curso de filosofia primeiro ano humberto zanardo petrelli mestre em

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curso de filosofia primeiro ano humberto zanardo petrelli mestre em
CURSO DE FILOSOFIA
PRIMEIRO ANO
HUMBERTO ZANARDO PETRELLI
MESTRE EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
LIMEIRA – SÃO PAULO
2007
- PROGRAMA PARA O PRIMEIRO ANO DOCENTE RESPONSÁVEL:
Humberto Zanardo Petrelli
Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
[email protected]
TEMA/NOME DA DISCIPLINA:
Milagre Grego? O desenvolvimento da “razão” (lógos) na Antigüidade Clássica.
OBJETIVOS:
Estudar os principais pensadores chamados “pré-socráticos” (625-370 a.C.), a fim de estabelecer uma relação entre o
desenvolvimento racional de cada um com o pensamento nascente da época.
Aproximar as teorias desenvolvidas por esses pensadores aos nossos dias para questionar a importância desses pensamentos
como um instrumento para desenvolvermos um mundo melhor e mais justo.
Proporcionar fundamentos teóricos relevantes para possibilitar a discussão de qualquer tema ligado à Filosofia.
Mesclar as teorias estudadas com livros didáticos de Filosofia para o Ensino Médio com o objetivo de estabelecer uma real
aproximação do conteúdo pesquisado com questões relevantes de nossa época, além de buscar esclarecer qual a principal utilidade da
Filosofia: um instrumento para calcularmos e pensarmos com mais rigor.
JUSTIFICATIVA:
Enquanto documento da História da Filosofia, os fragmentos dos “pré-socráticos” interessam a diversas disciplinas. Este
estudo nos leva a questionar como esses seres humanos pensavam os temas essenciais às nossas vidas.
CONTEÚDO E CRONOGRAMA:
Curso de um (1) ano, dividido esquematicamente pelas seguintes aulas (1 aula = 45 ou 50 minutos):
1. Apresentação do curso e o alfabeto grego;
2. Introdução temática: o nascimento da filosofia;
3. Demócrito de Abdera;
4. Técnicas de redação;
5. Tales de Mileto;
6. Anaximandro de Mileto;
7. Anaxímenes de Mileto;
8. Pitágoras de Samos;
9. Xenófanes de Colofão;
10. Heráclito de Éfeso;
11. Parmênides de Eléia;
12. Zenão de Eléia;
13. Empédocles de Agrigento;
14. Anaxágoras de Clazômenas;
15. Avaliação do curso e encerramento.
METODOLOGIA DE ENSINO:
- Aulas expositivas;
- Seminários;
- Exercícios extra-sala.
AVALIAÇÃO:
- Verificação escrita;
- Seminários;
- Trabalhos e participação em sala de aula.
BIBLIOGRAFIA:
PRÉ-SOCRÁTICOS, Col. “Os Pensadores”, vol. 1, seleção de textos e supervisão do prof. Dr. José Cavalcante de Souza, São Paulo,
Abril Cultural, 1978.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR:
CHAUI, M. Filosofia, Série Novo Ensino Médio, Volume Único, São Paulo, Editora Ática, 2004.
CHAUI, M. Introdução à História da Filosofia – dos pré-socráticos a Aristóteles, Volume 1, São Paulo, Cia. das Letras, 2002.
COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia: História e Grandes Temas, São Paulo, Ed. Saraiva, 7a tiragem, 2005.
KIRK, G.S., RAVEN, J. E. & SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1994.
ÍNDICE
AULA 1 .................................................................................................................................................................................................... ALFABETO GREGO
AULA 2 ..................................................................................................................................... “A CANA DOS OUTROS” DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO
AULA 3 ..................................................................................................................................................................................... MITO E FILOSOFIA (PARTE I)
AULA 4 ................................................................................................................................................................................... MITO E FILOSOFIA (PARTE II)
AULA 5 ........................................................................................................................................................................... DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE I)
AULA 6 ......................................................................................................................................................................... DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II)
AULA 7 .................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE I)
AULA 8 ................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II)
AULA 9 .................................................................................................................. FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE III)
AULA 10 ................................................................................................................ FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE IV)
AULA 11 ............................................................................................................................................................................................................... EXERCÍCIO
AULA 12 .................................................................................................................................................................. TÉCNICAS DE CORREÇÃO DE REDAÇÃO
AULA 13 ................................................................................................................. FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE V)
AULA 14 ................................................................................................................ FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VI)
AULA 15 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 16 ............................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VII)
AULA 17 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 18 ............................................................................................................................................................................................ PARA QUE FILOSOFIA?
AULA 19 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 20 ................................................................................................................................................................... TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE I)
AULA 21 .................................................................................................................................................................. TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE II)
AULA 22 ................................................................................................................................................................. TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE III)
AULA 23 ................................................................................................................................................................. TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE IV)
AULA 24 ......................................................................................................................................................................................................... INÚTIL? ÚTIL?
AULA 25 ......................................................................................................................................................................... ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE I)
AULA 26 ........................................................................................................................................................................ ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE II)
AULA 27 ...................................................................................................................................................................... ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE III)
AULA 28 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 29 ....................................................................................................................................................................................... A REFLEXÃO FILOSÓFICA
AULA 30 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 31 ................................................................................................................................................................................... TALES DE MILETO (PARTE I)
AULA 32 .................................................................................................................................................................................. TALES DE MILETO (PARTE II)
AULA 33 ................................................................................................................................................................................ TALES DE MILETO (PARTE III)
AULA 34 .....................................................................................................................................................................ANAXIMANDRO DE MILETO (PARTE I)
AULA 35 ................................................................................................................................................................... ANAXIMANDRO DE MILETO (PARTE II)
AULA 36 ........................................................................................................................................................................................ ANAXÍMENES DE MILETO
AULA 37 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 38 ............................................................................................................................................................................................ JEAN DE LA FONTAINE
AULA 39 ............................................................................................................................................................................ PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE I)
AULA 40 ........................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE II)
AULA 41 .......................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE III)
AULA 42 .......................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE IV)
AULA 43 ........................................................................................................................................................................... PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE V)
AULA 44 ..................................................................................................................................................................................................... MEIO AMBIENTE
AULA 45 ....................................................................................................................................................................... XENÓFANES DE COLOFON (PARTE I)
AULA 46 ...................................................................................................................................................................... XENÓFANES DE COLOFON (PARTE II)
AULA 47 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 48 ............................................................................................................................................................................. HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE I)
AULA 49 ............................................................................................................................................................................ HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)
AULA 50 ....................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE I)
AULA 51 ...................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)
AULA 52 .................................................................................................................... FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE III)
AULA 53 .......................................................................................................................................................... FILOSOFIA: UM PENSAMENTO SISTEMÁTICO
AULA 54 ............................................................................................................................................................................ PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE I)
AULA 55 .......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE II)
AULA 56 ......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE III)
AULA 57 ......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE IV)
AULA 58 .......................................................................................................................................................................... PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE V)
AULA 59 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 60 .............................................................................................................................. CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA O SURGIMENTO DA FILOSOFIA
AULA 61 ..................................................................................................................................................................................... ZENÃO DE ELÉIA (PARTE I)
AULA 62 .................................................................................................................................................................................... ZENÃO DE ELÉIA (PARTE II)
AULA 63 ................................................................................................................................................................................... ZENÃO DE ELÉIA (PARTE III)
AULA 64 .................................................................................................................................................................................. ZENÃO DE ELÉIA (PARTE IV)
AULA 65 ......................................................................................................................................................................... FRAGMENTOS DE ZENÃO DE ELÉIA
AULA 66 ................................................................................................................................................................. EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE I)
AULA 67 ................................................................................................................................................................ EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE II)
AULA 68 ............................................................................................................................................................... EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE III)
AULA 69 .............................................................................................................................................................. EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE IV)
AULA 70 ............................................................................................................................................................ ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE I)
AULA 71 ........................................................................................................................................................... ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE II)
AULA 72 .......................................................................................................................................................... ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE III)
AULA 73 ............................................................................................................................................................................................................. EXERCÍCIOS
AULA 74 ............................................................................................................................................................................................ FRIEDRICH NIETZSCHE
CURSO DE FILOSOFIA
 PRIMEIRO ANO 
 Primeiro Bimestre 
AULA 1.
ALFABETO GREGO:
Α α
Β β
Γ γ
∆ δ
Ε ε
Ζ ζ
Η η
Θ θ
Ι ι
Κ κ
Λ λ
Μ µ
alfa (a)
beta (b)
gama (g)
delta (d)
êpsilon (e)
zeta/sdeta (z/sd)
éta (é)
theta (th)
iota (i)
kapa (k/c)
lambda (l)
mi (m)
Ν
Ξ
Ο
Π
Ρ
Σ
Τ
Υ
Φ
Χ
Ψ
Ω
ν
ξ
ο
π
ρρ
σς
τ
υ
φφ
χ
ψψ
ω
ni (n)
csi/xi (cs/x)
ômicron (o)
pi (p)
rô (r)
sigma (s)
tau (t)
upsilon/ypsilon (u/y)
fi/phi (f/ph)
khi (kh/ch)
psi (ps)
omega (ó)
Transliterar do grego para o português:
Aqhnaj :________________________________________________________________________
Kubernhthj :____________________________________________________________________
Poseidon (Deus do Mar) :__________________________________________________________
φiloj :__________________________________________________________________________
anqrwpoj :______________________________________________________________________
qalatta :_______________________________________________________________________
melaina :_______________________________________________________________________
logoj :__________________________________________________________________________
φoboj :__________________________________________________________________________
ψeudwj :________________________________________________________________________
Transliterar do português para o grego:
Yppopotamos :____________________________________________________________________
dracma :_________________________________________________________________________
nomos :__________________________________________________________________________
acropolis :_______________________________________________________________________
telos :___________________________________________________________________________
patér :___________________________________________________________________________
basileus :________________________________________________________________________
Theous :_________________________________________________________________________
AULA 2.
SERIAL*
A José Lins do Rego**
A CANA DOS OUTROS
1. Esse que andando planta
os rebolos de cana
nada é do Semeador
que se sonetizou.
É o seu menos um gesto
de amor que de comércio;
e a cana, como a joga,
não planta: joga fora.
2. Leva o eito o compasso,
na limpa, contra o mato,
bronco e alheadamente
de quem faz e não entende.
De quem não entendesse
porque só é mato este;
porque limpar do mato,
não, da cana, limpá-lo.
Em Serial (1962), João Cabral de Melo
Neto (1920-1999) apresenta poemas de ênfase social.
O poeta perde a sua individualidade em função da
composição em série. Fazer poema é um ofício, um
trabalho poético de contenção, com o objetivo de
ultrapassar o lirismo e a musicalidade.
A coletânea está divida em dezesseis
conjuntos ou séries, organizadas, por sua vez, em
quadras.
* A palavra sugere a idéia “de uma poesia
dessacralizada, que nasce num universo de produção
em série, e sua escolha para o título revela no autor a
consciência do espaço sociológico-cultural em que
cria a obra: um espaço onde já não cabe uma
concepção da arte como atividade sagrada, onde não
se enquadra mais a figura do criador envolto numa
aura de magia” (MARTA DE SENNA, João Cabral –
Tempo e Memória).
3. Num cortador de cana
o que se vê é a sanha
de quem derruba um bosque:
não o amor de quem colhe.
** A dedicatória ao romancista nordestino
José Lins do Rego (1901-1957) aponta para uma parte
dos temas desta coletânea, evocativos da situação
social das plantações de cana-de-açúcar.
Sanha fúria, inimiga,
feroz, de quem mutila,
de quem sem mais cuidado
abre trilha no mato.
*** Nas quatro “séries” deste poema, o
poeta registra a condição “severina” do trabalhador
dos engenhos e usinas de açúcar.
4. A gente funerária
que cuida da finada
nem veste seus despojos:
ata-a em feixes de ossos.
E quando o enterro chega,
coveiro sem maneiras
tomba-a na tumba-moenda:
tumba viva, que a prensa.***
Rebolos: parte da cana-de-açúcar com dois
ou mais gomos, usada no plantio.
Sonetizar: composição poética de 14 versos,
dispostos em 2 quartetos e 2 tercetos.
Eito: seqüência ou série de coisas que estão
na mesma direção ou linha. Limpeza de uma
plantação por turmas que usam enxadas.
Sanha: ira, fúria, ódio, rancor.
Despojos: o que caiu ou se arrancou, tendo
servido de revestimento.
AULA 3.
MITO E FILOSOFIA (PARTE I)
A
filosofia
nasceu
realizando
uma
transformação gradual sobre os antigos mitos gregos
ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos?
Mas, o que é um mito?
Um mito é uma narrativa sobre a origem de
alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens,
das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos,
do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos
instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do
poder, etc.).
A palavra mito vem do grego màqoj, e deriva
de dois verbos: do verbo màqeÚw (contar, narrar, falar
alguma coisa para os outros) e do verbo màqew
(conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para
os gregos, mito é um discurso pronunciado ou
proferido para ouvintes que recebem como verdadeira
a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma
narrativa feita em público, baseada, portanto, na
autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E
essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou
diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa
de quem testemunhou os acontecimentos narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é
ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é
um escolhido dos deuses, que lhe mostram os
acontecimentos passados e permitem que ele veja a
origem de todos os seres e de todas as coisas para que
possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra  o mito
 é sagrada porque vem de uma revelação divina. O
mito é, pois, incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de
tudo o que nele existe?
De três principais maneiras:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos
seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações
sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações
geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos
e semi-divinos), os heróis (filhos de um deus com uma
humana ou de uma deusa com um humano), os
humanos, os metais, as plantas, os animais, as
qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claroescuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado,
etc..
A narração da origem é, assim, uma
genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das
coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus
pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo de narrativa mítica.
Observando que as pessoas apaixonadas estão
sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam
mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para
seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a
origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros
(que conhecemos mais com o nome de Cupido),
exemplo
extraído
do
Banquete
203a,
de
Platão:“Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os
deuses, e entre os demais se encontrava também o
filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de
jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou
na porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar –
pois o vinho ainda não havia – penetrou o jardim de
Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando
em sua falta de recurso engendrar um filho de
Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o
Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de
Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo
tempo que por natureza amante do belo, porque
também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de
Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele
ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está
de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é
duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem
forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos
caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre
convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele
é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso,
decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer
maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos,
a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro,
sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e
no mesmo dia ora ele germina e vive, quando
enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à
natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa,
de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece,
assim como também está no meio da sabedoria e da
ignorância. Eis com efeito o que se dá”.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança
entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo.
Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre forças
divinas ou uma aliança entre elas para provocar alguma
coisa no mundo dos homens.
O poeta Homero, na Ilíada, epopéia que narra
a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas,
os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia
aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a
favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez,
o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos,
aliava-se com um grupo e fazia um dos lados  ou os
troianos ou os gregos  vencer a batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade
entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o
príncipe troiano Páris, oferecendo a ele seus dons e ele
escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas,
enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher
do general grego Menelau, e isso deu início à guerra
entre os humanos.
AULA 4.
MITO E FILOSOFIA (PARTE II)
O mito, como estudado na aula anterior, narra a
origem do mundo e de tudo que existe nele, e a terceira
principal maneira de narração mítica é:
3. Encontrando as recompensas ou os castigos
que os deuses dão a quem lhes obedece ou a quem lhes
desobedece, respectivamente.
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo
pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois
com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam
a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a
se aquecer no inverno quanto podem fabricar
instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.
Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do
que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe
de presente para os homens. Prometeu foi castigado
(amarrado num rochedo para que as aves de rapina,
eternamente, devorassem seu fígado) e os homens
também. Qual foi o castigo dos homens?
Os deuses fizeram uma mulher encantadora,
Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria
coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta.
Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade
e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela
saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e,
sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males
do mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das
coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre
forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino
dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são
genealogias, diz-se que são cosmogonias e theogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do
verbo genn£w (engendrar, produzir, gerar, fazer nascer e
crescer) e do substantivo gšnoj (nascimento, gênese,
descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer
dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e
do parto. Cosmos, por sua vez, quer dizer mundo
ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa
sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de
forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Theogonia é uma palavra composta de gonia e
qeÒj, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres
divinos, os deuses. A theogonia é, portanto, a narrativa da
origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.
A filosofia, ao nascer, é uma cosmologia, uma
explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as
causas das transformações e repetições das coisas; para
isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos
ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou
rompe com a cosmogonia e a theogonia?
Duas foram as respostas dadas pelos estudiosos.
A primeira delas foi dada nos fins do século XIX
e começo do XX, quando reinava um grande otimismo
sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do
homem. Dizia-se, então, que a filosofia nasceu por uma
ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação
científica da realidade produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de meados
do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos
historiadores mostraram a importância dos mitos na
organização social e cultural das sociedades e como os
mitos estão profundamente entranhados nos modos de
pensar e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que
os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em
seus mitos e que a filosofia nasceu, vagarosa e
gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma
racionalização deles.
Atualmente, consideram-se as duas respostas
exageradas e afirma-se que a filosofia, percebendo as
contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e
racionalizando as narrativas míticas, transformando-as
numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e
diferente.
Quais são as diferenças entre filosofia e mito?
Podemos apontar três como as mais importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram
ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e
fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo
existisse tal como existe no presente. A filosofia, ao
contrário, preocupa-se em explicar como e por que, no
passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do
tempo), as coisas são como são.
2. O mito narrava a origem através de
genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas
sobrenaturais e personalizadas, enquanto a filosofia, ao
contrário, explica a produção natural das coisas por
elementos e causas naturais e impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a
filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem
dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais,
homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano
e Ponto. A filosofia explica o surgimento desses seres por
composição, combinação e separação dos quatro
elementos  úmido, seco, quente e frio, ou água, terra,
fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições,
com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses
eram traços próprios da narrativa mítica, como também
porque a confiança e a crença no mito vinham da
autoridade religiosa do narrador. A filosofia, ao contrário,
não admite contradições, fabulação e coisas
incompreensíveis, mas exige que a explicação seja
coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da
explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão,
que é a mesma em todos os seres humanos.
AULA 5.
DEMÓCRITO DE ABDERA (cerca de 460-370 a.C.)
Demócrito nasceu em Abdera (colônia jônica da Trácia).
Foi discípulo e sucessor de Leucipo na direção da Escola de Abdera.
Do ponto de vista cronológico, não poderíamos colocar Leucipo e
Demócrito juntos, pois o primeiro teria sua akmé (ponto de
maturação filosófica) por volta de 450 a.C. (conforme Apolodoro),
enquanto que Demócrito nasceu em 460-459 a.C.. O primeiro era de
Mileto, e suas preocupações eram fundamentalmente cosmológicas,
enquanto o segundo, de Abdera, contemporâneo e conterrâneo do
sofista Protágoras, teve preocupações éticas e com a técnica. O
motivo pelo qual são colocados juntos é a existência de um único
corpus de doutrina reunido num conjunto de obras, conhecidas
como da Escola de Abdera. Atribuem-se-lhe muitas viagens, numa
das quais também chegou a Atenas. Mas mesmo assim, nesta
cidade, sua filosofia foi ignorada por muito tempo.
Demócrito deve ter sido um dos escritores mais fecundos
da antigüidade. Segundo Diógenes Laércio, deixou umas noventa
obras. Restam-nos fragmentos do Mikrós Diakósmos ou Pequeno
Ordenamento, Da Forma, Do Entendimento e outras (de conteúdo
teórico), Do Bom Ânimo, Preceitos, etc. (de conteúdo moral). Pelas
fontes, não podemos distinguir com suficiente segurança o que se
deve a Demócrito e o que a Leucipo. John Burnet, historiador da
filosofia inglês, acreditava que muitas das obras atribuídas a
Demócrito formavam como que o corpus da Escola. O Mégas
Diakósmos ou Grande Ordenamento seria da autoria de Leucipo, de
acordo com Teofrasto, enquanto as outras, dos discípulos da Escola.
É considerado o sistematizador da doutrina atomista. Para
os atomistas, a “natureza” (φÚsij) deveria ser idêntica a si mesma,
eterna e imutável, e formada de unidades discretas. A “natureza”
(φÚsij) ou o ser, portanto, são os átomos, o não-cortável, isto é, os
indivisíveis. Os átomos, partículas invisíveis e as menores possíveis,
são plenos, indivisíveis, unos, contínuos, imutáveis, eternos. Há uma
quantidade inumerável ou infinita de átomos ou unidades discretas.
Entre um átomo e outro há o vazio ou o vácuo, que é o não-ser
como algo real, existente. Pela primeira vez foi admito o vácuo e
afirmou-se que o espaço é real sem ser corporal. Os atomistas,
portanto, acreditavam que a “natureza” (φÚsij) eram os átomos e o
vácuo. O pleno (o átomo) e o vazio são princípios constitutivos de
todas as coisas, geradas pelo contato entre os átomos que se movem
no vácuo, chocando-se, ricocheteando uns contra os outros, fazendo
as coisas nascer, mudar e perecer. Esse movimento espontâneo dos
átomos é inerente a eles (não é preciso uma força externa para
movê-los, como o Amor e o Ódio, em Empédocles, ou o noàj, em
Anaxágoras) e é racional e necessário, não sendo contingente ou por
acaso.
A diferença entre os átomos não é qualitativa, isto é, não
há átomos frios, quentes, úmidos, secos, luminosos, escuros,
pesados, leves, mas puramente quantitativa, isto é, os átomos se
diferenciam por sua forma, grandeza, posição, direção e velocidade.
Determinam o nascimento das coisas por agregação e a morte delas
por desagregação; determinam a ordem do devir ou da mudança
pela sua ordem, posição e velocidade. Todos os átomos são dotados
de extensão ou grandeza e são todos iguais em substância, de sorte
que as diferenças entre as coisas devem ser explicadas apenas pela
forma, arranjo e posição dos átomos. Mantendo a tradição médica e
empedocliana de que só o semelhante age sobre o semelhante e só o
semelhante sofre a ação do semelhante, Demócrito afirmou que o
contato entre os átomos para formar as coisas se deve ao fato de que
são iguais ou semelhantes em sua substância, pois, de outro modo,
não poderiam entrar em contato e agir uns com os outros. Isso
significa que a substância de todas as coisas é a mesma e por isso a
diferença decorre apenas da forma (ou proporção), do arranjo (ou
ordem) e da conversão (ou posição) da mesma matéria fundamental,
como vemos com as letras quando A difere de N pela forma; AN e
NA diferem pela ordem; e Z e N pela posição.
Com os atomistas temos, além de uma cosmologia, uma
física. De fato, as cosmologias explicam a multiplicidade e variação
qualitativa das coisas e da natureza afirmando que as coisas e a
natureza são constituídas por qualidades. A diferença na qualidade
(quente-frio, seco-úmido, luminoso-opaco, duro-mole, denso-sutil,
etc.) causa as diferentes coisas; a mudança na qualidade causa a
variação e o devir. Ora, os atomistas eliminam as qualidades como
originárias. Os átomos não são qualidades, são formas (figura,
ordem, posição), são estruturas das coisas, cuja origem e mudança
decorrem apenas dos movimentos dos átomos no vácuo.
Qual seria a relação entre o pensamento, que conhece os
átomos e o vácuo (invisíveis, não percebidos por nossos sentidos), e
a percepção ou sensação, que alcança as coisas por meio de suas
qualidades? A física atomista responderá a essa pergunta com uma
teoria do conhecimento revolucionária, exposta por Demócrito.
Aparentemente, Demócrito estaria apenas reafirmando
aquilo que, desde Heráclito e Parmênides, já estava decidido pelos
filósofos pré-socráticos, isto é, que não conhecemos a realidade ou a
verdade por meio de nossos sentidos, pois estes nos dão a aparência
das coisas e com elas apenas formamos opiniões. Todavia,
Demócrito foi muito além de seus antecessores.
Os fragmentos afirmam que as qualidades (quente-frio,
doce-amargo, luminoso-escuro, cores, sabores, odores, texturas das
coisas, etc.) são uma convenção entre os homens. “Convenção”
(nÒmoj) é aquilo que não é por “natureza” (φÚshi), mas por opinião
e por acordo entre os homens. A percepção das qualidades das
coisas é subjetiva, isto é, depende das disposições do corpo de cada
um, varia com as variações do corpo (para o doente, o doce pode
tornar-se amargo, por exemplo), de tal modo que diferentes homens
terão diferentes percepções das coisas, e um mesmo homem,
dependendo das disposições de seu corpo, terá percepções diferentes
de uma mesma coisa. Essas qualidades, os filósofos posteriores
chamarão de qualidades sensíveis, para marcar com essa expressão
a idéia de que não são qualidades das coisas, mas modos subjetivos
ou humanos de perceber as coisas.
Mas, por que percebemos cores, odores, sabores,
formatos, texturas, tamanhos, aspereza, dureza, etc.? Qual a causa
da percepção das qualidades? As diferenças nas formas dos átomos,
que provocam o efeito perceptivo ou subjetivo de qualidades.
Assim, o azedo decorre da forma angulosa de certos átomos; o doce,
de átomos cujas formas são arredondadas e pequenas; o amargo, de
átomos cujas formas são pequenas, lisas e redondas; e assim para
cada qualidade. Dependendo da quantidade ou proporção maior de
uma forma sobre as outras num composto, nosso corpo é afetado por
essa forma predominante e percebe, como qualidade, a sensação
correspondente a essa forma. Como, porém, os corpos são
compostos de átomos de várias formas, nosso corpo pode confundilas e, por isso, dependendo de nosso estado, podemos sentir amargo
o que era doce, quente o que era frio, e assim por diante. As
sensações e os pensamentos dependem, portanto, objetivamente das
formas dos átomos e subjetivamente das disposições de nosso corpo.
É apenas por convenção que os homens decidem o que é uma
qualidade ou outra, porque, por natureza, elas não existem. As
qualidades percebidas são nomes que damos ao que percebemos
indiretamente da realidade atômica. Damos o nome de azedo à
percepção de átomos angulosos; de doce, à de átomos arredondados
e pequenos, etc..
AULA 6.
DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II)
Como se dá a percepção e como ocorre o pensamento.
Para os atomistas, todo conhecimento, seja ele sensível ou
intelectual, se dá por contato. As coisas emitem imagens,
películas ou membranas muito finas, que guardam o aspecto das
coisas de onde vieram, atravessam o ar e se chocam com nosso
corpo. Esse choque é a causa da percepção. O pensamento, por
sua vez, recebe por contato as imagens mais finas e sutis,
produzidas dentro de nós pelas sensações. Ou seja, o
pensamento não recebe imagens externas vindas dos corpos,
mas as imagens internas que a sensação ou percepção
produziram no interior de nosso corpo. Essas imagens, que são
menores, têm uma clareza e precisão maiores, convidam o
pensamento e o orientam a pensar o que é invisível, isto é, o
pleno e o vazio, os átomos e suas formas, ordenações e posições.
Assim, do conhecimento obscuro que os sentidos nos oferecem,
o pensamento retira o conhecimento genuíno, mais fino e
preciso.
Porque tudo é matéria (átomos), porque a percepção é
contato material entre os corpos, porque a alma é um tipo sutil
de átomo e porque o pensamento é o contato material com as
imagens da percepção que permanecem guardadas em nosso
corpo, os atomistas são considerados os primeiros filósofos
materialistas. Essa designação, porém, é incorreta e anacrônica
por dois motivos: em primeiro lugar, porque, até Sócrates e
Platão, nenhum filósofo admitiu outra realidade senão a
corpórea (o lÒgoj de Heráclito, o Ser de Parmênides, o AmorÓdio de Empédocles, o noàj de Anaxágoras são todos
corpóreos, ainda que sua corporeidade não seja igual à dos
corpos que percebemos pelos sentidos); em segundo lugar,
porque os atomistas foram os primeiros filósofos a afirmar a
existência do vazio e, portanto, de uma realidade (o espaço) não
corporal ou imaterial.
Em geral, quando se diz que são materialistas, o que se
quer dizer é que não invocam nenhuma força externa aos átomos
(à matéria) para explicar a origem do movimento e do devir. Na
verdade, a designação dos atomistas como materialistas é tardia.
Foi usada como uma crítica aos “partidários dos átomos” por
uma cultura que, pouco a pouco, dará maior peso, maior
importância e maior realidade ao espiritual, entendido como
algo diferente e superior ao corporal. Essa é, sem dúvida, a
razão pela qual Platão, contemporâneo de Demócrito, não o
menciona em nenhuma de suas obras, manifestando desprezo
pelo “materialismo” dos pensadores de Abdera.
Uma das contribuições mais duradouras do
pensamento de Demócrito é sua defesa e elogio das técnicas ou
artes. Numa sociedade escravista, como a grega, os trabalhos
manuais eram deixados aos escravos ou aos artesãos livres,
considerados inferiores pelos aristocratas. Até a consolidação da
democracia, as artes ou técnicas (tšcnai) eram vistas com
desprezo. Com a democracia, porém, outra visão das artes surge
na pólis, que passou a dividi-las em manuais (como a pintura, a
escultura, a arquitetura, a medicina) e liberais (como a oratória,
a poesia, a tragédia, etc.).
Que fez Demócrito? Abandonando as explicações
míticas sobre a origem do homem e da sociedade, afirma que, no
princípio, o mundo humano não tinha ordem nem lei. Como o
mundo dos animais selvagens que vivem isolados nas florestas,
o mundo humano era cheio de medo e de morte. Pouco a pouco,
os homens perceberam a utilidade da vida em comum e da ajuda
mútua. O medo os levou a compreender a utilidade da reunião
para a defesa recíproca. Também o medo os fez explicar a
natureza como obra e intervenção contínua dos deuses, isto é,
sentindo necessidade de explicar as causas das coisas,
inventaram os deuses e a eles atribuíram a origem das coisas e
das técnicas, doadas aos humanos.
Todavia, não é só a reunião e a religião que
caracterizam a primeira ordenação do mundo humano. Existiu
algo mais fundamental, que foi a condição para que os homens
se reunissem e a religião aparecesse: a descoberta da linguagem.
Linguagem e religião foram as primeiras invenções que
propiciaram aos homens o sentimento da estabilidade,
regularidade e repetição dos acontecimentos. Esse sentimento e
a capacidade da linguagem de permitir a retenção de fatos na
memória criaram a experiência, isto é, a capacidade para intervir
sobre os acontecimentos de modo regular, estável e contínuo.
Com a experiência, surgiram as técnicas, e, com elas, a vida em
sociedade foi finalmente organizada.
Voz, mãos e razão, respondendo às carências e
necessidades dos homens, permitiram a invenção das artes ou
técnicas. As técnicas, portanto, são consideradas por Demócrito
não um dom dos deuses aos homens, mas descobertas humanas.
Os homens descobriram que não bastava rezar para conseguir
frutos, mas era preciso lavrar a terra (descobriram a agricultura).
Descobriram que não bastava rezar para conseguir abrigo, mas
era preciso construí-lo (inventaram a arquitetura). Que não
bastava rezar aos deuses para curar as doenças, mas era preciso
conhecer suas causas e os modos de atuar sobre elas (criaram a
medicina). Que não bastava ter filhos para assegurar a
continuidade da vida, mas era preciso educá-los (inventaram a
pedagogia). Que não bastava viverem reunidos para haver
sociedade, mas era preciso leis e instituições (inventaram a
política). Linguagem e técnicas são, assim, responsáveis pela
vida humana dos humanos. Embora atribuíssem aos deuses suas
próprias invenções e criações, os humanos se fizeram humanos
por si mesmos e graças a si mesmos.
Foi proverbial na antiguidade o sorriso contínuo de
Demócrito.
AULA 7.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE I):
2. g…netai d ™k toà φrone‹n tr…a taàta· bouleÚesqai kalîj, lšgein ¢namart»twj kaˆ pr£ttein §
de‹.
Têm origem no saber estas três coisas: deliberar bem, falar sem erros e fazer o que é preciso.
D. d ™tumologîn tÕ Ônom£ [sc. Tritogšneia] φhsin, Óti ¢pÕ tÁj φron»sewj tr…a taàta
sumba…nei· tÕ eâ log…zesqai, tÕ eâ lšgein kaˆ tÕ pr£ttein § de‹.
Demócrito, porém, ao dar a etimologia da palavra [Tritogênia], diz que da sabedoria surgem estas três
coisas: o calcular bem, o falar bem e o fazer o que é preciso.
9. “nÒmwi” g£r φhsi “glukÚ, [kaˆ] nÒmwi pikrÒn, nÒmwi qermÒn, nÒmwi ψucrÒn, nÒmwi croi», ™teÁi d
¥toma kaˆ kenÒn” ... [136] “¹me‹j d tîi mn ™Ònti oÙdn ¢trekj sun…emen, metap‹pton d
kat£ te sèmatoj diaq»khn kaˆ tîn ™peisiÒntwn kaˆ tîn ¢ntisthrizÒntwn”.
Por convenção, (Demócrito) diz, existe o doce e por convenção o amargo, por convenção o quente, por
convenção o frio, por convenção a cor; na realidade, porém, átomos e vazio ... [136] Nós, porém,
realmente nada de preciso apreendemos, mas em mudança, segundo a disposição do corpo e das coisas
que nele penetram e chocam.
11. gnèmhj d dÚo e„sˆn „dšai, ¹ mn gnhs…h, ¹ d skot…h· kaˆ skot…hj mn t£de sÚmpanta, Ôψij,
¢ko», Ñdm», geàsij, ψaàsij. ¹ d gnhs…h, ¢pokekrimšnh d taÚthj. Ótan ¹ skot…h mhkšti
dÚnhtai m»te ÐrÁn ™p’ œlatton m»te ¢koÚein m»te Ñdm©sqai m»te geÚesqai m»te ™n tÁi
ψaÚsei a„sq£nesqai, ¢ll’ ™pˆ leptÒteron <dšhi zhte‹n, tÒte ™pig…netai ¹ gnhs…h ¤te Ôrganon
œcousa toà nîsai leptÒteron>.
Há duas formas de conhecimento, um genuíno, outro obscuro. Ao conhecimento obscuro pertencem,
no seu conjunto, vista, audição, olfato, paladar e tato. O conhecimento genuíno, porém, está separado
daquele. (...) Quando o obscuro não pode ver com maior minúcia, nem ouvir, nem sentir cheiro e
sabor, nem perceber pelo tato, mas é preciso procurar mais finamente, então apresenta-se o genuíno,
que possui um órgão de conhecimento mais fino. (...)
31. „atrik¾ mn g¦r kat¦ DhmÒkriton sèmatoj nÒsouj ¢kšetai, soφ…h d ψuc¾n paqîn ¢φaire‹tai.
Segundo Demócrito, a medicina cura as doenças do corpo, a sabedoria livra a alma das paixões.
33. ¹ φÚsij kaˆ ¹ didac¾ parapl»siÒn ™sti. kaˆ g¦r ¹ didac¾ metarusmo‹ tÕn ¥nqrwpon,
metarusmoàsa d φusiopoie‹.
A natureza e a instrução são algo semelhante, pois a instrução transforma o homem, mas,
transformando-o, cria-lhe a natureza.
