelos direitos dos outros actores que participam na vida das empresas. Uma das consequências deste novo modelo de gestão é a vaga de fusões e reestruturações empresariais que se traduz geralmente em despedimentos maciços saudados nos mercados financeiros pelo aumento do valor das acções. Uma segunda consequência é o considerável aumento do peso da componente financeira de curto prazo, já que os processos de reestruturação se baseiam em empréstimos que para serem reintegrados com os respectivos juros exigem retornos tão céleres quanto possível e, por conseguinte, bloqueiam as perspectivas de investimento de longo prazo. A terceira consequência são as formas de ‘contabilidade criativa’ ou, menos eufemisticamente, o incentivo à fraude, pois os managers, tendo as suas remunerações indexadas à valorização das acções não se livram da tentação de empolar artificialmente os resultados líquidos das empresas que gerem, declarando lucros inexistentes, mesmo quando estas se encontram à beira da falência. O exemplo mais paradigmático deste tipo de comportamento foi a falência da empresa norte-americana Enron, em 2001, que não constituiu, porém, um caso isolado, já que no mesmo período rebentaram uma série de escândalos financeiros em outras grandes empresas de que se destacam o do grupo Vivendi de Jean Marie Messier e o da insuspeita Deustche Telekom, presidida por Ron Sommer, que registaram dívidas astronómicas. A diminuição em termos tanto relativos como absolutos do operariado 48 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA industrial tanto na Europa Ocidental como nos Estados Unidos constitui outro dos factores que contribuíram para a alteração da relação de forças em que se baseava o compromisso social do período posterior à Segunda Guerra Mundial. O fenómeno das deslocalizações do capital teve uma importante influência nesta transformação que se traduziu num aumento do operariado nos países emergentes, em que sobressai a China, convertida em ‘fábrica do mundo’, e numa recomposição do trabalho industrial nos países desenvolvidos: peso crescente das actividades imateriais situadas a montante da produção directa – I&D, concepção e projecto, design, mediação e coordenação estratégica; reconfiguração do operariado com a emergência de categorias de trabalhadores industriais – engenheiros e técnicos ligados ao controlo e à reparação dos novos sistemas automatizados – e de trabalhadores dos sector de serviços que, embora não sejam operários nem técnicos da indústria, elaboram o software e os sistemas operativos sem os quais as novas máquinas não podem funcionar; desmantelamento das grandes concentrações operárias e proliferação de uma multidão de pequenos estabelecimentos organizados em rede e controlados pelos grandes grupos económicos e financeiros. Paralelamente, as operações industriais de rotina são cada vez mais deslocalizadas para os países emergentes em regime de subcontratação. No plano político, não podem ser esquecidos dois importantes eventos: a contra-revolução conservadora dos anos 80 do século XX, capitaneada por Margaret Thatcher e por Ronald Reagan, e a implosão do socialismo de Estado de matriz soviética. A primeira foi responsável pela transformação da Grã-Bretanha, pátria da primeira Revolução Industrial, num país de serviços, de que se destaca a componente financeira, pela destruição dos grandes bastiões do operariado britânico, fundamentalmente do sector mineiro e da indústria pesada e pela privatização das empresas públicas britânicas. O seu colega do outro lado do Atlântico contribuiu para a desregulamentação dos sectores em que predominava o compromisso social entre os sindicatos e as administrações empresariais – os casos das telecomunicações e dos transportes aéreos são exemplos paradigmáticos –, o que teve como principal consequência um debilitamento acelerado da capacidade negocial dos sindicatos e uma quebra do número de sindicalizados que, no entanto, já se tinha iniciado nos anos 70 do século passado. A 49 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA implosão do socialismo de Estado soviético e a conversão dos seus satélites a um capitalismo inspirado no modelo norte-americano de Reagan permitiram que os poderes económicos dominantes na Europa Ocidental se desvinculassem do compromisso que sustentava o Estado social europeu. De resto, estes poderes apenas tacitamente aceitavam o modelo social em vigor na União Europeia, já que tinham consciência que um agravamento das desigualdades e da conflitualidade social poderiam conduzir a uma crise de legitimação que pusesse em causa o controlo que exerciam sobre a organização do trabalho. De uma estratégia que até então era defensiva passaram, ainda antes da implosão do socialismo de Estado soviético e com a ajuda da contra-revolução conservadora, definitivamente à ofensiva. Os partidos tradicionalmente implantados nas classes trabalhadoras registaram também um processo de erosão que não pode ser dissociado da redução do peso do operariado com as suas históricas tradições de luta na estrutura social, da fragmentação dos estatutos laborais e dos processos de recomposição e reconfiguração do tecido produtivo que, iniciados ainda antes da implosão do socialismo de Estado soviético, puderam depois generalizar-se. Os partidos comunistas deixaram praticamente de constituir uma força política na Europa, embora continuassem a manter uma forte influência sindical, como o prova os casos italiano, francês, português e espanhol. Os partidos socialistas e social-democráticos, até então beneficiários do contexto da Guerra Fria que lhes permitiu, simultaneamente, desembaraçar-se das referências marxistas – como é confirmado pelo Congresso de Bad Godesberg do SPD em 1959, exemplo paradigmático de alcance universal – e defender o compromisso que sustentou durante trinta anos o Estado social europeu –, registaram um processo de social liberalização cujos exemplos mais paradigmáticos foram as ‘Terceiras Vias’ de Tony Blair e Gerard Schröder. Este processo caracterizou-se fundamentalmente por uma orientação política em que as questões da igualdade e da justiça social surgiram diluídas numa concepção que tende a privilegiar uma pretensa ‘igualdade de oportunidades’, a defesa das privatizações, que tinham sido iniciadas pelos governos de Margaret Thatcher, e a redução das funções e apoios sociais do Estado, apesar de algumas declarações de fidelidade pouco convincentes. Exemplo paradigmático desta nova orientação política foi a redução significativa do acesso às prestações sociais impul50 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA sionada pelo governo social-democrático alemão de Gerard Schröder e a doutrina do ideólogo da Terceira Via, Anthony Giddens, favorável a um sistema de aposentação centrado na capitalização e não na repartição, bem como na ideia peregrina, que deixou numerosos discípulos, de que o subsídio de desemprego não constituía um direito, mas uma contrapartida de uma prestação baseada na obrigatoriedade do trabalhador aceitar um trabalho por salários cada vez mais miseráveis. Entre Cila e Caríbdis A crise financeira de 2008-2009 é apenas uma manifestação da crise mais profunda da liberal democracia. Um das características fundamentais desta forma de democracia é a sua relativa capacidade de evitar que os conflitos sociais se transformem em guerra aberta e em explosões de violência. Mas para isso deve renunciar a uma parte da sua herança liberal nas questões sociais e económicas e promover políticas económicas e sociais que visam atenuar as disparidades na repartição primária do rendimento. No entanto, a ruptura do compromisso social que sustentava esta orientação da liberal democracia conduziu ao fortalecimento das forças que, anteriormente, por razões de ordem táctica, toleravam a sua dimensão social. Este fortalecimento não pode, porém, ser separado da regressão ideológica que grande parte dos partidos socialistas e sociais-democratas sofreram na Europa. Em contraste com os partidos comunistas, cujo declínio político se tornou praticamente irreversível após a queda do Muro Berlim, estes afirmaram-se como ‘partidos interclassistas’, pois partiam do pressuposto de que o declínio relativo do peso da classe operária na estrutura socioeconómica conduziria necessariamente ao fortalecimento das chamadas ‘classes médias’. Esta estratégia revelou-se duplamente desastrosa. Primeiro, o agravamento das desigualdades conduziu a formas de proletarização dos trabalhadores dos serviços – veja-se, por exemplo, o caso dos call centers, e a proliferação dos estatutos precários no terciário com o aumento dos prestadores de serviços pessoais precários que substituem os trabalhadores de rotina do escritório taylorista-fordista expulsos do local de trabalho pela informatização das tarefas tradicionais –, o que teve como consequência fundamental a redução da heterogeneidade e diversidade 51 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA social que constituíam o argumento central da tese sobre o ‘interclassismo’. Segundo, a experiência dos partidos socialistas e sociais-democráticos, como partidos que exerceram (ou exercem cada vez menos na Europa) o poder político, formatou-os no jogo político-institucional de mediação e resolução de conflitos. O enfraquecimento destes mecanismos de mediação institucional como resultado do agravamento das desigualdades sociais conduziu a um processo de ruptura em maior ou menor grau com as suas bases sociais de apoio – sobretudo com os sindicatos, de que os exemplos mais paradigmáticos são a defunta ‘Terceira Via’ de Tony Blair e o SPD de Schröder em que se registou uma cisão com a formação do Partido da Esquerda –, em nome da governabilidade ou de uma suspeita ‘ética de responsabilidade’ weberiana que serviu apenas para legitimar a mera gestão conjuntural do poder político e para o abandono das grandes directrizes doutrinárias que visavam a construção de um mundo mais justo e solidário. Para marcarem a diferença relativamente ao conservadorismo e ao neoliberalismo, não faltaram os que se deram ao trabalho de inventar uma pretensa mudança de paradigma: os partidos socialistas e sociais-democráticos, para a além de se preocuparem menos com as questões relacionadas com a justiça social – ‘ultrapassadas’ pelas novas necessidades, que não podem ser negadas, de autonomia e criatividade individuais –, decidiram, em nome do ‘interclassismo’, cortar o cordão umbilical que os ligava aos sindicatos – esse ‘complexo de Édipo’ das políticas ‘populistas’ que importava erradicar – para se transformarem em partidos ‘progressistas’ na esfera dos costumes: reconhecimento dos direitos dos homossexuais, das minorias étnicas, da igualdade de género, da interrupção voluntária da gravidez, etc. No entanto, apesar do reconhecimento destes direitos ser inestimável e constituir um enorme avanço cultural, não pode, de modo algum, ser concebido como uma espécie de compensação para a regressão social liberal nas questões económicas e sociais. Relativamente a estas, a maior parte dos partidos socialistas e sociais-democratas europeus – provavelmente com a excepção do Partido Socialista Francês ainda dirigido por Martine Aubry – assemelham-se cada vez mais a uma personagem da peça teatral Um Inimigo do Povo do grande dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, que afirma: “Não mudei de posição, só me tornei mais moderado. O meu coração continua 52 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA com o povo; mas não nego que a minha razão se inclina no sentido dos detentores do poder”2. Perante a viragem à direita nas questões económicas e sociais da generalidade dos partidos socialistas e sociais-democratas, avançam as respostas da direita neoliberal e da esquerda ultra-radical à crise da liberal democracia. Relativamente às primeiras, podemos destacar um artigo de Anatole Kaletsky, editorialista do diário londrino Times e publicado na revista britânica Prospect. Significativamente intitulado O Estado já não tem os meios para construir o social (segundo a versão francesa “l’État n’a plus les moyens de faire du social” da revista Courrier International de 23 de Setembro de 2010), o artigo centra-se também numa teoria da compensação, embora de espécie diferente da que caracterizou a social liberalização dos partidos socialistas e sociais-democratas europeus: os governos sobreendividados devem privatizar a educação, os serviços de saúde e as aposentações para poderem recuperar o controlo da gestão da economia e das finanças. Desde logo, Kaletsky comete um erro muito frequente quando separa radicalmente o económico do social: o económico é uma parte do social, já que a economia se baseia num conjunto de relações entre classes e grupos sociais no processo de produção e repartição da riqueza e não se reduz, como pressupõe a ciência económica oficial, a um somatório de indivíduos que agem em função das suas ‘expectativas racionais’ para maximizarem os seus interesses. Neste sentido, a ‘compensação’ não pode necessariamente funcionar, revelandose, além do mais, absurda, pois o desmantelamento anunciado do Estado social é completamente incompatível com a recuperação do controlo sobre a gestão da economia e das finanças que acabaria por ser subordinada ao princípio neoliberal da auto-regulação dos mercados responsável pela crise financeira de 2008-09 e pela actual ditadura dos mercados financeiros e das agências de rating sobre os Estados europeus mais endividados. O argumento baseia-se numa lógica contabilística rudimentar: ao cortar-se nas despesas sociais do Estado libertam-se recursos para a gestão da economia e das finanças. No entanto, tudo aponta para que esta pretensa gestão se limitará à adopção de políticas económicas esclusivamente orientadas para a 2 Ibsen, Henrik, Peças escolhidas,Vol. III, Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 63. 53 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA redução dos défices públicos, o que terá como consequências uma redução generalizada do bem-estar social e do nível de vida da população laboriosa e, consequentemente, um aumento do desemprego. Eis mais uma razão que nos explica que o económico e o social não podem ser separados, mas estão profundamente interligados. Apesar de reconhecer a maior eficácia dos sistemas públicos de saúde da Europa Ocidental relativamente ao sistema de saúde predominantemente privado norte-americano, o grande ‘dilema’ de Kaletsky é o envelhecimento generalizado da população nos países desenvolvidos, o que se é verdade para os países da União Europeia é absolutamente falso para países como os Estados Unidos, a Austrália e o Canadá. Este envelhecimento serve-lhe de pretexto para recomendar à esquerda a reforma do Sistema Nacional de Saúde britânico (NHS) no sentido da sua ‘privatização parcial’ com o argumento de que “bons estabelecimentos escolares e universidades acessíveis são mais importantes para a prosperidade futura e para a justiça social do que hospitais, que cuidam sobretudo de cidadãos envelhecidos cuja contribuição económica é reduzida enquanto representam o grupo demográfico mais rico da sociedade”3. Estas considerações são completamente inaceitáveis, já que o cidadão não pode ser reduzido ao homo oeconomicus e avaliado exclusivamente segundo o critério da sua ‘contribuição económica’ – quais serão os que mais beneficiam com esta é uma questão que, apesar das crescentes desigualdades sociais, nem sequer se coloca para Kaletsky – e uma sociedade mais justa e solidária deve caracterizar-se pelo elevado nível de bem-estar dos seus cidadãos mais idosos que já deram o seu contributo para a prosperidade geral. Além do mais, os ataques aos sistemas públicos de pensões de reforma – na Grã-Bretanha vigora um sistema misto, como nos Estados Unidos, e os fundos privados de pensões encontram-se em situação deficitária4 – servem de pretexto para a introdução de esquemas privados centrados na capitalização bolsista ou nas chamadas ‘contribuições definidas’ que transferem o risco exclusivamente para o futuro pensionista que fica assim 3 Kaletsky, Anatole - “L’Etat n’a plus les moyens de faire du social”, Courrier International, Paris, 23 de Setembro de 2010, p. 23. Pelo contrário, em Portugal, uma grande parte da população idosa é pobre e excluída. 4 Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - Inquérito ao capitalismo realmente existente, Edições Afrontamento, Porto, 2009, pp. 103-04. 54 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA completamente dependente da instabilidade dos mercados financeiros. Tem-se também verificado sensivelmente a partir dos anos noventa do século passado que a população idosa é cada vez menos o estrato mais rico da sociedade em consequência das contra-reformas que têm contribuído não apenas para aumentar cada vez mais a idade máxima de aposentação, mas também para reduzir brutalmente o valor das pensões. Ironia das ironias são as considerações finais de Kaletsky. Depois de ‘recomendar’ à esquerda que deve privatizar parcialmente o NHS, alerta-a para o facto de que, se esta não seguir os seus ‘bons conselhos’, “serão os conservadores que defenderão com a maior veemência a responsabilidade do Estado neste domínio, servindo-se do aumento inexorável das despesas de saúde como um cavalo de Tróia para derrubarem todos os outros programas públicos”5. Este argumento é completamente redundante. Em primeiro lugar, porque basta abrir uma brecha privatizadora no sistema de saúde pública para que esta se alargue cada vez mais, embora alguns sociais liberais não o desdenhem completamente com a sua estratégia minimalista defensiva reveladora de uma total falta de coragem e convicções ideológicas resultantes da mera gestão voluntarista do poder político que apenas contribuiu para iniciar o desmantelamento do modelo social europeu, apesar de agora, perante os ataques cada vez mais despudorados e violentos do neoliberalismo, se arvorarem nos seus maiores paladinos e defensores. Em segundo lugar, não se pode continuar a aceitar uma concepção de sociedade que tem como horizonte exclusivo a produção e acumulação de riqueza e considera como um custo insuportável a maximização do bem-estar social e não a irracionalidade e o desperdício resultante da especulação financeira e da concentração da riqueza acumulada em mãos de um número cada vez mais exíguo de possuidores que impõem à maioria da população trabalhadora ritmos cada vez mais intensos de trabalho e condições de vida cada vez mais precárias, instáveis e inseguras. No pólo oposto, situa-se a esquerda ultra-radical e extraparlamentar para a qual a crise institucional da liberal democracia abre novas perspectivas para a emergência de uma ‘nova esquerda’. O filósofo esloveno 5 Kaletsky, Anatole, Ib., p. 21. 55 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA Slavoj Zizek é uma das figuras representativas desta corrente. Num artigo intitulado A permanent economic emergency (“Uma emergência económica permanente”), publicado no número de Julho/Agosto de 2010 da revista britânica New Left Review, considera que existem duas interpretações sobre a crise actual. A primeira é a interpretação dos defensores do establishment que propõe medidas regulatórias que não dependem de escolhas políticas, mas dos imperativos de uma lógica financeira concebida como neutra e despolitizada a que os países se têm necessariamente que submeter como se fosse uma lei da natureza. Os segundos, que abrangem os trabalhadores, estudantes e pensionistas consideram que as medidas de austeridade constituem mais um pretexto do capital financeiro internacional para o desmantelamento do que ainda resta do Estado de bem-estar na Europa. Para Zizek as duas interpretações, apesar de parcialmente verdadeiras, são fundamentalmente falsas. O argumento tende desde logo a desvalorizar a defesa do Estado social através de um processo de fuga para a frente em que a principal culpada é a “miséria da esquerda actual” acusada de não ter um “conteúdo programático positivo”, mas de se limitar a defender o Estado Social. Zizek considera que tentativa de manter o “Estado de bem-estar dentro do sistema” constitui uma “utopia”6. Pelo contrário, o que não é utópico é a “transformação radical do sistema”. Para legitimar esta ‘postura’ Zizek não hesita em reinterpretar e reintroduzir as receitas de certos epígonos contemporâneos da defuntíssima Revolução Cultural chinesa, destacando o filósofo francês Alain Badiou que lhe serve de sistema de referência: “Seria simplista acreditar que a crise actual continuaria a garantir um nível de vida relativamente elevado a um número crescente de pessoas. Seria realmente estranha uma política radical, baseada numa expectativa que as circunstâncias continuarão a tornar inoperativa e marginal. É contra esta concepção que devemos adoptar a palavra de ordem de Badiou, mieux vaut un désastre qu’un désêtre: é melhor um desastre do que um não ser; devemos correr o risco de fidelidade a um Acontecimento, mesmo se o acontecimento desemboca num «desastre obscuro». O melhor indicador da falta de confiança da 6 Zizek, Slavoj -”A permanent economic emergency”, New Left Review, Londres, Julho/Agosto 2010, p. 86. 56 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA esquerda em si própria hoje em dia é o seu medo da crise. Uma verdadeira esquerda assume a crise seriamente, sem ilusões. A sua perspectiva básica é que, apesar das crises serem dolorosas e perigosas, são inevitáveis e são o terreno em que as batalhas têm que ser travadas e ganhas. Eis a razão pela qual hoje, mais do que nunca, é pertinente a velha palavra de ordem de Mao Tse Tung: «Tudo sob o céu se encontra num caos completo; a situação é excelente»”7. Estas considerações expressam claramente a ‘estratégia’ da extrema-esquerda e, sobretudo, o que é mais grave e totalmente condenável e inaceitável, o reencontro com a sua vocação totalitária que se julgava perdida. A estratégia é clara: apostar na polarização dos conflitos sociais para ganhar posições e, consequentemente, recrutar um número crescente de seguidores que possam abrir ‘brechas’ cada vez maiores no ‘sistema’, pois só assim se poderão criar as condições necessárias para “a sua transformação radical”. “Promover a catástrofe iminente sem os meios de a conjurar”cito a frase de outro célebre revolucionário mais sensato - é, no fundo, a ‘palavra de ordem’ de Zizek que não deixa de ser um passo de gigante para a apologia de soluções extremistas antidemocráticas. Prova disso, é a frase zizeckiana, inspirada no pós-maoista Alain Badiou, de que se deve “correr o risco de fidelidade a um acontecimento, mesmo se este desemboca num «obscuro desastre»”. Esta frase podia ser inteiramente subscrita pelos partidários das ‘utopias perfeitas’ cujo exemplo mais trágico foi o regime genocida de Pol Pot no Cambodja: era necessário erradicar a memória histórica de um povo para começar a construir o ‘homem novo’, ou seja, precisamente aquele cuja consciência pudesse ser redefinida e reescrita a partir do zero como se fosse uma folha branca, para utilizar outra célebre tirada do ‘Grande Timoneiro’ chinês. A ‘alternativa’ proposta por Zizek é a ruptura com os mecanismos institucionais da liberal democracia e, consequentemente, a apologia da violência. O filósofo esloveno considera que a reforma política é manifestamente insuficiente, porque não exerce nenhuma influência sobre a transformação das relações de produção que se situam fora da esfera 7 Ibidem, p. 87. 57 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA político-institucional. Se é verdade que a liberal democracia se baseia no reconhecimento da propriedade privada dos meios de produção e no controlo da organização do trabalho pelos detentores do poder económico e financeiro, também é verdade que apenas um alargamento da componente social e económica da democracia poderá criar condições para que os trabalhadores possam controlar as condições de trabalho e participar na gestão das empresas. No entanto, Zizek não defende esta posição. Voltando ao que parece ser o seu ‘maître à penser’ conclui: “Badiou tinha razão na sua exigência de que o nome do derradeiro inimigo actualmente não é o capitalismo, o império ou a exploração, mas a democracia. É a aceitação dos «mecanismos democráticos» como último reduto que impede uma transformação radical das relações capitalistas”8. A “transformação radical das relações de produção capitalistas” passa pela “desfetichização das «instituições democráticas»” o que, como não poderia deixar de ser, conduz muito dialecticamente à “desfetichização” do seu contrário: a “desfetichização” da violência. A proposta de Zizek, de novo inspirado em Badiou, é o “exercício da violência defensiva” que consiste na criação na sociedade de “zonas libertadas” do poder de Estado9. Pressupõe-se que o alargamento destas “zonas libertadas” porá em causa a ‘violência’ do Estado e criará as condições para a emancipação de todos. Mas o que é uma ‘zona libertada’? As ‘banlieus’ parisienses com os seus exércitos de casseurs serão ‘zonas libertadas’? Os infiltrados ultra-radicais nas grandes manifestações sindicais e altermundialistas que provocam deliberadamente a intervenção da polícia serão provenientes das tais ‘zonas libertadas’ ou meros provocadores a soldo da ‘violência do poder de Estado’? E como é que se pode separar violência defensiva de violência ofensiva? Também não será verdade que a ‘desfetichização’ da violência contribui não apenas para alimentar uma estratégia de tensão que favorece a extrema-direita e pode servir para legitimar soluções políticas que, em nome da segurança, restrinjam as liberdades e os direitos individuais dos cidadãos? Zizek ilude a resposta a estas questões quando afirma: “A palavra 8 Ibidem, p. 88. 9 Ibidem, p. 88. 58 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA de ordem standard liberal – que é, por vezes, necessário recorrer à violência, mas nunca é legítimo – não é suficiente: para os oprimidos, a violência é sempre legítima – já que o seu status é o resultado da violência – mas nunca necessária: é sempre uma questão de consideração estratégica quando se deve ou não utilizar a força contra o inimigo”10. Importa saber – e Zizek não responde – quem define o momento estratégico ‘adequado’ para a utilização da violência. Será uma nova ‘vanguarda’ dos oprimidos que concebe a democracia como um mero instrumento para conquistar o poder e acaba por instaurar uma ditadura feroz sobre as classes oprimidas e exploradas que se comprometeu solenemente a emancipar? Considerando que o estabelecimento da “ditadura do proletariado” está ultrapassada, não resta a Zizek outro recurso senão a solução voluntarista da acção pela acção, mesmo que tal conduza ao desastre que acabará por ser inevitavelmente a destruição da própria democracia: “Hoje não sabemos o que temos de fazer, mas devemos actuar agora, porque a consequência da não-acção pode ser desastrosa. Somo forçados a viver como «se fôssemos» livres. Temos que arriscar passos para o abismo, em situações totalmente inapropriadas; temos que reintegrar aspectos do novo, precisamente para conservarmos a maquinaria em movimento e mantermos o que era bom no passado – a educação, a saúde, os serviços sociais básicos. Em suma, a nossa situação é semelhante à que Estaline referiu a propósito da bomba atómica: não é para os que têm nervos fracos. Ou a que Gramsci referiu, quando caracterizou a época que se iniciou com a Primeira Grande Guerra Mundial: «O velho mundo está a morrer, e o novo mundo luta para nascer: agora é o tempo dos monstros»”11. Afinal, ficamos a saber que o ‘velho Estado social’ é reintegrável no ‘abismo’ para onde Zizek arrisca conduzir-nos, o que não deixa de ser contraditório, pois este é um enorme buraco negro. Mas o que se torna completamente absurdo e inaceitável é a citação descontextualizada de Gramsci. Os ‘monstros’ a que o autor dos Cadernos do Cárcere se refere não surgiram, como se depreende das considerações de Zizek, do “arriscar 10 Ibidem, p. 89. 11 Ibidem, p. 95. 59 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA passos para o abismo”, mas da ascensão de movimentos e partidos de extrema-direita que culminaram, em Itália, com a marcha sobre Roma de Mussolini e a instauração do fascismo e, mais tarde, com a queda da República de Weimar e a conquista do poder pelos nacionais-socialistas de Hitler. Gramsci e outros sempre lutaram pela defesa da democracia e o preço a pagar pela sua coragem cívica e política foi a prisão e a morte. Mas aos contrário da estratégia suicidária de Zizek, estes sempre defenderam, ao contrário de Estaline com a sua infame teoria do ‘social-fascismo’, que seria necessário evitar uma estratégia de tensão centrada na polarização e aprofundamento dos conflitos sociais, pois só assim se poderia prevenir a eclosão do ‘tempo dos monstros’ que, de certo modo, o filósofo esloveno considera uma espécie de inevitabilidade. Poder-se-á concluir então que a esquerda ultra-radical, representada por Zizek com os seus arroubos pseudo-libertários e a extrema-direita com a exploração dos sentimentos xenófobos e racistas de algumas camadas da população, têm uma estratégia política comum, apesar das suas diferenças ideológicas: o enfraquecimento da democracia que apenas criará condições para o triunfo de regimes ditatoriais baseados na supressão das liberdades individuais e políticas. A alternativa à democracia só poderá ser mais democracia. Retorno ao socialismo democrático O historiador britânico Tony Judt escreveu um pouco antes da sua morte prematura no jornal britânico Guardian um artigo intitulado A social-democracia como último bastião (na versão francesa da revista Courrier International, “La social-démocratie comme dernier rempart”, 23 de Setembro de 2010) que é uma síntese do seu último livro Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos (Edições 70, Lisboa, 2010). Na parte final do artigo do Guardian, o historiador britânico reflecte sobre a questão que o social liberalismo com a sua habitual vacuidade ideológica empurrou para debaixo do tapete: “Que espécie de sociedade queremos e que espécie de disposições estamos dispostos a adoptar para a fazermos nascer?”12. Judt 12 Judt, Tony - “La social-démocratie comme dernier rempart”, Courrier International, Paris, 23 de Setembro de 2010, p. 19. 60 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA rejeita o fascínio da esquerda pelos “românticos do século XIX, demasiado impacientes em rejeitar o mundo antigo e oferecer-nos uma crítica radical de tudo o que existia”. Admite que “uma crítica deste tipo é provavelmente a condição necessária para uma transformação em profundidade, mas pode extraviar-nos perigosamente”13. Que resta, então, fazer à social-democracia apanhada no fogo cruzado da esquerda ultra-radical e da direita neoliberal? Para Tony Judt não é certamente o social liberalismo com a sua estratégia política defensiva e as suas cedências ao neoliberalismo nas questões económicas e sociais que constitui a resposta: “Não é necessário reduzir a social-democracia à preservação das instituições úteis, com o objectivo de se defender contra outras opções mais nefastas. A linguagem política tradicional é suficiente para apreender o essencial do que está mal no nosso mundo: estamos intuitivamente familiarizados com as questões da injustiça, da iniquidade, da desigualdade e da imoralidade – esquecemos simplesmente como falar delas”14. O grande escritor britânico George Orwell considerava que “«o que aproxima os homens comuns do socialismo, o que faz com que estes estejam dispostos a arriscar a pele por ele, a ‘mística do socialismo’, é a ideia de igualdade»”15. Combatente republicano da Guerra Civil de Espanha, de cuja experiência resultou esse extraordinário testemunho Homenagem à Catalunha, o autor de 1984 sabia bem do que falava. Prova disso é o ensaio The road to Wigan Pier, onde a questão da desigualdade é abordada através da análise fundamentada da pobreza das classes laboriosas britânicas. Poder-se-á, no entanto, perguntar: perante a social liberalização dos partidos socialistas e sociais-democratas o que resta daquela ‘mística do socialismo’, o que resta da ‘ideia de igualdade’? Infelizmente, pouco ou quase nada. O social liberalismo dominante decidiu que a questão da igualdade devia reduzir-se à igualdade de oportunidades a que se acrescentaria uma dose cada vez maior de meritocracia para completar o róseo quadro do seu conformismo relativamente aos poderes económicos dominantes. É por demais 13 Ibidem, p. 19. 14 Ibidem, p. 19. 15 Cit. por Judt, Tony, Ibidem, p. 19. 61 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA evidente que a ‘igualdade de oportunidades’ não conduz necessariamente à igualdade de resultados, já que as escolhas dos indivíduos são sempre socialmente condicionadas e os que partem de posições socialmente mais vantajosas têm sempre mais possibilidades de ascenderem socialmente e, por conseguinte, de conseguirem empregos melhor remunerados ou de exercerem funções de poder e predomínio sobre os outros. Além do mais, a ideologia da ‘igualdade de oportunidades’ abre o caminho à meritocracia, tão do agrado de alguns sociais liberais, que, como os neoliberais que lhe servem de referência, se interrogam amiúde: não é verdade que os menos favorecidos tiveram iguais chances de acesso ao sistema público de ensino, mas não as souberam aproveitar, foram ‘preguiçosos’ e até ‘indolentes’, não revelaram o ‘mérito’ dos que, graças apenas ao seu ‘esforço’ e ‘iniciativa’, conseguiram dar ‘o grande salto em frente’ nas suas aspirações? Já existem até alguns ‘profundos pensadores’ que estabelecem uma subtil distinção entre ‘desigualdades justas’ e ‘desigualdades injustas’ na base do argumento de que cada um, independentemente da classe ou grupo social a que pertence, é responsável pelas suas escolhas e, por conseguinte, quem faz ‘más’ escolhas merece ser ultrapassado na corrida ao sucesso pelos que fizeram as ‘boas’ escolhas. A adesão do social liberalismo a estes ‘valores’ torna-o cada vez mais um dos principais bloqueios à constituição de uma alternativa às receitas neoliberais e um dos protagonistas da crise da liberal democracia que alimenta a crescente polarização dos conflitos sociais e põe em causa a democracia. É necessário então retomar a ideia de igualdade do socialismo democrático. Esta ideia de igualdade tem como fundamento uma concepção de sociedade como empreendimento cooperativo em que a liberdade de cada um não é um obstáculo à liberdade dos outros, mas a condição da sua liberdade. Isto significa que a luta pelo predomínio que caracteriza o princípio da competitividade do neoliberalismo deve ser substituído pelo princípio da inclusão que se centra na criação de políticas públicas que visam precisamente reduzir o mais possível a desigualdade dos pontos de partida de modo a que se possa criar verdadeiramente aquilo a que o filósofo norte-americano John Rawls chamou ‘igualdade equitativa de oportunidades’16. Uma igualdade equitativa de oportunidades não opõe – como o faz 62 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA a ideologia neoliberal – igualdade a liberdade, mas concebe-as como complementares. A redução da desigualdade dos pontos de partida permite que cada um possa escolher mais livremente o que deseja fazer e reconhecer as opções dos outros em função da cooperação de todos na realização de um empreendimento comum. Isto significa uma mudança de paradigma societário que não é compatível com o princípio da competição em que cada um tenta aumentar o seu predomínio sobre os demais ou evitar que estes o ultrapassem ou excluam da posição que alcançou. Significa também uma nova concepção de sociedade que o grande socialista britânico Robert Owen (1771-1858) enunciou em 1812, mas continua hoje mais actual do que nunca: “Aquele Poder que governa e penetra o universo, formou o homem de maneira a que ele tenha de passar progressivamente de um estado de ignorância a um estado de inteligência, cujos limites não compete ao homem decidir, e que nesse progresso ele descubra que a sua felicidade individual apenas pode elevar-se e aumentar na proporção em que ele se esforce activamente por aumentar e estender a felicidade de todos à sua volta”17. A nova concepção de sociedade pressupõe coragem e determinação políticas e uma ruptura com as concepções sociais liberais no âmbito das questões económicas e sociais. É necessário, antes de tudo, ter em conta que ela integra o reconhecimento dos direitos das minorias, de que os sociais liberais se ufanam de promover como algo que assinala a sua ‘diferença específica’ relativamente aos ‘velhos’ socialistas que, segundo eles, permanecem prisioneiros do ‘mito da igualdade’. Pelo contrário, apenas a exigência de uma maior igualdade poderá contribuir para reforçar e ampliar o direito destas minorias. De facto, que sentido tem defender, por exemplo, os direitos dos homossexuais se as desigualdades entre 16 “Na teoria da justiça como equidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento de natureza cooperativa que visa obter vantagens mútuas para os participantes. A estrutura básica é um sistema público de regras que definem um sistema de actividades que leva os homens a agirem em conjunto de modo a produzir uma maior soma de benefícios e que atribui a cada um certos direitos, que são reconhecidos, a uma parte dos resultados respectivos. Aquilo que alguém faz depende dos direitos que as regras públicas lhe reconhecem e estes direitos, por sua vez, dependem do que ele faz. A distribuição resulta da satisfação das exigências dos sujeitos, as quais são determinadas por aquilo que eles empreendem à luz dessas legítimas expectativas” (Rawls, John - Uma teoria da justiça, Editorial Presença, Lisboa, 1993, p. 85). 17 Owen, Robert - Uma nova concepção de sociedade, Textos Filosóficos, Braga, 1976, p. 105. 63 A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA homossexuais pobres e ricos, não cessa de aumentar como parte integrante do aumento generalizado das desigualdades sociais e económicas? Eis como, o último bastião do social-liberalismo cai por terra: a defesa dos direitos das minorias sem uma política orientada para a promoção da igualdade social, para além de se limitar a redistribuir os efeitos da desigualdade sem atacar verdadeiramente as suas causas, acaba por alimentar a ignorância e o preconceito social das camadas da população que convertem estas minorias em bodes expiatórios dos seus medos e frustrações. É o que já acontece com os imigrantes de origem turca na Alemanha e com a vergonhosa política de Sarkozy em França relativamente à população cigana, ambas apoiadas por amplos estratos da população francesa e alemã. Mas isto significa que estas questões das minorias não são apenas questões de ordem cultural, mas também – e fundamentalmente – questões sociais e políticas. Perguntarão alguns: como é possível manter razoáveis níveis de igualdade social na Europa sem ter em conta a defesa da sua competitividade económica? Não é verdade que o baixo crescimento na União Europeia gera emprego insuficiente para manter a sustentabilidade do modelo social europeu? Não é verdade que o envelhecimento da população europeia põe em causa a manutenção dos sistemas públicos de aposentação? Não é verdade que a competição de alguns países emergentes para onde são deslocalizados indústrias e mesmo alguns serviços de alto valor acrescentado gera um nivelamento por baixo dos salários e das condições sociais tanto das classes operárias como de amplos estratos das classes médias assalariadas dos países da União Europeia e de outros países desenvolvidos? Estas objecções tornam, é certo, mais difícil a tarefa de criar condições de maior igualdade, mas não a tornam impossível. Antes de tudo, a União Europeia nunca poderá ser ‘competitiva’ relativamente aos custos salariais da China, nem mesmo se os cidadãos da ‘velha Europa’ permitirem que o modelo social europeu seja totalmente desmantelado. Num mundo cada vez mais globalizado em que a informação circula à velocidade da luz as populações trabalhadoras dos países emergentes não poderão contentar-se eternamente com longos horários de trabalho, baixos salários e precárias condições de vida, mas exigirão cada vez mais participar na prosperidade que contribuíram para promover e de que são excluídas. A vaga de greves na China no Verão passado é já um sintoma de que algo está a mudar 64 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA nestes países. Isto significa que a competitividade económica não pode ser utilizada como pretexto para reduzir os direitos sociais na Europa em nome da preservação do essencial de um modelo social europeu que tende a debilitar-se-se cada vez mais. A mudança de paradigma deve empreender com a necessária coragem política a reforma dos sistemas fiscais e tributários no sentido da sua maior progressividade, a abolição dos paraísos tributários e a penalização dos países da ‘nova Europa’ que criaram uma taxa única de imposto sobre o rendimento. Esta deve apostar também numa forma de financiamento dos sistemas de aposentação centrado no valor acrescentado, ideia já defendida pela dirigente socialista Martine Aubry, ou, como defende Alfredo Bruto da Costa, numa reforma fiscal que não se centre exclusivamente nos rendimentos do trabalho, mas englobe “todas as formas de rendimento”18. É necessário também apostar na integração da população imigrante para melhorar a sustentabilidade do sistema público de repartição. Uma coisa é certa: não se pode continuar a considerar como inevitabilidades irreversíveis as dificuldades do presente para evitar tomar as medidas necessárias para a construção de um mundo não apenas mais justo e solidário, mas também um mundo em que os indivíduos – todos os indivíduos – desfrutem de maior autonomia e liberdade para realizarem as suas expectativas e o projecto de vida que escolheram. Mas isto significa que o social liberalismo é cada vez mais parte do problema e não da solução. 18 Ramos de Almeida, João - “«Comissão do livro branco» contra dedução em 0,25 pontos”, Público, 31.10.2010, p. 6. 65 O Futuro da Terceira Via Tendências e Alternativas, na Perspectiva de um Socialismo Cognitivo José Nuno Lacerda da Fonseca S egundo Anthony Giddens, a expressão “terceira via” terá sido criada na passagem do século XIX, vindo depois a popularizar-se, curiosamente entre grupos de direita, por volta de 1920. Só mais tarde, foi utilizada por social-democratas e socialistas, no pós-guerra. Em 1951, a Internacional Socialista usava esta expressão para designar uma via intermédia entre comunismo e capitalismo. Mais recentemente, a expressão terá sido apropriada por Clinton (ligada aos movimentos New Democrats, Reinventing Government e New Public Management), dos anos 80 e, também, por Blair, tornando-se uma teorização que muito tem influenciado o socialismo democrático. A análise que aqui se fará irá centrar-se nos três livros de Giddens que mais claramente se reclamaram da terceira via e a influenciaram (Para uma Terceira Via, A Terceira Via e os seus Críticos e Over to you Mr. Brown). I. As opções fundamentais Após a análise dessas obras, parece ser de concluir que a terceira via se organiza em torno de oito opções fundamentais, definindo o seu modelo de sociedade a atingir. Contudo, Giddens não as identifica expressamente como tais, não as sistematiza e, para muitas delas, escassamente as tenta fundamentar e argumentar. Não obstante, parece claro que se trata dos seus postulados, em função dos quais propõe uma série de estratégias mais operativas, essas sim ocupando a maior parte dos seus livros. Uma das suas opções fundamentais é de que o mercado, protagonizado por organizações privadas, é o melhor sistema de criação de riqueza, embora com limitações que devem ser combatidas pelos governos, como a tendência para crises cíclicas e para criar sociedades com muitas desigualdades. A segunda opção fundamental é por um igualitarismo que não esteja centrado na igualdade económica mas dê mais importância à luta contra a exclusão social de vários grupos, bem como à igualdade de oportunidades. A saúde e a educação 67 O FUTURO DA TERCEIRA VIA são entendidas como questões fundamentais da igualdade de oportunidades, na esfera da responsabilidade do Estado, assim como a igualdade de género e a inclusão social dos portadores de deficiências. Segundo o autor, a redistribuição continuará a ser importante, embora se tenham de aceitar desigualdades como sendo a outra face do crescimento económico, possibilitado pelo mercado e pelos incentivos ao trabalho e ao espírito empreendedor. A terceira ideia é trazer as questões ambientais para o primeiro plano, ao contrário do que tinha sido a prática do movimento socialista. Uma quarta ideia central é de que o Estado Providência foi longe de mais, tendo protegido grupos que não precisam de protecção, promovido a desresponsabilização do indivíduo pelo seu futuro e incentivando um certo parasitismo (embora Giddens nunca use esta última expressão, preferindo colocar a tónica na frase “não há direitos sem deveres”). Nunca aparecendo como um objectivo central é, contudo, reconhecida a importância do controle do défice orçamental do Estado. Embora sendo uma questão relativamente pouco abordada e tratada de forma quase secundária, na terceira via, a questão da moral e dos costumes pode ser considerada uma das questões centrais, não sendo claro, nas exposições de Giddens, se é um fim ou se é, apenas, um meio de realização das quatro opções fundamentais. Sobre esta temática parece existir uma tendência a favor da modernização da moral e dos costumes, no sentido da flexibilização e pluralismo, embora salientando, também, a importância de se procurarem valores comuns a toda a sociedade. A questão da eficiência e reforma do Estado e da Administração Pública, pode ser entendida já como um meio para atingir os quatro objectivos centrais da terceira via. Contudo, a convicção de que é possível modificar substancialmente a eficiência e eficácia do Estado e da Administração podem, ainda, ser consideradas a sexta e sétima das opções fundamentais da terceira via. Por último, uma opção recorrente e com tão forte tónica que, embora possa ser entendida como um meio para a realização das outras opções fundamentais, não pode deixar de ser considerada, também, uma das opções fundamentais da terceira via. Trata-se da convicção de que a sociedade civil (associações, comunidades locais, instituições de solidariedade) tem um papel fundamental a desempenhar, substituindo e complementando o Estado em muita das suas funções, bem como sendo parceiro das empresas para o desenvolvimento económico e a criação de emprego. 68 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA II. A evolução das opções centrais II.1. Mercado A opção por uma economia de mercado começa por ser apresentada como a única opção óbvia, face ao falhanço das economias planificadas, não exigindo qualquer argumentação a favor da superioridade do mercado. Só no segundo livro Giddens começa a apresentar alguma argumentação a favor deste sistema de organização económica (criação de riqueza, liberdade do consumidor, promoção da paz). Já tardiamente, no terceiro livro, faz o autor uma análise comparativa entre planeamento e mercado, afirmando que a competição torna o mercado um mecanismo superior, pois é um mecanismo selectivo capaz de atribuir meios de actuação económica a quem realmente mostra capacidade e iniciativa. Apesar de, desde o primeiro livro, referir as limitações do mercado (desigualdades, monopólios, crises cíclicas), só no segundo livro parece optar pelo neo-keynesianismo, enquanto forma de mercado parcialmente regulado pelo Estado, aparentemente sob a égide de Paul Krugman. Nessa altura, acrescenta a constatação de outras limitações dos mercados reais (imperfeição da concorrência e falhas de informação) como causa para as crises cíclicas, reconhecendo a extrema gravidade das oscilações nos mercados financeiros e no crescimento económico. Depois de ao longo dos dois primeiros livros ter sido um entusiasta dos mercados, embora de forma mais atenuada no segundo livro, acontece que, no terceiro livro, constata que acabaram os tempos do triunfalismo do mercado, refere que as empresas têm de ser mais responsáveis e que o mercado financeiro tem de ser mais regulado e acompanhado. A tendência do autor parece ser para a superação de uma adesão inicial, muito entusiasta, para ir chegando a um conhecimento cada vez mais claro do que é realmente positivo nos mercados (concorrência e livre iniciativa), embora nunca vá mais longe do que o neo-keynesianismo e da constatação, aliás pouco clara, de que falta criar algo que possa melhorar o mercado, de forma a superar desigualdades, colmatar a tendência para monopólios e outras imperfeições da concorrência e, sobretudo, evitar as crises cíclicas. A reflexão sobre essas necessárias correcções ao sistema de mercado nunca vai além de rápida referência ao neo-keynesianismo. Contudo, Giddens refere, logo 69 O FUTURO DA TERCEIRA VIA no primeiro livro, a ideia do socialismo de mercado, muito superficialmente, referindo apenas que já foi sinónimo de terceira via e aludindo a Ota Sik (embora o nome de Oskar Lange costume ser o primeiro a associar a este conceito e actualmente se refira John Roemer). Estranhamente, nunca explora esse conceito. Sendo que o socialismo do mercado parece ser, embora superficialmente, conhecido por Giddens e existindo a tendência do autor para um aprofundamento do conhecimento crítico do que realmente é valido nos mercados, podia-se esperar que a ideia de socialismo de mercado viesse a reemergir, como um dos possíveis futuros para a terceira via. Apesar da pouca importância que Giddens lhe deu nos três livros referidos, este conceito parece encerrar grande significado. Embora existindo muitos modelos de socialismo de mercado, talvez se possa afirmar que a sua ideia base é que o mercado é o melhor mecanismo de desenvolvimento económico, devendo, todavia, este existir com capitais maioritariamente públicos. Isto é, existindo efectiva concorrência entre empresas e liberdade de iniciativa dos seus responsáveis, a eficiência fica assegurada, mesmo sem capitais privados. Esta concepção parece chocar com a história de fracasso das empresas públicas, sobretudo no sul da Europa. Contudo, o socialismo de mercado parece pressupor que a selecção dos gestores das empresas públicas é feita de forma racional, em função do mérito e dos seus projectos, sem nepotismo nem outorga de cargos de gestão como forma de compensação por apoio político prestado. Nesta perspectiva, a primeira tarefa, operativa, de um futuro para a terceira via seria a criação de uma instituição, independente, capaz de recrutar gestores, para empresas públicas, unicamente em função do mérito e das suas iniciativas de negócio. Esta instituição poderá assumir uma forma de democracia participativa, pragmática, na qual a nomeação de gestores e dos planos que eles propõem é feita por fóruns participados pelo Estado e sociedade civil (representantes dos trabalhadores e consumidores, instituições científicas da área da gestão e tecnologia, etc.), num modelo relativamente próximo ao usado, há muito tempo, para a nomeação de gestores de certas escolas, nos EUA e, também, recentemente, introduzido em Portugal, durante a primeira administração Sócrates, nas escolas secundárias. Trata-se de uma forma de democracia participativa (a extrema descentralização deste processo obriga a níveis muito altos de participação), indirecta (os cidadãos não se pronunciam sobre decisões de governança mas apenas escolhem os agentes da governança) e segmentada (diferentes grupos de cidadãos decidem sobre sectores diferentes e nenhum decide sobre a totalidade das nomeações nacionais). 70 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA Fica, obviamente, em aberto a possibilidade teórica de um modelo deste tipo poder evoluir para formas de democracia participativa mais directa e abrangendo todos os temas da governação de um país ou, mesmo, para formas de democracia cognitiva (acesso a estes fóruns e ponderação de votos dependente do nível de conhecimento específico de cada membro do fórum). Se com a democracia segmentada estamos já em novos paradigmas de co-representatividade (a massa dos cidadãos não escolhe um representante, apenas outorga a outros cidadãos, constituídos em fóruns, a possibilidade de representarem os primeiros, desde que essa outorga seja recíproca), estamos, também, em novos paradigmas de controlo dos representantes, sobretudo no caso da democracia cognitiva. De facto, o representado já não controla através da observação dos actos do representante nem através da obtenção do mesmo nível de informação que o representante tem (o que é a clássica linha de ultrapassagem dos problemas de “moral hazard” e “adverse selection”, da teoria dos jogos) mas sim através de vinculação performativa do representante aos interesses do representado (por exemplo, o representante terá a sua remuneração matematicamente dependente da remuneração do representado), bem como de testes que garantam o nível de conhecimento adequado do representante. De notar que estes novos paradigmas, de vinculação performativa e de teste cognitivo, podem, também, ser aplicados a formas clássicas de democracia, como os parlamentos legislativos ou governos, escolhidos em eleições nacionais de massas, podendo assim, eventualmente, melhorar a qualidade da intervenção política no sistema económico, em geral. Sobre estes temas e, em geral, sobre alternativas à terceira via, pode-se encontrar melhor fundamentação em artigos publicados pelo autor destas linhas, em revistas como “Economia Global e Gestão”, “Sociologia – Problemas e Práticas”, “Episteme”, “Economia e Sociologia” e na “Finisterra”. Sem criar um novo regime político, inspirado por experiências como as de James Fishkin, as do Orçamento Participativo e de múltiplas novas formas de governança (muito debatidas por autores como Norberto Bobbio, David Held e Archon Fung, entre vários), com este desiderato de racionalidade nas nomeações para instituições e empresas públicas, parecerá supérfluo debater como se podem criar novas empresas públicas (eventualmente usando alguns dos fundos públicos que têm vindo a subsidiar as empresa privadas), debater qual o seu papel no financiamento do Estado Social, na estabilização do crescimento, na circulação da informação e na contenção das desigualdades, nem, sequer, 71 O FUTURO DA TERCEIRA VIA parecerá ter operacionalidade debater qual deve ser o papel futuro do capital privado e das parcerias público/privado. Num cenário de evolução da terceira via, para um conceito de socialismo de mercado seria, ainda, obviamente, de exigir, a um socialismo democrático, humanista e, simultaneamente, realista, uma aturada reflexão sobre os mecanismos e fases de transição para esse modelo, em respeito, democrático e humanista, pela liberdade e expectativas de realização de todos os protagonistas económicos, prevendo situações mistas e transições graduais que não façam perigar o crescimento, o bem-estar e a paz social. Além do socialismo de mercado existe um outro tema, capaz de fundamentar novos sistemas económicos, que é referido por Giddens, todavia, também, muito superficialmente. Embora de uma forma muito crítica, existe uma referência a empresas participadas pelos trabalhadores, no segundo livro, logo condenadas por atrasarem excessivamente o processo de decisão. De uma penada, Giddens parece afastar a reflexão sobre teorias democráticas e socialistas da empresa, colocando-se no pólo oposto a autores como Russel Ackoff (sobretudo no seu livro intitulado The Democratic Corporation, de 1994). Aliás, ao contrário do que fez para o socialismo de mercado, Giddens nem sequer refere qualquer autor ou teoria socialista da empresa. Contudo, é evidente que a história da empresa capitalista revela algumas dificuldades em motivar os seus trabalhadores, sobretudo na modernidade do trabalhador criativo e do trabalho em equipa, não devendo esta temática ficar fora da reflexão socialista. É no contexto da promoção da identificação do trabalhador com a empresa e com as equipas que a constituem que são necessárias reflexões sobre a garantia do emprego e a contratação a longo prazo, equilibradas com períodos de experiência antes dessa contratação. Acrescem reflexões sobre o “downsizing “ expresso, unicamente, na generalização do trabalho a tempo parcial e formação adicional, bem como reflexões sobre participação, necessária, do trabalhador no capital da empresa e sua representação nos conselhos de administração. São, ainda, temas da teoria socialista da empresa, o sistema de “performance related pay” em função dos resultados das diversas equipas, mini e macro, nas quais o trabalhador se insere e, em complemento, do diferencial individual (muitas vezes só definível democraticamente pelas próprias equipas, por conter componentes, subjectivos, nomeadamente de atitudes de cooperação). Por último, devem-se referir reflexões sobre sistemas de registo de contributos e de formas de cooperação, 72 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA formação em ética, psicologia da motivação e comunicação, bem como vários outros temas que constituem uma teoria socialista das empresas e das organizações (nomeadamente na administração pública). Referidas as tendências evolutivas do pensamento da terceira via sobre a linha do socialismo de mercado, assim como sobre a teoria da empresa (temas que refere com considerável superficialidade), importa agora referir as temáticas nas quais Giddens reconhece a necessidade de novas respostas sem, todavia, sequer as ter esboçado (relativas à problemática das crises cíclicas), para neste capítulo, por último, se abordarem temáticas que nem sequer são referidas nos livros de Giddens em análise, apesar de fazerem parte, essencial, da tradição da crítica socialista (soberania do consumidor, consumismo, planeamento moderno sectorial) ou de constituírem questão fulcral da modernidade económica (economia do conhecimento), no que concerne ao pensamento sobre o sistema de mercado. Relativamente ao problema das crises cíclicas, não se pode deixar de reflectir sobre como regular o mercado, de forma a superar as suas fraquezas cognitivas que o levam a sobrevalorizar tendências de crescimento e de retracção. A sobrevalorização do crescimento ocasiona uma oferta excessiva que, em consequência, origina uma desvalorização dos produtos que ficaram em excesso face à procura solvente. Foi, reconhecidamente, o que aconteceu com a venda de um número excessivo de imobiliário, no mercado dos EUA, génese da crise presente. Tal excesso, com consequente desvalorização dos produtos em causa, resulta, ainda, na desvalorização dos produtos financeiros que foram baseados nos produtos em excesso, levando a falências e perda de confiança no sistema. Verifica-se, no momento seguinte, uma outra fraqueza cognitiva do mercado que é a sobrevalorização das tendências recessivas, o que, por sua vez, leva a retracções do investimento e do consumo, desaguando em crises profundas. Adicionalmente, será de notar que o desenvolvimento tecnológico originará maior número de mercados e produtos que serão, também, cada vez mais complexos, pelo que a tendência para crises, devida às referidas fraquezas cognitivas, se poderá vir a agravar com a continuidade do desenvolvimento tecnológico, constituindo um dos mais graves paradoxos do mercado. Os elementos de um novo sistema de mercado, cognitivamente superior, poderão passar por um novo mecanismo regulador que diminua o número de agentes no mercado, de forma a facilitar o seu controlo. A diminuição do número 73 O FUTURO DA TERCEIRA VIA de agentes, ou seja a concentração do mercado, também propicia a dimensão que é necessária, a cada agente, para que tenha capacidade para investir na obtenção de suficiente conhecimento, sobre o mercado em que se move. Exemplos de casos extremos de mercados fragmentados são o mercado accionista e o mercado agrícola, onde, aliás, são frequentes avaliações excessivas de tendências. Claro que, por evidentes razões de inovação e liberdade, deverá, sempre, existir um número importante de pequenas empresas que, em dado momento e em certas condições, serão absorvidas pelas grandes empresas concentradas ou tornar-se-ão grandes empresas. As pequenas empresas poderão ser de capitais privados mas, também, de capitais públicos, aparecendo bancos públicos de investimento a apoiar boas ideias de empreendedores. A regulação deve criar condições para que uma pequena empresa que não mostre sinais de inovação e crescimento constante seja, necessariamente, colocada em rede tutorada por uma grande empresa concentrada. Nesta perspectiva, devemos caminhar para uma economia bipartida ou dual, constituída por vários sectores económicos bipartidos, regulados de forma as que as PME constituam um pólo de inovação sem prejudicar a concentração e consequente qualidade do mercado. Este tipo de economia constitui, aliás, uma condição para a optimização de reformas tendentes ao socialismo de mercado (com capitais públicos participando nas grandes empresas) e à teoria socialista da empresa, pois um número menor de empresas facilitará a percepção da realidade empresarial pelo reformador, incluindo a percepção das reacções deste sistema às intervenções reformistas. Como veremos, a seguir, este tipo de concentração dual, facilitaria, ainda, outras reformas, relativas ao planeamento com consumidores, promoção da economia do conhecimento e limitação das desigualdades. Por último, no presente capítulo, resta abordar alguns temas completamente ignorados por Giddens, como a soberania do consumidor, o consumismo, o planeamento e a economia do conhecimento. Fica inexistente, na terceira via, a reflexão sobre como o consumidor pode ter acesso a completa informação sobre os produtos em concorrência. Em consequência, ficam de fora novas formas de planeamento económico, por exemplo, mediante consumidores organizados de forma segmentada (em diversos fóruns especializados), um pouco na sequência das ideias de Robin Hahnel (sobretudo no seu livro Economic Justice and Democracy: From Competition to Cooperation, de 2005) para definirem especificações de qualidade, 74 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA níveis de impacto ambiental, implicações éticas e de segurança dos produtos, para avaliarem comparativamente as diversas ofertas do mercado, eventualmente seleccionando algumas antes da entrada efectiva no mercado, bem como definirem o tipo de informação a fornecer à globalidade dos consumidores (provavelmente criando regras novas para uma publicidade menos manipuladora emocionalmente). Como se acabou de expor, a questão da soberania do consumidor pode levar a nova visão sobre o papel do planeamento, não sendo questão descartável numa reflexão reformista sobre as fragilidades, informativas, do mercado. Acresce que a questão do consumismo é ainda mais lata do que esta questão da informação dos consumidores. A ideia de que o atavismo cultural, prolongado pela publicidade, influencia decisões irracionais do consumidor, ocasionando um excessivo consumismo, a longo prazo contra os próprios interesses dos consumidores, é uma velha ideia que pode ser rasteada desde Thorstein Veblein, passando pela teoria crítica (Marcuse, Adorno, Habermas, etc.) e pelos pensadores das sociedades pós-escassez como Murray Bookchin (sobretudo no seu livro intitulado Post-scarcity Anarchism, de 2004). Será que uma consciência destes atavismos, nomeadamente da necessidade de expressar status social através do consumo, aliada a uma menor pressão publicitária, levaria a decisões diferentes dos consumidores? Por exemplo, teríamos consumos maiores na saúde, na cultura e na educação e menores em vestuário, habitação, viaturas, electrónica doméstica e vários outros? Teríamos níveis maiores de poupança e consequente disponibilização de mais capital para inovação tecnológica? Teríamos níveis maiores de qualidade de vida, pessoal e social, que compensassem um menor consumo e crescimento económico no curto e médio prazo? Existirão alternativas, mais interessantes, para os efeitos de evasão psicológica e promoção de autoconfiança hoje realizados pelo consumismo? Será que o consumidor mais informado não tende a investir em produtos mais complexos, de mais difícil avaliação, de efeitos a longo prazo, como saúde e educação? Será que o mercado não é um bom mecanismo para alocar suficientes recursos para certos tipos de bens de segurança? Por exemplo, como pode o consumidor expressar o seu interesse em diminuir a probabilidade futura de doenças, exclusão e violência social, já que não pode consumir mais produtos de saúde, para além das suas necessidades imediatas, nem pode consumir produtos de inclusão social em geral (para além de acções filantrópicas pontuais e não profiláticas)? Será esta questão determinante para que o 75 O FUTURO DA TERCEIRA VIA nível de provisão de serviços de segurança, saúde e inclusão seja definido, dominantemente, de forma política, com um apoio de fóruns de consumidores e de cidadãos mais informados sobre políticas de coesão? Está aqui em causa não só uma educação para o consumo mas a necessidade de complementar, institucionalmente, o mercado na sua capacidade para decidir entre produtos do mesmo género (por exemplo, através dos já referidos fóruns de consumidores), bem como de alocar recursos entre sectores muito diferentes (saúde, inclusão, vestuário, habitação, etc.) mediante fóruns de consumidores muito amplos e de carácter inter-sectorial. Um último tema ignorado por Giddens, apesar da sua grande importância e actualidade, é a questão da economia do conhecimento e dos novos paradigmas que poderá trazer a especificidade do conhecimento enquanto mercadoria, questão que esteve na origem das reflexões sobre a economia do conhecimento, com Kenneth Arrow, Paul Romer e vários outros. Não havendo aqui oportunidade para analisar estas especificidades, devemos, contudo, reparar que a mercadoria “conhecimento” não deve ser retida por patentes ou outras formas de secretismo, pois isso, obviamente, dificulta a sua disseminação, prejudicando a produtividade económica global. Que outros incentivos se podem atribuir aos criadores do conhecimento que não sejam a sua monopolização de certo saber, embora temporária, nomeadamente através das referidas patentes? Nesta perspectiva, a questão é apurar se será viável que sejam os utilizadores do conhecimento (por exemplo as empresas de um certo sector económico) a avaliar o impacto dos diversos criadores de saber e dos inovadores, possibilitando que lhes possa ser atribuída uma recompensa devida, estando esse saber e essa inovação, sempre, ao dispor de todo o público, sem quaisquer restrições. Estaria, assim, criado um ambiente no qual as patentes seriam desnecessárias e que, também, propiciaria o funcionamento de várias outras instituições importantes para assegurar uma economia de vasta transparência. Como exemplos, destas instituições da transparência, devem-se citar: - Instituições de debate e de suporte, científico e econométrico, à definição e aplicação dos critérios de recompensa dos inovadores; - Um mercado de empresas de “benchmarking” e divulgação dos saberes inovadores, actuando nomeadamente, através de empresas modelo e empresas-escola, podendo ter acesso a todo o conhecimento e informação de qualquer organização, de forma a divulgar amplamente; 76 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA - Um mercado de empresas de prospectiva e adaptação da inovação a cada organização concreta, etc. De notar que os mesmos mecanismos que podem avaliar o impacto de cada inovador podem, também, avaliar estas empresas da transparência, de forma a recompensá-las através de prémios de desempenho, o que possibilitaria que os serviços destas empresas fossem públicos e gratuitos, portanto acessíveis a todas as pessoas e organizações, independentemente do seu poder aquisitivo. Deve-se reparar que esta economia de transparência seria muito facilitada por uma economia dual, como atrás referida, actuando, aliás, a economia de transparência como um verdadeiro mecanismo de concorrência cooperativa, ao veicular saberes das empresas mais fortes para as mais fracas, assim possibilitando a estabilidade do tecido económico, evitando falências e desemprego. Configura-se assim um paradigma da economia de transparência, cujas bases são a gratuitidade (dos bens informativos) e a democracia na avaliação dos serviços em concorrência, ao invés dos habituais paradigmas mercantilistas. Depois de feita esta exposições sobre as concepções e omissões da terceira via sobre o tema do mercado, podemos concluir que, ao reflectir sobre este tema, esta o faz com considerável superficialidade e estreiteza cultural. Ignora, também, contributos fundamentais da tradição socialista, bem como dos mais relevantes factos da economia moderna, restringindo-se a uma reflexão, com limites muito apertados, centrada, unicamente, sobre a oposição, monolítica e artificial, entre mercado selvagem e neo-keynesianismo, da qual, obviamente, nada de inovador poderia sair e, muito menos, algo que se pudesse apelidar de inovação socialista, num sentido mais amplo que o mero e bem conhecido neo-keynesianismo. Não obstante esta pobreza cultural dos fundamentos da terceira via, a existência de referência ao socialismo de mercado e algumas outras problemáticas constituem uma importante porta para o seu desenvolvimento, num sentido mais claramente socialista e inovador. II.2. Igualdade e Incentivo No que concerne à temática da igualdade, desde o primeiro livro da terceira via que se identificam como prioritárias a igualdade de oportunidades e a luta contra a exclusão social de vários grupos desfavorecidos, nomeadamente os desempregados. A questão da promoção de sociedades mais igualitárias através da redistribuição do 77 O FUTURO DA TERCEIRA VIA rendimento dos mais abastados é, inicialmente, descartada. Giddens considera que a possibilidade de enriquecer é importante para motivar as pessoas talentosas. Portanto, limitar as desigualdades será limitar o incentivo para as pessoas darem o seu melhor. Teríamos de nos restringir a apelar aos mais abastados para se interessarem pelos problemas da sociedade e cumprirem os seus deveres éticos e de responsabilidade social. Pouco mais se poderia fazer a favor da igualdade. A questão da justiça social, que foi a tónica de John Rawls em reflexões que marcaram, indelevelmente, este tema e as políticas do último terço do século XX, bem com o repensar, em termos modernos, do antigo conceito de exploração do trabalho, nem sequer são abordadas por Giddens. Tal como em relação às suas teses sobre o mercado, a argumentação a favor das suas opções sobre a questão da coesão, é muito escassa, dando a impressão de que se restringe a identificar e postular algumas ideias que se foram massificando e que poderão ser facilmente aceites, para o autor poder, rapidamente, sobre elas, construir ideias mais operacionais para um programa eleitoral. Contudo, ao longo dos três livros vai aparecendo alguma argumentação a favor das suas posições, num aprofundamento progressivo e num afastamento do simplismo inicial. Logo no segundo livro, é clarificada a ideia de que uma política centrada, unicamente, na igualdade de oportunidades e de inclusão não é suficiente, devendo manter-se uma preocupação com a redistribuição do rendimento. Dois argumentos são apresentados a favor da redistribuição. Primeiro, as desigualdades criadas numa geração vão criar desigualdades de oportunidades na geração seguinte. Segundo, é reconhecido que haverá sempre pessoas para quem as oportunidades serão limitadas, pelo que ficarão para trás. A estes não deve ser negada uma vida realizada. Ainda no segundo livro, surge um outro novo enriquecimento das posições iniciais. Giddens chama a atenção para o facto das desigualdades serem exponenciais. Dá o exemplo do ténis, em que o melhor do “ranking” ganha milhões de vezes mais do que está cem lugares mais abaixo no “ranking”. Apesar de não voltar a estas questões no terceiro livro (onde, aliás, coloca como primeira prioridade a luta contra a pobreza infantil, restringindo-se assim, novamente, ao quadro da luta pela igualdade de oportunidades), parece claro que o autor lançou duas questões que não concluiu mas que parece considerar importantes (a fundamentação da importância social da igualdade e a reflexão sobre modelos em que, embora a desigualdade surja como incentivo, esta seja minimizada). 