Repensando as representações acerca do patrimônio histórico
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Repensando as representações acerca do patrimônio histórico
Repensando as representações acerca do patrimônio histórico: olhares sobre o tombamento de uma antiga base de atracação de Zeppelins Rafael de Oliveira Rodrigues introdução No dia 22 de maio de 1930, enquanto os principais jornais do Brasil discutiam os rumos políticos do país e a adesão de Julio Prestes ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), tornando pública sua identificação com as principais teses programáticas do PCB, os jornais do Recife estampavam em suas capas uma notícia que provocava muita agitação entre a população local: a chegada do dirigível Graf Zeppelin na cidade. Toda essa euforia tinha um motivo: era a primeira vez que o dirigível alemão atracava em um país da América Latina. O prefeito Francisco da Costa Maia decretou feriado municipal e o Recife parou para ver de perto o Zeppelin.1 A partir daí teve início a construção de toda uma estrutura para manutenção dos dirigíveis no local e o Jiquiá se tornava uma escala na rota internacional do transporte de passageiros. Todavia, apesar da prosperidade do empreendimento, em 1937, devido ao acidente envolvendo um dirigível no campo de Lakehurst, em Nova York, o transporte por dirigíveis foi suspenso e a base dos Zeppelins no Jiquiá foi desativada, ficando a torre de atracação e toda estrutura necessária a sua manutenção esquecida no local. 1 Os Zeppelins pertenciam à companhia Zeppelin e foram criados no final no século XIX na Alemanha, pelo conde Ferdinand Von Zeppelin. O dirigível que atracou no Recife media 235m de comprimento, 33,5m de altura e 33,5m diâmetro, com uma velocidade média de 110 km/h, atingindo uma altura média de 150 a 200m, com cabines para os passageiros, salão de festas, sala de jantar e toaletes. 319 Dispensadas de suas funções, as bases para atracação de dirigíveis foram sendo desativadas no mundo todo. Em 1983 a antiga torre de atracação do Jiquiá foi tombada pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), no entanto, apenas em 2003, numa parceria entre a Fundarpe e o Ministério Público Federal, a torre e a base passaram por um processo de restauração (Diário de Pernambuco, 2009). Este período foi caracterizado pelo surgimento de uma série de propostas de projetos na área, as quais convergiam para a construção de um parque temático que remete à história dos dirigíveis (Diário de Pernambuco, 2009). Todavia, apenas no final do ano de 2009, essas propostas começaram a ser colocadas em prática, com a assinatura de um convênio entre os governos federal, estadual e municipal. A parceria visa, além do tombamento da área pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a implementação dos projetos de construção de um parque científico-cultural no bairro, que inclui um museu do Zeppelin, com o restauro da Torre de Atracação e uma praça voltada para o Jiquiá e as comunidades vizinhas à base, que ao longo dos anos tem sofrido um processo de favelização. É sobre esse processo de tombamento da base que se concentra este ensaio. Através das notícias sobre o tombamento da antiga base de Zeppelins no Jiquiá e da literatura antropológica sobre a temática do Patrimônio Cultural (Velho, 1980; Arantes, 2006), pude perceber que há uma tendência nas políticas patrimoniais a homogeneizar as representações sobre o status patrimonial dos objetos tombados, omitindo-se, ou atenuando-se, as ambiguidades que existem na sua construção como patrimônio pelas agências do Estado. Atentando especificamente para este problema, Gonçalves (2007) observa que a forma como essas agências do Estado representam as populações envolvidas com os bens patrimoniais traz um alto risco de que não haja ressonância do bem tombado perante a população. Nesta perspectiva, autores como Rocha e Eckert 320 (2005), Frehse (2005) e Lima Filho (2006) também enfatizam que o patrimônio é uma construção social, em que o estatuto patrimonial de determinados objetos – neste caso, os Zeppelins do Jiquiá – não está definido, mas em construção, dando origem a várias representações sobre patrimônio pelos diversos atores envolvidos nos processos de reconhecimento, tombamento e preservação dos bens imóveis. Assim, o objetivo deste ensaio é discutir algumas questões referentes à construção de representações de determinados bens como patrimônio histórico, e como se dá o reconhecimento desses bens pelas populações diretamente envolvidas, tomando como referência o processo de tombamento da antiga base de atracação de dirigíveis Zeppelins, no bairro do Jiquiá. Procura-se, portanto, discutir as implicações metodológicas da forma como essas populações são representadas nesses processos e o grau de ressonância