AULA 8.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE II):
35. gnwmšwn meu tînde e‡ tij ™paoi xÝn nÒwi, poll¦ mn ›rxei pr£gmat’ ¢ndrÕj ¢gaqoà
¥xia, poll¦ d φlaàra oÙc ›rxei.
Quem escutar de mim estas sentenças com inteligência, realizará muitos atos dignos de um
homem e não realizará muitos atos vis.
37. Ð t¦ ψucÁj ¢gaq¦ aƒreÒmenoj t¦ qeiÒtera aƒršetai· Ð d t¦ sk»neoj t¦ ¢nqrwp»ia.
Quem escolhe os bens da alma, escolhe os divinos; quem escolhe os do corpo, escolhe os
humanos.
39. ¢gaqÕn À enai creën À mime‹sqai.
É preciso ou ser bom ou imitar quem o é.
40. oÜte sèmasin oÜte cr»masin eÙdaimonoàsin ¥nqrwpoi, ¢ll’ ÑrqosÚnhi kaˆ
poluφrosÚnhi.
Não é pelo corpo, nem pela riqueza que os homens são felizes, mas pela retidão e muita
sabedoria.
41. m¾ di¦ φÒbon, ¢ll¦ di¦ tÕ dšon ¢pšcesqai ¡marthm£twn.
Não por medo, mas por dever, evitai os erros.
45. Ð ¢dikîn toà ¢dikoumšnou kakodaimonšsteroj.
Quem comete injustiça é mais infeliz que o que sofre injustiça.
50. Ð crhm£twn pantelîj ¼sswn oÙk ¥n pote e‡h d…kaioj.
Quem fosse totalmente submisso ao dinheiro jamais poderia ser justo.
51. „scurÒteroj ™j peiqë lÒgoj pollacÁi g…netai crusoà.
Para a persuasão a palavra freqüentemente é mais forte que o ouro.
52. tÕn o„Òmenon noàn œcein Ð nouqetšwn mataiopone‹.
Quem adverte aquele que pensa ser inteligente, trabalha em vão.
55. œrga kaˆ pr»xiaj ¢retÁj, oÙ lÒgouj, zhloàn creièn.
Obras e ações de virtude, não palavras, é preciso invejar.
AULA 9.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE III):
57. kthnšwn mn eÙgšneia ¹ toà sk»neoj eÙsqšneia, ¢nqrèpwn d ¹ toà ½qeoj eÙtrop…h.
A boa natureza dos animais é a força do corpo; a dos homens, a excelência do caráter.
59. oÜte tšcnh oÜte soφ…h ™φiktÒn, Àn m¾ m£qhi tij.
Nem arte, nem sabedoria é algo acessível, se não há aprendizado.
66. probouleÚesqai kre‹sson prÕ tîn pr£xewn À metanoe‹n.
Deliberar previamente antes de agir é melhor que arrepender-se.
69. ¢nqrèpoij p©si twÙtÕn ¢gaqÕn kaˆ ¢lhqšj· ¹dÝ d ¥llwi ¥llo.
Para todos, o belo e o verdadeiro são a mesma coisa, mas o agradável é diferente para cada um.
72. aƒ per… ti sφodraˆ Ñršxeij tuφloàsin e„j t«lla t¾n ψuc»n.
Desejar algo violentamente cega a alma para o restante.
78. cr»mata por…zein mn oÙk ¢cre‹on, ™x ¢dik…hj d p£ntwn k£kion.
Conseguir bens não é sem utilidade, mas, através da injustiça, é o pior de tudo.
79. calepÕn mime‹sqai mn toÝj kakoÚj, mhd ™qšlein d toÝj ¢gaqoÚj.
É triste imitar os maus e não querer imitar os bons.
80. a„scrÕn t¦ Ñqne‹a polupragmonšonta ¢gnoe‹n t¦ o„k»ia.
É vergonhoso ocupar-se muito das coisas alheias e ignorar as próprias.
81. tÕ ¢eˆ mšllein ¢telšaj poie‹ t¦j pr»xiaj.
O sempre adiar toma sem fim as ações.
82. k…bdhloi kaˆ ¢gaqoφanšej oƒ lÒgwi mn ¤panta, œrgwi d oÙdn œrdontej.
Falsos e bons na aparência os que de boca fazem tudo, mas nada na realidade.
84. ˜wutÕn prîton a„scÚnesqai creën tÕn a„scr¦ œrdonta.
É preciso que quem comete atos vergonhosos tenha em primeiro lugar vergonha de si mesmo.
AULA 10.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE IV):
91. m¾ Ûpoptoj prÕj ¤pantaj, ¢ll’ eÙlab¾j g…nou kaˆ ¢sφal»j.
Não sejas desconfiado com todos, mas cuidadoso e seguro.
92. c£ritaj dšcesqai creën proskopeuÒmenon kršssonaj aÙtîn ¢moib¦j ¢podoànai.
Deve-se receber favores com a intenção de corresponder com outros maiores.
94. mikraˆ c£ritej ™n kairîi mšgistai to‹j lamb£nousi.
Pequenos favores prestados no momento oportuno são os maiores para quem os recebe.
96. caristikÕj oÙc Ð blšpwn prÕj t¾n ¢moib»n, ¢ll’ Ð eâ dr©n prohirhmšnoj.
Benfeitor não é quem visa à retribuição, mas quem optou pela boa ação.
97. polloˆ dokšontej enai φ…loi oÙk e„s…, kaˆ oÙ dokšontej e„s…n.
Muitos, embora pareçam bons amigos, não são e, embora não pareçam, são.
98. ˜nÕj φil…h xunetoà kršsswn ¢xunštwn p£ntwn.
A amizade de um só homem inteligente é melhor que a de todos os tolos.
102. kalÕn ™n pantˆ tÕ son· Øperbol¾ d kaˆ œlleiψij oÜ moi dokšei.
Em tudo é belo o equilíbrio, mas não, parece-me, o excesso e a carência.
106. ™n eÙtuc…hi φ…lon eØre‹n eÜporon, ™n d dustuc…hi p£ntwn ¢porètaton.
Na fortuna, encontrar um amigo é fácil, mas, no infortúnio, é a coisa mais difícil.
107a. ¥xion ¢nqrèpouj Ôntaj ™p’ ¢nqrèpwn sumφora‹j m¾ gel©n, ¢ll’ ÑloφÚresqai.
É coisa digna, sendo homem, não rir dos infortúnios dos homens, mas chorá-los.
112. qe…ou noà tÕ ¢e… ti dialog…zesqai kalÒn.
É próprio de inteligência divina sempre discutir algo belo.
113. meg£la bl£ptousi toÝj ¢xunštouj oƒ ™painšontej.
Causam grandes prejuízos os que louvam os tolos.
129. φrenˆ qe‹a noàntai.
Com a mente pensam coisas divinas.
145. lÒgoj g¦r œrgou ski».
Pois a palavra é sombra da ação.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 11.
EXERCÍCIO:
Desenvolva uma redação, utilizando no mínimo quinze (15) linhas, com o seguinte tema:
“Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo”.
Ludwig Wittgenstein, Tratactus Lógico-Philosophicus, 5.6.
1.______________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
5.______________________________________________________________________________
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________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
10._____________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
15._____________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
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________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
20._____________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
AULA 12.
TÉCNICAS DE CORREÇÃO DE REDAÇÃO:
PONTUAÇÃO
I. CORRESPONDÊNCIA COM O TEMA PROPOSTO:
1. Não há nenhuma correspondência entre o texto e o tema proposto.
0
2. Abordagem superficial do tema.
0,5
3. Abordagem adequada do tema, com desenvolvimento ingênuo.
1,0
4. Abordagem adequada do tema, com bom desenvolvimento.
1,5
5. Abordagem adequada do tema, com ótimo desenvolvimento e contribuição pessoal.
2,0
II. CORRESPONDÊNCIA DO TEXTO COM A MODALIDADE REDACIONAL PEDIDA/ESCOLHIDA:
1. Não há nenhuma correspondência entre o tipo de texto produzido e a modalidade redacional solicitada/pedida.
0
2. Fuga parcial ao tipo de texto (alguns/graves problemas/mistura de modalidade textuais).
0,5
3. Atende ao tipo de texto, porém sem exploração de seus recursos.
1,0
4. Atende ao tipo de texto, com alguma exploração de seus recursos.
1,5
5. Apresenta bom/ótimo aproveitamento de todos os recursos do tipo de texto.
2,0
III. ADEQUAÇÃO À COLETÂNEA:
1. Há desprezo total aos fragmentos de texto oferecidos.
0
2. Utilização dos fragmentos, porém com transcrição literal de trechos.
0,5
3. Utilização dos fragmentos, mas com abordagem simplória/de aspectos secundários.
1,0
4. Utilização dos fragmentos, com correta interpretação dos dados neles apresentados.
1,5
5. Utilização dos fragmentos, com correta interpretação e aprofundamento da abordagem.
2,0
IV. COERÊNCIA:
1. Exposição totalmente desconexa de idéias e argumentos.
0
2. Exposição predominantemente desconexa de idéias e argumentos.
0,5
3. Pouca coerência interna:
1,0
A – Trechos obscuros/idéias contraditórias ou ambíguas.
B – Quebra de relação entre idéias.
C – Falhas de coesão.
4. Texto coerente, porém sem sofisticação das relações de sentido.
1,5
5. Exposição coerente de idéias e argumentos, com sofisticação das relações de sentido (enfoque inovador).
2,0
V. COESÃO:
1. Muitos/Graves problemas de coesão, impedindo a fluência da leitura.
0
2. Muitas falhas de encadeamento (repetição excessiva de itens, frases incompletas ou emendas, falta de paralelismo).
0,5
3. Não há deficiências graves, entretanto mantém o uso das conjunções mais conhecidas e utiliza poucos recursos pronominais.
Algum problema na estruturação frasal.
1,0
4. Bom uso dos elementos coesivos e transições adequadas entre as idéias.
1,5
5. Boa transição entre os parágrafos e recursos que beneficiam o texto.
2,0
VI. LINGUAGEM (DOMÍNIO DA LÍNGUA ESCRITA NA VARIEDADE PADRÃO):
1. Insuficiência vocabular e graves inadequações gramaticais.
0
2. Variedade vocabular deficiente, interferência de oralidade, inadequações gramaticais.
0,5
3. Variedade vocabular, entretanto há falha em propriedade vocabular e na adequação gramatical.
1,0
4. Adequação gramatical e vocabular.
1,5
5. Além de adequação gramatical, há variedade e propriedade vocabular, com uso pessoal do léxico.
2,0
A) Ortografia; B) Concordância; C) Acentuação; D) Pontuação; E) Adequação Pronominal; F) Regência; G) Adequação Verbal.
TOTAL
Obs.:
1. O item III só será avaliado se for obrigatória a utilização de fragmentos;
2. Pontuação zero em um dos primeiros itens implica em nota final zero.
______
AULA 13.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE V):
154. gelo‹oi d’ ‡swj ™smn ™pˆ tîi manq£nein t¦ zîia semnÚnontej, ïn Ð D. ¢poφa…nei maqht¦j ™n to‹j
meg…stoij gegonÒtaj ¹m©j· ¢r£cnhj ™n ØφantikÁi kaˆ ¢kestikÁi, celidÒnoj ™n o„kodom…ai, kaˆ tîn
ligurîn, kÚknou kaˆ ¢hdÒnoj, ™n çidÁi kat¦ m…mhsin.
Talvez sejamos ridículos quando nos vangloriamos de ensinar os animais. Deles, prova Demócrito, somos
discípulos nas coisas mais importantes: da aranha no tecer e remendar, da andorinha no construir casas, das aves
canoras, cisne e rouxinol no cantar, por meio da imitação.
174. Ð mn eÜqumoj e„j œrga ™piφerÒmenoj d…kaia kaˆ nÒmima kaˆ Ûpar kaˆ Ônar ca…rei te kaˆ œrrwtai kaˆ
¢nakhd»j ™stin· Öj d’ ¨n kaˆ d…khj ¢logÁi kaˆ t¦ cr¾ ™Ònta m¾ œrdhi, toÚtwi p£nta t¦ toiaàta
¢terpe…h, Ótan teu ¢namnhsqÁi, kaˆ dšdoike kaˆ ˜wutÕn kak…zei.
Quem de boa vontade se lança a obras justas e lícitas, dia e noite está alegre, seguro e despreocupado; mas, quem
não faz conta da justiça e não realiza o que é preciso, entedia-se com coisas tais, quando se lembra de alguma
delas, sente medo e atormenta-se a si mesmo.
175. oƒ d qeoˆ to‹si ¢nqrèpoisi didoàsi t¢gaq¦ p£nta kaˆ p£lai kaˆ nàn. pl¾n ÐkÒsa kak¦ kaˆ blaber¦
kaˆ ¢nwφelša, t£de d’ oÜ<te> p£lai oÜte nàn qeoˆ ¢nqrèpoisi dwroàntai, ¢ll’ aÙtoˆ to‹sdesin
™mpel£zousi di¦ noà tuφlÒthta kaˆ ¢gnwmosÚnhn.
Os deuses dão aos homens todos os bens, tanto antigamente quanto agora. Apenas as coisas quantas são más,
prejudiciais e inúteis, os deuses não dão aos homens nem antigamente, nem agora, mas são eles próprios que as
procuram por cegueira da mente e insensatez.
177. oÜte lÒgoj ™sqlÕj φaÚlhn prÁxin ¢maur…skei oÜte prÁxij ¢gaq¾ lÒgou blasφhm…hi luma…netai.
Um discurso nobre não encobre uma ação má, nem uma ação boa é enxovalhada por uma calúnia.
178. p£ntwn k£kiston ¹ eÙpete…h paideàsai t¾n neÒthta· aÛth g£r ™stin ¿ t…ktei t¦j ¹don¦j taÚtaj, ™x ïn ¹
kakÒthj g…netai.
O pior de todos os males é a leviandade no educar a juventude, pois é ela que gera aqueles prazeres de que nasce
a perversidade.
179. ™xwtikîj m¾ pone‹n pa‹dej ¢nišntej oÜte gr£mmat’ ¨n m£qoien oÜte mousik¾n oÜte ¢gwn…hn oÙd’ Óper
m£lista t¾n ¢ret¾n sunšcei, tÕ a„de‹sqai· m£la g¦r ™k toÚtwn φile‹ g…gnesqai ¹ a„dèj.
Se as crianças tivessem liberdade de não trabalhar, nem as letras aprenderiam, nem a música, nem as lutas, nem
o sentimento de honra que é a principal condição para a virtude, pois é sobretudo desses estudos que costuma
nascer o sentimento de honra.
186. ÐmoφrosÚnh φil…hn poie‹.
Acordo no pensar engendra amizade.
187. ¢nqrèpoij ¡rmÒdion ψucÁj m©llon À sèmatoj lÒgon poie‹sqai· ψucÁj mn g¦r teleÒthj sk»neoj
mocqhr…hn Ñrqo‹, sk»neoj d „scÝj ¥neu logismoà ψuc¾n oÙdšn ti ¢me…nw t…qhsin.
Para os homens é mais acertado dar valor à alma que ao corpo, pois, se a perfeição da alma corrige a maldade do
corpo, a força do corpo, sem inteligência, em nada faz melhor a alma.
AULA 14.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VI):
189. ¥riston ¢nqrèpwi tÕn b…on di£gein æj ple‹sta eÙqumhqšnti kaˆ ™l£cista ¢nihqšnti. toàto d’ ¨n e‡h, e‡
tij m¾ ™pˆ to‹j qnhto‹si t¦j ¹don¦j poio‹to.
O melhor para o homem é levar a vida com o máximo de ânimo e o mínimo de desânimo. Isso aconteceria, se
não se baseassem os prazeres nas coisas mortais.
190. φaÚlwn œrgwn kaˆ toÝj lÒgouj paraithtšon.
De obras vis deve-se afastar também as palavras.
194. aƒ meg£lai tšrψeij ¢pÕ toà qe©sqai t¦ kal¦ tîn œrgwn g…nontai.
Os grandes prazeres nascem do contemplar as belas obras.
195. e‡dwla ™sqÁti kaˆ kÒsmwi diaprepša prÕj qewr…hn, ¢ll¦ kard…hj kene£.
Imagens belas de se ver pelas vestes e adornos, mas vazias de coração.
200. ¢no»monej bioàsin oÙ terpÒmenoi biotÁi.
Insensatos vivem sem tirar prazer da vida.
207. ¹don¾n oÙ p©san, ¢ll¦ t¾n ™pˆ tîi kalîi aƒre‹sqai creèn.
Não todo prazer, mas o que está no belo é preciso escolher.
211. swφrosÚnh t¦ terpn¦ ¢šxei kaˆ ¹don¾n ™pime…zona poie‹.
O comedimento multiplica as alegrias e faz maior o prazer.
213. ¢ndre…h t¦j ¥taj mikr¦j œrdei.
A coragem faz pequenos os golpes do destino.
214. ¢ndre‹oj oÙc Ð tîn polem…wn mÒnon, ¢ll¦ kaˆ Ð tîn ¹donîn kršsswn. œnioi d pol…wn mn despÒzousi,
gunaixˆ d douleÚousin.
Corajoso não é apenas quem supera os inimigos, mas quem supera também os prazeres. Alguns são senhores nas
cidades, mas são escravos de mulheres.
223. ïn tÕ skÁnoj cr»izei, p©si p£restin eÙmaršwj ¥ter mÒcqou kaˆ talaipwr…hj· ÐkÒsa d mÒcqou kaˆ
talaipwr…hj cr»izei kaˆ b…on ¢lgÚnei, toÚtwn oÙk ƒme…retai tÕ skÁnoj, ¢ll’ ¹ tÁj gnèmhj kakoqig…h.
As coisas de que o corpo precisa estão à disposição de todos facilmente, sem pena e sofrimento; tudo quanto
precisa de pena e sofrimento e torna dolorosa a vida não é o corpo que deseja, mas a má constituição do
pensamento.
225. ¢lhqomuqšein creèn, oÙ polulogšein.
É preciso falar a verdade; não, falar muito.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 15.
EXERCÍCIOS:
1. Copie as letras maiúsculas e minúsculas do alfabeto grego, em ordem. Dê o nome de cada uma
das letras e indique qual a sua correspondente no nosso abecedário.
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2. O que o poema “A cana dos outros” de João Cabral de Melo Neto, da maneira como constrói a
linguagem, expressa por si mesmo? Pode-se notar alguma relação entre este poema e vida das
pessoas em geral? Justifique sua resposta.
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AULA 16.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE DEMÓCRITO DE ABDERA (PARTE VII):
231. eÙgnèmwn Ð m¾ lupeÒmenoj ™φ’ oŒsin oÙk œcei, ¢ll¦ ca…rwn ™φ’ oŒsin œcei.
Sensato é quem não sofre pelo que não tem, mas se alegra pelo que tem.
241. pÒnoj sunec¾j ™laφrÒteroj ˜autoà sunhqe…hi g…netai.
O trabalho continuado torna-se mais leve com o hábito.
242. plšonej ™x ¢sk»sioj ¢gaqoˆ g…nontai À ¢pÕ φÚsioj.
Mais numerosos são os que vêm a ser bons pelo exercício do que pela natureza.
244. φaàlon, k¨n mÒnoj Ãij, m»te lšxhij m»t’ ™rg£shi· m£qe d polÝ m©llon tîn ¥llwn seautÕn
a„scÚnesqai.
Nada de vil, mesmo que estejas sozinho, fales ou faças. Aprende a respeitar mais a ti que aos outros.
247. ¢ndrˆ soφîi p©sa gÁ bat»· ψucÁj g¦r ¢gaqÁj patrˆj Ð xÚmpaj kÒsmoj.
Para o homem sábio toda a terra é acessível, pois o mundo inteiro é pátria da alma boa.
256. d…kh mšn ™stin œrdein t¦ cr¾ ™Ònta, ¢dik…h d m¾ œrdein t¦ cr¾ ™Ònta, ¢ll¦ paratršpesqai.
Justiça é fazer o que é preciso; injustiça, não fazer o que é preciso, mas deixá-lo de lado.
267. φÚsei tÕ ¥rcein o„k»íon tîi kršssoni.
Por natureza o governar pertence ao mais forte.
272. æj gambroà Ð mn ™pitucën eáren uƒÒn, Ð d ¢potucën ¢pèlese kaˆ qugatšra.
Quem teve sorte com o genro, encontrou um filho; quem não a teve, perdeu também uma filha.
284. Àn m¾ pollîn ™piqumšhij, t¦ Ñl…ga toi poll¦ dÒxei· smikr¦ g¦r Ôrexij pen…hn „sosqenša ploÚtwi
poišei.
Se não cobiçares muitas coisas, as poucas julgarás muitas, pois o pequeno apetite faz a pobreza equivalente
à riqueza.
291. pen…hn ™pieikšwj φšrein swφronšontoj.
Suportar com brandura a pobreza é próprio do homem sensato.
295. Ð gšrwn nšoj ™gšneto, Ð d nšoj ¥dhlon e„ ™j gÁraj ¢φ…xetai· tÕ tšleion oân ¢gaqÕn toà mšllontoj
œti kaˆ ¢d»lou kršsson.
O velho foi jovem, mas, quanto ao jovem, é incerto se ele chegará à velhice. Portanto, o bem realizado vale
mais que o que está ainda por vir e é incerto.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 17.
EXERCÍCIOS:
1. Translitere as seguintes palavras do grego para o português:
aporia :_________________________________________________________________________
gunh :__________________________________________________________________________
didaskaloj :____________________________________________________________________
dunamij :________________________________________________________________________
exaiφnhj :_______________________________________________________________________
eurhka :________________________________________________________________________
keφalh :________________________________________________________________________
megaj :__________________________________________________________________________
nouj :___________________________________________________________________________
praxij :_________________________________________________________________________
2. Transliterar as seguintes palavras do português para o grego:
politikos :________________________________________________________________________
sófrón :__________________________________________________________________________
Apóllón :________________________________________________________________________
psyché :_________________________________________________________________________
kalos :___________________________________________________________________________
xenos :__________________________________________________________________________
mythos :_________________________________________________________________________
niké :___________________________________________________________________________
3. A partir dos fragmentos de Demócrito de Abdera vistos em aula, escolha e copie cinco (5)
fragmentos e responda o por quê de sua escolha.
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AULA 18.
PARA QUE FILOSOFIA?
Ora, muitos fazem esta pergunta: afinal, para
que filosofia?
É uma pergunta interessante. Não vemos nem
ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que
matemática ou física, para que geografia ou geologia,
para que história ou sociologia, para que biologia ou
psicologia, para que astronomia ou química, para que
pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo
“acha” muito natural perguntar: para que filosofia?
Em geral, essa pergunta costuma receber uma
resposta irônica, conhecida dos estudantes de filosofia:
“a filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o
mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a filosofia não
serve para nada. Por isso, costuma-se chamar de
“filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no
mundo da Lua, pensando e dizendo coisas que
ninguém entende e que são perfeitamente inúteis.
Essa pergunta: “para que filosofia?”, tem a sua
razão de ser.
Em nossa cultura e em nossa sociedade,
costumamos considerar que alguma coisa só tem o
direito de existir se tiver alguma finalidade prática,
muito visível e de utilidade imediata.
Por isso, ninguém pergunta para que as
ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das
ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação
científica à realidade.
Todo mundo também imagina ver a utilidade
das artes, tanto por causa da compra e venda das obras
de arte quanto porque nossa cultura vê os artistas como
gênios que merecem ser valorizados para o elogio da
humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que
serviria a filosofia, donde dizer-se: não serve para
nada.
Parece, porém, que o senso comum não
percebe algo que os cientistas sabem muito bem. As
ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros,
obtidos graças a procedimentos rigorosos de
pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através
de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer
progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e
aumentando-os.
Ora, todas essas pretensões das ciências
pressupõem que elas acreditam na existência da
verdade, de procedimentos corretos para bem usar o
pensamento, na tecnologia como aplicação prática de
teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque
podem ser corrigidos e aperfeiçoados.
Verdade,
pensamento,
procedimentos
especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e
prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é
ciência, são questões filosóficas. O cientista parte
delas como questões já respondidas, mas é a filosofia
que formula e busca respostas para elas.
Assim, o trabalho das ciências pressupõe,
como condição, o trabalho da filosofia, mesmo que o
cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os
cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum
continua afirmando que a filosofia não serve para nada.
Para dar alguma utilidade à filosofia, muitos
consideram que, de fato, a filosofia não serviria para
nada se “servir” fosse entendido como a possibilidade
de fazer usos teóricos dos produtos filosóficos ou darlhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles;
consideram também que a filosofia nada teria a ver
com a ciência e a técnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para
a filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por
conta da ciência) nem as aplicações de teorias (que
ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento
moral e ético. A filosofia seria a arte do bem-viver.
Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade
e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão
para impor limites aos nossos desejos e paixões,
ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na
companhia dos outros seres humanos, a filosofia teria
como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o
princípio do bem-viver.
Essa definição da filosofia, porém, não nos
ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral
ou ética, ou uma arte do bem-viver, a filosofia continua
fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas:
o que é o homem?; o que é a vontade?; o que é a
paixão?; o que é a razão?; o que é o vício?; o que é a
virtude?; o que é a liberdade?; como nos tornamos
livres, racionais e virtuosos?; por que a liberdade e a
virtude são valores para os seres humanos?; o que é um
valor?; por que avaliamos os sentimentos e ações
humanas?
Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da
filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o
conhecimento da nossa capacidade para conhecer,
mesmo se disséssemos que o objeto da filosofia é
apenas a vida moral ou ética, ainda assim o estilo
filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os
mesmos, pois as perguntas filosóficas  o que, por
que e como  permanecem.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 19.
EXERCÍCIOS:
1. O que é o mito?
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2. Quem narra o mito? E por quê?
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3. Qual a diferença entre mito e filosofia?
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4. Tem sentido perguntar: para que filosofia? Por que a filosofia é diferente dos outros tipos de
conhecimento e de ações? Justifique sua resposta.
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CURSO DE FILOSOFIA
 PRIMEIRO ANO 
 Segundo Bimestre 
AULA 20.
TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE I)
No livro VI da República, Platão (427-347 a.C.) faz uma
exposição de sua teoria do conhecimento, demonstrando a separação e
diferença entre o sensível e o inteligível, cada qual com seus modos de
conhecer hierarquicamente distribuídos. Os modos ou graus de
conhecimento agora vão sendo separados uns pelos outros, num
caminho ascendente ou ascencional.
Platão apresenta os modos ou graus de conhecimento
distribuídos em um diagrama dividido em duas partes desiguais, isto é,
uma delas é maior do que a outra. A parte dita inferior é chamada de “o
visível” (corresponde ao mundo sensível) e é menor do que a parte dita
superior, chamada de “invisível” (corresponde ao mundo inteligível). A
primeira parte é o mundo físico e ético percebido por intermédio da
aparência sensível das coisas; a segunda parte é o mundo das idéias
puras, apreendido exclusivamente pelo pensamento. Assim, a cada modo
ou grau de conhecimento corresponderá um tipo de objeto ou de coisa,
de tal maneira que, em cada um deles, o filósofo nos mostra qual é a
ação cognitiva realizada pelo corpo e pela alma (ou só pela alma, nos
modos ou graus superiores) e quais são os objetos correspondentes a
cada uma dessas atividades cognitivas.
O inteligível tem uma extensão muito maior do que o
sensível, ou seja, a separação platônica das duas esferas de
conhecimento e de realidade introduz uma diferença de extensão entre
elas, o que pode ser visto se usarmos uma figura proposta por Platão e
conhecida com o nome de “símile/imagem da linha”:
A_________________G__________________________________B
SENSÍVEL
INTELIGÍVEL
AB = TOTALIDADE DA REALIDADE
AG = SENSÍVEL
GB = INTELIGÍVEL
Agora, devemos incluir uma divisão em cada um dos mundos,
correspondente a diferentes modos de conhecimento de cada um deles:
A_____D___________G__________E_______________________B
IMAGEM OPINIÃO
RACIOCÍNIO
INTUIÇÃO INTELECTUAL
Platão estabelece uma proporção entre esses quatro modos de
conhecimento, segundo a extensão de cada um deles, ou seja, a extensão
da imagem é menor do que a da opinião, no mundo sensível, de tal
maneira que a imagem está para a opinião assim como o raciocínio está
para a intuição intelectual:
AD/DG
= GE/EB
Platão designa o conhecimento por imagens com o termo e„kas…a;
e por opinião, p…stij e dÒxa. Designa o conhecimento por raciocínios
dedutivos ou demonstrativos, isto é, o pensamento discursivo, com o
termo di£noia; e a intuição intelectual, nÒhsij. Assim, AD é a e„kas…a;
DG é a p…stij/dÒxa; GE é a di£noia; e EB é a nÒhsij.
O símile da linha também costuma ser representado por
diagrama, no qual se vê a distância entre cada um dos modos de
conhecimento e os objetos correspondentes a cada um deles, notando-se
que a extensão do inteligível é maior do que a do sensível e que a
distância entre a dÒxa e a di£noia é maior do que entre a e„kas…a e a
dÒxa e do que entre a di£noia e a nÒhsij. A distância entre a dÒxa e a
di£noia é menor do que entre a di£noia e a nÒhsij porque o
conhecimento por raciocínio ainda opera com dados provenientes da
sensação e da opinião:
nÒhsij; ™pist»mh: intuição intelectual ou ciência intuitiva;
edoj ou idéia.
di£noia: raciocínio ou pensamento discursivo; matemática.
p…stij ou dÒxa: crença e opinião; coisas/objetos sensíveis.
e„kas…a: imagens das coisas sensíveis, cópias.
O PRIMEIRO GRAU é o simulacro ou a simulação, a e„kas…a,
palavra da mesma raiz de e„kÒj (imagem, ícone), indicando aquelas
coisas que são apreendidas numa percepção de segunda mão, isto é, são
as cópias ou as imagens de uma coisa sensível, como os reflexos no
espelho ou na água, as narrativas dos poetas, as pinturas, as esculturas e
as imagens na memória. Esse primeiro nível ou modo de conhecer
costuma ser chamado pelos comentadores de imaginação, entendida
como conhecimento por imagens, as quais são cópias da coisa sensível.
Assim, a poesia, a pintura, a escultura, a retórica pertencem a esse nível
mais baixo do conhecimento porque nos oferecem uma imagem da coisa
sensível e não a própria percepção da coisa sensível. A e„kas…a é uma
conjetura feita a partir dos reflexos e das cópias das coisas sensíveis.
e„kas…a: representação, imagem, conjetura, comparação. O
verbo e„k£zw significa: representar, desenhar os traços, retratar, pintar a
imagem, comparar uma coisa com outra semelhante, conjeturar sobre
uma coisa a partir de outra. O verbo e‡kw significa: ser semelhante,
assemelhar, parecer, ter o ar de. Da mesma raiz vem e‡koj: ícone,
imagem (retrato, pintura, escultura), imagem refletida no espelho,
simulacro, fantasma. Para Platão, as coisas sensíveis são como o e‡koj e
por isso o grau mais baixo do conhecimento é a e„kas…a.
O SEGUNDO GRAU é a p…stij (crença) ou a dÒxa (opinião),
isto é, a confiança ou fé que depositamos na sensação e na percepção ou
a opinião que formamos a partir das sensações e do que ouvimos dizer.
É um conhecimento necessário para o uso da vida cotidiana, tendo por
objeto as coisas naturais, os seres vivos, os artefatos, etc.. É a opinião
acreditada sem verificação; conhecimento que não foi demonstrado nem
provado, mas passivamente aceito por nós pelo testemunho de nossos
sentidos, por nossos hábitos e também pelos costumes nos quais fomos
educados. É uma crença que se conserva enquanto funcionar na prática
da vida cotidiana ou enquanto uma outra, mais forte, não a contradisser
ou a puser em dúvida. Varia de pessoa para pessoa, de sociedade para
sociedade, de época para época. É subjetiva tanto porque depende das
condições de nosso corpo e de nossa alma durante as sensações como
também porque é adquirida por costume ou por convenção, podendo
mudar se mudarem os costumes e as convenções.
p…stij: fé, confiança em alguém, dar crédito, ter por
verdadeiro em virtude da fé, crença ou confiança; meio de inspirar
confiança ou fé.
dÒxa: opinião, crença, reputação (isto é, boa ou má opinião
sobre alguém), suposição, conjetura. Esta palavra possui dois sentidos
diferentes por ser usada em dois contextos diferentes: o contexto
político, no qual foi usada inicialmente, e o contexto filosófico, a partir
de Parmênides e Platão. Deriva-se do verbo dokšw, que significa: 1)
tomar o partido que se julga mais adequado para uma situação; 2)
conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo; 3) escolher, decidir,
deliberar e julgar segundo os dados oferecidos pela situação e segundo a
regra ou norma estabelecida pelo grupo. Era este o seu sentido na
assembléia dos guerreiros que deu origem à assembléia política, na
democracia. Como a escolha e decisão se davam a partir do que era
percebido, dito e convencionado pelo grupo, dÒxa ganha também o
sentido de uma modalidade de conhecimento e, agora, articula-se ao
verbo dox£zw, que significa: ter uma opinião sobre algumas coisas, crer,
conjeturar, supor, imaginar, adotar opiniões comumente admitidas. É
neste segundo sentido que dÒxa pode ter o sentido pejorativo de
conhecimento falso, preconceito, conjetura sem fundamento, sem
convenção, arbitrária.
AULA 21.
TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE II)
O TERCEIRO GRAU é a di£noia, palavra composta de
di£, divisão, separação, distinção, e no…a, vinda do verbo nošw,
compreender pelo pensamento. É o raciocínio, que separa e
distingue argumentos ou razões para realizar dedução ou
demonstração; é o raciocínio discursivo ou aquele que opera por
etapas sucessivas de arranjo e disposição de argumentos para
chegar a uma conclusão justificada. A di£noia é o
conhecimento dos objetos matemáticos (aritmética, geometria,
estereometria, música ou harmonia, astronomia, tudo quanto se
refere a estruturas proporcionais estáveis e conhecidas pela
razão). As matemáticas surgem, assim, como um tipo de
conhecimento que nos permite passar da aparência das coisas
(imagens e crença-opinião) a um primeiro contato da
inteligência com a essência delas. Mas ainda não são o modo
superior de conhecimento ou filosofia. Duas de suas
características principais explicam por que não são elas o ponto
mais alto do conhecimento. Em primeiro lugar, o matemático
precisa representar ou ilustrar sensivelmente seu objeto por meio
de linhas, pontos, traços, superfícies, volumes e diagramas;
embora seu objeto seja puramente ideal e não material, para
compreendê-lo o matemático ainda precisa recorrer a
representações sensíveis ou a imagens. Em segundo, cada ramo
das matemáticas começa pela admissão de princípios não
questionados nem demonstrados, isto é, axiomas, postulados e
definições, cuja verdade é assumida sem que sua causa seja
conhecida. Os matemáticos partem de certas afirmações ou
suposições que funcionam como princípios indemonstráveis de
suas demonstrações (par, ímpar, ângulo, ponto, linha,
comprimento, largura, altura, volume, figura, “o todo é maior
que as partes”, “a linha é constituída por pontos”, “a reta é a
menor distância entre dois pontos”, “o triângulo tem três lados”,
“no círculo as extremidades são eqüidistantes do centro”, etc.).