78 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA Estas duas questões passam a ser o tema do presente capítulo. O futuro da terceira via passará, portanto, primeiro, por esclarecer as razões que nos levam a valorizar a igualdade. Aliás, algo com que a velha esquerda nunca se preocupou muito, provavelmente devido à influência excessiva dos pensamentos marxistas sobre a exploração do trabalho e o devir histórico. Na reflexão sobre argumentos a favor da igualdade ou contra ela, não podemos esquecer o contributo de Rawls, ao afirmar a prioridade da liberdade sobre a igualdade. As duas questões não podem, de facto, ser pensadas em separado. A síntese entre liberalismo e socialismo poderá ser feita na afirmação da igualdade enquanto condição para uma efectiva liberdade (de facto, grandes concentrações de poder são um risco para a liberdade), assim como numa verdadeira liberdade negocial, no campo económico, enquanto promotora da igualdade, como se analisará adiante. Em relação ao referido aspecto da igualdade como garante da liberdade, teremos de perguntar se alguém se pode sentir seguro numa sociedade em que os poderosos têm tanto poder que podem, com relativa facilidade, ultrapassar a lei e manipular informação a seu favor. Como escreveu Montesquieu, os governos existem para que nenhum homem tenha de temer outro, condição muito longe de ser realizada pelo actual capitalismo oligárquico e pelas actuais formas de democracia muito debilitadas face ao poder económico. Em relação ao referido aspecto da liberdade negocial, geralmente menos focado, teremos de perguntar se existe verdadeira liberdade, ao negociar os termos do contrato de trabalho, quando uma das partes (detentores de capital ou de qualquer outro recurso escasso, como um talento especial) é infinitamente mais forte, do ponto de vista negocial, do que a outra (detentores de recursos muito menos escassos, como o trabalho). Portanto, a argumentação a favor da igualdade não deve ser restrita à igualdade de oportunidades e aos casos extremos de exclusão, onde Giddens parece querer fechá-la, indo, ainda, muito para além do marxismo clássico e de uma oposição, simplista, entre liberdade ou promoção de sociedades mais igualitárias. Embora não seja aqui o momento de sistematizar esta argumentação, é interessante lembrar uma outra argumentação, do economista Pigou, que afirmou que a mesma soma de bens tem mais importância para um pobre do que para um rico, baseando-se no conceito de utilidade marginal, conceito este tão utilizado pelos chamados neoliberais para fins argumentativos opostos. 79 O FUTURO DA TERCEIRA VIA Teremos de passar já à segunda questão levantada por Giddens, sobre esta temática da igualdade. Trata-se da referida questão da importância da desigualdade ao actuar como incentivo para as pessoas darem o seu melhor. Embora a desigualdade seja uma componente de sistemas de incentivo, devemos perguntar se, de facto, será necessária tanta desigualdade para motivar as pessoas a darem o seu melhor. O caso do ténis, referido por Giddens, é idêntico a tantas outras actividades, onde se poderá perguntar se os mais bem colocados no “ranking” precisariam de tanta recompensa para darem o seu melhor. Não bastaria o mais bem colocado no ranking, de uma certa profissão, ganhar um pouco mais do que o segundo e assim sucessivamente, alcançando-se assim muito menor desigualdade entre todos? Será possível montar sistemas redistributivos em função dos “rankings” de cada profissão? A resposta a ambas as perguntas parece ser positiva, pois estaria garantida a existência de incentivo para todos darem o seu melhor e, simultaneamente, maximizada a igualdade possível. Claro que não seria fácil a definição de quanto seria o rendimento máximo a auferir, efectivamente, pelo melhor colocado no ranking de cada profissão, bem como não seria fácil definir qual o diferencial de rendimentos entre todos os profissionais de um dado “ranking”. Contudo, tais definições poderão ser ajudadas pelo conhecimento de indicadores do risco, esforço e desgaste em cada profissão e para aceder a ela, como a esperança de vida e problemas de saúde, bem como pela participação, nessa definição, de indivíduos conhecedores dessa profissão (profissionais reformados, profissionais de profissões afins e em contacto, especialistas neste tipo de definições que tenham passado por várias profissões, etc.) Por exemplo, um sistema da remuneração dos gestores, das empresas concentradas do sistema económico dual, atrás referido, no qual a remuneração de cada um seja função da sua posição num ranking de resultados empresariais, a longo prazo, pode limitar exageros remuneratórios sem perturbar o incentivo para obter os melhores resultados, introduzindo, complementarmente, uma lógica de longo prazo e sustentabilidade empresarial. Aliás, devidamente desenhado, este sistema poderá mesmo evitar conluios oligopolistas, não obstante num ambiente de maior comunicação inter-empresarial que deverá, mais facilmente, ser promovido num sistema dual. A limitação de desigualdades poderá incidir não só nas remunerações dos gestores e trabalhadores das empresas, todos submetidos a rankings comparativos, mas também, evidentemente, nas remunerações do capital. 80 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA Contudo, neste último caso, seriam bem maiores as dificuldades para definir a remuneração mínima compatível com o incentivo. De facto, parece que um observador externo dificilmente poderá ajuizar o que pode compensar o risco de se perder capital próprio que se investiu, a não ser que efectivamente o possua e, portanto, não será um observador imparcial. Isto é, não se pode determinar qual a remuneração justa do capital investido, em termos de maximizar, simultaneamente, o incentivo e a igualdade social. Tal pode ser argumento para a inexistência de qualquer intervenção, estatal, redistributiva sobre as remunerações de capital mas também, em sentido contrário, pode ser argumento para a dominância de capitais públicos ou argumento a favor da dissociação cabal entre a figura do investidor e do gestor, num modelo de, progressivo, socialismo de mercado. Neste modelo o mercado definiria as taxas gerais de remuneração do aforro e o Estado definiria as diferenciações conforme o grau de riqueza de cada aforrador, privilegiando a promoção da igualdade. Esta definição, pelo Estado, terá de ser interactiva, visando obter a melhor combinação entre nível de poupança e nível de consumo, para promover o crescimento económico, sem prejudicar a promoção da igualdade. De facto, níveis muito baixos de remuneração percentual da poupança dos cidadãos mais abastados pode resultar em excessivo consumo e pouca poupança o que, em certas ocasiões, pode não ser o mais estimulante para o crescimento económico. Existindo, portanto, modelos económicos de promoção da igualdade que, simultaneamente, são eficientes, conclui-se que a maior dificuldade na promoção de igualdade não é uma dificuldade técnica, relacionada com a racionalidade do incentivo, mas sim uma dificuldade política, ao contrário do que tem afirmado a fé propalada pelo chamado neoliberalismo. De facto, a dificuldade reside em limitar um excessivo poder negocial das grandes concentrações de capital, face a trabalhadores negocialmente debilitados pelo seu muito maior número, dificuldades de intercomunicação e organização, bem como menor capacidade financeira para resistir a suspensões das suas actividades profissionais. Este excessivo poder negocial é, hoje, expresso, nomeadamente, na vitimização dos Estados Sociais, mediante a ameaça de deslocalização num mundo globalizado e pela cobrança de juros excepcionalmente elevados sobre a dívida pública, actuando as empresas de rating como processos virtuais de coordenação oligopolista. Como oposição a este excessivo poder negocial, será possível, num sistema de empresas concentradas, como no atrás referido sistema dual, que os gestores 81 O FUTURO DA TERCEIRA VIA fiquem fora destas pressões dos detentores de grandes massas de capital, pelo facto dos gestores serem nomeados não só por estes detentores mas, também, pelo Estado, em parceria com trabalhadores das empresas, entidades científicas e ambientais e, ainda, representantes dos consumidores e outros stakeholders, num modelo de democracia mais participativa, já aqui referido. Adicionalmente a estes processos de limitação das desigualdades sociais, pode-se recorrer a outros mecanismos que podem ser coerentes com estes, como impostos sucessórios que, aliás, parecem formas mais humanistas e menos desequilibrantes do que nacionalizações, mesmo quando estas sejam parciais e progressivas. Mediante os referidos rankings remuneratórios, reequilíbrios do poder negocial e impostos sucessórios será de esperar, tendencialmente, uma economia de capitais públicos, coexistindo com capitais privados pertencentes, sobretudo, a criadores de empresas inovadoras. Para encerar esta temática, dos novos processos de promoção da igualdade, interessa reparar que as regras específicas de regulação (processos e amplidão da nomeação de gestores, tipos de rankings, grau de imposto sucessório, etc.) devem variar de país para país, pois só uma meta-competição, entre diferentes sistemas de regulação do mercado, pode ajudar a seleccionar os melhores sistemas. A esta reflexão, economicista e no pressuposto da necessidade de compatibilizar a questão da promoção de mais igualdade com a questão da motivação e do incentivo, não podemos deixar de juntar a perspectiva cultural. De facto, haverá que considerar não só as motivações externas, de carácter materialista e financeiro, como a vontade de ter estatuto superior (vontade de hierarquia e domínio, tão bem ilustrada na sociobiologia de Edward Wilson) e o seu contraponto de altruísmo e responsabilidade social mas, também, se devem considerar as motivações internas, expressas no gosto de criar, realizar e aperfeiçoar, realçadas logo no início da chamada “teoria crítica” por Herbert Marcuse. Este autor inspira-nos a pensar numa sociedade que ajude o indivíduo a tomar consciência dos seus impulsos para o poder, identificando traumas e atavismos, de forma a libertar os impulsos mais internos, para a beleza da realização, económica social e profissional e, segundo Marcuse, para a realização do Eros, através das formas de actividade e trabalho. Em suma, a terceira via parece limitar a questão da igualdade à questão da igualdade de oportunidades e aos casos extremos, de exclusão. Ao longo dos textos de Giddens não se detecta uma tendência clara para afirmar uma maior 82 JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA valorização da igualdade nem para a promoção de sistemas de impostos que possibilitem “rankings” mais igualitários. Contudo, estas duas questões foram introduzidas nos livros de Giddens, como uma problematização das posições iniciais da terceira via, estando o seu debate já posicionado na rota do futuro conceptual da terceira via. III. Conclusão Embora a terceira via pouco argumente as suas opções fundamentais, acabando por fazer opções na ignorância de parte do pensamento moderno e da tradição socialista e que, aliás, pouco mais longe vão do que o liberalismo do século XVIII e o neo-keynesianismo, levanta várias outras questões que, embora não consiga integrar no pensamento que leva às opções que assume, constituem vectores de abertura à evolução do pensamento socialista. Como já aqui se escreveu, fica-se com a impressão de que a terceira via pretendeu, sobretudo, clarificar algumas ideias que já estavam massificadas e que poderiam ser facilmente aceites, para ficar em condições de, rapidamente, sobre elas, legitimar ideias mais operacionais para um programa eleitoral. Em artigos posteriores pretende-se vir a analisar a evolução das outras opções fundamentais, como aqui já se fez para as opções sobre o mercado económico e sobre a temática da igualdade. Pretendese, também, vir a analisar as opções operacionais da terceira via que, embora feridas por se situarem entre as palas da pobreza das opções de base, constituem, mesmo assim, um amplo e importante menu de possíveis políticas modernas. Posteriores escritos de Giddens serão, também, integrados na reflexão. 28/11/2010 83 Democracia e Economia Social: Que Futuro? Glória Rebelo “O primeiro cuidado da Democracia é levar a ideia do Governo (…) para dentro do espírito do cidadão” in António Sérgio (1974), Ensaios – Tomo VII, Obras Completas, Lisboa, Clássicos Sá da Costa: 238. 1. Introdução A viver as sequelas de uma fortíssima crise do capitalismo financeiro – que rapidamente contagiou a economia real – parece consensual afirmar que a União Europeia (UE) necessita de um projecto de renovação da agenda económica e social, apta a melhor responder a crises de idêntica ou maior dimensão. De facto, assistimos a um ambiente económico inteiramente novo, em que países – e consequentemente pessoas – se encontram sujeitos (no trabalho e na vida quotidiana) à volatilidade da informação desencadeada pela ‘revolução das redes tecnológicas’ e pela expansão da internet e à perscrutação constante dos mercados financeiros. Para acompanhar as novas realidades na economia é preciso saber identificar quais as exigências de articulação institucional capazes de responder de forma eficaz a estes desafios. Na chamada ‘Nova Economia’ não pode continuar a existir descomprometimento algum que conduza a situações de elevados níveis de incumprimento legal. O desconcerto que, em 2008 e 2009, afectou os mercados financeiros e arrastou a economia real, originando consideráveis danos sociais – designadamente um aumento significativo do desemprego e um acentuar das situações de desigualdade social, de pobreza e de exclusão social1 – exige dos poderes públicos a assunção de um papel decisivo em matéria de intervenção e correcção destes desregramentos e consequentes desigualdades. Contudo, e volvidos mais de dois anos, ante uma ainda (inexplicável) ausência de 1 Foi, aliás, num contexto de crise que o International Labour Office da Organização Internacional do Trabalho (ILO-OIT) apresentou, em Outubro de 2008, um relatório intitulado World of Work Report 2008: Income inequalities in the age of financial globalization onde se conclui que em 51 países (num universo de 73) a “parte salarial” no rendimento total dos agregados familiares tem vindo a retroceder nas duas últimas décadas. Além do mais, constata-se – em 18 dos 27 países analisados – um progressivo alargamento do fosso entre os trabalhadores mais bem pagos e os menos bem pagos. Esta tendência é particularmente visível na Hungria, na Polónia, em Portugal e nos EUA, mas afecta também países até agora considerados verdadeiros “modelos de equidade social” como, por exemplo, a Dinamarca e a Suécia. Ainda de acordo com este estudo, estas desigualdades resultam de um processo de globalização financeira e da consequente liberalização internacional dos fluxos de capitais que, desde a década de 1990, têm propiciado um aumento das crises do sistema financeiro mundial e, consequentemente, maior instabilidade económica, com inevitáveis repercussões no mercado de trabalho. 85 DEMOCRACIA E ECONOMIA SOCIAL: QUE FUTURO reforma do sistema financeiro internacional e o agudizar das situações orçamentais dos países europeus, Portugal vive – à semelhança do que acontece por toda a UE – os efeitos desta crise sem precedentes e com graves repercussões quer no plano social, em especial no emprego, quer no plano da economia real e das finanças públicas. Neste contexto, todos temos a consciência de esta crise exige respostas económicas e sociais renovadas e uma mobilização colectiva no sentido de contribuir para a sua superação. É, deste modo, que a economia social pode desempenhar um papel essencial em Portugal. Por exemplo, no plano do emprego, o rescaldo deste período de pós-crise financeira e económica internacional aponta mais de 30 milhões de empregos destruídos em todo o mundo2. E Portugal também não ficou incólume a esta destruição. Segundo dados do Eurostat, se no início desta década, em 2000 e 2001, a taxa de desemprego média anual era de 4,0% e 4,1%, respectivamente (muito inferior à média anual do conjunto dos países da UE, de 8,7% em 2000 e de 8,5% em 2001, respectivamente) e em 2008 era de 7,7%, ao longo de 2010 vem já ultrapassando os 10% e, em Setembro de 2010 situava-se nos 10,6% (registando, relativamente a Setembro de 2009, uma subida homóloga de 0,4%). Ora, aqueles que pugnam pela Democracia e pela manutenção do Estado Social – ainda que exigindo uma continua correcção das suas imperfeições – sabem que assegurar a sua sustentabilidade é cuidar do futuro. Como defendia António Sérgio, “as relações da Democracia política e da Democracia social são recíprocas. A instauração progressiva da Democracia social pressupõe instituições de democracia política: mas o perfeito funcionamento da Democracia política pressupõe um certo grau de Democracia social (…).” E prossegue: “Que entendemos nós por Democracia Social? Entendemos um sistema de vida económica inspirado de facto pela vontade geral, que é a vontade dos cidadãos como consumidores (…). O instrumento de realização de democracia social (por meios privados e não políticos – fora do Estado – tem certa analogia com o regime parlamentar: (esse instrumento) é a cooperativa de consumo, desenvolvida até produzir o que distribuirá pelos sócios, fornecendo-lho pelo custo de produção3 (Sérgio, A., 1974a: 91-92). 2 Dados anunciados, em 1 de Novembro último, na abertura do Fórum Internacional do Desenvolvimento Humano, em Agadir, pelo director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn. 86 GLÓRIA REBELO Assim, na concepção deste autor, o cooperativismo – enquanto regime económico em que é soberano o consumidor – é o sistema em que se não realiza a produção para alcançar um lucro para o produtor (como sucede no capitalismo) mas sim, e exclusivamente, para satisfazer uma necessidade do consumidor, sem lucro para quem quer que seja (Sérgio, A., 1974a: 78). E, nesta medida, “o Estado, em boa doutrina democrática, nem deve pretender substituir a iniciativa dos indivíduos, nem abandoná-la à sua sorte: deve estimulá-la e ampará-la” (Sérgio, A. 1974a: 97). Ora, na actualidade, e à semelhança do que já vai acontecendo na economia europeia, as respostas no âmbito da economia social vêm demonstrando uma relevante capacidade de criar emprego de qualidade, reforçando, concomitantemente, a coesão social, económica e regional4, uma vez que, ao aliar rentabilidade e solidariedade, geram um importante capital social, promovendo a cidadania activa e a solidariedade social. Parafraseando António Sérgio, “o grande problema da sociedade de hoje é (todos o sabemos) coarctar as depravações da organização capitalista (…) (Sérgio, A., 1974b: 226). E, como se sabe, as entidades que integram o sector social desenvolvem actividades essenciais no domínio da acção social, em especial através da prestação de serviços de assistência de proximidade e da integração social activa de grupos vulneráveis contribuindo, desse modo, para a criação de emprego e para o desenvolvimento local e a coesão social. Por estas razões, o reforço do sector social poderá constituir um inquestionável pilar do desenvolvimento socioeconómico do nosso País. Esta aposta funda-se no reconhecimento de que este sector da economia contribui de forma decisiva para a promoção de inovação social, criando riqueza, emprego e, em grande medida, promovendo, simultaneamente, a coesão social e a racionalização dos recursos públicos, atenta a sua capacidade de gerar mais oferta social a custos inferiores. Nesta perspectiva, o reforço da aliança entre o Estado e as organizações da economia social é crucial face à sua capacidade de desenvolver, no interior das 3 Cabe referir que António Sérgio não entendia a ideia cooperativa numa perspectiva exclusivista, advogando “não é necessário que a economia de um povo entre toda no molde da ideia cooperativa para que as sociedades cooperativas que nele funcionam realizem de facto uma revolução profunda, obrigando o sector capitalista da economia a corrigir-se em grande parte da sua injustiça (Sérgio, A., 1974a: 290). 4 Aliás, na linha do que também sublinha a Resolução do Parlamento Europeu 2008/2250 (INI), de 19 de Fevereiro de 2009. 87 DEMOCRACIA E ECONOMIA SOCIAL: QUE FUTURO economias de mercado, redes de solidariedade, dinâmicas e espaços de resolução de problemas, numa base de proximidade. Além do mais, revitaliza novos modelos de interacção entre o Estado, a sociedade civil e o mercado. 2. Que estímulo ao desenvolvimento da Economia Social? Constitucionalmente consagrado, o sector cooperativo e social constitui um dos pilares fundamentais da organização económico-social do Estado e um dos sectores de propriedade dos meios de produção, nos termos do disposto na alínea f) do artigo 80.º e no n.º 4 do artigo 82.º da Constituição da República Portuguesa. Além de apoiar o desenvolvimento sustentável e a inovação social, ambiental e tecnológica, o sector social chama as pessoas a um primeiro plano, dado que a presença e intervenção na economia das organizações de economia social se baseia em princípios de interesse público, isto é, na defesa dos interesses colectivos e em mecanismos de cooperação e de solidariedade. Atendendo a esta circunstância, e no sentido do fortalecimento deste sector, desde 2005, têm vindo a ser adoptadas diversas medidas públicas. Desde logo, a aprovação da resolução do Conselho de Ministros n.º 124/2005, de 4 de Agosto, mediante o qual o Governo criou o Programa para a Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), com os objectivos de modernizar e racionalizar a Administração Central e dialogar com o cidadão5. Depois, em 2006, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 39/2006, de 21 de Abril – que procedeu ao enquadramento estratégico, a avaliação organizacional simultânea da macroestrutura de todos os ministérios, através da concretização e avaliação das suas atribuições, competências e estruturas administrativas e dos seus recursos financeiros e humanos – o Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, I. P. (INSCOOP) deixa de integrar a Administração Central do Estado6. Em 2009 – e reconhecendo que o sector cooperativo e social constitui um sustentáculo fundamental da organização económica nacional – foi criada, pelo 5 Este programa estabeleceu o intento de promover economias de ganhos de eficiência pela simplificação e racionalização de estruturas, melhorando a qualidade do serviço a prestar a cidadãos, empresas e comunidades, por via da descentralização, desconcentração, fusão ou extinção de serviços. 6 Isso mesmo foi consagrado na orgânica do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 211/2006, 27 de Outubro, alterada pelo Decreto-Lei n.º 326-B/2007, de 28 de Setembro, que prevê, no n.º 2 do seu artigo 39.º, a externalização do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, I. P. (INSCOOP), através da aprovação de novo enquadramento jurídico. Autorizou-se, assim, que a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social sucedesse ao INSCOOP no exercício das suas competências e na prossecução das suas atribuições de serviço público. 88 GLÓRIA REBELO Decreto-Lei n.º 282/2009, de 7 de Outubro, a Cooperativa António Sérgio para Economia Social7. Esta cooperativa concebe condições institucionais favoráveis ao alcance dos objectivos de reforço e dinamização do papel da economia social, promovendo o envolvimento e responsabilização de todos os intervenientes e beneficiando do contacto privilegiado com as circunstâncias que reclamam o exercício da autoridade pública. Ainda em 2009 foi concretizado um programa específico de estágios profissionais, o INOV-Social, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 112/2009, de 26 de Novembro, visando a colocação de jovens quadros qualificados junto das instituições de economia social, com vista ao reforço da sua gestão e modernização8. Mais recentemente, já em 2010, de mencionar ainda, a consagração – através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 16/2010, de 4 de Março – de um conjunto articulado de medidas de estímulo ao desenvolvimento da economia social, por via da aprovação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Economia Social (PADES), assim como o lançamento do programa nacional de microcrédito no montante global de € 15.000.000, como uma significativa medida de estímulo à criação de emprego e ao empreendedorismo entre as populações com maiores dificuldades de acesso ao mercado de trabalho. Aliás o PADES tem como objectivo permitir o acesso a programas específicos de desenvolvimento das suas actividades de natureza social e solidária às entidades que integram o sector social, ou seja, as instituições particulares de solidariedade social, as mutualidades, as misericórdias, as cooperativas, as associações de desenvolvimento local e outras entidades da economia social sem fins lucrativos. Por fim, em Agosto último, foi criado o Conselho Nacional para a Economia Social, órgão consultivo, de avaliação e de acompanhamento ao nível das políticas ligadas à dinamização e ao crescimento da economia social. Este órgão será ainda responsável pela criação de estruturas e de mecanismos específicos de apoios e de incentivos ao exercício da sua actividade e ao seu desenvolvimento e visa 7 Tratando-se de uma Cooperativa de Interesse Público de Responsabilidade Limitada, sob a figura de régie cooperativa, esta instituição resulta de uma parceria entre o Estado, que detém 60% do capital social, e de “actores” da designada economia social, como a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, União das Misericórdias Portuguesas, União das Mutualidades Portuguesas, Confederação Cooperativa Portuguesa, Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas e do Crédito Agrícola, e Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local. 8 Acresce que esta iniciativa visa a inserção de jovens quadros qualificados em instituições da economia social e em empresas e instituições cuja actividade se integre nas áreas da mediação sociocultural, da promoção da inclusão e do combate à pobreza e à exclusão social, tendo em vista apoiar a modernização das instituições e o emprego jovem. 89 DEMOCRACIA E ECONOMIA SOCIAL: QUE FUTURO concretizar mais uma medida de reforço do sector social constituindo, assim, mais um inquestionável pilar do desenvolvimento económico e social do nosso país, traduzindo a intervenção estratégica que o Governo prossegue nesta área. 3. Considerações Finais Reconhecido na Constituição Portuguesa, é inquestionável o posicionamento central do sector cooperativo e social como sector de propriedade dos meios de produção e pilar importante da organização socioeconómica do Estado português. Claramente em consonância com os princípios orientadores do modelo de governação das políticas públicas – que hoje reclamam novas formas de relacionamento entre o Estado, os cidadãos e as instituições da economia social e do terceiro sector em geral – o objectivo de pensar a democracia social e, a par, a economia social (na medida em que também é um instrumento de realização da democracia social) será também o propósito de criar emprego, reforçar a coesão social, económica e regional e promover uma cidadania activa, incrementando a solidariedade. Trata-se de salientar, no plano da economia, importantes valores democráticos que – para além de apoiar o desenvolvimento sustentável e a inovação social, ambiental e tecnológica – colocam as pessoas em primeiro lugar. Acresce que, no âmbito da actual Estratégia “Europa 2020” e do intuito de assumir para Portugal um rumo de desenvolvimento sustentável no quadro da definição de uma agenda para a competitividade e crescimento europeia, através da adopção de um modelo de sustentabilidade económica e ambiental, convirá que o relançamento da nossa economia passe, identicamente, pela criação de valor e de emprego qualificado no sector da economia social, sector potenciador de um desenvolvimento socioeconómico mais solidário e, neste contexto, essencial no domínio da acção social, em especial através da prestação de serviços de assistência de proximidade e da integração social de grupos vulneráveis. Por outro lado, e dado que a presença das organizações do sector social no domínio económico se baseia em princípios de defesa dos interesses colectivos e em mecanismos de cooperação e de solidariedade, importa reforçar a intervenção estratégica a prosseguir nesta área, quer ao nível da qualificação e formação profissional quer da criação de estruturas e de mecanismos específicos de apoios e de incentivos ao exercício da sua actividade e ao seu desenvolvimento. Independentemente da diversidade de estatutos jurídicos que podem adoptar, as organizações da economia social partilham princípios e valores comuns, 90 GLÓRIA REBELO designadamente o espírito de iniciativa e de entreajuda, determinantes para o fortalecimento da Democracia e para a construção de uma sociedade mais solidária, e capazes de induzir uma maior intervenção cívica e maior responsabilização colectiva na promoção do bem-estar social. Nesta perspectiva, o fortalecimento da aliança entre o Estado e as organizações da economia social – nomeadamente pelo incremento da actividade em áreas existentes ou em novas áreas de intervenção e na modernização dos serviços prestados às comunidades – face à sua capacidade de desenvolver redes de solidariedade, dinâmicas e, numa base de proximidade, revitalizar novos modelos de interacção entre o Estado a sociedade civil organizada e o mercado. Assim, a dinamização da economia social – mediante o reforço da gestão e a modernização das instituições da economia social, em especial considerando o potencial de criação de emprego por parte deste sector, ao promover a colocação de jovens quadros qualificados junto das mesmas e ao enfatizar os valores da sua matriz fundadora como a cooperação, a solidariedade, a ligação ao território e às comunidades9 – será, pois, um decisivo passo em prol da nova estratégia de reconhecimento e de valorização do sector social. Referências bibliográficas CIRIEC (2000), As Empresas e Organizações do Terceiro Sistema – Um Desafio Estratégico para o Emprego, Lisboa, Inscoop-Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo. Estivill, J., et al. (1997), Las Empresas Sociales en Europa, Comisión Europea/Dirección General V, Barcelona, Hacer Editorial. Eurostat (2010), Eurostat– Euroindicators, 162/2010, Eurostat Press Office. Gazier, B., et al. (1999), L’Économie Sociale – Formes d’organisation et Institutions, Tomo I, Paris, L’Harmattan. International Labour Office (2008), World of Work Report 2008: Income inequalities in the age of financial globalization, ILO-OIT, Geneve. Jeantet, T. (1999), L’Économie Sociale Européenne – ou la tentation de la démocratie en toutes choses, Paris, CIEM Édition. Rebelo, G. (2003), Emprego e Contratação Laboral em Portugal, Lisboa, Editora RH. Rebelo, G. (2010), Trabalho e Emprego – Actualidade e Prospectiva, Lisboa, Edições Sílabo. Sérgio, A. (1974a), Democracia – Diálogos de Doutrina Democrática, Alocução aos Socialistas, Cartas ao Terceiro Homem, Obras Completas, Lisboa, Clássicos Sá da Costa. Sérgio, A. (1974b), Ensaios – Tomo VII, Obras Completas, Lisboa, Clássicos Sá da Costa. 9 Aspecto que as torna altamente merecedoras da confiança das populações e essenciais para o desenvolvimento das políticas sociais. Assim, alargar o reconhecimento social desta realidade, fomentar a participação das instituições da economia social na produção de bens e serviços, na criação de emprego, na qualificação dos recursos humanos e na capacidade de inovação são os objectivos centrais de uma renovada aposta neste sector. 91 PARLAMENTO: A I RÉPUBLICA E NÓS Nós e a Primeira República Augusto Santos Silva 1. O debate sobre o valor da Primeira República Faz certamente todo o sentido assinalar a passagem das horas e pontuá-la regularmente com marcas comemorativas. A comemoração remete para a memória colectiva e para a celebração formal de eventos passados, e uma comunidade estruturada precisa de uma e outra coisa para forjar e consolidar a sua identidade. Não será seguramente o melhor quadro de referência da pesquisa científica propriamente dita, tal o risco de anacronismo que potencia. Mas pode e deve favorecer as condições práticas para a sua realização e, sobretudo, constituir uma oportunidade para a maior divulgação pública dos seus métodos e resultados. Não confundamos, pois, a análise histórica das estruturas e acontecimentos passados e a elaboração reflexiva sobre o seu sentido, de acordo com as perspectivas e os critérios de hoje. Claro que a segunda deve incorporar elementos da primeira e colher dos seus ensinamentos, assim adquirindo densidade. Mas a reflexão sobre o sentido contemporâneo da história – o sentido da história para os nossos contemporâneos – é uma construção normativa, alicerçada nos nossos valores de agora, devedora do nosso enfoque e interesse. E, como nenhum destes ingredientes da vida social é uniforme, aquela reflexão só pode conceber-se a si mesma como um lugar e eixo de debate, que são múltiplas as perspectivas, os valores, os interesses e as apreciações possíveis. Faz, portanto, todo o sentido aquilatar, hoje e para o Portugal de hoje, do sentido da Primeira República. Mas atentas três prevenções fundamentais: que essa avaliação é plural, como confronto intelectual e político sobre os múltiplos significados que podemos atribuir à experiência republicana; que essa avaliação não subsume nem substitui o plano específico e autónomo da historiografia, cujos termos de referência são outros; e que, todavia, não deve ignorá-la, antes considerá-la, que o conhecimento não é obstáculo mas sim precioso apoio para a memória e a identidade colectiva. 93 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA A minha hipótese é simples, diz-se em três frases. A referência ao regime democrático que é o nosso, depois do 25 de Abril de 1974, é um bom modo de abordagem do sentido da Primeira República – dá-nos distância face a questões que foram então estruturantes mas nós conseguimos ultrapassar (já não precisamos de nos definir se pró se contra Afonso Costa, e isso faz toda a diferença), e apetrecha-nos com um bom conjunto de critérios de avaliação (os critérios próprios de uma democracia pluralista, laica e europeia). A melhor maneira de ponderar o 5 de Outubro de 1910 é recusarmos a sua mitificação – é uma data-chave, na formação histórica do Estado e da sociedade portuguesa, mas combinada com outras datas também relevantíssimas, como 1820, 1834 e 1851, para a fundação liberal, 1890, por causa do Ultimato, 1961, o início da guerra em África, ou o par 1974-1986, que efectiva a vinculação europeia do Portugal democrático. E, finalmente, os termos de uma indagação contemporânea da República hão-de considerá-la, não apenas no período histórico de 1910 a 1926, mas também antes e depois dele: antes, para compreender a génese e o conteúdo do ideário republicano; depois, para reter a acção republicana na resistência ao Estado Novo e, simultaneamente, o que há de desenvolvimento e o que há de ruptura, ou superação dialéctica, no quadro democrático actual face à ideologia e ao regime republicano. 2. O ideário republicano Ao longo da segunda metade do século XIX e com especial intensidade na última década do século XIX e na primeira do século XX – até se tornar hegemónico no campo intelectual e no espaço público português – o ideário republicano e o movimento social que lhe deu corpo afirmaram e fizeram valer um conjunto de princípios que, para o que nos interessa aqui, podem ser organizados em quatro linhas fundamentais. A primeira é justamente a defesa da República como a consequência lógica do liberalismo político, isto é, da fundação do Estado na representação dos cidadãos. O republicanismo inscreve-se na linhagem do liberalismo radical, aquele que procura democratizar o regime representativo. Por duas vias: recusa de outra legitimidade política que não a assente na igualdade de direitos políticos e na escolha dos cidadãos – e, portanto, eliminação dos órgãos do Estado devedores ainda de outras fontes de legitimidade, desde 94 AUGUSTO SANTOS SILVA logo a monarquia e o pariato; e alargamento do universo dos que escolhem, através da instituição do sufrágio universal (masculino). É preciso conhecer o contexto histórico fini-oitocentista para compreender o que de transformador havia, então, nestas orientações que hoje, com a evidente excepção da exclusão das mulheres, nos parecem óbvias. Note-se que a monarquia constitucional portuguesa investia o rei de poderes efectivos na regulação das instâncias executiva e legislativa (através por exemplo da nomeação de pares, da indigitação e demissão do governo e da concordância com a convocação de eleições); que o universo eleitoral era muito restrito, significando, à data de 1910, cerca de 12% da população (Rosas, 2009: 24, citando Pedro Tavares de Almeida); e que a eleição propriamente dita era mais a confirmação do governo em funções do que a escolha de um novo, tal a regularidade com que a ganhava o governo que a “fazia”. Percebe-se, assim, melhor a associação matricial do republicanismo à vontade de eliminar privilégios políticos de status, estender a igualdade política e favorecer a participação cívica. E também se perceberá porque é que acabou por prevalecer, salvo no interregno sidonista, a orientação tipicamente parlamentarista, que se recusava a conceder ao presidente da República outra legitimidade eleitoral que não a escolha indirecta pelo Congresso. A segunda linha fundamental do republicanismo é a defesa do primado da questão política. Para os seus ideólogos e líderes, a resolução da questão institucional, do regime político, constituía uma condição prévia e necessária da superação dos problemas que aquelas que a si próprias se consideravam “gerações modernas” iam persistentemente identificando no (como diria Oliveira Martins) “Portugal contemporâneo”: o problema do desenvolvimento económico, o problema da sintonia com o tempo europeu da criação artística e cultural, o problema da justiça social. O sistemático desencontro entre republicanos e socialistas, dos anos 1860 até ao pós-Grande Guerra, repousava, do ponto de vista doutrinário, nesta divergência básica: para os primeiros, a questão política precedia e prevalecia sobre a questão social; para os segundos, a lógica estava no inverso. No plano da acção antimonárquica, este desencontro não impediu a mobilização maciça dos trabalhadores urbanos da indústria, comércio e serviços em torno da causa republicana; e, mesmo depois do 5 de Outubro, mau grado a ruptura entre o novo poder e o movimento operário e sindical, este nunca colocará em dúvida a forma 95 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA do regime. Mas a liderança republicana pertence a uma classe média liberal-radical, que é mais liberal do que socializante no plano económico e social e centra o essencial da sua acção nas instituições políticas, ao passo que os activistas socialistas e sindicais desvalorizavam a questão da conformação do regime político – o que, entre outros factores, ajuda a explicar porque vários dos seus mentores foram receptivos, no último quartel do século XIX, às propostas de reforma política antiliberal (na onda do “socialismo catedrático”), ou porque é que o movimento sindical começou por manifestar não-hostilidade, senão até apoio, a Sidónio Pais. Há uma terceira ideia-força do ideário republicano, a necessidade e viabilidade da “regeneração” do País. O termo e o tema são tipicamente oitocentistas, mas o que os republicanos lhes acrescentam, na última década desse século e na primeira do seguinte, é a ênfase positiva na possibilidade. O Ultimato de 1890 foi o acontecimento-choque que exprimiu traumaticamente a desvalia portuguesa, comparada com as potências que contavam na cena internacional colonial; e o republicanismo foi buscar muita da sua força à capacidade de responder positivamente a esse sobressalto, puxando para si a causa e a retórica patrióticas e propondo um nacionalismo democrático, baseado na ideia romântica do povo como sujeito da história. Os republicanos reivindicavam para si a concepção adequada, porque integradora, da nação; identificavam no “povo português” (à maneira de Teófilo Braga) o sujeito colectivo fazedor da sua história; e propugnavam um novo orgulho nacional assente na capacidade, que prometiam, do novo regime para mobilizar os portugueses no pleno aproveitamento dos seus recursos, com destaque para as colónias. Esta visão positiva está por sua vez amparada num projecto que se inscrevia a si próprio na matriz iluminista, pretendendo constituir-se como projecto político-cultural (Catroga, 1991: 168-171): quer dizer, sustentado na razão e no conhecimento (“positivo”) e empenhado em fazer do Estado a instância de produção de uma nova ordem cívica e social. Esta convicção na inelutabilidade do progresso não desviava, contudo, os republicanos da acção política, não só porque esta era justamente pensada como condição necessária de mudança social, mas também porque a sua orientação era tipicamente confrontacional: se era possível vencer o atraso e conformar o futuro, era necessário, para que essa possibilidade se concretizasse, combater os factores e as forças do atraso. 96 AUGUSTO SANTOS SILVA E o que tornava possível vencer o atraso era a possibilidade de identificar, confrontar e derrotar as forças por ele responsáveis. A denúncia do ultramontanismo e o anticlericalismo militante não constituíram apenas motivos oportunos para uma propaganda e uma mobilização social bem sucedidas (Bonifácio, 2010: 163-165); eram também a consequência prática de uma “mundividência” para a qual o “obscurantismo” e a negação da autonomia pessoal resultavam de uma influência demasiada do confessionário sobre a consciência, isto é, da tutela do clero sobre os indivíduos. Correlativamente, a apologia da educação laica, seja como generalização da instrução, seja como vinculação sua ao saber e à ciência, seja como inculcação de uma moral secular, era o esteio fundador da nova ordem cívica. Portanto: radical, na linhagem do vintismo, vinculada a uma inclinação democratizante e laica; nacionalista, progressista e optimista, paladina das capacidades colectivas para melhorar a sorte do país e do seu povo; orientada para a acção e a confrontação, isto é, enunciando politicamente os problemas, os adversários e as estratégias e forçando, consoante os casos, a resistência, a mobilização, a ruptura e o exercício do poder – esta cultura política republicana consolidar-se-á, desde os fins do século XIX, como um eixo persistente da visão do mundo defensora da mudança em Portugal e, pode dizer-se mesmo assim, sobreviverá ao teste da realidade entre 1910 e 1926, acabando por ganhar novo fôlego, enquanto referência paradigmática, na oposição ao Estado Novo. 3. As decepções da República Plano bem diferente é o da prática da República. Aferida pelos critérios da sua própria cultura política – teste da coerência – e pelos critérios associados à nossa concepção democrático-institucional de hoje – teste da actualidade – a Primeira República portuguesa tanto evidencia progressos significativos como é assombrada por múltiplas decepções. Quatro decepções fundamentais. A primeira e talvez a mais excruciante, porque tocou no cerne do ideário republicano, foi a renúncia, logo em 1911, à aprovação do sufrágio universal. 97 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA A lei eleitoral republicana manteve o sufrágio restrito, reduzindo o direito de voto aos homens chefes de família alfabetizados – e o universo eleitoral até viria a ser, proporcionalmente, inferior àquele que a monarquia liberal havia atingido na década de 1880 (Matos, 2010: 115-116). Apesar da importância da emancipação feminina como tema e corrente do movimento republicano, o novo regime recusou qualquer passo rumo à extensão do sufrágio às mulheres. E, mesmo nos homens, manteve as exclusões fundadas no estado civil e na instrução. Só no sidonismo, e com propósitos plebiscitários, foi alargado o sufrágio, até atingir potencialmente todos os elementos do sexo masculino. Mas o retorno da lógica parlamentar operou de novo a restrição eleitoral. Esta inversão não correspondia apenas ao incumprimento de uma promessa-chave dos tempos da propaganda. Foi também um erro profundo dos republicanos, que os impediu de transformar a legitimidade revolucionária original, do 5 de Outubro, numa legitimação social (Matos, 2010: 81). E decorria de uma visão muito arreigada na liderança republicana. Mesmo após a Primeira Grande Guerra, que é o momento em que muitos países da Europa Ocidental optam pela ampliação do sufrágio e, em particular, pela sua extensão às mulheres, a República Portuguesa manteve uma atitude muito defensiva, receando o conservadorismo e a tutela católica sobre o povo e daí deduzindo que entregar-lhe o voto equivaleria a pôr em causa o próprio regime. Mas, evidentemente, este receio demonstrava uma tal descrença do regime em si próprio que era, em si mesmo, um poderoso factor da sua deslegitimação. A este incumprimento outros se somaram, ainda quanto ao sistema político. Um foi o da promessa da descentralização – a qual, em algumas vozes e momentos, chegara a assumir as vestes do federalismo municipalista. A República pouca iniciativa viria a ter na descentralização, no Continente, embora avançasse realmente na capacitação institucional das colónias. O outro foi – por mais estranho que pareça hoje a quem esteja muito influenciado pela mitologia republicanista – o incumprimento da promessa de alargamento das liberdades políticas. Pelos seus próprios critérios, os republicanos no poder (e, em particular, o Partido Democrático) evidenciaram demasiadas vezes autoritarismo, intolerância, intimidação e violência política (cf. também Valente, 1976). Podemos falar, em segundo lugar, no que toca às decepções do regime republicano, nas rupturas excessivas em que se envolveu. Não há aqui espaço 98 AUGUSTO SANTOS SILVA para dirimir a questão das responsabilidades relativas das partes em confronto. Mas bastará assinalar que a própria orientação confrontacional da facção mais radical do republicanismo, aliás nele hegemónica, a afonsista, levou sistematicamente a que se envolvesse nessas rupturas excessivas, ou porque activamente as promovesse, ou por não dispor do talento táctico indispensável para evitá-las. E falo em rupturas excessivas não perante qualquer fantasmático juízo da história, mas sim perante os interesses e necessidades de ancoragem social do novo regime. É apenas neste sentido que creio ser indisputável que foi excessivamente fracturante a questão religiosa e, sobretudo, a hostilidade permanente face ao movimento operário sindical. A primeira, porque prejudicou o alargamento da base social de um regime que tinha sido preparado e imposto pelas classes médias e populares, de Lisboa e do Porto. A segunda, porque rompeu este mesmo bloco urbano. Igualmente contraditórias com os valores e as promessas do ideário republicano foram certas linhas de continuidade em relação à última monarquia. E a mais flagrante ocorreu no domínio eleitoral. Uma das mais poderosas críticas dos republicanos ao regime do rotativismo liberal era a distorção do significado político do processo eleitoral. Em vez de ser a eleição a determinar a composição do governo, era a natureza do governo a determinar o resultado eleitoral, visto não haver memória de um governo que organizasse eleições as haver perdido. O que estabelecia a alternância não era, pois, a vontade do eleitorado, mas sim o mecanismo da “rotação”: um ministério “gastava-se” e, quando a erosão atingia certo nível e/ou a pressão oposicionista subia a um certo patamar, o rei substituía-o por outro, que, quando necessitava de convocar eleição confirmadora, invariavelmente a ganhava (cf. Magalhães, 2009: 19, 31-33). Ora bem: mutatis mutandis, este controlo do governo sobre a eleição prolongar-se-á pela Primeira República fora, sendo aliás agravado pela persistente hegemonia do Partido Democrático face aos seus concorrentes e pela reversão a seu favor da rede clientelar e da lógica caciquista de Oitocentos. Só uma vez, em 1922, a regra da vitória eleitoral do governo incumbente foi quebrada – sintomaticamente, quando o governo não era Democrático. Deve, enfim, acrescentar-se outro motivo de decepção, no sentido que aqui atribuímos à palavra, isto é, outra falta de correspondência da prática ao ideário que a inspirava. Tem ela a ver com insucessos, absolutos ou relativos, 99 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA face a objectivos prosseguidos. Primeiro, quanto à estabilidade política: aos 20 governos em 20 anos que conhecera a monarquia (Serra, 2009: 107) na sua última fase acrescentou a República o impressionante registo de 48 governos em 16 anos – e o traço mais marcante até nem estará aí, mas na indiferença dos partidos e lideranças por este factor de desestruturação do regime (Matos, 2010: 103). Segundo, quanto à participação na Grande Guerra, que colocou Portugal do lado das nações democráticas e também por aí contribuiu para a consolidação da forma republicana, mas fez-se em condições deploráveis de preparação militar, precipitou a crise social e política, e não logrou para o país, na hora da paz, qualquer benefício relevante, associado à sua condição de membro da coligação vitoriosa (cf. Meneses 2009a, Meneses 2009b, Teixeira, 2010). E até, terceiro, o insucesso que conheceu a República numa das suas causas essenciais, o combate ao analfabetismo: a redução da proporção de analfabetos foi apenas de quatro pontos percentuais entre 1911 e 1920 (Proença, 2009: 178), o que, mesmo ponderando a fragilidade da informação estatística, mas tendo em conta a dimensão social do problema (75% de analfabetos em 1911) e a extrema importância política que os republicanos lhe haviam concedido, representa indubitavelmente um malogro. 4. As realizações da República A avaliação da Primeira República, tal como proponho que a façamos – da perspectiva do nosso próprio tempo e quadro democrático – não pode contornar o extenso rol de insucessos, incumprimentos e desilusões. A República falhou a democratização política pelo sufrágio eleitoral, sabotou os seus próprios fundamentos por demasiado distanciada do movimento sindical urbano, prejudicou a extensão dos alicerces por demasiado intolerante perante as formas religiosas do país rural, esmoreceu ou pura e simplesmente não conseguiu levar até ao fim a sua ambição de alfabetização universal, e perdeu a sua aposta estratégica na participação na Grande Guerra. Mas importa também salientar o seu lado solar, as realizações que obteve, e foram várias, no plano das liberdades e direitos civis, das instituições políticas e das estruturas sociais. Assim, a República defendeu e aprofundou o parlamentarismo. Não ainda aquele que hoje conhecemos e praticamos. Basta recordar a restrição 100 AUGUSTO SANTOS SILVA do sufrágio; o menosprezo pelo processo eleitoral; a frouxa “indicação parlamentar”, como então se dizia, e fez com que, por várias vezes, a assembleia chegasse a “sustentar governos de orientação política oposta à maioria parlamentar” (Matos, 2010: 103); ou a extrema instabilidade dos executivos. Mas, ao eliminar as instâncias não representativas, em sentido estrito, como a realeza e o pariato, a República tornou clara a fonte da legitimidade, vinculou-a à escolha dos cidadãos e consolidou a representação plural dos diversos interesses e segmentos como a base de sustentação do sistema político. Como sabemos, a dupla eleição directa da assembleia legislativa e do presidente da República não constitui, por si só, entorse à centralidade da instituição parlamentar; mas a corrente hegemónica da Primeira República foi coerente com o seu visceral parlamentarismo ao preferir a eleição indirecta do Presidente pelo conjunto do Congresso. Portugal avançou bastante, entre 1910 e 1926, na concretização da ideia tipicamente moderna e democrático-liberal de que a integração nacional se faz pela representação livre, plural e conflitual das diferentes correntes políticas e sociais que, constituindo a nação, devem estruturar o seu sistema político. Concomitante e correspondentemente, progrediu também na doutrina e na prática da cidadania. Na época de oposição à Monarquia, o Partido Republicano já se havia destacado como o primeiro partido de massas português (Catroga, 1991: 11), fazendo pleno uso dos instrumentos de mobilização social e da sua cenografia, com os seus órgãos de imprensa, as estruturas locais de recrutamento, formação e enquadramento, a propaganda, os actos cívicos, manifestações e comícios. Foi assim construindo uma base social e política no meio urbano de Lisboa e Porto, liberal-radical na orientação e pequenoburguesa e operária na ancoragem popular, que verdadeiramente fez triunfar em Outubro de 1910, quando foi chegada a hora das incertezas e hesitações, a revolução republicana. Este exercício constante e, nos termos da época, muitas vezes agitado e violento, da cidadania, como intervenção activa nos destinos do país, foi uma marca de toda a história da Primeira República, aquela que se fez quase sempre só na cidade de Lisboa. Contou com os ingredientes institucionais próprios, como os partidos políticos, as associações de interesses, os movimentos sociais, as sociedades secretas, e influenciou a Marinha, o Exército e a novel Guarda Republicana. Debateu apaixonadamente as questões públicas, desde logo a do regime, mas também a educação, o trabalho, a religião, o 101 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA fomento, a colonização, as artes, a ciência, o “homem novo”. E fê-lo num espaço público que nunca antes havia existido com tal pujança e dimensão. Coerentemente, a grande obra da República pode dizer-se que foi a libertação do indivíduo face à tutela religiosa. É este o efeito estrutural da instituição do registo civil, que, retirando à Igreja Católica o monopólio do conhecimento e legitimação dos marcos mais relevantes do trajecto pessoal e familiar de vida, estabeleceu uma área de autonomia intransponível para cada indivíduo-cidadão. A modernização do direito de família, incluindo a regulação do divórcio, vai no mesmo sentido e a respectiva legislação é uma das mais avançadas na sua época, à escala internacional. E, mesmo que descontemos o lado mais panfletário e agressivo (excessivo na fractura, como atrás sustentei) da Lei da Separação do Estado das Igrejas e das hostilidades de parte a parte, nos primeiros anos do regime, o facto é que a afirmação da natureza laica das instituições públicas, civis e políticas, inscreve-se neste mesmo movimento de autonomização plena da esfera pública e de prossecução de uma moral cívica e de uma formação elementar desvinculadas da linguagem e dos valores religiosos. Também por isso, é matricial à Primeira República, não só a elaboração de uma “utopia demopédica” (Pintassilgo, 2010), como a concepção e a implantação de um sistema nacional, laico e moderno, de educação. Tem sido apropriadamente notado que, neste como noutros planos, o traço mais característico da prática republicana foi mesmo a continuidade, aqui com o apostolado dos grandes pedagogos fini-oitocentistas (muitos deles republicanos) e com as reformas empreendidas ou tentadas pelos governos da monarquia (incluindo o primeiro de João Franco), desde os anos de 1890. Por outro lado, já verificámos que, na crueza dos números, só se pode qualificar como malogrado o esforço republicano de combater, com a energia e envergadura requeridas pela enormidade do problema, o analfabetismo. Mas não é menos verdade que é a República que, em primeiro lugar, coloca a “instrução pública” no cerne da doutrina e da agenda política; e, depois, que acarinha a educação popular e a modernização pedagógica, acentua a centralidade da formação e do estatuto dos professores do ensino primário, incrementa o nível secundário e a fileira técnica e profissional, funda as duas novas universidades de Lisboa e do Porto, promove a escolarização das raparigas e lança as bases de uma formação cívica elementar, para todos os jovens estudantes. 102 AUGUSTO SANTOS SILVA 5. A República revalorizada pelos seus adversários Há, pois, múltiplos e variados bens a colocar no prato da balança da República que pesa as suas realizações. Mas a República não foi “una”, nem, como ideia, movimento, acção e cultura política, se esgotou com o 28 de Maio de 1926. Foi, desde logo, marcada pela conjuntura da participação na Grande Guerra e do fim desta. A primeira liderança do regime – e, desde logo, Afonso Costa – acabou por se afastar, e emergiu uma nova esquerda republicana que, sem deixar de ser republicana, quis ser reformista e aberta à social-democracia, trazendo para o programa e a acção política a questão social, procurando reatar os laços com o operariado, impondo avanços na legislação laboral – e fazendo a revisão crítica, por vezes aguda, da doutrina e prática da sua própria família. É essa esquerda republicana, seja no seu plano mais político, com José Domingues dos Santos e outros, seja sobretudo no seu plano intelectual e ideológico, com o grupo da Seara Nova (António Sérgio, Raul Proença, Jaime Cortesão…), que muitas vezes nos serve de referência principal quando procuramos valorizar, hoje, o legado republicano. Há quem sustente que a afirmação pública desta corrente republicana e, em geral, o esforço de redireccionamento do regime na sequência do armistício e da morte de Sidónio Pais, com a promessa de uma “República Nova”, constitui uma espécie de regeneração. Falhada até 1926, que os arreigados vícios da instabilidade política, do sectarismo partidário e do recurso à violência contra adversários políticos, somados à hostilidade dos interesses económicos, tudo isso que fez, nos termos da época, que acabasse por se tratar de uma “Nova República Velha”, criou o caldo favorável ao triunfo do movimento anti-republicano e ao sucesso do golpe militar do 28 de Maio e da clarificação que se lhe seguiu, em rumo antiliberal. De modo que a regeneração da cultura e do movimento republicano far-se-ia verdadeiramente após a Primeira República, na imediata oposição à Ditadura Militar e ao Estado Novo (Rosas, 2010: 237-239). Esta apreciação tem algum fundamento. A larguíssima maioria dos republicanos não se enganou de campo, durante o salazarismo. E, logo que se tornou clara a direcção para que se caminhava após o 28 de Maio, multiplicaram-se os actos de insurreição e resistência (cuja dimensão foi, aliás, durante bastante 103 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA tempo desconhecida ou desvalorizada, mesmo no meio historiográfico). Os reformistas críticos do pós-Grande Guerra e os velhos liberais-radicais dos primórdios do movimento e do regime encontraram-se na resistência – e aí encontraram também alguns dos que promoveram ou pactuaram com o sidonismo e dos que defenderam, nos anos de estertor, a chamada “ditadura de competências”. Os direitos e garantias pessoais, as liberdades políticas, as eleições pluripartidárias, as instituições representativas, a autonomia do poder judicial, a independência sindical, etc., fabricaram ao mesmo tempo o cimento ideológico agregador do republicanismo pós-República e a linha de divisão intransponível com o salazarismo. Nesse longo combate sem tréguas até 1974, o republicanismo encontrou uma nova razão de ser. Se quisermos compreender plenamente esta renovação, devemos, a meu ver, introduzir ainda dois elementos adicionais. O primeiro deriva de que a construção ideológica do salazarismo se fez radical e frontalmente contra o republicanismo, na medida em que ele constituía o prolongamento do liberalismo nacional. Fazia parte desse odioso século XIX tão vilipendiado pelos ideólogos do fascismo à nossa maneira. Num certo sentido, um pouco cínico mas objectivamente incontornável, os republicanos não podiam mudar de campo porque o outro campo sempre os repeliu como inimigos. Esta verdade histórica – que os republicanos se inscrevem na corrente radical do liberalismo, de inspiração jacobina e filiação portuguesa “vintista” – sempre foi assumida, até à caricatura, pelos salarazaristas, que a ela intencionalmente encostaram a direita liberal em que se reconheciam os evolucionistas e os unionistas da República, procurando reduzir todo o liberalismo à sua matriz franco-jacobina. É exactamente por isto, porque o republicanismo representou, no tempo da resistência à Ditadura, o pólo do liberalismo democrático – dos direitos humanos, das liberdades políticas e das instituições eleitoralmente representativas – que ele persistiu e se reforçou. E foi o extremismo anti-republicano da primeira fase do Estado Novo, levado ao paroxismo na apologia das virtudes do analfabetismo (Mónica, 1977), que fez, por exemplo, com que à República ficasse atribuído um empenhamento convicto na educação pública para todos - uma medalha que, à luz dos factos, ela não merecera inteiramente… O outro elemento a ter em conta, para a plena compreensão disso a que venho chamando a renovação do republicanismo na resistência ao Estado 104 AUGUSTO SANTOS SILVA Novo, é a sua abertura e interacção com outras correntes políticas de oposição, e designadamente com o socialismo. A ideologia não é estática, mas sim dinâmica e, ao longo das cinco décadas de ditadura, a causa republicana foi-se transformando. Em particular, e sem perder a sua típica vinculação liberal-radical, aprendeu a enunciar de forma mais integradora a questão económico-social e a actualizar os termos (e o nível de prioridade) da questão religiosa. 