alcançado pela forma como essas políticas são colocadas em prática. Conclui-se refletindo como estas políticas contribuem para a diminuição de ambiguidades na construção das representações de determinados bens patrimoniais, sem levar em conta as diversas representações das populações diretamente envolvidas com estes bens. o lugar da diferença na representação do patrimônio histórico Tomando como base os estudos sobre patrimônio cultural (Leite, 2002; Arantes, 2006; Lima Filho, 2006; Gonçalves, 2007), é possível perceber que há um problema frequente nos processos de tombamento, preservação e reconhecimento de bens imóveis no Brasil. Trata-se do problema da homogeneização das representações acerca desses bens como patrimônio, ou seja, a forma como as ambiguidades são atenuadas na construção de determinados objetos como bens patrimoniais. Uma das principais consequências 321 deste problema é a pouca ressonância que esses bens encontram perante as populações em contato com eles, ou seja, não chegam a ser reconhecidos como tais por essas populações. Diante dessas evidências, e tomando como base a relação histórica dos Zeppelins com o bairro do Jiquiá, é possível problematizar questões referentes à construção de representações de determinados bens como patrimônio histórico e verificar como se dá o reconhecimento desses bens. Ao me debruçar sobre o projeto de tombamento da antiga base de atracação de dirigíveis do Jiquiá e ao realizar algumas conversas com a equipe técnica que ganhou a licitação para o tombamento da área, observei que a concepção de “representação do outro” presente nas práticas desses agentes toma uma ideia de representação já bem conhecida na antropologia, que procura dar conta do todo sem levar em conta as dimensões do conflito e da diferença na hora de definir as representações sob as quais determinados bens serão reconhecidos. Em outras palavras, ouso dizer que a ideia de representação tomada por essas instituições ainda está pautada nas premissas durkheimianas, as quais não contemplam as subjetividades individuais e coletivas, constituindo muitas vezes um esforço de homogeneização das interpretações e dos sentidos possíveis, sobre um dado contexto social. Explico melhor o que pretendo com essa hipótese. Segundo Durkheim (1989), as representações seriam uma categorização da realidade experimentada conjuntamente pelos indivíduos em sociedade, ou seja, uma ordenação básica da consciência coletiva necessária à organização e reprodução da sociedade, ao aparato cognitivo individual. Ainda segundo Durkheim (1989), as representações sociais refletem o modo como o grupo se pensa em suas relações com os objetos que os afetam. Ao buscar uma forma de entender a solidariedade social e o consenso na hora de representar determinados fatos sociais, Durkheim opta por uma ideia integradora e homogênea de representação, não levando em conta o 322 conflito existente na hora de representar determinados objetos ou fatos sociais, e tampouco a criatividade, ou as subjetividades dos indivíduos que se relacionam entre si.2 Não gostaria aqui de dizer que a perspectiva durkheimiana não é interessante para refletir a vida em sociedade, pelo contrário, penso que a representação do outro seja uma questão fundante da antropologia, além de ser a chave para refletir sobre a aplicação e a ressonância de uma gama de políticas públicas e sociais. Também não gostaria de adotar um tom de denúncia característico da imprensa marrom, quanto à forma como as instituições brasileiras aplicam as políticas de reconhecimento, tombamento e preservação de bens imóveis. O que pretendo aqui é apenas fazer uma reflexão metodológica, na qual as representações das populações diretamente envolvidas sejam levadas em conta na construção do patrimônio histórico. Proponho, portanto, chamar a atenção para as ambiguidades sublimadas nas representações dos Zeppelins do Jiquiá como um patrimônio. Em outras palavras, sugiro que o conflito e a diferença não sejam categorias exteriores às representações de um bem como patrimônio. Penso que trazer essas categorias para pensar a representação do outro nas políticas patrimoniais poderia levar a uma maior ressonância delas nas populações afetadas por esses processos. Voltando o olhar mais especificamente para esse ponto, Frehse (2005) observa que, ao trazer essas categorias para pensar as representações, podemos melhor compreender a complexidade das relações sociais, pensando como determinados eventos,3 neste 2 Esta dimensão está bem trabalhada por Moscovici (1978). Revisando o conceito de representações coletivas, Moscovici vai desenvolvê-lo para “representações sociais”, tornando-o apto a expressar a participação do indivíduo nos processos de mudança social de nossa época, marcada pela abundância de informações circulantes, de vigência relativamente breve, e a consequente improbabilidade de estruturar tantas ideias em um esquema de conhecimento permanente. Desta forma, ele afirma que as representações são um corpus organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças à qual os homens fazem inteligível a realidade física e social, se integram em um grupo ou em uma relação cotidiana de intercâmbio. 