Em outras palavras, a di£noia é o pensamento que opera
hipoteticamente, por raciocínios que concluem de modo correto
e verdadeiro a partir de definições e de premissas não
demonstradas, isto é, de hipóteses (é o conhecimento que,
séculos mais tarde, será denominado hipotético-dedutivo). No
entanto, as matemáticas têm lugar proeminente na teoria dos
graus do conhecimento por várias razões. Antes de mais nada,
porque embora representem sensorialmente números, figuras e
operações, os matemáticos sabem que as imagens empregadas
não são os próprios objetos matemáticos conhecidos pelo
pensamento  distinguem, portanto, sensação e inteligência.
Além disso, os objetos matemáticos, ao contrário das coisas
sensíveis e de seus simulacros, não estão submetidos ao fluxo do
devir ou ao movimento, mas permanecem idênticos a si mesmos
e não toleram a contradição  as matemáticas, portanto,
ensinam a exigência intelectual ou lógica da identidade, da nãocontradição e da concordância do pensamento consigo mesmo.
Eis por que Platão as considera “ciências despertadoras” ou o
passo decisivo para superar os graus inferiores do conhecimento
e alcançar o grau mais alto.
di£noia/dianÒhsij: raciocínio, pensamento que opera
por inferência ou por etapas até chegar à conclusão verdadeira;
raciocínio dedutivo e/ou indutivo. É o conhecimento discursivo ou
racional como atividade da inteligência na ciência, diferente da
intuição direta e imediata das idéias. Faculdade de pensar como
reflexão, meditação, disposição atenta da inteligência, raciocínio.
O QUARTO GRAU ou quarto modo é a ™pist»mh
(ciência, isto é, saber verdadeiro), palavra da mesma família do
verbo ™pist£mai que significa saber, pensar, conhecer, no
sentido de algo adquirido e possuído (ter um saber, ter um
conhecimento). Mas o quarto modo é também nÒhsij (ação de
conceber uma coisa pela inteligência ou pelo intelecto, ato
intelectual de conhecimento), palavra que, como no…a e noàj, é
derivada do verbo nošw (compreender pelo pensamento,
inteligir). Esse nível, o mais alto, é o que conhece a essência,
designada por Platão com a palavra edoj, a forma inteligível, a
idéia, a verdade incondicionada. A dialética é o movimento que
permite à alma, subindo de hipótese em hipótese, chegar ao nãohipotético, isto é, ao não-condicionado por outra coisa, ao que é
verdadeiro em si e por si mesmo, à idéia como princípio de
realidade e de conhecimento. Pela força do diálogo, diz Platão, o
raciocínio puro toma as hipóteses como tais e não como se
fossem princípios, isto é, toma as hipóteses como pontos de
apoio para elevar-se gradualmente ao não-hipotético, aos
princípios puros. Aqui, o pensamento alcança exclusivamente
naturezas essenciais, formas inteligíveis, indo de umas a outras
sem nunca recorrer ao raciocínio hipotético, nem recair na
opinião ou no simulacro. A nÒhsij é a intuição ou visão
intelectual de uma idéia intelectual ou das várias nÒhsij. Nela, o
pensamento, contemplando diretamente as formas ou idéias,
conhece a causa ou a razão dos próprios conhecimentos, pois
alcança seus princípios.
™pist»mh: ciência, conhecimento teórico das coisas por
meio de raciocínios, provas e demonstrações; conhecimento teórico
por meio de conceitos necessários (isto é, daquilo que é impossível
que seja diferente do que é; o que não pode ser de outra maneira, ser
diferente do que é) e universais (isto é, válidos para todos em todos
os tempos e lugares). Opõe-se à ™mpeir…a (experiência). O verbo
™p…stamai, da mesma família de ™pist»mh, significa: saber, ser
apto ou capaz, ser versado em (portanto, inicialmente, este verbo
não distinguia nem separava ™pist»mh e ™mpeir…a, mas referia-se a
todo conhecimento obtido pela prática ou pela inteligência, referiase à habilidade). A seguir, passa a significar: conhecer pelo
pensamento, ter um conhecimento por raciocínio e, com Aristóteles,
passa a significar investigar cientificamente.
noàj: faculdade de pensar, inteligência, espírito,
pensamento, intelecto, reflexão, intenção racional, maneira de ver
pelo pensamento, sentido racional de um discurso. O verbo nošw
significa: colocar no espírito, refletir, compreender, meditar; ter
bom senso ou razão; ter um sentido ou uma significação. O
substantivo nÒhma significa: fonte do pensamento ou inteligência,
reflexão, projeto, desígnio. O substantivo nÒhsij significa: ação de
colocar no espírito, concepção, inteligência ou compreensão de
alguma coisa, faculdade de pensar, espírito. Opõe-se a a‡sqhsij,
conhecimento através dos sentidos, sensibilidade. Anaxágoras
designa como noàj o ser inteligente que põe a natureza em
movimento e faz existir o kÒsmoj. Com Platão e Aristóteles noàj,
nÒhsij, nÒhma indicam o intelecto e a atividade intelectual; nÒhsij
significa a intuição intelectual, o conhecimento direto e imediato da
verdade de uma essência ou de um princípio.
edoj: inicialmente, na linguagem comum dos gregos,
significava aspecto exterior e visível de uma coisa: a forma de um
corpo, a fisionomia de uma pessoa. A seguir, na linguagem
filosófica (com Platão), passa a significar a forma imaterial de uma
coisa, a forma conhecida apenas pelo intelecto ou pelo espírito, a
idéia ou a essência puramente inteligível de uma coisa. Significa
também a forma própria de uma coisa que a distingue de todas as
outras.
AULA 22.
TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE III)
Platão estabeleceu uma correspondência
total entre o modo de conhecer, isto é, a operação
realizada pela alma, e a natureza do objeto
conhecido: na e„kas…a, a atividade cognitiva é a
percepção indireta de alguma coisa e o objeto
conhecido é uma sombra, um reflexo, uma imagem
deformada e ilusória da coisa sensível; na p…stij ou
dÒxa, a atividade cognitiva é a sensação e o ouvir
dizer e o objeto conhecido é a coisa sensível
percebida ou ouvida; na di£noia, a atividade
cognitiva é o raciocínio discursivo e o objeto
conhecido é uma idealidade, mas que ainda precisa
de representação imagética e do movimento
sucessivo do raciocínio ou da dedução; na nÒhsij, a
atividade cognitiva é a intuição direta e o objeto
conhecido é a idéia pura, a forma inteligível
apreendida diretamente pela inteligência, bem como
as relações entre idéias. Esse último grau de
conhecimento encontra a causa ou a razão da
existência e da verdade do objeto conhecido e por
isso nele a alma alcança a ™pist»mh. É nessa
correspondência entre a atividade cognitiva e a coisa
conhecida que, na Carta Sétima, Platão chamara de
afinidade da alma com o conhecido. Em outras
palavras, graças à distinção inicial entre as
atividades da alma e as coisas conhecidas por ela,
Platão pôde, a seguir, demonstrar aquilo que os présocráticos simplesmente admitiam sem saber por
quê: a alma e o conhecimento são de mesma
natureza.
Quando a alma conhece por meio do corpo –
no primeiro e segundo graus do conhecimento – a
coisa conhecida também é corporal; quando a alma
conhece deduzindo uma coisa de outra – nas
matemáticas ou na di£noia – a coisa conhecida
também é constituída de partes ou de elementos que
precisam ser agrupados, reunidos, distinguidos
(lados, ângulos, dimensões, pontos, linhas retas,
linhas curvas, par, ímpar, limitado, ilimitado,
relações proporcionais, derivação de uma coisa
geométrica a partir de outras, etc.); quando a alma
conhece por si mesma, como inteligência pura ou
intuição intelectual pura, o objeto é a pura idéia ou a
pura forma, uma unidade perfeita que não pode ser
decomposta em partes e que não é conhecida por
distinção e reunião de partes, e sim em sua
integridade perfeita. Essa correspondência entre a
natureza do objeto, a operação de conhecimento e a
alma é o que leva Platão a afirmar que a alma
participa da natureza do objeto conhecido e que
pode conhecê-lo porque é de mesma natureza que
ele. Em outras palavras, nos pré-socráticos e no
Sócrates dos diálogos de juventude, a identidade de
natureza entre aquele que conhece e aquilo que ele
conhece estava pressuposta, mas em Platão essa
identidade é demonstrada: graças à distinção inicial
entre atividade cognitiva e objeto conhecido,
demonstra-se que aquele que conhece e o conhecido
por ele são de mesma natureza (tudo – quem
conhece e o que é conhecido – é sensível, na
e„kas…a, na p…stij e na dÒxa; uma parte é sensível
e outra é inteligível, na di£noia; tudo é inteligível
na nÒhsij ou ™pist»mh). Essa participação da alma
na natureza da coisa conhecida é o que, no
Banquete, recebe o nome de “Eros” ou amor, e por
isso ali é feita a distinção entre dois amores, o amor
pelo perecível e o amor pela forma boa-bela.
Na República, Platão também vai enfatizar o
caráter dinâmico do conhecimento, sublinhando o
movimento de passagem de um grau de
conhecimento para outro. Mas, como é possível a
passagem? Por meio da dialética. A tarefa desta é
fazer com que, graças à descoberta das contradições
encontradas num grau de conhecimento inferior, se
possa passar para o seguinte (passar da e„kas…a para
a p…stij ou dÒxa e desta para a di£noia). No caso
dos graus superiores, a tarefa da dialética é fazer a
alma passar de hipótese em hipótese (di£noia) até a
visão intelectual (nÒhsij) do não-hipotético e
incondicionado, o edoj. Por ser passagem, a
dialética é a educação da inteligência, uma
pedagogia (paide…a) do espírito que o prepara para
contemplar o ser ou a Verdade. Para prepará-lo para
essa contemplação, a pedagogia platônica educa por
meio das matemáticas: pela aritmética, ciência do
cálculo que introduz homogeneidade e estabilidade
nas coisas, corrigindo as aparências sensoriais; pela
geometria, ciência dos entes imutáveis; pela
astronomia, ciência dos sólidos no espaço ordenado
e perfeito (os céus realizam o movimento mais
próximo da imobilidade, ou seja, o movimento
circular, eterno, sem começo e sem fim); a música,
ciência da harmonia ou da medida como proporção
rigorosa. As matemáticas, portanto, ciências da
ordem, medida e proporção inteligíveis, educam o
intelecto para desligar-se da multiplicidade móvel
das imagens, percepções e opiniões sensíveis.
AULA 23.
TEORIA DO CONHECIMENTO (PARTE IV)
A dialética é uma técnica cujas principais características podem ser assim resumidas:
1. é a arte de conduzir uma discussão (isto é, um lÒgoj dividido em d…ssoi lÒgoi) para captar as
contradições e os desvios que perturbam o caminho de chegada a uma definição coerente e universal de uma
coisa tomada em si mesma; ou seja, é um processo de depuração da linguagem e do pensamento;
2. é o método filosófico-científico para desenvolver o conhecimento por meio de perguntas e
respostas; isto é, para buscar aquilo que não se sabe;
3. é o método para que a alma racional consiga apreender intelectual e conceitualmente uma
realidade, captando sua essência ou forma ou idéia;
4. é o método pelo qual a razão ou o pensamento, superando a divisão dos d…ssoi lÒgoi, entra em
contato direto e imediato com seu objeto, alcança o lÒgoj, isto é, o ser inteligível ou a forma real do objeto,
o edoj;
5. é uma atividade que se realiza em duas etapas: a primeira, inferior, opera com as contradições das
opiniões e crenças, isto é, com a multiplicidade sensível móvel e dispersa; a segunda, superior ou verdadeira
dialética, opera ultrapassando demonstrações baseadas em hipóteses, isto é, a multiplicidade ordenada e
sistematizada pelas matemáticas, para alcançar o incondicionado, a unidade da forma inteligível;
6. difere das matemáticas porque estas, além de operar hipotética e dedutivamente, operam com
relações entre elementos ou entre partes, enquanto a dialética superior alcança a essência mesma da coisa em
sua unidade e integridade indecomponíveis (a bondade, a beleza, a justiça, a virtude, o amor, em si mesmos);
7. como verdadeira dialética ou dialética superior, é uma atividade que somente pode ser exercitada
por aqueles que conhecem as matemáticas, pois seu ponto de partida são as hipóteses ou proposições
matemáticas. Isso não significa que os objetos ou idéias da dialética superior sejam os mesmos que os das
matemáticas e sim que somente quem aprendeu a pensar matematicamente está preparado para pensar
dialeticamente. As matemáticas são o treino intelectual para a dialética superior. Em outras palavras,
somente quem aprendeu a pensar por meio de axiomas, postulados, definições, teoremas, problemas e
deduções rigorosas está preparado para a dialética superior;
8. sobretudo, a dialética é a técnica perfeita da alma, comparável à medicina para o corpo. Uma
técnica, por sua vez, é um saber especializado capaz de concretizar algo que existia apenas potencialmente
numa coisa qualquer (é atualizar a dÚnamij) e na mente de alguém (é fazer passar à obra o que estava no
espírito do técnico), e é a passagem de um estado de privação a um outro de aquisição de uma qualidade
conforme à natureza da coisa. Assim como a medicina é a técnica que concretiza a possibilidade de saúde
para um corpo doente, fazendo-o passar da privação de saúde à aquisição dela como aquilo que é conforme à
natureza do paciente, assim também a dialética é a técnica que concretiza a possibilidade do conhecimento
verdadeiro para a alma ignorante, fazendo-a passar da privação de saber à aquisição dele porque a sabedoria
é conforme à sua natureza. A tšcnh concretiza uma dÚnamij (potencialidade): a dÚnamij da alma é o
conhecimento e a dialética, a tšcnh que atualiza o que era apenas possibilidade. Por isso, a dialética difere da
retórica, pois em vez de violentar a alma, impondo-lhe opiniões, opera para que a alma, por si mesma, realize
ou concretize plenamente sua natureza.
tšcnh: arte manual, técnica; ofício, profissão; habilidade para fabricar, construir ou
compor alguma coisa ou artefato; habilidade para decifrar presságios; habilidade para
compor com palavras (poesia, retórica, teatro). Obra de arte. Produto da arte. A tšcnh se
apresenta por meio de obra ou objetos: o médico cuja obra é produzir a saúde, assim como
o arquiteto faz a casa e o oleiro faz o vaso de cerâmica; o dramaturgo é um técnico que
produz como obra uma peça teatral, assim como o poeta produz o poema e o pintor, o
quadro; o capitão produz a viagem da embarcação, como o tecelão produz o tecido. Tudo
que se referir à fabricação ou produção de algo que não é feito pela própria natureza é uma
técnica, cujo campo é o artefato ou o objeto da arte, isto é, o artifício, seja o utensílio, o
instrumento, a arma ou o poema. Com exceção do político e do sábio, todos os outros
ofícios são técnicos. Com exceção da teoria, da ética e da política, todas as práticas são
técnicas.
AULA 24.
INÚTIL? ÚTIL?
Um dos primeiros ensinamentos filosóficos é perguntar: o que é útil? Para que e para quem
algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?
O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza.
Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa
expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a filosofia é inteiramente inútil e
defende o direito de ser inútil.
Não poderíamos, porém, definir o útil de uma outra maneira?
Platão (428-347 a.C.) definia a filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em
benefício dos seres humanos.
René Descartes (1596-1650) dizia que a filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento
perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da
saúde e a invenção das técnicas e das artes.
Espinosa (1632-1677) afirmou que a filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser
percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Immanuel Kant (1724-1804) afirmou que a filosofia é o conhecimento que a razão adquire de
si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade
humana.
Karl Marx (1818-1883) declarou que a filosofia havia passado muito tempo apenas
contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação
que traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) escreveu que a filosofia é um despertar para ver e
mudar nosso mundo.
Qual seria, então, a utilidade da filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar
guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar
compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das
criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa
sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a
liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de
todos os saberes de que os seres humanos são capazes.
AULA 25.
ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE I)
Para explicar o movimento de passagem de um grau
de conhecimento para o outro, no Livro VII da República,
Platão narra o Mito da Caverna, alegoria da teoria do
conhecimento e da paidéia platônicas. Para conhecermos esse
mito, precisamos retomar, noutro nível, a exposição da teoria do
conhecimento feita nas aulas anteriores, pois essa versão
apresentada deixou de lado a beleza, a dramaticidade e as
metáforas que tecem o Livro VI da República.
Para dar a entender ao jovem Glauco o que é e como
se adquire o conhecimento verdadeiro, Sócrates começa
estabelecendo uma analogia entre conhecer e ver.
Todos nossos sentidos, diz Sócrates, mantêm uma
relação direta com o que sentem. Não é esse, porém, o caso da
visão. Para que a visão se realize, não bastam os olhos (ou a
faculdade da visão) e as coisas coloridas (pois vemos cores e são
elas que desenham a figura, o volume e as demais qualidades da
coisa visível), mas é preciso um terceiro elemento que permita
aos olhos ver e às coisas serem vistas: para que haja um visível
visto é preciso a luz. A luz não é o olho nem a cor, mas o que
faz com que o olho veja a cor e que a cor seja vista pelo olho. É
graças ao Sol que há um mundo visível. Por que as coisas
podem ser vistas? Porque a cor é filha da luz. Por que os olhos
são capazes de ver? Porque são filhos do Sol: são faróis ou luzes
que iluminam as coisas para que se tornem visíveis. A visão é,
assim, uma atividade e uma passividade dos olhos. Atividade,
porque é a luz do olhar que torna as coisas visíveis. Passividade,
porque os olhos recebem sua luz do Sol.
Conhecer a verdade é ver com os olhos da alma ou
com os olhos da inteligência. Assim como o Sol dá sua luz aos
olhos e às coisas para que haja mundo visível, assim também a
idéia suprema, a idéia de todas as idéias, o Bem (isto é, a
perfeição em si mesma) dá à alma e às idéias sua bondade (sua
perfeição) para que haja mundo inteligível. Assim como os
olhos e as coisas participam da luz, assim também a alma e as
idéias participam da bondade (ou perfeição) e é por isso que a
alma pode conhecer as idéias. E assim como a visão é
passividade e atividade do olho, assim também o conhecimento
é passividade e atividade da alma: passividade, porque a alma
precisa receber a ação das idéias para poder contemplá-las;
atividade, porque essa recepção e contemplação constituem a
própria natureza da alma.
Assim como na treva não há visibilidade, assim
também na ignorância não há verdade. A e„kas…a e a dÒxa são
para a alma o que a cegueira é para os olhos e a escuridão é para
as coisas: são privações (privação de visão e privação de
conhecimento).
Sob a analogia da luz, a diferença entre o sensível e o
inteligível se apresenta assim:
MUNDO SENSÍVEL
Sol
Luz
Cores
Olhos
Visão
Treva, cegueira
Privação de luz
MUNDO INTELIGÍVEL
Bem
Verdade
Idéias
Alma racional ou inteligência
Intuição
Ignorância, opinião
Privação de verdade
Essa analogia é o tema do Mito da Caverna, narrado
por Sócrates a Glauco para fazê-lo compreender o sentido da
paidéia filosófica, isto é, da dialética e do conhecimento
verdadeiro.
AULA 26.
ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE II)
Imaginemos, diz Sócrates, uma caverna subterrânea
separada do mundo externo por um alto muro. Entre este e o
chão da caverna há uma fresta por onde passa alguma luz
exterior, deixando a caverna na obscuridade quase completa.
Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos
ali estão acorrentados, sem poder mover a cabeça na direção
da entrada, nem se locomover, forçados a olhar apenas a
parede do fundo, vivendo sem nunca ter visto o mundo
exterior nem a luz do Sol, sem jamais ter efetivamente visto
uns aos outros, pois não podem mover a cabeça nem o corpo,
e sem se ver a si mesmos porque estão no escuro e
imobilizados. Abaixo do muro, do lado de dentro da caverna,
há um fogo que ilumina vagamente o interior sombrio e faz
com que as coisas que se passam do lado de fora sejam
projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna.
Do lado de fora, pessoas passam conversando e carregando
nos ombros figuras ou imagens de homens, mulheres,
animais cujas sombras também são projetadas na parede da
caverna, como num teatro de fantoches. Os prisioneiros
julgam que as sombras de coisas e pessoas, os sons de suas
falas e as imagens que transportam nos ombros são as
próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são
seres vivos que se movem e falam.
Nesse ponto, Glauco diz a Sócrates que o quadro
descrito por ele lhe parece algo estranho, incomum e
inusitado. Sócrates, porém, diz-lhe que os prisioneiros “são
semelhantes a nós”. E prossegue. Os prisioneiros se
comunicam, dando nomes às coisas que julgam ver (sem vêlas realmente, pois estão na obscuridade) e imaginam que o
que escutam, e que não sabem que são sons vindos de fora,
são as vozes das próprias sombras e não vozes dos seres
reais. Qual é, pois, a situação dessas pessoas aprisionadas?
Tomam sombras por realidade, tanto as sombras das coisas e
dos homens exteriores como as sombras dos artefatos
fabricados por eles. Essa confusão, porém, não tem como
causa a natureza dos prisioneiros e sim as condições adversas
em que se encontram. Por isso Sócrates indaga: que
aconteceria se fossem libertados dessa condição de miséria e,
“retornando à sua natureza, pudessem ver as coisas e ser
curados de sua ignorância?”.
Essa pergunta é um tanto grave. De fato, para os
prisioneiros, o único mundo real é a caverna, portanto, a
obscuridade na qual não podem se ver nem ver os outros não
é percebida como tal e sim experimentada como realidade
verdadeira. E a caverna é para eles todo o mundo real, pois
não sabem que o que vêem na parede do fundo são sombras
de um outro mundo, exterior à caverna, uma vez que não
podem virar a cabeça para ver que há algo lá fora e que é de
lá de fora que outros homens lhes enviam imagens e sons.
Ora, se para os prisioneiros o mundo real é a caverna, como
poderiam sair da ilusão se não sabem que vivem nela?
Um dos prisioneiros, inconformado com a condição
em que se encontra, decide abandoná-la. Fabrica um
instrumento com o qual quebra os grilhões. De início, move
a cabeça, depois o corpo todo; a seguir, avança na direção do
muro e o escala. Enfrentando as durezas de um caminho
íngreme e difícil, sai da caverna. No primeiro instante, fica
totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus
olhos não estão acostumados. Enche-se de dor por causa dos
movimentos que seu corpo realiza pela primeira vez e pelo
ofuscamento de seus olhos sob a ação da luz externa, muito
mais forte do que o fraco brilho do fogo que havia no interior
da caverna. Sente-se dividido entre a incredulidade e o
deslumbramento. Incredulidade porque está obrigado a
decidir onde se encontra a realidade: no que vê agora ou nas
sombras em que sempre viveu. Deslumbramento
(literalmente: ferido pela luz) porque seus olhos não
conseguem ver com nitidez as coisas iluminadas. Seu
primeiro impulso é retornar à caverna para livrar-se da dor e
do espanto. Embora esteja reconquistando sua verdadeira
natureza, o sofrimento que essa reconquista lhe traz é tão
grande que se sente atraído pela escuridão, que lhe parece
mais acolhedora. Além disso, precisa aprender a ver e esse
aprendizado é doloroso, fazendo-o desejar a caverna, onde
tudo lhe é familiar e conhecido.
A descrição platônica é dramática: o caminho em
direção ao mundo exterior é íngreme e rude; o prisioneiro
libertado sofre e se lamenta de dores no corpo; a luz do Sol o
cega; ele se sente arrancado, puxado para fora por uma força
incompreensível. Platão narra um parto: o parto da alma que
nasce para a verdade e é dada à luz.
Sentindo-se sem disposição para regressar à
caverna por causa da rudeza do caminho, o prisioneiro
permanece no exterior. Aos poucos, habitua-se à luz e
começa a ver o mundo. Encanta-se, tem a felicidade de
finalmente ver as próprias coisas, descobrindo que estivera
prisioneiro a vida toda e que em sua prisão vira apenas
sombras. Doravante, desejará ficar longe da caverna para
sempre e lutará com todas as suas forças para jamais
regressar a ela. No entanto, não pode evitar lastimar a sorte
dos outros prisioneiros e, por fim, toma a difícil decisão de
regressar ao subterrâneo sombrio para contar aos demais o
que viu e convencê-los a se libertarem também.
Assim como a subida foi penosa, porque o caminho
era ingrato e a luz, ofuscante, também o retorno será penoso,
pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é
muito mais difícil do que se habituar à luz. De volta à
caverna, o prisioneiro fica cego novamente, mas, agora, por
ausência de luz. Ali dentro, é desajeitado, inábil, não sabe
mover-se entre as sombras nem falar de modo compreensível
para os outros, não sendo acreditado por eles. Torna-se
objeto de zombaria e riso, e correrá o risco de ser morto
pelos que jamais se disporão a abandonar a caverna.
Impossível aqui não identificar a figura de Sócrates na do
prisioneiro que se liberta, retorna e é morto pelos homens das
sombras.
AULA 27.
ALEGORIA DA CAVERNA (PARTE III)
A caverna, explica Sócrates a Glauco, é o mundo
ensinando-lhes como quebrar os grilhões e subir o
sensível onde vivemos. O fogo que projeta as sombras na
caminho. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (a
parede é um reflexo da luz verdadeira (do Bem e das
dialética ascendente), que vai da imagem à crença ou
idéias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As
opinião, desta para as matemáticas e destas para a intuição
sombras são as coisas sensíveis, que tomamos pelas
intelectual e a ciência; e o do descenso (a dialética
verdadeiras, e as imagens ou sombras dessas sombras,
descendente), que consiste em praticar com outros o
criadas por artefatos fabricados de ilusões. Os grilhões
trabalho para subir até às idéias.
são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos
Os olhos foram, portanto, feitos para ver, a alma
sentidos, nossas paixões e opiniões. O instrumento que
foi feita para conhecer. Os primeiros estão destinados à
quebra os grilhões e permite a escalada do muro é a
luz solar, a segunda, à fulguração/revelação da idéia. A
dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A
dialética é a técnica que liberta os “olhos do espírito”.
luz que ele vê é a luz plena do ser, isto é, o Bem, que
O relato da subida e da descida expõe a paidéia
ilumina o mundo inteligível como o Sol ilumina o mundo
como dupla violência necessária para a liberdade e para a
sensível. O retorno à caverna para convidar os outros a
realização da natureza verdadeira da alma: a ascensão é
sair dela é o diálogo filosófico, e as maneiras desajeitadas
difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna,
e insólitas do filósofo são compreensíveis, pois quem
uma imposição terrível à alma libertada, agora forçada a
contemplou a unidade da verdade já não sabe lidar
abandonar a luz e a felicidade. A dialética, como toda
habilmente com a multiplicidade das opiniões nem se
técnica, é uma atividade exercida contra uma passividade,
mover com engenho no interior das aparências e ilusões.
é um esforço para obrigar uma dÚnamij a se atualizar, um
Os anos despendidos na criação do instrumento para sair
trabalho para concretizar um fim, forçando um ser a
da caverna são o esforço da alma para libertar-se.
realizar sua própria natureza. No Mito da Caverna, a
Conhecer é, pois, um ato de libertação e de iluminação. A
dialética leva a alma a ver sua própria essência ou forma
paidéia filosófica é uma conversão da alma voltando-se
(edoj), isto é, conhecer, vendo as essências ou formas,
do sensível para o inteligível. Essa educação não ensina
para descobrir seu parentesco com elas, pois a alma é
coisas nem nos dá a visão, mas ensina a ver, orienta o
parente da idéia como os olhos são parentes da luz.
olhar, pois a alma, por sua natureza, possui em si mesma a
capacidade para ver.
O Mito da Caverna apresenta a dialética como
movimento ascendente de libertação do olhar intelectual
que nos livra da cegueira para vermos a luz das idéias.
Mas descreve também o retorno do prisioneiro para
convidar os que permaneceram na caverna a sair dela,
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 28.
EXERCÍCIOS:
1. Segundo Platão, qual a diferença entre opinião (dÒxa) e conhecimento autêntico (™pist»mh)?
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2. Para se atingir o conhecimento autêntico (™pist»mh) Platão propõe a dialética. Resumidamente,
em que consiste a dialética?
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3. Tente explicar o que Platão quis nos ensinar escrevendo o Mito da Caverna. Seria possível ao
homem libertado persuadir os prisioneiros sobre a realidade que ele vivenciou do lado de fora
da caverna? Justifique sua resposta.
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AULA 29.
A REFLEXÃO FILOSÓFICA
Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si
mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a
si mesmo.
A reflexão filosófica é tida como radical porque é um movimento de volta do pensamento
sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que
se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e
acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de
gestos e ações.
A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade
circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações.
A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou
questões:
1. por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos?
2. o que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que
queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos
ou fazemos?
3. para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto
é, qual a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?
Essas três questões podem ser resumidas em: o que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem
a seguinte pergunta: nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento?
A atitude filosófica inicia-se indagando: o que é?, como é?, por que é?, dirigindo-se ao
mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas
sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.
A reflexão filosófica, por sua vez, indaga: por quê?, o quê?, para quê?, dirigindo-se ao
pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a
finalidade humanas para conhecer e agir.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 30.
EXERCÍCIOS:
1. Tem sentido perguntar: para que filosofia? Justifique sua resposta.
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2. Pode-se dizer que a filosofia é útil? Quando e por quê? A filosofia é diferente dos outros tipos de
conhecimentos e de ações? Justifique sua resposta.
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3. Tente adotar uma atitude filosófica diante de alguma situação que vivemos costumeira e
normalmente. Observe a diferença entre dizer “eu acho” e “eu penso”.
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AULA 31.
TALES DE MILETO (cerca de 625-558 a.C.)
Tales, de ascendência fenícia, era natural da
pretendendo desviar o curso de rios para favorecer a
Jônia, na Ásia Menor, cidade famosa pelo florescente
navegação e a irrigação; um hábil comerciante. Tales teria
comércio marítimo, pátria também de Anaximandro e
também estudado as causas das inundações do rio Nilo,
Anaxímenes. Floresceu pelo ano de 585 a.C.. Segundo o
desfazendo mitos que as narravam. Fez algumas
relato de Heródoto, Tales de Mileto foi um dos sete
descobertas astronômicas; além da previsão do eclipse
sábios da Grécia arcaica e, conforme Diógenes Laércio,
solar, descobriu a constelação da Ursa Menor e
teria sido o primeiro a ser assim chamado. Sua origem é
aconselhou os navegantes a se guiarem por ela. Proclo lhe
desconhecida e alguns o consideram fenício. Sua akmé
atribuiu o “Teorema de Tales” (dois triângulos são iguais
está ligada à predição que fez de um eclipse solar e cuja
quando possuem um lado igual compreendido entre dois
data não é segura (610, 597 ou 548 a.C.). A grande
ângulos iguais), mas é improvável que tenha sido seu
dificuldade para conhecer sua vida e sua obra deve-se ao
autor. O mais provável é que o teorema tenha sido
fato de que nada deixou escrito (se é que escreveu alguma
inspirado por um fato relatado por Plutarco, a saber, que
coisa). Tudo quanto sabemos sobre ele deve-se a fontes
Tales descobriu um método para medir a altura de uma
indiretas, as principais sendo Aristóteles, Teofrasto e
pirâmide colocando a prumo uma vara no final da sombra
Simplício.
da pirâmide e, traçando dois triângulos com a linha
Platão faz uma breve referência a Tales para
descrita pelo raio do Sol, mostrou que havia proporção
repetir uma anedota muito espalhada na Grécia: por ser
entre a altura da pirâmide e a da vara ou entre os dois
um teórico, isto é, um contemplador puro, Tales,
triângulos e suas sombras.
caminhando com os olhos voltados para o céu, tropeçou
É Aristóteles que consagra Tales como fundador
numa pedra e caiu num poço. Consagrou-se, assim, a
da filosofia cosmológica, tendo sido o primeiro a tratar de
imagem que, daí por diante, os outros possuem do
modo sistemático e racional o problema da origem,
filósofo como pessoa distraída para as coisas práticas da
transformação e conservação do mundo. Para Tales, o
vida e perdido em pensamentos abstratos.
princípio de todas as coisas é a água, ou melhor, a
No entanto, os relatos sobre Tales nos oferecem
uma imagem muito diferente desta. Foi um político
interessado, procurando unir as cidades da Jônia numa
confederação contra os persas; um hábil engenheiro,
qualidade da água, o úmido.
AULA 32.
TALES DE MILETO (PARTE II)
DOXOGRAFIA:
ARISTÓTELES, Metafísica, I, 3.983b6-33 (DK11A12) tîn d¾ prètwn φilosoφhs£n twn oƒ ple‹stoi
t¦j ™n Ûlhj e‡dei mÒnaj ò»qhsan ¢rc¦j enai p£ntwn· ™x oá g¦r œstin ¤panta t¦ Ônta kaˆ ™x oá
g…gnetai prètou kaˆ e„j Ö φqe…retai teleuta‹on, tÁj mn oÙs…aj ØpomenoÚshj to‹j d p£qesi
metaballoÚshj, toàto stoice‹on kaˆ taÚthn ¢rc»n φasin enai tîn Ôntwn, kaˆ di¦ toàto oÜte
g…gnesqai oÙqn o‡ontai oÜte ¢pÒllusqai, æj tÁj toiaÚthj φÚsewj ¢eˆ swzomšnhj, (...) g¦r ena…
tina φÚsin À m…an À ple…ouj mi©j ™x ïn g…gnetai t«lla swzomšnhj ™ke…nhj. tÕ mšntoi plÁqoj kaˆ
tÕ edoj tÁj toiaÚthj ¢rcÁj oÙ tÕ aÙtÕ p£ntej lšgousin, ¢ll¦ QalÁj mn Ð tÁj toiaÚthj ¢rchgÕj
φilosoφ…aj Ûdwr φhsˆn enai (diÕ kaˆ t¾n gÁn ™φ’ Ûdatoj ¢peφ»nato enai), labën ‡swj t¾n
ØpÒlhψin taÚthn ™k toà p£ntwn Ðr©n t¾n troφ¾n Øgr¦n oâsan kaˆ aÙtÕ tÕ qermÕn ™k toÚtou
gignÒmenon kaˆ toÚtJ zîn (tÕ d’ ™x oá g…gnetai, toàt’ ™stˆn ¢rc¾ p£ntwn) di£ te d¾ toàto t¾n
ØpÒlhψin labën taÚthn kaˆ di¦ tÕ p£ntwn t¦ spšrmata t¾n φÚsin Øgr¦n œcein, tÕ d’ Ûdwr ¢rc¾n
tÁj φÚsewj enai to‹j Øgro‹j. e„sˆ dš tinej o‰ kaˆ toÝj pampala…ouj kaˆ polÝ prÕ tÁj nàn
genšsewj kaˆ prètouj qeolog»santaj oÛtwj o‡ontai perˆ tÁj φÚsewj Øpolabe‹n·
“A maior parte dos primeiros filósofos considerava como os únicos princípios de todas as coisas os
que são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos, e de que primeiro são gerados
e em que por fim se dissolvem, enquanto a substância subsiste mudando-se apenas as afecções, tal é, para
eles, o elemento, tal é o princípio dos seres; e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal
natureza subsistisse sempre (...). Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do que uma, donde as
outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao número e à forma destes princípios,
nem todos dizem o mesmo. Mas Tales, o iniciador de tal filosofia, diz ser a água [o princípio] (é por esse
motivo também que ele declarou que a terra está sobre a água), levado sem dúvida a esta concepção por ver
que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de
que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio). Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as
sementes de todas as coisas terem a natureza úmida; e a água é o princípio da natureza para as coisas úmidas.