6. Nós, distantes e próximos da República Eis, pois, o caminho que foram fazendo e refazendo o republicanismo e a República, de meados do século XIX até aos nossos dias – o caminho que os trazem até nós, o caminho que, como sustentei no início deste texto, me parece ser o melhor enquadramento para ver e representar bem o valor da experiência do regime republicano de 1910 a 1926. Nós, que pensamos a República cem anos depois do seu advento, estamos muito distantes dela. Em primeiro lugar, porque compreendemos o distanciamento que os impasses práticos do regime suscitaram nos seus próprios defensores. Por todos, António Sérgio exprimi-lo-á bem, ao dizer, em 1929, que o facto é que os republicanos não tinham feito uma verdadeira república (citado por Pereira, 2010: 123). Isto é: o ideário ficara por realizar, a mudança de regime político não tinha servido, ao contrário da promessa dos tempos da propaganda, de alavanca para a reforma económica, social e cultural. E nós, que olhamos para a Primeira República da perspectiva da Segunda, que realmente conseguiu articular democratização política, integração europeia, modernização cultural e desenvolvimento social, somos capazes de perceber esse desalento. Um mundo nos separa, também, do vanguardismo da liderança da Primeira República. Ela foi atravessada por uma divergência essencial entre os que, seguindo Afonso Costa, entendiam que a República como que pertencia aos republicanos e os que, seguindo António José Almeida, sustentavam que a República devia pertencer a todos os Portugueses (cf. Matos, 2010: 126128). A longa prevalência do primeiro entendimento, que cindia o país entre o “povo republicano” de Lisboa e o restante, implícita ou explicitamente diminuído como conservador, não-instruído, não-esclarecido, suposta presa fácil de clérigos e senhores, e que reservava aos militantes republicanos 105 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA uma espécie de direito de propriedade, acabou por impedir que a República transformasse a sua legitimidade revolucionária original numa legitimidade institucional, que integrasse a população por via do alargamento do sufrágio e que ampliasse o consenso social em torno de si própria. Pelo contrário, a ruptura com o movimento operário e sindical e as clivagens internas ao campo republicano fizeram com que mesmo o bloco social e a plataforma política que fizeram o 5 de Outubro se reduzissem e enfraquecessem. O contraste com a República democrática e europeia do Portugal pós-25 de Abril não poderia ser maior – e a favor deste, que soube integrar os vários interesses e correntes políticas num quadro institucional pluralista e inclusivo, e soube criar e consolidar espaços de compromisso e concertação social. Neste sentido, a promessa de uma República democrática, enunciada e não cumprida pelos republicanos de 1910, foi plenamente realizada pelos democratas de 1974: a universalização do sufrágio, a liberdade de imprensa, associação e reunião, a competição livre e pública entre correntes políticas, a alternância no poder, a limitação e a interdependência dos poderes, a estabilidade das instituições, o compromisso do Estado laico com a liberdade e o pluralismo religioso, tudo o que nós damos por garantido, em Portugal, de diferentes e progressivas formas, desde 1974 (com o derrube da Ditadura), desde 1976 (com o fim da transição revolucionária), desde 1982 (com a plena consagração constitucional de uma democracia civil) e desde 1986 (com a integração europeia), tudo isso nos coloca bem longe da Primeira República. Não há nenhuma razão para esconder ou menorizar esta distância. Mas ela é ainda, a seu modo, uma proximidade. A Segunda República é bem diferente da Primeira República também porque a Primeira se fez a partir de um ideário que é mais largo e denso do que as realizações práticas que inspirou, porque a Primeira República existiu como regime, com os seus êxitos e bloqueamentos, em circunstâncias que em nenhum momento foram de facilidade, e porque a Primeira República sobreviveu a si mesma, como uma das razões e um dos programas para a resistência e o combate à ditadura que a derrubou e substituiu. E estes factos foram outras tantas possibilidades de advento e consolidação de uma nova República, essa sim, segundo os nossos critérios de hoje, estritamente democrática. Assim, e desde logo, a Segunda República prosseguiu e ampliou o processo de institucionalização de um regime republicano, laico, liberal e parlamentar, que esteve na matriz da Primeira República – democratizando-o plenamente. 106 AUGUSTO SANTOS SILVA Depois, a Segunda República superou duas das questões fundadoras de 1910 – e as fracturas que uma polarização excessiva dos seus termos tinha causado na sociedade portuguesa – porque de certa forma as encerrou, isto é, as levou à sua conclusão lógica e politicamente inclusiva. Uma foi sem dúvida a questão religiosa, que foi central na Primeira República e foi resolvida pela Segunda. Esta, com a opção institucional por um Estado laico mas não anti-religioso, o respeito pela pluralidade das confissões e a valorização delas no espaço público e nas formas de organização social, tornou anacrónica a antiga antinomia entre jacobinismo e ultramontanismo. A outra questão foi a da educação, que pôde deixar de ser a bandeira de uma facção e a promessa da fundação de um “homem novo” animado por uma espécie de religião laica, para ser um tópico de consenso social e um tema de políticas públicas para o desenvolvimento pessoal e social, a participação cívica, a qualificação dos recursos humanos e a competitividade. Finalmente, a Segunda República pode ir mais longe do que a Primeira porque a Primeira a desafia. Como bem notou Salgado de Matos (2010: 9, 137-138), o impacto da Primeira República foi e é muito forte, mas no plano simbólico. E, quando procuramos perceber os fundamentos desse impacto, é difícil não notar que estão na ideia de cidadania e no sentimento de confiança nacional. Na ideia da cidadania como fonte do governo da comunidade política, na forma republicana, isto é, sem nenhuma instância subtraída à vinculação, directa ou indirecta, às escolhas dos cidadãos; e na ideia de cidadania como autogoverno dessa comunidade, sem tutelas estranhas à sua própria estruturação. E no sentimento de confiança nacional, nessa vontade de agir e nessa fé na capacidade do país para mudar, progredir, identificar e afrontar os factores de atraso e explorar e concretizar as suas potencialidades, que fez do republicanismo a força de mobilização e a proposta de reencontro da nação consigo mesma, após a experiência traumática do Ultimato, e que orientou muito do que a República procurou fazer, mesmo que sem êxito, incluindo a participação na Grande Guerra do lado das democracias e, subsequentemente, a sua própria auto-regeneração. No tempo presente, em que o espaço público português é tão hegemonizado pela retórica da lamúria (como bem lhe chamou, na Presidência, Jorge Sampaio) e pela hipervalorização de tudo o que possa parecer sintoma de desvalia e prova de incapacidade própria, de nós Portugueses, para 107 NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA desenharmos o nosso futuro, este desafio que nos vem dos primeiros republicanos talvez seja a sua “lição” mais fecunda. E não é isso o que nós buscamos quando procuramos compreender o nosso presente dialogando com o nosso passado com os olhos do nosso presente – desafios, problematizações que nos inspirem, quer dizer, que nos inquietem e motivem? Referências bibliográficas: Bonifácio, Maria de Fátima (2010): A Monarquia Constitucional 1807-1910, Lisboa: Texto. Catroga, Fernando (1991): O Republicanismo em Portugal da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 2 vols., Coimbra: Faculdade de Letras. Magalhães, Joaquim Romero (2009): Vem aí a República! 1906-1910, Coimbra: Almedina. 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Do Republicanismo ao 28 de Maio, Lisboa: Público. 108 O Partido Socialista nos Primeiros Anos da Ditadura* Constantino de Oliveira Gonçalves O Partido desde o seu nascimento ao fim da I República Dir-se-ia que em vão entrou em Portugal, por alturas da segunda metade do século XIX, o “Manifesto Comunista”. Simplesmente, porque não existia a classe do operariado, sua legítima destinatária. Oficinas caseiras entremeadas com indústrias de trazer por casa, eis o panorama geral num pano de fundo de ruralidade arraigadíssima com pontos de modernidade isolados, mais em Lisboa menos no Porto, só resquícios além. A esta quase ausência de proletariado, junta-se a fortíssima marca da miséria, eterno apanágio dos trabalhadores portugueses. Analfabetismo nos 79%, mortalidade infantil de 238‰, condições de trabalho de todo degradantes, permanente instabilidade no emprego1. É neste cenário que vai fermentar o Partido Socialista. E esta desgraçadamente debilitada massa operária, reduzida no número e no potencial reivindicativo, aliada à falta de capacidade que o partido vai demonstrar na conquista de um espaço político próprio, serão os estigmas de que o socialismo português não se livrará até à sua autodissolução em 19332. Recuemos aos primórdios: Em 1852 tínhamos a criação do “Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas”, alimentado por um grupo de socialistas utópicos. Bebiam doutrina em Fourier e Saint-Simon e “aspiravam à fraternidade e igualdade entre os homens e sonhavam com uma sociedade formada em moldes cooperativos e federativos”. Pretendiam a transformação do país “numa comunidade composta * Com a autorização do autor, publicamos os quatro primeiros capítulos da tese de Mestrado “O Partido Socialista nos Primeiros Anos da República”, defendida em Março de 2007 por Constantino Oliveira Gonçalves. A Finisterra, agradece ao seu autor a oportunidade que lhe foi gentilmente concedida para a publicação deste excelente texto. 1 PEREIRA, M. Halpern, Livre Câmbio e Desenvolvimento Económico, Sá da Costa, Lisboa, 1983, p. 40. 2 Entalado que irá permanecer sempre entre os anarco-sindicalistas, os republicanos e os fascistas. 109 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA por pequenos proprietários, auto-administrando-se sem a intervenção do poder central. Odiavam a civilização industrial e o Estado centralizado”3. No ano de 1866 parece ter acontecido o primeiro empenho do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores na árdua missão de contactar e converter os trabalhadores portugueses. Apesar de se desconhecer, contudo, qualquer resultado dessa investida, o certo é que cinco anos depois sempre é constituída a secção portuguesa da A.I.T. por intercessão de três dirigentes espanhóis, internacionalistas e foragidos à justiça do país vizinho4. Corria o calendário de 1872 quando, finalmente, os portugueses aderem à Internacional, transferida esse ano por Marx e Engels para Nova Iorque mas, de resto, agonizante devido à repressão que se seguira à comuna e às intermináveis querelas entre bakouninistas e marxistas5. Paulo Lafargue representa-os no Congresso de Haia, tendo estado em Lisboa e travado relação com os Membros da Fraternidade Operária6. Um ano depois, é a vez de Antero tentar formar um partido com a “cor dominante de democrático-socialista e republicano como subcor”, como explica a Oliveira Martins. Mas o projecto terá falhado porque os mais 3 O Eco dos Operários, Lisboa, 1850. Citado por MÓNICA, Maria Filomena, O Movimento Socialista em Portugal (1875-1934), Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1985, p. 33. Para Alberto Machado da Rosa, a chamada geração de 1852 (termo de Vítor Sá) reporta-se menos à divulgação de ideias socialistas coevas, imprecisas e confusas em toda a parte, ainda mais em Portugal, que à promoção de uma autêntica aproximação cultural com a Espanha e da Federação Ibérica. (Joaquim de Carvalho, Socialismo em Portugal há um Século, Seara Nova, Novembro de 1970). 4 O Anselmo Lorenzo, Gonzalez Morago e Francisco Mora, que vieram a Lisboa logo em seguida à revolução de 18 de Março. 5 Segundo os moldes da Aliança da Democracia Socialista, fundada por Bakounine, a qual, após um ano de existência, contava, em Lisboa com 10 000 filiados, no Porto com 8 000 e, no resto do país, com mais alguns milhares. (in, NOGUEIRA, César, Notas para a História do Socialismo em Portugal, Vol. II, Colecção Portugália, Lisboa, 1966, p.179). No entanto, Gneco afirma que “A secção portuguesa era uma coisa que não era coisa nenhuma”. Entretinha alguns militantes. Não assustava ninguém. (in, MÓNICA, Maria Filomena, op. Cit. P. 37). 6 A secção portuguesa tem conhecimento do Congresso através do jornal Morning Post. (in, MÓNICA, Maria Filomena, op. cit. p. 37). Refira-se, por curiosidade, que, Lafargue, marido de Leonor Marx, filha de Carlos Marx, declarara ao redactor do Vorwarts, Edmond Peluso, em 1909, que os antepassados de Carl Marx eram judeus de origem portuguesa. (In, NOGUEIRA, César , op. cit. p. 138). A Associação Fraternidade Operária era uma confederação de secções e ofícios organizada por José Fontana e que haveria de desaparecer, em especial devido às contínuas e repetidas greves sem plano, nem prévia combinação. Os cofres esgotaram-se, as subscrições vieram a tornar-se infrutíferas, o desânimo acabou por se apoderar de todos e o brilhante movimento caíu. (In, FONSECA, Carlos da, História do Movimento Operário”, IV, Greves e Agitações Operárias (1ª Parte), Publicações Europa-América, Viseu, 1982, p. 50). Refira-se ainda que, nas palavras de Joaquim de Carvalho, “o único país meridional a emparceirar com os vencedores de Haia foi Portugal (…) raríssimos foram os portugueses que ouviram falar do que se discutia e menos ainda os que entenderam do que se tratava”. E acrescenta: “A distância de um século, as reuniões e congressos internacionalistas de 1874 a 1892 e as divergências que ali vieram à superfície, representam apenas um elemento básico mas parcial para se compreender a situação complexa e confusa, em que as personalidades contam por vezes mais que as ideias” (Joaquim de Carvalho, O Socialismo em Portugal há um Século, Seara Nova, Novembro de 1970). 110 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES “colectivistas”, onde pontuariam Gneco (que em Outubro desse ano funda a Associação dos Trabalhadores da Região Portuguesa, cujos estatutos são publicados no nº 55 d’O Pensamento Social), Fontana e França não o teriam aceite. Era a dicotomia Socialismo-República, metas para uns indissociáveis mas de todo distintas para outros. Uma situação confusa e, sobretudo, confundida7. É neste contexto que surge, por fim, em 1875 o Partido Socialista como um ramo da I Internacional. Estávamos a 10 de Janeiro, em Lisboa, num antigo palácio da Carreira do Socorro, hoje rua Fernandes da Fonseca. A proposta sai de Eudóxio Azedo Gneco desde logo suportado no apoio decisivo de José Fontana (cujas palavras tinham um enorme peso no meio operário), de Jaime Batalha Reis e Antero de Quental8. À sua frente estavam, além de Gneco, José Nobre França, Caetano da Silva, Agostinho da Silva e António José de Oliveira9. Começava nesse ano a publicar-se O Protesto (processado em tribunal logo em Outubro), com Gneco à cabeça10. Um ano passaria até se assistir ao nascimento do “Partido Republicano Português”, facto importante. Muito importante mesmo, que desde logo se constituiu numa sombra permanente a competir com a já de si parca base social de apoio dos socialistas e que, como se sabe, acabará por ofuscá-los a partir, sobretudo, da última década do século. É por essa altura que se funda em Oeiras a Associação Socialista 12 de Março11. O I Congresso Socialista há-de reunir-se em 1877 onde será redigido o primeiro programa do partido, redigido por José Correia Nobre França12 e que merecerá os aplausos de Benoit Malon. Trabalho e justiça são, 7 França, Fontana e Gneco acham tão odiosa a República como a monarquia pois há muito aquela tinha mostrado lá fora nada fazer pelas classes trabalhadoras. Mas a distinção não será nunca de todo clara, mesmo nas reacções do pós-movimento revolucionário do 5 de Outubro, como adiante veremos. 8 Ver, SOARES, Isabel, Cem anos de Esperança, Edições Portugal Socialista, Lisboa, 1979, p. 9. 9 Há-de juntar-se depois Luís de Figueiredo que, com Fontana há-de representar uma corrente mais obreirista, por oposição ao “socialismo político”, obra de intelectuais. 10 Seria ainda este dirigente, um dos melhores oradores, com conferências notáveis, quem apareceria, em 1908, à frente do República Social, hebdomadário desde aí verdadeiro porta-voz do partido, como precisaremos mais à frente. 11 Refira-se que nesta base inicial de apoio pontuavam os serralheiros, fundidores, torneiros, chapeleiros, carpinteiros, tabaqueiros e alfaiates, sobretudo de Lisboa e Porto, operários especializados, porquanto, os restantes, ocupados em sobreviver, não eram mobilizáveis politicamente. 111 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA em resumo, os ideais que o inspiram, adivinhando-se, nas entrelinhas, o federalismo de Proudhon, segundo o qual, em cada município, os trabalhadores seriam chamados a resolver directamente os seus problemas com limitada intervenção do poder central. Antero acabará por aderir ao partido nesse mesmo ano, numa altura em que, sob a sua orientação, Eça e Batalha Reis, “quietos à banca, com os pés, em capachos, como bons estudantes,” liam Proudhon com fervor13. Logo no ano seguinte vai fundir-se com as organizações sindicais da Associação de Trabalhadores e muda o nome para “Partido dos Operários Socialistas de Portugal”. Mas, passado outro, já Pinto Barbosa encabeçaria uma cisão dando origem à União Democrática Social. Foi no II Congresso, em Fevereiro de 1878 que o partidose fundiu com a ATPR, nascendo o POSP14. São já aqui delimitáveis duas correntes: a marxista e a possibilista, esta dando corpo aos desejos de autonomia nacionalista, a acção adaptada às conjunturas nacionais com estratégias próprias, fora das pretensões hegemónicas do marxismo na outra. Era uma tendência inspirada em Malon e Brousse, cá liderada pelo pragmático Luís de Figueiredo e que há-de perdurar no partido sendo mais tarde incorporada no sindicalismo15. Esta periclitante coabitação de tendências há-de acentuar a sua fragilidade ao 12 Tipógrafo. Dos contactos com Engels e Lafargue resulta uma aproximação ao marxismo. É o primeiro secretário da Secção Portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores, faz parte do grupo dos fundadores da Associação dos Trabalhadores da região Portuguesa e do PS, a cuja direcção pertence. Há-de aproximar-se da corrente republicana e exercer o jornalismo (em 1910 adere ao Partido Republicano Independente, de Machado dos Santos). Sobre este Congresso ver O Pensamento, em Agosto de 1932. Na mesma revista e entre Outubro e Novembro do mesmo ano publicamse as histórias dos congressos seguintes, grosso modo, de periodicidade anual. A primeira Conferência Nacional do Partido tem lugar em Janeiro de 1882 com 9 delegados representando 12 agrupações (ver, O Pensamento de Janeiro de 1933). A segunda Conferência Nacional foi em tomar, em Outubro de 1895 (ver, O Pensamento de Fevereiro de 1933). 13 QUEIROZ, Eça de, Notas Contemporâneas, Lisboa, Livros do Brasil, p. 268. 14 A cisão de Pinto Barbosa tem a ver com o não apoio do partido às lutas operárias e à greve dos chapeleiros por estar envolvido na luta eleitoral de 1878. É apoiado neste exemplo que Ramiro Costa diz que não era um partido operário mas eleitoralista (In, COSTA, Ramiro, Elementos para a História do Movimento Operário em Portugal, 1820-1975, Vol I, Assírio e Alvim, Lisboa, 1979, p. 54). 15 Luís de Figueiredo e Viterbo de Campos representarão, em 1889, a Associação dos Trabalhadores da Região Portuguesa no Congresso de Paris (de facção possibilista, sendo que o outro Congresso era de orientação marxista revolucionária). Em 1896 é Azedo Gneco quem representa o PSP no Congresso de Londres. É pertinente reflectir acerca do cariz proudhoniano que sempre marcou a tendência mestra do socialismo em Portugal. Não seria, por certo, alheia a isso a tradicional permeabilidade em relação à cultura francesa em geral e à sua língua em particular. Malon, Gauchet e Jaurés eram mais lidos que Marx. E foran ilustres as nossas figuras com influências de Proudhon, desde Antero a Oliveira Martins, passando por Eça. Mas isso tinha também a ver com a essência da personalidade lusitana. Leiamos Alberto Machado Rosa: “Proudhon, quando não tratava de doutrina e metafísica, tinha o verdadeiro instinto do revolucionário – adorava Satã e proclamava a anarquia. É possível que, em teoria, Marx tivessse chegado a um sistema de liberdade mais racional que o de Proudhon – mas faltava-lhe o instinto de Proudhon. Como alemão e judeu é autoritário da cabeça aos pés. Daí provém dois sistemas: o anarquista de Proudhon, alargado e desenvolvido por nós e libertado de toda a sua bagagem metafísica, idealista e doutrinária, aceitando a matéria e a economia social como base de todo o desenvolvimento na ciência e na história. E o sistema de Marx, cabeça da escola alemã dos comunistas autoritários”. 112 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES ponto de, em 1895 o partido se cindir. Surge o “Partido Socialista Português”, com Gneco à frente e mantém-se o “Partido dos Operários Socialistas”, liderado por Figueiredo16. Quase desprezível nos surge o papel dos divididos socialistas. Quase impermeável à causa da luta política nos parece o grosso do miserável proletariado português17. Entre 1878 e 1895, período em que o sistema permitia o voto alargado, não alcançaram qualquer votação significativa mas – justo se impõe sublinhá-lo – terá sido em boa parte pela sua acção que, paulatinamente, se foi formando o movimento operário português e se foram organizando as primeiras Associações de Classe. Afinal, não de todo de desprezar no contexto do Portugal do fim de oitocentos. Ao mesmo tempo vai-se tornando consistente uma verdadeira cultura operária, obra inegável dos socialistas que vão, com paciência, conferências, saraus, festas e jornais, criando uma cultura prenhe de laicismo e espírito de contestação. Emerge, paralelamente, um profundo anticlericalismo e ódio ao grande capital, solidificado à mistura com uma defesa dos valores do progresso e da revolução numa esperança que envolvia o sonho da dignidade do trabalhador. Vem já desta altura uma atitude de verdadeira compensação psicológica pelos desaires sofridos, através da imprensa socialista, que exaltava, em delírio, os êxitos dos seus congéneres estrangeiros, tentando arrastar as hostes à mobilização sempre adiada. Apesar de cedo se ter percebido que as eleições não levariam longe o partido na conquista do poder, deve registar-se a apreciável mole humana reunida aquando da homenagem póstuma a Fontana. 20000 trabalhadores mobilizados, 71 organizações populares18. Notável! Ou com os 50000 operários postos em acção no primeiro de Maio de 189719. Contudo, diga-se, nunca descarrilando (In, Seara Nova, Novembro de 1970). Isto reflectia-se em todas as esferas da acção política. Em Julho de 1909, Jaurés vem a Lisboa, onde é principescamente recebido. Vale a pena ver o excerto de uma carta que escreve à mulher, encantado: “Jái été reçu ici avec beaucoup de sympathie et de grands honneurs. Le ministre des Affaires Étrangères est venu me prendre à l’hôtel , et quand jái été à la séance de la Chambre Portugaise, dans la tribune du corps diplomatique, tout la chambre, a ma surprise, s’ést levée en criant: «Viva Jaurés! Viva la republica francesa!» Cela a dure plusieurs minutes. Et puis, le président m’a conduit à um fauteuil de député, derrière les ministres. J’ai siégé un moment comme deputais portugais” (In, AUCLAIR, Marcelle, La Vie de Jean Jaurés ou la France D’avant 1914, Voici, Saint-Amaud, 1969, p. 389). 16 Em 1897, nova divisão surgiria: aparece a “Aliança Republicano Socialista”, com Ernesto da Silva e Teodoro Ribeiro, por cisão com Gneco ao advogarem uma maior aproximação aos republicanos. Hão-de voltar a unir-se em 1907, só que aí será demasiado tarde... 17 Sublinhe-se, contudo, que não era só em Portugal que os socialistas estavam divididos. 18 FONSECA, Carlos da, História do Movimento Operário, I cronologia, Publicações Europa América, Viseu, 1982, p. 83. 113 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA da serenidade mais ordeira, com pendões, com filarmónicas, com paz. É no rescaldo do turbilhão despoletado pelo ultimato de 1890 que vão os socialistas surgir mais acirrados na luta contra os republicanos20. No alvoroço destravado que sacudiu o país, desprezavam-nos no seu discurso precipitado, prenhe de entusiasmo e romantismo. Mas é este o discurso que apaixona as massas e o movimento socialista vai estancando com multiplicadas sangrias de dirigentes e correligionários de que nunca recuperará21. Em 1901, temo-lo decepado, sem corpo directivo. Acode-lhe a Conferência de Coimbra de Junho desse ano transferindo para o Porto o Conselho Central, renovado em 1904 e, por fim, dissolvido em Junho de 190922. Remendando tão naufragado cenário, deliberam em desespero um acordo com as Juntas Regionais do Sul e Norte. Nomeia-se um novo Conselho Central, com sede em Lisboa, até à convocação rápida do Congresso Nacional. O que só aconteceria a 23 de Abril de 191023. Fora-se assim esbatendo a identidade do partido. Inevitável, digamos, pois que, levado na onda de destravado ódio ao regime monárquico é, como oposição, confundido com o republicanismo. Esta confusão eleva-se até aos quadros dirigentes do partido que, amolecidos pela força da corrente dominante, chegaram a aceitar que “o Partido Socialista é essencialmente antimonárquico e tem por fim a implantação da República Social”24. Este entusiasmo que parira aliança com os republicanos já esfriara, contudo, em 1907, quando estes vetaram um conhecido socialista do Porto para deputado. Decidiu-se mudar a estratégia. Separaram-se. Perderam. Gneco vem a obter 200 votos em 1910 pelo Porto 19 MÓNICA, Maria Filomena, op. cit. pág. 73. 20 A revolta republicana de 1891 há-de passar com os socialistas ausentes, como, de resto, a classe operária cujo apoio não é procurado. 21 Como em 1899, quando, opondo-se a uma decisão do Conselho Central, os socialistas do Porto decidem apoiar os republicanos nas eleições numa lista que virá a ganhar... 22 Entretanto, em 1906 tinha-se reunido a I Conferência Extraordinária Nacional Socialista em Tomar. 23 Azedo Gneco, que presidiu a este Conselho, viu-se a braços com graves dificuldades, posto que quase todas as forças vivas do país estavam empolgadas pelo embate entre monárquicos e republicanos, limitando-se a sua esfera de acção quase só ao expediente. Só que o Conselho Central que então tomara posse não conhecia os elementos com que contava pois, como desabafava ele em carta a António Mendes de Alcântara, datada de 6 de Julho de 1910 “desde 1901 em que o Partido Socialista elegeu novo Conselho Central, que organizou a Conferência de Coimbra, na qual outro Conselho foi eleito com o título de Junta central, com sede no Porto e composto por elementos residentes naquela cidade e em Gaia; e assim esteve o directório do Partido quase 9 anos deixando correr tudo à revelia, com as melhores intenções do mundo, mas com o pior resultado imaginável” (In, Seara Nova, 19-26 de Agosto de 1950). 114 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES enquanto Lisboa se envolve num efervescer de ansiedade, pois que o povo, como se lamenta César Nogueira, cego, desconhecedor da essência da questão social, foi na enxurrada, batendo-se pela construção da República25. Os socialistas recebê-la-ão num misto ambíguo de júbilo e suspeita26. Pulido Valente regista que foi com excesso de boa vontade que não achavam “desagradável” a perspectiva de uma revolução republicana e que, portanto, nunca “serviriam de sustentáculo a tronos”. Mas acrescenta que “a lenda do seu conluio com a direita monárquica continuou viva, e bem viva, por muitos anos de luta e sofrimento”27. É, enfim no novo regime que, em 1911, que o PS, à tangente, há-de eleger o seu primeiro deputado28. Poisada a poeira, da festa, viu-se pouco, de apagadote se revelar o eleito. Como apagado continuou o partido nos tumultuosos 24 Resolução do 1º Congresso da Federação Regional do sul do Partido Socialista Português em 1905. É importante mastigar esta incapacidade de demarcação que os socialistas sempre expuseram para com os republicanos. Sem quebrar a tradição colonialista, sem organizar os assalariados nem os camponeses, vão descobrir-se no mesmo campo, sob o toldo comum do legado liberal. Quem acaba por ter que investir na demarcação é o lado republicano que passa ao ataque. Gneco, por exemplo, chega a ser acusado de concluio com o rei, a propósito da acção provocatória de Monteverde, um agente real que se aproximara dos socialistas… 25 NOGUEIRA, César, op. cit. p.17. Sobre estas últimas eleições monárquicas e para percebermos melhor os interstícios do partido, tem muito interesse ver excertos de Azedo Gneco. Aconselhava ele antes da sua realização: “Alguma cousa se fará, porém, com homogeneidade própria dum partido; e embora seja cousa de pouca monta, não ha de deixar no esquecimento o nome dos socialistas. E para o momento actual é o que mais importa”. E, já depois da derrota, desabafava sobre os votos dados aos republicanos em carta a Luís de Figueiredo: “No círculo de Setúbal, por exemplo, poderíamos levar votos em Aldegalega, Almada Seixal e Setúbal; aí uns 50, ao todo; mas tínhamos, para isso, que fazer despesas com que não podíamos e desenvolver uma actividade superior às nossas forças. (…) melhor pareceu abandoná-lo”. Explicando a vitória dos republicanos ao Grupo Operário de Propaganda (Coimbra), ensinaria em Agosto: “Mas quem lhe deu essa superioridade política e social? – Foi o povo operário, foi a gente da nossa classe, que em vez de engrandecer o seu partido, foi dar o seu curso à burguesia democrata”. Citemos por fim um ofício dirigido à Junta Regional do Norte em 7 de Setembro em eu dizia: “ O Partido Republicano passou por cima do nosso partido, quanto à oportunidade revolucionária (…) não nos pode ser agradável o reconhecimento deste facto, mas temos que o reconhecer com grande mágoa ou sem ela”. (In, Seara Nova, 19-26 De Agosto de 1950). 26 “Desde o momento, porém, que a República foi proclamada em Portugal, o nosso dever é defendê-la a todo o transe de quaisquer ataques reaccionários e procurar consolidá-la”, (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 21). Também a inspiração ideológica que se importava não ajudava muito já que, enquanto na Alemanha, a social democracia, puramente marxista, não admitia, ante o critério do socialismo, diferenças em apreciar os actos dos governos burgueses, quer fossem monárquicos quer republicanos, na França não se pensava assim. A acção da franco-maçonaria actuava muito na opinião do socialismo francês pelo que defendia a República Portuguesa. 27 VALENTE, Vasco Pulido, O Poder e o Povo, Moraes Editora, Lisboa 1974, p. 67, 68. 28 Manuel José da Silva. Salientamos, no seu mandato, a apresentação à Constituinte de um projecto de organização em Portugal do Instituto de Reformas Sociais, um outro de entregar a uma cooperativa os serviços telefónicos e a implementação de um imposto proibitivo sobre as touradas, enquanto considerava de somenos a questão do reconhecimento constitucional do direito à greve já que a sua inexistência nunca tinha impedido o recurso a essa forma de luta. Com curiosa actualidade a proposta de acabar com o pagamento da portagem, à altura sobre o Douro, na ponte D. Luís... ficou-se pela aprovação de um projecto do Ministro das Finanças que punha fim, somente, ao pagamento do imposto sobre os peões. Pertinente porque significativo da atitude que vimos a conotar com o partido, o voto em lista branca, aquando da eleição do Presidente da República. 115 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA tempos que se vão seguir e em que os republicanos não mais deixarão de protagonizar a iniciativa, só secundarizados, em capacidade de mobilização, pelos anarco-sindicalistas que não param de ganhar poder, conseguido que estava o objectivo de derrubar o rei. Haja em vista as greves dos dois primeiros anos de República, ante a prudência dos socialistas. Prudência e indecisão fruto de contradições internas que voltarão a aflorar com os mesmíssimos sintomas aquando da questão da participação no conflito de 1914. A actividade, por esta altura reduzia-se a sessões culturais, excursões e conferências, numa modorrice que só os congressos e efemérides combatiam. Em Junho de 1911 foi a vez do quarto daqueles que, em Lisboa, deveria acertar a atitude definitiva do partido perante o novo regime. Não acertam mas, dois anos passados, aquando do V Congresso, e apesar de não ser maior a clareza das posições do partido, nem mais pacíficas as posições (Martins Santareno apresentava-se em explosiva oposição ao Conselho Central), contam-se 128 delegados, representando 50 agrupações e 12 jornais, o que mostra que, em dois anos, as forças organizadas do partido tinham mais que duplicado29. Azedo Gneco morrera em 1912, ano em que se decidira a entrada no Bureau Internacional30. Mas o mote definitivo da divergência no seio dos socialistas ainda era coisa do futuro: nasceria no VI Congresso Nacional, na Covilhã, de 3 a 5 de Outubro de 1915. Agitado e efémero, tratou a questão da guerra, como vimos, de forma inconclusiva. A corrente radical, que reaparece em força neste período com reduto no norte e encabeçada por Ladislau Batalha, opõe-se à guerra e à participação portuguesa; a direcção do partido é pró-aliada e pró-intervenção...31 O certo é que, no meio da agitação infernal que os acontecimentos imprimem a todos os sectores da sociedade, sacode também o pequeno partido que se vê mais crescido no dinamismo. A 21 de Novembro desse ano realizam-se as eleições 29 Em 1911 teria cerca de 1 500 membros; em 1913, 6 000, entre os quais 73 mulheres... (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 28). Em termos de resultados eleitorais temos: 1911 - 3 308 votos (1 eleito),1913 - 1 974 votos (eleições suplementares), 1 915 - 5 173 votos (1 eleito). (Idem, p. 259). Oliveira Marques cita, para 1915, um total de 5 141 votos, correspondendo a 1% dos recenseados e a 2% dos votantes. (In, MARQUES, A. H. Oliveira, História da I República Portuguesa; as estruturas de base, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1978, p. 84). Em Março de 1933, segundo números lidos por Alfredo Franco no Congresso de Coimbra, teria: 10 400 filiados, sendo 2 200 contribuintes, 2 600 inscritos nas Casas do Povo, e 5 600 nos sindicatos de orientação socialista. (In, O Século, 12 de Março de 1933). 30 O pedido de filiação entrara a 7 de Dezembro de 1912. A quota de 200 Francos (cerca de 40$), ao tempo quantia elevada para os cofres do partido, não foi dos óbices menores. É aceite na reunião de Londres de 14 de Dezembro de 1913. 116 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES complementares sem que o PS tome parte por julgá-lo inútil para a sua acção eleitoral. Contudo, nas eleições legislativas seguintes, elegem um deputado32. Mas as dúvidas e equívocos voltarão, dentro em pouco, a ensombrar a “aceitação oficial” de Sidónio Pais, que é, não só apoiado durante os primeiros tempos como, numa fase já avançada, leva a que sejam aceites cargos na direcção de diversos organismos administrativos oferecidos pelo “presidente-rei”, como lhe chamou Pessoa33. Realizara-se ainda antes disso um Congresso extraordinário e extraordinariamente confuso, que havia acabado com a demissão do Conselho Central. Em Junho de 1917 caberia a Coimbra albergar o VII Congresso, mas a situação do 5 de Dezembro gerou um campo de perseguição demasiado violenta o que obrigou o Partido Socialista Português a retirar os seus membros dos cargos administrativos, regressando então Nunes da Silva aos trabalhos do Conselho Central34. Com a queda do regime de Sidónio Pais, é organizado um governo nacional, em 1919, e, José Relvas, para espanto de todos, anunciava a entrada 31 O documento aprovado afirmava “...a solidariedade com todos os trabalhadores de todo o mundo, tornando responsável da guerra o capitalismo...”. (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 261). Mas exponhamos excertos significativos da desorientação que caracterizou, durante todo o conflito, a postura do partido: Ao votar na assembleia, o deputado socialista anuncia, como declaração de voto, de acordo com o Conselho Central do Partido, o seguinte: “Declaro aprovar a autorização pedida pelo governo para prestar o concurso militar de Portugal à Inglaterra, mas na hipótese de que esse concurso tenha sido solicitado, e salientando que esse concurso deve ser harmónico com o espírito da aliança” (Idem, p. 253). Só que, às organizações filiadas no partido, foi lido um aviso, no qual, logo no primeiro ponto, se explicava “de franca e aberta manifestação contra a guerra, em harmonia com as resoluções dos congressos internacionais e nacionais” (Ibidem, p. 325). Nos congressos nacionais extraordinários, em 1916 e 1917 constava, de facto, como primeira resolução “a manutenção das relações com todas as organizações socialistas de todos os povos beligerantes, sem preferência de país...”. Na 2ª conferência socialista de Londres, em 1917 (para onde seguiram dois representantes ainda sem certeza se com o apoio do partido que acabou por chegar por telefone mas sem aprovação unânime), os portugueses votam contra uma proposta de Hyndman, do Partido Socialista Nacional Inglês, que se pronunciara contra a conferência de Estocolmo enquanto a Alemanha continuasse a ocupar os territórios invadidos...(Ibidem, p. 169). De qualquer forma, nos dois Congressos Regionais do Norte e do Sul igualmente foram votadas resoluções de protesto contra a guerra. O partido organiza mesmo manifestações públicas contra a guerra em Lisboa e Porto, respectivamente nos dias 1 e 5 de Agosto de 1914 que foram dissolvidas pela polícia. (Ibidem, p. 256). 32 O Dr. Costa Júnior. Pensou-se mesmo inicialmente que seriam dois, mas Manuel José da Silva não chegaria ao parlamento por o governo ter decidido contar os votos do candidato evolucionista que considerara nulos. O partido teve uma votação de 4 652 votos. Curioso o facto de a campanha ter sido subsidiada com 814 marcos (206$750 réis) pelos socialistas alemães. (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 112). 33 Ver, TELO, António José, Decadência e queda da I República, Vol. II, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980, pp. 177, 178. 34 O que se passa na prática é que o Conselho Central colaborava com a ditadura, enquanto o grosso dos socialistas, acaudilhados por Dias da Silva, vão lutar contra ela. 117 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA de um socialista no governo35. Apesar de ter melhor fama como fadista que como governante, deu novo fôlego ao partido, o que, aliado à ofensiva popular do ano anterior e à acção das massas contra as tentativas restauracionistas dos monárquicos nas eleições legislativas desse ano, conseguem elevá-lo ao melhor resultado de sempre36. Mas nem por isso se deixaria de assistir, em Outubro desse mesmo ano, na Figueira da Foz, a mais um congresso explosivo: pela oitava vez as rubras hostes se esgotariam em peleja de desusada discórdia. Desta feita, segundo César Nogueira, terá brotado clara e definitivamente a confusão de princípios que não mais deixaria de impecilhar a vida política do partido: além de não sair qualquer decisão dos trabalhos, não se especificaria sequer se se aderia à segunda ou terceira Internacional... Há-de ainda reunir-se neste ano, em Lisboa, o IX Congresso, não menos atrabiliário que os anteriores e é, digamos, em plena contenda, durante o ano de 1920, que Ramada Curto entra também para o governo37. Era numa altura em que a face da República, envelhecida de uma década de poder, causava menos paixão. Estava desgastada e o interesse dos trabalhadores em definitivo divorciado do poder. Surge, por este tempo, o Partido Comunista, sem, contudo, evitar que em 1924 a esquerda apareça moribunda e descredibilizada, dividida entre republicanos de esquerda, socialistas, anarquistas e comunistas. Entretanto, o partido penava a sua saga, num calvário de congressos que iam descongraçando tudo e todos. O décimo de entre eles teve Tomar por cenário. Estava-se em 1922 e, com a saída acordada do artº 65 do Regulamento Geral do Partido, saía também, demitindo-se, César Nogueira, com o desabafo de que se dera em Tomar a última machadada nas tradições revolucionárias do partido. Estava, de facto, aberta a porta para a participação socialista (os “sucios” para os comunistas, em crescendo de importância) nos governos burgueses sem mais 35 Augusto Dias da Silva, ministro do trabalho. Era o “Camarada Augusto”, a quem se ficou a dever a construção do Bairro Social do Arco do Cego, a lei que estabeleceu a jornada de 8 horas e farta campanha pela nacionalização das indústrias. (In, SOARES, Isabel , op. cit. p. 14). 36 Quatro deputados por Lisboa e dois pelo Porto. César Oliveira, In, O Movimento Sindical Português, a Primeira Cisão, (Pub. Europa-América, Lousã, 1983. p. 43) resume, em interessante aparte, os factores que explicavam a incapacidade crónica dos socialistas nas eleições. A saber: o reduzido número de eleitores, os grandes níveis de abstenção eleitoral e a elevada percentagem de analfabetismo nas massas trabalhadoras (grande número das quais vivia à margem das estruturas sindicais). 37 É também ministro do trabalho num governo chefiado por Domingos Pereira. 118 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES reservas38. As teses ditas intervencionistas, assim vencedoras, não teriam senão de afastar-se por não lhes haver sido franqueada a desejada porta do governo. De fora, com mais razão ainda, estavam também os vencidos. Praticamente todos os organismos estavam paralizados. A crise era de impôr respeito. Foi por estes tempos que Ladislau Batalha, velho militante radical, socialista aventuroso, se devota à peregrina ideia de organizar um Congresso das Esquerdas Sociais, de “carácter puramente nacional, sem a menor feição partidária”. Iria levantar os ânimos e fazer renascer o velho PS dos primeiros tempos da República. Estava ele à época director de O Protesto que por conseguinte havia virado jornal ferocíssimo, crítico insuportável mesmo para os socialistas. Que airosamente deixam cair o Batalha, entregando-lhe a venenosa pasta do grandioso Congresso. Não daria em nada este39. Ficaria no comando do desmandado periódico Ramada Curto que não tardaria a amansá-lo40. O Porto assistiu ao X Congresso. Em Junho de 1924. O velho partido reduzia-se a um pequeno grupo de intelectuais e empregados urbanos com pouco peso no operariado. Só no sector dos tabacos e dos têxteis ainda se exercia alguma influência, sem que existissem perspectivas ou estratégias assentes. Na prática, o Congresso representou o domínio das tendências conciliadoras, interessadas na busca de uma aliança com os democráticos do tipo da estabelecida em 1919 e que abrisse o caminho para lugares na administração local, nas câmaras e talvez até no governo… Foi também aqui que se abandonou de vez a III Internacional (já anteriormente decidida) e se aprovou a filiação na Internacional Socialista41. É assim que encontramos o operariado no fim da I República: desnorteado e fraco, se bem que já unido sob a direcção de Ramada Curto e Amâncio de Alpoim. É assim que deixamos o proletariado: perdido e muito mais pobre 38 Dispunha o referido artigo o seguinte: “Em caso nenhum dentro dos partidos burgueses poderão os membros do Partido fazer parte do governo”. César Nogueira há-de voltar em 1925. 39 O grão-mestre da maçonaria, Magalhães Lima, aceita ser seu presidente honorário, juntamente com o velho propagandista Teófilo Braga. 40 Com Ladislau Batalha, foi toda a corrente sindical que renasceu em força no jornal: Mário Silva, Mário Barros, etc. Depois do seu afastamento, ficaria para o futuro o República Social, do Porto, como o representante da facção mais radical do partido, contra o sul moderado. 41 Havia nesta altura certa busca das posições sindicais perdidas em 1914, aproveitando-se o desmoronamento da CGT, mesmo que isso implicasse certa unidade com os comunistas, como à frente veremos. (Ver, TELO, António José, Decadência e Queda da I República Portuguesa, Vol. I, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980). 119 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA do que nos tempos do aparecimento do PSP. E, sobretudo, desanimado e desmobilizado42. O programa O primeiro programa do PSP foi aprovado, como dissemos já, no Congresso de Lisboa em 1877. Oliveira Marques chama-o de “transitório”43. Vigora até à primeira conferência de delegados partidários de Lisboa e Porto, onde se aprova um “Programa e Regulamento Geral do Partido Operário Socialista” definitivo. Da Conferência de Tomar, em 1895, saíu redigido sobretudo por Azedo Gneco, um novo “Programa do Partido Socialista Português”. Era este que, com ligeira revisão na Conferência Regional do Sul, em 1907, vigorava por alturas do 28 de Maio de 1926 e é sobre ele que nos passaremos a debruçar44. Há duas ideias principais que vão ganhando forma consoante se avança na análise do projecto do partido: por um lado o que apelidaríamos de défice de originalidade, acossados que somos, em permanência, pela ideia de um ‘dejá vu’, aqui por um propósito com ares de anarco-sindicalista, além por um projecto de tons comunistas, à frente por uma ideia a tresandar a republicanismo; por outro, a persistência estranha da impressão de que estamos perante escritos, digamos, destinados a destino nenhum. Impressões, de resto, relacionadas que, justiça seja feita, lutas das quais o partido sempre fez bandeira, acabaram por passar a conotadas com outras forças só porque, entretanto, o superaram em protagonismo e capacidade de mobilização de massas. Com efeito, quer remontemos à tomada de posição do partido abertamente antigreve de 190245, que o demarcou, de facto, da práxis contestatária que os 42 Num relatório confidencial de 1922, para ser apresentado na III Internacional, resume-se a situação: “A sua desorganização é grande. Não há propaganda. Não sabemos quantos são os filiados. As estatísticas foram abandonadas. (...) Não tem orçamento porque a contribuição partidária é quase nula. (...) Sobre a orientação internacional, não há nada resolvido. O Congresso da Figueira da Foz (1919) e o extraordinário (1920) afirmaram a adesão, em princípio à 3ª Internacional, ao mesmo tempo que expressaram orientações reformistas. Puro confusionismo!” (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 295). 43 MARQUES, A. H. de Oliveira, op. cit. p. 570. O autor vê na essência totalmente utópica do programa socialista a principal razão - aliada à pouca representatividade do operariado português - a principal razão que terá obstado ao crescimento do partido “em ritmo comparável ao dos chamados partidos burgueses” (idem, p. 573). 44 Em 1913 o partido adopta um programa municipal e outro agrário, completando assim o programa político de 1895 e 1907-08. 45 Resolução aprovada no Congresso Nacional das Associações de Classe, reunido em Aveiro sob a direcção do Partido Socialista. 120 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES trabalhadores, na generalidade, adoptaram; ao Congresso Nacional Operário de 190946, ao Congresso de Tomar de 191447, ou à formação da CGT, em 191948; o certo é que o poder de intervenção se foi esvaindo, num crescente divórcio entre as bases, que passam muitas vezes a apoiar propósitos idênticos sob outros estandartes mais sintonizados com a realidade vivida, e as cúpulas, auto-alimentando-se de polémicas vazias49. De molde a enquadrarmos com mais fundamento esta crescente discrepância entre o conteúdo do programa político socialista e a credibilidade que lhe era inerente, espécie de “potencial de aplicabilidade”, demoremo-nos em algumas reflexões acerca da interacção do documento programático nos seus destinatários naturais e vice-versa. Jorge Borges de Macedo, num ensaio que publicou sobre o assunto, defende que “o conceito de programa, como recurso orientador ou aglutinador de grupos politizados ou como veículo ordenador da coerência de acção e de argumento nos partidos ou correntes de opinião é, no regime liberal, um fenómeno sociológico de efectivo significado prático”50. Veremos que assim é, mesmo numa conjuntura bastante posterior ao cenário que fundamentou o estudo. Historiemos, para já, um pouco da evolução do conceito. Estamos no pós guerra civil, com um país prenhe de mazelas e desordem. Apreciado e abusado o poder criador da liberdade, urgia o regresso ao poder estimulante da ordem. Passos Manuel ensaia-o, Costa Cabral impõe-no de facto. Ou tenta porque, face ao susto da “Maria da Fonte”, fica assente que, com cautelosa antecedência, “deviam publicar-se todos os planos da administração, 46 A Federação Sindical de Lisboa, em colaboração com o Partido Socialista, tomou, por pouco a dianteira aos aguerridos militantes sindicalistas e o Congresso reuniu-se em Lisboa a partir de 4 de Julho, de resto, com limitada representatividade e que acabaria por levar ao abandono dos sindicalistas revolucionários que convocariam um congresso cisionista que se reuniria em Setembro e onde se haviam de discutir a protecção do trabalho de crianças e mulheres que, como adiante veremos, não é citado nos estatutos dos socialistas. 47 Donde vai sair confirmado que as Federações reformistas (FGT) já não tinham qualquer contacto com o movimento real dos trabalhadores, contrariamente às Uniões revolucionárias (UGT). 48 O Partido Socialista havia desaparecido na órbita do parlamentarismo republicano. Os sidicalistas-revolucionários afastam o anarquismo da ideologia oficial do movimento e enquadram, de facto, o operariado. 49 Talvez por não estarem ainda suficientemente estudadas as condições em que se fundiram os vários segmentos ideológicos num sindicalismo revolucionário quase homogénio, há teorias díspares acerca do ponto que marcou a viragem decisiva para a sua área de influência em prejuízo do reformismo socialista. Manuel Villaverde Cabral, por exemplo, defende que terá sido com a greve dos tecelões do Porto, em 1903. (CABRAL, Manuel Villaverde, Portugal na Alvorada do Século XX, Ed. Presença, Lisboa 1988, p. 125). 50 MACEDO, Jorge Borges de, O Aparecimento em Portugal do Conceito de Programa Político, IDL - Instituto Amaro da Costa, Lisboa, 1981, p. 5. 121 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA determinadas as suas finalidades, o modo como iriam ser postas em prática e o escalonamento que propunham”51. Saíra caro o subalternizar da reacção dos habitantes. O poder central aprendera a lição: o princípio do programa político impõe-se, generaliza-se, evolui. Os partidos passam assim a escorar-se na opinião pública e o programa promove-se a elo aglutinador de uma corrente de ideias que se constitui em partido e passa mesmo a ser a base da adesão. Só que, rapidamente, ao contrário da facção no poder, a agitação e a propaganda de quem pretende tomá-lo usa o processo na sua plenitude utópica, aumentando de forma desmesurada a carga ideológica e afastando-se proporcionalmente dos problemas nacionais, em distância tanto maior quanto mais longe estava das cadeiras desse mesmo poder. Advém daí um óbvio desgaste ideológico com a consequente transformação da experiência política da opinião pública que passa a padecer de desconfiança radical por tudo o que, na esfera dos programas, se diz ou promete. Cava-se assim uma dualidade doentia entre quem propõe a ideologia e quem se acautela na sua recepção; entre quem emite proponentes positivas e quem faz a crítica ideológica; entre quem aponta um governo pré-programado e quem responde com agitação. Ganham deste modo forma dois conjuntos sociais cada vez com menos contacto entre si. Cabem estas vestimentas à história do Partido Socialista. Porque se deixou ir consumindo por uma mentalidade política essencialmente utópica e dedutivista que o foi divorciando inexoravelmente das bases. Daí que das roupagens do seu programa fique a teimosa sensação de termos já visto aquelas mangas na prática dos sindicalistas, ou aquele corte na acção dos republicanos... coroada pela impressão fantasmagórica de ser um fato que, na realidade, não servia a ninguém. A cada vez mais reduzida base social de apoio prova-o. O conjunto do programa ordena-se em função de pontos de vista gerais implícitos. Sente-se a preocupação dos redactores em mostrarem claramente que interpretam as potencialidades infinitas do socialismo. Vejamos. Subtitulada de “fins”, a primeira parte do Programa Geral do partido cita um rol de generalidades de que se destaca, por encimar todo o documento o “objectivo de cooperar com os partidos socialistas de todo o mundo nas reformas das sociedades humanas”. É a reafirmação dos socialistas como os mandatários de um ideário supra-nacional, postura tão cara ao partido quanto preciosa e 51 Idem, p. 11. 122 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES encorajadora lhes era a torrente de avanços, lutas e vitórias que não paravam de chegar lá de fora e que, cá, regavam com abundante viço uma imprensa padecente da morrinha triste que brota à falta de feitos. Segue-se depois a definição do objectivo base: “a abolição do Estado em todas as suas formas históricas e o estabelecimento da República Social”. Nas bases para a sua persecução começa por referir-se à reorganização dos municípios, mas, a esses, voltaremos adiante, que assim se passa também com o documento. Alude-se à “Federação Municipal” que teria por centro uma assembleia composta de representantes directos dos municípios, subordinados aos seus eleitores e que iria, por sua vez, eleger uma “administração de negócios públicos” que substituiria qualquer forma de governo e de Estado. Só depois aparece a apologia do sufrágio universal, directo, com igualdade de direitos e deveres para todos os indivíduos, tanto de um como de outro sexo, num sistema de voto obrigatório52. Apanágio desta sociedade, a negação do vínculo a qualquer religião, a educação gratuita a todas as crianças “sem previlégios ou prerrogativas de grau ou sexo” e a salvaguarda de toda a iniciativa de trabalho individual, numa visão nitidamente proudhoniana mas em oposição aos comunistas em cujo programa se defendia uma economia mista e planificada53. Faz-se ainda o mais sumaríssimo propósito de assistência social nos termos que transcrevemos: “creanças, doentes e adultos inválidos a cargo da sociedade, sempre que fôr reclamado” e coroa-se toda esta primeira parte com uma síntese em dois princípios: – Radical socialização das riquezas, da sciência e da autoridade. – Máxima expansão dos indivíduos dentro do respeito ao indivíduo dos outros. Ataca-se – então sim – o Programa Municipal que compreende, de per si, o grosso do texto total e eleva o municipalismo a pedra de toque de toda a acção socialista, seja investindo no município de molde a beber nele a influência e a força que o guindariam ao poder, seja projectando-o como base estrutural 52 Em 1911 podiam votar os chefes de família analfabetos casados há mais de um ano, mas em 1913 já não votam...um dos sintomas de recuos da república que vai acentuando a décalage entre os operários que a instalaram e a burguesia que a vai conduzindo. A igualdade entre os sexos aparece salvaguardada no que toca à educação, ao direito a votar e ao direito de beneficiar de “leis de carácter económico-agricola em benefício da pequena propriedade”. Nenhuma alusão ao problema da igualdade no trabalho que, na altura, era um problema com toda a actualidade pela forma como a mulher participava crescentemente no trabalho assalariado industrial e dos serviços e que despoletou acesa luta nos sindicatos. 53 Apesar das enormes expectativas, a República, de facto, só acabará com o ensino privado. 123 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA de toda a acção política, social e económica que se propunham aplicar ao país. Comum ao programa dos republicanos, este municipalismo (assim como o federalismo, pois já Félix Nogueira tinha os olhos postos no exemplo dos Estados Unidos e da Suiça) teve outros defensores, desde os integralistas até Oliveira Salazar. É no aspecto do código administrativo que a extensão das prerrogativas municipais melhor ostenta o seu real alcance54. Alude-se à completa autonomia do município em relação ao poder central, no que hoje apelidaríamos de política regionalista, criando-se nas franjas dessa administração independente do poder central as condições para o exercício da verdadeira cultura democrática. Esta licitaria, não só a orgânica estrutural do poder local mas, sobretudo, ganharia prática efectiva numa permanente ligação às massas que teriam os mecanismos de protagonismo assegurados através do sufragar, pelo voto de medidas “de alcance político, social ou económico” que pudessem influir com peso na situação do agregado municipal. Defendia-se deste modo uma verdadeira lei de finanças locais com as câmaras a gerirem fundos próprios decorrentes de impostos directos, bem como larga liberdade de manobra no sentido de acordos intermunicipais ou federações de municípios, fora da alçada do poder central. É neste desiderato que surgem as especificidades das várias linhas de actuação política executáveis: a política social, as finanças, a instrução e educação, a assistência social, a higiene pública e habitação e a municipalização e serviços. O subcapítulo do programa agrário é outro que merece um relevo aparte, quer pela forma autónoma que adquire na estrutura geral do programa, quer pela extensão e profundidade que merece. Vejamos, necessariamente de relance, todos estes aspectos. Na política social, destaque para a existência do imperativo do salário mínimo e da jornada de trabalho de 8 horas55. Seguem-se uma série de artigos especificando a extensão das liberdades de organização de classe, abrangendo os direitos de associação, sindicalização, recurso a tribunais do trabalho e 54 A estrutura municipalista seria consignada na Constituição e na lei eleitoral. 55 Trata-se de uma luta que unira todas as energias dos militantes sindicais no último período da monarquia e cuja vitória se associa ao republicanismo (em 1919 estende-se a todo o território o máximo de 8 horas por dia). Mais tarde, em período de crise económica, “nos anos 20, surgem com insistência reivindicações de diminuição do horário de trabalho para menos de 8 horas, ou a recusa de horas suplementares” (In, FREIRE, João, Anarquistas e Operários, Ed. Afrontamento, 1992, p. 142). Nem foi pois luta conduzida pelo partido, nem surge com grande actualidade (pese embora o facto de a lei tardar muito a ser aceite). 124 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES vigilância das cláusulas dos contratos e segurança dos trabalhadores. Nas finanças, prioridade ao nivelamento social possível através da abolição de todos os impostos sobre géneros de consumo, substituindo-os por outros sobre artigos de luxo, bem como impostos sobre os rendimentos sem trabalho, e sobre terrenos incultos ou casas desocupadas. Refira-se em ordem ao item “instrução e educação” a defesa da instituição de cantinas escolares assegurando gratuitamente a distribuição de refeições, vestuário, calçado, livros e material escolar, para além da gratuidade do ensino propriamente dito a que já acima aludimos e a organização do ensino profissional e industrial56. Fala-se em cuidar do desenvolvimento físico da criança e especifica-se que, intelectualmente, o seu avanço se faça por combate à cultura de dogmas religiosos57. Defendem-se as bibliotecas,58 a criação de jardins infantis, o acesso ao ensino superior por quem vocacionado e as prelecções práticas “no campo e nos estabelecimentos fabris e scientíficos”. No campo da “assistência social”, alude-se à máxima protecção às instituições de previdência e mutualidade59 e corporações de salvação pública; serviço médico gratuito, farmácias municipais com pequena margem de lucro, orfanatos, maternidades, dispensários e asilos (municipais ou inter-municipais). Quanto à “higiene pública e habitação”, propõe-se a criação de um serviço de higiene e de inspecção sanitária, com acção sobre as habitações, fábricas, via pública e géneros de alimentação. Estipula-se a construção de balneários e lavadoiros públicos60, municipalização gradual da propriedade territorial de molde a poderem abrir-se novas artérias, parques e habitações baratas, “decentes e formosas”; vigilância dos preceitos higiénicos e estéticos das 56 Refira-se a ausência a qualquer medida restritiva ao trabalho de menores, prática corrente, bem como o excesso de cargas físicas, práticas fortemente combatidas pelos sindicatos, tendo merecido, por exemplo, no congresso de Santarém da CGT, vasta referência. 57 Curiosamente, o reforçar da dimensão do corpo, cujo culto foi largamente difundido por outras doutrinas tão díspares como o integralismo ou o próprio fascismo, sobretudo na sua manifestação espanhola e italiana. 58 Quando a ditadura, nas primeiras medidas de restrição orçamental fechar algumas salas de leitura em Lisboa, há-de ser violentamente desancada no República Social. 59 N’O Princípio Federativo (cap.XI), Proudhon definia o conceito: pela mutualidade, os distintos produtores, guardando a sua independência, garantem uns aos outros a produção e a circulação a um justo preço, e associam-se para as tarefas a que não alcança a simples iniciativa individual e para os serviços comuns (seguros, créditos, construção de vivendas, etc.). Como o mesmo nome indica, trata-se de conseguir a ordem sem recorrer a medidas coactivas ou à acção do Estado - ainda que não se exclua esta - graças a um acordo de vontades, a uma cooperação voluntária. 60 Embora possa parecer pormenor desprezível para constar de um programa político, os lavadoiros (como os chafarizes, os banhos públicos ou as sedes dos clubes recreativos, culturais, políticos e sindicais), eram lugares importantíssimos da vida colectiva do bairro operário. 125 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA construções, derrube dos bairros insalubres e rastreio das casas desocupadas61. Na rubrica “municipalização de serviços”, propala-se a exploração directa pelo município, (ou federação de municípios), dos serviços de interesse público,62: viação, redes telefónicas, água, iluminação, força motriz, mercados, postes e caixilhos anunciadores, etc; ainda os seguros contra a invalidez, doença, fogo, etc. Prevê também a instalação de armazéns de víveres despidos de intuitos mercantis e que acudiriam a regularizar os preços, a assegurar a boa qualidade dos produtos e a socorrer os pobres nos momentos de crise e carestia63. Por fim o “programa agrário”, cuja importância destacamos já noutro passo e que passa pelo reconhecimento de que “é necessária uma larga difusão dos princípios socialistas entre o operariado agrícola, incitando-a á lucta contra a sociedade burgueza, única responsável das suas misérias e sofrimentos”. Importa a prática de princípios associativos, apropriação da terra e dos instrumentos de trabalho com a consequente colectivização de todas as riquezas sociais. Toda a política agrícola assenta no primado da pequena propriedade64 e da organização associativa e cooperativa. Para isso, ter-se-ia que partir da nacionalização do solo, para o que se teria de mobilizar o operariado agrícola para a luta aberta. A legislação operária seria aplicada aos operários agrícolas na medida em que o permitirem os encargos da produção agrícola65. Assim também quanto à regulamentação das horas de trabalho, do descanso semanal, dos acidentes de trabalho, seguros de doença, invalidez, velhice e falta de trabalho; higiene, salário mínimo. Prevista a elaboração de regulamentação acerca dos contratos de trabalho, taxa 61 Impera uma quase promiscuidade generalizada, mais grave ainda nas “vilas”, “pátios” e “ilhas” de condenação geral. A construção civil, por exemplo, no seu congresso regional do Sul, realizado em Setúbal em 1918, reclama medidas em tudo iguais a estas. (In, FREIRE, João, op. cit. p. 184). 62 À época privatizados. 63 Mais tarde, anunciará o Estado Novo a sua obra: “Estão promulgadas as leis que garantem e estabelecem os direitos dos trabalhadores: são contractos colectivos de trabalho que conduzem à harmonia entre este e o capital, são casas económicas que facilitam o conseguimento da habitação própria; são as casas do povo e dos pescadores, são tantas outras regalias, são, numa palavra, os problemas vitais de tão grande alcance social que as suas efectivações, sendo já realidades, quási não se acreditam (In, PEREIRA, José Ribeiro, op. cit. P. 5). 64 É curioso que este primado há-de vir a ser entusiasticamente defendido por Salazar, no início do seu mandato. “o problema não é dividir, parcelar a grande propriedade; é constituir, consolidar a pequena ou média” (Salazar por António Ferro, Edições Fernando Pereira, Lisboa, 1982, p. 105). As cooperativas eram vistas com desconfiança pelos trabalhadores em geral e pelos sindicalistas libertários em particular. A desprezível expressão “socialismo de merceeiros” (que seria corrente à época), diz tudo sobre o que muitos pensavam a tal respeito. 65 Sublinhe-se o carácter vago da condicionante. 126 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES dos arrendamentos e fixação das garantias aos rendeiros para assegurar o seu capital-trabalho; a pequena propriedade seria protegida, enquanto os impostos indirectos abolidos, sendo criado outro penalizador dos incultos que, findo um prazo, reverteriam para o município que as exploraria no sistema de colónias agrícolas, as atribuiria às cooperativas agrícolas, ou promoveria a “exploração agrícola municipal ou nacional”, o que constituiria o princípio da propriedade colectiva comum. As cooperativas agrícolas seriam promovidas e subsidiadas pelo município com o fim da compra de adubos, sementes e alfaias (os municípios, com o concurso do Estado, comprariam “o grande mecanismo agrícola”66 e as alfaias que poriam à disposição dos pequenos proprietários e rendeiros, mediante pequena percentagem...); de apoiar a transformação e venda dos produtos; de alcançar a produção colectiva ou comum. Os terrenos municipais, baldios ou comuns tornar-se-iam inalienáveis67, enquanto as hipotecas seriam nacionalizadas juntamente com a criação de um “banco nacional agrícola”. Ainda constavam propósitos generalistas como o de difundir os diversos meios de comunicação em todo o país, ou o de impulsionar o fomento agrícola em todos os seus aspectos; ou tão específicos como a redução das taxas de transporte ou a municipalização ou nacionalização das forças hidráulicas e de todas as riquezas minerais. Por fim preconiza-se a instrução geral e profissional, a propagação dos modernos processos de técnica agrícola e a abolição dos mercados de moços e, consequentemente, organização das Bolsas de Trabalho68. É pois este o programa que, supostamente, deveria ser manejado como arma, sobretudo de ataque, mas que se separa com facilidade da conveniência que lhe devia ser intrínseca, de analisar concretamente os recursos para serem postas em execução as medidas nele enumeradas. Aparece inquinado pelas declarações de princípio, pelas promessas irreais, pelo enunciado utópico, pelas insinuações insurreccionais ou pela falta de clareza voluntária quanto à legalidade preconizada. 66 Se na agricultura, por praticamente não ter passado de um propósito, a maquinaria não chegou a ser problema, já na indústria foi sempre fonte de contradições: se por um lado simbolizava o progresso, por outro era violentamente odiada pelo operariado que via na máquina a personificação do desemprego e da exploração do grande capital. Não é assim citada no programa socialista, quando aplicada à indústria. 67 O republicano Ezequiel de Campos havia apresentado um projecto de utilização dos baldios que representavam cerca de 38% do território, mas até 1925 ninguém ousa mexer na propriedade privada. 