cristologia - Oblatos de São José
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cristologia - Oblatos de São José
Pe. José Antonio Bertolin, OSJ Condensação de Estudos sobre a Cristologia 1 Pe. José Antonio Bertolin, OSJ Jesus, um DEUS ocultado na pele de um carpinteiro Condenação de Estudos sobre a Cristologia CONGREGAÇÃO DOS OBLATOS DE SÃO JOSÉ SEDE DA PROVÍNCIA NOSSA SENHORA DO ROCIO Rua João Bettega, 796 - Bairro do Portão CEP 81070-000 - CURITIBA PR CAIXA POSTAL 8882 CEP 80611-970 - Curitiba Pr FONE 0xx41- 229 1181 FAX 0xx41- 229 1017 Email: [email protected] Curitiba, janeiro de 2003 2 APRESENTAÇÃO Durante o meu curso de Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, deparei-me com a Cristologia e por ela me encantei. Queria seguir aprofundado-a depois do bacharelado, porém a urgência dos trabalhos em minha Província brasileira não permitiume continuar sentando nos bancos da Universidade Romana. O gosto por esta matéria porém, continuou perseguindo e a impossibilidade de dedicar-me a ela também, por isso supri o desejo com leituras relacionadas a Jesus Cristo e até cheguei tornar público um livreto denominado “Jesus, o infinito presente na história dos homens”. Dentre as várias anotações que fiz sobre o estudo cristológico e que consegui recuperar em meus arquivos já esquecidos, selecionei uma série delas, as quais as “amarrei” para dar uma seqüência um pouco mais lógica e coloquei nestas páginas que seguem. O objetivo deste não é para uma publicação porque tem muito pouco de meu e quase tudo haurido de diversos autores e de muitos livros, mas sim uma “condensação” de estudos cristológicos para o meu “deleite”. Para estudos amplos e aprofundados sobre Jesus Cristo existem os bons teólogos. A diversidade de enfoques e de opções de estudiosos neste campo é infindável, basta dizer que dados publicados há não muito tempo, dão conta de que até o ano de 1997 tinham sido contabilizados 65.571 livros escritos sobre Jesus Cristo e que de 1970 até 1997 tinham sido publicados mais de 25.000 livros sobre Jesus, e a cada quatro dias nestes últimos tempos têm surgido aproximadamente 4 livros sobre o nosso Salvador, Jesus Cristo. 3 Sendo as páginas que seguem um resumo de livros sobre Jesus Cristo para aprofundamento pessoal, deixo claro se por acaso estas caírem nas mãos de qualquer afeiçoado em Cristologia, que as mesmas não têm o aprimoramento de um livro que tomamos e lemos na sua seqüência e no esquema do escritos porque tratam justamente de apontamentos pessoal sem qualquer intuito de publicações ou de comercialização, por isso, às vezes aparecerão idéias repetidas ou assuntos em que não se nota uma seqüência nas exposições das idéias de um bloco ou de um número para outro. Por fim, coloco como importante que a pessoa de Jesus Cristo é tão ampla, rica e poliédrica que jamais qualquer abordagem, ou um “pequeno resumo” como este poderão dar uma idéia completa sobre ele; este, aliás, é apenas um bebericar nas inumeráveis fontes de abordagem daquele que um dia tornou-se o “Deus conosco” e quis ocultar-se na pele de um carpinteiro. Curitiba, janeiro de 2003. Pe. José Antonio Bertolin, OSJ 4 INTRODUÇÃO Jesus galvanizou o mundo com sua vida e sua história e ninguém como ele conseguiu tamanha proeza, nem mesmo aqueles que são considerados os suportes da expansão do mundo das idéias nos mais diversificados campos espiritual, filosófico, psicológico, físico ou sociológico. Diante dele pensadores como Tomás de Aquino, Agostinho, Kant, Bacon, Hegel, Descartes, homens da ciência, da política, da sociologia, da psicologia como Newton, Darwin, Einstein, Freud, Jung, Viktor, Flankl, Voltaire, Gandhi, Max Weber, Galileu, Shakespeare, enfim uma gama incontável de personagens ilustres que semearam idéias inovadoras, romperam conceitos, ampliaram horizontes e influenciaram gerações, não tiveram tanto ressonância como Jesus Cristo. Ele dividiu a história em duas partes, com o seu nascimento, ele arrebanhou ao longo dos vinte séculos depois do seu nascimento, bilhões de seguidores fazendo com que incontáveis destes pautassem suas vidas e comportamentos em seus ensinamentos nutrindo por Ele não apenas respeito, mas adoração. A base de sua doutrina fundamentada na sua vida é o amor universal para com todos, inclusive aos inimigos. A base do relacionamento humano ficou solidificada nos seus ensinamentos, dos quais muitos foram contra a lógica religiosa do seu tempo. A sua personalidade é a mais espetacular de todos os homens que nesta terra viveram ou vivem. Ele foi um especialista na arte de relacionar-se com os outros, e de expor suas idéias deixando a todos atônitos por onde passava, mesmo àqueles que o rejeitavam fazendo com que os seus inimi5 gos ficassem perturbados com suas palavras e com o seu comportamento. Ele virou o mundo de cabeça para baixo provocando uma revolução no pensamento humano banindo a discriminação social dialogando afavelmente com as prostitutas, comendo com os pecadores, comunicandose com os leprosos, declarando bem aventurados na sociedade não aqueles que possuem riquezas, status social, cultura, voz e vez na sociedade, mas os pobres, os sofredores, os abandonados, os operadores da paz... Ele rejeitou a escola dos cultos mudando completamente o modo de encarar o poder. Embora taumaturgo que curava leprosos, aleijados, coxos, cegos, surdos, mudos, que expulsava demônios, que ressuscitava gente, na verdade apresentava-se como o próprio Deus presente na história dos homens e sendo o próprio “Filho de Deus”, insistia em ser reconhecido como “Filho do Homem”, passando-se por desapercebido, não impondo as suas idéias, tornando-se servo, lavando os pés de seus discípulos, inclusive de quem depois o trairá. Por amor aos homens deixou-se ser perseguido, aprisionado como um malfeitor, interrogado como um fora da lei, espancado, açoitado, zombado, cuspido, ferido por uma coroa de espinhos cravada em sua cabeça, esbofeteado, abandonado pelos seus discípulos na Getsêmani, renegado por Pedro. Suou sangue no Jardim das Oliveiras, e por amor aceitou assumir uma pesada cruz carregando-a até o calvário entre insultos e blasfemais e por fim deixou-se ser pregado na própria cruz entre dois ladrões e nela permanecer pendurado por 6 horas suportando a mais terrível das dores até que tudo estivesse consumado e nas mãos do Pai entregasse o seu Espírito. 6 Mas o Verbo que se fez carne e habitou entre nós, não terminou sua vida naquela cruz, nem mesmo num sepulcro de pedra onde depois o puseram, pois ele venceu a morte ressuscitando e dando provas de que é o senhor da vida. Ele não é fruto de uma invenção literária, é sim o Filho de Deus, nosso Salvador e é por isso que sua pessoa, sua vida e seus ensinamentos merecem e precisam ser conhecidos e amados, mas acima de tudo serem seguidos e permeados no coração e na vida de cada ser humano. 7 I. PARTE 1. O QUE É CRISTOLOGIA. 1.1. A Cristologia é o estudo sobre Jesus Cristo, é um tratado central da teologia sendo que Jesus Cristo é o revelador do Pai e do Espírito Santo. O conteúdo deste tratado pode ser dividido em duas parte: O estudo da pessoa de Cristo como tal, o qual procura-se aprofundar o mistério da encarnação do Verbo, ou seja, a união Hipostática e suas propriedades (a graça de Jesus Cristo, a ciência e a consciência de Jesus, a sua vontade, a sua liberdade, as ações Teândricas). O estudo da obra salvífica de Jesus ou a soteriologia, que compreende a vida pública a morte, a ressurreição, a ascensão de Cristo e o Pentecostes como evento salvíficos. Ao estudar a cristologia podemos seguir dois método: o da Cristologia Ascendente que parte do aspecto humano de Jesus, particularmente da figura do servo de Javé, obediente até a morte e que recebe o título de Kýrios após a sua ressurreição. Nesta metodologia não se nega a divindade de Jesus e o método da Cristologia Descendente o qual parte da divindade de Jesus considerando-o Deus feito homem. Afirma a sua préexistência, o seu nascimento humano no seio da Virgem Maria, que viveu neste mundo como homem em tudo menos no pecado e que por fim voltou ao Pai fazendo sua humanidade ressuscitada compartilhar com a glória de Deus. Na cristologia ascendente (de baixo para cima) temos alguns trechos bíblicos fundamentais como: Fl 2,611 (Jesus feito homem obediente até a morte de cruz, 8 morto e ressuscitado e proclamado como o Senhor). Também todos os discursos dos apóstolos no livro Atos de Apóstolos nos capítulos 1-5. A cristologia descendente (de cima para baixo) refere-se ao Lógos que no princípio existia voltado para o Pai, como Deus, e que se fez carne vindo habitar entre nós. Alguns trechos de São Paulo servem de base para fundamentar este método, como por exemplo 1Cor 1,30; 2,8; Rm 9,4. Destas duas metodologias originaram nos séculos 3º e 4º duas escolas diferentes de teologia. A escola Antioquena, a qual acentuava a humanidade de Jesus, detendo-se mais no sentido histórico da humanidade de Jesus e a escola Alexandrina, a qual dava preferência para a divindade de Jesus e para o seu aspecto transcendental. Ambas com suas próprias metodologias quando permaneceram apenas na suas visões, deram origens a algumas heresias a respeito de Jesus Cristo tal como o Nestorianismo tendo como representante Nestório (+451) o qual enfatizou tanto a humanidade de Jesus que passou a ensinar que existiam duas natureza nele; a natureza humana e a natureza divina. A natureza divina com seu eu divino estaria unida à natureza humana com o seu eu humano. A outra heresia foi chamada de Monofisismo, esta encabeçada por Dióscoro de Alexandria e por Eutiques de Constantinopla que enfatizaram a divindade de Jesus e só admitiram nele apenas a natureza divina; esta para eles, teria absorvido a natureza humana de modo que nele estava somente uma aparência de sua divindade. Ambas heresias foram condenadas sendo que a primeira pelo Concílio de Éfeso em 431 e a segunda pelo Concílio de Calcedônia em 451. Naturalmente a Igreja afirmou que Jesus Cristo é o homem perfeito, nascido 9 da Virgem Maria e Filho Divino de Deus que realizou a salvação da humanidade. Para conhecer melhor esta doutrina da Igreja, basta conferir o documento conciliar Gaudium et Spes nos números 22 e 41. A cristologia parte de uma fundamentação bíblica, pois é sobretudo a partir dos textos dos evangelhos que devemos extrair a verdadeira imagem de Jesus Cristo, mas para isso precisamos buscar a credibilidade dos evangelhos. A partir da segunda década do século XIX o método História das Formas surgido com alguns teólogos protestantes, chamou atenção sobre o ocorrido entre a pregação de Jesus (anos 27-30) e a fase de redação dos evangelhos (anos 50-100) tempo em que a Boa Nova foi transmitida oralmente. Em cada um dos territórios onde a Palavra foi pregada os evangelizadores estiveram dentro do chamado sitz in leben, ou seja procuraram fazer com que a mensagem se tornasse resposta adequada ao povo daquela região. Entre os evangelizadores não houve uma preocupação histórica e em conseqüência disso a mensagem de Jesus distanciou-se da sua originalidade. Isto fez que quando os evangelistas redigiram os evangelhos já não tivessem mais uma figura de Jesus fiel ao Jesus real do início, ou seja, os primeiros cristãos professavam o Jesus da fé e não o Jesus da história. Para teólogos protestantes como Bultmann a linguagem dos evangelhos é mítica, imaginosa e por isso seria necessário fazer a demitização dos evangelhos. A teologia católica admite que o evangelho antes de ser escrito foi pregado oralmente no início e que os pregadores se preocuparam mais em estruturar a fé dos ouvintes levando a eles a mensagem de salvação. Porém não admite que tenha havido desvio da realidade histórica ou o desinteresse pela figura real de Jesus, e por isso, quem crê nos evangelhos não crê naquilo que os 10 antigos cristãos imaginavam simploriamente, mas na autêntica mensagem de Jesus Cristo. A fundamentação dessa afirmação podemos tê-la na seguintes considerações: As primeiras comunidades fundadas foram guiadas e também visitadas pelos apóstolos os quais procuraram ser fiéis na transmissão e na conservação da mensagem (At 1,15-26; 2,14-40; 3,12-26; 5,29-32; 1Cor 15,6). Os apóstolos foram testemunhas do que viram e ouviram (At 1,8; 2,32; 3,15; 4,20;13,30; 1Cor 15,3-11). Os pregadores tiveram a preocupação de transmitir fielmente a mensagem, (1Cor 11,2.23; Fl 2,14; 4,9; 1,12s). A fé cristã é ligada a fatos históricos e objetivos, de modo que não pode ser negada a sua autenticidade. São Paulo afirma que se Jesus não tivesse ressuscitado, seria vazia a pregação e ilusória a fé (1Cor 15,14). Os apóstolos sempre procuraram distinguir entre o mito e a Palavra da verdade (1Tm 1,3; 4,7; 2Tm 1,4; Pd 1,16). Além do mais, a transmissão da fé foi acompanhada pelo Espírito Santo prometido por Jesus (Jo 14,22). Esclarecendo de uma maneira mais concreta afirma-se que a teologia é a ciência que tem por objeto Deus e a Cristologia tem por objeto Cristo, sua pessoa e sua obra. A teologia cristã primitiva é quase que exclusivamente uma cristologia. As discussões teológicas se relacionaram todas à pessoa de Cristo, à sua natureza por um lado, e a sua relação com Deus. Por outro, por isso o Novo Testamento não fala quase nada da pessoa de Cristo sem que se trate ao mesmo tempo de sua obra. Ao se perguntar quem é Cristo? Pergunta-se também; qual é a sua função? Por isso os títulos Cristológicos referem sempre e ao mesmo tempo, à pessoa e à obra de Cristo. 11 A Cristologia não é uma ciência das “naturezas” de Jesus Cristo, mas sim de um acontecimento, de uma história. Não existe história da salvação sem Cristologia, assim como não existe Cristologia sem uma história da salvação que se desenvolve no tempo. Os evangelistas Marcos (8,29) e Mateus (16,15) mostram que Jesus fez aos seus discípulos uma pergunta decisiva: "E vós quem dizeis que eu sou? ". Na verdade o povo tinha uma idéia de que Jesus era João Batista um profeta, mas Pedro em nome dos discípulos disse-lhe: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo". A resposta de Pedro pode ser vista como a primeira afirmação cristológica. De fato, ela coincide com o conteúdo da primeira pregação querigmática da igreja apostólica. No dia de Pentecostes, como nos relatam Atos dos Apóstolos, Pedro dirigiu-se aos judeus fazendo a primeira pregação cristã com essas palavras: “Que toda a casa de Israel saiba com certeza: esse Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2,36). O Cristo, o Senhor, o Filho de Deus, são os três títulos que constituem o núcleo da fé cristológica primitiva. A fé cristã deu a Jesus o título de “ungido”, assim como Buda recebeu o título de “O iluminado”, porém há uma diferença: Buda pregou uma mensagem de libertação; Jesus anunciou a Boa-Nova do Reino de Deus. Buda agiu com a autoridade de uma experiência religiosa (nirvana), Jesus agiu com a autoridade de sua experiência tendo Deus como Abba. Buda é para os outros o caminho da libertação, Jesus ao contrário, é o caminho. A pessoa, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo são centrais para o mistério cristão. A pessoa de Jesus e a sua obra constituem a fonte, o centro e o fim de tudo que o cristianismo significa e anuncia. Por isso a teologia cristã é essencialmente cristológica. Jesus Cristo, o Filho encarnado é o caminho para Deus: “Eu 12 sou caminho, a verdade e a vida...” (Jo 14,6). Jesus encarnado é o exegeta e o intérprete do Pai; nele Deus se revelada e se manifesta. Jesus nos descortinou o mistério de Deus como ele o vivenciou em sua consciência humana, embora o Deus revelado em Jesus Cristo permanece um Deus escondido. Jesus é o caminho para o Pai, o qual em seu eterno desígnio o colocou no centro de seu plano divino para toda humanidade. 1.2. Métodos da cristologia - Na cristologia um dos métodos que permaneceu até tempos atrás foi o chamado "dogmático", que tomava com ponto de partida as definições do magistério da Igreja, especialmente as do Concílio de Calcedônia, visando comprovar os elementos essenciais do mistério de Cristo com as citações bíblicas. Este método tem algumas limitações e perigos. Nele o Novo Testamento não aparece como a alma do projeto cristológico, mas como um apoio para as formulações dogmáticas. A base definitiva para interpretar essas formulações é pelo dogma e não pela Palavra de Deus. Ora, tudo isso ocasionava um perigo de dogmatismo, procurando absolutizar o modelo cristológico que levava a uma cristologia abstrata, que perdendo a relação com a existência concreta de Jesus, arriscava ser irrelevante para hoje. Ultimamente tem havido um outro método mais adequado que pode ser chamado de “histórico- evolutivo”. Seu ponto de partida é a Sagrada Escritura com especial acento na expectativa messiânica presente no Antigo Testamento e no seu cumprimento na pessoa de Jesus. Este método acompanha o desenvolvimento da reflexão teológica pela tradição pós-bíblica dos Padres da Igreja chegando assim aos Concílios cristológicos, cujo propósito era condenar as heresias cristógicas nascidas 13 de duas frentes opostas: o Nestorianismo e o Monofisismo. O mérito principal desse método, comparado com o anterior, é o primado atribuído à teologia “positiva”, ou seja, ao estudo das fontes distinto da teologia "especulativa". É de se ressaltar que este método implica também o risco de deixar pouco espaço para o pluralismo teológico. Podemos dizer que ambos os métodos, o dogmático e o histórico- evolutivo, também chamado de genérico, servem de motivos para tirar conclusões precisas dos dados cristológicos preestabelecidos. Ambos são especulativos porque partem de uma doutrina para aplicá-la à realidade, mas nem sempre com uma ligação à existência real e concreta. 1.3 O problema hermenêutico - Toda a cristologia do Novo Testamento é uma hermenêutica inspirada na experiência pascal dos discípulos, na história de Jesus. As diferentes cristologias representam as diversas interpretações do evento à luz da páscoa, sendo cada uma delas condicionadas seja pelo contexto eclesial, seja pela personalidade singular do autor ou do editor do material. Em outras palavras, deve-se levar em consideração o texto, o contexto e o intérprete. Não devemos entender por texto somente o dado revelado que está presente na bíblia, mas tudo aquilo que faz parte da chamada memória cristã, a saber, a tradição objetiva. Portanto, o texto contém a Escritura, a Tradição e o Magistério da igreja. Quanto ao contexto, sua constituição varia conforme os diferentes lugares e períodos da história ,tais como as condições sociais, políticas, culturais e religiosas. Por fim, quanto ao intérprete, não deve ser levado tanto em consideração o indivíduo mas a igreja local como povo de Deus que vive sua experiência de fé em comunhão com a igreja apostólica. Em outras palavras, 14 existe uma interação entre a memória cristã, a realidade cultural e a igreja local. O contexto age no intérprete por meio da apresentação de problemas específicos e influi na pré-compreensão da fé com a qual o intérprete leu texto. Este por sua vez, age no intérprete, cuja leitura do texto oferecerá uma diretriz à prática cristã e assim por diante. 1. 4 As diversas cristologias - Nenhuma teologia particular pode ter validade para todos os tempos e em todos os lugares. A teologia universal consiste na comunhão das diferentes teologias locais. Por isso, a diversidade de contexto elabora tanto a teologia como cristologia. Por exemplo no ambiente do primeiro mundo onde o progresso tecnológico é bastante presente, assim como a secularização, o destinatário da teologia é muitas vezes, o não crente. Já no ambiente do terceiro mundo ou países em via de desenvolvimento marcado pela pobreza e de subdesenvolvimento, o contexto da teologia não visa o não crente, mas exatamente a “não - pessoa”; portanto será um contexto de teologia da libertação, como por exemplo a situação do continente latino-americano. Já no continente asiático caracterizado por pequeno número de cristãos e por um tradições religiosas diversificadas, o acento será sobre o diálogo inter-religioso. 2. ABORDAGENS CRISTOLOGIA BÍBLICAS E TEOLÓGICAS DA a) Abordagem histórico-crítica Este método tem o propósito de extrair dos evangelhos tudo o que é possível afirmar criticamente a respeito de Jesus. Um dos importantes expoentes deste método foi Rudolf Bultmann o qual demonstrou ceticismo 15 quanto à possibilidade de se estabelecer alguma coisa com certeza sobre o Jesus histórico, pois as fontes cristãs se interessaram de seu aspecto de modo muito fragmentário e com um tom romanceado. Por outro lado, discípulos de Bultmann como E. Käsemann, demonstrou que existe na tradição sinótica certos elementos que o historiador deve aceitar como autênticos; por isso ele afirma que na história de Jesus emergem traços característicos de sua pregação observáveis com precisão e incorporados à sua própria mensagem pelo cristianismo primitivo. Afirma ainda que a questão do Jesus histórico é legitimamente, a questão da continuidade do evangelho. A Igreja reconheceu a validade do método histórico-crítico desde que seja prudente e equilibradamente utilizado. Ela distingue três etapas na formação dos evangelhos: o Jesus da história (Formgeschchite), as Tradições orais (Traditiongeschichte) e as Tradições escritas (Redactiongeschichte). b) A abordagem existencial Este método leva em consideração o pensamento de Bultmann para o qual não interessa o que Jesus poderia ter pensado ou dito, mas sim que pelo anúncio o homem é levado para uma decisão de fé, mesmo porque as formulações cristológicas do Novo Testamento estão cheias de linguagem mitológica típica do tempo e por isso é necessário desmitolizá-la mediante uma interpretação existêncial. Para Bultmann nenhuma continuidade pode ser estabelecida entre o Kérigma proclamado por Cristo e o Jesus histórico. Em outras palavras, a cristologia de Bultmann não tem o seu real fundamento no Jesus da história, mas pertencendo somente ao Ké16 rigma, ele é convertido num mito sem consistência histórica. c) Abordagem cristológica pelos títulos Este método se baseia nos títulos dados a Jesus; ou seja, nos títulos cristológicos presentes no Novo Testamento. Títulos estes como: Cristo, Servo de Javé, Filho do homem, Profeta, Salvador, Senhor, Filho de Deus, Palavra de Deus... podemos dizer que existem vários pontos críticos suscitados por esses títulos deve-se perguntar se estes foram mesmo usados por Jesus ou foram aplicados a ele por outros? Esses títulos foram empregados no sentido original ou receberam um acréscimo de sentido? 3. PERSPECTIVAS TEOLÓGICAS a) Abordagem crítico-dogmática Quando falamos da abordagem dogmática da cristologia devemos levar em consideração o perigo de absolutizar as fórmulas dogmáticas, entendendo a definição cristológica de Calcedônia como única maneira possível de anunciar o mistério de Jesus Cristo e como a única maneira válida. O método crítico-dogmático é uma reação ao dogmatismo cristológico. Na verdade o Magistério nem sempre reconheceu abertamente o caráter relativo das fórmulas dogmáticas; basta lembrar Pio XII que condenou o relativismo dogmático na Encíclica Humani Generis (1950) e Paulo VI na Encíclica Mysterium Fidei (1965) defendeu o valor permanente, imutável e universal das formulações dogmáticas. Mas como afirmou a constituição Gaudium et Spes (62), uma coisa é o próprio depósito da fé com as verdades e outra é o modo de 17 enunciá-las, conservando-se contudo o mesmo significado e a mesma sentença. De fato a declaração Mysterium Ecclesiae (1973) da Congregação para a Doutrina da fé afirmou que o sentido das fórmulas dogmáticas, que permanece sempre o mesmo, e as próprias fórmulas que em si mesmas, dependem de condicionamentos históricos, podem e por isso, requererem enunciados mais profundos e eventualmente, novos. A abordagem crítico dogmática da cristologia aceita que é possível um pluralismo dogmático e até pode ser necessário em situações de mudança cultural, o recurso de novas formulações, sem se alterar o seu significado. Nesse sentido , existe uma motivação básica que é inculturação da fé em Jesus Cristo num contexto de evolução cultural e de um encontro com outras culturas. b) Abordagem histórico-salvífica Este leva em consideração o evento Jesus Cristo em toda a "economia" das relações de Deus com humanidade na história, por sua auto-revelação e entrega. Enfatiza o lugar central que o acontecimento Jesus Cristo ocupa no desenvolvimento da história da salvação; Jesus não é somente o centro da história mas também o princípio dinâmico da compreensão de toda a história. Diante deste método os teólogos acentuam atenção entre o “já” e o “ainda não” e fazem uma distinção entre a “escatologia realizada” (Dodd) que acentua o “já” e a “escatologia conseqüente” (Schweitzer) e que enfatiza o “ainda não”. c) Abordagem antropológica 18 Afirma que a cristologia começa pela antropologia onde no mistério de Jesus Cristo foi plenamente revelado o mistério do homem e por ele Deus concretizou a “troca maravilhosa” com a humanidade. Mostra portanto, o lugar e o papel de Jesus no peregrinar dos homens para Deus. Nesta linha Jesus é enfocado como o "Motor" do processo evolutivo como afirmou Teilhard de Chardin. Jesus Cristo é o ponto ômega da evolução do universo, a causa final que põe em movimento todo esse processo, atraindo-o para si mesmo. É o Cristo evolutivo, ou o Cristo cósmico de Paulo. Como também na outra tendência, vendo o homem filosoficamente como ser aberto para a auto-transcendência em Deus e capaz de receber o dom gratuito da auto- comunicação de Deus com ele. Jesus Cristo, no qual se efetuou de modo sublime a união de Deus com ser humano é o Salvador absoluto da humanidade, o centro da história da salvação. Em Jesus Cristo , a abertura do homem para Deus alcançou seu ponto máximo e a sua mais alta realização. d) Abordagem da cristologia da libertação Bultmann acha impossível extrair o Jesus histórico da interpretação da fé do Kérigma neotestamentário, contudo teólogos posteriores a ele acharam impossível poder recuperar o Jesus da história do ponto de vista teológico e afirmaram a que a cristologia precisava se apoiar em Jesus Cristo. Assim, os estudos cristológicos ultimamente têm tido uma volta ao Jesus da história, à Jesulogia. Nesse sentido, predominou a necessidade de munir a fé cristológica com alicerces críticos, afirmando o que Jesus ensinou e praticou, as suas palavras e ações. Este procedimento marca, de maneira especial, a chamada “cristologia fundamental”. 19 A cristologia da libertação, que defende a volta ao Jesus histórico, não tem contudo o objetivo de recobrar, criticamente, os dados históricos para prover a fé cristológica de seu fundamento histórico, mas de redescobrir na práxis histórica de Jesus, a chave hermenêutica para a prática da libertação na igreja. O objetivo da cristologia da libertação é servir-se da força intrínseca do Jesus histórico para tê-lo como critério de discernimento da prática cristã. Desta forma, a prática histórica de Jesus torna-se, o tema privilegiado da cristologia da libertação: suas ações, sua mensagem, suas atitudes, suas escolhas e opções, seu compromisso social, as implicações políticas e sociais e sua vida e morte. A cristologia da libertação busca na história humana de Jesus um projeto de uma libertação humana integral realizada por Deus nele. e) A cristologia em perspectiva inter-religiosa Esse tipo de cristologia procura ancorar-se na prática do diálogo entre as religiões. Tenta situar o mistério de Jesus Cristo no contexto do pluralismo religioso em geral e supõe um diálogo entre as religiões como vem acontecendo entre judeus e cristãos onde autores judeus como Lapide, Flusser, Vermes, etc. Evidencia o autêntico ser judeu de Jesus de Nazaré e, ressaltando a profunda inserção de Jesus na cultura e na prática religiosa de seu povo. Ainda que distante da fé cristã em Jesus, esses estudos oferecem excelente contribuição para quem se dedica à cristologia. Na verdade, o estudo da cristologia deve mostrar a originalidade de Jesus, sua diferença, seus traços peculiares de sua personalidade em relação ao Jesus no judaísmo. Jesus é mais que um profeta, que um taumaturgo que tem o poder de curar, mais que um simples 20 rabi palestino. Não se pode esquecer o que há em comum, mas é preciso realçar as divergências e até as contradições entre as raízes históricas de Jesus Cristo no judaísmo e o significado de seu mistério, à luz da fé cristã. Não se deve também limitar-se simplesmente ao diálogo judeu- cristão; deverão ser envolvidas outras diferentes tradições religiosas, como o islamismo, o hinduísmo, o budismo e toda tradição religiosa em contato com a fé cristã nos outros ambientes. Deve-se encontrar em outras tradições religiosas a ação das “Sementes do Verbo” e interpretá-las não simplesmente como expressões da aspiração do ser humano para Deus, mas como sinais de contato inicial de Deus com ele. 4. POR UMA “ABORDAGEM INTEGRAL” DA CRISTOLOGIA A Pontifícia Comissão Bíblica usa a expressão “cristologia integral”, referindo-se a uma cristologia que leva em conta o testemunho bíblico por inteiro. Na verdade, no estudo da cristologia, é preciso levar em consideração toda a tradição bíblica, tanto do Antigo como do Novo Testamento, porque tudo isto é a norma de fé cristã. É preciso evitar o risco de um reducionismo, ou de um unilateralismo, pois o mistério cristológico envolve aspectos complementares, muitas vezes opostos, à primeira vista, entre si, mas que devem ser tomados conjuntamente. É preciso superar todo o falso dualismo e contradições aparentes entre o Jesus da história e o Cristo da fé, entra a cristologia implícita do próprio Jesus e a cristologia explícita da igreja, entre a cristologia funcional e a ontologia, entre a soteriologia e a cristologia, entre a salvação e a libertação humana... Deve-se levarem consideração a pluralidade de cristologias dado que essa pluralidade, foi sempre orien21 tada, ao longo da tradição cristã, pelo propósito de inculturar e contextualizar a fé cristológica. É o que a Constituição Dei Verbum ao se referir ao Sitz in Leben dos evangelhos, que diz que estes foram escritos “com vista à situação das Igrejas” (DV 19). Deve-se levar em consideração que as diferenças culturais proporcionam, no decorrer dos tempos, diversas expressões de fé cristológica. Apesar disso, ocorrem vastos espaços de continuidade histórica entre os vários enfoques cristológicos como também nos diferentes períodos da tradição, entre as múltiplas heresias e reduções cristológicas. Deve-se considerar que a estrutura do mistério cristológico possibilita duas visões cristológicas: a “ascendente” e a “descendente”. As duas são legítimas e se complementam mas trazem consigo possibilidades de heresias. A abordagem descendente caracterizada pela escola alexandrina, desenvolveu uma cristologia do Filho encarnado com o perigo de tendências monofisistas. Por outro lado, a abordagem ascendente, caracterizada pela escola antioquena, gerou a cristologia do homem assumido com o perigo de levar ao nestorianismo. Basta lembrar que a abordagem descendente tem o perigo de um reducionismo onde é tirado a realidade e o caráter autenticamente humano da humanidade de Jesus. Na tradição antiga, essa tendência provocou o surgimento de várias heresias cristológicas, como o docetismo, o gnosticismo, o apolinarismo, o monofisismo... Da mesma forma a abordagem ascendente, apoiada no homem Jesus corre o perigo do reducionismo consistindo em diminuir a condição divina de Jesus ou ter em menor conta sua identidade pessoal de Filho de Deus. No passado esse reducionismo teve várias faces, como por exemplo os abionitas que viram Jesus como um profeta hebreu igual aos outros. Da mesma forma possibilitou o surgi22 mento de heresias cristológicas como a do adocionismo, do arianismo e do nestorianismo. Nesta linha é preciso ter uma cristologia integral, a qual deve reunir todos os dados complementares, aparentemente contraditórios, do mistério de Jesus Cristo. Cabe nesse sentido para uma abordagem de cristologia integral conjugar as abordagens cristológicas ascendente e descendente. Em tudo isto é preciso também considerar que a única cristologia real é a do Filho de Deus feito homem na história e por isso é preciso mostrar que as relações pessoais e intratrinitária dão vida a todos os aspectos do mistério cristológico. Nesse sentido a cristologia deve incluir o aspecto pneumatológico, que acentua a presença operante do Espírito de Deus no acontecimento Jesus Cristo. Por fim, é necessário que a “Jesulogia” e a “Cristologia” andem juntas, porque um Jesus sem Cristo é vazio, um Cristo sem Jesus é mito. Não se deve esquecer também que o mistério de Jesus Cristo é universal, e isto porque ele Filho de Deus, se humanizou e a sua história humana é história de Deus. 5. A ORIGEM E O DESENVOLVIMENTO DA CRISTOLOGIA. a) Jesus na origem da cristologia: do Jesus prépascal ao Cristo pascal Precisamos reconhecer o papel decisivo que a ressurreição de Jesus e a experiência pascal dos discípulos representam para a fé cristológica. Estas assinalam o seu ponto de partida, pois os discípulos não alcançaram, antes da páscoa, uma verdadeira fé cristológica, o que não significa que não tivesse nenhuma fé em Jesus, mas foi somente depois da ressurreição que eles atingi23 ram a plena fé em Jesus como o Messias e Filho de Deus. Não é que a experiência pascal deva ser entendida como uma experiência de conversão dos discípulos, mas o fato de ver em Jesus ressuscitado, e que se manifestou eles, certamente foi objeto de suas transformações. Na verdade, a experiência da ressurreição de Jesus, fez com que os discípulos passassem da “Jesulogia” para a “cristologia”. Portanto, eles fizeram um itinerário de baixo para cima, que vai do encontro pessoal com Jesus à descobertas do Cristo. Assim sendo, na origem da cristologia, estão as obras e as palavras de Jesus, ou seja, toda a sua missão e a sua existência humana. Durante a sua missão, Jesus apresentou uma idéia nova e original do Reino de Deus. Para ele a manifestação do reino era a Boa-Nova e para pertencer a eles é necessário a conversão: “Cumpriu-se o tempo e o reinado de Deus aproximou-se...” (Mc 1,15). Este Reino cumpre se na sua pessoa: “Hoje, esta escrituras se realizou para vós...” (Lc 4,21). Este Reino é como uma semente que precisa se desenvolver. Ele se caracteriza na liberdade, fraternidade, pois a justiça, opondo-se portanto, ao legalismo opressor dos escribas, da hipocrisia dos fariseus e da exploração do povo pela classe sacerdotal. Este é oferecido preferencialmente aos pobres, aos que são vítimas de estruturas injustas e que sofrem condições desumanas (Lc 6,20). É portanto, de modo surpreendente, a maneira com que Jesus se relaciona com o Reino de Deus. Ele garante que o Reino, ou seja, o próprio Deus, irrompe no povo, graças a ele, à sua vida e missão, à sua pregação e a atividade. Neste reino ele ensina com autoridade singular, que supera a de Moisés (Mt 5,21-22; Mc 10,1-9). Neste reino, Jesus é o filho predileto e o exemplo mais notável disso é a forma nunca vista de invocar Deus como seu pai, chamando de "Abba". 24 A instauração do Reino de Deus fez com que Jesus encontrasse durante o seu ministério inúmeras oposições levando-o a prever a sua morte violenta como um destino inevitável. Por isso ele se identificou como o “Servo de Deus” (Mc 10,45). A morte violenta que Jesus previa, ele a aceitou não como uma simples e inevitável conseqüência de sua missão profética, mas como uma derradeira expressão de seu amor, e como o ápice de sua pró- existência. Para os discípulos, a morte de Jesus na cruz foi uma experiência terrível, ainda mais porque eles esperavam que com suas ações libertar dia Israel (Lc 24,21). O que podiam esperar eles de seu mestre sepultado? Se Jesus não tivesse ressuscitado dos mortos, o cristianismo seria apenas um grupo de amigos de Jesus, uma recordação de seus ensinamentos e na melhor reprodução possível de seus exemplos. Desta forma, o cristianismo não constituiria uma Boa-Nova para a humanidade, mas apenas uma moral elevada. Ser cristão não consiste em venerar um mestre falecido, nem em manter sua memória viva, ou ainda em praticar a sua doutrina; ao contrário, significa crer que Jesus está vivo porque ele ressuscitou e por isso está no nosso meio agindo pelo seu Espírito. A ressurreição de Jesus é o fundamento da fé cristã e o marco inaugural da cristologia do Novo Testamento. b) O desenvolvimento da cristologia do Novo Testamento Com a ressurreição de Jesus inicia-se a chamada cristologia explícita, a qual tem início com a pregação querigmática cristã através do processo de reflexão sobre o mistério de Cristo que, principiando por uma cristologia "de baixo", chega progressivamente a uma cristologia “do alto”, ou seja, partindo dos mistérios da vida de 25 Jesus desde o seu nascimento humano, e chega até a sua pre-existência. Não possuímos acesso direto aos inícios da cristologia da Igreja apostólica, e isto porque os escritos mais antigos do Novo Testamento são dos anos 50 dC, ou seja, de aproximadamente vinte anos após a sua morte e ressurreição. Nas Cartas de Paulo e também nas Cartas pastorais encontramos o primeiro Kérigma da Igreja (I Cor 15,3-7; Rm 1,3-4; 1 Tm 3,16; Hb 6,1...). Nestes e em outros textos encontramos as características importantes do Kérigma primitivo, tais como: o mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus que constitui o centro do Kérigma, a ressurreição de Jesus não separada de sua morte, assinalando a sua entrada no estado escatológico e na exaltação como Senhor. Os sermões missionários de Pedro e de Paulo, em Atos dos Apóstolos (2,14-39; 3,13-26; 4,10-12...), dirigidos sobretudo os judeus, demostram com clareza a cristologia do primeiro Kérigma. Estes discursos lembram a ação do Espírito Santo, de que eles são testemunhas, da qual isto aconteceu segundo as Escrituras... Trata-se, portanto de uma cristologia baseada na ressurreição e glorificação de Jesus, a qual é uma ação de Deus sobre Jesus constituído-o Senhor e Cristo em favor da humanidade. A ressurreição de Jesus é o acontecimento salvífico e definitivo de Deus; por ela o pecado e a morte foram vencidos. Com ela Jesus entra no fim dos tempos, realiza a esperança escatológica entrando em na glória final. Com ela Jesus atingiu a própria perfeição (Hb 5,9). O que Deus fez a Jesus foi em favor dos homens; para todos os títulos que exprimem a dignidade adquirida por Jesus como ressuscitado estão relacionados a nós; Ele é o Senhor de todos (At 10,36); Ele é o nosso Cabeça e Salvador (At 5,31). Com a sua ressurreição foi inaugurada a chegada definitiva da salvação. É o Senhor 26 ressuscitado que salva. Portanto, com a ressurreição de Jesus, nasceu a cristologia explícita, porque nela encontramos o estágio inicial de uma reflexão ordenada sobre o significado de Jesus Cristo para a fé cristã. Foi com a ressurreição que se deu o ponto de partida de todas as afirmações sobre Jesus; com isso podemos dizer que a primeira cristologia nasceu “de baixo”, porque partiu da realidade humana de Jesus, transformada pela ressurreição, e não da pré-existência do Filho de Deus que se fez homem. A verdadeira identidade de Jesus para os primeiros cristãos foi revelada por Deus em sua ressurreição. Afirmamos também que a cristologia do Kérigma primitivo é, essencialmente soteriológica, ou seja, seu ponto central reside na salvação dos homens. Ela consistia numa reflexão sobre Jesus, contemplado em suas funções em nosso favor. Só mais tarde, ela se transformará em cristologia "ontológica", buscando uma reflexão sobre Jesus como ele é em si mesmo e sua pessoa na relação com Deus. A cristologia do Filho de Deus na narrativa da infância (Lc 1,32) diz apenas que menino nascido de Maria veio de Deus e será chamado "Filho do altíssimo". Não fala portanto de uma filiação eterna e divina de Jesus em sua preexistência. Não se toca na questão ulterior da origem eterna de Jesus como Filho de Deus, como vemos em Paulo (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-13) e sobretudo no Prólogo do evangelho de João (1,1-18). 6. OS TÍTULOS CRISTOLÓGICOS a) Os títulos de Jesus no Novo Testamento 27 1. “Filho do Homem”: é uma expressão semítica que significa o homem, geralmente no seu aspecto frágil e precário (Sl 79; Is 51,12). No livro de Daniel (7,27) essa expressão é identificada com o povo santo do Altíssimo, mas a tradição judaica a interpretou no sentido pessoal chegando a identificá-la como sendo um título messiânico. De fato esse título ocorre 80 vezes na boca de Jesus e está associado ao poder de autoridade como de perdoar os pecados (Mc 2,10) e de ser o Senhor do sábado (Mc 2,28). Indica também a sujeição aos sofrimentos e à paixão (Mc 9,31; 10,33) a sua precariedade(Mt 8,20). Jesus preferiu que esse título porque não tinha conotação política e evitava que ele fosse julgado como um revolucionário opositor ao poder romano. 2. “Senhor”: o Novo Testamento chama Jesus de Kyrios para exprimir a fé dos primeiros cristãos na sua divindade e na sua transcendência. Ele é o Senhor de todos (At 10,36; 1Cor 12,3). 3. “Cristo”: tradução grega do aramaico (Meshiah) que significa ungido. Esse título era dado ao rei e ao filho de Davi por excelência, que viria para salvar o povo. Os discípulos reconhecem Jesus como este rei e por isso deram-lhe este título o qual Jesus aceitou, mas que todavia pedia para que não fosse divulgado, pois o mesmo tinha conotações políticas (Jo 1,41; 4,25; 20,31; Mt 16,16; Mc 8,29s;12,35). Podemos afirmar que Jesus se considerava o Messias (Mt 11,3); Também se considerou vencedor de todos os males (Mt 11,4).Mas foi sobretudo com a sua ressurreição que este título ficou evidenciado (At 2,36). 4. “Servo de Javé”: é uma expressão hebraica que indica um personagem misterioso descrito em Is 42,17; 49,1-6; 50, 4-9;52,13-53,12. Este se apresenta como uma vítima inocente que se oferece em sacrifí28 cios de expiação pelos pecadores. Jesus se identificou com o Servo de Javé afirmando que veio para dar a vida para a salvação de todos, que o seu sangue derramado era para a salvação de todos e que se oferecia livremente para cumprir a sua missão salvífica (Mc 14,24; Lc 22,37; Jo 10,10). 5. “Filho de Deus”: nos evangelhos os próprios demônios proclamam Jesus como “Filho de Deus” (Mc 1,34; 3,11). Também o Centurião romano e o próprio Pedro o proclamaram (Mc 15, Mt 16,16). São Paulo afirma enfaticamente que Jesus é o filho de Deus (At 9,20); para ele Deus enviou seu Filho à terra para que fôssemos reconciliado os pela sua morte (Gl 4,4; Rm 8,3). João professa que Ele é Filho Unigênito enviado pelo Pai para dar a vida eterna (1Jo 4,9; Jo 6,40). Jesus revelou-se como Filho de Deus (Mt 12,27) e chamou a Deus de Paizinho. Tomé o reconheceu como Deus (Jo 20, 28), o qual desde o princípio e estava junto a Deus (Jo 1,1). Ele é o Deus bendito pelos séculos (Rm 9,5), o Grande Deus e Salvador (Tt 2,13 ). 6. “Profeta”: aqueles que chamaram Jesus “Profeta” queriam indicar sua profissão, assim como o chamavam de mestre. Na verdade Jesus aparece não somente como profeta, mas como o profeta, ou seja aquele que devia cumprir toda a profecia no final dos tempos. O antigo profetismo israelita esperava por um profeta escatológico, ele já era anunciado nas palavras dirigidas por Moisés a Israel (Dt 18,15). Na verdade Israel esperava o retorno de Elias, o qual era identificado como o mensageiro para preparar o caminho de Javé. Nos evangelhos também João Batista é chamado “o profeta”, colocado no mesmo plano dos profetas do Antigo Testamento. Ele foi considerado como um precursor do Messias e a sua aparição é i29 dentificada com o retorno de Elias (Mt 17,10). No cântico de Zacarias (Lc 1,76), João Batista é chamado de Profeta do Altíssimo, com isso os primeiros cristãos viram nele o Precursor do Messias. É certo que João Batista foi considerado depois de sua morte, como o profeta, como Precursor de Deus. Os próprios discípulos de Jesus e o próprio Jesus o consideraram como o profeta, na qualidade de Precursor do Messias, e o próprio João Batista tinha consciência disso. Ele se recusava, porém ser considerado como Messias ou como profeta escatológico. No Novo Testamento Jesus é denominado de “um Profeta” e também de “o Profeta”. No primeiro caso Jesus aparece na categoria dos profetas (Lc 7,16; Mc 6,4; 6,14). Herodes pensava que Jesus era João Batista ressuscitado; outros pensavam que era Elias. Mas segundo o sinóticos, Jesus não se considerou como profeta esperado para o fim dos tempos, mas sim foi o povo quem o considerou como tal (Jo 6,14). Na verdade, o caráter único da pessoa e da obra de Jesus indica que ele era um homem que os judeus esperavam como profeta dos últimos tempos. Ele tem autoridade escatológica, o seu chamado ao arrependimento é absoluto e exige uma decisão definitiva, dando assim à sua pregação um caráter absoluto. A autoridade (exousia) com a qual Jesus anunciava o seu evangelho, não era de um profeta qualquer, mas do profeta por excelência; o caráter escatológico de sua pregação é incontestável. Para a esperança judaica, o Reino de Deus se estabeleceria um dia com poder, a partir do momento em que o profeta retornado à terra, completasse seu chamado ao arrependimento. Mas se Jesus era só profeta, então o Reino de Deus ainda não tinha chegado e não havia portanto, lugar para uma fé no Cristo-kyrios. Contudo, Jesus afirmou que o Reino de 30 Deus estava presente (Mt 12,28). Podemos então afirmar que nem Jesus, nem seus discípulos imediatos aplicaram a noção de profeta à sua pessoa e à sua obra; trata-se portanto de uma opinião popular sobre Jesus. Assim, a noção de profeta para Jesus é demasiada estreita. 7. “Servo sofredor de Deus”: é um dos títulos mais antigos dados à pessoa e à obra de Jesus. O Servo de Deus (Ebed Iahweh) é uma figura forte no judaísmo (Is 42,1-3; 49,1-7; 50.4-11; 52,13-53,12). O Servo do Senhor podia ser identificado com todo o povo de Israel, ou também como um indivíduo. No livro de Enoque como nos apocalipse de Esdras e de Baruc, o Messias é identificado como Servo sofredor. Nos documentos Qumran este Servo sofredor é o Mestre de justiça. Devemos perguntar se Jesus considerou seu sofrimento e sua morte como parte integrante de sua missão na execução do plano da salvação. Muitos teólogos afirmam que Jesus não teria atribuído à sua morte nenhum valor expiatório, e que na realidade, esta idéia teria sido introduzida pelo apóstolo Paulo. Entretanto Jesus sentia mais chamado, durante a sua vida, a viver a obra expiatória que a ensiná-la. Ele não se limitou a perdoar os pecados, mas a curar os enfermos, dando-lhes o perdão. Jesus colocou também o seu sofrimento e a sua morte como parte integrante da obra da salvação; ele tinha convicção de que devia morrer (Mc 2,18; Lc 13,31; Mt 12,39; Mc 12,7;14,8; Lc 22,37; Mc 10,45). Os estudiosos estão de acordo que a designação de Jesus como “Servo sofredor” remonta ao próprio Jesus e de que não foi a comunidade primitiva a primeira a estabelecer uma relação da pessoa de Jesus com esse título. Mas, o que dizia o cristianismo primitivo a respeito de Jesus, o “Ebed Iahweh”? Sabemos que a Cristologia do Ebed 31 não é propriamente a dos evangelistas. Em Mt 8,16ss, Jesus expulsou os espíritos com uma palavra e curou os enfermos, a fim de que se cumprisse o que havia sido anunciado pelo profeta Isaías: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou nossas doenças”. Aqui o evangelista cita textualmente uma passagem de Isaías 53,4, a qual faz referência ao Servo sofredor. Em João 10,11 Jesus se coloca como o bom pastor que dá a vida pelas suas ovelhas. O mesmo evangelista no capítulo 1, versículos 29 e 36, apresenta Jesus como o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. As mesmas referências são feitas em Atos, 8,26 e na primeira carta de Pedro 2,21ss... Na verdade, podemos dizer que o judaísmo na época do Novo Testamento, pôs o nome Ebed Iahweh em relação com o do Messias, embora no messianismo judaico a idéia do Servo sofredor está ausente. Jesus não atribuiu a si o título de Servo de Deus, mas foi uma aplicação dos evangelistas para ressaltar a idéia do sofrimento e na sua morte. Diante disso o cristianismo primitivo conservou esta lembrança de Jesus, Mas a noção de Ebed Iahweh caracteriza sem dúvidas a obra e a pessoa do Jesus histórico de uma maneira perfeita com a Cristologia do Novo Testamento. 8. “ Sumo Sacerdote”: a noção de Sumo Sacerdote tem uma estreita relação com aquela de Servo de Deus. A figura do Sumo Sacerdote é essencialmente judaica, a qual tinha a idéia de um sacerdote ideal que devia consumar, no final dos tempos, o sacerdote judaico, como o único sacerdote verdadeiro. Segundo os estudiosos, parece à primeira vista, impossível que Jesus tenha atribuído a si mesmo funções sacerdotais, contudo não se descarta a possibilidade de que Jesus tenha aplicado a si ao menos a idéia de Sumos Sacerdotes “segundo a ordem de Melquisedeque”, con32 forme descreve o livro do Gênesis 14,13 e 24. Em Mc 12,35 temos a referência de Jesus, fundamentandose no Salmo 110 de que Jesus é o sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. Da mesma maneira a Carta aos Hebreus no capítulo 7, apoiando-se em Gênesis 14 e no Salmo 110, dá a designação de Jesus como o verdadeiro Sumo Sacerdote; este não somente pôs fim ao antigo sacerdócio judaico, mas o consumou em sua pessoa. Jesus é o Sumo Sacerdote que se oferece como vítima, é portanto também o Servo Sofredor; idéia esta expressa também nas Cartas de Pedro (1 Pe 1,19; 2,22). Da mesma forma, o autor da Carta aos Hebreus (4,15) ressalta o sacerdócio de Jesus em toda a sua humanidade, inclusive afirmando que ele foi tentado como nós em todas as coisas; afirmação esta, talvez a mais ousada de todo o Novo Testamento sobre o caráter absolutamente humano de Jesus, conforme afirma Oscar Culmann. Segundo a doutrina da Carta aos Hebreus, Jesus o Sumo Sacerdote, graças a sua humanidade, santificou a nossa humanidade e a tornou perfeita (Hb 9,26; 10,10). Em suma, constatamos que a idéia de Cristo sacerdote embora não sendo exclusiva da Carta aos Hebreus, pois este título está na base das afirmações cristológicas de outras passagens do Novo Testamento, devemos admitir que esta noção é relevante nesta Carta e se a cristologia sacerdotal se perpetua, devemos muito a este escrito. b) Títulos Cristológicos referentes à obra futura de Jesus 9. “Messias”: o título messias tem sua raízes antes de tudo na esperança escatológica do judaísmo, onde o adjetivo “messiânico” é empregado quase como sinônimo de “escatológico”. Na época de Jesus não existia 33 uma concepção única e firme a respeito do messias, pois a esperança de todos os judeus se resumia num redentor, o qual apresentava os traços nacionais judaicos. Contudo, na época do Novo Testamento, existia um certo tipo de messias predominante, aquele que poderia ser chamado de “messias político” ou então “Messias judaico”. Para os cristãos messias constituiu-se como um título cristológico por excelência. A palavra grega “Cristós”, é a tradução da palavra hebraica “maschiach”, que quer dizer ungido. Para os autores do Novo Testamento “Jesus Cristo” significa “Jesus o messias”. Para os judeus, o rei de Israel era denominado “o ungido de Iahweh”. Porém este título não era unicamente para o rei, pois todo homem de Deus, encarregado de uma missão para com o povo também podia receber esta denominação; assim eram os sacerdotes (1Rs 19,16). O rei naturalmente tinha um caráter divino e este título indicava a origem divina de sua função (2Sm 7,14). Particularmente durante o exílio foi conferido ao rei de Israel a figura do messias que virá (Ez 37,21). Esperava-se um rei totalmente terreno, político e não um ser celestial que apareceria de uma forma milagrosa. Este seria um rei pacífico e desempenharia um papel político (Zc 9,9s). Este rei era visto também como o messias que viria para aniquilar os pecadores e dar a sua graça para os bons. Sua missão estaria localizada num plano puramente terreno, como rei político de Israel teria um caráter pacífico ou guerreiro. Teria Jesus se considerado o messias? Em Mc 14,61; Mt 26,64; Lc 22,67, Sumo Sacerdote procura uma declaração messiânica pronunciada pelo próprio Jesus, para poder acusá-lo e denunciá-lo aos romanos como agitador político, pois pretender o título e a função de messias, significava que Jesus queria estabelecer o 34 trono de Davi e portanto um governo independente. Se Jesus afirmasse que era o messias, o Sumo Sacerdote teria o motivo para acusá-lo, se não declarasse, Jesus ficaria desacreditado diante do povo. Para o evangelista Marcos, Jesus respondeu que sim (eu sou), já para Mateus, Jesus não deu um sim perfeitamente claro (tu o disseste), o que quer dizer: “És tu quem o diz, e não eu”, ou seja, Jesus não teria respondido claramente nem sim nem não à pergunta capciosa do Sumo Sacerdote. Em Lucas, Jesus se nega a responder por um sim ou por não, e acrescenta uma declaração relativa não ao messias, mas ao Filho do Homem “Se vô-lo disser, não o acreditareis...”. Aqui Jesus corrige a pergunta do Sumo Sacerdote, substituindo o título de messias pelo de Filho do Homem. Jesus tinha consciência que as idéias messiânicas judaicas eram políticas e esta não era a maneira de se compreender a sua missão, porém para sublinhar que tinha a consciência de sua missão, acrescenta a declaração sobre o Filho do Homem, que como um ser celestial, está mais próximo de Deus do que o messias. A recusa ao título de messias não significa que Jesus renunciou à sua pretensão soteriológica, pelo contrário, o título Filho do Homem, no sentido que é dado pelo livro de Daniel, é de um ser celestial que transcende a figura de um messias puramente político. O que Jesus renuncia é portanto, o papel político do messias rei. Em Mc 15,2 encontramos a interrogação, desta vez de Pilatos, se Jesus é o rei dos judeus, onde na verdade o governador quer saber se Jesus é o messias, o rei dos judeus. Jesus responde-lhe: “Tu o dizes”, num sentido mais afirmativo, porém é igualmente é uma resposta evasiva. Por fim ainda em Mc 8,27ss, no texto que concerne à cena de Cesaréia de Felipe, Pedro declara: “Tu és o 35 messias”, ao que Jesus proíbe Pedro e os outros discípulos de falar disso, o que indica implicitamente que Ele teria aceitado a confissão messiânica de Pedro, porém deixa claro o seu sofrimento como Ebed Iahweh, algo nada compatível com a esperança messiânica judaica. Jesus conhecia bem o desejo de seus discípulos de o verem assumindo a função de um messias político; isto esclarece bem o pedido dos filhos de Zebedeu em relação aos lugares de honra no seu reino futuro e até esclarece a razão do porquê eles o abandonaram no momento de sua prisão que além de uma debilidade humana, pode ter sido também uma desilusão ao ver que Ele não correspondia àquela imagem judaica do messias rei. Não é errado imaginar também nesta desilusão, a razão subjetiva da traição de Judas Iscariotes. A proibição de Jesus de não dizer que ele era o messias, se explica no sentido de se impedir uma proclamação que pudesse favorecer uma falsa interpretação de sua missão, precisamente a que combatera como uma tentativa diabólica. Assim se conclui que Jesus não recusou o título de messias, mas que manifestou para com ele uma grande reserva. Jesus considerou inclusive este título como uma tentação satânica e procurou substituí-lo pela expressão “Filho do Homem”. Este título se opõe à idéia de “Ebed Iahweh”. Portanto não houve por parte de Jesus uma recusa direta a este título, mas uma grande reserva diante das imagens que se concentravam em torno do messianismo político. A maneira como Jesus cumpre a sua missão como messias, o mediador, se opõe à esperança judaica. 10. “Filho de Davi”: este título é uma variante do título de messias, o qual designa o messias de acordo com a sua origem: Filho de Davi. Precisamos perguntar: Jesus é verdadeiramente proveniente da família que a 36 tradição fazia ser da casa real de Davi? Considerou Jesus a origem davídica como uma condição essencial para a realização de sua missão? Muitos historiadores negam a existência de uma tradição familiar davídica na família de Jesus e para isto argumentam que esta tradição teria sido criada mais tarde pela Igreja, a fim de responder à polêmica judaica, já que o messias esperado devia sair da família de Davi. Muitos estudiosos afirmam que a genealogia dada por Lucas seria aquela de Maria, e aquela dada por Mateus seria a de José. Paulo na sua Carta aos Romanos (1,3) atesta que a família de Jesus seria proveniente da família real de Davi. Sua afirmação se baseia provavelmente numa confissão de fé da comunidade primitiva, o que mostra que a filiação davídica de Jesus era indiscutível. Com isso pode-se afirmar que a família de Jesus possuía ao menos uma tradição oral, segundo a qual ela pertencia à linhagem de Davi. Mas Jesus se auto-designou como “Filho de Davi”? O evangelista Marcos (12,35ss) faz uma referência a este título e a conclusão dos estudiosos é de que Ele não recusou diretamente este título quando os outros davam-lho, mas recusou energicamente a idéia de uma realeza política associada a este título. Contudo, podemos afirmar que o cristianismo primitivo adotou esta terminologia em relação a Jesus assegurando que ele apareceu sobre a terra como Filho de Davi, que ele exerce a realeza sobre a comunidade dos fiéis e que virá no fim dos tempos como messias. 11. “Filho do Homem”: este título messiânico é o único segundo os evangelhos sinóticos, que Jesus aplicou a si mesmo. Este título no judaísmo significa aquele que pertence à espécie humana; de fato em aramáico a palavra “Barnascha” significa “Homem”. Este título aparece a primeira vez no livro de Daniel (7,13), mas 37 não parece ter uma conotação de caráter messiânico. Só mais tarde passou a ser designado um Salvador escatológico, como por exemplo é designado no livro de Enoque, onde é classificado como um ser celestial sobrenatural. Este “Filho do Homem” aparecerá somente no fim dos tempos, sobre as nuvens com o objetivo de julgar o mundo e de realizar o povo dos santos. Jesus qualificou a si mesmo de “Filho do Homem”? Encontramos algumas referências deste título nos evangelhos (Mc 2, 27ss; Mt 12,31; 25.31ss’ Lc 12,10...). Nos variados textos que fazem referências a este título cristológico aparece a conotação de que Jesus o aplica à sua missão terrena, expressando assim a sua humilhação, como servo sofredor. Embora este título apareça 69 vezes nos sinóticos, encontramos também 12 vezes no evangelho de João; eis algumas destas referências (Jo 3,13; 5,27; 6,27; 9,35; 12,23; 13,31...). Encontramos também em outras partes do Novo Testamento (Ap 1,13). c) Os títulos Cristológicos referente à obra presente de Jesus 12. “Jesus o Senhor (Kyrios)”: este título melhor do que qualquer outro, expressa o fato de Cristo ter sido elevado à direita Deus e de interceder pelos homens em sua condição de glorificado. Para os primeiros cristãos este título indicava que Jesus não pertencia somente ao passado da história da salvação, e nem era apenas objeto de uma esperança futura, mas também era uma realidade do presente, onde ele estava vivo em relação com a sua Igreja. Os primeiros cristãos expressaram esta profunda convicção em sua profissão de fé: Kyrios Iêsous- Jesus é o Senhor. No mundo helenístico o termo “Kyrios” era um título 38 reservado aos deuses e deusas; basta lembrar a afirmação de Paulo na sua primeira Carta aos Corintios ... “Como há muitos deuses e muitos Kyrioi, para nós há um só Deus... e um só Kyrios, Jesus Cristo” (1Co 8,5ss). O título de Senhor atribuído a Jesus pela fé cristã segundo W Bossuet foi-lhe atribuído por influência do helenismo. No império romano este título estava ligado à pessoa do Imperador e tinha um sentido político e jurídico, mas sem implicar a afirmação da divindade do imperador, embora no Oriente, muito antes da época romana, os soberanos eram honrados como deuses. Os Imperadores romanos herdaram esta dignidade divina, onde para os imperadores romanos já mortos, eram lhes atribuído por um culto de natureza divina. O imperador era chamado Kyrios como sinal de seu poder político e consequentemente era honrado também como um Deus; portanto este título no mundo helenístico passou do sentido geral de “Senhor” para um sentido absoluto de “o Senhor”. O título “Senhor” aplicado a Jesus, só recebeu a sua plena significação depois de sua morte e glorificação, conferindo a Ele também a dignidade de messias. Ele foi “feito Senhor” (Atos 2,36). Marcos dá a Jesus este título apenas uma vez (11,3) e Mateus jamais lhe dá este título, ao passo que em Lucas ocorre freqüentemente (Atos 2, 36). Podemos também conferir este título em Fl 2,9; Rm 1,3; 1Co 16,22... A confissão de fé “Senhor Jesus” teve uma grande importância para os cristãos fora da Palestina, principalmente durante as perseguições, onde estes proclamavam a soberania de Cristo em contraposição à do Imperador (Ap 17,14). Para os primeiros cristãos a soberania de Jesus indicava que ele estava sentado à direita de Deus e que todos os inimigos lhe estão submetidos (1 Pd 39 3,22). Portanto ele é o único soberano e não existe outro além dele. 13. “Jesus o Salvador”: este título aparece uma vez na epístola aos Filipenses, e encontra-se esporadicamente no evangelho de Lucas e de João e de uma maneira mais freqüente nas Cartas pastorais na segunda Carta de Pedro. A aparição tardia do título "Salvador" parece ser devido ao fato do papel iminente que desempenhou o título de Kyrios. No Antigo Testamento Deus é chamado "Salvador". Mas também este título é dado para alguns homens de Deus que salvam o seu povo em seu nome e por sua ordem. Assim foi chamado Moisés que "Salvou" a seu povo; e também os chefes de Israel foram chamados de "Salvadores". O messias era considerado como o "Salvador que virá" para livrar definitivamente o seu povo. Portanto, no Antigo Testamento e no judaísmo, de uma maneira geral, o título Sóter (Salvador) estava ligado essencialmente ao Salvador do povo, a heróis que salvaram o seu povo. Durante sua vida Jesus nunca foi chamado “Sóter” por ninguém e nem chamou a si mesmo deste modo. Este título encontra-se presente sobretudo nas Cartas pastorais (1Tm 1.1; 2.3; 4.10; Tito 1,3; 2.10; 3,4) e também no evangelho de Lucas (1,47; 2.11). Trata-se da transferência a Jesus de um atributo que o Antigo Testamento dá a Deus. Jesus é o Salvador porque salvará o seu povo do pecado (Mt 1,21). Contudo, o alcance teológico do título “Sóter” terá a sua plena expansão no final da época apostólica, quando este título, associado ao outros atributos importantes do nome de Jesus, tomou lugar na a antiga fórmula “Ichthys: Iesous Christós Theon Niós Sotér (Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador). d) Títulos referentes a preexistência de Jesus 40 14. "Lógos": este título ocupa um lugar de destaque na Cristologia da Igreja antiga, contudo no Novo Testamento apenas João o menciona. Este título ocorre mais na filosofia grega de Heráclito e mais tarde no estoicismo. O Lógos aí é a lei suprema do mundo, que rege o universo e que está presente na razão humana. No evangelho de João este título, Lógos, só é atribuído a Jesus no prólogo e em outras duas passagens. Este é fruto de uma reflexão teológica que pressupõe a experiência litúrgica da soberania de Cristo (Jo 1,1). O Lógos é Deus e ao mesmo tempo estava em Deus. O título cristológico Filho de Deus geralmente foi examinado na dogmática posterior exclusivamente do ponto de vista das duas naturezas: "Filho de Deus", o qual indica a natureza divina de Jesus Cristo e "Filho do Homem", que indica a natureza humana de Jesus. Na verdade, o título "Filho de Deus" caracteriza-se de maneira particular e totalmente única a relação entre o Pai e o Filho. A origem desta noção deve ser buscada nas antigas religiões orientais onde os reis em especial, eram considerados como gerados dos deuses. Esta crença estava particularmente espalhada no Egito, onde os faraós passavam a ser filhos do deus sol Rá. Na época do Novo Testamento os imperadores romanos tinham o título de “divi filius”. No helenismo este título não era dado somente para os monarcas, mas para gente de todas as classes para quem eram atribuídas forças divinas; todos os taumaturgos eram "Filhos de Deus". A pretensão destes homens de serem Filhos de Deus, baseava-se na convicção de que eram dotados de forças divinas. No Antigo Testamento esta expressão é aplicada tanto para o povo de Israel inteiro (Ex 4,22; Is 1,2; 30,1; Jr 31,20), o qual é chamado "Filho de 41 Deus", como também para os reis, (2 Sm 7,14; Sl 2,7), ou ainda para os comissionados especiais de Deus, tais como os anjos e também o Messias, como indica o livro Etíope de Enoque. Em resumo, podemos dizer que para o Antigo Testamento como também para o judaísmo, o que caracteriza o Filho de Deus não era primordialmente uma força excepcional e também nenhuma relação de substância com Deus em virtude de haver sido divinamente gerado; mas sim o fato de ser eleito para realizar uma missão divina particular, e de obedecer estritamente ao chamado de Deus. Será que Jesus considerou-se como "Filho de Deus"? Para muitos teólogos a resposta é negativa (W. Bousset, Bultmann), os quais sustentam o emprego deste título por uma questão de origem helenística. Seria possível portanto, que a comunidade primitiva tivesse colocado posteriormente este título na boca de Jesus, Contudo os Sinóticos deixam claro que durante a sua vida Ele foi reconhecido como "Filho de Deus"; basta lembrar a declaração de Pedro (Mt 16,17) a declaração do diabo (Mt 4,3-6), dos demônios (Mc 3,11; 5,7), a voz celestial no momento do batismo e da Transfiguração, a declaração do Centurião (Mc 15,39). Portanto este título para os Sinóticos parece remontar ao próprio Jesus. É de se notar que Jesus recusou diretamente ou ao menos evitou conscientemente o título de "Messias", mas no caso do título "Filho de Deus", num sentido totalmente único e especial, este deve ter sido um elemento essencial da consciência que Jesus tinha desse mesmo. Devemos lembrar que Jesus preferiu, em virtude do “segredo messiânico”, o título “Filho do Homem” ao de "Filho de Deus". O título “Filho de Deus” contém uma afirmação de soberania e de dignidade divina excepcional. O título “Filho de Deus”, figurou en42 tre as primeiras formas de confissão de fé da igreja primitiva (At 8,36-38). Este credo fundamental encontramos também na primeira Carta de João (1Jo 4,15), assim como em outras passagens do Novo Testamento (Hb 4,14; Rm 1,3s). A carta aos Gálatas (4.4) afirma que Deus enviou seu Filho para nos resgatar, assim como também a Carta aos Romanos (5,10) afirma que pela morte do Filho de Deus fomos reconciliados. Paulo menciona também um outro aspecto: a soberania do Filho de Deus, o qual é a imagem de Deus desde o começo (Cl 1,14s), e por isso Deus nos predestinou a sermos semelhantes à imagem de seu Filho (Rm 8,29). Por fim, Paulo fala da unidade entre o Pai e o Filho (1Cor 15,28), Deus nestes últimos tempos, falou-nos pelo Filho” (Hb 1,1s). 15. “Deus”: com o título cristológico “Kyrios” Jesus é considerado Deus enquanto soberano, que desde a sua glorificação rege a Igreja, o universo e a vida de cada indivíduo; enquanto “Lógos” é aquele que se revela desde o começo enquanto Deus porque é aquele que vem do Pai e ao Pai retorna. As passagens onde o nome de “Deus” aparece aplicado a Jesus são poucas; Jesus não se chamou a si mesmo de “Kyrios” e nem tampouco se auto-designou “Theós”. No evangelho de João encontramos duas passagens onde aparece claro este título (Jo 1,1; 20,28). Na carta aos Hebreus (Hb 1,8-9) este título vem empregado duas vezes. Paulo também designa a Jesus com título de “Deus”, porém não tão explicitamente como o evangelista João ou a Carta aos Hebreus, pois a divindade de Cristo está implícita no título o “Kyrios” (1Cor 8,9; Fl 2,6; Cl 1,15; 2,9; Rm 9,5). Em conclusão, pode-se provar logicamente que o centro de toda revelação divina reside na vida terrena e 43 na morte de Jesus; ele é o centro da história divina da salvação, o centro indiscutível da revelação de Deus. Esta verdade os primeiros cristãos a compreenderam aceitando o testemunho da vida de Jesus, com os acontecimentos de sua paixão e morte e de sua ressurreição e também fazendo a experiência litúrgica e pessoal da presença do “Kyrios”; Senhor da igreja e do mundo. Estes meios para o conhecimento de Jesus Cristo são os mesmos para o homem de hoje. 7. O PERFIL CRISTOLÓGICO NO NOVO TESTAMENTO Sendo que fundamentamos a Cristologia nos evangelhos, é necessário ter uma visão sintética daquilo que o Novo Testamento nos ensina sobre Jesus. Cada evangelista traça um perfil de Jesus; assim Marcos delineia um Jesus autenticamente humano o qual tem sentimentos de tristeza (3,5), trabalha muito (3,21), manifesta “sangue quente” ao expulsar os vendilhões do templo (11,15). Marcos denomina Jesus de “Filho do Homem”, título que ocorre 14 vezes nos lábios de Jesus no decorrer do seu evangelho. Este título quer significar simplesmente que Jesus é homem. Este título que se encontra 93 vezes no livro de Ezequiel, está também no livro de Daniel (7,13s) com um sentido messiânico. Portanto Jesus é também o Messias que perdoa os pecados, que é Senhor do Sábado; é aquele que deverá consumar a história (Mc 2, 10; 2,28; 13,26). Em Marcos é também característico o título “Filho de Deus”. Ele inicia seu Evangelho com as palavras “Princípio da boa nova de Jesus Cristo, Filho de Deus”(1,1). Jesus é o Filho de Deus que expulsa demônios (3,11), é Jesus quem responde afirmativamente ao 44 Sumo sacerdote que ele é o Messias, o Filho do Bendito (14,61). Na transfiguração é o Pai quem aponta Jesus como o seu “Filho amado”. Será o Centurião romano quem confessará que Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus (15,39). Marcos enfatiza também a divindade de Jesus ao relatar as obras que realiza, ou seja, os milagres os quais manifestavam o seu poder divino (2,3-12); Nesta passagem Jesus cura o paralítico e também lhe perdoa os pecados e o povo escandaliza-se alegando que somente Deus pode fazer tal prodígios. Jesus também realiza milagres evidenciando o seu poder sobre a natureza (4,35), sobre as doenças (6,56) e sobre a própria morte (5,21-43). É importante notar que no evangelho de Marcos os milagres representam 31% do texto. Se Jesus não tivesse feito milagres, como explicar o entusiasmo do povo por ele, a fé dos apóstolos na sua divindade e a decisão dos Sacerdotes e fariseus em matá-lo? O evangelista ainda afirma a divindade de Jesus relatando que ele pregava e expulsava demônios (1,2326; 3,15; 6,7). Jesus expulsa os demônios indicando que o Reino de Satanás está no fim (3,22-27). Ele perdoa os pecados (2,9). O evangelista Mateus que escreveu para os judeus convertidos ao cristianismo, utiliza o Antigo Testamento para demonstrar que Jesus é o Messias prometido pelos profetas. Ele vê no Antigo Testamento as luzes projetadas sobre Cristo (1,22; 2,5; 2,17; 3,3; 8,17; 11,10; 13,14). Ao relatar a genealogia de Jesus Cristo ele utiliza o vocábulo Cristo que significa Messias (1,1). Ele apresenta Cristo num contexto humano; Ele é Filho de Davi, o Filho de Abraão, o que significa que ele é o herdeiro do rei a quem foram feitas as promessas messiânicas (2Sm 7,1-16) e que realiza as promessas feitas a Abraão (Gn 12,3). Jesus é o Filho de Maria por obra do Espírito San45 to (1,18-25), o que significa que Jesus é a grande novidade, o novo Adão. José recebe a incumbência de dar o nome de Jesus ao Filho de sua esposa, o que quer dizer que José é o pai de Jesus segundo a lei da adoção que em Israel conferia plenos e efeitos de paternidade. O evangelista Mateus evidencia a majestade de Jesus, omitindo tudo que possa sugerir alguma limitação decorrente de sua humanidade. Por exemplo, afirma que Jesus faz os milagres que quer (13,58). Ressalta a atitude de profunda reverência do povo diante dele (8,2; 9,18; 15,26; 20,20), assim como também a profunda homenagem a ele (18,26). Ele utiliza também o verbo aproximarse que significa ter um acesso reverente, como por exemplo quem vai pedir-lhe um milagre, aproxima-se dele (8,25; 9,1-20; 28;15-23; 4,3). Os discípulos aproximamse dele respeitosamente (8,25). Há, portanto uma ênfase majestosa sobre a pessoa de Jesus pois ele é um mestre que ensina uma justiça melhor que a dos fariseu (5,8), ele é o taumaturgo que realiza milagres (8,9). Ele é o legislador da vida comunitária, o sensor dos escribas e fariseus hipócritas... Para Mateus Jesus é o Filho de Deus vivo, que tem a igualdade com o Pai (11,25-27). Jesus manda batizar “em nome do Pai do filho e do Espírito Santo” (28,19). Pedro confessa que Ele é o Cristo, o Filho do Deus vivo (16,16;14,32). O próprio Jesus responde ao Sumo sacerdote afirmando que é o Cristo, o Filho de Deus. Jesus chama a Deus de seu Pai (7,21; 12,50). Portanto para Mateus a divindade de Jesus sobressai com evidência realçando assim a sua transcendência. O evangelista João se serve do vocábulo grego Lógos para designar o Cristo que tornado carne, habitou no meio dos homens (1,1-14;1Jo 1,1s/ Ap 19,13). Para João o Lógos se fez carne. Com a encarnação de Jesus, Deus santificou e consagrou tudo o que era humano. 46 Através de sua natureza humana Jesus comunicou aos homens os dons do Pai (6,54). Com a sua encarnação, Deus se dignou viver a condição humana. Mas o evangelista também salienta o aspecto transcendental de Jesus (12,3;16,28). Sua transcendência também é revelada pelo evangelista no emprego da expressão “Eu sou”, uma fórmula que faz alusão ao nome Javé, nome com que Deus se revelou no Antigo Testamento (Ex 3,13), indicando assim a igualdade de natureza divina que existe entre o Pai e o Filho (13,19; 8,24.28.58; 10,30.38;14,19;15,26). João enfatiza também a ação salvífica de Jesus; ele veio ao mundo para livrar o homem do domínio de Satanás (12,31; 14,30,16). O apóstolo Paulo tem uma cristologia muito elaborada, ele que escreveu suas cartas entre os anos 51 a 67. Para ele o Cristo existia antes de se manifestar aos homens, ele era o próprio Deus igual ao Pai em dignidade. Ele existia na condição divina e se esvaziou, tornando-se servo semelhante aos homens, humilhando-se e tornando-se obediente até a morte e morte de cruz (Fl 2,6-7). Portanto ele preexistia e possuía a natureza e a glória de Deus Pai. Encarnando-se, despojou-se de sua glória para assumir a condição humana e por isso Deus o exaltou sendo reconhecido como o Senhor. Paulo atesta também a preexistência do Filho em Gl 4,4; 1Tm 3,16. Outra designação que o apóstolo dá a Jesus é de Cabeça do corpo que é a Igreja, (Cl 1,15-20). Para Paulo Cristo é também o segundo Adão, pois assim como todos morreram em Adão, todos hão de reviver em Cristo; ele é o Pai da nova humanidade, (1Cor 15,22; Rm 5,12-21). Cristo é também o enviado do Pai (Rm 8,3; Gl 4,4). É também o Senhor (1Cor 8,6; Fl 2,9-11). Na carta aos Hebreus, a qual não é de autoria de Paulo mas de um seu discípulo, a imagem característica 47 de Cristo é de Sacerdote e Rei. Ele como Deus feito homem, se tornou o mediador da nova aliança; como Sumo Sacerdote penetrou uma vez por todas no Santuário celeste e ofereceu um sacrifício não com sangue de novilhos ou bodes, mas com o seu próprio sangue, obtendo para nós a redenção eterna. extinguiu assim a antiga aliança e ofereceu um sacrifício não pelos próprios pecados mas pelos pecados dos homens derramando o seu sangue, ou seja, dando a sua vida numa entrega total ao Pai (9,1-28;10,5-10). Jesus com o seu sacrifício continua a sua função de mediador e de intercessor em favor da humanidade (7,27). Ele é o Sumo Sacerdote misericordioso e fiel, que deu a sua vida para a expiar os pecados da humanidade (2,14-17). Jesus é também o Cristo Rei e Sacerdote, com ele o sacerdócio do Antigo Testamento ficou abolido (7,1-4.9-11). O livro do Apocalipse escrito por João por volta do ano 96 durante as perseguições quando os cristãos corriam perigo de esmorecer na fé, surge com seu estilo próprio, cheio de símbolos e com um gênero literário já conhecido pelos judeus após o exílio na Babilônia (587538 aC). Este descreve, a intervenção de Deus na história dos homens para julgar os bons dos maus e acabar com iniqüidade sobre a terra. O livro descreve o Cristo Jesus vencedor da morte, ressuscitado e reconhecido como o Senhor da história (5,8-14). Portanto a imagem do Cristo é exaltada como Kyrios. Outro título dado a Cristo neste livro é de Pantokrátor, ou seja, TodoPoderoso (1,12-16). Neste trecho vem oferecida uma síntese dos principais títulos de Cristo sob a forma de símbolos; ele está vestido com uma túnica, a qual representa o seu sacerdócio (Ex 28,4); tem um cetro de ouro o que significa a sua realeza; seus cabelos são brancos o que significa a eternidade (Dn 7,9); seus olhos são o chamejantes indicando a ciência divina; seus pés de 48 bronze, indicam a estabilidade; sua face como sol que brilha, indica a majestade soberana (Dn 10,6); há uma espada afiada, indicando a sua palavra rigorosa e eficaz (Ap 19,15; 2,16). Assim, o Apocalipse põe em relevo a transcendência divina de Jesus enfatizada também em outras passagens onde afirma que Ele é o Alfa e o Ômega, o Vivente (1,8; 22,13; 1,18). Ele está em pé de igualdade com o Pai e por isso recebe a mesma adoração (5,13; 22,3; 3,21); Ele é ainda chamado Rei dos Reis (19,12;17,14; 11,15). Marcos inicia o relato da vida de Jesus com o seu batismo feito por João Batista. Depois do batismo, Jesus no deserto foi tentado regressando em seguida em Nazaré para pregar o evangelho e anunciando: "O Reino de Deus chegou"... Contemporaneamente forma um grupo de discípulos e segue para Cafarnaum onde prega na Sinagoga e começa expulsar demônios, curar leprosos, ajunta-se com os pecadores, sendo que os fariseus o desaprovam e o criticam também por não observar o sábado. Entretanto, a sua fama se espalha por toda a Região. Para Marcos o cerne de sua pregação esta caracterizada nas parábolas tiradas em grande parte da vida rural. No seu grupo estão pescadores, zelotas, cobradores de impostos, judas o traidor. O povo no contato com ele constatam sua força influindo até na natureza, acalmando a tempestade, multiplicando pães, curando cegos... e o reconhece como um grande profeta, como o Messias. Durante o seu ministério vai algumas vezes em Jerusalém, e ali é aclamado como rei, expulsa os negociantes do Templo, atrai a atenção dos fariseu e dos saduceus, estes o perseguem e prendem. Na véspera de sua paixão abençoa o pão. É interrogado e declara-se o Messias, que é o rei dos Judeus, é espancado, amarrado na cruz e pregado, morrendo. José de Arimatéia o sepul49 ta, as mulheres vão visitar seu túmulo e constatam sua ressurreição. Após a ressurreição aparece aos discípulos e por fim foi elevado aos céus. Para Marcos, os títulos de Cristo Messias e Filho de Deus têm uma grande importância, pois ele é aquele que realiza o Reino de Deus (Mc 1,15), por isso ensina como alguém que tem autoridade (Mc 1,22), que tem forças para curar. Mateus liga Jesus ao Antigo Testamento e em seu Evangelho encontramos a metade das palavras de Marcos, o que indica que ele usou Marcos como fonte. Para Mateus Jesus teve uma lista invulgar de ancestrais, são precisamente 28 gerações até Davi, mais 14 até Abraão. Ele refere José como o pai nominal de Jesus. Jesus nasceu em Belém sob o domínio de Herodes, foi visitado por Magos, Relata a matança dos inocentes por Herodes o que levou José fugir para o Egito, voltando depois para Nazaré (tudo isto coloca como cumprimento do Antigo Testamento). Relata do batismo de Jesus no Jordão, a sua tentação no deserto e em seguida o Sermão da Montanha, as curas, os exorcismos, as parábolas, a paixão, morte e ressurreição de Jesus, finalizando com a missão aos apóstolos para irem no mundo inteiro pregando o Evangelho. Lucas, inicia seu Evangelho afirmando que fez uma investigação apurada para escrever seus escritos, os quais são proclamações de natureza milagrosa de Jesus e de sua autoridade. Coloca como primeiras figuras de seu Evangelho o velho Zacarias e Isabel, enfatizando o nascimento milagroso de João Batista, a concepção virginal de Maria, o Magnificat, o canto de Zacarias, o recenseamento, o nascimento em Belém, os pastores e Jesus aos 12 anos. O Sermão da Montanha é colocado mais tarde e uma planície e o relato da paixão é seme50 lhante a Mateus e Lucas. Enfatiza também os discípulos de Emaús. Como percebemos, o perfil cristológico apresentase claro nos quatro evangelhos canônicos escritos em grego, os quais são a documentação mais vasta sobre Jesus, sua atividade e seus ensinamentos. Estes foram escritos entre os anos 70 – 100 dC. Os originais destes não existem mais, somente cópias que datam de 100 a 150 anos de distância do texto escrito ou ditado pelo autor. O papiro mais antigo que traz um fragmento de João (Jo 18,31-33.7), o P 52, que descoberto no Egito, remonta à metade do século II e outras folhas de papiro dos evangelhos descobertos no Egito, remontam o século III. Os papiros ou fragmentos de papiros do NT são uns 80. Para a validade da pesquisa histórica dos evangelhos é preciso estabelecer primeiramente a autoridade do texto mediante o confronto das diversas edições reproduzidas em papiros ou códigos, e este trabalho já tem mais de um século de estudos, confirmados pelas descobertas de outros papiros. Depois, deve-se estabelecer o valor histórico das fontes em que se fundamentam os evangelhos, assim como o ambiente religioso e cultural do judaísmo e dos testemunhos dos escritos Paulinos. Vem depois a consideração o ponto de vista literário e teológico do escritor (Redaktionsgeschichte). 8. FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA DA CRISTOLOGIA NO NOVO TESTAMENTO A teologia católica admite que o evangelho antes de ser escrito foi pregado oralmente no início e que os pregadores se preocuparam mais em estruturar a fé dos ouvintes levando a eles a mensagem de salvação. Porém não admite que tenha havido desvio da realidade histó51 rica ou o desinteresse pela figura real de Jesus, e por isso, quem crê nos evangelhos não crê naquilo que os antigos cristãos imaginavam simploriamente, mas na autêntica mensagem de Jesus Cristo. A fundamentação dessa afirmação podemos tê-la na seguintes considerações: As primeiras comunidades fundadas foram guiadas e também visitadas pelos apóstolos os quais procuraram ser fiéis na transmissão e na conservação da mensagem (At 1,15-26; 2,14-40; 3,12-26; 5,29-32; 1Cor 15,6). Os apóstolos foram testemunhas do que viram e ouviram (At 1,8; 2,32; 3,15; 4,20;13,30; 1Cor 15,3-11). Os pregadores tiveram a preocupação de transmitir fielmente a mensagem, (1Cor 11,2.23; Fl 2,14; 4,9; 1,12s). A fé cristã é ligada a fatos históricos e objetivos, de modo que não pode ser negada a sua autenticidade. São Paulo afirma que se Jesus não tivesse ressuscitado, seria vazia a pregação e ilusória a fé (1Cor 15,14). Os apóstolos sempre procuraram distinguir entre o mito e a Palavra da verdade (1Tm 1,3; 4,7; 2Tm 1,4; Pd 1,16). Além do mais, a transmissão da fé foi acompanhada pelo Espírito Santo prometido por Jesus (Jo 14,22). A historicidade dos evangelhos é comprovada também por fatos históricos, geográficos, políticos e religiosos da Palestina. Além disso os apóstolos dificilmente poderiam mentir naquele ambiente hostil onde a mensagem era pregada. Soma-se a isso o fato de que os evangelistas nunca poderiam ter inventado um Messias do tipo de Jesus, pois não cabia na mente dos judeus a idéia de um Deus feito homem (1Cor 1,23). Devemos considerar também que os apóstolos, eram homens rudes da Galiléia e que teriam dificuldades em criar a figura de Jesus com uma dimensão tão grande seja intelectual, seja moral ou psicológica. Por fim, pregar a mensa52 gem de Jesus naquele ambiente não era fácil pois era uma mensagem exigente que exigia a amor aos inimigos, a renuncia, a proibição... E mesmo assim o povo se entusiasmava por aquilo que era pregado pelos apóstolos. 