Alguns há que pensam que também os mais antigos, bem anteriores à nossa geração, e os primeiros a tratar
dos deuses, teriam a respeito da natureza formado a mesma concepção”.
SIMPLÍCIO, Física, 9, 23, 21 (DK11A13) Tîn d m…an kaˆ kinoumšnhn legÒntwn t¾n ¢rc»n, oÞj
kaˆ φusikoÝj „d…wj kale‹, oƒ mn peperasmšnhn aÙt»n φasin, ésper QalÁj mn 'ExamÚou Mil»sioj
kaˆ “Ippwn, Öj doke‹ kaˆ ¥qeoj gegonšnai, Ûdwr œlegon t¾n ¢rc¾n ™k tîn φainomšnwn kat¦ t¾n
a‡sqhsin e„j toàto proacqšntej. kaˆ g¦r tÕ qermÕn tù Øgrù zÍ kaˆ t¦ nekroÚmena xhra…netai kaˆ
t¦ spšrmata p£ntwn Øgr¦ kaˆ ¹ troφ¾ p©sa culèdhj· ™x oá dš ™stin ›kasta, toÚtJ kaˆ tršφesqai
pšφuken· tÕ d Ûdwr ¢rc¾ tÁj Øgr©j φÚseèj ™sti kaˆ sunektikÕn p£ntwn. diÕ p£ntwn ¢rc¾n
Øpšlabon enai tÕ Ûdwr kaˆ t¾n gÁn ™φ’ Ûdatoj ¢peφ»nanto ke‹sqai.
“Alguns dos que afirmam um só princípio de movimento — [Aristóteles,] propriamente, chama-os
de físicos — consideram que ele é limitado; assim Tales de Mileto, filho de Examyas, e Hipão, que parece
ter sido ateu, afirmavam que água é o princípio, tendo sido levados a isto pelas (coisas) que lhes apareciam
segundo a sensação; pois o quente vive com o úmido, as coisas mortas ressecam-se, as sementes de todas as
cosias são úmidas e todo alimento é suculento. Donde é cada coisa, disto se alimenta naturalmente: água é o
princípio de tudo e afirmam que a terra está deitada sobre ela”.
ARISTÓTELES, Da Alma, 5.411a7-33 (DK11A12) kaˆ ™n tù ÓlJ d» tinej aÙt¾n mem‹cqa… φasin,
Óqen ‡swj kaˆ QalÁj ò»qh p£nta pl»rh qeîn enai. Cf. PLATÃO, Leis, X, 899b.
“E afirmam alguns que ela (a alma) está misturada com o todo. É por isso que, talvez, também Tales
pensou que todas as coisas estão cheias de deuses”.
AULA 33.
TALES DE MILETO (PARTE III)
A água ou o úmido é o princípio (¢rc») de todo
o universo, ou mais precisamente, de toda (φÚsij)
natureza, e a grandeza de Tales está em que não pergunta
(como o mito perguntava) qual era a qualidade ou coisa
primitiva, mas afirma qual é (antes, agora e sempre) a
qualidade ou o ser primordial, isto é, aquilo de que o
mundo é feito.
Por que Tales teria escolhido a água ou o úmido
como princípio (¢rc») ou natureza, ação de brotar (φÚsij)?
Os intérpretes oferecem várias razões para essa
escolha, baseando-se naqueles autores que expuseram as
opiniões do filósofo de Mileto:
1. a água apresenta-se sob as mais variadas
formas e em todos os estados em que vemos os corpos da
natureza: líquido, sólido, gasoso. Vemos a água passar de
um estado a outro, de uma forma a outra, num processo
contínuo no qual mantém a identidade consigo mesma. O
fenômeno da evaporação faz pensar que a água é a causa
do céu e do que nele existe; o fenômeno da chuva, que a
água é a causa da terra e do que nela existe;
2. a água está diretamente vinculada à vida: as
sementes, o sêmen animal e humano são úmidos (o
cadáver em putrefação é uma umidade que vai se
ressecando). “As coisas mortas secam, as sementes são
úmidas, o alimento é suculento”, escreve Simplício,
explicando a escolha de Tales;
3. Tales viajou pelo Egito e certamente se
assombrou com as cheias do rio Nilo: a terra seca e
desértica, antes da cheia, tornava-se fértil, verdejante,
cheia de flores e frutos depois dela. Tales teria concluído
que a água é a causa das plantas;
4. a existência de fósseis de animais marinhos,
descobertos nas montanhas e em grandes altitudes, teria
levado Tales a considerar que, no início, tudo era água e
que a vida animal fora causada pela água;
5. a mitologia grega falava no rio Oceano que
circundava toda a terra e que teria engendrado nosso
mundo. Não seria descabido, portanto, supor que Tales
houvesse dado uma explicação racional para a narrativa
mítica;
A água ou úmido, por ser princípio de todas as
coisas, é também o princípio do devir, isto é, do
movimento (k…nhsij) ou da mudança. É dotada de
movimento próprio, ou seja, é automotora ou “se
movente”: transforma-se a si mesma em todas as coisas e
transforma todas as coisas nela mesma. Alguns
denominam o automovimento da φÚsij com a expressão
hylozoísmo (Ûlh, em grego, quer dizer matéria) para
significar a matéria que possui em si mesma e por si
mesma o princípio ou a causa de seus movimentos
(geração,
corrupção,
alterações
qualitativas
e
quantitativas, locomoção). Tales, como os demais
membros da Escola de Mileto, seria hylozoísta. Isso
explicaria por que, segundo Aristóteles, teria afirmado
que a água é “a alma motora do kÒsmoj”.
O fato de considerar a água como alma, isto é,
como princípio vital, leva Tales a considerar que todas as
coisas são viventes ou animadas e por isso se
transformam e se conservam. A água é o “deus
inteligente” que faz todas as coisas e é a matéria e a alma
de todas elas. Eis por que se atribui a Tales a afirmação:
“Todas as coisas estão cheias de deuses”.
Segundo o testemunho de Aristóteles, um dos
argumentos de Tales para afirmar que todos os seres são
animados ou vivos, e que por isso todas as coisas estão
“cheias de deuses”, foi a observação sobre a chamada
pedra de Magnésia, isto é, o ímã, que move o ferro.
Com efeito, Tales considera que o princípio vital
ou a ψuc» (em latim, anima e, em português, alma) é uma
força motriz ou cinética, isto é, uma força capaz de
k…nhsij, capaz de se mover e de mover outras coisas.
Diante do ímã, Tales observa que há uma força cinética
que atrai o ferro. Ora, se a alma é o princípio vital e uma
força cinética, deve-se concluir que o ímã possui essa
força e, portanto, é uma alma; ou seja, é preciso concluir
que o ímã é animado, vivo. Tales oferece um argumento
cuja estrutura é propriamente filosófica, pois, segundo o
estudioso J. Barnes, em seu artigo Lês Penseurs
préplatoniciens (1997) 11, “deriva uma conclusão notável
[tudo é animado] a partir de premissas que dependem, ao
mesmo tempo, da observação empírica [o ímã move o
ferro] e de uma análise conceitual [o que tem força
cinética ou motora é vivo]”.
Assim, não nos interessa saber se Tales estava
“cientificamente” certo ou errado quanto à natureza viva
ou animada do ímã, mas deve interessar-nos a maneira
como ele raciocinou para chegar a tal afirmação, pois é
essa maneira que é nova e propriamente filosófica. Foi
esse modo novo de raciocinar que o fez concluir que a
água era a ¢rc» (princípio) e φÚsij (natureza, ação de
brotar), isto é, ele deduziu e inferiu de fatos visíveis uma
conclusão obtida apenas pelo pensamento ou pela razão.
AULA 34.
ANAXIMANDRO DE MILETO (cerca de 610-547 a.C.)
Concidadão, discípulo e sucessor de Tales. Geógrafo,
matemático, astrônomo e político. De sua vida, praticamente
nada se sabe. Em compensação, os relatos doxográficos nos dão
conta de que escreveu um livro, intitulado “Sobre a Natureza”,
tido pelos gregos como a primeira obra filosófica no seu idioma.
Infelizmente o livro se perdeu, restando-nos apenas um
fragmento e notícias de filósofos e escritores posteriores.
Atribui-se a Anaximandro a confecção de um mapa do mundo
habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon (esquadro
ou qualquer haste vertical cuja sombra indica a direção e a altura
do Sol), a medição das distâncias entre as estrelas e o cálculo de
sua magnitude. É o iniciador, portanto, da astronomia grega.
Ampliando a visão de Tales, foi o primeiro a formular uma
tentativa compreensiva e circunstanciada para explicar todos os
aspectos do mundo da experiência humana.
Segundo o testemunho de Aristóteles no Tratado do
Céu, Anaximandro teria explicado por que a Terra permanece
imóvel, ou, nas palavras do próprio Aristóteles, “a Terra
permanece em seu lugar por indiferença”. Para um corpo que
ocupa um lugar num centro, mover-se para o alto ou para baixo,
para a direita ou para a esquerda é a mesma coisa ou
perfeitamente indiferente; por outra parte, como não é possível
realizar ao mesmo tempo dois movimentos em direções
contrárias, o corpo que ocupa o centro deve necessariamente
permanecer em seu lugar. Ora, a Terra, que Anaximandro julga
ter a forma cilíndrica, ocupa o centro do mundo sem estar
sustentada por nada a não ser por um equilíbrio interno de todas
as suas partes e, por sua forma, por seu equilíbrio interno e por
seu lugar central está imóvel. Podemos notar, assim, que a
afirmação de Anaximandro (independentemente de estar
incorreta do ponto de vista da astronomia moderna) não é
arbitrária, mas resulta de um raciocínio preciso, ou seja, a Terra
não se move por razões de ordem lógica.
De Tales para Anaximandro, a cosmologia dá um
salto teórico importante. A φÚsij (natureza, ação de brotar) e a
¢rc» (princípio), agora, não é nenhum dos elementos materiais
percebidos na natureza, nenhuma das qualidades (úmido, seco,
quente, frio) percebidas nas coisas, nenhuma qualidade
determinada ou definida, delimitada. A ¢rc» é o ¥peiron. A
¢rc» é o ilimitado, indefinido e indeterminado, sem fronteiras,
sem definição, o que não sendo nenhuma das coisas e nenhuma
das qualidades dá origem a todas elas.
Traduzimos o fragmento de Anaximandro da seguinte
maneira:
1. SIMPLÍCIO, Phys. 24, 17 ... ¢rc¾n ... e‡rhke tîn
Ôntwn tÕ ¥peiron, ... ™x ïn d ¹ gšnes…j ™sti to‹j oâsi, kaˆ
t¾n φqor¦n e„j taàta g…nesqai “kat¦ tÕ creèn: didÒnai
g¦r aÙt¦ d…khn kaˆ t…sin ¢ll»loij tÁj ¢dik…aj kat¦ t¾n
toà crÒnou t£xin”.
Princípio... dos seres, ele disse que era o ilimitado, ...
pois de onde a gênese é para os entes/exitentes (de onde os seres
têm sua gênese), é para onde também a corrupção dos mesmos
se gera “segundo o necessário: pois eles (os entes) mesmos dão
justiça/ajuste e deferência uns aos outros por causa da
injustiça/desajuste, segundo a taxação do tempo”.
2. HIPPOL. Ref. I, 6, 1 [vgl. A 11] taÚthn (sc. φÚsin
tin¦ toà ¢pe…rou) ¢…dion enai kaˆ ¢g»rw.
“Esta (a natureza do ilimitado) é sem idade e sem
velhice”.
3. ARIST. Phys. G 4 203b 13 [vgl. A 15] ¢q£naton...
kaˆ ¢nèleqron (tÕ ¥peiron = tÕ qe‹on).
“Imortal... e imperecível (o ilimitado enquanto o
divino)”.
Em linguagem não poética e não tão rigorosa, o
fragmento de Anaximandro costuma ser traduzido da seguinte
maneira: “Todas as coisas se dissipam onde tiveram sua gênese,
conforme a necessidade, pagando uma às outras castigo e
expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo. O
ilimitado é eterno. O ilimitado é imortal e indissolúvel”.
Conforme o relato doxográfico de Simplício, no
Comentário à Física de Aristóteles, Anaximandro foi o primeiro
a empregar a palavra ¢rc» e, portanto, o primeiro a elaborar o
conceito de princípio de todas as coisas.
Se compararmos ao de Tales, o pensamento de
Anaximandro introduz grandes mudanças teóricas que merecem
ser destacadas.
Em primeiro lugar, a clara identificação entre φÚsij e
¢rc» como aquilo que só pode ser alcançado pelo pensamento,
pois o princípio não se confunde com os quatro elementos
visíveis e observáveis — lembremos que a φÚsij apresenta o
sentido de “vivente” ou “brotante”, mas existe também o
aspecto “autoritário” e “governante” da ¢rc» como princípio. A
φÚsij parece falar de um jorrar auto-gestivo e de um
movimento contínuo imanente; a ¢rc» parece introduzir nesse
movimento a noção de “necessidade” —. Em segundo, e como
conseqüência, a concepção do princípio como algo
quantitativamente sem limites e qualitativamente indeterminado
para que possa eternamente dar origem a todas as coisas
determinadas do ponto de vista da quantidade e da qualidade.
Em terceiro, a afirmação de que o princípio é eterno — “sem
idade e sem velhice”, “imortal e imperecível” — de tal maneira
que ele é muito mais do que eram os antigos deuses, pois estes
eram imortais, mas não eram eternos, uma vez que haviam sido
gerados. Em quarto lugar, a clara distinção entre a perenidade
imortal do princípio e o devir ou vir a ser como ordem temporal
da geração e corrupção das coisas. Em quinto, e mais
profundamente, Anaximandro concebe a ordem do tempo como
uma lei necessária — por isso fala em injustiça e reparação justa
— segundo a qual os elementos se separam do princípio,
formam a multiplicidade das coisas como opostas ou como
contrários em luta e depois retornam ao princípio, dissolvendose nele para pagar o preço da individuação injusta porque
belicosa. Em outras palavras, Anaximandro procura explicar
como do indeterminado e ilimitado surgem as coisas
determinadas e limitadas, ou a origem das coisas
individualizadas, de suas diferenças e oposições.
A origem do mundo é, pois, explicada por um
processo injusto e culpado ou pela guerra incessante que fazem
entre si os elementos no interior do ¥peiron. A luta dos
contrários, isto é, o mundo em que vivemos, fere a justiça (d…kh)
e esta exige a reparação. Cabe ao tempo reparar a injustiça,
obrigando todas as coisas determinadas e limitadas a retornar ao
seio do indeterminado e ilimitado: a corrupção e a morte das
coisas é a expiação da culpa pela separação, individuação e
guerra dos contrários.
AULA 35.
ANAXIMANDRO DE MILETO (PARTE II)
Anaximandro espantava-se com as oposições que
Atribuem-se ainda a Anaximandro duas idéias muito
constituem o mundo: o fogo que consome o ar, mas é destruído
originais: a primeira delas, sobre a origem e formação do céu e
pela água; a terra seca que luta para não ser tomada pela água
da terra, e a segunda, sobre a existência de mundos inumeráveis.
nem pelo fogo; o mar que é úmido, mas que se torna ar ao
A primeira separação do quente e do frio formou um
evaporar e luta contra ele ao recair como chuva; a seqüência
anel luminoso de chamas que cercou o ar frio, prosseguiu
eterna das estações do ano; as diferenças entre os animais
formando novos e menores anéis — os astros — dispondo-os
(alguns estão sempre na água, outros na terra, outros no ar); as
para formar o zodíaco. Donde, segundo Hipólito, Anaximandro
diferenças entre os homens (alguns de cor diferente de outros,
afirmar que “os corpos celestes são rodas de fogo separadas do
alguns calmos e serenos, outros coléricos e belicosos); as lutas
fogo que cerca o mundo, e fechadas em círculos de ar”. Há três
entre homens e animais, entre os próprios animais e entre os
rodas ou três anéis: o anel do Sol, o anel da Lua e o anel das
próprios homens; a luta dos homens para cultivar a terra,
estrelas (aí compreendidos todos os astros que não o Sol e a
conquistar o mar, etc.. Essas lutas, decorrentes da individuação e
Lua). A terra e o mar formaram-se com a separação do seco e do
diferenciação dos seres, do predomínio de uma qualidade sobre
úmido, no interior do primeiro círculo de fogo que se destacara:
as outras, ao mesmo tempo que cria o kÒsmoj, é uma injustiça
o mar é o que restou do úmido sob a ação do fogo, e a terra, o
que precisa ser reparada, pois a justiça é a paz e o mundo é
que restou do seco sob a ação do fogo e do úmido.
guerra dos contrários.
Diferentemente de Tales e da tradição, que acreditava que a
Como surge o mundo? Por um movimento circular,
Terra estava sustentada por alguma coisa, sendo plana,
semelhante a um turbilhão, que irrompe em diversos pontos do
Anaximandro descreve a Terra como um cilindro ou disco
¥peiron.
convexo, solto no espaço, imóvel, sem possuir um alto e um
Nesse
movimento,
separam-se
do
ilimitado-
indeterminado as duas primeiras determinações ou qualidades: o
baixo.
quente e o frio dando origem ao fogo e ao ar; em seguida,
Quanto à afirmação de Anaximandro de que existem
separam-se o seco e o úmido, dando origem à terra e à água.
mundos inumeráveis, não se tem certeza se com isto ele
Essas determinações combinam-se ao lutar entre si e os seres
afirmava que existem mundos simultâneos formados do ¥peiron
vão sendo formados como resultado dessa luta, quando um dos
(que, sendo ilimitado, poderia dar origem a inumeráveis
contrários domina os outros. O devir é esse movimento
mundos) ou mundos sucessivos produzidos a cada nova
ininterrupto da luta entre contrários e terminará quando forem
separação no interior do ¥peiron, depois do fim de cada mundo
todos reabsorvidos no ¥peiron.
anterior.
AULA 36.
ANAXÍMENES DE MILETO (cerca de 585-525 a.C.)
Anaxímenes foi discípulo e continuador de
Anaximandro. Escreveu sua obra, “Sobre a Natureza”,
também em prosa, no dialeto jônico. Dedicou-se
especialmente à meteorologia. Foi o primeiro a afirmar
que a Lua recebe sua luz do Sol. Os antigos consideraram
Anaxímenes a figura principal da escola de Mileto.
FRAGMENTOS:
1. tÕ g¦r sustellÒmenon aÙtÁj kaˆ
puknoÚmenon ψucrÕn ena… φhsi, tÕ d’ ¢raiÕn kaˆ tÕ
calarÕn (oÛtw pwj Ñnom£saj kaˆ tîi φ»mati)
qermÒn.
O contraído e condensado da matéria ele diz que
é frio, e o ralo e frouxo (é assim que ele se expressa) é
quente.
2. oon ¹ ψuc», φhs…n, ¹ ¹metšra ¢¾r oâsa
sugkrate‹ ¹m©j, kaˆ Ólon tÕn kÒsmon pneàma kaˆ
¢¾r perišcei.
Como nossa alma, ele diz, que é ar,
soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o
cosmos, sopro e ar o mantêm.
2a. platÝn æj pštalon tÕn ¼lion.
O sol é largo como uma folha.
A ¢rc», ou o princípio, é o ar. As idéias de
Anaxímenes podem parecer um retrocesso se comparadas
às de Anaximandro, que evitara identificar a ¢rc» com
qualquer dos elementos ou qualidades sensíveis de nossa
experiência. Na verdade, não é o caso. Anaxímenes
considera o ¥peiron de Anaximandro ainda muito
próximo do caos que é descrito pelo mito antigo.
Mantendo a idéia central de seu predecessor, isto é, que a
¢rc» é ilimitada, incorruptível e imortal, Anaxímenes
exige que ela seja determinada ou qualificada, pois o
pensamento só pode pensar o que possui determinações.
O ar, enquanto φÚsij e ¢rc», não é o frio e o ar que
sentimos, mas o princípio do qual o ar de nossa vida e de
nossa experiência provém. Torna-se sensível para nós por
meio do frio, do quente, do úmido e do seco, mas, quando
perfeitamente homogêneo e idêntico a si mesmo, torna-se
insensível e só pode ser apreendido pelo pensamento.
Por que a escolha do ar? Segundo o testemunho
doxográfico, Anaxímenes teria escrito que “assim como
nossa alma, que é ar, nos sustenta e nos governa, assim
também o sopro e o ar abraçam todo o cosmos” e que “o
ar está nas cercanias do incorpóreo [sem forma e
invisível] e já que nascemos graças ao seu fluxo, é preciso
que seja ilimitado para que jamais acabe”. Assim,
podemos supor que Anaxímenes concebeu o ar como
φÚsij e ¢rc» porque:
1. ao contrário da água, que precisa de um
suporte ou de um continente, o ar sustenta-se a si mesmo;
possui uma autonomia ou auto-suficiência, própria de um
fundamento ou princípio;
2. sua presença e sua difusão são ilimitadas,
podendo compor todas as coisas;
3. respirar é o primeiro ato de um ser vivo e
também o último, antes de morrer, por isso o ar é o
princípio vital. Num dos fragmentos lemos: “como nossa
alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim
também todo o cosmos, sopro e ar o mantêm”. O ar, alma
nossa e do mundo, é o que mantém unidas as partes de um
todo — nosso corpo e o cosmos. O mundo é um ser vivo
que respira e que recebe do sopro originário a unidade que
o mantém.
A grande originalidade de Anaxímenes, perante
Tales e Anaximandro, consiste no fato de que a
multiplicidade, transformação e ordenação do mundo se
fazem por alterações quantitativas em um único princípio:
menos ar (rarefação) e mais ar (condensação) determinam
toda a variação e organização do real. O ar, elemento
universal, invisível e indeterminado, por sua força interna
própria, movimenta-se: contraindo-se ou dilatando-se, vai
engendrando todos os seres determinados como
manifestações visíveis de uma vida perene. O cosmos
vive no ritmo de uma respiração gigantesca que o anima e
mantém coesas suas partes.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 37.
EXERCÍCIOS:
1. Para Tales de Mileto qual o princípio de todas as coisas? O que ele queria dizer ao afirmar que
“todas as coisas estão cheias de deuses”? Justifique sua resposta.
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2. Explique, em poucas palavras, o que Anaximandro pretendia nos ensinar com o seu fragmento.
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3. Segundo Anaxímenes de Mileto, qual o princípio ou elemento formador do mundo? Justifique
sua resposta.
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AULA 38.
JEAN DE LA FONTAINE (1621-1695)
– A CIGARRA E A FORMIGA –
– LA CIGALE ET LA FOURMI –
Tendo a Cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
La Cigale, ayant chanté
Tout l’été,
Se trouva fort dépourvue
Quand la bise fut venue:
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da Formiga,
Que morava perto dela.
Pas un seul petit morceau
De mouche ou de vermisseau.
Elle alla crier famine
Chez la Fourmi sa voisine,
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.
La priant de lui prêter
Quelque grain pour subsister
Jusqu’à la saison nouvelle.
– “Amiga, diz a cigarra,
Prometo, à fé d’animal,
Pagar-vos antes d’Agosto
Os juros e o principal”.
- “Je vous paierai, lui dit-elle,
Avant l’Oût, foi d’animal,
Intérêt et principal”.
A Formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
La Fourmi n’est pas prêteuse:
C’est là son moindre défaut.
- “Que faisiez-vous au temps chaud?”
Dit-elle à cette emprunteuse.
Responde a outra: “Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora”.
– “Oh! bravo!” – torna a Formiga –
“Cantavas? Pois dança agora!”
-“ Nuit et jour à tout venant
Je chantais, ne vous déplaise”.
-“ Vous chantiez? J’en suis fort aise.
Eh bien! dansez maintenant”.
Tradução de du Bocage (1823-1907)
CURSO DE FILOSOFIA
 PRIMEIRO ANO 
 Terceiro Bimestre 
AULA 39.
PITÁGORAS DE SAMOS (cerca de 580-497 a.C.)
É muito pouco o que conhecemos sobre a vida de
Pitágoras. Este indivíduo cedo foi envolvido pelo legendário, de
modo que é difícil separar nele o histórico do fantástico. Nasceu
em Samos, rival comercial de Mileto. Pelo ano de 540 a.C.
deixou sua pátria, estabelecendo-se na Magna Grécia (sul da
Itália). Em Crotona fundou uma espécie de associação de caráter
mais religioso que filosófico, cujas doutrinas eram mantidas em
segredo. Seus adeptos logo criaram novos centros: Tarento,
Metaponto, Síbaris, Régio e Siracusa. Participantes ativos da
política, provocaram a revolta dos crotonenses. Pitágoras então
abandona Crotona, refugiando-se em Metaponto, onde morreu
em 497 ou 496 a.C..
Pitágoras não deixou nenhum documento escrito. Seus
ensinamentos, transmitidos oralmente, eram rigorosamente
guardados em segredo pelos primeiros discípulos que também
nada escreveram. Daí a grande dificuldade em reconstituir o
pensamento do pitagorismo primitivo e ainda mais o do próprio
Pitágoras, distinguindo-o do de seus discípulos. No entanto, o
pitagorismo exerceu profunda influência na filosofia grega, quer
pela reação polêmica que provocou (Xenófanes, Heráclito,
Parmênides, Zenão), quer pelos elementos positivos que
passaram aos pensadores posteriores. Ao pitagorismo posterior
— com escritos — pertencem Filolau e Arquitas.
Podemos considerar com algum grau de certeza que os
seguintes aspectos correspondem ao pensamento de Pitágoras:
- Afirmou a transmigração das almas (isto é, sua
passagem por diferentes corpos, tanto humanos quanto animais)
e a reencarnação. Propôs a purificação da alma pelo
conhecimento ou pela vida contemplativa, isto é, pela theoria
(qewr…a), única que poderia libertar-nos da “roda dos
nacimentos”. Atribui-se a Pitágoras a idéia de aumento da
sabedoria graças a regras de vida fundadas no silêncio, no
isolamento e na abstinência (abstinência sexual, abstinência de
certos alimentos, como carnes e favas, e de bebidas fortes).
- Segundo os doxógrafos, Pitágoras teria dito que aos
Jogos Olímpicos comparecem três tipos de homens: os que vão
para comerciar e ganhar a expensas de outros; os atletas, que
vão para competir e exibir suas qualidades ao público; e os que
vão para contemplar os torneios e avaliá-los. Assim também
existem três tipos de almas: as cúpidas, presas às paixões; as
mundanas, presas às vaidades da fama e da glória; e as sábias,
voltadas para a contemplação.
- Por ser um adepto de Apolo Delfo, o deus dos
oráculos, considerava que a verdade chega aos homens por
inspiração divina e teria dito que a verdade plena ou a sabedoria
pertence ao divino, cabendo ao sábio (soφÒj) apenas desejá-la e
amá-la, ligando-se a ela pelo laço da amizade (φil…a). Aquele,
portanto, que tem amizade pela sabedoria é filósofo e sua
atividade chama-se filosofia.
- Como todos os primeiros filósofos, Pitágoras buscou
explicar a φÚsij através de uma ¢rc» e afirmou que esta era o
número — ¢riqmÒj (arithmos). Como teria chegado a essa
idéia? Os exercícios espirituais da comunidade pitagórica eram
realizados ao som da lira órfica ou a lira tetracorde (lira de
quatro cordas), e é muito provável que Pitágoras tivesse
percebido que os sons produzidos pela lira obedeciam a
princípios e regras para formar os acordes e para criar a
concordância entre sons discordantes, isto é, os sons da lira
seguem regras de harmonia que se traduzem em expressões
numéricas (as proporções). Ora, se o som é, na verdade, número,
por que toda a realidade — enquanto harmonia ou concordância
dos discordantes como o seco e úmido, o quente e o frio, o bom
e o mau, o justo e o injusto, o masculino e o feminino — não
seria um sistema ordenado de proporções e, portanto, número?
A proporção ou harmonia universal faz com que o mundo possa
ser conhecido como um sistema ordenado de opostos em
concordância recíproca e por isso, assim como Pitágoras foi o
primeiro a falar em φilosoφ…a, foi o primeiro a falar no mundo
como kÒsmoj.
- Porque o mundo seria regido pelas mesmas leis de
proporcionalidade que as das cordas da lira, Pitágoras teria dito
que há uma música universal e que não a ouvimos porque
nascemos e vivemos em seu interior e não possuímos o contraste
do silêncio que nos permitiria ouvi-la. No mundo, as cordas da
lira são as esferas celestes, onde se encontram os astros, e a
esfera terrestre, onde nos encontramos. A música ou harmonia
universal é a relação proporcional e ordenada entre as esferas ou
entre o céu e a terra.
- A natureza numérica da φÚsij ou a estrutura
harmônica do mundo ou kÒsmoj está presente em todas as
coisas e também na alma, ψuc». Segundo os doxógrafos,
Pitágoras e seus discípulos teriam dito que “a alma é harmonia”
(portanto, unificação de muitos elementos e concordância dos
contrários ou discordantes). Justamente por ser constituída pela
mistura de muitos elementos discordantes, a alma precisa buscar
a concordância entre eles e fazer com que os elementos
superiores dominem os inferiores. Pitágoras afirmava também o
poder terapêutico da lira sagrada de Orfeu porque a harmonia de
seus sons auxiliava o esforço da alma para ser, ela também,
harmonia, estabelecendo a justa proporção entre os contrários
que a constituem. Há, portanto, em Pitágoras, uma ética
deduzida da cosmologia.
AULA 40.
PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE II)
O que sabemos sobre o pitagorismo nos vem de
fragmentos deixados por pitagóricos como o médico Alcmeão
de Crotona e os matemáticos Filolau de Crotona e Arquitas de
Tarento, assim como por referências de Platão e Aristóteles, e
pela doxografia.
Ao afirmar que os pitagóricos foram os primeiros a
fazer avançar as matemáticas, em sua Metafísica, 1, 5,
Aristóteles afirmou a opinião de todos os antigos de que os
pitagóricos foram, de certa maneira, os criadores da geometria
como ciência das figuras, volumes e superfícies e os primeiros a
estabelecer relações entre ela e a aritmética ou a ciência dos
números.
Para compreendermos o que o pitagorismo quer dizer
quando afirma que o número, ou melhor, o Um é a φÚsij e a
¢rc», precisamos compreender o que entendem por número.
Lembremos que os gregos e romanos representavam os números
por letras, pois os algarismos, tais como os conhecemos, foram
inventados pelos árabes; e Euclides, o grande sistematizador da
matemática grega, em seus Elementos — escrito por volta de 300
a.C. — representava os números por letras e linhas. Lembremos
também que gregos e romanos desconheciam o zero e que este
também foi concebido pelos árabes.
Primitivamente, os gregos representavam os números
por pontos arranjados em desenhos simétricos e facilmente
reconhecíveis, como em cada face de um dado ou em peças de
dominó. Essa representação tinha a seguinte peculiaridade: os
números não eram concebidos numa seqüência — 1, 2, 3, ... —
obtida pelo acréscimo do 1 a cada número da série; mas eram
concebidos cada qual como uma unidade discreta e
independente, ou seja, havia o 1, o 2, o 3, o 4, etc.. Os
pitagóricos, porém, inventaram a representação aritméticogeométrica dos números, distribuindo-os em figuras. Graças a
essa nova maneira de representação, puderam: 1. definir a
unidade (mon£j); 2. tomar os números como seqüência
ordenada; 3. distinguir os elementos constitutivos dos números,
isto é, distinção entre o par (o divisível ou ilimitado) e o ímpar
(o indivisível ou limitado); 4. diferenciar pontos e superfícies,
chamando aos primeiros de “termos” (ou limites) e às segundas
de “campos” (ou lugares).
Ao que tudo indica, o início dessa invenção foi o
estudo de uma figura que o pitagorismo julgava sagrada, a
tetraktÚj (tetráktys ou tetráktys da década), isto é, a
representação do número 10 (ou da década) por um triângulo
eqüilátero em que cada lado é constituído por 4 (tetras) pontos,
com um ponto no centro:
Lembremos que o ponto de partida dos pitagóricos foi
o estudo da lira tetracorde, isto é, a lira de quatro cordas. Ora, a
tetráktys da década (ou a década constituída pelos lados de
quatro pontos) é considerada sagrada e perfeita porque possui
características que nenhum outro número possui: 1. é igual à
soma dos quatro primeiros números (1+2+3+4), ou, na
linguagem pitagórica, é a síntese da unidade, da díada, da tríada
e da quadra; 2. inclui uma quantidade igual de números pares e
ímpares (4 pares — 2, 4, 6, 8; e 4 ímpares — 3, 5, 7, 9), e par ou
ímpar são os elementos definidores de um número, de tal
maneira que a tetráktys da década contém num só número os
divisíveis e os indivisíveis em mesma quantidade ou em
harmonia; 3. contém todas as figuras: o 1 é o ponto, o 2 é a linha,
o 3 é o triângulo, o 4 o quadrado, etc.. A perfeição da tetráktys
da década fez com que fosse tomada como critério de todas as
operações matemáticas, dando origem ao que viríamos a
conhecer com o nome de “sistema decimal”.
A partir da tetráktys, os pitagóricos conceberam o
“número triangular”, ou a tríada com a soma da unidade e da
díada (1+2). Usando o gnómon (isto é, o esquadro), inventaram o
“número quadrado” ou “número retangular”. O “número
quadrado” é obtido acrescentando-se à unidade uma quantidade
ímpar de pontos; o “número retangular” é obtido acrescentandose à díada uma quantidade par de pontos.
NÚMERO QUADRADO
NÚMERO RETANGULAR
A construção dos vários números mostra como os
pitagóricos puderam concebê-los como uma série ou seqüência
ordenada de pontos e linhas a partir de um critério fundamental,
qual seja, a distinção entre o par e o ímpar. Mas não só isso. Além
de conceberem uma ordem numérica, os pitagóricos também
conceberam essa ordem como harmonia, isto é, como proporção na
composição de alguma coisa constituída por elementos diferentes e
mesmo opostos.
De fato, suas descobertas matemáticas provieram de seus
estudos da música e, como vimos, da percepção de uma relação
direta entre sons e os números: assim, a diversidade de sons
produzidos pelos martelos (ou marimbas) que golpeiam uma fieira
de juncos suspensos pode ser determinada numericamente pelas
diferenças de grandeza e peso dos martelos e dos juncos; a
diversidade de sons produzidos pelos bastões que golpeiam a
superfície de um tambor pode ser determinada numericamente pela
grandeza e peso dos bastões e pela espessura da superfície do
tambor; a diversidade de sons produzidos pelas cordas da lira
tetracorde pode ser determinada numericamente pelo comprimento e
espessura das cordas. Dessa maneira, os pitagóricos descobriram
que as relações harmônicas do diapasão, os acordes de quarta,
quinta e oitava podem ser traduzidos em leis numéricas (1:2, 2:3,
3:4). Além disso, não deixaram de perceber a determinação
numérica de fenômenos naturais como a duração do dia, dos meses
e do ano, das estações, da gestação dos animais e dos humanos, dos
ciclos da vida.