68 As bolsas de trabalho e os serviços de mutualidade são enfatizadas no congresso sindicalista de 1911, assim como a educação dos trabalhadores profissional ou técnica, ou educação de ordem geral são desde sempre imperativos dos sindicalistas libertários. (FREIRE, João, op. cit. p.157) 127 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA Onde estão, de facto, as posturas claras em relação ao problema do ultramar, ou as traves mestras da política externa, ou a posição no complexo problema da protecção à indústria e agricultura, ou o programa de jurisprudência criminal?.. Não lhe foi assim possível alcançar o efeito de consciência de governo, mas, mais grave ainda, não lhe foi sequer dado o direito da dúvida, do questionamento. Na verdade, tanto mais se agudizava o divórcio entre as classes dirigentes e os legítimos destinatários das suas linhas programáticas, mais o partido se consumia em questiúnculas internas de intrigas entre cúpulas, se esgotava em polémicas dentro da classe dirigente. E nos vários congressos, como adiante veremos, potenciais reuniões magnas de reacerto de planos e estratégias, repetia-se o vazio interno, num triste espelho do partido real navegando numa irreal dimensão e ultrapassado, inapelavelmente, pela própria realidade. Não deixará de ser curioso reflectirmos sobre esta persistente divergência entre elites e bases compaginando-a com o que, paralelamente, se passava com os republicanos. Havendo arrebatado paixões, num movimento a todos os níveis ímpar na nossa história, os líderes do regime instaurado vão progressiva e paulatinamente investindo esforços no controle dessa massa amorfa de operários rebeldes à sua governação e que urgia trazer de volta ao redil, num misto de investimento na educação, por um lado, e de um crescendo repressivo por outro. Se no contagiante furor revolucionário da República servira de mola e de cimento aglutinador um ódio partilhado a uma monarquia desacreditada e mãe de todas as frustrações, vencida esta luta faltara aos cabecilhas do movimento um referencial programático em que o povo se revisse para que se envolvesse. E foi esse português, carente dos poetas como clamava Cortesão, saudoso de um messias como dizia Pessoa, amorfo e degenerado fora da Pátria e da família, como explicava Pascoais, herdeiro de uma raça e milenar cultura, como lembrava Sardinha que ficou de fora da nova ordem, do novo Portugal sem rei. Não se revendo nas instituições que se vão impondo69, as massas serão catalisadas por um discurso muitas vezes coincidente com o que temos vindo a analisar, mas lustrado com a alma que lhes faltara, aportuguesado, numa reinvenção do patriota semeada com o integralismo lusitano e limada pela visão de Salazar que conciliaria o possível num 69 Trata-se de uma imposição de facto, sobretudo depois da Grande Guerra, quando emerge mais claramente a prioridade da ordem por exemplo com a dureza de Afonso Costa a carregar sobre os movimentos operários, a invadir vezes sem conta a Confederação Geral dos Trabalhadores e a prender operários. É um futuro de verdade e de progresso imposto à maioria, ainda que esta se oponha. 128 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES contexto de país real. Ainda que o possível ficasse muito próximo do sobrenatural, não tivesse ele escrito no prefácio para um dos seus discursos, em Fevereiro de trinta e cinco – “As ideias destes discursos são igualmente conhecidas: posso mesmo dizer que não são minhas, mas da colectividade, ou porque as fui beber às profundezas da consciência nacional ou porque, correspondendo ao estado de espírito do País, este as adoptou e fez suas”. Será, porventura, esta desespiritualização suprema que emana do texto socialista que o estigmatiza de ininteligível, quase irreal para o país concreto, com 75% de camponeses, iletrado, impulsivo e tradicionalista, capaz de se converter e amansar por um apelo ao sentimento que lhe aquecesse a alma, ou de explodir em desabrida luta por uma causa imediata. Foram as cordas vibradas pela ditadura e pelos anarquistas, arriscávamos a concluir: pelos que conseguiram fazer, de verdade, escola política neste período70. Sob este prisma, para o português comum, daqueles que Bordalo Pinheiro soube retratar como ninguém, não há motivos de conversão sincera no “objectivo de cooperar com os partidos socialistas de todo o mundo nas reformas das sociedades humanas”. É abstracto é distante, frio e calculado, como abstractas e distantes eram as elites que os propalavam. Ninguém morreria por um programa assim. E terá sido essa a morte do partido. A reacção dos socialistas ao golpe do 28 de Maio Em resposta ao golpe do 28 de Maio, o partido Socialista emite uma nota oficiosa em que reconhece que os acontecimentos “são a lógica consequência das faltas e erros dos partidos republicanos divididos por simples personalismos e falhos de qualquer ideal”, exprime o desejo de que “os factos consumados pelo exército não sirvam a assegurar o predomínio de qualquer facção política sobre outras” e sugere aos correligionários “que se conservem na expectativa”71. N’O 70 Não se ponha, contudo, em dúvida a integral ortodoxia socialista do programa. César Nogueira há-de vir a público chamar à atenção para o facto de o mesmo já se não poder dizer do texto aprovado em 1933. (Ver, O Pensamento de Janeiro de 1934). 71 NA redacção da nota era a seguinte: “Reuniu a Secção Norte do Secretariado Nacional do P.S.P. resolvendo: 1º- Manifestar-se abertamente contra o estabelecimento de qualquer ditadura que vise a restrição das liberdades públicas. 2º- Aconselhar os filiados no Partido a aguardarem as decisões que sobre os acontecimentos deverá tomar a Confederação Nacional, cuja reunião extraordinária resolveu sugerir de harmonia com o disposto no artigo 38º do estatuto partidário. 129 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA Protesto saem, contudo, opiniões menos complacentes e resignadas. Sem querer discutir a Nota Oficial, Martins Santareno explica que a atitude do jornal (de que é director) é “expressamente contra todas as reacções”. Que os socialistas não se podem amoldar a situações equivocas. Que, perante elas, só lhes resta lutar altivamente contra qualquer defensor do sistema capitalista, como era o caso dos presentes adversários com a farda do exército. Mas, na sequência da ideia de inevitabilidade do golpe que a anarquia levada à exaustão deixara amadurecer, a saída mais espontânea é a de se demarcarem das responsabilidades pelo sucedido. “Nada de confusões!”, os partidos republicanos é que são os responsáveis... por sua vez o exército, imiscuído até à medula no sistema decadente, não teria a idoneidade que ora se alvitrava para redimir a Pátria enferma... entretanto, aguardasse-se com serenidade72. Nesta linha há quem defenda mesmo o adiamento do congresso previsto para Junho. Entretanto, aguarda-se que o tempo esclareça os acontecimentos73. Afinal, a figura meio carismática, meio pitoresca de Gomes da Costa não disparara um tiro, não suprimira um jornal, não fechara uma associação. Fechara “aquilo” a que se chamava parlamento e estava a governar com apoio militar mas declarando que nem era militarista... Relembra-se que o partido é contra o estabelecimento de qualquer ditadura que vise a restrição das liberdades públicas mas não se proclama qualquer desobediência geral ou a guerra aberta ao sistema imposto. Aliança com os republicanos, causadores da situação, também não entram no horizonte socialista (os esquerdistas apoiavam ostensivamente a situação; os nacionalistas até tinham no governo o comandante Cabeçadas; os radicais tinham a colaborar com eles todos os seus elementos militares). Há quem defenda a aliança com as esquerdas sociais, sindicalistas e comunistas, voltando a falar-se na necessidade de uma frente única74. Mas o fecho do parlamento, “com mais aspecto 72 José Telo resume assim: ”OPS não tem de tirar as castanhas do lume ao PD e já que este não quis levar até ao fim a aliança com os socialistas é normal que agora o partido procure a melhor maneira de aproveitar a situação” (In, Decadência e Queda da I República Portuguesa, Vol. II, A Regra do Jogo, Lisboa 1980, p. 134). E generaliza mesmo: “Quando poucos anos depois, o velho partido se autodissolve, essa decisão burocrática não passou, ao fim e ao cabo da aceitação oficial de uma situação que existia de facto desde 1926. (Idem, p.135). Noutro passo ainda explica que o grande projecto de aliança com o PD tinha falhado, não estando o governo disposto a deixar crescer o pequeno partido. Como a direcção conciliadora de ramada Curto e Amâncio de Alpoim sabia que o partido só tinha hipótese de recuperar a sua força com o apoio do Estado, como acontecera em 1919, restava só esperar pela queda deste governo e procurar um acordo com os novos detentores do poder. Houvera pois certa simpatia para com o 28 de Maio… (ibidem, p. 134). Mas isso é coisa para irmos nós vendo em pormenor. 73 Os únicos objectivos oficiais da revolução eram: “sanear a administração pública, emendando erros dos partidos políticos que se têem revesado no poder e passar por cima de esses partidos, que pareciam apostados em levar o paíz à ruína”. 74 Mário Santareno, O Protesto 13-06-1926. 130 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES de taberna frequentada por ébrios do que de tabernáculo das leis”, nem aos socialistas terá deixado saudades. O sentimento geral era de que a revolta militar era um compasso de espera na acção política dos partidos. E a ditadura militar que se anunciava não era mais condenável do que a ditadura democrática exercida desde a proclamação da República75. Centram-se pois as atenções no congresso do partido que havia de pôr a ansiada ordem na polémica orgânica interna e reacertar respostas à situação que, por sua vez, se precipitava na pressa de uma revolta sem o norte ainda bem definido76. Enquanto isso, publicam-se notas enaltecendo o Partido Socialista como uma força isenta dos pecados dos partidos republicanos que haviam enxovalhado a democracia, uma força suprapartidária, como tal, não abrangível pela censura que se anunciava. Contudo, há quem ataque denodadamente a ditadura. Num artigo assaz violento no República Social, pergunta-se “o que é um triunvirato senão um governo mais ou menos despótico de três indivíduos encarnando: a vaidade, a ambição, o capricho, o orgulho, a usura, o egoísmo, a maldade e a tirania em todas as suas manifestações...”. E, acossados pelas primeiras medidas no sentido de reintroduzir nas escolas o ensino religioso, atiçam o ódio ao exército donde teriam desde sempre saído os piores políticos: “toda a tirania, vem-nos da farda e da sotaina, da cruz e da espada”. Mas a sombra ditatorial ia-se firmando consoante os acontecimentos se precipitavam e esclareciam. A 9 de Julho, três dias depois de uma crise ministerial que o afastara do poder, Carmona, num golpe de Estado, derruba o general Gomes da Costa que parte para o exílio. Era a terceira fase da ditadura. O partido responde à evolução dos acontecimentos mantendo a posição defendida na nota do dia um, enquanto remete para o Congresso, no início do mês seguinte, a publicação do pensamento dos socialistas sobre a crise política. Paulatinamente, as liberdades públicas, a cuja restrição o partido se opusera desde o início com frontalidade convicta, vão sendo coarctadas. A 13 de Julho são dissolvidos os órgãos de todas as colectividades locais. A 15 são promulgados 75 O sentimento geral de que o regime instaurado era uma fase transitória com breve retorno ao processo democrático está bem patente na grande diferença que haveria entre o “pronunciamento” militar português e a “pata del gran Senhor que domina a Espanha e o seu rei” realçada na imprensa socialista aquando do boato de que na anunciada viagem de Afonso XIII a Portugal viria também Primo de Rivera. 76 Desta impossibilidade de reagir em cima dos acontecimentos é exemplo caricato a publicação de uma carta aberta ao Dr. Oliveira Salazar, recém empossado ministro das finanças, e que quando é publicada no República Social em 19 de Junho, já ele não era ministro havia dois dias... 131 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA três decretos favoráveis à igreja. A pausa para o Congresso é assim como que pretexto e justificação para um desconcerto de resposta de facto, fosse porque o trauma colectivo interiorizado por anos de parlamentarismo anarca despira de convicção dirigentes e hostes que outrora se tinham batido pela liberdade, fosse, simplesmente, porque perdido nos meandros de um doutrinarismo pouco firme e, decididamente, afastado das massas populares, o partido perdera protagonismo e capacidade de acção; não mostrando postura nem poder capaz de incomodar, em definitivo, o regime que se estabelecera. Havia, pois, justificada expectativa na reunião magna da rua do Benformoso. Ali se prometiam confrontar desde as tendências mais apaziguadoras, próximas do colaboracionismo, até aos que mais apaixonadamente defendiam o combate sem quartel ao regime opressor. Adivinha-se a emoção alvoroçada, quiçá aspergida do medo e desconfiança que as forças dominantes iam fomentando mesmo entre os próprios congressistas na hora do início dos trabalhos. Sintomático terá sido o facto de A Revolução Nacional, um periódico da situação, ter publicado uma notícia segundo a qual uma comissão proposta pelo partido para ir a Belém pedir ao general Gomes da Costa o imediato regresso dos deportados para a Guiné, teria aproveitado para oferecer ao senhor general colaboração e apoio, o que, apesar de desmentido, não terá deixado de causar mal estar e incómodas suspeitas77. O Congresso de 1926 Pela singularidade do momento político, pela importância das decisões em jogo e pela quantidade de delegados e organismos que se fizeram representar, era o maior congresso alguma vez feito pelo partido78. A primeira sessão foi, aparentemente, de pacífica rotina, aprovados que foram os relatórios dos anos anteriores79, combinadas que ficaram as diligências na ânsia de tornar o partido conhecido no estrangeiro, reiterados que permaneceram os votos de que 77 A comissão era composta por José Augusto Machado, José Henriques, João Borges, Mariano Pereira e Joaquim da Silva. Este, em declarações ao JN desmente o citado apoio à ditadura mas o jornal não publica essa passagem. 78 Contavam-se 160 Delegados de todo o país. 79 Do Relatório da secção norte constavam de dois anos de propaganda, um comício pró paz na Casa do Povo do Porto, obedecendo às resoluções da Internacional Operária e Socialista; uma série de conferências no Porto e arredores com Ramada Curto, Amâncio de Alpoim e Herlander Ribeiro; participação na União dos Interesses Sociais com outras forças políticas (extinguira-se entretanto); participação no Comité das Esquerdas Sociais (também de duração curta) e participação nas comemorações do 1º de Maio. 132 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES regressassem os deportados na Guiné, apoiada que foi, enfim, a tese da Liga da Mocidade Socialista (organismo de criação recente) no sentido de ser facilitada a construção em vários pontos do país doutros núcleos do mesmo género80. Mas a expectativa inicial fora gelada logo no início dos trabalhos: Nunes da Silva, ao ler o relatório do Secretariado da Zona Sul, culpa essa área de indolência total no interregno entre o Congresso do Porto e o presente. Acusam-no de Mário chorando sobre as ruínas de Cartago mas era, de facto, a antecipação da quase ruína do partido que só irá sair mais dilacerado da contenda que o caso abria. A fecunda polémica resume-se a um pormenor de organização interna. Duas facções de contornos esclarecidos desde bem antes do Congresso: a tese do Centro Socialista de Lisboa propõe que a Junta Directiva passasse a ser substituída pelo Conselho Central, restabelecendo-se as Confederações Regionais (o que representava um retorno ao antigo regulamento) e dos que defendiam que deveria ser mantida a actual Junta Directiva e o Secretariado Nacional81. Instala-se a confusão, para gáudio de toda a imprensa não socialista que não se cansará tão cedo de descrever um partido rasgado por discussões intestinas, sem ordem, sem acordo e sem clareza. A assembleia, irritada e irritante, fervia de tensão enquanto os oradores se digladiavam: “ou se remodela a organização central dando-lhe actividade em contacto directo e permanente com as outras organizações agrupadoras da massa partidária ou em Lisboa e sua jurisdição regionalista o partido não passará de um pequeno número de indivíduos divididos em pequenas fracções”82. Oliveira Pinto, do Secretariado do Norte, leva à mesa uma terceira proposta: A Confederação seria mantida, continuando a mesma divisão quanto ao Secretariado e Junta directiva; simplesmente, os membros desta seriam aumentados, em vez de dois passariam a ser cinco, eleitos no Congresso e mais um por cada Federação Municipal. Entre tumultos e 80 É interessante conhecer as posições que defendem quanto à educação. Voltaremos ao assunto adiante. 81 Esta posição era defendida, entre outros, por Joaquim Silva, José d’Almeida, Oliveira Pinto. Aquela por Bento da Cruz, João Graça, Martins Santareno, Joaquim Cabral. A base do aparelho partidário antes do golpe de 26, consistia no seguinte: Secretariado Nacional composto do secretário para o estrangeiro, secretário para o país, secretário para a acta, um tesoureiro e dois vogais (o conselho Central reuniria em dia e local certos). A Junta Directiva era composta por dois indivíduos, sendo um deles também membro do Secretariado. Deputados e vereadores não deviam acumular esses lugares com o de dirigentes do Partido e o Congresso teria lugar de dois em dois anos. 82 Tese do Centro Socialista de Lisboa, em que se propunha que a Junta Directiva passa-se a ser substituída pelo Conselho Central. In, República Social, 17-07-1926. 133 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA desordem geral acaba por ser aprovada uma solução em que continuava a existir a Junta Directiva, cujo número aumentava de dois para quatro e o Secretariado Nacional, com as secções Norte e Sul, aumentando-se de três para cinco a Secção Sul e de dois para três a Secção Norte83. Estava de novo consumada a divisão na desavinda família socialista, esgotada e perdida em discussões de foro interno que secundarizavam para um âmbito marginal aquilo que seria, certamente o cerne das preocupações das massas trabalhadoras: a reacção à situação política. A ela se chegaria por fim. Mas o mote dos trabalhos estava dado e, mais uma vez, como veremos, as conclusões não seriam mais que inconclusivas. Defendem-se várias propostas sobre a forma de lidar com o governo vigente. João Graça e Ramada Curto defendem que todos se deviam abster de colaborar com a situação e Sousa Neves diz mesmo que é necessário agitar a opinião pública a favor dos princípios socialistas. Mas razão tinha quem acusava o partido de “não ser mais que uma pequena patrulha dentro da política portuguesa”... bem indisciplinada, por sinal, acrescentaríamos. Importava, na prática, “saber se amanhã os socialistas, convidados a entrar nas câmaras municipais ou nas juntas de freguesia, deviam aceitar o convite”84. A maior parte entendia que esse convite não podia ser aceite; mas deitou-se água na fervura, apelando-se para os interesses e conveniências locais. E o caso foi relegado para a Junta Directiva que é quem passa a ter que descalçar a bota85. Os reais estragos na estrutura partidária haviam de vir à tona muito em breve. De facto, quando a 21 de Julho vão tomar posse no Centro Socialista de Lisboa os novos corpos sociais, Nunes da Silva e Júlio Silva, alegando motivos de ordem material e por terem pertencido ao antigo secretariado, não aceitam o cargo; Fernandes Alves invocava a sua doença para ser dispensado das reuniões; Ramada Curto, que presidia, pede “licença para se afastar durante algum tempo da acção directiva do partido” para se dedicar à advocacia e “por falta de condições directivas”; José Augusto Machado, eleito para o secretariado nacional, rejeita, impedido pelos 83 Continuava Ramada Curto e Amâncio de Alpoim. Eram nomeados, de acordo com as alterações, Fernandes Alves e Nunes da Silva. Pela secção sul o nome de Alfredo Franco, Joaquim Cabral, Ferreira Batista, Bento da Cruz e Reinaldo Vilas. Pela secção norte, Joaquim da Silva, Alberto Carneiro e Porfírio de Freitas. 84 Vários correligionários vinham sendo convidados para fazer parte das comissões administrativas que se iam criando pela ditadura. 85 A moção, proposta de Amâncio de Alpoim, constava do seguinte: “O Congresso confia na Junta Directiva eleita para que, em acordo com os princípios e interesses partidários, oriente a acção e táctica do Partido.” 134 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES seus afazeres... De fora fica também Amâncio de Alpoim, a contas com problemas como membro da administração da Caixa Geral de Depósitos, de onde é demitido, surgindo n’O Século a notícia de que fora também expulso do partido...86. De sete eleitos, aguentavam-se Augusto Dias da Silva e Alfredo Franco. Uma direcção profundamente desfalcada (dos suplentes, só Almeida Abrantes compareceram). Um secretariado onde as coisas não iam melhor (se não se registavam escusas, atacavam as faltas): sobrevive-se agarrando uma disposição dos Estatutos - Junta Directiva e Secretariado Nacional passam a tentar servir em conjunto. Estava-se num momento crucial para o desenlace do futuro político da Nação, um tempo ímpar para compensar a moleza inofensiva herdada desde longe, para o serenar das levianices, para o curtir da garra, o temperar da abnegação, o amadurecer da firmeza. Nada: o Partido Socialista, não só não define empenho nem clareza de resposta imediata ao “fardado golpe de 28 de Maio”, como se autoconsome em questiúnculas internas e jogos de interesse, assumindo-se “como partido essencialmente doutrinário e orientado, simplesmente, numa base moral, não oferecendo aos seus prosélitos mais do que a beleza das suas doutrinas”. Dúbias de resto, quando se tratava de acções concretas. É o desajuste para com as reais ansiedades da classe trabalhadora que justificará a confirmação do movimento anarquista como os verdadeiros protagonistas da oposição ao regime, como os acontecimentos subsequentes hão-de confirmar. Divorciada desta ideologia pequeno-burguesa, as massas mobilizáveis não são, por sua vez, factor de pressão na postura dos dirigentes no congresso que, com posições vagas e hesitantes, não perturbam de nenhum modo o curso da ditadura. Ramada Curto, contagiado, como vimos, acaba por encolher também os ombros: “A imprensa creou a atmosfera da ditadura, parte do operariado auxiliou a revolução militar, os cafés deliraram com o advento dela (...) A coisa chegou a tal ponto que eu – eu e outros – houve um momento em que, resignadamente pensamos: pois seja! Vamos lá a ver!..”87. E explica como este estado de alma não se compadecia com as responsabilidades de uma direcção partidária. Nem precisava explicar. Tempos complicados, estes. José Telo, 86 Se bem que o República Social venha a desmentir a notícia, o facto é que o partido deixou de contar com ele por uns tempos. Virá a ser preso dali a dois anos, altura em que era director do periódico A Notícia que fica suspenso. Há-de acabar a abrir banca no Brasil. 87 O Protesto, 14-11-26. 135 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA resume que “com o decorrer dos tempos, a posição da direcção do PS mantém-se hesitando entre o apoio à ditadura, para a qual tudo indica inclinar-se, e o medo da reacção da corrente de esquerda dentro do partido caso um tal apoio se concretizasse”88. Afunda-se assim mais o partido na espécie de limbo para que é relegado ou de onde não sabe nem quer sair. Afunda-se assim mais o país com a névoa da indiferença a ir pousando nos cantos que se lhe adivinhariam menos afoitos e a minar um Portugal a acomodar-se à mordaça como ainda alardeiam alguns articulistas mais lúcidos, mais corajosos e menos cuidados pelos ainda inseguros censores. A análise desta aquiescência quase geral para com as “forças vivas” – como na época era expressão corrente – não deixaria de exceder em muito o escopo deste trabalho. Mas raciocinemos em rápido sobrevoo. É certo que a verdadeira barafunda subjacente a toda a 1ª República foi de molde a criar, digamos, anticorpos para com os políticos em particular, os partidos no seu todo e mesmo a política em geral89. Daí, a facilidade com que, em dezoito meses, Salazar funda o Estado Novo (ele próprio recordava que não se pode governar contra a vontade persistente de um povo). É igualmente um facto que o panorama europeu, no geral, tendia à proliferação de ditaduras autoritárias um pouco por toda a parte90; como é ainda verdade insofismável o efeito decisivo do peso colossal da influência da igreja por um lado e o carácter secularmente amolecido de um povo brando, de sebastiânico atavismo e de todo carecido de um pai, por outro. Mas, pensando detidamente no tema, vemos que até nem deixava de sobrar espaço, mesmo assim, para o partido medrar com outro arrojo. Razões para que assim se tenha feito a história, havemos de continuar a discuti-las adiante. Fiquemo-nos para já com a sentença de António Sérgio, em entrevista à “Vida Mundial” vinte anos depois destes arrazoados: “Se existisse em 1910 um partido Socialista que se houvesse mantido bem distinto no seu campo próprio 88 TELO, António José, Decadência e queda da I República Portuguesa, II Vol., Biblioteca de História, A Regra do Jogo, Lisboa 1980, p. 134. 89 Numa circular, queixava-se mais tarde a Liga da Mocidade Socialista de Lisboa de que “existe uma certa malcrença por ‘aquilo’ a que chamam Socialismo, por aquilo que, longe de perverter, somente conseguirá elevar os povos à máxima perfeição humana, à disciplina e ao respeito pela humanidade”. (In, O Povo, 14-01-1929). 90 Se bem que seja comummente aceite o peso da ruralidade na economia portuguesa como justificação da ausência de um proletariado capaz de fazer frente às forças reaccionárias de cariz autoritário, o aparecimento deste regime não pode ser dissociado do processo de modernização que a partir de finais do século XIX o país sofreu. Só poderemos entender a natureza e as características do regime saído do golpe de 28 de Maio se o contextualizarmos entre a irrupção de um processo de industrialização tardio e brusco, acompanhado por uma forte mobilização social, cultural e política a que não são estranhos os movimentos migratórios populacionais. (Ver: PAIS, José Machado, O Estado Novo - das origens ao fim da autarcia, 1926-1959, Vol I, ed. Fragmentos, Viseu, 1987). 136 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES – no das reformas económicas parciais, realizáveis por simples republicanos, estudando-as pelo exame concreto das realidades nacionais, reclamando-as dos governantes – melhor teria sido o destino do nosso povo”91. Outro garbo poderia pois ter tido o movimento socialista para enfrentar a robustez da ditadura. Não o teve no imediato, como vimos. Não o viria a ter nunca, como veremos. Deixáramos lá atrás o partido a esvaír-se em ideias e gentes que sumiam como se a militância fosse um perigo a afastar. Doença que, de resto, só parece ter tendência para alastrar: Manuel José da Silva, principal redactor do República Social, demite-se em Agosto92, Porfírio de Freitas, do Secretariado Nacional, fálo no mês seguinte, Martins Santareno em Outubro porque apoiava o Socorro Vermelho… para já não falar sequer nas bases... Não é, contudo, a morte do partido de Fontana e Gneco. Ainda. Teimosamente, os mais combativos mexemse em iniciativas de vária índole. Aparece por esta altura o “Núcleo Excursionista Civil Azedo Gneco”, organização tipo Círios Civis, que procura unir a tresmalhada prole sob o signo dos passeios organizados93. Organiza-se também uma homenagem a Ramada Curto e Amâncio de Alpoim, enquanto a Liga da Mocidade Socialista brada por “diversões e recreios educativos como meios práticos de exortação juvenil dentro da organização partidária” e se festeja, com pouco brilho, é certo, o 5 de Outubro. N’O Protesto - que desde Agosto passa a sair com regularidade variável por graves problemas financeiros - aparece o primeiro repto sério ao recurso à política de alianças como forma de enfrentar a situação94. Mas o seu tempo não era ainda chegado. As grandes cartadas do futuro do país continuariam 91 In, SOARES, Isabel, op. cit. p. 22. 92 Manuel José Dias da Silva entrega no semanário do partido um artigo que sai publicado sem a sua assinatura (havia sido suspenso). Agride Joaquim da Silva que se demite levando à convocação da Confederação Nacional… 93 O “Movimento Socialista dos Círios Civis” era um órgão de luta anticlerical e anti-religiosa. Inicia-se em 1894. Uma Federação coordenava a actividade geral dos círios, enquanto a actividade particular era deixada à iniciativa de cada um deles. As conferências anti-religiosas eram os principais e mais frequentes meios de actuação pedagógico-militante. Constava do Artº I do Regulamento Geral: “Com o título de Federação dos Círios Civis, é fundada em Lisboa uma instituição permanente civil e destinada a fazer a máxima propaganda anticlerical e cooperar para a realização do programa do Partido Socialista votado em Tomar”. 94 O1º- Que se convidem os altos corpos partidários a que de futuro só procurem alianças para o Partido nos partidos e agrupamentos da esquerda política e social. 2º- Que, quando por virtude de acontecimentos excepcionaes o Partido se tenha que aliar com outro agrupamento procure sempre que dessa aliança não resulte uma diminuição no seu prestígio, principalmente aos olhos da classe trabalhadora e que da sua acção política não se venha a apropriar exclusivamente um outro partido político. 3º- Que se saúdem todos os agrupamentos políticos ou económicos que estão connosco do mesmo lado da barricada e principalmente a C. G. T. e o partido comunista. (In, O Protesto, 22-08-26). O desânimo para com a situação na imprensa estará bem expresso por Alfredo Franco ao afirmar no final desse ano: “a tiragem de hoje é a de ontem, sem esperança de melhorar amanhã”. (In, República Social, 04-12-1926). 137 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA a ser jogadas por actores estranhos ao PS que, combalido, impotente e atónito, tartamudeava comentários e leituras políticas pouco frontais, nem sempre claras e, a espaços, contraditórias. Provaremos que assim foi com os acontecimentos do Fevereiro de 1927; assim também com todo o processo que levaria Salazar à cabeça do Estado Novo. Muitos socialistas terão visto passar o “pé descalço” e os marinheiros, comandados por Agatão Lança, para o embate com as tropas da ditadura, no Largo do Rato95. Estava-se no momento decisivo de enraizamento da ditadura ou de um retroceder no processo, até aqui ainda plausível. Um ou outro resultado da mais séria contenda do século na lusa história (150 mortos, 800 feridos) era melindroso para uma força que, sem ter sido ouvida nem achada96, se assumia como espectadora definitiva dos acontecimentos. E têm sabor a camarote as reacções que vão saindo. Atordoados de acordar num país diferente, estranham e incomodam-se com os “hossanas vitoriosos” dos monárquicos, clamam por bom senso, pedem perdão para os vencidos e... queixam-se de flagrante injustiça já que, num primeiro momento, também os socialistas viram os seus centros encerrados e arrolados os seus haveres. À laia de desforra, enxameiam artigos na sua imprensa ridicularizando os comunistas, “enfezadinhos e doentes”, que haviam desaparecido sem deixar qualquer rasto. O real significado do que se ia passando é que ninguém terá percebido de imediato. De facto, da mesma forma que o 28 de Maio constituíra o ponto de referência cronológica que marcara o fim da experiência liberal, um projecto que se tinha vindo a esgotar lentamente, o movimento revolucionário do Fevereiro de 27 impunha-se como o ponto de viragem numa marginalização crescente da República em relação ao seu bloco social de apoio. Ora, a alternativa que se busca já não se procura no quadro das instituições políticas nem no seu modelo económico. Na sociedade portuguesa desta altura, atingida por um longo período de crises subsequentes à Primeira Guerra Mundial, mundo de contradições onde se chocam os vários interesses socioeconómicos, só uma coisa parecia certa - a necessidade de um Estado forte, capaz de evitar conflitos e de abrir uma via de desenvolvimento económico. 95 Ver, FERNANDES, Vasco da Gama, Depoimento Inacabado, Pub. Europa América, Lisboa, 1975. 96 Eles próprios assim se definiam (ver, República Social, 02-04-1927). 138 CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES Na altura, o rescaldo arrasta-se penoso e inglório. Saneamento do funcionalismo, encerramento de associações secretas, supressão do direito à greve... Não bastasse o aperto da situação a tolher decididamente o espaço de manobra política e o flagelo económico que se faz sentir com mais força (60% do orçamento da Nação ia para o Ministério da Guerra e Marinha), nascem dos destroços intrigas, divisões, mal entendidos. Alfredo Franco e Mário Silva chegam a ser dados como presos (o que acaba por ser desmentido, se bem que o venham a ser, de facto, um ano mais tarde, exilando-se depois este em Paris), Manuel Pulqueiro, da Liga da Mocidade Socialista é deportado para África. Um mês depois, Alfredo Franco afasta-se da direcção para onde só no fim do ano entraria Amâncio de Alpoim. Sobra José Augusto Machado a quem é confiada a Secretaria Geral, por entre démarches para reabrir os centros que haviam sido encerrados97. Ganhava outra força a forma como se insinuava a pressão do regime autoritário, sobretudo ao nível da imprensa, veículo por excelência da propaganda e mobilização política. O periódico Batalha, sob suspeita de ali se imprimirem manifestos clandestinos de apoio à revolta, deixa de sair logo a 5 de Fevereiro; O Protesto não sai durante duas semanas; a CGT é extinta, a própria Seara Nova é degolada. Entretanto, nem todos terão perdido o tino de adivinhar que, com os comunistas sem espaço e sem base de apoio, bem o Fevereiro de 27 poderia abrir a oportunidade de, finalmente, ser dada a vez aos socialistas – o Secretariado Nacional lança desesperados apelos a todos os que já tinham sido filiados no partido para que se filiassem de novo. Mas o país jazia apático e atordoado, dir-se-ia no ponto para assistir, num futuro ali já perto, à posse de Carmona na própria sede das Câmaras republicanas extintas e a aceitar e a sossegar com o novo ministro que discursaria de olhar fixo, como que hipnotizado, a boca severa e desdenhosa, a frase lapidar: “Sei muito bem o que quero e para onde vou.” Ninguém ainda ousara assim dizer, na República; alguém o teria podido dizer ou saber – desde João Franco, vinte anos atrás?.. entretanto, por essa altura, Ramada Curto fala longamente ao JN sobre a “actual crise teatral”. O desânimo era notório e confesso. A onda de despropositado pacifismo “mataria de desgosto os grandes iniciadores do partido se estes pudessem cá voltar”. Ao fazer o balanço do ano, Fernandes Alves desabafa que “nada se realizou, tanto no campo sindical como no campo da política socialista”. 97 Em Junho já nem Augusto nem Alpoim estão nos seus postos. 139 O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA Com evidente exagero, diga-se, pois que, por paradoxal que pareça, é precisamente nesta altura que se começam a notar claros sintomas de progresso na sua imprensa. Era o justo prémio da ditadura para a tão alardeada inocência nos acontecimentos de Fevereiro: anarco-sindicalistas, comunistas e boa parte dos republicanos mais progressistas tinham sido perseguidos, deportados e, sobretudo, emudecidos pela suspensão dos seus periódicos. Assim, contrastando, tremendamente, com este panorama, O Protesto afirma ter quintuplicado a tiragem, o União (jornal da província) passa a semanário, O Trabalho, dedicado à parte sindical, mantém-se e o República Social propunha-se melhorar todos os seus serviços98. Esmiucemos um pouco mais detalhadamente toda a parafernália socialista que, se bem não tendo nunca alcançado o brilho dos seus congéneres de outros países (em tempo algum se chegou a estar sequer perto do simbólico sonho do jornal diário), não deixou de ser o seu rosto mais visível, quiçá o mais conseguido. 98 Era normal os periódicos esconderem as tiragens. O dado mais preciso que encontramos vem inserido no República Social de 27-08-32 e refere mais de seis mil assinantes... como é aproximadamente a partir desta altura que passa de novo a reduzir-se a quatro páginas, deduzimos que os números devem coincidir com o ponto alto da imprensa do partido. 140 Afonso Costa e o Socialismo Integral José Reis Santos Introdução Encontrando-nos em pleno ciclo comemorativo do centenário da I República portuguesa e num momento de (quase) total hegemonia cultural e política do modelo neo-pós-liberal, interessa, talvez, requentar outras visões do mundo e da sociedade. Neste sentido, julgamos de interesse mergulhar no pensamento politico daquele que foi, indubitavelmente, um dos maiores políticos portugueses dos finais do século XIX e inícios do século XX, personagem ímpar (e polémica) da vida nacional, e ícone do progressismo português: Afonso Costa. Afonso Costa destacou-se, na vida portuguesa da viragem para o século XX, como activista político, parlamentar e advogado de sucesso. Aliado a uma vivência recheada de dinamismo e labor, desenvolveu em sua volta um verdadeiro clima de euforia e fé, assumindo-se como paladino das causas dos socialmente mais desfavorecidos (na sua actividade de parlamentar, na de activista político, mas principalmente como advogado1), como profeta da queda do regime monárquico e arauto do advento da República. Raul Rego intitulou-o «o maior estadista português deste século [XX]»2, e Cunha Leal «um romântico mascarado de intelectual seco»3. Para nós, Afonso Costa foi um bardo de tempos novos, núncio do Futuro, advogado de Portugal. Um Socialista, Republicano e Laico. Cedo entendeu que para a necessária alteração de regime político em Portugal, não chegava o pensamento; era urgente acção. Isso nos dá a entender nos seus primeiros (e ainda um pouco imberbes) textos publicados no jornal académico O Ultimatum, produto reactivo dos jovens estudantes coimbrões à crise 1 Lembre-se aqui o papel de Afonso Costa como advogado na defesa constante de casos envolvendo os socialmente desfavorecidos, como os 25 pescadores de Gontilhães (1900-01), 4 jovens do movimento operário português (1901), homens de Candosa (1901), o operário Bartolomeu Constantino (1904), etc. 2 Raul Rego, Afonso Costa. Discursos proferidos em Seia e no Porto na inauguração das estátuas ao estadista da República, s.e., Lisboa, 1988, pp. 5. 3 Francisco Cunha Leal, As minhas Memórias, 3 volumes, s.e., Lisboa, 1966-68. 141 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL de 1891. No entanto, anos mais tarde (1895) – quando concluiu as suas provas doutorais –, Afonso Costa presenteia-nos com uma obra de grande dimensão teórica e politica: A Igreja e a Questão Social. Neste escrito, onde desenvolvia as suas teses doutorais, apresenta-nos o seu quadro teórico, assente no Socialismo Integral desenvolvido por Benoit Malon, e introduzido em Portugal, essencialmente, pela pena de Magalhães Lima4. Esta vertente do socialismo, enquadrada na reflexão larga que este movimento de ideias produzira no último quartel do século XIX, acabaria por não suscitar grande entusiasmo, talvez por nunca ter conseguido nem obter a hegemonia cultural de outras vertentes ou por não ter conseguido expandir os seus propósitos teóricos para situações práticas, isto apesar de Afonso Costa ter tido a oportunidade de o introduzir como elemento ideológico definidor da I República Portuguesa. Este curto texto pretende explorar então a proposta do Socialismo Integral, como apresentada por Afonso Costa e contextualizá-la no quadro das ideias socialistas no Portugal do dealbar do século XX. Pretende ainda distinguir as principais características do pensamento político do Homem que marcaria grande parte da produção legislativa e intervenção pública da nossa I República, partindo essencialmente da sua intervenção intelectual e académica (1890-95) de onde se destacam o artigo d’O Ultimatum “A Federação Académica5” (1890), a apresentação da sua tese de doutoramento (em Coimbra , 1895)6; e, principalmente, a publicação da sua obra de maior teor ideológico A Egreja e a questão social7 (1885). Breve história do Republicanismo em Portugal Qualquer história do republicanismo em Portugal identifica três gerações: a de 1848, a geração de 70 e a geração do Ultimatum8. A primeira geração, a progenitora, destaca-se pelo carácter descentralizador, municipalista, federativo e 4 Magalhães Lima, O socialismo na Europa, prefaciado por Benoit Malon, citado em Affonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 79. 5 O Ultimatum, nº 1, de 23 de Março de 1890, pp. 1; retirado de A. H. de Oliveira Marques, Afonso Costa, ob. cit. pp. 267. 6 Affonso Costa, Theses ex Universo Jure (…), Imprensa da Universidade, Coimbra, 1895. 7 Affonso Costa, A Egreja e a questão social, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1895 8 Cf. Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de Outubro de 1910. vol. I e vol. II, Faculdade de Letras, Coimbra, 1991. 142 JOSÉ REIS SANTOS associativista de Henriques Nogueira ou de Alexandre Herculano; preconizando uma República Federativa, socialista (à maneira de Fourier e Louis Blanc9) no quadro de uma federação ibérica livre. Subjacentes a estes desígnios – onde são patentes as influências ideológicas de Proudhon, Tocqueville, do federalismo dos EUA e da Suíça - detectavam-se os ideais da Revolução Francesa (no que respeita ao livre associativismo e à ideia de liberdade) e os ecos das revoluções de 1848. A geração de 70, liderada por Teófilo Braga, Oliveira Martins, Antero de Quental (entre outros), reapreciaria os ideais de 48, sofrendo, novamente, influências doutrinárias externas. Desta feita foram atraídos pela experiência republicana espanhola (1868-73), pela comuna de Paris (1871), pela III República Francesa e, por negação, pelo primeiro concílio do Vaticano (1869-70)10. Seria, no entanto, a influência da filosofia positivista a principal contribuição doutrinária, inaugurando esta a certeza científica em relação ao advento e perfectibilidade do regime republicano, ao mesmo tempo que contribui para iniciar a definição do clima anti-religioso, anti-ultramontano em Portugal11. Como principais influências ideológicas destacaríamos as de Comte (positivismo Teofiliano) e Proudhon (Antero). Já a geração de 90, ao contrário das suas progenitoras, seria essencialmente influenciada por acontecimentos internos. Sofrendo do amadurecimento ideais de 48 e da reflexão da geração de 70, a geração de 90 despoleta para a actividade política com o ultimatum inglês. É, portanto, um acontecimento traumático que estará na génese formadora da consciência política de um grupo de jovens universitários republicanos e que os dotará de uma atitude revolucionária, activa, que os diferenciaria das gerações anteriores. Afonso Costa, António Maria da Silva, João de Meneses seriam os porta-vozes desta nova geração, mais virada para a luta que para a elaboração teórica. Em termos ideológicos mostram-se também bem informados, assim como os seus precursores, seguindo atentamente a evolução dos debates europeus em relação à grande questão da época – a questão social; como aliás o reconhece 9 Fernando Catroga, idem; Afonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit, pp. 87-89. 10 cf. A. H. de Oliveira Marques, A primeira República Portuguesa (alguns aspectos estruturais), Livros Horizonte, Lisboa, 1980 (3ª edição), especialmente capítulo V; e A. H. de Oliveira Marques, Afonso Costa, Cadernos F.A.O.J, série C; 1978. 11 Para este clima também terão contribuído as principais resoluções apresentadas pelo primeiro concilio do Vaticano, onde se reafirmava a infalibilidade do Papado e o centralismo de Roma. 143 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL Carvalho Homem12. Dentro das suas influências detectamos Marx, Engels, Blanqui, Malon, e outros, o que demonstra que a sociedade cultivada portuguesa, interessada e activa, se mostrava actual e contemporânea. Podemos detectar algumas linhas de continuidade entre as diferentes gerações, uma vez que todas plasmam ideais de democracia política, descentralização, municipalismo, e federalismo. A complexidade do combate aguçaria a luta, mas, no fundo, os grandes objectivos da geração de 90 eram os mesmos de Henriques Nogueira e da geração de 70: a instauração em Portugal de um regime liberal democrático, progressista, descentralizador, que permitisse a modernização do país e o encurtamento das várias assimetrias patentes, quase geneticamente, na sociedade portuguesa. Podemos, em síntese, afirmar que de um republicanismo ingénuo de 48, e de um cientismo de 70 se alcança o radicalismo de 90; evolução, aliás, concordante com a experiência socialista europeia. Outro debate paralelo tem a ver com o advento das ideias socialistas em Portugal, e com o grau da sua consistência; até porque Rui Ramos aponta para uma diluição ideológica entre os principais oponentes políticos da monarquia constitucional; relativizando a ideologia em relação à política e destacando as «preocupações sociais» de praticamente todo o espectro político13. Já Oliveira Marques refere que «de certa maneira, poder-se-ia dizer que o Republicanismo português se fez “socialista” em princípio, mas burguês na prática», apontando para a latente desarrumação ideológica e uma falta de categorização do pensamento republicano português ao longo do século XIX14; enquanto César Oliveira, fixando o seu objecto na análise ao pensamento marxista em Portugal, refere-nos a falta de substância ideológica do operariado português e dos seus líderes; destacando a parca influência dos principais textos doutrinários marxistas em Portugal, e realçando Afonso Costa como um dos poucos leitores da obra do filósofo alemão15. César Oliveira aponta, com alguma razão, que as 12 Carvalho Homem refere as «importantíssimas contribuições doutrinais» que a geração de 90 dotará o pensamento republicano, nomeadamente no que respeita ao alargamento doutrinário e ideológico, apontando para a pertinência intelectual e doutrinária destes novos actores. cf. Amadeu Carvalho Homem, ob. cit., especialmente capítulo III. 13 Rui Ramos, A Segunda Fundação (1890-1926), Historia de Portugal: sexto volume, direcção de José Mattoso, Circulo de Leitores, Lisboa, 1993. 14 A. H. de Oliveira Marques, A primeira República Portuguesa (alguns aspectos estruturais), Livros Horizonte, Lisboa, 1980 (3ª edição). 15 César Oliveira, O Socialismo em Portugal. 1850-1900, Afrontamento, Porto, 1973. 144 JOSÉ REIS SANTOS principais causas da pouca importância do socialismo na elite social e intelectual portuguesa se deveu, fundamentalmente, a dois motivos: a inexistência de uma verdadeira classe do proletariado devido à inexistência de processos industriais suficientemente acelerados que permitissem a criação de ‘massas críticas’ que poderiam absorver a ideologia marxista; e, por outro lado, à falta de leituras de Marx, fruto da inexistência de uma classe proletária suficientemente numerosa, activa e instruída e de um desprimor intelectual e ideológico a que Marx era sujeito16. Em todo o caso, e sem querer contribuir para este debate, parece-nos evidente que a elite intelectual portuguesa se encontrava genericamente informada e seguia os grandes debates teóricos e políticos da época, procurando neles intervir, na dimensão nacional. A questão social: a Europa na viragem do século XX. O grande tema que dominava os debates políticos europeus por altura da viragem de novecentos era a questão social, ou a necessidade de desenvolver na arena política um processo de articulação entre o Trabalho, o Capital e as Instituições Políticas. Desde as revoluções de 1848 que estas questões se põem, a fundo, e estão relacionadas – sucintamente – com o brutal desenvolvimento industrial que parte da Europa atravessa desde princípios do século XIX, com os reflexos do ímpeto revolucionário francês e das contra-revoluções absolutista e conservadoras, com o advento de novas tecnologias de comunicação e de transporte, com o acesso à educação e alfabetização de um conjunto mais alargado da população e com a consequente consciencialização política de novos grupos sociais. Sem procurar aprofundar, resumiríamos os principais desenvolvimentos deste debate agrupando-os em quatro grandes correntes generalistas: uma marxista, que se desenvolve no seio da AIT (ou primeira internacional – 1864/76) e nos países do norte da Europa e que procura dotar ao operariado industrial uma consciência de classe e um plano político para a sua emancipação. Desta corrente, que nos parece a mais significativa, saíram relevantes derivações que procurarão rever alguns dos parâmetros iniciais de Marx17. Uma segunda 16 César Oliveira, ob. cit. 17 cf. Élie Halévy, ob. cit; Jacques Droz e Armand Colin, ob. cit. ; e Jacques Droz (direcção), História geral do socialismo, ob. cit. 145 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL corrente, mais confusa e dispersa, será a francesa; onde o marxismo ortodoxo pouco sentido fazia e pouca importância tinha numa sociedade pouco consciencializada para estas questões específicas. Esta corrente, com pouca influência de Marx (até aos anos 1880/90) e com ascendência de Proudhon, de Blanqui e mesmo de Bakunine (que impeliam para a acção directa, muitas vezes descoordenada), caracterizava-se pelos seus contornos colectivistas, comunitaristas, libertários, anarquistas e revolucionários. Um outro caso é o inglês, onde, partilhando espaço com as ideias de Marx, se desenvolvia a tradição das trade unions. Estas procuravam, não somente através da luta aguerrida contra o sistema capitalista, a melhoria das condições de vida e de trabalho para os seus associados dentro do próprio sistema liberal. Por fim, e fruto de uma percepção tardia mas consciente por parte do Vaticano, desenvolver-se-ia, a partir de 1891 e da encíclica Rerun Novarum (de Leão XIII), uma reacção da direita conservadora, que daria origem à democracia-cristã. Esta corrente procuraria estabelecer situações de compromisso entre as partes em conflito e construir pontes entre o patronato e o operariado, sob o beneplácito da Igreja católica. Estas diferentes correntes de opinião, maioritariamente anti-sistémicas, dispunham de quatro grandes linhas estratégias para influenciar as decisões políticas ou para alcançar o poder: a legalista, a revolucionária, a anarquista, e a integralista. Assim, e muito sucintamente, a via legalista era aquela que pretendia organizar-se partidariamente e entrar, através da participação política, no sistema, reformando-o por dentro. Era o caso do SPD alemão, do Labour Party inglês, do PS francês e dos diversos partidos sociais-democratas do norte da Europa. Era também esta a posição que Bernstein assumiria teoricamente em 1889 e que alteraria o objectivo final do socialismo18. A missão a atingir já não seria a destruição total do sistema capitalista, mas a sua reforma. A via revolucionária, também organizada partidariamente, pretendia-se sectária e fora do sistema capitalista-liberal. A função do Partido seria a de preparar a classe trabalhadora para a luta, para a tomada do poder e para a sua autoconsciencialização. Apontava para destruição do sistema capitalista e faseava 18 A partir de 1889, com a publicação da obra Premissas do Socialismo, Bernstein dá corpo teórico ao revisionismo marxista que se afasta da lógica destrutiva que o marxismo impele aos seus movimentos e a substitui por uma via reformista, sistémica, do capitalismo. 146 JOSÉ REIS SANTOS a criação do novo paraíso em três estádios: a tomada do poder, a ditadura do proletariado e a construção da sociedade sem classes. Era esta a visão de Marx e dos seus discípulos. A visão anarquista, de Sorel, Bakunine ou de Jean Grave diferenciava-se da marxista na medida em que não considerava necessária a ditadura do proletariado para a construção de uma sociedade comunista. Para os anarquistas qualquer pretensão de elaboração de um aparelho estatal não fazia sentido na busca das soluções libertárias e colectivistas. Enfatizavam a acção directa e, na sua organização política, privilegiavam em vez dos partidos políticos, o movimento sindical. Aí, e através da luta directas (greve geral, ataques bombistas, etc.) atingiriam os seus objectivos. Uma terceira via era a apresentada pelos integralistas, que preconizavam a síntese de todas «as actividades progressistas da humanidade». É a tese apontada por Benôit Malon e que pretende, em última instância, a instauração de uma República Social, apostada em parâmetros politicamente democráticos e economicamente socialistas; pretendendo a «separação entre o Estado e as Igrejas, a substituição das festas religiosas por festas cívicas, a universalização do ensino, a substituição do exército permanente por milícias nacionais, a abolição dos privilégios19». Naturalmente que os governos nacionais não se encontravam desfasados destas reivindicações e também reagiriam, reformando-se ou reprimindo. Neste sentido, são diversos os governos que promoveriam vias reformistas; e que, cedendo perante a pressão por parte da sua população industrial (mas não só20), acediam aos seus protestos e legislavam no sentido de regularizar e melhorar as condições gerais de vida e de trabalho21. Esta posição foi tomada, em graus distintos, um pouco por toda a Europa (Portugal com João Franco, França na III República, Alemanha de Bismark numa primeira fase, Bélgica, Holanda, etc.). Opção inversa era a repressão; e também esta via se mostrou muito comum um pouco por toda a Europa, alterando-se com a posição reformista em virtude da intensidade e da forma dos protestos por parte do operariado, por um lado, e com a benevolência 19 Benoît Malon, Le Socialisme intégral, vol. I, pp. 393, Paris 1892 (4ª edição) ; citado em Henrique Cardoso, A crise portuguesa e os partidos revolucionários, Porto, 1899, retirado de César Oliveira, ob. cit., pp. 319-346. 20 De facto as reivindicações não eram exclusivas do operariado urbano/industrial; boa parte daquilo que se designou de pequena/média burguesia urbana, por um lado, e ‘operariado rural’ (ou campesinato ou assalariados rurais), por outro, juntavam-se frequentemente ao rol dos descontentes e inconformados. 21 Geralmente essas questões rodeavam assuntos como o horário de trabalho (8 horas), o dia de descanso semanal, a regulamentação do trabalho infantil e feminino, etc. 147 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL dos governantes, por outro. Por fim, uma terceira opção, a do compromisso, era a sugerida pelo Vaticano e descrita na Encíclica Rerun Novarum; que procurava criar mecanismos de cooperação entre o patronato, o operariado e o poder político no que poderíamos descrever como um sistema pré-corporativista. Um jovem (e revolucionário) académico. Em 1890 Afonso Costa publicava um pequeno artigo n’O Ultimatum, jornal académico ligado à Universidade de Coimbra. Intitulado “A Federação Académica”, eram identificadas as causas da degeneração da Pátria com a monarquia, com a Casa de Bragança e com a moralidade reinante. Afonso Costa clamava pela a necessidade da revolução para combater estas causas, que só seriam erradicadas se se instalasse em Portugal um regime republicano, solução pretendida para a desejada regeneração moral (e política) da Pátria. «Obras, muitas obras, sangue, muito sangue seria preciso para conseguir um desideratum assim»22, diria. Uma vez instaurado o novo regime, revolucionariamente, seria necessário «em seguida instruir, edificar, moralizar o povo». Seguindo os preceitos positivistas apregoados pelos seus professores Teófilo Braga e Emídio Garcia, o espírito do jovem universitário demonstra a percepção da inevitabilidade da instauração de um regime republicano; defendendo que as sociedades modernas deveriam caminhar ao lado do progresso científico e social para formas de Governo que permitissem o natural desenvolvimento da contemporaneidade em busca da felicidade colectiva e da concretização do sentido histórico, pátrio, reservado à nação. «Não será isto mais curial, mais científico?», questiona mesmo Afonso Costa23. Por outro lado, a atenção demonstrada, cedo, pelos aspectos educativos da população (ou do povo), completam o ramo teofiliano e inscrevem definitivamente o jovem beirão na genealogia republicana portuguesa. A atenção ao processo formativo, na sua dupla vertente social e individual, indicavam a partilha da ideia de regeneração e de criação de um Novo Homem, de uma Nova Sociedade, de um Novo estado moral, social e político para a nação portuguesa. Afonso Costa ao se referir a este aspecto indiciava já um entendimento 22 O Ultimatum, nº 1, de 23 de Março de 1890, pp. 1. 23 Idem. 148 JOSÉ REIS SANTOS claro da complexidade da sociedade portuguesa em que se inseria e preocupava-se em se colocar ao lado daqueles que identificavam a educação como a grande ferramenta, capaz impulsionar os potenciais projectos transformadores, o que se convencionou identificar como pedagogia republicana. De salientar, também, a preocupação cedo demonstrada em se demarcar das atitudes passivas das gerações anteriores: «(…) a Academia vai emancipar-se das antigas rapaziadas vergonhosas ou ridículas, tem a obrigação de não se tornar platónica (…)», afirma. Acção, e não pensamento; luta, e não reflexão, defende. Aparte da intenção de se demarcar de gerações passadas e de conquistar um espaço político e intelectual próprio, Afonso Costa preocupava-se também em de distanciar daqueles que, no passado, prostraram o seu dinamismo em divagações ascetas e infrutíferas. De certa maneira entendia que o tempo de reflexão terminara, de que seria necessário incutir mais vitalidade no movimento republicano português, de forma a aproveitar o capital de descontentamento no regime monárquico, a potenciar o fim da monarquia bragantina e possibilitar a instauração em Portugal de um regime que possibilitasse o definitivo afirmar da nação portuguesa na esfera da modernidade: a República. Em suma, apoiado num revolucionarismo arquétipo da juventude universitária, e denotando certas apropriações filosófico-políticas do positivismo teofiliano, Afonso Costa apresenta-se ao palco político português como anti-monárquico convicto, bardo da República e ardina da revolução. Não terá, ainda, um pensamento político construtivo e elaborado, mas destaca-se pela veemência com que pretende inaugurar uma nova era do combate político português, apostado na revolução e no combate e não na pura divagação intelectual e no debate. Em 1895, Afonso Costa doutorava-se, cinco meses após ter terminado a sua licenciatura em direito. No espaço de tempo entre o que escrevera o líder estudantil em 1890 e 1895, dois acontecimentos marcariam a política portuguesa e internacional: a tentativa insurreccional republicana de 31 de Janeiro, no Porto; e a publicação da encíclica Rerum Novarum, ambos em 1891. No campo das ideias Benoit Malon publicara a obra Socialismo Integral (1892) e no combate pelo hegemonia socialista era mais visível a divisão entre a linha ‘possibilista’ e a ‘marxista’ (e a anarquista)24. 24 De facto, aquando da criação, em 1889, da II internacional, realizaram-se em Londres dois congressos: um suscitado pelos possibilistas e tradeunions inglesas e o segundo pelos guedistas (de Jules Guesde) e anarquistas, ao que se juntaram os sociais-democratas alemães. Dentro do segundo Congresso (o que dominaria o debate internacional) em breve se distanciariam anarquistas de marxistas, possibilitando a estes, finalmente, o domínio da organização. Ver Jacques Droz, ob. cit. (especialmente volume 4). 149 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL As teses apresentadas na Faculdade de Direito intitulavam-se A Egreja e a Questão Social; um conjunto de definições e conceitos sintéticos onde Afonso Costa se apresenta informado e polémico, exibindo interessantes leituras da literatura contemporânea dos ramos da ciência política, da sociologia e, claro, do direito. Prontamente afirma que «a sociologia não pode deixar de ser fundamentalmente socialista»25, defendendo uma ligação umbilical entre Sociologia e o Socialismo; para depois reflectir sobre o estado dos direitos políticos consagrados na Monarquia Constitucional, indicando a necessidade do voto universal e a reformulação das definições cívicas existentes. Nestes pontos, e considerando que «em Portugal a restrição do direito de sufrágio é inútil e perigosa»26, defende a necessidade da representação parlamentar «dos órgãos da actividade social»27 e a indispensabilidade de reforma do «direito político português» no sentido de se «eliminar a distinção entre cortes ordinárias e constituintes»28; assunto onde é interessante apreciar a contemplação de estratégias reformistas, considerando possível a reforma do sistema político através de revisões constitucionais (afastando-se, de certa maneira, do ímpeto exclusivamente revolucionário defendido em 1890). Por fim, e numa linha, o doutorando insurge-se no campo que o celebrizará: «os meios que Leão XIII (Encyclica Rerum Novarum, de 15 de Maio de 1891) indica para ser resolvida a questão social são inteiramente ineficazes»29. Uma vez doutorado, Afonso Costa desenvolveria as suas teses na obra A Igreja e a questão social; onde apresentaria, de forma sistemática e articulada, a sua argumentação e o seu contributo em volta do assunto em voga (a questão social), naquele que seria o seu contributo teórico de mais fulgor. A obra, polémica há época, procurava desenvolver um ataque às disposições elencadas pela encíclica Rerun Novarum, ao mesmo tempo que pretendia transpor para a actualidade intelectual portuguesa o estado do debate europeu sobre as diversas vertentes 25 Affonso Costa, Theses ex Universo Jure (…), ob. cit. pp. 9. 26 Idem. 27 «Defendemos o regimem parlamentar com representação equitativa dos órgãos da actividade social», Idem. 28 «N’uma reforma do direito político portuguez deve eliminar-se a distincção entre côrtes ordinárias e constutuintes», Idem. 29 Idem, pp. 11. 150 JOSÉ REIS SANTOS do socialismo, contextualizado numa longa história geral do socialismo. Seria n’A Igreja e a questão social que Afonso Costa defenderia as leituras desenvolvidas por Benoit Malon e pelo seu Socialismo Integral, como adiante verificaremos. A Egreja e a questão social (1895). Como já referimos, Afonso Costa publicava, em 1895, a sua obra de maior teor teórico, contribuindo – à escala lusa – para o debate corrente sobre a questão social. Em termos organizativos A Egreja e a questão social divide-se em três partes: ‘Introdução’, ‘Exposição’ (I parte) e ‘Crítica’ (II parte). Em anexo é também publicada a encíclica Rerum Novarum30. Na Exposição, Afonso Costa dedica uma parte ao ‘Socialismo’ e outra à ‘Igreja de Cristo’; e divide o Socialismo em ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’. Aponta depois, para o passado, três períodos: o “Socialismo Inconsciente” (1º período), o ‘Socialismo Utópico e Metafísico’ (2º período) e o ‘Socialismo Científico’ (3º período). Nestas páginas Afonso Costa deambulará sobre a história do pensamento socialista, dos seus primórdios ‘linguísticos’31 às suas origens históricas (os sofistas, Platão); passando pelos ensinamentos cristãos primordiais, pelos utopismos seiscentistas (socialismo utópico de Thomas More, Campanella ou Meslier), pelas origens oitocentistas do socialismo moderno (Saint Simon, Fourier, Robert Owen), pelo socialismo científico (Marx, Lassalle) até se debruçar na contemporaneidade, onde passa em revista as principais escolas dominantes do pensamento socialista europeu, e a realidade política vivida pelos principais Partidos e Movimentos socialistas nos diferentes “palcos de conflito”. Numa análise superficial, Afonso Costa propõe-nos uma viagem de vários séculos, através de dezenas de pensadores, impressionando a miríade de citações que transcorrem o texto, carregando o leitor pelo seu saber enciclopédico e erudito. Esta será, sempre, uma importante conclusão a retirar: Afonso Costa havia percorrido quilómetros de papel na construção asfaltada do seu saber. Impressiona ainda a pertinência e a actualidade das suas citações, a profundidade 30 Publicada na sua versão latina (conforme a versão apresentada por Anatole Leroy-Beaulieu em La papauté, le socialisme et la democratie, 4ª edição, Paris, 1893) e na portuguesa (conforme apresentada pelo Bispo de Bragança, D. José Alves de Mariz, na sua pastoral de 15 de Outubro de 1891). Cf. Idem, pp. 211-307, especialmente pp. 213-215. 31 «A palavra socialismo só existe desde em 1838 Pierre Leroux a inventou por contraposição à palavra “individualismo”», cf. Afonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 21. 151 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL das suas leituras e, talvez o aspecto mais surpreendente, a actualidade dos seus comentários e das suas observações políticas. Se dúvidas pudessem existir em relação à consistência ideológica de Afonso Costa, por se julgar desterrado no nosso jardim atlântico, longe da informação, fora dos grandes círculos de debate, elas dissipar-se-iam nas primeiras páginas. O seu saber era actual, moderno, transversal e comparado32. Uma análise mais atenta permite, no entanto, matizar o contributo teórico de Afonso Costa; uma vez que o autor remete-se à apresentação de uma análise acrítica e maioritariamente descritiva. Afonso Costa apresenta-nos, é verdade, uma sucessão de exemplos concretos, bem escolhidos e superiormente documentados, mas assemelha-se mais a um condutor de uma mise en scene repleta de personagens e de texto, que deambulam pelos palcos das ideias, com pauta, mas sem maestro. Afonso Costa nunca pega na batuta, e quando toma o pulso ao debate fá-lo-á pela mão de Benôit Malon e do seu socialismo integral33. Nas páginas iniciais, Afonso Costa apressa-se a esclarecer o seu posicionamento politico, e ideológico; afirmando, de forma clara que: «[o socialismo] hoje está perfeito»34. No detalhe, explica: «(...) partilho das ideias socialistas, hoje firmemente apostolizadas por muitos espíritos reflexivos e serenos, e vigorosamente impulsionadas, primeiro, pelas instantes necessidades da grande maioria sofredora e faminta e, depois, pelos princípios da filosofia da história, da economia social, da ciência toda»35. A identificação com o socialismo integral do communard francês, recebido via Magalhães Lima36, é evidente; e de facto Benôit Malon apresentava-se para Afonso Costa como um autêntico profeta do futuro. O seu socialismo integral conseguira, na perspectiva de Afonso Costa, libertar-se das contradições 32 É interessante observar que, juntamente com um elevado conhecimento teórico acerca dos principais momentos do socialismo, Afonso Costa também nos brinda com uma erudição impar no que toca à doutrina cristã e à actualidade do debate epistolar. 33 Benoit Malon será a principal referência contemporânea de Afonso Costa, mas também são vulgares as recorrências a outros autores quer na crítica como na elaboração teórica de alguns pressupostos (socorre-se, por exemplo, frequentemente a Magalhães Lima). 