9. FONTES BÍBLICAS SOBRE JESUS Com a Dei Verbum qualquer investigação sobre um fato que pretendesse ser “histórico” não podia prescindir das Fontes, pois só esta na sua qualidade e quantidade, legítima a pesquisa histórica, também para Jesus, um personagem ultra – histórico. Daí a pergunta: Quais e quantas são as fontes históricas sobre Jesus? Qual o seu valor e alcance histórico? Diante disso é preciso estabelecer um elenco ordenado dos documentos que hoje nos põem em contato com Jesus e a ressonância destes no meio ambiente. O elenco inclui documentos textuais literário – epigráficos e descobertas arqueológicas. Hoje os documentos são muito superiores há dois séculos quando iniciou-se a pesquisa histórica sobre Jesus. Basta lembrar os textos de Qumrân e de Nag Hamanadi do Egito, assim como as escavações da Palestina, as quais deram aos estudiosos informações que nem Orígines, ou Jerônimo possuíam, embora dispusessem de bibliotecas excepcionais e de contatos com as tradições vivas “in loco”. Depois de 70 dC, ano da destruição de Jerusalém e do Templo, os judeus organizaram aos poucos o centro religioso cultural de Jâmnia (Judéia) sob a direção de Johanan ben Zakkai, da escola de Hillel e depois com Aqiba (135) e Judah (200). No período chamado dos Tanaim (repetidores), redigiu-se a “Mishna” onde recolheu-se os ensinamentos tradicionais de caráter moral e jurídico. No século III – IV deu-se o período dos “Amoraim”, ou seja, dos 53 rabinos intérpretes da tradição da Mishna. No século V – VI houve o empenho em comentar o Talmude babilônico por iniciativa dos rabinos chamados Saboraim (raciocinadores) . Hoje esta massa de tradições judaicas elaboradas em cinco séculos acha-se à disposição por escrito, e é uma fonte preciosa para o conhecimento do ambiente cultural e religioso em que viveu Jesus. Mas o que dizem sobre Jesus estes documentos? O que dizem os historiadores coetâneos a Jesus a respeito dele e de suas atividades? Concordam ou divergem de outras fontes? O Evangelista Mateus vem testemunhado por Papias, bispo de Cerápolis na Frígia. Homem fiel a tradição recolheu testemunhas sobre a primeira geração cristã de pessoas que tiveram contatos com os apóstolos. Também Irineu, bispo de Lião e discípulo de Policarpo, que por sua vez tinha sido discípulo de João, afirma em seu livro contra heresias, escrito por volta do ano 180 que Mateus viveu entre os hebreus, publicou o seu evangelho em hebraico. Da mesma forma, Clemente de Alexandria (+220), Orígines (+254) e Tertuliano (+215) testemunharam a favor de Mateus. Portanto é antiquíssima a tradição de que Mateus escreveu o evangelho e que seu modo de falar é palestinense (Reino de Céus) invés de (Reino de Deus). Mateus fala de si próprio como publicano, os outros falam dele como Levi. O evangelista Marcos é também testemunhado por Papias e Irineu. Clemente Alexandria atesta que o evangelho de Marcos foi escrito em Roma. Foi escrito para pagãos e quando cita palavras em língua semítica dá a tradução como por exemplo: “Talitá Cum” (Menina levanta-se) “Corbara” (Oferta Sagrada), “Effetá” (Abre-te), “Aba” (Pai). 54 A prova mais antiga do evangelho de Lucas encontra-se no fragmento muratoriano um documento descoberto em 1740 numa biblioteca de Milão por Ludovico Muratori e faz parte de um catálogo de livros sagrados composto pela Igreja de Roma em 180. Este documento diz que Lucas era médico e que depois da Ascensão de Jesus escreveu o evangelho que o tem como autor, servindo-se do que ouvira de São Paulo. Por fim, o evangelista João tem a confirmação pelo fragmento muratoriano, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Orígines... Umas das provas da antigüidade dos evangelhos é a grande quantidade de suas citações nos mais antigos escritos cristãos. Frases inteiras existem nas cartas aos Corintios de São Clemente Romano, terceiro Papa, escritas pelos anos 95. Na Didaquê, coletânea anônima de normas morais e rituais da Igreja siríaca escrita nos ano 110-120. Quanto a João, há um fragmento de um antigo papiro egípcio desse evangelho ( papiro de Ryiands) do ano 130. O que os evangelistas escreveram foi voltado para a verdade e não tinham motivos para mentir. Estes eram pessoas equilibradas e se tivessem mentido teriam pessoas para desmascará-los, já que tinham a oposição dos judeus, foram perseguidos, presos e mal vistos. Nenhum dos apóstolos colocou como doutrina sua, o que escreviam, pois eram homens simples e nem tinham facilidades para entender as idéias de Jesus. Além destas referidas fontes fundamentadas nos quatro evangelhos, dispomos igualmente das outras fontes denominadas fontes cristãs, as quais ensinam que Jesus é descendente de Abraão (Gl 3,16), é da tribo de Judas (Hb 7,14). Família de Davi ( Rm 1,3), nasceu de melhor (Gl 4,4), ressuscitou (ICor 15,5), transfigurou-se (II Pd 1,16-18), institui a Eucaristia (I Cor 11,23s), pa55 deceu sob Pilatos ( ITm 6,13), foi crucificado (II Cor 2,2) (I Pd 2,24), subiu aos céus (Ef 4,10). 10. AS FONTES JUDAICAS SOBRE JESUS Jesus e os seus discípulos nasceram e viveram na Palestina, em um ambiente cultural e religioso, contudo pouco podemos tirar das fontes judaicas palestinenses que seja válido para conhecer Jesus e sua obra. Isto não significa que suas atividades e obras não sejam mencionadas na biblioteca tradicional judaica, o Talmude, ou em outros escritos judaicos mais tardios (sec IV – V), mas que estas não representam tradições autônomas relativas àquelas em que se colhem nos escritos canônicos ou apócrifos, como afirmou J. Maier em sua obra “Jesus de Nazaré na tradição Talmúdica” (1978). Maier afirma que o nome de Jesus foi acrescentado e adaptado no século IV, com um resquício da tradição arcaica paralela aos evangelhos como no caso da condenação e execução de Jesus; portanto é preciso precaução. No “Diálogo de Trifon” (151 – 161) Justino acusa os judeus de terem rejeitado Jesus, o Messias e teremse opostos à difusão do evangelho acusando o cristianismo de “heresia ímpia e criminosa”, cuja origem deve a um certo Jesus “Mago e sedutor do povo”. Este testemunho de Justino tem uma grande afinidade com o evangelho de Mateus, sobretudo quando lembra o episódio do roubo do corpo de Jesus do sepulcro. É um documento de caráter polêmico e não fonte autônoma de pesquisa histórica. Obra polêmica é de Celso “Discurso Verdadeiro” (178) onde anota pormenores sobre o nascimento de Jesus, e segundo esta obra Jesus teria inventado o seu nascimento de uma virgem, mas nasceu de uma aldeã 56 pobre da Judéia que acusada de adultério fora repudiada pelo marido, um carpinteiro de profissão. Adianta ainda que a mãe de Jesus tinha ficado grávida de um soldado de nome Panthera. A história do soldado Panthera pode derivar de uma deturpação intencional do autor, com a finalidade polêmica no ambiente judaico da diáspora, onde se ouvia falar do nascimento de Jesus de uma “Parthenos”(Virgem). Portanto, pouco nada se pode deduzir das fontes judaicas diretas; o Talmude, ou indiretas com as citações de autores cristãos sobre a obra histórica de Jesus. Os autores judeus só se interessaram de Jesus depois que o cristianismo estava cristalizado no Império Romano e não se podia ignorá-lo, e por isso quando ele foi incluído no Talmude não se tinha mais nenhuma lembrança precisa e autônoma a seu respeito. Um dos principais testemunhos sobre Jesus nos vem de Flávio Josefo nascido por volta dos anos 37 – 38 aC na Palestina de uma família sacerdotal. Estudou a “Torah”, aderiu ao movimento dos fariseus interessandose em Jerusalém pela política. Em 64 foi à Roma e voltando em 66, acusado pelo exército de Vespasiano, entregou-se aos Romanos. Aderiu a Tito, tornou-se livre e assistiu os acontecimentos da guerra que destruiu Jerusalém, tornou-se cidadão Romano e adotou o nome de Flavius e viveu em Roma as expensas da família imperial. O autor testemunha Jesus em sua obra: “Antigüidades judaicas”. Narra os incidentes na Palestina sucedidas no tempo de Pilatos, os protestos dos judeus contra a introdução em Jerusalém das insígnias militares que ostentavam a figura do Imperador, a sublevação dos judeus quando souberam do projeto de Pilatos de construir um Aqueduto para Jerusalém à custa do tesouro do Templo. Fala de Jesus como homem sábio, que fazia 57 coisas extraordinárias, que arrastou para si muitos judeus e gregos e era chamado de Messias. Condenando à morte de cruz por Pilatos ao 3º dia, apareceu vivo. Estes relatos de Flávio Josefo são citados por Eusébio de Cesaréia (sec. IV) na “História Eclesiastica” e por Jerônimo em “De viris ilustríbus” e por muitos outros. Flávio Josefo narra ainda que Pilatos ordenou a repressão violenta dos samaritanos em conseqüência de uma sublevação no Monte Garizim, e devido a isso Pilatos teve que ir à Roma prestar contas e foi deposto de seu cargo de governador da Judéia. Portanto, o “tetesmunho Flaviano”, sobretudo sobre Jesus é aceitável, concorda substancialmente com os dados da tradição cristã, e suas reticências sobre Jesus e o início do cristianismo é compreensível em vista da situação política contra os judeus e porque quando ele escreveu “Antigüidades”, no 13º ano de Reinado de Domiciano, a atmosfera política não era favorável ao cristianismo que era considerado como suspeito. Além de Flávio Josefo tem-se também o testemunho de Tácito um historiador não judeu, escreveu “Annales” (115 – 117 dC), onde relata o incêndio que Nero provocou em Roma em julho de 64, para culpar os cristãos aos quais ele odiava. “Cristo, fundador da seita, cujo nome haviam adotado, fora justiçado pelo procurador Pôncio Pilatos, sob o Reino de Tibério”. Ele relata da expansão do cristianismo não só na Judéia, mas também em Roma, e os suplícios dados aos cristãos que “embora culpados e merecedores dos mais graves castigos suscitavam compaixão, como gente sacrificada, não só ao bem público, mas à crueldade de um só”. A descrição de Tácito reflete a mentalidade com que os cidadãos de Roma concebiam os cristãos que olhavam com suspeita as seitas estrangeiras. 58 Também Thallos historiador samaritano, que escreveu suas histórias em Roma na metade do século I e relata indiretamente a pessoa de Jesus. Igualmente Suetônio menciona o nome Cristo em sua obra “Vidas dos Césares”, afirmando que Claúdio expulsara os judeus de Roma por causa de Cristo, o que corresponde a Atos dos Apóstolos 18,2. Suetônio escreveu por volta do ano 120, há 70 anos de distância, por isso não teve interesse de precisar quem era esse “Cristo”. Plínio, o moço, governador da Bitínia escreveu uma carta por volta do ano 110 a Trajano para pedirlhe instruções a respeito das medidas a tomar contra os cristãos denunciados nos tribunais é um testemunho a existência de Jesus Cristo. Ele via o cristianismo como uma das tantas superstições que dentre as práticas religiosas tinha o costume de reunirem-se “num dia fixo para cantar um hino a Cristo, como se fosse deus”. O testemunho de Mara bar Serapion datado do século I, escrito em língua Siríaca, refere a um “Sábio” que os “judeus mataram e por isso foram despojados do próprio Reino”, e desse rei sábio diz-se que sobrevive graças “às novas leis por ele promulgadas”. Portanto, destes historiadores deduzimos que falam da pessoa e obra de Jesus telegraficamente, ou seja, que foi fundador de um movimento que a partir do século I está presente em Roma e Províncias, era conhecido com o apelativo de Cristo e um judeu condenado à cruz na Palestina pelo governador Pôncio Pilatos no tempo de Tibério. Aos olhos destes escritores a obra de Cristo só interessa como movimento religioso que para os romanos era uma superstição, como era todas as outras religiões não oficiais. Seus adeptos eram judeus ou estrangeiros mais ou menos detestáveis ou suspeitos. Estas notícias são preciosas se confrontadas 59 com as fontes cristãs, onde revelam-se as concordâncias. 1. Fontes cristãs extra- evangélicas Pode parecer paradoxal, mas a mais antiga documentação cristã, as cartas de Paulo, é a mais sóbria e reticente quanto aos acontecimentos históricos e aos ensinamentos de Jesus. Bornkann, disse que “hoje sabemos com toda a probabilidade muito mais sobre o Jesus histórico do que Paulo”, é que Paulo considera Jesus numa perspectiva que ultrapassa a vicissitude histórica, pois ele mesmo afirmou: “Embora tenhamos conhecido Jesus Cristo segundo a carne, agora não o conhecemos mais assim” (II Cor 5,16), ou seja, para Paulo os critérios de avaliação não são mais os histórico humano ou carnais, mas a fé em Jesus crucificado e ressuscitado; esta é a metodologia Paulina, o que não significa que o anúncio de Paulo não seja ancorado solidamente na pessoa, obra e ensinamentos de Jesus. Paulo que conheceu Jesus através dos formulários tradicionais da comunidade primitiva (I Cor 7,10 ; 9,14; 11,23; 15,3; I Tes 4,15), ele atesta que Jesus é judeu, descendente de Davi, viveu na Palestina, teve irmãos (Tiago) reuniu os doze, dentre os quais Pedro, com o título de Céfas e João, comeu a Páscoa com os discípulos na tarde que antecedeu a sua morte (I Cor 11,23-25), foi entregue pelos chefes dos judeus ( I Ts 2,15) com a autorização da autoridade Romana (I Cor 1,13.23; Gl 3,1.13). Morreu, foi sepultado, ressuscitou (I Cor 15,3-7). Na verdade, Paulo não refere os milagres de Jesus, à sua atividade na Galiléia, às suas parábolas. Seus escritos são o eco da catequese cristã que se encontra nos evangelhos escritos 20-30 anos mais tarde (Rm 12,14-15.17; Mt 5,18-48; Gl 5, 17.43). 60 11. O QUE DIZEM OUTROS DOCUMENTOS SOBRE JESUS Existem alguns documentos denominados apócrifos, os quais não têm valor histórico ou científico. Um deles escrito por Publius Lentulus, governador da Judéia, afirma que Jesus era de uma nobre estirpe e tinha uma aparência a de beleza fora do comum. Sua fronte era lisa e bela, sua barba era curta e espessa. Era amado por todos, tinha um estilo de vida austero mas alegre, sua conversação era muito amável e mantinha atitudes discretas. Sua aparência era semelhante à de sua mãe; era considerado um prodígio em sabedoria por todos os habitantes de Jerusalém. Nunca estudou, no entanto conhecia toda ciência. Os hebreus diziam que jamais ouviram conselhos semelhantes, assim como instruções tão elevadas, que ele ensinava com autoridade. Os judeus também o consideravam divino. Ele somente praticava o bem e todos reconheciam que dele só recebiam curas e benefícios. Era um grande profeta e seus discípulos o chamavam Filho de Deus. Sua sabedoria superava a dos maiores gênios; era amável, manso e fascinante. Ninguém jamais o ouviu rir, muitos porém o viram chorar. Uma outra cópia tida como autêntica sobre o processo de Cristo e que se encontra no museu da Espanha coloca na boca de Pilatos estas palavras: “EU, PÔNCIO PILATOS, aqui presidente do IMPÉRIO ROMANO dentro do palácio e arqui-residência, julgo, condeno e sentencio à morte Jesus chamado pela plebe CRISTO NAZARENO e Galileo de nação, homem sedicioso, contra a lei mosaica, contrário ao grande imperador Tibério César...”seja amarrado e açoitado, e que seja vestido de púrpura e coroado de alguns espinhos, com a própria cruz aos ombros para 61 que sirva de exemplo a todos malfeitores, e que, juntamente com ele, sejam conduzidos dois ladrões homicidas... E que se conduza Jesus ao monte público da justiça, chamado calvário, onde, crucificado e morto, ficará o seu corpo na cruz, como espetáculo para todos malfeitores, e que sobre a cruz se ponha, em diversas línguas, este título: Jesus Nazarenus rex judaeorum... Onde esteve Jesus dos 12 aos 30 anos de idade? O evangelho diz que Jesus nos doze anos esteve no templo de Jerusalém entre os doutores (Lc 2,41) depois não diz mais nada sobre Ele até a início de sua vida pública quando tinha aproximadamente 30 anos de idade (Lc 3,23). Alguns procuraram dar explicações conjeturais para este espaço de tempo da vida de Jesus. Por exemplo a sociedade Rosa Cruz diz que Jesus e estudou com os religiosos da escola do monte Carmelo e quando tinha 14 anos foi levado para a Índia onde permaneceu no mosteiro budista; dali foi levado para o vale do GANGES onde aprendeu sistema terapêutico dos hindus, depois passou para Pérsia e em seguida para a Mesopotânia. Continuou a sua formação na Grécia sempre guiado por magos sendo que depois dirigiu-se para o Egito onde estudou em Alexandria e Heliópolis. Finalmente recebeu o título de Mestre indo para a Palestina onde pregou o evangelho. Para o Esoterismo neste período da vida Jesus foi para a Índia, depois para o Egito e por fim para Pérsia onde estudou. Visto que ele combatia a distensão de castas na Índia foi perseguido sendo considerado um agitador rebelde, um socialista perigoso e um cidadão indesejável. Depois Jesus voltou para a Israel onde começou a pregar o evangelho. Para as fontes Teosóficas, Jesus neste período de sua vida foi enviado para um mosteiro essênio no deser62 to da Judéia. Ali estudou e depois foi para o Egito e por fim João Batista o batizou tornando-se um novo avatar. Portanto sobre a chamada “vida oculta” de Jesus, os evangelistas não nos relatam nada. Depois de completar seus doze anos até quando se apresenta publicamente para pregar aos que nele crêem e para formar a comunidade dos 12 apóstolos, a opinião da teologia que ele tenha vivido em Nazaré e trabalhado na carpintaria com José. Entretanto alguns afirmam, sem nenhum fundamento, que ele teria viajado fora da Palestina tendo ao Egito e até mesmo à Índia. A possibilidade de que Jesus tenha viajado o fora da Palestina é uma hipótese que não tem provas históricas. Alguns chegam a afirmar que Jesus teria inclusive constituído família e tido filhos na Índia. Idéia fantasiosa, assim como aquela que diz que Jesus não teria vindo a este mundo em carne e osso, mas que foi uma espécie de extraterrestre que desceu à terra numa nave espacial, inclusive os defensores desta idéia servem-se de alguns exemplos da arte como a do famoso ícone chamado “a ressurreição de Cristo”, o qual encontra-se em Moscou, para demonstrarem suas convicções, onde nesta obra de arte Jesus aparece num receptáculo que lembra uma espaçonave oval apoiada no chão e do seu exterior sai fumaça espessas que oculta os pés dos anjos. Também o Pantokrátor da fachada da Igreja Moarbes de Ojeda, em Palência, Espanha, representa Jesus Cristo dentro de uma cápsula espacial. Para os adeptos da teoria do Cristo extraterrestre, quando Jesus ressuscitou ele subiu para os céus numa nave espacial e a sua segunda vinda acontecerá em uma outra nave espacial. Outros ainda chegam a admitir que Jesus é fruto da mitificação que os evangelistas fizeram dele. Um dos defensores desta hipótese é o racionalista Raimarus, o qual escreveu o livro intitulado “Da pretensão de Jesus e 63 seus discípulos” publicado em 1778, onde sustenta que Jesus foi um messias político que morreu na cruz como um fracassado e seus discípulos acreditaram que ele era Messias e por isso roubaram o seu corpo e criaram o mito da ressurreição anunciando que ele voltaria. Nesta mesma linha, Strauss um outro autor de uma obra intitulada “Vida de Jesus”, publicada em 1835, afirma que os apóstolos não tinham necessidade de criar o mito de Jesus para evitar a sensação de fracasso e que portanto eles agiram de boa fé e acreditaram na sua ressurreição e na suas aparições, porém o mito surgiu da criação da devoção popular transformando Jesus histórico num personagem modelado pela fé das diversas comunidades cristãs. Portanto Jesus foi idealizado e mitificado pela fé. Foram encontrados entre 1947 e 1956 em 11 cavernas de Qunram e nelas 800 documentos, os quais já se encontram quase todos traduzidos, faltando contudo alguns papiros que constituem 15 mil fragmentos, alguns menores que uma unha. Os manuscritos de Qumram são as mais velhas cópias que existem do Antigo Testamento. Estes foram escondidos pelos Essênios com medo dos Romanos, em cavernas e envolvidos em panos de linho e colocados dentro de vasos. O mais antigo data de 152 aC e o mais recente do ano 69. Cientistas e filósofos que trabalharam neles e já descobriram por exemplo: que os Essênios realizavam o batismo na água, que tinham a idéia do Messias e a oposição à aristocracia sacerdotal do Templo; estas eram idéias dos Essênios e que os cristãos absorveram. Não encontraram nada sobre Jesus nestes pergaminhos, por isso, Puechdiz que “Jesus é um pouco a imagem do mundo onde ele nasceu”. Contudo estes documentos mencionam um fa- moso mestre de justiça que praticou a pobreza, a penitência, a humildade, o amor ao próximo e que 64 era considerado o Messias. Ele foi objeto de hostilidades do sacerdotes do partido dos Saduceus e foi condenado ao suplício. Podemos dizer que todas estas explicações sobre os anos obscuros de Jesus acima mencionadas não têm fundamento exegético- bíblico; estas são tendências ocultistas ou teosófista com sabor de fantasia e não de raciocínio científico. Mas por que os evangelhos ignoram este espaço da vida de Jesus? Por que os evangelistas nunca tencionaram escrever uma vida de Jesus com um caráter de biografia? Porque eles procuraram fazer eco escrito à pregação moral dos apóstolos a respeito de Jesus e anunciado em primeiro lugar a sua paixão, morte e ressurreição como evento salvífico para o homem. Depois porque os evangelistas foram levados a narrar as grandes linhas da doutrina ensinadas por Cristo durante os três anos de sua vida pública e se não relataram nada entre os 12 até os 30 anos de sua existência não é porque ignoravam o que Jesus tinha feito, mas porque isso não interessava diretamente na finalidade catequética e pastoral dos apóstolos. Portanto pode-se dizer que Jesus viveu este período de sua vida em Nazaré trabalhando na carpintaria com José. É importante afirmar que a expansão do cristianismo e portanto do nome de Cristo, deve-se muito a Saulo de Tarso (5 aC – 64dC), cidadão romano e culto, o qual à revelia de Tiago, irmão de Jesus e chefe dos judeus cristãos em Jerusalém, pensou o cristianismo como uma reforma religiosa do “povo eleito”, batizando judeus e gentios. Durante dezesseis anos ele percorreu 20 mil Km a pé fundando comunidades na Síria, na Ásia, na Grécia e em Roma e escreveu catorze cartas à estas comunidades. No ano de 56 foi acusado de introduzir os gentios no Templo e no ano 60 foi à Roma encontrar-se com Pedro. Em 64 houve o incêndio de Ro65 ma, encaminhado por Nero para destruir a cidade e os cristãos foram acusados, perseguidos, torturados. Pedro foi crucificado e Paulo como cidadão romano, teve o privilégio de ser decapitado. A esta altura da história havia mais cristãos fora da Palestina do que nela e o cristianismo tinha se inculturado conquistando o mundo. 12. AS ORIGENS E O GÊNERO LITERÁRIO DOS EVANGELHOS Os sinópticos foram escritos 30-40 anos depois de Cristo e o evangelho de João 70 anos depois de Cristo. Os apóstolos na evangelização formaram uma coletânea de lembranças sobre Jesus em forma de catequese oral, como havia no judaísmo. Os apóstolos não tiveram a preocupação de compilar uma vida de Jesus ordenada e com detalhes, mas preocuparam-se principalmente em transmitir as palavras e os gestos dele para as comunidades cristãs. Estas recordações que depois formaram blocos, foram unificadas pelos evangelistas conforme suas visões, o que explica as divergências de datas e lugares. Mas as imprecisões não são só quanto as datas e os lugares, mas também quanto ao conteúdo, o qual se explica tendo em vista a situação concreta em que foi formada a tradição oral, ou seja, as situações vitais. As recordações contidas nos evangelhos foram transmitidas pela Igreja quando esta estava empenhada em três atividades: No primeiro anúncio da Fé aos cristãos (Kerigma), no aprofundamento da Fé (catequese) e na oração comunitária (liturgia). Em outras palavras: quando a Igreja vivia a dimensão da missão, da catequese e do culto. Por isso a redação dos evangelhos receberam influência destes três níveis no empenho de sua colaboração. Além disso, cada evangelista teve uma sensibilidade 66 específica, a redigir o seu evangelho, por exemplo Mateus dirigindo-se aos hebreus, quis provar que o Cristo é o Messias e mostrou que tudo aconteceu para que se cumprisse a profecia, por isso lembrou de particulares, tais como: o preço da traição (26,15), o vinagre na cruz como cumprimento do Salmo 69 (27-34), Jesus entrando em Jerusalém numa jumenta (Mateus 21,7) para cumprir Zacarias 9,9, etc. Já Marcos escrevendo aos romanos, homens de ação, sensíveis à força, enfocou mais a força de Jesus nos milagres. Enquanto que Lucas escrevendo para os pagãos, apresentou o Cristo como misericordioso (Lc 15), cheio de perdão pelos pecadores. Basta lembrar o episódio da pecadora pública (7, 36-50), de Zaqueu (19,1-10), o bom Ladrão (23, 4043)... Claro que a visão teológica de cada evangelista não esclarece tudo sobre a diversidade nos evangelhos, por isso precisamos ver agora os "Gêneros literários" dos mesmos. Sabemos que duas pessoas de civilizações diferentes podem reagir de modo diferente diante de uma situação. Por exemplo, o Hindú ficará com fome, mas não comerá carne de vaca, considerado para ele um animal sagrado. Já para um ocidental isto é absurdo. Gênero literário é um determinado modo de escrever próprio de um ambiente. Existem vários tipos de linguagem; política, jornalística, acadêmica, etc. Portanto, para se compreender o sentido exato de uma afirmação, é preciso compreender a linguagem a que pertence. A Bíblia é inspirada, não ditada, mas o autor sagrado escreveu de acordo com a sua mentalidade, sua cultura e os gêneros literários de seu tempo e de seu ambiente. A Bíblia se exprime por linguagem humana. Deus "falando por meio do homem, fala à maneira dos homens." Ora os evangelhos por serem antigos, usaram gêneros literários 67 que não nos são familiares hoje. Por exemplo: o gênero apocalíptico apresentado em (Marcos 13, Lucas 21,5-33, Mateus 24, 1-44) procura exprimir a presença de Deus com termos abstratos, através de acontecimentos sobrenaturais (voz, trovão, nuvem). Este é um procedimento literário judaico, com artifícios literários. Os evangelhos nasceram de uma catequese primitiva para convencer e converter, por isso não podemos limitar nossa confiança neles, somente baseando-os na pura crônica, ou no relatório oficial. Até a história moderna, escrita com o mais austero rigor científico, sempre envolve elementos subjetivos e pessoal. Por exemplo uma vida de Napoleão escrita por um homem com interesse militar, tem ótica diferente daquele que tenha um interesse político ou econômico, isto porque em toda história está presente a problemática e a personalidade de quem escreve, conferindo-lhe uma tonalidade especial, sem com isso falsear a realidade. Sabendo que foram as comunidades cristãs que deram forma à tradição oral da qual os evangelistas se serviram, é possível ainda falar de historicidade dos evangelhos? Já vimos que as imprecisões não significam que os evangelhos sejam lendários, além do mais, os dados da geografia, história, arqueologia são claros indícios de sua credibilidade. Podemos falar então de historicidade essencial dos evangelhos e esta historicidade essencial é corroborada como dizem os teólogos pela "concordância discorde" que existe entre elas sinalada pela antigüidade de seu conteúdo e apego à Tradição da Igreja. Sabemos que os evangelistas nem sempre são concordes em referir as palavras e atos de Jesus, o que significa que eles não copiaram um do outro nem atingiram partes comuns, mas apesar disto conservam uma profunda unidade. 68 Além do conteúdo, também o ambiente em que formaram os evangelhos depõe a favor de sua historicidade, e neste sentido a Igreja Primitiva foi super apegada à Tradição. O evangelista Lucas salienta que (1,1-4) antes de escrever fez uma acurada investigação, portanto não escreveu sem ter fundamento; de fato o primeiro discurso sobre a ressurreição de Jesus, tem os apóstolos como testemunhas, (At 2,32; 3,15). Quando tratou de escolher o sucessor de Judas, Pedro propôs um que tinha acompanhado os apóstolos desde o tempo de Jesus ( At 1,21-22 ). A condição para ser apóstolo era ter testemunhado a vida de Jesus (At 10,39-41). Também Paulo, que não foi testemunha ocular, ensina que transmite o que recebeu (I Cor 11,23) e os doze apóstolos foram as primeiras testemunhas da ressurreição (At. 1,8-22). Em conclusão podemos afirmar que embora os evangelhos não sejam livros de história mas de catequese, estes transmitiram o verdadeiro pensamento de Cristo, os traços de sua personalidade e os acontecimentos de sua vida, Por meio deles podemos entrar em contato com o Cristo histórico ao menos no que se refere ao essencial. a) A linguagem do meio eclesial primitivo Mesmo admitindo a continuidade da tradição entre a comunidade pré e pós-pascal, não está provado que o meio ambiente eclesial com o tempo manteve-se fidelidade a Jesus. Mesmo estabelecendo que os evangelistas foram substancialmente fiéis a suas fontes, apesar da liberdade redacional, temos de reconhecer por trás das fontes escritas sempre uma mesma e única fonte que foi o meio eclesial no qual formou e desenvolveu a tradição evangélica. Qual é a qualidade do meio eclesial? A Formgeschichte estudá-la submetida ao meio sociológico 69 (sitz im leben externo) da Igreja primitiva em suas atividades litúrgicas, missionária e catequética, mas, o mais importante é conhecer suas atitudes interiores, assim como o espírito e a mentalidade que inspirou o seu comportamento exterior. Trata-se de perceber quais as reflexões espontâneas da comunidade primitiva a respeito de Jesus e de sua palavra e a estrutura psicológica e mental desta comunidade. Isto é possível pelas vias da semântica, partindo dos vocábulos freqüentes que cobrem todo o horizonte da Igreja cristã, e para isto serve-se dos textos que descrevem o meio eclesial mais primitivo, a saber, as cartas de Paulo e os Atos dos Apóstolos. Uma comunidade ou um indivíduo se revela pela sua linguagem, no emprego de certos textos. Precisa saber se a mentalidade revelada em tais vocábulos usados com freqüência vai no sentido de fidelidade a Jesus ou foi uma fabulação criadora. Conseguindo por meio destes vocábulos privilegiados determina o Sitz im leben interno da comunidade, estaremos de posse de um critério importante para apreciar a qualidade do meio eclesial onde se formou e desenvolveu a tradição. A fidelidade dos evangelistas à Igreja tem por garantir a mesma fidelidade da Igreja a Jesus. Entre os vocábulos distinguimos três grupos: os que ligam-se à idéia da tradição de receber e transmitir; os que dizem respeito aos colaboradores imediatos de Jesus, ou seja, testemunha, apóstolo, serviço; e os que dizem respeito sobre a atividade mais vasta dos pregadores do Evangelho (ensinar, proclamar, evangelizar). Aqui precisa uma investigação semântica precisa. O verbo transmitir em Paulo é repetido cento e vinte vezes em sentido diversos e a palavra tradição em sentido de transmissão, doze vezes. Paulo era fariseu fiel à Torá e declara que submeteu o seu Evangelho à Igreja 70 de Jerusalém para ser confirmada a sua autenticidade (Gl 2,1-6). Ele estabelece uma correspondência estrita entre receber e transmitir (1Cor 15,3; 11,23) e fala que sua exortação é como se Deus mesmo exortasse por meio de nós (2Cor 5,20). Pede para ser fiel às tradições que aprenderam (2Ts 2,15; 3,6) e para pôr em prática o que receberam dele (Fl 4,9; 1Cor 11,2; Col 2,6-7). Para Paulo abandonar a tradição do evangelho é o mesmo que abandonar o Cristo. Não se trata para ele de criar ou de inovar, mas de transmitir. Na tradição rabínica a Torá escrita tinha fidelidade na retransmissão devido as escolas de copistas profissionais, sempre em treinamento e das escolas elementares onde se ensinava a ler e decorar sem alterar o texto. Para o transmissão da lei oral, existiam escolas, além dos tannaim que eram especialistas da memorização, bibliotecas vivas. Estes memorizavam sob a direção de um mestre repetindo indefinidamente, e para conservar o texto inalterado como “ipsissima verba”, faziam resumos, paralelismos, palavras chaves e a repetição; tinham a lei sempre nos lábios. Sabemos que também na origem dos evangelhos existiu uma tradição oral que se manteve mesmo depois da fixação por escrito dos evangelhos. Em suma, podemos afirmar que o Cristianismo não começou com a pregação da Igreja, mas com Jesus e a tradição de seus ditos e gestos. É a Boa Nova trazida por ele. O próprio Jesus não poderia ser compreendido sem a tradição Judaica. Ele desde o começo é considerado mestre e para isso usou os métodos de ensino da época, levando os discípulos a memorizar, o que contribuiu para garantir a transmissão fiel de seus ditos e gestos. Os doze ficaram em Jerusalém por 15 ou 20 anos durante a formação da tradição evangélica e os fiéis eram assíduos ao ensinamentos dos apóstolos (At. 2, 71 42). A tradição desenvolveu pela forma do Midrash a interpretação da escritura à luz do ensinamento de Jesus e da experiência eclesial nova e sob forma das questões doutrinais e problemas na comunidade, assim como das respostas tiradas da tradição de Jesus e das Escrituras. Assim os Logia de Jesus são evocados e repetindo como se fazia nos círculos rabínicos. A Igreja atribuiu a Jesus como mestre uma autoridade superior a dos rabinos. Outras civilizações tiveram suas tradições transmitidas oralmente. É o caso dos Vedas, livros sagrados do induismo (1000-2000 AC), onde a fidelidade é assegurada por severos mestres e estudantes. Estes livros foram transmitidos oralmente graças à técnicas rigorosas como a metrificação e contagem das palavras, repetição etc. Também a tradição oral africana particularmente no Congo foram transmitidos com fidelidade. Testemunhar caracteriza a atividade apostólica após a ressurreição. Estes foram escolhidos por Deus como profetas (At 1,26). Eles viram e ouviram o Cristo (At 4,20) e foram-lhe íntimo (At 1,21-22). Por isso possuíram uma experiência direta de sua pessoa e dos seus ensinamentos. Eles receberam a missão de Cristo para testemunhar (At.10,41). Eles anunciaram a palavra com segurança, isto é, com coragem e sem medo (1Jo 1,1-3). Para suceder Judas foi preciso que Matias fosse companheiro dos apóstolos (At 1,26). Os apóstolos foram testemunhas oculares e auriculares desde o batismo no Jordão até a ressurreição (At 4, 21-26; 10,39). Foi Jesus quem mandou que os apóstolos fossem testemunhas. (At 10,42-43; 2, 32-33). Paulo se apresenta como "apóstolo do Cristo" (1Ts 2,7), isto é, como embaixador, como aquele que exerce uma missão em nome de alguém que tem autoridade. Ele é encarregado de anunciar o evangelho (1Ts 4,4; 72 2,9), é embaixador (2Cor 5,20). Para Lucas os apóstolos não são embaixadores, mas testemunhas qualificadas da ressurreição. Paulo se apresenta como diákonos do evangelho (Cl 1,15), como servidor de Cristo (2Cor 11,23). Diakonia é essencialmente ministério da palavra. Ele, em Atos dos Apóstolos 6,4, fala também da diakonia tou logou. Dai uma das funções principais dos apóstolos é estar a serviço da palavra (At 6,2-4), e estar à serviço é testemunhar tudo sobre Jesus desde o batismo até a Ressurreição. b) Obstáculos à revelação do mistério de Jesus Devemos admitir que alguns obstáculos dificultam a revelação do mistério de Jesus e dentre estes salientamos os seguintes: A mentalidade religiosa de então que considerava como essencial a obediência à lei de Deus promulgada por Moisés, e pouco inclinada a refletir sobre Deus e sua natureza; A mentalidade religiosa moldada no embate com a idolatria e para a qual tudo que não coincidisse com Dt 6,4 era idolatria; A mentalidade religiosa estruturada pelo pensamento escatológico apocalíptico para a qual o fim de tudo era eminente. Em vista destes pontos a revelação do mistério de Jesus devia ser progressiva e passada pelo filtro da mentalidade dos discípulos. Além do mais, Jesus embora sendo Deus, não se identificava com Deus e também confessava o monoteísmo da fé de Israel (Dt 6,4; Mc 12,29). Por isso, numa primeira etapa Jesus, de sua pessoa e de seus ensinamentos revelará não tudo aquilo que poderia ser compreendido, mas tudo o que podia ser aceito e assimilado sem erros, considerando a mentalidade de então. Num segundo estágio ele formará o grupo de discípulos, os quais atraídos pela sua personalidade, se encontrarão num pré-julgamento favorável que permitirá aceitar algum ensinamento que lhes pare73 ça chocante e que ainda não compreendam. Num terceiro estágio selecionará dentro desse grupo dos discípulos alguns privilegiados aos quais poderá confiar uma doutrina mais elevada. Podemos portanto, precisar que Jesus primeiramente procurara ensinar publicamente através de suas pregações e já aqui encontrou resistência sendo acusado de blasfemador pelo povo porque se fazia Deus (Mt 26,65; Mc 14,64; Lc 22,71). A blasfêmia consistia em fazer-se como Deus, e em perdoar os pecados (Mc 2,7; Mt 9,3). Na literatura bíblica os reis pagãos eram acusados de usurpar as prerrogativas de Deus (Ez 28,2; 2Mc 9,12), o que caracterizava algo muito sério. Se com isso não bastasse, Jesus coloca-se acima de Moisés com o direito de modificar a própria lei (Mt 5,21-27.31.33-38). Ele utiliza a expressão: “Eu porém vos digo...”, a qual não tem nenhum paralelo no AT. Jesus não afirma como Moisés em Dt 6,1 “são estes os mandamentos, as leis e as ordens de Javé...” Nem como os profetas: “Assim fala Javé...”, mas dispõe da lei e da tradição, interpretandoa, corrigindo-a, igualando-se a Deus. Ele exige que o prefira em relação a seus pais e aos próprios filhos (Mt 10,37). Portanto, quando Jesus falava a um vasto auditório manifestava que tinha com Deus um vínculo de proximidade, superior aos outros enviados e que dispunha de um poder que pertence a Deus como o de perdoar os pecados. É de se notar que somente uma vez Jesus se designará como o Filho de Deus (Mc 12,6-8). A progressiva revelação da divindade de Jesus ele o fez partindo das multidões, de fato os evangelistas servem-se da a expressão "dizia às multidões", "dizia aos discípulos". (Mt 11,7; Mc 7,14; Lc 5,3; 7,9; Mt 9,37; 10,1; 15,32). Na primeira parte de seu ministério na Galiléia, Jesus dedicou-se principalmente às multidões e 74 somente depois dirige-se aos discípulos (Mc 13,32; Mt 24,36; Mt 11,25-27; Lc 10,21-22). Nas palavras dirigidas somente aos discípulos revela o mistério de sua relação com o Pai, tendo com Ele uma relação de intimidade e de proximidade, uma proximidade acima dos anjos do céu, pois Ele conhece o Pai como o Pai conhece o Filho. Entre Ele e o Pai existe uma intimidade que não tem nenhuma analogia na relação dos homens com Deus, pois chama Deus de Abá (Mt 11,25). Por fim um grupo de privilegiados contam com a revelação íntima da divindade de Jesus, a exemplo dos três discípulos no Monte Tabor. Experiência que depois se fortificou com a experiência da ressurreição, por isso após a Páscoa nas comunidades cristãs, a atitude do fiel para com Jesus ressuscitado era idêntica à do judeu em relação a Javé; Jesus é invocado como Senhor, e o nome do Senhor aplica-se não mais a Javé, mas a Jesus (At 2,21). O fiel se converte ao Senhor Jesus e não mais a Javé (At 9,35), crê nele como se crê em Javé (At 3,36). Jesus é o Senhor perante o qual todo joelho deve dobrar (Fl 2; 6,11). Portanto se reconhece a divindade de Cristo, e não só a divindade, mas também a sua preexistência (cf Fl 2,6-7; 1Cor 8,6; 2Cor 8,9). Desta forma, a fé na preexistência e divindade do ressuscitado, é presente nas comunidades cristãs, em menos de 20 anos após a Páscoa. Ressaltamos que nessa época começava a evangelização do mundo pagão, e o influxo dos cristãos de origem pagã era desprezível, logo a idéia da divinização de Jesus nasceu no meio judeu. Ora, o meio judeu era contra uma semelhante doutrina, portanto tal doutrina só pode ter vindo de Jesus que a ensinou e que Deus confirmou com a ressurreição. A crença proclamada após a ressurreição sobre a divindade de Jesus foi corroborada pela vinda do Espírito Santo (Jo 16,12-13; 14,25-26), pois a semente depositada por Jesus caiu 75 num solo não apto para acolhê-la e fazê-la germinar, para tanto foi necessário a Páscoa e o Pentecostes (DV 19). c) A compreensão de Jesus na Igreja A compreensão de Jesus Cristo na Igreja foi possível mediante algumas fontes dentre as quais a Patrística. A época patrística que compreende o Ocidente com os autores cristãos até Gregório Magno (+604) e para o Oriente até João Damaceno (+749). Produziu uma grande quantidade de escritos de bispos, padres, diáconos, monges e leigos. Particularmente os Padres foram os autores dos primeiros escritos sobre Jesus Cristo. Estes eram conhecidos como Pais em vista do discípulo ser chamado de filho (ICor 4,15). Todos estes escritos sem a distinção de um grau hierárquico, eram considerados, pois escritos por mestres aprovados, que possuíam a ortodoxia da doutrina, a santidade de vida e a aprovação eclesiástica. A primeira língua da literatura patrística foi o grego, isto é até o século III, porque a civilização helenística tinha conquistado o mundo Romano. Depois disto o grego foi substituído no Oriente pelo Siríaco, o Copto e o Armenio e no Ocidente pelo latim. Na verdade, o grego da literatura patrística não era o grego clássico, mas a Koiné, um meio termo entre o clássico e o popular, isto valeu também para o Novo Testamento e perdurou até o início do século IV. Existem três fontes principais para se conhecer o pensamento dos Padres sobre a fé em Jesus e a compreensão de sua pessoa. Primeira: A vastíssima literatura patrística de variado gênero literário, como o atos dos mártires, as cartas endereçadas a pessoas e comunidades, os escritos apostólicos, os comentários dos livros da bíblia, as homilias, as catequeses, as regras para co76 munidades nomásticas, etc. Segundo: Os textos de várias liturgias (grega, romana, copta...) e as profissões de fé (símbolos de fé apostólica usados em Roma pelo ano 200, o credo do Concílio na Nicéia, do Concílio de Constantinopla, etc. Terceiro; Os documentos de Concílios Ecumênicos, as Cartas dos Papas e dos Sínodos nacionais e regionais. Outra fonte para a compreensão de Cristo é o uso da Sagrada Escritura, pois ignorar a Escritura é ignorar Cristo. A Patrística manteve um constante contato com a Sagrada Escritura meditando e comentando-a para penetrar na divindade de Jesus. Por fim, a reflexão dos Padres apostólicos, pois os estudos realizados por eles tiveram um caráter pastoral e trouxeram um testemunho importante de fé cristã, sobretudo porque eles pertenciam a regiões diversificadas (Ásia Menor, Síria, Roma).São testemunhos escritos em circunstâncias particulares e nestes destacam-se uma forte convicção de que a segunda vinda de Cristo será eminente; uma lembrança calorosa da pessoa de Cristo por causa dos contatos diretos de seus autores com os apóstolos e dentre estes uma das testemunhas mais vivas é Inácio de Antioquia (+110). Nos séculos II - III com os apologistas gregos a reflexão se coloca sobre o Verbo e dentre os mais destacados apologistas, temos Justino, o mártir (+165), grande filósofo que um dia se convenceu que a filosofia não saciava seu coração e voltou-se para os profetas começando refleti-los e a tê-los como única filosofia verdadeira. Para ele o Lógos é o medidor entre Deus e o homem, Deus comunica-se com o mundo pelo seu intermediário, é o Lógos que instrui o homem. Todo homem possui na própria razão uma semente do Lógos. No final do II século, difundia-se um sincretismo religioso com o nome de gnoticismo, o qual propunha 77 que a matéria e o corpo humano são um princípio inferior do qual se deve libertar. Nega-se assim a ressurreição dos mortos, a parusia, o juízo final, o inferno. Contra estes polenizou Irineu de Lião, discípulo de Policarpo. Ainda por volta do ano 200 haverá numa extraordinária vitalidade no campo apostólico da literatura eclesiástica, nascendo a escola teológica de Alexandria com Clemente, Irineu, Dionísio, Cirilo, etc. 13. A GALILÉIA NO TEMPO DE JESUS A Galiléia é a região onde Jesus viveu quase toda sua vida e foi o primeiro palco de sua missão, por isso é o lugar de sua formação e de seu amadurecimento humano religioso. É importante que tenhamos antes de tudo uma visão de toda a Palestina, um país que no tempo de Jesus possuía 240 km em linha reta, com largura de aproximadamente 65 km. Este possuía um clima subtropical e mesmo sendo assim pequeno apresentava quatro zonas climáticas diferentes. A zona litorânea, a região montanhosa, o deserto Negeb e a depressão do Jordão. Possuía na verdade praticamente duas estações: o verão seco que se estendia de maio a outubro e o inverno que tomava os meses de novembro a abril. Possuía também planícies, tais como: a de Ulata e de Esdrelão e elevações como o monte Tabor com 588 metros, o monte Garizim com 388 metros, o monte Silo com 915 metros. Em Jerusalém situada a 700 metros de altitude, estavam os montes Scopus com 38 e 831 metros, o das Oliveiras com 818 metros, o Moriá com cerca de 40 metros, o Sião de com 70 metros, etc. Possuía também algumas zonas desérticas e áridas. 78 A palavra Galiléia significa “terra dos pagãos”, por isso é também chamada de Galiléia dos gentios (Mt 4,13-16). No tempo de Jesus era habitada em grande parte pelos hebreus. Nela Jesus transcorreu a maior parte de sua existência, vivendo mais precisamente na região da baixa Galiléia, em Nazaré e ao longo das margens do lago de Genesaré. Ali Jesus realizou grande parte de sua pregação (Mc 6,6; Lc 8,1; Mt 4,23). A Galiléia no tempo de Jesus era constituída geograficamente de um território com cerca de 40 a 50 km de largura por 100 Km de comprimento. A tese de que era constituída de um ambiente bastante popular, ligado à “am há-arez” (a gente da terra), ou seja, a parte mais inculta e pobre da população, hoje não tem mais consistência diante de pesquisas rigorosas conduzidas por estudiosos hebreus contemporâneos. Para uma melhor visualização desta região usa-se dividi-la em Alta Galiléia, Baixa e Galiléia. A Baixa Galiléia, região onde viveu Jesus era bastante povoada e fértil, cortada por estradas comerciais e um importante centro administrativo. Sendo irrigada por chuvas, possuía terras férteis com por exemplo a planície de Esdredom, a qual era grande produtora de cereais e de hortaliças. Da mesma forma eram férteis as colinas e as planícies do mar do que o Tiberíades; um verdadeiro paraíso, na expressão de Flávio Josefo. Possuía o lago Genesaré abundante em peixes. Na a Alta Galiléia existia a cidade de Cafarnaum, a 8 km do Jordão (Mt 8,5), a qual possuía um destacamento de soldados romanos, comandado por um centurião, o qual construiu uma Sinagoga. Existia também a cidade de Séforis com uma população de aproximadamente 35.000 habitantes e também o Tiberíades, um outro centro populoso. Nazaré não distava mais do 7 quilômetros de Séforis. De Nazaré partiam uma estrada em direção para Tiberíades e outra em 79 direção para Citópolis, a mais importante cidade grega do lado de cá do Jordão. Estudos mostram que as cidades de língua grega formavam como que um grande círculo ao redor da Galiléia, e com isso podemos afirmar as influências culturais nesta população, ou seja, de não conceber uma Galiléia somente de cultura aramaica. Segundo estudiosos da população judaica da Galiléia no tempo de Jesus não deveria superar os 150.000 habitantes. Existia, como afirmamos, um relacionamento tanto comercial como cultural entre os hebreus e os gentios dentro da Galiléia, mas o sentimento da população judaica e a suas leis sobre a pureza contribuíram muito para a manutenção da própria identidade judaica quando em contato com os gentios. As cidades gregas vizinhas da Galiléia e da Judéia tinham os seus antigos deuses asiáticos, mas a rigidez monoteísta não permitia uma contaminação. Esta opinião é defendida por Schurer ao afirmar: “Quanto mais vigorosa e persistente era a pressão do paganismo na Palestina, tanto mais enérgica era a resistência oferecida pelo judaísmo. Não se pode evitar o avanço da cultura pagã, mas as vigilantes autoridades religiosas estavam alertas contra qualquer coisa que pudesse ofender a lei. Para o judaísmo era questão de vida ou de morte manter máxima vigilância a esse respeito”. Portanto, as normas sobre a pureza e outros costumes judaicos eram reais barreiras contra o perigo da helenização. Além do mais, os fariseus que na época de Jesus eram aproximadamente 6.000 em toda a Palestina, os quais tinham muita influência sobre o povo; eram defensores dos antigos costumes e das leis religiosas. O mesmo se pode dizer sobre os essênios que na época constituíam um grupo de aproximadamente 4.000 pessoas. 80 Uma figura que se destaca na Palestina é o rei Herodes, o qual no ano de 37 conquistou Jerusalém tornando-se rei. Por sua habilidade na política externa, e por sua sagacidade em pacificar e reconstituir o Reino para que tivesse os mesmos limites do tempo de Davis, assim como pela magnificência de suas construções e pela sua sábia administração, não obstante a sua com lealdade, ele mereceu o título de “Grande”. Schurer afirma que Herodes possuía quatro inimigos e conseguiu vence-los e controlá-los: o povo, a nobreza, a família dos asmorreus e Cleópatra do Egito. Herodes era cruel e mandou matar não somente Mariana, sua mulher, mas também a sua mãe e Alessandra. Antes já havia assassinado Jônatas Aristóbulo III, o irmão de Mariana e sumo sacerdote, e o velho Hircano II. Herodes foi um bom administrador construindo em honra de Augusto a cidade de Cesaréia e reconstruiu Samaria dando-lhe o nome de Sebaste. Construiu também a fortaleza Herodium em Massada construindo um palácio de três andares na rocha. Mas a sua obra mais famosa foi a reconstrução do Templo de Jerusalém. “A grandeza desta obra gigantesca é testemunhada pelos seguintes números: nela foram empregados não menos de 10.000 leigos, e 1.000 sacerdotes foram preparados expressamente para os trabalhos das partes internas, nas quais os e israelitas, isto é, os leigos, não podiam entrar. O trabalho teve a duração de nove anos e meio, dos quais oito anos para se levantar as loggias e o pátio externo e outro meio do ano para o próprio Santuário. Essas cifras mostram que a obra principal foi a terraplanagem do terreno para o Santuário. Semelhante trabalho exigiu o uso extraordinário de forças, energia e técnicas para o seu planejamento e execução” (Schalit) . Mas, as obras de Herodes não param por aí, ele construiu ainda em Jerusalém um teatro, um anfiteatro e um hipódromo, 81 construções que desagradaram os judeus tradicionalistas. Construiu também para si um esplêndido palácio, ornamentado com mármore e ouro. Não deixou de construir também numerosos templos pagãos enfeitando-os com estátuas. A Galiléia era cortada por várias estradas e tinha um bom movimento proveniente da Mesopotânia. Em Damasco começava a Via Maris, a qual atravessava a Galiléia; esta importante estrada começava em Damasco, na Síria, e chegava ao Egito. Ela é lembrada em Isaías (8,23) e também em Mateus (4,12-17).Também Sidônia tinha comunicação com Alta Galiléia. Embora o povo judeu defendia fortemente a sua própria identidade religiosa em toda a Palestina, foi grande a influência do helenismo, causada sobretudo por sua cultura e língua, assim como por suas instituições civis. Hengel em seu livro: “O Judaísmo e Helenismo. Estudo sobre seu encontro na Palestina durante o antigo período helenista”, relata que: “na própria Palestina, virtualmente todo habitante esteve em estreito contato com os novos senhores, fossem eles soldados, oficiais, mercadores ou proprietários”. O próprio Hengel ainda afirma que: “o enquadramento das parábolas de Jesus, com seus grandes proprietários, exatores, administradores, agiotas, trabalhadores diários e fiscais alfandegários, com especulações de grãos, escravidão por dívidas e a apropriação de áreas, só poderão ser compreendidos levando-se em consideração que as condições econômicas introduzidas pelo helenismo na Palestina”. Ora, diante dessa realidade é natural que tenha havido a difusão do conhecimento por meio da língua. Séforis, uma cidade no interior da Baixa Galiléia, era muito helenizada. Esta juntamente com Tiberíades era a maior a cidade da região e uma importante fortaleza. Nela foi encontrado um teatro romano cujo semi82 círculo possuía 74 m. Com uma capacidade para colher aproximadamente 4.000 a 5.000 espectadores e isto num lugar distante apenas 7 km de Nazaré. Neste teatro não se representavam comédias ou tragédias aramaicas, por não existirem, mas sim as gregas de algum escritor grego da região. Diante desta realidade podemos afirmar que existia um bom número de judeus que freqüentavam esta cidade. Estudiosos chegam a afirmar que Séforis chegava a ter no tempo de Jesus 30.000 habitantes entre judeus, árabes, gregos e romanos. Disto também se pode concluir que as aldeias da vizinhança deviam ser as principais fontes que supriam de cereais, óleo, hortaliças e produtos pecuários para a cidade Tiberíades, construída em o honra do Imperador Tibério, por Herodes Antipas, entre os anos 17 e 20, possuía uma população mesclada, em grande parte formada por gregos. Nazaré, situada na baixa Galiléia localizava-se no cruzamento de estradas secundárias, todas ligadas aos principais caminhos entre os quais a Via Maris, que passava 10 km a oeste. Por ela passavam outras estradas que permitiam a ida a Jerusalém por várias direções. Segundo estudos esta cidade possuía uma população no tempo de Jesus com cerca de 1.600 a 2.000 habitantes. Encontrava-se a apenas 7 km de Séforis de modo que não podia deixar de sentir a influência desta importante cidade. É de supor que José e Jesus tenham prestado seus serviços de carpinteiro ou até como operários na construção desta cidade. Nazaré, como localidade agrícola, deve ter sido uma das principais fornecedoras de grãos, óleos, vinho, hortaliças e produtos artesanais para os mercados Séforis. 14. O MUNDO SOCIAL EM QUE VIVEU JESUS 83 É evidente que a geografia física influi muito no caráter e no comportamento de uma pessoa, mas também a geografia humana feita de sua cultura, das atividades de trabalho e do intercâmbio com as pessoas influi e igualmente. No que toca à geografia física e humana de Jesus podemos dizer que ele nasceu e cresceu numa família em Nazaré, uma pequena aldeia perdida nas colinas da Galiléia onde viveu e assimilou naquele contexto a cultura da gente do seu tempo. Toda a sua juventude foi na verdade marcada pelo ambiente rural desenvolvido particularmente nos limites de sua aldeia. Este é o período que os evangelistas chamam “de vida escondida”. Mas, mesmo neste período da juventude de Jesus e ele não viveu a sua vida encerrada na sua pequena aldeia; basta dizer que hoje os estudos, as escavações arqueológicas nos informam que Cafarnaum no tempo da juventude de Jesus era um florescente centro comercial com uma notável atividade artesanal, particularmente a pesca, as qual possuía uma organização de tipo industrial. Da mesma forma a cidade de Séforis possuía um teatro com cerca de 4.000 lugares com ambiente bastante incrementado para a cultura judaica e helenista. Jesus, menino e adolescente, viveu neste contexto e por isso sofreu também a suas influências. Sabemos que Jesus não deixou nada por escrito, também se tinha freqüentado as escolas das Sinagogas do seu tempo. Os evangelhos não fazem descrições sobre Jesus, pois o interesse deles era querigmático, ou seja, de anunciar o evangelho, o que não significa que não há a historicidade no que escreveram. O Novo Testamento não fornece um enquadramento e histórico dos acontecimentos, por isso as principais fontes históricas para a formação de um quadro geral da Palestina no tempo de Jesus, devemos buscar em fontes extra bíblicas, tais 84 como as do historiador Flávio Josefo, sem deixar de considerar os trechos mais antigos das fontes rabínicas. Qual era realmente o mundo social de Jesus? Ao responder a esta pergunta precisamos levar em consideração de que Jesus tenha pertencido a uma classe semelhante as classes médias do mundo urbano de então (A.R.Batey, Jesus & the forgotten City. New Light on Sepphoris and the Urban World od Jesus, Grand rapids, Michigan, Backer Book House,1991). Na verdade, não podemos conceber Jesus unicamente inserido no contexto judeu, por isso a suposição de Bultmann e de outros teólogos de que havia uma grande separação entre o cristianismo do mundo judaico e o cristianismo do mundo grego, não é sustentável, como também não é a teoria da mitização por ele proposta. Hoje tem-se à disposição dados historicamente sólidos a respeito do tempo de Jesus e sobre os primeiros discípulos dele que nos dão informações consistentes sobre o ambiente em que Ele viveu e dados suficientes para delinear o próprio significado da vida e da pregação dele e dos seus discípulos. Hoje não se pode mais conceber Jesus como sendo um personagem impreciso, ou como um mito ou até pensar, como autores racionalistas do século XIX e do início do passado, que ensinavam que o cristianismo foi uma criação mitológico - teológica paulina. 15. O AMBIENTE DE JESUS E A SUA PRESENÇA NELE Estudiosos afirmam que o status de Jesus não é o que comumente ouvimos falar por aí; Ele não era pobre sem meios para a subsistência, mas um trabalhador independente e reconhecido, que mesmo não sendo rico, vendia e comercializada seus produtos e oferecia seus 85 trabalhos de carpinteiro; Ele era o filho do carpinteiro (Mt 13.55) e Ele mesmo era carpinteiro (Mc 6,3). As últimas descobertas induzem a ver no Tékton a figura do construtor, em lugar de simples carpinteiro; ou então um mestre de obras ou até um operário especializado. O conceito Tékton se aplicava, ao que parece, a uma certa habilidade e experiência no trabalho de produzir com madeira, desde objetos de uso cotidiano e até obras mais complexas. Justino interpreta a palavra Tékton como o que fabricava principalmente arados e cangas. Contudo não se pode negar que o profissional Tékton tinha um trabalho de construção de móveis para as casas mais prósperas da região e a fabricação de seus próprios instrumentos de trabalho, como também fazia o trabalho em verdadeiras e próprias construções públicas. Hengel é da idéia de que não se pode excluir que, exatamente na condição de carpinteiro, Jesus tenha trabalhado na reconstrução de Séforis. De fato, Séforis, fora construída por Antípas como uma verdadeira capital com o espírito e a aparência greco-romano. Tratavase de uma verdadeira metrópole, uma cidade cosmopolita que devia ter aproximadamente 30.000 habitantes e que continuou a ser a maior cidade da Galiléia no tempo de Jesus, mesmo depois da construção de Tiberíades. Esta possuía bancos, arquivos, ginásios e como falamos, um teatro para 4.000 espectadores. Batey, que trabalhou nas recentes escavações de Séforis, concluiu: “que Jesus tenha tido freqüentes e significativos contatos com a vida de Séforis, é uma hipótese provável. A proximidade da capital com Nazaré, juntamente com sua importância cultural e política, tornava Séforis acessível e atraente. Embora, Séforis tivesse sido construída seguindo o modelo helenista, seus habitantes, na maioria, eram judeus e para aí haviam mudado há pouco tempo, para reconstruir a cidade. Vários líderes 86 sacerdotais tinham um relacionamento especial com os chefes dos sacerdotes de Jerusalém. Não existe razão plausível para que um jovem de Nazaré não a tivesse freqüentado. É totalmente possível que José e Jesus tenham trabalhado em suas construções. E se não o fizeram, tinham conhecimento do andamento dos trabalhos, sendo informados pelos trabalhadores. Esses contatos ajudam a dar forma ao mundo em que Jesus cresceu, e também ajudam em sua compreensão” (R.A Batey, “Is not the carpenter?” NTS,30 (1984), pg 255). Séforis, reconstruída, teve suas Sinagogas, como Nazaré possuía a sua. Certamente Jesus não tinha muito trabalho em Nazaré, a qual era uma cidadezinha de aproximadamente 2.000 habitantes. Por isso devia ir buscar trabalhos nas aldeias ao redor das cidades. Diante disto é aceitável reconhecer que Jesus tenha trabalhado em Séforis. Fica claro, portanto que no tempo de Jesus a Galiléia se comunicava com os viajantes que por ela passavam e também com os seus habitantes, usando o grego da Koiné. Dentre estes não podemos esquecer daquele um milhão e meio ou 2 milhões de judeus da diáspora que tinham naquele tempo, pelo menos metade deles, o grego como a língua mãe e que faziam sempre as suas peregrinações ao templo de Jerusalém. Os habitantes da Galiléia falavam o aramaico e talvez um pouco de hebraico. Diante desta realidade Jesus consequentemente também conhecia outras línguas. Na verdade hoje é a opinião comum de numerosos estudiosos da existência de um certo trilingüismo na Palestina. Por isso não só o aramaico era tido como a língua usada pelo povo, mas também o grego e o hebraico, línguas estas faladas por ao menos certo número de judeus cultos. Além disso, muitos habitantes deviam relacionar-se com as cidades da costa ou da Decápolis, onde era usado o grego. 87 De 300 a 200 aC, a Palestina foi dominada pelos Ptolomeus e muitos judeus emigraram para o Egito, especialmente para a Alexandria, ora tudo isso importava em uma crescente presença da língua grega também na Palestina judaica. Com o rei Antíoco, o Grande (223187), a Palestina ficou sob o domínio da Síria e teve início a um período de forte helenização que chegou até a ser imposta pela força. Numerosas palavras gregas penetraram nos escritos sagrados hebraico. Devemos considerar também que obras literárias em grego ou traduzidas para o grego por judeus e para os judeus tornaram-se importantes desde o século III antes de Cristo. Basta lembrar que a tradução da bíblia hebraica para o grego ou na versão chamada dos LXX. Para o grego foram traduzidos também os livros deuterocanônicos, dentre os quais, o último, o da Sabedoria foi composto e planejada em grego na primeira metade do século I antes de Cristo. Flávio Josefo escreveu primeiro em aramáico, e depois traduziu para o grego a sua obra “Guerra Judaica”. Já antes do século I encontramos centenas de inscrições gregas na Palestina que atestam o quanto esta língua era usada pelo povo. Alguns estudiosos afirmam que no decorrer do século I, durante o reinado de Herodes, havia a existência de escolas primárias de grego em Jerusalém. Conforme afirma o estudioso Rabin, “Uma vez que podemos assumir que em Jerusalém e na Judéia o hebraico da Mishná era a língua corrente e o aramaico ocupava o segundo lugar, esta situação devia ser diferente em áreas como a planície da Costa e da Galiléia. Aqui o aramáico, e possivelmente o grego, eram as línguas dominantes faladas pelo povo de todas as classes, ao passo que o hebraico funcionava unicamente como língua literária” (Ch, Rabin, Hebrew and Aramaic in the first century, in: Safari&Stern). 88 O estudioso Schwank afirma: ”Pudemos obter, através das escavações do teatro de Séforis, pela primeira vez e de modo totalmente inesperado, uma compreensão dos conhecimentos lingüísticos dos extratos populares na Galiléia no tempo do Novo Testamento. Então o povo da Galiléia falava mais de uma linguagem. E isso não é para causar admiração quando se lembra que a Galiléia foi judaizada pela primeira vez, pela força, ao redor de 100 aC, pelos asmoreus. Desde o fim do século 8º aC era o território dos pagãos”. Jesus dialogava com as pessoas que falavam grego sem a necessidade de intérpretes, basta lembrar a conversa com Pilatos, com o centurião pagão, com os Gerasenos, com os habitantes da Decápolis, com a mulher cananéia... O próprio Pedro fala em grego em At 10, com o centurião. Podemos concluir a possibilidade de que Jesus se dirigisse aos Galileus tanto em aramaico como em grego. Novamente Batey nos afirma que “As escavações arqueológicas em Séforis continuam, produziram a certeza de uma sofisticada cultura urbana, o que coloca Jesus em um ambiente radicalmente diverso, que muda as presunções tradicionais sobre sua vida e seu ministério. O retrato tradicional de Jesus como um camponês crescido em relativo isolamento e em uma pequena aldeia de quatrocentas pessoas, longínqua Nazaré, deve ser refeito com a entrada em cena de uma florescente metrópole greco-romana, há pouco descoberta, que se vangloria de seus 30.000 habitantes – judeus, árabes, gregos e romanos. Séforis poderosa, próspera, amante da paz, mantinha relacionamentos com os outros centros greco-romanos das rotas comercias do leste, que falavam a língua grega... O novo testemunho desconhecido de Séforis vem mudar as precedentes interpretações sobre Jesus e requer uma nova imagem do homem e do movimento que ele fundou”. 89 O tempo em que Jesus viveu se fixa entre 7 aC e 39 dC; caracteriza-se como uma época de instabilidade política, a qual Herodes, o Grande conseguiu minorá-la com sua tirania, mas que depois desembocou na guerra judáica de 66 dC. As causas desta situação peculiar deve-se a vários fatores dentre os quais assinalamos os seguintes: As divisões administrativas com provação de disputas entre as diversas regiões. A população da Palestina heterogênea e com interesses de grupos opostos, entre os quais os pagãos, os judeus helênicos, os judeus cumpridores da lei, etc. A excessiva exploração do povo por impostos, os dízimos, os tributos ao Templo, as contribuições para Herodes, o Grande e seus filhos, o trabalho territorial a César, a manutenção do exército, as alfândegas, etc. A repressão dos grupos populares que se revoltavam contra a aristocracia, contra os governantes e o poder romano. A indolência dos filhos de Herodes e dos Procuradores Romanos. As lutas internas pelo poder das famílias reais. As lutas por postos rendosos do Templo e do Sinédrio. O confronto entre os grupos religiosos e políticos. Devido ao clima reinante na Palestina do tempo de Jesus, fomenta-se alguns acontecimentos importantes nesta época, os quais podem ser elencados assim: A rebelião por ocasião da morte de Herodes, o Grande, a qual teve como finalidade impedir a sucessão de seus filhos e sacudir o Império Romano. A repreensão romana com a imposição da força do Império resultando em 2.000 crucificados além dos 90 mortos de guerra e os prisioneiros vendidos como escravos. A organização e consolidação dos zelotas sob a direção de Judas, o Galileu, e do fariseu Sadoc, discípulo de Shammai. As revoltas no ano 6 dC contra Arquelau e o pagamento de tributos a César. O contexto sócio, político, religioso, ideológico e econômico levou contudo a notáveis mudanças e transformação na vida deste povo; eis algumas causas e conseqüências mais notáveis: A morte de Herodes, o Grande e a sucessão de seus filhos controlada por Augusto. O desterro de Arquelau, no ano 6 dC e a transformação de seus territórios (Judéia, Idumeia, Samaria) em província pela procuradoria imperial, o que significou a sujeição do Sinédrio ao Procurador Romano, a qual passou a nomear os sumo sacerdotes. A morte de Felipe no ano 34 e anexação de seus territórios à Província da Síria. A destituição de Pilatos e Caifás (dC 36 e 37) e o exílio de Herodes Antipas na Galia em 39dC. A consolidação das duas escolas rabínicas farisáicas; a liberal de Hillel e a rigorista de Shammai. A radicalização das teses zelotas sob a influência de alguns discípulos rigoristas de Shammai e dos essênios de Qumrân. É de se notar que a Palestina no tempo de Jesus possuía uma economia baseada na agricultura, na pecuária, no artesanato e na pesca no Mar da Galiléia. A região da Judéia por ser montanhosa, entretanto quase não se prestava para a agricultura, porém contribuía muito com a criação de gado, de suínos e de caprinos. Havia também um grande incentivo para o trabalho na construção e na arte. A Galiléia por ser uma região fértil 91 com chuvas freqüentes, tinha preponderantemente o cultivo de cereais, da vinha, de frutas e legumes, do linho, do couro, a pesca no Tibiríades com emprego de redes de até 50 metros. É importante salientar que existia um ágil no comércio particularmente devido as duas rotas de comércio que atravessavam a Galiléia; uma denominada de Ptolomeida - Damasco e a outra Damasco - Jerusalém. Deve-se salientar que as técnicas agrícolas, pecuaristas e artesanais eram bem rudes, contudo estas evoluíram com a reconstrução do Templo por Herodes. Haviam aldeias constituídas de pequenos proprietários camponeses que se sustentavam, assim como havia os latifúndios onde trabalhavam, os assalariados e os escravos. Nas cidades havia artesãos e comercializantes. Os latifundiários, os comerciantes e arrecadadores de impostos que não eram sacerdotes; estes constituíam a aristocracia leiga e faziam parte do Sinédrio: “Senadores” ou “Anciãos”. O evangelista Lucas (Lc 19,47) fala deles como chefes do povo. A aristocracia sacerdotal era composta por Sumo Sacerdotes em função e pelos ex-sumo sacerdotes, além do chefe do Templo, 7 vigias e 3 tesoureiros. Esta formava a comissão permanente do Sinédrio. Os 24 chefes dos turnos semanais, e os 158 chefes dos turnos diários também faziam parte da aristocracia sacerdotal, mas não pertenciam ao Sinédrio. O NT os designa globalmente como “Sumo Sacerdotes” e a maioria vivia em Jerusalém. Durante o reinado de Herodes, o Grande, haviam muito latifundiários e muitos trabalhadores braçais parados e desejosos de vender sua jornada de trabalho por um denário (Mt 20,4), o salário insuficiente para uma família de dois filhos. Existiam também os grandes comerciantes principalmente em Jerusalém, comerciali92 zantes de gado. Neste comércio Anás tinha exclusividade para a venda dos animais que eram usados nos 329 sacrifícios no Templo, além do trigo, do vinho, do azeite, da madeira, das jóias. Existiam igualmente numerosos cobradores de impostos que rendiam especulação, assim como havia o imposto a César, o imposto ao exército protetor, os impostos aduaneiros, o imposto para o Templo e o dizimo aos Sacerdotes. Em todas as cidades haviam postos para cobrar o imposto a César, e ao exército protetor. Nas fronteiras e nas portas das cidades e mercados, cobravam-se os impostos aduaneiros. Salienta-se que os romanos escolhiam para cobrar impostos os anciãos do Sinédrio e as famílias ricas de Jerusalém. Cada posto de tributo e taxas tinha um preço de arrendamento fixado pela estimativa de arrecadação. Os ingressos superiores à norma estabelecida eram dados como ganho pessoal do arrendatário, o que contribuía para a corrupção. A renda dos impostos ia para a caixa do Senado Romano, para o pagamento de pensões militares, e outras despesas. Para o Império Romano o imposto supunha um censo e o cadastro onde cada cidadão declarava o que possuía, além disso havia impostos indiretos de alfândega, de pedágios, etc. O dízimo era 1/10 do produto do solo e se pagava no verão a cada 3 anos através de um levantamento da dívida (Dt 14,28). O imposto ao Templo era pago todo ano a partir dos 20 anos de idade (Mt 17,24) o equivalente a dois denários – dois dias de trabalho do campo. O dízimo dividido em Primícias visto que Deus é proprietário do solo; devia-se consequentemente doar algo por ocasião da primeira colheita. Também dava-se o dízimo sobre o gado (Nm 18,21) para sustento dos levitas e o dizimo em dinheiro para o sustento dos pobres (Dt 14,26-27). 93 A estrutura da Palestina era de cunho patrimonial. O Pai dava ordens; a ele cabia castigar, pronunciar as orações, e ensinar. Já a mulher era inferior em tudo ao homem. “Louvado sejas porque não me fizestes pagão! Louvado sejas porque não me fizeste mulher, louvado sejas porque não me fizeste ignorante!” Para o culto no Templo havia um átrio para os homens e outros com 15 degraus abaixo para as mulheres. Nas Sinagogas existiam as separações e até entradas separadas. Só era celebrado o culto na Sinagoga quando havia ao menos uma dezena de homens, pois não se considerava o número das mulheres. Elas não tinham direito de ler nada na liturgia da Sinagoga. “Quem ensina a Torá a sua filha, ensina-lhe tolices”, As mulheres portanto eram tidas como incapazes de receber instruções. A Torá não obrigava as mulheres do mesmo modo que aos homens. Elas estavam isentas de peregrinarem a Jerusalém nas grandes festas do ano, de recitarem o Shemá, de usarem os filactérios e da ação de graças à mesa. Neste contexto cultural e religioso a viúva não tinha proteção. A adolescente até 12 anos não tinha nenhum direito, sendo que o pai podia escolher-lhe o marido. Na vida conjugal a mulher depende do marido e era considerada objeto de prazer e instrumento de fecundidade. A mentalidade machista permitia a poligamia e o repúdio da mulher por qualquer motivo (feiura, má preparação da comida...). A mulher devia cozinhar, moer, tecer, lavar e até lavar os pés do marido. Ela não participava da vida pública e trazia o rosto coberto. Não podia parar para conversar com homem e não era ouvida como testemunho público. Não ocupava função pública. Não podia servir-se do trabalho de um escravo judeu. Os motivos desse tratamento eram ligados, em grande parte, aos preceitos de puro, impuro. Dentre o 94 que produzia impureza estava tudo aquilo que tinha a ver com a vida sexual e a mulher encontrava-se ciclicamente em estado de impureza devido a menstruação. Após o parto era conservada a impureza por quarenta dias se tivesse dado à luz a um menino e oitenta se fosse uma menina (Lev 12,2s); durante este período não podia entrar nem mesmo no átrio do Templo dos pagãos. Neste ambiente marcado preponderantemente pelos preceitos religiosos os filhos eram educados com rigidez e eram considerados dons de Deus vendo na criança a benção de Deus. Nos primeiros anos a mãe cuidava dos filhos e aos quatro anos começava a instrução do filho na lei feita pelo pai, com o Shemá. A freqüência a escola dava-se por volta dos seis anos. Na puberdade iniciava-se o aprendizado completo da Torá. Até aos 12 anos o pai podia fazer a filha casar. A sociedade permitia às famílias ricas disporem de escravos os quais eram comprados como mercadorias. Podia-se tornar o escravo por castigo ou para compensar pagamento de dívidas, mas somente podiam ser escravos os adultos, as filhas menores de 12 anos, o filho e a esposa não podiam. A filha era libertada aos 12 anos e o homem após seis anos (ano sabático). O escravo pagão não possuía nada, mas podia ser circuncidado e tinha direito de descanso no sábado. Os evangelhos não são biografias, mas podemos captar a “ipsissima vox ex facta”. Mas o importante é descobrir as intenções originais de Jesus (ipsiossimo intentio); devemos descobrir as intenções que evidenciam suas decisões e escolhas. Uma delas é que Jesus quis ser batizado por João Batista, preferiu seguir João Batista ao invés de qualquer liderança ou movimento de seu tempo e com isso compreendemos a direção do pensamento de Jesus. 95 Os romanos tomaram a Palestina em 63 aC tornando-a sua Colônia e nomeando seus governantes – Herodes, o Grande que morreu 4 aC, sendo seu reino dividido pelos seus filhos Herodes (Judeia – Samaria), Herodes Arquelau (Judeia – Samaria) Herodes Antipas (Galiléia – Pereia), Herodes Felipe (regiões mais ao norte). Quando Jesus tinha 12 anos, Arquelau foi deposto e o substituiu um procurador Romano para governar Judeia-Samaria; este foi o começo da última e mais turbulenta época da história da nação Judeia, época que terminou quase com a destruição do Templo, da cidade de Jerusalém e da nação, em 70 dC e depois uma destruição completa no ano 135 dC. Essa época começou com uma rebelião causada pelo problema da a cobrança de impostos. Os romanos com o recenseamento começaram um inventário dos recursos do país para fins de taxação. Os judeus se revoltaram, com isso e o líder foi Judas, o galileu que fundou um movimento de inspiração religiosa, com pessoas que lutavam pela liberdade. Os romanos abafaram a rebelião e crucificaram dois mil homens. O movimento chamado Zelotas pelos judeus e de bandidos pelos romanos, continuou. Era um movimento de resistência, organizado em facções e algumas vezes, inclusive de união com Sicários que se especializam em assassinatos. Durante 60 anos os zelotas atormentaram os romanos com levantes e guerrilhas ocasionais, transformando-se em um exército revolucionário. Em 66 dC (30 anos após a morte de Jesus), com o crescente apoio popular derrubaram os romanos e tomaram o governo no país. Quatro anos mais tarde um exército poderoso de Roma destruiu-os com um massacre sem piedade, alguns resistiam em sua fortaleza em Massada até 73 dC quando quase mil deles preferiam suicidar-se a se entregarem. 96 Os zelotas formavam um movimento religioso, pois julgavam que Israel era uma teocracia, isto é, uma nação escolhida por Deus, onde Ele era o único Rei, e a terra e os recursos pertenciam somente a Ele. Aceitar os romanos era infidelidade a Deus. Pagar impostos a César seria dar o que era de Deus. Também os fariseus pensavam assim, por isso seis mil fariseus recusaram assinar um juramento de obediência a Cesar, e os romanos tiveram que desistir desta exigência. Mas a maioria dos fariseus não se sentia compelido pegar armas contra os romanos, pois sabiam que as possibilidades eram-lhes contra portanto tinham como principal preocupação a Reforma do próprio povo de Israel, admitindo que Deus tinha permitido que caíssem nas garras dos romanos por causa da infidelidade de Israel em relação à lei e às tradições. Os fariseus pagavam impostos a Roma sob protesto, e se isolavam de quem não era fiel à lei e às tradições. Formavam comunidades fechadas, e eram separados, isto é, diziam formar a verdadeira comunidade de Israel. Tinham uma moral legalista e burguesa e acreditavam que Deus lhes enviaria o Messias libertador. Os Essênios foram mais longe que os judeus na busca da perfeição; estes viviam uma vida ascética, fora da comunidade, no deserto. Preocupavam mais que os fariseus com a impureza ritual e com a contaminação com os impuros. Observavam diariamente e meticulosamente os rituais de purificação prescritos pelos sacerdotes. Rejeitavam quem não pertencia a sua seita, dedicavam amor somente aos membros do grupo, acreditavam no eminente fim do mundo onde com a vinda do Messias os filhos das trevas, e dentre estes os primeiros seriam os romanos, seriam destruídos. Eram tão belicosos como os zelotas e por volta do 66 dC parece que se uniram aos zelotas contra os romanos. 97 No meio deste contexto religioso, os saduceus eram os mais conservadores, agarravam-se às antigas tradições hebráicas e rejeitavam todas novidades, tanto na crença como no ritual. Não aceitavam a ressurreição e eram colaboradores dos romanos. Eram em grande parte membros da aristocracia, chefes dos sacerdotes e anciãos, assim como alguns rabinos eram os líderes e formavam a classe dominante. Havia também um pequeno grupo de escritores anônimos que se dedicavam à literatura apocalíptica, eram videntes que acreditavam ter o segredo do plano de Deus. Tais escritores escribas possivelmente pertenciam ao grupo dos os fariseus e dos essênios. Eram anônimos. Em meio a estes movimentos e especulações político-religiosa, estava João Batista, profeta de condenação e destruição que profetizava a condenação e destruição de Israel. O longo silêncio da voz dos profetas foi quebrado por João Batista no deserto com um estilo de vida de profeta austero. A mensagem de João Batista é que Deus estava irado com o povo e pretendia castigalo, com um castigo semelhante a um incêndio na floresta onde as víboras fogem (Mt 3,7), as árvores são queimadas (Mt 3,10) e as pessoas mergulhadas num batismo de fogo (Mt 3,11). O julgamento sobre Israel seria executado por um ser humano (Mt 3,11; 11,3). O julgamento dependeria da resposta dos homens, ou seja, se se arrependessem. Era dirigido aos pecadores, às prostitutas, aos fariseus... (Lc 3.12-14; Mt 21,32). Ele questionou até Herodes Antipas (Mc 6,18). Para João Batista a conversão devia ser pessoal com o batismo (Mc 1,5), um batismo para perdão dos pecados (Mc 1,4) isto é, para ser poupado do castigo, da cólera de Deus. João Batista, contudo não pregava uma mudança na prática da pureza ritual, da observância do sábado, do 98 pagamento de impostos (Lc 3 11-14). Criticou Herodes (Lc 3,19) o qual para casar-se com Heodiades, divorciou-se da filha de Aretas II, Governador do reino dos Nabateus, coisa considerada uma quebra de aliança política e também um insulto. Os nabateus estavam preparados para a guerra e João Batista só piorava a situação criticando o casamento, portanto Herodes mandou prender João Batista por razões políticas foi decapitado porque falou em público contra Herodes. João Batista foi o único que impressionou Jesus e por isso juntou-se a ele e a aceitação de seu batismo é a prova de aceitação de sua profecia. Jesus mostra assim que discorda com todos os que rejeitam João Batista e seu batismo. Jesus também via uma eminente catástrofe para Israel (Lc 19,43-44; 21,20-23; 13,1-3; Mc 13,14-20). É possível que Jesus tenha começado seguir o exemplo de João Batista, e tenha batizado algumas pessoas. (Jo 3,22-26) mas não seguiu esta prática (Jo 4,13). Invés disso foi à procura das ovelhas perdidas de Israel. Esta é a segunda decisão ou o primeiro indício para descobrirmos o seu pensamento. Ele decidiu para algo que tinha a ver com os pobres, os pecadores, os coxos, os leprosos, os famintos, os cegos, as prostitutas, os coletores de impostos, os endemoniados, as multidões, os pequenos, os últimos, as crianças (Mc 1,23.32.34.40; 2,3.15.17; 3,1 ; 9,17.18-42; 12,40-42, Lc 4,18; 5,27; 6,20-21; 7,34.37.39; 10,21; 11,46; 14,1321; 15,1; 13,22; Mt 5,10-12; 8,28; 9,10-14; 10,3.15.42; 11,28; 19,30; 20,16). Estes Jesus os tinha como pobres, pequenos, enquanto que os fariseus os tinham como pecadores e ralé. Os pobres primeiro de tudo eram os mendigos não tinham como sustentar-se, pois não havia assistência social e pensões, depois, as viúvas e os órfãos que não tinham nenhum modo de ganhar a vida. Também entravam nesta categoria os operários 99 diaristas não qualificados e os camponeses. Em geral todos estes não morriam de fome, mas o principal sofrimento deles era o desprezo (Lc 16.3). No Oriente Médio o prestígio e a honra eram mais importantes que a comida ou a própria vida. Por isso pobres significa todos os oprimidos que dependiam da misericórdia de outro. Os pecadores eram os párias sociais, qualquer pessoa que desviasse da lei, dos costumes tradicionais da classe média; nestes estavam incluídos os que tinham profissões pecaminosas ou impuras (prostitutas, coletores de impostos), ladrões, pastores, jogadores e também os cobradores de impostos porque decidiam a quantia de impostos que se devia jogar e muitos eram desonestos. Os pastores também entravam nessa categoria porque conduziam suas ovelhas por terras alheias. Pecadores eram também os que não pagavam o dízimo aos sacerdotes, os que eram negligentes quanto a observância do sábado e da pureza ritual. Os analfabetos eram imorais e sem lei, os “am haares”, camponeses não educados (Jo 7,49), incapazes de virtudes e de piedade. Ser pecador era destino da pessoa, assim as prostitutas podiam tornar-se novamente puras por meio de um complicado processo de arrependimento, mas isso custava dinheiro, e o dinheiro ganho na profissão não podia ser usado. O coletor de impostos devia deixar a profissão e restituir o dinheiro com 1/5 a mais a tudo que tivesse lesado. Os instruídos teriam que se submeter a um longo processo de educação e sentiam-se frustados porque sabiam que nunca seriam aceitos para o convívio com as pessoas respeitáveis porque não tinham estima social, nem mesmo o consolo de que estavam nas boas graças de Deus, e o resultado era um complexo de culpa. Os pecadores eram muito predispostos à doenças não só por causa das suas condições físicas, mas também por causa das suas condições psicológicas. Muitos sofriam do100 enças mentais que por sua vez provocavam condições psicossomáticas como a paralisia e a dificuldades na fala. Assim se explica também as possessões, tendo em visa que para o judeu o corpo é na morada de um espírito e outros espíritos podiam também habitar no corpo de uma pessoa (espírito bom, ruim). Por isso sempre que uma pessoa não estivesse em si era considerada que alguma coisa tinha entrado nela, assim o comportamento patológico de uma pessoa mentalmente doente era definido como possessão por um espírito mau. Uma epilepsia era considerada possessão (Mc 9,17-27; Mc 1,23-26; Mc 5,2-5). Doenças físicas e psicomáticas eram também consideradas obra do espírito mau (Lc 13, 10-17; Mc 9,17-25; 7,35), por isso a febre da sogra de Pedro é chamada de espírito mau (Lc 4,3s). São doenças que chamamos de disfunções. A lepra não era tida como obra do espírito impuro, porém era tida como resultado do pecado. O filho de uma união ilegítima era considerado pecado por dez gerações. Os pobres não podiam receber nenhum cargo de honra, postos de confiança, ou cargos públicos. Era o mundo dos perseguidos e dos cativos (Lc 4,18). Os artesãos, carpinteiros e pescadores eram profissões respeitáveis e pertenciam à classe média. Os fariseus, essênios e zelotas eram da classe média; gente instruída. A classe alta e governante era imensamente rica e vivia em grande luxo e esplendor, a esta pertenciam as famílias aristocráticas, os sacerdotes, os chefes e os anciãos. Jesus era da classe média, mas a desvantagem de Jesus é de que era Galileu e os judeus de Jerusalém tendiam menosprezar até os judeus de classe média provenientes da Galiléia. Ele se tornou um pária por opção e isto por compaixão (Mt 14,14; Mt 9,36; Mc 1,41; 101 Mt 20,34, Mc 8,2). A palavra compaixão do verbo “splagchnizomai”, indica movimento que brota das entranhas da pessoa, uma reação das tripas. É um sentimento eminentemente humano, os evangelistas não tinham razões apologéticas para atribuírem isso a Jesus. Os médicos eram raros e caros e os pobres não podiam consulta-los. Existiam contudo os curandeiros e os exorcistas. Jesus não usava ritual para curar, por isso foi acusado de que curava por Belzebu. Ele exigia a fé (Mt 21,22) não usava fórmula mágica. Com a fé o homem torna-se, como Deus, Todo-Poderoso (Mt 17,20; Mc 11,23; Mt 17,19-20). Jesus misturou-se com os pecadores (Lc 15,2; Mc 2,15; Mt 9,10; Lc 5,29; 7,34), recebeu pecadores em sua casa e muito embora dormisse nas estradas e em casas de amigos, tinha em Cafarnaum uma casa (Mc 1,21.29.35; 2,1-2). Como pode ter sido acusado de receber pecadores se não tivesse uma casa? Ao receber os marginalizados, Jesus deu-lhes um senso de dignidade e ao sentar à mesa com os pecadores, era implícito o perdão dos seus pecados. Os pecados eram dívidas que se deviam a Deus (Mt 6,12; 18,23-35), contraídos por conta própria ou pelos antepassados. O perdão significava o cancelamento da dívida para com Deus; perdoar (aphiemi) significa o cancelar, libertar. Sendo a doença conseqüência do pecado, a cura era considerada uma conseqüência do perdão. A motivação para Jesus curar era a compaixão. O poder de curar era o tamanho da fé e as multidões se maravilhavam não porque estes poderes haviam sido dados a Jesus, mas sim aos homens (Mt 9,8). Qualquer pessoa com fé suficiente podia ter feito o mesmo. Jesus disse à pecadora: “Teus pecados estão perdoados, tua fé te salvou” (Lc 7,45-50). Na dinâmica do Reino de Deus, Jesus tinha como programa a libertação (Lc 4,16-21) dos oprimidos (Lc 102 6,20-21; Mt 5,1-12).A atividade de Jesus despertou nos pobres grandes esperanças, mas não tinha nada a ver com o céu como lugar de felicidade e recompensa após a morte. Céu para os judeus era sinônimo de Deus. O Reino dos Céus significa Reino de Deus; ter recompensa no Reino do Céu significa estar em boas graças com Deus. Para os judeus todos os mortos iam para o Sheol (túmulo) a crença no céu veio com a ressurreição de Jesus. Os judeus eram contrários à dominação romana. Jesus foi acusado de revolucionário, impedindo que se pagasse o imposto a César e declarando-se Messias (Lc 23,2). Na sua cruz foi colocada a inscrição INRI. Jesus era culpado ou não? Para um grupo ele era culpado porque se proclamava Messias, e incitou uma revolução para derrubar os romanos. Iniciou um movimento político-religioso semelhante a dos zelotas, um dos seus 12 discípulos era conhecido como Simão Zelota (At 1,13) conforme Atos 5, 34-39. Outros afirmavam que era inocente das acusações. Jesus era precavido, pois proclamava-se Messias espiritual dos judeus e pregava mensagem espiritual. A sua acusação foi inventada pelos líderes judeus. Jesus queria a libertação do jugo romano como queria todo judeu, porém os evangelistas não estavam interessados com a opinião de Jesus a este respeito, porque depois do 70 dC não era questão relevante. Entretanto Lucas baseou-se num documento escrito antes do 70 dC, chamase Proto-Lucas, de onde muitas passagens de seu evangelho e de Atos dos Apóstolos, provém desta fonte. O Proto-Lucas refere-se constantemente à libertação política de Israel (Lc 2,38; 2,25; 1,68; 1,71.74). Porém para o Proto-Lucas Jesus queria salvar Israel não do modo dos zelotas, mas persuadindo Israel a mudar, sem isso seria impossível a libertação. 