os tankas de raimundo gadelha
Transcrição
os tankas de raimundo gadelha
3 entrelinhas Pensar por OSCAR GAMA FILHO OS TANKAS DE RAIMUNDO GADELHA A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 9 DE JANEIRO DE 2016 “Aqui e Além do Horizonte” e “Um Estreito Chamado Horizonte” – Livros de Raimundo Gadelha. Editora Escrituras. DIVULGAÇÃO que levaria alguém a abdicar de um mar de possibilidades e escrever livros de poemas compostos apenas por uma única forma fixa: o tanka, de escansão 5-7-5-7-7? Freud descreve como “compulsão à repetição” a tendência incoercível a repetir gestos, atitudes e ações. Essa força patológica se origina do inconsciente e, por isso, o tratamento psicanalítico a erradicaria. Seriam, então, seus tankas uma forma de terapia? Segundo os lacanianos, o papel em branco é, de fato, o analista perfeito, e Gadelha usa a “associação livre” — regra básica e única da psicanálise — de temas e imagens, parecendo mirar em uma forma eidética arquetípica e ideal. Portanto, seus tankas são arquétipos, forma em busca do mundo que tentam moldar, utopias que propõem realidades em um lugar estético, paralelo ao nosso, em que eventos e ideologias se reproduzem de maneira parecida, mas com pequenas alterações aleatórias, em progressão geométrica, tal como seus cristais poéticos, contas em dois colares que chama de livros: “Aqui e além do Horizonte” e “Um Estreito Chamado Horizonte”, ambos publicados pela Editora Escrituras em 2015, o segundo título em sua quarta edição. Assim, seus tankas se constituem em sua bem-sucedida terapia e levam o leitor a compartilhar do mesmo satori que os fundou, a seguir a pista da mesma iluminação, da mesma expansão de consciência. Podemos enxergar estes cristais como as subdivisões prismáticas da ideia a que Mallarmé se refere em Un Coup de Dés Jamais n’Abolira Le Hasard: cada tanka vai refratar a luz e produzir algo diferente, outra ideia, outro texto-cristal edipicamente diferente de seu pai-livro, apesar de ser uma continuação sua. As pérolas só se tornam colar quando estão reunidas. Cada prisma se subdivide em outro que se subdivide em outro — e todos são doadores potenciais de sêmen capazes de produzir fotos, músicas, romances, contos ou... São formas que significam um significante com significados — viva Saussure! — significados múltiplos e, às vezes, contrastantes. Em seus livros ambíguos e multifacetados, o poeta parece dizer: — Não sou e nem me são esses versos, mesmo sendo O Gadelha trouxe do Japão o “feeling” com que tenta expressar o triângulo “fenômeno-sentimento-palavra” da poesia oriental desde sempre neles naquilo que é sua essência. Mas tão elegantemente débil que parece ausência, apesar da plenitude. O poeta, também romancista, teatrólogo, fotógrafo e editor, viveu no Japão e trouxe de lá o feeling com que tenta expressar o triângulo “fenômeno-sentimento-palavra” característico da poesia oriental. Assim, seu texto projeta imagens visuais sobre a mente. E vai às raízes para lançar mão dos mais antigos e essenciais recursos poéticos, presentes em seus tankas. Por séculos os japoneses receberam uma educação rígida em que falar pouco e conter as emoções eram basilares. Da mesma forma, seus poemas repassam a lição da beleza em síntese, incentivando o leitor a uma elegante condensação de emoções, de gestos e de palavras. O poeta entra em guerra silenciosa com o mundo pela vitória de seus ideais. Tal qual o soldado, ele necessita de conjugar a equação que remete a uma das funções básicas da arte: exprimir o que acontece. Resta-lhe, como guerreiro, a arma de transformar a razão e a estratégia em estética, três teorias que adestram as emoções e que ensinam tanto a forma de reprimi-las até o silêncio, em determinado momento, quanto a de libertá-las até o êxtase ao mesmo tempo. Estas represas rompem no instante adequado e exato em que ao homem só resta a escolha entre destruir ou ressuscitar o outro. Como a compreensão redime a ambos, esta é opção de Gadelha: provocar no leitor, adverso à sua estranha visão de mundo, a fruição poética que o ir- mana e que o leva a caminhar de mãos dadas pelos seus versos. Deve ser pelo mesmo feeling poético que Tóquio se distingue como a cidade que tem o maior número de restaurantes com a cotação máxima do guia Michelin. Às vezes, minúsculas casas em que os chefs começam a cozinhar escolhendo suas facas, suas armas, tal como samurais escolhiam suas katanas. Um samurai como você, Gadelha. Que acorda pronto para morrer pela sua senhora, a estética, e aí vive mais do que os vivos, pois jaz na sua ascensão ao ideal absoluto, o Espírito da Beleza. Oscar Gama Filho éescritor,psicólogoehistoriador daliteraturacapixaba. [email protected]