3 Sahlins (1990) observa que um acontecimento só se torna evento quando um significado lhe é atribuído, dentro de uma “conjuntura da estrutura”, cuja finalidade é assegurar que determi- 323 caso a vinda dos Zeppelins para o Jiquiá e o tombamento da antiga base, podem ser representados das mais diversas formas pelos vários atores sociais envolvidos: a população local e do entorno da área, o Estado e a mídia. Na mesma perspectiva que Frehse (2005), Rocha e Eckert (2005) chamam a atenção para a ideia de negociação da realidade, que também permite pensar as tensões que envolvem a construção de determinadas representações. Com base nessa ideia, Rocha e Eckert (2005) observam que a ênfase analítica das representações sociais e individuais recai sobre as formas de organização e interação entre indivíduos e suas redes de relações, como campos de negociação da realidade. Ao tomar as representações sobre a transformação dos dirigíveis em um patrimônio histórico do Recife como categoria de análise, levando em conta a dimensão do conflito, é possível refletir sobre o lugar de fala das populações locais. Dito de outra forma, é possível refletir de forma crítica sobre a prática dos agentes do Estado e do Iphan, os quais definem o que vem a ser patrimônio sem levar em conta, muitas vezes, as diversas representações sobre determinados objetos em vias de patrimonialização. Nesses processos, eles terminam optando por justificar a importância patrimonial do bem, tomando como verdades objetivas representações que muitas vezes não afetam as populações, ou comunidades diretamente envolvidas com esses bens. Ao trazer as tensões existentes na construção histórica de determinados objetos como patrimônio, é possível pensar processos de patrimonialização mais próximos da realidade das populações envolvidas, de modo que as representações dessas pessoas sejam levadas em conta ao longo desse processo. Não pretendo alcançar com essa sugestão metodológica formas mais “legítimas” de construção de patrimônio, pois, diante da gama de representações e tensões que permeiam esses processos de nadas interpretações sejam institucionalizadas. Estas estão ligadas, mais especificamente, à manutenção das tradições, que se sedimentam ao logo da história. 324 tombamento, seria impossível uma representação que evocasse em todos o status patrimonial do bem em questão. Entretanto, sustento que é possível pensar em formas e práticas que levem em conta as representações das pessoas que convivem com esses objetos patrimoniais no seu cotidiano, para que se possa falar em uma maior ressonância deles junto à população em volta. Em outras palavras, ao pensar a heterogeneidade existente nas representações sociais sobre o patrimônio, proponho que se pense não em indivíduos isolados, mas em indivíduos que partilham suas categorias de pensamento, dentro de uma determinada conjuntura sociocultural, e que sejam, de alguma forma, levados a refletir e interagir com o patrimônio a sua volta. Ainda diante do problema metodológico nas representações que envolvem o reconhecimento dos Zeppelins como um patrimônio histórico da cidade do Recife, convém perguntar: em que medida a representação oferecida aqui sobre a relação dos Zeppelins com o Jiquiá, no atual processo de tombamento, se diferencia das representações dos documentos e imagens que serão analisados no próximo ponto desse ensaio? Sobre essa questão, que considero o cerne do problema aqui, Frehse (2005) atenta que, ao lidar com a categoria representação nas pesquisas – chamo a atenção especificamente para as pesquisas que envolvem o reconhecimento e tombamento dos bens imóveis no Brasil –, o pesquisador deve ter em mente que o material de análise – fotografias, imagens, documentos textuais, entrevistas, entre outros – são construções, representações que foram registradas dentro de determinado contexto sociocultural. Nesse sentido, eles podem nos fornecer uma interpretação do passado, mas em hipótese alguma um “resgate” dele, cabendo ao pesquisador uma interpretação do que está evidente nesses documentos, mas também das reticências neles presente (Malinowski, 1982). Nesse sentido, para evitar que se essencializem as representações feitas dos Zeppelins, é necessário estar embasado em algumas categorias 325 preestabelecidas a serem analisadas nas representações construídas sobre o evento. No caso deste ensaio, as categorias