103 Jesus queria uma libertação diferente daquela dos zelotas, estes queriam a mera troca do governo, ao contrário Jesus queria a mudança que afetava a estrutura da vida, queria um mundo qualitativamente diferente. Jesus enxergou que existia mais exploração e opressão dentro do judaísmo que fora dele, pois os judeus de classe média oprimiam os pobres, por isso o pretexto contra opressão dos romanos era hipocrisia. A organização cívica das multidões de judeus, seus fardos, sua opressões dependiam muito menos do Imperador Romano e muito mais da teologia que reinava nos grupos de escribas e fariseus. Além disso os zelotas lutavam não para a verdadeira libertação, mas por nacionalismo, por racismo judeu. A revolução de Jesus era muito mais radical que qualquer coisa dos zelotas. Jesus questionava radicalmente, os aspectos da vida política, social, econômica e religiosa. O âmago do conteúdo do anúncio de Jesus destina-se aos pobres (Mt 5; Lc 6,20-23), os quais são beneficiários da felicidade que percorre toda a história bíblica, desde o Êxodo até os profetas do exílio. É para os pobres que viria o enviado de Deus (Is 61,1-2), eles são os primeiros beneficiários da intervenção de Deus (Mq 4,6-7). Os pobres são os beneficiários, e estes não são só os miseráveis, os privados de bens para a vida, os famintos, os aflitos e os perseguidos, mas também as crianças, os pecadores e pagãos. O Reino de Deus não é só manifestação da graça de Deus, mas também da misericórdia. De fato os pecadores também fazem parte dele, assim como os publicanos, suspeitos de desonestidade e qualificados como impuros, pois Jesus é amigo dos pecadores (Mt 11,19). Também os pagãos são objetos do Reino, uma posição diferente da tradição de Hillel onde o pagão só se con104 verteria se se tornassem um prosélito, membro da comunidade de Israel. As linhas mestras das atividades de Jesus são delineadas nos evangelhos onde os sinópticos referem as situações conflituosas nas quais Jesus enfrenta os escribas, os fariseus (Mt 9,3; 11; 12,2), os saduceus (Mt 16,1; 22,23), os herodianos (Mt 22,15-16; Mc 3,6), os anciãos (Mt 21,23) e o Sinédrio (Mc 14,53.55; 15,1). Todas essas situações Jesus viveu dentro das instituições e dos costumes judaicos (festas, peregrinações, Templo, sinagogas). Dentre as coisas que contrapõem Jesus com o judaísmo, estão a observância dos costumes religiosos (jejum, sábado, pureza, ritual, os alimentos e interpretação das Escrituras e da tradição em algumas crenças, tais como: a ressurreição dos mortos, o mandamento principal e o tributo ao Imperador (Mc 2,1-3.6; 7,1-23; 12,13-34). Quanto ao sábado este era um dos dez preceitos da aliança (Ex 20,8-11) e observá-lo era obrigação do povo de Deus (Is 56,2-6). Nos escritos de Qumran dizia se que se um animal caísse no buraco no sábado, não se podia tirá-lo, até mesmo se fosse uma pessoa. Jesus invés cura o homem de mão seca no sábado (Mc 3,1-6), faz outras curas (Lc 13,10-17; 14,1-6; Jo 5,5-6; 9,6.1316), colhe espigas (Mc 2,23-28). Outra realidade onde aparece o contraste entre Jesus e os observantes judeus é o da pureza ritual, em especial no que se referem aos alimentos e à convivência na mesa. A legislação sobre a pureza ritual funda-se em Lev 11,11-47; Dt 14,3-21 e a pureza ritual era um sinal de pertença a Deus, esta foi estendida para todo povo e não somente aos sacerdotes, daqui a escrupulosa observância. Jesus denuncia este formalismo (Lc 11,39) e propõe a pureza interior (Lc 11,40-41; Mt 15,11); Ele senta-se à mesa com os impuros (Lc 7,34; Mc 2,13-17). 105 Outro ponto nevrálgico da religiosidade e da identidade nacional judaica é o Templo de Jerusalém, pois era à volta dele que se concentrava a reforma espiritual; este era o símbolo da liberdade religiosa e nacional. O Templo no tempo de Jesus era o segundo Templo renovado pela restauração de Herodes, o Grande a partir dos anos 19-20 aC e continuado até às vésperas de sua destruição em 66-70 dC. Para ele dirigiam os peregrinos judeus para as festividades nas diversas estações do ano. Todos os dias celebravam-se o culto de sacrifícios de manhã e à tarde com os sacerdotes e com delegações de leigos. No átrio externo do Templo transcorria a vida social e cultural; ali vendiam-se animais, faziam-se os câmbios de moedas e os mestres ensinavam. Ao Templo estavam ligados as classes sociais e as grandes famílias de Jerusalém, cujo prestígio e fortuna estavam ligados a ele. Os escribas faziam as normas atinentes à vida do Templo, já os grupos de orientação farisaica tinham o interesse na observância da pureza ritual e dos compromissos religiosos; tais como o dízimo e as primícias. O culto do Templo não era contestado nem mesmo pelos monges de Qumrân, mas o que se contestava era a indignidade do alto clero que o presidia. Jesus estava presente no Templo onde ensinava e fez ali algumas curas (Mt 21,14; Jo 18,20), expulsou os vendedores e compradores (Mc 11,15), e anunciou a sua destruição (Mc 13,2; Lc 13,34-35). Jesus não anunciou a destruição do Templo como fizeram os profetas, ou seja, por causa da infidelidade do povo, nem uma sua reforma, conforme propunham as classes sacerdotais e farisaicas, mas a superação do Templo com a instalação do Reino, pois para ele o Templo encontrava-se onde se atuava uma nova relação com Deus (Jo 4,23). Nenhum personagem é tão falado, estudado e lembrado em vida e depois da morte como Jesus. Ne106 nhum livro foi exposto tanto à crítica quanto os Evangelhos que falam Dele e é a sua fonte principal. Sua vida foi singular e um parodoxo, tentam matá-lo quando ainda criança de berço, o perseguem durante a sua vida pública, respondem com pedras à sua lógica, e por fim pregam-no numa cruz, para Dele livrar-se, mas o temem também quando morto e colocam estupidamente os guardas no sepulcro para o guardarem. Depois de sua morte, no curso de 20 séculos, uma soma ininterrupta de inimigos continuou a perseguição sempre mais refinada, atormentando e perseguindo os seus seguidores, renegando o seu evangelho, suas obras. Mas depois de 20 séculos Ele continua em nosso meio como um sinal de contradição. Por que? Porque junto com o número de seus perseguidores. Existem também um grupo sempre mais crescente de amantes apaixonados, de Sua pessoa e de sua mensagem, que vivem e morram por ele em todo o mundo. A mesma coisa se dá com o seu evangelho, todas as anatomias e sofisticações da crítica não conseguiram dilacerá-lo. Hoje assistimos infelizmente com o coração triste uma crise de fé, uma indiferença quanto ao seu ensinamento que também é presente entre seus seguidores e que se tornou uma práxis. Trata-se da fé Nele que é sacudida pela crise do pensamento. Mas esta crise de fé tem seus precedentes já no passado, abrindo-se abre no século XVIII, onde a preocupação dos autores deste período era de eliminar da vida de Jesus o elemento sobrenatural e reduzí-lo a um mito (Strauss), de tê-lo como um homem de alto sentimento moral (escola liberal), como um pregador da paternidade e Deus e da fraternidade (Harnack), como um homem encantador (Renan), 107 ou como um obssessionado do fim do mundo (Scheweitzer). Mas depois de um itinerário aventuroso de 20 séculos a crítica confirma substancialmente a doutrina católica sobre a pessoa de Jesus e seu Evangelho. Portanto, o “Jesus Praedicans” e o “Christus Praedicatus”, o Jesus de Nazaré é o Cristo kerigmático, é uma mesma realidade. Podemos, portanto ter os evangelhos como documentos históricos, para encontrar o Cristo, cuja existência é também atestada por fontes profanas bem notáveis: tais como: Svetonio, Plinio, Flavio Josefo e sobretudo Tácito que nos seus Anais insere Cristo na história de Roma com tais afirmações: “O autor desta denominação (cristãos), Cristo sob o imperador Tibério foi condenado ao suplício pelo procurador Poncio Pilatos...”. Por isso mesmo Schwietzer disse que de “poucas personalidades do mundo antigo possuímos tantas notícias e discursos, seguramente históricos quanto a de Jesus”. Mas a prova mas verídica da historicidade de Jesus é a Igreja uma instituição de 20 séculos. Esta revolucionou o mundo, criou um direito, uma mística, uma arte admirável, uma cultura, uma civilização que se encarnou em todas as raças e sobre toda a terra. A Igreja e o cristianismo fazem parte das civilizações de quase todo o mundo, também se em alguns lugares existem perseguições aos cristãos. Isto demonstra não só a existência histórica de Jesus, mas também a sua presença operante nos séculos. A mentalidade de Herodes foi mais grega do que hebraica fazendo-se rodear sempre por literatos gregos. Ele irritou muitos judeus mandando colocar uma águia romana sobre a porta do templo. Os últimos anos de sua vida foram conturbados e por desconfiança mandou matar os seus dois filhos, Alexandre e Aristóbulo e ficou desconfiado até de seu filho predileto Antípater, o qual 108 mandou matá-lo também. Apesar de tudo isso, Herodes teve o mérito de assegurar na Palestina um período de paz com a sua boa administração. Herodes morreu no o ano 4 aC e logo em seguida a o Imperador Augusto concedeu ao seu filho Arquelau o título etnarca da Judéia, Samaria e Induméia, deu também a administração a Herodes Antipas da Galiléia e da Pereia e para Herodes Felipe, as regiões além do Jordão: Batanéia, Traconítide, Auranítide com Panéias e também Ituréia. 16. A EDUCAÇÃO FAMILIAR E SOCIAL DE JESUS Jesus viveu a sua adolescência em Nazaré, um lugarejo de 1.600 habitantes e quase todos analfabetos. A primeira educação entre os judeus era recebida na família, a qual era prosseguida nas Sinagogas, as quais eram usadas também como escolas especialmente para a instrução primária. Em Nazaré existia uma escola elementar que funcionava na Sinagoga. As Sinagogas eram centros de aprendizagem. O Jesus ia à Sinagoga nos sábados o que indica que desde a infância tinha uma familiaridade com ela. Jesus recebeu a educação de José seu pai. O Talmude de Jerusalém ensina que entre o deveres dos pais para filhos estava o de ensinar-lhes uma profissão, de dar-lhes o casamento, e os primeiros rudimentos do conhecimento da Sagrada Escritura ensinando-lhes a lei e as mais importantes orações tradicionais. Jesus fazia parte de um povo que sabia rezar e por isso todos os dias recitava o Shemá (Dt 6,4-7), oração esta obrigatória para todos de sexo masculino com idade 13 anos para cima e que era receitada pela manhã e pela tarde. Esta era o mínimo da prática religiosa. Além desta havia também uma tríplice oração chamada 109 tefila, a qual era recitada pela manhã, a tarde e ao anoitecer, obrigatória também para as mulheres, as crianças e os escravos. Em vista destas obrigações de orações diárias, o piedoso israelita usava os tefilim, pequenas caixas amarradas no antebraço esquerdo e na fronte e que continham a alguns trechos bíblicos como Ex 13,110.11-16; Dt 6,4-9;11,15.21; Nm 15,36-41. Alguns desses carregavam fitas coloridas nas bordas dos mantos, chamadas zizit, com o significado de chamar atenção para a observância dos mandamentos. Usava-se também publicamente os Mezuzôth, ou seja, pequenos pedaços de pergaminho com textos do Shemá, que eram colocados nas portas de locais públicos para chamar a atenção de todos para a oração e observância da lei. Muitos estudiosos afirmam que o Shemá e a tefila foram orações habituais de Jesus, as quais eram excitadas em hebraico. A descoberta do teatro em Séforis, a poucos quilômetros de Nazaré, com 4.000 ou 5.000 lugares, mostra que ali havia um vasto e difuso conhecimento do grego também para as aldeias circunvizinhas. Face a isso os estudiosos afirmam que Jesus falava o grego, além do aramáico e compreendia o hebraico. Os estudiosos excluem que Jesus tenha freqüentado escolas superiores de rabinos, mas freqüentou sim, escolas elementares, visto que nas Sinagogas, desde os tempos antigos, existiam lugares para a instrução. Fílon chama a Sinagogas de escolas (didaskaléia) onde era ensinado todo o gênero de virtudes. 17. JERUSALÉM NO TEMPO DE JESUS Uma descrição bastante completa sobre Jerusalém, nos é dada pelo teólogos Joaquim Jeremias em seu 110 livro “Jerusalém no tempo de Jesus”, a qual era compreendida socialmente por uma população de classes altas dentre as quais o alto clero, a nobreza leiga e a classe superior dos escribas. Depois, as classes médias compreendiam os grandes e pequenos comerciantes, os artesãos proprietários de oficinas, os funcionários e servidores administrativos. Para estes, os peregrinos eram uma grande fonte de receitas tanto para o fornecimento de alimentação como de animais para o sacrifício. Nessa classe existiam muitos artesãos. O Templo era uma das principais receitas sendo que naquele tempo calcula-se a existência de 2.000.000 judeus, dos quais 1.500.000 viviam na diáspora e o restante na Palestina. Supondo que um terço dos homens adultos pagasse de taxa o meio ciclo, o qual valia dois denários, o salário de 2 dias de um operário, chegava-se à soma de um milhão de denários, uma enorme soma, e a isso juntavam se as doações espontâneas. Por fim, vinham as classes pobres e constituídas de trabalhadores braçais, mendigos e escravos. Os escravos eram vendidos; em Jerusalém existe uma pedra sobre a qual se expunham os escravos para serem vendidos como mercadorias. Para que tenhamos uma visão mais ampla do ambiente de Jerusalém abordaremos alguns aspectos que faziam parte do panorama desta cidade no tempo de Jesus, a saber: as profissões, as construções, a religião e o culto, a nobreza leiga e por fim a situação social da mulher. As Profissões No judaísmo as profissões eram muito valorizadas, por isso usava-se dizer que “Quem não ensinava uma profissão ao filho, era como se lhe ensinasse o banditismo”. As profissões mencionadas no Talmud eram várias desde fabricantes de prego, comercializantes de linho, 111 padeiros, curtidores, arquitetos, comercializantes, etc. Era comum encontrar na Judéia, artigos de lã, inclusive existiam 80 jovens que teciam para o Templo em Jerusalém, embora esta profissão era quase que exclusivamente feminina, pois esta profissão era considerada desprezível. É interessante salientar a existência da profissão de pisoeiro, a qual consistia em tornar a lã impermeável e os que a exerciam eram na maioria não judeus. Salienta-se ainda que a curtição de couros era um serviço que não faltava porque as peles das vítimas oferecidas em sacrifício eram aproveitadas sobretudo pelos sacerdotes. As profissões dos oleiros e ferreiros também eram bastante comuns. Havia também a profissão dos médicos (Mc 5,26). Era comum igualmente a profissão de copistas. Entre os produtos alimentícios estava em 1º lugar o óleo, produzido nos arredores de Jerusalém, ricos em oliveiras devido ao solo propício. De fato em Jerusalém haviam muitos lugares que inclusive prensavam as azeitonas trazidas da Pereia. Getsemani significa lagar, ou seja, um instrumento onde se espremiam azeitonas, uvas... Este era um trabalho muito considerado. Em Jerusalém havia também os carregadores de água, pois segundo Flávio Josefo este comércio era forte no tempo de seca. Antes da chegada de Tito, a fonte de Siloé tinha secado assim como outras da cidade, e precisava portanto comprar água em ânforas. Marcos (14,13) refere-se a um transportador de água numa bilha. Em Jerusalém também se confeccionava bálsamo e resinas, pois os bosques tinham árvores como o cinamomos que quando queimadas exalavam perfumes agradáveis, inclusive suas folhas eram usadas entre os perfumes queimados no Templo. Era, portanto comum a venda de bálsamo. As mulheres compraram aromatas 112 para ungir o mestre (Mc 16,1). Nicodemos veio ao sepulcro “trazendo uma mistura de mirra e aloés (Jo 19,39). Os comerciantes de bálsamo representavam um papel importante sobretudo para a corte de Herodes o Grande, assim como a do artesanato artístico, sobretudo de enfeites femininos. Estes enfeites eram comprados pelo povo durante as peregrinações à Jerusalém como forma de lembranças. As construções Herodes o Grande (37–3 aC) foi um grande construtor e dentre as suas obras destacam-se a restauração do Templo; a construção do palácio de Herodes (29– 19aC / 62 – 64dC) com suas Três Torres (Hippicus, Fasael e Mariana); a Fortaleza Antonia; o suntuoso túmulo de Herodes; o Teatro e aqueduto; Agripa I (41– 33dC) – este governador construiu de interessante uma formidável muralha (com 5,25 m de espessura) no lado mais setentrional de Jerusalém com aproximadamente 3.530 m de cumprimento. Agripa II (50-53 dC) dedicou-se ao término do Templo de Jerusalém (62–64 dC), para o qual usou mais de 18 mil homens. Mandou calçar as ruas de Jerusalém com pedras brancas. É de se notar que para as construções o material mais utilizado era a pedra e que as construções reais eram quase sempre monumentos estilizados, utilizando para isso os melhores profissionais, assim como os artistas, os escultores, os tecelões artísticos, os projetistas de jardins, os artífices para o trabalho com ouro e a prata, os fabricantes de mosaicos... Para a construção do Templo de Jerusalém o qual foi iniciado em 29-19 aC e terminado em 62-64 quando era governador Albino, no começo foram contratados 10 mil operários e mil sacerdotes foram transformados em artesãos. Construindo em mármore preto, branco e a113 marelo, com madeira proveniente do Líbano e com cedro, este foi construído com a maior ostentação possível. Herodes queria recobri-lo todo de ouro e mesmo onde não tinha ouro brilhava de modo a cegar (Josefo), sendo todo equipado com utensílios sacros de ouro e prata. Sua fachada (27,5m) era recoberta de placas de ouro (Josefo), e correntes de ouro caiam das traves do teto, e a mesa era em ouro maciço. O ouro era tão abundante em Jerusalém, especialmente no Templo, que após a tomada da cidade, uma imensa oferta deste material invadiu todo a Siria e a libra de ouro passou ser vendida pela metade de seu preço (Josefo). O culto e a religião Durante os 82 anos de restruturação do Templo o culto nunca foi interrompido. Não faltavam no Templo os encarregados pelo fornecimento da água, os barbeiros para as cerimônias dos votos de nazir, da consagração dos levitas e da purificação após a cura da lepra. Existiam médicos no Templo para os sacerdotes e os pães da proposição eram preparados pela família Gramo e a fabricação dos perfumes era do encargo da família de Entiros. O Templo constituía o centro de uma colônia de profissões durante os serviços litúrgicos contínuos. Os trabalhadores ganhavam bem com pagamentos feitos pelo tesouro do Templo, inclusive o tesouro era obrigado a suprir as necessidade dos operários desempregados e foi certamente por isso que após a restauração do Templo empreendeu-se a pavimentação das ruas de Jerusalém. Algumas famílias tinham cargos vitalícios como a de preparação dos pães e perfumes para queimar. Jerusalém situava-se numa região desfavorável às profissões e pedra era a única matéria prima encontrada com abundância nos arredores. Nas montanhas da Ju114 déia os rebanhos produziam peles e lã, a oliveira, a mandioca e a azeitonas. A argila era de má qualidade e faltava água, pois Jerusalém dispunha de uma única fonte importante, a de Siloé. Na época da seca precisava comprar água. Jerusalém no tempo de Jesus tinha 25 mil habitantes e era uma cidade em que fluía muito dinheiro, pois do mundo inteiro chegavam as taxas previstas pela lei, taxas sob forma do imposto da didracma, do comércio das vítimas, dos votos... O fluxo de estrangeiros dava boa renda com as peregrinações durante as festas. Todo israelita piedoso tinha de gastar em Jerusalém um décimo do rendimento de sua terra, este era o chamado 2º dízimo. Havia ainda rendimentos dos impostos. Segundo Josefo, Arquelau arrecadava anualmente da Induméia, da Judéia e da Samaria, 6 milhões de dracmas. Diante deste oásis material é claro que Jerusalém atraia os homens que possuíam grandes capitais, os importantes negociantes, os editores de impostos, da mesma forma, os judeus da diáspora que se tornavam ricos e vinham morar ali. O Templo dava um grande suporte financeiro, pois com os fundos do Templo pagava-se a manutenção dos edifícios da cidade, a limpeza, a pavimentação e até o serviço de água da cidade. A esmola representava grande papel na piedade judaica: “muitas esmolas, muita paz”, ensinava Hilel. Ter compaixão do próximo era sinal que permitia reconhecer a descendência de Abraão. “O sol da riqueza é a prática da caridade”. Era uso corrente dos peregrinos praticarem a caridade em Jerusalém, estes gastavam em Jerusalém com beneficência certa parte do segundo dízimo. Em Jerusalém havia pessoas encarregadas de procurar roupas e alimentos para as pessoas em trânsi115 to. O At 4,37; 5,2 fala de colaboradores voluntários na distribuição dos bens. At 6,2 fala dos comandantes que alimentavam os pobres. O Tamhûy (prato dos pobres) era distribuído igualmente todos os dias aos pobres em trânsito (pão, favas, frutas), o Qûppah (cesta dos pobres), era distribuída igualmente toda semana contendo alimentos e roupas. O judeu fiel costumava devia dar aos pobres após deduzir as taxas prescritas, um décimo dos produtos que lhe restavam. Havia no Templo, duas salas denominadas “Sala dos silenciosos” e “Sala dos utensílios”. Na sala dos silenciosos ou dos pecadores, as pessoas temendo o pecado, depositavam suas dádivas em silêncio (secretamente) e os pobres de boas famílias (pobreza envergonhava) eram atendidos em segredo. As pessoas podiam colocar o dinheiro também no cofre do Templo (2Mc 3,4 – 6,1011). As viúvas e órfãos serviam-se do cofre (2 Mc 3,10). Era proibido gastar o segundo dízimo fora de Jerusalém. O culto constituía a principal fonte de renda para Jerusalém, este garantia o meio de vida da nobreza sacerdotal, dos sacerdotes e dos funcionários do Templo. O povo hebreu viveu muitas calamidades; em 163 aC Jerusalém foi assediada, os campos não produziam, o que agravou a fome. Houve também uma seca violenta em 65 aC. Em 64 aC um tufão destruíra colheitas em todo o país. Em 37 aC com o cerco de Jerusalém a fome grassou com violência em Jerusalém. No ano 13º de Herodes houve uma seca persistente que tornou o país improdutivo e nele planta alguma brotava, faltando alimentos, e diversas epidemias se espalharam como uma espécie de peste que matava violentamente. Havia falta de roupas porque os rebanhos foram dizimados ou transformado em alimento, deixando de existir a lã e outras matérias primas para tecelagem. 116 O Sumo Sacerdote era a personagem mais importante do povo. Sua função habilitava cumprir a expiação pela comunidade enquanto mandatário de Deus. Esse caráter oriundo de sua função era-lhe conferido pela investidura, com a tradição dos paramentos pontificais compostos de 8 peças. Esta veste possuía uma virtude expiatória, cada uma destas 8 peças expiava pecados determinados. Assim sendo, tal veste constituía para os judeus o símbolo da religião. Somente o Sumo Sacerdote podia penetrar um dia do ano Santo do Santo, o lugar sacrossanto, vazio e silencioso. No momento da distribuição das coisas santas do templo entre os sacerdotes em serviço, o Sumo Sacerdote podia selecionar aquilo que desejasse, tinha licença de escolher para si em sacrifício pelos seus pecados (animais ou aves) um sacrifício de reparação, uma porção de oferendas alimentares, 4 ou 5 ou até mais dentre os 12 pães da preposição distribuídos cada semana, e por fim um couro do holocausto. A lei previa um único dever para o Sumo Sacerdote; aquele de oficiar no dia da expiação (Lv 16) que entre as obrigações tinha que ser ofertado um novilho imolado pelos pecados no dia da expiação. A lei proibia de tocar num defunto, de participar de um enterro e de deixar crescer os cabelos em desalinho. Na semana precedente ao dia da expiação o Sumo Sacerdote devia submete-se por 7 dias à cerimônia de purificação (Nm 19,11-16) e por 7 noites devia instalar-se e passar a noite num cômodo do Templo, para proteger-se da possibilidade de qualquer contágio de impureza, em particular de sua mulher. Este costume deu-se por volta do ano 20 dC quando o Sumo Sacerdote Shimeon recebe nas vésperas do dia das expiações o escarro de um árabe e ficou inapto par oficiar. O Sumo Sacerdote para preservar a pureza só podia casar com uma jovem virgem; não podia ser nem viúva, nem repudiada, nem prostituta (Lv 21,13117 15). Esta virgem devia ter a idade entre 12 a 13 anos e filha de um sacerdote, ou de um israelita de descendência legítima. O Sumo Sacerdote devia ter uma apresentação particularmente cuidada na sociedade. Se o Sumo Sacerdote não pudesse oficiar no dia das expiações, um sacerdote o substituía e passava a ser contado na lista de Sumo Sacerdote, embora fosse apenas um substituto por algumas horas. Se o Sumo Sacerdote fosse deposto do cargo como foi Yohua (63-65), Anan (62 dC) conservava o seu prestígio, conservava o seu “charater indelebilis”, pois possuía uma santidade eterna. O Sumo Sacerdote transmitia o pontificado a seus descendestes, embora no tempo dos Romanos, estes eram investidos, contudo os políticos não davam muita importância às prescrições como Herodes que investiu Aristóbulo como Sumo Sacerdote em 35 aC com 17 anos quando a idade canônica era de 20 anos. Herodes ousou nomear e destituir Sumos Sacerdotes. Assim, sob os Romanos o cargo deixou de ser vitalício e hereditário. Neste período os Sumos Sacerdotes de idéias saducéias tiveram que calar suas opiniões no Sinédrio. Entretanto, casos de reportismo, conquistas abusivas, transgressões nas prescrições para seu próprio matrimônio, prática de comércio na esplanada do Templo, era falta de formação teológica, contribuíram para diminuir o prestígio dos Sumos Sacerdotes. Entretanto, no século I de nossa era a importância do Sumo Sacerdote foi reforçada consideravelmente. Enquanto chefe do Sinédrio e representante do povo, neste período em que não havia mais rei, os Sumos Sacerdotes representavam os judeus perante os Romanos. Eram homens influentes como Anás e Caifáz, O fato de serem eles os únicos a poderem entrar no Santo dos Santos os exaltavam acima dos demais. O sacerdote de grau mais elevado a do Sumo Sacerdote, era o comandante do Templo e sua função liga118 da ao culto no Templo durante as cerimônias solenes, era de assistente do Sumo Sacerdote e ocupava lugar de honra. Se o Sumo Sacerdote não pudesse exercer as funções no dia das expiações ele era substituído. Não podia ser nomeado Sumo Sacerdote sem antes não ter sido comandante do Templo e estes eram escolhidos entre as famílias de Aristrocracia Sacerdotal. O comandante devia fiscalizar o serviço de culto no Templo e podia efetuar as prisões que quisesse. Foi um deles que prendeu o apóstolo Pedro no pórtico do Templo (At 5,2426). Depois do comandante do Templo em ordem de importância vinha os chefes das seções sacerdotais hebdomadárias em número de 24 e os chefes das sessões cotidianas abrangendo cerca de 156. Esses sacerdotes viviam na Judéia e Galiléia, só estavam presentes em Jerusalém uma semana em 24 semanas quando tinham o serviço com as funções determinadas para o culto cotidiano. Estes realizavam as cerimônias de purificação para os leprosos e para as mulheres particularmente na porta de Nicanor, porta de comunicação entre o átrio das mulheres com a dos israelitas. Foi um destes que recebeu o sacrifício de Maria (Lc 2,24), era também nesta porta que o sacerdote hebdomadário devia fazer a mulher suspeita de adultério, beber as águas amargas (Nm 5,16). Havia também os tesoureiros do Templo que cuidavam das finanças do Templo e que compreendia, pois imóveis, quantias em dinheiro, jóias, administração de taxas e ofertas, assim como capitais particulares ali depositados, a fiscalização das aves e outros gêneros para o sacrifício. Cuidavam ainda da administração e conservação dos aspectos em ouro e prata dos quais 93 eram utilizados num único serviço diário. Portanto, um vasto campo de atividades com um grande número de 119 funcionários. Eram três os que se ocupavam das operações financeiras, os quais administravam as rendas do Templo, tais como as doações e os impostos (Mt 17,24). Administravam também as despesas de compra de lenha, do vinho para as libações e da farinha. Em suma, as funções na cerimônia no Templo exigia muita gente, além do Chanceler (encarregado de receber o pagamento de ofertas de uma libação), o Ahia (encarregado das libações), o Pethaia (encarregado dos sacrifícios de aves), o Bem Ahia (médico do Templo), o Bem Arza (chefe dos músicos), o qual dava o sinal aos levitas do meio do culto, o Hugdas (cerimoniário do coro). Paralelamente à aristocracia sacerdotal encontramos uma multidão de sacerdotes divididos em 24 classes cumprindo alternadamente uma semana de trabalhos em Jerusalém de sábado a sábado. O conjunto dos sacerdotes compunha de 24 sessões hebdomadaria divididos aproximadamente em 156 sessões cotidianas, que eram os encarregados dos sacrifícios públicos cotidianos, dos sacrifícios dos perfumes, do holocausto de um cordeiro, da oferta alimentar. Calcula-se sem exageros a ocupação de 50 sacerdotes para uma seção cotidiana sendo que uma sessão hebdomadaria compreendia 6 sessões cotidianas, ou seja: 50x6 = 300 sacerdotes para uma sessão hebdomaria. 24 sessões hedomadarias x 300 sacerdotes = 7.200 sacerdotes mais os levitas, dos quais eram necessários 200 para fechar as portas do Templo juntamente com os guardiões em serviço numa sessão hebdomadaria. Além dos levitas cantores e músicos que também eram em número de 200, portanto 400 x 24 sessões = 9.600 levitas. Concluiu-se que no tempo de Jesus existia um clero no total de 18.000 entre sacerdotes e levitas. 120 As funções dos sacerdotes se limitavam a duas semanas por ano e às três festas anuais de peregrinação. Portanto os sacerdotes viviam em suas casas de 10– 14 meses (conforme a distância que estavam de Jerusalém). Além disso o sacerdote podia declarar puro um leproso após a cura (Mt 8,4; Lc 17,14), antes de ir à Jerusalém para oferecer o sacrifício pela própria purificação. Os sacerdotes tinham o dízimo, mas era insuficiente para viver, portanto precisavam trabalhar. Só Herodes na reconstrução do Templo utilizou mil carpinteiros sacerdotes, visto que suas profissões eram variadas, tais como: talhadores de pedras, comerciantes, açougueiros, criadores de gado... Os levitas constituíam o baixo clero e sendo inferiores aos sacerdotes não participam do serviço sacrificial, somente eram encarregados da música do Templo e dos serviços inferiores no mesmo. Também divididos em 24 sessões heldomadarias revezavam cada semana para os serviços que eram dirigidos por um chefe. Eles se dividiam em músicos e servidores do Templo. Os músicos eram superiores e acompanhavam as liturgias. No serviço cotidiano o chefe do coro dos levitas e os levitas músicos e cantores, assim como os 12 tocadores de flautas na Páscoa e na festa das Tendas, ficavam em cima de um estrado que separava o átrio dos sacerdotes e dos Israelitas. Os sacerdotes do Templo incumbiam-se de funções inferiores de sacristãos e ajudavam os sacerdotes a se vestirem e se despirem de suas vestes sacerdotais, preparavam o livro das leituras bíblicas, cuidavam da limpeza do Templo, mas não podiam entrar no átrio dos sacerdotes, visto que este os mesmos sacerdotes limpavam. Eram também os seguranças do Templo, interceptando a passagem das pessoas para os lugares proibidos. Montavam guarda dia e noite no Templo e tinham 121 até autoridade para prender. As autoridades para prender Jesus (Mc 14,43; Mt 26,47) comandada pelo chefe do Templo (Lc 22,52) eram compostas por esta segurança levítica, reforçada pela Corte do Sumo Sacerdote (Mc 14,17) e também por soldados romanos (Jo 18,3-12). Tanto a função do sacerdócio como do levita era transmitida por herança, através de um levantamento de suas genealogia e se um sacerdote tinha um casamento ilegítimo seus filhos não podiam ser sacerdotes. No Templo de Jerusalém havia um arquivo das genealogias do clero sempre atualizado. Muitas destas genealogias desapareceram com as guerras sob Antíoco Epifanio, Pompeu, Vespersino, Tito... Quando um filho de um sacerdote tinha 20 anos, o Sinédrio sediado no Templo na sala de pedras talhadas, do lado sul do átrio dos sacerdotes, examinava-o quanto as suas condições físicas e a legitimidade de sua origem para ser ordenado. Só depois e com um banho de purificação, impunham-lhe a veste sacerdotal (veste longa de bisso, calça do mesmo tecido, faixa e turbante); ofereciam depois uma série de sacrifícios aos quais se acrescentavam cerimônias particulares, ao todo esse ato solene durava sete dias. Para os levitas também se fazia um exame de sua origem para poder admiti-lo na função e devia ter a idade entre 20 até 30 anos. Se um sacerdote ou levita cantor se casava, era preciso examinar a genealogia de sua esposa, a fim de que um nascimento legítimo garantisse aos sacerdotes ou levitas a dignidade. Examinavam também se os seus pais, avós e bisavós eram de sangue puro. Freqüentemente um sacerdote casava com a filha de um sacerdote, basta lembrar o exemplo do Sumo Sacerdote Zacarias da classe sacerdotal de Abia, que desposou Isabel, filha de sacerdote (Lc 1,5). 122 O comércio Os agricultores da região traziam eles mesmos seus produtos para Jerusalém onde pagavam uma taxa ao cobrador de alfândega do mercado. Porém, Jerusalém tinha comércio com a Grécia, importava madeira do Líbano, vidros de Sidon, escravos da Siria, tecidos valiosos da Babilônia, perfumes da Arabia... O trigo de primeira qualidade da Galiléia era utilizado no Templo. A maioria do trigo vinha de regiões da Palestina. As frutas e verduras eram produzidas pelas cercanias. Os animais de corte vinham da Transjordânia, basta dizer que um comerciante denominado Buta, contemporâneo a Herodes o Grande, fez vir 3.000 cabeças de animais de pequeno porte para venda para os holocausto e sacrifícios pacíficos. Havia no átrio dos gentios um comércio florescente de animais para o sacrifício, talvez dirigido pela família de Anás (cf. Jo 2,14). Por ocasião da Páscoa usava-se uma enorme quantidade de espetos de romanzera para milhares de vítima. Para o sacrifício diário serviam-se da figueira, do pinho e da nogueira. A oliveira e sarmento eram impróprios. As montanhas de Jerusalém com suas grutas eram um terreno favorável ao banditismo (Lc 10,30-37). Em Jerusalém o nível de vida faustoso dos reis impunha grandes gastos. Quando Herodes construiu o seu palácio fez vir do mundo inteiro os melhores materiais; este palácio sobrepujava o Templo em esplendor. Jerusalém também era bem freqüentado por banqueiros (Mq 2,1-5; Is 5,8). O agricultor impelido pela necessidade, via-se obrigado a hipotecar suas terras e sua colheita. Jerusalém consumiu uma grande quantidade de material de qualidade para a restauração do Templo, pois deste exigia-se o maior brilho e portanto material de primeira qualidade, tais como: mármores em preto, 123 branco, amarelo e grande quantidade de ouro. Para o culto no Santuário usava-se lenha, vinho, óleo, trigo, incenso de primeira qualidade. Os Sumos Sacerdotes tinham vestes com tecidos preciosos provenientes da Índia. Todos os dias uma grande quantidade de novilhos, bezerros, carneiros, cabras, rolas eram oferecidos como sacrifícios públicos. No tempo da Páscoa ofereciam-se diariamente dois vitelos e sete cordeiros em holocausto e um bode como sacrifício expiatório, assim como os sacrifícios privados, basta dizer que para comemorar o término do Templo, Herodes mandou sacrificar 300 bois. Três vezes por ano o Templo atraia enormes multidões de peregrinos (Dt 16,1-16). Os judeus chegavam de toda parte do mundo, especialmente para a Páscoa. Era preciso alimentar essa massa humana, que vinha com seu segundo dízimo, isto é com o décimo de todos os produtos colhidos para gastar em Jerusalém. O número de vítimas imoladas eram aos milhares (256 – 500 vítimas pascais), diz Josefo. Os estrangeiros vinham à Jerusalém de quase todo o mundo atraído antes de tudo por motivos religiosos e em segundo lugar nas razões de natureza política ou econômica. Eram especialmente sírios, babilônicos, egípcios e gente da Ásia Menor. Jerusalém era o lugar onde estava a corte de Herodes, e onde o espírito helenista reinava com influência total. A luta das feras, as corridas das bigas, os jogos de ginásio eram um poderoso centro de atração. Jerusalém era também a sede do Supremo Tribunal, pois ali estava sediado o Sinédrio, a primeira Assembléia do país que por sua característica e sua atribuição, estendia-se aos judeus do mundo inteiro. Dada a sua importância, o Sinédrio entretinha relações com o mundo inteiro. Desde o ano de 6 dC Jerusalém era uma 124 cidade romana na Província com guarnição de tropas, e dada a sua importância como centro da vida política judaica, o povo afluía em grande número para assuntos públicos e privados. Jerusalém era um dos centros mais importantes para a formação religiosa dos judeus. Atraia sábios da Babilônia e do Egito e a reputação mundial de seus homens doutos fazia acorrer para lá os alunos. Nela achava-se o centro de convergência da vida farisaica, e depois durante muito tempo foi o centro da cristandade (Gl 2,1-10). Os cristãos do mundo inteiro enviavam ofertas às comunidades de Jerusalém. Muita gente ali se estabelecia para ali depois morrer. Era a pátria do culto judaico, o lugar da presença divina na terra, ali os judeus vinham para rezar. No Templo levavam para o julgamento de Deus a Sôtah, ou seja, mulheres suspeitas de adultério. No Templo levavam as primícias, ali, após cada nascimento, as mães se purificavam pelo sacrifício prescrito e os judeus do mundo inteiro para lá enviavam suas taxas. Ao Templo, três vezes por ano fluía o judaísmo disperso por todas as nações. Nas três festas principais todos eram obrigados comparecer no Templo, exceto os surdos, os débeis mental, os menores, as mulheres, os escravos, os coxos, os cegos, os enfermos, os anciãos. Menor era aquele que não podia ainda montar a cavalo nos ombros do pai. Os que moravam longe se permitiam de fazer a cada ano somente a viagem pascal. As mulheres também podiam ir se bem que não eram obrigadas, mas era costume para os de longe levar o filho em Jerusalém quando este completava 12 anos (o Talmude indica o 13º ano como idade a partir da qual o Israelita fica obrigado a submeter-se aos preceitos da lei), mas era costume levar as crianças de 12 anos nas peregrinações 125 para habituá-las ao preceito que devia atingi-los a partir dos 13 anos. Da diáspora também chegavam os peregrinos para as festas “Miriades chegavam de miríades cidades para cada festa do Templo, uns por via terrestre, outros por mar, do oriente e do ocidente”... Segundo cálculos de Joaquim Jeremias, o número de participantes à Páscoa era de aproximadamente 180 mil peregrinos. O luxo entre os ricaços de Jerusalém era grande, dois homens apostaram 400 Zûr (denários) para ver quem conseguia encolerizar Hilek. Rabi Meir conta que alguns ricaços de Jerusalém amaravam 4 cordões de ouro para as cerimônias das festas das Tendas. Em Jerusalém bebia-se o vinho de mesa em copos de cristal. A nobreza sacerdotal residia em mansões, tinha servos e servas. Os escribas no tempo de Jesus com freqüência tinham uma profissão ao lado do ensinamento que davam e viviam de auxílios. Não existiam muitos escribas ricos no tempo de Jesus, mas os escribas que eram sacerdotes, recebiam salários, assim como os que estavam a serviço do Templo, eram pagos com o dinheiro do tesouro. Os escribas pertenciam na maioria à classe pobre. Diz que o escriba Agiba, em pleno inverno tinha que se deitar sobre as palhas e nunca teve dinheiro suficiente para dar um presente à esposa. Yuda bem Elai tinha apenas uma capa e ele e a sua mulher usavam-na alternativamente para sair. Hibel, nascido na Babilônia veio para Jerusalém a pé, trabalhou como diarista por um Terop-pa’iq, isto é meio denário. Somente com 80 anos conseguiu melhorar sua situação, tendo condições de mandar sangrar um boi para si e sua família no átrio do Templo. Gado, pérolas, produtos colhidos e vinho, custavam bem mais caro em Jerusalém do que no campo. As 126 frutas custavam até três vezes mais que no campo. Devido a imensa demanda de pombas para o sacrifício, o especulador fazia subir seu preço até cem vezes mais. As taxas no tempo de Herodes o Grande eram altas, visto a necessidade de desenvolvimento do país, com construções de pontes, administração de cidades, assim como com as despesas no estrangeiro com construções de grandes dimensões nas cidades estrangeiras como por exemplo em Rodes, Tripoli, Bibcor, Sidon, Tiro, Olimpia, Esparta, Atenas, Antioquia, Damasco. Devido o insaciável orgulho dos monarcas, havia além das taxas, confiscos de bens. Contudo, Agripo I que herdou de seu avô Herodes, o amor ao fausto, sabia cobrir suas excessivas despesas pessoais sem sacrificar os súditos. A nobreza leiga, os escribas e os fariseus Os anciãos eram representantes da nobreza leiga, membros do Sinédrio, formavam um grupo pequeno, mas também conhecido como os grandes da cidade, os conselheiros e os guardas de Jerusalém. Geralmente eram latifundiários, possuíam imóveis, e eram pessoas de excelentes condições financeira. Eram em grande parte Saduceus. A este grupo pertenciam alguns Sumos Sacerdotes (At 5,17.21), os quais formavam um grupo organizado e não era fácil pertencer ao seu círculo. Atinham-se estritamente à letra da Torá, tinham seu próprio código penal, eram conservadores, influentes na nação e constituíam com os sacerdotes da alta classe o Sinédrio. Tinham ao seu lado o poder judiciário e a autoridade governamental. Também os escribas formavam uma classe superior. Havia um grande número de sacerdotes com formação de escribas. Pertenciam a esta classe também alguns membros do baixo clero, como chefe dos porteiros, levita cantor; assim como pessoas de todas camadas do 127 povo: mercadores, artesãos, carpinteiros, cortadores de linho, fabricantes de tendas, a maioria não pertencia a classe abastada da população. O saber era o único e exclusivo poder dos escribas e quem desejasse agregar-se à corporação dos escribas pela ordenação, seguia um ciclo regular de estudos de alguns anos, começando como discípulo (Talmîd) e começava desde a tenra idade e passando a ter um sólido conhecimento das escrituras ainda jovem. O aluno tinha convivência pessoal com o mestre e ouvia seus ensinamentos e quando tivesse aprendido a dominar toda a matéria tradicional e o método halaguita, a ponto de poder resolver por si mesmo questões de legislações religiosas e ritual, tornava-se “doutor não ordenado” (Talmîd hakam). Mas somente com a idade canônica para a ordenação (40 anos), é que podia ser ordenado (Semikak - At 6,6), sendo em seguida recebido na corporação dos doutores como membro legítimo e doutor ordenado (Hakam) podendo ser juiz em processos criminais, dar pareceres em processos civis, e ter o título de Rabi. O próprio Jesus que não seguiu o ciclo regular de formação culminado na ordenação, era chamado de Rabi. Somente os doutores ordenados transmitiam e criavam tradição derivada da Torá, a qual se colocava em pé de igualdade com a lei escrita e até mesmo acima dela. Suas tradições tinham o poder de ligar e desligar (Mt 16,19; 18,18). Com exceção dos chefes dos sacerdotes e dos membros das famílias patriarcais, o escriba era o único que podia ingressar no Sinédrio. O partido fariseu do Sinédrio compunha-se inteiramente de Escribas. O Sinédrio era eminentemente uma corte de justiça e o conhecimento da exegese escriturística era obrigatória nas sentenças judiciárias. Por isso, estes exerciam também atividades importantes na sociedade. Mas o fato da in128 fluência dominante dos escribas sobre o povo não consistia em serem conhecedores da tradição, ou no domínio da legislação religiosa, mas sim por serem portadores de uma ciência secreta, a tradição esotérica. Era grande o prestígio dos escribas, quando passavam o povo levantava-se; eram saudados por primeiro e chamados de Rabi. Quando os notáveis de Jerusalém ofereciam um banquete era uma honra contar com alunos de escribas e futuros doutores. Os primeiros lugares eram reservados aos escribas, e um Rabi merecia mais honra que os próprios pais. Nas sinagogas tinham lugares de honra, sentavam de costas para o armário da Torá olhando a assistência e visível a todos, só em caso especial contraiam matrimônio com filhas de pessoas que desobedeciam a lei. Seus túmulos se encontravam ao lado dos túmulos dos Patriarcas e dos Profetas venerados e conservados com temor supersticioso. Já os fariseus que significa separados, formavam verdadeira comunidade de Israel; eram pessoas do povo sem formação escriba, porém eram muito ligados aos escribas. Constituíam associações que visavam viver os mandamentos religiosos. A origem deste grupo foi século II aC, assim como a dos essênios. Para se tornar fariseus havia o período de um ano de prova durante a qual o postulante devia dar provas de aptidão para seguir as prescrições rituais. O postulante se comprometia em observar as prescrições judaicas sobre a pureza e o dízimo. A associação farisaica tinha seu chefe, fazia uma refeição em comum na sexta-feira e tinha sua justiça interna; podia pronunciar sobre a exclusão de um componente. Na época de Herodes havia mais de 60 mil fariseus (Jerusalém tinha 30 mil sacerdotes, 18 mil levitas e 4 mil essênios). 129 A comunidade farisaica compunha-se de plebeus, gente do povo sem formação escriba, honestos, sérios, muitas vezes severos e orgulhosos em relação aos demais que não observavam como eles as leis religiosas. A situação social da mulher Não participava da vida pública. Tinha o rosto escondido por um manto cobrindo-lhe a cabeça cingindo a fronte e caindo até o queixo, portanto não se podia reconhecer os traços de seu rosto. Se a mulher saísse de casa sem cobrir o rosto faltava aos bons costumes e o marido tinha o dever de despedi-la sem pagar a quantia que no caso de divórcio pertencia à esposa. Algumas mulheres tão rigorosas nem em casa descobriam a cabeça (caiam sobre mim isto ou aquilo, se as traves de minha casa viram meus cabelos). Era proibido ao homem encontrar-se sozinho com uma mulher, olhar para uma mulher casada e até cumprimentá-la. Era vergonhoso para um aluno de escriba falar com uma mulher na rua. Nas Cortes governamentais não se observava este costume, tome-se como exemplo o de Salomé (Mc 6,22) No campo as mulheres que precisavam trabalhar não observavam de modo tão estrito o hábito de cobrir a cabeça. Em casa as moças faziam o trabalho doméstico, trabalhavam na costura e fiação e tomavam conta dos irmãos menores. Para com os mais velhos tinham que alimentá-los, vesti-los, lavar-lhes o rosto, as mãos e os pés. Até idade de 12 anos em meio a autoridade do pai era soberania sobre a filha. A renda do seu trabalho era dada ao pai e até a esta idade era o pai que escolhe o marido dela acima de 12 anos e meio a filha era maior de idade (era chamada Bôgenet) e podia noivar sem o consentimento do pai. 130 Casavam a partir dos 12 anos e era comum se casarem entre parentes e quando casavam iam morar com a família do marido. O marido tinha a obrigação de prover à sua mulher a alimentação, a moradia, o vestuário, os remédios. Quando esta morria devia o marido contratar, mesmo que fosse pobre dois tocadores de flautas e uma carpideira e até providenciar alguém para o discurso fúnebre. Os deveres da esposa era cuidar do lar, moer, cozinhar, lavar amamentar, fiar, tecer lã, preparar bacia para o marido lavar mãos e pés e sendo permitido a poligamia, a mulher devia tolerar a presença de concubina a seu lado. No tempo de Jesus os Shamaítas discutiram com os Hiletitas sobre a exegese de Dt 24,1 que menciona sobre o justo motivo para o homem repudiar a esposa, caso encontre nela “qualquer coisa de vergonhoso”, “Erwat Dabar”. Os Hiletitas explicavam esta passagem assim: 1º. Uma imprudicícia (erwat) da mulher e 2º Qualquer coisa (dabar) que desagradasse o marido davam-lhe o direito de afastar a mulher de sua casa. Quanto à obediência a Torá a mulher era igual ao homem. Em todos casos de alguns mandamentos a mulher era liberada, como por exemplo: ir em peregrinação à Jerusalém na festa da Páscoa, Pentecostes, Tendas; abrigar-se nas tendas, agitar o lûlab por ocasião desta festa, tocar o Shofar no dia do ano novo, ler a “megillah (o livro de Ester) na festa de Purim, recitar diariamente o Shemá, estudar a Torá. As escolas eram só para os meninos. As Sinagogas tinham duas repartições: A Sabbateîon reservada para as cerimônias litúrgicas, o qual era acessível às mulheres, mas a Andrón só se abria para os homens e meninos. 131 Entretanto as famílias de classe média ensina às jovens uma formação profana, ensinando-lhe por exemplo o grego, “pois era um adorno para elas”. No Templo era permitido penetrar no átrio dos gentios e das mulheres durante os dias de purificação mensal e além desses no período de 40 dias após o nascimento de um filho (Lc 2,22), ou de 80 dias se fosse uma menina (Lv 12,2-5). Não se podia entrar nem mesmo no átrio dos gentios. Quando nascia um menino era alegria, uma menina tristeza. 18. REFERÊNCIAS E ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE JESUS Alguns dizem que há muito Marketing político nos evangelhos para alegar que Cristo teria nascido no ano 70 aC., que o Natal não é 25 de dezembro, pois a Igreja teria fixado este dia no ano 525 para coincidir com as festas pagãs do Oriente e de Roma, que Jesus não nasceu em Belém (Judéia), mas em Nazaré (Galiléia), e o presépio de Belém foi invenção dos evangelistas para identificar a vinda do Messias com o que o Antigo Testamento anunciava. Hoje a fé procura ser fundada em evidências científicas, basta dizer que existem mais de 80.000 livros sobre Jesus Cristo. É verdade que nas últimas 50 décadas as descobertas arqueológicas trouxeram à luz muitas coisas. A lingüistica e a filosofia aprimoraram admiravelmente, pois hoje pode-se comparar os textos antigos, analisar os estilos, a mensagem e estabelecer pressupostos sobre a cultura da época, o ambiente, etc., entretanto de Jesus desde o seu nascimento até seu batismo não temos descobertas arqueológicas sobre ele, e até a histo132 riografia grega e judaica não dizem nada dele neste período. Com as escavações arqueológicas de 1945 nas cavernas de Hammadi (Egito), onde encontra-se uma biblioteca cristã do século 4º em língua Copta com evangelhos apócrifos e depois em 1947, com a descoberta dos manuscritos do Mar Morto nas cavernas de Qumran (Israel) encontrou-se documentos da seita judaica dos essênios do ano 152 aC a 68 dC, os quais também ignoram Jesus, mas revelam a cultura sobre a qual o cristianismo cresceu. O filósofo, Pe. Emile Puech da escola Bíblica Arqueológica Francesa de Jerusalém afirma que provavelmente o nosso conhecimento sobre Jesus não vai mudar, mas poderemos ainda ter um melhor conhecimento do Cristo real se surgirem novas indagações filológicas, lingüísticas e históricas sobre a Palestina e sobre a comunidade cristã do primeiro século. Os quatro evangelhos são compilações de mensagens anônimas ou atribuídas aos apóstolos, orais ou escritas, dos séculos I – II. Marcos o mais antigo evangelho foi escrito pelos anos 70 dC; Já Mateus foi escrito entre os anos de 70 – 80; Lucas, foi escrito entre os anos 80 – 90 e João foi escrito depois dos anos 90. Os evangelhos contém “material” suficiente para levar a fé ao coração das pessoas abertas mas não para escrever uma biografia de Jesus afirmava Luke Johnson. Em 311 Constantino, Imperador Romano, converteu-se ao cristianismo e organizou o primeiro Concílio Ecumênico em Nicéia (hoje território Turco), onde em 325 com 318 bispos, estabeleceu o primado da Igreja Romana sobre a cristandade, com importantes dogmas e a partir dali os escritos cristãos foram oficializados. Atanásio, bispo alexandrino, no século IV escreveu 27 textos do NT (exemplos e cartas) alguns escritos em grego, a língua culta de então. Até o século IV a missa 133 em Roma era rezada em grego. Jerônimo traduziu os textos bíblicos para a língua latina e assim estes popularizaram-se na Palestina no século V. Os monges Copistas reproduziram os textos à mão às vezes reelaborando-os conforme as tendências doutrinais. Contesta-se os relatos de “Antigüidades Judaicas”, os quais oferecem informações importantes sobre Jesus e o cristianismo e que foram escritos por Flávio Josefo (37-100), o qual afirma que Jesus fazia milagres e apareceu três dias depois de sua morte. Para Maria Luzia Conassim, professora da História Antiga da Universidade de São Paulo, este texto foi distorcido pelos copistas monges, pois “Josefo não podia acreditar que Jesus fosse o Messias. Os monges agregavam o que queriam, pois do século II ao século XV as únicas cópias existentes dos livros estavam nos conventos”, diz a professora. Alguns testemunhos não cristãos como o de Filão (20 aC – 50 dC) escritor judeu, ignora Jesus e fala bastante sobre Pôncio Pilatos. Já Flávio Josefo, o historiador fala que em sua “época viveu Jesus, um homem sábio e o que se pode dizer é que era humano. Ele fazia milagres. Era o Cristo. Quando nossos cidadãos o denunciaram e Pilatos condenou-o à crucifixão, ele apareceu três dias depois de sua morte, de novo vivo. Os profetas anunciam suas maravilhas e milhares, o adoram”. (Ant. judaicas cap. XVII). Também Tácito (55 – 120) escrevendo sobre o incêndio de Roma, disse: “Nero acusa aqueles detestáveis por suas abominações que a multidão chama de cristãos. Esse nome vem de Cristo, que sob o principado de Tibério, foi mandado para o suplício pelo Procurador Pôncio Pilatos. Reprimida momentaneamente, essa superstição horrível brotou novamente, não apenas na Judéia, mas agora dentro de Roma”. (Anais, cap. XV). Da mesma forma Suetônio (70-128) falando 134 sobre a vida do imperador Cláudio, disse: “O imperador expulsou de Roma os judeus que viraram causa permanente de desordem pela pregação de Cristo” (Vida de Cláudio, cap. 25). Por fim Plínio, o jovem (61-114) escrevendo para o imperador Trajano relata que: “O cristãos têm o hábito de se reunir em um dia fixo para rezar ao Cristo que consideram Deus, para cantar e juram não cometer qualquer crime, abstendo-se de roubo, assassinato, adultério e infidelidade”. (Carta Trajano cap. X). O Novo Testamento delineia o perfil humano de Jesus. Ele "foi achado em figura de Homem" (Fl 2,7), viveu em tudo igual a nós, menos no pecado. Os evangelhos colocam os traços humanos do Verbo encarnado salientando que experimentou a fome, a sede, sentiu cansaço, fez experiência da dor e da tortura, conheceu a alegria, o pranto, teve compaixão, medo, afeto, contrariedade. É um homem que se interroga e se maravilha, tem amigos que ficam chocados com as hostilidades com que é acolhido. Fez a experiência da tentação por duas vezes onde foi solicitado no profundo de sua alma. Ele conheceu todas as provas, mas nunca foi pecador (Hb 2,7; 4,15), sendo o pecado uma oposição ao divino, ele não podia contradizer-se. Jesus é Santo desde o nascimento "crescia em sabedoria, idade e graça..." (Lc 2,52). Assim sua vida interior estava condicionada pelo desenvolvimento psicológico e pelas experiências; através das provas Jesus amadureceu e alcançou a perfeição. Seu crescimento em santidade não consistia em corrigir-se, ou passar de um estágio a outro, pois ele sempre teve a plenitude da santidade que convinha às etapas do seu desenvolvimento. O crescimento de Jesus foi todo natural, pois tanto do ponto de vista físico como psíquico, ele estava sob as leis normais do desenvolvimento. Como recém nascido chorou, dormiu, foi amamentado, aprendeu a falar, e à me135 dida que se abria para o mundo ia tomando consciência de si, descobrindo a sua própria individualidade e para crescer em si mesmo ele teve necessidade dos outros sobretudo de seus pais. Porém a influência negativa do ambiente nunca lhe afetou, pois filtrava o que atingia e rejeitava as impurezas, sem que isso o fizesse menos homem que nós. Por ser o Filho de Deus o seu eu cresceu puro e por ser homem viveu o seu desenvolvimento físico, a sua puberdade, o desenvolvimento de sua sexualidade e não teve a concupiscência. Nele desabrocharam os sentimentos de amizade, de abertura, de encanto pela natureza, mas também do mal, das injustiças, dos sofrimentos... Por muitos anos trabalhou como carpinteiro (Mc 6,3) em Nazaré, aldeia nunca mencionada no Antigo Testamento. Ele teve que aprender uma profissão e em seu nível histórico sem saber, achava-se ligado ao nível cultural da época e compartilhava as idéias e os conhecimentos do seu tempo, por isso os seus conhecimentos em técnica não superavam aos do seu tempo. Seu saber era limitado e progredia com o tempo; ele teve que ir aprendendo através da experiência. Ele não sabia tudo como diziam alguns teólogos da Idade Média, os quais afirmavam que ele por ter todas as ciências foi o melhor filósofo, matemático, artesão, agricultor, pintor... "Ele não realizou nenhuma descoberta científica e trabalhou com instrumentos rudimentares. Por mais de 30 anos não tinha sido nem notado (Mc 6,2-3). O Jesus histórico aparecia aos olhos dos contemporâneos como um homem autêntico em tudo e por tudo." Jesus conhecia porém o homem em profundidade, não um conhecimento no tipo conceitual, filosófico, mas sim na linha dos profetas, nem por isso ele escreveu um tratado sobre isso. Ele conhecia o pensamento íntimo de cada pessoa (Natanael, a Samaritana) e este conheci136 mento era em razão de sua missão, assim como eram os seus milagres. Resumindo, podemos dizer que no que concerne às coisas do mundo Jesus não era dotado de poder nem de ciência extraordinária, era condicionado pelos fatores psicológicos e históricos; a ignorância não é imperfeição e sim parte da condição humana. Em suma, o Verbo se fez carne... (Jo 1,14), isto é, o homem, tomado do ponto de vista de sua mesquinhez e fragilidade, e Jesus penetrou nossa condição até na banalidade, na caducidade, no fracasso e no vazio. Quem era Jesus para os discípulos? Para respondermos essa pergunta devemos antes dizer que os apóstolos fizeram uma experiência nova e forte dele, pois experimentaram suas palavras e seu comportamento e ao seu chamado, deixaram tudo para segui-lo. Portanto, devemos admitir que Jesus provocava uma forte impressão naqueles que tinham contato com ele. Para a multidão Ele era Profeta, um homem carismático que agia e falava em nome de Deus, e Jesus não rejeita essa visão, fazendo seu o que disse Isaias 61,1 e Lucas 4,1819. Ele falava como profeta; "Não convém que um profeta pereça fora de Jerusalém " (Lc 13,33). Porém, sua originalidade era tal que o povo não sabia em que categoria de profeta classificá-lo (Mc 8,2729). Para os apóstolos ele é o Messias, aquele que culminava as esperanças de Israel, que levava ao cumprimento as palavras de Javé, porém Jesus nega que Ele fosse o Messias nacionalista que iria libertar Israel do domínio estrangeiro, e isto gerou até uma certa ilusão nos apóstolos; os Judeus perguntaram-lhe até quando manteria o suspense sobre sua identidade (Jo 10, 24), e mesmo os seus discípulos vêem nele o Messias nacionalista. (Lc 24,21 ; At 1,6). 137 Jesus aceitou o título "Filho de Deus" (Mc 14,62), ou seja, alguém que tinha uma proximidade particular com Javé em vista da missão. Israel era chamado Filho de Deus, assim como todo israelita. (Ex 4,22 ; Dt 14,1) . Para o judaismo, o Messias era chamado de Filho de Deus para indicar sua relação privilegiada com Javé. Embora Jesus não tenha se declarado que era Deus, ele teve atitudes em relação ao perdão dos pecados, ou à lei, e fez declarações diante do Sinédrio (Mc 14,62) que dava a entender sua igualdade com Deus. O fato de ter sido condenado como blasfemador (Mc 14,64), mostra que ele reivindicou funções que só se atribuía a Deus. Jesus para não ser mal interpretado não fez declarações sobre si, pois era preciso antes preparar as pessoas, por isso ele provoca os seus ouvintes a refletirem e a se interrogarem sobre ele, sobre a sua identidade; suscita diálogo capaz de conduzir a um verdadeiro encontro com ele (samaritana). Outra maneira diferente do comportamento de Jesus foi quanto a atribuição de uma função única para si em relação ao plano de Deus e sobre a humanidade. Ele apresenta-se como o que anuncia a aproximação do Reino de Deus e o inaugura (Mt 12,28). Este reino chega associado à sua pessoa e ocupa o lugar central de sua mensagem, pois não é possível chegar a Deus sem a comunhão com Ele (Lc 12,9). Ele não só anuncia a salvação, mas é a salvação em pessoa; Deus está próximo porque ele se encontra presente Nele, entra em contato com Deus e seu Reino, Nele se encontra a graça de Deus e seu juízo, ele é o Reino, o amor de Deus. Ele é mais que Jonas, mais que Salomão (Mt 12,41-42). Faz tudo isto sem arrogância, sem buscar o poder, a fama, a riqueza, pois vive um estilo de vida humilde sendo pobre e não tendo casa (Lc 22,27). 138 A sua missão ele a desempenhou com segurança. Sua palavra como a dos escribas nunca se limita a uma explicação das escrituras, elas têm caráter imediatista; ele sabe de modo inequívoco o que Deus quer e o que anuncia. Não é a Sagrada Escritura a fonte última de sua convicção, do conhecimento da Palavra de Deus e de sua missão. Ele não apela para nenhuma visão ou revelação pessoal, mas encontra-se diante de uma intuição imediata, ou diante de um conhecimento de Deus por conaturalidade (Dupont). Por fim o seu modo de rezar impressionava os discípulos, pois pela relação filial que cultivava com Deus, ele falava com Deus como se falasse com o Pai (Kasper). Chama Deus como em "meu Pai" e "vosso Pai", visto que tinha uma consciência de estar numa relação íntima com Deus. Ele revela um modo seu todo novo de entender Deus. Vivia a relação filial na obediência, uma obediência por antonomásia (Fl 2,6-11). A experiência que tinha com Deus era a fonte de sua autoridade diante da lei, das respostas que deixava estupefata as multidões e tudo isto o fazia como alguém totalmente desraizado do seu próprio eu, numa atitude de serviço. Ele pertencia a este mundo, mas em meio a ele era totalmente um outro (Bornkanm). Jesus ressuscitado para a comunidade é Jesus no culme de sua doação na cruz. Para Paulo o que importa é Cristo crucificado ( ICor 2,2) , o anúncio de Jesus ignomioso, maldito (Dt 21,23) ex-comungado foi escândalo e loucura (ICor 1,22-23). Jesus sofreu o mesmo destino dos profetas e ele mesmo reconheceu o seu destino (Lc 13,33). Nesta perspectiva Jesus morreu na sua legítima missão, morreu pelos nossos pecados conforme o credo de Paulo (ICor 15,3), ele carregou como servo os pecados, por isso a crucifixão está inserida na história da salvação. Sua morte foi desígnio divino e não condena139 ção (Mc 8,31), e este desígnio é para a salvação dos homens, pois ele veio não para ser servido, mas para dar a sua vida (Mc10,45). Seu corpo imolado, seu sangue derramado é em favor de muitos (Mc 14,24), isto é, pelos pecados; sua morte tem caráter expiatório. A expiação no mundo helenístico era o esforço do homem, mediante o sacrifício, para influenciar a divindade, a fim de torná-la propícia, mas para a Sagrada Escritura expiar é sinônimo de libertar os pecados, é Deus quem expia como fala João (I Jo 4,10; 2,2 ; Hb 2,17) e em Jesus crucificado o homem encontra o perdão, a comunhão com Deus. Jesus não é um bode expiatório que substitui a nós, mas a solidariedade; ele fezse maldição, pecado e pobreza para dar-nos a riqueza (Gl 3,13 ; IICor 5,21). Jesus morreu por nós para satisfazer a justiça divina ofendida, mas no sentido de que só ele sem pecado pode realizar eficazmente a salvação e estabelecer a unidade com o Pai. Ele foi colocado como instrumento de propiciação com seu sangue (Rom 3,25). O propiciotório era a tampa da Arca da Aliança onde Deus perdoava ao povo seus pecados e que no dia da expiação era aspergido com sangue. Em conclusão afirmamos que na comunidade primitiva a reflexão sobre Jesus não é de tipo filosóficateológica , mas de fé. O ponto de partida é a relação atual com Jesus glorificado, profissão de fé que se traduzia em cantos, hinos, confissões de fé, doxologias... Não é também uma Cristologia do tipo antológica, isto é, não dava atenção para quem é Cristo em si mesmo, em seu ser, mas é soteriológica, ou seja, vê o sinal salvífico particularmente na sua morte e ressurreição. O Helenismo teve uma reflexão mais filosófica, mais voltada ao ser de Jesus (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20) ; Jo 1,1-18). Vê o Cristo em total obediência à missão divina e sua relação com o Pai. Naturalmente toda esta proclamação de fé em 140 Cristo tem um determinado aspecto de vida terrena de Jesus como fundamento, como critério da própria interpretação da fé. Naturalmente não podemos falar da divinização progressiva de Jesus, um ato semelhante não se explica no judaísmo. É inconcebível Paulo, judeu, divinizar outro judeu vivido poucos anos antes dele e além disso morto na cruz. Os judeus recusavam divinizar o homem, entretanto a Jesus o adoravam. Porque ele é Deus desde sempre e isto foi manifestado pela ressurreição. É a contemplação do ressuscitado que abriu a fé à compreensão daquilo que ele é desde a eternidade, a partir, porém de sua figura histórica. Isto demorou tempo para ser explicitado, pois Jesus que era distinguido de Deus Pai, vem compreendido como Filho, igual a Deus. 19. TESTEMUNHAS SOBRE JESUS NOS SÉCULOS II III Os textos mais antigos (Pápias, Canôn de Muratori, Irineu de Lião) consideram Marcos e Lucas autores no sentido próprio. Para Pápias, Marcos foi discípulo de Paulo e intérprete de Pedro; um cristão originário do paganismo. Sua obra influenciou Lucas e Mateus e Marcos foi influenciado por Paulo. Os autores, os evangelistas não forma simples comunicadores da tradição, foram também intérpretes e teólogos, pois cada um tem sua visão e seus processos literários. A autoridade dos Evangelhos se manifesta na conservação fidelíssima do próprio texto do evangelho. O fato de que desde o século II se lê os textos dos evangelhos nas liturgias em pé de igualdade com os profetas. (Justino diz: "No domingo, há reunião dos habitantes das cidades e da zona rural, e lêem-se as memórias dos 141 apóstolos ou dos escritos dos profetas). A Igreja contra os hereges serviu-se dos evangelhos (ebionitas, marcionistas, docetas), além do mais, estes se apoiavam nos evangelhos, especialmente Marcos apoiava-se em Lucas. Todos eram unânimes em aceitar que pelos evangelhos se conhecia a pregação dos apóstolos a respeito de Cristo. As Igrejas reconheceram os quatro evangelhos como norma de fé e vida. A Igreja tomou posição contra as formações dos apócrifos que tentaram preencher as lacunas dos evangelhos sobre períodos da vida de Jesus para satisfazer a curiosidade popular e para certas exigências apologéticas. Também o Diatessaron de Taciano teve o mesmo propósito servindo-se dos evangelhos. Já nos meados do século II a Igreja considerou os evangelhos como números clausus em número de quatro, Irineu fala de "Evangelho quadriforme" e Eusébio de "quadriga sagrada ". A Formgeschichte representada em alguns importantes teólogos tem como objetivo estudar a primeira fase da história da Tradição (o Evangelho pregado atualizado, aplicado às situações da Igreja procurou jogar algumas luzes para a interpretação dos textos Sagrados). Esta surgiu entre 1919-1922 para estudar a mediação das comunidades entre o acontecimento e o texto. Sua tarefa foi classificar as formas literárias das narrações evangélicas estabelecendo um relacionamento entre a forma literária e o meio ambiente que a ocasiona. Indaga, portanto quais são as situações na comunidade em que o escrito nasceu, se desenvolveu e foi transmitido durante o processo da tradição. Interessa-se pela gênese, pela formação e evolução das tradições orais, antes dos textos escritos. Sua ambição é retratar toda a história da tradição evangélica do evangelho oral ao escrito. Seu método é literário, mas sua perspectiva é histórica. Descreve a pré-história dos evangelhos. Poderia 142 ser comparada à geologia que estuda as formas sucessivas da crosta da terra. Face a isso, vemos que a Formgeschichte destaca a importância da tradição oral. O evangelho foi pregação antes de ser escritura; a tradição precede a escritura. A matéria dos evangelhos durante 25 ou 30 anos pregada, serviu de missão, de catequese, de culto e de polêmica; recebeu um colorido da Igreja e foi marcada pela interpretação teológica desta. Sublinha igualmente o caráter inconsistente das coordenadas do tempo e do lugar tornando impossível uma seqüência lógica dos acontecimentos da vida de Jesus. O Jordão, a Galiléia e Jerusalém, são lugares privilegiados da presença de Jesus, mas fora estes é difícil reconstruir o filme da vida de Jesus. Para a Formgeschichte o que interessa mesmo é a contribuição pessoal do autor, ou o cunho literário do autor, pois cada forma literária tem o seu sitz im leben particular, ou seja, o meio impõe a forma literária adequada; há uma interação entre o meio e o texto. A vida impõe a forma e a forma revela o meio. O que se questiona na Formgeschichite é que ela fixou a atenção na comunidade primitiva e subestimou o papel dos evangelistas considerando-os como simples compiladores, apresentando assim os evangelhos como um aglomerado de fragmentos. O seu mérito foi trazer um método rigoroso para a análise dos evangelhos, e o meio para se chegar pelos estudos dos textos até o meioambiente que eles nasceram, só que a Formgeschichte exagerou na ruptura entre Jesus e o Cristo, como também no poder criador da comunidade primitiva, pois estudando o meio sociológico da comunidade, esqueceu seu comportamento interior desconhecendo o papel dos evangelistas. 143 As pesquisas da Formgeschichte têm como ponto de partida a comunidade pós-pascal, mas será que a história do cristianismo começou com a fé pascal e que essa fé é responsável por toda tradição cristã? Käseman combateu esta idéia e afirmou que a continuidade de tradição é coisa não apenas possível, mas altamente provável. Bultmann achou que existe não apenas uma continuidade de lembranças, mas uma verdadeira continuidade de tradição, incluindo a transmissão de uma mensagem e de uma atividade. Porém para Bultmann entre a comunidade antes e pós-pascal, há uma descontinuidade real porque a fé intervém como elemento novo, criador da nova comunidade. Para ele é a fé que caracteriza o começo de uma comunidade e a fé cristã só começou depois da Páscoa. Mas será que a fé no Cristo pós-pascal só foi possível porque existia uma fé nele antes da páscoa? Schurmann explorou o período pré- pascal com o método da Formgeschichte e distinguiu ali um sitz im leben externo constituído pelas ações visíveis da comunidade (liturgia, missionária, catequética) e o outro interno constituído pelas relações interpessoais que uniam entre si os membros dessa comunidade na profissão da mesma fé. É de se notar que a Formgeschichte estudou só o sitz im leben externo e negligenciou o interno, contudo são esses laços internos que constituem os elementos motores aptos a suscitar, manter e garantir a transmissão fiel de uma tradição. Jesus formou uma comunidade com discípulos escolhidos, estes o seguiram e creram nele. Os discípulos partilharam suas vidas, tornaram suas testemunhas, tiveram fé em suas palavras, viveram em sua intimidade, ficaram fascinados por seus ensinamentos e ações. Tudo isto não caiu no esquecimento deles, aliás, eles conservaram o tesouro de suas palavras com respeito, guardando-as inalteradas. Esta 144 fé em Jesus explica a possibilidade não apenas de uma tradição, mas a fisionomia própria desta tradição. Jesus foi para eles mais do que um mestre, ou um sábio, foi sim a revelação de Deus, o maior dos profetas, um líder. Por isso, eis a importância dos discípulos em conservar sua mensagem, mais do que a forma literária em seu conteúdo original. Assim, a comunidade íntima de Jesus e dos discípulos, a adesão dos discípulos à personalidade prestigiosa de Jesus, a autoridade de sua palavra única e decisiva, constituem o sitz im leben interno suficiente para explicar a continuidade efetiva de uma tradição das palavras e gestos de Jesus. Para Schurmann Jesus pregou e propôs sua mensagem com intenção de fornecer aos discípulos um instrumento adaptado em vista de uma atividade missionária a ser exercida não apenas depois da páscoa, mas enquanto ele estava vivo. Ele dirigiu um apelo particular aos discípulos e isto implicou num compartilhar a missão. Assim a missão dos discípulos antes da páscoa constitui um sitz im leben importante para compreender a origem e o processo de transmissão da tradição evangélica. Jesus deu às suas palavras um cunho particular com a intenção de imprimi-las na memória dos discípulos. Basta lembrar a missão que deu a eles (Mc 6,7). Ele os preparou para a missão e estes participam de sua missão e depois prestam contas do ocorrido. Nesta missão eles anunciam o Reino, convidam à penitência. Portanto, Jesus forneceu-lhes o material para a pregação e assim houve uma tradição constituída antes da Páscoa. Outro fator para explicar a formação e transmissão de uma tradição foi a vida em comum dos discípulos, os quais deixaram as próprias famílias para dedicarem-se inteiramente ao Reino. 145 Por isso a origem e a tradição dos Logia de Jesus começaram antes da Páscoa, através do próprio convício com Jesus. O iniciador da tradição foi o próprio Jesus conforme atestam (1Jo 1,1ss; Lc 1,2; At 1,21-22). Assim, pela comunidade pré-pascal tem-se acesso a Jesus. Se a tradição apoiasse só no pós-pascal a história de Jesus não se apoiaria sob um dado histórico, mas seria uma gnose. Com a páscoa Jesus foi melhor identificado com a propagação. A Páscoa não é uma bomba atômica que destruiu tudo, mas uma chama que tudo iluminou. O mérito de Schurmann é ter aplicado a Formgeschichte ao estudo pré-pascal distinguindo o Sitz im leben interno e externo. Jesus influenciou como nenhum outro personagem a vida da humanidade a ponto de dividir a história em antes e depois dele, tornando se um marco divisor para a história. Esse judeu que viveu pouco mais de trinta anos numa periferia do Império Romano, marcou profundamente os últimos vinte séculos da história humana em todas as suas latitudes; seja religiosa, política, cultural, artística... exercendo uma influência sem precedentes nos costumes e na ética. A história teria sido diferente sem a sua presença, de forma que é difícil imaginar os últimos vinte séculos da história da humanidade sem a presença do cristianismo. Sem Jesus no cristianismo tudo teria sido diferente, pois o que teria pintado um Rafael, Michelângelo, Ticiano, Murilo ou Velásquez? O que teria sido a composição de um Bach? O que teriam escrito um Dante, ou um Tomás de Aquino? Sem Jesus como seria hoje a Europa? E o mundo ibero-americano sem a presença da cruz dos conquistadores? Como seria hoje a história sem as conquistas 146 missionárias do cristianismo ou sem as Cruzadas, as Inquisições? O mundo teria sido diferente, pois muitas das culturas e literaturas não teriam chegado até nós. Podemos imaginar como seria a nossa sociedade ocidental sem as milhares de pessoas formadas ou influenciadas pelas escolas e as universidades católicas no mundo inteiro? Como seriam as leis e o direito no mundo sem o cristianismo? E a influência da ética nos costumes? Como não levar em conta a doutrina cristã sobre o sexo, o divórcio, o aborto, a pena de morte, a eutanásia...? Jesus foi a figura mais paradoxal, poderosa e enigmática nos últimos vinte séculos; basta dizer que em seu nome se pregou o amor universal e que também em seu nome se assassinou, se manipulou. Pelo seu nome milhares de pessoas se imolaram e um terço atual da humanidade acredita neles e segue os seus ensinamentos. Tudo isso surgido de um pequeno grupo que acreditou na chegada de um Salvador e depois esta crença foi cultivada pelas primeiras comunidades cristãs através dos apóstolos e dos discípulos, embora Jesus tivesse sido morto numa cruz. 20. A JUDÉIA ANTES E DEPOIS DE JESUS Israel só completou sua independência no ano 129 aC quando venceu os Selêucidas que reinavam na Palestina e os Macabeus que lideraram uma revolta e assim fundaram a dinastia dos Asmoreus. Nos anos 103 - 76 aC a rivalidade entre os saduceus, homens da classe alta influenciada pelo helenismo e aliados aos sacerdotes do Templo de Jerusalém contra os fariseus, anti-helenizantes provocou uma guerra civil. Em 63 aC Roma invadiu a Palestina, ocupando o Templo sob o comando de Pompeu e assim a Judéia 147 tornou-se Província de Roma. Em 48 aC os Romanos nomearam Antípater como governador da Judéia e em 31 aC coroaram Herodes, um monarca cruel e detestado que matou sua mulher, seus filhos, sua sogra e o cunhado. Além disso insultou a religiosidade dos judeus construindo Templos pagãos e um hipódromo para lutas de gladiadores em Jerusalém. Apesar de tudo era bom administrador e fez obras reconhecidas tais como: o Porto de Cesaréia, a fortaleza de Massada, a restauração do Templo, e outras obras significativas. Quando Jesus nasceu Herodes governava, e naquele ano houve 2.000 crucifixões na Judéia. Neste tempo os judeus eram divididos em quatro grupos: Saduceus, que formavam a elite dos sacerdotes que dominava o Templo; Fariseus que eram populistas e propunham um judaísmo orientado pelos rabinos do povo; Essênios, monges austeros e separados e Zelotas, radicais que pregavam a violência e a revolta contra Roma. Neste contexto os judeus esperavam com ansiedade a manifestação do Messias para libertá-los dos Romanos; com a vinda do Messias para eles viria o fim do mundo e o reinado de Deus na terra; de fato, os profetas perambulantes anunciavam a vinda do Messias e o fim dos tempos e os zelotas, não se conformavam com a dominação romana, estes eram uma espécie de bandidos. Entre os anos 26-36, Pilatos governava em nome dos Romanos e no ano 30 mandou crucificar Cristo. Em 37 o Imperador Calígula mandou levantar uma sua estátua no Templo e provocou os judeus. Em 64 os zelotas iniciam a rebelião, sendo afastada pelo General Vespasiano que antes de atacar Jerusalém passou o comando para seu filho Tito, o qual no dia 28 de agosto do ano 70, arrasou Jerusalém e o Templo, matando milhares de judeus. Em 73 a revolução dos judeus era a148 inda acesa, quando 960 judeus suicidaram-se na fortaleza de Massada para não se tornarem prisioneiros dos Romanos. Em 132 Shimon Bar Kosib auto proclama-se messias, denomina-se “Filho da Estrela” e lidera uma revolta que durou três anos, mas os Romanos acabaram com tudo sob o comando do General Severo que arrasou mil povoados e matou milhares de judeus. Assim os Zelotas perderam a influência e os rabinos assumiram a liderança. Só em 138 com o Imperador Antonio Pio, o Império de Roma foi mais suave e o judaísmo rabínico começou a expandir-se. A esta altura o cristianismo era mais popular. 