Versão em formato PDF - Colégio Jardim Anchieta
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Dandelion é uma publicação anual do Colégio Jardim Anchieta. As opiniões emitidas são de responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução dos artigos desta revista, desde que citada a fonte. Comissão de pareceristas Ana Paula D. Köhler Zanella Carmem Dresch Chirlei Lima Eduardo Mendes Silva Conselho Editorial Ana Paula D. Köhler Zanella Eduardo Mendes Silva Revisão José Vendelino Köhler Projeto Gráfico Eduardo Mendes Silva Impressão e Acabamento POSTMIX Soluções Gráficas www.postmix.ind.br A revista Dandelion surge no universo do Colégio Jardim Anchieta como uma brilhante ferramenta para valorizar e projetar as potencialidades de nossos profissionais, que muitas vezes aparecem no dia a dia de suas atividades com os alunos, mas não são visíveis ao público em geral. O modo como a nossa “querida” Dandelion desenhou a sua trajetória nestes seus quatro anos de existência mostra o amadurecimento de um projeto que se solidificou e tornou-se respeitável no meio educacional. Pensamos que, se cada profissional colaborar com a sua parcela, estaremos trabalhando em defesa de uma educação de qualidade e acessível a todos, priorizando a excelência, o empreendedorismo, o crescimento e o sucesso de todo o processo educativo. Esta visão, embora pareça um pouco idealista, é possível, basta que os educadores mantenham a visão comum de esforços a favor do êxito do trabalho educacional. Boa leitura! Tiragem 80 exemplares - Distribuição Gratuita Direção Ana Paula K. Zanella [email protected] Coordenação Pedagógica Carmem Dresch [email protected] Chirlei Lima [email protected] Coordenação Administrativa Daniela Machado [email protected] Coordenação de Comunicação Eduardo Mendes Silva [email protected] Secretaria Angela Regina de Oliveira Juliana de Oliveira Cardoso [email protected] Contato Rua Abílio Costa, 69 - Santa Mônica Florianópolis /SC - CEP: 88037-150 (48) 3234-5174 www.cjanchieta.com.br Com o propósito inicial de disseminar as produções intelectuais da equipe do Colégio Jardim Anchieta (CJA), aos poucos a Dandelion, mais do que promover o corpo docente do CJA, vai constituindo uma verdadeira coleção de ideias, reflexões e relatos educacionais. Acredito que, com o tempo, o conteúdo de cada uma das edições passará a ser procurado tal como outras fontes e referências de conhecimento sistematizado são buscadas, sendo o nosso periódico e os nossos autores citados em variadas circunstâncias científicas. O "montante" de autores e produções servirá, ainda, como relato de parte da história institucional do CJA, revelando entre outros as pessoas, os pensamentos, as influências e as experiências que o tempo e o espaço do colégio presenciaram. É preciso, mais uma vez, agradecer a todos que contribuem e permitem que essas visões surjam e, de forma coletiva, vão sendo concretizadas. Por ora, deixemos os sonhos e previsões nesta página e partamos para a leitura da presente edição! Constantemente, há uma grande preocupação referente a aspectos relacionados não somente a ensino-aprendizagem de matemática, mas também à forma como este saber pode ser estruturado para ser ensinado e aprendido. Esse processo é marcado historicamente por inúmeros conflitos envolvendo professor, aluno e objetos matemáticos. Estudos sobre os aspectos cognitivos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem dessa disciplina, sobre metodologias de ensino e sobre como constituir uma melhor maneira de ensinar, fazem parte de nossas reflexões como educadores matemáticos. Em especial, há uma preocupação com os conteúdos básicos, citada pelos professores de outras disciplinas que necessitam destes conhecimentos, como: a Física, a Química e até mesmo a Geografia ou a História, quando o aluno se encontra diante de situações-problema ligadas ao estudo de escalas ou estudos que buscam em gráficos e/ou tabelas informações relacionadas a algum tipo de pesquisa. Estes são alguns exemplos, dentre muitos, que exigem do aluno conhecimentos consistentes do uso do Sistema de Numeração Decimal, bem como o Conjunto dos Números Naturais e Fracionários com suas respectivas operacionalizações. Contudo, sem a construção do significado destes tópicos, certamente, o aluno encontrará dificuldades no acompanhamento de conteúdos programáticos mais avançados. É de extrema importância para a sociedade o desenvolvimento de novas estratégias de ensino, com o intuito de se chegar a uma melhor compreensão dos tópicos matemáticos iniciais, a fim de proporcionar aos alunos um acompanhamento prazeroso dos demais conteúdos desta disciplina. Coerente a este ponto de vista, encontramos os estudos de Raymond Duval¹ que, ao tomar a questão dos registros de representação semiótica como premissa para suas investigações, discute a especificidade do ensino e da aprendizagem da matemática associada aos aspectos semióticos das representações matemáticas. Afinal, o que é uma representação em matemática? Para Duval (1993), a palavra “representação” é, em geral, empregada em forma verbal “representar”. Ou seja, uma escrita, uma notação, um símbolo representam um objeto matemático: um número, uma função, um vetor. Da mesma forma, traços e figuras representam objetos matemáticos: um segmento, um ponto, um círculo. No entanto, vale ressaltar que os objetos matemáticos não podem ser confundidos com as representações que se fazem dele, e essa distinção é ponto importante para a compreensão da matemática. Segundo Duval, o que diferencia a atividade cognitiva exigida pela matemática e aquela exigida em outros domínios do conhecimento é a importância primordial das representações semióticas e na variedade dessas, já que os objetos matemáticos são inacessíveis instrumentalmente ou perceptivamente, precisando passar necessariamente por suas representações. Dessa forma, a teoria dos Registros de Representação Semiótica de Duval (2003) trata de um conjugado de argumentos que defendem que a diversificação de representações de um mesmo objeto é essencial para a compreensão dos conceitos. Assim, refere-se a uma teoria de aprendizagem em Matemática que considera o uso que os alunos fazem dos diferentes sistemas de representação e a influência que este uso exerce sobre a aprendizagem. Considerando a importância das representações, Duval (2003) faz uma distinção entre semiósis, que é a apreensão ou a produção de uma representação semiótica e noésis, os atos cognitivos como a compreensão conceitual de um objeto. Para o autor, não existe noésis sem semiósis, ou seja, não pode haver compreensão ou conceitualização de um objeto matemático sem que para isso se utilize uma representação. Entretanto para que um sistema de signos constitua um registro de representação semiótica são necessárias três condições: 4 A representação precisa ser identificável, isto é, é preciso reconhecer na representação o que ela representa; 4 O tratamento que consiste em transformações internas ao registro, transformações em que se tem como registro de partida e registro de chegada um mesmo registro. Podemos ter como exemplo a simplificação de uma fração. 4 A conversão que implica em transformar um registro de representação de um objeto matemático em outro; a conversão é uma transformação externa ao registro de partida, ou seja, são transformações em que o registro de partida difere do registro de chegada. Observe o exemplo abaixo: Neste caso, são registros de representação semiótica distintos de um mesmo objeto matemático, com regras e convenções próprias, e como menciona Colombo et al. (2007), a partir desses registros, é possível realizar tratamentos operatórios próprios, pois cada um apresenta um ponto de vista diferenciado, possibilitando trabalhos cognitivos diferentes. E de acordo com Duval (1993), “a existência de muitos registros permite mudar de registro, e a mudança de registro tem por objetivo permitir a realização de tratamentos de uma maneira mais econômica e mais poderosa.” Ao operarmos, por exemplo, com podemos perceber que é possível resolver utilizando as três representações exemplificadas anteriormente: Nota-se que cada um dos exemplos acima caracteriza uma rede semiótica de representação distinta, mas com a mesma referência, ou seja, o mesmo objeto matemático, porém, com sentidos e custo cognitivo diferentes. O item l consiste em registros simbólicos fracionários, com propriedades de divisibilidade e razão (é possível perceber que houve a necessidade de um tratamento para se efetuar a adição); o item 2 é formado por registros simbólicos decimais, com propriedades relativas ao sistema posicional decimal; e por fim, os registros figurais do item 3 guardam as relações que envolvem a ideia parte/todo. Duval chama a atenção para que não ocorra confusão entre o processo de conversão com as atividades de codificação e interpretação. A “codificação” é tida como a transcrição de uma representação em outro sistema semiótico diferente do inicial, feita por meio de uma série de substituições. A “interpretação” necessita de mudanças no quadro teórico, ou mudanças de contexto. Todavia, a coordenação de registros, por sua vez, c o n s i s t e n a a t i v i d a d e d e m o b i l i z a r, simultaneamente, dois ou mais registros associados a um mesmo objeto matemático, identificando características do objeto em cada um dos registros. É possível perceber que os diferentes registros podem se complementar de maneira que um possa expressar características ou propriedades do objeto que não se manifestam claramente em outro (Figura 1). Figura 1: Estrutura de Representação em função de conceitualização (Duval, 1993) No esquema acima, as flechas 1 e 2 correspondem às transformações intra-registro. As flechas 3 e 4 correspondem às transformações inter-registros, ou seja, mudança de registro por conversões. A flecha C refere-se à compreensão integral de uma representação, supondo uma coordenação entre, pelo menos, dois registros. E as setas pontilhadas que correspondem à distinção entre o representante e o representado. No entanto, o autor ressalta que, em alguns casos, pode haver a necessidade da coordenação de mais de dois registros. Contudo, essa coordenação não é trivial, e a sua ausência pode acarretar uma compreensão limitada, podendo não favorecer as aprendizagens posteriores. Neste caso, dizemos que ocorreu um enclausuramento de registros de representação. Um fator que pode influenciar no sucesso de uma conversão é o fenômeno de congruência. Existem duas relações independentes que é preciso considerar: a relação de equivalência referencial e a relação de congruência semântica. Ou seja, duas expressões diferentes podem ser referencialmente equivalentes, mas não serem semanticamente congruentes, ou ao contrário, serem semanticamente congruentes e não possuírem o mesmo referencial. Veja o exemplo a seguir: João possui R$ 4,50 a mais do que a quantia de Pedro. Sabendo-se que juntos eles possuem R$ 20,00, qual é a quantia de cada um? Considerando J a quantia de João e P a quantia de Pedro, podemos descrever duas expressões para a primeira frase (João possui R$ 4,50 a mais do que a quantia de Pedro) J - 4,5 = P (A quantia de João menos R$ 4,50 é igual à quantia de Pedro.) J = P + 4,5 (A quantia de João é igual à quantia de Pedro mais R$ 4,50.) Nota-se que a paráfrase oriunda das duas sentenças não é congruente à frase do enunciado. Por outro lado, existe uma sentença que é semanticamente congruente ao enunciado, mas não é referencialmente congruente. No exemplo citado acima (por ser um caso de não-congruência semântica), percebe-se um custo cognitivo maior para a compreensão do problema. Mesmo assim, Duval adverte para o uso de atividades que abordem os dois casos, além de atividades que possam trabalhar nos dois sentidos da conversão. Colombo e Moretti (2007) ao fazerem uma análise dos PCNs de Matemática constataram que o documento apresenta elementos que indicam uma abertura para o trabalho com essa noção na matemática escolar, quando consideram em algumas passagens a necessidade de trabalhar com 'outras representações', e principalmente ao considerar a resolução de problemas como princípio para a organização das atividades escolares (COLOMBO & MORETTI, 2007). Durante a resolução de um problema, é possível perceber a necessidade de utilizar pelo menos um tipo de conversão, a que ocorre na direção do registro da língua natural para o registro simbólico, e uma atividade de tratamento ao operar com os dados do problema. Os autores consideram a utilização de jogos, tecnologias da informação e da comunicação e história da matemática (elementos estes indicados pelos PCNs) como “possibilidades de encadeamento com as ideias de Duval, ao permitirem a flexibilidade no tratamento do objeto matemático”, e “possibilitam o jogo das conversões entre registros”. Considerações Finais De modo geral, a coordenação dos registros não é uma atividade espontânea. Os estudantes podem realizar diversas conversões sem ter, no entanto, relações entre os diferentes registros fortemente estabelecidas em sua mente. Estas relações podem se fortalecer na estrutura cognitiva do aluno por meio da atividade de coordenação. Portanto, o desafio para nós, educadores, é encontrar formas de envolver nossos estudantes com a coordenação de registros e, com isso, proporcionar maior compreensão dos conceitos matemáticos. É necessário estar cientes de que estamos lidando com objetos, em sua pluralidade abstratos e que, portanto, podem ter vários significados. Temos, no entanto, relações que podem expressar diferentes situações ou fatos que, por conseqüência, não são acessíveis à percepção, necessitando de uma representação que é à base da comunicação, uma vez que expressa o conhecimento que se tem de um objeto de estudo. Essa comunicação pode ser por meio da escrita, gráficos, símbolos, figuras, fórmulas, desenhos, conceitos e outros são representações significativas, uma vez que a sua utilização permite a comunicação entre as pessoas e as atividades cognitivas do pensamento. Ao se tratar de educação matemática, é fundamental que se leve em conta as diferentes formas de representar um objeto de estudo. Ao se trabalhar com problemas, por exemplo, é preciso observar o entendimento possível que se pode estabelecer entre o enunciado, a representação intermediária e o tratamento matemático, uma vez que este objeto não é claro e acessível como os objetos físicos e, exatamente por isso, seu tratamento depende de uma representação semiótica. 1 Raymond Duval é psicólogo e filósofo de formação e investiga sobre a aprendizagem matemática. Atualmente é professor emérito na Université du Littoral Cote d'Opale, França. BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC/SEF, 1998. COLOMBO, J.A.A.; FLORES, C.R.; MORETTI, M.T. Reflexões em torno da representação semiótica na produção do conhecimento: compreendendo o papel da referência na aprendizagem da matemática. Revista de Educação Matemática Pesquisa, PUC-SP, São Paulo, v.9, n.2, 2007. COLOMBO, J.A.A. ; MORETTI, M. T. Registros de representação semiótica e parâmetros curriculares nacionais: interfaces presentes e possíveis. In: IX ENEM, 2007, Belo Horizonte. Anais do IX ENEM - Diálogos entre a pesquisa e a prática educativa. Editora da SBEM, v. 1, 2007. DUVAL, R. Registros de representação semiótica e funcionamento cognitivo da compreensão em matemática. In: MACHADO, S. D.A. (Org.). Aprendizagem em matemática: registros de representação semiótica. Campinas: Papirus, 2003. DUVAL, R. Registre de représentation sémiotique et fonctionnement cognitif de la pensée. Annales de Didactique et Sciences Cognitives. Strasbourg: IREM – ULP, vol. 5, p. 37-65. 1993. Desde que nasce, a criança começa a fazer a sua leitura do mundo que a cerca. São formas de expressões pessoais que se manifestam através das artes plásticas, dos desenhos, das pinturas, dos sons e ritmos, das músicas, dos jogos de faz de conta e de sua leitura particular do mundo. É neste momento que a escola deve propiciar à criança a apropriação dos papéis existentes na sociedade através da rotina e principalmente das brincadeiras que possibilitam abrir discussões acerca de regras, atitudes, conhecimentos, etc. Para que isso aconteça é importante que o espaço da educação infantil seja um espaço de diálogo entre as crianças e o educador, o que faz com que os mesmos utilizem-se de suas capacidades de pensar e agir, promovendo maior interação e uma consciência reflexiva no que se refere à sociedade, contribuindo para uma efetiva transformação do mundo que os cerca a partir da contextualização dos saberes que as crianças trazem, criando uma relação horizontal de diálogo, onde educador e crianças aprendem juntos. Por isso, Gallo (1995) diz que (...) a escola não poderia ser um lugar de acentuação das diferenças entre os indivíduos, incentivando a competitividade. Ao contrário, a escola deveria ser o lugar da liberdade, curiosidade, expressividade, do auxílio mútuo, onde as diferenças individuais harmonizam-se no coletivo (GALLO, 1995). Para que existam situações criativas é preciso que haja problemas a resolver e, para que haja problemas a resolver é preciso que haja curiosidade, liberdade de expressão. Freire (1982) está convencido de que para haver espontaneidade, imaginação, expressividade de si e do mundo, inventividade, capacidade de criar, é necessário disciplina interior, ou seja, uma disciplina intelectual que não é imposta, mas que vai se criando, se buscando na relação dialética entre autoridade e liberdade. Criatividade é um momento do processo comunicativo e seu resultado depende do modo decisivo, do processo de informações recebidas, do conhecer e saber. Conhecer é agir, é fazer teoria e prática dialeticamente. Todo conhecimento começa pela curiosidade, por uma pergunta. O educando para conhecer precisa refletir sobre o próprio ato de conhecimento. O objetivo do conhecimento é então ser mediador dos indivíduos que querem conhecer mais, ou seja, deve ser o motivo principal do encontro entre os mesmos. Todo pensamento que procura