que vão dar base à análise serão a diferença, o conflito e o patrimônio. A partir dessas categorias predefinidas, penso que tanto quem aplica as políticas patrimoniais quanto os próprios cientistas sociais podem evitar assumir como “verdades objetivas” dados das fontes que não são mais do que representações dos autores da documentação analisada. Gostaria de concluir essa primeira parte observando que estudos e pesquisas sobre o fenômeno das representações sociais, numa perspectiva que alia as abordagens macro e microssociológicas dos fenômenos socioculturais, como as sugeridas por Frehse (2005) e Rocha e Eckert (2005), não apenas aparecem como referência para o entendimento da reconstrução das identidades de grupos e indivíduos na realidade contemporânea, mas também oferecem uma alternativa para que se pense o lugar da diferença e, logo, uma maior ressonância nas políticas de preservação e tombamento do patrimônio. Penso também que essa abordagem seria uma alternativa metodológica para se pensar como o poder público, personificado em instituições como Iphan e o Estado, as redes de comunicação, formais e informais, intervêm na elaboração de determinadas representações, abrindo caminho para processos de influência. Dessa forma, nada melhor do que a relação dos Zeppelins com o Jiquiá, no processo de tombamento da antiga base, para que o leitor possa compreender a dinâmica da relação entre representações e patrimônio histórico. Agora, gostaria de convidar o leitor a fazer um passeio pelo bairro do Jiquiá nos tempos dos Zeppelins. Trata-se de problematizar como as representações dos dirigíveis têm sido evocadas atualmente, durante o tombamento da base pelo Iphan, analisando se este processo de patrimonialização da estrutura física da antiga base encontra alguma ressonância diante da população local. 326 repensando as representações acerca da patrimonialização dos zeppelins do jiquiá Maio de 1930. No Congresso Nacional fervilhavam as discussões sobre os rumos políticos do país, mas nas ruas do Recife eram outras as questões que chamavam a atenção da população local, pelo menos é o que é possível observar na primeira página do Diário de Pernambuco, do dia 22 de maio de 1930, que fazia referência ao evento como a “chegada do futuro” e do progresso para a cidade. Além da notícia, que poderia cair como uma luva no espírito de época,4 o evento também foi transmitido no rádio, e o poema “Graf Zeppelin” (Anexo A), do modernista Ascenso Ferreira, foi narrado e registrado como um dos momentos de maior euforia que a cidade do Recife já experimentou. Ao analisar a representação do evento feita pelo modernista, é possível perceber que o poeta começa simulando uma transmissão de rádio em outros idiomas: espanhol, francês, inglês. Aos olhos do poeta, o Zeppelin era sinônimo da redução de fronteiras e maior aproximação entre diversas nações. Uma referência direta ao espírito de época, em que se idealizava o padrão de modernidade de uma elite que havia se sedimentado no poder após a proclamação da República. Todavia, ao voltar nossas lentes para o poema com um olhar mais atento, podemos observar as tensões que permeavam esse ideal de modernidade – entre o moderno, o Zeppelin, quebrando fronteiras, e o regionalismo, na voz do matuto, que, ao se deparar com a novidade, constata, numa sensação de estupor: “Parece um navio avoando nos ares. Credo, isso é invento do cão!”. Enfim, ao debruçar sobre o poema, é possível perceber que não há uma única representação acerca do evento. Além do avanço tecnológico que proporcionava um maior contato com outras na4 Neste período, as principais capitais brasileiras se urbanizavam, na medida do possível, nos moldes da Paris de Haussmann, que no contexto do bonapartismo autoritário pós-1848 visavam, além de higienizar a cidade, disciplinar o uso dos espaços urbanos e adequá-los às necessidades de circulação que as cidades industriais demandavam. 327 ções, havia uma série de tensões na relação entre os dirigíveis e o bairro. Cabe destacar (Anexo B) que o Jiquiá daquela época era um alagadiço, uma área de mangue, e que a implementação da base de atracação dos dirigíveis não foi um empreendimento fácil. Focando um pouco mais nas tensões sublimadas nas representações deste evento, voltemos a alguns dias antes da chegada do dirigível. No dia 3 de maio de 1930, ao se debruçar sobre a primeira página do Diário de Pernambuco, lia-se: A prefeitura do Recife, por seu lado, está concluindo os reparos da estrada do Jiquiá e adaptação do pequeno largo que dá acesso ao campo, na previsão do extraordinário tráfego que ali afluirá com o sensacional acontecimento que vai ser a chegada do famoso dirigível. No intuito de ampliar esse pequeno largo, vão ser desapropriados, no local, e demolidos alguns casebres, já estando