21. COMO O POVO VIA JESUS? Como o povo via Jesus? Podemos afirmar que a partir do momento em que Jesus deixou Nazaré e começou falar nas Sinagogas, curando e acolhendo os desamparados, tornou-se um personagem de interesse público e seu nome tornou-se famoso (Mc 6,14). Ele passa a ser tido como o profeta (Mt 21,9-11). O povo o tinha como profeta (Mt 16,14), um dos antigos profetas que ressuscitou (Lc 9,19), um grande profeta (Lc 7,16), um profeta poderoso em obras e palavras (Lc 24,19). “És um profeta..”, disse-lhe a samaritana (Jo 4,19). “Este é o profeta que deve vir ao mundo”. (Jo 6,14). “O profeta” (Jo 7,40). O próprio Jesus faz menção à sua função profética “um profeta só é desprezado em sua pátria...” “ ...não é possível que um profeta morra fora de Jerusalém” (Lc 13,33). Há um total de 20 textos em que Jesus e sua obra são interpretados mediante o recurso ao modelo “profeta”. Jesus é visto como profeta pelas multidões porque realiza os sinais do Êxodo como o dom do pão corres149 pondente ao maná e o da água viva, como Moisés tinha dado água do rochedo (Jo 6,14; 7,40). Ele dá cumprimento à promessa de Deuteronômio 18,15-18; (Lc 24,19; At, 3,22; 7,22). O povo via Jesus também Mestre, pois ele ensinava nos lugares públicos, seja nas Sinagogas, no pátio do Templo, aos sábados (Mc 1,21; Jo 6,59; 7,14; 18,20). Às vezes ensinava ao céu aberto (Mt 5,2), ao longo do mar (Mc 2,13; 4,1), nas praças (Lc 13,26); ensinava aos discípulos e multidão (Mc 2,13; 8,31; 9,31). Ele ensinava como quem tem autoridade e não como ensinava os escribas (Mc 1,22; Mt 2,28; Lc 4,32. 36); está acima do protótipo de sabedoria (Salomão) (Mt 12,42). Segundo a tradição rabínica os escribas eram os sucessores dos sábios bíblicos, portanto, Jesus coloca-se acima da instituição docente judaica. Podemos afirmar que os dados evangélicos baseados nos critérios de historicidade fazem supor que a imagem de Jesus como mestre, assim como profeta, mergulhe suas raízes nas condições da atividade histórica de Jesus. Ele não foi um simples “rabbî”, ou seja, que fez uma escola para tornar-se “mestre”, mas é um carismático e profeta, cujo modo de ensinar assemelha-se mais a João Batista e ao mestre fundador da comunidade de Qumrân e não ao grupo dos escribas dos judeus. Jesus é conhecido como Cristo (Christòs em grego é Messias – Mashîah em hebraico ou Meshikha em aramáico). Jesus não atribuía para si este título, são os discípulos e multidão que o chamam de “Christòs” (Jo 1,41; 4,25; Mt 16,16; 22,42; 26,63; 27,42). Portanto, no contexto histórico Jesus é tido como Messias e até Paulo assim se refere ao falar dele (I Cor 15,3-5). Da mesma forma devemos considerar que a sua morte na cruz revelou o caráter público, religioso e político que a sua vida assumiu aos olhos da autoridade Romana, e por 150 isso o seu título na cruz de “Rei dos Judeus”, evoca a ideologia do messianismo régio. O Salmo 17 evoca a vinda do Rei, Filho de Davi, para que “reine sobre Israel”, “para abater os chefes injustos...”. O messianismo referia-se à restauração religiosa, social e política de Israel, cujo modelo era o reino davídico, se bem que havia também a idéia de um messianismo mais heterogêneo como por exemplo entre os fariseus. Além da restauração nacional, o Messias tinha também papel religioso de eliminar os pagãos e os ímpios e proporcionar a observância integral da lei e a pureza do culto. Já entre os saduceus a ideologia messiânica não gozava de muita simpatia a insurreição. Podemos concluir que a tradição evangélica mergulha suas raízes no contexto histórico da atividade de Jesus, proclamador do Reino, condenado à morte como perigoso mestre e profeta que catalisava em torno de si a esperança messiânica. A tradição crista dá a Jesus também o título de “Filho de Deus”. Paulo insiste na proclamação de Jesus como Filho de Deus (I Ts 1,10; Gl 1,16; 2,20; Rm 1,3-4). Como pode Jesus num contexto religioso de rígido monoteísmo ser chamado de Filho de Deus? Este título ocorre 12 vezes em Mateus, 06 em Marcos, 08 em Lucas, 04 em Atos dos Apóstolos e 10 em João. Jesus é chamado também com títulos correspondentes como “Filho Amado” (Mt 3,17); “Filho bendito” (Mt 26,63; 27, 40-43); “Filho do Altíssimo” (Mc 3,11); “Filho único de Deus” (Jo 3,18; 10,36); “Filho” (Mt 21,37-38; Mc 13,32; Lc 10,22). Podemos, portanto concluir que a profissão de fé da comunidade é concorde em afirmar que Jesus é o “Filho de Deus”. No ambiente judaico do século I chamavam-se “filhos de Deus” os seres celestes, ou seja, os anjos (Gn 6,2) também o povo e a comunidade, objetos da eleição de Deus (Ex 4,22; Dt 14,1; Os 11), os reis (2 Sm 7,14; Sl 27). Em todos estes casos este título era 151 entendido em sentido metafórico para indicar uma relação peculiar com Deus. Da mesma forma entre os rabinos, os mestres famosos, piedosos e carismáticos eram tidos como “filhos de Deus” (Livro dos jubileu 1,24-25). Jesus nunca se auto proclamou “Filho de Deus” eram os outros que se dirigiam a Ele com este qualificativo. Entretanto, os textos o definem assim em virtude da maneira coerente e relacional filial dele com Deus que o chama de “Aba” (Mc 14,36). Esta maneira de Jesus se apresentar é carregada de um novo significado diferente daquele dos modelos bíblicos e do uso lingüistico do meio judaico de então, o que explica também o áspero conflito com os representantes das instituições judaicas que o condenaram à morte. Dentre os vários títulos evangélicos para designar a figura de Jesus o mais acentuado é “Filho do homem” (Nios tou Antropou). Este título está presente nos evangelhos 82 vezes: 14 vezes em Marcos, 30 em Mateus, 25 em Lucas, 13 em João. Esta forma é posta na boca de Jesus, fora duas exceções (Lc 24,7 e Jo 12,34). Esta expressão nos evangelhos jamais é um título atribuído a Jesus, ou seja, não se encontra a expressão na boca de Jesus “Eu sou” o “Filho do homem”, ou na boca de terceiros: “Tu és o filho de homem”. Geralmente esta expressão está ligada a “Anuncios” ou instruções sobre a paixão dirigida aos discípulos (Mc 8,31; Mt 17,22; Lc 9,44; Mc 14,21; Lc 22,22; Mt 26,2-24). Para alguns estudiosos esta expressão deriva de um mal entendido surgido em virtude de uma tradução literalista da expressão idiomática (bar (‘e) nash) que no aramáico da Galiléia significava simplesmente “Eu” ou “um homem como Eu” (Mt 5,11). 22. O PERFIL DE JESUS 152 Jesus era solteiro mesmo se para a sua cultura de então era algo impensável. Como pregador na Palestina proclamou-se Messias, o que para os judeus era blasfêmia. Fez 31 milagres dos quais 17 curas e 6 exorcismos. Para os judeus a doença era devido ao pecado e a cura era monopólio divino. No ano 30 entrou em Jerusalém num burrinho, cumprindo a profecia de Zacarias, foi saudado pelo povo e foi ao Templo. Caifás, sumo sacerdote, ordenou sua prisão no Getsêmani, e ele diante do Sinédrio, e do Conselho dos Sacerdotes do Templo, reafirmou a sua missão divina. Foi condenado no pretório de Pilatos na presença de Caifás na sextafeira (A Sexta-feira Santa surgiu no dia 07/04/30) e foi crucificado no Gólgota, com 36 anos. Qual deve ser o tipo de Cristologia no lugar social da América Latina? Deve ser uma Cristologia que leve em conta o lugar social em favor dos oprimidos, dos subnutridos, dos desempregados, dos explorados, dos doentes, dos sem escolas e moradia, etc. Em suma, deve ser uma Cristologia diante de uma situação de pecado social que exija uma mudança com a práxis de amor engajado. Desta forma, a posição de Jesus diante do “status quo” do seu tempo, adquire hoje relevância. A cristologia neste sentido deve ser pensada e vivida de maneira que signifique a libertação econômica e política dos oprimidos. As imagens de Cristo agonizantes e moribundos neste contexto opressor são “Cristos da impotência interiorizada dos oprimidos”(Assmann). Desta forma, a Cristologia da libertação deve privilegiar o Jesus histórico sobre o Cristo da fé, justamente porque o Jesus histórico viveu um programa libertador no meio dos conflitos. Este Jesus histórico exige uma transformação, ou seja, uma conversão que se traduza na mani153 festação e na realização da utopia da libertação estrutural e escatológica, que se traduza na presença do Reino no meio de nós (Lc 17,21). No primeiro aparecimento público de Jesus na Sinagoga de Nazaré Jesus proclamou a utopia do ano da graça (Lc 4,16-21) onde Deus através dele tomou partido dos que sofrem. Desta forma a práxis de Jesus é entendida como historificação daquilo que significa o Reino, onde os seus milagres são “Semeion”, sinais (Lc 1,20) do amor do Pai pelos marginalizados. Assim entendida, a práxis de Jesus não tem a estrutura da religião da época, mas é libertadora profética, onde os critérios para a salvação não estão na ortodoxia, mas na ortopraxis, baseados no amor. O Deus apresentado por Jesus é cheio de infinita bondade (Lc 6,35) não o Deus da Torá, e o acesso a Ele se faz através do pobre. Jesus baniu as estratificações sociais e religiosas (judeus estrangeiros, leis e ignorantes, puros e pecadores...) e declarou bem-aventurados os pobres estabelecendo um novo tipo de sociedade na solidariedade, no perdão, na misericórdia e submetendo a lei ao serviço. Basicamente a conversão que Jesus ensina é de atitudes práticas na produção de relações modificadas em nível pessoal e social, será por ela que o Reino torna-se presente; desta forma a boa nova de Jesus torna-se conflitiva e é boa só para quem se converte. Por causa de sua praxis Jesus morreu não compactuando-se com os poderosos, mas permanecendo fiel à sua missão; por apresentar um Deus diferente daquele do “status quo” religioso, desmascarando a hipocrisia, morreu acusado de subversor diante do Estado. Por fim, a sua ressurreição é a plenitude de todo processo libertador, onde ele continua entre os homens animando a luta libertadora e todo o que processa-se como libertação neste mundo. Com isso a nossa vida 154 aqui está sob o signo da realização do Reino escatológico através do seguimento de Cristo que inclui o anúncio da utopia do Reino e a tradução desta utopia em práticas libertadoras. Jesus Cristo é a resposta de Deus à condição humana. Mas por que o homem não é feliz? Por que não consegue se relacionar? Por que para ter paz, precisa da guerra? Dos mais de 3.400 anos de história da humanidade, mais de 3.170 foram de guerras e os restantes foram de preparação para ela, embora o homem tenha a ânsia pela felicidade e da paz. Jesus surge pregando esta utopia, “O reino chegou crede na boanova...” (Mc 1,14; Mt 3,17; Lc 4,18s); sua atuação é de libertação, conforme respondeu a João Batista (Mt 13,3-5). Ele inicia transformando a realidade não só combatendo o pecado, mas em tudo o que o pecado significa para o homem e na sociedade. Jesus anuncia um ano de graça o que para Ex 23,10-12; 21,22-6 significa um ano onde todos deviam sentir-se irmãos, onde as dívidas seriam perdoadas, os escravos livres, as propriedades devolvidas. Este ideal nunca chegou por causa do egoísmo e por isso, tornou-se uma promessa para os tempos messiânicos (Is 61,15). Jesus coloca-se como realizador desta utopia (Mt 8,16-17); Lc 7,11-17; Mc 5,41-43). O reino que Jesus anuncia não é a libertação desse ou daquele mal, mas engloba todo homem e a sociedade, não está ligado a um lugar, mas está dentro do homem (Lc 17,21) é preciso assumi-lo. Este Reino expressa-se na intervenção de Deus iniciada, mas não acabada, por isso Jesus ensina a pedir o Reino (Lc 11,2), onde no futuro o tempo do mundo pecador acabará (Mt 19,28), os sofrimentos acabarão (Lc 20,36), os mortos ressuscitarão (Lc 11,5) e os últimos serão os 155 primeiros (Mt 10,34). Mas a participação neste Reino exige a adesão a Jesus. Flávio Josefo narra nas suas “antigüidades judáicas” que os judeus dos anos 100 aC a 10dC tinham a preocupação de “Libertar-se de toda sorte de dominação dos outros, a fim de que Deus somente fosse servido”. Desde o exílio de 587 aC os judeus viveram praticamente sem liberdade, então a literatura apocalíptica surgem com o objetivo de inspirar-lhe confiança numa saída para o futuro com a entronização do absoluto senhorio de Deus, tendo a restauração da soberania davídica. Daí o tema Reino de Deus ser central e ter uma conotação política onde o Messias devia vir para instaurar o Reino de Deus. Diante disso os fariseus pensaram que a observância minuciosa de leis apressaria a vinda do Reino. Já os essênios se refugiaram em Qunrân para purificação e observância da lei e os zelotas pensavam que com a guerrilha e violência provocariam a intervenção salvadora de Deus, por isso tinham o lema: “Só Javé é Rei e só a Ele serviremos”. Em vista disto contestavam tudo que vinha de Roma. Da mesma forma, os apocalípticos faziam cálculos de semanas e de anos para determinar o tempo dos acontecimentos salvadores. O messianismo e a apocalíptica eram os meios adequados para Jesus comunicar sua mensagem e revelar que era o Filho de Deus, contudo Ele destacou-se das expectativas messiânicas do povo, não alimentou o nacionalismo judeu, não se rebelou contra os romanos e não fez nenhuma alusão à restauração do rei Davídico, embora o povo assim o fez na sua entrada em Jerusalém (Mc 11,10) e na inscrição do Cruz INRI (Lc 15,26), assim como os próprios discípulos esperavam um Messias libertador (At 1,6; Lc 24,21). Neste ponto, Cristo decepciona a todos. 156 Cristo superou as tentações do messianismo político, pois seu Reino apresentou-se frágil e sem aparato, como um grão de mostarda (Mt 13,31s), ou como o fermento na massa (Mt 13, 22s). 1. Jesus Cristo o Libertador da condição humana O tema da pregação de Cristo foi o Reino de Deus, ou seja, de uma situação nova, de um mundo repleto de Deus; uma revolução global e estrutural da velha ordem promovida por Deus. Para participar desta nova realidade, a exigência é preciso aderir a ele ( Lc 12,8-9). Ora, isto significava: 1ª Conversão com a mudança no modo de pensar e agir, ou seja, uma revolução interior. Por isso quando iniciou sua pregação pede conversão (Mt 3,2; 4,17). Pede portanto um modo novo de existir, com a ruptura do passado (Lc 12,51-52), pede de ter a coragem de abandonar os bens (Mt 10,37) de arriscar a própria vida (Lc 17,33). Para esta nova situação todos são chamados, mas muitos rejeitam (Lc 14,16-24), muitos não passam pela porta estreita (Lc 13,24), pois exige até o abandono dos mais próximos (Lc 9,59s). Esta deve ser uma decisão pensada como pensa um construtor de uma torre (Lc 14,28-32); exige tornar-se criança (Lc 18,17), ou seja, dependente, nascer de novo (Jo 3,3). Portanto, o ensinamento de Jesus produz uma revolução no modo de pensar e de agir. 2ª Uma libertação da consciência oprimida, onde a lei era absoluta, inclusive em alguns círculos teológicos afirmavam que Deus nos céus ocupava-se durante o dia com horas de estudo da lei. O judeu era oprimido pelo fardo da lei (Mt 23,4), por isso Jesus modifica as prescrições da lei como a pena de morte para adúlteros (Jo 8,11) e os polígamos (Mc 10,9). Rompe com a observância do sábado (Mc 157 2,27) e da pureza legal (Mc 7,15). Sua lei é o amor (Mt 5,44). Cristo não é contra nada, mas a favor do amor, ele não é um anarquista, basta lembrar a sua posição contra o divórcio estipulado por Moisés (Dt 24,1) onde o marido podia divorciar-se por qualquer coisa não agradável na mulher; Jesus não permite isto (Mc 10,9). 3ª Procurando atitudes de um homem novo na vivência do amor radical expresso não só para aquele que mata, mas também para aquele que prejudica o irmão (Mt 5,22); para aquele que comete adultério no coração (Mt 5,28); na disposição de dar também o manto (Mt 5,39-40). Tudo isso para Cristo não é uma nova lei, mas uma atitude de amor que supera a lei. A pregação de Jesus com sua exigência de conversão não atinge só as pessoas, mas também as instituições; basta lembrar os fariseus que observam toda lei ao pé da letra. Estes não eram maus, pois pagavam os impostos (Mt 23,23), procuravam adeptos (Mt 23,15) não eram ladrões, adúlteros, injustos (Lc 18,11) jejuavam e davam dízimo (Lc 18,12), entretanto não praticavam a justiça (Mt 23,23). Por isso Jesus vai com os marginalizados, conversa com as prostitutas (Mc 7,2430) come com um ladrão, Zaqueu (Mt 11,19), conversa com mulheres, relativiza as autoridades (Mt 20,25), justamente porque estes estavam mais abertos para ouvi-lo não tinham nada a perder, porque a mensagem dele não incomodava, como incomodava aos fariseus (Mt 5,43-48), os quais procuravam-lhe armadilhas (Mt 22,15-22) procuram matá-lo (Mc 3,6; Jo 5,18) e acusam-no (Mt 12,10). É evidente que o mundo de então como se apresentava, precisava da mudança através do amor, da vivência da fraternidade, onde as questões fundamentais da vida nem a lei, nem as tradições, nem a religião 158 substituíssem o homem. Por isso mesmo o filósofo pagão Celso do sec. III via nos cristãos homens sem pátria e sem raízes que se colocavam contra as instituições divinas do Império e pelo modo que eles viviam levantavam, segundo este filósofo, um grito de revolta (Foné Stáseos), não porque eram contra os pagãos e idólatras, mas porque eram a favor do amor indiscriminado para com todos. Por isto os cristãos provocaram sem violência uma revolução social e cultural no Império Romano, formavam um “Tertium genus” um Terceiro gênero de homens diferentes dos romanos (1º gênero) e dos bárbaros (2º gênero). 2. Jesus de extraordinário bom senso, fantasia criadora e originalidade. A mensagem de Jesus é de radical libertação do homem e manifesta um extraordinário bom senso notado por todos, onde para cada situação tinha-se uma palavra exata, e sabia distinguir o essencial do secundário. Suas palavras atingiam o objetivo com determinação direta. “Amai vossos inimigos” (Mt 5,44); “Não julgueis”(Mt 5,34); “Não saiba a tua mão esquerda o que tua mão direita fez” (Mt 6,3). Ele tem o estilo de um profeta, surge como profeta (Mc 8,25), mas apresenta-se como rabino, embora diferente destes, pois ele aceitava o que um rabino de então não aceitava (pecador, mulheres, crianças...). Seus ouvintes entendem sua linguagem simples (Mt 5,14; 6,34; 6,26-27). Não fala coisas incompreensíveis, nem ensina uma nova moralidade, mas fala de coisas que os homens já tinham, mas não compreendiam. De fato sua regra de ouro sobre a caridade: “Tudo o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-o vós a eles”, já era ensinada séculos antes dele, tais como estas: “Trata os outros assim como queres ser tratado” (Sócrates 400 159 aC); “O que não desejas para ti, não faças aos outros” (Confúcio 470 aC) ; “O que odeias não faças a ninguém” (Mahabharata – 400 aC); “Guarda-te de jamais fazer a outrem, o que não quererias que te fosse feito” (Tb 4,15); “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” (Hillel). Portanto, Jesus não dizia coisas novas e surpreendentes, por isso com razão disse Santo Agostinho: “A substância daquilo que hoje a gente chama de cristianismo já estava presente nos antigos, nem faltou desde o início do gênero humano até que Cristo viesse na carne”. Jesus manda amar os inimigos porque tanto amigos como inimigos são filhos do mesmo Pai que fez o sol nascer para todos (Mt 5,45). Manda fazer o bem para todos porque se fizermos o bem só por recompensa que mérito há nisso? (Lc 6,33). Proíbe a poligamia porque no inicio não foi assim (Mc 10,6). Coloca-se acima do sábado porque o homem é mais que um animal (Mt 12,11-12) Deve-se confiar em Deus porque sua Providência é maior (Mt 10,31; Mt 7,11). Jesus diante do mundo é realista e tem uma atitude de compreensão e não de censura. Vê a natureza na sua realidade criacional falando do sol e da chuva (Mt 5,45); do vento (Lc 12,54-55); dos pássaros (Mt 6,26); dos lírios (Mt 6,30); da figueira (Mt 13,28); da colheita (Mc 4,3s); dos espinhos (Lc 12,16-21); da terra que produz (Lc 12,16-21); da ovelha perdida (Lc 15,1); do homem do campo (Mc 4,3s); dos trabalhadores desempregados (Mt 20,1s). Jesus era alguém de sentimentos profundos, relaciona-se com as pessoas abraçando as crianças (Mt 9,36) abençoando-as (Mc 10, 13-16); admira-se da fé de um pagão (Lc 7,9); da sabedoria de um escriba (Mc 6,6); comoveu-se (Lc 7,13); sentiu compaixão (Mc 6,34); sentiu a ingratidão (Lc 7,44-46); a tristeza (Mc 3,5); fi160 cou nervoso (Jo 2,15-17); desabafou (Mc 8,12; Jo 14,9); viveu a amizade com Lázaro (Jo 11,11-23); com Marta e Maria (Mt 21,17; Lc 11,38-42); com algumas mulheres (Lc 8,3); foi ungido por uma mulher (Mc 14,35); conversou com a samaritana (Jo 4,75)... Portanto nele existe tudo o que é autenticamente humano; sentiu fome (Mt 4,2); a sede (Jo 4,7); o cansaço (Jo 4,6); a vida insegura (Lc 9,58); chorou (Lc 19,41); sentiu tristeza e medo (Mt 26,37-38)... Ele afirma-se dizendo: “Eu” e quando ensina diz; “Eu, porém vos digo” (Mt 5). O seu ensinamento não conhece medo, não discrimina ninguém, seja pecadores, paralíticos, doentes (Lc 10,29-37; 7,36-40; 6,24; 15,2; Mt 9,10-11; Lc 13,10-17; Mc 10,46-52). Conhece os pensamentos íntimos (Mc 2,8); sabe do pecado do paralítico (Mc 2,5); do estado da filha de Jairo (Mc 5,39); do homem possuído pelo demônio (Mc 1,23s). Jesus foi portanto original não porque disse coisas novas, mas porque tudo que disse é cristalino e de bom senso. Ele derrubou os muros da separação entre o sagrado e o profano, do legalismo, das convenções, dos sexos, do homem com Deus (Ef 3,14-18); nele “apareceu a bondade e o amor humanitário de Deus” (Tt 3,4). Por isso o cristão não está mais sob a lei (Rm 6,15), mas “sob a lei de Cristo (I Cor 9,21) e é livre (I Cor 9,19). Ele desritualizou a piedade, desteolizou a religião, secularizou os meios da salvação fazendo do outro o elemento determinante para salvação (Mt 25,3146). Em suma, Cristo é em palavras de Dostoiewski esta profissão de fé: “Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito que Cristo; e eu o digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir mais do que isso: se alguém me provar que o Cristo está 161 fora da verdade e que esta não se acha nele, prefiro fica com Cristo a ficar com a verdade”. Diante deste perfil rico e poliédrico vem-nos a pergunta: É possível escrever uma vida completa sobre Jesus? Devemos concordar que sobre Jesus se escreveu mais do que sobre qualquer outro personagem histórico desde o seu nascimento. Esta é uma tarefa muito difícil; de fato não é fácil encontrar um biblista sério que pudesse afirmar que sim. Existem muitos estudos baseados na Sagrada Escritura sobre Jesus e uma infinidade de livros; basta pensar que somente a biblioteca do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, possui mais de um milhão de obras sobre Jesus. Igualmente pode-se dizer do Instituto Bíblico de Jerusalém. Estudiosos vêm se dedicando há muito tempo para descrever Jesus, e sobre Ele encontramos inúmeras facetas, desde um revolucionário, até um guerrilheiro. Hoje com o progresso dos estudos e da arqueologia, foram realizados grandes aprofundamentos sobre a Palestina no tempo de Jesus e com isto podemos conhecer melhor o tempo em que ele viveu, assim como seus hábitos religiosos e rituais. Mas apesar de tudo isto esta é uma tarefa sempre muito desafiadora. Diante deste interesse por Jesus, será por isso que Ele não desapareceu da história como os demais profetas? Podemos afirmar que no tempo de Jesus muitos se apresentaram como profetas ou Messias e faziam também coisas portentosas, mas por que Jesus foi diferente? A resposta é porque Jesus é o Filho de Deus, seus discípulos quando compreenderam isto transmitiram a sua personalidade através das primeiras comunidades cristãs guiadas por eles, as quais viveram uma fé profunda na pessoa de Cristo apesar das contradições e as perseguições. Estas convicções sobre Jesus baseadas na 162 fé das primeiras comunidades cristãs foram-nos transmitidas ao longo dos séculos. Apesar de tudo podemos afirmar que Jesus era um judeu e que foi educado na cultura judaica. Foi um judeu inconformista e crítico que fazia milagres não para realizar prodígios, mas por compaixão e para mostrar sua divindade. Jesus queria uma mudança profunda na sociedade judaica e na religião hebraica; Ele queria Deus próximo dos pobres e dos marginalizados. Por tudo isso ele foi considerado um subversivo político e social. 3. Jesus enviado do Pai na concretização do seu Reino. O ministério de Jesus converge para a proclamação do Reino de Deus. O centro de sua pregação é sempre o Reino "Completaram-se os tempos, esta próximo o Reino de Deus..." (Mc 1,15; Mt 4,17; 9,35). O Reino de Deus não se refere a nenhum território concreto, mas ao poderio da ação divina no mundo para transformá-lo em justo, fraterno e sadio. É algo que vai acontecendo (Mc 9,12). Todos esperavam a vinda do Reino; os fariseus com a observância da lei, os essênios no retiro no deserto, os zelotas pela revolução. Para os "pobres" o Reino indicava justiça (Is 11,3-5; 32, 1-3; Sl 72,4.12-14). Por isso, para Jesus o Reino é para os pobres (Lc 6,20), os pequenos (Mt 5,19), as crianças (Mc 10,14). Jesus não se limitou a anunciar o Reino, mas procurou agir para fazer acontecê-lo. Ele fez exorcismo, "sinal de que o Reino chegou" (Mt 12,28). Ele promove a solidariedade, aproximando-se dos marginalizados, defendendo-os. Condena os egoístas que não se solidarizam, chama de néscio o rico agricultor que deleita com a abundância de colheita (Lc 12,16-21), condena o rico epulão que não partilha (Lc 16,19-31), chama de malditos quem não compartilha as necessidades (Mt 25, 41-45 ), coloca em 163 luz a dificuldade do rico entrar no Reino dos céus (Lc 18,24). Para poder entrar e viver neste Reino, precisa conversão (Mc 1,15), voltar-se para o verdadeiro Deus. Exige um grande esforço pessoal, fazer violência (Mt 11,12), carregar a cruz (Mt 10,38), estar disposto a perder tudo para conseguir a pedra preciosa (Mt 13,45-46), o Reino está na frente da própria família (Mt 10,37). Este Reino é para todos, entretanto, muitos estão atarefados e recusam o convite (Lc 14,16-24). Portanto, o Reino de Deus vai se realizando aos poucos, mediante a conversão, na medida em que as pessoas mudam radicalmente suas mentalidades, suas escalas de valores, sua estima pelo dinheiro, mas tudo isto Jesus apenas não preza para formar um grupo fechado, isolado nos próprios valores, pois os que vivem a dinâmica do Reino devem ser "Luz do mundo, sal da terra" (Mt 5,13-14), como fermento (Lc 13,21), onde toda a realidade deve ser transformada, como uma semente que vai crescendo aos poucos com vigor (Mc 4,30-35) que cresce junto com o joio (Mc 13,24-30). Para Jesus o Reino é destinado aos pobres, sua vinda põe fim aos privilégios (Lc 6,24-25) "Ai de vós...”. O Reino não é resultado de aplicação e vivência ao pé da letra religiosa, nem o resultado de uma prática de culto, de piedade ou de sacrifícios. Não é o Reino do poder, pois ele mesmo recusou o poder terreno (Mt 4,8-10), e fugiu quando o povo queria aclamá-lo rei (Jo 6,15). Disse que seu reino não é deste mundo (Jo 18,36), seu reino não se identifica com as estruturas do mundo, mas está dentro delas. Neste novo Reino o Deus de Jesus é conflitivo, pois para Jesus o Templo não é mais o lugar para encontrar Deus, pois ele encontra-se nos mais carentes e necessitados. Deus não é um Deus dos observantes, mas dos pecadores, por isso muitos verão em 164 Jesus um homem que engana o povo (Jo 7,12-13), um louco possuído pelo demônio (Jo 10,19-21), um sinal de contradição (Lc 2,34-35). Diante de Jesus precisa decidir-se, ele provoca divisão (Lc 12,51-53). Quem não está com ele, está contra ele (Mt 12,30). Para uns ele é pedra viva (1Pd 2,4), pedra angular (Ef 2,20), para outros pedra de escândalo (Rm 9,33). Por tudo isso, Jesus foi condenado como blasfemo porque apresentava um Deus diferente da religião oficial, um Deus não enclausurado no Templo, com leis minuciosas, que contentava-se com sacrifícios de animais. O Deus de Jesus é amigo dos pecadores (Lc 7,36-50), não condena a adúltera (Jo 8,1-11), os publicanos e prostitutas são colocados na frente dos piedosos fariseus (Mt 21,31), o samaritano mal visto é proposto como exemplo e não os sacerdotes e levitas (Lc 10,30-37). A alegria dos anjos nos céus é por um pecador convertido (Lc 15,7), o publicano é bem-visto por Deus (Lc 18,1014). A esmola da viúva agrada mais que as grandes somas dos ricos (Lc 21,1-4). Jesus foi condenado como blasfemo (Mt 26, 65-66), porque invés de dizer para olhar para o céu e descobrir a Deus, mostra-o no meio dos homens, na vida diária e profana. Foi condenado como rebelde político, porque sua concepção de Deus incluía o anúncio do Reino de Deus. Diante disto, constata opressores e oprimidos e vê que esta não é a vontade de seu Deus. Denuncia que há pobreza porque os ricos não compartilham, há ignorância porque os levitas se apossaram da chave da ciência, há opressão porque os fariseus impõem cargas pesadas e os governantes atuam despoticamente; Ele ataca esta hipocrisia. Jesus foi condenando porque estava solapando as bases da concepção política dos dominadores. 165 O Deus de Jesus é diferente não no plano doutrinal, pois teoricamente os opositores a Jesus estavam de acordo com os predicados de Deus (Deus é bom, único, misericordioso), mas isso não significava estar de acordo sobre o conhecimento real de Deus. Portanto, a posição entre Jesus e seus adversários estava na ação. Para Jesus todos tinham direito à vida plena e não apenas um grupo privilegiado. Durante a vida de Jesus, sobretudo na vida pública, sua consciência de ter sido enviado do Pai foi contínua; "não vim por mim mesmo, mas aquele que me enviou é verdadeiro" (Jo 7,28).”Tu me enviaste ao mundo" (Jo 17,18), os discípulos o reconheceram a partir do momento em que têm consciência que Jesus foi enviado. "Estes conheceram que Tu me enviaste" (Jo 17,25), pois foi "O Pai quem me enviou” (Jo 5,23-24.30; 6, 38-39). Jesus é o canal para Deus comunicar-se, ele transmite a vontade do Pai (1Jo 17,8; 15,15 ). É aquele que ordena o que falar (Jo 12,49-50). Ele fez a vontade do Pai (Jo 5,30). Sua palavra tem autoridade porque procede do Pai, ele é o missionário da transparência do Pai. Como enviado do Pai, Jesus foi conhecendo cada vez mais o seu Pai: "Assim como o Pai me conhece, eu conheço o Pai" (Jo 10,15). “O Filho faz o que vê fazer o Pai; e tudo o que o Pai faz, fá-lo também semelhantemente o Filho. Pois o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que faz; e maiores obras do que esta lhe mostrará, para que fiqueis admirados.” (Jo 5,19-20). Por isso, Jesus tem uma nova experiência de Deus, tudo na vida de Jesus (pensamentos, atos...) encontra-se animado pela realidade Deus. O Deus de Jesus não é aquele dos adoradores oficiais, submetido aos rituais, mas um Deus próximo e familiar, ao qual se recorre com a confiança de uma criança, é o Deus que procura o pecador, que vai atrás da o166 velha perdida, que se alegra com a conversão. Por isso, ele tem uma atitude filial perante Deus. Ele o descreve como seu Pai e deve-lhe afeto e obediência e tem consciência que o Pai deu-lhe uma missão para cumprir. Pela primeira vez encontra-se uma invocação ao Pai feita por uma pessoa concreta no ambiente Palestino (A invocação de Pai, no Antigo Testamento, referia-se sempre a paternidade divina sobre todo povo de Israel Jr 31,9; Is 63, 16). Jesus chama a Deus de ABA (Paizinho), um diminutivo carinhoso pertencente à linguagem infantil, doméstica. Os evangelhos põem 170 vezes esta expressão nos lábios de Jesus e embora a palavra Abá em Aramáico aparece uma vez em Marcos (14,36), os estudiosos afirmam que sempre que os evangelistas usam a palavra grega "Pater" estão traduzindo a palavra aramaica Abá. Esta expressão revela a profundidade de relação com Deus. Este relacionamento íntimo com o Pai, traduzia-se em gestos concretos de alegria e confiança: "Oh Pai eu te dou graças porque me ouvistes, eu sei que sempre me ouves" (Jo 11,41-42). Digno de menção é a confiança de Jesus expressa na oração sacerdotal (Jo 17). Ele manifestou também a confiança em Deus, durante a sua agonia no horto das Oliveira. “Faça-se a tua vontade" (Mc 14,36). A comunhão de Jesus com o Pai expressa a imagem da bondade do Pai, embora “A Deus ninguém viu" (Jo 1,18), em Jesus Deus se fez visível, pois "Ele é a imagem do Deus invisível" (Cl 1,15). "Quem o vê, vê o Pai" (Jo 14,9). “Ele é o único caminho para chegar ao conhecimento de Deus, "se me conhecêsseis, conheceríeis também o Pai" (Jo 14,6-7). Experimentar Jesus é experimentar Deus, ele é o sacramento do encontro com Deus, o único mediador "um é o mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo" (1Tm 2,5). Em Jesus é-nos comuni167 cada a presença amorosa e clemente de Deus e nele experimentamos a proximidade de Deus. Seu relacionamento com o Pai manifestou o amor do Pai, pois sua experiência é um contínuo permanecer no amor do Pai (Jo 15,10). Ele participa plenamente da vida e conhecimento do Pai (Jo 1,18 ; 5,19-20). Por isso Jesus tornou-se o portador do amor do Pai aos homens, nele "apareceu a bondade de Deus, nosso Salvador, e seu amor para com os homens" (Tt 3,4), mostrando assim a ternura e a solidariedade de Deus. O Deus que se revela em Jesus é um Deus que comove-se com a miséria humana (Lc 15,20). O comportamento de Jesus é reflexo do agir do Pai; ele se comove diante do enterro do filho único de uma viúva (Lc 7,12-15), tem piedade dos cegos (Mt 20,34), dói-lhe a fome do povo (Mt 15,32), ou o seu desamparo (Mt 9,36), tem compaixão dos enfermos (Mt 14,44), chora por Lázaro (Jo 11, 33.35.38) e sobre Jerusalém (Lc 19,41-42). Jesus é o servidor de todos "o Filho do homem veio não para ser servido..." (Mt 20,28); "Estou no meio de vós como quem serve" (Lc 22,27). Abre-se aos outros, chega ao ponto de às vezes não ter tempo para o descanso (Mc 6,31-33) e nem mesmo para alimentar-se (Mc 3,20). Ele recebe a todos que a ele se achegam, come com os pecadores (Mt 9,10-11), acolhe os desprezados (Mt 10,29-37) e as prostitutas (Lc 7,36-50), aceita o convite dos fariseus (Mt 23,13-37), come com ricos (Lc 19, 1-10). Ele é tudo para os outros; mistura-se com cegos, os paralíticos, os leprosos, etc. Lava os pés dos discípulos (Jo 13,3-5). Jesus manifesta a misericórdia do Pai, convida os pecadores e os publicanos à mesa (Lc 14,16-24), transmite uma nova imagem de Deus com suas parábolas do Filho Pródigo, da Ovelha Desgarrada e da Moeda Perdida. Ele mesmo afirma que veio chamar os pecadores à conversão (Lc 5,32), perdoou a adúltera (Jo 8,11); o po168 bre paralítico (Mc 2,5-11); os seus inimigos na cruz (Lc 23,34) e morreu para nos perdoar "Isto é meu sangue derramado para remissão dos pecados" (Mt 26,28; Cl 1,19-20; 1Jo 2,1-2). Ele se solidariza com os marginalizados que eram chamados de "Pobres" ('Am ha' arets), que em aramáico significa "O povo da terra". Na Palestina a divisão de classes ocorria conforme a atitude religiosa de cada um. Apenas uma minoria conhecia e cumpria a lei, os demais eram desprezados, considerados ignorantes, um nada. Entre estes estavam os cobradores de impostos, os pastores, os tecelões, os barbeiros, os açougueiros, os curtidores de pele, as prostitutas, além dos mendigos, dos escravos e dos ladrões. Para os sacerdotes estes eram uma "corja que ignoram a lei, são uns amaldiçoados" (Jo 7,49). "Nascidos todos em pecado" (Jo 9,34). Para os essênios os cegos, os paralíticos, os coxos, os surdos... não podiam ser admitidos na comunidade. Jesus se solidariza com estes "fez-se pobre" (2Cor 8,9), não tendo um lugar para reclinar a cabeça (Mt 8,20), sendo amigo dos cobradores de impostos, das prostitutas, dos leprosos, das viúvas, dos pagãos, etc. Rompe as convenções sociais, não respeita a divisão de classes, não teme contrair as impurezas legais, preocupa-se com os doentes, os aleijados, os possessos e mistura-se com os desacreditados. Esta sua opção para os pobres é tão importante que ela se torna o distintivo de sua missão, "os cegos vêem, os surdos ouvem, os coxos andam...” (Mt 11,4). Ele mesmo se hospeda na casa de Simão, o leproso (Mt 26,5). Vai ao encontro dos samaritanos desprezados pelos judeus e considerados hereges (Jo 4,39-42), louva o gesto de agradecimento de um samaritano (Lc 17,11-15) e mostra o samaritano como exemplo a ser seguido (Lc 10,30-37). Jesus tem compaixão dos marginalizados (Mt 11,28), anima-os, comunica-lhes a especial predileção 169 de Deus (Lc 6,20). Para Ele os últimos serão os primeiros (Mt 20, 1-16), os pobres das encruzilhadas participam da festa (Mt 22,1-10), acolhe os fracos, os indefesos, os desesperados... Esta atitude de Jesus era criticada pelos judeus "justos", basta lembrar quando Jesus chama Mateus e vai comer em sua casa, recebe logo a reação: "Come com cobradores de impostos e pecadores" (Lc 5,30). Estes murmuram também quando vai à casa de Zaqueu (Lc 19,5-7), taxam-no de comilão e beberão, amigo de publicanos e pecadores (Mt 11,19). Dizem que ele é um criminoso (Lc 22,27), um impostor (Mt 27,63), enganador do povo (Jo 7,47), pecador (Jo 9,24), possuído por demônio (Jo 10,20), porque era um escândalo afirmar que os pecadores eram mais benvisto por Deus que os piedosíssimos fariseus. (Lc 18,9-14 ; Mt 21,31). Por isso, Jesus justifica-se diante dos que o criticam "não são os sadios que necessitam de médicos...” (Mc 2,17), "os pecadores... os precederão no Reino de Deus" (Mt 21,2832). Compara-os com vinhateiros rebeldes contra o dono da vinha (Mt 20,1-16). Justifica que Deus é pai bondoso (Lc 15, 11-32 ). Deus é bom e tem compaixão (Mt 20, 116). 4. Jesus, homem de oração. A intimidade de Jesus com seu Pai se mostra também na oração. Jesus pertenceu a um povo que sabia rezar, apesar da oração naquele tempo ser muito formal. Ele participava do culto sabático e rezava na comunidade (Lc 4,16). Conhecia bem as escrituras. Rezar nas refeições era coisa normal (Mt 14,19; 15,36; 26,26). Ele era também homem de oração pessoal (Mt 4,1-11 ; 27,46 ; Mc 15,34 ; Lc 23,46). Ele rezava nos momentos de decisão: na eleição dos doze (Lc 6,12-13), antes de 170 fazer um milagre (Mc 29 ), rezava na solidão (Mc 1,35; 6,46; 14,32; 5,16; 6,12). Rezou no Getsêmani (Mc 14,3536 ), no deserto (Lc 4,1-13), na cruz (Mt 27,46). Falou sobre a oração, sobre sua eficácia, "Pedi e recebereis" (Jo 16,24). Ensina que o Pai sempre dá coisas boas (Mt 7,11; Lc 11,5-13). Desmascarou alguns tipos de oração "Não multipliqueis as palavras... (Mt 6,7-8); "Não sejais como os hipócritas que gostam de rezar de pé nas sinagogas...” (Mt 6,5-6). Não tendo-se por "justos e desprezados os outros" (Lc 18,9), ou como os escribas "que simulam longas orações...” (Mc 12,38). Pediu que rezasse com o coração reconciliado com o irmão (Mt 5,23-24). Jesus no relacionamento com os seus discípulos é apresentado na tradição evangélica como mestre ou rabi, o que confirma a sua função magisterial. Ele ensinava nas Sinagogas, no recinto do Templo e ao ar livre; este é um dado histórico, visto que depois da ressurreição Jesus é proclamado como Senhor. Ele perambulava na Galiléia e Judéia seguido de um grupo distinto dos seus parentes e da multidão anônima; este grupo é denominado de discípulos (Mathetai), ou também apóstolos, ou ainda os doze. Estes têm um relacionamento especial com ele. Alguns são originários de Betsaida da Galiléia (Jo 1,44; 12,21) e de Cafarnaum (Mc 1,29); são pescadores de Tiberíades, são publicanos, simpatizantes dos grupos empenhados na reforma religiosa e restauração nacional (Simão Cananeu, Judas Escariotas) e até Pedro Barjonas é tido como um hipotético membro deste grupo (ele tinha uma espada no momento da prisão de Jesus). Os discípulos formavam, portanto um grupo heterogêneo, provenientes da classe média, alguns autônomos, outros empregados e alguns até casados como Pedro (Mc 1,30). Jesus chamou seus primeiros discípulos Pedro, André, Tiago, João a segui-lo e a tornarem-se pescado171 res de homens. Os discípulos levavam uma vida comum a do mestre, ouvindo-o e imitando-o, reuniram-se em torno Dele não para estudar a lei, mas para compartilhar a missão com ele. Segui-lo exigia radicalidade, por isso eles recebiam instruções, uma espécie de vademécum para a missão (Mc 6,6-13). Dentre os doze discípulos existia também um grupo de mulheres (Lc 8,13) e alguns discípulos simpatizantes (Jo 6,60-66). Durante o seu ministério Jesus realizou muitos milagres, por isso a imagem que os evangelhos apresentam dele é inseparável de uma moldura taumatúrgica feita de curas, expulsões de demônios, multiplicações de pães e peixes, ressuscitações... Embora isso, a tradição extra-evangélica silencia sobre a atividade taumatúrgica de Jesus, nem mesmo Paulo faz referências. As fontes judaicas, embora atestam a lembrança prodigiosa de Jesus, são vistas com reservas por serem tardias e a autenticidade destas é discutida. Quanto a credibilidade histórica das narrativas dos milagres de Jesus, deve-se recorrer a metodologia da crítica histórica e literária. Diante desta a afirmação do exorcismo de Jesus (Mt 12,28) no contexto de discussão com os judeus remonta com grande probabilidade a Jesus. Quanto à resposta de Jesus aos discípulos de João Batista (Mt 11,3-6): “Ide e contai a João o que vós ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista...”, é possível que seja uma redação que reflita o modo de pensar e exprimir da comunidade cristã ao representar a figura do Messias como: “Aquele que deve vir” (Is 26,19; 29,18-19; 35,5-6;61,1). Em conclusão, os evangelhos dão fé da existência de uma tradição na qual se conservam algumas palavras de Jesus que pressupõem a sua ação taumatúrgica sob forma de exorcismos e curas, contudo a documen172 tação assegura o mínimo de credibilidade histórica de seus milagres. A convicção de que Cristo é Filho de Deus emerge de seu modo de falar e agir. Ele recusa honrarias (Jo 6,14-15 ); ele amigo dos pobres e ensina com autoridade (Mc 1,22). Seu modo de pregar é diferente daquele dos profetas do Antigo Testamento, pois eles falavam em nome de Deus. "O Senhor me disse", "Oráculo do Senhor", invés disso Jesus diz de sua própria autoridade, tem o "Eu enfático", "Eu ordeno". "Eu vos digo", "Eu te ordeno", "Eu quero" (Mc 2,11; Lc 7,14, Mt 8,3). Estas são expressões que não encontram analogia no Antigo Testamento. Jesus se coloca no centro da mensagem e exige adesão a ela em nível superior àquela que liga os membros de uma mesma família. Salva-se quem aceita, a sua Palavra (Mc 16,16), a sua pessoa (Mt 10,32-33). Acolhe-lo é acolher o Pai (Mc 9,37), e desprezá-lo é desprezar o Pai (Lc 10,16). Ele se coloca como Juiz no final (Mt 25,3146), acima de Jonas e Salomão (Mt 12,41-42), acima do Templo (Mt 12,6), acima dos anjos (Mc 13,27). Jesus contesta o valor da tradição do judaísmo que regulava o cumprimento da Lei divina. Ele cura em dia de sábado (Mc 3,1-5 ; Lc 13,10-17), permite aos apóstolos recolher trigo para se alimentarem (Mc 2,23-28). Dizse Senhor do sábado (Mc 2,28), comporta-se diferente diante das abluções (Mc 7,1-23). Sente-se Superior à lei de Moisés, proibindo não apenas juramentos falsos (Mc 30,3), mas qualquer juramento (Mt 5,34) . Moisés permitia o divórcio (Dt 24,1), ele o exclui (Mc 10,2-12). Ele acrescenta algo a mais, como no caso da proibição de adultério, acrescenta o pensamento desonesto (Mt 5,28). Na proibição do homicídio, acrescenta o ódio (Mt 5,2124). Abole a lei do Talião (Ex 21,23-25; Dt 19,21), (Mt 5,38-40). Perdoa os pecados de Zaqueu (Lc 19,1-10); da mulher adúltera (Jo 8,3-11); do bom Ladrão (Lc 23,43 ), 173 da pecadora na casa de Simão (Lc 7,36-50); do paralítico (Mc 2, 1-12). Se Jesus não tivesse convencido de sua divindade, não poderia comportar-se assim. Portanto ele deixou claro por palavras e gestos que é o Filho de Deus. Em suma, podemos afirmar que o comportamento de Jesus suscitava pergunta sobre sua identidade.” Quem é este?” (Mc 4,41) “De onde vem?” Alguns dos seus comportamentos suscitaram a questão de sua origem. Basta lembrar a sua autoridade diante da lei. Para os judeus a lei do Sinai é a realidade Sagrada e intocável, ela contém a divina e imutável vontade de Deus revelada por Moisés. Jesus diante da Lei aceitou certos pontos, mas criticou e corrigiu outros (Mc 2,27), repouso sabático, a indissolubilidade do matrimônio, na Lei do Talião, a pureza legal... E ao fazer isto Jesus não justificou com nenhum raciocínio teológico, nem invocou a autoridade de um legislador famoso, mas falou em nome próprio se identificando com a Palavra de Deus. Ele diz: "Eu porém vos digo” ... Posiciona-se acima de Moisés, deixa de ser um Rabi que recebe a sua autoridade só de Moisés e coloca-se no lugar de Deus. Atribuir autoridade superior a Moisés era algo impensável, isto suscitava escândalo e medo na multidão, por isso a multidão ficava com admiração diante dos seus ensinamentos (Mc 1,22-27 ; 2,12) e frente a isso ninguém ousava perguntar quem ele era (Mc 1,22). Jesus procurava relacionar-se com os pecadores, comia com eles e oferecia-lhes em nome próprio o perdão (Mc 2,7), algo que só Deus pode fazer (Lc 7,49). Por isso é tido como blasfemador (Mc 2,7). Ele tem plena autoridade sobre os espíritos imundos, tem a consciência de que é mais forte que satanás (Mc 3,27), suscita temor e fascínio operando milagres. (Lc 8,25). 174 O comportamento de Jesus era questionante também na relação entre Ele e o grupo de discípulos. No judaísmo os encarregados da interpretação e ensino da lei de Moisés eram os doutores da lei que tinham escolas e faziam discípulos. Assim, mestre e discípulos viviam juntos alguns anos, até que o discípulo fosse diplomado, tornando-se Rabi e tivesse os próprios discípulos. Jesus também era Rabi e tinha discípulos, porém não tinha estudado em nenhuma escola rabínica (Jo 7,15). Ele ensinava com autoridade, não apoiando seus ensinamentos na autoridade de um famoso Rabi, nem sob a sombra de Moisés, a lei nem fazia parte, entretanto o discípulo sabia que era discípulo (Mt 23,8). Esta originalidade é ainda mais clara no sentido de que não era o discípulo que escolhia o mestre, mas vice-versa e ao escolher fazia exigências duras como deixar a família, os bens, viver uma vida nova (Lc 9,60). O discípulo se ligava existencialmente a ele, dependia dele e experimentava na proximidade com ele a presença de Deus. Outra maneira diferente do comportamento de Jesus foi quanto a atribuição de uma função única para si em relação ao plano de Deus e sobre a humanidade. Ele apresenta-se como o que anuncia a aproximação do Reino de Deus e o inaugura (Mt 12,28). Este reino chega associado à sua pessoa e ocupa o lugar central de sua mensagem, pois não é possível chegar a Deus sem a comunhão com Ele (Lc 12,9). Ele não só anuncia a salvação, mas é a salvação em pessoa; Deus está próximo porque ele se encontra presente Nele, entra em contato com Deus e seu Reino, Nele se encontra a graça de Deus e seu juízo, ele é o Reino, o amor de Deus. Ele é mais que Jonas, mais que Salomão (Mt 12,41-42). Faz tudo isto sem arrogância, sem buscar o poder, a fama, a riqueza, pois vive um estilo de vida humilde sendo pobre e não tendo casa (Lc 22,27). 175 A sua missão ele a desempenhou com segurança. Sua palavra como a dos escribas nunca se limita a uma explicação das escrituras, elas têm caráter imediatista; ele sabe de modo inequívoco o que Deus quer e o que anuncia. Não é a Sagrada Escritura a fonte última de sua convicção, do conhecimento da Palavra de Deus e de sua missão. Ele não apela para nenhuma visão ou revelação pessoal, mas encontra-se diante de uma intuição imediata, ou diante de um conhecimento de Deus por conaturalidade (Dupont). Por fim o seu modo de rezar impressionava os discípulos, pois pela relação filial que cultivava com Deus, ele falava com Deus como se falasse com o Pai (Kasper). Chama Deus como em "meu Pai" e "vosso Pai", visto que tinha uma consciência de estar numa relação íntima com Deus. Ele revela um modo seu todo novo de entender Deus. Vivia a relação filial na obediência, uma obediência por antonomásia (Fl 2,6-11). A experiência que tinha com Deus era a fonte de sua autoridade diante da lei, das respostas que deixava estupefata as multidões e tudo isto o fazia como alguém totalmente desraizado do seu próprio eu, numa atitude de serviço. Ele pertencia a este mundo, mas em meio a ele era totalmente um outro (Bornkanm). 23. O HOMEM JESUS Depois da ressurreição veio a pergunta: Quem é afinal Jesus de Nazaré. A comunidade primitiva usou mais de 50 nomes, ou títulos para defini-lo, somente o título Cristo é empregado 500 vezes, Senhor 350; Filho do Homem 80; Filho de Deus 75 e Filho de Davi 20, além dos denominativos como profeta, mestre, justo, santo, bom, Salvador... Esta busca da individuação do sig176 nificado e realidade de Jesus de Nazaré foi denominada de Cristologia. Desde o início o modo de agir de Jesus em nome de Deus especifica a consciência de quem Ele é. Basta lembrar que Ele falava de forma diferente sobre Deus a ponto de suscitar para os judeus uma blasfêmia (Mc 2,7; Jo 5,18). Ele agia perdoando os pecados, modificando a lei (Mc 2,7; Lc 7,49); chamando um grupo de discípulos para aderir a Ele (Lc 12,8-9); fazendo exigências (Lc 14,26-27.33); curando doenças (Mt 8,16-17); operando milagres (Mt 12,38); suscitando admiração (Lc 2,47; 4,22-23; Mt 2,12; Mt 7,27-28); tendo autoridade (Lc 4,31); tendo sua fama espalhada por todos os lados (Mt 4,24); todos queriam ouvi-lo (Mc 3,7-8; Lc 8,37). Alguns escandalizavam dele (Mt 13,57), pois era um simples filho de carpinteiro (Mc 6,3); um beberrão (Mt 11,19); um blasfemo (Mc 2,7); um possesso (Mc 3,20-23); um subversivo (Lc 23,2); um impostor (Mt 27,63); um herege (Jo 8,45). Tudo isso dá notas de uma cristologia negativa, devido às suas atitudes. Alguns admiravam-se dele chamando-o de médico (Lc 5,17; Mt 8,17), Rabi (Mc 9,5; 11,21) não como um biblista do Templo (Mt 7,29; 5,21-26-27.30.33-37), ou como um profeta (Mt 21,11; Lc 24,19). Ele tinha a consciência de ser mais que um profeta (Mt 12,41), ou o Filho de Davi (Mt 1, 2-17; 9, 27). Mas como Jesus entendia a si mesmo? Ele possuia uma consciência clara de que tinha uma relação única com Deus e como seu Filho, embora nunca tivesse utilizado a expressão “Filho de Deus”. Só os demônios (Mc 3,11; 5,7), as vozes celestes no batismo e transfiguração (Mc 1,11; 9,7) e Pedro (Mt 16,16s) afirmaram ser Ele o Filho de Deus. Jesus usou duas vezes a expressão “Filho” (Mc 13,32 ; Mt 11,27) mas este títu177 lo não possuía conotação messiânica, contudo para João virá indicar a relação íntima do Filho com o Pai (Jo 5,18; 10,30; 19,7), mas tudo foi elaboração teológica do evangelista. Da mesma forma, a expressão “Filho do Homem” aparece nos sinópticos ou num sentido das esperanças apocalípticas (Mc 8,38 ; 13,26; 14,62), ou num contexto de parusia, mas de sofrimento, de morte e de ressurreição (Mc 8,31; 9,31; 10,33), ou ainda com o poder de perdoar os pecados e de “Senhor do sábado” (Mc 2,10; 2,28), mas tudo isso foi trabalho cristológico da comunidade primitiva que à luz da ressurreição, identificou Jesus com o Filho do Homem. O mesmo vale para título de Messias ou de Cristo, o qual no tempo de Jesus se revestia de três sentidos: a) rei libertador político; b) Como um sumo sacerdote da casa de Aarão; c) Como Filho do Homem vindo sobre as nuvens com poder. Jesus não se identificou com nenhuma dessas figuras e a confissão dele diante do Sinédrio (Mc 14,61) exprime a fé da comunidade primitiva como verdadeiro libertador, assim como a confissão de Pedro em Cesaréia (Mc 8,29) é expressão da fé comum da comunidade que Pedro em nome desta exprimiu após a ressurreição. Não são os títulos que criaram a autoridade de Jesus, mas sua autoridade que criaram os títulos. A ressurreição foi uma reviravolta, desencadeou um processo cristológico, ela radicalizou a pergunta e a admiração dos discípulos: Quem é Jesus? Por isso os primeiros cristãos tomaram títulos e imagens de seu mundo cultural seja judeu ou grego e ampliaram o horizonte de compreensão de Jesus Cristo. Assim, para a comunidade palestinense Jesus é o Cristo, o Messias esperado para trazer a salvação (Lc 24,26) e entronizado como Messias- Cristo pela ressurreição (At 2,36; 178 2,20-24; 3,13-15; 5,30-31). Já para os judeus-cristãos da diáspora, Jesus e o novo Adão e Senhor; estes influenciados pelo mundo helênico invocavam Jesus como Senhor, que desempenha funções divinas, que rege sobre o Cosmos e os homens (I Cor 1,2; II Cor 5,17; Rm 10,13; Rm 5,12-21). Por fim, para os cristãos helenistas, Jesus é o Salvador, a cabeça do Cosmos, o Filho unigênito de Deus. Para estes com a cultura grega, o título Salvador dizia muito, pois o Imperador era considerado o Salvador. Por isso, Jesus é o Salvador do mundo (Jo 4,42; I Jo 4,14); é o Filho de Deus (Rm 8,3); o Senhor Absoluto (Flp 2,6-11; Cl 1,15-17); o cabeça (Cl 2,9); é tudo em todos (Cl 3,11). Alguns títulos cristológicos que referenciamos e outros mais não lembrados (princípio e fim de tudo, a porta, o pão verdadeiro, a água, o bom pastor, a paz, o poder de Deus, a glória de Deus, o sim de Deus, o esplendor do Pai, o cordeiro imaculado, a pedra, o maná... decifram a figura de Jesus que os apóstolos conheceram e exaltam o homem Jesus, assim como fundamentam sua autoridade e soberania. O significado do nome de Jesus, do hebreu Yehoshua, abreviado na linguagem coloquial para Yeshua (Ye) e forma abreviada do nome próprio hebreu de Deus (YHWH) e Shua palavra hebraica que significa salvação ou também do latim salvamento (saúde, bem estar). Portanto, Yeshua significa Deus é salvação, saúde, bem estar. Jesus foi o proclamador, Jesus aponta sempre não para si próprio, mas para Deus... os discípulos não são chamados a pregar a pessoa de Jesus, mas sua mensagem. Devem pregar o centro que Yeshua pregou e (arrependimento e perdão dos pecados) (Lc 4,18). Para Lucas Jesus não é o caminho, mas aquilo que ele ensinou. 179 Na fonte Q “as palavras de Jesus”, um dos escritos mais antigos ou talvez o mais antigo da cristandade, um documento inserido entre Mateus e Lucas, Yeshua, não se torna o proclamado, mas o proclamador. Jesus é o meio de salvação, mas não por intermédio de sua morte redentora que não é mencionada na Q, mas pela revelação do Reino e do caminho para participar deste Reino”(Ivan Havener, Y the sayinjs of Jesus, Wilmingtor, Michael Glazier, 1187 pg 71). Por isso a salvação encontra seguindo aquilo que Jesus ensinou. O nosso conhecimento sobre Jesus histórico tem de basear-se no Kerigma, numa análise crítica do texto querigmático, embora poucos cristãos estariam dispostos a proclamar as afirmações de Nicéia (325) ou de Constantinopla (381). Para compreendermos aquilo que Jesus dizia, temos que compreender suas declarações dentro dos padrões e categorias do perímetro judaico. Não fazer isso, seria conferir o nosso significado estrangeiro às suas afirmações e atos ao invés de extrair deles o significado que desejam nas pessoas. Faríamos “Eiseigesis” ao invés de “Exegeses”. Jesus era judeu praticante, não aboliu a Torá, mas aperfeiçoou-a (Mt 5,17). No tocante ao cumprimento da lei pode-se descrever Jesus como “Judeu da reforma”, o judeu mais influente e radical que o judaísmo jamais produziu. Jesus interpretou para o dia-a-dia a Torá, sua halakkot se encontra encrostada no Evangelho. Ele aplicou a lei à vida diária, moldou as regras de conduta, isto é halakkot. Jesus foi halaquista. No tempo de Jesus a interpretação e aplicação da Torá passava por grandes e contínuas transformações. Os rabis tinham a expressão para designar as decisões haláquicas que ia além das exigências da Torá. Jesus foi um hasid, isto é, alguém cuja filosofia de vida 180 foi não se satisfazer com o mínimo de conduta, mas foi além da letra da lei, ele praticou o hased, o amor altruístico, a benevolência; ele praticou o “hasede” na sua vida diária. Teve uma vida extraordinariamente especial, por isso ele é a quintessencialmente judeu. A significação de que Yeshua estava na sua humanidade e não na sua masculinidade foi afirmada pelo Concílio de Nicéia (325): “Et homo factus est” (se fez humano), e não “et vir factus est” (se fez masculino), por isso a imagem de Jesus nos evangelhos reflete os traços psicológicos masculinos e femininos. Antes de tudo observemos que dividir diversas características humanas em masculino e feminino como se as mulheres tivessem uma série delas e os homens outras, é cientificamente infundado. Presumia-se que o homem seja sensato e tranqüilo e as mulheres pessoas de sentimentos e emoções; os homens firmes e agressivos, as mulheres mansas e pacificas; os homens defensores da justiça, as mulheres da misericórdia; os homens têm orgulho e autoconfiança, as mulheres humildade e recato; os homens provocadores, as mulheres que necessitam de segurança... Jesus foi sensato e tranqüilo. Quando foi intimado a dar um parecer se era lícito pagar imposto a César: “Dai a César....” (Lc 20,20-26). Quando queriam precipitá-lo do pináculo (Lc 4,28-30) sua reação foi de calma. Sentimental e emotivo – na ressurreição do filho da viúva de Naim. Ele agiu com sentimento e diante de Lázaro morto ele chorou (Jo 11,33-36). Firme e agressivo – diante de Pedro disse: “Afastese de mim satanás...” (Mc 8,33). Em outros momentos foi firme: “Vim trazer fogo” (Lc 12,49); “A espada” (Mt 10,34); “Só os violentos conquistam o Reino dos Céus” (Mt 11,12); Ele denuncia a hipocrisia, chama os fariseus 181 de raça de víboras (Mt 23,13,33). Expulsa os vendilhões (Mc 11,15-17). Meigo e pacífico – usa a imagem feminina da galinha para descrever a si próprio (Lc 13,34); “Sou manso e humilde....” (Mt 11,28-30); amante da paz (Lc 7,50; 10,5-6; 6,29). Justiça e misericórdia – veio para cumprir a lei (Mt 5,17-19); no fim do mundo os justos brilharão (Mt 13,41-43; Mt 25,31-33.46) Não condenou a mulher adúltera (Jo 8,7). Proclamou bem-aventurado os misericordiosos (Mt 5,7); pediu o perdão (Lc 6,36-37); ensinou perdoar sempre (Mt 18,21-22; Lc 15,20-24); a amar os inimigos (Mt 5,43-44; Lc 23,33-34). Auto confiança – “Deixa-a . Por que a molestais? Ele me fez uma boa obra...”. (Mc 14,6-9); “Eu vos digo se eles se calarem, as pedras gritarão” (Mt 21,8-10); “O Filho do Homem estará sentado à direita de Deus TodoPoderoso”(Lc 22,67-70). Diante de Pilatos: “Meu Reino não é deste mundo ... “Eu sou Rei...” (Jo 18,33-37; 19,10). Humildade – “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração...” (Mt 11,29). “Todo aquele que se humilhar será exaltado” (Lc 14,7-11; 18,9-14). Recato - quando deres uma esmola,... quando jejuares... (Mt 6,1-6). Responsável pela segurança – “Quem vem a mim nunca terá forme” (Jo 6,35); “Não leveis alforje” (Lc 10,4); “não preocupeis com o que vestir” (Lc 12,22). Necessidade de segurança – “As raposas do céu têm suas tocas...” (Lc 9,58); “Meu Deus... porque me abandonaste” (Mc 15,34). Organização – “a toda cidade onde ele iria passar” (Lc 10,1); “senteis em tronos, para julgar as doze tribos de Israel” (Lc 22,30). 182 Nossa fé em Cristo passa necessariamente pela sua humildade. Nosso encontro com ele é o encontro com um Homem. Para muitos Jesus é um ser extraordinário, onde a sua humanidade evapora-se. Jesus não partilhou a existência humana. Dotado de toda perfeição parece um pré-fabricado, um pródigo. Desde os tempos apostólicos teve dificuldade de aceita-lo como Homem, tinha aparência de Homem. João combateu esta heresia (I Jo 4,2-3). Entretanto, nada de humano lhe é estranho. Tinha fome (Mt 4,2), sede (Jo 18,28), dormia (Mc 4,37), chorava, tinha amigos (Jo 11,3) não ignora a morte (Mt 20,18-19; Lc 12,50), sentiu medo (Mc 14,34), tinha sentimentos (Mt 26,38). Era homem do povo, um carpinteiro (Mc 6,3) que viveu num país ocupado por estrangeiros, dominado por zelotas. Jesus não foi zelota, mas teve um seu discípulo, Simão, o Cananeu. É provável que outros tinham sido zelotas, por exemplo Judas, o qual traiu Jesus após constatar que Jesus concebia de modo diferente a função messiânica. A questão é que Jesus esteve em contato direto com a questão zelota. As aspirações mais ardentes do zelotismo pareciam se concretizar em Jesus. Sua entrada triunfal em Jerusalém foi ocasião que os inimigos encontraram para denuncia-lo aos romanos como um zelota e serviu para fortalecer o entusiasmo messiânico tão inflamado. De fato, Lucas resume em três as acusações que os judeus fizeram de Jesus ao tribunal de Pilatos: um revolucionário, proibia de pagar impostos a Roma, e fazer-se Rei (Lc 23,2). Jesus era um homem surpreendente, todos admiram suas palavras, não tinha freqüentado escolas (Mt 22,23; Mt 21,24-25). Gostava do silêncio, freqüentava sinagogas e o Templo, mas não oferecia sacrifícios. Surpreendia os judeus com a maneira com que tratava os 183 pecadores (Lc 7,36-50; Jo 8,1-11) Hospedou-se na casa de Zaqueu (Lc 19, 1-10). Quanto à sua divindade Jesus jamais falou “sou Filho de Deus” ou “Sou Deus”, assim como não insistiu em sua messianidade. Entretanto os evangelhos o chamavam Filho de Deus (Mc 1,1). Filho de Deus para o Israelita tinha um sentido quase banal. A Sagrada Escritura o atribui aos anjos (Sl 29,a; Jo 2,1), ao povo de Israel (Ex 4,22; Os 11,1), ao Rei (Sl 89,27 e também ao Messias (Sl 11,7). Nenhum personagem é tão falado, estudado e lembrado em vida e depois da morte como Jesus . Nenhum livro foi exposto tanto à crítica quanto os Evangelhos que falam Dele e é a sua fonte principal. Sua vida foi singular e um parodoxo, tentam matá-lo quando ainda criança de berço, o perseguem durante a sua vida pública, respondem com pedras à sua lógica, e por fim pregam-no numa cruz, para Dele livrar-se, mas o temem também quando morto e colocam estupidamente os guardas no sepulcro para o guardarem. Depois de sua morte, no curso de 20 séculos, uma soma ininterrupta de inimigos continuou a perseguição sempre mais refinada, atormentando e perseguindo os seus seguidores, renegando o seu evangelho, suas obras. Mas depois de 20 séculos Ele continua em nosso meio como um sinal de contradição. Por que? Porque junto com o número de seus perseguidores. Existem também um grupo sempre mais crescente de amantes apaixonados, de Sua pessoa e de sua mensagem, que vivem e morram por ele em todo o mundo. A mesma coisa se dá com o seu evangelho, todas as anatomias e sofisticações da crítica não conseguiram dilacerá-lo. 184 Hoje assistimos infelizmente com o coração triste uma crise de fé, uma indiferença quanto ao seu ensinamento que também é presente entre seus seguidores e que se tornou uma práxis. Trata-se da fé Nele que é sacudida pela crise do pensamento. Mas esta crise de fé tem seus precedentes já no passado, abrindo-se abre no século XVIII, onde a preocupação dos autores deste período era de eliminar da vida de Jesus o elemento sobrenatural e reduzí-lo a um mito (Strauss), de tê-lo como um homem de alto sentimento moral (escola liberal), como um pregador da paternidade e Deus e da fraternidade (Harnack), como um homem encantador (Renan), ou como um obssessionado do fim do mundo (Scheweitzer). Mas depois de um itinerário aventuroso de 20 séculos a crítica confirma substancialmente a doutrina católica sobre a pessoa de Jesus e seu Evangelho. Portanto , o Jesus Praedicans e o Christus Praedicatus, o Jesus de Nazaré é o Cristo kerigmático, é uma mesma realidade. Podemos, portanto ter os evangelhos como documentos históricos, para encontrar o Cristo, cuja existência é também atestada por fontes profanas bem notáveis: tais como: Svetonio, Plinio, Flavio Josefo e sobretudo Tácito que nos seus Anais insere Cristo na história de Roma com tais afirmações: “O autor desta denominação (cristãos), Cristo sob o imperador Tibério foi condenado ao suplício pelo procurador Poncio Pilatos...”. Por isso mesmo Schwietzer disse que de “poucas personalidades do mundo antigo possuímos tantas notícias e discursos, seguramente históricos quanto a de Jesus”. Mas a prova mais verídica da historicidade de Jesus é a Igreja uma instituição de 20 séculos. Esta revolucionou o mundo, criou um direito, uma mística, uma arte admirável, uma cultura, uma civilização que se encarnou em todas as raças e sobre toda a terra. A Igreja 185 e o cristianismo fazem parte das civilizações de quase todo o mundo, também se em alguns lugares existem perseguições aos cristãos. Isto demonstra não só a existência histórica de Jesus, mas também a sua presença operante nos séculos. Os textos referem-se as origens de Jesus afirmando a sua mãe e o seu o pai, o lugar de nascimento, a sua profissão e a descendência de Davi. Segundo Mateus (2,19-23) seus pais moravam em Belém e depois do Egito foram para Nazaré. Já o evangelista Lucas (2,17.39.51) diz que moravam em Nazaré e que Jesus nasceu em Belém devido ao recenseamento. Tudo isto explica-se quanto as exigências cristológicas e catequéticas de ambos evangelistas. Segundo a tradição comum atestada pelos sinóticos, Jesus é o “Profeta de Nazaré” da Galiléia e esta é a sua pátria. Também João (1,43) confirma sua origem nazarena. Quanto a profissão e o estado civil de Jesus os evangelhos afirmam que Ele é o “Filho de Carpinteiro” (Mc 6,3; Mt 13,55). O termo grego “Tekton”, exprime que ele era um artesão e com isso ele esclarece que não pertencia à categoria dos mais pobres. Possuía uma certa cultura, pois tinha freqüentado a Sinagoga de Nazaré, era celibatário certamente inspirando-se na figura profética de Jeremias que com sua condição era um sinal para os de seu tempo (Jr 16,1-13). O que nos surpreende nos evangelhos é a ausência quase total de preocupação biográfica, apenas Lucas e Mateus supre um pouco esta lacuna com os relatos de sua infância, mas Jesus chega à idade adulta e ao exercício de seu ministério sem que ninguém soubesse de sua excepcionalidade. João inicia sua vida pública em concomitância com João Batista, colocando a sua missão inseparável de João Batista, o pregador da justiça e da piedade e com seu batismo de purificação dos peca186 dos e que foi condenado à morte por Herodes. João Batista propunha um banho de imersão na água para obtenção do perdão dos pecados na expectativa do juízo escatológico eminente. João, cognominado de “baptistes”, com sua pregação de caráter ético – religioso e com o rito do batismo por imersão, tornou-se o ponto de convergência de um movimento popular que despertou as suspeitas de Herodes Antipas que por motivo de precaução mandou prendê-lo e depois matá-lo. Ele com estilo ascético pregava no deserto o juízo de Deus que ameaçava os impertinentes, como a árvore que tem o machado nos pés. A conversão que pregava tinha como símbolo de compromisso o banho nas águas. João declara-se não o Messias, nem Elias, mas uma lâmpada que arde por tempo breve (Jo 5,33). Ambos, Jesus e João, desempenharam atividades batismal contemporaneamente (Jo 3,24). João Batista tinha um grupo de discípulos (Mc 2,18) e não é improvável que Jesus depois do batismo tenha feito parte do seu grupo na Pérsia e depois separou-se com a prisão de João, Jesus iniciou sua missão (Mc 1,1-15) não com o batismo, mas com o gesto de libertação, e João ao ouvir as “obras de Cristo” enviou seus discípulos para perguntar-lhe se era ele o Messias (Mt 11,2-3). Jesus recebeu o batismo de conversão de João (Mc 1,9-11; Jo 1,32-34), porém o seu batismo tinha um significado “penitencial” (Mt 3,6; Mc 1,41; Lc 3,3). Os evangelistas obviando este problema, acentuaram mais a descida do Espírito Santo, sobre Jesus, habilitando-o para a sua missão. Com o batismo deu-se uma guinada na vida de Jesus, pois a partir daí ele deixou Nazaré, a sua vida escondida e iniciou a missão de profeta, anunciando o “Reino de Deus”, ou “o Reino dos Céus”, ou seja, que a soberania e o domínio de Deus na 187 terra está presente, e não no Templo (I Cr 29,11-12), que é Deus que se manifesta e intervém em favor de seu povo e que Ele é a manifestação poderosa e gloriosa da presença salvífica de Deus. A partir deste acontecimento Jesus atualiza Deus presente na história (Mt 12,28; Lc 11,20), visto que até João era a lei e os profetas, desde então é anunciado o Reino de Deus (Lc 16,16; Mt 11,12-13). De agora em diante Deus é o protagonista da história. “O Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,20-21), ou seja, o Reino não é mais objeto de cálculos, pois já está ali a presença e a ação de Deus, Jesus é uma realidade presente. Jesus não só anuncia a presença do Reino de Deus, mas também confirma a sua pessoa e a atualidade do Senhorio de Deus, ou seja, Deus está presente a partir de então porque Jesus está atuante com gestos poderosos em favor dos homens, ele mesmo é o protagonista e não só o anunciador. Com ele deu-se portanto uma guinada decisiva nas promessas bíblicas e nas expectativas judaicas. Afirmamos que Jesus foi em tudo semelhante ao homem, exceto no pecado, o que isso significa? Significa que compartilhou a sorte de todo homem nas alegrias e sofrimentos físicos e morais, inclusive a morte. Que foi infinitamente superior a todos os homens no domínio da vida moral e na intimidade com o Pai e na santidade. Que embora sendo verdadeiro homem, se distingue dos outros homens em certos aspectos como: nascimento virginal e poder de operar milagres. Jesus foi semelhante a nós em tudo, salvo no que era necessário segundo o desígnio de Deus, para que ele pudesse cumprir sua missão de salvador. Isto implica que tinha uma santidade perfeita e um conhecimento pleno e total no plano de Deus e de seu mistério. A esta altura resta-nos perguntar: qual era o saber de Jesus? Até pouco tempo os teólogos pensavam que 188 Jesus em sua vida terrena sabia tudo, tanto o presente, o passado como o futuro. Conhecia todas as ciências, técnicas, etc. Conhecia todos os pensamentos e nada ignorava, e quando demonstrava não saber algo é porque disfarçava para poder nos ensinar. Hoje com os estudos se afirma que Jesus foi um homem completo e como todo homem não conhecia tudo, mas sempre esteve em atitude de busca de aprendizagem, e que teve dúvidas, tentações, etc. A humanidade de Jesus não foi uma comédia, ele cresceu em sabedoria (Lc 2,52). Assumiu com sua encarnação a lei do amadurecimento humano, todas as conseqüências com exceção do pecado (Hb 4,15). Se não fosse assim sua morte não teria sido verdadeira. Ele viveu sua humanidade mais profunda que nós, pois viveu a intimidade com o Pai. Jesus teve dúvidas, tentações, ignorou o dia do juízo, teve medo da morte, foi instruído pelo seu Pai, viveu sua cultura, portanto ele passou por um processo histórico de aprendizagem. Tudo isso porque tinha a consciência humana, não era cópia de sua consciência divina. Contudo, Jesus teve em sua vida momentos particulares de experiências excepcionais de abertura ao mistério das coisas, recebeu o conhecimento profético para desenvolver sua missão, teve um conhecimento único do mistério de Deus. Assim, afirmamos que Jesus tinha dois tipos de saber: um adquirido na cultura de sua época e outro profético que o capacitava de cumprir sua missão salvífica. Ao contemplar Jesus como Homem e Deus, será que poder-se-ia individuar o seu aspecto físico? Na verdade não temos uma imagem ou pintura de Jesus, mesmo porque no seu tempo era proibido reproduzir rostos. Como sabemos, no início do cristianismo Jesus foi representado por símbolos, tais como: um peixe, um pastor, ou um cordeiro. Hoje estudiosos estudam uma 189 das provas mais importantes do corpo de Jesus que é o santo sudário, o qual encontra-se guardado na catedral de Turim na Itália. Este é um pano de linho que mede 4,36m por 1,1m e apresenta duas imagens do mesmo homem em tamanho natural uma de frente e outra de costas. Pelos estudos este homem que tem as marcas de crucifixão, mede 1,81m de altura e deveria pesar aproximadamente 77 quilos. Têm bigodes e barba comprida. Trata-se de um documento científico e curioso sobre o qual foram feitos inúmeros estudos e se escreveram incontáveis livros sobre o assunto. Este pano de linho foi estudado até pelo Jet Propulsion Laboratory da Nasa, e submetido aos mais modernos testes computadorizados. O sudário é curioso apesar de ser contestado por alguns homens da Ciência, porque a dupla imagem está em negativo, mas aparecem positivo na primeira fotografia que foi feita em l898. Apresenta também informações tridimensionais e segundo os testes químicos a imagem nele impresso não contém nenhuma tinta. A imagem apresenta feridas nas mãos, nos pés e no flanco esquerdo. Tem também feridas na cabeça que lembram a coroa de espinhos. É portanto, a imagem de um homem crucificado. O importante é admitir que estudiosos afirmam que podemos hoje esboçar uma imagem física de Jesus mesmo se as diversas fisionomias de Jesus que hoje encontramos surgiram ao longo dos séculos pelas mãos dos artistas, foram conseqüências de vários momentos da história. Por exemplo, as pinturas onde Jesus aparece glorioso, como um super-homem, é reflexo da religião no tempo dos Imperadores romanos no século IV. A partir da idade média, quando a religião se aproximou mais do povo sofrido, aconteceu o contrário, e assim Jesus é apresentado como sofredor que desperta sentimento de compaixão. 190 Hoje é consenso de que Jesus deveria se parecer com um judeu típico do seu tempo, ou seja, sem cabelo loiro nem olhos azuis. Na verdade a imagem de um Jesus de cabelo loiros e olhos azuis, é conseqüência da pintura dos artistas, e embora no ano 800, Epitáfio, um monge de Constantinopla, afirmou que Jesus media 1,70 m e que tinha cabelo loiro e levemente ondulado, com suas sobrancelhas negras. Porém todas essas informações foram obtidas nos escritos apócrifos. 24. JESUS CONCEBIDO DENTRO DE UMA FAMÍLIA Os pais de Jesus, conforme os evangelistas relatam, eram José e Maria, e seus familiares moravam em Nazaré. Ele viveu a vida de adolescente e jovem juntamente com seus pais, sendo educado por eles e a eles obedecendo. Embora os evangelistas falam dos irmãos de Jesus, deve-se entender que esta expressão significava os seus parentes mais próximos, particularmente primos. Naturalmente os chamados evangelhos apócrifos, ou seja, textos considerados não fidedignos e portanto não incluídos nos chamados livros canônicos ou oficiais da Igreja, relatam várias coisas sobre Jesus e com um certo exagero. Estes têm muita fantasias apresentando Jesus como um menino com poderes mágicos que fazia prodígios e certos milagres. Apresentam José como sendo um viúvo que casou-se com Maria já em idade avançada etc. Naturalmente muito da piedade popular cristã tem influência dos apócrifos, tais como: o nome dos três reis que visitaram Jesus em Belém: Melchior, Gaspar e Baltazar, assim como o episódio da Verônica que no caminho do Calvário que enxuga com lenço branco o rosto ensangüentado de Jesus e neste fica impresso a figura do seu rosto. O mesmo pode-se dizer 191 sobre o nome dos dois ladrões que foram crucificados com Jesus: Dimas, o bom, e outro à sua esquerda, Gestas, o mal. Também o soldado romano chamado Longino, assim como os nomes dos pais da Mãe de Jesus: Joaquim e Ana. Os apócrifos foram escritos entre o século II e século IV dC. Portanto depois que os evangelhos canônicos tinham sido escritos e relatam fatos da infância de Jesus, da vida de José, o pai de Jesus e de Maria sua mãe. Graças a eles como por exemplo o evangelho da Natividade de Maria, sabemos alguma coisa sobre Maria, a sua infância e de sua família, naturalmente tudo com muita fantasia e desprovido de autenticidade histórica. Os apócrifos influenciaram bastante a arte e a literatura inspirando pintores e literatos, tais como: Dante com sua obra “Divina Comédia” e Milton com sua obra “Paraíso perdido”. É graças aos apócrifos que hoje a arte apresenta José como sendo um velho de barba branca e com um cajado florido na mão representando a sua eleição como esposo de Maria. A perícope da anunciação do Anjo à Maria é uma das mais belas e também mais complexas do Evangelho. O Anjo Gabriel anuncia à Maria que ela será virginalmente Mãe de Deus. Mas já então Deus tinha preparado Maria para esta missão; ela já tinha experimentado o ter “agradado” (Kekaritoméum) a Deus, sob a influência da graça este é o sentido de “Gratia plena”. O passivo perfeito de “Kekaritoméum” indica uma ação passada da graça sobre Maria; ela já tinha sido orientada interiormente para um evento futuro ainda desconhecido; tinha experimentado em si um profundo “desejo de virgindade (Santo Tomás) esta era a “graça para a virgindade” (São Bernardo). Assim Maria já tinha sido preparada para ser Mãe Virgem. 192 Nos versículos 1, 31 o texto grego diz: “Eis que conceberás no ventre”, os exegetas omitem a palavra ventre, com a desculpa que é redundância, pois a mulher concebe no ventre. Mas para Lucas esta palavra tinha um significado importante, pois ele compreende que o Anjo anuncia à Maria que ela conceberá integralmente “no ventre”, será completamente interior. Lucas, como Mateus (1,23) evoca Isaías (7,14) “Eis que a Virgem conceberá no ventre e dará à luz...”, Lucas apresenta o Anjo num diálogo com Maria, portanto, na segunda pessoa e não na terceira pessoa (à Virgem) (ele fala de Virgem em 1,27). O verbo em Lucas também é diferente, pois ao invés de dizer “terá no ventre” como Isaías e Mateus, Lucas usa: “Conceberás no ventre”. “Conceber no ventre” é uma fórmula paradoxal, única em toda Bíblia. Para falar de concepção no AT usa-se as fórmulas “receber no ventre” (Gn 28,1; 22; Is 8,3) com referência ao homem do qual a mulher recebe o sêmen no ventre, ou também usa-se “Ter no ventre”, depois da relação sexual do homem e a mulher, indica depois de ter recebido do homem, assim expressa que a mulher já estava grávida (Am 1,3). Para Lucas estas duas fórmulas não serviam, pois sabia que Maria havia dito: “Não conheço homem algum” (1,34). Portanto Lucas utilizou a fórmula “conceber no ventre”. Para Isabel, Lucas usa conceber, mas sem a palavra “no ventre” (1,24; 1,36). Lucas usa para Maria duas vezes “conceber no ventre” (1,31; 2,21). Por que Lucas usa o verbo “conceber” como usa para outras mulheres para manter o realismo físico de uma concepção corporal autêntica e não mística. Usa depois “no ventre”, para indicar que esta concepção física devia ser integralmente interior “no ventre”, sem qualquer penetração de fora de qualquer sêmen viril. Esta concepção interior devia ser realizada por uma po193 tência real, não física, mas espiritual, ou seja: pelo Espírito Santo (1,35) e portanto virginal. Na verdade com a concepção virginal Jesus encarnou-se no seio de Maria, mas era necessária a sua encarnação? Por quê? Por que Deus se encarnou em nosso meio assumindo a condição humana? A resposta é porque Deus é amor e o amor é fonte de perfeição e de auto-difusão. Por isso, Deus manifestou para a humanidade o seu amor não só na criação, como também na filiação divina e por fim na encarnação de Jesus Cristo onde realizouse a sua máxima comunicação de amor aos homens, onde ele quis que a própria humanidade, unida ao Filho encarnado, se tornasse instrumento de redenção. Estava na linha da ação amorosa de Deus que, além de criar, e de falar aos homens pelos profetas, também enviar sua Palavra ao mundo feito carne (Hb 1,1). Portanto a encarnação era conveniente ao plano de Deus-amor. Além de ser conveniente no plano de Deus, a encarnação também era segundo Santo Anselmo (+1109) também necessária, porque segundo ele, Deus quis que os lugares deixados pelos anjos rebeldes fossem ocupados pelos homens, mas isto não era possível sem uma reparação prévia do pecado e o homem sendo incapaz de satisfazer ou de prestar reparação a Deus, sendo que o pecado foi de proporções infinitas, era necessário uma reparação de valor infinito. Ora, isto quem podia fazer era somente o próprio Deus feito homem, portanto era necessário a encarnação. Para Santo Anselmo a criação foi efetuada por pura graça e sem o mérito do homem, mas a redenção foi realizada por pura graça contra todo e qualquer mérito do homem. A posição de Santo Anselmo é boa, mas enfatiza muito o aspecto jurídico da redenção, a qual se coloca como um débito a ser reparado por causa do pecado. Além disso a bíblia insiste so194 bre a gratuidade da encarnação, a qual foi um ato livre da vontade de Deus (Ef 1,5-10). Deus também podia ter concedido perdão ao homem sem a encarnação de Jesus Cristo. Outros autores enfatizam a necessidade da encarnação afirmando que Deus devia ter feito o melhor mundo possível, este inclui certamente o dom do homem-Deus. Porém, este argumento é fraco, portanto devemos dizer que a encarnação não é necessária por necessidade absoluta, pois Deus tinha outros recursos para perdoar o homem, mas podemos afirmar que a encarnação era necessária relativamente ou seja sob alguns aspectos: Era o melhor meio para restaurar a dignidade humana, tendo o seu Filho assumido tudo o que é do homem divinizando-o. A encarnação também era o melhor meio para provocar-nos à prática do bem. E por fim, esta nos ensina o valor da natureza humana e do mundo que nos foi criado. Mas, por que Deus quis a encarnação? Por causa do pecado do homem, como nos ensina o credo “por nós homens, e por nossa salvação... encarnou-se”. Desta forma podemos afirmar que o pecado no mundo deu ocasião para a encarnação e para a redenção; contribuiu para manifestar melhor o amor Deus de aos homens. “Ó feliz culpa”, lembramos na liturgia do sábado Santo. O Concílio Vaticano II afirma: “O Filho Unigênito de Deus foi enviado ao mundo pelo Pai, a fim de que, feito homem, remisse todo o gênero humano e assim o regenerasse e o unificasse” (UR 2/GS 45). Outros teólogos como o franciscano João Duns Scotus (+1308) e a escola franciscana, afirmam que Jesus Cristo é de tal excelência no plano de Deus que, mesmo que não tivesse havido o pecado, o Filho de Deus teria se encarnado, ou seja, o Verbo encarnado estava previsto e predestinado antes de todas as criaturas, em 195 particular antes do pecado do homem. Se não tivesse havido pecado, o Verbo encanado preencheria as funções de mestre dos homens e rematador de toda obra do Pai, mas dado o pecado, o Verbo se fez também o redentor dos homens. Esta afirmação é fundamentada sobretudo em Cl 1,16: ”Tudo foi criado por Ele e para Ele”.(conferir também 1 Cor 8,6). Embora este pensamento possa ser aceitável, ele não tem fundamento na Escritura e na Tradição. O certo é que Deus na plenitude do tempo enviou seu Filho (Gl 4,4). Esta era uma época da história em que os homens estavam profundamente marcados pelo pecado, os pagãos entregues à idolatria, aos vícios e paixões e os judeus marcados pela hipocrisia e politicamente dominados pelos romanos, divididos em facções (Fariseus, Saduceus, Herodianos, Zelotas...). Em suma, todos estavam debaixo do pecado (Rm 1,16-32; 2,23; Gl 2,3,22). Tudo isso indica que o homem recebeu a salvação gratuitamente, sem mérito próprio, não porque o homem seja bom, mas porque Deus o ama; a salvação foi iniciativa absoluta e soberana de Deus, ”Ele nos amou primeiro” (Jo 4,19). Por que Jesus ocupa lugar central na fé cristã? Por que Jesus Cristo e para quê? Qual foi o intuito de Deus ao condicionar sua auto-comunicação com os homens à encarnação histórica e à morte na cruz de Jesus? Por que Deus colocou Jesus no centro do seu desígnio de salvação? Que lugar o evento histórico de Jesus Cristo ocupa na história da salvação, pela qual Deus desdobra seus desígnios na história? O cristianismo vivido pelos cristãos não é o Cristo, mas Jesus Cristo, sua pessoa e sua obra ocupam o centro da fé. Ele detém na fé cristã, um lugar central e único que nenhuma outra tradição religiosa atribuiu a seu fundador. Para os muçulmanos, Maomé o profeta pelo 196 qual Deus se comunica. No budismo, Gautama aparece como o iluminado aponta o caminho e nesse sentido é o mestre. Para o cristão, o próprio mistério de Jesus Cristo e não apenas a sua mensagem, constituem o centro da fé. O cristianismo não é pois uma religião do livro, como o o islanismo, mas a revelação de uma pessoa - o Cristo. Jesus Cristo ocupa o centro da fé cristã, ele é o mediador o único entre Deus e os homens. Ele é o Salvador universal. Sendo o Cristo a própria salvação, a Igreja se define como “Sacramento” de Cristo. Atribui-se a Santo Anselmo a idéia de que a redenção da humanidade pecadora exige que se faça justiça a Deus. É a tese da “satisfação adequada”. Como a ofensa contra Deus foi de certa maneira infinita, somente Jesus Cristo, homem Deus, poderia repará-la. Assim, a encarnação se tornava necessária para a redenção da humanidade. Criando-se assim com uma imagem jurídica do mistério da salvação, como que para aplacar um Deus irritado. Santo Tomás evitando esta concepção, viu na encarnação uma razão de conveniência. A encarnação nesse sentido, não era necessária para a salvação da humanidade, mas convinha que seu Filho encarnado fizesse, como só ele poderia fazer, às exigências da justiça e merecesse a salvação da humanidade. Portanto, Jesus Cristo estava no plano divino destinado para a redenção, podendo-se afirmar que se o gênero humano não devesse ser salvo do pecado, a encarnação teria acontecido. Seria reduzir Jesus Cristo à sua função redentora imaginar um mundo só acidentalmente cristão. A tese escotista afirma que desde os primórdios do mistério da criação, Jesus Cristo ocupava o pensamento divino. Como diz São Paulo, ele é o coroamento o princípio de inteligibilidade do cosmos. Não foi portanto pelo pecado dos homens e pela necessidade de sua redenção que se operou a encarnação. Ainda que não tivesse ha197 vido pecado, Jesus teria se encarnado para arrematar a criação de acordo com o plano divino. 