Visto que haviam descoberto as relações e proporções
entre todas as coisas a partir de sua determinação numérica, não nos
deve causar estranheza que julgassem o número — ou melhor, o Um
e a proporção ou harmonia — como φÚsij e ¢rc», natureza e
estrutura de todas as coisas e que, como disse Aristóteles, julgassem
que ela não é o fogo, a água, a terra ou o ar porque estes — ou
melhor, o quente, o úmido, o seco, o frio — nada mais são senão
proporções ou combinações ou dissociações das qualidades das
coisas. Num comentário de Aécio é dito que, para Pitágoras (ou para
os pitagóricos), o cubo produziu a terra, o tetraedro produziu o fogo,
o octaedro produziu o ar, o icosaedro produziu a água, e o
dodecaedro produziu a esfera do universo.
AULA 41.
PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE III)
A φÚsij está presente em todas as coisas, tanto
as visíveis quanto as invisíveis: assim, a unidade é a
inteligência, pois é sempre idêntica a si mesma; a díada é
a opinião, pois sempre dividida entre dois; a tríada é a
justiça, pois é a síntese da unidade e da díada, isto é, da
identidade e da divisão, uma vez que resulta da soma dos
dois primeiros números. E assim por diante. Dizer que a
φÚsij e a ¢rc» são o número é dizer que as coisas são
ritmos, proporções, relações, somas, subtrações,
combinações e dissociações ordenadas e reguladas. Em
outras palavras, o número não representa nem simboliza
as coisas, ele é a estrutura das coisas. Ou, como dirá
Galileu ao criar a física moderna, só conheceremos a
natureza se conhecermos sua estrutura matemática.
De acordo com Aristóteles e Estobeu, os
pitagóricos (e, mais precisamente, Filolau de Crotona)
conceberam o Um, ou a unidade primordial, a partir da
distinção entre ilimitado e limitado, ou entre
indeterminado e determinado, isto é, entre o indivisível e
o que pode ser indefinidademente dividido. Essa distinção
aparece com a diferença entre o ímpar (limitado,
determinado, indivisível) e o par (ilimitado,
indeterminado, divisível), que são os elementos
constitutivos de todos os números, e, por isso mesmo, o
Um, fonte dos números, é, em si mesmo, par-ímpar,
ilimitado-limitado. O Um ou a unidade é, portanto, a
totalidade dos números e, por isso mesmo, a totalidade
das coisas visíveis e invisíveis. A unidade é o princípio da
permanência ou da identidade de uma coisa e a dualidade
é o princípio de sua mudança, de seu devir ou vir a ser.
Dessa maneira, o kÒsmoj é a proporção regulada de pares
de opostos, ou a concordância dos discordantes: altobaixo, direita-esquerda, macho-fêmea, movimentorepouso, quente-frio, seco-úmido, luz-treva, doce-amargo,
bom-mau, justo-injusto, verdadeiro-falso, grandepequeno, novo-velho, reto-curvo. O princípio desses pares
é a oposição fundamental entre limitado e ilimitado, ou
entre unidade e multiplicidade.
Alguns testemunhos doxográficos também
atribuem a Alcmeão e a Filolau uma teoria do
conhecimento, isto é, uma teoria da alma humana como
capaz de conhecer a estrutura numérica do mundo. O
número seria o princípio do conhecimento porque ordena
e organiza a realidade ao engendrar as coisas como
unidade e diversidade de proporções inteligíveis, pois não
devemos esquecer que, em grego, proporção se diz lÒgoj
(e, em latim, se diz ratio, razão). O número, segundo
Filolau, torna as coisas discerníveis umas com relação às
outras, as torna conhecíveis, ou, em sua linguagem
própria, “torna as coisas concordantes com a alma”,
concórdia ou proporção que decorre do fato de que a alma
também é número. Ou, na liguagem de Filolau, as coisas e
a alma são comensuráveis (proporcionais) porque
possuem a mesma medida comum ou o mesmo lÒgoj,
pois são feitas da mesma φÚsij. Conhecer é encontrar a
unidade de alguma coisa e o princípio de sua mudança ou
de seu devir. O número é o que produz a unidade e a
diversidade das coisas e por isso as torna conhecíveis por
nossa alma. Eis por que o ideal contemplativo ou teórico
do pitagorismo se realiza plenamente com uma
cosmologia matemática.
A matematização do universo concebida pelos
pitagóricos lhes permitiu explicar a origem de todas as
coisas por um processo regulado e inteligível de
delimitações do uno primordial ilimitado segundo
proporções que diferenciam os opostos e os dispõem
numa ordem racional. Dessa maneira, o pitagorismo pôde
introduzir com todo o rigor a idéia de ordem ou de
kÒsmoj porque determinou o operador da ordenação — o
número —, a forma da ordenação — proporção — e o
efeito da ordenação — concordância e harmonia dos
contrários governados pelas mesmas leis racionais.
No entanto, o pitagorismo passará por uma crise
profunda que levará ao desaparecimento de sua Escola,
ainda que não ao de seus ensinamentos principais, que
seriam retomados, dois séculos depois, por Platão. Essa
crise os dividiu em dois grandes grupos: os acústicos ou
acusmáticos, de um lado, e os matemáticos, de outro.
Acusmáticos foram os que conservaram apenas os
ensinamentos orais (ou aprendidos por ouvido) de caráter
místico e moral da Escola, realizando exercícios
espirituais silenciosos de purificação da alma, ao som da
lira órfica. Matemáticos foram aqueles que tentaram dar
prosseguimento à doutrina cosmológica e à geometria,
após a crise.
Que crise foi essa? O aparecimento de um
teorema que, justamente, leva o nome de Pitágoras: “num
triângulo retângulo, a soma dos quadrados dos catetos é
igual ao quadrado da hipotenusa”.
Do ponto de vista geométrico, a demonstração do
teorema é clara e perfeita: o quadrado da hipotenusa é
igual à soma dos quadrados dos catetos. Há, portanto,
proporção entre os catetos e a hipotenusa.
AULA 42.
PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE IV)
A palavra proporção, como já estudamos, na matemática
grega, é lÒgoj e, em latim, é ratio, razão. Quando se diz que há
proporção entre coisas ou entre números ou entre figuras, diz-se
que é possível determinar o lÒgoj ou a ratio de uma relação e
conhecê-la. Assim, por exemplo, se escrevemos 2/4 : 4/8,
veremos que a proporção, o lÒgoj ou ratio entre esses quatro
números significa determinar quantas vezes 2 está contido em 4
e quantas vezes 4 está contido em 8 e por isso o lÒgoj ou ratio
entre eles é 2 (2 está contido 2 vezes em 4, assim como 4 está
contido 2 vezes em 8).
Ora, o que a demonstração aritmética do teorema (isto é,
não sua demonstração por figuras ou por geometria e sim por
números ou aritmética) irá revelar é que, se tomarmos os dois
triângulos retângulos que formam um quadrado e considerarmos
a hipotenusa como a diagonal do quadrado, não há lÒgoj ou
ratio entre ela e os lados, não há proporção numérica entre eles,
não são comensuráveis, e, não havendo proporção entre eles, há
alguma coisa no mundo que escapa da ordem matemática
universal.
De fato, como se coloca o chamado “problema do
pitagorismo”?
A demonstração geométrica fala em “quadrado da
hipotenusa” e “quadrados dos catetos”. Isso significa que a
demonstração recorre ao quadrado, toma a hipotenusa como
diagonal e os catetos como lados de um quadrado. Na linguagem
aritmética dos pitagóricos está sendo dito que a hipotenusa, a
diagonal, os catetos e os lados estão sendo tomados como
números quadrados, portanto, como números obtidos pelo
acréscimo de pontos ímpares à unidade. São, pois, números
ímpares. Mas se o número quadrado da diagonal for igual à
soma dos números quadrados dos dois lados, será preciso dizer
que o quadrado da diagonal é igual a duas vezes o número de
um lado. Ora, todo número multiplicado duas vezes (ou
multiplicado por dois) é um número par, e será preciso dizer que
a diagonal é, ao mesmo tempo, ímpar e par, se ela e o lado
forem comensuráveis. O que é absurdo. É preciso, portanto,
dizer que não são comensuráveis, que não há um número que
possa medi-los ao mesmo tempo.
Quando, em sua obra sobre a lógica, Aristóteles
exemplifica como a ciência realiza demonstrações chamadas de
“por redução ao absurdo”, o exemplo escolhido por ele é
exatamente este caso. Escreve Aristóteles:
“Prova-se, por exemplo, a incomensurabilidade da
diagonal pela razão de que os números ímpares se tornariam
iguais aos números pares, se se pusesse a diagonal
comensurável ao lado. Conclui-se [se a diagonal for
comensurável ao lado] que os números ímpares se tornariam
iguais aos números pares e prova-se hipoteticamente a
incomensurabilidade da diagonal porque uma conclusão falsa
resulta da proposição contraditória [isto é, a proposição que
afirma a comensurabilidade]. É isso que chamamos de
raciocínio por absurdo: consiste em provar a impossibilidade
de alguma coisa por meio [da impossibilidade] da hipótese
concedida no início”. ARISTÓTELES, Primeiros Analíticos, 1, 23.
Do ponto de vista pitagórico, a incomensurabilidade
entre a diagonal e o lado exige que se conclua que não há um
número (em sentido pitagórico) que possa medir ao mesmo
tempo o lado e a diagonal do quadrado, isto é, um número que
possa determinar a relação entre eles e, portanto, eles são
desproporcionais, não podem ter a mesma medida, sendo por
isso incomensuráveis ou irracionais (sem ratio comum). A
incomensurabilidade entre a diagonal e o lado do quadrado põe
em questão a teoria pitagórica do número como ¢rc».
Assim, o teorema de Pitágoras, considerado a certidão
de nascimento da geometria como ciência e da unidade das
matemáticas (isto é, da aritmética, da geometria e da música ou
harmonia) é, simultaneamente, a destruição da cosmologia
pitagórica. Todavia, é exatamente essa dificuldade que produzirá
os avanços da matemática grega, particularmente os estudos da
teoria das proporções.
Pitágoras retratado no afresco ‘Scuola di Atene’ (A Escola de
Atenas - ilustração representa o conhecimento filosófico 1508-1511) de
Raffaello Sanzio (1483-1520), localizado no Museu do Vaticano (Stanza
della Segnatura). Junto a Michelângelo e da Vinci, Rafael é um dos três
grandes mestres do Alto Renascimento (e o mais jovem entre eles).
Rafael Sanzio foi discípulo de Perugino e contemporâneo de Leonardo
da Vinci, Michelângelo e Fra Bartolommeo. O afresco Escola de Atenas
é uma das suas mais admiradas obras, pintado a pedido do Papa Júlio II,
no salão de sua biblioteca particular, no Vaticano. Na Escola de Atenas
Rafael dispôs figuras de sábios de diferentes épocas como se fossem
colegas de uma mesma academia. Na composição dos personagens
destaca-se Platão, segurando sua obra Timaeus, e apontando sua mão
direita para cima, talvez referindo-se às causas de todas as coisas.
Segundo Fowler [3], pág. ii, o título original do afresco era Causarum
Cognitio, e somente após o século XVII passou-se a usar o nome
popular Escola de Atenas. Também no centro da Escola de Atenas, ao
lado esquerdo de Platão e portando sua obra Ética, está Aristóteles, seu
discípulo, e que viveu até 322 a.C.. Abaixo, no detalhe, Pitágoras e a
ilustração da tetráktys.
AULA 43.
PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE V)
No estudo de sons musicais em cordas
esticadas (com a mesma tensão relativa), descobriuse as regras que relacionavam a altura da nota
emitida com o comprimento da corda, concluindo
que as relações que produziam sons harmoniosos
seguiam a proporção dos números inteiros simples
do tipo 1/2, 2/3, 3/4, etc.. Assim, Pitágoras concluiu
que havia uma música que representava as relações
numéricas da natureza e que constituía sua harmonia
interior.
Os pitagóricos estudaram a natureza dos
números e, baseado nesta natureza, criaram sua
filosofia e modo de vida. Recordemos como definir
números pares e ímpares de acordo com a concepção
pitagórica:
PAR é o número que pode ser dividido em
duas partes iguais, sem que uma unidade fique no
meio;
ÍMPAR é aquele que não pode ser dividido em
duas partes iguais, porque sempre há uma unidade
no meio.
Uma outra caracterização, mostra-nos a
preocupação com a natureza dos números:
NÚMERO PAR é aquele que tanto pode ser
dividido em duas partes iguais como em partes
desiguais, mas de forma tal que em nenhuma destas
divisões haja uma mistura da natureza par com a
natureza ímpar, nem da ímpar com a par. Isto tem
uma única exceção, que é o princípio do par, o
número 2, que não admite a divisão em partes
desiguais, porque ele é formado por duas unidades
e, se isto pode ser dito, do primeiro número par, 2.
Para exemplificar o que está acima, considere
o número 10, que é par, e pode ser dividido como a
soma de 5 e 5, mas também como a soma de 7 e 3
(que são ambos ímpares) ou como a soma de 6 e 4
(ambos são pares); mas nunca como a soma de um
número par e outro ímpar. Já o número 11, que é
ímpar, pode ser escrito como soma de 8 e 3, um par e
um ímpar.
Atualmente, definimos números pares como
sendo o número que ao ser dividido por dois têm
resto zero e números ímpares aqueles que ao serem
divididos por dois têm resto diferente de zero. Por
exemplo, 12 dividido por 2 têm resto zero, portanto
12 é par. Já o número 13 ao ser dividido por 2 deixa
resto 1, portanto, 13 é ímpar.
Dizemos também que dois números são
amigos se cada um deles é igual à soma dos
divisores próprios do outro.
Os divisores próprios de um número positivo
N são todos os divisores inteiros positivos de N
exceto o próprio N.
Exemplo de números amigos são 220 e 284,
pois os divisores próprios de 220 são 1, 2, 4, 5, 10, 11,
20, 22, 44, 55 e 110. Efetuando a soma destes
números obtemos o resultado 284.
1 + 2 + 4 + 5 + 10 + 11 + 20 + 22 + 44 + 55 + 110 = 284
Os divisores próprios de 284 são 1, 2, 4, 71 e
142, efetuando a soma destes números obtemos o
resultado 220.
1 + 2 + 4 + 71 + 142 = 220
A descoberta deste par de números é atribuída
Pitágoras.
Houve uma aura mística em torno deste par de
números, e estes representaram papel importante na
magia, feitiçaria, na astrologia e na determinação de
horóscopos.
Outros números amigos foram descobertos
com o passar do tempo. Pierre Fermat (1601-1665)
anunciou em 1636 um novo par de números amigos
formado por 17296 e 18416, mas na verdade tratou-se
de uma redescoberta, pois o árabe Al-Banna (12561321) já havia encontrado este mesmo par de
números no final do século XIII. Leonardo Euler
(1707-1783),
matemático
suíço,
estudou
sistematicamente os números amigos e descobriu,
em 1747, uma lista de trinta pares, e ampliada por ele
mais tarde para mais de sessenta pares. A título de
curiosidade, todos os números amigos inferiores a
um bilhão já foram encontrados.
AULA 44.
MEIO AMBIENTE
JOÃO LIXEIRO
João era um lixeiro diferente. Sua presença fazia-se notar já pelas roupas que usava: eram limpas. João, em sua
sabedoria popular, dizia que o externo é o reflexo do interno.
Era de uma família tradicional de lixeiros, onde o pai, “seu” Alvino, orgulhava-se cada vez que nascia um
homem na família, porque naqueles tempos somente os homens poderiam ser lixeiros.
João era um deles. Nas suas andanças pelas ruas da cidade, apresentava-se sempre sorridente, compenetrado e
feliz, pois sabia, por conhecimento tradicional, que alguém deveria sempre recolher o lixo das atitudes humanas.
Considerava honroso esse trabalho, pois sabia que só os evoluídos podem reconhecer o lixo. Os outros são apenas
inocentes fazedores de lixo!
João não se casava, porque as mulheres de sua época não conseguiam ver riquezas em reconhecedores de lixo,
lixeiros, e tão somente nos fazedores de lixo.
Gostava de ficar perto de grupos, pois sabia que mais cedo ou mais tarde entrariam em discussão e, então,
sobrariam muitos pedaços de papéis esvoaçando pelo ar, tal como palavras caluniadoras. Procurava recolher tão
depressa quanto possível estes pedaços e guardá-los em seu silêncio, pois sabia que se não agisse rapidamente o mal se
espalharia.
“LIMPAR, LIMPAR, LIMPAR” era seu lema, pois acreditava em um mundo limpo.
João morreu e foi enterrado em uma esquina suja. Está no ar, pairando até hoje, e sua esperança de que,
conforme ele dizia, “depende de você...”.
“Um grande homem cria um mundo bem melhor para todos”.
Dr. Celso Charuri
PRÊMIO DA ACADEMIA LITERÁRIA
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira.
Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1947.
SUGESTÃO DE FILME: “ILHA DAS FLORES”
http://www.youtube.com/watch?v=Zfo4Uyf5sgg&mode=related&search=
http://www.youtube.com/watch?v=6IrGibVoBME&mode=related&search=
EXERCÍCIO:
1. Das três maneiras de abordar o tema “lixo” visto acima, qual chamou-lhe mais a atenção? Justifique sua resposta.
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AULA 45.
XENÓFANES DE COLOFON (cerca de 570-528 a.C.)
Segundo Apolodoro, Xenófanes nasceu em
Colofon, na Jônia, de onde se viu forçado a emigrar,
quando ainda jovem, levando então vida errante. Passou
parte de sua vida na Sicília. Alguns estudiosos duvidam
de sua ligação com Eléia. Restaram de suas obras alguns
fragmentos, sendo que uns são satíricos. Ficou famoso
pelos ataques aos poetas Hesíodo e Homero e aos
pensadores Tales, Pitágoras e Epimênides. Zombou dos
atletas, preferindo a sua sabedoria aos feitos atléticos, que
não enchiam celeiros. Sua importância para a filosofia e
para o surgimento da Escola Eleata repousa no fato de
criticar o senso comum que não faz distinção entre a
experiência sensorial e a razão. Procurou também criticar
os aspectos antropomórficos dos deuses míticos,
submetidos a paixões e desejos humanos, uma vez que
esses deuses eram imaginados com características
humanas. Xenófanes afirmou a existência de um deus
único, com poder absoluto, clarividência infalível, isento
de paixões, absolutamente justo e imóvel. Sem forma
humana ou qualquer outra conhecida por nós, “vê tudo,
pensa tudo e compreende tudo”, governando todas as
coisas pela penetração de seu espírito e habitando sempre
o mesmo lugar. Não se move, isto é, não sofre mudanças,
não está sujeito ao tempo e ao devir. Imóvel, é sempre
idêntico a si mesmo, eterno, uno e todo. Teve como
discípulo Parmênides.
FRAGMENTOS SELECIONADOS:
5. oÙdš ken ™n kÚliki prÒteron ker£seiš tij onon
™gcšaj, ¢ll’ Ûdwr kaˆ kaqÚperqe mšqu.
Ninguém temperaria o vinho vertendo-o primeiro
na taça, mas a água e por cima o vinho puro.
7. nàn aât’ ¥llon œpeimi lÒgon, de…xw d kšleuqon.
ka… potš min stuφelizomšnou skÚlakoj pariÒnta
φasˆn ™poikt‹rai kaˆ tÒde φ£sqai œpoj·
paàsai, mhd ·£piz, ™peˆ à φ…lou ¢nšroj ™stˆn
ψuc», t¾n œgnwn φqegxamšnhj ¢…èn.
Agora passarei de novo a outro assunto e indicarei o caminho.
E uma vez, passando por um cãozinho que espancavam,
apiedou-se, dizem, e falou o seguinte:
Pára! Não batas mais! pois é a alma de um amigo,
reconheci-a ao ouvir sua voz.
14. ¢ll’ oƒ brotoˆ dokšousi genn©sqai qeoÚj,
t¾n sφetšrhn d’ ™sqÁta œcein φwn»n te dšmaj te.
Mas os mortais acreditam que os deuses são gerados,
que como eles se vestem e têm voz e corpo.
15. ¢ll’ e„ ce‹raj œcon bÒej <†ppoi t’> º lšontej
À gr£ψai ce…ressi kaˆ œrga tele‹n ¤per ¥ndrej,
†ppoi mšn q’ †ppoisi bÒej dš te bousˆn Ðmo…aj
ka… <ke> qeîn „dšaj œgraφon kaˆ sèmat’ ™po…oun
toiaàq’ oŒÒn per kaÙtoˆ dšmaj econ <›kastoi>.
Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões
e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens,
os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois,
desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam
tais quais eles próprios têm.
AULA 46.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE XENÓFANES DE COLOFON (PARTE II)
16. A„q…opšj te <qeoÝj sφetšrouj> simoÝj mšlan£j te
QrÁikšj te glaukoÝj kaˆ purroÚj <φasi pšlesqai>.
Os etíopes dizem que os deuses têm nariz chato e são negros,
os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos.
18. oÜtoi ¢p’ ¢rcÁj p£nta qeoˆ qnhto‹s’ Øpšdeixan,
¢ll¦ crÒnwi zhtoàntej ™φeur…skousin ¥meinon.
Não, de início os deuses não desvendaram tudo aos mortais;
mas, com o tempo, procurando, estes descobriram o melhor.
19. doke‹ d kat£ tinaj prîtoj ¢strologÁsai kaˆ ¹liak¦j
™kle…ψeij kaˆ trop¦j proeipe‹n, éj φhsin EÜdhmoj ™n tÁi perˆ
tîn 'Astrologoumšnwn ƒstor…ai, Óqen aÙtÕn kaˆ X. kaˆ `HrÒdotoj qaum£zei.
Parece que [Tales], segundo alguns, foi o primeiro a estudar os astros e a prever
eclipses solares e solstícios, como diz Eudemo em sua investigação sobre
a Astronomia, motivo pelo qual tanto Xenófanes quanto Heródoto o admirar.
23. eŒj qeÒj, œn te qeo‹si kaˆ ¢nqrèpoisi mšgistoj,
oÜti dšmaj qnhto‹sin Ðmo…ioj oÙd nÒhma.
Um único Deus, entre deuses e homens o maior,
em nada no corpo semelhante aos mortais, nem no pensamento.
25. ¢ll’ ¢p£neuqe pÒnoio nÒou φrenˆ p£nta krada…nei.
Mas, sem esforço, tudo estremece com o pensar da mente.
27. ™k ga…hj g¦r p£nta kaˆ e„j gÁn p£nta teleut©i.
Pois tudo vem da terra e na terra tudo termina.
31. ºšliÒj q’ Øperišmenoj ga‹£n t’ ™piq£lpwn.
O sol lançando-se por sobre a terra e aquecendo-a.
33. p£ntej g¦r ga…hj te kaˆ Ûdatoj ™kgenÒmesqa.
Pois todos nascemos da terra e da água.
34. kaˆ tÕ mn oân saφj oÜtij ¢n¾r ‡den oÙdš tij œstai
e„dëj ¢mφˆ qeîn te kaˆ ¤ssa lšgw perˆ p£ntwn·
e„ g¦r kaˆ t¦ m£lista tÚcoi tetelesmšnon e„pèn,
aÙtÕj Ómwj oÙk ode· dÒkoj d’ ™pˆ p©si tštuktai.
E o que é claro, portanto, nenhum homem viu, nem haverá alguém que
conheça sobre os deuses e acerca de tudo o que digo;
pois ainda que no máximo acontecesse dizer o que é perfeito,
ele próprio não saberia; a respeito de tudo existe uma opinião.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 47.
EXERCÍCIOS:
1. A partir do estudo de Pitágoras de Samos, faça um resumo, usando no mínimo 15 linhas, sobre a
vida e obra deste pensador.
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2. Escolha três (3) fragmentos atribuídos a Xenófanes de Colofon e explique o motivo de sua
escolha.
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AULA 48.
HERÁCLITO DE ÉFESO (cerca de 540-470 a.C.)
Heráclito, filho de Blóson, nasceu em Éfeso, na Jônia,
atual Turquia. Era de família aristocrata (seu pai descendia do
fundador de Éfeso, o rei Andóclos, que descendia do rei de
Atenas, Codros) que ainda conservava a prerrogativa de usar
títulos régios dos fundadores da cidade (isto é, ser chamado de
arconte, usar manto púrpura e carregar um cetro). Seu caráter
altivo, misantrópico e melancólico ficou proverbial em toda
antigüidade. Desprezava a plebe. Recusou-se sempre a intervir
na política. Manifestou desprezo pelos antigos poetas, contra os
filósofos de seu tempo e até contra a religião. Sem ter tido
mestre, Heráclito escreveu um livro “Sobre a Natureza”, em
prosa, no dialeto jônico, mas de forma tão concisa que recebeu o
apelido de skoteinÒj, o Obscuro. Floresceu em 504-500 a.C.,
por ocasião da 69ª Olimpíada. Heráclito é por muitos
considerado o mais eminente pensador pré-socrático, por
formular o problema da unidade permanente do ser diante da
pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias.
Estabeleceu a existência de uma lei universal e fixa (o lÒgoj),
regedora de todos os acontecimentos particulares e fundamento
da harmonia universal, harmonia feita de tensões, como do “arco
e da lira”.
Heráclito é um dos raros pré-socráticos de que
possuímos fragmentos (ao todo, 132 ou 135), nos quais alguns
traços podem ser claramente percebidos: o sentimento
aristocrático (“um só é dez mil para mim, se é o melhor”); a
ironia contra a polymathie (polumaq…h) de Pitágoras, isto é, a
erudição sobre minúcias e detalhes de inúmeras coisas, sem
alcançar a unidade e profundidade delas (“o fato de aprender
muitas coisas não instrui a inteligência: do contrário teria
instruído Hesíodo e Pitágoras”, lemos no fragmento 40).
Considerado por muitos como o mais importante dos
pré-socráticos, durante os últimos vinte e cinco séculos
Heráclito não cessou de ser lido, citado, comentado e
interpretado das mais variadas maneiras. Com Parmênides de
Eléia, pode ser considerado como o fundador da filosofia:
ambos colocaram os problemas e as soluções, as questões e as
respostas, as interrogações e os impasses que definira, nos
séculos seguintes, a reflexão filosófica.
Heráclito também se refere ao oráculo de Delfos com
respeito: “o senhor, de que é adivinho em Delfos, não diz nem
oculta o seu pensamento, mas o faz ser visto por sinais” (frag.
93: Ð ¥nax, oá tÕ mante‹Òn ™sti tÕ ™n Delφo‹j, oÜte lšgei
oÜte rÚptei ¢ll¦ shma…nei). Com esse fragmento, Heráclito
nos dá a entender que conhecer é decifrar e interpretar signos e
que a verdade é a ¢l»qeia (alétheia) ou o que se desoculta por
meio de sinais. Mas quem nos envia sinais? A resposta encontrase num outro fragmento (50), onde lemos: “é sábio escutar não a
mim, mas ao lÒgoj que por mim fala e concordar que tudo é
um” (oÙk ™moà, ¢ll¦ toà lÒgou ¢koÚsantaj Ðmologe‹n
soφÒn ™stin n p£nta enai). Os sinais da verdade são
enviados pelo lÒgoj, isto é, pelo pensamento e pela palavra.
Esse pensamento e essa palavra não são os nossos — não é a
mim que se deve escutar, escreve Heráclito — mas são uma
razão e uma linguagem universais, a presença do divino na
natureza e em nós.
Heráclito foi alcunhado de “o fazedor de enigmas” e
“o Obscuro”. Essas alcunhas provavelmente vieram de sua
concepção oracular do pensamento e da linguagem como fonte
de sinais que “não manifestam nem ocultam”, mas se oferecem
como algo a ser decifrado e interpretado.
O lÒgoj diz que “tudo é um”. Como, então,
compreender a multiplicidade e diversidade de todas as coisas?
O lÒgoj também ensina que “a guerra é rei e pai de todas as
coisas”. Como, então, compreender que elas formam e são a
unidade? Mas, que é o lÒgoj? É a φÚsij ou o “fogo primordial”
que arde eternamente. Que significa identificar φÚsij e lÒgoj?
Significa afirmar que o mundo é um kÒsmoj ou uma ordem
racional porque seu princípio — sua ¢rc» e sua φÚsij — é a
própria razão — o lÒgoj.
Um exemplo, atribuído ao próprio Heráclito, pode nos
ajudar a compreender o fluxo universal como transformação sob
a aparência da permanência. Quando a vela está acesa, temos a
impressão de que a chama é estável e idêntica a si mesma e que
o que muda é a quantidade de cera da vela, que vai sendo
consumida pela chama. Na verdade, porém, a chama é um
processo de transformação: nela, a cera da vela se torna fogo e
nela o fogo se torna fumaça. Assim, não só a vela se transforma
como também a própria chama que a consome, pois é
consumida pela fumaça.
O fluxo perpétuo do mundo não é caótico nem
arbitrário, mas segue uma lei que Heráclito apresenta num de
seus mais celebres fragmentos (53): “a guerra (pÒlemoj) é o pai
e o rei de todas as coisas”. Contra a tradição dos poemas de
Homero e contra a posição de Anaximandro, nas quais a
discórdia e a guerra são injustiça enquanto a concórdia e a paz
são justiça, Heráclito afirma que “a guerra é comunidade”, isto
é, a guerra é o que põe as coisas juntas para formar um mundo
em comum, e, portanto, a luta dos contrários é harmonia e
justiça. Como as cordas da lira, tendidas ao máximo pelo arco,
produzem os mais perfeitos acordes e as mais perfeitas
melodias, assim também a harmonia do mundo nasce da tensão
entre os opostos. Lemos no fragmento 51: “o que se opõe a si
mesmo está em acordo consigo mesmo; harmonia e tensões
contrárias como as do arco e da lira” (oÙ xuni©sin Ókwj
diaφerÒmenon ˜wutîi Ðmologšei· pal…ntropoj ¡rmon…h
Ókwsper tÒxou kaˆ lÚrhj). Enganam-se, pois, os que supõem
que a realidade é tranqüila e inerte. Ela é inquieta e móvel,
tensa, concordante porque discordante, e da guerra nasce a
ordem ou o cosmos, equilíbrio dinâmico de forças contrárias que
coexistem e se sucedem sem cessar. A unidade do mundo é sua
multiplicidade. Tudo é um porque o um é tudo ou todas as
coisas.
AULA 49.
HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)
A multiplicidade móvel e a luta dos contrários não é
uma dispersão sem fundo. O vulgo e o senso comum são
incapazes de compreender o sentido de “tudo é um” porque
acreditam que cada oposto poderia existir sem o seu oposto e
olham as coisas como uma multiplicidade de seres separados
uns dos outros. Em outras palavras, não percebem que a
multiplicidade é unidade e a unidade, multiplicidade, pois cada
contrário nasce do seu contrário e faz nascer o seu contrário, isto
é, são inseparáveis. A noite traz dentro de si o dia e este traz
dentro de si a noite; o frio traz dentro de si o quente e o quente
traz dentro de si o frio; a necessidade traz dentro de si o acaso e
o acaso traz dentro de si a necessidade; a saúde traz dentro de si
a doença e a doença traz dentro de si a saúde; a beleza traz
dentro de si a feiúra e a feiúra traz dentro de si a beleza; a vida
traz dentro de si a morte e a morte traz dentro de si a vida. O um
é múltiplo e o múltiplo é um. Essa afirmação nuclear do
pensamento de Heráclito não deve ser entendida como a
entendemos nos outros pré-socráticos. De fato, para estes, há
uma unidade primordial (a φÚsij) que, mantendo-se em sua
unidade eterna, dá origem à multiplicidade das coisas por meio
de movimentos de separação e diferenciação. Ou seja, a unidade
primordial não se confunde com a multiplicidade nascida dela.
Não é o que pensa e diz Heráclito. Para ele, a unidade
primordial é múltipla, o um existe múltiplo, é múltiplo. “Tudo é
um” significa que a multiplicidade tensa, contraditória ou em
luta é a unidade e a comunidade de todas as coisas.
Como se dá a unidade do múltiplo e a multiplicidade
do um? Pela φÚsij. Lemos no fragmento 30: “este mundo, o
mesmo e comum para todos, nenhum dos deuses e nenhum
homem o fez; mas era, é e será um fogo sempre vivo,
acendendo-se e apagando-se conforme a medida” (kÒsmon
tÒnde, tÕn aÙtÕn ¡p£ntwn, oÜte tij qeîn oÜte ¢nqrèpwn
™po…hsen, ¢ll’ Ãn ¢eˆ kaˆ œstin kaˆ œstai pàr ¢e… zwon,
¡ptÒmenon mštra kaˆ ¢posbennÚmenon mštra).
O fogo de que fala Heráclito não é o quente, ou o fogo
percebido por nossos sentidos, pois o calor já é uma qualidade
determinada que, juntamente com o frio, o seco e o úmido,
move-se no mundo. O fogo primordial, que ninguém — nem
deuses nem homens — fez é a origem sempre viva e eterna de
todas as coisas.
φÚsij e lÒgoj, o fogo primordial é uma força em
movimento, uma ação em que faz de si mesmo todas as coisas e
todas elas são ele mesmo. Ele é como a chama da vela, mas uma
chama eterna, acendendo-se e apagando-se sem cessar.
Ora, o fragmento acima citado diz que o fogo sempre
vivo se acende e se apaga “conforme a medida”. Que pretende
Heráclito significar com isso?
A palavra “medida” possui em grego (e também no
latim) dois sentidos. O verbo “medir” significa mensurar, isto é,
atribuir uma certa quantidade a alguma coisa; mas também
significa moderar, isto é, impor um limite a alguma coisa e a
moderação é um ato justo ou de justiça. Quando Heráclito
identifica φÚsij e lÒgoj, e declara que o fogo age “conforme a
medida”, toma “medida” e “medir” nos dois sentidos, ou seja, o
fogo primordial se distribui quantitativamente em todas as
coisas em quantidades perfeitamente determinadas e o fogo
primordial delimita todas as coisas para que nelas não haja
excesso nem falta. A φÚsij é lÒgoj porque mede e modera as
coisas, dá-lhes um ser determinado e conforme à necessidade de
cada uma delas, ele as faz racionais, proporcionais umas às
outras, harmoniosas em suas oposições. O devir, esse acender-se
e apagar-se contínuo do fogo primordial, assegura a
permanência — a medida de cada coisa — e a lei de sua
mudança — passar de uma medida a outra medida. A cada
medida que se apaga, uma outra se acende, eternamente.
Quando a água se evapora, uma medida de úmido se apaga e
uma medida de quente se acende; quando a água evaporada se
condensa em nuvens, uma medida de quente se apaga e uma
medida de úmido se acende. E assim sempre e com todas as
coisas.