muito adiantados os trabalhos de terraplanagem ali desenvolvidos. Ao observar a forma como o Diário tratou esse episódio, se percebe, primeiro, que a vinda das aeronaves ocasionou diversos conflitos, tanto técnicos quando sociais. Além da organização espacial do Jiquiá e dos bairros vizinhos, para viabilizar o acesso à base, a população local que se encontrava dentro da área escolhida e próxima ao entorno precisou ser deslocada de suas casas. Segundo, em nenhum momento o jornal faz menção a quais medidas foram tomadas: se a população foi realocada, ou apenas despejada e entregue à própria sorte. Enfim, a relação dos dirigíveis com o bairro é representada como a chegada do futuro, sem que em nenhum momento se dê atenção à população local e aos conflitos provocados pelo empreendimento. Não quero com isto acreditar que a população local teria voz na consolidação deste projeto, pois, como já vimos com Frehse (2005) e Gonçalves (2007), as ambiguidades tendem a ser atenuadas nas representações desses processos. Entretanto, ao observar essas representações, devemos estar atentos às reticências e ao contexto histórico de produção desses documentos. 328 Enfim, através do texto divulgado é possível perceber que “a chegada do futuro” tão propagada não é uma verdade objetiva acerca do evento, mas sim uma representação sobre a modernidade brasileira, que chegava de braços dados com os Zeppelins, mas que não encontrava nenhuma relação de melhoria nos serviços públicos para a população local envolvida com o empreendimento. Ainda nesse sentido, destaco a manchete da primeira página do Diário de Pernambuco no dia 7 de novembro de 1935: “Desde a caravela de Duarte Coelho ao Zeppelin, Pernambuco continua a ser um campo de vastas oportunidades”. Mais uma vez a associação dos Zeppelins com a chegada do futuro e do progresso aparece explicitamente. No entanto, agora o empreendimento é associado também ao maior “desenvolvimento” da cidade e, também, a mais “oportunidades” para a população recifense. Mas de quais oportunidades estamos falando aqui? Oportunidades de trabalho? Oportunidades de crescimento econômico? Para quem? Será que as representações das oportunidades contemplam as pessoas do Jiquiá de meados da década de 1930? É difícil acreditar que os dirigíveis trariam essas oportunidades tão propagadas. Através das imagens da época, não é difícil inferir que os serviços oferecidos com a vinda dos dirigíveis traziam e requeriam, normalmente, técnicos do estrangeiro. E o que dizer do crescimento econômico? Bem, é fácil inferir também com base nas notícias selecionadas aqui que o crescimento econômico não chegava à população do Jiquiá e do entorno da base de atracação das aeronaves. Para melhor entender as discrepâncias entre a representação onírica do evento, feita pela mídia, e a realidade vivenciada pela cidade, especialmente no Jiquiá, voltemos um pouco mais ao ano de 1935 e tomemos como exemplo a notícia do dia 15 de janeiro, intitulada “Cena de sangue no interior do bar Zeppelin” (Diário de Pernambuco, 1935). A matéria é bastante ilustrativa das desigualdades que permeavam o bairro, onde, de um lado, assistia-se 329 ao desenvolvimento de uma nova ordem urbana moderna, e de outro, fora dos muros da base dos dirigíveis, em um bar que levava o mesmo nome das aeronaves, a todos os problemas sociais que essa nova ordem acarreta, implícitas nesta notícia sobre um violento assassinato nas imediações da base. Nesse sentido, parece que as oportunidades referidas na manchete anterior, atreladas às representações de progresso da época, ainda não haviam saído das proximidades da base de atracação para a população local. Ao cruzar as ruas dos terrenos alagados do Jiquiá da década de 1930, por meio das representações feitas pelo Diário de Pernambuco, é possível perceber que os Zeppelins foram apresentados como um ícone de modernidade e progresso pelas lentes do jornal. Isto não poderia ser diferente, pois, voltando nosso olhar para aqueles tempos, dentro do contexto de modernização e urbanização, segundo os princípios higienizadores da Paris de Haussmann, sob os quais todas as capitais brasileiras, de uma forma ou de outra, se urbanizavam, seria ingênuo achar que a população do Jiquiá teria alguma voz, ou algum direito de comunicar suas representações daquele evento. A implementação da base, certamente, se deu mais visando às necessidades estrangeiras do que locais. Também é interessante notar, em diálogo com Frehse (2005), no que se refere aos aspectos das representações, e com Gonçalves (2007), sobre seu reflexo nas políticas de patrimônio, que as representações do evento pelo Diário, já nessa época, tratavam os Zeppelins como um dos bens patrimoniais mais importantes da cidade. Nessas circunstâncias, o Diário de Pernambuco construiu