25. OS RELATOS DA INFÂNCIA DE JESUS Cada título cristológico é fruto de uma longa reflexão teológica. Da mesma forma, os relatos da infância de Jesus têm uma teologia sofisticada e pensada até nas minúcias. Estes textos são os mais recentes, surgiram quando já havia uma reflexão teológica sobre Jesus e sobre o significado de sua morte e ressurreição, assim como dos seus milagres e dos seus títulos. Quanto mais se medita sobre Jesus mais se descobre o seu mistério e mais se remonta para as origens; assim Marcos que escreveu por volta de 67-65; afirma que com o batismo Jesus foi ungido pelo Espírito Santo e proclamado o Messias, já Mateus que escreveu por volta de 80-85 ensina que Jesus desde o seu nascimento é o Messias esperado, aliás, desde Abraão (Mt 1,1-17). Lucas que escreveu o evangelho nesta mesma época, proclama que Jesus desde o Natal em Belém é o Messias, o Filho de Deus, e a história o acompanhou desde Adão (Lc 3,38). Por fim João que escreveu pelos anos 100 responde que Jesus é o Filho de Deus preexistente (Jo 1,1-14). Portanto, com a experiência da ressurreição, os apóstolos releram e reinterpretaram toda a vida de Cristo e com isso muitas luzes do AT tidas como proféticas foram jogadas em Jesus. Desta forma, os relatos da infância têm a finalidade de mostrar aos cristãos quem é Jesus. Com a ressurreição de Jesus a história entrou em seu ponto Ômega porque a morte foi vencida e o homem entrou na esfera divina. 198 Em sua genealogia Mateus quer provar que Jesus é descendente de Davi e para isso ele coloca José descendente de Davi, esposo de Maria, o qual dá o nome a Jesus, tornando-se juridicamente seu pai e com isso inserindo-o em sua genealogia davídica e desta forma, realizando-se a profecia de Isaías (7,14). Lucas realça a concepção de Jesus por Obra do Espírito Santo não para explicar o processo biológico da concepção, mas para relacionar Jesus com outras figuras libertadoras do AT que por força do Espírito Santo foram instituídas em suas funções (I Sm 10,6s; 16,13s ; Jz 3,10; 6,34; I Rs 19,19). Para Lucas a virgindade pessoal de Maria é secundária, o importante é a concepção virginal de Jesus, ou seja, ele destaca não o caráter virginal, mas o sobrenatural da concepção, a qual foi virginal para poder ser sobrenatural e não sobrenatural para ser virginal. Da mesma forma, o nascimento de Jesus em Belém é um trabalho teológico do evangelista Lucas (Lc 2,6-7). Se Jesus é Filho de Davi então deve nascer em Belém segundo a profecia (Mq 5,1). Outrossim, a presença dos pastores no relato (Lc 2,8-20) é para indicar que a boa-nova foi endereçada aos pobres, pois os pastores formavam a classe desprezada e de profissão impura; eram marginalizados. O mesmo deu-se em Mateus 2 onde tem-se uma reflexão teológica no estilo dos Midraxes (historização de uma passagem da Escritura). Para Mateus Cristo é o Messias que realizou as profecias (Is 60,6; Sl 71,10s), as quais diziam que viriam a Jerusalém os reis e também nações para adorar o Messias. Com isso a estrela de Judá era um motivo conhecido no tempo do NT. Além do mais, acreditava-se que pelo nascimento de de Abrão, de Isac e de Moisés apareceu uma estrela ao céu; acrescenta-se a isso que desde os tempos de João Kepler os cálculos astronômicos mostravam que nos 199 anos 7 aC acorreu uma grande conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes. Ora, este fato não deve ter passado desapercebido na época, mesmo porque Júpiter para a Astronomia helenista era considerado o rei soberano do universo e Saturno designava o astro dos judeus, assim como a constelação de Peixes estava relacionada com o fim do mundo. Ocorrendo a conjunção destes astros, os magos do Oriente que decifraram o curso dos astros, deram a seguinte interpretação: No país dos Judeus (Saturno) nasceu um rei soberano (Jupiter) dos fins dos tempos (peixes). Assim, Mateus vê o cumprimento em Jesus e faz igualmente um paralelismo perfeito entre Moisés e Jesus, pois para ele Jesus é o novo Moisés libertador. Então tudo é conto? Não, mas somos nós que erramos quando queremos ver os evangelhos numa perspectiva diferente daquela dos evangelistas, sobretudo porque os evangelhos da infância não são históricos, mas anuncio e pregação, onde os ditos da Sagrada Escritura foram assimilados, trabalhados e colocados à serviço da fé. Portanto, deve-se levar em conta o gênero literário. Dá para concluir pelo pouco que se pode apanhar dos relatos da infância que Jesus viveu os seus primeiros trinta anos em Nazaré ao lado de Maria e de José, trabalhando na oficina com José. Na verdade, Jesus Filho único, não tinha outros irmãos e o que os evangelistas (Mt 13,55 e Mc 6,3) relatam sobre os irmãos de Jesus, tem uma explicação. Uma delas é que o aramaico, língua que os judeus falavam no tempo de Jesus, era pobre em vocábulos; portanto a palavra aramaica e também a hebraica ah, significava não somente filhos dos mesmos pais, mas também os primos e até os parentes mais distantes. Da mesma forma, também a tradução grega do Antigo Testamento realizada em Alexan200 dria, no Egito entre 250 e 100 aC, utilizou a palavra grega adelphós; irmão, embora o grego possuísse vocábulos próprios para o significado de primo e sobrinho. O linguajar do grego dos LXX, que conserva seu fundo semita influiu profundamente na linguagem dos escritores do Novo Testamento. Para São Jerônimo (+ 420), os irmãos de Jesus eram primos do Senhor. O Protoevangelho de Tiago datado do primeiro século, afirma que os irmãos de Jesus eram filhos de São José, o qual era viúvo quando casouse com Maria, mas não devemos esquecer-nos que este é um escrito apócrifo e portanto fantasioso. Há uma objeção quanto ao que afirma Lucas: "Maria deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura” (Lc 2,7). Devemos notar que o termo primogênito não significa que Maria tenha tido outros filhos após conceber Jesus, pois em hebraico a palavra bekor (primogênito) podia designar simplesmente bem amado, pois o primogênito é aquele dos filhos no qual durante certo tempo se concentra todo o amor dos pais. O primogênito era para os hebreus alvo de especial amor por parte de Deus e devia ser consagrado ao Senhor nos seus primeiros dias (Lc 2,22). A palavra primogênito podia também ser sinônimo de Unigênito. Também no documento Antigüidades Bíblicas relata que a filha de Jefté ora é dita primogênita, ora unigênita para significar a bem amada. Da mesma forma, fora de Israel o menino que não tivesse irmãos nem irmãs mais jovens, podia ser chamado de primogênito, é o que atesta uma inscrição contida num sepulcro judaico datada do ano 5 aC e descoberto no ano de 1920 onde se lê que uma jovem mulher chamada Arsinoé morreu “nas dores do parto do seu filho primogênito”. Portanto no modo de falar de Mateus (Mt 1,25) primogênito quer 201 indicar apenas o filho antes do qual não houve outro, e não necessariamente aquele após o qual houve outros. II. PARTE 26. JESUS NA ORIGEM DA CRISTOLOGIA (do Jesus pré-pascal ao Cristo pascal) Precisamos reconhecer o papel decisivo que a ressurreição de Jesus e a experiência pascal dos discípulos representam para a fé cristológica. Estas assinalam o seu ponto de partida, pois os discípulos não alcança202 ram, antes da páscoa, uma verdadeira fé cristológica, o que não significa que não tivesse nenhuma fé em Jesus, mas foi somente depois da ressurreição que eles atingiram a plena fé em Jesus como o Messias e Filho de Deus. Não é que a experiência pascal deva ser entendida como uma experiência de conversão dos discípulos, mas o fato de ver em Jesus ressuscitado, e que se manifestou eles, certamente foi objeto de suas transformações. Na verdade, a experiência da ressurreição de Jesus, fez com que os discípulos passassem da “Jesulogia” para a “cristologia”. Portanto, eles fizeram um itinerário de baixo para cima, que vai do encontro pessoal com Jesus à descobertas do Cristo. Assim sendo, na origem da cristologia, estão as obras e as palavras de Jesus, ou seja, toda a sua missão e a sua existência humana. Durante a sua missão, Jesus apresentou uma idéia nova e original do Reino de Deus. Para ele a manifestação do reino era a Boa-Nova e para pertencer a eles é necessário a conversão: “Cumpriu-se o tempo e o reinado de Deus aproximou-se...” (Mc 1,15). Este Reino cumpre se na sua pessoa: “Hoje, esta escrituras se realizou para vós...” (Lc 4,21). Este Reino é como uma semente que precisa se desenvolver. Ele se caracteriza na liberdade, fraternidade, pois a justiça, opondo-se portanto, ao legalismo opressor dos escribas, da hipocrisia dos fariseus e da exploração do povo pela classe sacerdotal. Este é oferecido preferencialmente aos pobres, aos que são vítimas de estruturas injustas e que sofrem condições desumanas (Lc 6,20). É portanto, de modo surpreendente, a maneira com que Jesus se relaciona com o Reino de Deus. Ele garante que o Reino, ou seja, o próprio Deus, irrompe no povo, graças a ele, à sua vida e missão, à sua pregação e a atividade. Neste reino ele ensina com autoridade singular, que supera a de Moisés (Mt 5,21-22; Mc 10,1-9). Neste reino, Jesus é o filho 203 predileto e o exemplo mais notável disso é a forma nunca vista de invocar Deus como seu pai, chamando de "Abba". A instauração do Reino de Deus fez com que Jesus encontrasse durante o seu ministério inúmeras oposições levando-o a prever a sua morte violenta como um destino inevitável. Por isso ele se identificou como o “Servo de Deus” (Mc 10,45). A morte violenta que Jesus previa, ele a aceitou não como uma simples e inevitável conseqüência de sua missão profética, mas como uma derradeira expressão de seu amor, e como o ápice de sua pró- existência. Para os discípulos, a morte de Jesus na cruz foi uma experiência terrível, ainda mais porque eles esperavam que com suas ações libertar dia Israel (Lc 24,21). O que podiam esperar eles de seu mestre sepultado? Se Jesus não tivesse ressuscitado dos mortos, o cristianismo seria apenas um grupo de amigos de Jesus, uma recordação de seus ensinamentos e na melhor reprodução possível de seus exemplos. Desta forma, o cristianismo não constituiria uma Boa-Nova para a humanidade, mas apenas uma moral elevada. Ser cristão não consiste em venerar um mestre falecido, nem em manter sua memória viva, ou ainda em praticar a sua doutrina; ao contrário, significa crer que Jesus está vivo porque ele ressuscitou e por isso está no nosso meio agindo pelo seu Espírito. A ressurreição de Jesus é o fundamento da fé cristã e o marco inaugural da cristologia do Novo Testamento. 27. O DESENVOLVIMENTO DA CRISTOLOGIA NO NOVO TESTAMENTO Com a ressurreição de Jesus inicia-se a chamada cristologia explícita, a qual tem início com a pregação 204 querigmática cristã através do processo de reflexão sobre o mistério de Cristo que, principiando por uma cristologia "de baixo", chega progressivamente a uma cristologia “do alto”, ou seja, partindo dos mistérios da vida de Jesus desde o seu nascimento humano, e chega até a sua pre-existência. Não possuímos acesso direto aos inícios da cristologia da Igreja apostólica, e isto porque os escritos mais antigos do Novo Testamento são dos anos 50 dC, ou seja, de aproximadamente vinte anos após a sua morte e ressurreição. Nas Cartas de Paulo e também nas Cartas pastorais encontramos o primeiro Kérigma da Igreja (I Cor 15,3-7; Rm 1,3-4; 1 Tm 3,16; Hb 6,1...). Nestes e em outros textos encontramos as características importantes do Kérigma primitivo, tais como: o mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus que constitui o centro do Kérigma, a ressurreição de Jesus não separada de sua morte, assinalando a sua entrada no estado escatológico e na exaltação como Senhor. Os sermões missionários de Pedro e de Paulo, em Atos dos Apóstolos (2,14-39; 3,13-26; 4,10-12...), dirigidos sobretudo os judeus, demostram com clareza a cristologia do primeiro Kérigma. Estes discursos lembram a ação do Espírito Santo, de que eles são testemunhas, da qual isto aconteceu segundo as Escrituras... Trata-se, portanto de uma cristologia baseada na ressurreição e glorificação de Jesus, a qual é uma ação de Deus sobre Jesus constituído-o Senhor e Cristo em favor da humanidade. A ressurreição de Jesus é o acontecimento salvífico e definitivo de Deus; por ela o pecado e a morte foram vencidos. Com ela Jesus entra no fim dos tempos, realiza a esperança escatológica entrando em na glória final. Com ela Jesus atingiu a própria perfeição (Hb 5,9). O que Deus fez a Jesus foi em favor dos homens; para todos os títulos que exprimem a dignidade adqui205 rida por Jesus como ressuscitado estão relacionados a nós; Ele é o Senhor de todos (At 10,36); Ele é o nosso Cabeça e Salvador (At 5,31). Com a sua ressurreição foi inaugurada a chegada definitiva da salvação. É o Senhor ressuscitado que salva. Portanto, com a ressurreição de Jesus, nasceu a cristologia explícita, porque nela encontramos o estágio inicial de uma reflexão ordenada sobre o significado de Jesus Cristo para a fé cristã. Foi com a ressurreição que se deu o ponto de partida de todas as afirmações sobre Jesus; com isso podemos dizer que a primeira cristologia nasceu “de baixo”, porque partiu da realidade humana de Jesus, transformada pela ressurreição, e não da pré-existência do Filho de Deus que se fez homem. A verdadeira identidade de Jesus para os primeiros cristãos foi revelada por Deus em sua ressurreição. Afirmamos também que a cristologia do Kérigma primitivo é, essencialmente soteriológica, ou seja, seu ponto central reside na salvação dos homens. Ela consistia numa reflexão sobre Jesus, contemplado em suas funções em nosso favor. Só mais tarde, ela se transformará em cristologia "ontológica", buscando uma reflexão sobre Jesus como ele é em si mesmo e sua pessoa na relação com Deus. A cristologia do Filho de Deus na narrativa da infância (Lc 1,32) diz apenas que menino nascido de Maria veio de Deus e será chamado "Filho do altíssimo". Não fala portanto de uma filiação eterna e divina de Jesus em sua preexistência. Não se toca na questão ulterior da origem eterna de Jesus como Filho de Deus, como vemos em Paulo (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-13) e sobretudo no Prólogo do evangelho de João (1,1-18). 28. O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO DOGMA 206 1. Desenvolvimento histórico do dogma cristológico Pretendemos agora analisar o desenvolvimento da cristologia pós-bíblica, ou seja, fazer uma análise de como evoluiu o dogma cristológico ao longo dos Concílios da era Patrística. No Novo Testamento a afirmação de que Jesus Cristo, graças à sua morte e ressurreição deu a salvação para os homens, foi fundamental e por isso, a afirmação de sua identidade pessoal como Filho de Deus era necessária. Este mesmo enfoque soteriológico da cristologia continuou na reflexão cristológica pós-bíblica, onde a função salvífica de Jesus continuou sendo o ponto central para a descoberta de sua pessoa. Nesse sentido os primeiros Padres da Igreja afirmavam claramente: “Ele se fez homem para que fôssemos divinizados”; “Tomou para si o que era nosso, para que participássemos do que era dele”. Os Padres falam ainda de “admirável comércio", efetuado entre o Filho de Deus encarnado e a humanidade. Santo Atanásio, no século quarto, assim escrevera:” Sendo Deus, fez-se homem para nos divinizar. O Verbo fez-se homem, para que fôssemos divinizados”. O docetismo, corrente já presente nos tempos apostólicos e contra a qual a cristologia do Novo Testamento, especialmente a de João, reage veementemente (1Jo 1,1-2), foi a mais antiga ameaça para a integridade do mistério de Cristo, pois procurava reduzir a existência humana de Jesus à meras aparência e ou a uma teofania sob forma humana. Tratava-se do reducionismo gerado pelo pensamento helenista que achava inconcebível o envolvimento pessoal e real de Deus com a realidade humana. Naturalmente e os Padres da Igreja reagi207 ram contra essa heresia e afirmavam que em Jesus Cristo a carne humana tornou-se o eixo da salvação. Podemos dividir o desenvolvimento do dogma cristológico nos primeiros séculos em três períodos correspondentes as três formas distintas de reducionismo cristológico. A primeira forma de reducionismo atingia a realidade e a integridade da existência Jesus Cristo. A resposta a esse docetismo veio do próprio Novo Testamento e dos primeiros Padres da Igreja, como Irineu e Tertuliano. Na segunda forma, o reducionismo cristológico visava à condição divina de Jesus, ensejando heresias como o adocianismo, o sabelianismo, o arianismo e outras. Contra tais tendências os dois Concílios ecumênicos, o de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381), que foram ao mesmo tempo cristológicos e trinitários, afirmaram tanto a verdadeira dignidade do Filho de Deus, igual ao Pai com a inteireza da existência humana. A terceira forma de reducionismo cristológico girou em torno da união misteriosa concretizada em Jesus, de condição divina e de condição humana. Esse mistério de unidade, mas com distinção causou heresias opostas. Umas, mantendo a distinção, sacrificavam a união, como o Nestorianismo; outras, sustentando a unidade, negavam a distinção, como o Monofisismo. Essas heresias foram condenadas pelo Concílio de Éfeso (431) e de Calcedônia (451). 2. Os Concílios Cristológicos a) O Concílio de Nicéia Este acontece, sobretudo no contexto da negação por parte de Ário, Patriarca de Alexandria (+336), de que o Filho de Deus fosse de natureza igual ao Pai. Afirmar a divindade do filho preexistente parecia contradizer tanto o monoteísmo da bíblia como o conceito filo208 sófico da unicidade absoluta de Deus, por isso, Ário, servindo-se de alguns textos do Antigo Testamento, especialmente Pr 8,22 passou a ensinar que o Filho de Deus foi ‘gerado’, mas entendendo-o no sentido específico de “feito”, “criado”. Assim, o Filho seria inferior ao Pai. Na realidade, seria um intermediário entre Deus e o mundo e não mediador entre Deus e a humanidade, unindo-a em sua pessoa à divindade. O Filho para Ário, não seria realmente homem, porque a carne assumida pelo Verbo não constituía, nem podia ser, uma humanidade verdadeira e completa. Em resposta à afirmação de Ário, o Concílio de Nicéia afirmou que a filiação divina, atribuída pelo Novo Testamento a Jesus Cristo deve ser entendida no sentido estrito. Afirma a categoria bíblica do “unigênito” do Pai, acrescentando a explicação que ele é “da substância” do Pai, gerado por, não feito, “da mesma substância do Pai”. Afirma que em Jesus Cristo o Filho de Deus não só “fez-se carne”, mas também “fez-se homem”. Se não há a “humanização” do Filho de Deus, estava em jogo a salvação da humanidade por Jesus Cristo. Se não fosse nem verdadeiro homem nem verdadeiro Deus, como queria Ário, não seria capaz de trazer a salvação para a humanidade, pois “Ele se fez homem, para que fôssemos divinizados”. O Arianismo representava uma helenização do conteúdo da fé cristológica da igreja e o Concílio de Nicéia deselenizou este perigo. Ele ressalta que Deus se autocomunicou pessoalmente, na existência humana do homem Jesus e que esta ocorreu entre as três Pessoas, no mistério da vida íntima de Deus. b) O Concílio de Éfeso Tanto neste Concílio como em Nicéia, o problema era como entender a divindade de Jesus Cristo, mas em 209 perspectivas diferentes. Em a Nicéia pergunta é se Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus. Em Éfeso, ao contrário, coloca-se a questão em que sentido e de que modo o Filho de Deus se fez homem em Jesus Cristo. Neste Concílio Nestório de Antioquia, depois Patriarca de Constantinopla, partindo com a tradição Antioquena do homem Jesus, questionou o modo como ele se teria unido ao Filho de Deus. Nestório se recusou atribuir ao Verbo de Deus em pessoa as vicissitudes de sua existência humana. Particularmente o fato de o homem Jesus ter sido gerado não poderia referir-se ao Filho de Deus e, por conseguinte Maria não poderia ser chamada “mãe de Deus” (Theotókos), mas apenas “Mãe de Cristo” (Kristotókos). Surgia assim, dois sujeitos distintos: o Verbo de Deus de um lado, e Jesus Cristo outro. Nestório rejeitava portanto o realismo da encarnação, declarando aparente e irreal a humanização do Verbo de Deus. Para ele é real a humanidade de Jesus, que só aparentemente pertence ao Verbo de Deus. Portanto, o homem Jesus não seria idêntico ao do Verbo de Deus feito homem, nem o Verbo se teria tornado homem em pessoa. Contra Nestório, Cirilo de Alexandria argumenta que o símbolo de Nicéia atribui, de modo pessoal, ao Filho de Deus, o filho único do Pai, pessoalmente identificado com Jesus "que por nós, homens, e para nossa salvação, desceu, encarnou-se, fez-se homem, sofreu, ressuscitou no terceiro dia e subiu ao céu". Cirílo aclara para Nestório o verdadeiro sentido da encarnação do Filho de Deus, afirmando que o Verbo de Deus uniu em si a humanidade de Jesus “segundo a hipóstase”. Não foi a uma união por conjunção, onde se via Jesus como personificação do Verbo de Deus, mas identidade real e concreta entre o Verbo e Jesus. Não o sentido que a natureza do Verbo tenha se transformado na carne do homem Jesus, mas no sentido de que o 210 Verbo de Deus assumiu nele, pessoalmente, a carne humana. Entre o Verbo e o homem Jesus há um único sujeito concreto e subsistente. Mas será que o mistério da união hipostática não chega a despersonalizar o homem Jesus do ponto de vista humano? Se a pessoa do Verbo Deus assumiu a natureza humana, não terá privado Jesus de uma individualidade humana singular, concreta e original? Para a filosofia moderna, o conceito psicológico de pessoa, é visto como um centro subjetivo de consciência e de vontade. No caso da união hipostática e Jesus Cristo, temos uma só pessoa ontológica, a saber, a do Filho de Deus que se fez pessoalmente homem, mas isso deixa intacta a personalidade do homem Jesus, entendida no sentido psicológico, como centro humano de consciência e atividades. Portanto, a humanidade de Jesus não é “despersonalizada”. Ao assumir a humanidade de Jesus, a Pessoa do Verbo não faz uma “despersonalização”, mas uma "impersonalização", visto que a pessoa do Filho de Deus se comunica e se estende à humanidade de Jesus de uma forma tal que o Filho se torna verdadeiramente homem. Na verdade, o Verbo de Deus se tornou realmente pessoa humana em Jesus. A encarnação do Filho de Deus é uma humanização verdadeira. O Filho de Deus se apropriou de todas as características da pessoa humana, viveu uma existência histórica e humana. Na pessoa de Jesus o Filho de Deus experimentou, pessoalmente, o que é a vida humana. Por isso, o mistério da “união hipostática” é o mistério da humanização de Deus. Em Jesus homem, Deus assumiu face humana (Jo 14,9). Jesus Cristo é “Deus humanizado” e não “homem divinizado”. Em virtude da encarnação de Jesus, sua humanidade é a do Filho de Deus. Ele é filho também como homem. Com a encarnação a história se fez história de Deus. 211 c) O Concílio de Calcedônia Éfeso explicou significado da encarnação em termos da "União Hipostática". Assim, ressaltou a unidade, mas prescindiu da distinção entre divindade e humanidade. É nesse ponto, que Calcedônia irá completar Éfeso. A problemática de Calcedônia centra-se na questão da humanidade de Jesus, ou seja: se eu Verbo de Deus assumiu em si a natureza humana, o que acontece a essa natureza, no processo de união? Mantém-se em sua realidade humana ou é absorvida pela divindade do Filho de Deus? Na polêmica, entra em questão Êutiques, monge de Constantinopla, que admitia que Cristo provém de duas naturezas, mas sem permanecer em duas naturezas após o processo da união. Para ele, essa união foi como uma “mistura”, em que o humano foi absorvido pelo divino e consequentemente, Cristo é “consubstancial” conosco, na humanidade. Para ele, em Cristo há uma única natureza, já que a natureza humana se diluiu na divina. Ora, se esta é absorvida pela divindade do Verbo Jesus, realizada a união, não é mais verdadeiramente homem, desfazendo-se a realidade da encarnação. Neste contexto, o papa Leão Magno afirma a unidade de Cristo: “Ele nasceu com a integra e perfeita natureza de verdadeiro homem e verdadeiro Deus, completo (como Deus e como homem)...” afirma também as duas naturezas com suas características: “Preservadas a propriedade de uma e de outra, elas se unem numa só pessoa”; e ambas completam, em comunhão mútua, o que é próprio de cada uma. A definição de Calcedônia (451) toma como ponto inicial a união da divindade com a humanidade em Jesus Cristo e estabelece a distinção das duas naturezas: ele é consubstancial com o Pai, pela divindade, e conosco, pela humanidade. Acentua-se a consubstancialidade 212 de Jesus conosco, na humanidade. Afirma-se que o Filho Unigênito, é uno em duas naturezas “sem confusão nem mudança” e “sem divisão nem separação”. Cristo não é somente de duas naturezas como defendia Êutiques, mas também em duas naturezas. Portanto, a união hipostática do Verbo com o humanidade mantém a alteridade da humanidade na mesma pessoa. A humanidade não é absorvida pela divindade, como queria Eutíques. A distinção das duas naturezas perdura e se conservam as propriedades de cada uma delas (sem confusão nem mudança). As duas naturezas não se justapõem apenas, como se fossem sujeitos subsistentes distintos (sem divisão nem separação). d) O II Concílio de Constantinopla No ano de 553 realizou-se segundo Concílio de Constantinopla. Este repeliu tanto da interpretação nestoriana, quanto a eutiquiana. Calcedônia tinha distinguido as duas naturezas, opondo-se a tendência monofisista de mesclá-las mas não articulou a relação entre o unidade e distinção. O II Concílio de Constantinopla explica essa relação, referindo-se à união hipostática como “união segundo a composição”, querendo dizer que o Verbo de Deus se tornou um único sujeito concreto existente com sua humanidade, embora permaneça nele a alteridade entre Deus e homem. Assim, Jesus Cristo é uma pessoa que se compõe do divino e do humano e é tão humana quanto divina. Mas, as luzes do II Concílio de Constantinopla não foram suficientes para evitar a possibilidade de uma interpretação monofisista da vontade e da ação humana de Jesus. Neste contexto o Patriarca de Constantinopla, Sérgio, fala de uma única operação teândrica em Jesus Cristo. Ora, tal fórmula dava margem a um entendimento monofisista, como se a um só sujeito agente corres213 pondesse uma só modalidade de ação, de tal modo que a ação humana viesse a ser absorvida pelo princípio divino de atividade; seria um mono-energismo. O mesmo problema apareceu em relação à vontade de divina e humana em Jesus Cristo. Diante disso, Sérgio de Constantinopla não falou de dupla vontade, mas de uma só vontade em Jesus. Sua posição será denominada de monotelismo. Neste sentido, corria o perigo novamente sobre a autenticidade da humanidade de Jesus e a realidade da salvação da humanidade. Sem vontade e ação verdadeiramente humanas, Jesus Cristo não seria realmente homem como nós. Sem a vontade humana poderia apenas executar uma série de atividades predeterminadas pela vontade divina. Nossa salvação não viria da livre ação humana de Jesus. Em 1649, o papa Martinho convocou o Concílio de Latrão para condenar o monotelismo. Neste Concílio estabeleceu-se duas vontades naturais, a divina e a humana em perfeita consonância. Explicou-se que se há em Cristo duas naturezas, há também duas vontades e dois modos de agir, correspondentes a cada uma das naturezas humanas, sendo ambas “intimamente unidas no mesmo e único Cristo Deus”. e) O III Concílio de Constantinopla Este Concílio foi realizado no ano de 681 retomando a afirmação de Calcedônia das duas naturezas e acrescentando a ela a definição das duas vontades e das duas atividades naturais em Jesus. Como em Calcedônia, frisa que as duas vontades e os dois modos de agir estão unidos numa única e mesma pessoa, Jesus Cristo, “sem separação, sem mudança, sem divisão, sem confusão”. Esclarece que não há oposição entre as duas vontades, porque a vontade humana conforma-se totalmente à vontade divina, pois “Em verdade, a vontade huma214 na movia-se a si mesma, embora sujeita à vontade divina... Cada natureza atua em comunhão com a outra o que lhe é próprio, ou seja, o Verbo faz o que é do Verbo e a carne, o que a da carne”. É importante afirmar que como as duas naturezas, também as suas vontades não estão justapostas uma à outra. O Filho de Deus é também homem, ele tem o querer um ano. Na verdade, a vontade humana de Jesus Cristo é a vontade que lhe é própria de modo pessoal, enquanto a vontade divina é comum na divindade ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, tal como lhes é comum a natureza divina. Vale dizer que o axioma dos monges monofisistas “um da Trindade sofreu”, o que reafirma de forma equivalente a declaração do II Concílio de Constantinopla que é tão correto quanto falar do “Deus crucificado” J.Moltmann. Desde que o Filho encarnado vivenciou verdadeiramente a história humana e seu fardo, inaugurou-se realmente uma história humana de Deus. 3. Avaliação e perspectivas A cristologia do Novo Testamento foi uma interpretação da pessoa e do acontecimento de Jesus Cristo e elaborada pela igreja apostólica à luz da experiência pascal, inspirada pelo Espírito Santo. Ela é a norma perene e última para a fé da igreja no mistério de Cristo. O dogma cristológico da igreja constitui interpretação ulterior e progressiva desse mistério realizada pela igreja pós-apostólica, guiada pelo Espírito Santo e abonada pelo magistério eclesiástico. Na verdade, o dado fundamental da própria igreja não é o dogma, mas as Escrituras, e este está baseado na bíblia. Por isso, toda forma dogmática remonta ao Novo Testamento e não figura 215 como ponto de partida absoluto na reflexão da fé da igreja. Na interpretação do dogma há uma interação recíproca de texto e contexto, que se completa no triângulo hermenêutico formado por texto, contexto e intérprete. O dogma cristológico terá sempre força normativa na tradição viva da igreja, dentro dos parâmetros do contexto cultural em que historicamente, se estruturou e no qual há de ser entendido. Consideremos agora na cristologia os elementos bíblicos por parte dos antigos escritores da igreja e a razão disso é porque eles estavam próximos da geração dos apóstolos e dos primeiros discípulos, dos quais deviam ser autêntico os intérpretes e depois porque contribuíram para elaborar fórmulas teológicas ortodoxas no meio de difíceis debates teológicos que deram ocasião aos sete primeiros Concílios ecumênicos. Os padres apostólicos foram aqueles escritores que sucederam imediatamente os apóstolos tais como: São Clemente de Roma (+100); Santo Inácio de Antioquia (+107); Pastor de Hermas... Estes enfrentaram algumas tentativas errôneas em seus tempos, na concepção do mistério da encarnação visto que para os antigos o fato de Deus ter-se feito homem era algo tão grandioso, que tentaram negar a plena ou humanização de Jesus ou a sua divindade. Esta dificuldade aumentou quando campeava um certo dualismo herdado da filosofia grega, que repudiava a matéria como algo mau em si mesmo e por isto não se admitia que Deus pudesse ter assumido carne humana com sofrimentos dores etc. Desta maneira de pensar surgiram duas e heresias: O Docetismo que afirmava que o Filho de Deus teria assumido uma humanidade aparente e não teria 216 sido o verdadeiro homem. Esta posição foi defendida por Cerinto. O Ebionismo que defendia que Jesus foi meramente um homem, que sobre o qual, desceu a força de Deus por ocasião do batismo; ele teria sido um profeta reformador da lei de Moisés. Esta corrente de origem judaica defendia o monoteísmo. Neste contexto surgiu Santo Inácio de Antioquia, o qual com a sua cristologia defendeu a verdadeira humanidade de Jesus afirmando que Ele era da estirpe de Davi, filho de Maria e que realmente nasceu, comeu e bebeu, foi crucificado sob Pôncio Pilatos, morreu e ressuscitou dos mortos. Portanto, Santo Inácio professa a encarnação verdadeira e a obra salvífica de Jesus. Surgiu depois, no século II, o Gnosticismo que valorizava e exageradamente o conhecimento como fator de salvação. Contra esta maneira de pensar surgiu São Justino (+165), que apresentou o Lógos, palavra que a filosofia grega estimava muito, identificando-o com Jesus Cristo. O Lógos de Deus já se manifestava no Antigo Testamento, preparando o mistério da encarnação. Contemporaneamente surge Santo Irineu (+202) que para combater o gnosticismo, o qual admitia diversos senhores e regimes na história da humanidade, utilizou o tema Paulino da recapitulação de todas as coisas em Cristo (Ef 1,10) ensinando a existência de um só Deus Pai e um só Cristo Jesus que recapitulou todas as coisas, tornando-se visível, ele que é invisível, e compreensível, ele que é incompreensível, e homem, ele que é Verbo. Ele assumiu tudo o que é de Adão para santificar e dar início a uma nova humanidade. Ele se encarnou e se fez homem, recapitulando em si a longa história dos homens. No século III surgiu uma nova heresia com duas vertentes: 217 O Monarquianismo modalista, o qual ensinava uma só pessoa em Deus, sendo o Filho e o Espírito Santo modalidades dessa pessoa (o Pai). Foi o Pai que padeceu na cruz, daí o nome também Patripassianismo. Um dos principais defensores desta idéia foi Paulo Samósta, o qual foi condenado no ano 268 por um Sínodo em Antioquia. O Monarquianismo dinamista ou ebionita que ensinava que somente o Pai é Deus e o Filho é um homem que recebeu a dýnamis, a força de Deus como ensinavam os ebionitas dos primeiros decênios. O fundador desta corrente foi Teódoto Bizâncio. Contra essas heresias surgiu Tertuliano (+220), o qual enfatizou a realidade da carne de Cristo afirmando que se Cristo não sofresse a paixão, Ele seria um fantasma e assim seria destruída toda a obra salvífica de Deus. Nega-se consequentemente a ressurreição de Cristo quando se nega a sua carne e com isso a fé cristã tornando-se vã. Outro defensor da fé neste período foi Orígines de Alexandria (+254), o qual afirma que o Filho de Deus assumiu a carne humana e se fez nosso mediador por amor aos homens e em obediência ao Pai. Ensina que o Verbo não assumiu uma aparência de homem e nem apenas a carne humana, mas corpo e alma mediante os quais ele pôde padecer, e nem por isso perdeu o seus atributos divinos. Ele se fez nosso Sacerdote e morreu na cruz, ressuscitado está à direita do Pai a interceder por nós. Explana, portanto satisfatoriamente a obra salvífica de Cristo, considerando a sua morte com sacrifício de expiação perfeito e definitivo, abolindo sacrifícios anteriores. Com o surgimento do século IV houve muita agitação no plano teológico, pois com o Édito de Milão concedido pelo imperador Constantino no ano de 313, a Igreja começou a viver um período de paz o que possibili218 tou mais aprofundamento nas verdades da fé por parte dos estudiosos e dos bispos. Neste e no século seguinte os grandes debates teológicos foram em grande parte inspirados pela escola alexandrina voltada mais aos valores transcendentais e pela escola antioquena apontando mais para a interpretação literal das Escrituras e voltada mais para os valores humanos. A primeira controvérsia teológica deste século foi a do arianismo tendo como representante Ário nascido em 256 e ordenado sacerdote em Alexandria. Ele começou a ensinar a subordinação do Verbo ao Pai, dizendo que Deus nem sempre foi o Pai; houve tempo em que ele era somente Deus e o Verbo de Deus foi feito a partir do nada; houve tempo em que ele não existia.O Verbo é a primeira é a mais digna criatura do Pai. Este ensinamento tomou o nome arianismo ou subordinacionismo ariano. Contra esse ensinamento empenhou-se Alexandre, bispo de Alexandria, o qual condenou essa heresia num sínodo em 318 com a participação de 100 bispos. Mas Ário não se rendeu e foi portanto preciso o imperador Constantino convocar um Sínodo em Nicéia em 325 onde foi promulgada uma fórmula de fé rejeitando o ensinamento de Ário. O ensinamento professava a fé num só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. A fé num só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, o Unigênito nascido do Pai da substância (ousía) do Pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, da mesma substância (homooúsios) que o Pai. Por ele foram feitas todas as coisas, as do céu e as da terra. A fórmula de fé proclama o Filho com a mesma substância (homooúsios) do Pai, ou seja, a identidade do Pai e do Filho entre si. O Filho procede do Pai e o Pai é o princípio do qual procede o Filho. O Filho não é criado, 219 mas procede do Pai, da essência do Pai e não do nada. Ele não é feito, mas nascido. Este Concílio afirmou portanto a distinção de pessoas e a identidade de natureza entre o Pai e o Filho, onde o Filho é tido como Deus e não inferior ao Pai. Embora, o Concílio de Nicéia tenha feito um bom trabalho, os debates teológicos sobre a identidade do Verbo não cessaram e assim continuaram calorosos confrontos teológicos onde alguns se serviram de sutilezas e professavam quase a mesma fórmula do Concílio, mas negando contudo o seu ensinamento, pois ao invés de utilizarem da palavra homooúsios (mesma substância), serviram-se da palavra homoioiúsios (semelhante substância), e assim negavam a identidade de substância do Pai e do Filho. Um dos representantes deste novo ensinamento o foi Apolinário de Laodicéia, nascido em 310 e eleito bispo em 361. Este suscitou uma heresia conhecida por Apolinarismo. Apolinário se perguntava: “Que tipo de homem é Jesus Cristo se ele é o Verbo feito homem?” e afirmava que a união de dois perfeitos não pode redundar em verdadeira unidade, mas sim numa justaposição, por isso se a divindade de Cristo é perfeita, o único modo de salvar a sua unidade é admitir que a natureza humana em Jesus está incompleta, ou carece de uma alma racional. Para ele o Lógos fazia as vezes de alma racional em Jesus e se Jesus tivesse uma natureza humana incompleta, não seria impecável, pois o livre arbítrio é princípio do pecado; assim Jesus não teria capacidade de realizar a nossa redenção. Apolinário professava portanto que o Verbo de Deus veio num homem santo como acontecia nos profetas, mas que o próprio Verbo se fez carne sem assumir um intelecto humano sendo ele próprio o intelecto divino, imutável e celeste. Para ele o Filho não é duas natu220 rezas, uma adorável e outra não adorável, mas uma só natureza; a do Verbo de Deus encarnada e adorada, juntamente com a carne dele numa única adoração. Ele criou uma expressão grega para expressar este seu pensamento desta forma: “Uma só é a natureza de Cristo, a do Verbo de Deus encarnado” (Mia physis tou Theou Lógou sesarkoméne). Apolinário foi condenado pelo sínodo de Alexandria em 362 e também pelo papa São Dâmaso em 377 e 382, e por fim o Concílio Ecumênico de Constantinopla I em 381 confirmou a sua condenação. Este Concílio deu ainda a seguinte motivação para a condenação: “O que não foi assumido, não foi redimido”. Vale a pena também lembrar a resposta de Santo Atanásio, bispo de Alexandria a Apolinário: “O próprio Verbo se fez carne, embora continuasse existir na condição de Deus. Em favor dos homens ele se fez homem segundo a carne e em Maria... este Salvador não teve um corpo inanimado ou carente de sentidos, nem um corpo privado de alma. Não era possível que existisse, no Senhor feito homem por causa de nós, um corpo sem alma, pois por Ele foi realizada a salvação não só do corpo mas também da alma. Se as obras do Verbo Divino não tivessem sido realizadas mediante o corpo, o homem não teria sido divinizado e, viceversa, se as obras próprias do corpo não pudessem ser atribuídas ao Verbo, o homem não teria sido resgatado em sua integridade própria. Uma vez que o Verbo se fez homem e assumiu tudo o que é da carne, as coisas da carne já não são atribuídas ao corpo apenas, pois este foi assumido pelo Verbo, que dignificou as coisas da carne”. As palavras de Atanásio esboçaram um novo aspecto da cristologia: a comunhão de propriedades, ou seja, que o Verbo de Deus feito homem foi sujeito não somente de obras divinas (milagres, ressurreição...), mas também de obras humanas (sofrimento, a morte, dores...). Isso sig221 nifica que a natureza humana assumida pelo Verbo foi causa instrumental das obras realizadas por Jesus. Atanásio esclarece ainda que “O Verbo se fez homem, e não veio a um homem” o que exclui o adopcionismo. No século V defrontamos com uma outra heresia denominada de Nestorianismo tendo como representante Nestório nascido por volta de 381 na Síria. Foi monge e sacerdote e depois, em 427, tornou-se bispo de Constantinopla. Nestório começou a condenar uma devoção popular muito difundida entre os monges e os fiéis: a devoção a Maria, Mãe de Deus (Theotókos) e com isso começou a pregar que Maria apenas era a mãe de Cristo (Christotókos) proibindo que se dissesse que ela era a mãe do homem Jesus Cristo (Anthropotókos), a fim de evitar o perigo do adopcionismo. Nestório defendia que Maria não pôde dar à luz ao Criador, mas deu à luz a um homem, um instrumento da Divindade. Ele, portanto defendia a união moral de duas pessoas em Cristo, como já tinha defendido esta idéia Teodoro de Mopsuéstia + 428 e Deodoro de Tarso +393, os quais ensinavam que em Cristo não havia somente duas natureza completas, mas também duas pessoas ou dois eu: a do Verbo e a do homem e afirmavam a unidade das mesmas no plano meramente moral, ou seja, que havia uma complacência da pessoa doVerbo na pessoa do homem ou na habitação do homem Jesus e com isso não se poderia atribuir ao Filho de Deus as propriedades da natureza humana. Nestório foi condenado pelo Concílio de Éfeso em 431 onde foi aprovada a carta de São Cirilo de Alexandria, tida como profissão da reta fé; esta professava: “Não afirmamos que a natureza (physis) do Verbo se tenha transformado para tornar-se carne. Também não afirmamos que a natureza do Verbo se tenha transformado para tornar-se um homem completo, constituído de corpo 222 e alma. Mas, professamos que o Verbo uniu a si no plano da pessoa, uma carne animada por uma alma racional e se fez homem de modo inexplicável e incompreensível, e assim assumiu o título de Filho do Homem não por simples vontade ou benevolência, nem simplesmente porque assumiu uma pessoa. Afirmamos, além disto, que, embora as duas natureza sejam diferentes uma da outra, elas se uniram em verdadeira união, de tal modo que de ambas resulta um só Cristo e Filho. Isto não quer dizer que desapareceu a diferença das natureza por causa da união, mas, sim, que a Divindade e a humanidade, por um misterioso concurso em pról da unidade, constitui um só Senhor e Cristo...Afirmamos que desde o seio materno o Verbo se uniu à carne humana numa concepção carnal, de tal maneira que tornou sua a geração carnal... e assim os Santos Padres não hesitaram em chamar Theotókos a Santa Virgem. Isto não significa que a natureza do Verbo ou a sua Divindade tenha tido origem no seio da Santa virgem, mas, sim, que foi gerado por ela o corpo santo, animado e racional, ao qual se uniu a segunda pessoa, o Verbo; em conseqüência, este foi gerado segundo a carne” (Ds 250 - 251). É importante salientar que natureza é aquilo que faz algo ser aquilo que é; assim a natureza humana é ser vivente racional. Com a definição de Éfeso ficou claro que a natureza humana concebida por Maria virgem não subsistia por obra de uma pessoa humana ou de um eu humano, mas sim por obra da segunda pessoa da Santíssima Trindade. A união da segunda pessoa divina com a natureza humana se deu no seio de Maria virgem, desde o primeiro instante da concepção de Jesus. Ora como toda mãe é mãe de uma pessoa e a pessoa que Maria gerou é a segunda pessoa da Trindade unida à natureza humana, Maria pode e deve ser dita Mãe de Deus, não porque tenha gerado a Deus desde a eterni223 dade, mas porque no tempo gerou Deus feito homem. Isto explica também a chamada comunicação ou comunhão de propriedades (koinonia ton idiomáton), ou seja, um só sujeito, o eu divino do Verbo, era o responsável de tudo o que Jesus fazia. Ele ressuscitava os mortos mediante a sua natureza divina, e sofreu a morte mediante a sua natureza humana. Ao mesmo sujeito se atribuía tudo o que o eu humano e divino Jesus fazia, pois a pessoa que tudo sustentava era somente a do Verbo Deus. Por fim, em 433 foi assinada uma fórmula de fé que definitivamente firmou a doutrina do Concílio de Éfeso: “Afirmamos que o Jesus Cristo, Filho único de Deus, é Deus perfeito e homem perfeito (composto) de alma racional e corpo, gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a Divindade, e nos últimos dias por nós e pela nossa salvação nascido da virgem Maria segundo a natureza humana. Ele é consubstancial ao Pai por sua divindade, e é consubstancial conosco por sua humanidade. Já que havia a união das duas natureza, professamos um só Senhor, um só Cristo e um só Filho. Visto que compreendemos esta união realizada sem confusão de uma parte com a outra, professamos que a Santa virgem é Theotókos, pois o Verbo de Deus se encarnou e se fez homem, desde o momento de sua concepção...” Mas as controvérsias não pararam por aí e por isso surgirá uma outra heresia denominada Monofismo afirmando que Cristo tinha duas naturezas, mas que por causa da encarnação, se reduziu a uma só, pois a divina teria absorvido a humana daí o nome e Monofisismo (monos = um; physis = natureza). Diante disso, o corpo de Cristo já não seria igual ou consubstancial ao nosso, pois teria sido divinizado. O cabeça desta nova doutrina foi o monge Eutíquio, de um mosteiro de Constantinopla, o qual passou a afirmar que a partir da encarnação 224 do Verbo, só ficava uma natureza em Cristo, a divina. Eutíquio foi excomungado no Sínodo de Constantinopla em 448, mas isto não foi suficiente sendo preciso convocar um outro Concílio geral para Éfeso em 449, contudo este Concílio convocado pelo Imperador Teodósio II e presidido por Dióscoro, proclamou Eutíquio ortodoxo porque parecia fiel à Éfeso e contrário à Nestório. Diante disso, o papa Leão Magno condenou esse Concílio como falso e foi convocado um novo Concílio ecumênico para Calcedônia em 451, o qual teve a participação de 600 membros onde foi solenemente proclamado o mistério de Cristo com base na carta a de São Leão, a qual proclamava: “As duas natureza guardam o que é próprio a cada uma e se unem numa só pessoa. A humildade é assumida pela majestade, a debilidade pela força, a mortalidade pela eternidade. Para saldar a dívida da nossa condição humana, a natureza invulnerável se uniu à natureza para padecer, de modo que o mesmo e único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, tal como convinha à nossa restauração, pudesse morrer, por um lado, e não morrer, por outro lado. Isso quer dizer: o verdadeiro Deus nasceu em natureza de verdadeiro homem plena e perfeita, completo no que é seu, e completo no que é nosso... cada natureza realiza... em comunhão com a outra, o que lhe é próprio, a saber: o Verbo realiza o que é próprio do Verbo, e a carne o que é próprio da carne. Deste modo, enquanto o Verbo brilha por seus milagres, a carne se submete aos ultrajes; e, assim como o Verbo não perdeu a glória que ele tem igual com o Pai, assim também a carne não abandonou a natureza própria da nossa linhagem...”. Este texto reafirmou a consubstancialidade de Cristo com o Pai e a consubstancialidade do mesmo com Maria, resultando duas naturezas completas. 225 Mas muitos bispos tiveram dificuldades para aceitar a fórmula de Calcedônia e propuseram uma fórmula sutil para continuar ensinamento do Monofisismo, daí surgiram duas fórmulas: - O Monoenergismo postulando que em Cristo haveria um só princípio de operação ou atividade e este seria o divino. Seu defensor foi o patriarca Sérgio de Constantinopla. - O Monotelitismo, o qual atribuía a Jesus uma só vontade, tendo a vontade divina absorvido a vontade humana. Estas duas doutrinas apresentavam perigos para a fórmula de Calcedônia e diante disso o Imperador Constantino IV propôs ao papa Agatão a convocação de um Concílio geral para resolver o problema. O papa aceitou a idéia e elaborou uma profissão de fé, enviando-a ao Concílio juntamente com representantes, e assim realizou-se o Concílio de Constantinopla III nos anos de 680 - 681. O Concílio assim definiu: “Apregoamos duas vontades naturais em Cristo e duas operações, sem divisão, sem confusão, sem separação, segundo a doutrina do Santos Padres, todavia duas vontades não opostas entre si... A vontade humana de Jesus segue sem resistência nem oposição, a vontade divina, à qual está sujeita, pois esta é toda - poderosa... assim como a carne de Jesus é carne de Deus, assim também professamos que a vontade natural própria da sua carne é do Verbo de Deus...” (DS 556) O Concílio de Constantinopla III colocou fim aos debates Cristológicos e ficou cristalizada, desta forma doutrina oficial da Igreja com a fórmula de Calcedônia, ou seja, que em Cristo há duas natureza e uma só pessoa (divina). 226 29. MAIS UMA ÊNFASE SOBRE AS CONTROVÉRSIAS CRISTOLÓGICAS Ao falarmos de Jesus devemos pensar conjuntamente em Deus e no homem. A fé procura através da teologia (Cristologia) entender Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Não podemos falar sobre Jesus, mas a partir de Jesus, ou seja, tocados por sua realidade vivida na fé e no amor, e para poder falar a partir dele usamos palavras, instrumentos e modelos do nosso mundo, a fim de entendermos que nossos conceitos não substituem o mistério, mas querem comunicálo dentro de nossa linguagem compreensível. Por isso ao longo dos séculos a reflexão teológica acentuou, ora mais Deus em Jesus em detrimento ao homem, ora o homem em prejuízo de Deus. A ortodoxia se manteve sempre dentro de uma tensão dialética, evitando os extremos até chegar em Calcedônia (451). O primeiro grande problema teve origem no monoteísmo bíblico. Como garantir de forma compreensível a divindade de Jesus? Por isso os ebionistas e docetistas afirmavam que Jesus é Deus, mas que sua humanidade era aparente e por isso Ele não sofreu, e sua morte foi ilusória. Outra corrente denominada Patripassionismo afirmava que Jesus é a encarnação do Pai, e que ele que sofreu e morreu. Outra, o subordinacionismo, afirmava que Jesus está na esfera divina, mas subordinado a Deus. O Arianismo afirmava que ele é o Lógos junto a Deus, mas criado como primeiro dentre todos os seres, pois Deus é único e não pode sofrer nenhum comprometimento com o caráter divino de Jesus. Já o Adocianismo afirmava a filiação divina de Jesus, mas como Filho adotivo e não como Filho Eterno e Unigênito. Por fim, Ário afirmava que Jesus seria só semelhante a Deus e não igual a Ele em sua natureza. Nesta dis227 puta o Concílio de Nicéia afirmou o “Omodúsios”(igual) e não “Oumoiousios” (semelhante) a Deus como queria Ário e assim afirmou que Jesus é “Filho de Deus”, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, nascido, não feito, da mesma substância do Pai, pelo qual tudo foi feito o que há no céu e o que há na terra”. Mas como se relacionam entre si as duas realidades, Deus e homem em Jesus? A escola de Alexandria, um centro cultural e filosófico de renome e de tom platonista ensinou que o Lógos define o homem com ser racional e lógico e em Jesus o Lógos teve sua máxima encarnação; ele é tão profundo em Jesus que quem está diante dele, está diante de Deus mesmo. Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus. Porém o perigo está em afirmar só a natureza divina, a qual absorve o humano de Cristo; assim Cristo teria apenas a natureza divina e uma só Pessoa, a do Verbo, posição defendida por Eutiques. Reduz-se desta forma o mistério de Cristo. Também Apolinário de Laodicéia afirmava que para haver uma unidade íntima e profunda entre Deus e o homem em Jesus, é necessário que uma natureza seja incompleta e esta é a humana; assim o Lógos substitui o espírito humano, diminui o humano. São Gregório Nazianzeno contestou esta idéia afirmando: “Aquilo que Deus não assumiu também não redimiu”. Da mesma forma, outros nesta escola afirmavam que pelo fato da encarnação, a inteligência humana fora substituída pelo Verbo (Monoetismo), ou que foi a vontade humana (Monotelitismo) que foi substituída, ou ainda que o princípio operativo em Jesus provinha só do Verbo (Monergismo). Todas estas posições foram rejeitadas pela ortodixia porque viam a perfeição humana em Jesus estaticamente. 228 Outra escola foi de Antioquia, esta influenciada por Aristóteles. Também esta escola afirmava que duas naturezas completas não podem unificar-se numa única. Dizia Teodoro de Tarso (+394) que a natureza humana e a divina não eram unidas em Jesus, mas agregadas uma na outra, cada qual permanecendo perfeita em si mesmo, e por isso a união em Jesus não é íntima, mas acidental, dando em Jesus duas naturezas e duas pessoas distintas. Diante desta afirmação, Nestório, monge e patriarca de Constantinopla passou a pregar que Maria não é Mãe de Deus (Theotókos), mas somente Mãe de Jesus (Antropotókos), ou (Cristotókos). Ambas as escolas partiram do fato da encarnação de Jesus, e a encarnação não é o ponto de partida, mas de chegada. A escola de Alexandria ensinava portanto a unidade em Jesus quanto à sua pessoa e não quanto às naturezas. Por outro lado a escola Antioquena ensinava a dualidade real em Jesus, mas unicamente quanto às naturezas e não quanto à pessoa. Por isso, com Calcedônia (451) através da influência de Leão Magno, chegou-se à fórmula Cristológica: “Um e o mesmo Filho Nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, com alma racional e corpo, consubstancial ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade, sendo em tudo semelhante a nós exceto no pecado” (Hb 4,15) antes de todos os séculos, gerado do Pai, segundo a divindade, e o mesmo nos últimos dias, gerado da Virgem Maria, Mãe de Deus, por nossa causa e por nossa salvação, segundo a humanidade. Um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor e Unigênito deve ser confessado, subsistindo em duas naturezas de forma inconfundível, indivisa e inseparável. A diferença entre as naturezas jamais fica suprimida por causa da união, antes, a pro229 priedade de cada natureza fica preservada, concorrendo ambas para formar uma só pessoa ou subsistência. Professamos Jesus Cristo não em duas pessoas separadas e divididas, mas um e o mesmo Filho Unigênito, a Palavra de Deus, o Senhor Jesus Cristo, como os profetas antes professaram acerca dele e o próprio Jesus Cristo nos ensinou e o credo de nossos pais nos transmitiu”. Com esta fórmula mantém-se simultaneamente a humanidade completa e a divindade verdadeira de Jesus sem divisão. A intenção do Concílio não foi doutrinal, mas soteriológica, ou seja, afirmou que se Jesus não é Deus então não veio por ele a salvação, e estamos em pecado. Se Jesus não é homem então não nos foi dada a salvação. Se sua humanidade não é “de Deus” então a divindade do homem não foi realizada plenamente e Jesus não é verdadeiramente Deus. Se sua humanidade vinda “de Deus” não é verdadeira humanidade nem permanece humanidade, não é salvo em Jesus o homem, mas outro ser. Para chegar a esta definição o Concílio utilizou as palavras natureza e pessoa. Natureza divina designa que aquilo que Jesus tem em comum com o Pai (Divindade) e em comum conosco (humanidade). A natureza é compreendida como essência, mas o portador destas duas naturezas é o Lógos de tal forma que ele confere a unidade do único Jesus, uma unidade tão íntima que as duas naturezas são atribuídas ao Verbo e por isso podemos dizer: Deus nasceu, sofreu e morreu ou Jesus Cristo Todo-Poderoso. A pessoa (hipóstase) é o princípio de unidade do ser, o modo de existir de Cristo pessoa divina. Para o Concílio em Jesus subsiste apenas a personalidade divina e não a humana, sem com isso querer ensinar que Cristo não tivesse um centro consciente, apenas 230 que isso não era considerado próprio da pessoa, mas da natureza humana, pois o próprio da pessoa é ser o sustentador de atos livres. Como pessoa eterna assumiu Ele para si a “pessoa humana” de Jesus, pessoa não aniquilada, mas totalmente realizada não em si mesma, mas no seio da Pessoa divina (uniãohipostática), assim o homem Jesus se definiu a partir da Pessoa divina. A fórmula de Calcedônia não toma em consideração a evolução de Cristo, pois hoje para nós natureza tem um conceito dinâmico e não estático como era para os antigos. A natureza do homem hoje consiste em dados físicos, psíquicos, a história, a sociologia... e pessoa é essa natureza enquanto ela se possui a si mesma e se realiza dinamicamente na comunhão. Por isso, a fórmula não leva em consideração a evolução em Cristo, conforme nos atestam os sinóticos nem as transformações com a sua ressurreição. A existência de Jesus foi totalmente voltada para os outros e para o Grande outro (Deus), basta considerar o seu relacionamento e sua abertura com o povo (pobres, pecadores, fariseus, mulheres, crianças, doentes...) e para com Deus chamando-o de Abbá. Jesus era completamente vazio de si e repleto do Outro e para os outros, faltava-lhe a hipóstase, o subsistir em si mesmo, o que não era imperfeição, mas máxima perfeição. Por isso ele foi o homem por excelência porque a sua radical humanidade foi conquistada pela entrega aos outros e ao Outro. O seu viver verdadeiro é viver com o seu eu, é um eco do tu e ressonância do Tu Divino. Quanto mais o homem está no outro se torna eu. Ora, Jesus-homem estava de tal forma em Deus, que se identificou com Ele e Deus estava de tal forma em Jesus-homem que se identificou com Ele. O homemJesus pode estar em Deus a ponto de sentir-se seu Fi231 lho, e aqui está a identidade pessoal de Jesus com o Filho eterno, e pode de tal forma esvaziar-se de si (Fl 2,7) a ponto de tornar-se ele mesmo homem, e aqui está o sentido da encarnação. Jesus homem não é o receptáculo exterior de Deus, mas Deus mesmo que entra na história (Jo 1,14); Deus se torna e se faz devir e história com a encarnação de Jesus, por isso Deus vivido pelo cristianismo não é somente o Deus infinito, mas é o Deus que se fez pequeno (Fl 2,7-8). 30. A PESSOA DE CRISTO O caminho para o conhecimento de Cristo não é pelas teorias em torno de suas duas naturezas, mas pela experiência da graça para nós; não importam os juízos metafísicos. Porém a pessoa e a obra de Cristo são inseparáveis, por isso é necessário conhecê-lo. Quem não conhece o mistério de sua pessoa não compreende a sua obra como atesta Mateus 13,54. Por isso a revelação lança luzes tanto na pessoa como na obra de Cristo. Melanchton diz: “Se ignoras para que fim Cristo se encarnou e foi crucificado de nada te aproveita saber a sua história”. A pessoa de Cristo é que confere às suas obras um valor universal e eterno. A pregação do Jesus histórico leva à fé. Os padres da Igreja combateram toda negação da divindade, assim como contra todo o ataque à humanidade de Cristo, e isto não por interesse “ontológico” mas para defender a pureza do evangelho da salvação e pela obra de Cristo. A obra de Cristo é apreendida como obra do “vere Deus et vero homo”. Ao que parece, devemos dizer que a intenção formal de Deus quanto a Jesus Cristo é inserir o dom de si 232 mesmo no gênero humano mais profundamente possível, na própria substância da humanidade, por ele chamada a partilhar de sua vida, ou seja, tornar a sua autodoação a mais total e imanente possível. A esta altura a comunicação de Deus, sua plena autodoação à humanidade, reside precisamente na inserção pessoal do próprio Deus na família humana e na sua história, ou seja, na encarnação do Filho de Deus. É a auto-comunicação imanente de Deus, auto-comunicação criadora e reparadora. Deus que no Antigo Testamento é descrito como Deus dos homens tornou-se em Jesus Cristo o Deus dos homens de modo humano “Cristo é Deus em forma humana e homem em forma divina” (Schillebeeckx). Também Martelet afirma que o motivo da encarnação não é o pecado, mas a adoção. Na adoção o essencial não é a redenção como tal, mas a deificação. Cristo veio dar-nos a possibilidade de sermos Filhos de Deus. A encarnação é nossa adoção, enquanto nele fundamentada, e desse ponto de vista nossa adoção é, por sua vez, a encarnação de Cristo atuando em nós. Mas por que Jesus Cristo? São João (3,16-17) afirma que a vinda de Cristo ao mundo se apresenta como ponto máximo do amor do Pai pela humanidade. Os Padres da Igreja afirmam que “Ele se fez homem para que fôssemos divinizados”. Por isso, assumiu tudo o que era humano, pois, “O que não foi assumido não foi salvo". O “Admirável comércio” entre Deus e o homem em Jesus Cristo, exigia que Jesus descesse até nós para nele nos elevássemos. A economia da salvação representa por parte de Deus, o dom maior de si mesmo à humanidade. Quanto ao tempo, com base na cronologia bíblica, onde 4.000 anos separavam Cristo de Adão, os Padres se perguntavam por que Jesus viera tão tarde e respon233 diam que a humanidade precisava ser preparada para essa vinda. Quanto ao espaço, ou ao lugar em que Jesus escolheu para se encarnar, considerando o pluralismo das culturas e das tradições religiosas da humanidade de hoje, dá a impressão que servindo-se de uma que determinada cultura (a de Israel), e que tenha recolhido o legado de um acontecimento histórico de salvação, inserido exclusivamente numa tradição religiosa em especial, marginalizou-se por exemplo, outras tradições religiosas e culturas mais antigas. Porém, na mentalidade dessas culturas, uma economia da encarnação, como a entende o cristianismo não poderia aspirar ao universalismo. Podemos ainda sustentar a pretensão cristã de universalizar o acontecimento Jesus Cristo diante das outras culturas e tradições religiosas? Para K. Ranher a tarefa mais urgente da cristologia hoje é demonstrar o sentido universal e a dimensão cósmica do evento Jesus Cristo, onde Cristo surgiu como vértice da história da salvação e a cristologia, como sua mais precisa reformulação. Uma cristologia cósmica deveria mostrar em primeiro lugar a dimensão cósmica da encarnação, ou seja, o que significa Jesus Cristo não só para a salvação da humanidade e da história, mas também de todo o universo. Nesse sentido o Pe. Teilhard de Chardin fala-se de um processo evolutivo do mundo como “cristogênese”. Nesta perspectiva, Cristo é considerado globalmente, como o ponto propulsor da evolução cósmica, o fim que atrai para ele mesmo. O Cristo cósmico age como causa final que dirige todo o cosmos para seu fim último, até que Deus seja “Tudo em todos”. O Cristo universal no desígnio de Deus para toda a humanidade e todo o cosmo. 234 O Cristo está no centro do plano de Deus para a criação e para a humanidade e o cosmos, está no centro da história da salvação. Assim, a mensagem cristã está aberta para todas as culturas, podendo se exprimir em cada uma delas, embora não significa que possa se adaptar a tudo o que aparece nas culturas e nas tradições religiosas da humanidade. Sabemos que a experiência religiosa de Israel baseia-se inteiramente na aliança de Javé com seu povo e não em considerações filosóficas sobre a criação. É a partir da vigência desta aliança, que o mistério da criação divina penetra consciência de Israel. É, desde o início, o mistério da salvação, ponto de partida do diálogo salvífico de Javé com todos os povos. Essa reflexão progressiva que vai da aliança até a criação, acompanha a longa caminhada de Israel na descoberta do Deus único, caminhada que culmina no monoteísmo, onde o Senhor é um sonho (Dt 6,4-5). No centro dessa história figura a fé cristã e vige o evento Jesus Cristo. Hoje alguns teólogos distinguem as perspectivas eclesiocêntrica, cristocêntrica e teocêntrica. Afirmando outras três exposições a saber: o exclusivismo onde se afirma a exclusividade da salvação por meio de Jesus Cristo confessada na Igreja (Kraemer). Para ele o único conhecimento válido de Deus é o cristão; o Deus dos outros é puro ídolo. Jesus Cristo é a condição para alguém se salvar. "Fora da igreja não há salvação", posição esta não condividida com a Igreja católica. Alguns ensinam uma mediação construtiva da Igreja, que se acrescenta, embora não no mesmo nível, a mediação necessária de Jesus Cristo. Outros mais próximos do linguajar neotestamentário, que nos apresenta Cristo como mediador único, descrevem o papel da Igreja não tanto como em termos de mediação quanto de presença, sinal, sacramento e testemunho (J. Schinel235 ler). “Jesus Cristo e a Igreja são meios constitutivos, mas não exclusivos de salvação”; “Jesus Cristo, meio constitutivo de salvação, e a Igreja, meio não constitutivo”. Parece difícil explicar como a mediação da Igreja, no plano da salvação, poderia se estender para além de suas fronteiras. Enquanto essencialmente sacramental, essa mediação se exerce pela palavra proclamada e pelos sacramentos, abraçados por membros da Igreja, mas não por fiéis de outras tradições religiosas. Muitos autores recentes apoiam a mudança de paradigma, ou seja, que se passe do cristocentrismo ao teocentralismo, do inclusivismo ao pluralismo. Isto porque para alguns a pessoa de Jesus Cristo é vista como não-constitutiva da salvação, mas sempre normativa; para outros, não é nem constitutiva nem normativa. (Tillich defende a primeira posição e John Hick a segunda). Quanto ao pluralismo teocêntrico, John Hick defende uma “Revolução Copernicana”, propondo uma mudança de paradigmas da perspectiva cristocêntrica tradicional para uma nova perspectiva teocêntrica. Essa “Revolução Copernicana”, quer fazer compreender que após tantos séculos afirmando que as demais tradições religiosas giravam em torno do cristianismo como seu centro, hoje se deve reconhecer que o eixo em volta do qual giram todas as religiões, inclusive o cristianismo, só pode ser Deus mesmo. Essa mudança de paradigma implica necessariamente o abandono de qualquer posição privilegiada, seja do cristianismo, seja do próprio Jesus Cristo. Também Knitter propôs a substituição do paradigma teocêntrico pelo soteriocentrismo e também pelo reinocentrismo. Todas as religiões oferecem a salvação e a libertação humana. Diferenciam-se entre si, mas todas se dizem caminho de salvação para seus membros. O critério para avaliá-las é como contribuem para a libertação a integral da pessoa. Da mesma forma, 236 todas as religiões devem ser sinais da presença do Reino de Deus no mundo, empenhando-se igualmente no seu crescimento. Em suma, a que responde melhor as três posições é aquela do inclusivismo (defendida por K. Rhaner), onde se afirma que Jesus Cristo é a revelação decisiva de Deus e o salvador absoluto; de outro lado, abre-se a porta ao reconhecimento sincero de manifestações divinas na história da humanidade e nas diferentes culturas e de elementos de graça no bojo das demais tradições religiosas para a salvação de seus adeptos. O Inclusivismo defende que a salvação vem só de Deus em Jesus Cristo e que a vontade salvífica de Deus é realmente universal. Afirmar que o Cristo está no centro do plano de Deus para a humanidade não significa alçá-lo a escopo e fim para o qual tendem a vida religiosa e as tradições religiosas de todas as pessoas. O escopo e o fim é sempre Deus Pai. Jesus jamais o substituía. Se Jesus Cristo ocupa o centro do mistério, é porque foi constituído pelo próprio Deus como mediador necessário, como o caminho que conduz ao Pai. Ele ocupa o centro, porque Deus mesmo aí o colocou, e não os homens. Daí decorre que o cristocentrimo e o teocentrismo, na teologia cristã, não parecem representar perspectivas que se opõem uma à outra, obrigando-nos a escolher uma das duas. A teologia cristã é teocêntrica, porque é cristocêntrica e vice-versa. Para concluir é importante ter em mente uma cristologia renovada no seu aspecto histórico, pessoal trinitário e soteriológico. Quanto ao aspecto trinitário devemos afirmar que Jesus é o Verbo e o Filho de Deus encarnado e que em sua humanidade se relaciona de forma pessoal com o seu Pai e com o Espírito Santo. Daí a necessidade da construção de uma cristologia do Espírito, que enfatize a influência do Espírito Santo na vida 237 terrena de Jesus desde a sua concepção, por obra do Espírito Santo até a sua ressurreição. Entre Jesus Cristo e o Espírito Santo não há duas economias de salvação, mas uma só: A economia cristopneumática, interdependentes e complementares. Por outro lado o cristocentrismo por sua natureza, é teocêntrico. Em Jesus Cristo revela-se um Deus diferente, um Deus único que falou e se comunicou pessoalmente, mas que na plenitude dos tempos falou pelo seu Verbo feito carne. Jesus é a face humana de Deus, em Jesus, Deus se tornou: “Deus para os homens de modo humano; tornou-se o homem para os outros”. 31. O CONHECIMENTO HUMANO DE JESUS Que tipo de conhecimento humano teve Jesus? Conhecimento perfeito ou conhecimento limitado? Afirmamos que hipostaticamente unidas as duas naturezas não se fundem. A natureza humana conserva se integralmente. Com isso, as perfeições da natureza divina, no caso o conhecimento divino, não são comunicadas, diretamente à natureza humana. Mas como as duas naturezas também não estão separadas uma da outra, o conhecimento de Jesus é o conhecimento do Filho de Deus. O estado quenótico da existência humana de Jesus deixa perceber a que a glória divina permanece recolhida em sua vida terrena, até a hora de sua glorificação. Deixa perceber também que o Verbo, tendo assumido plenamente a condição do gênero humano, com exceção do pecado, participa de nossa situação, marcada por sofrimentos e pela morte. As perfeições humanas de Jesus são proporcionais ao seu estado quenótico e se prendem à sua missão. Para ver como a tradição apostólica entendeu a 238 humanidade de Jesus, é essencial retomar os evangelhos. Na realidade, eles não testemunham só as imperfeições do homem Jesus, mas também a suas limitações: certos conhecimentos, a tentação, a agonia no horto, o grito na cruz... Quanto aos conhecimentos de Jesus, a tradição evangélica relata sua extraordinária perfeição. Ele fala do Pai como alguém que está vendo (Jo 7,15). Conhece os segredos dos corações (Lc 6,8) precisa o futuro, embora se deva tratar com cautela a predição de sua morte e ressurreição. João diz que Jesus conhecia tudo (Jo 16,30) e Lucas afirma que Jesus era cheio de sabedoria (2,40), embora afirme que Jesus crescia em sabedoria (Lc 2,52.) e chegou a admitir desconhecimentos (Mt 24,36). A teologia fala e de 3 espécies de conhecimento humano perfeito e universal em Jesus: a visão beatífica dos bem-aventurados no céu, o conhecimento infuso (angélico) e o saber de experiência. Contudo os teólogos não estão de acordo em admitir a visão dos bemaventurados em Jesus durante a sua vida terrena, mesmo porque o Verbo se fez carne. Qual a diretriz, no dogma cristológico, para solucionar o problema da psicologia humana de Jesus? O III Concílio de Constantinopla apontou expressamente, “Duas vontades naturais e duas operações naturais” em Cristo; nenhum Concílio cristológico apontou algo parecido em termos de conhecimento duplo: o divino e humano. Mas a presença em Jesus de um conhecimento humano faz parte da doutrina da fé, porque decorrente da integridade da natureza humana. "Cada natureza realiza em comunhão uma com outra o que lhe é próprio, ou seja, o Verbo opera o que do Verbo e a carne o que é da carne”. Não se pode provar que Jesus tenha tido a visão beatífica na terra. Seu conhecimento íntimo do Pai, por 239 mais direto e imediato que tenha sido, não a supõe necessariamente. A verdade é que Jesus tinha experiência pessoal e humana do Pai: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Ele fala de uma experiência imediata de relação profunda e pessoal com o Pai derivada de sua própria vida divina. Um conhecimento e infuso ou profético dificilmente explicaria o caráter imediato íntimo desse relacionamento pessoal. Por conseguinte, é preciso garantir que Jesus nesta vida, teve “visão imediata” do Pai. Isso na verdade, fazia parte do conhecimento humano subjetivo que Jesus possuía de sua filiação divina, sobre o qual antes se falou. Subjetivamente, Jesus estava consciente de sua identidade pessoal de Filho. Jesus também teve o conhecimento adquirido pela experiência durante a sua vida; trata-se de um saber naturalmente limitado, não total, pois ele aprendia com o povo, com os acontecimentos, com a natureza, com a experiência etc. De tudo o que estava relacionado à missão de Jesus, não se pode descartar alguma ignorância real. É sobretudo a propósito do dia do juízo que se coloca essa questão, onde Jesus afirma que não conhece “o dia” (Mc 13,32). Alguns Padres da igreja como Atanásio e Cirilo de Alexandria, admitiram que Jesus desconhecia “o dia”. Outros, como Jerônimo e João Crisóstomo, ensinaram que ele sabia, mas confessava não o saber, porque não era sua missão revelá-lo. Para Agostinho, sendo o não saber conseqüência do pecado, Jesus não poderia ignorar nada. Outros padres enfim, entenderam que Jesus sabia e, ao mesmo tempo não sabia. Na visão beatífica que abarca tudo, ele sabia; mas não sabia no sentido de que, não lhe cabendo revelar seu conhecimento, não o traduzia em linguagem comunicável e dessa forma Jesus teria confessado a sua ignorância. Se o dia do juízo não constava na missão reveladora de Jesus, não era 240 preciso que o conhecesse e então, simplesmente não o conhecia. É preciso afirmar contudo, que pelo conhecimento infuso e profético, Jesus conhecia tudo o que precisava saber, em sua missão reveladora e salvífica. Jesus sabia, sem erro algum, tudo quanto interessava à sua missão . Outra questão que podemos lembrar é aquela da fé de Jesus; e muitos teólogos afirmam que Jesus viveu uma verdadeira vida de fé. Na verdade, a fé não deve ser concebida como a adesão à verdades reveladas, mas no sentido bíblico, como a entrega confiante e pessoal a Deus. A carta aos Hebreus (5,7-9) fala que Jesus durante a sua vida terrena rezou. Nesta oração está representada a vida de fé para Jesus em seus aspectos mais trágicos e profundos: a luta na busca da vontade do Pai e na submissão a ela. 32. A HUMANIDADE DE CRISTO A Igreja primitiva incluiu no credo a profissão de fé “vere homo”. Ela poderia reservar para um plano secundário a confissão de Cristo como verdadeiro homem, certo de que Cristo é Deus e de que só Deus poderia salvar o homem. A igreja poderia muito bem não dar lugar para o humano, mas ao invés defendeu a humanidade de Cristo com igual ardor com que defende sua divindade. Por quê? Por fidelidade à Sagrada Escritura, a qual diz: “o Verbo se fez carne” autêntica em tudo exceto no pecado. A igreja não se contentou em repudiar o erro de Ário, mas também condenou o docetismo que afirmava apenas um corpo aparente, não carnal em Cristo, idéia esta defendida por gnósticos entre os quais Marcion. Houve também um docetismo mais sutil que não afirmava que o corpo de Cristo 241 era mera aparência, porém deixava a sua humanidade incompleta. Hoje ninguém nega a humanidade de Cristo. O docetismo via uma radical impossibilidade de genuína união entre Deus e o homem, isto devido ao dualismo metafísico. Para o docetismo é impossível o Lógos unir-se com a carne humana, e se João tivesse falado que o Lógos “se fez espírito humano” assumindo a união como uma parte humana mais elevada e mais próxima de Deus, até que os docetistas poderiam aceitar, entretanto para ele é impossível a união do divino e da carne e assim não se admitia a união hipostática, e consequentemente dá ao corpo de Cristo uma aparência; como um fantasma humano. Para o docetismo o homem deve ser livre do terrestre, do carnal, que é fonte de pecado, por isso o divino encarnar na matéria humana é contradição. Marcion viu em Gal 4,4 “nascido de mulher”, uma interpretação de texto, pois Cristo veio salvar o mundo, mas alheio à criação e à carne, por isso o seu corpo é aparência, disposto a sentir, a agir e a padecer como homem, mas com a aparência de homem sem a substância da carne. Inácio denunciou este erro, confirmando a autenticidade da encarnação e a veracidade da carne de Cristo, assim como a realidade de sua morte. Ele afirma: “Alguns pretendem que Jesus sofreu só em aparência... Se Cristo sofreu apenas em aparência, de que proveito me será carregar as algemas e ir lutar contra as feras do erro?...Negar sua carne, significa blasfemar contra ele e atentar contra a salvação do Senhor”. Também Tertuliano combateu fortemente o docetismo e Irineu destacou a veracidade da carne de Cristo. Posteriormente houve um outro tipo de docetismo mais refinado onde os erros foram mais difíceis de serem definidos e portanto mais perigosos. Este não ne242 gava a natureza humana de Cristo, mas a diminuía e até mutilava-a e a tornava inautêntica. Esta surgiu com Apolinário e o Monofismo. Apolinário concordou com a definição de Nicéia que condenou Ário, mas ensinou que o Verbo fazendo-se carne não assumiu o espírito humano, mas apenas o corpo humano, com isso o monofisismo fez uma síntese das duas naturezas em uma única natureza divino-humano, onde a natureza humana divinizada é absolvida pela supremacia do divino de Cristo de modo que não é possível falar em veracidade e perfeição da natureza humana. O “vere Deus”, absorve o “vero-homo”. Não faltou quem em consonância com este pensamento pensasse que em Paulo houvesse vestígios de docetismo. Paulo opõe pneuma-espiritual e carne, indissoluvelmente ligado pelo pecado e não impede que o homem carnal possa tornar-se homem espiritual pelo batismo. Assim Bakel ensina que Paulo devia considerar a carne de Cristo como um elemento que contrariava este homem pneumático. Ele baseia-se em Rm 8,3: “Deus enviou o seu Filho na semelhança da carne pecaminosa...”e Fl 2,7: “Tornando-se em semelhança de homens”. Com isso, segundo Bakel, Paulo encara o docetismo sem medo. Entretanto devemos lembrar que Paulo escreveu que “Cristo nasceu de uma mulher...” (Gl 4,4). Portanto no NT não há vestígios de docetismo, aliás, é contra ele, basta lembrar 1Jo 4,2s onde João reprova os falsos profetas com suas doutrinas que negam a encarnação, a idéia escandalosa do Filho de Deus, Salvador sofrer a degradação do contato direto com a matéria. O docetismo é antagônico com os evangelhos, os quais até após a ressurreição não mudam o homem Jesus “Porque vos perturbais... vede minhas mãos e 243 meus pés, sou eu mesmo apalpai... um espírito não tem carne nem osso...” (Lc 24,38s), Jesus pede algo para comer, o que expressa uma tração realisticamente antidocetista. Jesus ressuscitou e precedeu os discípulos na Galiléia (Mt 28,7; Mc 16,7), para Tomé que duvidou, o ressuscitado pede que coloque o seu dedo em suas feridas (Jo 20,27), as mulheres abraçaram os pés de Jesus ressuscitado (Mt 28,9) e Jesus sopra sobre os discípulos (Jo 20,23), impõem-lhes as mãos (Lc 24,50). João relata a realidade da ressurreição com verbos sensoriais “nossas mãos apalparam-no...” (1Jo 1,1); não foi, um contato casual. Portanto mesmo depois da ressurreição é visível a humanidade de Jesus “comemos e bebemos com ele depois que ressurgiu dos mortos” (At 1,4 ; 10,41). O próprio Paulo diz: “Se Cristo não ressuscitou vã é nossa fé...” (1Cor 15,17s). Cristo é o homem Jesus que teve sua origem histórica como Filho de Davi (Lc 2; Gl 4,4); ele experimentou a fome, a sede, o cansaço, o sono, a tristeza, a angustia, o sofrimento. Convinha que ele se tornasse semelhante aos seus irmãos (Hb 2,17-18). Como criança cresceu e se fortaleceu (Lc 2,40-52). Quando excluímos qualquer ignorância relativa ao presente, ao passado e ao futuro de Cristo, devemos admitir que sua alma gozava de onisciência divina devido a união com a inteligência divina. Cristo teve uma ciência adquirida e progressiva; aquela própria dos homens e foi sujeito ao aprendizado. Cristo possuía, como ensina Tomás de Aquino, a visão plena e perfeita de Deus desde a concepção, e isto explica-se pela união hipostática. Po isso, em Cristo não houve a fé, pois desde o momento da concepção viu perfeitamente a Deus e a sua essência, já que a fé é a garantia das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se vêem (Hb 11,1). 244 Para a teologia protestante não há separação entre a natureza divina e humana unidas hipostaticamente em Jesus e por isso ela aceita a fé e a contemplação em Cristo; ele acreditou e esperou. O católico Van Der Meer baseando-se na Sagrada Escritura, reconhece o autêntico desespero de Cristo, as suas dores, o abandono e o seu sofrimento. Também Romano Guardini afirma o realismo dos sofrimentos de Cristo e que ele “desceu, numa forma inconcebível, às profundezas do inferno”. Assim a nossa salvação está ligada indissoluvelmente à veracidade da natureza humana de Cristo. Tanto Caifás como Pilatos com o seu ecce homo, exprimem segundo a Igreja, que Jesus é o verdadeiro homem escarnecido que deve morrer por nós, que sendo igual a Deus assumiu a condição de servo para nos salvar. 