34 Idem., pp. 91. 35 Idem, pp. 13-14 (nota de rodapé). 36 Magalhães Lima, O socialismo na Europa, prefaciado por Benoit Malon, citado em Affonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 79 152 JOSÉ REIS SANTOS internas do marxismo e das suas correntes sectárias, apresentando um produto final verdadeiramente inovador na sua universalidade, no seu humanismo progressista e na sua aplicabilidade prática; até porque possuía a virtude de: «ao mesmo tempo que fala aos proletários dos seus apetites e do direito que lhes assiste de os satisfazer, entretem-os com a justiça e a moral social, e a fraternidade universal (…)37». O Socialismo Integral seria, então, o culminar coerente e científico das profecias positivistas, até porque «a escola integralista é a mais perfeita, a mais conciliadora, a mais sociológica, e a mais viável»38. Para Afonso Costa, então, o Socialismo Integral continha as ideias que: «(...) trarão, em sólida contextura, - para a filosofia, uma concepção moral que se harmonizasse com as descobertas cientificas e necessidades éticas do século, - para a economia política, um sistema de produção, repartição e circulação das riquezas, que garanta a cada um a subsistência e aos que trabalham o produto integral do seu esforço, deduzidos os encargos gerais, - e para a política uma federação planetária formada sobre sucessivas e cada vez mais largas federações de povos, raças, grandes regiões e continentes, tendo por base única a República Social39”. Em relação ao futuro, Afonso Costa encontrava-se convicto que «[o socialismo] hoje está perfeito». À doutrina económica de Marx «que é o apoio teórico de todos os socialistas militantes da Europa e da América», juntara-se, graças a Paepe40, Malon, etc., «um outro elemento, que não vem combater, destruir ou ferir aquela, mas apenas completa-la, ou antes facilitar a anexação, a essa doutrina económica», uma doutrina «mais geral, mais compreensiva dos meios e das múltiplas necessidades da humanidade, melhor adaptada à concepção actual da história a às aquisições recentes da ciência»41. Esse elemento seria o Direito e a sua expressão: a «Justiça». Os seus princípios seriam a «Liberdade» e a «Igualdade»42. 37 Affonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 78-79. 38 Idem, pp. 78. 39 Idem, pp. 14 (nota de rodapé); sublinhado nosso. 40 Líder do Partido Socialista Belga. 41 Affonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 91-92. 42 Idem, pp. 92. 153 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL Assim, «(…) o socialismo integral, o socialismo do futuro, não se apoia apenas na necessidade económica de destruir o capitalismo: vai mais longe e mais alto: torna-se mais compreensível e mais elevado: firma-se também sobre a justiça social. Por isso, nada admira que os socialistas possam colocar ao serviço do Estado de amanhã todas as aquisições científicas e aspirações humanas»43; e neste sentido, «(…) os socialistas não se limitarão a fazer apelo aos interesses da classe do proletariado», mas deverão invocar simultaneamente «todas as forças sentimentais e morais que residem no espírito humano»44. O Socialismo Integral O Socialismo Integral defendia propostas estatistas, colectivistas, comunitaristas e federalistas. O Estado deveria procurar «por todos os meios ao seu alcance, melhorar a sorte dos operários», suprimir «todos os monopólios», extinguir «todas as dívidas da nação e das comunas» e promover a nacionalização da riqueza45. No campo económico, defendia-se a «apropriação colectiva, mais ou menos demorada, da terra e dos instrumentos da produção e da troca»46, a tributação das grandes fortunas47, a «Organização cooperativa comunal (ou para nós municipal) e geral, da produção e da troca»48, a «Faculdade para cada trabalhador de gastar como melhor entenda o equivalente da mais valia por ele criada»49, e o «Direito ao desenvolvimento integral para as crianças, direito à existência para os incapazes de trabalhar, e certeza garantida da que a todos os inválidos se dará um trabalho remunerado à sua escolha e conforme tanto quanto possível com as suas aptidões»50. Nesta dimensão, 43 Idem, pp. 92. 44 Idem, pp. 93. 45 Que, na opinião de Afonso Costa, «far-se-ia assim gradualmente, sem abalos nem violências e marcando cada passo uma melhoria na sorte dos proletários». cf. A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 79. 46 Idem, pp. 93. 47 «(…) que se conserve e retenha uma parte das heranças e que se chegue assim a organizar o exercito do trabalho com um domínio e um crédito que permitam às corporações eliminar pouco a pouco o regime do salariado». cf, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 79. 48 Idem, pp. 94. 49 Idem, pp. 94; sublinhado do texto. 50 Idem, pp. 94. 154 JOSÉ REIS SANTOS são facilmente identificadas algumas influências marxistas, comunitaristas e mesmo comunistas, apesar de Afonso Costa esclarecer que «o que o colectivismo integral difere do comunismo», pois «este põe em comum as forças produtivas e os produtos, e é o Estado que se encarrega de gerir tudo, ao passo que naquele [no comunitarismo integral], somente se colocam sob a tutela do estado as forças produtivas (…)»51. No campo moral entendia-se que «o socialismo, com a abolição da propriedade individual e do capital, dá um golpe decisivo no egoísmo e interesses individuais, que dominam todos os pensamentos dos homens de agora», pretendendo substituir «esses tão perigosos moveis dos maiores crimes pelo interesse social», e instaurar «uma sociedade que se fundirá sobre a justiça, e nas forças comuns e alegrias perfeitas da solidariedade»52; sendo, neste sentido, defendidas a paridade de géneros, consagração do divórcio e a legitimação jurídica e moral da criança. No plano político, são requeridas algumas reformas. Assim, «o socialismo integral estabelecerá (…) as modificações ao parlamentarismo, que mais se acharem conformes à ciência política moderna e com as exigências da representação equitativa dos diversos órgãos sociais», propondo-se «a divisão da câmara em Política e Económica». Pretende-se ainda uma «perfeita liberdade de imprensa, de reunião e de associação; a refundição dos códigos, de modo a simplifica-los; a abolição das congruas e das despesas com os ministros de qualquer religião, com a separação das Igrejas e do Estado e a substituição das festas religiosas por festas cívicas de um alto carácter moral; a gratuidade da justiça». No basto elenco de reformas politicas, clama-se ainda pela «reformas do sistema de prisões (…); abolição das ordens privilegiadas e da venalidade dos ofícios (…); substituição dos exércitos permanentes por milícias nacionais (…); legislação internacional do trabalho (horário de oito horas, proibição do trabalho para menores de 14 anos, supressão do trabalho nocturno, proibição de trabalho profissional às mulheres em certos casos, descanso obrigatório de um dia em cada semana, etc.)»53. O Socialismo Integral, segundo Malon, concorda então com Berthelot que 51 Idem, pp. 94. 52 Idem, pp. 95. 53 Idem, pp. 96-98. 155 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL «as forças morais são o principal impulsionador dos homens e das nações», com Proudhon que «para mudar a constituição de um povo, basta actuar ao mesmo tempo sobre todo o conjunto e sobre cada uma das partes do corpo político» e com Hector Denis que «há correlação entre a evolução económica e a evolução moral». Desta forma, devem – estes socialistas - «em consciência», participar em «todos os combates destinados ao melhoramento das condições e das relações sociais: reforma familiar, reforma educativa, reivindicações políticas, elaboração filosófica, doçura dos costumes, etc; porque, para eles, a questão contemporânea não é somente social, é também moral»54. Esta síntese interventiva, contextualiza doutrinariamente algumas áreas reivindicadas pelos republicanos portugueses, que mais tarde sofrerão intervenção de António Costa: reforma familiar (futuras leis da família), reforma educativa (demopedia republicana) e reivindicações política (democracia política). Bem dentro do seu tempo, o socialismo integral procurava, assim, assumir-se (à semelhança da encíclica Rerum Novarum) como uma terceira via entre a linha marxista ortodoxa desenvolvida não só no seio da II internacional mas como um pouco por toda a Europa e a linha anarquista desenvolvida na sequência de Blanqui, Bakunine e Sorel. Por um lado não partilha da definição de classe de Marx e por outro não admite a falência do Estado, à boa maneira anarquista. Num outro sentido, também não comunga das posições demasiado reformistas que alguns movimentos socialistas vinham desenvolvendo (e que culminarão nas propostas de Bernstein) nem das paternalistas recomendações papais. Sintetizando, o Socialismo Integral no aspecto económico mantêm, na essência, os pressupostos marxistas (apropriação da propriedade individual, colectivização da produção), deixando para a iniciativa privada a responsabilidade da distribuição. No aspecto moral é óbvia a apropriação de parâmetros colectivistas (mesmo neo-Rousseaunianos); na família, a ascendência liberal é notória (primazia do direito individual à vida e à dignidade humana); e na política são evidentes as influências positivistas, por um lado, jacobinas, por outro e liberais, por fim. Era, em suma um ser híbrido; e não espanta que, por esta cacofonia ideológica, o Socialismo Integral apenas tenha assumido ofício menor na oficina das ideias, sem nome de rua, ou título de grémio. No entanto, e temendo a injustiça, importa realçar a pertinência e actualidade 54 Idem, pp. 93; sublinhado nosso. 156 JOSÉ REIS SANTOS de algumas propostas. Assim, realçamos a atenção que o problema laboral assume; que a questão da família merece; e que as insistentes reivindicações políticas patenteiam. Padece, é certo, de algumas incoerências internas e de alguma falta de corpo ideológico (como já referimos); e menospreza, ao contrário de algumas ideologias compostas, a vertente prática da obtenção da hipótese de concretização. Por outras palavras, sem algum mecanismo descrito, explícito, sobre como levar a bom porto a moção apresentada, como instaurar um Estado Socialista Integral? Por uma via reformista? Revolucionária? Bom, a verdade é que em 1910 implanta-se, pela via revolucionária, a República em Portugal. Apesar de não estarem totalmente satisfeitas as dúvidas existentes em relação à sua participação nos preparativos ou no eclodir da revolução do 5 de Outubro55, Afonso Costa assume, desde a primeira hora, um papel importante na condução dos assuntos do novo regime. Assume funções de Ministro da Justiça e dos Cultos no Governo Provisório, liderado por Pinheiro Chagas; e é neste período (1910-1911) que publica as leis relativas à separação do Estado e da Igreja, Lei do Divórcio e Lei da Família; e instaura o Registo Civil. Neste resumo legislativo daquele que ainda é, hoje, uma referência ministerial, fica o registo de uma coerência ideológica com algumas das bases do Socialismo Integral. De facto, relendo A Igreja e a questão social, e especialmente as suas propostas político-sociais, encontramos, com 15 anos de desfasamento, as principais linhas políticas dos primeiros ministérios afonsistas: separação do Estado e da Igreja, necessidade do registo civil (Estado laico), modernização das relações familiares. Por razões de táctica politica, nunca o Partido Republicano – ou o seu sucessor Partido Democrático – levará a bom porto as reformas politicas tantas e tantas vezes reivindicadas, nomeadamente as respeitantes ao acesso ao sufrágio. Desta forma, a República acabou por se encurralar entre a direita conservadora, ultramontana e reaccionária e a esquerda operária; o que impossibilitou a construção de uma rede alargada de apoio ao novel regime e justifica (parte) da permanente instabilidade vivida entre 1910 e 1926. Claro que a leitura desenvolvida por parte da elite do Partido Republicano (e Democrático), e subscrita por Afonso Costa, para o não alargamento do sufrágio assentava 55 Refira-se, em resumo, que as opiniões da historiografia portuguesa acerca da participação de Afonso Costa na Revolução de 5 de Outubro de 1910 variam desde a não participação de todo (a este exemplo veja-se Júlia Leitão de Barros, ob. cit; onde, no capítulo sobre o 5 de Outubro, a presença de Afonso Costa é caracterizada como sendo ‘o grande ausente’); à possível e provável participação (esta é a posição de Oliveira Marques); e à mais que certa influência directa (ao nível organizativo ou apenas como colaborador activo) como defende Rui Ramos. 157 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL na verificação do grau de analfabetismo da maioria da população portuguesa e na falta de cultura cívica generalizada. Neste sentido, a solução preconizada passaria por uma fase de educação da população para que, uma vez dotada esta de maior ‘civilidade’ pudesse, então, ter um papel activo na vida politica portuguesa. Mesmo assim, verificamos que Afonso Costa mantém alguma coerência nas suas ideias e disposições intelectuais e ideológicas, nunca abandonando a intervenção no campo da acção social. Conclusões Afonso Costa foi, sem dúvida, um Homem de convicções e um Homem do seu tempo; um homem fin de siécle que, preocupado com o mundo que o rodeia, e que o vê em constante deterioração, procura nele intervir. Nas suas apreciações joviais da causa da decadência portuguesa (e civilizacional, de certa maneira) cedo identifica com a Monarquia, em geral, e com a casa de Bragança, em particular, as principais origens de tal melanoma; diagnóstico ao qual junta rapidamente uma cura: acção, luta, revolução. Não se definiria (nos seus anos de Coimbra) como um pensador; tinha, aliás, algum desdém daqueles que só pensavam, que só reflectiam e debatiam. Procurava, antes, demarcar-se da tradicional apatia e inépcia que rodeava aqueles que se prostravam anti-sistémicos, republicanos e ‘progressistas’. Batalhando pelo acto, Afonso Costa, produto da geração de 90 e da melhor linhagem e casta republicana, mas de vintage própria, apresenta-nos todavia, no campo das ideias, uma grande obra: A Igreja e a questão social. Não cremos que seja uma obra de um pensador genial ou produto original de um ideólogo novecentista; mas serve para matricular um conjunto de reflexões informadas que possibilitaram que Portugal se registasse no Hotel da contemporaneidade doutrinária europeia e marcasse para si um pequeno quarto nos andares térreos da intelectualidade do velho continente. Ao demonstrar o interesse temático, a actualidade intelectual e a destreza deíctica patenteada em A Igreja e a questão social, Afonso Costa ajuda a destruir o mito do isolacionismo intelectual tão veemente perpetuado no imaginário português; procurando elaborar uma mescla de nacionalismo luso e de humanidade federal e planetária. Não seria um ideólogo ou um grande filósofo, mas certamente um intelectual, um pensador e um doutrinador, com uma coerência quase linear com ideias expostas nos seus verdes anos universitários. Adoptando 158 JOSÉ REIS SANTOS o socialismo integral de Benôit Malon, Afonso Costa cedo nos preveniu das suas intenções. Esta terceira via, que dentro do socialismo se demarcava do marxismo puro e do sindicalismo revolucionário, procurava conciliar uma visão marxista da economia com preocupações sociais quase liberais; ou, como refere o autor «para a filosofia, uma concepção moral que se harmonizasse com as descobertas cientificas e necessidades éticas do século, - para a economia política, um sistema de produção, repartição e circulação das riquezas, que garanta a cada um a subsistência (…) - e para a política uma federação planetária formada sobre sucessivas e cada vez mais largas federações de povos, raças, grandes regiões e continentes, tendo por base única a República Social»56. Ou seja, na filosofia: o positivismo; na economia: o socialismo integral de Malon; na política: a República Social. Na sua prática política procurará seguir algumas das premissas apontadas pelo communard francês, descartando-se das questões económicas (e mesmo das políticas) em prol das preocupações sociais. Neste sentido, e ainda durante o período da Monarquia Constitucional, concentrava o seu discurso e actuação públicas no ataque à casa de Bragança, e em torno da defesa dos direitos dos mais desfavorecidos (como advogado), na doutrinação (dentro dos mecanismos criados pelo Partido Republicano), e na criação de condições para que a inevitabilidade da República se tornasse evidente, apostando simultaneamente na luta sistémica e no apelo à revolução e à ruptura. No mesmo sentido, Afonso Costa defendia do socialismo integral as suas características híbridas e a sua adaptabilidade política e institucional. Assim, não espanta que concilie a participação nas instituições criadas pelo sistema político que tanto abominava57 com um apelo constante à acção directa58. A verdade é que Malon não especificara, na sua proposta, a via a tomar para o poder. Ao contrário de outras ideologias, totalitárias, o socialismo integral não previra que trilho traçar para alcançar os seus propósitos: se um caminho revolucionário se um reformista, e, com tais parâmetros, Afonso Costa não sentiu dificuldade 56 Afonso Costa, A Igreja e a Questão Social, ob. cit, pp. 14 (nota de rodapé); sublinhado nosso. 57 O parlamentarismo monárquico da Monarquia Constitucional. 58 Nas suas intervenções parlamentares, nas suas dúbias convivências com grupos secretos armados e revolucionários, nas suas incursões activas em processos pré-revolucionários. 159 AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL em acariciar ambas as soluções. No mesmo sentido, Afonso Costa nunca procurou implementar as propostas federalistas de Benoit Malon; sendo que, em plena constituinte, e enquanto outros defendiam tais propósitos, a decisão por um Estado unitário prevaleceu e vingou. Também no plano político, os argumentos em relação ao alargamento das capacidades cívicas antes defendidos (voto universal) cederam perante necessidades estratégicas relacionadas com a sustentação do regime republicano, erguido a partir de 1910. Neste tópico, e sem detectarmos mágoa, Afonso Costa evoluiu na direcção de muitos dos seus correligionários, justificando o atraso cívico do povo português para a nega empregue aos que eram discriminados politicamente e continuaram a sê-lo. Em vez de confiar no povo, os republicanos (e Afonso Costa) sentiram a necessidade de serem criadas as condições necessárias para que este se pudesse assumir como politicamente activo; seria essencial educá-lo, primeiro, e reconhecer-lhe direitos políticos, depois. Na economia, como na política, Afonso Costa distancia-se do postulado ‘Malonista’; ideias de uma colectivização económica, de um papel estatal agregador do sector económico não figuravam nos seus desassossegos primários, afastando-se definitivamente, de qualquer intuito marxista aplicado ao caso português. Ou seja, dos apostolados do Socialismo Integral, Afonso Costa seguiria a proposta social, modificaria a política e abandonaria a económica. No entanto, a República Social, tantas vezes anunciada a apregoada, ficaria por cumprir. Até hoje... 160 Bernardino Machado visto por Luís Morote António Ventura N os anos que antecederam a proclamação da República, a situação política portuguesa era seguida no estrangeiro, surgindo na imprensa internacional referências mais ou menos detalhadas, consoante a ocorrência de eventos mais ou menos relevantes ou até sensacionais. Numa Europa que foi fértil, nesses anos iniciais do século XX, em actos violentos como atentados, movimentos sociais, revoluções e até guerras, Portugal só podia ser notícia pela ocorrência de qualquer coisa de extraordinário como foi o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908. Nos anos que antecederam a proclamação da República e nos primeiros anos do novo regime foram publicados alguns livros de autores estrangeiros, quase todos jornalistas que se deslocaram a Portugal como correspondentes. Foi o caso do livro Delle Monarchia alla Republica – Lettere Portoghesi, publicado em Milão em 1910, da autoria do deputado italiano Romolo Murri. Natural de Ascoli, onde nasceu em 1870, Murri foi ordenado sacerdote em 1893. Fez parte do movimento católico democrático, fundando a Liga Nacional Democrática e as revistas Vita Nuova e Cultura Sociale. Em 1906 o movimento foi proibido por Pio X, o que suscitou a indignação de Murri que escreveu diversos artigos contra tal decisão, acabando por ser excomungado. Abandonou então a vida sacerdotal contraindo matrimónio em 1910. Dedicou-se à política e foi eleito como deputado liberal. Reconciliou-se mais tarde com a Igreja e morreu em Roma em 1944, tornando-se então uma figura de referência para a Democracia Cristã italiana. Romolo Murri esteve em Portugal numa curta viagem em vésperas da proclamação da República, mais exactamente entre 6 e 13 de Setembro de 1910. No seu livro analisa a situação portuguesa antes e depois da mudança de regime. Quando entrou em Portugal trazia cartas de recomendação para alguns dirigentes republicanos portugueses: Bernardino Machado, Afonso Costa, um coronel do Estado Maior não identificado e um antigo deputado franquista, cujo nome também não revela. 161 BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE Outro livro interessante, La Republique Portugaise1, publicado em 1914, foi escrito por Phileas Lebesgue, o conhecido lusitanista francês, tão ligado a Portugal e com um reconhecimento tão profundo da nossa cultura e da nossa realidade. Divide-se em três partes: «O Sentimento Nacional», onde trata do papel de Portugal no Mundo e da sua acção no contexto da civilização moderna: «Os Obreiros do mundo moderno», sobre a escola de Coimbra e os seus mais notáveis representantes intelectuais; na terceira e última parte, «A República viva», aborda a proclamação do novo regime e a sua obra de reconstrução nacional, que Lebesgue considera um verdadeiro renascimento, fundamental para o futuro de Portugal. Esta curiosidade internacional por Portugal manteve-se depois do 28 de Maio de 1926, como prova o livro de George Guyomard La Dictadure Militaire au Portugal, Impressions d’un Français de Retour de Lisbonne, publicado em 1927. De entre os vários países europeus, era natural que a Espanha, dada a sua vizinhança, seguisse com maior atenção o evoluir da política lusa, e que por isso mesmo ali se publicassem algumas obras de referência. São essas obras que vamos analisar de forma sumária. A Ilustração Portuguesa de 5 de Agosto de 19072 publicava a reportagem fotográfica de uma homenagem a Bernardino Machado, com clichés Bobonne e Benoliel. Ali encontramos fotografias dele, de sua mulher com o filho António Luís, de grupos de alunos da Escola Oficina nº 1 e da Sociedade Promotora de Creches, de alunas do Centro Eleitoral Castelo Branco, que o foram saudar a sua casa. Outras, mostram republicanos que participaram na homenagem, isoladamente ou em grupo: Alexandre Braga, o decano José de Sousa Larcher, António José de Almeida, José de Castro, e até o Conselheiro José de Alpoim, dissidente progressista. Também surge um jornalista espanhol, Luís Morote, do Heraldo de Madrid. O jornalista espanhol Luís Morote esteve em Portugal em plena ditadura franquista e escreveu o livro De la Dictadura a la República (La Vida politica en Portugal)3. Embora não apresente data de edição, a referência ao Regicídio que aparece no final, como tendo ocorrido nesse preciso momento, permite-nos datá-lo do início de 1908. Luís Morote y Greus foi um jornalista e escritor espanhol com vasta obra, muito conhecido em Espanha e na América. Nasceu em Valência, em 1862, e 1 Phileas Lebesgue, La République Portugaise, Paris, Bibliothèque Internationale d’Édition, s.d. [1914], 391. 2 «Homenagem a Bernardino Machado», A Ilustração Portuguesa de 5 de Agosto de 1907, pp. 161 a 163. 3 Luís Morote, De la Dictadura a la República, Madrid-Valência, F. Sempere y Compañía, Editores, s.d. 162 ANTÓNIO VENTURA morreu em Madrid em 1913. Dedicou-se ao jornalismo desde muito cedo, ao mesmo tempo que se formou em Direito na Universidade de Madrid. Estreou-se em El Mercantil Valenciano, exercendo simultaneamente a advocacia. Correspondente daquele jornal em Madrid, conseguiu um lugar destacado na redacção de El Liberal, para onde fez reportagens das primeiras manifestações operárias em Barcelona, incluindo as do 1º de Maio. Quando ocorreram os graves incidentes em Melilla, em 1893, foi para aquela praça africana como correspondente convertendo-se, involuntariamente, em protagonista dos acontecimentos. Encontrava-se no forte de Cabrerizas quando este foi atacado pelos rebeldes marroquinos, participando de armas na mão na sua defesa e assistindo à morte do general Margallo. Acompanhou depois a expedição do General Martínez Campos, por proposta de quem foi agraciado com a Cruz de Carlos III. Em Setembro de 1896, Luís Morote partiu para Cuba, mais uma vez como correspondente de El Liberal, para cobrir a campanha das forças espanholas contra os independentistas cubanos. Conseguiu entrar no acampamento de um dos chefes rebeldes, Máximo Gómez, escapando por pouco à execução sob acusação de espionagem. Antes de regressar a Espanha, passou por Nova Iorque, e entrevistou o Presidente MacKinley. Uma das especialidades que cultivou e que desenvolveu foi justamente a entrevista, para o bom êxito da qual muito contribuiu a sua vasta cultura e a elegância do seu estilo. Em 1899 deixou El Liberal e entrou para a redacção do Heraldo, devido à sua ligação com Canellejas. Dirigiu depois La Noche e La Mañana, colaborou em La Publicidad, de Barcelona, La Nación, de Buenos Aires, e El Mundo, de Havana, entre muitos outros. Luís Morote foi um liberal com ideias avançadas, abraçando o republicanismo. Eleito deputado às Cortes em 1898, pelo Distrito de Guamajay, Cuba, e depois em 1905 e 1907, como deputado republicano por Madrid, manteve uma dura polémica com o ministro da Marinha, sobre a construção de uma nova esquadra, retirando-se então da vida pública, mas por pouco tempo. Os seus amigos da Gran Canária elegeram-no deputado por aquela ilha, iniciando então uma viragem que causou alguma surpresa. Proferiu declarações claramente monárquicas e passou a colaborar com o partido de Canellejas. Uma das causas pela qual lutou no parlamento foi pela abolição da pena de morte. Mau grado a mudança política, nunca deixou de ser considerado e respeitado como jornalista e como escritor. Este livro 163 BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE de Luís Morote sobre Portugal, escrito numa época em que era republicano, reveste-se do maior interesse. Trata-se de um olhar crítico sobre a situação política nacional. Viajou de Salamanca para o Porto, dirigindo-se depois para Lisboa. Ao longo da obra alude a João Franco - «o ditador louco» - aos republicanos do Porto - «cidade revolucionária» - a Guerra Junqueiro, - «o Vitor Hugo português» -, que conhecera em 1904. No campo monárquico, alude à morte de Dias Ferreira e de Hintze Ribeiro, à dissidência progressista, entrevista José Maria de Alpoim, e comenta a nova liderança regeneradora de Júlio de Vilhena. Também entrevistou Augusto Fuschini, como exemplo de um monárquico independente. Morote não esquece outros temas candentes como a lei de imprensa – lei das rolhas – a questão académica, a propósito da greve de 1907, ouvindo Brito Camacho, caracteriza sumariamente a imprensa em Lisboa e Porto, e realça o significado da célebre entrevista de D. Carlos ao Le Temps. Quanto às eleições marcadas, prevê que serão uma espécie de «Aljubarrota monárquica». Teófilo Braga é entrevistado a propósito da ideia de uma federação latina e uma nota final, já escrita depois de o livro estar quase concluído, dá notícia do regicídio, intitulando-a significativamente de «tragédia final». Um dos capítulos mais interessantes deste livro é dedicado a Bernardino Machado, que o autor já conhecia, sublinhando mesmo a «grande amizade» existente entre ambos. O título do capítulo é revelador: «Hablando com Machado. El futuro presidente»4. Morote não podia ser mais elogioso, desafiando o mais implacável inimigo dos republicanos a dizer mal de Bernardino Machado, em Lisboa, Porto ou Coimbra, e a sair vivo de tal experiência: «seguramente se sairia mal, sendo objecto de um verdadeiro linchamento, porque os portugueses tem pelo ilustre professor um intenso e sincero culto»5. Depois de ter saído do governo em 1893, Bernardino dedicou-se à sua cátedra de Antropologia na Universidade de Coimbra, «trabalhou como ninguém nos problemas do ensino», e o seu pensamento político evoluiu, classificando Morote essa mudança de «verdadeira revolução». Só voltou à política activa em 1903, declarando-se republicano, entrando nas fileiras do Partido Republicano como um simples soldado da Democracia, sem fazer valer o seu passado. Essa adesão foi bem recebida, como não podia deixar 4 Luís Morote, De La Dictadura á la Republica, Valencia/Madrid, F. Sempere y Compañía, s.d. [1908], pp. 142 a 167. 5 Idem op. cit., p. 142. 164 ANTÓNIO VENTURA de ser: «não é todos os dias que uma personalidade eminente da Monarquia, e que para além disso tinha governado, foi ministro, se passa com armas e bagagens para o campo da oposição»6. Elogiou o ter renunciado a um papel destacado no Partido Republicano, apostando nos jovens que começavam a dar nas vistas, e que surgiam como candidatos a deputados. A greve académica de 1907 não foi esquecida, e muito menos a posição corajosa que Bernardino Machado então adoptou, fazendo causa comum com os estudantes: «direi que neste momento Bernardino Machado está fora da sua cátedra e fora da Universidade. Conhecendo o seu amor ao professorado, ao qual consagrou toda a sua vida, compreender-se-á a violência, a amargura, a profunda pena que lhe terá produzido demitir-se da sua cátedra»7. Para Luís Morote, a vida de Bernardino Machado foi uma sucessão de sacrifícios – da sua carreira política, ao perder a posição destacada que alcançara na Monarquia; sacrifício ao renunciar a ser eleito; sacrifício da sua cátedra. E o jornalista espanhol descreve uma experiência inesquecível: passear pelas ruas de Lisboa acompanhado por Bernardino Machado: «equivale a ir em constante triunfo e apoteose. Todos se descobrem à sua passagem, todos disputam a honra de lhe apertar a mão»8. A prova do reconhecimento popular de que Bernardino era alvo, Luís Morote recolheu-a quando caminhavam pelo Bairro Alto em direcção à redacção do diário Vanguarda, de Magalhães Lima. Um homem do povo, avistando-o, aproximou-se, dirigiu-se a ele exclamando – «Oh! Senhor Conselheiro!» – e, mostrando uma garrafa de vinho do Porto, em cujo rótulo se via o retrato de Bernardino Machado, insistia para que todos provassem o precioso néctar... Perante as manifestações de respeito, admiração e carinho que por todo o lado testemunhou, Luís Morote não tinha dúvidas de que todos reconheciam em Bernardino o futuro Presidente da República Portuguesa. O povo acostumou-se a ver nele o Chefe do Estado, por amor e não por ódio, como se fosse eleito por um plebiscito nacional. Nem nas épocas de maior fé monárquica, quando os reis ainda eram aplaudidos e vitoriados pelo povo, conseguira algum monarca português tais entusiasmos populares. 6 Idem, p. 144. 7 Idem, p. 145. 8 Idem, p. 146 165 BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE Seria até possível que alguém o saudasse como se saudava um rei. E Morote explicava que, em boa verdade, em Portugal, o trono estava vago de facto embora não de direito. No seu lugar, o povo colocara alguém digno de ser rei, um magistrado, um grande patriota, Bernardino Machado. Mas também realçava a sua moderação, comentando que, sem ele, muitos dos que então mandavam e triunfavam, não teriam a cabeça sobre os ombros. Bernardino Machado, antes de ser republicano, era um homem. Para ele, sem dúvida, podia aplicar-se o epíteto de «santo da humanidade», que nos faz lembrar o célebre e polémico quadro pintado por António Baeta em 1907, exibido nos Armazéns Grandela, hoje no Museu Bernardino Machado de Famalicão, no qual Bernardino está representado ao lado de Jesus Cristo. Luís Morote prossegue com o elogio de Bernardino Machado, a quem chama profeta, exaltando a sua formação moral tolerante com toda a gente, mas intransigente no plano dos princípios: «nunca sai dos seus lábios a menor injúria, nem se deixa arrebatar pelo mais pequeno movimento passional. Sempre o vi sereno, imparcial, cumprindo as suas obrigações como as cumpriria um cristão dos primeiros séculos»9. Nessa época, Bernardino Machado deu uma entrevista ao enviado especial do jornal Le Matin. Morote transcreve esse longo texto que fixa de modo exemplar o pensamento do político republicano em vésperas do Regicídio. A primeira pergunta que lhe foi colocada incidia sobre a importância da liberdade como condição para a felicidade do povo português. A resposta foi uma longa digressão sobra a liberdade como factor de desenvolvimento pleno do ser humano: «Sem liberdade política não há propriamente filosofia, ciência, progresso intelectual». E apontava como exemplo um conjunto diversificado de países, Monarquias e Repúblicas, onde a liberdade era respeitada e cultivada: a Suíça, tão dividida, alcançou a tranquilidade «graças ao entranhado culto da liberdade»; a França, que cada vez avançava mais na senda das reformas sociais e democráticas; pequenas nações como a Bélgica e a Holanda podiam conservar a sua independência e até as suas colónias, se respeitassem a liberdade. Até a Inglaterra, que perdeu as colónias da América do Norte, pacificou pela liberdade o Canadá sublevado, foi pacificando a Irlanda com a liberdade religiosa, económica e política, e na África do Sul, onde travara uma 9 Idem, p. 147. 166 ANTÓNIO VENTURA sangrenta guerra há poucos anos, mesmo ali, concedeu um governo representativo ao Transvaal. Em Portugal, a situação era bem diferente. No passado, o poder uniu-se estreitamente às Cortes e aos municípios na luta contra o clericalismo e contra o feudalismo. Tudo mudou com o fim das Cortes e o enfraquecimento do municipalismo. Como exemplo apontava o governo de Pombal, que combateu o despotismo clerical e senhorial, promovendo ainda uma profunda reforma do ensino que preparou um futuro de liberdade. O grande problema daquele governo é que não emanava da soberania popular mas sim do poder real. A revolução de 1820 veio trazer de novo esperança aos portugueses, dando início a um processo que conheceu avanços e recuos. Segundo Bernardino Machado, o mais notável período de liberdade e de desenvolvimento que Portugal conheceu foi entre 1851 e 1885, porque correspondeu a uma ampliação da liberdade com os dois actos adicionais à Carta Constitucional, de 1852 e de 1885. Com eles deu-se representação às minorias na Câmara dos Deputados, introduziu-se o elemento electivo na Câmara dos Pares, descentralizou-se a administração, ampliou-se a liberdade de imprensa, decretou-se o registo civil, aboliu-se a escravidão nas colónias, acabou-se com a pena de morte. Como momentos negativos nesse quadro liberal, assinalava os períodos miguelista, cabralista e agora, o franquista. Bernardino Machado dava um maior relevo a João Franco e à sua acção nefasta, por uma questão de oportunidade. Enquanto o cabralismo era uma referência histórica e o miguelismo apenas subsistia como reminiscência arqueológica no panorama político português, João Franco governava naquele momento e governava em ditadura. Não era inimigo apenas dos republicanos, era o adversário implacável da liberdade: «politicamente destruiu os actos adicionais de 1852 e de 1885, fazendo-nos retroceder até à Constituição de 1826; atacou o princípio electivo na Câmara dos Deputados e no município, no distrito, na paróquia; suspendeu o Parlamento; extinguiu concelhos; dissolveu as associações populares, suprimindo as responsabilidades das autoridades públicas; promulgou a lei celerada de 13 de Fevereiro»10. Mas, se João Franco era o principal responsável pela grave situação nacional, os partidos monárquicos também não estavam isentos da sua quota-parte de 10 Luís Morote, op. cit., p. 151. 167 BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE uma culpa que se estendia ao próprio regime: «a Monarquia, depois de ter anulado os homens, anulou os próprios partidos»11. Apontava, como excepções, alguns políticos monárquicos que ousaram desafiar o sistema e as suas regras, como José Maria de Alpoim, Emídio Navarro e Mariano de Carvalho. Para a Monarquia, o talento era um crime, conduzindo inevitavelmente à marginalização de valores como Serpa Pinto, Capelo, Ivens, António Cândido... «uns suicidaram-se, como Mouzinho de Albuquerque, que com a sua espada tinha conquistado Moçambique; outros morreram de tédio e de pena, em resultado da ingratidão, como Oliveira Martins»12. Para Bernardino Machado, o franquismo era incompatível com a Monarquia liberal, o Franquismo jamais poderia ser liberal, porque isso colidia com a sua própria essência. Ao Partido Republicano não restava outro caminho senão lutar contra João Franco e tudo o que ele representava, mas os limites dessa luta estavam, em seu entender, bem definidos: «temos feito propaganda, mas não conspirações nem revoltas»13. Bernardino recusava, desta forma, as responsabilidades do Partido Republicano nos tumultos que ocorreram em Alcântara. Mas, mesmo que neles tivessem participado republicanos, isso era apenas o reflexo de um sentimento de repúdio generalizado entre a população pelo Presidente do Conselho. Estas declarações de Bernardino Machado são curiosas. Ele recusava, liminarmente, a via revolucionária para o derrube da Monarquia: «O Partido Republicano tem dado sobejas provas do seu sentido de ordem em todas as suas campanhas, em todos os seus actos. Nos últimos tempos deixou de ser um partido de complot e de revolta sistemática, para ser um partido de propaganda e de governo»14. Sabemos que naquela época a via revolucionária ganhava cada vez mais adeptos nas fileiras republicanas e que a Carbonária crescia, criando novas estruturas dentro do Exército e da Armada. Nessa perspectiva, como se explicam as declarações de Bernardino? Podem muito bem ter sido declarações tácticas, intencionalmente moderadas, dirigidas a um jornal estrangeiro e, por isso mesmo, com o objectivo de credibilizar externamente o Partido 11 Idem, p. 152. 12 Idem, p. 153. 13 Idem, p. 158. 14 Idem, Ibidem. 168 ANTÓNIO VENTURA Republicano. Se muitos republicanos não estavam de acordo com as palavras do seu prestigiado correligionário, onde todos seguramente convergiam era na afirmação de que o Partido Republicano era um partido de governo. Bernardino analisou em detalhe o recente conflito académico de Coimbra, criticando duramente a posição do Chefe do Governo. Quanto ao futuro, considerava que era favorável ao Partido Republicano, que via alargar-se quotidianamente a base social de apoio, especificando tal crescimento: «nós vamos crescendo, crescendo sem parar. Temos connosco todos os intelectuais que pretendem que a razão e a consciência pública, e não o arbítrio, governem. Temos connosco a grande maioria, a massa de industriais e de comerciantes de que se compõem os grandes centros populacionais, principalmente em Lisboa e no Porto, cidades bem republicanas (...). Temos connosco um número cada vez maior de proprietários rurais que vêm para a República (...). Temos connosco todos os homens de religião, os que seguem e professam uma religião natural, de honra, e os que seguem qualquer religião revelada, mas que não podem dar o seu apoio a um regime cujos governantes renegam da sua palavra (...). Temos connosco o exército liberal, que sente na sua alma as penas da Pátria, contemplando a dissolução da sua organização (...). Temos, enfim, todas as forças actuais da sociedade portuguesa, e também as forças históricas da Nação»15. Para Bernardino Machado a República não devia ser uma ruptura dramática, mas sim a continuação de uma tradição histórica interrompida: «Somos os continuadores da obra de engrandecimento nacional frente à obra de engrandecimento do poder real. Somos os herdeiros dos grandes liberais da época gloriosa do constitucionalismo português»16. Como apontamento final, Bernardino enumerava os objectivos do Partido Republicano nos planos político, económico e religioso: – Que todos possam intervir livremente no governo da Nação através do sufrágio universal, pela proporcionalidade eleitoral, pela eleição dos representantes locais e nacionais. Só terminando com todas as ditaduras a opinião pública poderá governar, com imprensa livre, tribuna livre e cátedra livre. – Os pobres não devem contribuir para os ricos, mas sim o contrário, 15 Luís Morote, op. cit., 163 e 164. 16 Idem, p. 165. 169 BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE suprimindo-se os impostos de consumo, incluindo o de arrendamento de casas, bem como o imposto de transmissão. Protecção aos mais pobres nos acidentes de trabalho, na doença, invalidez e velhice, e estabelecimento de legislação sobre o contrato colectivo de trabalho. – Liberdade religiosa de culto, não sendo permitido a nenhuma instituição a invasão da esfera civil e política, «respeitando escrupulosamente em todas as suas justas prerrogativas as Igrejas e especialmente a Igreja Católica, que foi dos nossos pais e que ainda hoje é a de quase todas as nossas mulheres»17. No plano internacional, Bernardino Machado defendia que Portugal devia alinhar com o bloco das nações liberais, citando a Inglaterra, a França e a Espanha. Mas para que o nosso país entrasse nesse bloco teria que ser antes proclamada a República, condição imprescindível para um bom relacionamento com as outras potências, nomeadamente com a Espanha, com a qual compartilhamos a «grata missão de nos amarmos e conhecermos»18. Com a Inglaterra, seria loucura aliarmo-nos com ela enquanto existisse Monarquia em Portugal: «é impossível casar a tirania com a liberdade, a ditadura portuguesa com o Habeas Corpus e o self-government. De forma que, para ser fecunda a aliança com a Inglaterra, Portugal tem que viver em República»19. Se assim não fosse, poderíamos ficar destinados a ser um protectorado, uma espécie de novo Egipto. Luís Morote alude no seu livro a outros políticos monárquicos e republicanos – Augusto Fuschini, José Luciano, Júlio de Vilhena, João de Meneses, Teófilo Braga... – mas a nenhum é dado o relevo conferido a Bernardino Machado. Mesmo no plano político, o jornalista espanhol não tem qualquer dívida em escrever que, em Portugal «a República tem um poeta, Guerra Junqueiro; a República tem um político, Bernardino Machado; a República tem um filósofo e um historiador, Teófilo Braga»20. Esta relevância dada a Bernardino tem a sua lógica. A adesão de Bernardino Machado ao Partido Republicano Português teve um profundo 17 Luís Morote, op. cit., p. 166. 18 Idem, Ibidem. 19 Idem, op. cit., p. 167. 20 Idem, pp. 226 e 227. 170 ANTÓNIO VENTURA significado em três planos complementares. Foi, em primeiro lugar, o resultado de um longo processo de reflexão, documentado, aliás, pelo próprio Bernardino no livro Da Monarquia à República. Essa adesão nada teve a ver com o fenómeno de adesivagem que alastrou após o 5 de Outubro de 1910, em que o novo regime foi invadido por uma avalancha de oportunistas que procurava assegurar um lugar à mesa do orçamento republicano, como sucedera com a situação anterior. Bernardino Machado mudou de trincheira quando ninguém podia prever a vitória republicana, a qual não passava de um horizonte longínquo, demasiado longínquo, no qual poucos acreditavam. Nessa perspectiva, vindo de quem veio, foi um acto de coragem, de quem teve tudo, em termos políticos, e de quem pouco ou nada esperava, pelo menos no curto prazo. Finalmente, a adesão de Bernardino Machado ao Partido Republicano Português converteu-se num factor de credibilização do Partido e também de moderação, condições essenciais para que o PRP se transformasse em alternativa de poder. Era necessário convencer a opinião pública nacional, e ainda mais os governos estrangeiros, de que os republicanos portugueses não eram um grupo de revolucionários empenhados em tudo destruir, e que apenas pretendiam a queda da Monarquia. Pelo contrário, queriam substituir um regime caduco por outro, que julgavam mais justo, constituindo uma verdadeira alternativa, com valores e competências que podiam tomar nas suas mãos o governo da Nação. A filiação de Bernardino Machado no PRP foi um elemento decisivo na construção dessa imagem, o que foi sublinhado por um conjunto de autores estrangeiros que estiveram em Portugal a partir de 1907 e logo depois do 5 de Outubro, e se debruçaram sobre o caso. A transição processou-se paulatinamente, foi tão suave que monárquicos e republicanos o aplaudiam, pensando ambos os bandos que ele estava entre eles. Finalmente, a 23 de Julho de 1903, Bernardino Machado aderiu ao Partido Republicano. E, quando todos esperavam que fizesse revelações sensacionais, ele que desempenhara cargos de tanta responsabilidade na Monarquia, surpreendentemente, fez uma dissertação sobre questões económicas, políticas e religiosas... 171 MEMÓRIA In Memoriam - Alfredo (Augusto) Margarido (1928-2010) Fernando Pereira Marques D esde o lançamento da Finisterra que o nome de Alfredo Margarido consta da lista dos seus colaboradores – de início no Conselho Editorial, depois no Conselho de Redacção. E raro será o número em que não há um texto seu, entre artigos mais substanciais e muitos “Soltos” (inspirados do “Journal à plusieurs voix” da revista francesa Esprit), como estes que ainda tínhamos em carteira e que aqui publicamos, enquanto boa ilustração do seu humanismo e visão do mundo. Porque, Alfredo Margarido, intelectual na acepção mais pura do termo, verdadeiro espírito renascentista na sua insaciável procura de saber e de questionar, senhor de uma cultura enciclopédica que não se confundia com a simples erudição, mantinha ainda aquela atitude do jornalista que também foi (por exemplo no “Diário Ilustrado”) pelo que, até ao fim e enquanto pôde escrever, ele ia comentando, analisando, intervindo, reflectindo, sobre os mais diversos factos da nossa política caseira ou internacional, sobre as pequenas ou as relevantes coisas do quotidiano, sobre os mais díspares temas sociais ou culturais. Muitas vezes incómodo, algumas quase provocador, sempre inteligente, incisivo, original, nunca cinzento ou neutral. A actividade que desenvolveu durante a sua vida situar-se-ia em múltiplas áreas: no jornalismo – já o dissemos - , na tradução (Kafka, Faulkner, Melville, Alejo Carpentier, Pratolini, só para falarmos da ficção e a título de exemplo), no ensaísmo (uma precursora biografia de Sartre, outra de Pascoaes, estudos sobre Fernando Pessoa, só para citarmos estes), na ficção (com, entre outros títulos, No Fundo deste Canal, ou A Centopeia, inspirados do nouveau roman que introduziu em Portugal e sobre o qual escreveu em conjunto com Artur Portela Filho), na poesia (uma antologia está há muito para ser publicada na Imprensa Nacional), nas artes plásticas, na história (dirigiu uma colecção na já desaparecida editora A Regra do Jogo onde deu a conhecer autores como François Furet ou Daniel Guérin, e escreveu, por exemplo, A Introdução do Marxismo em Portugal sob a chancela da Guimarães Editores), na sociologia, na antropologia (elaborou, 173 IN MEMORIAM – ALFREDO (AUGUSTO) MARGARIDO (1928-2010) com a Prof. Isabel Castro Henriques, um original estudo sobre a História das Plantas no contexto da expansão portuguesa, nas Publicações Alfa). Mas de entre esta vasta produção, composta de muitos títulos, na sua maioria esgotados, e grande parte dela ainda necessitando de ser reunida e sistematizada, dever-se-ão sobretudo, ou ainda, destacar os contributos fundamentais que deu ao estudo das culturas africanas e, nomeadamente, das literaturas de expressão portuguesa. Pois África foi uma das suas grandes paixões que já se manifestara, inclusive, pela forma como, jovem activista da Casa dos Estudantes do Império, pugnaria pela libertação dos povos das antigas colónias onde chegou a viver (em Angola e em São Tomé e Príncipe) e com que mantinha fortes laços afectivos e intelectuais. Recordemos que foi também companheiro de muitas das principais figuras da cultura portuguesa do século XX, desde os surrealistas que frequentavam o célebre Café Gelo, em Lisboa, a outras de gerações mais recentes. Obrigado ao exílio em França devido às suas actividades antifascistas e anticolonialistas, escreveria em revistas como a já citada Esprit ou na Revue des Annales e marcaria gerações de estudantes que puderam usufruir dos seus vastos conhecimentos em universidades francesas, tendo sido investigador na École Pratique des Hautes Études, depois École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde foi amigo de nomes como o de Marc Ferro. Refira-se, ainda nesse país, a sua intervenção de carácter mais propriamente político-ideológica, virada para Portugal, nos Cadernos de Circunstância (com Manuel Villaverde Cabral, Fernando Medeiros, entre outros) ou nos Cadernos do Círculo de Reflexão Política (um pequeno grupo de refugiados animado por José Silva Marques, Luís Matias, Júlio Henriques, só para referir estes). Após a reinstauração da democracia em 1974, além de multiplicar as suas participações em colóquios e conferências – em Portugal e no estrangeiro –, leccionaria no Brasil e em Portugal, incluindo, na fase final da sua carreira, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias desde os anos 90. Muitos dos que fazem a Finisterra perderam um amigo, e a revista, que já ultrapassou os vinte anos de existência, perdeu um colaborador que sempre lhe foi fiel e que enriquecia as suas páginas. Que outra homenagem lhe poderíamos prestar senão a de publicar estes textos já escritos com muita dificuldade na sua velha máquina ruidosa, onde alguns dos caracteres, cansados pelo uso, só deixavam uma ténue marca no papel obrigando a um aturado trabalho de decifração dos originais? Alfredo Margarido deixou-nos em 12 de Outubro de 2010. 174 O direito ao sonho Alfredo Margarido N ão ficará certamente mal consagrado, neste número, alguns parágrafos a um dos elementos mais perturbadores que caracterizam a gestão dos regimes totalitários, sejam eles inspirados pelas forças armadas, sejam eles o resultado das intolerâncias religiosas: regista-se, em todos eles, o receio da criação artística, ou, se quisermos dizê-lo de outra maneira, verifica-se um medo quase pânico face às manifestações do imaginário. É certo que ainda se não inventou uma polícia dos sonhos, mas há muito que se patinha na fronteira de tal controlo, na medida em que o sonho ainda permite que os homens consigam evadir-se das formas de dominação mais brutais. Os dois grandes momentos do controlo do imaginário foram, na nossa história recente, do realismo socialista, e os da arte degenerada criada pelo nazismo alemão. Não será difícil observar que não me preocupo com valores idênticos, pois o primeiro é criador, isto é, fornece um programa que deve ser respeitado pelos artistas, ao passo que o segundo se caracteriza apenas pela destruição ou ocultação da criação literária e plástica da Alemanha e, num plano muito mais lato, da Europa ocidental com as suas ramificações: as russas, travadas pelo próprio estalinismo, e as americanas, ainda demasiado embrionárias. Trata-se todavia das faces complementares do mesmo monstro: o nazismo eugenista rejeita com veemência toda e qualquer visão que não respeite a perfeição ideal dos corpos e das paisagens. Por essa razão, a grande figura mítica das artes plásticas nazis é certamente o “ceifeiro”, que revela a fecundidade da terra e do trabalho, permitindo que o regime se empape na terra materna (não deixa de ser curioso verificar que o nosso realismo-socialista também passou pelo ceifeiro, como se verifica por exemplo na obra de Júlio Pomar, o mais vigoroso representante português do realismo-socialista, o nosso neo-realismo). Os ceifeiros remetem para o campo mítico, mas revelam a relação 175 O DIREITO AO SONHO fecundadora com a terra que se desdobra nas messes douradas – que já tinham fornecido o meio trágico em que se suicidou Van Gogh – e no esforço físico do ceifeiro (que podemos todavia encontrar no cinema soviético, já industrializado na Linha Geral de Sergeï Eisenstein). Hoje mais do que ontem sabemos, graças a Martin Heidegger, que o camponês foi durante muito tempo o próprio modelo da relação do nazismo com a terra, devendo ouvir-se com a atenção necessária, a manifestação do saber veiculado pelos velhos camponeses (resumo aqui algumas afirmações precoces, nos começos dos anos trinta, do próprio Heidegger). Mas este regresso à terra deve fazer-se mantendo a visão ordeira das coisas, repelindo por isso toda e qualquer interpretação violenta, o que condena imediatamente alguns impressionistas finais, mas sobretudo todos os pintores modernos a partir do “fauvismo”. A lista dos quadros e dos artistas degenerados inclui todos os pintores desse grupo, como se a visão da natureza pusesse em perigo a própria concepção do mundo. O nazismo mostrou-se impiedoso, e há alguns anos atrás a reconstituição da exposição consagrada pelo governo nazi à “arte degenerada” (conceito usado no sentido que lhe deu, no século XIX, o Dr. Max Nordau, militante sionista extremamente activo), revelou ao mundo e aos historiadores, a importância dos vazios, das obras que não puderam ser localizadas e que tudo leva a crer foram, também vítimas de um forno crematório consagrado às produções artísticas dos criadores pouco ortodoxos. A destruição dos homens encontra por isso um precedente na identificação das obras de arte que recusavam a norma repressiva, que permitisse que os museus fossem purgados, recuperando a pureza plástica sonhada pelo antigo aluno de Belas Artes, Adolf Hitler. Qual o risco corrido pelo regime totalitário? Certamente o mais profundo, na medida em que os artistas rejeitavam a norma da criação para encarar o mundo de acordo com novas possibilidades de criação. Fico hoje com a impressão de que os comentadores da vida politica, não conseguiram dar sentido à caça à criação, levada a cabo pelo nazismo, arrastados pelos concepções então em voga que faziam dos artistas elementos forçosamente marginais e marginalizados da sociedade. Ora é evidente que o nazismo, com muita razão, de resto, considera que, a visão perturbadora dos artistas é incompatível com a “ordem” ideológica prevista nos textos teóricos, e mais particularmente no Mein Kampf. Está ainda por fazer o balanço desta intervenção destruidora, que expulsou 176 ALFREDO MARGARIDO da criação um certo número de criadores: alguns foram deportados, outros exilaram-se, alguns conseguiram esconder-se na própria Alemanha, mas o essencial não reside apenas nas pessoas, mas antes na criação de um clima repressivo, graças ao qual o nazismo pretendeu liquidar para sempre as pulsões criadores que não coincidiam com a sua norma simultaneamente arcaica e repressiva. Tudo se passa como se o nazismo quisesse arrancar aos homens o direito ao sonho, que, infelizmente, não está expressamente previsto na Carta dos Direitos do Homem. Só aceitamos, com Freud, que o sonho é o lugar onde o homem consegue resolver alguns dos seus problemas mais traumatizantes, verificamos que ao procurar destruir a própria produção provinda do imaginário, o nazismo reforçava os seus crimes contra a humanidade. Começa agora, na Europa, a fazer-se a história da criação artística durante o período da segunda guerra mundial. Os historiadores franceses põem em evidência a gravidade da lacuna existente, que contudo não deve surpreender-nos por aí além: o fascismo de Vichy aceitou piamente as regras destruidoras do nazismo alemão, embora se não tenha registado nenhuma exposição consagrada à arte degenerada. Todavia, uma parte importante dos criadores ou abandonou a França ou passou os anos de guerra e de ocupação em condições precárias, não só devido à falta de materiais, mas também face à desaparição de mercados ou de incentivos. A acção destruidora do nazismo não podia deixar de se alargar à criação artística, não sendo possível conceber formas que não coubessem nos manuais de bom comportamento nazista: ora estas regras só podiam acreditar no fascínio da destruição do Outro. Dir-se-á que o estalinismo (preferia designá-lo como sendo o que realmente foi, o leninismo-estalinista, com alguns pozinhos de Trotsky, o tão cruel como necessário dirigente do Exército vermelho) não procura alcançar os mesmos resultados. E não faltará quem se refira à obra e sobretudo à intervenção política de Lunacharky para procurar absolver o “terrorismo” artístico do estalinismo, sem o qual será sempre possível compreender as razões que levaram Victor Maïakovsky ao suicídio. O objectivo é certamente convergente: trata-se de pôr a criação artística e por isso os artistas, ao serviço do projecto revolucionário. Não me parece indispensável proceder ao inventário das soluções plásticas existentes, embora convenha assinalar que, mais do que quaisquer outros, os criadores e os responsáveis políticos soviéticos, compreenderam a importância do cinema como arma de análise e de propaganda. 177 O DIREITO AO SONHO O mais significativo reside todavia nas regras impostas aos criadores, que se quiseram inteiramente livres, convencidos de que a revolução só podia ser servida e apoiada, quando não defendida, por uma libertação total das forças criadoras tanto da sociedade como do homem. Simplesmente, semelhante liberdade não se podia coadunar com as regras estritas do Partido, que pretendia sobretudo que a arte servisse o projecto “revolucionário” soviético. Se bem que o realismo socialista só intervenha de maneira dogmática e teorizada a partir de 1936, a verdade é que já anteriormente, mas sobretudo a partir da eliminação de Lunacharsky, se impunham regras a que chamaremos utilitárias, para servir a revolução. A concepção pesadamente “naturalista” das artes plásticas condenou os artistas que, alguns anos depois, os nazis classificariam como degenerados: ou seja, partindo de premissas teóricas algo diferenciadas, os dois regimes totalitários acabam por condenar os mesmos artistas e as mesmas obras, apostando nas mesmas soluções plásticas que pretendem representar a vida real, e que, no plano da escultura, multiplicam os monumentos às grandes figuras oficiais da Revolução, e aos corpos sempre magníficos dos trabalhadores, como não puderam deixar de fazer os alemães, cujo artista mais oficial foi Arno Becker. O mais singular reside certamente no carácter quase siamês de uma certa produção plástica nazi e soviética, embora ainda se tenha de esperar o trabalho comparatista que não poderá deixar de se registar nos próximos anos. O peso do realismo socialista fez-se sentir em todo o mundo onde se registava a existência de partidos comunistas. Com a notável excepção da França que só depois de 1945 acabou por registar um surto literário, mas sobretudo plástico dominado por essa corrente, teorizada sobretudo por Louis Aragon (desgraçadamente, no prefácio que redigiu para a edição quase total da reflexão consagrada por Louis Aragon à criação plástica, Jacques Leennardt não conseguiu compreender a importância da intervenção de Aragon, sobretudo na sua relação com Fougeron). Os seus efeitos foram reduzidos, mas fizeram sentir-se em certas obras públicas, encomendadas e bem pagas pelos presidentes das câmaras comunistas, no período que se termina à volta de 1950-1952. A repressão estalinista não podia deixar de atingir também os criadores, literários ou plásticos, pelo que se regista uma multiplicação das formas mais arcaicas da representação do mundo, entendido este na sua articulação: a do quotidiano pragmático, e a da imaginação sem fronteiras. O arame farpado 178 ALFREDO MARGARIDO da repressão desmantelou os esforços que a primeira fase do poder revolucionário permitira para criar uma arte autenticamente revolucionária. Mas podia compreender-se a lição; a criação repele sempre a ordem excessiva. Se não pode haver criação sem uma determinada ordem, a verdade também é que o excesso de ordem está sempre destinado a esterilizar os esforços dos criadores. Fiz, mais atrás, uma referência às formas religiosas totalitárias, que se empenham na destruição das criações dos criadores que não respeitem a ortodoxia. Podíamos, é claro, recorrer ao nosso exemplo doméstico da Inquisição que não hesitou em censurar e até em prender os criadores, até muito tarde: não foi o próprio Manuel Maria Barbosa du Bocage preso já nos anos finais do século XVIII, em nome da norma do acompanhamento, mas sobretudo porque ousara injectar nos seu poemas uma fracção da luz revolucionária que a França irradiou pela Europa a partir de 1789? Mas se não quisermos recorrer a tal exemplo doméstico, podemos referir a situação sempre precária de Salman Rushdie que continua ameaçado pela “Fatwa” iraniana. Se as autoridades políticas iranianas declaram que suspenderam essa decisão, esquecem-se contudo de dizer que, tratando-se de uma condenação religiosa, ela não pode ser realmente suspensa. Que nos diz esta situação? Confirma o que já aprendêramos, ou seja que os regimes totalitários receiam acima de tudo os resultados da criação, que sendo sempre um acto individual, não pode deixar de implicar a sociedade no seu todo. Não foi Ferdinand de Saussure que se lembrou que na língua estão sempre presentes os elementos que representam os “costumes”? Escrever numa determinada língua, para descrever as situações sociais, implica forçosamente a análise dessas situações, tal como exige a emergência de soluções. Os criadores perturbam o conformismo e são por isso, quando são capazes de concentrar as pulsões próprias e colectivas, as forças que denunciam o que não pode ser aceite. O criador é sempre um agente crítico, mesmo quando aparentemente o não sabe. Não será esse o caso de Salman Rushdie, que se limita a descrever com a terrível força do imaginário, as condições em que vivem os crentes e os não crentes em sociedade que lhes não pertenciam originariamente e que impõem as suas regras terríveis? Não pretendo proceder aqui a uma leitura da obra romanesca de Rushdie, que me parece contar entre as mais importantes produzidas pelos autores que se exprimem em inglês pois o meu objectivo é 179 O DIREITO AO SONHO mais limitado: salientar a inevitabilidade do choque entre os criadores e as soluções políticas totalitárias. O que nos permite proclamar a necessidade de reforçar a importância do direito ao sonho, como elemento indispensável à própria criação artística. Não há mil e uma noites que não dependam do sonho: como se o homem só pudesse alcançar a sua própria totalidade, graças ao sonho que tudo permite transformar. O sonho e as suas metamorfoses que não podem deixar de denunciar a rigidez do existente. 180 Memória e Futuro dos Campos de Concentração Alfredo Margarido A socialização dos homens tem sido caracterizada no Ocidente cristão pela multiplicação de instrumentos violentos, como mostra a simples etimologia de trabalho que, nas línguas neolatinas, deriva de tripalium, um instrumento de contenção utilizado para domesticar os quadrúpedes. E sabemos, graças a Hesíodo – ver Os trabalhos e os dias – que ainda entre os gregos o lavrador devia mostrar-se prudente com os bois jovens, pois podiam não estar ainda suficientemente domesticados. Ora Platão diz-nos alguma coisa muito significativa neste plano: o treino para caçar os grandes animais, isto é os mamíferos como o urso ou o javali, também serve para caçar homens. Esta animalização dos homens a que procede Platão põe sobretudo em evidência a existência de um laço íntimo e constante entre todos os mamíferos, cuja domesticação exigiu os currais, isto é, a concentração dos animais impedidos de deslocações erráticas pela natureza fora. Há já muitos anos tive, como todos os amadores de cinema, a surpresa de descobrir, num western-spaghetti de Sérgio Leone, os campos de concentração criados durante a guerra de Secessão. É certo que Leone mandara organizar investigações cuidadas, que já tinham trazido para o ecrã os guardas-pó dos cowboys que se vestiam como os merceeiros até muito tarde. O importante era poupar o fatinho, devendo despir-se o guarda-pó para assegurar o carácter já burguês da existência dos vaqueiros. Ora os filmes de Leone propuseram também analisar por dentro a imensa concentração de homens quase sempre jovens, muitas vezes feridos, esperando o desenrolar das operações e visando sempre, como acontece em todas as prisões, a fuga e o eventual regresso ao combate. A violência desses campos de concentração não surpreendia: afinal a Europa fora capaz de permitir a organização dos campos de concentração nazis, tal como levara a denunciar o funcionamento do gulague soviético. O que me surpreendeu foi o recurso a pequenas orquestras para dissimular 181 MEMÓRIA E FUTURO DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO os gritos ou os uivos dos prisioneiros torturados, já que tais concentrações de homens estão destinadas a suscitar a violência, ou destinadas a humilhar tendo em vista obter informações. E fiquei com uma dúvida, pois já se sabia então que em alguns campos de concentração instalados na Europa de leste, como Terezyn, os carrascos alemães tinham organizado excelentes orquestras, dado o número elevadíssimo de músicos judeus que sofriam e esperavam a morte e os fornos crematórios. Esta genealogia dos campos de concentração conheceu um reforço durante a guerra anglo-boer, que mobilizou a África do Sul, e que acabou pela derrota militar dos bóeres, que contudo, puderam impor ao país as regras do apartheid que tinham começado a ser aplicadas já à volta de 1840, no Estado do Natal. E a Inglaterra regozijou-se com a fuga do jovem jornalista Winston Churchill, assim promovido a agente da derrota dos “camponeses” de boa cepa neerlandesa. Estamos agora ameaçados pelo recurso já previsto a novos campos de concentração, mesmo se o peso da história aconselha a deixar de lado uma designação tão brutalmente denunciadora, pelo que se recorre a formas mais delicodoces: campos de trânsito, por exemplo. Na verdade, a situação demográfica europeia preocupa não só os demógrafos, mas mais profundamente os gestores políticos, pois a redução constante da taxa de reprodução das mulheres europeias, ou com elas aparentadas, está em via de provocar o despovoamento de muitas regiões, tendo como resultado uma quebra da própria actividade produtora. O único remédio que se encontrou reside por isso na importação de casais jovens, em condições não só de trabalhar, mas de se reproduzir. Podemos assim dar-nos conta de um paradoxo europeu, pois, por um lado, regista-se a necessidade urgente de homens e de mulheres capazes de compensar a redução dos nascimentos, mas, pelo outro lado, repele-se violentamente a massa dos imigrantes, que não são apenas diferentes, sendo sobretudo inferiores, carregando consigo todos os defeitos, entre os quais conta também o facto de muitos adorarem Mafoma. É de resto um dos efeitos mais preocupantes: o crescimento entre nós, que ao aderir de maneira crescente aos princípios da jihad – a guerra santa – só pode contribuir para a destabilização do Ocidente, tanto provindo do latim como do cirílico. O Mediterrâneo, do qual estamos afastados por Gibraltar, tornou-se um mar das pateras (as chatas) e de outras embarcações, como já se verificara a partir 182 ALFREDO MARGARIDO de 1945, quando a comunidade judia, ainda incapaz de medir a vera dimensão do desastre nazi, decidiu instalar-se na Palestina, mau grado a oposição das tropas inglesas, encarregadas de impedir o desembarque dos judeus salvos dos campos de concentração. Ainda hoje o conflito entre muçulmanos e judeus na Palestina conserva as marcas da violência, acirradas pelo peso da Shoa. Será a Europa veramente incapaz de encontrar uma maneira de normalizar as relações com os muitos Outros que, empurrados pela miséria frequentemente provocada pelas escolhas repressivas do Ocidente, procuram um interstício que lhes permita alcançar o Eldorado? E se a “invasão” da Europa se processa por via marítima, encontramos o seu “ pendant” na fronteira dos Estados Unidos, onde os chicanos procuram os defeitos da couraça protectora para se infiltrar no país das notas verdes, com ou sem “green card”. Se associarmos os campos de concentração ao arame farpado teremos à nossa disposição as arquitecturas que recusam a dignidade do Outro, considerando-o sempre como na excrescência perigosa, mesmo se o funcionamento normal de algumas sociedades como a francesa, a inglesa, a alemã, a luxemburguesa, a italiana, e agora a portuguesa e a espanhola, só podem funcionar de maneira eficaz graças ao trabalho dos imigrantes. Se faltam homens à Europa, também podemos dar-nos conta, de que lhe faltam ideias e soluções menos repressivas. Ou o Ocidente – europeu e americano – se mostra capaz não só de conter sobretudo erradicar a miséria, um dos alicerces da inferioridade do Outro, ou chegará o momento em que não será suficiente multiplicar as ratoeiras, isto é, os campos de retenção, pois – como sublinhava John Steinbeck a propósito da ocupação alemã na Noruega – , as moscas não podem ocupar o papel pegamoscas! O prazer sádico de rejeitar o Outro, o diferente e por isso o sujo, o feio, o doente, está condenado a desaparecer, pois quando há necessidade de trabalhadores para dar ao capital os lucros, quer dizer o poder, que lhe são indispensáveis, encontram-se as soluções que considerarei inevitáveis. A aparição e a expansão do famoso dialecto globish – o falso inglês reduzido a 1500 palavras – são a plena confirmação do vigor desta vaga que não liquida as línguas vernáculas, mas permite uma falsa diglossia por meio do recurso a um dialecto que todos podemos ouvir nas várias reuniões das instâncias internacionais. Quando é que os governos e as polícias, fiéis às condições de funcionamento dos campos de concentração, organizarão concertos aos que esperam 183 MEMÓRIA E FUTURO DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO amargurados a possibilidade de organizar a vida normal urbana que as burguesias começaram a criar já nos começos do século XI? Se foi a burguesia que pôs em movimento o próprio processo da globalização, a ela cabe a tarefa indispensável de assegurar não direi a felicidade – e, já agora, porque não? – mas pelo menos o equilíbrio físico e psíquico dos nossos semelhantes. 