uma representação homogênea dos dirigíveis, como um símbolo da modernidade, em detrimento das contradições advindas com esse ideal de modernização e das representações das populações diretamente envolvidas, as quais não usufruíram do ideal de modernidade advindo com as aeronaves. Os anos se passaram, e a base de atracação foi desativada em 1937, permanecendo no Jiquiá apenas a estrutura física do antigo 330 aeródromo e as memórias de alguns moradores locais e pessoas que experienciaram os tempos dos dirigíveis. Durante os anos que se seguiram, o local passou por diversas fases administrativas: jurisdição do governo estadual no período dos Zeppelins; norte-americana, durante a Segunda Guerra Mundial; depois ficou, sucessivamente, sob a administração da Aeronáutica e da Marinha brasileira; pertenceu ao Banco Nacional de Habitação; foi vendida para a Caixa Econômica Federal e nos dias atuais, de acordo com informação do Diário de Pernambuco, o terreno foi adquirido da Caixa Econômica pela Prefeitura Municipal do Recife. Durante esse período, com a ampliação e a construção das principais vias de acesso ao sul da cidade, o entorno da base também passou por um grande crescimento demográfico e populacional. Nesse contexto de transformações vivenciado pelo Jiquiá e pelos bairros vizinhos, dos problemas de habitação cada vez maiores – com a invasão da área da antiga base –, no ano de 1983 a torre de atracação foi tombada pela Fundarpe (Anexo C), mas nada foi feito em termos de projetos para a área. Apesar do tombamento da base pela Fundarpe e do surgimento dessas propostas, a estrutura da base permaneceu como estava, com a única diferença de que, agora, sua área fora delimitada. Além disso, os problemas de habitação continuaram a se intensificar no local. Aqui já é possível perceber a pouca ressonância que esse primeiro processo de tombamento estadual encontrou na população local. No final do ano de 2009 (Diário de Pernambuco, 2010), as propostas de construção do parque temático começaram a ser colocadas em prática pelo Ministério da Tecnologia e do Desenvolvimento, com a assinatura de um convênio entre os governos federal, estadual e municipal, que visa, além do tombamento da área pelo Iphan, a implementação dos projetos de construção de um parque científico-cultural sobre a historia da aviação, incluindo um museu sobre a história dos Zeppelins. Desse modo, a relação do Jiquiá com os dirigíveis volta a aparecer nas páginas dos 331 jornais, e a representação feita do evento, como um dos ícones mais importantes da modernidade da cidade, ressurge. Todavia, não é feita nenhuma referência aos conflitos obscurecidos quando da vinda dos dirigíveis em meados da década de 1930; mas esses conflitos reaparecem novamente, em virtude do deslocamento das pessoas que invadiram a área delimitada da base. Sobre o início do tombamento da base pelo Iphan e os acordos que aceleram a construção do parque temático, o representante do Ministério da Tecnologia e do Desenvolvimento observa: “[esse] é um projeto ambicioso que dará ao Campo do Jiquiá uma utilidade completa para a população local e dos bairros vizinhos, além de fomentar o turismo para o local” (Diário de Pernambuco, 2009). O argumento de que Pernambuco tem uma das últimas torres de atracação do Graf Zeppelin no mundo e de que o bairro do Jiquiá foi uma escala na rota internacional do transporte de passageiros ressurge então com mais força. Ao se debruçar sobre a documentação selecionada para caracterizar algumas tensões que envolvem o Jiquiá e os Zeppelins, é possível levantar a seguinte questão: será que a representação dos Zeppelins como um patrimônio histórico, associada diretamente aos ideais de progresso da época, encontra alguma ressonância na vida da população local? Para refletir sobre essa questão é interessante evocar as lembranças daqueles tempos, e ver como elas aparecem hoje para as pessoas. Vejamos como elas se mostram nas memórias do Sr. Airton, que nasceu no bairro em 1938 e cresceu em meio às história dos dirigíveis: Eu não vi o dirigível, mas a torre eu sempre via, do quintal de trás da minha casa dava pra ver a torre... O dirigível esteve lá pela última vez em 1937, eu nasci em julho de 1938, quer dizer que a minha infância foi escutando estórias sobre o dirigível... Aquele bairro era muito pobre. Na minha infância mesmo não havia luz, iluminação pública, era luz de candeeiro, não tinha saneamento, nem água encanada. As casas eram quase todas de palha, eram mocambos mesmo. E o bairro eram só marés. Tinha uns viveiros e tinha a venda de peixe, era bem folclórico. (Sr. Airton, Recife, 2009). 