estudar o homem, enquanto ser pensante não se revela como algo acabado. Na sua relação com o mundo, o ser humano transforma sua capacidade tanto criativa, como inventiva em seu benefício. O homem cria e amplia os espaços e, desta forma, permanece integrado à realidade e ao seu ambiente concreto. A transformação do espaço, a possibilidade concreta da humanização e libertação do homem se dá a partir da criação, evolução e ocupação dele no mundo. Uma boa educação deve levar em conta a liberdade, a curiosidade e a expressividade. É importante que a criança esteja sempre colocada frente a esta realidade. Entende-se que, neste sentido, é possível que a criança se desenvolva e adquira valores essenciais para a vida. A liberdade é o clima no qual vivemos cotidianamente. Portanto, é necessário construir, junto com as crianças, o sentimento de grupo entre todos que fazem parte do ambiente escolar, incentivando a solidariedade entre os mesmos. Uma das formas de alcançar essa perspectiva é o uso do jogo: No jogo, há um espaço para a liberdade, e a criatividade encontra-se presente. São permitidas, às pessoas a discussão e modificação das regras, sem a presença de uma “autoridade” para decidir por elas e da qual maneira dependeriam para a aplicação de regulamentos, aos quais teriam que obedecer sem contestação, sob a ameaça de expulsão. Nessa situação particular, o modo como as coisas acontecem coloca os jogadores sempre em nível de igualdade na tomada de decisões. Para a ocorrência desse processo, minutos e centésimos de segundos não adquirem importância. (BRUHNS, 1996, p. 35). Para tanto, a escola tem que proporcionar um ambiente que favoreça o jogo de faz de conta, permitindo que a apropriação dos papéis existentes na nossa sociedade aconteçam. É neste espaço da brincadeira que poderemos abrir para a discussão de regras, leitura da família, etc. A brincadeira pode ser um espaço privilegiado de interações e confrontos de diferentes crianças com diferentes pontos de vista. Nesta experiência elas tentam resolver a contradição da liberdade ou das regras por elas estabelecidas, assim como o limite da realidade ou das regras dos próprios jogos e desejos colocados. Na vivência desses conflitos, as crianças podem enriquecer a relação com seus coletâneos, na direção da autonomia e cooperação, compreendendo e agindo na realidade de forma ativa e construtiva (WAJSKOP, 1995, p. 33). É nesta busca de significados que o educador estrutura, organiza e toma consciência do seu viveragir pedagógico. Para isso, é preciso que ele aprenda a pensar junto com os outros, isto é, num grupo de interesses coletivos. Aprendemos a ler, construindo novas hipóteses na interação como outro, assim como aprendemos a escrever, refletir, estruturando nossas hipóteses na intenção e na troca com o grupo. Uma tarefa importante que se coloca para o professor, portanto, é extrair do cotidiano dos alunos, através de suas situações-problemas, um conteúdo a ser trabalhado, procurando responder questões básicas,que dão origem a bons temas para o desenvolvimento de projetos.Neste sentido, todas as situações-problema enfrentadas pelos alunos poderão fazer parte da aula, uma vez que, se forem adequadas, as perguntas feitas por eles poderão conduzir, de forma participativa, o processo de construção do saber em sala de aula. No entanto, para não sermos engolidos por uma rotina do fazer por fazer, que reflete um tipo de concepção autoritária ou, ainda, espontaneista, precisamos organizar o tempo, em termos de planejamento,bem como construindo um espaço e um tempo com qualidade. Ou seja, se queremos qualidade daquilo que estamos fazendo, precisamos aprender a trabalhar com o nosso limite, assim como o limite dos alunos, respeitando-os em suas singularidades. O desafio constante do professor, na construção de um planejamento, é tecer uma articulação harmoniosa entre as atividades, no tempo e no ritmo que se desenvolvem com o espaço. Sendo assim, a tarefa do educador é “reger” diferentes ritmos para a construção do saber: a rotina do grupo, como mostra Madalena F. Weffort (1993, p. 51) quando se refere à “Construção do Grupo”: Um grupo se constrói através da Constância de presença de seus elementos na Constância da rotina e de suas atividades. Um grupo se constrói na organização sistematizada de encaminhamentos, intervenções por parte do educador, para a sistematização do conteúdo em estudo. Um grupo se constrói num espaço heterogêneo das diferenças entre cada participante: da timidez de um, do afobamento de outro; da serenidade de um, da explosão de outro; do pânico velado de um, da sensatez de outro; da seriedade desconfiada de um, da ousadia do risco de outro; da mudez de um, da tagarelice de outro; do riso fechado de um, da gargalhada debochada de outro; dos olhos miúdos de um, dos olhos esbugalhados de outro; da lividez do rosto de um, do encarnado do rosto de outro. Um grupo se constrói enfrentando o medo que o diferente, o novo provoca, educando o risco de ousar. Um grupo se constrói não na água estagnada do abafamento das explosões, dos conflitos, no medo de causar rupturas. Um grupo se constrói construindo um vinculo com a autoridade e entre iguais. Um grupo se constrói na cumplicidade do riso, da raiva, do choro, do medo, do ódio, da felicidade e do prazer. A vida de um grupo tem vários sabores... No processo da construção de um grupo, o educador conta com vários instrumentos que favorecem a interação entre seus elementos e a construção de um circulo com ele. Um grupo se constrói com a ação exigente, rigorosa do educador. Jamais com a cumplicidade autocomplacente, com o descompromisso do educando. Um grupo se constrói no trabalho árduo de reflexão de cada participante e do educador. No exercício disciplinado de instrumentos metodológicos, educa-se o prazer de se estar vivendo, conhecendo, sonhando, brigando, gostando, comendo, bebendo, imaginando, criando; e aprendendo juntos, num grupo (WEFFORT, 1993, p. 51). Portanto, cabe à escola estimular o apoio mútuo, para que todos os envolvidos, juntos, compreendam e se interessem por todo o processo educativo, tornando o mesmo um momento de prazer, alegria e união que culminam na conquista da construção de um mundo melhor. Referências ABRAMOVICH, F. O professor não duvida! Duvida? São Paulo: Gente, 1998. BRASIL. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRUNHS. H. O jogo nas diferentes perspectivas teóricas. São Paulo: Motrivivência, 1996. FOUCAULT, M. Poder e Análise das Organizações. São Paulo: Vozes, 1993 ______________.Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 10ª ed. São Paulo: Vozes, 1987 FREIRE, P. GUIMARÃES, S. Sobre Educação (Diálogos). V.1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. GALLO, S. Discurso da escrita e Ensino. Campinas, 1995. GIL, A. C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. HOFFMANN, J. M. L. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre: Mediação, 1996. KRAMER, S.; SOUZA, S. J. e (org.). Educação ou tutela? A criança de 0 a 6 anos. São Paulo: Loyola, 1991. LISBOA, A.M. J. O seu filho no dia-a-dia: dicas de um pediatra experiente. Vol. 3. Brasília: Linha Gráfica,1998. OSTETTO, L.E. (org.). Encontros e encantamentos na educação infantil: partilhando experiêencias de estágios. Campinas, SP: Papirus, 2000. RICHARDSON, R. J. Pesquisa Social: Métodos e Técnicas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999. WEFFORT, M. F. Cadernos de Reflexão. Espaço pedagógico, 1992. WAJSKOP,G.F. O brincar na Educação Infantil. Cadernos de Pesquisa.1995. WINNICOTT, Donald Woods. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,1982. Introdução Este artigo é em parte o relato de uma experiência, em parte a apresentação de um conjunto de procedimentos metodológicos e em parte a defesa de um ponto de vista e de uma concepção filosófica e pedagógica. Essa identidade múltipla do texto não chega a ser um problema, uma vez que se origina da interação ativa entre teoria e prática ao longo da condução de um projeto de Extensão Universitária. Afinal, o que são os procedimentos metodológicos senão formas de conduzir a experiência de modo inteligente a seus objetivos? E o que são as concepções filosóficas e pedagógicas senão formas de refletir e avaliar a experiência publicamente acessível a pessoas cujas ações são de certo modo compartilhadas? O trabalho refere-se a um projeto de Extensão desenvolvido ao longo do ano de 2009, com o título “Novas Leituras”. Este projeto integrou um Programa de Extensão intitulado “Civilização: Aprofundamento e prática da leitura”, composto de três ações de extensão, todas focadas no tema da leitura. O seu objetivo principal consistia em: Realizar periodicamente encontros para a leitura e discussão de textos escritos, de caráter literário e teórico, combinando obras clássicas com obras contemporâneas, a fim de desenvolver a habilidade de compreensão e análise na leitura nos sujeitos envolvidos (UDESC, 2008, p. 3). A consecução de tal objetivo envolveria oferecer ao público de alunos do ensino fundamental, do