184 Os Malefícios do Luso-Tropicalismo Alfredo Margarido E stávamos – o colectivo refere-se à comunidade nacional, como se deve depreender – no direito de esperar que o fim da guerra colonial – que outros conhecem e designam como sendo a guerra da independência – nos levasse a considerar os aspectos mais trágicos da política colonialista adoptada pelo regime fascista, mas aprovada por milhões de portugueses. Não aconteceu assim: pôs-se em evidência a importância da descolonização, apresentada não como o resultado do próprio golpe de Estado de 25 de Abril, mas como uma oferenda feita pelos portugueses àqueles que tinham colonizado, explorado e assassinado. O carrasco manejava em seu proveito os mecanismos da metamorfose, utilizando as astúcias do poder e recorrendo aos media para aparecer como o único agente activo do processo. Pouco importa o facto de se não ter verificado a existência de grandes e decididos movimentos anticolonialistas. Não que estes não tenham existido, sobretudo – quando não exclusivamente – entre os mais jovens, que forneceram também as dezenas de milhares de refractários disseminados sobretudo na Europa democrática. Não sem mal, não sem dificuldades, sobretudo por não se dispor de nenhum calendário, capaz de permitir saber em que momento a tortura da guerra acabaria. Nos dias de hoje, celebram-se algumas figuras e algumas decisões administrativas; a passagem pelo Ministério das Colónias do Prof. Adriano Moreira permite atribuir a este dirigente político decisões fundamentais, que teriam permitido uma revisão do sistema, em plena guerra colonial. Muito curiosamente, ninguém se lembra que o Ministro do Ultramar – que prefiro designar como sendo das Colónias, para respeitar tanto a lógica como a tradição – era também aquele que, por inerência, dirigia a Polícia Política que agia nas colónias. Já alguém perguntou o que fez Sua Excelência, durante o período em que dirigiu a politica colonial, o que fez para reduzir, ou mesmo eliminar as malfeitorias da polícia política? Como é possível que os falsos analistas 185 OA MALEFÍCIOS DO LUSO-TROPICALISMO valorizem um dos aspectos da situação, menospreze inteiramente o outro, que provocou tantas e tantas vítimas inocentes, que só tinham cometido o feio pecado de terem nascido em África, em território gerido por portugueses? Todavia esta exaltação de algumas figuras políticas e de algumas decisões legislativas, aparece envolvida num tecido policromo onde se confundem falsos conceitos e muitas pérolas ideológicas, nenhuma das quais isenta de mancha. Quero – já o adivinharam! – referir-me ao luso-tropicalismo. Foi-lhe recentemente consagrado uma reunião secreta, quando não quase secreta, na Sociedade de Geografia de Lisboa, tendo entretanto sido publicado em Actas. O luso-tropicalismo seria assim a grande, a formidável contribuição teórica do sócio-antropólogo brasileiro Gilbert Freyre – que tão orgulhosamente sublinhava a origem galega dos Freyres – para explicar a legitimidade das operações coloniais portuguesas, marcadas por uma integração genésica entre os dois grupos, o que teria permitido o aparecimento e a multiplicação dos mulatos. Como sublinhou Roger Bastide, a colonização portuguesa teria recusado a cruz assim como o gládio, para os substituir pelo sexo. Ou como diz chulamente – o termo pertence-lhe – o Prof. Florestan Fernandes, na óptica de Freyre, repetido por Bastide, a pica, o sexo masculino, seria uma arma suficiente. O sociólogo brasileiro António Cândido, autor de uma análise tão elegante como eficaz, salienta que esta operação genésica não surtiu o menor efeito, por não se realizar no centro duro do sistema mas antes na periferia. O que, de resto, é posto em evidência pela existência da “casa grande”, e da “senzala”. Os agentes masculinos da primeira podem instalar-se livremente no espaço feminino da segunda, mas jamais o inverso. A dominação social é completada pela violência sexual, não pelo mero assédio sexual, agora felizmente denunciado, mas por formas muito mais brutais, que têm também como consequência, salientou em tempos Cruz e Costa, o facto de os homens de cor, africanos ou índios, serem despojados das suas mulheres. E, acrescento, despojados da sua descendência potencial, assim recuperada pelos machos da comunidade branca patroa. Compreende-se que, nestas circunstâncias, a banalização do luso-tropicalismo tenha sido um mau serviço prestado aos colonizados, embora tenha permitido “lavrar” os comportamentos violentos, brutais até, adoptados pelos colonos nas suas relações com os africanos. A banalização desta teoria, confirmando 186 ALFREDO MARGARIDO o carácter excepcional dos comportamentos adoptados pelos portugueses nas regiões tropicais, não podia deixar de desvalorizar a maneira como os africanos denunciavam as práticas coloniais. Não foi difícil, à administração portuguesa, convencer largos estratos políticos e culturais da legitimidade e da própria indispensabilidade da dominação, na medida em que nela permitia a interpenetração e a interacção dos dois grupos. Mesmo se ficava de fora toda e qualquer referência à violência das técnicas utilizadas para assegurar estas formas de assimilação e de integração. Os primeiros, quando não os únicos, a acreditar nas qualidades do luso-tropicalismo, foram os europeus os seus associados. Não só esta teoria lhes fornecia uma explicação de carácter genésico, que os transformava em machos exemplares, que não se deixavam deter pelas simples características físicas das vítimas – não vejo que outro nome se lhes possa dar – mas antes extraíam dessas circunstâncias uma sobrevalorização do sexo e do ego. Quanto mais mulheres de cor na tua cama, mais capacidade genésica pões em evidência, tal podia ser a lição aforística a extrair da situação. Ou seja, a teoria não permite a análise das situações existentes, sendo apenas destinada ao uso privado dos brancos, na medida em que justifica – ou até impulsiona – a dominação sexual das mulheres não brancas. Podemos ainda hoje encontrar o eco desse fantasma nas páginas dos anúncios dos jornais onde se fazem ofertas sexuais: as mulatas, que algumas vezes se dissimulam como sendo moreninhas, possuem sempre seios generosos e sublinham a sua desinibição. Para satisfação dos portugueses, pode acrescentar-se que não são os únicos que continuam a acalentar, nesta retirada para o continente europeu, os fantasmas sexuais: os jornais espanhóis, sobretudo em Barcelona, consagram um espaço considerável às ofertas ternamente sexuais, onde as dominicanas e as cubanas, e ainda mais as havanesas, fornecem um dos contingentes mais solicitados e, espero, mais bem pagos. Da violência da senzala, passa-se ao comportamento discreto – soft? – dos apartamentos nas avenidas mais elegantes. Mas, nesse caso, onde estão os malefícios? Pois precisamente nesta dissolução da violência histórica, substituída pela relação sexual. Se as vítimas não podiam acreditar nessa lenda, já os utilizadores estavam sempre dispostos a fazer das suas actividades sexuais a prova da dupla superioridade: a do país, a do indivíduo. Estes siameses, satisfeitos com a situação, não podiam ouvir as queixas das vítimas: esta surdez psicológica foi reforçada pela violência 187 OA MALEFÍCIOS DO LUSO-TROPICALISMO utilizada sempre que se registava a menor contestação. Satisfeitos com a situação, os portugueses forneceram as centenas de milhar de mancebos indispensáveis a tais guerras. Há hoje, entre nós, diz-se, cerca de 50.000 homens vítimas dos traumatismos psíquicos provocados pela guerra colonial. Trata-se certamente de um número considerável de pessoas que devem ser assistidas, tanto mais que, em parte pelo menos, são vítimas do luso-tropicalismo que permitiu fazer durar a guerra, onde os portugueses deviam fazer prova da sua excepcional competência colonizadora. Mas, do outro lado, já alguém se preocupou em estabelecer o inventário das milhares de vítimas causadas pelas operações coloniais, que envolveram populações que apenas pretendiam viver em paz, pedindo apenas que lhes fossem reconhecidos os direitos de se autogerir, sem intervenção do génio luso-tropicalista? O pior, nestas circunstâncias, é que não pode haver luso-tropicalismo se não houver indivíduos para civilizar. Para manter a flama do luso-tropicalismo, foi indispensável a guerra colonial que permitiu, entre o mais, verificar que os militares portugueses são excelentes face às derrotas. Não sei se as podemos incluir no quadro do luso-tropicalismo já que, a partir das campanhas de 1916-1918, as tropas portuguesas só puderam combater em situações claramente luso-tropicalistas. Daí que os nossos corajosos combatentes tenham passado a vida a cortar cabeças aos africanos, para as espetar em paus que deviam ser exibidos como prova acabada das excelentes relações entre as duas comunidades. É claro que o luso-tropicalismo está cada vez mais mitificado na medida em que deve permitir a exaltação dos novos mitos nacionais, que não hesitam em demonstrar a indispensabilidade dos portugueses na realização das tarefas africanas. Não falta quem, mesmo nas fileiras dos socialistas, diga e repita que os portugueses devem ser os interlocutores preferenciais entre Europa e a Africa, devido ao seu trabalho colonizador que, naturalmente, está amplamente consubstanciado no luso-tropicalismo. O que já fora um simples delírio no período colonial, pode transformar-se em forma específica de agressão nos dias de hoje, na medida em que o luso-tropicalismo só pode afirmar a sua elevada qualidade quando se regista a existência de bons indígenas, quer dizer aqueles que, joelhos em terra, esfolados, esfolam também as mãos nas latentes arenosas, para poder homenagear a excelência do comportamento dos luso-tropicalistas. Até quando irá durar este 188 ALFREDO MARGARIDO véu que torna impossíveis as relações entre iguais? Porque, não o esqueçamos, o luso-tropicalismo sempre constituiu uma arma contra a igualdade que deve enfim impor-se nas relações entre os diferentes grupos sociais que assumem as tarefas indispensáveis à superação das sequelas provocadas pelas “guerras”. Se o governo tivesse coragem, e se o Presidente Sampaio não gerisse as ordens militares e civis tão mal como o Dr. Mário Soares, já se teria proposto que fossem retiradas a Gilberto Freyre as condecorações que lhe foram atribuídas. Ou, então, ter-se-ia mantido esta situação, mas justificando a sua atribuição de outra maneira, sublinhando por exemplo que o sociólogo de Apipucos permitiu que os portugueses pudessem delirar, considerando-se – porque Freyre assim o dissera – os únicos homens capazes de actividades sexuais eficazes nos trópicos. 189 IDEIAS Do Jovem Socialista ao “Elder Statesman” - A Relação de Willy Brandt com os EUA Karsten D. Voight Nota Biográfica Herbert Karl Frahm Brandt, conhecido por Willy Brandt, nasceu em Lubeque em 1913 e faleceu perto de Bona em 1992. Jovem socialista radical não se submeteu ao nazismo tendo-se refugiado na Noruega em cujo exército se bateu durante a Guerra. Posteriormente aderiu ao SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha), vindo a tornar-se uma das suas figuras mais destacadas e seu líder. Depois de governar a cidade-Estado de Berlim onde recebeu John Kennedy, aquando da célebre visita deste último, foi Chanceler da República Federal da Alemanha de 1969 a 1974. Defensor de uma política de diálogo e de cooperação entre os países desenvolvidos do Norte e menos desenvolvidos do Sul, foi igualmente um activo partidário da Ostpolitik, ou seja, de uma política de desanuviamento com o Leste europeu. Em 1971 ser-lhe-ia atribuído o Prémio Nobel da Paz e desde 1976 dirigiria, durante muitos anos, a Internacional Socialista. Amigo pessoal de Mário Soares deslocar-se-ia a Portugal para participar em várias iniciativas do Partido Socialista que sempre apoiou desde a fundação em 1973. A sua última visita ao nosso país teve lugar em Outubro de 1990 onde, a convite da Fundação Friedrich Ebert, realizaria na Gulbenkian uma histórica Conferência sobre o tema: “Indissociáveis: Alemanha e Europa”. Por essa ocasião, o então Presidente da República, Mário Soares, recebê-lo-ia no Palácio de Belém. Karsten Vogt, que neste artigo evoca a figura de Willy Brandt, foi Deputado e é um destacado membro do SPD, especialista em questões de Segurança e de Defesa, temas sobre os quais realizou recentemente várias conferências no nosso país. F.P.M Conheci pessoalmente Willy Brandt em 1969 e ao longo dos anos mantive com ele conversas relativamente frequentes, bem com algumas discussões, sobre os Estados Unidos e os seus políticos e políticas. Naturalmente, durante esse longo período eu nunca me pude ocupar exaustivamente com todos os aspectos das suas relações com os EUA. Por isso mesmo, a conclusão da edição completa em dez volumes dos documentos de Willy Brandt, publicada em Berlim, representa uma ocasião soberana para poder estudar e analisar os textos 191 DO JOVEM SOCIALISTA AO “ELDER STATESMAN” aí publicados de uma forma mais cuidadosa do que o faria se ela não estivesse disponível. Além disso, as 564 páginas do trabalho de Judith Michel sobre “A Imagem e a Política Americanas de Willy Brandt - 1933-1982”1 contribuíram também, de um modo decisivo, para alargar o meu horizonte e completar – e em alguns casos isolados também corrigir - as minhas recordações pessoais. Na introdução do seu livro, Judith Michel escreve que a imagem dos EUA de Willy Brandt se alterou por várias vezes ao longo dos anos. Isso não é de espantar. No entanto, há que acrescentar que também os EUA e o seu papel para a política de Willy Brandt sofreram várias alterações ao longo das décadas. Até por experiência própria eu consigo compreender muito bem todos esses processos: durante a guerra do Vietname a minha avaliação da política norte-americana foi predominantemente negativa, enquanto que na altura da reunificação da Alemanha ela foi predominantemente positiva. Há também uma grande diferença entre o modo como um jovem socialista - como o era Willy Brandt na década de 30 e eu nos anos 60 - encarou os EUA como modelo para os próprios esforços de concretização de um socialismo democrático e o modo forçosamente diferente como o Willy Brandt da década de 40, portanto desde os seus primeiros anos em Berlim, encarou a relação com os EUA. O mesmo viria a suceder comigo desde a minha eleição para o Bundestag, nos anos 70. Os próprios cargos que desempenhámos obrigaram-nos a salvaguardar acima de tudo os interesses da Alemanha e de Berlim. Durante a segunda guerra mundial e nos tempos que se seguiram Willy Brandt escreveu relatórios para a embaixada dos Estados Unidos em Estocolmo e, pelo menos indirectamente, também para a OSS, a antecessora da actual CIA. Para ele, como para muitos outros opositores ao nacional-socialismo entre os emigrantes alemães, essa colaboração deveu-se ao seu interesse pela construção de uma Alemanha democrática no pós-guerra. No entanto, a sua vontade de cooperação nunca excluiu, nem nessa altura nem mais tarde, uma avaliação crítica dos EUA, sempre que a política norte-americana não correspondia às suas convicções. Por isso, tanto para o jovem Willy Brandt como para mim, durante a juventude, sempre existiu uma relação de tensão entre a apologia da democracia e da liberdade nos Estados Unidos e a simultânea crítica das consequências negativas do capitalismo americano. 1 “Willy Brandts Amerikabild und – politik 1033-1982”, de Judith Michel 192 KARSTEN D. VOIGT Essa ambivalência terminou com o começo da Guerra Fria. Em seu lugar impôs-se, ao nível da política externa, uma clara tomada de partido pelos EUA e pelo Ocidente no seu todo. Para Willy Brandt, tal como para a maioria dos partidos social-democratas da Europa ocidental, isso foi consequência da política da União Soviética em relação aos países da Europa central e do leste. Em 1977 Richard Löwenthal comentou essa tomada de posição no prefácio do seu livro “Para Além do Capitalismo”2, publicado pela primeira vez em 1947 sob o pseudónimo “Paul Sering”: “A afirmação da autonomia e as suas futuras possibilidades não eram possíveis como terceira força, mas apenas como ala esquerda de uma frente de oposição do Ocidente liderada pelos Estados Unidos.” Quando em 1954 Willy Brandt viajou pela primeira vez para os EUA, era já considerado mais pró-americano do que outros representantes social-democratas da política externa. Isso não significou que o seu interesse pelos desenvolvimentos culturais, económicos e sociais dentro dos EUA tivesse diminuído, a partir do momento em que passou a assumir funções relevantes ao nível da política externa. No entanto, para ele - tal como para outros políticos alemães durante a guerra-fria – o papel dos EUA para a segurança de Berlim, da República Federal Alemã e da parte ocidental da Europa assumiu uma relevância maior do que o interesse pelos desenvolvimentos sociopolíticos internos nos Estados Unidos. Isso fez com que Willy Brandt mais tarde, enquanto burgomestre de Berlim, não se tenha manifestado de um modo crítico em relação à política seguida pelos EUA no Vietname. Na altura, essa não tomada de posição constituiu um motivo de desapontamento, não só para mim como para uma grande parte da minha geração. Por outro lado, depois de se ter demitido do cargo de chanceler federal e enquanto presidente da Internacional Socialista e da comissão Norte-Sul, Willy Brandt criticou frequentemente a posição dos EUA, perante os inquietantes desenvolvimentos em África e na América Latina. E fê-lo de uma forma bem mais radical do que eu, que era então porta-voz da fracção da SPD no Bundestag e membro da Assembleia Parlamentar da NATO. Na altura, eu próprio fui por ele mandatado para defender em Washington, no México, na Nicarágua e no Vaticano o seu conceito de uma solução pacífica para os conflitos em El 2 “Jenseits des Kapitalismus” 193 DO JOVEM SOCIALISTA AO “ELDER STATESMAN” Salvador e na Nicarágua. Em determinadas alturas, Brandt também ajuizou a política de segurança da União Soviética durante a era de Brejnev de uma forma menos céptica do que eu próprio. Essa ligeira alteração da perspectiva política foi acompanhada por um olhar extremamente crítico sobre a administração Reagan e a sua política. A administração Reagan nunca fez qualquer segredo da sua rejeição ideológica da Internacional Socialista. Quando em 1980, no contexto de uma conferência sobre “Eurosocialism and America”, planeada ainda durante a administração Carter, se reuniram em Washington inúmeros líderes social-democratas europeus, entre os quais vários chefes de governo, foi notória a desconfiança com que todos eles foram confrontados. Na altura eu representava a SPD no comité de preparação da conferência e a impressão com que fiquei foi que após a conferência o olhar de Willy Brandt sobre a administração Reagan e a sua política se tornou ainda mais crítico. A isso há a acrescentar o facto de que, ao contrário do que sucedia em Washington, em Moscovo e nas outras capitais da Europa do leste Willy Brandt gozava, enquanto presidente da SPD e da Internacional Socialista, da mesma atenção que era concedida a um chefe de governo. Entre os exuberantes festejos com que os nova-iorquinos saudaram Willy Brandt na Broadway, a 10 de Fevereiro de 1959, e o desprezo revelado pela administração Reagan em 1980 parece que existem mundos. Durante os anos em que exerceu o cargo de burgomestre governante de Berlim e durante a presidência de Kennedy as suas relações com os EUA pareceram ser, por vezes, ainda mais estreitas e amigáveis do que as do chanceler federal Adenauer. Em 1983, pelo contrário, quando Willy Brandt discursou numa demonstração em Bona contra o estacionamento das armas de médio alcance, foi acusado, tanto pelos americanos como pelos conservadores alemães, de anti-americanismo. No entanto, em ambos os casos as suas motivações foram idênticas e visaram a preservação dos interesses alemães. No fundo, essa foi a bitola com que ele sempre mediu as respectivas administrações americanas e as suas políticas, tanto na condição de burgomestre de Berlim como na de presidente do SPD. Durante as crises de Berlim e no ponto mais alto da Guerra Fria Willy Brandt viu no apoio da política norte-americana a condição indispensável para a manutenção da segurança e da liberdade em Berlim ocidental. Por alturas da construção do Muro de Berlim ele desejou uma reacção mais firme 194 KARSTEN D. VOIGT da administração Kennedy contra a União Soviética. Pessoalmente, a sua atitude decidida contra a construção do Muro, bem como os inícios da sua concepção de desanuviamento político constituíram motivos importantes para a minha filiação no SPD em 1962. Em 1983, pelo contrário, Brandt achou que a política da administração Reagan podia pôr em perigo as conquistas da política de desanuviamento para Berlim, bem como as relações entre os dois Estados alemães. Foi por isso que não se absteve de criticar – tal como o SPD no seu todo – a política a seu ver demasiado agressiva dos EUA. O facto de Willy Brandt ter sido considerado por Henry Kissinger como “nacionalista”, devido à sua consequente defesa dos interesses berlinenses e alemães, não deixa de revelar uma certa ironia: na verdade, o próprio Kissinger sempre se mostrou orgulhoso por, ao longo de toda a sua vida, ter sabido defender os interesses americanos de uma forma o mais realista possível, sem demasiado idealismo. Apesar de Willy Brandt, enquanto jovem socialista e mais tarde também como presidente do partido, ter sentido, sem dúvida, uma maior proximidade para com as ideias sociopolíticas dos democratas, tanto o burgomestre de Berlim como o chanceler federal não deixaram de cultivar um relacionamento com os republicanos liberais. Neste contexto, a sua avaliação da administração Reagan foi tão negativa quanto positiva foi a sua apreciação do papel da administração de George Bush no final da Guerra Fria e durante todo o processo de unificação alemão. Enquanto Brandt apoiou, durante os anos de Reagan, o fortalecimento da capacidade de intervenção europeia com toda a convicção, em 1989/90 demonstrou confiar mais nos EUA do que nos vizinhos da Alemanha, nomeadamente a Grã-Bretanha e a França. Nos últimos anos de vida de Brandt conhecem-se inúmeras declarações positivas sobre os EUA e a sua política. No fundo, elas mais não fazem do que manifestar a sua esperança de que através da política de Washington, sob a liderança de Bush, e de Moscovo, sob a liderança de Gorbachev, o conflito Ocidente-Leste e a cisão não só da Alemanha como da própria Europa pudessem ser superados globalmente, graças à intervenção de políticos construtivos na Europa Ocidental e de reformadores democráticos fora e dentro dos partidos comunistas do leste europeu. Mesmo durante os anos em que a sua crítica à política dos EUA esteve em primeiro plano, Willy Brandt nunca deixou de se sentir como um representante da tradição libertária e democrática do Ocidente, a qual, naturalmente, 195 DO JOVEM SOCIALISTA AO “ELDER STATESMAN” também incluía os EUA. Ao assumir esses princípios, Willy Brandt soube personificar, apesar de toda a individualidade da sua biografia e da sua personalidade, as tradições políticas do SPD, que após a sua fundação no século XIX e durante a época da República de Weimar foi criticado, tanto pela extrema-direita como pelos comunistas, como sendo um partido pró-americano. Para Wilhelm Liebknecht, um dos fundadores do SPD, a América era o país mais livre do mundo. No final da primeira guerra mundial o SPD alimentou grandes expectativas em relação ao empenhamento americano na Europa e ao papel do presidente Woodrow Wilson. Muito embora essas expectativas tivessem sido em grande parte frustradas, as tendências pró-americanas não deixaram de prevalecer no seio do partido. Simultaneamente, porém, também existiram reservas dentro do SPD, sempre que os EUA se impuseram como potência capitalista. Esse elemento crítico no contexto de uma imagem da América em princípio positiva manifestou-se também no jovem Willy Brandt durante o exílio escandinavo. Eu estou seguro de que essa atitude positiva em relação aos EUA continua a existir entre uma grande maioria dos jovens alemães, para lá de toda a crítica que se possa manifestar em relação a certos aspectos específicos. O mesmo deve acontecer aliás em relação àqueles que, inversamente, se vêem como amigos da Alemanha nos EUA, e que, não obstante, não deixam de criticar a política e os políticos alemães, sempre que assim o entenderem. Por outro lado, não deixa de ser verdade que a eleição de Obama para presidente fez crescer as simpatias pelos Estados Unidos, nomeadamente entre os sociais-democratas. Quando agora se constata nos EUA o recrudescimento de correntes radicais conservadoras e populistas da direita é de esperar que o questionamento dos Estados Unidos volte também a fazer-se sentir com mais intensidade. Isso, no entanto, em nada altera o facto estratégico de que os EUA continuarão a ser o principal parceiro da Alemanha fora da União Europeia. 196 Superar a Crise Global de Ambiente Pedro Miguel Cardoso Introdução A globalização deve ser vista como um fenómeno complexo e multidimensional. É um processo histórico resultante da inovação humana e do progresso tecnológico. A sua dimensão económica (talvez a mais visível) está relacionada com o aumento da integração das economias de todo o mundo, nomeadamente no que diz respeito às trocas comerciais e financeiras. Também está relacionada com o movimento de pessoas e conhecimento através das fronteiras internacionais. Este conceito é usado desde os anos 80 do século XX, nomeadamente desde os avanços tecnológicos que facilitaram e aceleraram as transacções comerciais e financeiras internacionais. No fundo, ocorreu um prolongamento para além das fronteiras nacionais das mesmas forças de mercado que durante séculos operaram a todos os níveis da actividade económica humana (nos mercados rurais, nas indústrias urbanas e nos centros financeiros). Actualmente é possível beneficiar de mercados mais vastos em todo o mundo, ter maior acesso aos fluxos de capital e tecnologia, e beneficiar de importações mais baratas e mercados de exportação mais amplos. Devido a estas dinâmicas e fluxos globais surgiram novos riscos económicos, políticos e sobretudo ambientais. Ulrich Beck considera que o processo de industrialização é indissociável do processo de produção de riscos e uma das principais consequências do desenvolvimento científico industrial é a exposição dos indivíduos a riscos. Eles são gerados sem que os novos conhecimentos sejam capazes de trazer uma diminuição, controlo ou monitorização eficaz desses mesmos riscos. Para Beck estamos a assistir à passagem de uma sociedade industrial para uma sociedade de risco (Navarro e Cardoso, 2005). No âmbito desta temática da globalização vou em seguida debruçar-me sobre alguns dos principais riscos ambientais contemporâneos. Atravessamos uma crise ambiental sem paralelo na história, precisamente por ser global. 197 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE 2. A crise ambiental contemporânea Nas últimas décadas, as preocupações ambientais tornaram-se assunto residente da agenda mediática e subiram a um patamar inédito de prioridade política e internacional. Como salienta Soromenho - Marques (1998), “a problemática ambiental já ultrapassou, no plano internacional e nacional, a prova de fogo que distingue as preocupações estruturantes das meras modas conjunturais” (p. 109). Este autor aponta cinco razões que fundamentam esta ideia de que a crise de ambiente não é apenas um problema passageiro e simplesmente funcional: primeira razão, trata-se de uma crise planetária; segunda razão, o ritmo actual de ruptura dos ecossistemas só tem paralelo com as extinções maciças ocorridas há milhares de anos; terceira razão, a sua preocupante dimensão cumulativa torna difícil ou impossível a recuperação dos ecossistemas; quarta razão, a insensibilidade aos alertas; quinta e última razão, a distância entre a complexidade do problema e o carácter redutor dos nossos instrumentos de representação e da nossa capacidade de mobilização. De facto, a crise ambiental contemporânea é mais profunda do que possa parecer a um observador menos atento. Ela é um reflexo dos valores e práticas dominantes à escala global. É uma consequência de um modelo social e económico baseado no crescimento económico, no aumento contínuo de bens e serviços e no consumo. Os sintomas avolumam-se. 2.1. Alterações climáticas Em 1990, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas declarou que as actividades humanas estão a contribuir para um aumento substancial da concentração atmosférica de gases com efeito de estufa (GEE) e que o calor por eles captado origina de facto alterações climáticas (IPCC, 1990). A temperatura média da Terra resulta de um equilíbrio entre o fluxo de radiação solar que chega à sua superfície e o fluxo de radiação infravermelha enviada para o espaço. Os GEE, que representam menos de 1% dos gases presentes na atmosfera, composta principalmente de azoto e de oxigénio, controlam os fluxos de energia na atmosfera e são responsáveis pela temperatura da Terra (Comissão para as Alterações Climáticas, 2002). Na sua ausência, a temperatura média global seria de -18ºC em vez dos actuais 15ºC. 198 PEDRO MIGUEL CARDOSO Esta diferença de 33ºC resulta de um efeito de estufa natural que favorece de modo decisivo as condições de habitabilidade do planeta (Santos, 2004). Os primeiros gases identificados como responsáveis pelo aumento desse efeito são o CO2, o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O) – ver Tabela 1. Mais recentemente foram considerados outros GEE, os compostos halogenados (os HFCs ou hidrofluorcarbonos, os PFCs ou perfluorcarbonos e o SF6 ou hexafluoreto de enxofre), que têm contribuído para o agravamento deste problema (Comissão para as Alterações Climáticas, 2002). GEE Aumento da concentração desde 1750 (%) Contribuição para o aquecimento global (%) CO2 31 60 CH4 151 20 N2O 17 6 Uso de fertilizantes, produção de ácidos e queima de biomassa e combustíveis fósseis. -- 14 Indústria, refrigeração, aerossóis, propulsores, espumas expandidas e solventes. Compostos halogenados (HFC, PFC e SF6) Principais fontes de emissão Uso de combustíveis fósseis, desflorestação e alteração dos usos do solo. Produção e consumo de energia (incluindo biomassa), actividades agrícolas, aterros sanitários e águas residuais. Tabela 1: Aumento da concentração de CO2, CH4, N2O e compostos halogenados (em %) desde 1750, sua contribuição para o aquecimento global e principais fontes de emissão. Fonte: Comissão para as Alterações Climáticas (2002). O CO2 é um dos principais gases a contribuir para o efeito de estufa. Os estudos indicam que desde o início da revolução industrial (em meados do século XVIII) a concentração de CO2 atmosférico aumentou mais de 32% (Santos, 2004). Trata-se provavelmente do valor mais elevado atingido nos últimos 420 mil anos. As próximas Figuras (1 e 2) ilustram isso mesmo. 199 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE Figura 1: Concentração atmosférica global de CO2 - 1870 a 2000. Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal. Figura 2: Estimativas da temperatura e concentração de CO2 na atmosfera ao longo dos últimos 400 mil anos. Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal. 200 PEDRO MIGUEL CARDOSO Segundo os dados fornecidos pelo IPCC (2001), desde 1861 (ano em que se iniciaram os registos) observa-se um aumento significativo na temperatura média global e durante o século XX o nível dos mares subiu, em média, entre 10 e 20 centímetros. Os glaciares e a neve das montanhas têm diminuído em média em ambos os hemisférios (IPCC, 2007). O recuo dos glaciares das montanhas tem-se acelerado desde 1980. No hemisfério norte, “a área dos gelos permanentes na região do Pólo Norte está a diminuir 3% por década. Na Gronelândia os glaciares estão a fundir e a área de gelos que fundem durante o verão está a aumentar de modo preocupante; de 1979 a 2003 aumentou 16%” (Santos, 2004, p. 18). No hemisfério sul (na Antárctida) “a fusão está a provocar o desprendimento de gigantescos blocos de gelo dos glaciares periféricos, como por exemplo, o icebergue de Larsen B com uma área de 3275 Km2” (Santos, 2004, p. 20). Novos dados apresentados (IPCC, 2007) mostram que as perdas dos gelos na Gronelândia e Antárctida têm contribuído muito provavelmente para a subida do nível do mar. E esse nível subiu a uma taxa média de 1,8 milímetros por ano entre 1961 e 2003, quase duplicando entre 1993 a 2003 (cerca de 3,1 milímetros por ano). Há outros sinais de que a temperatura está a subir. Os episódios de precipitação intensa e as consequentes inundações aumentaram nas latitudes altas e médias, enquanto aumentaram as secas nas latitudes subtropicais, sobretudo na África e na Ásia (Santos, 2004). O quarto relatório do IPCC (2007) refere por exemplo que ao longo dos últimos 50 anos, dias frios, noites frias e geadas têm sido menos frequentes, enquanto, dias quentes, noites quentes e ondas de calor têm sido mais frequentes. Além disso existem evidências do aumento da actividade dos ciclones tropicais no Atlântico Norte desde 1970, que pode estar relacionada com o acréscimo das temperaturas à superfície dos mares tropicais. O que sucederá se continuarmos a emitir quantidades cada vez maiores de GEE e o aquecimento da Terra continuar a acelerar? O Relatório Stern (2006) refere que caso não sejam tomadas medidas para a redução das emissões, a concentração dos GEE poderá atingir o dobro do seu nível pré-industrial já em 2035, sujeitando-nos praticamente a uma subida de temperatura média global de mais de 2ºC. A longo prazo, existe uma possibilidade de mais de 50% de que a subida da temperatura exceda os 5ºC. Esta subida seria de facto perigosa, equivalente à mudança das temperaturas médias desde a última era glacial até ao presente. Uma tal mudança resultará em alterações importantes na geografia humana, no local onde as pessoas vivem e no seu modo de vida, sujeitando as populações humanas a novos riscos e pressões. 201 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE 2.2. (In) segurança alimentar Nos últimos 40 anos a população humana global duplicou, atingindo os 6,5 mil milhões de pessoas. As previsões apontam para que em 2050 esse valor esteja nos 9 a 10 mil milhões. Isto significa que com uma população global a crescer, a produção alimentar vai ter que aumentar e muito para satisfazer as necessidades globais de consumo. Segundo Green et al. (2005) entre 1961 e 1999 o crescimento na produção global de alimentos superou o crescimento populacional, em resultado de um aumento de 12% da área agrícola global e de uma subida de 10% da área permanente de pastagem. A produção alimentar por unidade de área cresceu globalmente cerca de 106%, mas este crescimento esteve relacionado com uma subida de 97% da área irrigada e aumentos significativos no uso de fertilizantes de azoto (+638%), fertilizantes de fosfato (+203%) e produção de pesticidas (+854%). A Figura 3 apresenta algumas dessas tendências. Figura 3: Tendências globais na produção de cereais e carne; uso total de fertilizantes de fosfato e azoto; aumento da irrigação; produção total global de pesticidas. Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal. 202 PEDRO MIGUEL CARDOSO De acordo com um modelo económico básico que remonta aos economistas clássicos (Ricardo) e aos primeiros neoclássicos (Marshall), pode-se fazer face ao aumento da procura de alimentos de duas maneiras: aumentando a intensidade de utilização agrícola e pastoril das terras (margem intensiva) e/ ou aumentando a extensão da área utilizada pela agricultura e pelo pastoreio (margem extensiva) (Santos, 2008). No entanto estas opções têm consequências e há limites para além dos quais os fertilizantes e pesticidas deixam de surtir efeito restando apenas os seus impactos ambientais negativos. Existem estudos que referem que a principal causa directa de perda de biodiversidade a nível global é a destruição de habitats resultante da conversão e intensificação do uso de áreas para a agricultura. Por isso surgem as questões: como poderemos satisfazer o aumento da procura de alimentos com um mínimo de impacto sobre a biodiversidade? Deveremos intensificar a produção em áreas já convertidas para a agricultura, reduzindo a necessidade de converter os restantes habitats intactos? Ou deveremos aumentar a área agrícola promovendo uma agricultura extensiva mais amiga do ambiente? É de salientar que a produção agrícola é sensível aos efeitos directos do clima, da temperatura, do fluxo de água, da composição atmosférica (especialmente dos níveis de CO2) e dos eventos meteorológicos extremos. É também sensível aos efeitos indirectos do clima, na qualidade da luz solar, na incidência de doenças das plantas e nas populações de insectos e de ervas daninhas (McMichael et. al, 1996). Com o aumento da temperatura média global a produtividade agrícola terá tendência a aumentar nas latitudes médias e altas e a diminuir nas latitudes baixas. Se o aumento for superior a 3 ºC a produtividade à escala mundial irá decrescer (IPCC, 2007). Os estudos sugerem que a produção agrícola global poderá ser mantida ao longo dos próximos 100 anos com uma mudança climática moderada (abaixo dos 2 ºC). No entanto, os efeitos regionais serão diferentes e alguns países vão sofrer reduções de produção mesmo que adoptem medidas de adaptação. Nas áreas onde populações de baixos rendimentos estão dependentes de uma agricultura de subsistência qualquer decréscimo na produtividade pode ter consequências negativas. 203 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE 2.3. Poluição A poluição é outra das ameaças que pairam sobre a vida na Terra. Segundo Odum (1988) a poluição consiste em alterações indesejáveis nas características do ar, do solo ou da água, que afectam prejudicialmente a vida do Homem ou a de espécies desejáveis. Este autor define dois tipos básicos de poluição: a poluição por poluentes não degradáveis, que são materiais e venenos que ou não se degradam ou apenas o fazem muito lentamente no ambiente natural; e a poluição por poluentes biodegradáveis, como o esgoto doméstico, que podem ser rapidamente decompostos por processos naturais. Os oceanos, por exemplo, têm sofrido com estes dois tipos de poluição. Se as descargas de esgotos em pequenas quantidades parecem não causar efeitos nefastos de relevo, Nybakken (2001) aponta ameaças significativas com que se deparam os ecossistemas marinhos: a poluição por petróleo que resulta de acidentes ou da lavagem de depósitos em alto mar; a poluição por químicos produzidos pelas indústrias; a poluição por metais residuais provenientes da extracção mineira e das indústrias de produção e processamento de metais; os materiais radioactivos de testes nucleares e os desperdícios de combustíveis nucleares; a introdução de espécies invasoras; a mortalidade de várias espécies marinhas relacionada com doenças; a eutrofização, um fenómeno que conduz ao aparecimento de zonas mortas e que tem origem num excesso de nutrientes gerados pela actividade humana; e a construção de barragens em rios que afectam os oceanos pela redução do carregamento de sedimentos, levando à erosão dos deltas e redução das pescas. 2.4. Desertificação As Nações Unidas definem “desertificação” como sendo a degradação da terra nas zonas áridas, semi-áridas e sub-húmidas secas, em resultado de vários factores, incluindo variações climáticas e actividades humanas. Segundo Silva (2004) esta definição, apesar de ser um pouco vaga e simplificadora, não deixa de salientar alguns conceitos essenciais: a desertificação é um processo e não um estádio, o de que os fenómenos em causa resultam de factores naturais e antropogénicos, e o de que o termo se deve circunscrever a regiões climáticas específicas nisso se diferenciando de outras formas de degradação dos solos. 204 PEDRO MIGUEL CARDOSO Os processos de desertificação resultam de uma interacção complexa entre causas naturais e antropogénicas que se desenvolvem, por vezes, de forma lenta e descontínua. Como salienta Johnson (1977) a desertificação interliga factores físicos e humanos, de maneira que é difícil separar a causa do efeito. É um processo interactivo, produto de flutuações no ambiente natural e mudanças nas actividades das populações humanas, que procuram sobreviver e subsistir em condições difíceis e incertas de aridez. No entanto, é importante distinguir entre “desertificação física” que se refere aos processos físicos e biofísicos que conduzem à degradação dos solos e “desertificação humana” que se refere aos processos de abandono progressivo por parte das populações que procuram noutros locais formas mais promissoras de se integrarem no tecido económico e social das sociedades em que vivem. A desertificação física, ou simplesmente desertificação, tem normalmente uma componente antropogénica, enquanto a desertificação humana, ou simplesmente despovoamento, pode resultar de outros factores que não sejam uma alteração das condições físicas do meio (Silva, 2004). Podem ser definidas duas categorias de causas de desertificação: as directas e as indirectas. Como principais causas directas temos a sobre-exploração agrícola, o sobrepastoreio, os incêndios, a desflorestação, as práticas de rega incorrectas e a ocorrência de secas prolongadas (factores climáticos). As causas indirectas são aquelas que conduzem a práticas do uso do solo ou da água que desencadeiam as causas directas e são sobretudo socioeconómicas e políticas (ex. forte pressão do turismo e o deficiente ordenamento do território). É importante salientar que o solo é um recurso com taxas de formação e regeneração extremamente lentas, mas com taxas de degradação potencialmente rápidas. 2.5. Esgotamento dos combustíveis fósseis Vivemos num mundo que consome cada vez mais energia (ver Figura 4). O crescimento económico, a circulação de bens, o crescimento populacional, as aspirações crescentes da população mundial faz com que estejamos a produzir e a consumir mais energia. As principais fontes energéticas são os combustíveis fósseis: o petróleo, o gás natural e o carvão. A energia nuclear e as energias renováveis (que inclui a energia hidroeléctrica) também têm algum peso mas a realidade é que as economias e sociedades humanas dependem dos combustíveis fósseis. 205 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE No entanto, as reservas de combustíveis fósseis são limitadas e sabemos que não vão durar para sempre (apesar de não se saber ao certo a dimensão das reservas que podem ainda estar por descobrir, sabe-se que elas são finitas). A tendência para o aumento do consumo mundial de energia (em especial pelas economias emergentes, como a China e a Índia) vem acelerar o fim destas reservas. O actual padrão de crescimento da produção e consumo de energia é insustentável. Actualmente, por exemplo, aproximamo-nos se não do fim do petróleo, pelo menos do fim do petróleo barato. Este facto torna vulneráveis as economias dependentes destes recursos uma vez que os encargos com as importações tendem a crescer de forma imprevisível. Além de que as reservas de combustíveis fósseis, sobretudo do petróleo, estão concentradas em poucas regiões do mundo. O controlo dessas reservas por poucos faz com que a maioria dos países tenha dependência económica e política desses países, muitas vezes portadores de graves conflitos internos e grande instabilidade política. Figura 4: Aumento no consumo global de energia. Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal. 206 PEDRO MIGUEL CARDOSO 2.6. Perda de biodiversidade A biodiversidade designa os organismos que constituem o mundo vivo, o seu número, variedade e variabilidade. A diversidade biológica manifesta-se em três níveis de organização biológica: os genes, as espécies e os ecossistemas. A diversidade genética resulta da variação genética entre indivíduos e entre diferentes populações da mesma espécie. A diversidade das espécies representa os diferentes tipos de animais, plantas e outros organismos que habitam uma dada região e a diversidade dos ecossistemas representa a variedade de habitats (Santos, 2007). A biodiversidade garante um diversificado conjunto de serviços essenciais à vida. Um dos seus maiores benefícios é providenciar novos medicamentos. Mais de uma centena de drogas importantes na medicina actual são extraídas exclusivamente de plantas e novas descobertas são feitas todos os anos, ao investigar-se uma enorme variedade de organismos que vão desde os fungos às árvores (Santos, 2007). A biodiversidade está sujeita actualmente a pressões enormes. Segundo o IPCC (2007) a resiliência de muitos ecossistemas será provavelmente excedida este século por uma combinação sem precedentes de alterações climáticas e distúrbios associados (ex. inundações, secas, incêndios violentos, insectos, acidificação dos oceanos) e outras mudanças globais (ex. uso dos solos, poluição, sobre-exploração dos recursos). Por exemplo, um pouco mais de metade de todos os stocks monitorizados de peixe estão actualmente completamente explorados, produzindo capturas perto dos limites máximos de sustentabilidade sem espaço para futuras expansões. Cerca de um quarto estão sobre-explorados, esgotados ou recuperando lentamente. Os restantes stocks estão sub-explorados ou moderadamente explorados. O elevado número de stocks que estão ou completamente ou sobre-explorados indicam que o potencial máximo de capturas de peixe marítimas está a ser alcançado e que medidas de gestão são necessárias para reduzir a exploração (www.greenfacts.org). Estimativas recentes (Myers, 2003; citado por Santos, 2007) permitem concluir que o oceano global perdeu cerca de 90% dos grandes predadores – atum, espadarte, espadim, bacalhau, raia e solha – desde o inicio da industrialização da pesca na década de 1950. 207 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE 3. Superar a crise Perante a crise ambiental têm sido adoptados diferentes atitudes e discursos. Por um lado temos o discurso ambiental prometaico que se baseia numa confiança ilimitada na capacidade do Homem, por meio da ciência e tecnologia, resolver todos os problemas colocados pelo paradigma do crescimento. Por outro, temos o discurso dos limites que considera que o paradigma do crescimento conduz mais tarde ou mais cedo a situações de crise e colapso. O planeta é finito logo há limites ao crescimento. Existe também o discurso do desenvolvimento sustentável, que afirma que a humanidade tem a capacidade de assegurar que se satisfaçam as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras assegurarem a satisfação das suas próprias necessidades. Embora reconheça a existência de limites ecológicos acredita que através de uma gestão equilibrada e inteligente dos sistemas humanos e naturais é possível continuar a crescer (Santos, 2007). Qual é a melhor atitude? A mais optimista, a mais prudente ou aquela que procura aliar prudência e optimismo? Como poderemos promover uma transição para um paradigma sustentável? Sou daqueles que pensam que são necessários novos modelos de desenvolvimento, conceitos alternativos de bem-estar que não se centrem apenas na prosperidade material, capacidade de consumo e Produto Interno Bruto. Como salienta Tietenberg (1992) as escolhas que temos que fazer vão testar a criatividade das nossas soluções e a resiliência das nossas instituições sociais. É importante ter presente que os problemas ambientais já transcenderam as fronteiras geográficas e geracionais. O Estado-Nação já não consegue sozinho fazer face às complexidades dos problemas ambientais. A cooperação internacional é fundamental e são necessários acordos internacionais vinculativos e justos para que se produzam os efeitos desejados. As políticas nacionais devem ser economicamente viáveis e flexíveis e têm que incorporar a solidariedade para com as gerações futuras, por mais difícil e imperfeita que seja essa incorporação. É de salientar a ineficiência de muitas das actividades económicas actuais e os desperdícios de recursos que geram. Os incentivos económicos podem ser usados não apenas para reduzir o conflito entre desenvolvimento económico e protecção ambiental, mas podem fazer do desenvolvimento económico o veículo para se alcançarem níveis maiores de protecção ambiental. Este autor sugere quatro princípios base para uma transição gradual para a sustentabilidade: 208 PEDRO MIGUEL CARDOSO Segundo o princípio do custo total todos os utilizadores de recursos ambientais devem pagar o seu real custo. Os produtos produzidos por processos ambientalmente destrutivos devem ser mais caros, enquanto aqueles que são produzidos por processos amigos do ambiente devem ser mais baratos. Segundo o princípio do custo/eficácia, o objectivo deverá ser alcançado ao menor custo possível. Por exemplo, o comércio de licenças de emissões de GEE é uma abordagem interessante para implementar este princípio uma vez que fornece oportunidades de partilha de custos. Segundo o princípio dos direitos de propriedade, deve-se assegurar que as comunidades locais tenham acesso a benefícios pela preservação dos valores naturais que estejam dentro das suas fronteiras. Segundo o princípio da sustentabilidade, todos os recursos devem ser usados de maneira a respeitar as necessidades das gerações futuras. Restaurar a justiça intergeracional no uso de recursos escassos é um bom ponto de partida. Neste âmbito pode ser interessante criar fundos para compensar as gerações futuras pelo uso de recursos escassos, incluir na contabilidade nacional de rendimentos, a depreciação do capital natural e todos os outros custos. Em alternativa a esta transição moderada que acabei de descrever, Tietenberg (1992) baseando-se nas ideias de Herman Daly, aponta uma outra abordagem, a da transição forçada e rápida para o desenvolvimento sustentável. Para Daly a meta a atingir seria o estado estacionário, no qual o desenvolvimento poderia e deveria ocorrer. O estado estacionário e o crescimento económico zero não são necessariamente a mesma coisa. Ele propõe três criações institucionais para alcançar este objectivo: uma instituição para estabilizar a população, uma instituição para estabilizar o stock de riqueza e o fluxo de recursos e energia, e uma instituição que assegure que a riqueza e os rendimentos são justamente distribuídos pela população. Parece-me que a transição gradual é uma abordagem mais realista para o desafio que enfrentamos e para o mundo em que vivemos. As criações institucionais propostas por Daly seriam dificilmente acordadas no actual contexto político internacional. Tivemos recentemente o exemplo de Copenhaga, em que apesar da pressão da opinião pública e do consenso político em torno do essencial não foi possível chegar a um acordo global vinculativo para a redução das emissões de GEE. De facto e como salienta Tietenberg (1992) as instituições propostas seriam caras de implementar e necessitariam de grandes staffs burocráticos para a definição de quotas e fiscalização do seu cumprimento. 209 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE Penso que independentemente dos diferentes planos e soluções que se podem propor, necessitamos sobretudo de consciencialização, determinação e acção colectiva. É necessário fazer da sustentabilidade uma prioridade nacional e internacional. 4. Considerações finais O desafio da sustentabilidade é provavelmente o desafio crucial do século XXI e de outros vindouros. As preocupações que sustentam este desafio não são de agora, houve um lento despertar para a problemática do desenvolvimento sustentável. Há hoje uma maior consciência para as profundas relações existentes entre a história da humanidade, o desenvolvimento das suas sociedades e o ambiente. No entanto, o desafio é enorme e as resistências à mudança também. Não sabemos ao certo onde está a “linha vermelha” para lá da qual se poderá dar o colapso da civilização tal como a conhecemos. Talvez tenhamos que cair para sentirmos a dor e depois mudar de vez. As catástrofes são muitas vezes o catalisador da mudança. Mas podemos fazer as coisas de outra maneira. Em nome do princípio da precaução, da solidariedade intergeracional e do respeito pelo planeta que habitamos, torna-se um imperativo ético uma acção colectiva e determinada. Enquanto espécie temos uma capacidade de adaptação significativa e podemos, compatibilizando responsabilidade e liberdade, construir um futuro sustentável. Devemos continuar a apostar na educação e na produção e disseminação do conhecimento, reduzir as desigualdades sociais e internacionais, valorizarmo-nos e valorizarmos a Natureza. Segundo Jamieson (1992), devemos encarar esta questão como um desafio fundamental para os nossos valores e não tratá-la como se fosse apenas mais um problema técnico para ser gerido. É importante desenvolver uma mais profunda compreensão do que somos e da nossa relação com a Natureza. 210 PEDRO MIGUEL CARDOSO 5. Referências bibliográficas Comissão para as Alterações Climáticas. (2002). Programa Nacional para as Alterações Climáticas, versão 2001. Portugal: Instituto do Ambiente. Green, R.; Cornell, S.; Scharlemann, J.; & Balmford, A. (2005). Farming and the Fate of Wild Nature. Science, 307, pp. 550-555. IPCC. (1990). Intergovernmental Panel on Climate Change, Reports prepared for IPCC by Working Groups I, II and III, United Nations Environmental Program and World Meteorological Organization. United Kingdom: Cambridge University Press. IPCC. (2001). Intergovernmental Panel on Climate Change, Contributions of Working Groups I, II and III to the IPCC Third Assessment Report. United Kingdom: Cambridge University Press. IPCC. (2007). Intergovernmental Panel on Climate Change, Contributions of Working Groups I, II and III to the IPCC Fourth Assessment Report. United Kingdom: Cambridge University Press. Jamieson, D. (1992). Ethics, Public Policy, and Global Warming. Science, Technology, & Human Values, Vol. 17, Nº 2. (Spring, 1992), pp. 139 - 153. Johnson, Douglas L. (1977). The Human Dimensions of Desertification. Economic Geography, Vol. 53, Nº 4, (Oct.), pp. 317-321. United States of America: Clark University. Mcmichael, A., Haines, A., Slooff, R., & Kovats, S. (1996). Climate Change and Human Health. Geneva: World Health Organization. Navarro, M. & Cardoso, T. (2005). Percepção de Risco e cognição: reflexão sobre a sociedade de risco. Ciências & Cognição, Ano 02, Volume 06, Novembro/2005. Nybakken, J. W. (2001). Marine biology – An ecological approach (5th.edition). United States of America: Benjamin Cummings. Odum, E. P. (1988). Fundamentos de Ecologia (4ª edição). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Santos, F. D. (2004). Alterações climáticas: Situação actual e cenários futuros. GeoINova, Nº9, pp. 11-31. Santos, F. D. (2007). Que futuro? – Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento e Ambiente. Lisboa: Gradiva. Santos, J. L. (2008). Los Sistemas Agrarios y la Conservación de la Biodiversidad. In: Campos Palacín e Casado Raigón (Eds.) Gestión del Medio Natural en la Península Ibérica: Economia y Políticas Públicas, Madrid, Funcas, pp. 79-109. Silva, Fernando (coord.) (2004). Desertificação em Portugal: Incidência no Ordenamento do Território e no Desenvolvimento Urbano, Colecção Estudos 8, Volume 1 e 2. Lisboa: Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano. Soromenho-Marques, V. (1998). Terceiro Ensaio: Ambiente, Cultura e Cidadania – Cinco Questões Fundamentais, In O Futuro Frágil – Os desafios da crise global do ambiente (pp. 109 - 126). Mem Martins: Publicações Europa – América, Lda. Stern, N. (2006). Stern review on the economics of climate change. London: Cambridge University Press. Tietenberg, T. (1992). Environmental and Natural Resource Economics. Nova Iorque: Harper Collins Publishers, 3ª Edição, pp. 599-626. 211 SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE Fontes web: Global atmospheric concentration of CO2. (2000). In UNEP/GRID-Arendal Maps and Graphics Library. Retrieved 22:55, March 7, 2010 from http://maps.grida. no/go/graphic/global-atmospheric-concentration-of-co2. Global trends in cereal and meat production; total use of nitrogen and phosphorus fertilizers; increased use of irrigation; total global pesticides production. (2008). In UNEP/ GRID-Arendal Maps and Graphics Library. Retrieved 23:12, March 7, 2010 from http:// maps.grida.no/go/graphic/global-trends-in-cereal-and-meat-production-total-use-ofnitrogen-and-phosphorus-fertilizers-increas. Green Facts – Facts on Health and Environment URL: http://www.greenfacts.org/en/fisheries/index.htm Temperature and CO2 concentration in the atmosphere over the past 400 000 years. (2000). In UNEP/GRID-Arendal Maps and Graphics Library. 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No mesmo sentido, o General Loureiro dos Santos considera que, “a Internet constitui talvez o mais expressivo artefacto tecnológico que enfatiza o ambiente estratégico caracterizador da Era da Informação”3. Sucintamente, a Internet pode ser apresentada como uma rede mundial de sistemas informáticos, constituída por servidores e clientes, “uma estrutura em forma de rede, um poder de ligação distribuído entre os diversos nós e uma redundância de funções na rede”4. Existindo um grande número de redes independentes, desde as mais simples às mais complexas, a informação vai circulando através das redes até atingir o seu destino e, dado que o sistema tem a característica de ser aberto, um utilizador, desde que localizado na rede, em qualquer nó, pode aceder a recursos em qualquer uma dessas redes. 1 Cfr. José Loureiro dos Santos, As guerras que já aí estão e as que nos esperam se os políticos não mudarem, Reflexões sobre Estratégia VI, Publicações Europa-América, 2009, p.53. 2 Cfr. Manuel Castells, A Galáxia Internet, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, p.15. 3 Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.56. 4 Cfr. José Carlos Lourenço Martins, A internet como factor de transformação social e das relações de poder, Pós-Graduação em Guerra de Informação e Competitive Intelligence, Academia Militar, Lisboa, Fev.2006, p.5. 213 SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS As sociedades modernas encontram-se organizadas em rede, com células interligadas e interdependentes. Isto significa que a destruição de uma das células tem consequências nas restantes e, dada a extensão das redes, a destruição de uma célula significa repercussões em vastos espaços e a obtenção de efeitos em grandes dimensões. As redes de transportes, de energia, de distribuição de água, de actividades financeiras e de dados transmitidos pela Internet, são exemplos de redes mantidas neste sistema interligado e interdependente, comandadas por sistemas computadorizados. Tomando novamente as palavras do General Loureiro dos Santos, “a vida moderna depende da Internet, nas suas mais importantes actividades. O apoio da engrenagem social foi ou está a ser transferido para o ciberespaço: o funcionamento dos governos, da segurança e das informações (intelligence), os sistemas financeiros, de transportes, de produção e distribuição de energia, de saúde, de controlo de stocks de toda a ordem (como alimentos, medicamentos, sobressalentes de todos os artefactos, material militar e policial)”5. A Era da Informação, através da Internet e do progressivo desenvolvimento de novas tecnologias, multiplicou as vias de informação e originou o aparecimento de novos espaços operacionais, onde os actores podem utilizar esta facilidade de distribuição de informação para “paralizar actividades estratégicas de uma ou mais sociedades”6. Dada a acessibilidade geral à utilização das tecnologias, qualquer actor tem acesso a estas vias de informação e pode usá-las em seu proveito e de acordo com os seus interesses. Novos espaços operacionais Tradicionalmente, ao pensarmos em espaços operacionais, associavamos apenas três: o terrestre, o marítimo e o aéreo. Porém, com a era da globalização, e nomeadamente, da globalização da informação e da comunicação, surgiram três novos espaços: o espaço exterior, o espaço mediático 5 Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.56. 6 Cfr.Idem, ibidem, p.60. 214 CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA e o ciberespaço. Estes novos espaços operacionais exercem influência e têm implicações nos espaços operacionais tradicionais, visto que os conflitos se apoiam nestes novos espaços ou decorrem neles. Por outro lado, estes novos espaços possuem uma característica que implica desafios, a sua dimensão global. Significa que os conflitos locais passam a ser um potencial conflito global, ou seja, “o aparecimento de três novos espaços de operações (...) que se reforçam mutuamente e se tornaram indispensáveis à batalha nos teatros de operações tradicionais, teve duas consequências de monta: em primeiro lugar, fez com que todo o teatro de operações seja potencialmente um teatro global (...) Em segundo lugar, confere uma nova dimensão à representação na guerra, pelas possibilidade de circulação de informação que os três novos espaços operacionais conjugados permitem”7. Neste sentido, com o aparecimento destes três novos espaços operacionais, a noção de guerra assumiu novos contornos e uma importância acrescida, visto que, o desenvolvimento tecnológico não pára e vão surgindo novos desafios à segurança que exigem novas respostas. Novos Actores e Novas Ameaças O actual ambiente operacional é também marcado pelo aparecimento de novos actores estratégicos e por novas ameaças. Além dos actores estratégicos tradicionais, os Estados, surgiram outros actores no tabuleiro internacional, entre os quais, os actores erráticos, entidades caracterizadas como actores das relações internacionais aos quais falta pelo menos uma das componentes de identificação clássica do poder, nomeadamente, a forma ou a imagem, a sede e/ou a ideologia8. No âmbito do presente estudo, importa-nos referir as denominadas organizações transnacionais de actividades ilícitas, entre as quais constam as organizações de tráficos ilícitos e as organizações terroristas. Caracterizam-se por não possuirem base territorial, pela sua natureza transnacional, estruturadas em 7 Cfr. Idem, ibidem, p.125. 8 Cfr. Adriano Moreira, “Poder Funcional e Poder Errático”, in Nação e Defesa, Lisboa, Instituto de Defesa Nacional, nº12, 1979; e idem, Ciência Política, Lisboa, Bertrand, 1979, p.72. 215 SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS redes imateriais, com objectivos de natureza política (organizações terroristas) ou com finalidade criminosa mas que podem repercutir-se politicamente (organizações transnacionais do crime organizado). Quanto às ameaças, mantêm-se as ameaças tradicionais relacionadas com a lógica westefaliana mas, surgindo novos espaços, foram criadas condições para o aparecimento de novas ameaças ou para a sua utilização por ameaças organizadas já existentes9. As novas ameaças, não substituíram as chamadas velhas ameaças, mas “actuam ao seu lado, reforçando-as, ou mesmo (...) actuando individualizadas, por si e com objectivos específicos capazes de colocar em causa os actores internacionais agentes das velhas ameaças”10. Na generalidade, é considerado que a principal ameaça que se coloca à ordem internacional é a do terrorismo global, e que os actores das novas ameaças são basicamente de duas naturezas, criminosa e política. Terrorismo Historicamente, o terrorismo não é um fenómeno contemporâneo. Etimologicamente, o termo terrorismo advém do período que se sucedeu à Revolução Francesa de 1789, o qual ficou para a história como o Reino do Terror. Contudo, esta não é a única definição do significado de terrorismo e, talvez começando com uma definição elementar de terrorismo, possamos dizer que este é “o ataque indiscriminado a inocentes e a tentativa de introduzir o medo e o terror na vida quotidiana”11. Não existe um consenso quanto à conceptualização do termo, daí que para prosseguirmos com a respectiva análise, consideremnos fundamental codificarmos conceptualmente quais os conteúdos inseridos no termo “terrorismo”, recorrendo às definições utilizadas nos EUA e pela NATO, complementando-as com os contributos de alguns teóricos. 9 Cfr. José Loureiro dos Santos, Convulsões, Ano II da “Guerra” ao Terrrorismo, Reflexões sobre Estratégia IV, 2ª ed, Publicações Europa-América, 2004, p.115. 10 Cfr. Idem, ibidem, p.200. 