33. A PSICOLOGIA HUMANA DE JESUS O III Concílio de Constantinopla instigou a reflexão cristológica da Igreja para os problemas da psicologia humana de Jesus ao afirmar que no mistério do sofrimento, paixão e morte de Jesus, ele se submeteu à vontade do Pai com um ato autêntico de vontade humana. Alguns teólogos fazem a seguinte objeção: se a pessoa ontológica do Filho de Deus é comunicada à humanidade de Jesus e, consequentemente, existe pelo ato de ser do Filho, não será, então, impessoal sua humanidade e, em última análise, real sua existência humana? Negando em Jesus uma pessoa humana, não se torna ele real? Em que sentido se pode falar de Jesus como pessoa humana? Na verdade, uma pessoa “Divino-humana” é uma que é também verdadeiramente humana e no sentido 245 interior de que o Filho de Deus feito homem usufrui, atualiza e desenvolve uma genuína personalidade humana. Assim escreve W. Kasper: a afirmação da humanidade de Jesus e, por conseqüência, o ato de unificação máxima constitui essa natureza em sua autonomia criatural. Em forma humana, ou seja, de modo a garantir a liberdade humana e a autoconsciência humana, a humanidade de Jesus está, assim unida hipostaticamente ao Lógos. Justamente porque ele não é senão o Lógos, é também no Lógos e por meio dele uma pessoa humana. E vale também afirmação vice-versa: a pessoa do Lógos é a pessoa humana. Pode-se fazer também a seguinte pergunta: o modelo cristológico tradicional de uma pessoa em duas naturezas não teria, de fato, desconsiderado a humanidade autêntica, histórica e concreta de Jesus? Diante desta pergunta P. Schoonenberg afirma que não seria Jesus uma pessoa divina a assumir a natureza humana, mas uma pessoa humana em que Deus em seu Verbo está de forma plena, presente e atuante. Desse modo, o dualismo aparente da cristologia das duas naturezas ficaria superado e a condição divina de Jesus recolocada onde o Kérigma primitivo a focalizou, ou seja, não além e acima de sua existência humana, mas dentro dela. 1. A unidade psicológica e a autoconsciência de Jesus A unidade ontológica da pessoa de Jesus Cristo pressupõe sua unidade psicológica. Como conceber unidade psicológica em Cristo? Qual o centro de referência de suas ações humanas? Se em Jesus não há pessoa humana, como fazer da consciência humana o centro de referência? É bom lembrar que o III Concílio de Constantinopla afirmou que em Jesus há uma vontade e uma 246 atividade autenticamente humanas, sem oposição a vontade divina, antes perfeitamente sujeita a ela. Por outro lado, as duas vontades e ações não podem ser vistas como paralelas e nem se pode dizer que a vontade divina atue hegemonicamente, regulando e determinando de um modo manofisista, uma vontade o humana passivamente manipulada. Então, como conciliar a iniciativa autêntica da vontade humana de Jesus e sua submissão moral à vontade de Deus? Em Jesus não há duas linhas de ação paralelas nem uma ação teândrica, derivada da fusão das duas ações e vontades. É preciso afirmar que as duas vontades constituem uma unidade orgânica, em comunhão de bens subordinação. Os atos humanos são genuínos, mas são atos humanos do Filho de Deus. O Verbo de Deus somente fazendo-se homem que se tornou também algo a menos do que é em si mesmo (K.Ranher), assim também suas ações humanas são algo a menos do que as divinas. Contudo, como Jesus é, em pessoa, o Verbo encarnado, do mesmo modo seus gestos humanos são pessoalmente, gestos do Filho encarnado. Partindo da cristologia do “homo assunptus” da escola antioquena Déodat, concebeu o diálogo entre Jesus e Deus como um "duelo de amor" entre Jesus homem e Deus trino. Embora o “homem assumido” não fosse uma pessoa humana, porque "acrescentado ao Verbo, o ego humano de Jesus permanece plenamente autônomo. O “homem assumido” encontra Deus trino num “duelo de amor”. Seiller ensina que a união hipostática não atingia a psicologia humana de Jesus. O “homem assumido” age como se fosse pessoa humana. Ele é o sujeito plenamente autônomo dos próprios atos, sobre os quais o Verbo de Deus não exerce a mínima influência. A obra Seiller de foi posta no Index em 1951, porque, concedendo o ego humano de Jesus como sujei247 to autônomo, não salvava a unidade da Pessoa divina ontológica. O teólogo Galtier defendeu que Jesus, homo assumptus, embora não sendo uma pessoa humana, tinha um ego psicológico humano, isto é, um centro de referência de seus atos humanos. O ego inserido nas palavras de Jesus nos evangelhos não se referia à Pessoa divina do Verbo, mas exprimia a personalidade humana. Ademais, como a natureza humana de Jesus é completa, ela possui naturalmente uma consciência humana pela qual, já que a consciência pertence à natureza, a natureza humana de Jesus faz se intencionalmente presente a si mesma, em suas ações humanas. Portanto, os atos e as experiências humanas de Jesus reportam-se a um centro humano psicológico e empírico. Resumindo, segundo Galtier, existe em Cristo um ego humano psicológico e sua natureza humana goza de plena autonomia, sendo que, pela visão beatífica, Cristo tem conhecimento objetivo de sua identidade divina. Outro teólogo, Pe. Parente afirma que não existe nenhum ego humano psicológico como centro de referência das ações humanas de Jesus. O ego presente nas sentenças evangélicas é, diretamente à Pessoa divina. Pela união hipostática, a natureza humana não só se auto-expropria substancialmente, como é também comandada e guiada hegemônicamente pelo Verbo em todas as suas ações. Ela é assim, inteiramente heterônoma. O Cristo possui consciência de sua pessoa divina. Nesta linha pode-se afirmar que a consciência humana de Jesus não é a natureza em sua autopossessão intencional, mas a pessoa divina, ontológica, e isso porque a consciência é o ato da pessoa na natureza e por meio da natureza. Por isso o centro último de referência dos atos humanos de Jesus é a Pessoa divina do Verbo. O ego dos enunciados evangélicos de Jesus é, 248 o Verbo de Deus em uma consciência humana. O ego de Jesus dos evangelhos é o Verbo, mas precisamente enquanto consciente, de maneira humana, em sua humanidade. O ego humano de Jesus é, na realidade, nada mais que o prolongamento, da auto-consciência humana do ego da pessoa do Verbo. O Verbo, sem tal centro humano de referência não poderia estar cônscio de suas experiências humanas como verdadeiramente suas. A natureza humana de Jesus, porque hipostaticamente unida ao Verbo, é toda expropriada, ontológicamente, em ordem à pessoa. As ações humanas de Jesus são, realmente ações do Verbo Deus. Ele é quem age nelas, exercendo sua causalidade pessoal. Mas essa expropriação total quanto à pessoa não diminui em nada o senso de responsabilidade e de iniciativa de Jesus. Justificar pela visão beatífica o conhecimento que Jesus tinha de sua divindade é tese que não convence por diversos motivos. Primeiro porque a consciência por parte de Jesus de sua própria identidade pessoal, seria inferior que os homens têm ordinariamente. Uma pessoa tem conhecimento subjetivo e não apenas objetivo da própria identidade. Por fim, como se verá depois, a visão beatífica de Jesus, durante sua vida terrena, é uma suposição gratuita, não explicada pelo Novo Testamento. Uma explicação a partir de baixo nos leva a considerar o homem Jesus subjetivamente consciente da própria divindade por sua consciência direta com a união hipostática. Vale dizer, a união hipostática invade a esfera consciente do homem Jesus. Portanto, o ego usado por Jesus dos evangelho, se refere à pessoa do Verbo, enquanto autoconsciente, de maneira humana. Uma outra explicação a partir do alto inverte a perspectiva. Não se questiona como pode o homem Jesus saber que é Deus, mas como Filho de Deus sabe que é homem. Ao assumir a natureza humana e, com ela, 249 uma consciência humana, o Verbo de Deus torna se autoconsciente de maneira humana. O centro referencial dessa tomada de consciência é a pessoa divina. O Verbo que, assumindo a natureza humana, estende sua força até a consciência humana de Jesus. Portanto, a consciência humana do Filho de Deus é o prolongamento da consciência humana do mistério da união hipostática. O ego hipostático do Lógos torna-se autoconsciente na natureza e na consciência humana. O ego é a pessoa divina humanamente cônscia. É o ego humano do Verbo. Concluindo, pode-se afirmar que a pessoa e única divina do Verbo é em Jesus, autoconsciente de modo humano, o que supõe a existência nele de um ego humano psicológico. A consciência humana é própria do Verbo, enquanto a divina é comum às três pessoas da Trindade. Na vida divina e intra-trinitária emerge de uma consciência do nós, com três centros focais de consciência. Ao contrário, a autoconsciência humana de Jesus instala uma relação dialógica “eu-tu” entre o Pai e o Verbo encarnado. Não é fácil traçar o perfil psicológico da personalidade de Jesus, entretanto, fundamentando-nos nos evangelhos, podemos concluir alguns aspectos de sua personalidade os quais não se enquadram nos esquemas dos profetas e dos Messias do seu tempo. Juan Arias afirma que a religião judaica que Jesus professava na qual estava tão arraigada a idéia do sacrifício, da culpa, da expiação dos pecados, do castigo de Deus a seu povo, da perseguição, da humilhação, se colocava como uma espécie” psicólogo da felicidade”. Da mesma forma, nessa sociedade de miseráveis, de marginalizados, de pessoas marcadas por doenças e possessões demoníacas, num povo oprimido pelo império romano e portanto passível de falta de esperança; numa sociedade onde a pessoa humana não tinha qualquer importância, sobretudo 250 a mulher e a criança, onde existia a escravidão e o povo era oprimido pelo peso da lei, onde os privilegiados oprimiam e eram despóticos, Jesus se coloca como “o profeta do impossível”. Jesus era um grande conhecedor da psicologia humana e compreendia não apenas as dores externas, mas também as internas das pessoas. Ele lutou para a felicidade de todos, não foi um masoquista, Ele queria a cura de todos, não queria o sofrimento de ninguém. Não foi um asceta e afirmava que não queria sacrifícios e sim misericórdia. Suas parábolas eram carregadas de símbolos cheios de felicidades e por isso pregava a simplicidade da vida, o desapego das coisas terrenas, a confiança na Providência Divina como os pássaros no céu. 34. A IMPECABILIDADE DE CRISTO Se Cristo é verdadeiramente homem não deveria participar da natureza pecaminosa do homem? Pode-se eximi-lo do pecado? Pode-se reivindicar sua impecabilidade absoluta? Como conciliar a sua impecabilidade com sua paixão? Diante destes questionamentos afirmamos que Cristo não pecou; basta examinar a sua vida e o seu comportamento diante das tentações. Os textos bíblicos sobre a santidade de Cristo são abundantes: “Aquele que não conhece pecado...” (2Cor 5,21). “Ele não cometeu pecado...(1Pd 2,22). “Nele não existe pecado”(1Jo 3,5). “Cristo morreu, o justo pelos injustos” (1Pd 3,18). “Tu és o Santo de Deus”(Jo 6,69). “O Santo que de ti há de nascer” (Lc 1,35)... “Tu és o Santo de Deus” (Mc 1,24). “Quem de vós pode acusar-me de pecado?” (Jo 8,46). Ele foi acusado de transgredir a lei, o sábado por causa da interpretação legalista (Jo 7,23). Seu alimento é fazer a vontade do Pai (Jo 4,34). 251 Por que Jesus batizou-se (Lc 3,21), já que o batismo de João era para remissão dos pecados? (Mc 1,4). João afirma-lhe não ser digno de batizá-lo, no entanto Jesus responde-lhe que é preciso cumprir toda a justiça. (Jesus também circuncidou-se e foi apresentado no Templo ...). Jesus batiza-se não porque era tradição, mas por desígnio especial de Deus. Ele sem qualquer privilégio ele entra e toma parte do povo pecador, embora sem pecado, para solidarizar-se conosco. Ele batizado é revelado como o Cordeiro que carrega os pecados do mundo. Embora Filho de Deus suportou o sofrimento, aprendendo a obedecer. “Jesus, nos dias de sua vida mortal...”(Hb 5,7). Jesus teve que aprender a obedecer? Seu aprendizado na obediência não se refere a uma evolução ética na sua vida, mas sim a uma maturação, “No cumprimento da função cristológica”(Grosheide), ou seja, cada dia Jesus compreendia mais a sua missão; sua obediência provém portanto de uma realidade dinâmica. Diante disso compreendemos a sua angústia no Getsêmani e também sua obediência (Mc 14,36). Cristo aprendeu a obediência neste caminho de dores, e esta foi um aprendizado na sua genuína natureza humana. A Sagrada Escritura narra as tentações reais de Jesus (Mc 1,12) no deserto. Mas não foram somente estas, pois existiram outras: “vós sois os que tendes... (Lc 22,28). Toda sua vida foi partilhada de tentações: “Afasta-te de mim satanás... (Mc16,22-23); ele foi tentado em todas as coisas “Temos nele um pontífice... (Hb 4,15). Sendo que foi tentado, será que ele possuía a impecabilidade? Windisch afirma que se Cristo não pecou não se deve a uma impecabilidade de natureza, mas à vontade de resistir ao mal. Scheiermacher aceitando a impecabilidade e perfeição absoluta de Cristo, afirma que o desenvolvimento 252 de Cristo deu-se sem luta, “porquanto não é possível que alguma luta interior ocorra sem deixar vestígios”. Os evangelhos demonstram que a santidade de Cristo não suprime as emoções e as angústias, nem o seu desejo de glória já desfrutado junto do Pai, mas não aparece jamais a relutância em afastar o cálice e a vontade do Pai. Ele afirma que a vontade do Pai seja feita. “Meu Pai, se é possível... (Mt 26,39-42). A teologia, tanto católica como protestante, afirma que a impecabilidade de Cristo decorre da união hipostática. “A união pessoal de Jesus com o Verbo Divino constitui como que uma santidade substancial” (Philips). “A impecabilidade de Cristo deriva da impecabilidade de Deus” (Winkler). Cristo só poderia ter pecado por oposição livre contra a vontade de Deus o que é impossível porque o conteúdo da vontade de Deus é a vontade do Verbo. Para Schmaus Cristo embora dotado de vontade humana, ele não é um Eu humano, mas um Eu divino, e o eu divino é o responsável por todas as iniciativas de Cristo. Para Krupper, “em Cristo houve a possibilidade de pecar, mas porque ele revestiu-se não de uma pessoa humana, mas só de natureza humana, nunca houve nele um eu humano que pudesse realizar tal possibilidade de pecar. Cristo é o Filho de Deus, é um com o Pai, cumpre sempre a sua vontade, por isso é absurdo afirmar a pecabilidade de Cristo”, diz Bavinck; admitir a pecabilidade de Cristo é negar a união hipostática. Já para Vogel (protestante) a impecabilidade de Cristo não tem nada a ver com a impecabilidade divina, não é uma impecabilidade metafísica, mas contingente, ligada à vontade de nos dar nele o Salvador sem mácula. Diante das tentações de Cristo no deserto, as quais estavam relacionadas com sua missão messiânica, Cristo não podia furtar-se ao caminho do sofrimen253 to porque não podia desistir de seu amor para salvarnos, assim alguns teólogos procuram explicar a santidade de Cristo pela disposição de seu ato redentor de sua decisão de beber até o fim o cálice. O Concílio de Éfeso (431) afirma: “Anátema seja quem disser que Cristo se ofereceu em sacrifício também por si mesmo e não exclusivamente por nós”. E o Concílio de Calcedônia (451), ensina que “Cristo se fez semelhante a nós em tudo exceto no pecado”. O evangelista Lucas (2,52) afirma que o “Menino crescia em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens”. Deus não assumiu a humanidade em abstrato, mas o homem concreto e historicamente condicionado. Deus foi assumindo a natureza humana de Jesus na medida e que esta ia se manifestando e desenvolvendo e da mesma forma a natureza dinvina de Jesus foi revelando a divindade na medida em que crescia e se desenvolvia. Jesus-Menino revela Deus na medida das possibilidades de perfeição que cabem a um menino, o mesmo se diga das demais fases da vida de Jesus. As tentações de Jesus indicam que ele passou pelas várias crises que marcam a vida humana, e com isso pelas amarguras, embora os evangelhos jamais relatem as queixas das agruras de sua existência. Jesus agraciado por Deus era alguém que percebia com sensibilidade a proposta de Deus e a correspondia. Quanto mais Deus se comunicava, mais Jesus se autodoava a Ele e o exemplo máximo disto foi na cruz. Embora Jesus vivesse em nossa carne mortal (Gl 3,13; Rm 8,3) e fosse testado como nós (Hb 4,15; 9,14), permaneceu sem pecado (II Cor 5,21; I Jo 8,46); nascido de mulher (Gl 4,4), foi feito por nós pecado (II Cor 5,21). Sua impecabilidade provinha não de uma qualidade especial de sua natureza, mas de sua íntima e ininterrupta união com Deus. A partir de Santo Agosti254 nho começou argumentar que Jesus não só não pecou como também não podia pecar porque foi concebido pelo Espírito Santo sem pecado, ademais a união hipostática, segundo a qual a pessoa divina do Verbo é portadora dos atos humanos de Jesus, exclui qualquer sombra de pecado. A impecabilidade é a forma negativa de exprimirmos a união de Jesus com Deus e de Deus com Jesus. A santidade é a qualidade daquele que está em Deus e o pecado é o fechamento sobre si a ponto de excluir Deus, por isso a impecabilidade de Jesus consiste na situação fundamental de ser diante de Deus e unido a ele. Nele faltava por obra do Espírito Santo, o núcleo degenerador de todos os atos humanos. Jesus assumiu a história de pecado humano, o homem no seu nó de relações para todas as direções, um nó emaranhado e torcido na sua vida consciente como no seu inconsciente pessoal e coletivo. Segundo a psicologia dos complexos de Jung, cada homem assume em si e carrega em seu inconsciente toda a história das experiências bem sucedidas e frustradas que a psique humana fez desde as suas origens mais primitivas animais e cósmicas; cada qual, a seu modo é a totalidade. O Verbo tornando-se homem assumiu toda esta realidade contida na psique humana pessoal e coletiva, positiva e negativa e ativou os arquétipos da positividade, especialmente o arquétipo self (Selbst – arquétipo de Deus). Ora, isto possui uma enorme importância para nós, pois a partir dele podemos vislumbrar quem e como cada um de nós somos, pois como Jesus cada homem está aberto ao infinito, ao amor plenificado, não só queremos conhecer Deus, mas possuí-lo. 35. A LIBERDADE HUMANA DE JESUS 255 O III Concílio de Constantinopla definiu duas vontades e duas ações naturais unidas em Jesus “sem separação, sem mudança, sem divisão, sem confusão”. Mas o Concílio não explicou como a vontade e ação divina e humana se congraçavam na pessoa única de Jesus e qual era a autonomia desfrutada pela vontade e pelas ações humanas dele em relação a vontade divina .Já afirmamos que as ações humanas de Jesus são as mesmas do Filho de Deus que exerce sobre elas a causalidade própria da pessoa. Afirmou-se também que a natureza humana determina e específica os atos humanos de Jesus, que, embora pertençam a pessoa do Filho de Deus, continuam verdadeira e integralmente humanos. Na verdade, pode-se e deve-se atribuir à vontade humana de Jesus certas perfeições, mercê de sua identidade pessoal de Filho de Deus. É o caso da ausência de pecado e da inclinação para o pecado, ou seja, da concupiscência. Mas a pessoa divina de Jesus não impede que nele haja alguma tentação verdadeiras, menos ainda, a fraqueza humana, desânimo, medo, tristeza... O princípio chave para uma avaliação teológica das perfeições e das limitações da vontade humana de Jesus, como também de seu saber humano, é que o Filho de Deus assumiu todas as conseqüências do pecado que poderia sumir, inclusive os sofrimentos e a morte. Mas, como conciliar a ausência de pecado em Jesus, falando radicalmente, sua impecabilidade teológica, com o fato da tentação? E ainda, a ausência de pecado e impecabilidade com a liberdade humana genuína? Jesus era isento de pecado. O Novo Testamento afirma a ausência de pecado em Jesus (Hb7,26; 1Pd 1,18; 2,22; 1Jo 3,5). O mesmo diz o Concílio de Calcedônia como doutrina de fé referindo-se a Hb 4,15. Da mesma forma, o 11º Concílio de Toledo (675) e o Concílio 256 de Florença (1422) definiram que Jesus nasceu sem pecado original. É doutrina de fé também que Jesus não possui a concupiscência conforme diz o II Concílio de Constantinopla (553). Quanto à intrínseca e absoluta impecabilidade de Jesus, trata-se de um theologumenun e não propriamente de verdadeira doutrina de fé. É uma dedução teológica do mistério da união hipostática: se ele viesse a cometer pecado, o autor do ato seria Deus, o que é uma contradição. Contudo, devemos notar que a ausência de pecado de Jesus e a sua impecabilidade não o tornam imune à tentação, isto é comprovado claramente pelos evangelhos: Mc1,12-13; Mt 4,1-11; Lc 4,113; Hb 2,18. Outro ponto a ser considerado é se Jesus foi passível de sofrimentos corporais. A esse respeito a Carta aos Hebreus (4,15; 2,17-18; 5,8) afirma que sim. O mesmo é a afirmação do I Concílio de Latrão (649) e também é confirmado pelo IV Concílio de Florença. Do sofrimento moral de Jesus há claras evidências nos evangelhos (Lc 22,43-44), onde relata que Jesus foi tomado de angústia. A angústia constitui um dos episódios misteriosos da vida de Jesus. Diante do sofrimento Jesus busca a vontade do Pai. Mateus e Marcos falam de tristeza até a morte (Mt 26,38; Mc 14,34). Lucas observa que o suor de Jesus se tornou como coágulos de sangue (22,44). Portanto, podemos afirmar que Jesus experimentou a angústia e a tristeza, vivenciou conosco de forma dilacerante o medo despertado pela morte iminente. Aqui indica o estado de quenose que ele viveu. Se a visão beatífica era incompatível com o sofrimento humano, a visão imediata de Deus não. Jesus tinha consciência de que sofria como Filho e que devia sofrer apesar de ser Filho (Hb 5,8). Em Jesus certas atividades humanas suas são expressões humanas do poder salvador de Deus, como 257 no caso dos milagres que ele operou. Em todos esses acontecimentos, o ato humano da vontade de Jesus representa o veículo do poder divino de curar e libertar. Mas, como Jesus realizou seus milagres? Não pedindo a Deus que em seu poder infinito, efetivasse obras de cura e salvação. Tampouco como o operaram de forma milagrosa os profetas, apelando à intervenção divina. Com Jesus, os seus milagres nascem do exercício de sua própria vontade humana “Eu quero, sê purificado” (Mc 1,41). Ele realiza milagres por um ato de sua vontade humana e não pela súplica que dirige a Deus. Sua vontade humana é eficaz, porque expressão humana da vontade divina. Devemos considerar também que a liberdade humana de Jesus não pode ser contestada. O III Concílio de Constantinopla afirma que a vontade humana de Jesus continuou igual após a união hipostática. Jesus desfrutou autêntica liberdade de escolha, no que tange à seqüência de ações voltadas ao melhor cumprimento possível de sua missão. A tradição evangélica registra por exemplo, sua mudança de estratégia no decorrer da vida pública depois da crise do ministério da Galiléia. O problema da liberdade humana de Jesus surge quando se pondera que lhe incumbiria realizar uma ordem divina incontornável, a saber, sua paixão e morte. Na realidade, esta ação conseqüência natural do contraste inevitável entre a missão a que devia fidelidade e as forças opostas a ele. Nem Deus quis diretamente a morte de seu Filho na cruz. Foi, antes, a fidelidade de Jesus à sua missão salvífica que o levou a esse extremo. Mas, permanece o fato de que a morte na cruz seria na lógica do plano amoroso e salvador de Deus para a humanidade. Essa realidade revelou nas profundezas do auto-esvaziamento de Jesus, o amor intenso e incontido de Deus pela humanidade. Nesse sentido é correto dizer 258 que no desígnio divino, Jesus devia morrer crucificado. O Novo Testamento afirma que Jesus devia obedecer ao Pai em particular na sua paixão e morte. A essência da liberdade deve ser posta na autodeterminação; nesta está a dignidade da pessoa, é com ela que a pessoa se torna aquilo que é. Santo Tomás afirma que: “O domínio que a pessoa tem sobre o seus atos” é o que constitui a liberdade. Ela exige uma responsabilidade pessoal. A pessoa é responsável por suas ações enquanto realmente, procedem de sua a autodeterminação. A perfeita liberdade cresce em proporção direta à autodeterminação da vontade para o bem. Podemos dizer que a liberdade humana de Jesus é perfeita. Sua vontade coincidiu perfeitamente com a do Pai. Tudo o que decidia num ato autêntico de autodeterminação, harmonizava, infalivelmente com a vontade divina. Sempre que surgia alguma exigência da vontade de Deus, Jesus se decidia por ela. A sua vontade humana o estimulava para a ação pessoal, exercendo a própria autodeterminação não por causa de uma inspiração divina, suportada a contragosto, mas por um impulso pessoal. A visão do Pai não era para ele uma realidade a impedir sua auto-decisão, mas sim a meta que atraia e cuja intuição conduzia para a autodeterminação completamente esclarecida. Jesus se declara que oferece sua vida espontaneamente e com liberdade perfeita: “ninguém me tira a vida, mas por mim mesmo dela me despojo... Este é um mandamento que recebi do meu Pai” (Jo 10,17-18). 36. A DIVINDADE DE CRISTO A Igreja tirou das Escrituras sua fé na divindade de Cristo com a consciência das exigências monoteístas e dos perigos de idolatria. Ensina que Cristo é vere 259 Deus et vero homo, repeliu o Docetismo ensinado que é “consubstancial ao Pai”, mas não faltaram ataques à fé na divindade de Cristo, embora não negando as qualificações de Cristo, ele foi ao longo da história considerado um “quase-Deus”, através do qual Deus se revelou de modo especial, ou um “simples homem”, através do qual a revelação divina nos veio. O liberal Van Holk, declara: “Sou cristão porque acredito que o Cristo é o caminho da verdade através da vida”, mas aceitava o Cristo só no seu aspecto humano ele “é o Emanuel, na intencionalidade salvadora do Evangelho, que parte de Deus”, um exímio portador da força espiritual, não é um homem comum. Muitos admitem o Cristo como o “Ungido de Deus”, portanto não admitem a encarnação de Deus nele. Falam do Filho, da sua divindade, mas sem ligação com o dogma trinitário, ou seja, Jesus não é a segunda pessoa da Santíssima Trindade; não o têm como “Vere Deus”. Para o NT o Cristo é o Lógos que se fez carne, que estava eternamente com Deus e era Deus. Para ele elevam-se hinos de louvores e os anjos o adoram. Pedro confessa que é “Filho de Deus”, Tomé adora-o como “Meu Senhor e meu Deus”, Paulo fala dele como “adorável na eternidade”. A comunidade apostólica expressa adoração à sua pessoa expressa de mil maneiras a sua incomparável exaltação e glória. Ele é: “O Verbo Eterno”; “O Santo de Deus”, a “Luz do mundo”, o “enviado de Deus”, o “cumprimento da profecia”. Os primeiros cristãos referem a sua encarnação, paixão, morte, ressurreição e exaltação, que ele conhece o Pai e o Pai o ama e conhece, e quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou, que ele é o enviado do Pai, que tem a vida em si mesmo como a tem o Pai (Jo 5,26). Que ele é o Verbo (Jo 5,36s), e tem a glória junto do Pai, antes do mundo existir (Jo 17,5). Que desceu do céu (Jo 3,13). 260 Que é o pão descido do céu (Jo 6,32s) e que sem a fé não se pode conhecer quem Ele é vem e de onde veio (Jo 7,28). Que ele veio da parte do Pai (Jo 7,28s). Portanto, o NT aponta a preexistência e sua eterna origem.: “Antes que Abraão fosse eu sou” (Jo 8,58); ele ultrapassa as categorias do tempo. A revelação mostra portanto que Cristo é verdadeiro Filho de Deus consubstancial ao Pai, luz da luz. Ele mesmo afirma: “Eu sou” (Jo 8,24) é sua auto-revelação, o “Eu sou” de Cristo, absoluto e sem predicado, tem a mesma força do “Eu sou Javé” (Dt 32,39). Ele não é um mero profeta, um super-homem; Ele é Deus: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Portanto, a divindade eterna de Cristo transparece em todo o evangelho através de seu autotestemunho. Quem ouve a Sagrada Escritura sem preconceito e com fé, não pode pensar em Cristo como um “quase-Deus”, pois o “Eu sou” de Cristo é a expressão de sua plena identidade divina. Jesus se auto-proclama Filho de Deus, coisa que para os judeus monoteistas é uma blasfêmia, um atentado contra Deus e, por isso afirmam que ele merece morrer (cf. Jo 5,17-18; 10,33); de fato, isto o levou à morte (Jo 19,7). Jesus reivindicou para si a sua divindade única e incomum, declarou-se “vere Deus” e nem os escárnios e os sofrimentos o afastaram desta convicção. Seus atos mostravam a sua divindade, ele de fato perdoava os pecados, prerrogativa só de Deus (Is 43,25; 44,22); ele perdoou o pecador paralítico (Mc 2,10); ele anunciou a João que é o Messias (Mt 11,2s) fazendo alguns se admirarem disso (Mt 9,8) Ele é o unigênito do Pai (Jo 1,18); chama Deus de “Meu Pai”; é portanto o Filho único do Pai, o bem amado. Portanto, a visão global da Escritura tira toda tentativa de desvirtuar e subestimar o Cristo diante de 261 sua filiação divina, ou admitir uma Cristologia Adocianista. A fé da comunidade primitiva não foi projeção da própria subjetividade, mas resposta à revelação de Cristo, pela ação do Espírito Santo, e quem nele crê é bem-aventurado (Mt 11.6; 16,17). Ele é exemplo a ser imitado (Fl 2,6s ; 2 Cor 8,9).A comunidade reconhece sem a pretensão de uma “Ontologia especulativa” que ele é Deus (Col 1,16s; 2,9; Hb 1,3). Cristo não é o quase-Deus, um genuíno representante de Deus entre nós. Os teólogos liberais serviram-se de alguns textos para afirmarem que Cristo é menor que o Pai, negando assim a consubstancialidade divina de Cristo e aceitando a doutrina subordinacionista. Eles afirmaram Cristo menor que o Pai baseando-se na frase: “Meu Pai é maior que eu” (Jo 1,28), mesmo Cristo tendo muitas vezes declarado a sua união com o Pai (Jo 10,30) e a sua relação peculiar com o Pai: “Estou no Pai e o Pai em mim” (Jo 10,38); “Quem me vê, vê o Pai”(Jo 14,15). Cristo reconhece que foi enviado (Jo 4,34; 5,24; 5,30) e declara-se obediente ao Pai (Jo 4,34). Declara também que o seu alimento é fazer a vontade do Pai e que veio em nome do Pai. Ele antes de operar milagres dava graças ao Pai. Afirmando: “Quem crê em mim, crê não em mim, mas naquele que me enviou”. “Eu não falo por mim mesmo, mas o Pai que me enviou, esse tem me dito o que dizer”. Diante dessas declarações muitos tomaram estes textos para afirmar a inferioridade de Cristo em relação ao Pai, e assim acham que a divindade de Cristo não merece consideração por motivos bíblicos. Mas estes liberais nunca valorizaram os textos sobre a revelação de Cristo, em seu conjunto, mas o tomaram isoladamente fazendo acomodações especulativas. Assim, se consideramos que Cristo diz: “...pois o Pai é maior que eu” (Jo 14) esse “ser maior” do Pai esta dentro de um 262 contexto especial, ou seja: do Cristo humilhado pela paixão que irá para o Pai que o há de glorificá-lo; ressalta a sua humilhação em destaque contra a sua exaltação posterior. “Embora sendo Filho, aprendeu a obediência” (Hb 5,8), este “embora” não indica contradição entre a divindade e a sujeição de Cristo, mas sim o reconhecimento da sua verdadeira divindade e da sua encarnação. Cristo veio como mediador e assumiu a carne, sob a lei (Gl 14,4). Somente faltando à regra áurea da interpretação, regra chamada por Orígines de “Analogia da fé”, ou seja, de interpretar através do conjunto das Escrituras e nunca através de fatos isolados, é que se poderia chegar a uma visão unilateral da cristologia liberal. Mas se Cristo é Deus, não corre-se o risco do monoteísmo? Os unitários afirmam que a fé na divindade de Cristo sacrifica a unidade e unicidade de Deus. Também os judeus acusavam Jesus de blasfemo ao fazer-se igual a Deus. O monarquianismo também tentou fazer prevalecer a unidade de Deus sem dar lugar para a divindade de Cristo professando uma cristologia adocianista. Cristo sempre defendeu energicamente o monoteísmo, mas sempre assumiu as funções divinas, ocupando o lugar de Deus, mas não pondo Deus de lado; a sua dignidade não suplanta a dignidade do Pai, ao contrário, a reivindica. Portanto para a Igreja a fé na divindade de Cristo não pode ser desligada da fé na Trindade. 37. A CONSCIÊNCIA MESSIÂNICA DE CRISTO Para a Samaritana Jesus afirma ser o Messias esperado (Jo 4,25-26), é o próprio Jesus atribuiu-se o título de Filho e Deus. (Jo 5,25 ; Mt 16,16-17; Jo 10,30-38). 263 Para muitos a idéia de sua divindade teria nascido do entusiasmo dos discípulos, por meio de uma pretensa ressurreição que com o tempo foi absorvida pela Igreja. Estes afirmam que a tendência de divinizar as grandes personalidades era muito difusa na antigüidade, basta lembrar que os Faraós eram considerados seres divinos, e deuses depois da morte. Também Alexandre Magno foi divinizado e muitos Reis atribuíram a si o título de Kírios, Soer. Para os defensores da tese da atribuição da divindade de Cristo deve-se levar também em consideração o fato de que só João afirma que Cristo é Deus. Mas será que tem fundamento afirmar que o Cristo foi divinizado pelos seus discípulos? Devemos afirmar que não, pois o cristianismo desenvolveu no ambiente judaico, ora o povo hebreu professava a fé num único Deus ao qual ninguém podia comparar-se nem competir. "Não pronunciará o nome de Javé em vão". (Ex 20,7) O judeu substitui o nome de Javé por "Altíssimo, Bendito”, Deus é zeloso (Ex 34,14). Além disso o Império Romano concedeu aos judeus certos privilégios em relação à religião, tais como o repouso sabático a dispensa do serviço militar... Neste clima como podia nascer a idéia de Cristo-Deus? Por outro lado, jamais aconteceu na história que um hebreu tenha adorado outro hebreu, nem Abraão, nem Moiséis, nem Davi e nem Salomão, ao contrário, afirma-se suas fraquezas. Por que então o obscuro carpinteiro de Nazaré que morreu na cruz, haveria de ser divinizado? Outra consideração a ser feita ainda é que o espaço de 70 anos após sua morte, era muito pouco tempo para transformar um falecido profeta numa divindade. Basta o exemplo de Buda que morreu em conceito de santidade, mas que demorou aproximadamente 500 anos para ser reconhecido pelos seus fiéis. Aliás, 20 anos após sua morte, fala-se de Cristo como Filho de Deus (ITs 1,9-10), tam264 bém a carta aos Coríntios (ICor 1,9) escrita em 57 fala de Cristo, Filho de Deus, assim como (2Cor 1,19; 6, 1220 e Rm 5,10). São Paulo fala ainda da natureza divina de Cristo (Fl 2,6) imagem do Deus invisível, (Cl 1,1516), Deus Salvador (Tm 2,23), Deus bendito pelos séculos (Rm 9,5). Quem formulou por primeiro a idéia da divindade de Cristo foram os responsáveis pela Igreja, os quais todos eram palestinenses piedosos e de personalidades como Paulo, fariseu, educado na escola de Gamaliel... (At 22,3). Além do mais sabemos que na Igreja existiam divisões (ICor 1,11-12), assim como tensões, mas nenhuma contradição sobre o fato de ser o Cristo Filho de Deus, pois esta era sempre uma verdade admitida por todos. Por fim, no ambiente em que surgiu o cristianismo era difícil anunciar um Cristo religioso e não político, salvador de todos. 38. AS PROFECIAS CRISTOLÓGICAS Nos séculos anteriores a Jesus Cristo os judeus em suas escrituras tinham uma série de vaticínios concretos, a respeito do Messias e com características especificas concernentes a Ele. Na versão do AT elaborada pelos 70 feita do hebraico para o grego e que terminou dois séculos antes do nascimento de Jesus encontram-se vaticínios messiânicos completos como lemos hoje na Bíblia. Os judeus são os nossos arquivistas sobre a via de Jesus Cristo, e os documentos que conservam para nós remontam 15 séculos aC. São uma série de profecias e cada uma delas descrevem um traço ou uma circunstância do Messias vindouros, tudo convergindo para a pessoa do Messias. De fato, no Antigo Testamento a vinda do Messias foi anunciada com a nitidez 265 descrita hoje pelo Novo Testamento. Eis alguns exemplos: O Messias virá e nascerá da estirpe de Abrão (Gn 22,18 ; 26,4); Descendente de Isac (Gn 26,4); Descendente de Jacó (Gn 28,14); Descendente da Tribo de Judá (Gn 49,8); O descendente da Família de Davi (Sl 88). O Profeta Ageu consolou os Judeus ao voltarem da Babilônia afirmando que um novo Templo seria edificado e nele penetraria o Messias (Ag 2,7). Também o Profeta Malaquias disse que o Messias viria para um segundo Templo (Ml 3,1). Da mesma forma, Miquéias disse que o Messias nasceria em Belém (5,2) e Isaias predisse que o Messias doutrinaria especialmente a Galiléia (9,1-2); Já Zacarias predisse a venda do Messias por 30 moedas. Também os Salmos afirmaram que o Messias seria despojado de sua túnica e esta dividida pelos soldados (Sl 21,19); que morreria com os pés e mãos transpassados pelos cravos (Sl 21,17); que na cruz sofreria suplício da sede com a língua seca como telha (SL 2,16); que receberia uma esponja embebida em vinagre (Sl 68.22); que seria escarnecido (SL 21,7). Foram previsões concretas no tempo e no espaço e não simplesmente conjecturas. Foram profecias feitas a distância de séculos; predições de profetas que receberam o dom do vaticínio contra a própria vontade (Am 3,8; Jr 20,7-9). Estas profecias foram todas cumpridas na pessoa de Jesus Cristo, o Messias esperado. Jesus é da estirpe de Abraão e descendente de Isaac. Da estirpe de Isaac descendeu Jacó, da estirpe de Jacó descendeu a tribo de Judá, e da família de Davi descendeu Jesus o Messias, tudo como foi previsssto pelos profetas. Com o Messias deixou de existir o cetro de Judá como anunciara Jacó, e em Belém como previu Miquéias, nasceu Jesus. Ele entrou no segundo Templo como previu A266 geu. Templo que depois foi destruído como disse Malaquias. A Galiléia foi o lugar principal de suas atividades; lá Ele acolheu a adúltera, a samaitana, Zaqueu, Madalena e o ladrão... Ele foi vendido por 30 moedas como disse Zacarias sendo apontado como malfeitor e condenado à morte, sendo açoitado, esbofeteado e cuspido, como predisse Isaias oito séculos antes. Foi despojado de sua túnica, a qual foi dividida; teve seus pés e suas mãos cravados; teve sede e foi saciado pelo vinagre. Portanto, as profecias a respeito dele são de rigorosa exatidão, tão rigorosas que parecem cópias exatas do original histórico; são tão categóricas e ricas em detalhes que jamais teriam sido fruto da mente humana. A vinda do Cristo foi o cumprimento do AT (Lc 24,25ss). O AT é um livro repleto de Jesus Cristo e o NT não pressupõe uma cissão do AT (2Cor 3,14s), ele é completado pelo AT. No AT vemos relacionado o nascimento de Cristo com várias profecias, dentre as quais: Is 7,14; Os 11,1; Zc 13,7; Is 53,9; em Cristo cumpre-se o AT (Ml 3,1; Sl 109,8; Mq 5,1; Sl 34,21; Sl 22,19). Embora alguns trechos da Sagrada Escritura não digam respeito à linha messiânica diretamente, não podemos afirmar que há partes da bíblia desligadas da cristologia. Não podemos ver na bíblia apenas uma enumeração desconexa de testemunhas que apontam para o Cristo, pois cairíamos na superficialidade ou perderíamos a visão cristológica do AT. Ou o AT está denso de Cristo, ou os autores do NT aplicaram o AT a Cristo arbitrariamente, cometendo uma falsificação histórica. O NT proclama o cumprimento da promessa da vinda do Messias (Lc 4,21; At 13,32-33; Hb 1,1). O NT está cheio do AT não como evocação histórica, mas como plenitude de revelação, que completa e ilumina o AT. O NT retira o véu que encobre o AT e torna harmo267 niosa a figura do Rei-Messias. Rejeitar o AT, faria de Cristo uma figura totalmente desligada do background em que Deus e sua justiça atuava alternativamente com sua ira, seu amor, sua santidade e com as culpas humanas. 39. A UNIÃO HISTOSTÁTICA A fórmula do Concílio de Calcedônia (451) ensina que Jesus tem duas natureza (divina e humana) unidas entre si hipostaticamente, ou seja, que subsistem numa só e mesma pessoa. A natureza é essência na medida em que é princípio do agir; a natureza humana só existe em pessoas; é a pessoa que faz subsistir a natureza humana. Mas em Jesus a subsistência da natureza humana não era devida a uma pessoa humana, mas sim, à segunda Pessoa da Santíssima Trindade; esta se tornou pelo mistério da encarnação, o sujeito responsável pelas ações de Jesus. A segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que desde eternidade subsistia na natureza divina com o Pai e o Espírito Santo, passou, pela encarnação, a subsistir na natureza humana em Maria Virgem, não perdendo contudo o que é de Deus (poderio infinito, ciência universal...). Este tipo de união entre a natureza humana e a natureza divina chama-se hipostática. O catecismo da Igreja católica (§ 470) afirma que com encarnação a natureza humana foi assumida não absorvida: a natureza humana de Cristo pertencia à Pessoa Divina do Filho de Deus, que a assumiu. Tudo o que ele é e tudo o que ele faz como homem, tem por sujeito uma das pessoas da Santíssima Trindade. Sendo Jesus verdadeiro Deus e verdadeiro homem, compreende-se que, antes da encarnação no seio de Maria, Ele já existia consubstancialmente com o Pai; ele preexistia. Para o mundo grego, onde foi inici268 almente dirigida mensagem cristã, era inconcebível a noção de um Deus que entra do mundo da história dos homens, pois os deuses não se misturavam com o homem; disto entendemos por que os antigos cristãos encontraram dificuldades para aceitar a autêntica noção da encarnação e procuraram dar outras explicações para o “escândalo” do Deus feito homem. Para a filosofia grega a divindade, para não se contagiar, devia permanecer alheia à história dos homens. Entretanto a doutrina oficial da igreja através da profissão de fé afirma que Jesus não é simplesmente um homem exemplar ou um representante de Deus, mas antes de tudo é o próprio Filho eterno de Deus que por obra do Espírito Santo se encarnou no seio da virgem Maria e se fez homem, fazendo-se semelhante a nós em tudo, menos no pecado, sendo ele definitivamente o Deus- conosco, o único mediador entre Deus e os homens (1Tm 2,5). De todo fundamento dessa doutrina cristológica fica afirmado que o Filho de Deus subsiste eternamente no mistério de Deus, distinto do Pai e do Espírito Santo; afirma-se assim a verdade da Santíssima Trindade e também que o Espírito Santo procede eternamente do Pai do Filho. “Como um só é o verdadeiro Deus... Pai e Filho e Espírito Santo: três pessoas, mas uma única essência... o Pai que não procede de ninguém, o Filho que procede somente do Pai, e o Espírito Santo que procede igualmente de ambos, sempre sem início e sem fim” (Concílio do Latrão-DS 800). A doutrina da Igreja afirma que Jesus é verdadeiro homem e em particular os evangelhos testemunham e provam esta verdade. Os testemunhos bíblicos a respeito da verdadeira humanidade de Jesus são bastante claros e numerosos: “O Verbo se fez homem e habitou entre nós” (Jo 1,14). Jesus assumiu a carne humana tornando-se homem, portanto assimilando a precariedade e a 269 fraqueza humana; com o seu nascimento do seio de Maria foi-lhe dado carne humana (Gl 4,4). Jesus experimentou o cansaço, a fome, a sede, sofreu dores, morreu... (Lc 2,40; Mt 4,2; Jo 4,6;). Em Jesus cada uma das duas naturezas exercem o que lhe é próprio, em comunhão uma com outra; ao Verbo realiza o que é próprio do Verbo; e a carne, o que é próprio da carne. Esta verdade a teologia e explica como sendo comunhão de propriedades, ou seja, que em Jesus cada uma das duas natureza é a fonte de suas atividades próprias. A natureza humana come, dorme, cresce em sabedoria e a idade, sofre, morre e não só compartilha o pecado dos homens. A natureza divina realiza as atividades próprias de Deus, como os milagres, o perdão dos pecados... Visto que a natureza divina não se reparte, devemos dizer que em Cristo o Pai e o Espírito Santo estão presentes, pois a única natureza divina também é deles. Todavia o fato de encarnar-se, a natureza humana recebida de Maria não é realizada pelas três Pessoas, mas somente pelo Filho. Assim, temos que todas as ações de Cristo é da segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Quando as mãos de Cristo tocavam um doente para curá-lo, era a pessoa do Filho que o tocava mediante a sua humanidade. As ações de Jesus resultantes da comunhão de propriedades são chamadas teândricas (Théos = Deus; Aner, Andrós = homem) ou também divino-humanas. Desta forma Jesus tinha ações exclusivamente divinas que ele executava com o Pai e o Espírito Santo (Jo 5,17) ou em sentido estrito, onde a sua natureza humana cooperava como instrumento da divindade (Mc 2,5; Jo 20,22). Em decorrência disso a sua natureza humana se tornou causa eficiente da salvação e da santificação dos homens; as graças divinas que o Filho de Deus comunicou à humanidade não foram realizadas somente na na270 tureza divina, mas também na natureza humana de Jesus. Por causa da união hipostática decorre-se a impecabilidade de Jesus; pois se Jesus pudesse pecar deveremos dizer que Deus podia e pode pecar, o que é um absurdo. Jesus foi absolutamente fiel Pai, mas isto não quer dizer que ele não podia ser tentado como homem (Mc 1,13) e ser submetido a duras provas entre as quais aquela da agonia no horto das Oliveiras (Mt 26,38s). Ele foi aprovado em tudo como nós, menos no pecado (Hb 4,15), mas nem por isto pecou porque foi obediente ao Pai, e se tivesse pecado não teria sido o mediador da nossa salvação. Jesus era livre e tinha possibilidade de fazer o mal, portanto de desobedecer ao Pai, mas não o fez porque a liberdade é um meio e não um fim; ela nos possibilita a praticar a vontade de Deus de modo responsável e espontâneo e sem coação. Liberdade de arbítrio não é a arbitrariedade e nem necessariamente cair em pecado. Jesus foi livre e usou da sua liberdade para se entregar generosamente à vontade do Pai (Lc 22,4144). 40. JESUS SABIA QUE ERA DEUS Para responder essa pergunta uma comissão teológica internacional composta de teólogos de várias partes do mundo nomeados pelo papa com o objetivo de estudar questões candentes da teologia publicou um texto com esse teor: “A vida de Jesus atesta a consciência de sua relação filial com o Pai. O seu comportamento e as suas palavras, que são as de servidor perfeito, implicam uma autoridade que supera a dos antigos profetas e que pertencia a Deus, que ele chamava Meu Pai . Ele tinha 271 consciência de ser o Filho único de Deus, e neste sentido, de ser Ele mesmo o Deus”. “Jesus sabia qual era a finalidade da sua missão: ao anunciar o Reino de Deus e torná-lo presente na sua pessoa, nos seus atos e na suas palavras, a fim de que o mundo fosse reconciliado com Deus. Livremente ele aceitou a vontade do Pai: dar a própria vida pela salvação de todos homens; ele sabia ter sido enviado pelo Pai para dar a própria vida em favor de muitos” “Para realizar a sua missão salvífica, Jesus quis reunir os homens em vista do Reino e convocá-los em torno de si. Em conseqüência, Jesus realizou fatos concretos que, tomados em seu conjunto, só podem ser interpretados como a preparação da igreja que havia de ser constituída definitivamente por ocasião dos acontecimentos da Páscoa e de Pentecostes. Era, por conseguinte, necessário afirmar que Jesus quis fundar a Igreja.” “A consciência que Cristo tem, de ser enviado pelo Pai para a salvação do mundo e para a convocação de todos os homens no povo de Deus, implica, de modo misterioso, o amor a todos homens, de tal modo que todos podemos dizer: o Filho de Deus me amou e se entregou por mim (Gl 2,20). É convicção dos teólogos que o evangelista João não apresentou uma elaboração teológica da fé nas comunidades, ou seja, não utilizou o gênero literário midraxe da literatura judaica, onde se atribuía aos grandes personagens da história de Israel palavras e ações anacrônicas que refletiam as convicções próprias dos autores do midraxe (Jonas, Tobias, Ester). João não escreveu um midraxe teológico, mas apresentou os atos e ensinamentos de Jesus tais e quais. No final do século I eram muitos os cristãos principalmente provenientes do judaísmo que negavam o mistério da encarnação e con272 sideravam Jesus como o Messias prometido apenas como um homem. Face a isso João qualificou de anticristo os que negam a realidade da encarnação, isto é, da divindade de Jesus (1Jo 2,22-23 ; 4,2-3 ; 2 Jo 7 ) Santo Irineu, discípulo de Policarpo, o qual foi discípulo de João, diz que o evangelho foi escrito para combater a heresia de Cerinto, o qual negava o mistério da encarnação, e também para combater os Ebionitas que consideravam Jesus como um homem. O próprio João diz, que escreveu estes sinais que se acredite que Jesus é o Filho de Deus (Jo 20,30-31). Com isso João procurava fortificar a fé dos batizados e convencê-los de que Jesus era verdadeiramente Deus. O mesmo dirá Mateus (9,6) quando Jesus curou o paralítico e o próprio João (14,11) ao afirmar: "Credeme, eu estou no Pai e o Pai esta em mim. Crede ao menos, por causa destas obras." Para João, Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus e o retrato que ele traçou de Jesus, de seus atos e de suas palavras é substancialmente conforme a realidade histórica de que Jesus era Deus e sabia que era. João tira esta convicção da vida, das ações e dos ensinamentos de Jesus e escreveu para ensinar aos cristãos esta verdade. Nos primeiros cinco séculos do cristianismo não se questionou se Jesus era Deus, pois a convicção era de que sim. Porém, o questionamento veio sobretudo quando se começou a colocar o problema da ignorância de Cristo, diante das controvérsias cristológicas do Arianismo e do Nestorianismo. Contribuiu para isso o texto de Marcos (13,32) no qual Jesus diz que ninguém conhece o dia e a hora do juízo final, mas somente o Pai. A partir deste texto os arianos começam a negar ser Jesus igual ao Pai. Da mesma forma, os Nestorianos começam negar que Jesus e a segunda pessoa da Trindade sejam a mesma. 273 Diante deste texto surgiram duas interpretações: a primeira é de que Jesus, enquanto homem, não ignorava o dia do juízo, mas ignorava-o enquanto enviado de Deus porque não fazia parte das realidades que ele tinha que revelar e a segunda enfatiza que Jesus enquanto homem não conhecia a data do último dia, mas conhecia enquanto Deus. Portanto, neste trecho de Marcos, Jesus revelava o seu conhecimento humano. Para os Padres, a Igreja era passiva que Jesus era um com o Pai não enquanto homem, mas enquanto a sua natureza divina, em vista disso no ano 553 o Papa Vigílio condenou os Nestorianos afirmando que se alguém disser que Cristo ignorou os acontecimentos futuros ou do juízo final, ou que Jesus só pode saber que lhe revelou a divindade habitando nele como em outro (outra pessoa) seja Anátema (Ds 419). Por isso, Jesus conheceu tudo porque é Deus, e como homem possui esta ciência divina em razão da unidade de sua pessoa divina, Deus feito homem, ou seja, Jesus enquanto homem em virtude da ciência divina conhece o que Deus conhece. No ano 500 São Fulgênico respondeu a um certo Fernando de Cartago que lhe propusera a questão: Será que a alma de Cristo tem conhecimento pleno da divindade que assumiu? Será que o Filho de Deus por sua humanidade, conhece sua divindade da mesma maneira que o Pai, o Filho e Espirito Santo se conhecem? São Fulgêncio respondeu sim à primeira pergunta e não à segunda . A alma de Cristo sendo criada tem um conhecimento de criatura; Deus incriado tem conhecimento infinito . Jesus em sua humanidade conhece tudo que Deus conhece, mas não com a mesma profundeza infinita, assim Jesus com sua inteligência humana conhece plenamente sua divindade, mas não com plenitude idêntica à sua inteligência divina idêntica à sua natureza 274 divina. Por isso, Jesus sabia que era Deus, mas esta ciência tinha fonte imediatamente na sua inteligência humana. Gregório Magno (600), por fim afirma que Jesus conhecia o dia do juízo final em sua natureza humana, mas não a partir de sua natureza humana. Os teólogos procuraram responder a pergunta que os Padres deixaram sem solução: Como a ciência divina do Verbo é comunicada à humanidade de Cristo? Para os Padres, Jesus tinha plenamente à sua disposição o conhecimento, a ciência propriamente divina do Filho de Deus. Para eles, esta ciência se exprimia por uma boca de homem e em conceitos e idéias humanas produzidos por uma inteligência humana, ou seja, esta ciência divina transitava pela inteligência humana. Mas como? Os teólogos da Idade Média tentarão resolver distinguindo três níveis de conhecimento humano em Jesus: O conhecimento adquirido que todo homem possui; o conhecimento que têm os eleitos no céu com a visão beatifica; a ciência infusa do tipo dos profetas que é transmitida pela revelação divina. Que Jesus tenha possuído como todos os homens uma ciência adquirida que progredirá com a idade, Lucas 2,52 sublinha. Quanto a visão de Deus como os eleitos do céu, os textos de João (1,18 ; 6,46 ; 8,38) conferem. Quanto a ciência infusa, Jesus declara-se um profeta (Mt 13,57 e Lc 13,33). Portanto, se Jesus sabe que é Deus, só pode sabê-lo por sua inteligência humana. Para São Tomás isto se dá mediante a visão beatífica que os eleitos gozam nos céus, onde ele vê Deus, sua unidade, a Trindade das Pessoas Divinas, e vê-se também unido à segunda pessoa da Trindade. Os teólogos do século XX puseram a questão: Qual era a maneira pela qual Jesus sabia que era Deus? Para responder, afirmaram que se Jesus tivesse só a ciência 275 adquirida, comum a todos os homens, Jesus seria Deus, mas não o saberia. Devemos admitir que alguns obstáculos dificultam a revelação do mistério de Jesus e dentre estes salientamos os seguintes: A mentalidade religiosa de então que considerava como essencial a obediência à lei de Deus promulgada por Moisés, e pouco inclinada a refletir sobre Deus e sua natureza; A mentalidade religiosa moldada no embate com a idolatria e para a qual tudo que não coincidisse com Dt 6,4 era idolatria; A mentalidade religiosa estruturada pelo pensamento escatológico apocalíptico para a qual o fim de tudo era eminente. Em vista destes pontos a revelação do mistério de Jesus devia ser progressiva e passada pelo filtro da mentalidade dos discípulos. Além do mais, Jesus embora sendo Deus, não se identificava com Deus e também confessava o monoteísmo da fé de Israel (Dt 6,4; Mc 12,29). Por isso, numa primeira etapa Jesus, de sua pessoa e de seus ensinamentos revelará não tudo aquilo que poderia ser compreendido, mas tudo o que podia ser aceito e assimilado sem erros, considerando a mentalidade de então. Num segundo estágio ele formará o grupo de discípulos, os quais atraídos pela sua personalidade, se encontrarão num pré-julgamento favorável que permitirá aceitar algum ensinamento que lhes pareça chocante e que ainda não compreendam. Num terceiro estágio selecionará dentro desse grupo dos discípulos alguns privilegiados aos quais poderá confiar uma doutrina mais elevada. Podemos portanto, precisar que Jesus primeiramente procurara ensinar publicamente através de suas pregações e já aqui encontrou resistência sendo acusado de blasfemador pelo povo porque se fazia Deus (Mt 26,65; Mc 14,64; Lc 22,71). A blasfêmia consistia em fazer-se como Deus, e em perdoar os pecados (Mc 2,7; 276 Mt 9,3). Na literatura bíblica os reis pagãos eram acusados de usurpar as prerrogativas de Deus (Ez 28,2; 2Mc 9,12), o que caracterizava algo muito sério. Se com isso não bastasse, Jesus coloca-se acima de Moisés com o direito de modificar a própria lei (Mt 5,21-27.31.33-38). Ele utiliza a expressão: “Eu porém vos digo...”, a qual não tem nenhum paralelo no AT. Jesus não afirma como Moisés em Dt 6,1 “são estes os mandamentos, as leis e as ordens de Javé...” Nem como os profetas: “Assim fala Javé...”, mas dispõe da lei e da tradição, interpretandoa, corrigindo-a, igualando-se a Deus. Ele exige que o prefira em relação a seus pais e aos próprios filhos (Mt 10,37). Portanto, quando Jesus falava a um vasto auditório manifestava que tinha com Deus um vínculo de proximidade, superior aos outros enviados e que dispunha de um poder que pertence a Deus como o de perdoar os pecados. É de se notar que somente uma vez Jesus se designará como o Filho de Deus (Mc 12,6-8). A progressiva revelação da divindade de Jesus ele o fez partindo das multidões, de fato os evangelistas servem-se da a expressão "dizia às multidões", "dizia aos discípulos". (Mt 11,7; Mc 7,14; Lc 5,3; 7,9; Mt 9,37; 10,1; 15,32). Na primeira parte de seu ministério na Galiléia, Jesus dedicou-se principalmente às multidões e somente depois dirige-se aos discípulos (Mc 13,32; Mt 24,36; Mt 11,25-27; Lc 10,21-22). Nas palavras dirigidas somente aos discípulos revela o mistério de sua relação com o Pai, tendo com Ele uma relação de intimidade e de proximidade, uma proximidade acima dos anjos do céu, pois Ele conhece o Pai como o Pai conhece o Filho. Entre Ele e o Pai existe uma intimidade que não tem nenhuma analogia na relação dos homens com Deus, pois chama Deus de Abá (Mt 11,25). 277 Por fim um grupo de privilegiados contam com a revelação íntima da divindade de Jesus, a exemplo dos três discípulos no Monte Tabor. Experiência que depois se fortificou com a experiência da ressurreição, por isso após a Páscoa nas comunidades cristãs, a atitude do fiel para com Jesus ressuscitado era idêntica à do judeu em relação a Javé; Jesus é invocado como Senhor, e o nome do Senhor aplica-se não mais a Javé, mas a Jesus (At 2,21). O fiel se converte ao Senhor Jesus e não mais a Javé (At 9,35), crê nele como se crê em Javé (At 3,36). Jesus é o Senhor perante o qual todo joelho deve dobrar (Fl 2; 6,11). Portanto se reconhece a divindade de Cristo, e não só a divindade, mas também a sua preexistência (cf Fl 2,6-7; 1Cor 8,6; 2Cor 8,9). Desta forma, a fé na preexistência e divindade do ressuscitado, é presente nas comunidades cristãs, em menos de 20 anos após a Páscoa. Ressaltamos que nessa época começava a evangelização do mundo pagão, e o influxo dos cristãos de origem pagã era desprezível, logo a idéia da divinização de Jesus nasceu no meio judeu. Ora, o meio judeu era contra uma semelhante doutrina, portanto tal doutrina só pode ter vindo de Jesus que a ensinou e que Deus confirmou com a ressurreição. A crença proclamada após a ressurreição sobre a divindade de Jesus foi corroborada pela vinda do Espírito Santo (Jo 16,12-13; 14,25-26), pois a semente depositada por Jesus caiu num solo não apto para acolhê-la e fazê-la germinar, para tanto foi necessário a Páscoa e o Pentecostes (DV 19). 41. JESUS POSSUÍA TODAS AS PERFEIÇÕES O Concílio de Calcedônia afirmou em Jesus uma só pessoa dotada de todas as perfeições da natureza divina, porém por volta do ano 450, Temístio começou a 278 ensinar que Cristo não somente assumiu as fraquezas corporais, mas também que sofreu as limitações do espírito e por isso foi sujeito à ignorância como todos os homens. Disto surgiu a corrente chamada agnoeta (agnoia = ignorância). Para fundamentar essa teoria afirmou-se que Jesus disse ignorar a data do juízo final (Mc13,32). Diante disso o papa S. Gregório I procurou afirmar que Jesus como homem, sabia a respectiva data do juízo final, mas não sabia pelas luzes da natureza humana, e sim, por revelação divina. No século XIII, teólogos como Santo Alberto Magno (+1280), São Boaventura (+1274) e São Tomás de Aquino (+1274), atribuíram a Jesus um amplo saber. Jesus com efeito, além da onisciência que possuía como Deus, terá tido em sua natureza humana a ciência da visão, própria dos justos que gozam no céu e que consiste na intuição de Deus face a face; a ciência e difusa que os místicos recebem e que revelava a Jesus todos os desígnios do Pai e o desfecho de sua missão; e por fim a ciência adquirida derivada do uso progressivo dos sentidos e do raciocínio de Jesus. Os teólogos admitem que Jesus é possuidor da ciência experimental, onde Ele como homem possuía as faculdades de conhecimento comuns a todos homens e delas fazia uso: “Jesus crescia em sabedoria...” (Lc 2,52), e possuía também a ciência infusa esta não adquirida pelo estudo ou pela experiência, mas por comunicação direta com Deus; com isso Jesus devia conhecer o desígnio do Pai e o desfecho de sua missão: “Eu falo o que vi junto do Pai” (Jo 8,38). Podemos dizer que Jesus tinha o plano de Deus ora placidamente em sua consciência, ora imerso no fundo do seu inconsciente; ele utilizava a ciência infusa segundo as necessidades da pregação; podia também impedir, de conformidade com a vontade do Pai, que certos temas se tornassem presentes na 279 sua consciência e assim se explica as palavras de Jesus a respeito do juízo final (Mc 13,32). Não era do desígnio do Pai que Jesus nos revelasse a data do juízo final, por isso Jesus dizia ignorá-la, não fazendo o uso consciente da noção que a respeito Ele trazia em seu inconsciente. Além destas duas ciências, alguns admitem que Jesus tinha também a visão beatificação, mas esta não influencia sobre a sensibilidade de Jesus para não excluir as possibilidades da dor e do sofrimento no momento da agonia. Mas, sendo Jesus verdadeiro Deus e verdadeiro homem, será que como homem em sua consciência psicológica ele sabia que era Deus? Os teólogos respondem que Jesus tinha uma só pessoa; que era divino e que encarnando-se, sua pessoa nada perdeu do que era seu e do que possuía eternamente, por isso Jesus conhecia tudo o que Deus conhece. Em suma, Jesus sabia que era verdadeiro homem, que vivia como verdadeiro homem e também sabia que subsistia pela subsistência da segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Os textos do Novo Testamento mostram que Jesus sabia ser o Filho de Deus; e isto manifestou-se pela primeira vez aos 12 anos quando Ele foi encontrado no Templo (Lc 2,46-49). 42. O MISTÉRIO CRISTOLÓGICO COMO UNIDADE DA PESSOA DE CRISTO Não basta dizer que nos encontramos diante de um mistério da encarnação, pois a revelação de Jesus não suprime o mistério, mas o acentua. Cristo encarnado revestiu-se da humildade mais desconcertante e mais distanciada da glória divina; Paulo afirma que Cristo assumiu nossa carne pecaminosa. Deus revelou-se em Cristo encobrindo-se sob o véu da carne. O 280 Cristo na carne é de fato, o Cristo incógnito que obriga à decisão da fé. Cristo encarnado-se ligou-se aos que não possuíam nobreza; a sua vinda na carne é uma revelação paradoxal (Barth), pois ao revelar-se, escondese. Cristo é “vere Deus et vere homo”, e o sujeito deste mistério é a sua pessoa. Por isso Calcedônia definiu que a união pessoal das duas naturezas, humana e divina de Cristo se realizou “asynchytôs, atreptôs, adiairetôs, achoristôs”, ou seja: “inconfundível, imutável, indivisível e inseparável”; ambas conservando seus respectivos atributos. Sendo duas naturezas não se admite duas pessoas (hipostasis), mas um único sujeito de atribuição para todas as ações de Cristo. Em Cristo portanto, são duas naturezas unidas hipostaticamente, ou seja, duas naturezas na unidade de uma só Pessoa. Existe portanto uma autêntica e indissolúvel união entre ambas as naturezas na Pessoa Divina; a humanidade é penetrada pela divindade. Por isso em Cristo dá-se “communicatio idiomatum” (comunicação dos atributos ou propriedades), ou seja, a comunicação das propriedades humanas ao Filho, à Pessoa. Com isso tanto a natureza divina como a humana de Cristo conservam seus atributos respectivos (para a divina a infinitude, a onipotência, a onisciência, a onipresença e para a humana a corponeidade, a carnalidade, a transitariedade, a passividade, a mortalidade... Todos os atos de Cristo, são atos da única Pessoa do Verbo encarnado, assim a obra salvífica de Cristo é realizada segundo suas duas naturezas, não é portanto “Teopasionismo” afirmar as dores e a morte de Deus vivo Jesus Cristo devido a hipostática. Da mesma forma Maria é “Theotókos” como definiu Éfeso e reafirmaram Calcedônia e Constantinopla, e não “Christotókos” como afirmava Nestório com sua propensão em separar as duas naturezas de Cristo, 281 tendo Maria somente mãe da natureza humana de Cristo. A “communicatio idiomatum” não é algo estático e abstrato, mas uma realidade dinâmica e viva do Verbo e de todas as suas iniciativas. Com a união hipostática os atributos de ambas as naturezas de Cristo convém à Pessoa de Jesus Cristo. “Embora Deus e Homem, Cristo não é dois, mas um único Cristo... em virtude da unidade de pessoa” (Atanásio). 43. A NATUREZA HUMANA E NÃO A PESSOA HUMANA DE CRISTO A personalidade (Anhypostasia) de Cristo prejudica a autenticidade da natureza humana de Cristo? Será que a natureza humana de Cristo não precisa de hipóstase, ou seja, de personalidade própria? Será que ele não é despojado de um elemento essencial qual é a Pessoa? Althaus afirma que a “Anhypostasia” é um atentado contra a autêntica unidade de Cristo, contra a veracidade da encarnação e deixa inexplicado o seu ego humano que crê e reza, que é tentado e agoniza; coisas todas impróprias do Verbo. Barth defendendo a “Anhypostasia”, afirma que Deus é o único sujeito de encarnação, a única Pessoa Agente. Tanto católicos como protestantes defendem a “Anhypostasia” e entendem-se que a natureza humana de Cristo não pode estar num só momento fora do Lógos, assim a realidade da natureza humana é a realidade do Senhor agente. Sem a “Anhypostasia”, afirmase a dupla existência em Cristo, como Lógos e como homem, o que leva inevitavelmente ao docetismo ou ebionismo. Pela “Anhypostasia” queremos afirmar que a carne do Cristo existe pelo Verbo, sendo este o próprio. 282 O homem Jesus Cristo tira a sua existência exclusivamente da existência do Filho eterno de Deus; com isso não se quer que a natureza humana de Cristo não tenha individualidade; a carne de Cristo não é impessoal, mas foi elevada na existência pessoal do Filho de Deus (Tomás de Aquino, Calvino, Barth...). Assim, a humanidade de Cristo não foi desvalorizada mas elevada. A natureza humana de Cristo é individual com suas propriedades, porém sua humanidade não possuía nele (Cristo) uma existência própria e pessoal ao lado do Verbo, mas foi preparada pelo Espírito Santo para a união com o Verbo, para que ela pudesse representar no Verbo encarnado toda humanidade e que Cristo pudesse ser o mediador de Deus para os homens. Portanto, a natureza humana de Cristo formada em Maria e de Maria, não existia em momento algum por si mesma, mas foi unida com o Filho, desde o primeiro instante da concepção. Com a “Anhypostasia” não se desfigura a estrutura-homem de Cristo, mas explica-se a união do “vere homo” ao Verbo. A doutrina da “Anhypostasia” é fiel à Calcedônia (Cristo vere Deus et vere homo). A “Anhypostasia” é um repudio a toda forma de adocianismo e de nestorianismo. Ela significa: “aquilo que não subsiste por si e segundo a sua própria personalidade, e “enhypostasia” aquilo que subsiste em outra hipóstase, ou participa da personalidade do outro” (Quenstedt). 44. O SABER E A FÉ DE JESUS Até pouco tempo os teólogos pensavam que Jesus em sua vida terrena sabia tudo, tanto o presente, o passado como o futuro. Conhecia todas as ciências, técnicas, etc. Conhecia todos os pensamentos e nada ignora283 va, e quando demonstrava não saber algo é porque disfarçava para poder nos ensinar. Hoje com os estudos se afirma que Jesus foi um homem completo e como todo homem não conhecia tudo, mas sempre esteve em atitude de busca de aprendizagem, e que teve dúvidas, tentações, etc. A humanidade de Jesus não foi uma comédia, ele cresceu em sabedoria (Lc 2,52). Assumiu com sua encarnação a lei do amadurecimento humano, todas as conseqüências com exceção do pecado (Hb 4,15). Se não fosse assim sua morte não teria sido verdadeira. Ele viveu sua humanidade mais profunda que nós, pois viveu a intimidade com o Pai. Jesus teve dúvidas, tentações, ignorou o dia do juízo, teve medo da morte, foi instruído pelo seu Pai, viveu sua cultura, portanto ele passou por um processo histórico de aprendizagem. Tudo isso porque tinha a consciência humana, não era cópia de sua consciência divina. Contudo, Jesus teve em sua vida momentos particulares de experiências excepcionais de abertura ao mistério das coisas, recebeu o conhecimento profético para desenvolver sua missão, teve um conhecimento único do mistério de Deus. Assim, afirmamos que Jesus tinha dois tipos de saber: um adquirido na cultura de sua época e outro profético que o capacitava de cumprir sua missão salvífica. Alguns não admitem que Jesus tivesse fé, pois pensam que estava sempre vendo Deus como os bemaventurados no céu. Contudo, Jesus foi um autêntico crente em Deus. A carta aos Hebreus (12, 1b –2a) fala: "Corramos com perseverança para o combate que nos cabe, de olhos fitos no autor e consumada fé, Jesus". Para esta afirmação, Jesus é o modelo perfeito dos crentes, aquele que levou a fé à perfeição, experimentando-a nas vicissitudes de sua vida. Com sua fé ele viveu a obediência e a esperança no dia a dia. 284 Certa vez os discípulos pediram-lhe para curar um epiléptico dizendo: “Se podes tem piedade para conosco e nos ajuda" e Jesus disse: "Se podes ... tudo é possível para quem crê" (Mc 9; 19,22- 23). Fé que é confiança em Deus, na sua onipotência (Mc 5,21-43; 7,24-30; Lc 17,11-15). Fé para Jesus é entrega incondicional ao Pai, aceitação de seu plano, confiança e abandono nele. 45. OS MILAGRES DE JESUS Jesus operou milagres? Antes de tudo para poder falar em milagres, a ciência requer o cumprimento de três condições: 1. Fato real, ou seja, é preciso que o fato seja averiguado com exatidão, pois freqüentemente alguns relatos tidos como milagres não passam de fantasia popular. 2. Fato real que as ciências naturais contemporâneas ao fato não possam em absoluto explicar, ou seja a Igreja aceita apenas os milagres que são passados pelo crivo da análise crítica objetiva e severa da ciência, para aceitar um milagre. 3. Fato histórico e inexplicável pela ciência ocorrido em contexto que possa merecer a resposta Deus, ou seja, não basta ser um fato portentoso, pois o milagre sinal, deve ser inserido no âmbito de diálogo entre Deus e as criaturas. Muitos fatos portentoso podem ser explicados pela parapsicologia, principalmente quando se trata de doenças funcionais ou nervosas, resultantes de bloqueios psicológicos. Os milagres realizados por Jesus eram a autenticação de sua pregação (Mt 11,2-6; 20,27s). Os milagres ocupam um lugar importante nos evangelhos e os ensinamentos de Jesus estão ligados a estes sinais. Somente no evangelho de Marcos os milagres representam 47% do seu total. Isto quer dizer que seus milagres não tives285 sem uma base histórica, não poderiam merecer tanta consideração pelo evangelista e sendo que os milagres foram realizados perante as multidões, e se estes não fossem fatos reais, teriam sido facilmente desmentidos, contudo nem mesmo os inimigos de Jesus podiam negar que ele fazia obras portentosas. Na verdade os milagres de Jesus vêm atestados por várias fontes ou testemunhos, há portanto o critério de múltiplo testemunho. Os milagres não podem ser reduzidos às concepções do judaísmo, pois o modo como Jesus efetuava os milagres contrastava com modo de proceder dos profetas do Antigo Testamento, pois estes realizavam feitos extraordinários, mas sempre em nome de Javé; ao contrário Jesus fazia os milagres em seu próprio nome; há portanto o critério da descontinuidade. Os milagres de Jesus estavam em perfeita harmonia com a sua pregação e todos seus gestos ou palavras estavam em íntima conformidade com a sua época e o seu ambiente lingüistico, assim como com o ambiente geográfico, social, político e também com os ensinamentos fundamentais referentes ao Reino messiânico; há portanto o critério de conformidade. Diante do conjunto de feitos que Jesus realizava, havia uma explicação que iluminava-os e justificava-os. Basta constatar o entusiasmo do povo por Jesus, o reconhecimento de que ele era profeta, a fé dos apóstolos na sua menssianidade, a decisão dos judeus de eliminar Jesus porque seus milagres punham em xeque seus prestígios, a pregação dos apóstolos que dava ênfase aos seus milagres, a fim de apresentá-lo como o Messias, Filho de Deus; portanto há o critério de explicação necessária. Por fim, a maneira como os evangelistas apresentam os milagres de Jesus é simples, Jesus não fazia milagres para representar um show; há portanto o critério do estilo de Jesus. Estes cinco critérios, aplicados pelos críticos aos mila286 gres de Jesus, levam a concluir em favor da autenticidade histórica dos mesmos. Sabemos que durante o seu ministério Jesus realizou muitos milagres e por isso a imagem que os evangelhos apresentam dele é inseparável de uma moldura taumatúrgica feita de curas, expulsões de demônios, multiplicações de pães e peixes, ressuscitações... Embora isso, a tradição extra-evangélica silencia sobre a atividade taumatúrgica de Jesus, nem mesmo Paulo faz referências. As fontes judaicas, embora atestam a lembrança prodigiosa de Jesus, são vistas com reservas por serem tardias e a autenticidade destas é discutida. Quanto a credibilidade histórica das narrativas dos milagres de Jesus, deve-se recorrer a metodologia da crítica histórica e literária. Diante desta a afirmação do exorcismo de Jesus (Mt 12,28) no contexto de discussão com os judeus remonta com grande probabilidade a Jesus. Quanto à resposta de Jesus aos discípulos de João Batista (Mt 11,3-6): “Ide e contai a João o que vós ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista...”, é possível que seja uma redação que reflita o modo de pensar e exprimir da comunidade cristã ao representar a figura do Messias como: “Aquele que deve vir” (Is 26,19; 29,18-19; 35,5-6;61,1). Em conclusão, os evangelhos dão fé da existência de uma tradição na qual se conservam algumas palavras de Jesus que pressupõem a sua ação taumatúrgica sob forma de exorcismos e curas, contudo a documentação assegura o mínimo de credibilidade histórica de seus milagres. Muitos falam dos milagres de Jesus como invenções nascidas com tendência de atribuir fatos poderosos a personagens do passado, ou devido a mentalidade miraculista daquele tempo. Porém naquele tempo a tendência de atribuir milagres as personagens famosos não 287 era tão intensa, basta lembrar que a João Batista e ao Mestre da Justiça dos essênios não foram atribuídos nenhum milagre. A Igreja narra os milagres sem o sensacionalismo dos apócrifos, além do mais, Jesus negou fazer a milagres espalhafatosos, negou publicidade, não pedia divulgação e nem recomendava a divulgação. Ele de seus milagres curou o surdo-mudo fora da multidão, assim como o cego de Betsaida (Mc 8,23-26 ). Na ressurreição da filha de Jairo não permitiu a multidão estar presente (Mc 5,39ss). Portanto, os milagres de Jesus não são fatos da fantasia popular e não são de narrações fantásticas. Para Marcos os milagres são gestos da força do Filho de Deus, para Lucas são obras de misericórdia, para Mateus têm valor didático e para João importa o seu significado (multiplicação dos pães, transformação da água em vinho ...). Os milagres nos evangelhos estão bem fundamentados historicamente, pois eles se encontram em toda tradição evangélica e são narrados com a costumeira simplicidade dos evangelhos. Estes estão relacionados com a atividade de Jesus, a qual sem os milagres tornase incompreensível porque a multidão o seguia embora não compreendendo sua mensagem (Mt 11,16-24). Sem os milagres e sem a ressurreição fica incompreensível a fé da Igreja primitiva em Cristo. Além disso fonte não cristã como a do historiador Flávio Josefo fala de Jesus como "Autor de Obras Extraordinárias” como um tramaturgo. De João Batista ele não fez nenhuma menção da extraordinariedade, portanto, não havia o costume de atribuir milagres a todas as personalidades religiosas. No Talmud da Babilônia lê-se: "Jesus de Nazaré foi pregado na cruz, na vigília da Páscoa, porque praticava o curanderismo e transviava Israel", a mesma acusação que faziam os judeus. Também Justino por volta do ano 288 160 conta em seu diálogo com Trifão que "os judeus ousavam chamar Cristo de Mago". O que importa é que os milagres tiveram valor para Jesus... “os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam..." (Mt 11,3-6). Os milagres são para Jesus sinais de que o Reino de Deus já chegou, são sinais do amor salvífico, da compaixão. Os evangelistas narram que Jesus curava por compaixão (Mc 1,41), como quando multiplicou os pães, ou no fato da ressurreição do filho da viúva de Naim (Lc 7,13). Eles manifestam o amor de Deus. São sinais dos tempos messiânicos, pois Ele realiza milagres em virtude do Espírito de Deus (Mt 12.28), e não reconhecer isso é para Jesus blasfêmia contra o Espírito Santo (Mt 12,31). Jesus declara-se com o poder de perdoar e demonstra isto operando milagres (Mc 2,10-11). As obras que ele realiza dão testemunho do Pai que o enviou (Jo 5,36 ; Jo 10,27). Para muitos milagres de cura deve-se excluir a hipótese de sugestão por se tratar de doenças orgânicas, como a cura do leproso (Mc 1,40s) ou dos dez leprosos (Lc 17,12), assim como também do cego de nascimento (Jo 9,1), do surdo (Mc 7,32), da mulher do fluxo de sangue (Mc 5,25s). As curas do servo o Centurião (Mt 8,513) e do filho do funcionário real ( Jo 4,46-54) se realizaram à distância e imediatamente. Entre os milagres tantos milagres realizados por Jesus temos particularmente a ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,21-43) do filho da viúva de Naim (Lc 7,1117) de Lázaro (Jo 11,17-44), onde tornou-se impossível a sugestão. Há também os milagres na natureza como da tempestade (Mc 4,35-41) da pesca milagrosa (Lc 5,1-11) da mudança da água pelo vinho no casamento (Jo 2,111), da multiplicação dos pães, etc... 289 Muitos chegaram a pensar que os milagres de Jesus são pura ficção, que foram inventados com finalidades apologéticas. Não resta dúvidas que muitos milagres tiveram também uma conotação apologética, contudo, mesmo os estudiosos mais críticos não duvidam que os milagres são um dos aspectos mais autênticos da atividade de Jesus. Ele realizava prodígios que um mortal não podia realizar. Ele curava leprosos, cegos, coxos, mudos, surdos, endemoniados, paralíticos... Os milagres de Jesus eram a prova de que a sua missão de anunciador do novo Reino estava se manifestando e com isso, ele revolucionava os velhos esquemas e tornava crível sua doutrina. Os milagres que Jesus realizava suscitava admiração e até medo; ele ressuscitou mortos, multiplicou pães e peixes, dominou a natureza e por isso foi até acusado, como por exemplo no livro Talmude, de ser um mago e que praticava a feitiçaria. 