332 À luz do relato do Sr. Airton, é possível perceber as diferenças que permeavam o cotidiano das pessoas naqueles dias. De um lado, uma estrutura urbana moderna, de fato, fora implementada, com luz elétrica, água encanada, fábrica de hidrogênio, entre outros; do outro, um Jiquiá “pré-urbano”, que ainda trazia características predominantemente rurais. Enfim, dois lugares completamente díspares convivendo num mesmo tempo e espaço. Ainda observando as memórias do Sr. Airton, é interessante notar que uma série de elementos do cotidiano local é evocada ao falar sobre as histórias dos dirigíveis e sobre o futuro processo de tombamento e construção do parque (Anexo D). Ao perguntar se ele estava ciente da construção do parque e do tombamento da base, começou a recordar imagens do cotidiano daqueles dias: Tinha também os miudeiros. Eles iam sempre no fim da tarde e iam pra Peixinhos, no matadouro, e pegavam os restos dos bois que eram abatidos. Eles traziam as vísceras frescas, eram os profissionais folclóricos da época. Aí lá em casa a gente comprava tudo fresquinho: fígado, tripa de boi, mão de vaca, essas coisas... Tinha os vendedores de fruta. Antigamente eles levavam vários balaios num tripé e eles saíam vendendo na comunidade.Tinha uma série de profissionais que eu me lembro e na época dos dirigíveis eles deviam vender bem mais. (Sr. Airton, Recife, 2009). Ao voltar nossas atenções ao relato do Sr. Airton, é possível nos perguntar: até que ponto essa população do Jiquiá e do entorno se sente representada pelas políticas de patrimonialização? Em outras palavras, como os técnicos que desenvolvem as políticas patrimoniais têm trabalhado essas memórias nas suas práticas? Voltando nossas atenções para as ressonâncias do reconhecimento e do tombamento da antiga base dos dirigíveis, é interessante destacar uma das recomendações gerais de instrução de processos de tombamento de bens materiais, presente no ponto IV do projeto de tombamento da área da antiga base de dirigíveis pelo Iphan: “O uso e função sociocultural do bem ao longo do tempo devem ser considerados” (Brasil, 2010). Tomando como base esta sugestão 333 do projeto de tombamento da área, é possível perceber que, no papel, há uma preocupação com as relações entre o bem cultural e as pessoas envolvidas, neste caso, a população do bairro do Jiquiá, que tem se relacionado com os dirigíveis desde o primeiro pouso, até os dias atuais, em cantigas populares, em poemas locais e nos principais jornais da cidade do Recife. Mas será que na prática – quando da execução do projeto que dará subsídio ao futuro laudo de tombamento de bens históricos – há alguma preocupação com a população local e do entorno? Para refletir sobre essa questão, destaco aqui um trecho de entrevista feita por mim, com uma historiadora, que faz parte da equipe técnica selecionada pelo Iphan para o tombamento da base: Entrevistador: Houve algum contato de vocês com o pessoal que mora lá perto, ou do entorno? Informante: Não, quando vamos lá é só para fazer uma análise do estado do local. Entrevistador: Hum... Informante: Da torre, da vegetação... dos imóveis... Entrevistador: Hum... mas mesmo assim, vocês observam a área... a população... Se eu te pedisse para descrever quais suas impressões do lugar, você poderia me dizer? ... Como é o entorno da área? Informante: Humm... sim... é possível perceber que no entorno há uma grande quantidade de sub-habitações (favelas), inclusive só é possível nossa visita com a presença de um policial, porque eles [a população] circulam livremente pela área do Campo. Entrevistador: Entendi, então, há uma sensação de perigo iminente? Informante: Isso. Entrevistador: Então, mesmo a área estando delimitada e fechada, em teoria, qualquer um entra por Sam Martim, pela Mangueira, pelas invasões da estância, do rio Jiquiá? Informante: É, há esse acesso, porém próximo à torre eles não se aproximam, devido à polícia.5 5 Entrevista concedida no dia 8 de junho de 2010. 334 Este trecho de entrevista é muito ilustrativo das ambiguidades que envolvem o diálogo entre o poder público e a população local. Tomando como referência esta entrevista, pode-se notar que, durante o tombamento da base dos Zeppelins, há pouquíssimo contato da equipe responsável com a população local. Dessa forma, a representação feita do evento, da importância histórica dos dirigíveis na cidade e no bairro, não é construída em diálogo com as pessoas que vivenciaram os tempos dos dirigíveis nem com os que residem no bairro hoje, mas sim por agentes externos, como a mídia, o estado, entre outros. Diante dessas evidências, de fato, as representações acerca dos Zeppelins do Jiquiá, associadas aos ideais de modernização e progresso comuns a uma época, são construídas de forma homogênea sem levar em conta os conflitos existentes nas representações sobre o evento. Isto é, as representações feitas através dos documentos são tomadas como verdades objetivas pelos técnicos do Iphan. Não