11 João Vieira Borges, “O Terrorismo Transnacional e a Estratégia” in Terrorismo: razões da ausência de um conceito comum, IDN, Newsletter de Abril de 2006. 216 CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA Os EUA utilizam três definições, designadamente as do Departamento de Estado, do Departamento de Defesa e do FBI. O primeiro afirma que o terrorismo, com o objectivo de influenciar uma audiência, consiste no uso premeditado da violência, executada contra alvos não-combatentes, por agentes subnacionais ou clandestinos. Para o Departamento de Defesa Americano, o terrorismo é o uso calculado da violência ou da ameaça da violência, contra indivíduos ou propriedades, para difundir o medo, com a intenção de intimidar governos ou sociedades, com o fim de perseguir objectivos que geralmente são políticos, religiosos ou ideológicos. A definição usada pelo FBI afirma que o terrorismo se define num uso ilegal da força ou violência contra pessoas ou para intimidar ou coagir um governo, população civil, com a intenção de alcançar objectivos políticos ou sociais. A NATO define o terrorismo utilizando uma fórmula intermédia, considerando terrorismo o uso ou ameaça do uso ilegal da força ou da violência, contra pessoas ou propriedades, com a intenção de condicionar ou intimidar os governos ou sociedades para conseguir objectivos políticos, religiosos ou ideológicos. Em 2001 o Conselho da União Europeia propôs-se detalhar uma série de acções que poderiam estar incluídas no conceito de agressão terrorista. Acções ou actos internacionais, que pela sua natureza e contexto, podem causar danos a um país ou uma organização internacional, cometidas com o propósito de intimidar uma população, persuadir indevidamente um governo ou organização internacional a levar a cabo ou omitir determinada acção, ou desestabilizar seriamente ou destruir as estruturas políticas, constitucionais, económicas ou sociais de um país ou organização internacional12. Para Walter Laqueur, o terrorismo é definido como “o uso de ameaça ou o uso da violência como um meio de combate, ou uma estratégia para conseguir certos objectivos, e pretende infundir nas vítimas um estado de 12 Cfr. Posição comum do Conselho, de 27 de Dezembro de 2001, sobre o combate ao terrorismo, Jornal Oficial nºL 344 de 28/12/2001 p.0092, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2001:344:0093:0096: PT:PDF, consultado a 12/02/2010. 217 SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS medo, que é impiedoso e se encontra à margem de toda a regra humanitária, (...) e a propaganda é um factor essencial da estratégia terrorista”13. Como refere o Professor Adriano Moreira, “o terrorismo, em vez de enfrentar os exércitos, ataca brutalmente as populações inocentes para quebrar o pilar da confiança que as liga ao poder legítimo”14, colocando em causa “o princípio firmado em Westefália, de ser o Estado não só o único legítimo titular da violência, mas também de facto a única entidade de fazer a guerra”15. Tomando as palavras do Professor António de Sousa Lara, podemos considerar que “todo o terrorismo é um acto político; o terrorismo é instrumental, ou seja, é um meio e não um objectivo final; para o entendimento da lógica do terrorismo há que considerar, em separado, os seus propósitos imediatos e mediatos, (...); e o critério do benefício objectivo é fundamental para a definição da lógica do terrorismo”16. A Rand Corporation afirma que “o terrorismo tornou-se mais sangrento; desenvolveu novos recurso financeiros, encontrando-se menos dependente de Estados responsáveis; desenvolveu novos meios de organização; consegue envolver campanhas globais; explorou eficazmente as novas tecnologias de comunicação, e alguns terroristas passaram das tácticas para a estratégia, apesar de nenhum ter alcançado os seus objectivos de longo prazo”17. Em suma, aqui reúnem-se as principais conceptualizações que definem o que é o terrorismo. Embora muitos autores avancem ainda com numerosas tipologias referentes à metodologia aplicada, aos objectivos, áreas de acção, e alvos, há que realçar a natureza essencialmente subversiva de indivíduo, grupo ou organização terrorista que pela sua acção, visa alterar o equilíbrio político, económico e social vigente, com vista a atingirem objectivos específicos. 13 Cfr. Walter Laqueur, No End to War: Terrorism in the 21st Century, NY & London, Continuum, 2003, pp.11-29. 14 Cfr. Adriano Moreira, Terrorismo, coord. de Adriano Moreira, 2ª ed., Setembro 2004, Almedina, p.9. 15 Cfr. Idem, ibidem, p.8. 16 Cfr. António de Sousa Lara, Ciência Política – Estudo da Ordem e da Subversão, Lisboa, ed. ISCSP, 2005, pp.452-453. 17 Cfr. RAND Corporation, “The New Age of Terrorism”, disponível em http://www.rand.org/pubs/reprints/2006/ RAND_RP1215.pdf., T. do a. 218 CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA Fazendo uso do desenvolvimento tecnológico, da globalização e do facto de as sociedades estarem organizadas em rede, o terrorismo pode agora levar as suas acções a efeito “com instrumentos de combate improvisados a partir de artefactos facilmente acessíveis que façam parte do nosso quotidiano”18, conseguindo originar grandes danos para os Estados e para as sociedades, alcançando os seus objectivos com elevado impacto mediático e com grandes efeitos estratégicos. Ciberterrorismo Os bens e serviços adquiridos devido ao desenvolvimento tecnológico são da fácil acesso, baixo custo, facilmente utilizáveis, sofisticados e eficientes. Disponíveis a todos, também se encontram ao dispôr de organizações de crime organizado e de organizações terroristas, que recorrem a estes bens e serviços generalizados como recursos para perpetrar os seus objectivos. A Internet foi desenhada como “uma tecnologia de comunivação livre”19 e aberta e, nesse sentido, o ciberespaço é aberto a todos, sejam quais forem as suas intenções. É um espaço aberto tanto a actores estatais como a hackers, gangs do crime organizado e organizações terroristas20. A primeira referência à ameaça de ataques terroristas através de sistemas informáticos surgiu em 1979, num relatório do governo sueco. O vocábulo ciberterrrorismo aparece na década de 80 do século XX, em relatórios norte-americanos produzidos por especialistas informações militares. O ciber-terrorismo vai ganhando cada vez maior destaque, e na década de 90 surge nos EUA a ideia de um Pearl Habor electrónico. O FBI define ciberterrorismo como “um ataque premeditado, politicamente motivado contra informação, sistemas computacionais, programas e dados que resultam em violência contra alvos não-combatentes por parte de grupos nacionais ou agentes clandestinos”21. 18 Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.113. 19 Cfr. Manuel Castells, ibidem, p.19. 20 Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.56. 21 Cfr. Mark Pollitt, “Cyberterrorism: Fact or Fancy?” in Proceedings of the 20th National Information Systems Security Conference, 1997. 219 SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS Procurando definir o conceito de ciberterrorismo, Mark Pollitt definindo-o como “um acto criminoso perpetrado através de computadores que resulta em violência, morte ou destruição e quer gerar terror, com o objectivo de coagir um governo a alterar as suas políticas”22. No mesmo sentido, Dorothy Denning, define o ciber-terrorismo como “um ataque cirúrgico, ou a ameaça de tal ataque, a sistemas informáticos, redes, e à informação neles contida, com o objectivo de ameaçar governos e sociedade” ou a “prossecução, sobre eles, de objectivos políticos”. Segundo a autora, estes ataques deverão ser dirigidos contra pessoas, propriedades, ou, pelo menos, provocar danos suficientes que criem um sentimento de ameaça. Salienta que exemplos de acções ciberterroristas poderão ser ataques que resultem em mortes, explosões, catástrofes aéreas, contaminação de águas, profundos danos económicos ou ataques contra infraestruturas críticas23. Percebemos que dada a estrutura em rede da sociedade a destruição de uma célula “provoca efeitos tão profundamente desastrosos, que a sua recuperação será extramente demorada, senão quase impossível, e com custos incomportáveis”24 e, nesse sentido, Solange Ghernaouti-Helie, refere que a cibercriminalidade ganha cada vez mais contornos de ciber-terrorismo. Segundo a autora, os recursos informáticos dos sistemas vitais para o funcionamento do Estado, tais como a energia, água, transportes, telecomunicações, banca e finanças, serviços de saúde, instituições governamentais, encontram-se disponíveis na internet e a tomada de controlo desses serviços é hoje o alvo preferido dos ciberterroristas25. Isto porque ao acederem a estes sistemas e os bloquearem ou afectarem algumas das suas células, permite uma paralização das actividades que são imprescindíveis para o Estado, as sociedades ou empresas. 22 Cfr. José Manuel Freire Nogueira, Pensar a Segurança e Defesa, Ed. Cosmos, Lisboa, IDN, 2005, p.139. 23 Cfr. Dorothy E. Denning, Cyberterrorism – Testimony before the Special Oversight, Panel on Terrorism Committee on Armed Services U.S. House of Representatives, Georgetown University, May 23 2000, disponível em http://www. cs.georgetown.edu/~denning/infosec/cyberterror.html, consultado a 12/02/2010. 24 Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.58. 25 Cfr. Jean-François Mayer, Le cyberterrorisme – une nouvelle menace?, 26 de Setembro de 2002, disponível em http://www. terrorisme.net/info/2mm2/025_cyberterrorism.htm, cosultado a 12/02/2010. 220 CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA Nesta perspectiva, e com vista a submeter o adversário à vontade de quem procura estes fins, a utilização de ciberataques pode ser tão demolidora como os ataques armados26. A cibercriminalidade existe actualmente mas o ciberterrorismo ainda se apresenta como uma hipótese. Segundo Dorothy Denning, embora a probabilidade da ocorrência de um verdadeiro ataque ciberterrorista em larga escala não seja elevada, embora é, de todo, impossível. A autora considera que a ameaça ciberterrorista irá crescer devido ao desenvolvimento informático e tecnológico e que esta ameaça deve ser seriamente considerada. A título de exemplo, em 2009, foram registadas vinte e cinco milhões de novas ameaças, difundidas sobretudo através de redes sociais na Internet e, de acordo com um relatório da NetWitness, um mega ciberataque informático permitiu controlar setenta e quatro mil computadores em 196 países, tendo atingido 2.411 organizações entre as quais administrações federais e locais, empresas dos sectores bancário, tecnológico e energético, estabelecimentos de ensino, entre outras27. De acordo com o El País, as entidades governamentais e os serviços de inteligência espanhóis foram alvo de quarenta ataques informático graves no ano de 2009. Esta constatação e percepção da ameaça levaram Espanha a reforçar as defesas contra os ciberataques28. Até ao momento centrámo-nos num tipo de ciberterrorismo directo, que se centra no objecto, ou seja, cuja acção é aplicada directamente. Porém não podemos esquecer que o ciberterrorismo também pode ser entendido como visando uma acção indirecta, ou seja, centrado na conquista de seguidores ou mesmo na instrução por exemplo para o fabrico de bombas. A Internet facilita a comunicação entre os membros deste tipo de organizações que, estando dispersos, conseguem através desta via, transmitir rápida e facilmente missões e operações. Podem também usar este meio para recrutar novos combatentes e simpatizantes, para os incentivar e informar para e sobre os seus objectivos e missões. 26 Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem, p.56. 27 Cfr.Megaataqueatinge196países,inTDSNews,disponívelemhttp://www.xmp.com.pt/tdsnews/510.3256.0.0.1.0.phtml de 23.02.2010, consultado a 25/02/2010. 28 Cfr.ElPais,disponívelemhttp://www.elpais.com/articulo/reportajes/Espana/blanco/cuarenta/ciberataques/elpepusocdmg/ 20100124elpdmgrep_1/Tes de 24/01/2010, consultado a 22/02/2010. 221 SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS Estratégias de Combate Existem ineficiências no campo da prevenção e combate ao ciberterrorismo visto que, os ciberataques têm aumentado em número e gravidade nos últimos anos. Percebendo a vulnerabilidade e o risco da ameaça, todos os Estados e também a NATO estão a investir e desenvolver iniciativas nesta área. Através da criação de escolas e de centros de investigação, estão a ser preparados especialistas para enfrentar a ameaça. Como exemplo podemos referir, nos EUA, a preparação de especialistas nas escolas de formação de quadros das Forças Armadas, a criação de um Comando para a ciberguerra nos Pentágono e a criação de uma Agência para a cibersegurança na Casa Branca. Com uma visão de médio prazo, a National Security Agency tem vindo a desenvolver programas de information systems security (INFOSEC) estimados em três mil milhões de dólares. Também a NATO desenvolveu neste âmbito, um Centro de Excelência para as actividades de segurança no ciberespaço na Estónia e criou um Comando para a cibersegurança, o NATO Cyber Defence Management Authority (CDMA). Segundo o General Loureiro do Santos, em Portugal, as medidas de segurança do ciberespaço têm sido desenvolvidas pontual e sectorialmente, o que afecta a eficiência dos esforços, advogando que uma união destas iniciativas seria mais rentável. Têm sido desenvolvidos esforços pelas forças policiais, pelos serviços de informações, em algumas estruturas da administração pública e pelas Forças Armadas e, neste sentido, o país dispõe de alguns militares e civis que desenvolvem as suas actividades e estudos centrados na segurança ciberespacial e, também no sector privado, a preocupação levou ao investimento nesta área. A nível governamental, foi criado o Programa de Segurança Económica (PSE) do Serviço de Informações de Segurança (SIS), no âmbito do qual foram desenvolvidas medidas preventivas de sensibilização e alerta para que as organizações criem uma cultura de segurança. Por outro lado, ao nível das Forças Armadas existe experiência no tratamento e análise de informação relativa à Guerra de Informação. Nas palavras do Ministro Rui Pereira, “As novas tecnologias de informação e Comunicação assumem uma importância especial em duas 222 CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA valências: por um lado, a informática e as suas tecnologias modernas, em geral são importantes para os estados se defenderem, mas por outro, paradoxalmente, também são utilizados por terroristas para perpetrar atentados e ameaçar os Estados”29. Rui Pereira sublinha ainda que “a ordem jurídica portuguesa se tem preocupado com a criminalidade cometida através da informática. Tem previsto novos crimes, tem contemplado a responsabilidade não só das pessoas singulares, como, também, das pessoas colectivas”30. E é precisamente quanto a este ponto legal que a revista The Economist de 27 de Maio de 2007 se refere quando realça que “a questão real com que os países industrializados se confrontam é como criar uma textura legal que inclua a ciberagressão (...) como uma grave infracção ao que a lei impõe, por motivo de actos de terrorismo, do crime internacional organizador, ou de agressão contra um Estado”31. Do exposto, os Estados devem investir numa defesa preventiva, protegendo as suas infra-estruturas críticas de forma garantir uma boa resposta em caso de ciberataque, criar legislação eficiente e continuar a formação de especialistas na área. Para protecção dos sistemas críticos, Lukasik, Goodman e Longhurst propõem o seguinte modelo cíclico32: 1. Prevenir o ataque ao sistema; 2. Em caso de ataque com sucesso, tentar esquivar-se aos propósitos do atacante; 3. Se forem infligidos danos, proceder à limitação dos mesmos; 4. Após o sofrimento de danos, proceder à reconstrução do sistema; 5. Aprender com o ataque, melhorando o sistema de prevenção. 29 Cfr. entrevista a Rui Pereira, MAI, a 13.09.2007, in TDS News – Newsletter de inteligência económica das tecnologias de defesa e segurança, disponível em http://xmp.com.pt/tdnews/aid=578.phtml, consultado a 15/02/2010. 30 Cfr. Idem. 31 Cfr. “Cyberwarfare is becoming scarier” in The Economist, disponível em http://www.economist.com/world/international/ displaystory.cfm?story_id=9228757 , consultado a 18/02/2010. 32 Cfr. Stephen J. Lukasik, Seymor Goodman, David W. Longhurst, “Protecting Critical Infrastructures Against CyberAttack”, in Adelphi Paper # 359, Institute for International Strategic Studies, 2003, p.16. 223 SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS Por outro lado, será importante a sensibilização das organizações e dos utilizadores do sistema, para a criação de uma cultura de segurança, para que a falha humana seja evitada ao máximo. As organizações e os utilizadores deverão evitar a falha e proliferação de informação dos seus dados organizacionais e pessoais, bem como ter atenção para não instalarem software não previamente assinado. Considerações Finais A globalização permitiu a emergência de um novo ambiente operacional, deu importância a novos actores e novas ameaças que implicam novos desafios à segurança exigindo novas respostas. Em conclusão, o ciberterrorimo é uma forma mais económica de obtenção dos fins e o material a que recorre é legal e acessível. É executado de forma anónima e conduzido remotamente, sendo que o número de alvos possíveis é muito vasto, bem como o número de pessoas que podem ser atingidas. Aparentemente, as exigências para a opção ciberterrorista são apenas a necessidade de formação informática dos seus membros ou a captação de hackers para as suas organizações. Como refere o General Loureiro dos Santos, “ao mesmo tempo que o ciberespaço se tornou indispensável nas sociedades modernas, ele transformou-se numa das suas maiores vulnerabilidaddes actuais”33. Acresce o facto do “elevado grau de incapacidade de previsão dos serviços de informação quanto à ocorrência de ataques aos sistemas informáticos, de incerteza quanto aos efeitos produzidos e da real impossibilidade de resposta em tempo útil por parte das autoridades”34. Compreendendo que “o ciberterrorismo é, neste momento, uma das ameaças mais complexas que impende sobre o mundo ocidental”35, a defesa da informação passou, e adivinha-se que passará ainda mais a ser, uma acção 33 Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.302. 34 Cfr. Pedro Borges Graça, A ameaça do ciber-terrorismo, in Informações Estratégicas, Jornal de Negócios, 22 de Junho de 2007. 35 Cfr. Idem, ibidem. 224 CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA estratégica. Neste sentido, dada a dependência dos sistemas de informação, os Estados já apostam numa postura mais pró-activa nesta defesa e adivinha-se que apostem cada vez mais no controlo e domínio do ciberespaço. Como refere John Chipman, director do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), o conflito entre Estados pode vir a ser caracterizado pelo uso de técnicas assimétricas, destacando a internet e a guerra cibernética como forma de abalar e lesar as infraestruturas e informações de um país, alertando que alguns países estão a apostar nesta estratégia dado o anonimato dos ataques e a falta de regulamentação internacional nesta temática36. 36 Cfr. TDS News, Ciberguerra comparável a ameaça nuclear, disponível em http://www.xmp.com.pt/tdsnews/ 507.3265.0.0.1.0.phtml de 23.02.2010, consultado a 24/02/2010. 225 SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS Bibliografia 1. Monografias e Artigos em Livros, Revistas Científicas ou Enciclopédias Castells, Manuel, A Galáxia Internet, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001; Borges, João Vieira, “O Terrorismo Transnacional e a Estratégia” in Terrorismo: razões da ausência de um conceito comum, IDN, Newsletter de Abril de 2006; Graça, Pedro Borges, “A ameaça do ciber-terrorismo”, in Informações Estratégicas, Jornal de Negócios, 22 de Junho de 2007; Laqueur, Walter, No End to War: Terrorism in the 21st Century, NY & London, Continuum, 2003; Lara, António de Sousa Lara, Ciência Política – Estudo da Ordem e da Subversão, ISCSP, Lisboa, 2005; Lukasik, Stephen J., Goodman, Seymor, Longhurst, David W., “Protecting Critical Infrastructures Against Cyber-Attack”, in Adelphi Paper # 359, Institute for International Strategic Studies, 2003; Martins, José Carlos Lourenço, A internet como factor de transformação social e das relações de poder, Pós-Graduação em Guerra de Informação e Competitive Intelligence, Academia Militar, Lisboa, Fev.2006; Moreira, Adriano, “Poder Funcional e Poder Errático”, in Nação e Defesa, Lisboa, Instituto de Defesa Nacional, nº12, 1979; e idem, Ciência Política, Lisboa, Bertrand, 1979; Moreira, Adriano, Teoria das Relações Internacionais, 3.ª Edição, Coimbra, Almedina, 1999; Moreira, Adriano, Terrorismo, coord. de Adriano Moreira, 2ª ed., Setembro 2004, Almedina; Moreira, Carlos Diogo, Planeamento e Estratégias de Investigação Social, Lisboa, ISCSP, 1994; Nogueira, José Manuel Freire, Pensar a Segurança e Defesa, Ed. Cosmos, Lisboa, IDN, 2005; Pollitt, Mark, “Cyberterrorism: Fact or Fancy?” in Proceedings of the 20th National Information Systems Security Conference, 1997. Santos, José Loureiro dos, Convulsões, Ano II da “Guerra” ao Terrrorismo, Reflexões sobre Estratégia IV, 2ª ed, Publicações Europa-América, 2004; Santos, José Loureiro dos, As guerras que já aí estão e as que nos esperam se os políticos não mudarem, Reflexões sobre Estratégia VI, Publicações Europa-América, 2009; 226 CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA 2. Artigos Publicados em Websites e Sites Consultados na Internet Posição comum do Conselho, de 27 de Dezembro de 2001, sobre o combate ao terrorismo, Jornal Oficial nºL 344 de 28/12/2001, disponível em http://eur-lex.europa. eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2001:344:0093:0096:PT:PDF ; RAND Corporation, “The New Age of Terrorism”, disponível em http://www.rand. org/pubs/reprints/2006/RAND_RP1215.pdf., Dorothy E. Denning, Cyberterrorism – Testimony before the Special Oversight, Panel on Terrorism Committee on Armed Services U.S. House of Representatives, Georgetown University, May 23 2000, disponível em http://www.cs.georgetown.edu/~denning/infosec/cyberterror.html; Jean-François Mayer, Le cyberterrorisme – une nouvelle menace?, 26 de Setembro de 2002, disponível em http://www.terrorisme.net/info/2mm2/025_cyberterrorism.htm Mega ataque atinge 196 países, in TDS News, disponível em http://www.xmp.com.pt/ tdsnews/510.3256.0.0.1.0.phtml de 23.02.2010 ElPais, http://www.elpais.com/articulo/reportajes/Espana/blanco/cuarenta/ciberataques/elpepusocdmg/20100124elpdmgrep_1/Tes de 24/01/2010 “Cyberwarfare is becoming scarier” in The Economist, disponível em http://www.economist.com/world/international/displaystory.cfm?story_id=9228757; Entrevista a Rui Pereira, MAI, a 13.09.2007, in TDS News – Newsletter de inteligência económica das tecnologias de defesa e segurança, disponível em http://xmp.com. pt/tdnews/aid=578.phtml; Ciberguerra comparável a ameaça nuclear, in TDS News, disponível em http://www. xmp.com.pt/tdsnews/507.3265.0.0.1.0.phtml de 23.02.2010; 227 CULTURA Carta Aberta à Senhora Ministra da Cultura Fernando Mora Ramos Exma. Senhora Ministra Gabriela Canavilhas, Em encontro recente a coreógrafa Graça Bessa teve a gentileza de me dizer que numa audiência que Vossa Excelência lhe concedeu se terá referido que sendo signatário, enquanto companhia, dos documentos da chamada Plataforma do Teatro – creio que uma estrutura informal – apoiaria uma posição sobre as subvenções ao teatro e as modalidades respectivas defendida por tal Plataforma que se traduziria na ideia primária e antidemocrática de que todas as companhias de teatro deveriam estar nas mesmas condições de partida nos chamados concursos, o que não corresponde à verdade, pois a nossa participação – Teatro da Rainha – no protesto foi apenas contra os cortes de financiamento anunciados, sabendo-se aliás, por estar publicado e amplamente divulgado (em Livro, no Monde Diplomatique, no jornal Público, na Revista de Eduardo Lourenço, Finisterra, na Revista Adágio, etc., e em inúmeros documentos de trabalho nos últimos trinta anos) o que defendemos. Em primeiro lugar, sou contra os concursos, isto é, penso que são inúteis e que haveria formas mais profundas, e sérias, de determinar o que é teatro do sector público e o que não é, o que são estruturas de criação e o que não são, o que deve ser subvencionado regularmente e o que não deve ser por não ser arte, o que é estável e construtor da democracia e o que é pontual ou tão só barulho das luzes, como se diz, o que é teatro e o que é espectáculo – de algum modo parafraseando Jean Jourdheuil quando afirma que o teatro é grego e o espectáculo é romano. Sou contra esta inaceitável continuação na pós-modernidade da política do circo e do pão, sabendo-se agora que o que mais se come é mesmo comida visiva ou mental, se preferir, e que o pão metafórico, e literal, do apotegma implícito, desde que o fast food impera, é ele próprio também apenas circo. Todos sabemos que os Centros Dramáticos em Espanha e França são estruturas estáveis cujas equipas o Ministério e as Regiões escolhem, que na Alemanha 229 CARTA ABERTA À SENHORA MINISTRA DA CULTURA os Teatros de Estado são Teatros Nacionais em todos os Estados Regionais e que todas as cidades têm teatros públicos e mais que um – Pina Bausch estava em Wuppertal e dirigia um Teatro Público. Assim é na Inglaterra, na Holanda, na Finlândia, etc. É simples de perceber que estes países consideram o TEATRO uma parte da democracia, uma parte orgânica. Sem ela a democracia estaria incompleta, como estaria sem o Parlamento – que cobre todas as regiões – ou sem os Tribunais – que também cobrem todas as regiões, ou mesmo sem as Escolas e Hospitais que obviamente são estruturas nacionais. Não é por acaso que o fim de parte da rede escolar, lá onde no interior se diz que não se justifica por razões demográficas, dá o brado que tem dado e não é certo, de facto, que as recentes medidas tomadas não sejam a favor da desertificação. O problema é claro: a Constituição diz que as populações e os cidadãos em geral devem aceder à arte e à cultura. O que se pode fazer por duas vias, pela via da aprendizagem da criação e pela via da capacidade de ler as linguagens das artes, pela via do vir a ser artista e pela via da escola do espectador. Ora, em democracia, isso significa que o Estado deve criar as estruturas de materialização destes princípios (a Constituição democrática é de 1976 e estamos longe de praticar o que enuncia) e que estas estruturas devem cobrir o território como instrumento de desenvolvimento (de qualificação, de crescimento “interior”, subjectivo e colectivo, dos portugueses) generalizado. Assim sendo, devem cobrir o território geográfica e demograficamente. Lá onde o interior é pobre e desertificado devem ser instrumento de combate da desertificação e lá onde a demografia é massiva e a barbárie a norma (e estamos a falar das dificuldades conhecidas da educação nas periferias) instrumentos de combate das novas formas de analfabetismo e violência social. Esta deve ser a posição do Estado e aos governos cumpre levar adiante o que a Constituição afirma e que é democraticamente ainda futuro por vir, UM dado FUTURO. O que não significa que os artistas não desenvolvam nestas organizações programas artisticamente autónomos e que deva imperar uma qualquer homogeneização programática e estética, submetida a objectivos sociais – os artistas cumprem objectivos sociais e culturais realizando projectos artísticos, a arte não é pedagógica por ser pedagogia mas por ser arte. Há, no entanto, formas diversas de materializar princípios a que todos devem estar obrigados, por exemplo uma postura anti nazi. Por outro lado, sabemos que em cada região há solicitações e imperativos de acção, diferenciados. Obviamente 230 FERNANDO MORA RAMOS que os artistas, sendo artistas e as equipas de criação sendo equipas, devem submeter os seus projectos a um debate aberto com os espectadores, nos locais de implantação e estes devem ser objecto de uma negociação e contratualização com os governos, caso a caso, verificando-se o seu acordo com os princípios do Estado democrático e o potencial artístico da sua incidência social/cultural – não há projecto artístico que se possa remeter para a insociabilidade ou para a inutilidade social por “razões artísticas”. E tudo isto se mede, em números por certo, mas fundamentalmente em dinâmica real, em movimento comunitário nos ambientes de inserção, em transformação cultural. São estes, os processos abertos da negociação e do debate, formas complementares, uma profissional e técnica, a outra política e democrática, sendo simultaneamente formas do “controle”, isto é, formas de avaliação constantes e formas de animação dos programas nas comunidades de destinatários. Em síntese: isso significaria um estudo do país cultural feito com os melhores pensadores culturais, pessoas competentes fora das lides partidárias, sem interesses envolvidos e promover a criação, no plano das regiões diferenciadas – há quem defenda 10, outros defendem 5 ou 6 – de estruturas de acção teatral globalmente capazes de exercer as diversas componentes do todo teatral, com responsabilidades de intervenção nas áreas de implantação e no território nacional, lusófono, europeu e global. Não estou a defender UMA estrutura por região, as formas podem ser várias e diferentes, elas próprias descentralizadas e complementares, é uma questão de inteligência e racionalidade. Defendo que se perceba o que é a região e que se dê uma resposta racional articulando o existente com o que é necessário inventar. E há muito por inventar porque o existente é absurdamente lacunar e em muitos casos gangrenado. Assim poderíamos falar de FUTURO. Não há alternativa a este desenho que seja interessante, útil e democrática. Este é um desenho com prova histórica em termos europeus e corresponde ao modelo matricial da democracia, de que o teatro fez parte com o Parlamento e os Tribunais. Por estranho que pareça ainda há nessa forma grega um valor prospectivo, sendo verdade que a nossa democracia é, neste aspecto das artes, um simulacro. Hoje em dia, o projecto de um Serviço Nacional de Cultura, nas condições portuguesas, por contágio com a expressão Serviço Nacional de Saúde, não seria mal pensado, já que o nosso atraso é enorme e a situação actual de verdadeiro coma, a desqualificação dos portugueses um mal 231 CARTA ABERTA À SENHORA MINISTRA DA CULTURA geral – mesmo os licenciados, e os de últimas levas por certo, são analfabetos culturalmente, dominando mal a língua mãe e por isso tendo limitações de potência de pensar, como diria Agamben. A este modelo corresponderia um mecanismo concursivo quase residual visto que o essencial estaria garantido e os concursos corresponderiam apenas ao emergente, àquele território em que se situam os que chegam de novo – repare Vossa Excelência que falo de projectos e não de jovens. Este território seria um território alimentar de toda a estrutura base e, eventualmente, o espaço emergente de gestação de equipas que pudessem vir a responsabilizar-se pelos programas dos teatros públicos, sendo que estes teriam obviamente equipas com contratos a tempo definido, com mandatos predeterminados temporalmente – no máximo três de 3/4 anos. Este esquema de articulação entre teatros públicos e privados – é este o nome, embora muitas companhias, na actualidade, fazendo Serviço Público substituam o Teatro Público inexistente – traria muita estabilidade ao sistema e pouca turbulência catártico/dramática em períodos de concurso, esse actual totobola de ansiedades e promiscuidade. Nada mais democrático nem mais dinâmico. Quem não quisesse entrar neste esquema teria então de ir a concurso, mas de ir a concurso numa parte da estruturação da democracia teatral que não seria da responsabilidade do Estado democrático como orgânica, mas consequência das liberdades civis e portanto da responsabilidade da liberdade individual e colectiva, o que, portanto, não obrigaria o Estado a qualquer sustentação financeira de tipo integral. Esta é a proposta EUROPEIA. O resto são discussões informais infundadas, sem base teórica fundada, sem modelo, pura especulação, conversa interminável a que temos assistido vai para mais de 35 anos. Para que fique claro gostaria de referir porque penso, por outro lado, que os concursos são uma forma de apoio antidemocrática e clientelar. Direi porquê: 1. Os Júris são um conjunto de personalidades reunido aleatoriamente, nomeadas de forma discricionária e que, como conjunto, não são uma equipa, não tendo história nem capacidade de aprofundar a matéria que têm de julgar, não a conhecendo sequer, reconhecendo-a apenas nos formulários, sendo à partida um absurdo a sua existência – só de forma continuada se podem exercer funções que implicam estudo e conhecimento 232 FERNANDO MORA RAMOS de projectos que, em muitos casos, têm décadas e que implicam matérias tão complexas como a análise de autores, textos, elencos, formas dramáticas e espectaculares, espaços, arquitecturas, linguagens de cena, isto é actividade real no terreno e principalmente a adequação de tudo isso como projecto coerente a uma dada comunidade de destinatários na perspectiva de uma qualificação cultural dessas comunidades e de um aprofundamento das possibilidades de respiração democrática e da liberdade, a qualificar esteticamente. 2. Em muitos casos – tem acontecido com frequência – as decisões dos Júris são decisões de parte do meio teatral contra outras partes do meio teatral e aconteceu já que membros dos Júris tivessem atribuído dinheiros a projectos em que estavam envolvidos mesmo que fosse indirectamente. Em muitos casos a promiscuidade foi provada e explícita, como muitos evidenciaram em protestos sucessivos sob forma escrita, protestos que caíram no saco roto da irresponsabilidade continuada de diversos serviços, que não reagem sequer ao protesto cidadão numa vulgar política de avestruz. 3. Eles, os Júris, são um álibi para a fuga do Estado às responsabilidades e só fariam sentido para uma parte residual do sistema, depois da parte estabilizada dar forma à democracia na organização teatral. É um esquema que não tem prospectiva nem dinâmica possível e que está montado para produzir o MESMO, a mesma situação bloqueada, o mesmo atraso, a regressão na continuidade, agora adaptada a novas formas de iliteracia convergente, entre o que o Estado promove, as escolas praticam e muito analfabeto/artista desenvolve. 4. Julgar projectos e programas teatrais tendo em consideração apenas papéis, é como teorizar sobre gastronomia sem fazer nenhum tipo de prova física de paladares. Na realidade os Júris são como uma espécie de bloco de censores que aprova uns tantos que conhece, que conhece mal outros pois não viu os espectáculos ou nem sequer viu nenhum, não conhece os elencos, desconhece as condições técnicas de trabalho artístico, as espaciais, a história anterior, etc., e que distribui, mais ao menos num registo de reprodução do statu quo vigente – seria desejável um statu quo de lógica constitucional como acima se defendeu – uns dinheiros que previamente estavam destinados a essa reprodução do sistema incongruente que existe. Os Serviços, hoje em dia, desmontados e a agir sem memória, estão lá para 233 CARTA ABERTA À SENHORA MINISTRA DA CULTURA cumprir esse mínimo reprodutor, como peça de uma mecânica indiscutível e fechada. 5. Resta dizer que julgar os papéis nos formulários impostos, como se fossem um suposto exame de competência informática e de gestão económica releva do princípio de acção mais burocrático e autoritário que existe, já que em nenhuma circunstância encontramos, do outro lado, um rosto e muito menos alguém responsável para esclarecer o que quer que seja, mesmo que fosse apenas responder informando disfunções constantes ou, num outro plano, dando a cara pelas panes e atrasos. Está aliás provado que a informática não tem simplificado a burocracia do Estado, pelo contrário. O que tem sido estudado e confirmado por especialistas. E que este mecanismo, o dos suportes informáticos, tal como tem sido usado, para além de introduzir comportamentos de incompetência constantes e uma distância conveniente do poder para com os candidatos é, como se sabe, o negócio de inúmeras empresas ligadas aos aparelhos partidários, cujos dinheiros poderiam servir a organização da competência dos serviços e os próprios serviços já que, ao contrários dessas empresas de fora, os Serviços têm estes problemas como objectivo, é para isso que existem e não para produzir lucro. Poderia continuar a evocar outras disfunções do sistema e outros males profundos de natureza ética e ético/estética mas a carta vai longa e creio que suficientemente clara no que ataca e defende, explicitando um caminho, o caminho europeu necessário. Entenda Vossa Excelência este “papel” como uma contribuição para a mudança necessária. Se assim for sentir-me-ei de alguma maneira útil. A bem do país e da cultura, O Director Fernando Mora Ramos Caldas da Rainha, 30 de Agosto de 2010 234 Ecos de um Perpétuo Desvanecimento João Soares Santos «Je me perds dans ma pensée en vérité comme on rêve.» Antonin Artaud «O actor deve ser como um pintor que pensou meticulosamente todos os detalhes da sua pintura e tem uma mão tão firme e segura que a execução da pintura nada mais exige dele que a aplicação mecânica de várias camadas de tinta.» Stanisław Ignacy Witkiewicz 1. O teatro, a dança e actividades concernentes só podem ser entendidas num enquadramento cultural específico, sujeito a mutações e que se cruza com espaços de saber e comportamentos aprendidos mais amplos. Estudar estas artes implica uma reflexão sobre os sistemas de pensamento daqueles nelas envolvidos. A actividade mental não pode ser desprendida da vida. As elaborações do raciocínio são extensões e projecções dessa experiência do indivíduo se perpetuar no tempo. Qualquer penetração intelectual séria no quadro das artes cénicas da Ásia, na inteligência dos seus discursos, na sua inscrição contextual, nas órbitas que definem a sua singularidade, devolve-nos sempre, com maior ou menor impacto, os trâmites conceptuais da cultura de referência do investigador. A consciência dos modelos de conhecimento e cambiantes de usufruto do Outro, obriga a reflectir sobre o modo como somos e como a nossa subjectividade apreende e lida com a diferença. A arte enaltece o Homem pelas suas qualidades distintivas, pelo modo especial, particular ou extraordinário de criar ou de considerar algo. Da tentativa de decifrar a multidimensionalidade de aspectos e campos de significação das artes da Ásia, emergem interrogações sobre as aprendizagens de quem as estuda, sobre os condicionamentos de inteligibilização com os quais está familiarizado, sobre como se tem percebido e explicado essas alteridades diversas. Pela arte o homem evidencia os seus anseios, os movimentos da sua identidade, as suas aptidões e destrezas na utilização dos recursos cognitivos e materiais. Num texto o Homem demonstra como a voz do seu raciocínio apreende e avalia um assunto. A sua ousadia e minúcia interpretativa permitem igualmente reconhecer as latitudes e restrições das suas capacidades intelectuais, da sua individualidade culturalmente modelada. O texto escrito é uma notação, uma fixação gráfica, uma combinação expressiva de 235 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO vocábulos através dos quais assoma ou transparece uma certa veracidade humana. A leitura depreende uma escuta interior. Do pormenor ou da ideia vão nascendo os elementos construtivos da sua compacidade. Deles surge a proposta, o motivo da concertação e perspicácia do discurso a elaborar e uma crescente complexificação e amplitude do assunto. As linhas sinuosas da exposição verbal vão gradualmente deixando um rasto de pistas, de elos e de complementaridades. Ao longo dela vão-se repercutindo conteúdos, recuperando motes, acrescentando intensidades, inserindo noções, insinuando e articulando afinidades e contrastes, destacando peculiaridades, apontando ou seguindo outras direcções. Por vezes a nitidez torna-se difusa e o nebuloso dissolve-se em clareza. Perante as coreografias e dramatizações a que nos referimos, bem como as suas cintilações e ressonâncias, não podemos cair na contingência da exposição literal, da formalização disciplinadamente objectiva. Estas artes não podem admitir uma dispersão preguiçosa no meramente tangível, numa verbalização límpida e regular capaz de prescindir da convulsão, do desvio, do misterioso, do hiato ou do precipício. Elas arrastam quem as estuda para uma saída dos limites, para as margens da racionalidade, para a desfocagem sublime. O prazer de praticar, de desfrutar ou de analisar estas artes implica um desejo de aperfeiçoamento, de superação. Elas testemunham a integralidade do conhecimento humano, o prazer de contemplar e de procurar o ínfimo e o infinito da realidade. Estas artes são o pretexto para um voo paciente sobre a natureza humana, sobre os comportamentos e os substratos. Uma deslocação que, nada pretendendo excluir, conduz e detém-nos sempre em novos pontos de partida e a uma vontade de recomeço e de avanço. O acessível é uma matriz para o transcendente. O visível não é apenas aparência. A morfologia exige que observemos a sua ausência. Por isso o tema inicial parece expandir-se para uma integralidade osmótica, para uma ubiquidade cheia de refulgências, para uma inefabilidade que é própria daquilo que é profundo e universal. A forma sugere o informal. O sonho de um poeta só mais plenamente pode ser sentido e entendido se o destinatário for também alguém com o dom de devanear. Tentar compreender as artes significa pois uma imersão nos mecanismos e no exercício do razoar pessoal e colectivo. O inebriamento que causam eleva-nos da lembrança ontológica, extraem-nos de uma vida em que fomos colocados mas que muitas vezes não é sentida como nossa. Os seus instantes 236 JOÃO SOARES SANTOS de usufruto transportam o esquecimento dos problemas e defeitos. Uma antiga história indiana relata como apareceu a arte dramática. Certa vez, os deuses assistiam no firmamento a uma peça intitulada «A Escolha de Casamento de Lakshmi» («Lakshmisvayamvara») na qual, dançando e cantando maravilhosamente, Urvashi interpretava o papel de consorte de Vishnu. Concentrada no seu desempenho, a uma dada altura, a Apsara, como que encarnada pela personagem, numa divagação poética sobre o seu amado, atrapalhou-se no diálogo. Indra, com um semblante severo, irritado pela interrupção, puniu-a com o exílio na terra. Este castigo infligido a Urvashi permitiu que a arte teatral fosse divulgada e conservada entre os humanos1. Instruídos na arte coreográfica e da representação dramática, eles passaram a experimentar um enlevo que inicialmente só era da exclusividade dos deuses. Adquiriram esta informação para assim poderem trazer e interagir com as divindades na terra. Os humanos engrandeceram-se com a evanescência proporcionada pela dança. Na Índia, o seu desígnio é guiar as disposições mentais ao ponto de atingir a «essência», o «deleite», o «sumo», a «seiva» (Rasa). Quer o intérprete quer o espectador podem saborear essa emancipação, essa perda de laços com a ilusória realidade. Ultrapassam-na em absoluto e encontram uma superlativa beatitude, uma genuinidade sem vestígios mundanos, sem apegos, um vácuo do sensório e do intelectual, uma indefinição dos filamentos que os ligam às coisas exteriores. Os balineses crêem que os seus corpos concentram uma pujança sobrenatural (Sakti) apta a os robustecer e a garantir incolumidade face aos acometimentos de forças perniciosas. Estas procuram as debilidades advindas das vicissitudes pessoais para causar danos. Alguns possuem a capacidade de agregar mais Sakti que outros. Os que acogulam mais dessa energia são os mais dotados e hábeis para exercer a actividade sacerdotal ou artística. Esta magnitude é sentida ou transmitida a quem lhes serve de destinatário. A autoridade e reputação de um marionetista (Dalang) dependem do grau de Sakti presente em si. A sua perícia e subtileza assumem a responsabilidade de ser algo mais do que é comum ou normal. A realidade deve apagar-se na arte. O que ocorre em cena não pode ser igual ao que se passa no mundo do espectador. Na Índia, o bailarino ou bailarina devem estar absortos naquilo que estão a elaborar e a evocar, devem ter a atenção a convergir para dentro, ignorando o que lhes é externo. Devem estar ocupados pela força da sua arte 237 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO quase ou como num êxtase de fusão, como se deixassem de ser, abdicassem de si mesmos para que a arte possa nascer e deslumbrar, para que as suas verdades íntimas sejam uma verdade sublime. Poderá então quem estuda comportamentos deste teor plenamente alcançá-los e traduzi-los pela escrita? Poderá ela com fidelidade evidenciar as gradações do estético, do artístico ou do religioso? Pode o signo linguístico do investigador transmitir essas provações, elucidar sem intermitências a participação do indivíduo nestes enredamentos únicos ou especiais, manifestar com inteira certeza os dados essenciais do funcionamento mental? As palavras restringem a realidade a um simulacro. São o artifício possível que almeja ser credível. Instauram um âmbito relativo para a ausência do que procuram cingir e designar. Não sendo o que versam ou o que as inspira, não sendo o nome a coisa nomeada, o discurso substitui aquilo que o motiva a existir como tal. O que sai é uma transformação do que entra. Uma análise nunca exprime completamente a natureza do motivo que a origina. É enganoso julgar conseguir comunicar com objectividade a experiência de um bailarino em cena. Como expressar adequadamente o que não é igual ao que vulgarmente acontece neste mundo senão ousando uma aproximação poética, senão desafiando as musas, senão tentando levar o leitor para um domínio celeste? A perscruta de um assunto tão abrangente não se pode satisfazer com uma finitude conclusiva ou com a contingência objectivada da linguagem que a veicula. O fascínio causado por um tema com esta abrangência obriga a que o seu minucioso averiguar se retarde para manter intacta a quididade daquilo que suscitou o interesse e a vontade de imbuição e transporte. O estudo encadeia nexos, ramificações e ressonâncias mas não permite que o assunto se esgote, que a perplexidade se extinga. O texto firma uma conivência entre o autor e o destinatário. O leitor partilha pela imaginação aquilo que este lhe vai emitindo, aquilo que despertou a sua admiração e entrega. Para dignificar este enleio do autor e o seu compromisso com o receptor, o material escrito tem de ser algo mais que o prosaico concreto dos próprios vocábulos e os conteúdos em questão, mais do que a mera diligência de obter um desfecho. O autor exigente adia mas não subtrai, espera algo mais do que o trivial necessário ou razoável. Na tangibilidade faz fulgurar o esplendor da abstracção, no poético engendra a lucidez que a incidência comum não consegue. 238 JOÃO SOARES SANTOS A exposição verbal que reflecte sobre a arte, a sua filosofia, conjunto de valores e práticas, não pode deixar de se dirigir às representações do mundo e, por isso, às operações cognitivas e discursivas. Se a arte introduz o numinoso num quotidiano utilitarista, um texto que a pondera não pode contentar-se com um espaço de literalidade, não pode dispensar o efeito afectivo, não pode deixar de se atrever a ir até às orlas, entrando na dimensão última ou recôndita da expressão linguística, no estímulo à sensibilidade e emoção, na sabedoria poética. 2. Encobrindo-se e revelando-se na personagem, o actor, bailarino ou marionetista entra no mundo, explora e inquire as qualidades humanas, veicula e experimenta com os seus conhecimentos a natureza daquilo que representa. Alterado, age muitas vezes de um modo quase mecânico, sem pensar conscientemente no que patenteia, desempenha o seu papel como um autómato, algo que se move por si mesmo, convencendo-se ou dando a impressão de não se aperceber do que está a fazer. Guiado e dirigido por um vento que por ele passa e impele, procede quase involuntariamente, como se estivesse absorto num sonho da sua pessoa. O acto de criar foi muitas vezes comparado a uma instigação extasiante, a um estado mental de inebriamento que supera as tangibilidades do que é comum. Na inspiração artística o indivíduo costuma ser descrito como invadido por uma espécie de demência, por uma repentina exaltação que o modifica, permitindo tornar perceptíveis dimensões que não parecem pertencer à sua identidade, que transcendem a sua condição habitual. Na arte teatral e coreográfica as condutas humanas e as suas tensões são problematizadas numa ambitude filosófica, psicológica e religiosa. Muitos géneros asiáticos tradicionais estão enquadrados por festividades nas quais são invocadas entidades sobrenaturais, servem de lenimento para quem assiste ou como abonação para preservar a saúde, garantir a prosperidade, a fertilidade e repelir influências causadoras de desgraça. Na «Arte do Marionetista», Pak Jaya, referindo-se ao Wayang javanês, afirmou que as figuras simbolizam o mundo dos homens, o marionetista (Dalang), emblematizando a verdade e o sentido, é o espírito dos mesmos. O ecrã é o mundo invisível superior sobre o qual se movimentam as personagens recortadas em couro. A lâmpada pendente exprime o irradiar da força omnipotente do ente supremo. O público receptor é o homem sábio 239 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO que almeja tudo compreender. A arca onde estão guardadas as marionetas de sombra é o sepulcro, o lugar em que todos os papéis cessam, o lugar de regresso à inércia, o fim inevitável de todas as coisas e seres, a união derradeira com a causa que as gerou e deu alento.2 A noção de temporalidade está intrinsecamente ligada à actividade teatral. O que acontece em cena surge num fluxo cronológico, numa desaparição sucessiva de instantes dramáticos da trama que se desenrola, numa espécie de interrupção mítica ou onírica do real mundano. Troços encadeados de sons e de visualidades concretas aparentam ser suportadas por uma continuidade legitimadora não restringida a esse real, por uma prevalência excluída das mutabilidades empíricas da acção. O teatro estende as suas particularidades na consciência de lapsos progressivos, advertindo para um fundamento intemporal, remetendo para uma substância essencial para além daquilo que tem princípio e fim. Há um tempo finito que decorre num tempo perene. Os momentos de real, de causa e efeito, processam-se nos intervalos de uma permanência eterna, de uma inerência nebulosa coordenadora que reduz o real e as suas transitoriedades a uma ilusão de passado, presente e futuro. Vyasa, comentando Patanjali, realçou que a noção de tempo (Kala) implica as próprias operações intelectivas, sendo a consequência das modificações do pensamento e, por isso, uma elaboração germinada por uma mente em constante mutabilidade. O teatro versa sobre as vicissitudes da existência e, nela, cada instante que acaba é o começo de outro, precipitando os seres numa morte certa. O que é novo está sempre a tornar-se velho. Gradualmente tudo se transforma, nada persiste tal como era antes. O indivíduo sabe que a sua inaptidão para contrariar o efeito do tempo traduz a sua vulnerabilidade. Do nascimento à morte, sabe que tem uma duração restrita na duração mais ampla da humanidade. A memória conserva, localiza e associa registos passados. Necessitando dela, o raciocínio, ao encadear as suas operações, testemunha só por si essa temporalidade. Com vários planos e matizes subjaz a todas as artes, como ingrediente estético, a ideia de prolongamento, de antes e de depois, de fracções periódicas conjugadas com a mudança. Nas artes cénicas da Ásia quando as divindades ou figuras míticas de épocas recuadas são ritualmente convocadas, quando se apresentam à audiência e ocupam o corpo de actores, marionetas, manipuladores ou narradores, instauram um ambiente propício para as leis vulgares do espaço e do tempo serem abolidas. 240 JOÃO SOARES SANTOS O poema dialogado «Yogavasishtha Ramayana» equipara este último a um actor que entra e sai de cena para interpretar o seu papel numa intriga. Nestas artes a acção envolve um pretérito que coincide com um agora. Gera-se um interregno no qual uma antecedência se actualiza e projecta no futuro. Há uma dilação suspensiva da brevidade linear do tempo, uma indefinição que imobiliza ou sustém o seu ritmo. Pelos instantes que transitam seguimos no rumo do perecimento. As artes dramáticas, coreográficas e musicais fixam a atenção e aliviam o espectador daquilo que é imprevisível e constante. Concentrado nelas, ele olvida para se deixar arrebatar. Ficando fora de si, o seu encanto e abalo emocional abre um lapso de desprendimento mental. Durante o enleio causado pela arte, o tempo retarda o seu curso, priva-o da sua volatilidade. Nessa pausa, figuras míticas, antepassados, heróis e potestades reúnem-se com os intérpretes e o público. Em Kelantan, o Dalang antes de começar a sua representação é apossado pelo esquecimento (Lupa). O vocábulo depreende o sânscrito «Lopa» que significa «perda», «desaparição», «interrupção», «ausência», «quebra» e, nesta região da Malásia, corresponde a um intervalo de transe, de extravio da consciência habitual, para assim estabelecer contacto com o predecessor da sua linhagem, identificado com o protagonista da narrativa, o príncipe Ino. Sendo ocupado por esta figura e deixando-a agir e falar com o seu corpo durante horas, por várias noites consecutivas, posteriormente afirma não se recordar de nada. Tudo o que aconteceu não foi num lapso da realidade empírica comum mas num tempo primordial, de omissão mnésica, no qual as relatividades se apagam. O tempo variável da intriga e de apreensão parecem fundir-se numa simultaneidade intransitiva.3 No Japão os conceitos estéticos estão imbuídos da sugestão de existência mutável, um antes e um depois que se repercute numa vontade de evo. O actor de Nô frequentemente personifica alguém falecido que aparece para rememorar o seu percurso na vida. A sua presença em palco evoca uma dimensão excluída da materialidade cronológica usual, procurando abarcar as camadas mais inefáveis da compreensão do destinatário. Zeami (1363-1443) referiu que os espectadores de Nô por vezes sentem aprazimento quando ficam perante momentos de imobilidade da figura dramática, insinuando estes, talvez, uma perpetuidade para a além dos gestos e que resultam da pujança espiritual inata do mesmo.4 241 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO A «Narrativa dos Heike» («Heike Monogatari»), escrita entre 1202 e 1221, obra muito adaptada para peças de teatro Nô, principia com uma alusão ao transcurso do tempo e à mudança concernente. «O som do sino do templo (Shôja) de Gion ecoa a inconstância de todas as coisas. A pálida tonalidade das flores da teca revela a verdade de que aqueles que prosperam irão declinar. Como um sonho numa noite de Primavera, os orgulhosos não durarão muito tempo. Também os poderosos perecerão no final, como poeira diante do vento».5 Na língua nipónica «Naru» alude ao fluxo mutativo das coisas, ao tempo enquanto mobilidade influenciadora, movimento concreto que altera, energia que corrompe e renova, que dá e tira. Factor implícito no sentimento de beleza, no discernimento de gosto, está associado à decadência suscitada pela mudança que provoca, à incapacidade de as coisas não resistirem ao esvaecimento, de não conservarem infindavelmente a mesma configuração. «Naru» está conectado com o termo «Dô» («via») e este com a noção chinesa de Tao (Dao). O tempo impulsiona e modela e os homens a essa força submetidos, aprendem a viver segundo restrições criativas, segundo normas ou rituais, segundo processos estetizados que conduzem a um determinado usufruto. A cerimónia do chá (Cha Dô ou Chanoyu) é um exemplo desse comportamento e envolvimento disciplinado para «apenas ferver água, fazer a infusão do chá e bebê-lo».6 «Sabi» é um vocábulo que remotamente denotava desolação ou solidão e, subsequentemente, adquiriu o significado de «envelhecer», inferindo um agrado melancólico obtido pela contemplação daquilo que avançou no tempo, o deleitoso efeito da decrepitude ou emurchecimento. Deriva de «Sabu» («desvanecimento, «decadência») e focaliza-nos nas cambiantes originadas pela circulação do tempo. Da constatação desse declínio ou despojamento pode emanar Yûgen, um misterioso e profundo encanto, difícil de verbalizar, o indizível deslumbre que consiste no superlativo propósito do Nô. «Yû» significa «obscuridade», «sombrio» e «Gen» «trevas», «escuridão». Este termo (Yûgen) provém do chinês «Youxuan» (algo portador de uma extrema penetração e que não pode ser compreendido). «Sabi» veio a confundir-se com «Wabi» («langor», «definhamento»). Esta segunda palavra procede de «Wabu» («esmorecer», «degenerar», «murchar», «desvanecer») e implica um deliciar causado pela serenidade ou harmonia 242 JOÃO SOARES SANTOS percepcionada nas coisas simples, no que tem uma existência sem artifícios. Pode-se atingir Yûgen na arte através do recurso à impressão de Sabi, a qual, por seu turno, pressupõe Naru. Directa ou indirectamente os numerosos conceitos estéticos japoneses estão conectados com implicações afectivas acerca do tempo. «Aware» começou por ser uma interjeição, a reacção provocada por uma coisa, um substituto expressivo para a ausência de palavras face a um incidente surpreendente. Depois veio qualificar um impacto vagamente desgostoso motivado por algo belo. Mas esse maravilhamento, esse pretexto que serviu inesperadamente para seduzir e assombrar, não deixa de ser um motivo fugaz. Em Aware há o prazer de um entristecimento resignado advindo da variabilidade que comove, do nexo da flutuação cronológica portadora de âmbitos de interdependência e mutação. As artes cénicas criam na vigília do espectador uma provação onírica. Nelas se suprime a lógica trivial do tempo. Há muitas alturas no Kabuki japonês em que o actor congela numa pose (Mie), trava a sua acção num instante alargado. O movimento extingue-se e, numa pausa de postura concentrada, numa hirteza paroxísmica, num congestionamento apoteótico, enfatiza a intensidade da disposição psíquica da personagem. Este retesamento corporal dilata o momento para o espectador melhor conservar a reminiscência da imagem poderosa que exprime a sua condição e natureza dramática. Também a música serve para encurtar os hiatos cronológicos e espaciais. Na Birmânia, as alterações nestas dimensões são feitas pela orquestra acompanhante a pedido do actor. Antes de uma cena se transferir para outro tempo e lugar, a personagem interpela o chefe da orquestra: «meu Senhor da orquestra, indica-me o caminho da floresta para a qual me devo conduzir». A composição tocada depois pelos músicos transporta a audiência para o local ditado pelo entrecho. Outras vezes o actor solicita: «meu Senhor dos tambores e flautas, usai os vossos ágeis dedos e tocai uma melodia que me indique o caminho a seguir» ou «uma melodia que, estimulando a minha força e coragem, me faça sair vitorioso do combate que vou travar com os meus inimigos».7 Muitos reforços de percepção são conseguidos com o apoio de um ónus afectivo na elocução verbal, na mobilidade ou nas sonoridades acompanhantes, transmitindo sensações, emoções ou sentimentos da personagem e funcionando como uma extensão psicológica do tempo. Analisando a 243 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO humanidade, apreciando as relações éticas e morais estabelecidas entre o sujeito e a família, os amigos ou a sociedade, a comicidade, sempre presente nestas formas artísticas, delata muitas vezes aspectos de uma interioridade endurecida por práticas rotineiras, de indivíduos apenas preocupados com a satisfação utilitarista dos seus desejos, pessoas incapazes de ver os seus deméritos, de sair dos seus impasses, de superar as suas limitações, de se purgarem das torpezas e estreitezas mentais. No riso relampeja o receio do cadáver potencial que somos e a sua excitação alerta-nos para a vacuidade desses interesses egoístas, para o desperdício de condutas que antecipam a morte na vida. O cómico edificante explora com as suas técnicas a dor e os sofrimentos para assim os desbloquear, para nos tornar mais resistentes às experiências tormentosas. Depreciando ou negando, responsabiliza, força o sentido de justiça, procura conciliar-nos com o que somos ou com o que não podemos ser. Há uma comicidade que condena para apaziguar e absolver, que repta para pacificar, que é impiedosa para ser indulgente, que lança a injúria por respeito aos valores deteriorados pelas convenções ou pelos apetites. Só poderia ser motivo de troça alguém que não achasse graça a nada. O riso é um assunto sério nas representações asiáticas e nelas é frequente haver uma tipologia de personagens e uma adequação destas a uma graduação dos diferentes atributos de carácter pensados em função de exemplos absolutos de probidade. Uma classificação orientadora do Wayang Kulit javanês tem como modelo o soberano Watugunung, as suas três mulheres e vinte e sete filhos. Frases metafóricas enunciam distintas matrizes do procedimento humano: Indra veio à terra como eremita; o brilho do sol; a bela montanha vista à distância; Noz-moscada pendendo nas ramagens; o resplandecente arco-íris; raios e trovões por toda a parte; a árvore coberta por trepadeiras parasitas; o ruído de um tremor de terra; flores crescendo por toda a parte; flores de hibisco vermelho; a ave elevando-se nas alturas; os salpicos de uma fonte; o ruído de um vulcão; uma pedra negra e uma grande árvore com raízes profundas; uma embarcação no mar; uma ilha vista à distância; as grandes águas de uma inundação; um jardim de flores com uma vedação em redor; um elefante enlouquecido puxando a sua corrente; a rola descobrindo uma montanha; o desmoronamento de uma montanha; o fogo de uma espingarda misturado com o fumo de pólvora; estrelas vislumbradas entre nuvens de chuva; a 244 JOÃO SOARES SANTOS excelente lâmina; chuva fora de estação; o amplo firmamento; a lâmpada que arde; orvalho pingando na água; a bela vedação à volta do palácio; a lua e as estrelas surpreendidas pelo dia.8 Filho de Dewi Sinta, cônjuge do monarca Palindriya de Purwacarita, Jaka Wudug ou Radite nasceu na floresta. O seu apetite voraz e constante pedido de alimento esgotou certa vez a paciência da mãe e, não suportando mais a sofreguidão da criança, agrediu-a na cabeça, deixando-a ferida. Radite fugiu e tornou-se um temível guerreiro. Conquistou o reino próximo de Gilingwesi e ascendeu ao trono como rei Watugunung. A sua ânsia de poder levou-o, sem saber a sua genealogia, a atacar Purwacarita, a chacinar o pai e a desposar as viúvas, mormente a própria mãe da qual teve dezanove filhos, num total de vinte e sete. Um dia Sinta descobriu a cicatriz na cabeça do marido e percebeu com opróbrio que ele era o próprio filho. Não se resignando à vergonha da relação incestuosa, engendrou um plano redentor. Incentivou Radite a instar a permissão dos deuses para casar com sete Apsaras. Os deuses não gostaram nada da ideia e rejeitaram o pedido. Watugunung desafiou-os então para um combate de adivinhas, acabando derrotado por Wisnu. Watugunung com as suas esposas, o progenitor morto e os filhos foram transformados em períodos do calendário. Converteram-se nos dias da semana e nas fracções de trinta e sete dias (Wuku ou Pawukon) da ordem temporal javanesa. Esta história («Lakon Watugunung») é proferida no Wayang Kulit Purwa. O mito de uma era antiga é recordado no nome de cada divisão cronológica do quotidiano e na arte do Wayang de «épocas recuadas» ou «do princípio» (Purwa). 