46. JESUS PERANTE SUA MORTE O que podemos dizer sobre o sentido da morte de Jesus? Será que Ele tinha consciência de sua morte? Pode-se concluir pelas narrações dos Evangelhos, que para Ele o seu trágico fim não constitui um final inesperado de sua missão, ele tinha consciência que isto era necessário, basta analisar os Evangelhos que freqüentemente utilizam neste contexto o verbo “deî”, que quer dizer “precisa; é necessário” (Mt 16,21; Mc 8,31 ; Lc 9,22; 17,25; 22,37; Jo 3,14; 12,24; At 17,3). Também os apóstolos utilizaram a afirmação “O Messias devia sofrer e ressuscitar”, e que tudo tinha acontecido segundo as escrituras “Katà Tàsgraphàs (I Cor 15.3s; At 17,25). O projeto de Jesus ficou marcado pela conclusão dada na sua morte de cruz. Sua morte escandalosa na 290 cruz fazia parte do plano do Pai, ele “devia” passar pelo sofrimento para entrar na glória. Deus “entregou” o seu Filho em sinal de amor e penhor pelo perdão e reconciliação dos homens; é a suprema revelação de seu amor redentor. Com sua morte Jesus mereceu para os homens o perdão. Mas se era esse o plano de Deus, Jesus tinha consciência de seu fim violento? Pode-se dizer que sim devido às suas posições e opções antilegais e anticonstitucionais diante dos judeus (observância do sábado, pureza legal). Quem transgredia o sábado segundo a lei mosáica devia ser condenado à morte (Ex 31,14; 35,1-2; Nm 15,32-36). Esta era a mesma condenação para quem praticava magia (Lv 20,27), e os dirigentes judeus consideravam a atividade exorcista de Jesus como obra demoníaca (Mc 3,22). Também a sua interpretação da lei fazia com que fosse suspeito, assim como a sua familiaridade com os pecadores. Por isso, para os defensores da ortodoxia o comportamento de Jesus configurava-se como grave e um perigoso desvio religioso. Além disso a sua ameaça contra o Templo não passou desapercebida pelo Sinédrio e entrou no processo Romano (Mc 14,58s). Sua oposição aberta aos dirigentes judeus faz-lhe prever um processo penal, assim como também a morte violenta de João Batista era outro indício, já que era opinião do povo que suas atividades estavam vinculadas às de João no Rio Jordão (Mc 6,1416; 8,28). Tanto é verdade que ao saber da morte violenta de João, Jesus retirou-se na clandestinidade (Mt 14,13) e até os fariseus lhe avisaram do perigo que corria (Lc 13,31). O fato é que Jesus na véspera de sua morte, exprimiu através de um contexto convival com os discípulos a sua firme adesão que inspirou toda a sua atividade histórica, ou seja, o Reino de Deus (Mc 14,25; Lc 22,16). Diante da perspectiva de sua morte Jesus revela 291 aos discípulos sua paixão, morte e ressurreição (Mt 16,21; Mc 8,31; Lc 18,31). Jesus é consciente que veio para dar a sua vida para o resgate de muitos (Lc 22,26), uma alusão ao servo sofredor de Isaías (Is 52,13-53,12), assim, a sua morte em um sentido redentor. Desta forma Jesus enfrenta a sua morte sob o pano de fundo dos profetas rejeitados e mortos, como conseqüência da infidelidade de Israel, não como um acidente desagradável, mas como um sinal do pecado na história do povo de Deus. João vê a morte de Jesus como opção de fidelidade e auto-doação como o pastor que dá a vida por seu rebanho (Jo 19,11-14). Jesus vê em sua morte o cumprimento da vontade salvífica do Pai, por isso Ele deve cumpri-la (Lc 18,31; 22,37). Por isso, Jesus teve consciência do seu destino em relação às suas opções pelo Reino. Com que esperança Jesus enfrentou sua morte? Ele tinha ressuscitado uma jovem, um jovem e Lázaro, Ele que compartilhava a fé na ressurreição, a qual começou fazer parte do credo hebraico desde o período dos Macabeus (Dn 12,2; II Mc 7,1-23), com sua morte e ressurreição Jesus tem esperança que o Reino de Deus se concretiza (Mc 14,25; Lc 22,30), pois toda a sua vida foi vivida em cumprimento do Reino de Deus, eis a razão de Jesus dizer na ceia : “Isto é meu corpo”, o pão, dom da vida, e o sangue derramado, confirmam o valor de sua doação realizada em situação externa, com sua morte violenta. Será que a morte de Jesus teve uma conotação política? Tácito, historiador Romano do século II, menciona a condenação de Jesus por Pilatos sob o reinado de Tibério (Annales XV, 44). Também Flávio Josefo nas Antigüidades Judaicas do fim do século I, refere à condenação de Jesus. Fora dos 4 evangelhos o mais antigo credo cristão afirma que Jesus “morreu por nossos pe292 cados segundo as escrituras, foi sepultado e ressuscitou segundo as escrituras”. (I Cor 15,3-4), também encontramos em Gálatas 3,1-13, e Hebreus 13,12 ou ainda em Atos dos Apóstolos 2,23; 10,39; 13,27-29, onde diz que Jesus padeceu fora da porta da cidade. Todos os relatos da paixão incluem acréscimos e retoques redacionais feitos pelos evangelistas com fins apocalípticos dando assim com cada um dos evangelistas uma fisionomia particular. Desta forma, o perfil de Marcos é de tipo catequético e perenético: vê Jesus Messias e Filho de Deus que deve ser seguido no caminho da cruz. Já o de Mateus é cristológico e eclesial; coloca Jesus como o Justo inocente, o Messias e Filho de Deus rejeitado pelo povo de Israel. Lucas tem uma perspectiva histórica e salvífica, com sabor parenético e apresenta Jesus como o Salvador e Mártir, modelo dos cristãos. João por fim, vê na paixão a “glória” de Deus, a exaltação de Jesus como Rei e Messias. Portanto, embora a preocupação catequética e parenética, assim como aquela apologética e polêmica, tinham sido introduzidos nos relatos nada desabona que a crucificação de Jesus é um fato histórico por causa das autoridades judaicas (Sinédrio). Os evangelistas relatam que havia uma conspiração contra Jesus, de fato os sinópticos relatam o plano dos sumos sacerdotes de prender e matar Jesus (Mc10,1-2; Lc 22,1-2; Mt 26,3; Jo 11,47), tudo isso capitaneado por Caifás (Jo 11,47-48). Enquanto Jesus agia só na Galiléia, feria a suscetibilidade dos fariseus, mas quando começou agir em Jerusalém os sumos sacerdotes tiveram que tomar providências. De fato Jesus agia ali com mais cautela e até procurou a clandestinidade (Jo 10,40), afinal Jesus tinha já entrado em Jerusalém aclamado por admiradores provenientes da Galiléia, fato que teve um matiz popular nacionalista e mes293 siânico, acontecimento este que se deu numa festa anterior à Páscoa, ou seja, na festa dos Tabernáculos ou das tendas, quando se celebrava com procissão ao Templo com “bastões enfeitados, ramos verdes e palmas” nas mãos (II Mac 10,7; 12,13). Foi nesta ocasião que Jesus afrontou os vendedores do Templo. A partir disso a decisão de matar Jesus foi tomada, e Jesus neste ínterim passou a hospedar-se na casa de qualquer amigo de confiança (Mc 11,11-19), daí o papel de Judas para capturar Jesus. Contudo a retribuição de 30 moedas não foi o fator preponderante da atitude de Judas, embora os evangelistas colocam o fato como cumprimento das escrituras como uma advertência aos membros das comunidades, porém é verdade que Jesus incluiu no seu plano homens livres, sem ceder à sua mentalidade nem fanatizá-los, a tal ponto que um dos seus íntimos podia separar-se dele e traí-lo. A conspiração contra Jesus levou à sua prisão; de fato o relato da paixão inicia com sua prisão (Mc 14,43; Jo 18,3; Lc 22,52) acompanhados de Judas, dos guardas, dos sumos sacerdotes e dos fariseus. Naturalmente os soldados de que fala João não seriam enviados por Pilatos que nem ao par dos fatos estavam (Jo 18,29-30), mas sim eram os guardas do Templo, ou adidos ao serviço do Sinédrio. O episódio do corte da orelha de Malco (Jo 18,10) explicita a condenação de Jesus a auto defesa armada, e a atitude de Jesus de livremente aderir à vontade de Deus (Mt 26,54). Dificilmente a comunidade teria inventado este episódio, assim como também a deserção dos apóstolos. Na seqüência da prisão desencadeou-se o processo de Jesus, o qual foi condicionado a influências de caráter religioso, espiritual e ideológico. Alguns autores defendem a plena responsabilidade dos judeus neste caso e Pilatos um mero instrumento manobrado pelos 294 dirigentes judeus, outros invés, defendem que a única autoridade competente responsável foi Pilatos e não os judeus. Alguns admitem que a acusação a Jesus foi de caráter político, e por isso a participação aos judeus teria sido apenas informal em vista de entregar o réu a Pilatos, contudo outros sustentam a iniciativa dos judeus na prisão e realização do processo tendo o sinédrio como tribunal supremo na sua condenação, e o papel de Pilatos teria sido de dar execução ao plano dos judeus, acusando-o ao governador, visto que o Sinédrio não tinha poder de decidir penas capitais. Naturalmente olhando nas fontes dos evangelhos temos que levar em conta a perspectiva catequética e apologética e também polêmica, contudo é consenso de todos os autores e historiadores é que Jesus, Fundador do movimento cristão, foi condenado à morte de cruz em Jerusalém sob a administração de Pilatos por volta do ano 30 da era cristã (Tácito). Da mesma forma os historiadores aceitam como seguro o título INRI (Jesus Nazareno Reis dos Judeus) na cabeça da cruz (Mc 15,26), e por fim os historiadores também aceitam que a autoridade judaica desempenhou um papel no processo que conclui com a condenação de Jesus. De fato é indubitável a presença de Anás e Caifás, a reunião do conselho dos sacerdotes, escribas e anciãos, o interrogatório de Jesus e depois entrega-o a Pilatos, Judas que devolve o dinheiro aos sumos sacerdotes e se enforca e os judeus que acusam Jesus diante de Pilatos, Jesus é interrogado, é enviado a Herodes e depois devolvido, a proposta de sua troca por Barrabás, o povo pede a crucifixão de Jesus, a sua flagelação e entrega para ser crucificado e a zombaria dos soldados. O que se pode concluir que o Sinédrio, como supremo tribunal judaico sob administração de Roma, tinha o direito e a competência para tratar as causas ca295 pitais, mas não podia executar a sentença, pois esta era de direito do governador, por isso o Sinédrio reuniu-se de manhã para procurar testemunhas e provas de acusação a Jesus. O episódio da destruição do Templo anunciada por Jesus, não é prova contra Jesus, este Logion remonta a Jesus, mas foi lido numa interpretação cristã face as acusações judaicas aos cristãos, do não cumprimento da profecia (Mc 14,58). Jesus não responde aos falsos testemunhos, pois seu comportamento se pauta no modelo do “justo”, do servo sofredor (Is 53,7). Também a pergunta do sumo sacerdote: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus Bendito?” (Mc 14,61) teve uma formulação cristológica elaborada pela tradição cristã e a conclusão de que Jesus ao dar a resposta blasfemou, também não condiz com a verdade já que se esperava o Messias, portanto é uma releitura de todo o “processo”, o que significa que todo o relato do processo seja uma criação do evangelista, visto que no processo existem dados atestado pela tradição tais como: a presença de Jesus depois de sua captura diante do Sinédrio, a reunião do Sinédrio pela manhã e a decisão e levar Jesus a Pilatos, portanto a conotação de um “processo judaico”. Se houve um processo judáico, necessariamente houve também um processo romano para condenar Jesus o qual, foi entregue a Pilatos, coisa que também Tácito confirma. Teria Pilatos ratificado a condenação do Sinédrio ou teria articulado um outro processo que encerrou-se com a condenação? Certamente Pilatos teria levado em conta os aspectos políticos da acusação do Sinédrio para proceder um interrogatório suplementar chegando à conclusão de que Jesus teria merecido a condenação capital. Diante de Pilatos as autoridades judaicas acusavam Jesus de sublevador, impedindo o povo de pagar o tributo a César e afirmando ser Rei (Lc 23,2). Todo o motivo da condenação está então na sua 296 pretensão messiânica como ameaça para a soberania de Roma na Palestina. Os evangelistas relatam que Jesus é inocente desta acusação com sabor político, e Pilatos mesmo deu-se conta deste complô por “inveja” (Mc 15,10) e por isso por três vezes confirma que não encontrava nada que merecia dar-lhe a morte (Lc 23,22) e até a proposta de trocá-lo por Barrabás indica que Jesus não representava ameaça ao governo de Roma. Quando Pilatos propõe a troca de Jesus por Barrabás, os chefes sublevam o povo para convencer Pilatos de não fazer isso; por fim Pilatos, não que emitiu uma sentença, cede à pressão do povo (Mc 5,15; Mt 27,24-25). Será verdade esta versão dos evangelistas sobre o processo de Jesus perante Pilatos? Sabemos algo de Pilatos segundo fontes provenientes de Flávio Josefo em suas obras “A guerra judaica” (75-79 dC) e “Antigüidades Judaicas” (93-94 dC), as quais o mencionam entre os anos 26 a 36, o qual logo no início de seu governo provocou a reações dos judeus com atitudes escassas de sensibilidade política, assim como mandando introduzir em Jerusalém na calada da noite medalhões com efígies do Imperador que faziam parte das insígnias militares, violando a tradição religiosa judaica e o estatuto da cidade e depois de dar demonstração de sua força mandou retirar as insígnias. Também Folin em sua obra “Legatio ad Caium” descreve que Pilatos mandou expor no palácio de Herodes uns escudos dourados que traziam referências ao culto do imperador, o que suscitou a reação imediata dos judeus que pediram-lhe a remoção ameaçando-lhe que mandariam uma delegação de protesto a Roma. Diante disto Pilatos mandou retirar os escudos. Portanto, Pilatos era de natureza inflexível, arrogante e duro, temia um recurso dos judeus com medo que viesse à 297 tona suas violências, torturas, rapinos, crueldades, execuções. Ele fora um ex-militar da ordem eqüestre enviado por Roma numa região quente que requeria tato e capacidade política, porém ele era ambíguo, um homem de duas caras, subordinado, submisso e servil para com o Imperador e superiores; chamado para Roma sob ordem do legado da Síria, Vitélio viajou sem nenhuma objeção. Era incapaz de ir ao encontro do povo judaico, se bem que mantinha uma certa harmonia com os grupos sacerdotais do Templo, como provam a construção do aqueduto de Jerusalém e a permanência de Caifás no cargo de Sumo Sacerdote durante toda a sua administração. O perfil do processo contra Jesus relatado pelos evangelhos não diverge muito a não ser na sua intenção catequética e apologética. Pilatos, frágil e com medo de ser chantageado e denunciado a Roma, então aceitou a acusação de cunho religioso-político contra Jesus, por ser cioso de seu poder, mandou executar Jesus, embora a proposta de trocar Jesus por Barrabás ou enviá-lo a Herodes marcam o seu estilo de procurar em querer livrar-se de situações embaraçosas. Consolidado o processo, partiu-se para a execução da crucifixão e morte, a qual era precedida pela flagelação, onde o condenado era despojado e açoitado até sangrar com o “flagelo”, o qual era provido de duas correias de couro grossas e largas tendo nas pontas duas bolas de chumbo ou ossinhos de carneiro. A flagelação entre os judeus era limitada a 39 golpes que laceravam o corpo e debilitavam o organismo, não raro o condenando desmaiava. Juntamente com a flagelação os soldados zombaram de Jesus diante do motivo de sua condenação: “Rei dos Judeus”. Por isso eles organizaram uma cena de investidura real colocando sobre Jesus um manto púrpura, sinal de realeza, e cingiram-lhe 298 a cabeça com uma coroa de espinhos imitando a coroação real e por fim imitaram a homenagem imperial com a saudação “Salve , Rei dos Judeus” (Mc 15,16-11). O episódio da burla da dignidade real de Jesus foi transcrito em sentido cristológico e proposto com intenção parenética; seu senhorio é o anti-poder. Contudo este episódio como outras foram relidos em chave cristológica e catequética o que não prejudica a credibilidade histórica. Normalmente o condenado carregava a trave transversal da cruz (o “patibulum”) até o lugar da execução onde se encontrava o tronco central da cruz, o “stipes”. A execução devia acontecer com o máximo de publicidade e em lugar ao alcance de todos, por isso escolhia-se lugares, tais como estradas, montes, anfiteatros, como em Roma no Monte Esquilino, e levava-se a “floresta de cruzes” com um espetáculo macabro dos abutres a comerem os cadáveres (Horácio). Da mesma forma em Jerusalém havia o Gólgota, onde estavam fincados os postes para a crucifixão. O fato de Cirineu ter ajudado a Jesus carregar a trave da cruz é verídico tendo em vista sua extrema fraqueza, o que prova também a sua morte sobrevinda em poucas horas na cruz. Cícero chama a cruz do suplício mais “cruel e atróz”. O máximo e o vértice das penas infligidas a um condenado à morte (In verrum XV 2,5.165.168.169). Este tipo de condenação infame tinha chegado aos romanos através dos cartigineses, mas era conhecido também pelos persas e fenícios. Para os catigineses esta pena era reservada somente para os chefes militares e políticos culpados de revolta e traições, mas entre os romanos era reservado para os delinqüentes das classes humildes, os estrangeiros e os escravos. No período de agitação social e revoltas civis a cruz era empregada como instrumento de repressão, isto era muito 299 aplicado nas províncias do Império, em particular na Judéia. Flávio Josefo e documentos de Qumrân confirmam que a crucifixão era aplicada antes dos romanos já entre os asmorreus, mas foi com a presença militar de Roma que as crucifixões se intensificaram na Judéia culminando nos anos 66-7. Disto fala Flávio Josefo: “Os judeus eram flagelados e, depois de terem padecido toda sorte de suplício, antes de morrer, eram crucificados diante das muralhas (Bell V, 11,1 “Os prisioneiros capturados a cada dia eram cerca de 500 e mais, a tal ponto que, devido ao número, faltavam espaço e cruzes para as vítimas”. Somente Varo no ano 4 aC, crucificou nos arredores de Jerusalém 2.000 rebeldes judeus. Em 1968 foi descoberto em Giu’atha – Mitvtar, perto do Monte das Oliveiras, os restos de um crucificado num cemitério da época, onde os ossos de um jovem de 24-28 anos de altura 1,67 m que fora crucificado, tinha os calcanhares ainda atravessados por um prego de ferro de 17 cm, os pés foram pregados com um só prego e uma tabuinha de acácia separava a cabeça do prego do tornozelo e a tíbia direita tinha sido quebrada, como golpe de misericórdia. Pregada na cruz a pessoa vivia uma lenta agonia entre os espasmos musculares e os sintomas de sufocação, por isso a morte vinha por asfixia quando o condenando não tinha mais forças para soerguer-se apoiando-se nos calcanhares pregados. Além do suplício, a morte na cruz para os judeus era objeto da maldição de Deus (Dt 21,22-23), a morte na cruz era a dessacralização radical da pessoa humana. O aspecto ignominioso da morte de Jesus na cruz é nomeado pela provocação dos transeuntes (Mc 15,29-32). Os evangelistas sobrepõem a este cenário horripilante o juízo do Senhor (Mc 15,33; Mt 27,51-53) com a ruptura do véu do Templo, a proclamação do centurião: 300 “Este é o Filho de Deus”, a presença amiga de Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, Salomé, a Mãe de Jesus e o irmão de sua Mãe, Maria de Cléofas e de João, o discípulo que Jesus amava (Jo 19, 25-26). Constatada a morte de Jesus sobre a cruz, alguns procuraram sepultar o seu corpo, por isso os quatro evangelistas relatam a sepultura de Jesus feita por José de Arimatéia em seu próprio túmulo acompanhado de algumas mulheres e de Nicodemos (Jo 19,39). A narrativa revela vestígios da releitura cristã numa chave catequética e apologética, com intuito de responder as contestações da ressurreição de Jesus, afirmando que Ele tinha mesmo morrido (Mc 15, 44-45). Os corpos dos condenados eram deixados sobre a cruz até que o cadáver fosse consumido por animais selvagens, ou em caso de decomposição eram jogados numa fossa comum. Porém, a legislação romana previa também a entrega do corpo aos parentes contanto que tivesse constatado a morte e fosse feito o pedido oficial. A iniciativa da deposição e sepultamento do corpo de Jesus foi de José d Arimatéia, um membro do Sinédrio, um homem bom que se tornou discípulo de Jesus. Os evangelhos dizem que o corpo foi envolvido num lençol e deposto no sepulcro (Mt 27,59-60) e João salienta a quantidade de mirra e aloés levada por Nicodemos. O sepultamento foi às pressas por causa do repouso sabático. Mateus lembra a iniciativa dos sacerdotes, chefes e fariseus em pedir que Pilatos mandasse guardar o sepulcro de Jesus até a 3º dia por motivo de perigo de furto do corpo pelos discípulos, os quais poderiam depois fazer a propaganda da sua ressurreição. Com a autorização de Pilatos os chefes dos judeus puseram selos ao sepulcro e piquetes de guardas (Mt 27,62-66). O evangelista lembra ainda o desmaio dos guardas no mo301 mento da ressurreição e a tentativa de silencia-los com suborno por parte dos dirigentes, naturalmente tudo isso é intenção apologética para refutar a interpretação de alguns judeus sobre a ressurreição de Jesus não ter acontecido, contudo esta tentativa apologética de Mateus não foi totalmente inventada porque nos meios judaicos podia ser facilmente desmentida; ela reflete a intenção dos judeus de quererem mandar vigiar o túmulo. Podia Jesus entrever o seu fim violento? Sim, em vista da situação de suas opções de posições antilegais e de confronto com a mentalidade judaica a propósito do sábado e da pureza ritual. Conforme a Legislação Rabínica, transgredir o sábado merecia a morte. A mesma condenação era para o blasfemador e para quem praticasse magia. A obra de Jesus era considerada demoníaca (Mc 3,22). Sua atitude era um grave desvio religioso que valia-lhe o título de falso profeta, blasfemo. Jesus tinha consciência de sua morte e deu um significado a ela como sendo o profeta rejeitado (Lc 23,32s; Mc 12,19). Jesus se vê também como servo sofredor "o Filho do Homem não veio para ser servido... e para dar a vida em resgate..." (Mc 10,43-45). "Podeis beber o cálice que bebo ou receber o batismo com que sou batizado?" (Mc 10,38) 47. O SIGNIFICADO DE SUA MORTE Jesus ressuscitado para a comunidade é Jesus no culme de sua doação na cruz. Para Paulo o que importa é Cristo crucificado ( ICor 2,2) , o anúncio de Jesus ignomioso, maldito (Dt 21,23) ex-comungado foi escândalo e loucura (ICor 1,22-23). Jesus sofreu o mesmo destino dos profetas e ele mesmo reconheceu o seu destino (Lc 13,33). Nesta perspectiva Jesus morreu na sua legítima 302 missão, morreu pelos nossos pecados conforme o credo de Paulo (ICor 15,3), ele carregou como servo os pecados, por isso a crucifixão está inserida na história da salvação. Sua morte foi desígnio divino e não condenação (Mc 8,31), e este desígnio é para a salvação dos homens, pois ele veio não para ser servido, mas para dar a sua vida (Mc10,45). Seu corpo imolado, seu sangue derramado é em favor de muitos (Mc 14,24), isto é, pelos pecados; sua morte tem caráter expiatório. A expiação no mundo helenístico era o esforço do homem, mediante o sacrifício, para influenciar a divindade, a fim de torná-la propícia, mas para a Sagrada Escritura expiar é sinônimo de libertar os pecados, é Deus quem expia como fala João (I Jo 4,10; 2,2 ; Hb 2,17) e em Jesus crucificado o homem encontra o perdão, a comunhão com Deus. Jesus não é um bode expiatório que substitui a nós, mas a solidariedade; ele fezse maldição, pecado e pobreza para dar-nos a riqueza (Gl 3,13 ; IICor 5,21). Jesus morreu por nós para satisfazer a justiça divina ofendida, mas no sentido de que só ele sem pecado pode realizar eficazmente a salvação e estabelecer a unidade com o Pai. Ele foi colocado como instrumento de propiciação com seu sangue (Rom 3,25). O propiciotório era a tampa da Arca da Aliança onde Deus perdoava ao povo seus pecados e que no dia da expiação era aspergido com sangue. Em conclusão afirmamos que na comunidade primitiva a reflexão sobre Jesus não é de tipo filosóficateológica , mas de fé. O ponto de partida é a relação atual com Jesus glorificado, profissão de fé que se traduzia em cantos, hinos, confissões de fé, doxologias... Não é também uma Cristologia do tipo antológica, isto é, não dava atenção para quem é Cristo em si mesmo, em seu ser, mas é soteriológica, ou seja, vê o sinal salvífico particularmente na sua morte e ressurreição. O Helenismo 303 teve uma reflexão mais filosófica, mais voltada ao ser de Jesus (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20) ; Jo 1,1-18). Vê o Cristo em total obediência à missão divina e sua relação com o Pai. Naturalmente toda esta proclamação de fé em Cristo tem um determinado aspecto de vida terrena de Jesus como fundamento, como critério da própria interpretação da fé. Naturalmente não podemos falar da divinização progressiva de Jesus, um ato semelhante não se explica no judaísmo. É inconcebível Paulo, judeu, divinizar outro judeu vivido poucos anos antes dele e além disso morto na cruz. Os judeus recusavam divinizar o homem, entretanto a Jesus o adoravam. Porque ele é Deus desde sempre e isto foi manifestado pela ressurreição. É a contemplação do ressuscitado que abriu a fé à compreensão daquilo que ele é desde a eternidade, a partir, porém de sua figura histórica. Isto demorou tempo para ser explicitado, pois Jesus que era distinguido de Deus Pai, vem compreendido como Filho, igual a Deus. 48. OS RESPONSÁVEIS PELA MORTE DE JESUS Antes de considerar quem foram os responsáveis pela morte de Jesus é necessário afirmar que Jesus não foi um homem conservador do status quo; ele sempre foi um homem de ruptura com sistema estabelecido, um inconformista. Embora fosse um homem religioso, um bom judeu, não poupou críticas à sua religião, contra as leis que oprimiam as pessoas sobretudo os pobres. Ele não foi amigo dos poderosos e nem da classe dominante. Ele sonhava com o seu país livre da opressão e por isso certamente não estava contente com o domínio dos romanos. Podemos dizer que ele foi muito mais do que um 304 agitador social; na verdade ele foi um pacifista, pregou a paz, desmascarou as injustiças e a opressão. A sua revolução não se baseava na força bruta ou nas armas, mas se fundamentava em Deus que não faz acepções de pessoas; uma revolução que devia começar por dentro da pessoa. Sua revolução consistia na prática do amor, “o maior tem de servir o menor”. Sua revolução era tão profunda que procurava dar vez e voz para aqueles que a sociedade desprezava: os doentes, os possessos, os leprosos, as prostitutas, os mendigos, os pecadores... era uma revolução completa e não apenas das estruturas sociais e políticas, mas também visava tocar o profundo da personalidade humana. Uma revolução que incluía todos. Jesus propunha uma mudança radical na sociedade judaica. Quem são os responsáveis pela morte de Jesus? Para responder a esta pergunta temos duas testemunhas provenientes de fontes não cristãs que indicam os responsáveis pela sua morte. Tácito, um historiador, referindo-se à repressão aos cristãos de Roma no ano 64, a atribui a Nero, o qual quis encontrar um bode expiatório para descarregar sobre este a acusa que o povo fazia de haver provocado o incêndio em Roma. O historiador registra a existência em Roma do “Exitiabilis superstitio” dos cristãos, atribuindo a sua origem a um certo Cristo, “que no tempo do Império de Tibério, foi levado à morte por ordem do procurador Pôncio Pilatos”. Outra fonte não cristã é deve-se ao hebreu Flávio Josefo, o qual atribui a Pilatos a condenação e morte de Jesus, mas acrescenta que Pilatos recebeu uma denúncia por parte de alguns personagens que ele define como os “maiores dentre os nossos”. Estas informações correspondem àquelas dos Evangelhos onde um papel determinante é atribuído aos sumos sacerdotes, os quais juntamente com os “anciãos 305 do povo” depois de uma discussão com Jesus quanto ao comércio no pátio do Templo. Nesta Jesus os acusa de opositores do desígnio de Deus e preanuncia-lhes a transferência do cultivo da “vinha”, que indica a herança espiritual de Israel, para um povo que a frutificará (Mt 21,21-45). Depois deste incidente certos grupos começaram a pensar como prendê-lo, tanto é verdade que fizeram uma reunião no palácio do Sumo Sacerdote Caifás para procurarem encontrar meios para prendê-lo e matá-lo (Mt 26,3s). Quem eram esses grupos? Eram os sacerdotes de Israel que formavam uma casta fechada e que se passava por descendência. Os sumos sacerdotes que formavam a suprema autoridade, uma autoridade religiosa ao lado da autoridade civil. No tempo de Jesus o sumo sacerdote era nomeado e até deposto pelas autoridades romanas, conforme os interesses políticos do trono. Assim, este era um grupo muito influente de sacerdotes de alto nível que aspiravam tornarem sumos sacerdotes. O Evangelho de Mateus (27.62) coloca a responsabilidade pela decisão em matar Jesus, aos sumos sacerdotes e “anciãos”, e o evangelista Marcos (11,18.27) acrescenta ainda os escribas. João (7,32; 11,47.57) coloca também os fariseus. Portanto, eram um grupo de poder, de prestígio e de ricos, que exercitavam influência na vida dos hebreus. Muitos desses faziam parte do Sinédrio, uma espécie de órgão de governo e ao mesmo tempo da corte suprema de justiça. Os escribas ao lado dos sacerdotes dedicavam ao culto, ensinavam e interpretavam a lei. Os fariseus, formavam uma espécie de partido religioso e até político; neste grupo encontravam também sacerdotes e escribas, que formavam a aristocracia religiosa pelo zelo na fé e na aplicação da lei e pelo rigor de conceito de vida. 306 Mas qual foi a participação do Sinédrio e do Governador Romano? Sabemos que Jesus um personagem na sociedade de Israel, era tido como perigoso, mas isso não dava direito de eliminá-lo sem as conseqüências; precisava proceder seguindo as normas da lei e aqui entram em ação estes dois órgãos. Para autoridade do Sinédrio era dada autoridade cujas decisões tinham rigor de lei seja na Palestina que nas comunidades espalhadas no Império Romano. Para a sentença de morte, parece que o Sinédrio tinha que ter ratificada a confirmação pela autoridade Romana. Eis então que Jesus passa pelo Juízo da Corte Judaica, mas é conduzido até o Procurador Romano. Além destes os evangelhos colocam em cena entre os responsáveis, a multidão (Mt 26,46; 27,25; Mc 12,12; 15,8-1). A multidão fazia os sumos sacerdotes temerem na busca da morte de Jesus. Tratava-se esta de um grupo instigado pelos sumos sacerdotes e anciãos. Ajunta-se à multidão a figura de Judas Escariotes, o traidor, um dos doze. A figura de Judas é um mistério já que não se sabe porque ele traiu Jesus. É um mistério porque parece que o seu pecado e danação serviram para o cumprimento do desígnio divino. Ele aparece neste caso como um bode expiatório que pagou para a salvação de todos, coisa que não tem fundamento nos Evangelhos. 49. POR QUE QUERIAM MATAR JESUS? Se Jesus fazia o bem por que queriam prendê-lo e condená-lo à morte? Na verdade Jesus pregava a bondade, ajudava os pobres, consolava os sofredores, era politicamente em tudo inócuo. Olhando neste angulo não tinha razão pa307 ra eliminá-lo. Contudo não raro fica claro que Jesus tinha atitudes onde se comportava como Deus, se proclamava Deus. De fato, os Juízes do Sinédrio o condenaram dizendo que blasfemou. Jesus, entretanto sempre procurou não dar razão para esta acusa, além disso, parece não provável que num ambiente rigidamente moralista, tivesse ostentado o seu ser divino para tornar uma ocasião de acusa ou de condenação. Além do mais as expectativas messiânicas para Israel era de um messias político-militar para libertar o povo da dominação romana e dar-lhe a liberdade política, a paz e o bem estar. Jesus, ao contrário desiludiu o povo em suas expectativas, buscando simplesmente uma renovação espiritual e moral para o homem. Portanto, não é verdade que foi a pretensão de Jesus de ser Deus que provocou a hostilidade contra ele, assim como também não é verdade que a desilusão do povo diante de um Messias que não correspondia às expectativas, tenha levado ao seu processo. Diante disto, então havia um motivo plausível para matá-lo? A questão de suas atitudes a respeito do Templo de Jerusalém constitui um elemento forte. Basta lembrar que no processo diante do Sinédrio foi lembrado que Ele tinha proposto em destruir o Templo (Mt 24,1), acusa que os evangelistas esclarecem que era infundada. Todos os evangelistas relatam a cena de Jesus no pátio do Templo expulsando os vendedores (Mt 21,12; Mc 11,15-17; Lc 19,45; Jo 2,13-22), os quais trabalhavam neste local oferecendo um serviço aos peregrinos que vinham de longe e até do exterior, e tinham necessidade de trocar moedas para comprar os animais para o sacrifício. O pátio do Templo não era portanto um lugar de silêncio para favorecer a oração dos devotos onde na sua área mais ampla podia entrar também os pagãos. Além do mais o próprio Jesus tinha curado 308 doentes ali, e ali reunia os seus discípulos para instruílos. Nesta cena os judeus pedem a Jesus com que autoridade ele fazia aquilo. A resposta de Jesus provocou muito mais reação de protesto dos judeus, do que a contestação do trabalho deles naquele lugar, pois com isso Jesus colocou o sistema de culto de Israel em cheque. Jesus protestou contra o sistema vigente de culto. De fato, para a samaritana afirmará depois que não seria mais necessário adorar a Deus em Jerusalém. Portanto, o protesto de Jesus no pátio do Templo deve ser entendido dentro de toda a sua pregação, assim Jesus não entendia a destruição do Templo, mas queria indicar que o culto do Templo estava superado, como de fato os essênios, monges que viviam em Qumran, às margens do Mar Morto, também afirmavam, pois para eles o culto no Templo era corrupto e infiel e que o verdadeiro Templo de Deus estava na vida da comunidade deles. Além desta posição de Jesus quanto ao Templo de Jerusalém devemos também levar em consideração suas atitudes em relação à lei mosaica. A nação hebraica existia em força de sua lei, de sua Torah, pois esta existiu antes do povo possuir a terra. A posição de Jesus diante da Torah, aprece em confronto com o que relatam os Evangelhos, contraditória, pois de um lado ele proclama solenemente que não veio abolir uma vírgula da lei, contudo, sabemos que nos textos cristãos fazem parte apenas os dez mandamentos e nenhum dos 613 preceitos ensinados pelos Rabinos. No Sermão da Montanha (MT 5, 18-48), há uma série de citações do AT que depois contrapõem com os ensinamentos de Jesus: “Ouvistes o que foi dito... Eu porém vos digo...”, aqui há uma interpretação mais rigorosa da antiga lei. Esta posição de Jesus em relação à lei 309 irrita o hebreu. Este “mas eu vos digo” de Jesus tornase para o judeu e para as autoridades algo intolerável. Embora o relato do processo de Jesus não acena esta posição oposta de Jesus, devemos dizer que em relação a lei, deve ter incomodado fortemente as autoridades. O preceito sabático contestado por Jesus, assim como as prescrições quanto a pureza de alimentos não foram fatores determinantes para a sua condenação? Outra consideração no desenvolvimento do processo em condenação de Jesus é quanto ao sábado. Jesus afirma: “O Filho do Homem é o Senhor do sábado”. (Mt 12,1-8; Mc 2,2328). Esta expressão “Filho do Homem” aparece na boca de Jesus, 84 vezes no NT, o que para os exegetas trata-se de “ipsissima verba Jesu”. No tempo de Jesus o personagem “Filho do Homem” era visto como um protagonista do juízo divino (Dn 7,9-14). Portanto, essa questão do comportamento de Jesus em relação ao sábado, provocava os doutores da lei e os fariseus. O sábado era dia sagrado de descanso tanto para os homens como para os animais; não se podia trabalhar, curar, etc., entretanto Jesus curou, caminhou... O povo hebreu era ciente de sua identidade, de sua eleição divina, e tinha os seus rituais e suas regras de pureza quanto aos alimentos e neste aspecto também Jesus conflitou com as autoridades judaicas, embora não tenha nem ele nem seus discípulos feito violações quanto a pureza dos alimentos. Encontramos entretanto discussões com os fariseus a respeito de numerosas abluções prescritas para tomar as refeições o que escandalizava os fariseus (Mt 15,1-18). E quanto a sua prática de acolhida aos pagãos e pecadores? Jesus com suas pregações pedia a Israel muita coisa, quebrava paradigmas e procurou conduzi-lo para 310 uma nova e superior forma de unidade e de consciência que os profetas já tinham anunciado. Com isso, Ele pretendia tornar universal o patrimônio da fé de seu povo o que implicava em misturar-se com os pagãos, condividir com eles a fé no Messias. Em outras palavras Jesus exigia que Israel se anulasse. Neste sentido ele abre-se aos pagãos, pois entendia que colocar-se diante de Deus não era questão de pertença étnica, mas de fé, tanto é verdade que curou vendo a fé da Cananéia pagã (Mt 15,1-18). Advertiu que a vinha lhe seria tirada e elogiou a fé do Centurião (Lc 7,1-10). Jesus estava convencido que a história de Israel estava chegando ao seu cumprimento e que era eminente a vinda do Reino, o qual exigia mudança pessoal de vida. Ele tinha uma proposta revolucionária. Ele troca a ótica das coisas, pois para a mentalidade e cultura de então o destinatário do reino era quem observava os mandamentos, Jesus vê esta prática como formalismo e hipocrisia (Mt 23,13-29). Para o judeu instruído quem não praticava a lei era maldito (Jo 7,45-49; 9). Jesus vira de ponta cabeça as perspectivas do Reino: “Os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Jo 8,1-11; Lc 7,36-4; Lc 17,11-19). Ele aceita ir comer na casa de publicanos, pessoas desprezadas e odiadas em Israel porque eram cobradores de impostos para o Império Romano, além de pagãos; ele absolve a mulher adúltera, deixa Madalena a pecadora enxugar seus pés, encontra-se com os leprosos considerados os mais impuros, aceita Levi um publicano como seu discípulo. Em suma estava continuamente rodeado de doentes, pobres, pecadores... De tudo isso ele era consciente, por isso disse: “Bem-aventurado quem não se escandaliza de mim”. É evidente que os motivos dos conflitos entre Jesus e as autoridades judaicas foram graves e muitos. 311 Jesus também não foi um revolucionário para libertar Israel da dominação Romana e também não pensava em fundar uma nova religião, mas estava convencido de que Israel como único povo depositário da aliança com Deus estava terminado. Desta forma, Ele pedia a seu povo de abandonar a própria identidade e diluir-se num povo novo formado de todos os povos, fundado nele como enviado de Deus para a salvação do mundo. Diante disso conclui-se que não faltaram razões para matá-lo. Apesar de Israel ser dominado pelos Romanos, o exercício da justiça funcionava, portanto Jesus passou por um processo regular. Jesus submeteu-se a um interrogatório que segundo Mateus e Marcos deu-se na casa de Caifás, juntamente com outros sumos sacerdotes, escribas e anciãos. João invés fala do interrogatório feito por Anás e depois Ele fora enviado a Caifás. João insinua que Anás queria obter de Jesus informações sobre a sua presunta atividade secreta. Então, qual foi a acusação verdadeira contra Jesus? A acusação verdadeira contra Jesus parece ser aquela de ter projetado a destruição do Templo, onde para Mateus, as testemunhas afirmam que Jesus tinha ostentado a capacidade de destruir o Templo e para Marcos que Ele teria declarado a sua intenção de destruí-lo, mas tanto para um como para o outro evangelista, as declarações eram falsas. Entretanto, Jesus tinha colocado em discussão a função e o valor do Templo em relação ao novo que ele estava anunciando e realizando com sua pessoa e sua obra. Na narração do processo estes são os únicos testemunhos contra Jesus, embora o testemunho decisivo, o próprio Jesus deu à pergunta de Caifás se ele era o Messias, o Filho de Deus, contudo, certamente o sumo sacerdote com tal título não entendia certamente a uma pretensa autodivinização de Jesus, já que a expressão “Filho de Deus” era um modo 312 comum para designar os santos, o rei, e sobretudo o Messias. Jesus diante do Sinédrio assinou a sua condenação ao declarar-se ser o juiz apocalíptico que julgará a história citando Daniel (Mt 26,63ss), declarou-se o Filho do Homem, o Messias enviado por Deus. Uma blasfêmia para Caifás que rasgou suas vestes. Constatada a blasfêmia para o Sinédrio, este conduz Jesus ao Procurador Pôncio Pilatos (Mt 27,1). O Sinédrio não deu a sentença de morte, mas o acusou perante a autoridade do Procurador Romano, alegando que Jesus devia morrer porque era um revolucionário que instigava o povo. Lucas transcreve que a acusação de Jesus alega que Ele tinha promovido um movimento de resistência fiscal, incitando a não pagar as taxas às autoridades Romanas e que ao mesmo tempo, ele tinhase proclamado o Messias, duas acusações que incomodavam o Império Romano. A primeira acusação apresenta-se como falsa porque o próprio Jesus tinha declarado de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Portanto Pilatos leva em consideração somente a acusação de sua pretensão de ser o Messias; de fato os sinóticos colocam na boca de Pilatos a pergunta: Tu és o rei dos Judeus? “,ao que Jesus responde-lhe: “Tu o dizes”, uma resposta que deixou Pilatos certo da não verdade da acusa, ao contrário, de sua inocuidade e por isso busca uma tentativa para libertá-lo propondo de soltá-lo ao invés de Barrabás. Não conseguindo tentou ainda enviar a decisão para Herodes que tinha a jurisdição sobre a Galiléia, de onde era proveniente Jesus e que naqueles dias de Páscoa encontrava-se em Jerusalém. 50. A CRUZ E A CRUCIFIXÃO 313 Por que Jesus morreu na cruz? A esta pergunta todos respondem que ele morreu por nossos pecados, para expiar os pecados da humanidade, para salvarnos. Ele, Filho Deus, tornou-se vítima dos pecados dos homens. Deus, para salvar os homens sacrificou o seu Filho. Por um puro desígnio divino, totalmente predisposto e realizado quase que independentemente dos fatores humanos que determinaram sua morte. Por um simples cumprimento de uma profecia messiânica. Toda esta visão sobre o caminho da morte de Jesus não considera os particulares dos fatos acontecidos, os protagonistas responsáveis pela sua morte, nem o quadro social e político. Até Judas, o traidor, é considerado como uma vítima do plano divino, o qual contribuiu para o acontecimento como um marionete. Nesta visão os motivos pelos quais as autoridades de Israel decidiram eliminar Jesus não contam nada, de tal forma que quaisquer que fossem as causas de sua morte violenta, qualquer motivo, não trocariam em nada o sentido de sua morte. Bastaria reconhecer que sofrendo e morrendo ele cumpriu o desígnio de Deus para a salvação da humanidade. Os evangelistas não eram desta opinião, eles se preocuparam até em narrar os detalhes das manobras dos sumos sacerdotes no processo de sua condenação. Portanto, não podemos compreender a morte de Jesus vendo-a exclusivamente como a realização do desígnio salvífico de Deus, independentemente das razões históricas que levaram a vida e a obra de Jesus para o seu êxito tão dramático. Se olharmos a paixão de Cristo sem um concreto envolvimento dos fatos, sem razões determinantes, torna insignificante toda a vida humana de Jesus. Se Jesus não tivesse agido de uma forma tão forte de maneira a provocar o conflito com as autoridades, toda a sua 314 pessoa e obra ficaria obscurecida. Se a sua morte tem sentido somente enquanto querida por Deus para a expiação dos pecados, e que Jesus não tivesse feito nada para provocar o conflito com as autoridades e que simplesmente foi matado, a sua morte não teria tido o mesmo significado e o mesmo valor. Não podemos aceitar que a encarnação de Jesus tenha sido o pressuposto pelo qual a divindade teria se apresentado diante dos homens o processo de expiação dos pecados, sendo ele um ser humano divino que se imola para satisfazer as exigências da justiça. Se é verdade a morte de Jesus, devemos levar à sério os motivos pelos quais as autoridades de Israel chegaram à conclusão de matá-lo. Os evangelistas referem, por ocasião do sepultamento de Jesus a panos utilizados e que após a sua ressurreição os discípulos constataram os panos no sepulcro, mas jamais poderiam ter pensado em propô-los para a veneração dos cristãos, imbuídos que eram do horror à cruz. Somente nos séculos V e VI apareceram os primeiros crucifixos e só no século XIII desenvolvera a devoção à Paixão de Cristo. A crucifixão em Roma era aplicada para dos desertores e os ladrões. Sabe-se que os romanos chegaram crucificar 500 judeus por dia em tempo de guerra. Sabese que a cruz era composta de dois paus, um vertical fixado na terra (stipes crucis) e outro móvel que se fixava horizontalmente e se chamava Patibulum. Geralmente as cruzes em forma de T eram baixas, permitindo às feras atacarem os corpos dos supliciados. Antes de crucificar alguém havia a flagelação, pois era uma lei flagelar antes da execução. Esta se fazia com varas de litones e amarrando o condenado numa coluna. Estas varas tinham nas pontas chumbo ou ossinhos de carneiro, fato que provocava hemorragias e enfraquecimento ao supliciado. O número de açoites era de 40, 315 mas os fariseus contavam somente 39 golpes. O condenado levava a pé, desde o tribunal até ao lugar do suplício a haste vertical, que devia pesar aproximadamente 50 quilos. Se a condenação era feita com cordas, bastava enganchar o patíbulo e depois amarrar os pés, se fosse com cravos, devia-se pregar primeiro as mãos do condenado sobre o patíbulo, depois levantar o réu, enganchar o patíbulo e depois pregar os pés nos estirpes. Para isto serviam-se de escadas ou de forquilhas. Toda execução devia ser realizada legalmente com um aparato militar, sob as ordens de um centurião, para isso a escolta ia do tribunal ao lugar do suplício e nesta estavam os carrascos. O exército devia fornecer guarda aos pés da cruz para evitar que os amigos viessem arrebatar os supliciados da cruz. Em geral os cadáveres ficavam nas cruzes servindo de alimento para as aves e os animais selvagens. Os corpos podiam ser solicitados pelas famílias para a sepultura, mas o juiz podia recusar a autorização quando o condenado tinha cometido certos crimes. Muitos cadáveres eram atirados aos monturos de lixo. Só se permitia a entrega do corpo para sepultamento depois que o condenado recebesse um golpe de lança no coração, este golpe era dado com a lança por um soldado no lado direito do peito para assegurar a morte. Em Jerusalém Pilatos possuía a "Jus gladii", isto é, o direito de vida e de morte e para decretar a morte era preciso uma acusação. No caso de Jesus os sinedritas o acusaram de incitar o povo à revolta, Pilatos porém em sua rápida investigação não achou culpa nele para condená-lo. Então o acusaram de fazer-se Filho de Deus, mas para Pilatos também isto não o convenceu, aliás fez esforços para libertá-lo. Finalmente eles o acusam de ter-se declarado Rei e se não o condenasse não seria amigo de César. A "rebelião contra César" inquietou Pila316 tos, dai a condenação foi automática por crucifixão, por rebelião contra César. Antes da condenação, Pilatos ordenou-lhe a flagelação, mas isso fazia parte do processo. Na flagelação se submetia os condenados a toda espécie de zombaria e de maus tratos segundo a imaginação dos carrascos. No caso de Jesus o motivo da realeza judaica deu aos legionários do Império motivos de zombarias, dai a coroa de espinhos, o manto vermelho e um caniço a modo de cetro. Como era o costume Jesus carregou apenas o patíbulo e não a cruz inteira, pois carregar a cruz segundo os textos latinos e gregos eqüivale a expressão "carregar o patíbulo". Pela expressão de Jo 19,17 "abraçando a cruz", dá-se a idéia de que Jesus empunhou ele próprio a cruz e esta não lhe foi amarrada com cordas aos dois braços estendidos. Por outro lado o fato de Simão de Cirene ajudar a carregar a cruz indica que Jesus tinha o patíbulo livre em seus ombros. Portanto, não é como a arte representa Jesus carregando uma grande cruz e Simão Cirineu só erguendo a extremidade inferior da haste vertical atrás dele. Por outro lado, as chagas que ficaram no sudário bem como as manchas, não se explicam a não ser pela fricção da cruz resvalando-se sobre as costas. Jesus também não foi despido (nú) no trajeto do calvário pelo fato dos romanos respeitarem os povos a não transgredirem as leis pátrias conforme escreveu Flávio Josefo. Amarrar os braços do condenado ao patíbulo evitava reações violentas do condenado. Os algozes não fizeram isto com Jesus ao constatar sua serenidade e mansidão e sim por ele estar debilitado após a flagelação. A cruz de Jesus tratava-se da cruz mesmo, certamente da cruz "humilis", já que os pelourinhos usuais ficavam fincados permanentes no Gólgota, além disso deviam executar dois bandidos condenados pelo julga317 mento regular; tratava-se portanto de execuções regulares, e não teriam razão para fincarem em um tronco mais alto para Jesus. A cruz tinha a forma de T como eram normalmente as cruzes romanas. É importante notar que Tácito, historiador Romano do século II menciona a condenação de Jesus por Pôncio Pilatos, assim como Flávio Josefo. Mas o mais antigo credo cristão que fala que morreu por nossos pecados, segundo as escrituras, foi sepultado e ressuscitou... (1Cor 15,3-11). João fala de um complô do Sinédrio para matá-lo (Jo 11,47-50), de fato quem tomou a decisão de prendê-lo foram as autoridades do Templo que dispunha de um corpo de polícia. O motivo era sublevação (Lc 23,2). Pilatos achou que esta acusação era movida pela inveja (Mc 15,10), por isso não encontrou nada de condenável nele (Lc 23,22) e quando o condenou declarouse inocente do sangue deste justo. 51. A CAUSA DA MORTE DE JESUS NA CRUZ Pilatos admirou-se de que Jesus tivesse morrido rápido e chamou o Centurião para confirmar, este disse que sim, e então entregou o corpo a José de Arimatéia (Mc 15,42). Jesus não ficou mais do que três horas sobre a cruz, mas os ladrões só morreram depois porque lhe quebraram as pernas. Os condenados quando deviam ser sepultados eram retirados no mesmo dia da cruz, ainda mais porque era véspera da Páscoa. Segundo Orígines, os condenados sobreviviam a noite toda e até o dia seguinte. Relatos afirmam até três dias de sobrevivência dos condenados, alguns chegando até serem despregados ainda vivos. Flávio Josefo fala de quatro amigos seus que foram condenados durante o cerco de Je318 rusalém no ano 70, um que fora amarrado, fora resgatado com vida e sobreviveu, pois os amarrados agonizaram mais lentamente. Jesus morreu mais rapidamente porque uma série de fatores minaram suas forças físicas, basta lembrar que na véspera, no jardim das Oliveiras, teve uma agonia espantosa em vista da previsão de sua paixão física, onde ele mesmo fala de uma tristeza "tristeza mortal". Ora, esta grave perturbação acarretou-lhe um fenômeno em medicina que Lucas soube bem descrever; trata-se de um fenômeno raro provocado por um grande abalo moral seguido por uma profunda emoção e grande medo (Lc 22,42 ; Mc 14,33). Lucas (22,24) fala que o seu suor tornou-se como gotas de sangue caindo; o texto em grego diz Coágulo (Tromboi). O teólogo Lagrange traduziu como "glóbulos de sangue, que corriam até solo". Este fenômeno na medicina é conhecido com o nome de "Hematidrose", o qual consiste numa intensa vasodilatação dos capilares subcutâneos, os quais distendidos ao extremo, rompem-se em contato com milhões de células sudoriparas espalhadas na pele, e esta vasodilatação provoca intensa secreção das glândulas sudoríparas, fazendo com que o sangue se misture com o suor e permeie todo o corpo, e o sangue em contato com o ar se coagula e os coágulos sobre a pele caem por terra conduzido através do suor. Devido aos seus sofrimentos Jesus teve uma considerável redução da resistência vital após esta hemorragia e a pele lesada ficou mais sensível, dolorida e menos apta para suportar a violência e os golpes como aconteceu até culminar na crucifixão. Todas estas hemorragias antes da crucifixão o debilitou fazendo com que morresse mais rapidamente. Pensa-se ainda na fraqueza pela fome e pela sede ocasionada pelo abundante suor. 319 A causa determinante da morte de Jesus foi a asfixia acompanhada das câimbras, pois o paciente pregado só podia ter o ponto de apoio nos pés fixados à haste da cruz para soerguer o corpo e reconduzir para a horizontal os braços que ficavam com um abaixamento de 65º graus com a horizontal. Com isso a tração sobre as mãos diminuía e consequentemente diminuíam as câimbras e por um pouco desaparecia a asfixia pela restituição dos movimentos respiratórios, depois com a fatiga, o crucificado era obrigado a ceder e a asfixia voltava, ou seja, toda a agonia se desenvolvia na alternativa de abatimentos e soerguimentos de asfixia e respiração. Jesus esgotado não prolongou esta luta por muito tempo. 52. OS SOFRIMENTOS DA PAIXÃO E A SUA MORTE NA CRUZ É verdade que os evangelistas narram os fatos da tortura de Jesus, contudo, afirma-se que esse procedimento não era comum antes da condenação à morte. Havia sim, o costume entre os soldados romanos de zombar do réu depois de condenado à morte vestindo-o por exemplo de palhaço ou de rei. Entretanto a narração dos evangelistas está perfeitamente de acordo com as profecias bíblicas que diziam do futuro Messias escarnecido e torturado. Também é provável que Jesus tenha sido preso no horto das Oliveiras não por uma multidão armada, mas por uma corte de soldados romanos. Depois de uma denúncia dos guardas do Templo, que mandaram conduzi-lo ao Sinédrio, já que a acusação que pesava sobre ele era contra a sacralidade do templo de Jerusalém. O rosto de Jesus do lado direito com escoriações, seu nariz deformado por fratura na cartilagem dorsal e muitos vestígios do suplício pela flagelação em todo o 320 corpo e as pernas indicam que Jesus estava nú na flagelação. Também a coroa dom espinhos de um arbusto comum na Judéia “zizyphus spina Christi”, os quais penetraram no couro cabeludo provocaram grande dor e sangramento. O transporte da cruz através de um caminho acidentado e cheio de pedras provocava quedas e escoriações nos joelhos, nas costas, assim como o transporte do patíbulo ocasionou escoriações na clavícula e no omoplata. Sabemos que a crucifixão nas palmas das mãos era impossível ser realizada, pois se fosse sobre as palmas não haveria nenhum ligamento transversal capaz de suportar o peso do corpo, fazendo com que a resistência ficasse apenas na pele, a qual não suportaria e se rasgaria. Experiências realizadas em cadáveres demonstraram que os pregos nas palmas das mãos rompem-nas. Jesus não foi crucificado e amarrado por cordas nem recebeu o sedile do estirpes, visto que este era colocado para produzir o máximo do suplício prolongando a vida, com ele, os condenados resistiam mais tempo a tetania asfixiante, uma vez que a tração do corpo não mais se exercia sobre as duas mãos. Jesus teve uma agonia muito breve, o que confirma que Jesus não foi pregado nas palmas, afirmação confirmada com experiências de crucifixão de cadáveres, e com estudos de angulações no sudário. Portanto, Jesus foi pregado na junta de flexão de ambos os punhos. Seus pés foram, pregados com um só prego na região próxima dos segundos espaços intermetatargianos, sendo ambos cruzados, o esquerdo na frente e o direito aplicado diretamente sobre o lenho. Pregado na cruz, o evangelista João (19,33s) relata que de seu coração ferido pela lança do soldado saiu sangue e água. O sangue veio do coração, e a água que é uma serosidade, veio do pericárdio. O sangue mesmo no cadáver permanece líquido. 321 Constatada a morte de Jesus, tiraram o seu corpo da cruz para sepultá-lo. Seus pés foram despregados do estirpes e sem seguida, abaixou-se o patíbulo com o corpo, sem despregar as mãos e segundo os especialistas o conjunto deve ter sido transportado por cinco pessoas; duas nas extremidades do patíbulo, duas sustentando o dorso com um pano e uma na altura dos calcanhares. O corpo foi envolvido no sudário no final do transporte depois de serem despregadas as mãos e retirado o patíbulo e por fim sepultado. A essas alturas o sábado iniciava-se para os Judeus, não podiam portanto embalsamá-lo, lava-lo, ungi-lo com essências perfumadas e encerra-lo num tecido branco com aromas. Portanto não tiveram tempo para ungir o corpo de Jesus. Os Evangelhos relatam que algumas mulheres foram cedo no domingo, para fazer o sepultamento ritual definitivo com aromas conforme o costume judeu. Por que Jesus foi combatido e levado à morte? Para os evangelhos as razões são: A sua popularidade entre o povo, o que causava inveja (Mt 11,18; Jo 4,11-3; 7,32-46); a acusa de subversão (Lc 23,2); a proibição do pagamento ao Imperador (Lc 23,2). São também suas críticas que atingiam os fariseus (Mt 23); a Herodes (Lc 13,31-32); os ricos (Lc 6, 24ss). Sua presença e seus ensinamento se sobrepõem (Mc 3,2-5.17; Lc 13,13-17); porque falava com Deus em gestos tidos como blasfemos (Mc 2,7; Jo 8,58; 10,30), porque denuncia o formalismo (Mc 12,35-40; Lc 12,1). Ele desconsertava os fariseus (Lc 11,53; 4,36); colocava sua autoridade acima de Moisés (Mc 7,1-2); perdoava os pecados (Mc 2,7; Lc 2,49); mostrava ao pecador a misericórdia e não o castigo (Lc 15,7). Sua atuação provocava crise e cisão (Jo 7,43; 9,16; 10,19); tornava-se um perigo para os grandes e por isso decidem eliminá-lo exigindo dele um atestado de boa conduta (Mc 7,5; 2,16-18.24); de322 pois procuram isolá-lo e difamá-lo (Mc 3,22; Mt 10,25) e por fim procuram-lhe armadilhas (Mc 12,18-23;10,2); expulsam-no da Sinagoga (Jo 2,22); procuram prendêlo (Mc 11,18); apedrejá-lo (Jo 8,59; 10,31) e liquidá-lo (Mc 3,6). Mas Jesus diante de tudo isso continua incomodando (Mc 12,13-17; Lc 3,13-17); escapa deles (Jo 8,59; 7,10) indo para outra região (Mc 7,24; 8,23; Jo 10,40; Jo 11,54); esconde-se (Jo 12,36; Mc 11,11-19; Lc 21,37). Jesus antes de sua morte passou por um duplo processo: O religioso diante das autoridades judáicas e outro político diante das autoridade romanas. Diante de Caifás provavelmente Jesus foi condenando pela sua posição liberal perante ao sábado (Mc 2,23s) ou por ser falso profeta e expulsar demônios (Mc 3,22), porém o resultado foi discordante entre os testemunhos (Mc 14,56). Outra gravíssima acusação foi de que ele afirmara que podia reedificar o Templo em três dias (Mc 14,58), mas também aqui houve discordância entre os acusadores. Por fim Caifás o condena por blasfêmia (Mc 14,61-64) por se declarar Filho de Deus. Para a exegese há uma pergunta? É um relato histórico ou uma profissão de fé da comunidade primitiva interpretada à luz da ressurreição? É difícil dizer. O processo político diante de Pilatos visou notificar a decisão do Sinédrio; neste processo as acusações de ordem religiosa transformamse em difamações de ordem política, a fim de serem ouvidos e acusam-no de subversor em toda Judéia, desde a Galiléia (Lc 23,2-5). Sendo que afirmaram Galiléia, então Pilatos envia Jesus ao tetrarca Herodes que também se encontrava naqueles dias em Jerusalém (Lc 23,6-12). Pilatos percebe que Jesus não é um revolucionário, talvez um ingênuo sonhador religioso, por isso por três vezes tenta inocentá-lo (Lc 23,4.15-22) e Hero323 des fez uma tentativa malograda procurando salvar Jesus com a troca por Barrabás (Lc 23,17-25). Por fim Pilatos entrega-lhes para que o crucifiquem colocando a inscrição em sua cruz: “Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum” (“Jesus Nazareno Rei dos Judeus”). Segundo o costume romano a morte de cruz existia somente para escravos e rebeldes e era o castigo mais bárbaro. Após serem flagelados, os condenados deviam carregar a cruz até o lugar da execução onde já se encontrava a parte vertical da cruz no chão, ali eram pregados numa cruz em forma de T, onde ficavam por horas ou até dias no sofrimento até que morriam por esgotamento, asfixia, hemorragia... Jesus ficou na cruz do meio-dia até às 15h00, expirando chamando Deus de Abbá (Mt 11,27). Jesus sabia que para libertar o homem devia pagar o preço de sua vida, assim como fizeram os profetas (Lc 11,47-51; 13,34; Mc 9,13). Também o filósofo Platão tinha dito: “O justo será flagelado esfolado, amarrado e com fogo cegado. Quando tiver suportado todas as dores, será cravado na cruz” ( Rep 2-5. 361 E). A fé foi o modo de existir de Jesus, sua vida foi pautada em Deus, foi um dizer sim radical a Ele e um fundamentar-se Nele. Por causa de sua fé soube suportar a ignomia (Hb 12,2), as contradições e por isso caminhou consciente para Jerusalém a ponto de causar medo aos discípulos (Mc 10,32). Tudo isso ele o fez de modo consciente porque sabia de seu destino fatal, porque profetizou seus sofrimentos (Mc 8,31; 9,31; 10,32-34) se bem que os exegetas são propensos a pensar que estas profecias foram escritos diante da formulação da fé e da novidade da ressurreição. Contudo devemos afirmar que Cristo tinha consciência de ser o instrumento determinante para a vinda total do Reino. E que portanto estava nas mãos do Pai, que tinha 324 que receber um batismo (Lc 12,50), ou seja, passar por grandes dificuldades, ou mesmo pela morte. Ele era ciente de fazer a vontade do Pai, mesmo diante das tentações (Mc 14,36). Mas Jesus sabia de sua morte? Sem dúvida ele sabia que no ambiente apocalíptico no qual se encontrava o Reino só aconteceria após uma violenta luta. Certamente não tinha certeza absoluta de sua morte na cruz (Mc 15,34), mas pregado na cruz soube com certeza que esta era a vontade do Pai quando então pronunciou: “Tudo está consumado” (Jo 19,30); “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46). Diante da morte de Jesus os apóstolos fugiram (Mc 14,27) e isso desde a sua prisão (Mc 14,27). Depois de sua morte os discípulos voltaram para a Galiléia, onde Jesus por primeiro lhes apareceu (Mc 14,28; Mt 26,32). Os discípulos de Emaús ficaram frustados com sua morte (Lc 24,28). Ademais a morte na cruz era maldição divina (Dt 21,23) e vergonha (Hb 12,2), por isso, para a mentalidade judaica Jesus tinha sido abandonado por Deus, e assim não podiam acreditar que Jesus crucificado era o Salvador. Foi preciso a experiência da ressurreição, a partir daí sua morte foi compreendida (At 2,23-36; 3,14-15; 4,10; 5,30); os discípulos compreenderam que Jesus devia morrer (Mc 8,31; 9,31; 10,38; 10,45). 53. FORAM OS JUDEUS OU OS ROMANOS QUE MATARAM JESUS A pergunta poderíamos fazê-la assim: foram os judeus ou os romanos que mataram Jesus? Na história, desde o século II depois de Cristo, a culpa pela morte de Jesus foi jogada nos judeus. A Igreja católica precisou de muito séculos, ou seja, até a metade do século XX, 325 com o papa João XXIII para mudar a idéia de que os judeus foram os culpados pela morte de Jesus. Hoje é sabido que Jesus não foi condenado à morte e executado pelos judeus, mas pelos romanos que naquele tempo dominavam a Palestina. Sabe-se também que a pena de morte a que Jesus foi condenado não era aquela que os judeus usavam para infligir uma pena capital, pois eles usavam penas como o apedrejamento, a decapitação, o fogo e até o estrangulamento. A crucifixão era um suplício que os romanos daquele tempo reservavam para os rebeldes políticos. Outra razão para se afirmar de que os judeus não foram os que condenaram Jesus à morte de cruz é de que os tribunais judaicos da época tinham certa autonomia em questões legais com exceção dos crimes políticos, os quais eram reservados para as autoridades romanas. Segundo o evangelista Marcos, Jesus foi condenado pelo tribunal superior judeu, por delito de blasfêmia. O Sinédrio teria decretado que Jesus deveria morrer. Mas aqui vem a questão: o delito de blasfêmia era castigado com a pena de apedrejamento e nunca de crucifixão. Outra questão: se o Sinédrio condenou Jesus por blasfêmia, levando-o à pena de morte e se tinha o poder para condená-lo, por que o enviou a Pilatos que não julgava os casos de rebeldia religiosa? Por que Pilatos teria condenado Jesus à morte, se já o havia feito o Sinédrio? A resposta para estas perguntas segundo muitos estudiosos é de que o evangelista Marcos ao escrever o seu evangelho em Roma, onde os cristãos eram perseguidos, quis evitar jogar sobre as autoridades romanas o peso da condenação à morte de Jesus. De fato, os evangelistas Lucas e João não falam de um julgamento de Jesus perante o Sinédrio e nem de sua condenação por esse tribunal. 326 54. COMO A FÉ CONCEBEU A MORTE DE JESUS A fé cristã diz, por antiquíssima tradição, que Jesus morreu para o perdão dos pecados e para a salvação dos homens. Porém, os discípulos de Jesus tinham consciência disso? Sabemos que durante os acontecimentos de sua prisão, condenação e morte, eles viveram uma profunda perturbação, contudo pode-se afirmar que não tinham uma “consciência teológica” do acontecimento. Para eles este era um momento de escuridão e a reação foi a fuga. Pedro o negará, todos os discípulos, menos João, “o discípulo que Jesus amava”, fugiram. Paradoxalmente os únicos que parecem dar à morte de Jesus uma revelação divina, são personagens estranhos ao grupo de Jesus; um dos dois ladrões pediu-lhe de ser acolhido no seu Reino; o oficial romano que comandava a patrulha responsável pela sua execução, faz uma verdadeira profissão de fé professando “verdadeiramente este é o Filho de Deus” (Lc 23,39-43). Não por nada o cenário de morte de Jesus é colocado pelos evangelistas com cores apocalípticas (Mt 27,45-54). Claro que muitos exegetas interpretam estas narrações como reconstruções de intenções teológicas, e não crônacas do evento; em todos os casos, disto tornase claro que os discípulos não tiveram uma imediata percepção de fé do acontecimento da morte de Jesus. Toda a consciência do mistério de sua morte deu-se após a ressurreição com a iluminação do Espírito Santo, embora os discípulos estivessem com as portas fechadas “por medo dos judeus” (Mc 16,10; Jo 20,19). Os discípulos estavam vivendo, após a morte de Jesus, uma situação de decepção quanto a um movimento que tinha lhes acendido as esperanças da era messiânica com a libertação, basta constatar a atitude dos dois discípu327 los de Emaús, os quais caminhavam para este vilarejo, sete quilômetros distante de Jerusalém, discorrendo com o que havia acontecido com Jesus (Lc 24,13-35). A viravolta de tudo foram as aparições de Jesus Ressuscitado, primeiro às mulheres, depois aos discípulos, os quais até pensaram que era um fantasma (Mt 28,9; Mc 16,11-13). Após constarem a experiência do ressuscitado, abre-se-lhes um novo horizonte e Jesus parece-lhes pertencente ao espaço divino, o Espírito Santo lhes ilumina (Jo 16,7), e reconhecem a sua vitória sobre a morte. Ele é o Senhor, aquele que encontra-se em nível máximo de poder, “à direita do Pai” (At 2,3436; 1Cor 5,24-26; 1Pd 3,22). Paulo o anunciará como o Senhor (II Cor 5,16). Sua morte é a fonte do perdão de Deus. Ele é aquele que tira os pecados (Rm 5,9; Ef 1,7; Col 1,20; 1Cor 15,1-5). Ele expiou os pecados dos homens (Rom 2,5; 2 Cor 5,21; Gal 2,13). Ele tornou-se o Redentor que resgatou o homem do pecado. 55. A RESSURREIÇÃO DE JESUS Jesus com sua presença no mundo revolucionou o velho mundo instalando o Reino de Deus; contudo morreu na cruz enterrando no início, as esperanças de libertação dos discípulos. Mas a morte não foi a palavra final, pois Deus o ressuscitou (At 2,23; 3,15; 10,39s), e deu-se uma radical transformação, uma transfiguração da sua realidade terrestre e não uma revivificação. Romperam-se os grilhões da morte, (I Cor 15,55) e deu-se a libertação. Se Ele não tivesse ressuscitado vã seria a nossa fé (I Cor 15,14-15), seríamos tolos, mas ao contrário abriu-nos as portas do futuro. O que diz a exegese sobre a ressurreição de Jesus? Sabemos que desde o início eram presentes os relatos das aparições e do sepulcro vazio. Porém o sepul328 cro vazio não é para os evangelistas prova da ressurreição de Jesus, aliás este fato não só não provocou a fé, mas gerou medo, de sorte que as mulheres fugiram (Mc 16,2). Maria Madalena interpretou o fato como roubo do corpo do Senhor (Lc 24,11.22-24.34). Por isso, o sepulcro vazio torna-se um sinal ambíguo, sujeito a interpretações, dentre as quais a ressurreição. Somente com as aparições, a ambigüidade é esclarecida e pode ser lida pela fé como um sinal de ressurreição e assim o sepulcro vazio torna-se um sinal que leva os discípulos a refletir sobre a possibilidade da ressurreição, torna-se um convite à fé; não é a fé na ressurreição. A fé na ressurreição é expressa na linguagem da época, colocando a explicação na boca do Anjo: “Jesus de Nazaré ressuscitou...” (Mc 16,6). Não precisamos admitir um Anjo na entrada do sepulcro, pois o Anjo substitui sobretudo para o judaísmo pós-exílio, o Deus-Javé em sua transcendência manifestando-se aos homens (Gn 22,11-14; Ex 3,2-6). Portanto, foram as aparições que fizeram os discípulos exclamarem: “Ele ressuscitou” e isso não era visão subjetiva, produto da fé, mas aparições transsubjetivas. Quantas foram as aparições? É claro que os textos sagrados refletem tendências de ordem apologética, teológica e cultural, porém em I Cor 15,5-8 é nos indicado motivações e em Mc 16,18, temos apenas a indicação do ressuscitado na Galiléia e em 16,9-20 condensa as aparições relatadas nos outros evangelhos, o que pode ser um acréscimo posterior. O evangelista Mateus (28,16-20) fala de uma aparição a outras mulheres (28,8-10) esta é tida pelos exegetas como elaboração ulterior ao texto de Mc 16,7. Lucas (24,13-33) refere duas aparições e João (20) relata três. Para os exegetas tanto Marcos como Mateus concentram o interesse na Galiléia, já Lucas e João em Jerusalém, estas 329 aparições porém seriam as mesmas da Galiléia, transferidas para Jerusalém por motivos teológicos já que Jerusalém possui um significado histórico salvífico de primeira ordem (Sl 13,7; Is 2,3). Como são estas aparições? São descritas como presença real e carnal de Jesus, ele come, caminha, deixa-se tocar, conversa, é confundido com o jardineiro, ou com um pescador. Aparece e desaparece, atravessa paredes (At 3,15; 9,3; 26,16; I Cor 15,5-8) são uma representações mais espiritualizantes da ressurreição e isto se explica se considerarmos que a Páscoa de Cristo numa interpretação mais antiga, foi concebida em termos de glorificação do justo sofredor (At 2,5; Fl 2,6-11; Lc 24,26) visto num horizonte da apocalíptica. Mais tarde sobretudo com os helenistas passou-se a questionar se o Jesus da glória era o mesmo que o Jesus de Nazaré, então a comunidade, sobretudo em Lucas e João, passou a interpretar os acontecimentos do sepulcro vazio e aparições na dimensão escatológica usando o termo ressurreição, tendo o Cristo em sua realidade terrestre corporal, com as chagas (Lc 24,39; Jo 20,20.25.29), comendo e bebendo (At 10,41; Lc 24,43), aparecendo aos discípulos (Lc 24,13-35). A ressurreição de Jesus foi um impacto para os discípulos, pois sem ela eles não teriam pregado o crucificado como o Senhor, e nem morrido por ele. Trouxe portanto uma reviravolta total nos apóstolos que tiveram um novo horizonte. Se antes dela eles tinham fugido para Galiléia (Mc 10,50) e Jesus fora tido com alguém abandonado por Deus (Gl 3,13), depois dela voltam a crer que ele é o Senhor (Mt 28,18; At 13,33; Rm 1,4); professam-no com coragem (At 2,23s); 3,15; 4,10; 5,30; 10,39) e proclamam que com ele começou o novo céu e a nova terra (Mt 27,51-53; Rm 2,5; I Cor 15,45S; II Cor 5,10). 330 A Igreja primitiva começou a interpretar a ressurreição como um plano escondido de Deus (At 2,23; 4,28). Ele devia morrer (Mc 8,31; 9,31; 14,41), havia uma necessidade histórico salvífica da cruz; a morte foi a forma externa do serviço de Jesus à humanidade (Mc 10,45); com sua morte fomos curados, recebemos a comunhão com Deus, a expiação pelos pecados (Mc 14,24; Lc 22,20; Mt 26,28); a abolição da lei (Gl 3,13; Ef 2,14-16). Com a ressurreição Deus realizou o seu Reino e Cristo é a “autobasiléia tou Teou” (Orígines). Com isso abriu-se o caminho para a Igreja anunciar as realidades deste Reino. Com ela realizou-se a utopia do homens, ou seja, o cumprimento de seu princípioesperança que é a escatologização da realidade humana com a introdução do homem em corpo e alma no Reino de Deus, onde todos os elementos alienatórios foram aniquilados (morte, dor, pecado) existindo agora a “Topia”, um lugar concreto com nossa ressurreição, ou seja, com uma realidade humana repleta de Deus (I Cor 15,42-44), com o corpo todo inteiro (corpo – alma) como pessoa em sua realização e comunicação com os outros, onde o homem transforma-se de carnal em espírito, ou seja, repleto de Deus e incorruptível (I Cor 15,5253). O corpo não é a soma física- química de células vivas, mas a consciência da matéria humana se manifestando no mundo. A matéria do nosso corpo se modifica de tempos em tempos, contudo mantemos nossa identidade espírito corporal, o nosso eu. Já na terra o homem-corpo é abertura para os outros e comunhão e doação..., com a ressurreição esta capacidade chega ao máximo, pois com a ressurreição o homem reveste-se de Cristo como criatura nova (II Cor 5,17) estará em Cristo (II Cor 5,8 ; Fl 1,23; I Ts 5,10). Tudo o que está em germe no homem terá cará331 ter definitivo, com a morte o homem entra na definitiva realização daquilo que ele semeou na terra, onde o seu verdadeiro corpo personalizado pelo Eu; ele entra na vida eterna. A história de Jesus não se encerrou com a sua morte, mas prossegue com o epílogo que é o ponto de partida do cristianismo, ou seja, a ressurreição, e a documentação sobre o ressuscitado transborda dos quatro evangelhos, vai para os Atos dos Apóstolos e para as Cartas paulinas e escritos apostólicos e isso às vezes como hinos, fórmulas e catequese. Mas será a ressurreição de Jesus que gera a fé na sua pessoa, ou a fé em Jesus que cria a sua ressurreição? Para Bultmann é a fé em Jesus que cria a sua ressurreição, por ser a ressurreição uma realidade de não comprovação empírica. Os primeiros testemunhos da ressurreição vêem neste fato a razão de se reunirem depois de sua morte e darem assim a expansão ao cristianismo. O mesmo se diga de Paulo que testemunha a ressurreição com o encontro que teve com ele, já no ano 50 ele fala da ressurreição de Jesus aos de Tessalônica (I Ts 1,10), assim como alguns anos mais tarde a testemunhará para os Corintos (I Cor 15,3-8.11). Neste trecho Paulo afirma o valor salvífico da morte de Jesus, que ressuscitou e apareceu aos discípulos; a Pedro, aos doze, a mais de quinhentos irmãos e por último a ele, ex-perseguidor da Igreja... Paulo salienta que Jesus Cristo é “Filho de Deus” em virtude de sua ressurreição (Rm 1,4; 8,3234).Ele é Senhor (I Cor 12,3). Os textos paulinos sobre a ressurreição de Jesus são fórmulas querigmáticas e catequéticas ou então profissão de fé, já os evangelhos narram fatos: tais como o túmulo vazio e as aparições, ou seja, narram experiências. 332 Os quatro evangelistas relatam o túmulo vazio gravitando as atenções em Maria Madalena e de outras mulheres (Maria de Tiago e Salomé, Joana...), ou seja, de um grupo de mulheres). Cada evangelista narra o fato da ressurreição segundo sua perspectiva teológica, Mateus menciona o terremoto e a pedra removida por um anjo. Marcos e Lucas mencionam que a pedra estava removida, ou seja, remetem à ação de Deus. O ponto central da cena do sepulcro são as palavras do ressuscitado “aquele que buscais ressuscitou”. Lucas menciona dois homens: “Por que procurais entre os mortos aquele que ressuscitou”? Mateus e Marcos mencionaram apenas um anjo. Para Marcos as mulheres temerosas não dizem nada a ninguém, já para Mateus e Lucas, as mulheres executam tudo ao pé da letra. Para João, Maria Madalena leva a notícia a Pedro e ao outro discípulo. Paulo que teve as primeiras fórmulas querigmáticas da ressurreição de Jesus, não menciona o sepulcro vazio, isto significa que este é um pormenor não essencial à fé e nem à mensagem da páscoa; o sepulcro vazio não é prova da ressurreição. Os dados históricos que servem de contorno à tradição do túmulo vazio são: a morte, a sepultura, a localidade emprestada por José de Arimatéia. Os indícios que depõem a favor da credibilidade histórica da tradição do túmulo vazio são: o papel das mulheres na experiência do sepulcro, pois dificilmente uma narrativa para fins catequéticos teria colocado em cena mulheres como testemunhos do sepulcro vazio, além disso, o anúncio da ressurreição não teria sido possível em Jerusalém, se o sepulcro conhecido pelos judeus não estivesse vazio. O relato de Mateus, quanto a acusação dos judeus de que os discípulos teriam roubado o corpo de Jesus, e para isso coloca o particular dos guardas no sepulcro e do selo que os judeus mandaram colocar no 333 túmulo, assim como a tentativa de suborno aos soldados. Tudo isso, porém é tentativa apologética do evangelista para rebater a interpretação judaica do sepulcro vazio. No contexto da ressurreição estão também as narrativas de suas aparições que são fórmulas querigmáticas ou o testemunho dos apóstolos afirmam que Jesus “apareceu”; “foi visto”; “foi revelado”, mas nenhuma descrição de Jesus ressuscitado. Paulo fala do “Corpo da Glória” (Fl 3,21), “Espiritual” (I Cor 15,44). Os evangelistas falam do encontro do ressuscitado com os discípulos no Monte da Galiléia (Mt 28, 16-20) e na Aldeia de Emaús (Lc 24,13-35). João relata o encontro com os discípulos e Tomé em Jerusalém (Jo 20,19-23.24-29) e no lago do Tiberíades (Jo 21,1-14.15.23). Em tudo isso entra as tradições recolhidas pelos evangelistas e elaboradas segundo suas óticas. 56. A EXPERIÊNCIA “HISTÓRICA” DA RESSURREIÇÃO DE JESUS Confrontando os dados da tradição primitiva nas cartas de Paulo com os da tradição evangélica, saltam aos olhos o papel privilegiado que representam a experiência pascal de Pedro e dos discípulos históricos de Jesus. O testemunho paulino ignora a presença de mulheres e a tradição do sepulcro, em compensação os evangelhos não referenciam a aparição de Jesus aos quinhentos irmãos e a Tiago. Da mesma forma, a reconstrução da ordem e sucessão cronológica e da topografia das aparições não encontram respaldo na tradição paulina. O único dado mais preciso é a revelação de Jesus a Paulo na estrada de Damasco (Gl 1,12.16-17) o que concorda com At 9,3; 22,6; 26,12-13. 334 Os relatos não querem dar informações sobre a ressurreição de Jesus, sobre o corpo e feição do ressuscitado, não descrevem a saída do túmulo, dizem simplesmente que Jesus aparece, se revela, se manifesta, põe-se no meio, os discípulos o vêem, o reconhecem... No caso de Jesus trata-se de um personagem histórico que os discípulos conheceram antes da morte acontecida em Jerusalém e em data precisa, e só eles tinham condição de reconhecer Jesus ressuscitado, mas não foi só do reconhecimento de Jesus ressuscitado como também crucificado. João e Lucas insistem na sua corporeidade (ser, tocar, verificar), o que não deixa de ter um caráter apologético diante do ambiente helênico, porém os evangelistas focalizam que o reconhecimento de Jesus não se fundamenta na constatação física, mas na sua iniciativa e sua Palavra, como dizia a Escritura; esta realidade tornou-se o fundamento da missão pós-pascal dos discípulos. O encontroreconhecimento de Jesus como ressuscitado, supõe uma sintonia espiritual com o seu projeto de salvação, por isso as aparições de Jesus ressuscitado não estão ao alcance de todos, mas somente das “testemunhas escolhidas por Deus” e dos “discípulos que escutam a Palavra de Jesus e as observam” (At 10,40-41; Jo 14,22-24). Assim, a objeção de Celso ao testemunho cristão da ressurreição indagando: quem o viu ressuscitado? “Uma exaltada dizeis vós, e talvez algum outro, vitima do mesmo egoísmo, quer porque, devido a uma certa predisposição, teria sonhado e, na medida do seu desejo e da sua ignorância desvairada, teria sofrido uma representação imaginária, o que já sucedeu a muitos outros, quer porque tenha querido impressionar os demais com tal história, e com esta impostura, abrir o caminho para os charlatães”. 335 57. O SIGNIFICADO DA RESSURREIÇÃO DE JESUS Se mediante a experiência dos discípulos e do seu testemunho, a ressurreição de Jesus entra para a história humana, tem-se um novo significado a pessoa, a obra e a mensagem de Jesus, assim como a missão dos discípulos, bem como a história humana e o mundo na perspectiva que este evento inaugurou. A experiência da ressurreição, onde Jesus “apareceu”, “foi glorificado”, “exaltado”, “elevado”, mobiliza a gama inteira da esperança bíblica que diante da morte apela para a fidelidade de Deus. A experiência da ressurreição de Jesus não se esgota com a afirmação de que ele é o projeto dos últimos tempos (Mc 6,14-16; 6,15; Mt 16,14), mas que Ele é o Cristo, Filho de Deus, o Senhor. Dá-se o senhorio de Deus e a plena comunhão com o Pai. A ressurreição de Jesus foi para os discípulos não apenas a confirmação da autenticidade da experiência com ele, mas é o ponto de partida. Eles que tinham deixado tudo vendo Nele a salvação e experimentado a proximidade de Deus, viveram a dúvida com a sua morte; pois ficaram desiludidos. Mas a fé nasceu quando o viram ressuscitado e tiveram um contato novo com ele. Este acontecimento constituirá o núcleo central da fé, tanto é verdade que cerca de cinco anos após a sua morte, já estava formulado o credo mais antigo (ICor 15,3-5). A certeza da ressurreição foi confirmada pelas aparições de Jesus e com isso se formularam outros credos onde a morte e ressurreição de Cristo formavam o elemento principal (At 2,23-24 ; 3,15 ; 4, 10 ; 5,30 ; 10,3940 ; 13, 28-30). A partir daí o Cristo de que fala o Novo 336 Testamento será o Cristo ressuscitado e vivo presente na comunidade. Ele não é visto como um personagem do passado a ser lembrado, não se faz uma reflexão puramente histórica, mas uma reflexão de fé vivida na relação pessoal com ele. O acontecimento pessoal é a origem da vida e o encontro com Jesus vivo e ressuscitado e este fato parece até deixar por um momento a vida passada de Jesus, sem importância. A experiência pascal é o ponto de partida da fé cristã e da reflexão sobre Jesus que se deu nas comunidades judeu-cristãs da Palestina, compostas de convertidos de diversas correntes religiosas; Farisaísmo, (At 15,5), de origem sacerdotal (At 6,7) de judeus que só falavam grego (At 6,1-6) de judeus da diáspora e de origem pagã. Assim, a fé se expressou em modelos de pensamentos, mentalidades e culturas múltiplas. O modo de compreender Cristo foi pluralístico. A realidade de Jesus ressuscitado assumiu logo uma dimensão escatológica, juntamente com o dom do Espírito Santo, considerado como dom característico do fim dos tempos (At 2,17). Jesus ressuscitado é constituído como Senhor no trono à direita de Deus (Ef 1,10; At 2,34). Ele tornou-se o Cristo, o ungido; tornou-se sacerdote e profeta. Para as comunidades helenísticas a compreensão de Cristo é dada pela pregação de Paulo. Ele fala de Cristo Filho de Deus da estirpe de Davi (Rm 1,3-4), como profeta, de relação filial com o Pai e participa da atividade de Deus. O Cristo como Filho de Deus, tem supremacia sobre as potências cósmicas; está acima de toda potestade e majestade (Ef 1,20-21 ; Fl 2,6-11). Cristo é o fim de toda criação (ICor 8,6) e nele reside toda plenitude (Cl 1, 15-20). Ele é o Senhor do Cosmos, a origem, o centro, o fim do universo. O Senhor é Jesus (Rm 10,9). Este título de Senhor foi forte nas comunidades helenís337 ticas, era o núcleo da profissão de fé. Ele é o Senhor dos vivos e dos mortos (Rm 14,9). No Império Romano era chamado de Senhor a divindade protetora do fiel. Para o cristão no momento do batismo, professar Jesus seu Senhor, era aceitar sua soberania, aceitar ser seu "escravo", era o inicio da nova existência. (ICor 7,22). Enquanto a Palavra Filho de Deus apresenta Jesus como aquele que vem de Deus, o título Senhor sublinha a relação do ressuscitado com os crentes, a sua autoridade sobre a comunidade, pois é o Senhor presente na comunidade que oferece a salvação. A presença do ressuscitado na comunidade Paulo, a expressa como formula "Em Cristo" (Rm 12,4-5). Afirmar que Jesus é o Senhor significava tomar posição contra os "deuses e senhores" aos quais o Império Romano prestava culto (ICor 8,5-6). Além do mais, não se pode esquecer o culto imperial, a divinização do Imperador Romano, o qual tinha o título de Senhor. Para os cristãos só ao Cristo deve-se o nome de Senhor (Fl 2,9-11). A Ressurreição de Jesus é afirmada várias vezes no Novo Testamento. Marcos é muito breve, limita a dizer que algumas mulheres foram ao sepulcro de manhã viram-no vazio e tiveram a visão de alguns anjos. Os outros evangelistas são mais ricos em detalhes e falam do sepulcro vazio e da aparição do ressuscitado. A fórmula catequética mais arcaica sobre a ressurreição encontramos em 1Ts 1,9-10 escrita pelos anos 50-51. Outro trecho fundamental é de 1Cor 15,3-8 escrito no ano 57. "A ressurreição não é uma crença que se desenvolveu no âmbito da Igreja, é a fé através da qual a Igreja mesma se formou, e um dado sobre o qual se fundou a sua fé." Afirma o Teólogo Dood. Os evangelistas afirmam que José de Arimatéia, homem rico e membro do Sinédrio, fez depositar o cadáver em um sepulcro de sua propriedade (Mt 27,57-60; 338 Mc 15,43). Um sepulcro cavado na rocha, era propriedade de pessoas ricas. O túmulo era novo (Jo 19,41), de fato não se permitia sepultar sentenciados num túmulo já doado por outros porque seu corpo impuro, não devia contaminar com seu contato os cadáveres dos homens justos. Devia ser sepultado em túmulos comuns ou sepulcros vazios. Os evangelistas relatam que na manhã de Páscoa algumas mulheres foram ao sepulcro e o encontraram vazio (Mt 28; Lc 24; Mc 16; Jo 20). Nestas narrações existem algumas diferenças de nomes por terem sido transmitidas oralmente, contudo é importante notar que os evangelistas não se fixam nos detalhes de crônica. O valor histórico é relatado pelos quatro evangelistas e sobretudo em Marcos e Lucas estes não têm intenção apologética, ou seja, a descoberta do sepulcro vazio não é para eles a prova da ressurreição de Jesus, mas constatação de um simples fato. Além do mais quem fez a descoberta foram mulheres que não tinham condições jurídicas de testemunhar. Outro dado é que os cristãos começaram a considerar como festivo o dia sucessivo ao sábado (1Cor 16,2; At 20,7), pelo motivo de que neste dia se encontrou o sepulcro de Jesus vazio. Por outra parte, como os discípulos podiam ter começado a pregar a ressurreição se o cadáver do mestre estava no túmulo, e isto a começar por Jerusalém (At 2,14ss). Todos poderiam desmentir a pregação. É claro que os opositores para negar a historicidade do fato inventaram que os discípulos tiraram o corpo do túmulo e disseram que ele tinha ressuscitado (Mt 28,13-15); esta calúnia do roubo do corpo de Jesus era repetida no tempo de Justino (Diálogo com Trifão). Contudo é importante dizer que a hipótese de fraude é insustentável porque contrasta com a sinceridade da primeira comunidade cristã. Os discípulos não teriam tido a coragem de um gesto assim. Como teriam tido a coragem de desafiar 339 as leis religiosas e civis de roubar um corpo? A lei romana defendia a inviolabilidade dos túmulos. Além do mais, era proibido qualquer trabalho em dia de festa. A história de Jesus não encerra com a morte na cruz, mas tem um epílogo que é o ponto de partida de todo movimento cristão, ou seja, a sua ressurreição. A documentação sobre a ressurreição de Jesus transborda do limite dos evangelhos encontrando-se em Atos dos Apóstolos, nos escritos paulinos e apostólicos. Jesus ressuscitado é a razão da agregação dos discípulos depois de sua morte. De fato o seu passado, a sua morte trágica, sendo condenado como um agitador perigoso, não contribuiu para o projeto ético-religioso. Foi preciso a ressurreição, a qual teve como primeiros documentos os escritos de Paulo (1Ts 1,10; 1Cor 15,38.11). Todos os acontecimentos da morte de Jesus atravessaram os séculos graças à fé na ressurreição dele, a qual para alguns não passou de um mito criado pelos seus discípulos. Para os cristãos, porém a ressurreição de Jesus é algo absolutamente verídico “Cristo ressuscitou verdadeiramente”. O convencimento dos discípulos sobre a ressurreição de Jesus é muito antigo, “basta lembrar os Atos dos Apóstolos quando cinqüenta dias depois de sua morte, Pedro em plena Jerusalém pregava a ressurreição e apontava os autores da morte de Jesus. Não mais de 20 anos depois da ressurreição de Jesus, Paulo escrevia aos Corintos (I Cor 15), a fórmula da fé cristã onde professa que Jesus “ressuscitou ao terceiro dia segundo das Escrituras”. Flávio Josefo nos anos 90, refere que os discípulos de Jesus, também depois de sua morte não abandonaram o discipulado porque eram convictos de tê-lo visto ressuscitado para sempre. Da mesma forma, Plínio, o jovem, escrevendo ao Imperador Trajano pelos anos 103, 340 descreve os cristãos como gente que se reúne para cantar “Hinos a Cristo como um Deus”. Os apóstolos estavam convictos sobre a ressurreição de Jesus e pedem ao povo de acreditar nela, embora Paulo soubesse que Jesus tinha sido condenado tornando-se “escândalo para os judeus” e “loucura para os demais”. 58. AS APARIÇÕES DE JESUS Na manhã de Páscoa Jesus se manifestou vivo, aparecendo a Maria Madalena (Jo 20,14-17; Mt 29,9-10). Apareceu durante o dia aos discípulos de Emaús (Lc 24,13-36; Mc 16,12), assim como a Pedro (Lc 24,34). Oito dias depois apareceu a Tomé e aos doze (Jo 20,2629). Apareceu a Tiago (ICor 15,7). Apareceu as margens do Lago de Tiberíades (Jo 21,1-14). Houve a aparição coletiva aos doze dando-lhes a missão: "ide pelo mundo inteiro..." (Mt 28,19-20; Lc 24,36-49; Jo 20,19-33). Da mesma forma Paulo lembra a aparição aos doze (1Cor 15,56) e Lucas fala da aparição a Barsabás e a Matias (At 1,21-33). Como explicar que os discípulos antes da ressurreição no momento da prisão fugiram (Mc 14,50) e depois da morte declararam ter perdido toda esperança nele (Lc 24,21) vendo ali um sinal de maldição, mas depois da ressurreição se referiram corajosamente a ele, desafiando a opinião pública e as autoridades e proclamando-o como salvador? A resposta vem de Pedro: "Este mesmo Jesus ressuscitou-o Deus; e disto nós somos testemunhas" (At 2,32). A ressurreição exprime o sentido próprio de sua nova fé e garante credibilidade. Se os discípulos não tivessem visto Jesus ressuscitado não teriam sido o 341 que foram, não teriam dado impulso à pregação e tudo teria terminado no Gólgota. Mas tudo isto não teria sido uma alucinação coletiva? As alucinações são manifestações quase que sempre de sintomas de doença mental, ou também uma emoção intensa pode provocar formas alucinatórias em pessoas normais. Porém os discípulos não esperavam a ressurreição e quando Jesus apareceu tiveram dificuldade em acreditar. Não acreditaram nas mulheres quando falaram do sepulcro vazio (Lc 24,11). Tanto é verdade que Pedro foi verificar pessoalmente (Lc 24,12). Eles imaginavam ver um fantasma (Lc 24,37) e só se convenceram quando o viram comer. Tomé duvidou (Jo 20,24-29; Mt 28,17). Além do mais na mentalidade de então, todo o insucesso, mal, ou doença, era sinal de castigo divino (Lc 13,2; Jo 9,2). Eis porque os discípulos perderam a esperança em Jesus, após a sua morte (Lc 24,21). Portanto, para uma alucinação o clima psicológico devia ser o oposto. Para os apóstolos a ressurreição foi um fato e não uma experiência subjetiva, eles são testemunhas de Jesus ressuscitado, o qual que fala, anda, age, come com eles (Lc 24,45-47; Mt 28,19). Mostra suas chagas (Lc 24,39), convida Tomé a tocá-las (Jo 20,27), alimentase (Lc 24,41-43). Ele não é um fantasma. ( Lc 24,37-39). A ressurreição é um fato histórico e meta-histórico, ou seja, se por uma lado pertence à história, por outro a transcende. É um milagre que tem a ação sobrenatural de Deus, com ela Jesus adquiriu nova vida, gloriosa e imortal, diferente de Lázaro, pois sua condição era diferente dos outros mortais. Ele entra por portas fechadas (Jo 20,19-26). Desaparece improvisamente (Lc 24,31), não foi reconhecível à primeira vista (Lc 24,16; Jo 20,14-16). 