quero aqui negar a importância histórica dos dirigíveis. Mas apenas destacar que as memórias da população local são secundárias, ou não têm recebido a devida atenção, nas práticas de instituições como o Iphan, ou o poder público de maneira geral. Assim, a forma como tem se dado esse processo pode ter uma séria consequência para a população do Jiquiá e seu entorno. Num primeiro momento, não haverá ressonância da patrimonialização dos dirigíveis perante a população diretamente envolvida. Num segundo momento, diante da forma como tem se dado o processo de tombamento, a área pode vir a enfrentar um processo de gentrificação,6 ocasionando a expulsão dos moradores locais e o isolamento da área, de modo que a população do entorno não terá acesso ao bem tombado. 6 O termo gentrification, adaptado para o português comumente como gentrificação, ou enobrecimento, é aqui utilizado no mesmo sentido dado por autores como Featherstone (2000) e Zukin (2000), que o utilizam para designar intervenções urbanas que elegem certos espaços da cidade considerados centralidades e os transformam em áreas de investimento público e privado. As mudanças nos significados dessa localidade histórica fazem do patrimônio um segmento do mercado. 335 considerações finais Nas políticas de reconhecimento, tombamento e preservação de bens imóveis no Brasil, observou-se que muitas vezes os técnicos responsáveis pela aplicação dessas políticas assumem como verdades objetivas as representações feitas pelos documentos oficiais acerca de determinado bem como patrimônio, em detrimento das memórias e das representações locais sobre o bem em questão. Como consequência direta dessa perspectiva metodológica – que se caracteriza pela diminuição de ambiguidades na construção das representações de determinados bens como patrimônio –, o processo de tombamento encontra pouca ressonância junto à população envolvida. Uma sugestão para que se alcance a capacidade de evocar nessas populações as referências patrimoniais do objeto seria incorporar as tensões e os conflitos na forma como determinados objetos são reconhecidos como patrimônio, dando maior atenção às suas formas variadas de representação. Tomando o caso do tombamento da base dos dirigíveis do Recife para ilustrar essas questões, foi possível perceber uma contradição em um dos princípios do projeto de tombamento da antiga base dos Zeppelins no Jiquiá: ao mesmo tempo que o projeto prega que seja levada em conta a função sociocultural do bem, não há nenhum contato da equipe de tombamento com as pessoas envolvidas, nem as do bairro, nem as da cidade, de forma geral. Assim, o tombamento da área não encontra ressonância perante a população local e não evoca representações da população do Jiquiá. Ou seja, as políticas de patrimônio, dentro de determinado contexto histórico-político, podem contribuir para transformar objetos em entidades fictícias, que não passam de uma representação construída, fruto de uma tradição inventada e produzida por entidades alheias às pessoas que convivem diretamente com esses objetos. Assim, ao se debruçar sobre os documentos que tratam 336 do reconhecimento dos Zeppelins como um patrimônio histórico do Recife, é possível inferir que sua patrimonialização seria, de alguma forma, uma medida para conter o processo de invasão da área, promovendo um processo de gentrificação, que ocasiona, inclusive, o realocamento dos que ali residem. Anexo A Poema “Graft Zeppelin” (Ascenso Ferreira, 1930) W Z! K D K A! U Z Q P! Alô, Zeppelin! Alô, Zeppelin! Alô, Zeppelin! Usted me puede dar nuevas del Zeppelin? Dove il Zeppelin? Where is the Zeppelin? Passou agorinha em Fernando de Noronha. Ia fumaçando! Chegou em Natal! (Augusto Severo, acorda de teu sono, bichão!) Alô, Zeppelin! Alô, Zeppelin! Rádio, rádio, rádio! W Z - Q P Q P - G Q A A ... = Jiquiá! Apontou! Parece uma baleia se movendo no mar. Parece um navio avoando nos ares. Credo, isso é invento do cão! Ó coisa bonita danada! Viva seu Zé Pelim! Vivaôôôô! Deutschland über alles! Atracou! 337 Anexo B Campo do Jiquiá em 1930 (Coleção de negativos em vidro do Museu da cidade do Recife) Anexo C Torre de atracação de dirigíveis da base do Jiquiá (Foto de autoria desconhecida) 338 Anexo D Miudeiros do Jiquiá em 1930 (Fotografia de autoria desconhecida) referências ARANTES, Antônio A. O patrimônio cultural e seus usos: a dimensão urbana. Revista Habitus, Goiânia, v. 4, n. 1, p. 425-435, 2006. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan. Recomendações do Departamento do Patrimônio Material/Gerência de Proteção, ao projeto básico de estudo para o tombamento do campo e torre de Dirigíveis do Jiquiá, no Recife/PE, 2010. DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Recife, 7 abr. 2002. 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