ensino médio e ao público interessado em geral a oportunidade de exercitar a leitura de forma rigorosa, detalhada, cuidadosa, maximizando a compreensão da estrutura do texto e sua problematização nos contextos atuais. E, além disso, reforçar e incrementar o hábito e a constância na leitura, como um exercício não só de apreensão, mas de transmissão e produção de informações e ideias que envolvem a capacidade cognitiva e a sensibilidade do sujeito. Como parte de seus fundamentos, encontra-se a concepção de que a leitura de textos escritos é uma das habilidades mais exigidas nos ambientes contemporâneos de aprendizado, cultura e trabalho. Ao seu lado está a concepção de que ela pode ser exercitada e aperfeiçoada de modo a aumentar a habilidade do leitor. Paralelamente a isso, temos um vastíssimo legado de ideias, conceitos, formas de expressão estética que, por meio da leitura, pode funcionar como um aliado na educação e como forma de exercício do pensamento e da formação de hábitos de reflexão e escolha de meios adequados para a obtenção dos objetivos do indivíduo. Este projeto pretendeu dirigir-se ao público formado, sobretudo, pelos jovens estudantes do ensino escolar fundamental e médio. Realizaram-se reuniões de leitura dialogada e de discussão de textos da literatura e do pensamento teórico. Tais textos eram combinados com variados gêneros discursivos em diversos suportes como, por exemplo, letras de músicas, crônicas, filmes, histórias em quadrinhos, charges. Esperava-se colher como resultado o desenvolvimento da habilidade de leitura e, consequentemente, o exercício de pensamento crítico e reflexivo mais aprofundado e a ampliação da capacidade de comunicação. O método adotado e desenvolvido neste projeto pode servir como um suporte ao processo de ensino e como oportunidade de reflexões acerca das relações entre os aspectos e habilidades desenvolvidos na leitura, resultando na conduta individual e social bem-sucedida de seus participantes. A Estrutura do Projeto O projeto “Novas Leituras” visou reunir seus participantes para sessões de leitura dos mais variados textos, com destaque às obras literárias e teóricas. Com isso, esperou-se criar um ambiente no qual, de um lado se exerce uma interpretação, uma discussão que analisa o material a ser lido em profundidade e relacionado a questões e problemas atuais e, de outro, a liberdade de julgar e de pensar o texto, sem estar preso à necessidade de obter índices de desempenho, e sem prender-se a objetivos determinados por outrem. Apesar do controle de frequência realizado a cada sessão de leitura, a presença nos encontros foi espontânea e contabilizada (em horas) para a confecção de certificação entregue ao final do ano a cada participante. Essa dinâmica possibilitou autonomia aos participantes que, de acordo com necessidades e preferências, optaram por estar ou não presentes nas sessões. Entre os benefícios dessa atividade coletiva de leitura, pode-se destacar o desenvolvimento da capacidade de apropriação do conhecimento e da experiência social compartilhada, por meio do acesso dialogado e crítico ao texto escrito. Em decorrência do contato com os textos, tal como é proposto nas sessões do projeto, desenvolve-se o conhecimento formado por informações e capacidades, ou seja, um saber sobre textos, gêneros, estruturas textuais, formas típicas de enunciados. Considerando que a leitura é um processo interativo, no qual diversos níveis de conhecimento são empregados – conhecimento de texto, linguístico, enciclopédico – reconhecer ou “prever” a forma do texto contribui com os resultados dessa interação. “Quanto mais conhecimento textual o leitor tiver, quanto maior a sua exposição a todo o tipo de texto, mais fácil será a sua compreensão” (KLEIMAN, 1995, p.20). Esse processo vai fazendo com que o participante tenha domínio sobre o código escrito, visto que este representa um veículo da comunicação do ser com o mundo, fazendo, assim, com que o sujeito se situe no uso da linguagem gráfica, estimule sua percepção e, por conseguinte, sua oralidade, passando então a ouvir, a ver, escrever e ler. O principal impacto social observado é a disseminação da atitude analítica e crítica em relação ao texto escrito, que, afinal, permanece como uma das principais formas de intercomunicação de ideias e valores na sociedade atual. Através disso, a leitura crítica e dialogada, ao estabelecer parâmetros, contribui para a formação do ser humano por meio do despertar de emoções e da ação crítica, instigando no sujeito o autoconhecimento e a compreensão de mundo, além de ser o “instrumento da autoeducação” (SOUZA, 1998, p.17); contudo, para que a leitura colocada aqui como proposta aconteça, é necessário tornar o texto um objeto significativo para que o leitor se torne, na concepção de Souza (1998), um decifrador do mundo que o cerca. Nesta perspectiva, a prática de leitura é vista como forma de ampliação do processo educativo, que tem por finalidade a promoção ativa do sujeito para a tomada de consciência do uso da escrita. E para que ele perceba que ler é muito mais que decodificar o código escrito, ou seja, ler é tomar para si o conteúdo lido e nele refletir, é desmistificar conceitos e reconstruir ideias. Justificativa da Implantação Sabe-se o quanto a educação escolar insiste na formação de hábitos de leitura e reflexão, competindo acirradamente com outros hábitos e outras influências mais imediatas que se impõem ao estudante. Os meios de comunicação de massa, as opções de entretenimento, a pressão ideológica do imediatismo e das formas momentâneas de autoexpressão são concorrentes de peso diante da formação dos hábitos de concentração e profundidade na reflexão, constituintes da leitura crítica e argumentativa. Enquanto isso o livro, a literatura e o ato de ler se tornam simplórios e corriqueiros, observados de uma perspectiva apenas funcional. A comunicação e a informação tomaram na sociedade atual um novo rumo, pois a atenção aos meios de comunicação como TV, cinema, rádio e internet possibilita um acesso rápido e sem muitos esforços para a compreensão. Eles não são buscados, mas buscam os leitores. Dessa maneira, torna-se o texto uma ferramenta cotidiana e sem importância e a leitura passa ser mecânica e “irreflexiva”. Por outro lado, não se pode deixar de insistir na leitura como um dos objetivos da educação, entendida como desenvolvimento da capacidade de autocrescimento e da capacidade de aprender e se adaptar ao meio social, com o objetivo de incrementar a habilidade de leitura crítica, de diálogo, de debate, proveniente da interpretação de estruturas de pensamento veiculadas no texto escrito. Por causa disso é que foi proposto este projeto, a fim de dar suporte à interação com outras iniciativas, sobretudo as do ensino escolar, no sentido de formar leitores. Não se insiste somente no hábito de recorrer a textos escritos, o que por si só já seria um objetivo relevante, mas no uso argumentativo, examinador, crítico e aprofundado que o leitor faz do texto. Dessa maneira, a leitura analítica, em grupo, reflexiva e dialogada consegue formar hábitos com repercussão nos contextos de ação comum. Sendo assim, buscase o interesse no texto como forma de atrair o leitor a essa ação. Por essas razões, o texto pode e deve ser utilizado como espaço de exercício do pensamento, do diálogo, do ensaio de possibilidades segundo as quais podem-se ordenar os componentes de uma situação. E o resultado, embora difícil de ser posto em forma mensurável, é o aumento da capacidade comunicativa, da capacidade crítica, e mesmo da capacidade de complacência e sensibilidade para sentir o belo. Utilizando um jargão querido aos educadores no pensamento contemporâneo, esse contato aprofundado e dialogado com o texto escrito promove um alargamento da experiência, em seu sentido mais amplo e, consequentemente, um alargamento da própria possibilidade de experiências subsequentes, de contato mais intenso com o mundo, com a riqueza da linguagem. Finalmente, o mais importante de todo o processo: promove um alargamento no modo como os sujeitos podem visualizar e dispor de meios para atingir seus objetivos - intelectuais, estéticos e práticos. John Dewey afirma, em sua obra Democracia e Educação que “parte considerável do acervo social é confiada à escrita e transmitida por meio de símbolos escritos” (DEWEY, 1959, p. 20). Este fenômeno é resultado da complexidade crescente do ambiente social, e demanda um processo de educação e formação que prepare os sujeitos para lidarem cada vez mais habilmente com a decifração das estruturas escritas. Dewey declara ainda que [...] os símbolos escritos são ainda mais artificiais ou convencionais do que os falados; não podem ser aprendidos nas relações casuais com outras pessoas. Ademais disto, a linguagem escrita tende a selecionar e registrar matérias que são relativamente estranhas à nossa existência ordinária (DEWEY, 1959, p. 20). A maior artificialidade da escrita acaba por exigir uma atividade mais ordenada, mais atenta e intencional, no