Heráclito fala nas medidas como “exalações do fogo”
e as distingue em medidas ou exalações claras e obscuras. O
quente é a mais perfeita expressão das primeiras; o úmido, a
mais completa expressão das segundas. São claras ou do “fogo
ardente”: o sol, a luz, o calor, a vida, a saúde, a beleza, o
conhecimento. São obscuras ou do “fogo apagado”: a noite, a
treva, o frio, a morte, a doença, a feiúra, a ignorância. E há a
guerra entre as medidas, guerra que é ordem e justiça do mundo.
Porque a medida é a moderação dos contrários, a
guerra das medidas ou dos opostos não é violência e tirania,
opulência de uns ao preço da indigência de outros. A natureza,
sempre justa e moderadora, nunca leva ao excesso ou à carência;
nela, os contrários em luta se compensam uns aos outros. Ou,
como diz Heráclito, o fogo primordial nunca excede suas
medidas e é isto sua justiça (d…kh).
Lemos também no fragmento 83 que o mais sábio dos
homens, se comparado ao deus, é apenas um símio. Porém, num
outro fragmento, o 82, é dito que o mais belo símio é feio, se
comparado ao homem. Heráclito mantém, portanto, a idéia de
que a sabedoria e a verdade plenas pertencem à divindade (ao
lÒgoj) e que o homem pode apenas amá-las e procurá-las. Eis
por que afirma que é sábio escutar “não a mim, mas ao lÒgoj
que por mim fala”, no fragmento 50. E pelo mesmo motivo, o
“Obscuro” critica o vulgo ou o senso comum, incapaz de ir além
do que a experiência sensorial lhe oferece e de compreender que
tudo é um, tudo é múltiplo, tudo flui e que a permanência é
mudança.
O fragmento 101 recolhido por Plutarco diz: “procureime a mim mesmo” (™dizhs£mhn ™mewutÒn). Que seria essa
procura? No fragmento 79 recolhido por Numênio pode sugerir
uma resposta: “o homem, como uma criança, escuta o divino, tal
como a criança escuta o homem” (¢n¾r n»pioj ½kouse prÕj
da…monoj Ókwsper pa‹j prÕj ¢ndrÒj). Procurar-se é escutar o
lÒgoj que ama esconder-se na harmonia do invisível. Que
ensina o lÒgoj? Não apenas que a guerra é o rei e o pai de todas
as coisas segundo a medida, mas também, conforme o
fragmento 89 mencionado por Plutarco, que há “um mundo
único e comum”, conhecido pelos que estão despertos (os
sábios) e ignorado pelos que, “adormecidos, revolvem-se no
próprio leito” (to‹j ™grhgorÒsin ›na kaˆ koinÕn kÒsmon
enai, tîn d koimwmšnwn ›kaston e„j ‡dion
¢postršφesqai). Procurar-se a si mesmo — ou conhecer — é
colocar-se em consonância com o lÒgoj.
Conhecer é decifrar e interpretar a natureza que ama
ocultar-se. O conhecimento é um movimento espiritual da alma
que sabe usar os olhos e os ouvidos quando aprendeu a “pensar
a si mesma”. A alma, mistura de água, ar e fogo, úmida, fria ou
quente, será tanto mais racional quanto mais nela prevalecerem
as medidas de fogo sobre as de água e ar. Pela respiração, a alma
absorve o fogo e por isso, quando o ritmo da respiração baixa,
sua capacidade de conhecimento também baixa: sono, sonho.
Também baixa quando a medida da água suplanta a do fogo:
embriaguez, doença. O senso comum se parece com o sono e
com a embriaguez, com a alma “bárbara” que não sabe ver,
ouvir, falar nem pensar.
AULA 50.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE I)
3. (perˆ megšqouj ¹l…ou) eâroj podÕj ¢nqrwpe…ou.
(Sobre a grandeza do sol) sua largura é a de um pé humano.
6. Ð ¼lioj oÙ mÒnon, kaq£per Ð `H. φhsi, nšoj ™φ’ ¹mšrhi ™st…n, ¢ll’ ¢eˆ nšoj sunecîj.
O sol não apenas, como Heráclito diz, é novo cada dia, mas sempre novo, continuamente.
9. ˜tšra g¦r †ppou ¹don¾ kaˆ kunÕj kaˆ ¢nqrèpou, kaq£per `H. φhsin Ônouj sÚrmat’ ¨n ˜lšsqai
m©llon À crusÒn.
Diverso é o prazer do cavalo, do cão, do homem, tal como Heráclito diz que asnos prefeririam palha a
ouro.
30. kÒsmon tÒnde, tÕn aÙtÕn ¡p£ntwn, oÜte tij qeîn oÜte ¢nqrèpwn ™po…hsen, ¢ll’ Ãn ¢eˆ kaˆ œstin
kaˆ œstai pàr ¢e…zwon, ¡ptÒmenon mštra kaˆ ¢posbennÚmenon mštra.
Este mundo, o mesmo de todos os (seres), nenhum deus; nenhum homem o fez, mas era, é e será um
fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.
33. nÒmoj kaˆ boulÁi pe…qesqai ˜nÒj.
Lei (é) também persuadir-se à vontade um só.
34. ¢xÚnetoi ¢koÚsantej kwφo‹sin ™o…kasi· φ£tij aÙto‹sin marture‹ pareÒntaj ¢pe‹nai.
Ouvindo descompassados assemelham-se a surdos; o ditado lhes concerne: presentes estão ausentes.
38. [Thales] doke‹ d kat£ tinaj prîtoj ¢strologÁsai ... marture‹ d’ aÙtîi kaˆ `H. kaˆ DhmÒkritoj.
(Tales) parece segundo alguns ter sido o primeiro a estudar os astros. A seu respeito atestam Heráclito
e Demócrito.
40. polumaq…h nÒon œcein oÙ did£skei· `Hs…odon g¦r ¨n ™d…daxe kaˆ PuqagÒrhn aât…j te Xenoφ£ne£
te kaˆ `Ekata‹on.
Muita instrução não ensina a ter inteligência; pois teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, Xenófanes e
Hecateu.
45. ψucÁj pe…rata „ën oÙk ¨n ™xeÚroio, p©san ™piporeuÒmenoj ÐdÒn· oÛtw baqÝn lÒgon œcei.
Limites da alma não os encontraria, todo o caminho percorrendo; tão profundo lógos ela tem.
47. m¾ e„kÁ perˆ tîn meg…stwn sumballèmeqa.
Não conjeturemos à toa sobre as coisas supremas.
AULA 51.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE II)
49. eŒj ™moˆ mÚrioi, ™¦n ¥ristoj Ãi.
Um para mim vale mil, se for o melhor.
49a. potamo‹j to‹j aÙto‹j ™mba…nomšn te kaˆ oÙk ™mba…nomen, emšn te kaˆ oÙk emen.
Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.
51. kaˆ Óti toàto oÙk ‡sasi p£ntej oÙd Ðmologoàsin, ™pimšmφetai ïdš pwj· oÙ xuni©sin Ókwj
diaφerÒmenon ˜wutîi Ðmologšei· pal…ntropoj ¡rmon…h Ókwsper tÒxou kaˆ lÚrhj.
Não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de
arco e lira.
53. pÒlemoj p£ntwn mn pat»r ™sti, p£ntwn d basileÚj, kaˆ toÝj mn qeoÝj œdeixe toÝj d ¢nqrèpouj,
toÝj mn doÚlouj ™po…hse toÝj d ™leuqšrouj.
O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez
escravos, de outros livres.
58. oƒ goàn „atro…, tšmnontej, ka…ontej, p£nthi basan…zontej kakîj toÝj ¢rrwstoàntaj, ™paitšontai
mhdn ¥xioi misqÕn lamb£nein par¦ tîn ¢rrwstoÚntwn, taÙt¦ ™rgazÒmenoi, t¦ ¢gaq¦ kaˆ t¦j
nÒsouj.
Os médicos, quando cortam, queimam e de todo torturam os pacientes, ainda reclamam um salário que não
merecem, por efetuarem o mesmo que as doenças.
61. q£lassa Ûdwr kaqarètaton kaˆ miarètaton, „cqÚsi mn pÒtimon kaˆ swt»rion, ¢nqrèpoij d ¥poton
kaˆ Ñlšqrion.
Mar, água mais pura e mais impura, para os peixes potável e saudável, para os homens impotável e mortal.
70. `H. pa…dwn ¢qÚrmata nenÒmiken enai t¦ ¢nqrèpina dox£smata.
Jogos de criança Heráclito considerou as opiniões humanas.
75. toÝj kaqeÚdontaj omai Ð `H. ™rg£taj enai lšgei kaˆ sunergoÝj tîn ™n tîi kÒsmwi ginomšnwn.
Os que dormem, creio que chama Heráclito de obreiros e colaboradores (das coisas) que no mundo vêm a
ser.
82. PLATÃO, Hípias Maior, 289 a. piq»kwn Ð k£llistoj a„scrÕj ¢nqrèpwn gšnei sumb£llein.
O mais belo símio é feio, a se confrontar com o gênero humano.
83. Idem, ibidem, 289 b. ¢nqrèpwn Ð soφètatoj prÕj qeÕn p…qhkoj φane‹tai kaˆ soφ…ai kaˆ k£llei kaˆ
to‹j ¥lloij p©sin.
O mais sábio dos homens em face de deus se manifestará como um símio, em sabedoria, beleza e tudo o
mais.
AULA 52.
FRAGMENTOS SELECIONADOS DE HERÁCLITO DE ÉFESO (PARTE III)
87. bl¦x ¥nqrwpoj ™pˆ pantˆ lÒgwi ™ptoÁsqai φile‹.
Um homem tolo gosta de se empolgar a cada palavra.
89. Ð `H. φhsi to‹j ™grhgorÒsin ›na kaˆ koinÕn kÒsmon enai, tîn d koimwmšnwn ›kaston e„j ‡dion ¢postršφesqai.
Heráclito diz que para os despertos um mundo único e comum é, mas os que estão no leito cada um se revira para o
seu próprio.
90. purÒj te ¢ntamoib¾ t¦ p£nta kaˆ pàr ¡p£ntwn Ókwsper crusoà cr»mata kaˆ crhm£twn crusÒj.
Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas, tal como por ouro mercadorias e por mercadorias ouro.
101. ™dizhs£mhn ™mewutÒn.
Procurei-me a mim mesmo.
101a. Ñφqalmoˆ g¦r tîn êtwn ¢kribšsteroi m£rturej.
Pois os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos.
102. tîi mn qeîi kal¦ p£nta kaˆ ¢gaq¦ kaˆ d…kaia, ¥nqrwpoi d § mn ¥dika Øpeil»φasin § d d…kaia.
Para o deus são belas todas as coisas e boas e justas, mas os homens tomam umas (como) injustas, outras (como)
justas.
104. t…j g¦r aÙtîn nÒoj À φr»n; d»mwn ¢oido‹si pe…qontai kaˆ didask£lwi cre…wntai Ðm…lwi oÙk e„dÒtej Óti “oƒ
polloˆ kako…, Ñl…goi d ¢gaqo…”.
Pois que inteligência ou compreensão é a deles? Em cantores de rua acreditam e por mestre têm a massa, não sabendo
que “a maioria é ruim e poucos são bons”.
105. `H. ™nteàqen ¢strolÒgon φhsˆ tÕn “Omhron kaˆ ™n oŒj φhsi “mo‹ran d’ oÜ tin£ φhmi peφugmšnon œmmenai
¢ndrîn”.
Dessa passagem Heráclito afirma que astrólogo foi Homero, assim como daquela em que o poeta diz “do destino, eu
afirmo, jamais homem algum escapou”.
112. swφrone‹n ¢ret¾ meg…sth, kaˆ soφ…h ¢lhqša lšgein kaˆ poie‹n kat¦ φÚsin ™paontaj.
Pensar sensatamente (é) virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo (a) natureza, escutando.
113. xunÒn ™sti p©si tÕ φronšein.
Comum é a todos o pensar.
116. ¢nqrèpoisi p©si mštesti ginèskein ˜wutoÝj kaˆ swφrone‹n.
A todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmos e pensar sensatamente.
123. φÚsij d kaq’`Hr£kleiton krÚptesqai φile‹.
Natureza, segundo Heráclito, ama esconder-se.
AULA 53.
FILOSOFIA: UM PENSAMENTO SISTEMÁTICO
A filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos
meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e
criar uma propaganda.
As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.
Que significa isso?
Significa que a filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos
entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova,
exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode
fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si
mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter
respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar,
que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem
conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.
Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”,
engana-se e não se engana.
Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias
mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou
menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no
plano de um “eu acho” coerente.
Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito
confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma
filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que
a filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a filosofia tem uma vocação para formar um
todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana.
AULA 54.
PARMÊNIDES DE ELÉIA (cerca de 530-460 a.C.)
Parmênides nasceu em Eléia, hoje Vélia, na
Itália.
Foi
discípulo
do
pitagórico
Ameinias e mostrou conhecer a doutrina pitagórica.
Provavelmente também seguiu as lições do velho
Xenófanes. Em Atenas, com Zenão, combateu a filosofia
dos jônicos. Floresceu por volta de 500 a.C.. Platão
afirmou que Parmênides esteve em Atenas, onde se
encontrou com o jovem Sócrates e que, na ocasião, tinha
65 anos.
Enquanto os milésios e Heráclito escreveram em
prosa, Parmênides foi o primeiro filósofo a expor suas
idéias em verso. Seu famoso poema, do qual restam
alguns fragmentos, está escrito em hexâmetros (influência
provável de Xenófanes) e, nele, o filósofo-poeta se
apresenta como o Escolhido, conduzido pelas Filhas do
Sol à sua Musa, que, com a permissão da Justiça, revelalhe a Verdade e toda a Verdade. O poema é conhecido
como “Sobre a Natureza” (não se tem certeza se seria o
título original ou o título tardio, sempre dado às obras dos
pré-socráticos). A obra se divide em duas partes, após um
preâmbulo. A primeira ficou conhecida como a Via da
Verdade (¢l»qeia) e a segunda como a Via da Opinião
(dÒxa). Da primeira, há numerosos fragmentos, mas da
segunda restam poucos. Para muitos, a obra ergue-se
contra o pitagorismo (a dualidade par-ímpar como origem
da ordem do mundo) e contra Heráclito (o fluxo perpétuo
e a identidade do uno e do múltiplo). É sintomático que o
poema fale em duas vias ou dois caminhos que
correspondem à diferença entre a palavra inspirada
(¢l»qeia), a verdade como não-esquecimento do que foi
contemplado no invisível, e a palavra leiga das
assembléias (dÒxa), a verdade como decisão e opinião
compartilhada nas discussões públicas.
Acompanhemos alguns trechos do poema
parmenidiano:
FRAG. 1. 31-34
Óte sperco…ato pšmpein
`Hli£dej koàrai, prolipoàsai dèmata NuktÒj,
e„j φ£oj, çs£menai kr£twn ¥po cersˆ kalÚptraj.
œnqa pÚlai NuktÒj te kaˆ ”HmatÒj e„si keleÚqwn,
“quando se apressavam a enviar-me
as filhas do Sol, deixando as moradas da Noite,
para a luz, das cabeças retirando com as mãos os véus.
É lá que estão as portas aos caminhos de Noite e Dia,”
FRAG. 1. 37
tîn d D…kh polÚpoinoj œcei klh‹daj ¢moiboÚj.
“destes Justiça de muitas penas tem chaves alternantes”.
FRAG. 1. 45-49
ka… me qe¦ prÒφrwn Øpedšxato, ce‹ra d ceir…
dexiter¾n ›len, ïde d’ œpoj φ£to ka… me proshÚda·
ð koàr’ ¢qan£toisi sun£oroj ¹niÒcoisin,
†ppoij ta… se φšrousin ƒk£nwn ¹mšteron dî,
ca‹r’
“E a Deusa me acolheu benévola, e na sua a minha
mão direita tomou, e assim dizia e me interpelava:
Ó jovem, companheiro de aurigas imortais,
tu que assim conduzido pelas éguas chegas à nossa morada,
Salve!” ...
AULA 55.
PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE II)
FRAG. 1. 51-53
creë dš se p£nta puqšsqai
ºmn 'Alhqe…hj eÙkuklšoj ¢tremj Ãtor
ºd brotîn dÒxaj, ta‹j oÙk œni p…stij ¢lhq»j.
“é preciso que de tudo te instruas,
do âmago inabalável da verdade ('Alhqe…hj) bem redonda,
e das opiniões (dÒxaj) dos mortais, em que não há fé verdadeira”.
FRAG. 2. 7-34
™gën ™ršw, kÒmisai d sÝ màqon ¢koÚsaj,
a†per Ðdoˆ moànai diz»siÒj e„si noÁsai·
¹ mn Ópwj œstin te kaˆ æj oÙk œsti m¾ enai,
Peiqoàj ™sti kšleuqoj ('Alhqe…hi g¦r Ñphde‹),
¹ d’ æj oÙk œstin te kaˆ æj creèn ™sti m¾ enai,
t¾n d» toi φr£zw panapeuqša œmmen ¢tarpÒn·
oÜte g¦r ¨n gno…hj tÒ ge m¾ ™Õn (oÙ g¦r ¢nustÒn)
oÜte φr£saij.
“eu te direi, e tu, recebe a palavra que ouviste,
os únicos caminhos de inquérito que são a pensar:
o primeiro, que é; e, portanto, que não é não ser,
de Persuasão, é caminho, pois à verdade acompanha.
O outro, que não é; e, portanto, que é preciso não-ser.
Eu te digo que este último é atalho de todo não crível,
pois nem conhecerias o que não é,
nem o dirias...”
FRAG. 3. 7
... tÕ g¦r aÙtÕ noe‹n ™st…n te kaˆ enai.
“pois o mesmo é pensar e, portanto, ser”.
FRAG. 6. 8-9
cr¾ tÕ lšgein te noe‹n t’ ™Õn œmmenai· œsti g¦r enai,
mhdn d’ oÙk œstin· t£ s’ ™gë φr£zesqai ¥nwga.
“Necessário é o dizer e pensar que o ente é; pois é ser.
E nada não é. Isto eu te mando considerar”.
O que é novo neste poema é o fato de que, embora pareça pertencer ao universo da antiga ¢l»qeia
dos magos, poetas e adivinhos, a fala da Deusa já nada tem a ver com a linguagem sagrada dos mistérios.
Pelo contrário, é a razão quem fala, oferecendo argumentos compreensíveis e simples. O poema é filosofia.
Qual é o “âmago inabalável da verdade bem redonda”? Aquilo que é dito no final do fragmento 1, 52
citado e que, conforme estudos filológicos dos helenistas, pode ser assim transcrito: “é necessário pensar e
dizer isto: que o ente é, pois é ser; e que o nada não é, pois [é] não ser”. Ora, logo depois, o poema diz: “é o
mesmo pensar e ser” e podemos concluir que Parmênides tanto afirma que o que pode ser dito e pensado
deve ser (ou existir) como, inversamente, afirma que o ser é o que pode ser pensado e dito. E, por
contraposição, tanto declara que o nada, porque não é (não existe), não pode ser pensado nem dito, como,
inversamente, que o que não pode ser pensado nem dito, não é.
AULA 56.
PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE III)
Não julgue que esse poema é estranho apenas
para nossos ouvidos modernos. Ele foi estranho e
enigmático para os próprios gregos contemporâneos de
Parmênides. É que nas fórmulas extremamente
condensadas de seus versos estão colocadas as questões
fundamentais que, doravante, ocuparão a filosofia.
Que está dizendo Parmênides?
Que o ser é e o nada não é.
Que o ser pode ser pensado e dito.
Que o nada não pode ser pensado nem dito.
Que pensar e ser são o mesmo.
Que, portanto, o nada é não-ser e impensável.
Que dizer e ser são o mesmo.
Que, portanto, o nada é não-ser e indizível.
Mas que significa isso que Parmênides está
dizendo? E por que afirma ele que isso é o que a Deusa
lhe mostra na Via da Verdade, oposta à Via da Opinião
que os mortais costumam seguir?
Para muitos intérpretes, Parmênides teria, pela
primeira vez, formulado os dois princípios lógicos
fundamentais de todo o pensamento: o princípio da
identidade — o ser é o ser — e o princípio de nãocontradição — se o ser é, o seu contrário, não-ser, não é.
Em outros termos, se o ser é e pode ser pensado e dito,
então o ser é ele mesmo, idêntico a si mesmo e será
impossível que seu negativo, o nada ou não-ser, também
seja e também possa ser pensado e dito. A afirmação do
ser exige a negação de seu oposto, o não-ser. Parmênides
teria descoberto a lei fundamental do pensamento
verdadeiro, pela qual é impossível afirmar ao mesmo
tempo uma coisa e seu contrário. Ora, é próprio da dÒxa
permitir e estimular o confronto de idéias contrárias,
aceitando igualmente a validade de ambas. Se assim é,
então a Via da Opinião é aquela que não respeita a
identidade e a não-contradição, e por isso é a via do falso.
Para outros intérpretes, porém, o mais importante
na formulação parmenidiana não é seu aspecto lógico
(este aspecto seria apenas um derivado ou um efeito) e
sim seu aspecto ontológico. Ou melhor, com Parmênides
teria nascido o que conhecemos como ontologia.
Por que ontologia?
No grego, o particípio presente do verbo ser é
ên, oâsa, Ôn (masculino, feminino e neutro) e, no dialeto
jônico, empregado por Parmênides, esse particípio é Ÿwn,
Ÿousa, ™Õn. Esse particípio pode ser usado como
substantivo singular e plural, no masculino, no feminino e
no neutro. Os usos substantivados mais freqüentes eram:
1) no masculino singular, Ð ên (Ÿwn), o que é ou aquele
que é e, no masculino plural, oƒ Ôntej (Ÿontej), os
viventes, os que vivem; 2) no neutro singular, tÒ Ôn (™Õn),
o ente, o ser; no neutro plural, t£ Ônta (Ÿonta), as coisas
existentes. Usando-se a partícula negativa m», pode-se
dizer: m» Ôn (™Õn), o não-ente, o não-ser; e no plural m»
Ônta (Ÿonta), os não-entes, as não-coisas, os não-seres.
Ontologia é, portanto, o estudo do ser ou o pensamento do
ser.
Essas palavras encontram-se em todo o poema de
Parmênides e nos trechos que foram estudados, e é por
isso que muitos intérpretes consideram que a ontologia
nasce quando Parmênides afirma que a ¢rc» é o ser ou o
que é, o ente — o ™Õn — e que o não-ser, o não-ente —
m» ™Õn — não é. E convém observar a radicalidade de
Parmênides: ele não considera que podemos pensar e
dizer o que existe e não podemos pensar e dizer o que não
existe, e sim que o que é pensável e dizível existe, e que o
que não é pensável nem dizível não existe. Pela primeira
vez é afirmada a identidade entre ser, pensar e dizer, ou
entre mundo, pensamento e linguagem. Tal identidade é o
núcleo da ontologia parmenidiana ou a Via da Verdade.
Por que a opinião (dÒxa) é o caminho do nãoser? A que se refere a opinião? Ao que parece ser de um
certo modo, mas nada impede que pudesse ser de outro
para uma outra pessoa, ou em outro momento de nossa
vida. Nela exprimimos nossas preferências, nossos
sentimentos e interesses, que variam de pessoa para
pessoa e variam numa mesma pessoa, dependendo das
circunstâncias. A “Opinião” são opiniões instáveis,
mutáveis, efêmeras e por isso no fragmento 1, 53 do
poema de Parmênides diz: “as opiniões dos mortais, em
que não há verdadeira fidelidade”, isto é, em que não
podemos confiar nem nos fiar, pois mudam sempre.
Referindo-se ao que nos parece ser “assim” mas poderia
ser de outra maneira, a dÒxa depende das variações de
estados de nossos corpos e das situações de nossas vidas.
Porém, não só isso. Sua variação contínua indica que nela
não temos conhecimento verdadeiro daquilo que é, do ser,
mas apenas o conhecimento das aparências das coisas,
isto é, de como elas aparecem aos nossos órgãos dos
sentidos. Ora, o que é uma aparência? Aquilo que pode
deixar de aparecer como está aparecendo, aquilo que
poderia não ser tal como aparece. Em outras palavras, se
a aparência é o que alguma coisa nos parece ser, mas pode
não ser tal como aparece, então ela é o não-ente, o nãoser.
Se o ser é o que permanece sempre idêntico a si
mesmo, onde melhor se mostra a aparência enquanto
aparência? Na mudança contínua. No deixar de ser uma
maneira para tornar-se de outra. Numa palavra, no devir,
no incessante vir a ser em que as coisas se tornam outras,
tornando-se o que não são. O devir é movimento — a
k…nhsij, mudança qualitativa, quantitativa e local. Por
isso o movimento é o campo principal da aparência e da
opinião: as coisas parecem mudar e as opiniões mudam
com elas. O devir é aparência mutável, é o não-ser.
AULA 57.
PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE IV)
No prosseguimento do poema, Parmênides argumentará a partir de uma única premissa, a saber, o ser é o
não-ser não é. Dessa premissa virão, como conseqüência, que o ser é imóvel, uno, eterno, único, indivisível,
indestrutível e pleno ou contínuo.
FRAG. 8. 3-9
æj ¢gšnhton ™Õn kaˆ ¢nèleqrÒn ™stin,
™sti g¦r oÙlomelšj te kaˆ ¢tremj ºd’ ¢tšleston·
oÙdš pot’ Ãn oÙd’ œstai, ™peˆ nàn œstin Ðmoà p©n,
›n, sunecšj· t…na g¦r gšnnan diz»seai aÙtoà;
pÁi pÒqen aÙxhqšn; oÙd’ ™k m¾ ™Òntoj ™£ssw
φ£sqai s’ oÙd noe‹n· oÙ g¦r φatÕn oÙd nohtÒn
œstin Ópwj oÙk œsti.
Que o ser é engendrado, e também é imperecível:
com efeito, é todo inteiro, inabalável e sem fim.
Nem outrora foi, nem será, porque é agora tudo de uma só vez,
uno, contínuo. Que origem buscarás para ele?
Como e onde teria crescido? Do não-ser, não te permito
dizê-lo nem pensá-lo: não é possível dizer nem pensar
o que não é (...)
FRAG. 8. 12-14
oÙdš pot’ ™k m¾ ™Òntoj ™φ»sei p…stioj „scÚj
g…gnesqa… ti par’ aÙtÒ· toà e†neken oÜte genšsqai
oÜt’ Ôllusqai ¢nÁke D…kh
E nem sequer do ser concederá a força da crença veraz
que nasça algo diferente dele mesmo; por esta razão, nem o nascer
nem o morrer lhe concedeu Justiça (...)
FRAG. 8. 19-21
pîj d’ ¨n œpeit’ ¢pÒloito ™Òn; pîj d’ ¥n ke gšnoito;
e„ g¦r œgent’, oÙk œst(i), oÙd’ e‡ pote mšllei œsesqai.
tëj gšnesij mn ¢pšsbestai kaˆ ¥pustoj Ôleqroj.
E como poderia existir o ser no futuro? E como poderia nascer?
Se nasce, não é; e tampouco é, se é para ser no futuro.
E assim se apaga o nascer e desaparece o perecer.
FRAG. 8. 23-25
oÙdš ti tÁi m©llon, tÒ ken e‡rgoi min sunšcesqai,
oÙdš ti ceirÒteron, p©n d’ œmpleÒn ™stin ™Òntoj.
tîi xunecj p©n ™stin.
Nem existe não-ser que lhe impeça alcançar a plenitude
nem pode ser ora mais pleno, ora mais vazio porque é todo inteiro inviolável,
igual a si mesmo em todas as partes.
FRAG. 8. 38-41
tîi p£nt’ Ônom(a) œstai,
Óssa brotoˆ katšqento pepoiqÒtej enai ¢lhqÁ,
g…gnesqa… te kaˆ Ôllusqai, ena… te kaˆ oÙc…,
kaˆ tÒpon ¢ll£ssein di£ te crÒa φanÕn ¢me…bein.
Todas as coisas são meros nomes
dados pelas crenças dos mortais:
nascer e perecer, ser e não ser,
mudar de lugar e mudar de luminosa cor.
AULA 58.
PARMÊNIDES DE ELÉIA (PARTE V)
A Deusa sabe que tais palavras são difíceis de
compreender e aceitar e por isso estimula Parmênides a
abandonar “o olho que não vê, o ouvido que ensurdece, a
língua sonora” — isto é, os sentidos que guiam a opinião —
e, doravante, passar a “julgar apenas com o pensamento a
prova oferecida e suas refutações” — isto é, usar apenas a
razão, as demonstrações racionais e as contraprovas
racionais. Os órgãos dos sentidos nos enganam, não são
confiáveis para o conhecimento verdadeiro, pois este é
alcançado apenas pelo pensamento puro.
A experiência sensorial nos faz perceber que tudo
está em movimento, isto é, em mudança: nós mudamos, as
coisas surgem e desaparecem, mudam de forma e de
quantidade (aumentam ou diminuem), passam a qualidades
opostas (as quentes esfriam, as frias esquentam, as claras
escurecem, as escuras clareiam, as duras amolecem, as moles
endurecem, etc.). O pensamento puro se afasta da percepção
sensorial e opera com argumentos lógicos, isto é, obtém as
conseqüências racionais da premissa “o ser é, o não-ser não
é”. Aceita essas conseqüências embora contrariem a
experiência sensorial, dizendo: “vemos tudo mudar, mas
sabemos que o ser é imutável; vemos tudo nascer e perecer,
mas sabemos que o ser é eterno”. Eis como o pensamento
puro argumenta:
- o ser é imóvel, isto é, imutável, pois, se se
movesse, mudaria e tornar-se-ia aquilo que ele não é. O que
ele não é? O não-ser, e este não existe, não pode ser pensado
nem dito.
- o ser é eterno e indestrutível (não tem origem, não
nasce, não perece, não está no futuro), pois se tivesse
começado, o que havia antes dele? O não-ser, e este não
existe, não pode ser pensado nem dito. E se tivesse um
término, o que viria depois dele? O não-ser, e este não existe,
não pode ser pensado nem dito.
- o ser é uno, pois se houvesse outro ser, o que seria
ele? O não-ser do outro ser, mas não-ser não existe, não pode
ser pensado nem dito.
- o ser é indivisível ou contínuo, pois se se
dividisse, o que seriam as partes? Outros seres? Não, porque
o ser é uno. Não-seres? Não, porque o não-ser não existe,
não pode ser pensado nem dito.
- o ser é pleno, pois se houvesse intervalos em seu
interior, o que haveria neles? O vazio? Mas o vazio é o nãoser, e este não existe, não pode ser pensado nem dito.
Na segunda parte do poema, dedicada à
cosmologia, Parmênides demonstra que o ser tem de ser
limitado. Pode soar estranho para nós que Parmênides não
diga que o ser é infinito. Há, porém, uma razão para isso.
Para os gregos, o infinito é o ¥peiron, o indeterminado. Esse
indeterminado é o que não tem começo nem fim no espaço e
no tempo e que por isso pode crescer ou diminuir
indefinidamente, transformar-se indefinidamente e, por essa
razão, é o que não pode ser pensado nem dito, pois não
podemos conhecê-lo inteiramente. É por estes motivos —
inacabamento,
virtualidades,
transformações
e
incognoscibilidade — que Parmênides não pode dizer que o
ser é infinito. No entanto, para assegurar racionalmente todas
as características que lhe atribuiu (imobilidade, eternidade,
indivisibilidade, continuidade e plenitude), Parmênides dirá
que o ser é a esfera, o volume circular perfeito, sem começo
e sem fim, indivisível, contínuo e pleno.
Parmênides dedica a segunda parte do poema não
só à sua cosmologia, mas também à crítica das cosmologias
anteriores, ou das “crenças dos mortais”. Suas críticas
investem menos contra os fisiólogos de Mileto e mais contra
os pitagóricos, em sua crença de que o ser é unidade e
dualidade, identidade e mobilidade, e contra Heráclito, em
sua crença de que o ser é unidade e multiplicidade,
eternidade e devir, luta dos contrários. Os mortais tomam o
não-ser pelo ser. A via da opinião prende-se à aparência e à
mutabilidade das coisas, em perceber que o pensamento só
pode pensar e a linguagem só pode dizer o que é e
permanece idêntico a si mesmo. Pluralidade ou
multiplicidade, mudança ou movimento, oposições e
contrariedades são irreais, impensáveis e indizíveis.
A opinião é a via da experiência sensorial. A via da
verdade, a do puro pensamento, do intelecto que se separa
das sensações. Por isso, onde nossos sentidos vêem, tocam,
sentem coisas mutáveis e opostas entre si, o pensamento diz:
ilusão. Só há o ser, uno, único, eterno, contínuo, indivisível,
imóvel. O ser é a identidade. O ser exclui mudanças e
multiplicidade, pois o devir e o múltiplo são o não-ser, o que
jamais é e jamais permanece idêntico a si mesmo, o
impensável e indizível. Ser, pensar e dizer são o mesmo.
Não-ser, perceber, opinar são o mesmo, isto é, nada são
perante o pensamento, que exige estabilidade, coerência,
permanência e verdade. Para o pensamento, o múltiplo e o
movimento não são.
No entanto, somos mortais e àqueles que não
conseguem percorrer o caminho da verdade cabe oferecer,
pelo menos, um substituto para a ontologia. Esse substituto é
a cosmologia ou física com seus derivados (astronomia,
fisiologia, geometria, música), graças a que os mortais
podem sobreviver. Como a segunda parte do poema — que
tratava dessas questões — perdeu-se, pouco ou quase nada
sabemos da cosmologia parmenidiana e dos conhecimentos
dela derivados. Ao que consta, estava mais próxima dos
pitagóricos do que dos milésios e de Heráclito.
Escrevendo sobre Parmênides, diz o historiador da
filosofia Jean Bernhardt: “Permanece o fato de que não
houve senão um homem, Parmênides, tanto quanto se saiba,
para passar ao limite e ousar julgar inteira e absolutamente o
Absoluto, quando um pensamento se quer estável,
experimenta e verifica de maneira perfeitamente clara a
impossibilidade de transgredir as determinações que ele se
dá, conformemente à sua vontade de estabilidade. Assim é o
nascimento da ontologia e, ao mesmo tempo, sua mais alta e
pura ilustração, pela qual a exigência de absoluta precisão e
de rigorosa coerência de pensamento mede e abraça exata e
complexamente a revelação da realidade absoluta” (in
Châtelet, 1973, 42).
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 59.
EXERCÍCIOS:
1. A partir do estudo de Pitágoras de Samos, faça um resumo, usando no mínimo 15 linhas, sobre a
vida e obra deste pensador.
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2. Escolha três (3) fragmentos atribuídos a Xenófanes de Colofon e explique o motivo de sua
escolha.
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CURSO DE FILOSOFIA
 PRIMEIRO ANO 
 Quarto Bimestre 
AULA 60.
CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA O SURGIMENTO DA FILOSOFIA
O que tornou possível o surgimento da filosofia aos arredores da Grécia no final do século VII e no início
do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que
permitiram o surgimento da filosofia?