3. O faisão possui uma plumagem colorida mas não ultrapassa a distância de cem passos após o seu primeiro voo. Tem uma anatomia roliça e pouca força. A águia, com uma postura mais nobre, graças à sua pujante ossatura e fogosa energia, executa um voo vertiginoso. Esta comparação feita por Liu Xie (456 - c.522) aplica-se às obras literárias e, por extensão, às artes em geral. No texto «O Dragão Esculpido no Coração da Literatura» («Wen Xin Diao Long») salientou que, nesta arte, a combinação gradativa desprovida de uma ossatura e de sopro será semelhante a estas aves com um belo revestimento cromático mas incapazes de ascender e de se deslocarem com facilidade no ar 9. O faisão faz um esforço para levantar voo e não sobe muito 245 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO alto, não tem a naturalidade e a simplicidade da águia que paira no espaço de asas abertas, ao sabor do vento. A escrita permite que a imaginação se eleve e que o nosso espírito seja permeado pelas coisas. Para que as aptidões artísticas de um autor se evidenciem nas qualidades essenciais do que redige é necessário ter adquirido um vasto conhecimento, desenvolvido treino e afinação do raciocínio, ter estudado as suas experiências e delas ter obtido refinamento. Só assim o talento pode rivalizar com o vento e as nuvens. A matéria literária traduz o pensamento do seu criador e, tal como um corpo, tem de possuir em primeiro lugar uma ossatura, uma armação estrutural interna ou seja, manifestar uma exactidão que resulta do atenuar ou suprimir o que não é límpido ou verdadeiro. Este suporte harmonioso é necessário para se acrescentar uma latitude espiritual, uma sagacidade profunda que clarifica os sentimentos em questão. O pó-de-arroz e a pintura facial de uma senhora servem a sua beleza embora o seu genuíno encanto não esteja na maquilhagem usada mas sim na graça natural que de si se desprende como, por exemplo, quando sorri. A expressão sincera do seu sorriso tem uma carga mais decisiva para exercer o seu poder de sedução do que os adornos cosméticos. Por isso, na literatura, a honestidade do sentimento é a corrente que sustenta o emprego da verbalidade saída da razão. No tratado «O Verdadeiro Caminho para a Flor» («Shikadô»), Zeami considera três planos no trabalho do actor de Nô: o osso, a carne e a pele. O primeiro consiste na força natural que este imprime na dramatização e que advém das suas faculdades inatas ou talento herdado, o segundo nas habilidades adquiridas no canto e na dança e o terceiro na aparência elegante em palco.10 Ao ensinar o filho a compor poesia, Lu You (1125-1210) disse: «se estás determinado a redigir poemas tens de trabalhar arduamente em muitas outras coisas para além da escrita.»11 Os versos de muita da poesia chinesa parecem conjugar-se de um modo desconexo. São frases que expõem de um modo sugestivo imagens cujo fio de ligação é tecido pela imaginação do leitor. Há um deliberado hiato, uma incompletude no relato lírico, nos quadros pintados com o léxico para que «o rio subterrâneo que corre silenciosamente entre os versos»12 seja sentido. Interessa o tempo de elaboração onírica do leitor, o seu divagar no vazio situado entre as palavras. O que não é proferido tem a mesma importância do que é. A elocução quando vem do interior deixa uma neblina de insondabilidade, um vácuo a ser preenchido pela sensibilidade 246 JOÃO SOARES SANTOS do destinatário. A observação poética das mudanças do mundo congemina vocábulos que descobrem lacunas na sua coerência sequencial, urdem uma abscência, uma quebra ofuscante na sua continuidade. Exprimindo a sinceridade da emoção, a voz e a fala emudecem, o discurso não encontra morfologias verbais e, por isso, solta a sua própria indefinição, mostra a sua insuficiência na omissão, no cancelamento poético. A agilidade da escrita obriga a ter a serenidade de se sustentar nas alturas, de planar de asas estendidas e, como a águia, no momento certo, apontar para o seu alvo. Resistindo às oscilações do ar, permanece imóvel flutuando no vento. Na época Shang (c. 1600 a.C. – 1028 a.C.), o vento (Feng) parece ter sido uma divindade em forma de ave chamada Feng Bo. Esta entidade sobrenatural modelava pelo dom da transformação tudo aquilo com que contactava. Feng poderá estar ainda associado com loucura e a designação «espelho de vento» (Fengjian) equivalia a um profeta ou adivinho. No passado chinês o vento dirige a passagem do tempo e regula os ritmos da metamorfose. Entender as suas deslocações consentia o acesso aos segredos da alterabilidade. Ele impulsionava padrões de cadência no mundo natural aos quais o indivíduo se deve ajustar. O Homem deveria inserir-se na ordem cíclica em consonância com os movimentos eólicos e temporais. A primeira das quatro partes do «Livro das Odes» ou «Livro dos Cantos» («Shi Jing», entre c. 840 e 620 a.C.) intitula-se «Ventos dos Estados» («Guo Feng»). «Feng» pode, no contexto, também indicar «melodia» ou «poema». Posteriormente o mesmo termo serviu para indicar um artista letrado e «Feng Huang» para referir a Fénix que, segundo a hipótese de alguns autores, seria primitivamente um deus conectado com os fenómenos atmosféricos. Na antiguidade deste país era o monarca que estabelecia o calendário, era ele o responsável pelo correcto funcionamento da disposição cronológica e práticas sazonais. A sociedade estava regida por uma ordem de dias, festividades e rituais consoante uma suposta coerência natural determinada por forças que ultrapassavam a compreensão humana trivial. Sugeriu Laozi no «Dao De Jing» que uma das qualidades do governante sábio era de deliberar ou proceder com sentido de oportunidade. Evitar atritos nas ondas de propagação temporal, intervindo no momento adequado e sem uma intromissão escusada da sua autoridade. Por dilatação ou encurtamento, a justa duração não pode ser abreviada ou alargada, não pode ser perturbada na 247 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO sua propriedade. Cada começo ou término não pode ser constrangido, sob o risco de surgirem desacordos na continuidade da sua índole, rupturas na persistência própria dos eventos e fenómenos. Os segmentos temporais e de mutação são como ramagens que despontam, articulam e florescem de uma raiz invisível. A realidade ontológica fica sujeita à cronologia e à transformação. A longevidade subentende a habilidade de se conservar nessa relação com a mudança, não travar ou impedir a fluência do seu decorrer para se ter uma morte na altura aprazada. Viver segundo uma táctica de concordância, de escrupulosa pontualidade com as sucessivas etapas dessa orgânica absoluta, dessa espécie de suprema e dúctil verdade que impulsiona a diversidade e a transição. O sábio não intervém e por isso não destrói. Se pensarmos num Tao da arte podemos aplicar de novo a metáfora de Liu Xie. Como a águia no céu, o artista perspicaz não constrange o voo, não força as morfologias que concebe, deixa-as balancear nas turbulências das auras interiores. O que o move é a genuinidade do vento que em si sopra e que o leva. A estética literária da ópera chinesa radica-se na busca de uma linguagem sincera e luminosamente inteligível, sem enfeites que dispersem a atenção do que é significativo no discurso. Nesta pureza verbal está implícita uma abertura proba do coração, uma apresentação sem rodeios ou astúcias do que é autêntico e efectivo. O aroma poético emana deste princípio, dessa substância íntima sobre a qual se particulariza o simulacro do actor, a sua empatia com a personagem e a adesão do público. A eloquência edifica-se a partir desta legitimidade intrínseca para assim evitar o lugar-comum ou a vulgaridade. Esta base de verdade é o receptáculo de todas as possíveis máscaras. A fantasia deve ser descrita como se fosse real para que o real pareça uma fantasia. O actor desta manifestação artística não deve fingir que é uma personagem mas proceder como se a personagem fosse ele. O público e o intérprete não se contentam apenas em ver a literalidade de um simulacro. Querem que o simulacro os convença que não estão perante uma situação ardilosa. Na peça «Bimuyu» de Li Yu (1611 - c. 1680), duas das figuras dramáticas, a actriz Liu Miau Gu e o actor Tan Chuyu, amam-se, estão casados e representam juntos no palco. Nas cenas em que têm de exprimir esta inclinação, para não deixarem transparecer a sincera conivência afectiva existente entre ambos, fingem representar. O que as personagens proferem e aparentam sentir não pode ser igual à própria vida, senão não seria arte. Por isso, fingindo que se 248 JOÃO SOARES SANTOS amam, experimentam a verdade do amor intenso sentido. Fingem para que a verdade se converta em arte e em simultâneo são autênticos para que a arte comunique pelo artifício o que não é falso. «No palco ele adora-me como sua verdadeira mulher enquanto eu o amo como meu verdadeiro marido e tudo vem do fundo do coração e vai para o fundo do coração. Os outros pensam que estamos apenas a representar mas de facto o que estamos a fazer é genuíno. Quando uma representação se torna a própria vida, quando os actores são as pessoas mais felizes do mundo nos seus papéis, nada pode evitar que essa seja a melhor representação que existe».13 Os dois artistas fingem assim ser as personagens embora não estejam num desempenho. Fingem que estão numa intriga teatral para poderem estar a ser autênticos. Convém recordar que a actriz (que pode ser um homem a assumir esta personagem) enuncia este monólogo em palco. Diz as palavras inventadas pelo autor e, ao contracenar com um colega, simula que o ama como se fosse o seu marido, equiparando o acontecimento a algo real. O ápice da dramatização resultará deste requinte que deixa a assistência deliciadamente perplexa, silenciosamente estupefacta. O sublime florescerá quando o próprio actor olvida que está a fingir, perde a noção de separação entre si e a dramatis persona e o público confunde o fictício com o real. O capítulo XVI («Xiangzi entra no Submundo para Examinar os Registos da Vida e da Morte») da «História de Han Xiangzi» («Han Xiangzi Quanzhuan»), um dos oito imortais taoistas, figuras muito apreciadas no repertório dramático dos períodos Yuan (1279 - 1368) e Ming (1368 – 1644) começa com um enigmático raciocínio: «a verdade é ilusória, a ilusão verdade, por isso a verdade é também ilusão; a ilusão é verdadeira, a verdade ilusória, todavia a ilusão não é verdadeira. A tua natureza original não conhece a distinção entre verdade e ilusão. Quando rires para o mundo de pó, a ilusão e a verdade tornam-se claras».14 Este riso aqui referido parece inferir um desprendimento superior, um desdém ou uma abnegação dos interesses pessoais que incitam a desejar e a recear a perda. Um riso desenhado por uma lucidez profunda sobre o inane das formas no tempo, sinalizando a incolumidade ou o distanciamento de alguém ciente que neste mundo de câmbios e interacções nada fica na mesma. Como o riso de uma marioneta pensada e conduzida por uma força motriz externa e que a faz agir com se imaginasse estar viva. 249 ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO À semelhança de um sonho, os ventos sopram sem intenção, como a vida ou o destino, imprevisível e inconstante, sugeriu Zeami na peça «A Boca de um Poço» («Izutsu»). Nela, no segundo acto, uma personagem feminina (interpretada por um homem), o fantasma atormentado de Ki no Aritsune, com uma indumentária masculina, a de Ariwara no Narihira, seu falecido marido, evocando em dança a história de amor entre este e ela, surge durante o sonho de um sacerdote budista. No final ela olha-se no poço e vê reflectida na água a sua figura com traje de homem. Tudo não passou de um sonho de personagens no sonho da vida que é o teatro, enquanto nós espectadores e actores das fantasias do mundo vemos no palco a imagem reverberada dos nossos artifícios. «Sete dias nas montanhas são mil anos na terra».15 250 JOÃO SOARES SANTOS Referências: 1 – R. K. Yajnik, «The Indian Theatre, George Allen & Unwin, London, 1933 2 – Mencionado por Sri Mulyono Djojo Supadmo, «Human Character in the Wayang», Gunung Agung, Singapore, 1981 3 – Jean Cuisinier, «Le Théatre d’Ombres a Kelantan», Gallimard, Paris, 1957 4 – Zeami Motokiyo, «Jûrokubushû Hyôshaku», mencionado na obra «Sources of Japanese Tradition» (Compilação de Ryusaku Tsunoda, Wm. Theodore de Bary e Donald Keene), Vol. I, Columbia University press, New York, 1964 5 - «The Tale of the Heike» (Tradução de Helen Craig McCullough), Stanford University press, Stanford, 1988 6 – Sen no Rikyû (1522-1591), mencionado por Donald Richie, «A Tractate on Japanese Aesthetics», Stone Bridge press, Berkeley, 2007 7 – Camille Poupeye, «Problèmes de la Mise en Scène dans les Vieux Théatres de l’Extrême Orient», «La Revue Theatrale», Nº. 6, Éditions Bordas, Paris, Junho-Agosto de 1947 8 - Sri Mulyono Djojo Supadmo, opus cit. 9 – Lieou Hsié (Liu Xie), «Le Dragon Sculpté sur le Coeur de la Littérature» (Tradução de Ho Ju), «Littérature Chinoise», Nº. 3, Beijing, 1964 10 - Zeami Motokiyo, «Shikadô», incluído na obra «On the Art of the Nô Drama: the Major Treatises of Zeami» (Tradução de J. Thomas Rimer e Yamazaki Masakazu), Princeton University press, New York, 1984 11 – Lu You (ou Lu Wuguan), mencionado na obra «Traditional Chinese Culture» (Editado por Zhang Qizhi), Foreign Languages press, Beijing, 2007 12 - Mencionado na obra «Traditional Chinese Culture», opus cit. 13 – Li Yu, mencionado em «Chinese Theories of Theater and Performance» (Editado e Traduzido por Faye Chunfang Fei), The University of Michigan press, Ann Arbor, 2005 14 – Yang Erzeng (activo entre 1590 e 1602), «The Story of Han Xiangzi» (Tradução de Philip Clart), University of Washington press, Seattle, 2007 15 - Idem 251 252 LIVROS A Esquerda e o Socialismo Joaquim Jorge Veiguinha N um artigo publicado no jornal Público, em 11 de Outubro de 2010, e significativamente intitulado Apologia do Capital, a historiadora Maria de Fátima Bonifácio defende que, perante a falência das “sociedades organizadas e dominadas pelo Estado” e cujo último bastião era “a Cuba de Fidel de Castro que a esquerda europeia, apesar de tudo, continuava olhar como um episódio comovente e romântico da luta dos pobres contra os ricos”, apenas o capital privado poderá proporcionar aos indivíduos tanto a “liberdade” individual, como a “afluência”. Neste sentido, a autora considera que Margaret Thatcher tinha razão quando dizia há trinta anos que “«sem os ricos não haverá esperança para os pobres»”. Se bem me lembro, Moreira Baptista, ministro do Interior de um marcelismo em processo de esgotamento, foi bem mais modesto: não ousou fazer, como Fátima Bonifácio, uma ‘apologia do capital’, mas limitou-se a um elogio dos capitalistas. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, dirão alguns. Ou talvez não, quem sabe?! Mas o artigo de Maria de Fátima Bonifácio desperta-nos a atenção para o livro de Eduardo Lourenço, A esquerda na encruzilhada ou fora da História? (Gradiva, Lisboa, 2009) que nos oferece um panorama crítico sobre a esquerda e o socialismo. Constituído em grande parte por artigos publicados na revista Finisterra entre 1989 e 2005, bem como por algumas crónicas em jornais diários e semanários, o autor considera que “durante três quartos de século, a Esquerda viveu-se a si mesma como actriz e horizonte de um movimento histórico que tinha no socialismo o seu discurso legitimador e a sua utopia” (Lourenço, Eduardo, ib., p. 89). Ao contrário de Fátima Bonifácio, o nosso maior ensaísta não toma como pretexto os crimes e a ausência de liberdade nos regimes que se reclamavam do socialismo, desde os gulagues da União Soviética de Estaline, passando pelas monstruosidades maoistas da ‘Revolução Cultural’ e pelos ‘campos da morte’ do Cambodja de Pol Pot, para concluir 253 A ESQUERDA E O SOCIALISMO que apenas resta à parte mais pobre da humanidade confiar nos ricos para, finalmente, ascenderem à ‘afluência’. Eduardo Lourenço tem consciência que o refluxo da esquerda e do socialismo na Europa está indissociavelmente ligado à queda do Muro de Berlim e à implosão da União Soviética. No entanto, não considera que este evento seja o ‘dobre de finados’ de ambos, mas uma oportunidade soberana para reflectir sobre as suas causas e para repensar o seu futuro. Ponto fundamental da argumentação do autor é que a esquerda socialista no Ocidente limitou-se a ser um mero contraponto ao “espectro do colectivismo” do seu antagonista, oferecendo-lhe uma espécie de “resistência passiva”. O desabamento do Muro de Berlim deixou-a, de certo modo, orfã de si própria e refém da sua passividade, cercada por um “oceano de liberalismo”(Ib. p. 92). Sem narrativa própria, esta transformou-se em esquerda soft - alguns utilizam a designação de ‘esquerda caviar’ - incapaz de se contrapor ao liberalismo triunfante, arvorado em ponto culminante e inultrapassável da história humana, primeiro no plano económico e financeiro, depois no plano político e cultural. Será então – interroga-se o autor – que “o projecto do Socialismo e da Esquerda” com a 254 sua aspiração a uma igualdade e justiça sociais que sejam compatíveis com a preservação das liberdades individuais e políticas está “condenado a estiolar-se entre a bigorna ultra-sofisticada do capitalismo e o martelo rude do comunismo?” (Ib., p. 40). Eduardo Lourenço tem consciência que o liberalismo constitui hoje em dia “uma máquina infernal”, isto é, “um dispositivo incontrolável e fatal, para destruir o que nós somos ou nos supomos como seres que dominam o seu destino” (Ib. p. 163). De uma forma perspicaz, o autor apercebe-se que o motor desta ‘máquina infernal’ é a “produção alienante” que - confirma justamente - ninguém “analisou melhor que Marx” (Ib., p. 165) e que, poderemos acrescentar, está presente em toda a obra do autor do Capital, apesar de Althusser e seus discípulos dos anos 70 do século passado considerarem - erradamente - que o conceito de ‘alienação’ se circunscrevia às suas obras de juventude. A ‘produção alienante’ é uma produção desumanizada que instaura uma competição entre os homens para não serem excluídos dos paraísos artificiais do consumismo, espécie de compensação fugaz para perda de soberania sobre as suas próprias condições de trabalho e de vida: “Nós somos o JOAQUIM JORGE VEIGUINHA que consumismos, mas não temos nenhuma capacidade de escapar à sedução dessa droga, desde a mais conforme ao nosso próprio sonho de mobilar o mundo que encontrámos (inventando o automóvel e o avião) até à mais sofisticada oferta cultural de bens de pura diversão tornados mais necessários que a nossa antiga dependência da terra, do ar, da água, do fogo há muito domesticados através de uma vitória sobre eles que não era ainda a nossa derrota” ( Ib., p. 165). É verdade – poderemos dizer – que os progressos da medicina moderna permitiram que triunfássemos sobre as epidemias de peste bubónica da Idade Média, mas estão inexoravelmente associados ao aparecimento de novas doenças e epidemias algumas das quais tendem a tornar-se incontroláveis. Com isto pretendemos dizer o que já está subentendido na reflexão de Eduardo Lourenço: o progresso não é linear, nem significa que a ‘libertação’ relativa da nossa dependência da natureza se transmute magicamente na libertação das formas de predomínio do homem sobre o homem, das desigualdades e exclusões sociais, como pensavam, ingenuamente, os iluministas do século XVIII e como contestaram criticamente Max Horkheimer e Theodor Adorno na sua Dialéctica do Iluminismo. Infelizmente, criaram-se apenas novas formas de servidão mais sofisticadas do que as precedentes. Retornando ao tema, o que caracteriza a ‘máquina infernal do liberalismo’, constituindo, por assim dizer, a sua ‘diferença específica’, é levar os menos favorecidos a submeter-se voluntariamente a cargas de trabalho mais intensas e alienantes para acederem à compensação ilusória do estatuto de “consumidores privilegiados” (Ib., p 166). Esta espécie de ‘nova servidão voluntária’ é o traço dominante do actual capitalismo planetário – a chamada ‘globalização’ que, para Eduardo Lourenço, rima com ‘americanização’ – que “transformou a injustiça gritante das antigas desigualdades entre «ricos» e «pobres» (mas, apesar de tudo, integrados negativamente no sistema a que serviam de sangue) numa perfeita máquina «infernal» capaz de reciclar as suas próprias falhas” (Lourenço, Eduardo, Ib., p. 167). Perante estas novas condições, apenas nos restam duas escolhas: ou fazemos, como Maria de Fátima Bonifácio, a ‘apologia do capital’ porque este não ‘sufoca’ a liberdade individual de que “eu, por exemplo, preciso para viver e ganhar a minha vida” (Público, 11. 10. 10, p. 29)1 e desistimos de lutar pela igualdade e 255 A ESQUERDA E O SOCIALISMO justiça social, mesmo sabendo que, no passado, este projecto se realizou distorcidamente com a supressão das liberdades individuais e políticas nas sociedades inspiradas nos ideais Revolução de Outubro de 1917, ou tentamos repensar a esquerda e o socialismo para construirmos uma alternativa à ‘máquina infernal do liberalismo’. Como não poderia deixar de ser, foi esta a opção de Eduardo Lourenço. Num período em que a esquerda social liberal se deixou contaminar pela mera gestão conjuntural do poder, é imperioso retomar a ideia de que o que demarca a esquerda da direita é não apenas a luta contra as desigualdades económicas e sociais, mas “a sua função de contrapoder, e até de antipoder mesmo no poder” (Ib. p. 37). Mas a esquerda não pode ser dissociada do socialismo que não é uma religião, mas a aspiração dos indivíduos associados a libertarem-se dos constrangimentos sociais alienantes da opressão e da exploração e a uma sociedade mais justa e mais humana, situada neste mundo e não num mais além transcendente: “Marx poderá ser mais realista que os seus contempo1 râneos Proudhon ou Fourier – pelo menos é a sua versão – mas não é menos utópico, se com o conceito de utopia se entende a suposição ou invenção de um lugar outro – não fora da História e do Tempo –, mas desta História e deste Tempo –, quer dizer de uma sociedade outra, configuração concreta dos desejos e sonhos mais radicais da humanidade sem a qual a ideia mesmo de Socialismo perde todo o sentido toda a coerência, para designar apenas uma entre várias ideologias meramente pragmáticas que a sociedade capitalista ocidental tem gerado” (Ib., p. 21). Presume-se que esta liberdade é, de certo modo inerente, à personalidade de Maria de Fátima Bonifácio. Mas seria uma generalização abusiva inferir, como se depreende das suas considerações, que um número cada vez maior de pessoas no actual capitalismo, com o seu cortejo crescente de trabalhadores precários e desempregados, dispõe da mesma liberdade que ela de viver e ganhar a vida. 256 Para onde Vai a Social-Democracia? Joaquim Jorge Veiguinha P ouco antes da sua morte prematura, o historiador britânico Tony Judt escreveu o que poderia ser chamado o seu “testamento político” sobre o futuro das liberais democracias e o agravamento das desigualdades sociais e económicas que põe em causa o consenso e compromisso social em que se baseava o Estado-providência, nascido na Europa Ocidental no período posterior à Segunda Guerra Mundial e nos Estados Unidos com o New Deal rooseveltiano. Ill fares the land é o título do original britânico que foi traduzido e publicado pelas Edições 70 de modo muito original e significativo como “Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos”, em Outubro de 2010. Logo na Introdução da sua derradeira obra o historiador britânico faz uma amarga constatação: “Os sociais-democratas de hoje pedem desculpa e estão à defesa. Têm deixado sem refutação os críticos que afirmam ser o modelo social europeu demasiado caro e economicamente ineficaz. E contudo o Estado-providência mantém a popularidade de sempre junto dos seus beneficiários. Em lado algum na Europa existe um eleitorado a favor da abolição dos serviços de saúde públicos, do ensino gratuito ou subsidiado ou da diminuição da prestação pública dos transportes e outros serviços essenciais” (Judt, Tony - Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, Edições 70, Lisboa, 2010, p. 21). Poder-se-á dizer que a “estratégia defensiva” da social-democracia está indissociavelmente ligada a um avanço da direita política e social a que não é estranha a difusão de uma concepção fatalista que considera a desigualdade como um dado adquirido contra a qual é inútil lutar. A ‘nova mentalidade’ teve também os seus defensores precisamente no outro lado do espectro político. De facto, as teorias pretensamente inovadoras sobre a ‘responsabilidade pessoal’ dos desempregados pela sua situação emergiram na América de Bill Clinton e propagaram-se à Grã-Bretanha do Governo da ‘Terceira Via’ para atingirem a Noruega e o modelo escandinavo, em que a direita substituiu os partidos 257 PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA social-democráticos que durante muito tempo constituíram o modelo e paradigma do Estado social. Estas teorias baseiam-se num princípio simplista que se pretende de alcance universal. Rotulado pomposamente como ‘Lei da Responsabilidade Pessoal e Oportunidade de Trabalho’ durante a Administração de Bill Clinton, consiste em “retirar a assistência a quem não tivesse procurado (e aceite) emprego remunerado (...) por quase qualquer salário” (Ib., p. 37). Mas isto significa antes de tudo um retorno ao século XIX em que o desempregado era considerado responsável pela sua sorte, em consequência da sua má conduta ou por ausência de iniciativa. Em segundo lugar, o subsídio de desemprego deixa de ser um direito, mas a mera contrapartida de uma prestação a que o desempregado está obrigado sob pena de perdê-lo. E last but not least tem o efeito perverso de contribuir para financiar os baixos salários e a degradação generalizada das condições de trabalho. Tony Judt, ao contrário de muitos social-democratas contemporâneos, interroga-se justamente sobre a validade deste argumento: “Mas quem tem o direito de dizer, e baseando-se no quê exactamente, que alguém está melhor a trabalhar por um salário baixo na Wal-Mart do 258 que a receber o subsídio de desemprego no modelo europeu? É claro que a maioria das pessoas preferia trabalhar. Mas a qualquer preço?” (Ib., p. 84). A interrogação é legítima, mas é apenas uma das manifestações da ruptura de um consenso social que se manteve durante cerca de trinta anos na Europa não comunista e começou a declinar nos anos oitenta do século passado. Este consenso, que se estendia também aos adeptos norte-americanos do New Deal rooseveltiano, de que se destacou Lyndon Johnson, abarcava os defensores alemães da economia de ‘mercado social’, o Partido Trabalhista britânico e ainda algumas franjas situadas politicamente à direita – certas correntes da democracia cristã e o gaullismo, só para citar os exemplos mais emblemáticos – e baseava-se na partilha de “uma fé comum no Estado activista, planeamento económico e investimento público em grande escala” (Ib., p.59). O mesmo consenso abrangia a progressividade fiscal e a segurança e assistência sociais: “A tributação elevada não era vista nesses anos como uma afronta. Pelo contrário, taxas acentuadas de imposto progressivo sobre os rendimentos eram vistas como um expediente consensual para retirar recursos excessivos aos privilegiados e aos inúteis e colocá-los JOAQUIM JORGE VEIGUINHA à disposição dos que mais necessitavam deles, ou dos que melhor uso lhes podiam dar (...) Graças ao provimento universal da assistência social, o único benefício do serviço doméstico a longo [prazo] – a presumível generosidade do patrão com o seu criado doente – tornara-se redundante” (Ib., p. 70). Não se pense, porém, que o início do declínio do consenso social que sustentava o Estado-Providência proveio da direita. Antes de Margaret Thatcher enunciar a sua célebre frase de que «sociedade é uma coisa que não existe, existem só indivíduos» e Reagan afirmar que «o governo já não era a solução – era o problema», os anos sessenta do século passado foram marcados pela emergência de uma ‘nova esquerda’ libertária que anunciou um novo paradigma. Enquanto a ‘velha esquerda’ mergulhava as suas raízes numa classe operária concentrada, sindicalizada e tutelada pelos partidos sociais-democratas e comunistas a cuja disciplina se submetia voluntariamente, a ‘nova esquerda’ manifesta-se sobretudo contra a “tolerância repressiva” da ordem capitalista não tanto em nome da luta contra as injustiças sociais, mas sobretudo em nome de um novo tipo de ‘individualismo’ centrado na “afirmação da exigência de cada pessoa da máxima liberdade privada e da liberdade irrestrita para a expressão de desejos autónomos e de vê-los respeitados e institucionalizados pela sociedade em geral” (Ib. p 92-93). Deste modo, o ‘paternalismo tutelar’ da ‘velha esquerda’ começa a ser posto em causa, fenómeno a que não foi certamente estranho não apenas a reconfiguração da classe operária com o avanço da automatização, mas a emergência de movimentos, grupos e categorias sociais – jovens universitários radicais com as suas exigências de emancipação das relações familiares tradicionais e de ‘liberalização’ das relações amorosas, feministas, homossexuais que visavam o reconhecimento dos seus direitos – que já não se reconheciam nas formas de mobilização e nas reivindicações da ‘velha esquerda’. Como refere justamente Tony Judt, a ‘velha esquerda’ era, como a direita, ‘conservadora’ na questão cultural e na esfera dos costumes e assistia estupefacta às novas reivindicações de liberdade e autonomia individual dos novos movimentos sociais. O que a distinguia da direita não eram as reivindicações sobre um novo modo de viver a vida na esfera das relações interpessoais, mas as questões relacionadas com a intervenção do Estado para reduzir as assimetrias 259 PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA sociais. E mesmo neste aspecto, uma parte da direita pré-thatcheriana e pré-reaganiana aceitava tacitamente o Estado-providência num contexto social e político em que a competição com a União Soviética e os países da Europa de Leste a colocava na defensiva. Mas esta viragem ‘libertária’ teve os seus custos, já que – como afirma perspicazmente Tony Judt – conduziu ao declínio de um projecto de vida que unia um grande número de indivíduos pouco diferenciados uns dos outros num conjunto de reivindicações comuns: “Outrora procurava-se na sociedade – ou classe, ou comunidade – o vocabulário normativo individual: o que era bom para todos era por definição bom para qualquer um. O inverso, porém, não é válido. O que é bom para uma pessoa pode ter, ou não ter valor para outra” (Ib., p. 93). A ‘nova direita’ contribuiu para ‘fechar o círculo’ que tinha sido aberto pela ‘nova esquerda’. Inspirada nas doutrinas dos austríacos von Mises e sobretudo Friedrich Hayek, para quem a liberdade individual era incompatível com as ideias de justiça distributiva, o ataque ao Estado-providência e ao modelo social europeu, bem como aos herdeiros do New Deal rooseveltiano exprimiu a ruptura do consenso social que 260 durante trinta anos constituía o sustentáculo do ‘capitalismo social’ no velho continente e na América do Norte. Margaret Thatcher e Ronald Reagan foram apenas os ‘executores testamentários’ deste consenso social a que também não foi seguramente alheio o debilitamento dos países integrados na esfera do ‘socialismo real’. A ‘nova direita’ teve como orientação dominante o culto da privatização na base do argumento da ‘ineficiência’ do sector público. No entanto, as privatizações desencadeadas na Grã-Bretanha por Margaret Thatcher e que, mais cedo ou mais tarde, se estenderam a outros países, para além de terem um reduzido efeito no crescimento económico a longo prazo, transformaram os contribuintes em financiadores dos accionistas e outros investidores privados que se apropriaram a baixo preço de serviços anteriormente prestados pelo Estado. A privatização dos caminhos-de-ferro britânicos é um exemplo emblemático desta estratégia que se revelou desastrosa. Mas apesar disto, os privados podiam sempre contar, como actualmente os banqueiros, com a ajuda do Estado se as «coisas corressem mal», pelo que a sua exposição ao risco era sempre mínima. A privatização dos JOAQUIM JORGE VEIGUINHA serviços públicos foi completada pela delegação a firmas privadas de funções anteriormente desempenhadas pelo Estado, uma espécie de retorno ao sistema de concessão a particulares da cobrança de impostos que vigorava na monarquia absoluta francesa. A emergência do ‘novo’ paradigma privatizador não teve apenas consequências na esfera económica, mas contribuiu para introduzir um ‘défice democrático’ e para estimular o cepticismo dos cidadãos perante a ‘coisa pública’. Ao contrário do que defendiam os ‘libertários’ da ‘nova direita’ o recuo das funções sociais do Estado não contribuiu em nada para o desabrochamento das liberdades individuais, mas, pelo contrário, para o aumento dos “poderes irrestritos do Estado superpoderoso” (Ib., p. 120). De facto, o enfraquecimento dos vínculos sociais garantidos pelo Estado-providência e a redução da sociedade civil a “uma fina membrana de interacções de indivíduos privados’ (Ib. p. 120), aspecto comum tanto à ‘nova direita’ como à ‘nova esquerda’, conduziu à perspectiva weberiana do Estado como «monopólio legítimo da força». Esta perspectiva tornar-se-á tanto mais ‘legítima’ quanto maiores forem as desigualdades sociais que trazem consigo o aumento da crimi- nalidade, o medo e a insegurança dos cidadãos com os seus ‘bodes expiatórios’, de que se destacam as minorias éticas e os imigrantes. Mas isso significa que quando “deixamos de valorizar o público sobre o privado, com o tempo viremos decerto a ter dificuldades em perceber porque deveríamos valorizar a lei (o bem público por excelência) em relação à força” (Ib. p. 129). A implosão da União Soviética e o desabamento do ‘socialismo real’ completou o quadro. Ao contrário do que defendiam os partidários do ‘fim da História’ a falência de um sistema social e político não confere automaticamente razão e legitimidade ético-política a um capitalismo sem dimensão social: poderemos, de facto, estar perante dois erros de sinal contrário. Por mais repressivo e autoritário que fosse o ‘socialismo real’, a sua dissolução teve uma enorme repercussão desestabilizadora sobre a ‘velha esquerda’, pois a ‘nova’, passados os ‘ardores’ da juventude, já tinha, de uma forma ou de outra, feito o seu ‘aggiornamento’ e se tinha convertido ao social liberalismo. A ‘velha esquerda’ mergulhou no vácuo, pois perdeu historicamente as suas referências: os partidos comunistas entraram num declínio que não tem cessado 261 PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA de se acentuar no plano político; os partidos sociais-democratas foram obrigados a jogar à defesa para defenderem o que restava do compromisso social que sustentava o Estado-providência. Os ideais sociais-democratas do passado cederam cada vez mais o lugar à gestão conjuntural do poder político em regime de alternância e, por vezes, em coligação com partidos mais à direita em nome da ‘governabilidade’ e ‘estabilidade política’. Mas isso teve uma consequência paradoxal, perspicazmente enunciada por Tony Judt: “A social-democracia, de uma maneira ou de outra, é a prosa da política europeia (...) Os sociais-democratas na Europa nada têm para oferecer que os distinga: na França, por exemplo, até a sua propensão para privilegiar o Estado mal os diferencia dos instintos colbertianos da direita gaullista. Hoje o problema não reside nas políticas sociais-democratas, mas na sua linguagem exausta. Desde que o desafio autoritário da esquerda prescreveu, a ênfase na «democracia» é redundante. Hoje todos somos democratas” (Ib. p. 140). Perante este quadro quais são as alternativas? Para Tony Judt, a social-democracia, é apesar da sua crise ideológica e programática, no exíguo leque de opções disponíveis a 262 melhor de todas, já que a esquerda radical limita-se a uma estratégia de contestação sem propor verdadeiramente medidas credíveis para ultrapassar os actuais impasses e bloqueamentos. No entanto, para além de não se deixar influenciar pelo mito da ‘mudança’ em que hipoteca a sua herança histórica perante uma direita sem memória, esta deve apostar numa “nova narrativa moral” caracterizada por numa “descrição intrinsecamente coerente que atribua sentido às nossas acções de uma maneira que as transcende” (Ib. p. 174). A especificidade da social-democracia relativamente ao socialismo autoritário que faliu foi a aceitação do capitalismo e da democracia parlamentar no contexto do Estado-providência. Herdeiro de uma tradição anglo-saxónica em que a palavra ‘socialismo’ desperta, sobretudo nos Estados Unidos da América, reacções de repulsa – falar em ‘socialismo’ é como “se tivesse caído um tijolo na conversa” (Ib. p. 211), segundo a imaginativa fórmula de um jovem participante numa conferência de Judt em terras do Tio Sam –, o autor oferece-nos como alternativa política o que se poderia chamar um programa minimalista: “Quando a «social-democracia» em vez do «socialismo» é introduzida JOAQUIM JORGE VEIGUINHA numa conversa na Europa Ocidental, Canadá ou Nova Zelândia, não caem tijolos. Pelo contrário, é provável que a discussão dê uma volta intensamente prática e técnica: ainda podemos pagar planos de reforma universais, compensação do desemprego, artes subsidiadas, ensino superior acessível, etc., ou será que esses benefícios e serviços são agora demasiado caros para os manter? Se é assim, como é que eles podem ser tornados acessíveis? Quais são indispensáveis, se algum o é?” (Ib., p. 213). A direita já começou a fazer o seu ‘trabalho de casa’ para provar que os grandes pilares do Estado social se tornaram demasiado caros, enquanto a ‘nova esquerda’ libertária anda demasiado preocupada em lutar pelo reconhecimento dos novos direitos, atitude louvável, mas que tende a subalternizar as questões substantivas da justiça e da igualdade sociais sem as quais os novos direitos não poderão concretizar-se efectivamente. No entanto, o minimalismo político de Judt é provavelmente o ponto mais fraco desta pequena-grande obra que marcará seguramente o século XXI: uma ‘nova narrativa moral’ tem tendência a cair também no vazio se a alternativa política que propõe não for mais longe. Isso implica também questionar criticamente o compromisso social em que se baseava o Estado-Providência dos ‘Trinta Gloriosos’ anos dourados: em troca da protecção e dos direitos sociais garantidos pelo Estado, a social-democracia, aceitou que a organização do trabalho permanecesse sob o controlo grande capital privado e dos seus representantes directos, os managers. No que foram seguidos de perto pelos partidos comunistas que com a sua concepção de uma classe operária tutelada por um partido de vanguarda não viam com bons olhos as teorias não muito difusas, é certo, que defendiam a autogestão e o controlo das condições de trabalho por parte dos trabalhadores. Foi, de facto, esta a ‘falha tectónica’ da ‘velha esquerda’ que limitou o alcance do ‘contrato social’ e cimentou em bases pouco sólidas o Estado-providência1. Eis a razão pela qual o modelo social europeu é cada vez mais parte do problema e não da solução. E isto não no sentido reaganiano do termo, mas como um desafio à esquerda – a toda a esquerda – para criar um modelo social melhor. Mas este modelo terá necessariamente que passar pela conquista da soberania dos trabalhadores sobre a organização de trabalho, o que significa que a questão da propriedade privada como ‘direito de usar 263 PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA e abusar’, mesmo sob a cobertura ‘benévola’ das legislações laborais mais ‘progressistas’, deve ser questionada: a democracia não pode cessar quando entramos nos locais de trabalho. 1 De certo modo, o ‘contrato social’ dos Trinta Gloriosos tem pontos comuns com o contrato baseado em “razões especiosas” de Rousseau na Origem e fundamento das desigualdades entre os homens e que visava fundamentalmente o reconhecimento do direito de propriedade: “Unamo-nos”, disse-lhes, “para garantir os fracos da opressão, para conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence. Instituamos regulamentos de justiça e de paz a que todos sejam obrigados a conformar-se, que não façam acepções de pessoas e que de algum modo reparem os caprichos da sorte, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Numa palavra, em vez de voltarmos as nossas forças contra nós próprios, reunamo-las num poder supremo que nos governe de acordo com leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, afaste os inimigos comuns e nos mantenha numa eterna concórdia” (Europa-América, Lisboa, 1976, p 67). 264 As Direitas Radicais Portuguesas no Fim do Estado Novo Beja Santos O Estado Novo de Salazar e Caetano conhece na década de 60 uma evolução tumultuosa, decorrente das eleições de 1958, da contestação do colonialismo à esfera internacional e nacional, da reorganização das oposições, da movimentação estudantil das várias famílias da esquerda, de um processo de desenvolvimento que vai afastando progressivamente o regime dos diferentes ideários a que se propusera dos anos 30 em diante. No fundo, uma mudança dramática da modernização da economia e da sociedade e a escalada das frentes africanas que foram erodindo o regime, lançando-o no ocaso. “Império, Nação, Revolução, As Direitas Radicais Portuguesas no Fim do Estado Novo (1959-1974) ” é um livro precioso – pelo rigor e abrangência – para compreender o comportamento da extrema-direita mais ou menos neofascista, em Portugal, quais as suas forças motrizes ideológicas, as suas motivações imperiais, quais as suas relações com as estruturas do mando ao tempo de Salazar e Caetano (por Riccardo Marchi, Texto Editores, 2009). A primeira manifestação estudada pelo investigador é a revista Tempo Presente, impulsionada por discípulos de Alfredo Pimenta, um intelectual de referência dos neofascistas (Pimenta tem uma esclarecedora correspondência trocada com Salazar, que permite perceber como o ditador era muito sensível às suas mensagens). Intelectuais da direita radical como Amândio César, António José de Brito, Fernando Guedes, Couto Viana e Goulart Nogueira convergem para o projecto da revista Tempo Presente. O regime, através do SNI, irá financiar a revista. A publicação revelará qualidade, pauta-se pelos ideais nacionalistas, entrará mesmo nalguma colisão com os sustentáculos do regime que, no Verão de 1961, levarão à sua extinção. A Tempo Presente era uma publicação cultural com uma relativa abertura: revelou o abstraccionismo geométrico do pintor Fernando Lanhas, a poesia experimental, as vanguardas poéticas anglo-saxónicas, do mesmo 265 AS DIREITAS RADICAIS PORTUGUESAS NO FIM DO ESTADO NOVO modo que retomou os mitos do fascismo como Ezra Pound ou Drieu La Rochelle e Robert Brasillach. Não se escondia a defesa do Estado totalitário, o corporativismo e faziase a contestação política do que se passava na Europa do pós-guerra, advogando-se um nacionalismo de carácter universalista como se supunha ser o português, denominado a Euráfrica. A Europa é que estava em crise, a sua raça branca perdera o sentido de missão. A questão colonial irá envolver a Tempo Presente, os seus editores irão apoiar as decisões de Salazar, no início de 1961. A revista participa em vários eventos e entrará em polémicas com os meios monárquicos e com ortodoxia do regime. Alguns destes nacionalistas radicais, como António José de Brito, revelam-se teóricos verrinosos, alertam para os perigos que assediam o catolicismo, o personalismo cristão, a abertura democrática, a tolerância liberal. Brito irá revelar-se indiscutivelmente um teórico com produção autónoma em torno do nacionalismo, definindo-o sem hesitar como antiliberal, antidemocrático, antipartidário, adepto da homogeneidade racial e anti-semita. Assim, vai-se caminhando para o conceito imperial que é o suporte do Portugal 266 do Minho a Timor. Importância menor teve a criação do Centro de Estudos Alfredo Pimenta, fundado em 1972. Para ele convergem figuras da outra geração como João Ameal e Amândio César, António José de Brito, Fernando Guedes, entre outros. É uma referência para o meio neofascista, nele irão intervir figuras como David Gagean, Manuel Múrias, Artur Anselmo, colaboracionistas fascistas franceses, entre outros. O Movimento Jovem Portugal marca, no início dos anos 60, a ascensão de um nacionalismo revolucionário desta nova geração, liderado por Zarco Moniz Ferreira. Os promotores deste Movimento atacam as Nações Unidas e a sua política de descolonização, criam a revista Ofensiva (sempre com ligações ao neofascismo europeu), recebem apoios da Legião Portuguesa e de altos dirigentes da PIDE, Zarco vive constantemente em fricções com os outros elementos da direcção. Aparece depois uma outra publicação, Ataque, que não terá projecção, e o movimento envolve-se em contenda com os grupos de esquerda em meios universitários, assaltando mesmo a Sociedade Portuguesa de Escritores, depois da atribuição de um prémio a Luandino Vieira. Os problemas do BEJA SANTOS Jovem Portugal serão infindáveis, até porque Zarco vai propor o Nacional-Sindicalismo (cópia das doutrinas de Primo de Rivera) como a única oportunidade face ao marxismo e ao capitalismo. O que na verdade se estava a passar era os neofascistas sentirem a abertura do regime de Salazar ao capitalismo internacional como tentativa de modernização, o que eles consideravam intolerável. Mais próximo do regime estava a FEN – Frente dos Estudantes Nacionalistas, que também teve uma história curta e que implodiu por incapacidade de diálogo entre as suas facções. O regime queria organizações nacionalistas respeitáveis susceptíveis de atrair a massa estudantil apolítica e à PIDE interessava uma organização operativa até com capacidade para recolher informações no ambiente estudantil. Outra organização que surgiu ao tempo das lutas emancipalistas em Angola foi o Jovem Europa, copiado de uma experiência belga e que constituía numa proposta de um nacionalismo revolucionário europeu capaz de conter as superpotências instaladas no Continente. Todos estes grupos tiveram más relações entre si, agrediam-se nas suas publicações e nunca foram capazes de estabelecer em concreto uma plataforma ideológica. Coimbra constituiu um caso aparte no fenómeno nacional-revolucionário. É no meio académico que nasce a revista Combate a que está ligado Valle de Figueiredo, nome importante do neofascismo português, colaborador das revistas 57, Cidadela e Itinerário, esta, dirigida, entre outros, por João Conde Veiga, autor de uma poesia importante para estes neofascistas: Não fugi à guerra, não fui para Paris, Não fugi da terra, não traí o povo, ´ Eu fui ao combate debaixo do sol E voltei de novo Poso aquecer-me com o sol mais quente, Que me enche as veias, vinho de raiz, Não se vai à guerra e volta de novo Sem se sentir dentro a voz do país. Riccardo Marchi explica detalhadamente toda a luta do movimento associativo coimbrão, nas diferentes fases da crise académica, e revertendo sempre para a noção de Império, questão central destes movimentos neofascistas. Após identificar um conjunto de organizações menores da direita radical, o autor detém-se no semanário Agora, igualmente subsidiado pelas forças do regime. O anti-semitismo e o antiamericanismo vão ser 267 AS DIREITAS RADICAIS PORTUGUESAS NO FIM DO ESTADO NOVO duas constantes do jornal, várias vezes suspenso pela censura, Salazar não aceitava este excesso de críticas. Em Coimbra, os neofascistas ganham novo alento com o aparecimento de dirigentes mais jovens como José Miguel Júdice, Cruz Vilaça e Lucas Pires. Igualmente a vida deste movimento é pormenorizada tal como a revista Cidadela e o Centro de Estudos Sociais Vector, este de âmbito mais alargado e com sede em Lisboa. No fim da década de 60 surge a revista Política cujo director será Jaime Nogueira Pinto, sempre com apoios do regime (por exemplo, assinaturas feitas pela PIDE/DGS). Política procura um grande arco político do nacionalismo português, apresentase como uma frente nacional fiel ao Ultramar, contestará a tendência liberal de Caetano e os seus projectos da reorganização ultramarina, com certa tinta emancipadora. Com tónica menor, o autor regista ainda como expressões das direitas radicais o Movimento Vanguardista e o periódico Vanguarda (financiados pela PIDE) e finalmente o I Congresso dos Combatentes, a última batalha dos nacionais-revolucionários. Este valioso estudo de Riccardo Marchi permite captar em cheio o que foram as minorias em que se organizaram as direitas radicais e 268 como, de um modo geral, estabeleceram um relacionamento equivoco com os regimes de Salazar e Caetano. Tiveram poucos ideólogos de grande mérito, a sua grande maioria desapareceu ou está agora inactiva. Na ribalta, devidamente reciclados, estão José Miguel Júdice e Jaime Nogueira Pinto. O que os uniu sempre foi um princípio intransigente, o de nunca querer sacrificar o Império, espírito e forma do “Portugal eterno”. A Odisseia do Consumidor que Queria Viver sem Causar Impacte Ambiental Beja Santos “Impacto Zero” (por Colin Beavan, Editora Objectiva, 2009) não deixa de ser um livro surpreendente, provocatório do princípio ao fim, e ousado no sentido mais nobre do termo. Começa por dizer na capa que vai tratar das aventuras de um cidadão comum que tenta salvar o planeta e aprende muito sobre si próprio e o nosso estilo de vida. Na contracapa procura aliciar-nos com os seguintes dizeres: “Que grau de felicidade retiramos dos produtos que consumimos e que esgotam os recursos do planeta? Será possível viver de forma ecológica na cultura moderna? Estaremos todos condenados à extinção, ou seremos capazes de inverter o rumo do aquecimento global se repensarmos o nosso estilo de vida e implementarmos pequenas mudanças? “Impacto Zero” é um testemunho fascinante de um homem que decidiu viver durante um ano, em plena cidade de Nova Iorque, sem causar impacto no ambiente. Por outras palavras, tentou viver sem produzir lixo, sem poluir a água com toxinas, e sem usar coisas como elevadores, metro, ar condicionado, televisão, produtos embalados, detergentes e papel higiénico”. Com tanta promessa, a leitura tornou-se um imperativo. A leitura é estimulante, o testemunho é sincero, os resultados são surpreendentes e deverão ser tomados em consideração como viagem (quase) plausível em direcção ao consumo sustentável. Um casal faz um acordo para ir reduzindo o impacte ambiental. Vivem, Colin Beavan, mulher e filha, na parte baixa da Fifth Avenue, em Greenwich Village. Tudo começou por uma apreciação sobre o aquecimento global e sobre as possibilidades individuais de agir no mundo que caminha para uma tragédia ambiental. Com a ingenuidade de um prosélito, o autor confessa: “Queria ajudar a mudar as mentalidades. Queria encontrar uma forma de incentivar uma sociedade um pouco menos egoísta e um pouco mais amiga dos outros e do ambiente”. Colin Beavan decidiu mudar-se a si próprio e enveredar por uma experiência ao modo de vida familiar, levando uma vida 269 A ODISSEIA DO CONSUMIDOR QUE QUERIA VIVER SEM CAUSAR IMPACTE AMBIENTAL o mais amiga do ambiente possível. Oiçamo-lo de novo: “O meu objectivo não era adoptar meias-medidas amigas do ambiente de fácil implementação. O meu objectivo não era simplesmente mudar as lâmpadas ou reciclar com rigor. O meu objectivo era ir o mais longe possível e tentar ao máximo não ter qualquer impacto sobre o ambiente. O meu fito era conseguir zero emissões de carbono mas também zero resíduos para o solo, zero de poluição atmosférica, gastar zero recursos da terra, expelir zero toxinas para a água. Eu não queria simplesmente reduzir as emissões de carbono, eu não queria causar qualquer impacto”. Assim se iniciou a aventura. Primeira etapa: descortinar como viver sem produzir lixo; a seguir, utilizar meios de transporte que não emitissem carbono; mais adiante, descobrir como causar o mínimo impacto com as escolhas alimentares; seguidamente, passar às etapas que envolviam causar o mínimo impacto possível no ambiente no que diz respeito às compras, operações domésticas, como aquecimento e electricidade e utilização de água e poluição. Na implementação de cada etapa, procedia-se à avaliação dos resultados. Nos primeiros dias, o pensar e o agir em prol do melhor ambiente 270 andaram à volta do uso do papel, das fraldas, da reciclagem em geral. Começou a perplexidade: “Um estudo afirmava que a energia dispendida a lavar chávenas de cerâmica é tão prejudicial para o ambiente como a utilização de copos de plástico descartáveis que só irão degradar-se ao fim de mil anos. Outro estudo defendia que a utilização de água quente e detergente para lavar toalhas de pano é mais prejudicial para o planeta do que o abate de árvores para o fabrico de toalhetes de papel. Se eu fosse a prestar atenção à sabedoria propagada, tudo era prejudicial”. O autor apercebeu-se que neste nicho de mercado pululam os vendedores da banha de cobra. Começou a estudar, aprendeu a separar os lixos, o objectivo fundamental passou a ser acabar com a produção de lixo. Tece uma enorme reflexão sobre a reciclagem, sobretudo sobre as embalagens alimentares e também concluiu que o ideal, a prazo, era evitar o seu uso recorrendo a produções locais, acabando com os alimentos congelados ou conservados. A batalha da reciclagem começava por produzir menos lixo, fazer desaparecer o supérfluo e quase tudo quanto viesse embalado. Seguiu-se a redução da pegada de carbono, abolindo viagens de longo percurso, reduzindo até o uso de transportes públicos. O BEJA SANTOS casal ia ponderando os benefícios e custos de dispensar a viatura privada, fugir aos engarrafamentos do trânsito, passaram a viajar de trotineta. Campo de escolha bastante renhido foi o das opções alimentares, procurou-se uma alimentação sustentável com base na produção num raio de 400 quilómetros. Ultrapassados vários escolhos, a família adaptou-se bem à comida de proveniência local. A experiência do impacto zero começou a provocar sensação na opinião pública. Todos queriam saber como é que se arranjava tempo para cozinhar, ir às compras, fazer iogurte, cozer pão, fazer chucrute e preparar as refeições para a família. Como é que era possível viver sem televisão, recusar tantas comodidades da civilização moderna, fugir dos elevadores, pensar até se é possível prescindir da electricidade. O projecto seguia de vento em popa, eliminara-se o lixo, os transportes e a alimentação insustentável, agora procurava-se escolher a redução no impacto na aquisição de todos os bens, desde o vestuário até aos artigos domésticos, tudo dentro da concepção de encontrar algum equilíbrio entre a qualidade de vida e o consumo de recursos. Instalara-se a guerra contra o consumismo: não comprar produtos novos, pedir emprestado, evitar os entretenimentos de massas, encontrar alternativas para todos os produtos descartáveis. Chegara a hora de avançar para a sustentabilidade energética, de cortar com a electricidade encontrando fórmulas alternativas para lavar a roupa, tomar banho e arranjar a casa. Consolidava-se o novo modo de vida, a mentalidade da família pautava-se pela exigência e o respeito pelo ambiente, a procura de alternativas passou a ser uma constante de uma família dominada pelo impacto zero. Ao fim de um ano, a família assentara a sua existência em novos hábitos, dominada pela simplicidade e pela solidariedade planetária. O livro possui inúmera bibliografia e, insiste-se, é de uma sinceridade desarmante. Não se deve perder este testemunho e esta reflexão sobre o impacto zero! 271 Estranho Quotidiano Beja Santos A todos os títulos, e sem margem para ambiguidades, o quotidiano é o território de eleição da sociedade de consumo: nele se prepara o calendário dos espectáculos das festas, das compras, dos eventos de entretenimento, já que a sociedade de consumo é pré-estabelecida ou pré-preparada (para não dizer que é programada); mas o quotidiano imiscui-se de muitas outras formas na organização do mercado de consumo e no comportamento dos consumidores: porque, pela primeira vez na História, é-se consumidor toda a vida, de manhã à noite e pela própria imprevisibilidade da condição humana nesse quotidiano. Sendo assim tão vasto o seu âmbito, só pode ser percebido através da convergência de múltiplas disciplinas, pelo que é natural que nos limitemos a querer perceber o quotidiano através dos nossos desejos e necessidades, mantendo-nos na ignorância quanto à construção da máquina de sonhos, à função dos negócios nas nossas decisões e a tremenda força da vaga cultural envolvente, onde têm expressão coisas como a cozinha, os espaços da cavaqueira, o papel dos media, a vida do bairro, a dinâmica da estrutura familiar... todos se sentem atraídos por esse estranho, resvaladiço quotidiano, cada um, sempre que pode, lhe lança um olhar profissional, dá a sua interpretação ao incomensurável mosaico, sempre em movimento. Um psiquiatra, José Luís Pio Abreu, escreveu artigos durante dois anos no jornal Destak. Em escassos parágrafos, foi registando as suas opiniões sobre matérias aparentemente tão diversas como sejam: os valores familiares e a cidadania; a sociedade de imagem e o funcionamento da comunicação na rede dos Media, a estranha aliança entre a comunicação social e os aparatos da justiça; o valor da pessoa no primado do económico. São, pois, apontamentos que podem ser desenvolvidos por outros olhares profissionais, naturalmente tentados pelo quotidiano, curtas chamadas de atenção, pensamentos de cidadania nos emaranhados da cidade (“Estranho Quotidiano” 273 ESTRANHO QUOTIDIANO por J. L. Pio Abreu, Publicações Dom Quixote, 2010). O que seduziu o psiquiatra? Decidiu não falar sobre a saúde mental: “Continuo sem saber o que isso é, mesmo após uma vida a tratar doenças ditas mentais. O problema é que a saúde mental se refere sempre á natureza humana, e esta depende dos sistemas culturais. Com a vertiginosa aceleração cultural dos últimos tempos, também a mente humana vai mudando vertiginosamente”. Dirigiu por isso o seu olhar para outros lados: o consumismo, a globalização, a crise económica, a administração da justiça, a imagem do consumo de imagens, por exemplo. É um conjunto organizado de olhares que vale a pena conhecer, como se passa a sintetizar. Primeiro, a ascensão da mulher na esfera do privado e do público. Tenho cá para mim que sem se entender o que se passou não se percebe as novas andanças da sociedade de consumo: com o protagonismo da mulher era imprescindível que houvesse uma recombinação dos papéis familiares, com a independência da mulher, com o investimento do casal na educação dos filhos, aconteceu o inesperado: mudaram as decisões do consumo, a tecnologia mitigou o pavor da morte ou o temor da doença, as crianças tendem a ocupar hoje o lugar de 274 Deus (infelizes crianças!), redesenhou-se a intimidade (inverteu-se o público e o privado), o mercado de trabalho tomado de assalto pelas mulheres é um permanente desafio para as ciências comerciais. Este é um dos ângulos do prisma, para mim incontornável. Segundo, a comunicação e a imagem. Temosaculturadasubjectividade(anossa imagem vende sempre, na família, no emprego, no grupo, na política...) toda a gente trabalha para a imagem, desde o autarca ao executivo. Mas comunicamos pouco porque vemos muito, regra geral de uma forma acrítica, mergulhados em permanência no tumulto das imagens. Geramos assim a figura do robô, um autómato dependente da televisão, dos rumores, da banalidade permanente. Deixámos de ter os olhos nos olhos, só temos olhos nas imagens, a explorar freneticamente capacidades electrónicas, apavorados se nos põem um livro nas mãos e nos fecham num espaço sem outras imagens, sem telemóveis, sem ecrãs, sem sons. A maior parte da comunicação que connosco interfere é espectáculo e circo. Daí, conversarmos com cada vez maior dificuldade. Terceiro, o inferno burocrático é administrado para vários usos: julgamentos na praça pública; as peixeiradas das entrevistas, o sucesso dos programas que cultivam a mons- BEJA SANTOS truosidade ou o disse que disse. É a privacidade travestida de protagonismo público. O que levanta questões tão poderosas como estas: o valor da pessoa humana; o cinismo quando falamos da transparência ou da sinceridade; a manipulação do sentido da crise; o paradoxo das economias que são montadas em grandes empresas com lucros que não têm investimentos produtivos, estes assentam em pequenas e discretas empresas, a trabalhar para as grandes. Alimentamo-nos destes paradoxos, alguns deles insanáveis. Este vasto e estranho quotidiano não se confina a artefactos, crises, pragmatismos políticos, terrores pandémicos. O que Pio Abreu traz nesta colectânea de crónicas não é a vida das cozinhas, nem o sentido do pão e vinho, a memória das fomes ou valores da competitividade. Trabalhando com saúde mental, obrigado a múltiplas intervenções, questiona o animal e o anjo, a alegria e a dor, a ironia e o infortúnio. Não se trata de uma fatalidade, é um dos olhares possíveis sobre o estranho quotidiano, decorre da sua profissão e da sua cultura. Nenhum estranho quotidiano cabe numa enciclopédia, quanto mais num livro. O que é exaltante é equacionar com ironia fina os problemas de base e o nosso nível de conhecimentos e procurar responder à genética, ao estado de Direito e à crise económica. E é muito bom quando somos confrontados com alguém que observa com originalidade, divertindo-nos a reflectir sobre um mundo de diferenças e de gente diferenciada. 275 Joaquim Jorge Veiguinha – Inquérito ao Capitalismo Realmente Existente. Porto: Edições Afrontamento, 2009 Fernando Pereira Marques Como muitas áreas da nossa actividade económica, a da edição (de livros) é movida por uma estranhíssima lógica e escapa, em grande medida, a qualquer racionalidade: aparecem e desaparecem chancelas; qualquer dissertação de mestrado (mais ou menos “bolonhês”) é dada à estampa, muitas vezes não sendo mais do que um exercício de copy paste (para não falar de teses de doutoramento); a propósito do Centenário da República, excluindo umas quantas obras de facto inovadoras, multiplicaram-se os plágios, as colagens de textos, evidenciando sobretudo um apurado sentido comercial por parte desta súbita inflação de especialistas no tema. Se a isto juntarmos a produção maciça de best sellers e a imensidade de Dan’s Brown’s, estrangeiros e nacionais, que poluem as livrarias, percebemos, facilmente, porque é que ensaios como o de Joaquim Jorge Veiguinha passam praticamente despercebidos. Na linha do que é a sua reflexão desenvolvida pertinazmente nas páginas da Finisterra, Veiguinha, antigo discípulo de Umberto Cerroni, associa uma sólida formação económica a uma não menos sólida formação na história das ideias políticas. Este ensaio constitui, assim, uma importante desmontagem do capitalismo “realmente existente” que, como qualquer um de nós pode constatar abrindo a carteira e olhando o recibo do seu salário/ordenado ou pensão, está a conduzir as sociedades a um beco de onde não se sabe bem como vamos sair. Depois de historiar o processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista e de divisão do trabalho, até às actuais fases da mundialização/globalização, acompanhadas ainda pelo fenómeno de hipercomunicação alienante, o autor enuncia três lógicas que caracterizam o estádio atingido actualmente pelo sistema: a lógica do capital financeiro; a lógica do capital-mercadoria; a lógica da comunicação. O que sintetiza da seguinte maneira: “ A lógica 277 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA – INQUÉRITO AO CAPITALISMO REALMENTE EXISTENTE do capital financeiro ou do capital fictício intensifica ou prolonga as jornadas laborais ao mesmo tempo que restringe a base produtiva. A lógica do capital-mercadoria segmenta os mercados segundo as diferenças de rendimento, converte o supérfluo em necessário e o necessário em supérfluo, instaura uma competição produtivista e consumista a nível mundial que se torna ecologicamente insustentável e que tem como principal estímulo o aprofundamento das desigualdades e das diferenças sociais. A lógica da comunicação vai buscar a ambas o seu alimento e contribui para a sua reprodução. Esta lógica baseia-se na fragmentação e desintegração do espaço público.” (p.164) A estas três lógicas o autor opõe, como proposta de doutrina e de acção, várias “contralógicas” ou caminhos para uma alternativa possível: a do retorno à política para a superação de uma situação de grave crise e que deverá passar, inevitavelmente, pela requalificação da Democracia, através do alargamento da sua dimensão social; a da justiça fiscal e das políticas sociais, o que significa que há que combater as mistificações em torno dos sistemas de Segurança Social pública que, mesmo que imponham medidas para garantir a sua sustentabilidade, estão no cerne do adquirido civilizacional expresso 278 na ideia de Estado-Providência duramente construído, sobretudo no pós-Guerra, e que está ser desmantelado; a das políticas laborais que têm sido caracterizadas pela generalização da precariedade e pelo recurso às deslocalizações que geram novas formas de exploração dos países menos desenvolvidos, neste âmbito importando equacionar os modelos de organização sindical e de luta dos trabalhadores, inclusive introduzindo a velha reivindicação humanista de redução do tempo de trabalho; a da questão do espaço público ou do modo de vida, indissociável dos aspectos anteriores, que torna necessário um novo contrato social, a passar pela educação (para a cidadania) e pela cultura, de forma a terminar com a comunicação unidimensional do capitalismo. Estas “contralógicas” redundam na necessidade de definição de um novo modelo de desenvolvimento, de uma nova ordem económica, de que depende a defesa da própria democracia posta em causa por esta situação bloqueada e cada vez mais degradada a que conduziu o “capitalismo realmente existente”. Torna-se imperioso, diz o autor, um pensamento crítico que rompa com a hegemonia ideológico-cultural que pretende justificar o injustificável da desordem social e económica FERNANDO PEREIRA MARQUES predominante. E porque é que os movimentos sociais e políticos de esquerda não conseguem capitalizar os efeitos da crise e retomar a ofensiva? Devido, precisamente, a essa hegemonia e à rendição de grande parte da esquerda institucional ao statu quo neoliberal e à ditadura dos mercados. Uma nova tomada de consciência colectiva se impõe portanto, a qual tem de passar pela vontade de mudança transformada em ideologia, pela recusa do conformismo, pela renovação política de uma esquerda que, em especial nos últimos anos, se deixou colonizar e atrofiar. Como se vê, questões que não podiam ser mais actuais e que tornam este ensaio um contributo de grande importância para ajudar a pensar e a agir. Antes que seja tarde e que se bata no fundo, o que pode fazer ressuscitar reacções radicais e autoritárias que alguns ingénuos ou tontos, úteis aos interesses dominantes, pensam estar relegadas para um passado definitivamente passado. 279 REVISTAS RECEBIDAS Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 3º Trimestre 2009 Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 4º Trimestre 2009 Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 2º Trimestre 2010 Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 3º Trimestre 2010 Humanística e Teologia, Universidade Católica Portuguesa, Porto, Dezembro 2009 Paralelo, Fundação Luso-Americana, Lisboa, Outono/Inverno 2010 Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Junho 2009 Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Setembro 2009 ParoleChiave, Carocci Editore, nº41, Roma, 2009 ParoleChiave, Carocci Editore, nº42, Roma, 2009 Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Dezembro 2009 Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Março 2010 Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Junho, 2010 Revista de Assuntos Eleitorais, Direcção Geral da Administração Interna, Lisboa, Setembro 2010 Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Julho/Dezembro 2009 Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Janeiro/Julho 2010 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Novembro/Dezembro 2009 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Janeiro/Fevereiro 2010 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Julho/Agosto 2010 Nº TEMA PRINCIPAL ANO 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10/11 12 13/14 15 16 17 18/19 20 21/22 23 24/25 26 27/28 29 30 31/32 33 34 35 36/37 38 39 40/41 42/43 44 45 46 47/48 49/50 51/52 53/54 55/56/57 58/59/60 61/62/63/64 65/66 67/68 69/70 O SOCIALISMO DO FUTURO* DOSSIER EUROPA A IDEIA DE REVOLUÇÃO REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA? O REGRESSO DOS NACIONALISMOS A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO? O FIM DA POLÍTICA? AMÉRICA! AMÉRICA! A ALEMANHA E A EUROPA A EUROPA, NÓS E OS OUTROS A ESPANHA E NÓS O FIM DE UM CICLO A EUROPA E NÓS VÁRIOS TEMAS POR UMA EUROPA À ESQUERDA O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO? O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS O REGRESSO DO POLÍTICO DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA? JUSTIÇA FISCAL A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO A EUROPA DEPOIS DE NICE A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO O MUNDO EM CRISE SER MINORIA, HOJE A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA A CRISE MUNDIAL UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA O ISLÃO E A MODERNIDADE EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS? OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS LIBERALISMO E DEMOCRACIA PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL A EUROPA DEPOIS DE LISBOA QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS? O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMO 1989 1989 1989 1990 1990 1990 1991 1991 1992 1992 1993 1993 1994 1994 1995 1995 1996 1996 1997 1997 1998 1998 1998 1999 1999 1999 2000 2000 2000 2001 2001 2001 2002 2002 2003 2003 2003 2004 2004 2004 2005/6 2007/8 2008/9 2009 2009 2010 *O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10 anos antes, publicados no nº 1) NOTA: Os assinantes que queiram adquirir números antigos e anteriores à sua assinatura beneficiam de 25% de desconto na aquisição de cada exemplar. Na aquisição de uma colecção, à excepção do nº 1 – esgotado –, beneficiam de 50% de desconto. «Finisterra»: a Revista de Reflexão e Crítica Assinatura: anual (quatro números) Estrangeiro Normal: 40€ Instituições: 52€ Europa: 103€ Apoio: 58€ Estudantes: 25€ Fora da Europa: 117€ Considerem-me assinante da «Finisterra» a partir do n.º NOME MORADA LOCALIDADE CÓD. POSTAL TELEFONE N.º CONTRIBUINTE EMAIL FORMA DE PAGAMENTO cheque n.º Cartão de Crédito VISA do Banco Autorizo o débito de € Nome que consta no cartão Assinatura Nº do cartão Prazo de validade Código de Segurança O código de segurança são os 3 dígitos que se encontram no verso do seu cartão TIRE FOTOCÓPIAS e envie para: «Finisterra» - Fundação Res Publica, Av. das Descobertas, 17 - 1400-091 LISBOA 284