treinamento e prática das habilidades de leitura. E, associado a isso, o poder de “reconstruir” ou de representar situações, conceitos e eventos é muito mais extenso na linguagem escrita do que na linguagem oral, já que a leitura e a escrita estendem, ampliam e diversificam o campo de possibilidades de experiências e situações de aprendizagem. Assim, passamos a dar significado, como meio de adquirir um pensamento reflexivo, àquilo que era apenas sugestão, o pensamento meramente hipotético. John Dewey, em sua obra Como pensamos, defende o pensamento reflexivo como a ação de investigar e objetivar, constituindo a ação de dar veracidade ao pensamento, quando afirma que: “É uma conexão objetiva o elo entre coisas reais, pelo qual uma se torna o fundamento, a garantia, a prova da crença em outra” (DEWEY, 1979, p.21). Este é o pensamento reflexivo tal como proposto pelo projeto aqui descrito: achar o meio pelo qual os participantes juntos possam dar significado as suas reflexões e esse significado pode ser comum a todos os envolvidos. Desse modo, a leitura resultante pode se tornar legítima e justificada, fazendo com que todos os envolvidos passem da dúvida à crença; mas caso tenha o participante uma nova sugestão, e sobre ela tente dar justificativa a seu significado, estará ele refletindo sobre o texto. Assim se constitui nossa fundamentação teórica e metodológica, sendo mais adequada à situação, na qual os significados são compartilhados e, com isso, possíveis de serem remodelados, defendidos ou questionados pelo grupo. Metodologia O método empregado para a consecução dos objetivos propostos é o da leitura dialogada e em grupo. A leitura que se espera realizar toma como material o texto, considerado como um conjunto de razões, de conceitos, cujo significado pode ser explicado. O texto deve ser considerado suficiente para ocasionar sua compreensão e permitir que o leitor o analise, o explique a seus interlocutores e pense a partir dele em outras questões, temas e problemas que o interessem; entretanto, como o público do projeto se constitui principalmente de jovens em idade escolar, e como se pretende desenvolver e incrementar a capacidade de leitura, por meio do exercício da leitura em grupo, o aspecto de seleção do texto seguiu, predominantemente, alguns critérios importantes. É recomendável manter certa imparcialidade, por isso, trabalhar com textos publicados e de certo modo consagrados publicamente pelos leitores é mais seguro. Sempre se deve atentar a dados como edição, tradução, autoria, que são aspectos fundamentais da identidade do texto, no conjunto das manifestações culturais do qual o texto participa. Pelo fato de o projeto visar à habilidade na leitura de textos, o assunto sempre deve ser secundário em relação ao procedimento de leitura e reflexão, produzida na sessão por meio do diálogo entre os leitores. Ainda se destaca que a preocupação em encontrar textos adequados à idade e ao nível de escolaridade do público tem dois lados. Um deles é a preocupação em permitir ao leitor a comunicação com o texto, a compreensão suficiente para ele poder se posicionar em relação ao texto. O outro lado é que o leitor é que tem de chegar ao nível do texto, não o contrário. O leitor tem que ir se tornando mais hábil, mais arguto, mas desenvolto em decifrar, compreender e apropriar-se criticamente do texto. Um bom termômetro é escolher um texto que cada indivíduo do público não leia satisfatoriamente, não compreenda realmente, se for ler sozinho. Só em grupo poderá acessar todo o seu sentido. Assim, é a leitura dialogada que permite a apreensão de seu sentido, e o desenvolvimento dos hábitos reflexivos que gradativamente se instalam no leitor individual por este meio. Uma vez selecionados os textos que mais atendem aos objetivos da atividade, a leitura é realizada em conjunto, assim, cada participante lê um trecho, um parágrafo, um segmento. Num segundo momento, este trecho é discutido e explicado em detalhe, e cada participante é chamado a participar de sua análise. Significados de palavras, termos técnicos, estrutura das frases são explorados; mas, mais que isso, os objetivos do autor, os movimentos, a ordem de razões que ele articula, e, finalmente, o alcance, ou seja, o poder do texto de convencer, de provocar no leitor uma experiência de compreensão ou de complacência estética, de acordo com o que se supõe que fosse a intenção declarada do autor, manifesta na forma do texto. Então, passa-se ao trecho, segmento ou parágrafo seguinte. A velocidade da leitura, no momento da reunião, é regulada justamente por essa discussão, essa análise do texto. Na verdade, os próprios leitores, durante a reunião, vão criando suas “ferramentas”, ou seja, vão imaginando e propondo questões ao texto e, dialogando com ele e os outros participantes, enriquecem, por sua própria iniciativa, sua experiência de leitor. O coordenador da sessão tem, assim, prioritariamente a função de organizar o debate, a sequência da leitura e de manter o assunto focado na estrutura de razões e de conceitos propostos e estabelecidos pelo texto que está sendo lido e explicado. Florianópolis. A proposta inicial era a de funcionar no contraturno e atrair os alunos e professores a participarem das sessões. Entretanto, o resultado foi diferente do esperado. Algumas sessões tiveram ocasião no próprio horário das aulas, contando com o apoio de uma das professoras envolvidas no Programa Civilização, do qual o projeto Novas Leituras faz parte, embora, em virtude do modo como o projeto houvesse sido planejado, ele não estivesse pronto a ser um suporte pedagógico constante no ensino das disciplinas dos currículos escolares. No Colégio Jardim Anchieta, instituição da rede particular de ensino, localizado no bairro Santa Mônica, em Florianópolis, o projeto alcançou seus mais visíveis resultados na forma como fora inicialmente planejado: sessões periódicas de leitura de textos, funcionando no contraturno do horário de aulas como uma atividade extracurricular, e reunindo alunos de diferentes turmas da escola. Em sua totalidade, o projeto atendeu a 66 pessoas em suas 4 sessões, no Colégio Simão Hess e 18 pessoas nas suas 15 sessões, no Colégio Jardim Anchieta. Os principais textos lidos nas sessões do projeto foram: 4 “Quem tem medo do lobo mau?”, crônica de Lene Costa. 4 “Paraíso? Nem tanto...”, crônica de Guilherme Ricken. 4 “Os robôs, os computadores e o medo”, ensaio de Isaac Asimov. 4 “Quase”, poesia de Luis Fernando Veríssimo. Histórico das Atividades O projeto foi planejado para ter início em 01 de março de 2009. Deveria inicialmente ter seu espaço de funcionamento no Museu da Escola Catarinense, que é um órgão da UDESC com espaços destinados a Oficinas, reuniões, projeção de filmes e outras atividades culturais. Apesar da acolhida favorável da coordenação do Museu, e de uma campanha de divulgação por parte da equipe do projeto, não houve público suficiente para justificar a condução do projeto naquele espaço. Por isso, em abril de 2009, o projeto foi transferido para o Colégio Estadual Simão José Hess, no bairro Trindade, em A fim de diversificar os suportes e com isso estimular a relação reflexiva do público com o texto, fez-se ainda a leitura da letra de música “Pescador de Ilusões” da banda O RAPPA. Complementando a discussão de textos escritos, o projeto optou pela exibição e debate acerca dos seguintes filmes: 4 Sociedade dos Poetas Mortos. Direção: Peter Weir. Produção: Steven Haft, Paul Junger Witt e Tony Thomas. Roteiro: Tom Schulman. Intérpretes: Robin Williams; Robert Sean Leonard; Ethan Hawke e outros. [Touchstone Pictures, EUA], 1989. DVD (129 min). 4 Eu, robô. Direção: Alex Proyas. Produção: Laurence Mark, John Davis, Topher Dow e Wyck Godfrey. Roteiro: Jeff Vintar e Akiva Goldsman. Intérpretes: Will Smith e Bridget Moynahan e outros. [20th Century Fox, EUA], 2004. DVD (115 min). De acordo com o relato de uma das professoras participantes da equipe do Projeto, os resultados obtidos podem ser assim descritos: O que eu teria para dizer, de acordo com os depoimentos dos próprios alunos, é que as oficinas foram de grande valia, pois não só aprenderam a olhar os textos de forma diferente (os seus olhares reflexivos estavam muito mais apurados depois das leituras), bem como conseguiram expressar melhor, através de palavras, os seus pensamentos, suas idéias. Nesse caso, vale lembrar que a vergonha que se mostrava presente na sala de aula acabou perdendo espaço para a vontade de falar, de contribuir, uma vez que o grupo da oficina de leitura era pequeno e a própria oficina proporcionava esse momento de “trocas” de idéias. Nós, coordenadores, tivemos importante papel nessa etapa, pois além de darmos a oportunidade de discussão, instigávamos os alunos para fazerem suas reflexões através de perguntas estratégicas para aqueles que de alguma forma ainda assumiam um papel de mais tímido e calado. As provocações sempre eram bem recebidas, e isso foi o que fez a diferença no final. Os textos de forma geral foram bem aceitos pelos integrantes