Podemos apontar como principais condições históricas:
AS VIAGENS MARÍTIMAS, que permitiram aos povos descobrir que os locais que os mitos diziam
habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos
mares que os mitos diziam habitadas por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres
fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmitificação do mundo, que passou, assim, a exigir
uma explicação sobre a origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
A INVENÇÃO DO CALENDÁRIO, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as
horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou
uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
A INVENÇÃO DA MOEDA, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas
concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo
do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de
generalização;
O SURGIMENTO DA VIDA URBANA, com predomínio do comércio e do artesanato, dando
desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia
proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de
comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da
aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio
pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a filosofia
poderia surgir;
A INVENÇÃO DA ESCRITA ALFABÉTICA, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento
da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de
outras escritas — como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses — supõe que não
se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
A INVENÇÃO DA POLÍTICA, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimentos da filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que
é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade — da pÒlij
— servirá de modelo para a filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como mundo
racional;
2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente
daquele que era proferido pelo mito. Neste, o poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa
Mnemosyne, mãe das Musas que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural,
dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses a que eles deveriam obedecer.
Agora, com a pÒlij, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em
público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que
surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana,
isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou
o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas
dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos,
comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental
para a filosofia.
AULA 61.
ZENÃO DE ELÉIA (cerca de 504-? a.C.)
Zenão floresceu cerca de 646/461 a.C., na 79ª
Olimpíada. Nasceu em Eléia, na Itália. Ao contrário de
Heráclito, interveio na política, dando leis à sua pátria.
Tendo conspirado contra a tirania e o tirano (Nearco?),
acabou preso, torturado e, por não revelar o nome dos
comparsas, perdeu a vida. Escreveu várias obras em prosa:
Discussões, Contra os Físicos, Sobre a Natureza, Explicação
Crítica de Empédocles. Considerado criador da dialética
(entendida como argumentação combativa ou erística),
Zenão erigiu-se em defensor de seu mestre, Parmênides, e
contra as críticas dos adversários, principalmente os
pitagóricos. Defendeu o ser uno, contínuo e indivisível de
Parmênides contra o ser múltiplo, descontínuo e divisível dos
pitagóricos.
O que sabemos da obra de Zenão encontra-se em
passagens do diálogo Parmênides de Platão, na Física e
Refutações Sofísticas de Aristóteles, e na doxografia,
sobretudo em Simplício e Diógenes Laércio. Alguns,
partindo de uma indicação de Aristóteles, segundo a qual
Zenão, ao escrever, sempre apresentava as teses de seus
adversários para refutá-las, julgaram que ele escreveu sob a
forma de diálogos, mas disso não se tem provas.
Para Aristóteles, Parmênides, que irá ser estudado
futuramente, foi o iniciador da lógica. Isto é, de um
pensamento que opera segundo exigências internas de rigor,
sem se preocupar se o que é pensado ou dito corresponde ou
não à experiência imediata que temos das coisas por meio de
nossos sentidos. Lógica, porque Parmênides exigia que o
pensamento obedecesse a dois princípios que, se não foram
explicitamente formulados por ele, foram implicitamente
postos por ele pela primeira vez no pensamento ocidental: o
princípio de identidade (o que é, é; o que é, é idêntico a si
mesmo) e o princípio de contradição (o que é, é; o que não é,
não é; é impossível que o que é não seja; é impossível que o
que não é seja).
Zenão, porém, segundo Aristóteles, foi o criador da
dialética, isto é, do confronto entre duas teses opostas ou
contrárias para provar que nenhuma delas é verdadeira ou
que uma delas é contraditória e, portanto, falsa. Em outras
palavras, Zenão desenvolve, em filosofia, a arte que existia
na política: a da argumentação. Arte que decorre da
importância da retórica no pensamento e do discurso na
Magna Grécia, isto é, na Itália Meridional.
Zenão desenvolve seu método de discussão e
argumentação como um método de prova para defender as
teses de Parmênides, que começavam a ser ridicularizadas
por outros filósofos e pela opinião pública, fato de que é
testemunha a anedota que fala de Diógenes de Apolônia
andando de um lado para o outro, dizendo ironicamente: “o
ser é imóvel”. Os argumentos de Zenão se voltam contra os
defensores do múltiplo e do movimento.
Como procedia Zenão? Segundo Aristóteles, Zenão
jamais defendia diretamente as teses de Parmênides, mas
tomava as teses adversárias e demonstrava que conduziam a
conclusões contraditórias e que, portanto, eram falsas,
tornando também falsas as teses que defendiam. Visto serem
estas contrárias às de Parmênides, ficava provada,
implicitamente, a verdade da tese parmenidiana. Foi isso que
Aristóteles chamou de dialética: partir, não de premissas ou
postulados verdadeiros para uma demonstração, mas de
postulados ou premissas admitidos pela outra parte e,
portanto, tomá-los como meras opiniões. Como observou
John Burnet, a teoria parmenidiana chegara a conclusões que
contradiziam as evidências dos sentidos, da experiência
sensorial; Zenão, em lugar de trazer uma nova teoria, ou
provas para a teoria eleata ou parmenidiana, simplesmente
buscava mostrar que as opiniões dos adversários conduziam
a conclusões ainda mais contraditórias e absurdas do que as
de Parmênides.
Justamente porque Parmênides não pretende
demonstrar a verdade de uma teoria, mas os absurdos das
opiniões adversárias, sua argumentação é formada pelo que
os gregos chamavam de aporia (¢por…a), uma dificuldade
que permanece aberta, insolúvel. O raciocínio de Zenão é
aporético, criador de dificuldades sem solução. Aporia
(¢por…a), é uma palavra composta do prefixo negativo a- e
pelo substantivo pÒroj (passagem, via de comunicação,
caminho, trajeto). pÒroj pertence à família de palavras como
poreÚw, que significa fazer passar, transportar, conduzir a
algum lugar, realizar um trajeto; e por…zw: abrir caminho,
encontrar passagem, dar passagem a, transmitir. Por
extensão, significam chegar a uma conclusão, deduzir,
inferir. Aporia (¢por…a) significa: incapacidade de encontrar
caminho ou trajeto; falta de uma via ou um meio de
passagem; impossibilidade de chegar a um lugar; ou seja,
impossibilidade de deduzir, concluir, inferir. A ¢por…a é
uma dificuldade insolúvel.
AULA 62.
ZENÃO DE ELÉIA (PARTE II)
Os doxógrafos registram oito aporias de Zenão, cujo tema é sempre a prova indireta da verdade da
imobilidade e da unidade pela redução ao absurdo das teses do movimento e da multiplicidade: quatro são
registradas por Aristóteles e quatro, por Simplício. Na realidade, as oito aporias são quatro argumentos cujo
conteúdo era o mesmo, variando apenas sua forma.
1. APORIA DA DIVISIBILIDADE (ou a aporia de Aquiles e a tartaruga; ou ainda a aporia do estádio):
estádio s.m. 1 ant. antiga medida de distância grega, equivalente a 125 pés
geométricos, ou seja, 206,25 m <muralha de 200 e.> 2 (1813) DESP campo para jogos e
provas esportivas, circundado por arquibancadas ou outras instalações destinadas ao
público <e. de futebol> 3 m.q. estágio (‘momento ou período específico’) 4 BIO ENT
m.q. estágio 5 exercício de alguma profissão, emprego ou autoridade <resolveu
interromper seu e. de escrevente> ETIM gr. st£dion, tÒ (neutro substv. do adj. st£dioj,
a, on) ‘estádio, medida de comprimento equivalente a 600 pés gregos ou 625 pés romanos,
oitava parte da milha; corrida na extensão de um estádio, o local onde se praticava essa
corrida, anfiteatro’.
a) Se o ser for divisível (múltiplo), Aquiles, “o de pés ligeiros”, o mais veloz dos heróis gregos, não
poderá vencer a corrida contra uma tartaruga, o mais vagaroso dos animais. Aquiles, generoso, dá à tartaruga
uma vantagem. E jamais a alcançará, pois, para alcançá-la, sendo o espaço divisível, deverá, primeiro, vencer
a metade da distância entre ele e a tartaruga; depois, a metade da metade; depois, a metade da metade da
metade, e assim indefinidamente, de modo que jamais alcançará a tartaruga.
b) Se o ser for divisível, um corredor jamais percorrerá um estádio e jamais alcançará a meta de
chegada, pois, para alcançá-la, deve, primeiro, vencer a metade da distância, depois, a metade da metade,
depois, a metade da metade da metade, e assim indefinidamente, de modo que jamais sairá do lugar e jamais
alcançará a meta.
A argumentação tem como pressuposto, no caso de Aquiles e a tartaruga, que, por mais vagaroso que
seja o movimento num espaço divisível, o movimento mais rápido nunca pode alcançá-lo, porque precisa
vencer a distância infinita de pontos. O argumento do estádio pressupõe que não se pode vencer num tempo
finito (o tempo que dura a corrida) uma distância infinita de pontos, a finitude do tempo e a infinitude da
divisibilidade espacial são incompatíveis.
2. APORIA DO MOVIMENTO (ou a aporia do arqueiro; ou a aporia da flecha):
a) Um arqueiro jamais atingirá o alvo com sua flecha. Uma flecha, ao voar, está em repouso, porque
uma coisa está em repouso quando ocupa um lugar idêntico a si mesmo. Assim, a cada instante, a flecha
estará ocupando um espaço idêntico a si mesma e, portanto, estará em repouso. Se atingir o alvo, devemos
concluir que o movimento não é senão a soma dos repousos e que, portanto, o movimento é repouso e o
repouso é movimento, o que é contraditório.
b) Uma flecha em movimento está em repouso e não atinge o alvo. O argumento é o mesmo do
arqueiro.
O argumento consiste em mostrar que a flecha (ou o objeto que se move) possui um comprimento e
que suas posições sucessivas não são pontos, mas linhas espaciais. No entanto, na perspectiva do tempo, são
pontos temporais (ou instantes). Assim, a incompatibilidade entre espaço e tempo, novamente, é posta para
marcar a contradição do movimento. Móvel no espaço, a flecha estará imóvel no tempo; móvel no tempo,
estará imóvel no espaço. O movimento será feito de repouso e o repouso será feito de movimento.
AULA 63.
ZENÃO DE ELÉIA (PARTE III)
3. APORIA DA UNIDADE INDIVISÍVEL E DESCONTÍNUA (ou a aporia do dobro e da metade):
A metade do tempo é igual ao dobro do tempo. Imaginemos três conjuntos de corpos A, B e C, cada
um deles formado pela soma de quatro unidades discretas (ou pontos). Imaginemos que o corpo A está em
repouso enquanto os dois outros — B e C — estão em movimento, movendo-se com a mesma velocidade,
mas em direção opostas. Quando todas as unidades dos três corpos estiverem na mesma posição ou ocupando
a mesma quantidade de espaço, B e C terão percorrido o dobro e a metade da distância no dobro e na metade
do tempo.
A aporia é ilustrada da seguinte maneira:
A
● ● ● ●
B ● ● ● ● →
C
←● ● ● ●
A ● ● ● ●
B ● ● ● ●
C ● ● ● ●
O argumento de Zenão tem um pressuposto, sem o qual se torna incompreensível: o tempo (cada
instante) é igual ao espaço (cada ponto).
O argumento diz que para chegar sob A, B percorreu dois pontos de A e quatro pontos de C, de
modo que o tempo para percorrer 2 é igual ao tempo para percorrer 4, por isso a metade e o dobro da
distância e a metade e o dobro do tempo são iguais, o que é contraditório e absurdo. E o mesmo deve ser dito
de C movendo-se para ficar sob A. Assim, num mesmo tempo, B e C, estariam percorrendo o dobro e a
metade, de sorte que teríamos:
tempo X = espaço X
tempo X e espaço X = A, B, C na mesma posição ou no mesmo espaço
metade do tempo X e metade do espaço X = B passando por 2 pontos de A; C passando por 2 pontos
de A, isto é, cada corpo passando 2 espaços
dobro do tempo X e dobro do espaço X = B e C passando um pelo outro e percorrendo 4 pontos, isto
é, cada corpo passando por 4 espaços
portanto, tempo X = metade e dobro do tempo
espaço X = metade e dobro do espaço
A unidade entre espaço (pontos a percorrer) e tempo (instantes a percorrer) é o que mostra a
contradição, uma vez que está pressuposto que B e C movem-se na mesma velocidade (no mesmo tempo) em
direções opostas. No mesmo tempo percorrem espaços diferentes e, portanto, fazem tempos diferentes.
Há dificuldade para acompanhar o argumento de Zenão porque fomos habituados (pelo pensamento
filosófico-científico do século XVII) a pensar no espaço como um meio neutro, homogêneo e quantitativo,
diferente do tempo. Não é o caso dos gregos. Não falam em espaço, mas em lugar e lugares. Um lugar é
idêntico ao corpo que o ocupa e se desloca com este corpo, de tal modo que o tempo de deslocamento e o
lugar são uma só e mesma coisa. É a identidade entre lugar e instante que Zenão usa em seu argumento. Os
gregos não pensam no tempo como meio homogêneo, mas falam em períodos e instantes qualitativamente
diferentes (ontem, hoje, amanhã, depois, agora, antes, nunca). O caráter qualitativo do instante e do lugar
sustentam a aporia proposta por Zenão.
Os seis primeiros argumentos das três primeiras aporias se referem às contradições do movimento e
têm como condição a identidade entre instante e lugar (ou entre tempo e espaço). Nos quatro primeiros
argumentos das duas aporias iniciais, é demonstrado que, a cada instante, Aquiles, o corredor, e a flecha
estão imóveis no seu espaço porque Zenão enfatiza a divisibilidade do lugar e do instante (a metade da
metade da metade). Na terceira aporia, Zenão conclui da identidade entre instante e lugar que se os corpos
forem formados por unidades indivisíveis descontínuas ou por pontos (à maneira pitagórica, por exemplo) e
se vários corpos se moverem uns com relação aos outros, os tempos e os espaços não coincidirão.
Os dois últimos argumentos, da última aporia, como veremos, referem-se às contradições da
multiplicidade.
AULA 64.
ZENÃO DE ELÉIA (PARTE IV)
4. APORIA DA UNIDADE DIVISÍVEL DESCONTÍNUA E DA UNIDADE INDIVISÍVEL DESCONTÍNUA:
a) Se as coisas forem formadas por unidades divisíveis descontínuas, cada ponto a que se
chega na divisão é um ponto que pode voltar a ser dividido indefinidamente. Ora, cada ponto é uma
unidade e, portanto, será preciso considerá-la, ao mesmo tempo, como limitada ou finita, pois é um
ponto único, e como ilimitada ou infinita, pois pode ser dividida indefinidamente. Será preciso
dizer, portanto, que as coisas são finitas e infinitas ao mesmo tempo, o que é contraditório e
absurdo.
b) se as coisas forem formadas por unidades indivisíveis descontínuas, a divisão termina
quando se chega à unidade final, que não mais poderá ser dividida. Ora, visto que as unidades que
formam uma coisa são descontínuas, é preciso saber o que existe entre uma unidade e outra. Se se
disser que nada há entre elas, diz-se que há um espaço vazio ou o nada, isto é, o não-ser. Todavia,
como o não-ser não é, será preciso admitir que há alguma coisa no intervalo entre duas unidades.
Pode-se tentar evitar o problema diminuindo ao infinito o intervalo, mas para isso é preciso
continuar dividindo os pontos para chegar a unidades cada vez menores e, neste caso, ou nunca
chegaremos à unidade indivisível num espaço descontínuo ou será preciso dizer que uma unidade
indivisível se divide ao infinito, o que é contraditório e absurdo. É contraditório que a unidade seja
indivisível num espaço descontínuo [a argumentação opera com a noção de limite e ilimitado como
qualidades da unidade. Se for limitada, mas divisível ao infinito, torna-se ilimitada (primeira
aporia). Se for limitada, mas indivisível, entre ela e outra há o vazio (segunda aporia)].
As argumentações de Zenão são impecáveis. Ele não nega que nossos sentidos percebem o
movimento, a multiplicidade, a unidade, o tempo e o espaço descontínuos. Não nega nossa
experiência vivida. O que ele faz é outra coisa: submete os dados da percepção e da opinião às
exigências lógicas do pensamento. Usando exclusivamente o pensamento e lançando mão
exclusivamente de raciocínios, ele mostra que a experiência do movimento e da multiplicidade são
irracionais, isto é, contraditórias e absurdas.
Assim, se é verdade que os pitagóricos foram em busca da estrutura invisível das coisas e
que Heráclito contrapôs o pensamento e a experiência sensorial, também é verdade que somente
com os eleatas a filosofia chega à compreensão de que o pensamento não só difere da experiência
sensorial, mas possui leis próprias de operação e tem o poder para refutar o testemunho dos
sentidos.
AULA 65.
FRAGMENTOS DE ZENÃO DE ELÉIA:
1. SIMPLÍCIO, Comentários sobre a Física de Aristóteles, 140, 34. e„ m¾ œcoi mšgeqoj tÕ Ôn,
oÙd’ ¨n e‡h, ™p£gei ‘e„ d œstin, ¢n£gkh ›kaston mšgeqÒj ti œcein kaˆ p£coj kaˆ ¢pšcein
aÙtoà tÕ ›teron ¢pÕ toà ˜tšrou. kaˆ perˆ toà proÚcontoj Ð aÙtÕj lÒgoj. kaˆ g¦r ™ke‹no
›xei mšgeqoj kaˆ prošxei aÙtoà ti. Ómoion d¾ toàto ¤pax te e„pe‹n kaˆ ¢eˆ lšgein· oÙdn
g¦r aÙtoà toioàton œscaton œstai oÜte ›teron prÕj ›teron oÙk œstai. oÛtwj e„ poll£
™stin, ¢n£gkh aÙt¦ mikr£ te enai kaˆ meg£la· mikr¦ mn éste m¾ œcein mšgeqoj, meg£la
d éste ¥peira enai’.
Se o ser não tivesse grandeza, também não poderia existir, ele prossegue: “mas, se existe,
necessariamente cada (parte) tem certa grandeza e espessura, e distância uma da outra. E a respeito
da (parte) que está diante dela o mesmo se diz. Pois esta também terá grandeza e uma outra estará
diante dela. É o mesmo, então, dizer isso uma vez apenas e dizê-lo sempre. Pois nenhuma parte dele
(do ser) será limite extremo, nem estará uma parte sem relação com outra. Assim, se múltiplas são
(as coisas), necessariamente são pequenas e grandes; pequenas a tal ponto que não têm grandeza;
grandes, a tal ponto que são infinitas”.
2. IDEM, ibidem, 139, 5. Óti oá m»te mšgeqoj m»te p£coj m»te Ôgkoj mhqe…j ™stin, oÙd’
¨n e‡h toàto. ‘e„ g¦r ¥llwi Ônti, φhs…, prosgšnoito, oÙdn ¨n me‹zon poi»seien· megšqouj
g¦r mhdenÕj Ôntoj, prosgenomšnou dš, oÙdn oŒÒn te e„j mšgeqoj ™pidoànai. kaˆ oÛtwj ¨n
½dh tÕ prosginÒmenon oÙdn e‡h. e„ d ¢poginomšnou tÕ ›teron mhdn œlatton œsti mhd aâ
prosginomšnou aÙx»setai, dÁlon Óti tÕ prosgenÒmenon oÙdn Ãn oÙd tÕ ¢pogenÒmenon’.
(Diz Zenão) que uma coisa que não tem grandeza e espessura, nem massa, não poderia
existir. “Pois”, ele diz, “se fosse acrescentada a uma outra coisa, em nada a aumentaria; pois, se
uma grandeza que nada é (a uma outra) se acrescenta, nada pode ganhar em grandeza (esta última).
E assim já o acrescentado nada seria. Mas se, subtraída (uma grandeza), a outra em nada diminuir,
e, ao contrário, acrescenta (uma), (a outra) não aumentar, é evidente que o acrescentado nada era,
nem o subtraído”.
3. IDEM, ibidem, 140, 27. ‘e„ poll£ ™stin, ¢n£gkh tosaàta enai Ósa ™stˆ kaˆ oÜte
ple…ona aÙtîn oÜte ™l£ttona. e„ d tosaàt£ ™stin Ósa ™st…, peperasmšna ¨n e‡h.
e„ poll£ ™stin, ¥peira t¦ Ônta ™st…n· ¢eˆ g¦r ›tera metaxÝ tîn Ôntwn ™st…, kaˆ
p£lin ™ke…nwn ›tera metaxÚ. kaˆ oÛtwj ¥peira t¦ Ônta ™st…’.
“Se múltiplas são (as coisas), necessariamente são tantas quantas são, nem mais nem menos.
Mas, se são tantas quantas são, devem ser limitadas (em número).
Se são múltiplas, ilimitadas (em número) são as coisas; pois entre elas sempre há outras, e
entre estas novamente outras. Assim, ilimitadas (em número) são as coisas”.
4. DIÓGENES LAÉRCIO, IX, 72. ‘tÕ kinoÚmenon oÜt’ ™n ïi œsti tÒpwi kine‹tai oÜt’ ™n ïi
m¾ œsti’.
“O móvel nem no espaço em que está se move, nem naquele em que não está”.
AULA 66.
EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (cerca de 490-435 a.C.)
Empédocles era natural da colônia dórica de
Agrigento, na Sicília. Apolodoro fixa sua akmé por volta da
84ª Olimpíada, portanto, em 444-443 a.C.. Teria nascido,
assim, por volta de 490/2 a.C.. Seu pai tinha um lugar
importante no governo democrático da cidade e ele próprio
participou da vida política de Agrigento, tendo combatido a
tirania que ali tentara se instalar e, quando ela se tornou
vitoriosa, foi desterrado pelo tirano. Além de político,
Empédocles foi poeta, dramaturgo, homem de ciência,
médico e cosmólogo, místico e inventor da eloqüência.
Expulso de Agrigento, Empédocles se torna um
errante que percorre a Grécia, tendo mesmo ido a Olímpia,
durante a Olimpíada, ler seu poema religioso para os
helenos. Impedido de regressar à Sicília, parece ter morrido
no Peloponeso, embora a lenda diga que morreu atirando-se
no fogo do vulcão Etna, para provar-se imortal ou um deus.
Empédocles sofreu a influência da religiosidade
órfica e parece ter sido discípulo dos pitagóricos, assim como
ter seguido, durante certo tempo, as idéias de Parmênides e
Zenão, com quem teria convivido. Como Xenófanes e
Parmênides, escreveu em versos (foi o último filósofo a
escrever dessa maneira) e dele resta o maior número de
fragmentos deixados pelos pré-socráticos. Dos poemas,
conhecemos fragmentos de dois: um, de cosmologia,
intitulado Sobre a Natureza, e um outro, religioso, intitulado
Purificações. Pelo modo como escreveu, invocando as
emoções dos ouvintes e leitores, fazendo da emoção uma
forma de argumentação e de purificação, Aristóteles o teria
considerado fundador da retórica, isto é, da arte de persuadir
por meio das paixões ou emoções do ouvinte. Sua doutrina
pode ser vista como uma primeira síntese filosófica.
Substitui a busca dos jônicos de um único princípio das
coisas pelos quatro elementos: fogo, terra, água e ar;
combina ao mesmo tempo o ser imóvel de Parmênides e o
ser em perpétua transformação de Heráclito, salvando ainda
a unidade e a pluralidade dos seres particulares.
Em geral, os historiadores da filosofia mencionam o
fato de Empédocles ter sido médico, e os historiadores da
medicina falam da influência filosófica de Empédocles sobre
a medicina grega. Mas todos deixam de mencionar que o fato
de Empédocles ter sido médico a causa da introdução da
pluralidade da φÚsij na cosmologia grega. Examinaremos
como a medicina pode ter sido a origem do distanciamento
entre Empédocles e os eleatas, dos quais fora discípulo.
Do ponto de vista dos eleatas, a unidade-identidade
do ser faz com que as coisas individuais e singulares sejam
meras aparências, opiniões, não-ser. Assim sendo, o homem,
enquanto uma entidade individualizada ou singular, não
existe, rigorosamente falando. Mas, supondo-se que exista,
não adoeceria nunca, não sofreria dores nunca.
De fato, a dor e a doença pressupõem uma relação
entre os diferentes. A dor e a doença, para os gregos, são
uma forma de passividade, algo que nos acontece por ação
de um outro ser sobre o nosso. Resultam da hostilidade de
alguma coisa (alimento, bebida, vento, umidade, etc.) contra
o ser de alguém. Se, portanto, a dor e a doença existem, é
preciso que exista a pluralidade de seres que agem e sofrem
ações entre si. Além disso, para que o médico aja, isto é, para
que opere a cura, precisa introduzir no corpo do paciente o
que lhe está faltando ou retirar do corpo do paciente aquilo
que ali está em excesso. A saúde é um estado de equilíbrio
entre os múltiplos componentes do corpo, e a doença, a
ruptura desse equilíbrio pela falta ou pelo excesso de um dos
componentes sobre os demais; é a perda da proporção, da
medida ou equilíbrio interno que o médico deve restaurar,
seja retirando coisas do interior do paciente, seja
introduzindo outras no corpo doente. O médico, portanto,
também precisa admitir a pluralidade diferenciada dos seres
para realizar a cura. O eleatismo, assim, é inaceitável para a
medicina.
Dois outros aspectos da medicina também são
importantes aqui. O primeiro deles é que a saúde e a doença
são formas de relação entre nosso corpo e o meio ambiente
(por isso o médico grego estuda o mundo onde está e onde
vive nosso corpo, isto é, as águas, os ventos, os terrenos, os
lugares, os astros, os alimentos, as horas do dia e da noite, as
estações do ano, etc.). Assim, é preciso haver, no mínimo, a
dualidade homem-mundo para que haja medicina. O segundo
aspecto é a maneira como o médico antigo define a doença:
ela é um ente visível — um edoj, uma forma — que se
mostra ou se manifesta por meio de sinais: os sintomas. O
médico, atuando sobre esses sinais (pelo diagnóstico e pelo
prognóstico), usando a observação e a experiência, atua
sobre ela e a faz desaparecer. Se, portanto, a doença é uma
forma visível (edoj) e se há diferentes doenças, então é
preciso haver pluralidade, e a pluralidade percebida pela
experiência deve ser real. Em resumo, a medicina não
dispensa a experiência sensorial, a percepção e a memória.
Empédocles (como também Anaxágoras) era
médico e, certamente, as idéias médicas e a prática médica
tiveram papel fundamental em sua cosmologia, explicando
não só a introdução da pluralidade da φÚsij, mas ainda
afirmando que a φÚsij são quatro raízes (·…zwma)
perpassadas por duas forças corpóreas que unem — amor ou
amizade, φil…a — ou separam — ódio ou discórdia, neikÒj
— todas as coisas. É que a medicina antiga concebia o corpo
humano, ou o homem, formado por quatro líquidos,
chamados humores (sangue, fleuma, bílis amarela ou cólera e
bílis negra ou atrabílis) dotados de quatro qualidades (seco,
úmido, frio e quente) cuja mistura ou combinação formava o
temperamento ou caráter ou natureza de cada um de nós. A
combinação dos humores em equilíbrio ou sua amizade era a
saúde; em desequilíbrio ou sua discórdia, a doença. A união
dos humores é a vida; a separação dos humores, a morte.
·…zwma: tufo de raízes, no plural, ·izèmata. Em
sentido figurado significa fundamento ou elemento
de todas as coisas. A palavra ·…za significa raiz,
fonte de alguma coisa, origem, cepa. É a φÚsij de
Empédocles.
AULA 67.
EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE II)
No início do poema Sobre a Natureza,
Empédocles critica seus antecessores que, tendo uma vida
breve e tido uma experiência e um conhecimento parciais
das coisas, vangloriavam-se de conhecer tudo e de
conhecer o todo. São frívolos, e não reconhecem como é
difícil conhecer, imaginando que basta dizer que a
verdade não pode ser alcançada pelos olhos e pelos
ouvidos, para supor que será inteiramente conhecida pelo
espírito. São loucos. E o poeta-filósofo pede às Musas que
“afastem de meus lábios tais loucuras” (¢ll¦ qeoˆ tîn
mn man…hn ¢potršψate glèsshj) no frag. 3, verso 1,
que “santifiquem os meus lábios para que deles corra um
rio puro” (™k d’ Ðs…wn stom£twn kaqar¾n ÑceteÚsate
phg»n) no frag. 3, v. 2, e suplica que o façam “entender o
que é permitido aos homens efêmeros” (¥ntomai, ïn
qšmij ™stˆn ™φhmer…oisin ¢koÚein) no frag. 3, verso 4.
Aconselhado pelas Musas, o filósofo-poeta, como o
médico, valoriza a experiência perceptiva, considerando
os cinco sentidos como a via de acesso ao pensamento.
Por isso, aconselha os outros mortais no frag. 3, versos 913: “e agora, considera com todos os teus sentidos como
cada coisa é clara. Não dês maior confiança ao olhar do
que a que corresponde ao ouvido; e não estimes o ruidoso
ouvido acima das claras instruções da língua; e não
recuses confiança às outras partes do teu corpo, pelas
quais há acesso à inteligência; conhece como cada coisa é
manifesta [...] guarda dentro do teu silencioso coração”
(¢ll’ ¥g’ ¥qrei p£shi pal£mhi, pÁi dÁlon ›kaston,/
m»te tin’ Ôψin œcwn p…stei plšon À kat’ ¢kou»n/
À ¢ko¾n ™r…doupon Øpr tranèmata glèsshj,/ m»te
ti tîn ¥llwn, ÐpÒshi pÒroj ™stˆ noÁsai,/ gu…wn
p…stin œruke, nÒei d’ Âi dÁlon ›kaston. SEXTO
EMPÍRICO, Contra os Matemáticos, VII, 124).
Que ensina Empédocles?
Em primeiro lugar, que Parmênides tem razão
em considerar o ser como esférico, isto é, sem princípio
nem fim (perene ou eterno) e pleno, isto é, sem vazio ou
vácuo. Mas não tem razão ao supor que o ser deveria ser
uno, imóvel e homogêneo, pois é múltiplo, móvel e
heterogêneo. São as quatro raízes (·izèmata) de todas as
coisas: fogo, terra, água e éter (ou ar). São elas a φÚsij.
Eternas como o ser de Parmênides, cada uma é idêntica a
si mesma, indestrutível, sem nascimento nem
perecimento. “São o que são” (œsti), lemos no frag. 8,
verso 4. “Sempre são iguais e de mesma idade, embora
com missões diferentes”, (taàta g¦r s£ te p£nta kaˆ
¼lika gšnnan œasi,/ timÁj d’ ¥llhj ¥llo mšdei, p£ra
d’ Ãqoj ˜k£stwi) lemos no frag. 17, vv. 27-8. E dão conta
de todas as coisas existentes no mundo. Assim, em vez de
haver, como na tradição, um só elemento ou uma só
qualidade que se transforma nas outras, há a diferença de
qualidades e dos elementos das coisas como diferença
originária. A φÚsij é múltipla.
No fragmento 8, lemos: “não há nascimento para
nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte
funesta, mas somente composição e separação, mistura e
dissociação dos elementos” (φÚsij oÙdenÕj œstin
¡p£ntwn/ qnhtîn, oÙdš tij oÙlomšnou qan£toio
teleut»,/ ¢ll¦ mÒnon m…xij te di£llax…j te
migšntwn/ œsti, φÚsij d’ ™pˆ to‹j Ñnom£zetai
¢nqrèpoisin).
Assim, a vida é mistura dos elementos e a morte,
separação. Cada raiz, portanto, mantém-se sempre
idêntica a si mesma, una e imutável, perene, e os seres se
formam pela reunião das raízes, desaparecendo quando
elas se separam. Os seres se transformam, isto é, há
movimento ou devir para todas as coisas. O devir é a
mudança na forma da composição das coisas, isto é, na
quantidade de raízes que formam um ser (uma coisa
composta de água e terra se transforma se nela entrar
também o fogo como componente; uma coisa composta
de fogo, água e ar se transforma se dela o ar se retirar, e
assim por diante), e a proporção com que cada raiz entra
ou sai na composição de um ser (aumento ou diminuição
de fogo, ar, água ou terra) altera esse ser.
Mas, o que faz as raízes se unirem para formar
um ser? O que as faz se separar? No princípio, as raízes
estão inteiramente misturadas, são indiscerníveis e
formam o uno. Uma força corpórea, mas externa a elas, as
invade e as separa: o Ódio (neikÒj), que separa o que
estava misturado e faz surgir o múltiplo, as quatro raízes
diferenciadas. Dessa diferença, porém, nada poderia
surgir, pois tudo está separado de tudo. Uma outra força
corpórea, externa e oposta à primeira, se introduz no seio
do múltiplo e faz com que as raízes se misturem e se
combinem: o Amor (φil…a), gerador de todas as coisas.
No fragmento 17, vv. 16-20, lemos: “a um dado
momento, do uno saiu o múltiplo, vindo de muitos; outra,
dividiram-se para serem muitos de um que eram — fogo,
água, terra e o ar altaneiro. E o Ódio, temível, de peso
igual a cada um, deles separado; e o Amor entre eles,
igual em comprimento e largura” (tot mn g¦r n
hÙx»qh mÒnon enai/ ™k pleÒnwn, tot d’ aâ dišφu
plšon’ ™x ˜nÕj enai,/ pàr kaˆ Ûdwr kaˆ ga‹a kaˆ
ºšroj ¥pleton Ûψoj,/ Ne‹kÒj t’ oÙlÒmenon d…ca tîn,
¢t£lanton ¡p£nthi,/ kaˆ FilÒthj ™n to‹sin, ‡sh
mÁkÒj te pl£toj te· SIMPLÍCIO, Comentário sobre a
Física de Aristóteles, 157).
Ódio e Amor, de força igual, imperecíveis como
as raízes, impõem o conflito como lei do mundo: o Amor
faz a “vida florescente” e o Ódio, cruel, faz a separação
dos seres errantes. O Amor cria o impulso de todos os
seres semelhantes a se unir; o Ódio, o impulso de todos os
seres diferentes a se separar. Os quatro elementos ou as
quatro raízes correm umas por dentro das outras, isto é,
são porosas e é essa porosidade que permite ao Amor e ao
Ódio penetrar nelas para uni-las ou separá-las. “Todas as
coisas inspiram e expiram, providas de canais,
inumeráveis poros” (ïde d’ ¢napne‹ p£nta kaˆ ™kpne‹·
p©si l…φaimoi/ sarkîn sÚriggej pÚmaton kat¦ sîma
tštantai,/ ka… sφin ™pˆ stom…oij pukina‹j tštrhntai
¥loxin), lemos no frag. 100, vv. 1-3.
AULA 68.
EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE III)
O mundo percorre quatro ciclos: no primeiro, tudo
está misturado com tudo, na indiferenciação do uno; no
segundo, o Ódio separa tudo de tudo, na diferenciação total
do múltiplo; no terceiro, o Amor se introduz, unindo os
semelhantes e organizando o mundo, o kÒsmoj, mas,
prosseguindo na união, pouco a pouco o Amor vence o Ódio
e começa a misturar tudo com tudo novamente, na
indiferenciação de todos os seres; no quarto, o Ódio vai
separando tudo (num fragmento, Empédocles fala de mãos e
pés soltos à procura de braços e pernas, de olhos à procura da
cabeça), até que o Amor retorne e, novamente, organize o
mundo. Neste processo dinâmico perene, surgem o céu, os
astros, a luz (sol, estrelas, fogo), o mar, a terra, as plantas, os
animais e os homens. “Das misturas derramam-se as
inúmeras raças dos seres mortais” (tîn dš te misgomšnwn
ce‹t’ œqnea mur…a qnhtîn), lemos no frag. 35, v. 16.
A partir dessa teoria, Empédocles elaborou uma
astronomia (origem, forma, natureza e movimentos do céu,
eclipses, meteoros, noite, dia), uma teoria dos ventos (pelos
movimentos opostos do ar e do fogo) e das chuvas
(compreensão do ar impregnado de água que a deixa escapar
por seus poros), uma biologia (origem, forma e movimento
dos animais e das plantas), uma fisiologia dos animais e do
homem, decisiva em sua medicina e na qual a diferença dos
sexos é central (o quente é princípio do masculino e o frio,
princípio do feminino; a semente masculina é atraída pela
semente feminina, essa atração se torna desejo e do desejo
nasce o feto, pela passagem da semente masculina pelos
poros da semente feminina). O semelhante atrai o semelhante
e o diferente repele o diferente: isso será uma lei na biologia,
na fisiologia e na medicina gregos.
Uma vez que o médico-filósofo Empédocles
valoriza a experiência sensorial ou percepção, escreve uma
teoria sobre ela. Não sabemos se outros pré-socráticos
tiveram teorias sobre o assunto; no caso de Empédocles
sabemos que há porque existem fragmentos sobre o tema. A
transcrição mais completa dessa teoria foi feita pelo
discípulo de Aristóteles, Teofrasto.
Como tudo no kÒsmoj, a percepção também é
regida pela lei dos semelhantes e dos diferentes. Ela é o
encontro de um elemento que é semelhante em nós e fora de
nós e se produz através dos poros dos órgãos dos sentidos,
que emitem e recebem os eflúvios enviados continuamente
pelos demais corpos. Assim, a audição é produzida pelo som
exterior, por um movimento no ar que chega aos ouvidos,
que são como um sino que ressoa dentro de nós. O olfato é
produzido pela respiração, sendo mais forte quando vem de
corpos mais sutis e leves. É por isso que, quando estamos
resfriados, não sentimos cheiro, pois não conseguimos
respirar de modo adequado. O prazer e a dor são produzidos
pelo toque de outros corpos através dos poros da nossa pele,
e dos nossos sentidos — o prazer, pelo que é semelhante a
nós; e a dor, pelo que discorda de nós ou é diferente.
O ponto alto da teoria de Empédocles refere-se à
visão. O interior do olho é de fogo ou luz e seu exterior é
feito de água e de terra ou úmido e seco. A terra forma uma
película fina, através da qual passa o fogo. O olho é como
uma lanterna em noite de chuva, o fogo protegido da água
por uma película ou membrana fina. Através do fogo, vemos
os objetos brilhantes e através da água, os objetos opacos e
sombrios, isto é, o semelhante vê o semelhante. A visão é
produzida pelo fogo interior que sai ao encontro dos objetos
brilhantes e pela água interior que sai ao encontro dos
objetos opacos e sombrios. Ver é sair de si. Os olhos são
como dardos lançados para as coisas, capturando-as. A
variação das cores, dos tons, da transparência e da opacidade
depende do tamanho dos poros das coisas vistas.
Eis uma passagem, o frag. 84, de Empédocles sobre
os olhos: “e assim como quando um homem que se propõe a
sair numa noite tempestuosa se mune de uma lanterna de
chama viva, protegendo-a contra os ventos uivantes, e a luz
projeta-se para fora das membranas protetoras, passando por
seus poros, por ser muito mais sutil e fina, assim também o
fogo primitivo escondeu-se em membranas finas e tecidos,
atrás das redondas meninas-dos-olhos, varadas de passagens
maravilhosas. Afastam as águas profundas que as cercam e
deixam passar o fogo, por ser mais fino e sutil” (æj d’ Óte
tij prÒodon nošwn æpl…ssato lÚcnon/ ceimer…hn di¦
nÚkata, purÕj sšlaj a„qomšnoio,/ ¤ψaj panto…wn
¢nšmwn lamptÁraj ¢morgoÚj,/ o† t’ ¢nšmwn mn pneàma
diaskidn©sin ¢šntwn,/ pàr d’ œxw diaqrùskon, Óson
tanaèteron Ãen,/ l£mpesken kat¦ bhlÕn ¢teiršsin
¢kt…nessin·/ ìj d tÒt’ ™n m»nigxin ™ergmšnon çgÚgion
pàr/ leptÍsin t’ ÑqÒnVsi loceÚsato kÚklopa koÚrhn·
ARISTÓTELES, De Sensu, 2, 437 b 26-438 b 1).
AULA 69.
EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (PARTE IV)
Como médico, Empédocles também formula
uma teoria sobre a origem corporal do pensamento.
O pensamento e a ignorância seguem o
mesmo princípio de semelhança e diferença. Ou
seja, o semelhante conhece o semelhante e ignora ou
desconhece o diferente. Assim, o que é mais
misturado, isto é, o que contém todas as raízes e as
várias combinações delas, deve ser o órgão do
pensamento, pois senão este não poderia conhecer
tantas coisas. Em nós, de todos os elementos que nos
compõem, o que tem maior dose de mistura é o
sangue e por isso o coração, que recebe e espalha o
sangue, é a sede do pensamento. Eis por que a
qualidade de nosso pensamento varia com a
qualidade de nosso sangue, variação determinada
pelo modo como ele se mistura com os outros três
humores, e pela quantidade-qualidade dos quatro
elementos que o constituem (fogo, água, terra e ar).
E o mesmo vale para todos os órgãos dos sentidos,
que variam em acuidade pela qualidade de mistura
dos humores e dos elementos, pela espessura e
largura dos poros, pelo equilíbrio dos elementos
componentes, de sorte que a diferença entre sábios e
ignorantes, sábios e loucos depende de nosso corpo,
sede dos conhecimentos.
Lemos no testemunho doxográfico de
Teofrasto: “e acerca do pensamento e da ignorância
a sua teoria é a mesma. Pensar é do semelhante pelo
semelhante, ignorância, do dessemelhante pelo
dessemelhante, sendo o pensamento ou idêntico ou
aparentado com a percepção. É que, depois de ter
enumerado como se conhece cada coisa por
intermédio do seu equivalente, acrescentou no final
que ‘foi a partir destas coisas que todas as coisas se
harmonizaram umas com as outras e se constituíram,
e é por seu intermédio que elas pensam e sentem
prazer e dor’. Por isso, é sobretudo com o sangue
que elas pensam; já que é no sangue, mais do que
nas demais partes, que os elementos estão
misturados” (æsaÚtwj d lšgei kaˆ perˆ
φron»sewj kaˆ ¢gno…aj. [10] tÕ mn g¦r φrone‹n
enai to‹j Ðmo…oij, tÕ d’ ¢gnoe‹n to‹j ¢nomo…oij,
æj À taÙtÕn À parapl»sion ×n tÍ a„sq»sei t¾n
φrÒnhsin. diariqmhs£menoj g¦r æj ›kaston
˜k£stJ gnwr…zomen ™pˆ tšlei prosšqhken æj
(frag. 107) ™k toÚtwn <g¦r> p£nta pep»gasin
¡rmosqšnta/ kaˆ toÚtoij φronšousi kaˆ ¼dont’
ºd’ ¢niîntai./ diÕ kaˆ tù a†mati m£lista
φrone‹n· ™n toÚtJ g¦r m£lista kekr©sqa…
[™sti] t¦ stoice‹a tîn merîn. TEOFRASTO, Da
Sensação § 9).
A sensação ou percepção e o pensamento ou
inteligência são um encontro: um ser envia ou
emana eflúvios para outro cujos poros, se forem
adequados ao emitido, os recebe e os faz circular
dentro de si, produzindo novos eflúvios ou
emanações que envia aos outros. Como o
conhecimento se faz por relação do semelhante com
o semelhante, aqueles que possuem em seu corpo a
maior quantidade e a melhor proporção de misturas
são os que melhor podem conhecer; quanto menor a
dimensão dos elementos (isto é, quanto menores as
partículas com que entram numa mistura) e quanto
mais finos os poros, mais alta é a capacidade de
conhecimento. Assim, “os elementos quando em
partículas grosseiras e espaçadas fazem os homens
lerdos e desajeitados; se são, ao contrário,
condensados e reduzidos a partículas muito
diminutas, os movimentos de sangue são mais vivos
e o próprio homem será mais disposto e ágil,
empreendendo muitas coisas, mas sem chegar ao
fim. Aqueles para os quais, enfim, a mistura é
conveniente numa parte do corpo são os sábios; daí
os bons oradores (melhor mistura na língua), os
artistas (melhor mistura nos olhos e nas mãos), os
sábios (melhor mistura no sangue); e o mesmo se dá
com as outras capacidades” (kaˆ ïn mn man¦ kaˆ
¢rai¦ ke‹tai t¦ stoice‹a, nwqroÝj/ kaˆ
™pipÒnouj· ïn d pukn¦ kaˆ kat¦ mikr¦
teqrausmšna, toÝj d toioÚtouj Ñxe‹j/
φeromšnouj kaˆ poll¦ ™piballomšnouj Ñl…ga
™pitele‹n di¦ t¾n ÑxÚthta tÁj toà/ a†matoj
φor©j· oŒj d kaq’ ›n ti mÒrion ¹ mšsh kr©s…j
™sti, taÚthi soφoÝj ˜k£stouj/ enai· diÕ toÝj
mn ·»toraj ¢gaqoÚj, toÝj d tecn…taj, æj to‹j
mn ™n ta‹j cers…,/ to‹j d ™n tÁi glètthi t¾n
kr©sin oâsan· Ðmo…wj d’ œcein kaˆ kat¦ t¦j
¥llaj/ dun£meij. TEOFRASTO, Da Sensação § 11).
Observamos que Empédocles procura
formular uma cosmologia completa, na qual, além
do mundo, também o homem é explicado. Como
parte da natureza, o homem é formado pelos
mesmos elementos que ela, seguindo como ela as
mesmas leis. E assim como há coisas diferentes no
mundo, há homens diferentes por natureza.
Empédocles é o primeiro a formular uma
teoria do conhecimento em que, além da diferença
entre aparência e realidade (já feita pelos
antecessores), graças aos conhecimentos médicos, os
mecanismos ou operações do corpo são descritos
para explicar como e por que podemos conhecer as
coisas.
AULA 70.
ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (cerca de 500-428 a.C.)
Natural de Clazômenas, na Jônia (Ásia Menor),
Anaxágoras pertencia a uma família aristocrática, mas renunciou
aos títulos políticos e aos bens para dedicar-se à filosofia, tendo
feito seus primeiros estudos com os discípulos de Anaxímenes.
Passou aproximadamente trinta anos em Atenas, fundando a
primeira escola filosófica desta cidade, sob o apoio de Péricles,
seu protetor e discípulo. Em Atenas mesmo, Anaxágoras teve
destino semelhante ao de Sócrates e ao de Aristóteles, isto é,
suas idéias foram consideradas perigosas para o Estado, e, como
Sócrates, foi submetido ao tribunal e condenado, em 431 a.C.,
por impiedade ao negar a divindade do Sol (para ele, uma pedra
incandescente) e da Lua (para ele, uma Terra). Pouco se sabe
sobre o processo e há versões contraditórias sobre o assunto. De
todo modo — quer tenha sido condenado à morte ou condenado
ao ostracismo, isto é, ao exílio — o certo é que Anaxágoras foi
encarcerado mas conseguiu fugir, refugiando-se em Lâmpsaco
(Jônia), onde fundou outra escola. Mereceu alta estima entre os
lampsacenses que cunharam moedas com sua efígie —
representação plástica da imagem de um personagem real ou
simbólico, retrato, imagem, figura de um indivíduo — e
puseram elogioso epitáfio — inscrição sobre lápides tumulares
ou monumentos funerários; enaltecimento, elogio breve a um
morto; tipo de poesia, nem sempre de inscrição lapidar, que
encerra um lamento pela morte de outrem, ou com notada
intenção satírica, que trata de um vivo como se estivesse morto
— em seu túmulo. Os tratados (um de perspectiva, outro sobre a
quadratura do círculo, e um livro de problemas) atribuídos por
autores tardios a Anaxágoras não parecem obras genuínas suas.
“Sobre a Natureza”, de que nos restam vinte e dois (22)
fragmentos, parece ter sido um tratado pequeno, dando-nos
porém toda a base do sistema de Anaxágoras, que obteve grande
reputação como físico, matemático, astrônomo e meteorologista.
Anaxágoras foi o filósofo pré-socrático que deu origem a maior
número de discussões ou a interpretações as mais variadas.
De acordo com Diógenes Laércio, Anaxágoras
escreveu um único livro, que poderia ter sido lido pelos
contemporâneos de Sócrates e de Platão e que um exemplar
talvez existisse na biblioteca da Academia platônica, onde foi
consultado por Simplício, de quem nos transmitiu a maior parte
dos fragmentos. A doxografia mais importante vem de
Aristóteles e Teofrasto.
Como Empédocles, Anaxágoras pretende resolver a
crise do eleatismo e do heraclitismo, isto é, afirmar
simultaneamente a existência do ser imutável e a do mundo
plural e mutável. Por isso, como Empédocles, Anaxágoras
afirma que nada é criado nem destruído, que o todo é completo e
nada lhe pode ser acrescentado, sendo sempre igual a si mesmo.
Assim, no frag. 17, lemos: “os helenos não têm uma opinião
correta do nascimento e da destruição. Pois nada nasce ou
perece, mas há mistura e separação das coisas que são. E, assim,
deveriam chamar corretamente o nascimento de mistura e a
destruição de separação” (tÕ d g…nesqai kaˆ ¢pÒllusqai
oÙk Ñrqîj nom…zousin oƒ “Ellhnej· oÙdn g¦r crÁma
g…netai oÙd ¢pÒllutai, ¢ll’ ¢pÕ ™Òntwn crhm£twn
summ…sgeta… te kaˆ diakr…netai. kaˆ oÛtwj ¨n Ñrqîj
kalo‹en tÒ te g…nesqai summ…sgesqai kaˆ tÕ ¢pÒllusqai
diakr…nesqai. SIMPLÍCIO, Comentário sobre a Física de
Aristóteles, 163, 18).
O princípio fundamental do pensamento de
Anaxágoras é por ele expresso com a afirmação: “há em cada
coisa uma porção de cada coisa” ou “todas as coisas estão
juntas”.
Essa afirmação possui dois sentidos principais: em
primeiro lugar, significa que, por menor que seja uma porção de
matéria, nela encontraremos sempre os mesmos e todos os
elementos que a constituem como diferente de todas as outras,
ou seja, a divisão pode ir ao infinito, mas sempre encontraremos
a mesma mistura ou composição na menor partícula encontrada.
Em segundo lugar, significa que a multiplicidade ou a
pluralidade é originária, e mais profunda do que havia afirmado
Empédocles. De fato, este havia afirmado que a diferença
originária encontrava-se nas quatro raízes, que, sendo φÚsij, são
a realidade última, cada qual plenamente separada e diferente
das demais. Anaxágoras, porém, afirma que, por minúscula que
seja a porção de matéria, nela encontraremos mistura,
pluralidade ou multiplicidade, isto é, nunca encontraremos
qualidades separadas. Só há mistura.
Que mistura é essa? A das qualidades opostas que,
agora, não se reduzem aos quatro elementos, mas incluem todas
as oposições qualitativas: quente-frio, úmido-seco, denso-sutil,
grande-pequeno, branco-preto, grosso-fino, luminoso-obscuro,
duro-mole, liso-rugoso, amargo-doce, etc.. O que diferencia um
ser de outro é a proporção das qualidades misturadas e a
predominância de uma delas sobre as outras. Assim, pode-se
dizer que o ar é a mistura onde predomina o que há de mais frio,
o fogo é a mistura onde predomina o que há de mais quente, a
terra a mistura onde predomina o que há de mais seco, a água
onde predomina o que há de mais úmido, o osso ou a pedra onde
predomina o que há de mais duro, a carne onde predomina o
mais mole, e assim sempre. Mas o ar será sempre ar, em sua
menor partícula, do mesmo modo que um osso será osso em sua
menor partícula, ou seja, a composição ou mistura será sempre a
mesma em cada coisa, seja qual for a dimensão a que a
reduzamos numa divisão. A parte e o todo possuem a mesma
mistura.
AULA 71.
ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE II)
Cada tipo de matéria provém de uma mistura
originária e a tal mistura Anaxágoras chama de
sementes (spšrmata). São elas a φÚsij. Na
cosmologia de Anaxágoras, as sementes que saem da
φÚsij (que é uma mistura primordial) pela ação do
noàj contêm, em cada uma delas, todos os elementos
que estão presentes no universo. São germes ou grãos
de todas as coisas. Quando dividimos um coração, não
encontramos corações menores, mas carne, e esta,
dividida, sempre será a mesma carne. Ou seja, a
semente da carne do coração será a mesma na menor
partícula em que for dividida. Por esse motivo,
Aristóteles designou as sementes de Anaxágoras com o
nome com que ficaram conhecidas na história da
filosofia: homeomerias (Ðmoiomšreia), partículas
semelhantes ou iguais. Esta palavra é composta de
Ðmo-, que vem de Ómoioj (semelhante, igual, de mesma
natureza, de mesmo gênero, comum a todos, que
convém à natureza de, igual a) e mšroj (parte, porção,
pedaço). Significa um todo formado de partes ou
porções iguais ou análogas. O semelhante provém do
semelhante, pois, pergunta o filósofo no frag. 10,
“como o cabelo viria do não-cabelo e a carne da nãocarne?” (pîj g¦r ¥n, φhs…n, ™k m¾ tricÕj gšnoito
qrˆx kaˆ s¦rx ™k m¾ sarkÒj; Schol. In Gregor.
XXXVI, 911). Sementes de cabelo serão cabelo,
sementes de carne serão carne. Reunidas, as sementes
semelhantes formam uma realidade que é de mesma
natureza ou de mesma composição ou de mesma
mistura que elas. Tomando a nutrição como exemplo,
Anaxágoras dizia que se o pão e a água podem nutrir
todo o nosso corpo (cabelos, sangue, carne, nervos,
ossos) é porque em ambos encontraremos os elementos
ou sementes de todas as partes do corpo que podem ser
por eles alimentadas. “Tudo está em tudo”, é a lei da
natureza.
As sementes — spšrmata ou Ðmoiomereiai
— são invisíveis. Como sabemos de sua existência?
Como sabemos que são a φÚsij ou o ser? Como
sabemos que são eternas, imutáveis, imóveis, idênticas
a si mesmas, totalidades plenas, como o ser de
Parmênides? Pelo pensamento. No frag. 21, lemos:
“por causa da fraqueza deles (os sentidos) não somos
capazes de discernir a verdade. Mas podemos valer-nos
da experiência, da memória, da sabedoria e das
técnicas. Pois o que aparece é uma visão do invisível”
(“Øp’ ¢φaurÒthtoj aÙtîn, φhs…n, oÙ dunato…
™smen kr…nein t¢lhqšj”, t…qhs… te p…stin aÙtîn
tÁj ¢pist…aj t¾n par¦ mikrÕn tîn crwm£twn
™xallag»n. e„ g¦r dÚo l£boimen crèmata, mšlan
kaˆ leukÒn, eta ™k qatšrou e„j q£teron kat¦
stagÒna parekcšoimen, oÙ dun»setai ¹ Ôψij
diakr…nein t¦j par¦ mikrÕn metabol£j, ka…per
prÕj t¾n φÚsin Øpokeimšnaj. SEXTO EMPÍRICO,
Contra os Matemáticos, VII, 90).
Encontramos, assim, em Anaxágoras, a
continuação da perspectiva de Parmênides e de
Heráclito, isto é, somente a razão ou a inteligência,
somente o pensamento alcança a realidade última e
originária. No entanto, também há em Anaxágoras a
presença da medicina e das artes: a experiência e as
técnicas nos ajudam a suprir deficiências dos sentidos.
E encontramos, ainda, a tradição antiga da ¢l»qeia,
isto é, do não-esquecido, pois Anaxágoras atribui um
grande papel à memória no conhecimento verdadeiro.
A razão ou inteligência, auxiliada pela
experiência, pela memória e pelas técnicas ou artes,
nos ensina que o verdadeiro é invisível. Porém nos
ensina algo mais, que também é invisível: a causa das
misturas e separações das sementes.
O primeiro fragmento atribuído a Anaxágoras
diz: “todas as coisas estavam juntas, ilimitadas em
número e pequenez, pois o pequeno é ilimitado. E
enquanto todas as coisas estavam juntas, nenhuma
delas podia ser reconhecida devido à sua pequeneza. O
ar e o éter prevaleciam sobre as demais, ambos
ilimitados, pois no conjunto de todas as coisas, estas (o
ar e o éter) são as maiores tanto em quantidade quanto
em grandeza” (Ðmoà p£nta cr»mata Ãn, ¥peira kaˆ
plÁqoj kaˆ smikrÒthta· kaˆ g¦r tÕ smikrÕn
¥peiron Ãn. kaˆ p£ntwn Ðmoà ™Òntwn oÙdn
œndhlon Ãn ØpÕ smikrÒthtoj· p£nta g¦r ¢»r te
kaˆ a„q¾r kate‹cen, ¢mφÒtera ¥peira ™Ònta·
taàta g¦r mšgista œnestin ™n to‹j sÚmpasi kaˆ
pl»qei kaˆ megšqei. SIMPLÍCIO, Comentário sobre a
Física de Aristóteles, 155, 23).
E no final do quarto fragmento está escrito:
“antes, contudo, de se separarem, quando todas as
coisas ainda estavam juntas, nenhuma cor se podia
distinguir, nem uma única. Pois a mistura de todas as
coisas o impedia — a do úmido e do seco, do quente e
do frio, do luminoso e do escuro, assim como também
pela muita terra que nela se encontrava e pelas
sementes em quantidade infinita, sem semelhança
umas com as outras. Pois também nas outras coisas,
nenhuma é semelhante às outras. E se isto é assim,
devemos supor que todas as coisas estão no todo”
(prˆn d ¢pokriqÁnai taàta p£ntwn Ðmoà ™Òntwn
oÙd croi¾ œndhloj Ãn oÙdem…a· ¢pekèlue g¦r ¹
sÚmmixij p£ntwn crhm£twn, toà te dieroà kaˆ toà
xhroà kaˆ toà qermoà kaˆ toà ψucroà kaˆ toà
lamproà kaˆ toà zoφeroà, kaˆ gÁj pollÁj
™neoÚshj kaˆ sperm£twn ¢pe…rwn plÁqoj oÙdn
™oikÒtwn ¢ll»loij. oÙd g¦r tîn ¥llwn oÙdn
œoike tÕ ›teron tîi ˜tšrwi. toÚtwn d oÛtwj
™cÒntwn ™n tîi sÚmpanti cr¾ doke‹n ™ne‹nai
p£nta cr»mata. SIMPLÍCIO, Comentário sobre a
Física de Aristóteles, 34, 28).
AULA 72.
ANAXÁGORAS DE CLAZÔMENAS (PARTE III)
No princípio havia um magma (m…gma)
indiscernível onde tudo estava misturado com
tudo, onde nada podia ser discernido por causa da
pequeneza de cada semente, onde o ar e o éter
prevaleciam sobre o restante (isto é, uma bruma
recobria tudo, não permitindo que coisa alguma
pudesse ser distinta de outras) e onde tudo
participava de tudo. Desse magma, feito das
sementes indiscerníveis, surge a separação,
surgem as coisas e o kÒsmoj. De onde vem a
separação ordenadora do mundo? Como para
Empédocles, também para Anaxágoras a força
separadora e unificadora, organizadora do
kÒsmoj, é diferente do magma dos elementos,
embora eterna e imutável como eles. Essa força,
diferente do magma de sementes e separada dele,
Anaxágoras denomina noàj, a força inteligente ou
pensante. Não é incorpórea, pois só existe o
corporal. Mas é diáfana, ou seja, permite a
passagem da luz, transparente, sutil, invisível.
Essa força inteligente introduz o movimento na
massa primitiva das sementes, produzindo a
separação dos diferentes e a reunião dos
semelhantes, a composição e a dissociação, o
devir. O noàj é a força que sabe ou reconhece
todas as coisas, que move todas as coisas, e que
tem esse poder porque “não está misturado com
nenhuma coisa, mas se encontra sozinho e em si
mesmo”. Como Deus, o noàj ou Inteligência está
fora e separado do mundo. No frag. 12, lemos: “a
inteligência é ilimitada, independente e não
misturada com outra coisa, mas está sozinha em si
mesma [...] É a mais sutil e mais pura de todas as
coisas e possui pleno conhecimento de tudo e tem
grandíssima força; e sobre quantas coisas têm
alma, das maiores às menores ele tem poder”
(noàj dš ™stin ¥peiron kaˆ aÙtokratj kaˆ
mšmeiktai oÙdenˆ cr»mati, ¢ll¦ mÒnoj aÙtÕj
™p’ ™wutoà ™stin. [...] œsti g¦r leptÒtatÒn te
p£ntwn crhm£twn kaˆ kaqarètaton, kaˆ
gnèmhn ge perˆ pantÕj p©san ‡scei kaˆ
„scÚei mšgiston· kaˆ Ósa ge ψuc¾n œcei kaˆ
t¦ me…zw kaˆ t¦ ™l£ssw, p£ntwn noàj krate‹.
SIMPLÍCIO, Comentário
Aristóteles, 164, 12).
sobre
a
Física
de
O mundo se forma a partir de um
movimento rotatório ou turbilhonante que o noàj
realiza no magma primitivo, ampliando-se e
estendendo-se até alcançar o todo. Sua rapidez
separa o rarefeito e o denso, o frio e o quente, o
úmido e o seco, o luminoso e o obscuro. Formamse, inicialmente, duas grandes massas, uma de
fogo (na parte exterior) e outra de ar (na parte
inferior). A seguir, o ar se separa em nuvens,
água, terra e pedras; depois, separa-se o fogo e
surge o mundo que conhecemos (e que, segundo
Anaxágoras, não é o único mundo existente, mas
um dentre os inúmeros mundos formados pelo
noàj). Como o fogo de Heráclito, o noàj é
inteligência e poder, porém, diferentemente do
fogo heraclitiano, não participa do processo que
realiza, mas permanece separado do mundo e do
magma primitivo, movendo-os de fora. Não é pura
espiritualidade, mas matéria diáfana incorruptível.
Não é uma força sagrada ou sacralizada, mas
natural, um motor cósmico responsável pela vida
universal e sua ordem (compreende-se que o
tribunal ateniense o tivesse acusado de ateísmo ou
impiedade, pois o noàj torna os deuses
desnecessários).
Médico adepto de uma outra concepção da
medicina, Anaxágoras oferece uma teoria da
percepção oposta à de Empédocles. Para a
medicina adotada por este último, o semelhante
age sobre o semelhante e o semelhante conhece o
semelhante. Para a medicina adotada por
Anaxágoras, os contrários é que agem uns sobre
os outros, pois, como relata Teofrasto, “as coisas
semelhantes não podem ser afetadas por outras
semelhantes”. Conseqüentemente, para que a
vista, a audição, o olfato possam discernir as
coisas é preciso que os órgãos dos sentidos sejam
afetados pelo diferente, pelo contrário, pelo
oposto. Não posso sentir o frio, senão porque sou
quente; não posso sentir o quente, senão porque
sou mais frio do que o objeto que me toca. A
sensação é uma espécie de dor e não de prazer
(porque o prazer é trazido pelos semelhantes). A
percepção é um choque entre diferentes.
NOME: ___________________________________________________________________ Nº: ______ SÉRIE: _______.
DATA: _____/_____/_____.
AULA 73.
EXERCÍCIOS:
1. Durante o curso foram estudados alguns autores da filosofia. Qual desses autores chamou-lhe
mais a atenção? Por quê?
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2. É possível assinalar diferenças entre a filosofia e as outras disciplinas? Quais são as diferenças?
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3. O que você espera de um curso de filosofia? O curso assistido contribuiu para a sua formação?
Justifique sua resposta.
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AULA 74.
FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900)
A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a
proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo
necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em
primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das
coisas; em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em
terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está
contido o pensamento: “Tudo é um”. A razão citada em primeiro lugar deixa
Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o
tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em
virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se tivesse dito:
“Da água provém a terra”, teríamos apenas uma hipótese científica, falsa,
mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa
representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o
estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por
sobre ele. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que
Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais
exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia
tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado
metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que
encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados
para exprimi-la melhor  a proposição: “Tudo é um”.
É notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a
empiria: exatamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia,
em todos os tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente
atraente, transpondo as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta
para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés.
Pesadamente, o entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca
esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua
companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de
um regato selvagem, que corre rodopiando pedras; o primeiro, com pés
ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançarse mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas.
O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir
fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não
dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato.
O que, então, leva o pensamento filosófico tão rapidamente a seu
alvo? Acaso ele se distingue do pensamento calculador e mediador por seu
vôo mais veloz através de grandes espaços? Não, pois seu pé é alçado por
uma potência alheia, lógica, a fantasia. Alçado por esta, ele salta adiante, de
possibilidade em possibilidade, que por um momento são tomadas por
certezas; aqui e ali, ele mesmo apanha certezas em vôo. Um pressentimento
genial as mostra a ele e adivinha de longe que nesse ponto há certezas
demonstráveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e
iluminar como um relâmpago as semelhanças: mais tarde, a reflexão vem
trazer seus critérios e padrões e procura substituir as semelhanças por
igualdades, as contigüidades por causalidades. Mas, mesmo que isso nunca
seja possível, mesmo no caso de Tales, o filosofar indemonstrável tem ainda
um valor; mesmo que estejam rompidos todos os esteios quando a lógica e a
rigidez da empiria quiseram chegar até a proposição “Tudo é água”, fica
ainda, sempre, depois de destroçado o edifício científico, um resto; e
precisamente nesse resto há uma força propulsora e como que a esperança de
uma futura fecundidade.
Naturalmente não quero dizer que o pensamento, em alguma
limitação ou enfraquecimento, ou como alegoria, conserva ainda, talvez, uma
espécie de “verdade”: assim como, por exemplo, quando se pensa em um
artista plástico diante de uma queda d’água, e ele vê, nas formas que saltam
ao seu encontro, um jogo artístico e prefigurador da água, com corpos de
homens e de animais, máscaras, plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral,
com todos os protótipos possíveis: de tal modo que, para ele, a proposição
“Tudo é água” estaria confirmada. O pensamento de Tales, ao contrário, tem
seu valor  mesmo depois do conhecimento de que é indemonstrável  em
pretender ser, em todo caso, não-místico e não-alegórico. Os gregos, entre os
quais Tales subitamente destacou tanto, eram o oposto de todos os realistas,
pois propriamente só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses e
consideravam a natureza inteira como que apenas um disfarce, mascaramento
e metamorfose desses homens-deuses. O homem era para eles a verdade e o
núcleo das coisas, todo o resto apenas aparência e jogo ilusório. Justamente
por isso era tão incrivelmente difícil para eles captar os conceitos como
conceitos: e, ao inverso dos modernos, entre os quais mesmo o mais pessoal
se sublima em abstrações, entre eles o mais abstrato sempre confluía de novo
em uma pessoa. Mas Tales dizia: “Não é o homem, mas a água, a realidade
das coisas”; ele começa a acreditar na natureza, na medida em que, pelo
menos, acredita na água. Como matemático e astrônomo, ele se havia tornado
frio e insensível a todo o místico e o alegórico e, se não logrou alcançar a
sobriedade da pura proposição “Tudo é um” e se deteve em uma expressão
física, ele era, contudo, entre os gregos de seu tempo, uma estranha raridade.
Talvez os admiráveis órficos possuíssem a capacidade de captar abstrações e
de pensar sem imagens, em um grau ainda superior a ele: mas estes só
chegaram a exprimi-lo na forma da alegoria. Também Ferécides de Siros, que
está próximo de Tales no tempo e em muitas das concepções físicas, oscila,
ao exprimi-Ias, naquela região intermediária em que o mito se casa com a
alegoria: de tal modo que, por exemplo, se aventura a comparar a Terra com
um carvalho alado, suspenso no ar com as asas abertas, e que Zeus, depois de
sobrepujar Kronos, reveste de um faustoso manto de honra, onde bordou,
com sua própria mão, as terras, águas e rios. Contraposto a esse filosofar
obscuramente alegórico, que mal se deixa traduzir em imagens visuais, Tales
é um mestre criador, que, sem fabulação fantástica, começou a ver a natureza
em suas profundezas. Se para isso se serviu, sem dúvida, da ciência e do
demonstrável, mas logo saltou por sobre eles, isso é igualmente um caráter
típico da cabeça filosófica. A palavra grega que designa o “sábio” se prende,
etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o
homem do gosto mais apurado; um apurado degustar e distinguir, um
significativo discernimento, constitui, pois, segundo a consciência do povo, a
arte peculiar do filósofo. Este não é prudente, se chamamos de prudente
àquele que, em seus assuntos próprios, sabe descobrir o bem. Aristóteles diz
com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito,
assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não se importavam com
os bens humanos”. Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso,
difícil, divino, a filosofia marca o limite que a separa da ciência, do mesmo
modo que, ao preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudência. A
ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre
tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer
preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de
serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes.
Mas o conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral
quanto no estético: assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a
ela se prende uma doação de nomes. “Isto é grande”, diz ela, e com isso eleva
o homem acima da avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao
conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso: ainda
mais por considerar o conhecimento máximo, da essência e do núcleo das
coisas, como alcançável e alcançado. Quando Tales diz: “Tudo é água”, o
homem estremece e se ergue do tatear e rastejar vermiformes das ciências
isoladas, pressente a solução última das coisas e vence, com esse
pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do conhecimento. O
filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo,
expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o artista plástico,
compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o
homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do
macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o reflexo
do mundo, essa lucidez que tem o artista dramático quando se transforma em
outros corpos, fala a partir destes e, contudo, sabe projetar essa transformação
para o exterior, em versos escritos. O que é o verso para o poeta, aqui, é para
o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-se em seu
enfeitiçamento, para petrificá-la. E assim como, para o dramaturgo, palavra e
verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira, para dizer nela o que
viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia anunciar pelos gestos e
pela música, assim a expressão daquela intuição filosófica profunda pela
dialética e pela reflexão científica é, decerto, por um lado, o único meio de
comunicar o contemplado, mas um meio raquítico, no fundo uma
transposição metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua diferentes.
Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis
comunicar-se, falou da água!
Nietzsche, Friedrich. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos. §3, Ed.
Kröner, 1873.
Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho
Humberto Zanardo Petrelli
[email protected]
Limeira, 6 de março de 2007.

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