do grupo e nessa tentativa de agradar ao público sempre buscávamos apresentar gêneros textuais diferentes, tais como: poesia, contos, crônicas, textos científicos, filmes, letras de música, histórias em quadrinhos (Professora Alessandra Barcelos, do Colégio Jardim Anchieta e da E. E. B. Simão José Hess). Conclusões e Perspectivas Como conclusões dessa vigência do Projeto Novas Leituras, reconhece-se a necessidade de diversificar as metodologias de acesso aos textos, de modo a melhor atender ao público e, portanto, à sociedade. Na visão da equipe, um projeto de leitura que procure focar a capacidade interpretativa e crítica dos textos, visando à maior apropriação do conteúdo do texto pelo leitor, é da maior relevância social. Contudo, meios mais efetivos de apropriação, de efetuação de condutas decorrentes da leitura e de consequente avaliação do efeito pessoal e social do projeto, é o que se espera desenvolver em suas próximas edições. A outra conclusão, de caráter mais teórico, diz respeito ao grande fundamento de todo o projeto. Entende-se, depois de um ano de vigência, que a leitura aqui exercitada, é aparentada, não sem razão, com o que os educadores do século XX denominam “pensamento reflexivo”. Essa modalidade de pensamento, que segue regras na consideração das evidências em favor de uma solução a um problema, é ligada à linha teórica do pragmatismo. Isso fornece uma base sociológica, pedagógica e filosófica, não somente para a compreensão, mas para o desenvolvimento e empregos futuros do projeto, como forma de participação do leitor na construção da sociedade democrática. 1 Artigo publicado na Extensio, v. 7, n. 10 de dezembro de 2010. A Extensio é uma Revista Eletrônica de Extensão, editada semestralmente pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de Santa Catarina. O número mencionado está disponível no endereço <http://www.periodicos.ufsc. br/index.php/extensio/issue/view/1272> Referências DEWEY, John. Democracia e educação. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1959. ______. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma reexposição. 4. ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1979. KLEIMAN, Ângela. “O conhecimento prévio da leitura; Objetivos e expectativas da leitura”. In: Aspectos cognitivos da leitura. São Paulo: Pontes, 1995. SOUZA, Maria Salete Daros de. A conquista do jovem leitor: uma proposta alternativa. 2. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998. UDESC. Relatório do Programa Civilização. Documento 1 6 5 5 2 . 11 8 . 5 0 0 8 . 0 4 1 2 2 0 0 8 . D i s p o n í v e l e m : <http://www.udesc.br/>. Acesso em: 2010. Introdução A obra O cortiço, de Aluísio Azevedo, publicada em 1890 é considerada um dos clássicos da literatura brasileira por uma gama de críticos e historiadores. Conforme aponta o crítico Antonio Candido (2005, p.80), a verossimilhança, ou seja, o sentimento de realidade que têm os seres fictícios e a estrutura de um romance depende da unificação do fragmentário pela organização do contexto. A concatenação é o fator essencial para conceder estatuto de realidade e verdade aos entes literários e fictícios, a mágica que faz com que pareçam vivos e que lhes dá coesão, tão inteligíveis e capazes de ações quanto os próprios seres reais. Ainda no mesmo texto, o crítico comenta que a eficácia do romance está na construção estrutural. No livro O cortiço, todos os personagens são carismáticos e marcantes, o que cria uma sensação de que o leitor também faz parte do enredo e que está vivenciando através da leitura as experiências dos personagens como se estes fossem entes reais. Antonio Candido chama este fenômeno de paradoxo do personagem. O autor descreve que (...) a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial (CANDIDO, 2005, p.55). Uma das peculiaridades deste romance do escritor maranhense reside em não haver um personagem humano central no enredo do livro. Apesar da importância e da intimidade que o leitor estabelece com os personagens, o protagonista não se limita ao João Romão, ou a Rita Baiana, ou a Bertoleza, ou ao Jerônimo, entre outros. O que ocorre com o personagem central é que ele é o próprio cortiço. O estabelecimento ganha uma natureza das coisas vivas, é descrito como um organismo, no qual todas as suas partes e habitantes são integrantes de uma entidade maior. Aluísio Azevedo descreve o cortiço desta maneira em vários momentos da narrativa, como no excerto abaixo: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência da neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia (AZEVEDO, 2006, p.30). Neste caso o paradoxo do personagem a qual Antonio Candido se refere fica mais complexo ainda já que é o estabelecimento que aparece zoomorfizado no enredo. O crítico Anatol Rosenfeld (2005, p.28) sugere que, em termos epistemológicos, a personagem patenteia a estrutura imaginária da ficção. A linguagem pode transformar qualquer descrição em vivência. O crítico acentua que na narração tudo aparece antropomorfizado, pois o homem é o único ente que não se situa somente no tempo, mas que é essencialmente o tempo. As filosofias positivas, a teoria darwinista, o determinismo de Taine estão presentes no discurso de Aluísio Azevedo. Quando este descreve que os moradores do cortiço estão fadados a levar uma vida marcada por vários aspectos como: pobreza, violência, prostituição, escravidão, segregação, indignidade, desigualdade; assim como pelo pagode e pela parati (cachaça). No excerto abaixo há uma semelhança muito intensa com a profusão de notícias e reportagens jornalísticas atuais sobre a violência e o descaso das autoridades com os habitantes das favelas e cortiços das grande cidades. A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho (AZEVEDO, 2006, p.114). É o discurso do determinismo racial que considerava como “seres inferiores”, aquela gentalha das redondezas do cortiço, operários das fábricas, trabalhadores da pedreira, lavadeiras, a maioria mulatos, imigrantes e mestiços. Nesse jogo, os portugueses representavam as camadas que ainda poderiam ter algum acesso a uma vida de classe média urbana, com aquisição de propriedades, escravos, e títulos como no caso do personagem Miranda que alcança o baronato. Já o casal Jerônimo e Rita Baiana representa, através de uma união irregular, o cruzamento das raças, entre o português e a mulata, o empreiteiro e a lavadeira. O português que sofre uma metamorfose, um processo de “abrasileiramento” através dos gestos, jeitos e costumes. O autor naturalista procura realçar dentro do discurso positivo as teorias de Darwin, a entropia baseada na lei da termodinâmica tão influente no final do século XIX. A sociedade para os naturalistas deveria funcionar através da lei da seleção natural. Os portugueses, Romão, Miranda ou Jerônimo, conseguem se adaptar às várias situações, constituindo uma raça superior. Já os mulatos, negros, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos, fazem parte das sub-raças. Porém, estas fornecem modelos de adaptação ao território para o português. Podemos observar isto nos três personagens lusitanos de maneiras diferentes. João Romão não possui freios morais para alcançar sua ambição. Bronco, procura se adaptar às situações passando por cima de qualquer pessoa. Engana a escrava Bertoleza, desvia seu dinheiro e explora seu trabalho; rouba o dinheiro do velho Libório e deixa este morrer carbonizado durante o incêndio; e a intenção de se casar com Zulmira, a filha de Miranda, sendo o casamento uma moeda de troca entre os dois vizinhos. O outro português é o Miranda. O vizinho e objeto de inveja de Romão, Miranda (do latim, aquele que se mira, que se espelha) é aristocrata e alcança o baronato. Sua adaptação se dá pelo casamento que leva com a esposa rica reforçando a função do dote na sociedade brasileira. O terceiro português é Jerônimo, comparado a um Hércules, pela força, dedicação e decadência. Ao fim de um dia de trabalho pegava sua guitarra para dedilhar os fados de sua terra natal. Entoava plena expressão às saudades da pátria, através de cantigas macambúzias. Chorava o desterro das aldeias tristes da sua infância. Aquela guitarra estrangeira tinha um lamento choroso e dolorido. Depois que descobriu o pagode, a mulata e a parati desandou a adaptar-se demoníaco com Rita Baiana, largando Piedade e a filha Senhorinha, que tem destino determinado à prostituição em função das condições sociais do cortiço. Trocou a guitarra pelo violão baiano, participando das rodas de pagode. A música no cortiço Este antagonismo entre o português e o brasileiro, expresso magnificamente através dos hábitos e costumes musicais dos personagens, passa por processos metafóricos de zoomorfização. Anatol Rosenfeld (2005) afirma que o papel do personagem é transformar em evidência de pensamente o que é obscurecido pelo cotidiano. Segundo o autor, a relevância da literatura também se dá pela sua função de afastar-se da realidade e elevá-la a um mundo simbólico que ajuda o humano a entender sua própria realidade. Esta é uma das funções da literatura (ROSENFELD, 2005, p. 49). A música, no cortiço, também é uma personagem. Ela exemplifica pragmaticamente o entendimento do mundo. Há momentos, como o amanhecer de um domingo, em que o violão pode ser escutado ao mesmo tempo em vários apartamentos ou cômodos. Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor. (...) A casa da Machona estava num rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava Nenen, gritava o Agostinho. De muitas outras casas saíam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone. Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lançavam das gaiolas frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. À porta de diversos cômodos, trabalhadores descansavam de calça limpa e camisa de meia lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em voz alta versos de “Os Lusíadas”, com um empenho feroz, que o punha rouco. (...) Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vinténs de parati ou laranjinha sucediam-se por cima do balcão, passando das mãos de Domingos e do Manuel para as mãos ávidas dos operários e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pândega. (...) defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado do bombo, pratos e guizos (AZEVEDO, 2006, p.52-53). Fica clarividente que os personagens e as situações descritas dão a impressão de que o cortiço funciona como um organismo. O acontecer das coisas no amanhecer de domingo estão sempre ligadas a algo maior, a um ente que possui um andamento próprio. Este ato de viver do estabelecimento através de seus personagens e cenários, como as células de um corpo vivo, possui um ritmo, uma dinâmica, que o autor representa através das sonoridades, da variedade das músicas. A música parece ter sido um tema recorrente dentro da literatura no fim do século XIX. Através da leitura de O cortiço (1890), fica evidente que o autor procura fazer uma identificação intensa da vida cotidiana no Rio de Janeiro com a presença da música. Contemporâneo de Aluísio Azevedo, Machado de Assis escreve contos em que o enredo está amarrado pela música. Entre estes contos considero dois: Um homem célebre (1896) e O Machete (1878). Nos contos citados o autor carioca trabalha na linha da peteca entre música popular e música erudita. O crítico José Miguel Wisnik (2004) informa que nos textos de Machado de Assis a música erudita representa a cultura europeia e a arte legítima, profunda de conteúdo e sofisticada. A música popular simboliza o gosto menos refinado, o grotesco, a brasilidade, a lascívia, a sensualidade, o ritmo do trabalho e da vida cotidiana (WISNIK, 2004, p. 24). Tereza Virgínia de Almeida (2008) indica que a análise do conteúdo e da forma das canções permite o pesquisador tentar perceber como se configuram em uma determinada cultura os sistemas e linguagens atuantes. A autora aponta que esta substância provém daquilo que pertence ao imaginário do músico, suas ideias e soluções musicais, suas referências culturais, a maneira como toca o instrumento, sua performance, o domínio que ele deve ter nas dinâmicas das canções. Sua história de vida está descrita no feeling que ele apresenta na hora de executar as notas. Tanto em O cortiço como em O Machete os autores descrevem o feeling que o músico popular exerce ao desenvolver sua atividade, como no excerto abaixo. A Rita Baiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada; divina! Nunca dançara com tanta graça e tamanha lubricidade. Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbado de volúpia, enroscava-se todo ao violão, e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao tutano com línguas finíssimas de cobra (...) (AZEVEDO, 2006, 110-111). O texto de Aluísio Azevedo descreve vários tipos de música que eram tocados no cortiço. No caso da guitarra portuguesa de Jerônimo e seus fados sorumbáticos que o imigrante tocava após um dia inteiro de trabalho pesado de empreitada. É perceptível a relação do tipo de canção com os costumes do personagem. Depois, até às horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele tomava sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados de sua terra. Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava sobre as zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância. E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto-mar, que quando a tempestade agita as negras asas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva com seus gemidos pressagos, tontas como se estivessem fechadas dentro de uma abóbada de chumbo (AZEVEDO, 2006, 52). Já os momentos em que os moradores do cortiço se reuniam para, com violão, cavaquinho e instrumentos de percussão, tocarem e dançarem, o autor denomina de pagode, palavra usada por ele em livro publicado em 1890. O pagode estava amplamente presente na vida daquele segmento social do cortiço. O violão do mestre Firmo e o cavaquinho do Porfiro são os principais instrumentos que ressoavam no local em dia ou noite de pagode. Está colocado isto no domingo em que Rita Baiana volta para o cortiço depois de alguns meses ausente. Nesta noite ela preparou um pagodinho em seu cômodo. E entre a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita deu conta de que pintara na sua ausência; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o entrudo que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal abaixando a voz, segredou às companheiras que à noite teriam um pagodinho de violão. Podiam contar como certo! (...) E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três da tarde, horas em que chegou o mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o violão e o outro o cavaquinho. (...) Desde a entrada dos dois, a casa de Rita esquentou. Ambos tiraram o paletó e mandaram vir parati, “a abrideira para muqueca baiana”. E não tardou para que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão (AZEVEDO, 2006, 57; 59; 60). Nesta noite em que aconteceu a festa na casa de Rita Baiana, também estavam ocorrendo outros forrobodós no entorno. Tanto no sobrado do Miranda, vizinho ao cortiço, como em outras casinhas do estabelecimento, ouviam-se conversas, gritos de empolgação, sons de copos e desarrolhar de garrafas. Na casinha de Jerônimo e Piedade, que haviam sido convidados pelos colegas para ir ao pagode, mas não foram, começaram a surgir sons dos fados macambúzios do velho mundo. Nestas páginas do livro entra em cena uma das questões essenciais para Aluísio Azevedo: a afirmação de uma identidade brasileira através da musicalidade que diferencia o habitante destas do colonizador de além-mar. Nisto começou a gemer à porta do 35 uma guitarra; era Jerônimo. Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara àquela tarde toda a república do cortiço, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca (...) E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim, a monótona cantiga dos portugueses enchia a alma desconsolada o vasto arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá de cima, do sobrado do Miranda (...) Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um choro baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo (...) (AZEVEDO, 2006, 68). O narrador deixa clara a diferença entre as características da música portuguesa e o sentimento de tristeza que ela gera e as percepções causadas pela música brasileira, o pagode. As reações físicas e psicológicas que tomam os personagens por inteiro são marcantes. Isto são fenômenos que ocorrem de maneira concomitante nas outras colônias americanas, mais especificamente com o spiritual, o blues e o jazz na história dos estadunidenses e no caso da rumba, da salsa e tantos outros ritmos caribenhos na América Central, em comparação novamente com as músicas europeias. Por mais que todos esses ritmos do novo mundo tenham sido também influenciados pelos estilos de músicas advindos da Europa, da África e da Ásia, foi no continente americano que estas misturas e sincretismos ocorreram e se tornaram o que são. O fato de Jerônimo ficar de queixo caído pelos ritmos da música brasileira e pela malemolência e sensualidade da Rita Baiana e isso, de maneira paulatina, ir transformando o bruto português num malandro brasileiro. O personagem de Jerônimo, português acostumado com o trabalho de empreitada, que sinaliza a superioridade da raça trabalhando com vontade, vigor, esforço, organização que fazia valer por três ou mais brasileiros. A estigmatização do personagem ocorre através da música. Tocador de guitarra portuguesa, sempre fazia o instrumento entoar fados e outras formas de canções que traziam o sentimento de saudade da terra natal. Era uma música triste como uma lamúria saudosista. Ao conhecer e se aproximar de Rita Baiana, o português logo começa a abrasileirar-se. Mais uma vez, o processo é mediado através dos costumes e hábitos musicais do europeu. A cachaça, o pagode e a mulata têm uma ação fulminante e desnorteadora no personagem. Jerônimo passa a freqüentar os pagodes no cortiço e troca a guitarra portuguesa e sua mulher lusitana, Piedade, pelo violão baiano e pela mulata Rita Baiana. O ponto de inflexão, o epicentro do texto, está relacionado à cultura musical do cortiço e passa pela dualidade entre a música portuguesa, séria e superior, e a música brasileira, constituída pelo pagode, regado a cachaça, repleto de mulatas sensuais e brigas de capoeira. Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoava nas matas brasileiras (...) (AZEVEDO, 2006, 70). Nesse processo é notório observar a seguinte questão: o autor faz uso das palavras samba e pagode para as reuniões de lundu e maxixe? O termo pagode, no contexto da música, que na atualidade é amplamente utilizado, pode, por um lado, sinalizar os encontros regados a samba, cachaça e cerveja e, por outro lado, pagode pode indicar um tipo específico de samba. Principalmente a partir dos anos 90 do século XX, quando o ocorreu um novo processo de especialização, na indústria fonográfica brasileira, baseado na segmentação do mercado consumidor de discos e CDs. Surgiram rótulos como pagode, axé e sertanejo. O pagode passa a ser um segmento específico de produto musical. É claro que esta definição está muito distante do significado de que Aluísio Azevedo faz uso. Restam muitas questões para entender melhor este processo que se desenrolou no período do autor. O que eram realmente o samba e o pagode no final do século XIX? (...) A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que começou ainda com o crepúsculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de costume, incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda. Foi um forrobodó valente. (...) Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos (...) (AZEVEDO, 2006, 110-111). O autor parece usar os termos samba e pagode para situações muito próximas das que atualmente utilizamos. O samba que segundo autores como Hermano Vianna, Tinhorão e Carlos Sandroni, surgiu somente no final da década de 1920, no Rio de Janeiro, em que se diferenciava dos sambas e pagodes descritos pelo autor de O cortiço? Malgrado, o samba tem suas conhecidas peculiaridades sensuais, rítmicas, de promover o agrupamento de pessoas em torno dos músicos e dos dançantes. Como eram as características do lundu e do maxixe? Segundo o narrador, a descrição corresponde a algo muito próximo das rodas de samba atuais. Parece ser realmente uma semente da musicalidade que marca a identidade da cultura brasileira. Nos gestos e jeitos, danças e movimentos, valores e motivos. O mundo representado pelos instrumentos do pagode como o violão e o cavaquinho traz consigo o virtuosismo, o movimento corporal, a lascívia. A expressividade se dá de forma natural. Pois, a maneira como os instrumentos musicais, o violão e o cavaquinho são representados no livro e as situações em que ele aparece são sempre ocasiões de “passatempo”, que busca o entretenimento imediato. Como já comentado anteriormente, por outro lado, no mesmo momento histórico, Machado de Assis utiliza a música para fazer discrepante tipo de análise. Nos textos do autor carioca, o assunto essencial é a articulação entre a música erudita e a popular. Em O Machete, ele constrói uma relação entre o violoncelo e o cavaquinho. Dentre as várias discrepâncias apontadas pelo autor, podemos citar o caráter sério e inaudito do músico erudito e o pendor lúdico e popularesco do cavaquinista. Outro ponto é a discussão entre glória e sucesso, já debatido em Um homem célebre e mais uma vez fazendo todo o sentido dentro do universo da música popular e o tipo de entretenimento que ela gera. Portanto, enquanto Machado de Assis procura mostrar o popular em antagonismo ao erudito, Aluísio Azevedo trabalha com a ideia da música popular em si e como ela ocorre dentro do cortiço, amparando o paradoxo do português que passa por um processo de abrasileiramento. Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisálida (...) A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam (...) adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros. (...) e Jerônimo abrasileirou-se (...) (AZEVEDO, 2006, 84). O escritor fluminense em O machete e em Um homem célebre não parece estar tão preocupado com as idiossincrasias musicais do lundu, do maxixe e do pagode. Como informa José Miguel Wisnik (2004), isto ocorre devido ao fato de que Machado escreve justamente no interregno entre o período da década de 1840, quando a palavra polca passa a ser utilizada de forma hiperbólica (do ragtime ao rock tudo é polca) até 1897, quando foi impressa a primeira partitura sob o nome de maxixe. O pesquisador demonstra em seu texto o mercado de partituras que havia na época através de crônicas machadianas. Contudo, denomina todas as canções populares de polcas. Porém, o autor maranhense, que também escreve no mesmo período, ao narrar uma situação cotidiana de trabalho das mulatas lavadeiras, indica que as condições da atividade eram fustigantes e que a música lhes parecia auxiliar e dar mais resistência às dificuldades da labuta. Sob um sol cáustico, essas mulheres se empenhavam em seu serviço. Almoçavam e voltavam para aquele calor febril que fermentava-lhes o sangue. Comichões assanhadas pelo mormaço coçavam quadris e virilhas. O narrador ressalta que enquanto labutavam, assoviavam e cantavam chorados e lundus. Com diferentes personalidades, Machona, Augusta, Leocádia, Bruxa, Marciana, Florinda, Dona Isabel, das Dores, Rita Baiana, Nenen e o Albino alternavam suas atividades em esfregar, torcer, estender as roupas e entoar seus cantos. Isto também é um outro tipo de associação que pode ser feita com a origem do blues estadunidense. Lá, este estilo de música popular é também oriunda das worksongs, as canções de trabalho que os escravos cantavam durante as construções das linhas férreas, das estradas, dos canais, da mineração, do cultivo dos campos algodão das fazendas do sul dos Estados Unidos, das prisões do Texas e outras localidades. O hábito do canto durante uma atividade dos escravos e seus descendentes é uma ideia que remete para um texto do pesquisador Rafael Menezes Bastos (2006). Este afirma que o mito das três raças, que faz parte da formação do “pensamento social brasileiro” é suprimido em uma fábula de duas raças no discurso sobre o pensamento musical brasileiro. Afro-descendentes e indígenas representam dois pesos e medidas. Os escravos de origem africana são admitidos como contribuintes para o nascimento da sociedade e da música brasileira e de outros países das Américas, tendo como estandarte sua corporalidade em função de seu passado cativo. A sua música e sua dança passam a ser o signo do ritmo do trabalho escravo. Por outro viés, o índio é olvidado e passa a ser visto como componente da memória de um passado longínquo e há muito assimilado. A “doação” forçada de suas terras para a nação brasileira e sua “incompatibilidade” para o trabalho na construção de um país moderno e industrial justificam seu esquecimento (MENEZES BASTOS, 2006, p. 123-124). Não obstante, no contexto urbano do Rio de Janeiro, além das discutidas características musicais de origem europeia e africana, havia a música de origem indígena. As coisas e os costumes dos antigos habitantes da região que não foram totalmente extirpados, mas sim incorporados, mesclados à cultura, ao caldo cultural como fala Wisnik (2004). Aluísio Azevedo (2006) aponta também a relevância da música sertaneja no processo em que Jerônimo estava se abrasileirando, ganhando sensibilidade para este tipo de canção tipicamente brasileira. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores infelizes (...) (AZEVEDO, 2006, 84). Conclusão João Romão chega a dizer que o violão era um item presente no cotidiano dos residentes do cortiço durante as noites, apesar de se gabar de não aceitar inquilino chinfrim. No entanto, na estalagem havia gente de todo tipo, que tocavam músicas populares de origens diferentes como o samba, o pagode, o lundu, o fado, as músicas caipiras ou sertanejas. Fossem nos momentos de trabalho na pedreira ou das lavadeiras ou nos instantes ociosos ou durante as festas. Na casa do vizinho português escutavam-se as valsas em noites festivas. Aluísio Azevedo consegue de maneira excepcional dar sensação de serem entes reais seus personagens, transportando de forma prazerosa o leitor para um confim existente no caldo cultural, na memória coletiva brasileira. ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem”. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2005. SCHWARZ, Roberto. “Adequação nacional e originalidade crítica” In: Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo. Cia das Letras, 1999. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1998. WILLIAMS, Raymond. ““Literature” and “Forms”” In: Marxism and literature. Oxford/New York. Oxford University Press, 1977. Referências ALMEIDA, T.V. “O corpo do som: notas sobre a canção”. In: MATOS, Claudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira de (org.). Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. ANDRADE, Mário de. 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