342 59. O GÊNERO LITERÁRIO NA VIDA DE JESUS Podemos dividir a história da vida de Jesus em três períodos. O primeiro parte das origens sub-apostólicas até a Idade Média, onde neste período não existem obras consideradas “Vidas de Cristo”, mas tentativas de apresentar uma visão de conjunto de história evangélica. Nesta categoria estão o “Diatessaron” de Taciano (sec II), “Os Cânones” de Eusébio de Cesária (sec IV) e as “Evangelicae Harmoniae” de Vitor de Cápua. O segundo inicia-se na Idade Média quando surgiu a primeira vida de Cristo escrita por de Ludolfo de Saxônia em 1474 com o título “Vita Jesu Christi” com base nos evangelhos e que teve 88 edições. Seguindo este modelo outros lhe sucederam nos séculos XV a XVIII com um pouco de devocionismo e um pouco de exegese. Por fim, o terceiro período inicia-se no século XIX até metade XX com um número excepcional de vidas de Jesus. Algumas inspiradas nas ideologias das várias escolas. Até Hegel escreveu “Vida de Jesus” (1795) enfocando-o como mestre de virtudes morais. Também Strauss em 1537 escreveu uma “Vida de Jesus” pautada na filosofia hegeliana. Ernest Renan, professor de línguas semíticas escreveu em 1863, “Vida de Jesus” que mereceu mais de 80 edições. O Jesus de Renan é fascinante e prega o amor e a liberdade. Ele não é visto como Filho de Deus, mas como um personagem adorável. Mesmo alguns exegetas da “história das formas” embora afirmando ser impossível escrever uma “vida” de Jesus, não renunciaram a propor uma síntese da figura, das atividades e da mensagem de Jesus (Stauffer, Schwei343 zer, Bultmann, Debelius...). Dentre as vidas clássicas de Jesus, algumas tiveram o cunho apocalíptico ou devocional (“Vita di Gesu” de V. Fornari; “Mistero del Cristo” de Ceccelli), e dentre estas sobressai a “Vita de Gesù Cristo” de G. Ricciotti em 1941. Nesta obra o autor italiano antepõe mais de 200 páginas destinadas ao ambiente histórico – geográfico de Jesus demonstrando o valor das fontes e respeitando as interpretações racionalistas da vida de Jesus. A obra de Ricciotti marcou o fim de uma época já que em 1943 a encíclica “Divino Afflante Spiritu” incentivou a pesquisa católica com os instrumentos modernos da exegese, o que veio confirmar depois com o documento sobre a divina revelação, Dei Verbum (1965). III. PARTE 344 60. O DEBATE HISTÓRICO SOBRE JESUS O retrato de Jesus como nos é apresentado pelos três evangelhos canônicos atravessou os séculos sem retoques substanciais nem contestações. Foi o iluminismo cristão que ousou uma nova imagem de Jesus diferente da tradicional e esta partiu de com Hermann Samuel Reimarus (1694 – 1768) através de uma obra de 4 mil páginas sobre a reconstrução histórico científica do cristianismo. 1. O Jesus dos iluministas O pensamento de Reimarus foi conhecido através da publicação de sete seus fragmentos pelo Filósofo Gotthold Efraim Lessing, o qual produziu uma explosão no campo da pesquisa histórica sobre Jesus nestes últimos séculos fazendo da vida de Jesus um objeto de cuidadosa pesquisa filosófica e histórica, pois Reimarus afirmava que numa investigação crítica sobre Jesus devia-se “manter a distinção entre o que Jesus realmente fez e ensinou em sua vida, e o que os apóstolos narraram em seus escritos”. Ele ainda defendeu que Jesus teria propugnado em sua pregação uma revolta contra os Romanos, mas fracassou e caiu na cruz, mas os discípulos não se conformaram com o fato e furtaram o seu corpo do sepulcro e propagaram a sua ressurreição transformando-o num mestre espiritual e redentor da humanidade. Esta publicação feita por Lessing sob o título “Fragmentos do anônimo de Wolfenbuttel”, deu o início ao debate histórico-crítico sobre Jesus. Mais tarde em 1828 Eberhard Gottob Paulus com sua obra “A vida de Jesus”, sustentou que a pessoa, a obra e o ensinamento de Jesus são válidos por si mesmos e não precisam ser abonados pelos 345 milagres que os discípulos em boa fé relataram, pois os milagres de Jesus podem ser explicados sem recorrer a forças sobrenaturais. 2. O Jesus da Escola de Tubinga – A pesquisa sobre Jesus histórico depois disso teve o seu visor com o professor de Tubinga, David Friedrich Strauss que publicou em 1835 o livro “A vida de Jesus criticamente elaborada”, a qual foi muito criticada, pois neste sustentava que o mito é a chave interpretativa para encontrar o núcleo histórico sobre Jesus, Mestre dos evangelhos. Com isso ele dizia que era preciso remover os vestimentos simbólicos elaborado pelos primeiros cristãos que projetaram nos evangelhos suas idéias religiosas sob forma de fatos pseudo-históricos. Neste clima sob o influxo da filosofia hegeliana, vem depois Bruno Bauer (1809 – 1882) afirmar que Jesus não é um personagem histórico, mas criação mística dos evangelistas quando entre 1800 – 1855 publicou “Crítica aos evangelhos e história da sua origem”, que influenciará muitos estudiosos holandeses, ingleses (J. M. Robertson), americanos (W. B. Smith) e franceses (L.Couchoud). 3. O Jesus da “Escola Liberal” Um renovado impulso à pesquisa sobre Jesus histórico veio pelos estudos feitos para determinar o valor das fontes que formam a base dos sinóticos. Os estudos históricos – literário viram em Marcos e não em Mateus a tradição mais antiga sobre Jesus, e esclareceram que o que não existe em Marcos, mas que está presente em Mateus e Lucas, deve-se à fonte Quelle (uma coleção de sentenças atribuídas a Mateus na tradição do século II) como afirmou Weisse e para Streter a origem de Marcos foi Roma, de Mateus foi Jerusalém, de Lucas foi Cesaréia e a fonte (Quelle) em Antioquia. 346 Em base a estas duas fontes (Marcos – Quelle), constatou-se que o anúncio central de Jesus é o Reino de Deus, no sentido religioso moral não como realidade histórica ou apocalíptica. Desta forma, a “Escola Liberal” interpretou a mensagem de Jesus como um ideal éticoreligioso. Típico representante desta orientação foi o historiador do cristianismo Adolf Von Harnarck (1851 – 1930), professor da universidade de Berlim, o qual afirma a credibilidade histórica dos evangelhos (graças ao trabalho histórico – crítico do passado), mas afirma também que “os evangelhos não são obra histórica, ou seja, não foram escritos para relatar simplesmente tudo o que aconteceu, mas são livros a serviço da evangelização”. O intento dos evangelistas era suscitar a fé na pessoa e missão de Jesus. Jesus é um grande iluminado e mestre de religião e moral, centradas na paternidade de Deus e na fraternidade humana (cf. seu livro “A essência do cristianismo). 4. Jesus na história das religiões. Contemporaneamente a Harnack entra em cena Johannes Weiss que esboça o retrato de um Jesus pregador do advento iminente do Reino de Deus, segundo o esquema da apocalíptica judaica, onde o mal será debelado definitivamente e Jesus empossado como Filho do Homem. Seguindo Weiss, veio Albert Schweitzer com sua obra “Esboço da vida de Jesus” (1901). Este estudioso afirmava que o que é permanente e eterno em Jesus é totalmente independente do conhecimento histórico e pode ser compreendido só em virtude de seu espírito. Da mesma opinião foi William Wrede com sua obra “O segredo messiânico nos evangelhos” (1901) onde afirma que a consciência messiânica de Jesus não é um dado histórico, mas produto da comunidade cristã primitiva 347 à luz da ressurreição, portanto não se pode ter nenhuma idéia real da vida histórica de Jesus. Diante disso os autores que se inspiram na história das religiões vêem Jesus que anuncia o Reino de Deus como comunidade de amor e aos poucos reconhecido e venerado pelos discípulos como o Messias escatológico. Nesta atmosfera é compreensível o que disse Kahler numa conferência com o título “O pretenso Jesus da história e o Cristo Real da Bíblia” (1892): “O Cristo vivo e o Senhor ressuscitado não é o Jesus histórico que está por trás dos evangelhos, mas o Cristo da pregação apostólica, de todo o Novo Testamento”. 5. O Jesus “histórico” no século XX No final da 1ª guerra mundial alguns autores alemães deram uma guinada metodológica no estudo dos evangelhos e isto deu bases para um novo exame da questão do Jesus histórico. Em 1919 Karl Ludwig Schmidt num estudo intitulado “A moldura histórica de Jesus”, tentou reconstruir a tradição oral pré literária dos evangelhos, a qual para ele formou-se no ambiente do culto dando origem às “formas” das quais os evangelistas serviram, mas sem um quadro unitário preciso. Conjuntamente Martin Dibelius com o seu estudo denominado “A história das formas do Evangelho”, afirmava que os evangelistas compilaram o material préexistente elaborado durante a pregação. Dois anos depois Rudolf Bultmann publica “A história da tradição sinótica”, onde distingue dois ambientes histórico – culturais diferentes, nos quais foi elaborada a tradição pré- evangélica: As comunidades judeus – cristãs da Palestina e as Helênicas. Diante disto Bultmann pergunta: “Até que ponto as exigências da vida comunitária no culto e na pregação conservaram, interpretaram ou manipularam e criaram palavras e fatos a348 tribuídos a Jesus?” A resposta fica em parte condicionada pelos pressupostos ideológicos de cada autor, por isso Bultmann mostrou-se cético diante das narrativas evangélicas elaboradas em função da apologética. Bultmann em sua obra “Novo testamento e mitologia : o problema da demitologização do anúncio cristão” (1941) colocou a necessidade da demitização do Novo Testamento, como exigência intrínseca do anúncio da fé. Para ele o Novo Testamento apresenta o evento Cristo como acontecimento mítico; embora Jesus seja um indivíduo histórico concreto, homem e filho de Deus. Em 1956 Gunther Bornkanm com sua obra “Jesus de Nazaré” faz uma investigação sobre o Jesus da história com o método da história das formas onde admitiu que o Jesus histórico estava ligado ao Kerigma e à fé da comunidade primitiva. Na década de sessenta Schmithals reafirma teologicamente vedada a investigação sobre o Jesus da história. Em suma , numa visão panorâmica o Jesus “histórico” foi submetido a um processo de revisão e crítica segundo os esquemas ideológicos e os instrumentos culturais de que dispunham os autores e as escolas. Assim, os iluministas e racionalistas procuraram recuperar o Jesus histórico real além das incrustações dogmáticas e míticas dos evangelhos e da tradição. A Escola Liberal viu Jesus como o pregador de uma ética elevada e de uma religião universal. Os comparadores das religiões viram nele o profeta do Reino de Deus dentro da visão apocalíptica. Finalmente para a história das formas dos evangelhos conjugada com o existencialismo heideggeriano, Jesus correu o risco de volatizar-se no Kerigma. Depois da tempestade crítica desses dois séculos, onde foram envolvidos a figura histórica de Jesus e os 349 evangelhos, não é mais possível um tratamento acrítico dos textos. Estes dois séculos possibilitou-nos um patrimônio de dados que torna possível uma investigação da figura e da obra de Jesus com instrumento adequados. 6. Jesus para os judeus O filósofo judeu Martin Buber afirma que desde criança percebeu Jesus como “seu irmão maior”. Outro intelectual judeu, Ben Chorin, traçou Jesus na perspectiva judaica; ele fala da nova orientação judaica com relação a Jesus como de um processo que tende a “reconduzir Jesus ao seu povo” e faze-lo “repatriar-se”, e lembra a afirmação de um judeu: “Jesus é a alma da nossa alma, como é carne de nossa carne. Então, quem poderia separá-lo do povo judeu?” Jesus no povo judeu é pouco lembrado no Mishna e no Talmude, e às vezes a imagem de Jesus é depreciada no ambiente onde a minoria era obrigada a viver em ambientes cristãos. Na Idade Média no confronto entre judeus e cristãos, Jesus foi combatido como não Messias com a alegação de que a divulgação de Jesus fora obra dos seus discípulos. Eles criticavam os evangelhos e alegavam que os judeus não podiam ser incriminados pela morte de Jesus, pois ele fora condenado segundo o direito vigente. No clima deste debate distinguiram-se algumas figuras precursoras do ecumeninsmo: o filósofo e poeta espanhol Judas Halevi (1085 – 1135) e Moisés Maiomônides (1135 – 1204), assim como também depois Baruc Spinoza (1632 – 1677) que viu Jesus como um excepcional homem religioso. Com os éditos de tolerância aos judeus e o contato com a cultura moderna e também o estudo dos textos segundo o método histórico-crítico, a posição judaica 350 sobre Jesus mudou. Houve uma recuperação da pessoa Jesus, sobretudo por parte de alguns intelectuais judeus que contribuíram muito para a redescoberta das raízes judaicas da pessoa e obra dele, dentre os quais Goldsmid Montefiore (1858-1938) que viu a novidade em Jesus não em propor um novo projeto religioso e um ensinamento ético diferente no ambiente judaico, mas a intensidade de seu estilo profético e espiritual que lembrava os antigos profetas. Um outro judeu foi J. Klausner, estudioso do messianismo hebraico; ele escreveu o primeiro livro sobre Jesus para os judeus valendo-se do resultado da pesquisa histórico-crítica sobre os evangelhos. Ele se perguntou: Como pode Jesus que nasceu, viveu, formou-se e trabalhou no judaísmo, ser rejeitado pela maioria dos judeus? E explicou que Jesus é judeu e nada há nele, no seu ensinamento ou no seu estilo de vida que não se possa explicar pela tradição bíblica e pelo ambiente judaico. Afirmou ainda que foi Paulo e os cristãos helênico-pagãos que transformaram o judeu Jesus em Cristo, em semi-deus, procurando a separação do judaismo. Klausner mostrou que Jesus é um judeu, nacionalista, observante, com todas as qualidades e defeitos de um mestre judeu do seu tempo, como poderia ter sido Hillel. Os conceitos de Deus e do Reino de Deus são apresentados com a fé e a esperança judaicas. Há contudo algo em Jesus que se opõe ao judaísmo e o torna estranho a ele; a sua singularidade religiosa e o seu extremismo ético, pois ele proclama de modo absoluto que Deus é misericórdia e é comprometido com a justiça. Jesus radicaliza a dimensão ética da religião e a tal ponto que vê como supérfluas as observância rituais (pureza e impureza de alimentos, o sábado) e nisso ele se separa dos judeus. Com isso Jesus, na proposta do asceticismo, pobreza e celibato, representa o fim do 351 judaísmo como nação e religião, privando-o de sua força vital. Klausner afirmou ainda que a relação contraditória de Jesus em relação a seu povo reúne-se no fato de considerar-se Messias, e a convicção de que o Reino de Deus já havia chegado. Isto o judaísmo não podia aceitar e nem o seu extremismo ético, o que deu origem à idolatria, Jesus – Deus, e à degeneração moral. Klausner afirmou também que “o judaísmo pôs ao mundo a religião cristã na sua forma original, como ensinamento de Jesus, mas rejeitou a filha quando esta, num abraço mortal, tentou sufocar a própria mãe”. Ele por fim explica que o sucesso que Jesus teve com os primeiros seguidores, os judeus, foi graças à sua personalidade fascinante e contraditória, e devido a maestria de seus ensinamentos. A obra de Klausner sobre Jesus permanece uma pedra miliar na longa estrada que o judaísmo e o cristianismo percorrem separados. Também Shalom ben Chorin que estudou muito Jesus, viu Nele um mestre, como a terceira autoridade ao par de Hillel e Shamai. Outro judeu, Pinchas Lapide nascido no Canadá em 1922, considerou Jesus como autenticamente judeu que compartilha da fé e da esperança judaica, do ideal de seu povo; ele é o melhor fruto da tradição judaica. Da mesma forma, David Flussner, judeu nascido em 1917, afirmou que o judaísmo é o contexto vital de Jesus que propõe um ensinamento ético-religioso conforme ao dos fariseus e sua novidade está na radicalização das exigências éticas condensadas no preceito do amor. Concluindo, podemos afirmar que a imagem de Jesus dada pela pesquisa judaica o define como um judeu de origem, de formação e pelo projeto histórico éticoreligioso. É um Mestre reformador situado na linha dos profetas clássicos. Ele compartilhou as esperanças 352 messiânicas e considerou-se Messias. Entrou em conflito em questão da observância da lei e em relação aos pecadores. Foi condenado à cruz pela autoridade romana com a convivência da autoridade religiosa do Templo. Ele é um anel importante da tradição religiosa espiritual do judaísmo e não pode ser aceito por um judeu como Messias e muito menos como Filho de Deus no sentido cristão. Contudo, Jesus que há séculos foi motivo de divisão e hostilidade entre cristãos e judeus, começa tornar-se ponto de encontro e de união. 7. Jesus para os cristãos. Há 20 séculos Jesus está ligado aos cristãos e a fé proclama-o como o Cristo, Senhor e Filho de Deus, como é testemunhado pelo elenco oficial dos livros sagrados. A reflexão crítica sobre a fé em Jesus passou pelos séculos através de debates e controvérsias até a profissão de fé cristológica dos Concílios de Nicéia (325) e de Calcedônia (451), declarando Jesus Cristo Filho de Deus e consubstancial ao Pai (Nicéia) e consubstancial aos homens, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e um só e mesmo Cristo, Filho Unigênito com duas naturezas, cada uma delas coexistente numa única pessoa. Nesta plataforma de fé fundamentaram-se as reflexões cristológicas até hoje, onde os textos sagrados foram submetidos ao exame da razão crítica e histórica, numa nova fase cristológica de perguntas à fé feitas pelo iluminismo e que levou a elaboração e aplicação do método histórico – crítico na leitura do NT, obrigando a Igreja rever suas posições da cristologia tradicional. Disto decorre as perguntas: Quem é Jesus para o homem de hoje? Qual o seu significado atual? Para tentar responder a estas perguntas os exegetas procuraram alguns aspectos da cristologia relacionados ao Jesus histórico levando-se em conta os ambientes culturais, 353 sobretudo, o norte – europeu e o latino–americano. Nestas áreas destacaram-se muitos teólogos, dentre os quais os abaixo relacionados. Karl Rahner, o qual procura acentuar a figura e a mensagem do Jesus histórico colocando Jesus como o ofertante da salvação definitiva e anunciando o Reino que recebeu plena confirmação com a sua ressurreição. Wolfang Parrenberg, coloca o fundamento da fé em Cristo não limitando à Igreja primitiva, mas abrangendo todo o Jesus histórico. Esta compreensão do Jesus histórico para ele se obtém a partir de sua ressurreição, que é o cumprimento de suas palavras e a antecipação do cumprimento escatológico da história da salvação. Jurgen Moltmann, postula as afirmações da fé em Jesus não associadas a um modo artificial ao seu nome, mas associada e condensada nos títulos cristológicos dados pelos cristãos, e de conseqüência os cristãos devem tornar viva e operante a fé em Cristo nas situações atuais de injustiça e morte, pois o Jesus crucificado desvendou o rosto de Deus. Walter Kasper, vê uma cristologia fundamentada nas interpretações das fórmulas de fé primitivas baseadas na história de Jesus. Assim, a investigação cristológica tem sua fundamentação na história de Jesus terreno. Nos atos de Jesus pré- pascal está implícita a cristologia pós-pascal. Hans Kung, concebe todo o programa cristão em torno da pessoa e obra de Jesus; trata-se do Jesus histórico real e não um mito, cuja atividade histórica e mensagem podem ser reconstituídos com métodos críticos rigorosos baseados em documentos historicamente aceitáveis. Desta forma, o discurso para fundamentar o anuncio de Cristo ao homem de hoje não só é possível e legítimo, mas necessário para eliminar suspeitas de projeção da fé mística. Edward Schillebeckx, afirma que na mentalidade e cultura histórica modernas, a pesquisa feita de modo cien354 tífico é essencial para a fé, embora a pesquisa não fundamenta a fé, mas ela reúne dados para o crente acolher a ação salvífica de Deus. A práxis de Jesus é o âmbito onde se revela a ação salvífica de Deus. O autor atribui a investigação histórico – crítica sobre Jesus um valor “teológico”. Christian Duquoc, valoriza a condição humana-histórica de Jesus como revelação de Deus e de seu projeto de salvação. Por isso, nada do que aconteceu com Jesus e consta nos evangelhos são anedotas, ou exemplos edificantes, mas evento revelador de sua personalidade e missão que posteriormente foi explicitado nos títulos cristológicos. As sugestões oferecidas pela cristologia européia, foram reelaboradas de modo dinâmico e original nas sínteses sul-americanas em contato com a situação socioreligiosa deste continente, levando assim ao amadurecimento de uma reflexão sobre a fé com o nome de “Teologia da libertação”. Dentre os teólogos latinoamericanos, destacam-se sobretudo Leonardo Boff, com sua obra “Jesus Cristo libertador” (1972), onde legitima uma cristologia que parte dos cinco pressupostos que caracterizam a situação latino americana: 1. O primado da antropologia sobre a eclesiologia; 2. O primado da utopia sobre a factualidade; 3. O elemento crítico sobre o dogmático; 4. Do social sobre o pessoal; 5. Da orto práxis sobre a ortodoxia. Destas premissas nasce a síntese cristológica, cujo centro é a história de Jesus, anunciando o Reino de Deus como nova ordem das coisas, o qual tem uma dimensão presente e futura, espiritual e material. Jesus lutou pela libertação, mas foi condenando como guerrilheiro, embora não tivesse uma linha de ação identificável com os zelotas e na ressurreição realizou-se a utopia do Reino de Deus como libertação de alienação e da escravidão. Para Leonardo Boff existe uma certa seme355 lhança entre a situação da Palestina no tempo de Jesus e a situação da América Latina (opressão, escravidão). Neste contexto o Jesus histórico com sua práxis de libertação convida os cristãos (sobretudo latinoamericano) a se empenharem para a de libertação e a transformação do mundo não obstante os conflitos que isso acarreta. Outro teólogo deste contexto latino-americano é Jon Sobrinho, que em sua obra “Cristologia desde América latina, esbozo a partir del seguimento del Jésus histórico” (1976) propõe a pessoa de Jesus, sua pregação, suas atividades, atitudes e sua morte como práxis de libertação no Reino. Sobrinho assimila um pouco o teólogo Moltmann, aplicado ao contexto latino-americano, onde se visualizam os traços evangélicos com o dinamismo de uma igreja com opção preferencial pelos pobres. 8. Jesus para os muçulmanos O interesse do Islão por Jesus é condicionado ao relacionamento de Maomé, com os cristãos. Maomé conheceu Jesus através dos cristãos da Síria e fontes apócrifas, de fato, trechos do Alcorão sobre Jesus e Maria tem a influência do “proto-evangelho de Tiago” e do “Evangelho árabe da infância”. Os conflitos históricos não favorecem um aprofundamento das fontes evangélicas, mas Jesus é visto com simpatia por um círculo de intelectuais que conheceram o mundo cristão, a massa, porém está ausente do conhecimento de Jesus. No Alcorão Jesus é conhecido como “o filho de Maria” e Maria é acolhida e muito respeitada. O Alcorão vê as origens de Jesus baseada nos apócrifos e vê Jesus como profeta enviado por Alá aos filhos de Israel. Jesus é parte de outros profetas que o precederam (Abraão e 356 Moisés), mas com uma iluminação especial. Jesus é o “Servidor de Deus” sempre “sujeito” a Deus. O Alcorão reconhece o título Messias para Jesus como enviado de Alá, Ele é “uma palavra de Alá”, “uma palavra da verdade”. É criatura de Deus e a sua morte foi aparente porque foi levado por Deus ao céu e voltará do juízo para morrer e ressurgir como qualquer outro homem. 9. Jesus para os ateus Focaliza-se particularmente os marxistas, os quais não deram atenção especial à pessoa e à obra de Jesus pela crítica ao fenômeno religioso considerado por eles como alienante. Para Marx os princípios cristãos afogaram como ideologia opiácea a miséria e a opressão da massa proletária. Assim também F. Engels em sua obra “sobre a história primitiva do cristianismo” (1894) fez um paralelo entre o cristianismo primitivo e o movimento operário moderno, ambos oprimidos, onde o cristianismo vê tudo numa dimensão de vida ultra eterna. O cristianismo como ópio mantém as massas na opressão com sua ideologia religiosa. Embora alguns expoentes marxistas como Lunacasky vê a doutrina de Jesus próxima a camada dos pobres, contudo as estruturas revolucionárias do cristianismo original ficaram ineficientes no plano histórico e agora estão totalmente substituídas pelo socialismo marxista. Uma outra fase da historiografia marxista soviética sobre Jesus que é de tendência iluminista – liberal, religionista e mitológica não nega a existência de Jesus, mas afirma que o seu papel pessoal é secundário, pois Jesus é um dos tantos profetas messiânicos judeus. Contudo, em tudo isso a pesquisa histórica sobre Jesus e as origens cristãs são condicionadas no marxismo so357 viético pelo materialismo dialético e pelas preocupações da propaganda militante anti-religiosa. Dentre os autores mais modernos da área marxista que se interessaram por Jesus está Milan Machovec, o qual escreveu “Jesus para os ateus” (1972), esta pode ser considerada a primeira obra de um ateu marxista dedicada especificamente ao tema cristológico. O autor utiliza o método histórico da leitura dos textos evangélicos e inspira-se na interpretação dimitizante de Bultmann admitindo que na base da tradição e dos textos evangélicos está a pessoa e a mensagem originais e históricas de Jesus, e que apesar da filtragem da pregação cristã e as adaptações dos evangelistas, pode-se mesmo assim delinear as linhas gerais do pensamento de Jesus. Aponta como núcleo central e historicamente sólido da mensagem de Jesus o anúncio e a chegada do Reino de Deus que consiste na humanidade perfeita através do compromisso num processo de libertação. Este processo revolucionário da libertação não é só no social e político, mas também na busca e na valorização dos “pequeninos,” no amor aos inimigos, na não violência e na solidariedade... Jesus como Filho do Homem é identificado com o herói esperado no futuro. Quanto ao Messias, ele não é o Messias, mas foi tornando-se o Messias na medida que assumiu a função histórica messiânica, Jesus se apropriou progressivamente da idéia do Messias que dá a própria vida em sacrifício segundo o modelo do servo de Isaías. Para o autor Jesus e os discípulos esperavam que a transformação final se desse após o período de crise, mas com sua morte nada aconteceu. O que deixou os discípulos perturbados não foi o fato do Gólgota, mas a não transfiguração de Jesus sofredor em “Filho do Ho358 mem”, e assim Pedro empreendeu uma virada no processo de conscientização messiânica por parte de Jesus, tornando-se o arauto da ressurreição e glorificação de Jesus. A ressurreição de Jesus tornou-se uma interpretação nova e definitiva do que fôra a essência do anuncio de Jesus antes do Gólgota. Outro representante do mundo ateu marxista que tentou uma série aproximação com a pessoa e a mensagem de Jesus foi Ernst Bloch (1885 – 1977), filósofo propagador do materialismo utópico. Este viu o itinerário de Jesus como “rebelde anunciador do Reino de Deus para os pobres” e como o Filho do Homem. Posicionouse numa direção que ele denomina “fio vermelho” da Bíblia e esta começou com a tentativa de Jesus ser como Deus. Ele não é o manso pregador da paciência, mas o Messias escatológico que anuncia o Reino de Deus, não um reino ético - espiritual, mas uma realidade histórica, terrena, política. Seu evangelho é um proclamação da felicidade que compreende a salvação religiosa e política, o fim da miséria e o início da felicidade, o shalôm profético. Jesus é o protótipo da tensão utópica, ele representa a história do homem que se move em direção da liberdade e da esperança realizadas. Também Roger Garaudy, filósofo marxista, viu a mensagem de Jesus na linha dos profetas de Israel, pioneiros da luta contra a alienação. O Reino de Deus proclamado por Jesus não um outro mundo, mas o mundo que se tornou outro graças às mudanças do esforço humano. Jesus não é um revolucionário como o zelotas, nem um pregador de penitência como João Batista, mas é o homem que nos ensina a olhar objetivos longínquos. A fé que ele nos convida é o “protesto” contra as alienações e idolatrias, sua mensagem é uma exigência de amor radical e a ressurreição de Jesus é um 359 ato criador, a afirmação do impossível com que a história abre o futuro a todos os possíveis, por isso a ressurreição não é um dogma em que se deva crer, mas um objetivo e uma tarefa a ser cumprida hoje. Jesus é “homem verdadeiro”, homem de Deus e só Deus pôde ser. Por fim, Laszek Kolakowsky, filósofo em Varsóvia até 1968, viu Jesus como o reformador do Judaísmo e não o Fundador do cristianismo; é o profeta e o Messias que está no cerne da tradição bíblica. Há nele um núcleo de ensinamentos que são vitais não só para o cristianismo, mas para qualquer cultura humana. Ele superou a ética legal em favor do pacto do amor que apela para a fraternidade. O problema hermenêutica considerado como o estudo de relação escritura-palavra-acontecimento, não é novidade do século XX. Está presente desde o início, pois no começo os cristãos aplicaram-se em distinguir a relação entre A.T. e N.T. A primeira fase da hermenêutica foi adquirir a inteligência espiritual do A.T. pelo N.T. Os Padres, Justino, Orígines, Agostinho fizeram esta hermenêutica. Num segundo momento na exegese medieval e recentemente na de Bultmann, a Sagrada Escritura é interpretada como chave do agir humano. Num terceiro tempo a hermenêutica teve por objeto o próprio texto do N.T. e a relação entre este e o evento, daí nasceu o choque da Sagrada Escritura com as críticas filosóficas, a história... Hoje graças a Formgeschichte e a RG os evangelhos não são crônicas, mas testemunhas nascidas na comunidade cristã, sendo que entre o texto elaborado e o ocorrido houve um espaço de 30 a 100 anos. A historicidade é o primeiro traço de originalidade e de especificidade da revelação cristã. 360 O cristinianismo não é gnose caído do céu de páraquedas; o Kérigma é pregação de um evento salvífico (Cristo morreu na cruz). O cristianismo não nasceu da pura fé, não é doutrina, é um evento fundado sobre a pessoa de Jesus, pois se o ser de Jesus nos escapa, sua identidade evapora-se e nossa fé fica arriscada ser uma ilusão. A crítica literária após o ceticismo de Bultmann tornou-se mais moderada com autores que buscaram critérios válidos para chegar ao Jesus de Nazaré (Jeremias, Schurmann, Cefaux de la Potterie) todos admitindo que o acesso ao Jesus Histórico pelos evangelhos é possível. Isto foi fruto de dois séculos de buscas e de estudos. 61. UMA FASE LOGIA DE RADICALIZAÇÃO NA CRISTO- Até século XVIII a autenticidade dos Evangelhos não foi contestada. A exegese explicava o conteúdo do Evangelho sem se preocupar com o gênero literário ou a sua formação. O Jesus histórico e o Cristo dos evangelhos não tinha oposição. O problema do Jesus da História começou antes de Bultmann, com a fase pré Bultmanniava, tendo como destaque Reimarus (1694 1768), o qual afirmava que Jesus não quis fundar uma nova religião, não fez milagres e não ressuscitou. Ele foi um messias político, mas fracassou decepcionando os discípulos, os quais criaram a figura de Jesus dos evangelhos e inventaram a sua ressurreição. Este teólogo esvaziou o conteúdo sobrenatural e histórico dos evangelhos. Em seguida David F. Strauss (1808-1874) ao publicar: "A Vida de Jesus" (1837). Afirmou que o elemento chave para se compreender o evangelho é o mito, o qual 361 é a representação do ideal religioso dos primeiros cristãos. O Cristo do evangelho como Deus é um Jesus mitigado a partir dos elementos tirados do judaísmo, do helenismo e da experiência cristã. Tudo que precedeu ao batismo de Jesus é mito. O valor dos relatos evangélicos é de ordem teológica com a finalidade de dar-nos acesso à fé. Outro teólogo desta fase foi Kahler, o qual insistiu que o único Jesus real é o da pregação da fé e não o Jesus do passado. Não negou contudo um substrato histórico nos evangelhos e a distinção entre Jesus da História e Kérigma. Na mesma linha apareceu Wrede afirmando que Jesus nunca teve consciência de ser o messias, mas que isto foi uma elaboração dos apóstolos que criaram a idéia do "segredo" messiânico. O século XX foi ciente de que a redação dos evangelhos teve um espaço de no mínimo 30 anos, por isso procurou levar em consideração as etapas desta formação, sobretudo com pesquisas e estudos baseados na História das Formas (1920-1945). Na evolução desta caminhada na busca da pessoa de Jesus entram em cena o teólogo protestante Rudolf Bultmann e a teologia do Kérigma . Para Bultmann o cristianismo começou com o Cristo anunciado, isto é, com o Kérigma que supõe a existência histórica de Jesus, mas que não se interessa por ele. O que interessa é a existência de Jesus, ou seja, basta Jesus. Jesus tinha nascido, vivido, foi crucificado e morto, mas sua personalidade moral e seus ensinamentos não representam interesse teológico. Para Bultmann o Kérigma propõe a figura mística de Jesus. Por isso ele critica radicalmente uma pesquisa historiográfica sobre Jesus, a qual tornase impossível e ilegítima. Afirma, portanto que é utopia escrever a vida de Jesus porque os evangelhos são confissões de fé com uma imagem mitigada pelos evangelis362 tas e as fontes cristãs são invadidas de lendas. Precisase segundo ele, ter o máximo cuidado com as fontes (pregações das comunidades). Os evangelhos são um kerigma e não uma crônica, e o Novo Testamento é um universo místico com influência do gnosticismo, do helenismo e do judaísmo. Em suma, Jesus tem um valor indicativo da salvação que nos vem pela fé; é o grande profeta, mas não o salvador; é o lugar escolhido por Deus para notificar-nos a salvação. A salvação de Deus não passa pela liberdade de Jesus, sua intenção não entra em jogo. As posições radicais de Bultmann provocaram muitas reações a partir dos católicos que afirmam ser a tradição sinóptica substancialmente fiel à realidade histórica de Jesus, embora aceitando que os evangelhos sejam testemunhas de fé da Igreja Primitiva. Dentre o mundo dos teólogos que reagiram destacamos alguns, tais como: Joaquim Jeremias, o qual enfatiza que o valor de Bultmann em ter chamado a atenção para o valor do Kérigma e da gratuidade da salvação, mas o acusa de ter relativizado no cristianismo o fato primordial que é a encarnação e ter substituído Jesus por Paulo. Para este teólogo a fonte principal do Cristianismo não é o Kérigma, numa experiência pascal dos apóstolos, mas a entrada em cena do Jesus de Nazaré, crucificado sob Pôncio Pilatos. Portanto precisa-se voltar ao Jesus da História para ser fiel às fontes e ao kérigma. Ele acusa Bultmann de não ter levado a sério o “Verbum Caro Factum, est”, apresentando um Jesus sem conteúdo. Outro teólogo que se destacou nesta reação da visão Bultmanniann foi Käsemann, historiador e exegeta do A.T. Em 1953 critica Bultmann por não mostrar interesse pela existência concreta de Jesus da história, contentando-se do fato bruto de sua existência, transformando o Cristo num mito. Para ele a vida histórica de 363 Jesus tem importância decisiva para a fé e a história de Jesus é o “initium Chistianismi”. O evento da salvação é inseparável deste homem que viveu em Nazaré. Sem o ensinamento de Jesus, o Kérigma não existiria; ele é o coração do Novo Testamento. Ignorar como Jesus viveu, segundo Käsemann, leva ao perigo de impor o atributo de cristão a certa compreensão de Deus e do homem, segundo o que Jesus não é mais do que um símbolo místico; o cristianismo seria apenas um mensageiro de uma gnose. É preciso ir além do simples fato bruto da existência de Jesus e dar importância ao Jesus terrestre, pois o Kérigma se achava contido em substância em suas palavras e nos seus gestos. O Novo Testamento considera o Jesus Histórico critério de validade de seu ensinamento. Para Käsemann a Igreja com o objetivo de proteger a pureza do Kérigma, recorreu aos gestos e às palavras de Jesus, não como um saudosismo do passado e sem isso a teologia seria pura ideologia. O Jesus da história impediu que Cristo anunciado tornasse um mito, uma gnose, uma ideologia, um subjetivismo. Depois de ter anunciado o Cristo como Kiryos, as comunidades tiveram que lutar contra os desvios de tipo espiritualistas que negligenciavam o Cristo extra nós para considerar o Cristo intra nós. Seguindo na mesma linha de reação, Bornkann afirmou que os Evangelhos proclamam que a fé não começa com ela mesma, mas vive de uma história que a precede e da qual só pode falar o passado. Os Evangelhos são sensíveis à pessoa histórica de Jesus, ao que eles nos informam, sobre a sua mensagem, os seus atos e a história de Jesus é caracterizada por autenticidade, com um frescor, uma originalidade que nem mesmo a fé pascal da comunidade primitiva pode reduzir, tudo quanto se refere à pessoa de Jesus terrestre. 364 Para este teólogo a tradição cristã primitiva sobre Jesus acha-se impregnada de história, ela se interessa não só pelos ensinamentos de Jesus, mas também por sua ação e pelo impacto de sua personalidade sobre o meio e os homens do tempo. O Kérigma, enfatiza mais a "contemporaneidade" do Cristo e a sua presença viva e atual na comunidade como kiryos que o desenvolvimento histórico de sua vida terrestre, mas nem por isso deixa de ser história. Seguida da reação destes teólogos vem a assim chamada nova hermenêutica como reação a Bultmann. Esta denominação deve-se a obra de James Robinson (The new Hermenêutica), a qual representa a corrente hermenêutica de vários pensadores. Passa-se a uma nova pesquisa sobre Jesus, a qual é possível não porque se tenha novas fontes, mas graças aos trabalhos de Dilthey e Heidegger, onde se descobre uma nova concepção da história e da existência humana. Afirma-se que a história não é uma crônica de fatos, mas a compreensão que o Eu tem em si mesmo e de seu projeto de existência. A comunidade primitiva conservou intacta quanto ao essencial, as “Logias” e as narrativas nas quais Jesus exprimiu suas intenções. Estas “Logia” são fontes históricas para se conhecer a história e pessoa de Jesus. Na nova hermenêutica com Fuchs e Ebeling, não somos nós que interpretamos, mas é esta quem nos interpreta. Nada se sabe sobre Jesus que não se ache fundado sobre o Jesus histórico, assim o kérigma tem necessidade de Jesus como autenticador da fé. 62. O ACESSO À HISTÓRIA DE JESUS Os ditos e gestos de Jesus após serem, durante sua vida, objeto de ciência experimental, tornaram-se de365 pois de sua morte objeto de ciência histórica, pois as pesquisas a seu respeito, têm o direito de se colocar nos mesmos termos que para qualquer personagem do passado. Há porém um problema: não conhecemos Jesus através de seus escritos, mas pelo movimento que ele suscitou. Nosso ponto de partida para conhecê-lo é a primeira comunidade cristã que o testemunhou, contudo o testemunho desta comunidade é de crentes, pois os evangelistas têm uma finalidade religiosa, e por isso atestam que Jesus é o Messias, o Senhor, o Filho de Deus, ou seja, com um intuito de culto e de adoração. Os evangelhos, não são crônicas, ou biografias sobre Jesus, mas documentos de fé. Só atingimos por eles, o Jesus professado como Senhor. Por isso, devemos fazer um exame histórico-crítico no contexto da intenção de fé dos evangelhos para podermos conhecer o Jesus terrestre. Sabemos que os escritos dos Evangelhos serviram de catequese para o culto e para a missão, e por isso, foram marcadas pela atualização e pela interpretação da Igreja primitiva. Os evangelistas não se limitaram a reproduzir a tradição anterior, mas a repensaram e a rescreveram segundo as perspectivas teológicas e literárias próprias. Podemos estar certos de que as interpretações dos apóstolos, da Igreja ou dos evangelistas não deformaram a imagem de Jesus? Será possível descobrir a interpretação definitiva, os gestos autênticos acontecidos, e ouvir a mensagem de Jesus com frescor? Será possível chegar a "ipissima verba Jesu", ou ao conteúdo essencial do seu ensinamento como um bloco granítico que alimentou as interpretações dos evangelistas? Podemos estabelecer critérios rigorosos que nos dêem a certeza de conhecer o rabi itinerante que agitou a Palestina e transformou a história da humanidade? Qual é o 366 laço entre história e Kérigma, entre texto e acontecimento? Se o cristianismo não puder fundamentar a interpretação que a fé lhe deu, naufragará na primeira de suas pretensões, visto que a fé cristã implica na relação de continuidade entre o fenômeno Jesus e a interpretação da Igreja Primitiva, pois foi na vida terrestre que Deus se manifestou. A teologia deve portanto estabelecer pelos evangelhos a justificativa da interpretação cristã do fenômeno Jesus em sua condição terrestre. Diante desta situação e interrogação, a crítica procurou dar algumas respostas e dentre as quais afirma que a crítica da exegese até século XVIII, onde até então se tinha a autenticidade dos Evangelhos porque autênticos eram os autores, pois estes como testemunhas oculares não suscitavam de forma alguma problemas de autenticidade. Mas com os ceticismo histórico inaugurado com Reimarus, e radicalizado por Bultmann, a crítica reconheceu a cronologia entre Jesus e a pregação apostólica, mas declarou a ruptura essencial entre Jesus de Nazaré e o Kérigma. Nesta perspectiva a fé é indiferente aos resultados da história. Diante disso houve uma reação com os discípulos de Bultmann (Käsemann, Bornkmann), mais moderados e da "Prova Hermenêutica", sobretudo com Fuchs e Ebeling, que consideram exagero de Bultmann. Já Pannerberg e Moltann afirmaram o primado da história. Por fim, a exegese católica contemporânea é convencida de que através do Kérigma chega-se ao Jesus de Nazaré. Para ela o glorificado de hoje é o crucificado de ontem. Separar Jesus do Kérigma é cair no grosticismo. Portanto, o Senhor que a Igreja adora é o Jesus de Nazaré, o Filho do Carpinteiro. Tudo isso não é uma idéia, um enigma, ou uma encenação cultural, mas história real. Afirma também que Jesus e o texto atual há várias mediações que enriqueceram 367 nossa compreensão sobre Jesus e que o problema do acesso a Jesus pelos evangelhos é um problema de hermenêutica. 63. A CONTRIBUIÇÃO DA REDAKTIONSGESCHICHTE A Formgeschichte reduziu ao mínimo os hagiógrafos, os quais são tratados como compiladores e colecionadores dos elementos da tradição. Ela dá importância à iniciativa e liberdade dos evangelistas, mas em que medida esta liberdade é compatível com a fidelidade à tradição anterior? Veremos isso com o motivo externo e interno do Redaktionsgeschichte. A expressão redaktionsgeschichte é tirada da obra de W. Marsen sobre o evangelho de Marcos. É uma disciplina que procura descobrir a forma e o conteúdo dos materiais utilizados pelo evangelista para discernir a natureza e a extensão de seu trabalho na organização do material pré- existente. Assim como também nos retoques redocionais que lhe são próprio, é como se falasse de uma “Compositiongeschichte”. A Redaktionsgeschichte é do começo do século passado quando a escola Liberal ensinava que se podia conhecer Jesus tal qual ele é, com Marcos que é fonte para Lucas e Mateus, os quais por sua vez fizeram uma elaboração teológica enquanto Marcos era puro. Wrede contestou esta posição estabelecendo que também Marcos tem composição teológica. A Redaktionsgeschichte é o segundo tempo de um processo iniciado pela Formgeschichte, a qual procurou a história da tradição evangélica e não a redação. A Redaktionsgeschichte teve desenvolvimento depois de 1945 numa obra de Günter Bornkamm onde analisa a passagem de a tempestade aplacada de Mateus 8, 23-27 e de Marcos 4,35-41. Nesta Mateus interpretou 368 o acontecimento no episódio do chamamento dos apóstolos à vida apostólica e da fé na palavra de Jesus, já para Marcos o milagre precedeu as admoestações de Jesus dirigidas aos apóstolos. Depois em 1954 Conzelmann estudou Lucas e sua linha teológica. Em seguida em 1956 Willi Marxsen faz uma comparação entre Formgeschichte e Redaktionsgeschichte, e consideram os evangelistas como autores e não como compiladores, a Redaktionsgeschichte interessa-se pelos grandes conjuntos e obriga a distinguir um tríplice sitz im leben: Jesus, a Igreja primitiva e o evangelista. O fruto deste estado M Marxsen demonstrou que o início de Marcos é uma composição pessoal do evangelista. Marcos interpreta a história a partir de João Batista. Através da Redaktionsgeschichte constata-se que os evangelistas fizeram uma escolha nos materiais da tradição, um trabalho de síntese e adaptaram seus evangelhos às condições das Igrejas locais. Neste material encontrado os evangelistas escolheram, deixando de lado certos relatos ou palavras, para poder exprimir seu ponto de vista levando em conta as situações diversas de seus leitores. Grande parte das modificações de Lucas e Mateus em relação a Marcos são de ordem estilista; às vezes é o acréscimo de uma palavra como esclarecimento, outra vez é uma subtração, às vezes é adaptação de uma metáfora como no exemplo da casa construída na rocha (Mt 7,24-27), onde Mateus vê uma casa do tipo palestino, já Lucas (6,45-47) do tipo grego. Há também a transposição de perícopes, Lucas 3,1-20 coloca dois fatos da vida de João Batista e Marcos (6,17-29) coloca-os separados, isto é, a sua pregação e sua prisão. Há também transposição no seio da mesma perícope, como por exemplo a tentação de Jesus no deserto, ou a adição de um logion errático conforme Lucas 18,24 e Mateus 369 23,12. Adição de um relato proveniente de outra tradição, assim como Mateus 27,15-26, no relato de Jesus diante de Pilatos acrescenta um currículo, sobre o sonho da mulher de Pilatos. Há abreviação de documento fonte, ligação de pericopes isoladas; enquanto Marcos se contenta com justificação, Mateus e Lucas têm cuidado de ligá-los com palavras. As indicações geográficas às vezes têm caráter biográfico, outras vezes teológicos, como por exemplo Mateus coloca as bem-aventuranças na montanha e Jesus como o novo Moisés. Há referências ao AT com interpretação teológica da tradição, como por exemplo Marcos que vê na multiplicação dos pães o Jesus Messias e pastor que nutre. (Mc 6,34) Em suma, a Redaktionsgeschichte contribuiu para personalizar o autor, a fisionomia de cada evangelista como escritor e teólogo. O evangelista encontra-se sob a tensão da fidelidade à tradição e da sua liberdade criadora, e a Redaktionsgeschichte permitiu medir o grau de liberdade e de fidelidade dos evangelistas diante das fontes. 64. OUTROS CRITÉRIOS DE AUTENTICIDADE HISTÓRICA DOS EVANGELHOS Não basta dizer que houve desde o início a transmissão ativa e fiel das palavras e ações de Jesus, e que houve durante o percurso de formação da tradição, a preocupação de transmissão fiel dos ditos e gestos de Jesus tanto pela Igreja como pelos evangelistas. É preciso que esta fidelidade seja verificável, e para isso deve-se fazer uma crítica histórica, servindo-se de alguns critérios. 370 1. O critério de historicidade é um empreendimento que iniciou em 1954 com Käsemann e continuou com outros. A partir daí os teólogos elaboraram alguns destes critérios tais como: 2. O critério da múltipla atestação, com o qual pode-se considerar autêntico um dado evangélico solidamente atestado em todas as fontes ou na maioria dos evangelhos (Mc, Quelle) e nos outros escritos do Novo Testamento e terá mais peso o critério se o fato encontra-se em diferentes formas literárias, como por exemplo o tema da misericórdia de Jesus, porque testes “unus , testes nullus”. 3. O critério de descontinuidade com o qual pode-se considerar autêntico um dado do evangelho irredutível quanto às concepções do judaísmo, seja às concepções da Igreja primitiva. Os evangelhos estão em descontinuidade com a literatura judaica antiga como também com a literatura cristã ulterior, eles são testemunhas e não biografias, seu conteúdo é a pessoa de Cristo, um ser absolutamente único. 4. Estão em descontinuidade quanto a forma e conteúdo, como por exemplo a palavra Abá usada por Jesus, assim como sua atitude perante o sábado, as purificações legais, a concepção de reino diferente daquela judaica. 5. O critério de continuidade, com o qual pode-se considerar autentico a conformidade dos relatos evangélicos com o meio palestino e judeu da época de Jesus como conhecemos na arqueologia, na literatura e na história. As descrições do meio humano (trabalho, habitação, profissões) do meio linguístico e cultural (esquema de 371 pensamentos, sobretudo aramaico) do meio social, econômico, político, jurídico, religioso (rivalidade entre fariseus e saduceus, preocupação quanto à pureza e impureza, lei do sábado, demônios, anjos, fim dos tempos). 6. Critério de explicação necessária, com o qual podese considerar autentico quando há um critério que explica um conjunto de dados de maneira coerente, assim como Jesus suas atitudes diante das prescrições legais, das autoridades, das escrituras, sua linguagem, o prestigio que gozava do povo e dos discípulos, O que se explica se admitirmos em Jesus uma personalidade única e transcendente e não um mito. Pelos seus milagres temos razões suficientes para o perfil de Jesus, tais como, a fé dos apóstolos em sua messianidade, o ódio dos sumo sacerdotes e dos fariseus... 65. MÉTODOS DE ESTUDO PARA CHEGAR A CONHECER JESUS Como chegamos a conhecer Jesus Cristo? A resposta mais evidente é através do NT, especialmente os evangelhos. Contudo embora é uma resposta evidente deve-se levar em conta do problema hermenêutico, pois os documentos (evangelhos) têm cerca de 2 mil anos e foram escritos com uma mentalidade pré-científica, mística e acrítica. O método histórico –crítico leva-nos a ouvir a mensagem dos evangelhos e distanciar-nos criticamente do presente, e questiona-nos a partir do analisado já que o Evangelhos foram resultado de reflexão, pregação e catequese que a comunidade dos discípulos elaborou sobre Jesus; eles são a cristalização dogmática da Igreja primitiva. Os Evangelhos contém pouco sobre o Jesus histórico e muito da reação de fé das comunida372 des primitivas. Por isso, a exegese crítica desenvolveu vários métodos no estudo dos textos evangélicos, dentre os quais temos: 1. Em chave de Hermenêutica Histórica- crítica a) O método da história das formas (Formgeschichte) – este método estuda o meio vital em que as perícopes mudaram, se formam na catequese, no culto ou na pregação aos pagãos. Busca ver se se trata de dito Jesuânico, ou seja, próximo de Jesus ou se foi interpretação da comunidade ou elaboração dela e depois colocado na boca de Jesus. b) O método da história das tradições (Traditionsgeschichte) – este método prolonga e aprofunda o precedente, estuda as tradições dos atuais textos e constata a atividade criadora seja em teologia que no culto da comunidade primitiva. Os evangelhos não são só livros sobre Jesus, mas também livros que retratam as tradições e o desenvolvimento dogmático da Igreja primitiva. Por exemplo Lc 16,1-9 tem uma redação que coloca tudo na boca de Cristo, porém são tradições acumuladas, trabalho teológico e interpretativo da comunidade primitiva. c) O método da história das redações (Redaktionsgeschichte) – este método vê nos evangelistas os redatores que utilizaram do material da tradição com perspectivas teológicas próprias e que fizeram a seleção dos ditos e das tradições. Os evangelistas eram teólogos com suas interpretações pessoais. Assim os Evangelhos são “martyria”, ou seja, testemunho de fé sobre o significado Jesus. Há um trabalho redacional de cada evangelista com suas perspectivas teológicas. Desta forma, 373 Mateus dramatiza uma determinada cena, Lucas enfoca os pobres, as mulheres, os pagãos... Com isso a comunidade primitiva usou de muita liberdade junto às palavras de Jesus, interpretando-as, modificando-as, criando novas perícopes com o intuito de localizar Jesus e sua mensagem na vida. 2. Em chave de Hermenêutica Existencial – a interpretação histórico-crítica reflete sobre o que o NT pensa sobre Jesus e não se pergunta sobre a realidade que está atrás de cada interpretação. Compreender exige sempre interpretar, daí que compreender tem necessidade de uma pré-compreensão ao objeto derivado do nosso meio, da educação e do ambiente em que vivemos. a) O círculo hermenêutico e seu sentido – para compreender realmente quem é Jesus precisa abordá-lo como quem sente atingido e agarrado por ele, e isto significa uma atitude de fé. Os evangelhos visam anunciar Cristo e levar a sua causa à frente, e foi dentro da comunidade primitiva que se criou a atmosfera de fé, se escreveram os evangelhos e se estabeleceram as coordenadas comuns pelas quais nos situamos diante de Cristo. b) A hermenêutica da existência política – dentro da sociedade podem entrar mecanismos ideológicos que usam e abusam de Cristo para legitimar suas pretensões. Muitas vezes a Igreja foi equiparada com Cristo e teologia feita por homens, como mensagem de Cristo. É preciso distinguir a voz dos homens e a voz de Deus. 3. Em chave de Hermenêutica Histórico salvífica 374 Este método vê a história da salvação como a história da auto-comunicação de Deus e como a história das respostas humanas à proposta de Deus. Em Cristo a história da salvação deu um pulo qualitativo, pela primeira vez a proposta divina e resposta humana chegaram a uma perpétua adequação; nele deu-se absolutamente a salvação, ele é o “marketing-point” da hermenêutica religiosa, da historia do mundo e dos homens. Como conclusão podemos dizer que não é mais possível sermos cientificamente ingênuos, diante de Cristo como disse Kierkegaard: “Cala-se recolhe-se, pois é absoluto”, contudo devemos falar sobre e a partir de Jesus Cristo não para o definirmos, mas para nos definirmos; não o mistério, mas a nossa posição sobre o mistério. “Em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e ciência”(Cl 2,3) e São João da Cruz diz: “Há muito que aprofundar em Cristo, sendo ele qual abundante mina com muitas cavidades cheias de ricas veias, e por mais que se cave, nunca se chega ao termo, nem se acaba de esgotar, ao contrário, se vai achando em cada cavidade novas veias de novas riquezas, aqui e ali”. 66. JESUS CRISTO NA HISTÓRIA Jesus surgiu em pleno quadro da história, nasceu no tempo de Augusto, morreu no de Tibério. Viveu na mesma época histórica que viveu Filon, o judeu, que Tito Lívio, que Sêneca, que Virgilio. Sua vida pública ele a desenvolveu entre estas figuras históricas. Sendo que fez sua primeira aparição no ano 15o do Império de Tibério Cesar. Portanto, ele não é uma figura lendária ou vaga que vive em lugares ocultos. Quais as fontes para estudar esse personagem histórico? Seria lógico conceder valor histórico aos evangelhos, como documento histórico, contudo não seria cientifico, por isso nos séculos passados houve uma 375 febril atividade de estudos críticos sobre os evangelhos. Estes foram analisados e esmiuçados nestes últimos tempos com todo rigor e escrúpulos próprios da ciência, através de todos métodos usados na elucidação de autenticidade histórica de um documento. Estes estudos foram precedidos pelos racionalistas, os quais diante dos resultados concluíram: “Trabalhamos 50 anos febrilmente para extrair pedras de canataria que serviam de pedestal à Igreja Católica”. O trabalho realizado pelos estudiosos da pessoa de Jesus nestes últimos tempos, foi embasado em vários métodos dentre os quais o Método das Citações, o qual procura descobrir as citações dos evangelhos em escritos anteriores aos anos 150 ou 100 da nossa era como citações ipsis-litteris dos evangelistas. No Codice Murotoriano é dado por certeza que no ano 142 com Pio I, existia o catálogo dos livros canônicos e dentre os quais estavam os evangelhos. Também o Codice Sinaitico é uma copia em grego dos evangelhos, usados na Igreja no 1o século. Desta forma, a crítica científica pode contar com os evangelhos copiados em citações até antes do ano 100 de nossa era. Outro é o Método das Traduções, as quais são traduções vetus itálica, ou seja versão latina dos evangelhos, e na Peschito, ou seja a versão Síria dos Evangelhos. Estas existem antes do ano 150 para a primeira versão e para a segunda, no fim do século I. Outro ainda e o Método Polêmico baseado no fato de que no século II redigiam-se Libelos contra os hereges, onde se recorria aos evangelhos, argumentando que os próprios hereges nesta época conheciam os evangelhos. Portanto, a ciência concluiu com a multiplicidade de argumentos que os evangelhos são autêntico escritos do primeiro século do cristianismo. E estudiosos não 376 deixaram de professar essa verdade, como Renan que confessou: “em suma, admito como autênticos os 4 evangelhos”.Ou como Harnack que da mesma forma afirma que: “O caráter absolutamente único dos evangelhos é hoje em dia, universalmente reconhecido pela crítica”. Hort depois de 25 anos de estudos concluiu que as variantes que atingem a substância dos textos evangélicos são tão poucas que podem ser avaliadas em menos de milésima parte do texto. 67. JESUS CRISTO DIANTE DA CIÊNCIA A ciência racionatista com sua refinada supercrítica diz ser impossível a existência de um homem Deus. De fato o Jesus de Renam é a mais alta regra de vida, a mais destacada e a mais virtuosa e “Criou o ensinamento prático mais belo que a humanidade recebeu”. Para Renan Jesus concebeu a verdadeira cidade de Deus, a verdadeira palingenésia, o sermão da montanha, a apoteóse do fraco, o amor do povo, o gosto do pobre... cada um de nós lhe é devedor do que tiver de melhor. Da mesma forma, Loigy tem para com Jesus uma admiração espetacular quanto a sua humanidade afirma: “Sente-se por tudo em seus discursos, em seus atos, em suas dores, não sei que de divino, que eleva Jesus Cristo, não somente por sobre a humanidade ordinária, mas também por sobre o mais seleto da humanidade”. 68. O CRISTO DE HOJE NA HISTÓRIA Jesus Cristo vive hoje não de uma saudade, não apenas de sua memória e da mensagem libertadora, 377 mas ele está presente numa forma de vida que superou todos as limitações com sua ressurreição, e por ela ele continua presente neste mundo: “Eu estarei convosco todos os dias...” (Mt 28,20). Com a ressurreição Jesus abriu uma meta para o homem, pois iniciou-se uma nova criação (II Cor 4,6), o ponto Ômega foi atingido (Ap 1,17; 21,6). Com ele não podemos mais analisar o mundo somente a partir da criação in illo temporé, mas devemos compreende-lo a partir da escatologia, do futuro presente. Com a encarnação Jesus foi inserido na nossa história e recebeu um pedaço vital da matéria e por isso relaciona-se com o mundo. Ele viveu de forma sárquica na Palestina e dentro do tempo e da cultura daquela época, e com a glorificação de sua situação na ressurreição ele não abandonou o mundo e o seu corpo, mas o assumiu de forma mais plena e profunda, por isso ele está presente agora na globalidade do tempo. O “homo absconditus” em Jesus foi transformado em “homo revelatus”, seu corpo foi transformado em pneumático espiritual (I Cor. 15,44), ou seja, o Cristo glorificado pelo Espírito quer dizer segundo Paulo que ele tem uma nova existência, que superou todas as limitações do espaço e tempo terrestre e que vive na esfera divina da plenitude. A ressurreição manifestou patente o que estava latente, ele que estava no mundo desde o início (Gn 1,2) e “sem ele nada se fez de tudo o que foi criado” (Jo 1,3). Nele está colocada toda a totalidade do Cosmos (Ef 1,10). Neste sentido o ágrafo (palavra de Cristo não contida nos Evangelhos) expresso no Evangelho de São Tomé, exprime a fé da comunidade primitiva ao dizer: “Eu sou a luz que está sobre todas as coisas. Eu sou o universo. O universo saiu de mim e o universo retornou a mim. Rache um pedaço de lenha e eu estou lá dentro, levante um pedra e eu estou debaixo 378 dela”. Por isso Santo Agostinho afirma: “A história está grávida de Cristo”. Mas, se reconhecemos os sinais de Cristo na história, podemos reconhecê-lo também no Cosmos”? Perguntas que fizeram Claudel, Chardin e outros. Teilhard de Chardin definiu que existe o infinitamente grande dos espaços siderais e frente a isso o homem parece uma “Quakitá négligenble”, perdido como um átomo errante pelos infinitos espaços vazios... mas existe também o infinitamente complexo da consciência humana que sabe que existe e se dá conta de sua pequenez e que exatamente isso forma a sua grandeza, que a faz maior e mais nobre que todas as grandezas físicas e matemáticas imagináveis. Pode-se pensar e especialmente pode-se amar, pois um único ato de amor como diz Pascal, vale mais que o universo inteiro. Por isso, é no homem que passa o sentido da totalidade. Será que não existem outros seres racionais dos Cosmos? A nossa fé não proíbe, pelo contrário, devido a imensidão do universo e a impossibilidade do homem ser o sacerdote cósmico pelo qual é dada a glória de Deus, pode existir seres espirituais que melhores que o homem desempenhem esta função sacerdotal. Sendo que o Lógos pertence à ordem da criação querida por Deus para ser o receptáculo de sua entrada nele, então podemos dizer: Assim como o Lógos eterno apareceu em nossa carne, assumindo as coordenadas evolutivas de nosso sistema galáxio, nada impede que o Lógos tenha assumido as condições espirituais e evolutivas de outros seres e de outros planetas. O modo redentor como foi realizado aqui na terra seria apenas uma forma concreta dentre outras pelas quais o Verbo de Deus se relaciona com a criação. Nada repugna também que outras pessoas divinas se tenham encarnado, o mistério Trino de Deus é tão profundo e inesgotável que ja379 mais pode ser exaurido à concretização do nosso mundo. Portanto Jesus como homem interessa só a nós, enquanto segunda Pessoa da Trindade, à totalidade da realidade. O homem é o maior sacramento de Cristo; ele não é só imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), mas também de Cristo (Rm 8,29; Cl 3,10). Por isso, assim o homem é a maior aparição não só de Deus, mas também de Cristo ressuscitado. Quem rejeita o irmão repele o próprio Deus e o próprio Cristo (Mt 25,42-43). Jesus está presente em cada homem, independentemente de suas crenças, ou ideologias, sempre que este busca o amor, a justiça... neste sentido Cristo é presente por cristãos anônimos e de forma mais profunda ele está presente naqueles que o seguem e o imitam pela fé e o amor, ou seja, nos cristãos imitá-lo não é copiá-lo, mas ter os seus mesmos sentimentos (Fl 2,5). O Cristo que enche todo o Cosmos está presente em cada homem, atinge o seu maior grau de concreção histórica no católico em posse do Espírito Santo. A igreja é o corpo de Cristo, nela ele batiza, consagra, perdoa, ensina, governa; ele esta presente na eucaristia, nos demais sacramentos e na liturgia. 69. COMO CHAMAR CRISTO HOJE? O NT conhece cerca de 70 títulos diferentes dados a Jesus Cristo pelos cristãos judeus palestinenses, os judeus na diáspora e os gregos. Títulos da esfera cúltica da liturgia, outros seculares como das cartas aos Efésios e Colossenses onde Cristo é tido como cabeça do Cosmos e da Igreja. E nós, quais títulos damos a ele? Nossa fé não se resume nos arcaísmos bíblicos, mas no encontro pessoal com ele, no deixar se questionar 380 por ele e pela sua mensagem, no ouvir a sua voz no coração. Para nós ele é o ponto Ômega da evolução, o “homo revelatus” e o presente. Se olharmos a evolução constatamos que dá cosmogênese passou-se à biogênese e esta emergiu na antropogênese e por fim a cristogênese. É uma realidade que quanto mais avança mais se complica, e quanto mais se complica mais se unifica e quanto mais se unifica mais se conscientiza. Assim o espírito não é um epifenômeno da matérias, mas a sua máxima realização e concentração em si mesma. Neste sentido o homem não é um erro de cálculo, um acaso, mas o ponto onde o processo global toma consciência de si mesmo e passa a se autopilotar. Cristo é o vértice, o ponto ômega de todo processo; ele é o homem latente dentro do processo ascensional que se tornou patente, é o “homo revelatus”. Nele deu-se um “novum” qualitativo dentro deste princípio esperança do homem. Ele é o absoluto dentro da história, é um reformador, ou seja, aquele que quis melhorar o seu mundo social e religioso, sem querer criar coisas absolutamente novas; por isso ele nasceu dentro do judaísmo e adaptou-se aos ritos e costumes de eu povo e procurou melhorar o sistema de valores religiosos radicalizando o amor. Ele não só foi um reformador, mas foi além, ele disse coisas novas (Mc 1,27) e neste sentido foi um revolucionário. Jesus Cristo é arquétipo da mais perfeita individualização, o qual se realiza na capacidade do homem de cada vez mais se acercar do símbolo ou arquétipo de Deus, o “selbst- self” que se constitui no centro das energias psíquicas do homem. Este selbst é responsável pela harmonia, integração e assimilação do eu consciente com seus dinamismos com o eu inconsciente formado pela massa hereditária das experiências de nossos ancestrais vegetais, animais, humanos, povo, 381 nação, família, etc. Pois bem, Jesus se apresenta como a atualização mais perfeita do “selbst” de Deus, a etapa mais consumada do processo de individualização. Jesus Cristo é nosso irmão maior visto que com sua encarnação assumiu a totalidade de nossa condição humana, sendo solidário conosco, não temendo a matéria e a ambigüidade da condição humana, nesta cotidianidade assumida na obscuridade, viveu de forma tão humana que anunciou a humanidade de Deus. Jesus é o Deus dos homens e Deus conosco, pois nele descobrimos a face desconhecida do Deus do AT, com isso conhecemos um Deus que faz-se Outro, que veio ao encontro da fraqueza humana na fragilidade e assim ele não está longe do homem. O caminho para Deus passa pelo homem e o caminho para o homem passa por Deus. O AT descobriu Deus na história, o cristianismo viu Deus no homem e em Jesus o homem não é um modo onde Deus se manifesta, mas um modo de ser do próprio Deus. Por isso, a vocação do homem é a divinização. Face a isso podemos afirmar com São Clemente de Alexandria (+215): “Se tiveres encontrado realmente teu irmão, terás encontrado também teu Deus”. Portanto, Cristo é a permanente, a incômoda memória daquilo que deveríamos ser e não somos; a consciência crítica da humanidade e que conclama a realizar aquela reconciliação e atingir aquele grau de humanidade que manifesta a harmonia insondável de Deus tudo em todos (I Cor 15,28). Enquanto isso não acontece Cristo continua, como disse Pascal, a ser injuriado, a agonizar e a ser morto por cada um de nós. 70. JESUS CRISTO E O CRISTIANISMO Em Cristo se realizou as expectativas do coração humano. Todas as vezes que o homem se abre para 382 Deus no amor, na justiça, no perdão, etc., dá-se o cristianismo. Por isso ele pode unificar-se fora dos limites cristãos, já antes de Cristo o cristianismo era anônimo e latente, não possuía um nome, mas com Cristo ele explicitou-se, assim como a América já era América antes de ser descoberta. A substância do cristianismo já existia nos primórdios, por isso o cristianismo não é uma religião ou ideologia, mas a vivência concreta da estrutura crística. São Justino (+167) disse: “Todos os que vivem conforme o Lógos são cristãos”, portanto o cristianismo se articula tanto no sacro como no profano, tanto no ontem como no hoje e no amanhã, assim é cristão quem tem a vivência cristã. Quanto mais o homem é orientado para o infinito mais ele se harmoniza, ele é mais perfeito quanto mais identifica-se com o infinito, ou seja, o homem para tornar-se verdadeiramente ele mesmo, deve poder realizar as possibilidades inscritas em sua natureza, especialmente essa de poder ser um com Deus, e quando ele chega a isso atinge o máximo de sua hominização e quando isso se verifica, Deus se humaniza e o homem se diviniza: “A completa hominização do homem supõe a hominização de Deus” (Ratzinger). A completa hominização do homem exige a sua divinização. A Antropogênese reside na cristogênese, ou seja, na inefável unidade de Deus com o homem e do homem num só ser, Jesus Cristo. O que realizou-se de maneira absoluta em Jesus, deve realizar em cada homem; onde mora a estrutura crística processa-se a hominização e onde ela fenece pelo egoísmo do homem, obstaculiza a hominização do homem. Esta abertura para o outro é imprescindível, pois dela depende a realização ou a danação do homem (Mt 25,31-46). Deus está inserido onde vigora o amor e todas as suas dimensões. A estrutura crística consiste 383 em dar ao outro o amor, como na Trindade processa-se o Amor (Pericoresis). A estrutura crística consiste numa nossa resposta com responsabilidade à proposta divina. Toda vez que somos chamados a sair de nós mesmos e aceitar o outro, Deus fazendo uma proposta que exige uma resposta de fidelidade e aí se dá a concretização crística. Assim a história humana pode ser de sucesso ou de insucesso da estrutura crística, ou seja, pode ser uma resposta positiva ou negativa, de amor ou egoísmo, história de salvação ou de perdição. Neste sentido, Jesus de Nazaré é o melhor dom dos homens a Deus e ao mesmo tempo o mais excelso dom de Deus aos homens, ele é o sacramento entre Deus e a humanidade. O cristianismo consiste na resposta com responsabilidade à proposta divina, contudo todas as religiões são caminhos ordinários pelos quais o homem se dirige para Deus e O experimenta, embora como resposta à proposta divina podem conter erros e interpretar de modo errado a proposta de Deus; por isso nem sempre podemos legitimar tudo nelas. A igreja católica pela sua estreita ligação com Cristo que prega e vive nos sacramentos e mistérios, deve ser considerada a mais excelente articulação institucional do cristianismo, nela se encontra a totalidade dos meios de salvação, embora sendo pecadora. Ela não esgota a estrutura crística, nem se identifica simplesmente com o cristianismo. Se a estrutura crística é um dado da história, é uma antropologia que deve ser realizada em cada homem para poder salvar, então de onde ela se origina? Qual é o motivo da encarnação? A redenção dos pecados ou a glorificação do Cosmos? Para os TomistasDominicanos foi por causa do pecado do homem, já os Escotistas Franciscanos, afirmam que Cristo teria se encarnado mesmo sem o pecado porque tudo foi feito 384 por Ele e para Ele; sem Cristo faltaria algo à criação e o homem não chegaria à hominização. A humanidade estava à espera do Salvador, esta espera deve ser entendida cristologicamente e não cronologicamente. “Que dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,29) É o Cristo, Filho de Deus Unigênito e eterno de Deus enviado como homem para nos libertar dos pecados; nele se cumpriram todas as profecias... Mas eis que no século XVIII a razão crítica começou questionar esta resposta religiosa. Percebeu-se que os Evangelhos não eram biografias históricas sobre Jesus, mas fruto da pregação e meditação dos primeiros cristãos. Estes são interpretações teológicas de fatos acontecidos e não descrição objetiva do que foi Jesus de Nazaré. Isto criou uma revolução com múltiplas reações. Até neste ponto afirmava-se tudo como histórico, depois passou-se a negar tudo,: “Cristo nunca existiu” (Volney) em 1791, “é um mito” (Orews – 1909) criado pelo inconsciente humano; fenômeno obscurável em todas as religiões. Na verdade tais posições foram ressachadas a partir de Bultmann (1926). Os evangelhos são interpretação de algo que aconteceu, além do mais tem-se testemunhos extra-bíblicos romanos, tais com Plínio, Suetônio, Tácito, Nero e judeus como: Flávio Josefo e a literatura talmúdica. Questionando o Cristo dogmático da fé, tentou-se ruir a verdadeira imagem de Jesus de Nazaré, pois a intenção dos nacionalistas era chegar no Jesus não interpretado como Filho de Deus e não veiculado ao culto e à dogmática. Isto começou com Reimarus (+1768) depois Wrede (1904), passado por Renan, Strauss, os quais tiveram a pretensão de ruir a imagem realmente histórica de Jesus. É impossível escrever uma biografia de Jesus sem lacunas, pois os Evangelhos oferecem ao historiador 385 um feixe de tradições, às vezes isoladas entre si e apenas exteriormente unidas umas com as outras, pois são testemunhos da fé, do povo. A vida de Jesus é um pedaço do próprio escritor, basta dizer que Marcos que escreveu entre 65-69 vê Jesus antes de tudo como o Messias escondido e o grande libertador; é o vencedor cósmico sobre a morte e o demônio. Mateus que prega para judeus-cristãos e os gregos na Siria, pelos anos 85-90, vê Jesus o Messias-Cristo profetizado, o novo Moisés que melhorou a lei. Lucas que escreveu para os gentios e gregos por volta dos anos 85-90 apresenta Jesus como libertador dos pobres, dos doentes, dos pecadores e dos marginalizados; é o homem que revelou o caráter filial de todos os homens. João que escreve entre os anos 90-100 vê Jesus como o Filho Eterno do Pai, o Lógos que habitou entre os homens para ser caminho, verdade, vida, pão e água viva. Seu Jesus é plenamente o Cristo da fé. Paulo que não conheceu o Jesus histórico anuncia o Cristo ressuscitado, como nova humanidade, o novo céu e a nova terra já presente dentro deste mundo, como o único mediador. O autor de Colossenses e Éfesos coloca o Cristo como cabeça de todas as coisas, o polo centralizador onde tudo tem a sua existência e consistência (Cl 1,16-20). Diante do fracasso da exegese em reconstruir o Jesus histórico, Bultmann vê que o único caminho é centrar-se no Cristo da fé. Para Bultmann tem que distinguir entre o Jesus libertador e o Jesus histórico, entre Jesus e Cristo, pois em lugar da pessoa histórica de Jesus, entrou a pregação apostólica (Kerigma). Por isso para Bultmann da vida de Jesus o Kerigma precisa somente saber que Jesus viveu e que morreu na cruz. Sendo assim, cristologia “não é uma doutrina sobre a natureza divina e humana de Cristo, mas anuncio, interpretação da fé que me convida a crer...” (Bult386 mann). Cristologia “é explanação da compreensão cristã de ser” e tudo o resto são “representações mitológicas e conceitos cúlticos do sincretismo helenístico” (Bultmann). Portanto, Bultmann busca somente o Cristo da fé, e isto deixa problemas agudos para a fé. Donde emergiu a fé? Em que se baseia o Kerigma? Pode-se sustentar uma ruptura entre o Jesus histórico e o Cristo da fé? A morte redentora de Jesus é mera interpretação da comunidade primitiva? Como se vê cristologia de Bultmann esvazia a encarnação. Diante de tudo isso muitos dos discípulos de Bultmann não o acompanharam e assumindo que houve uma continuidade entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, a qual reside no fato da comunidade primitiva ter explicitado o que estava implícito nas palavras, exigências, atitudes e comportamentos de Jesus. Desta forma, a cristologia consiste em explicitar aquilo que emergiu em Jesus, onde a “presencialização da realidade de Deus funda a realidade do próprio Jesus, como disse Bornkamm. Assim, o Jesus histórico é o Jesus da fé, não só porque os evangelhos são testemunhos da fé, mas também porque Jesus mesmo foi alguém de fé e um testemunho de fé. 71. ALGUMAS POSIÇÕES CRISTOLÓGICAS DA ATUALIDADE 1. Interpretação filosófico-transcendental de Jesus – Partilhada sobretudo por católicos. Estes partem do problema da desmitização e afirmam que a cristologia supõe uma antropologia transcendental, pois se Jesus é homem como nós, a natureza humana como tal comporta uma transcendência e relacionalidade com o absoluto; o homem por sua própria natureza está dimensionando para o absoluto, ele anseia unir387 se a ele como sentido derradeiro de sua hominização plena. Assim, o homem encontra em si o movimento para o transcendente. O cristianismo viu em Jesus a realização deste anseio da natureza humana. 2. Interpretação cósmico-evolucionista de Jesus Cristo - Aqui não só a natureza está aberta para o transcendente, mas também todo o processo de evolução ascendente. Jesus representa o ponto Ômega de convergência de todas as linhas ascendentes de evolução. Nele deu-se a erupção de tudo em todas as coisas. Com a encarnação toda a matéria em ascensão foi tocada por Jesus, porque ele é o resultado do processo de milhões e milhões de anos de evolução. 3. Interpretação de Jesus com o auxílio de categorias da psicologia das profundezas - Serve-se sobretudo de Jung para compreender algumas das facetas do fenômeno Jesus, não se trata de entender de forma psicologizante a vida consciente de Jesus. 4. Interpretação secular e crítico-social de Jesus – Vê que o Reino de Deus não pode ser concebido somente na dimensão espiritual, como o perdão dos pecados e a reconciliação com Deus, mas numa transformação das pessoas e do cosmos. Jesus foi contestador, lutador, libertador, ele não veio fundar uma religião, mas trazer um novo homem; por isso, Jesus não pode ser encarnado nos cânones religiosos. À Igreja cabe levar a causa libertadora de Cristo, não só no âmbito pessoal, chamando o homem para a conversão, mas também para a esfera pública. Isto implica numa visão contrária a uma Igreja de títulos honoríficos herdados das cortes romanas e bizantinas, onde Jesus não é apresentado como amigo de todos, mas como imperador, juiz, filósofo, pantocrator... 388 5. O significado da experiência de Cristo na juventude de hoje – Desde os anos 60 que o mundo percebe uma agitação na juventude, com contestações dos cânones da sociedade. A ciência e a tecnologia passou a ser vista aos olhos dos jovens como desumana, diabólica, unida ao poder etc. Com o movimento hippy os jovens buscaram a espontaneidade, a amizade, a paz, o amor. Buscou-se primeiro a libertação com a liberação sexual, o álcool, as drogas, depois pela meditação transcendental de Mahanishi e por fim descobriram Jesus Cristo como “super star”, aquele que antes viveu o amor a fraternidade e depois pregou. Trazem camisas estampadas com sua figura... Esta tendência faz refletir a Igreja e a sociedade, pois a sociedade secular, religiosa, a racionalista não resolveu com a riqueza os problemas fundamentais do homem. Mas porque estes jovens não se filiam à Igreja? Porque o seu Jesus não é o Jesus das pregações, dos dogmas... Para muitos a razão é porque a Igreja o fez um seu prisioneiro. 72. A REFORMA E A PÓS-REFORMA DIANTE DAS DECLARAÇÕES ECUMÊNICAS SOBRE O CREDO CRISTOLÓGICO As igrejas da reforma e pós-reforma não se satisfizeram com as declarações ecumênicas antigas sobre o credo cristológico. As disputas em torno das questões cristológicas tiveram o auge no século IV quando a Igreja teve que resistir Ário que negava a divindade de Jesus Cristo, o qual teve a sua posição condenada no Concílio de Nicéia (325). Da mesma forma, o Concílio de Constantinopla (381) condenou Apolinário, o qual não 389 dava valor suficiente à humanidade de Jesus Cristo. Ário negou que Jesus Cristo fosse consubstancial ao Pai, afirmando que o Filho originou-se da vontade, mas não da substância do Pai. Deus é Pai só quando criou o Filho. Ário baseava-se em Provérbio 8,22: “O Senhor me possuía no início de sua obra”; em Deuteronômio 6,4: “O Senhor é o único Senhor”; e em João 14,28: “O Pai é maior que eu”. O Pai é incriado e o Filho gerado pela vontade do Pai. Cristo, devido a sua relação privilegiada com o Pai, mereceu o título de Filho de Deus, sem que seja segundo a natureza divina. Diante destas posições de Ário, o Concílio de Nicéia (325) declarou: “Cremos em um único Senhor, Jesus Cristo, unigênito Filho de Deus, consubstancial ao Pai, luz da luz, gerado, não feito da mesma natureza do Pai”. Condenou a opinião de que houve um tempo em que o Filho não era e usou a palavra “homo ousios” (consubstancial), pois para Ário o Pai e o Filho não tinham a mesma substância (ousia). Com o Concílio de Nicéia o arianismo declinou-se, mas as controvérsias cristológicas continuaram com Apolinário de Laudicéia, o qual baseando-se em João 1,14: “O Verbo se fez carne”, indagava sobre a união hipostática e de como podia dois seres se unirem e formarem um só. Para isso Apolinário encontrou a solução afirmando que o Deus “Lógos”, em Cristo não se uniu a um homem genuíno e completo, pois assim devia ter assumido a pecabilidade da natureza humana. Para ele o Verbo assumiu apenas o corpo. O Verbo empenhouse para que a salvação não fosse comprometida, por isso a sua humanidade não podia ser igual a nossa. Diante desta posição, o Concílio de Constantinopla (381) proclamou a perfeição da humanidade de Cristo condenando Apolinário. Para Igreja o Lógos não mutilou a humanidade ao fazer-se homem, e Cristo foi 390 igual a nós em tudo, menos no pecado, com isso afirmou a União Hipostática. Passadas algumas décadas surge Nestório defendendo a uma hipostática como uma união moral, análoga à presença de Deus em nós, embora sendo superior em Cristo. Ele relutou contra o “Theotokos”, dizendo que Maria só podia ser chamada Mãe da natureza humana de Jesus e de modo algum da divina. A união hipostática para a Igreja representava uma realidade ontológica e não uma simples união moral. Ao mesmo tempo outro expoente chamado Eutiques passou a defender que com a união hipostática só havia uma única natureza (monofisismo), enquanto que para Nestório constituía as duas naturezas em duas pessoas distintas. A Igreja pronunciou-se contra a fusão das duas naturezas defendida por Eutiques e declarou Jesus Cristo: “Verdadeiramente Deus, verdadeiramente homem, segundo a divindade consubstancial ao Pai, segundo a humanidade, consubstancial a nós”. Definiu que ambas as naturezas estão unidas “sem mistura, sem modificação, sem divisão, sem separação”, conservando cada qual na união, a sua especificidade. 391 ÍNDICE 1. O que é Cristologia Métodos da Cristologia O problema hermenêutica As diversas Cristologias 2. Abordagens bíblicas e teológicas da Cristologia Abordagem histórico-crítica Abordagem existencial Abordagem cristológica pelos títulos 3. Perspectivas teológicas Abordagem crítico - dogmática Abordagem histórico - salvifica Abordagem antropológica Abordagem da Cristologia da libertação A Cristologia em perspectiva inter - religiosa 4. Por uma “Abordagem Integral” da Cristologia 5. A origem e o desenvolvimento da Cristologia Jesus na origem da Cristologia do Jesus pré-pascal ao cristo pascal O desenvolvimento da Cristologia no Novo Testamento 6. Os títulos Cristológicos Os títulos cristológicos no Novo Testamento Os títulos cristológicos referentes à obra futura de Cristo Os títulos cristológicos referentes à obra presente de Jesus Os títulos referentes a pré-existência de Jesus 7. O perfil Cristológico no Novo Testamento 8. Fundamentação bíblica da Cristologia no Novo Testamento 9. Fontes Bíblicas sobre Jesus 10. As fontes Judaicas sobre Jesus 392 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. O que dizem os outros documentos sobre Jesus As origens e o gênero literário dos Evangelhos Obstáculos à revelação do mistério de Jesus A compreensão de Jesus na Igreja Primitiva A linguagem no meio eclesial primitivo A Galiléia no tempo de Jesus O mundo social em que viveu Jesus O ambiente de Jesus e sua presença nele A educação familiar de Jesus Jerusalém no tempo de Jesus As profissões As construções O culto e a religião O comércio A nobreza leiga A situação da mulher Referências e algumas reflexões sobre Jesus Testemunhas sobre Jesus nos séculos II e III A Judéia antes e depois de Jesus Como o povo via Jesus O perfil de Jesus Jesus Cristo o libertador da condição humana Jesus da extraordinário bom senso, fantasia criadora e originalidade Jesus enviado do Pai na concretização do seu Reino Jesus, homem de oração 23. O Homem Jesus 24. Jesus concebido dentro de uma família 25. Os relatos da infância de Jesus 26. Jesus na origem da Cristologia: do Jesus prépascal ao Cristo pascal. 27. O desenvolvimento da Cristologia no Novo Testamento 28. O desenvolvimento histórico do dogma 393 O desenvolvimento histórico do dogma cristológico Os Concílios cristológicos Avaliação e perspectivas 29. Mais uma ênfase sobre as controvérsias cristológicas 30. A Pessoa de Cristo 31. O conhecimento humano de Jesus 32. A humanidade de Cristo 33. A psicologia humana de Jesus A unidade psicológica e auto consciência de Jesus 34. A impecabilidade de Cristo 35. A liberdade humana de Jesus 36. A Divindade de Cristo 37. A consciência messiânica de Cristo 38. As Profecias Cristológicas 39. A União Hipostática 40. Jesus sabia que era Deus? 41. Jesus possuía todas as perfeições 42. O mistério cristológico como unidade da Pessoa de Cristo 43. A natureza humana e não a pessoa humana de Cristo 44. O saber e a fé de Jesus 45. Os milagres de Jesus 46. Jesus perante a sua morte 47. O significado de sua morte 48. Os responsáveis pela morte de Jesus 49. Por que queriam matar Jesus? 50. A cruz e a crucifixão 51. A causa da morte de Jesus na cruz 52. Os sofrimentos da paixão e sua morte de cruz 53. Foram os Judeus ou os Romanos que mataram Jesus? 54. Como a fé concebeu a morte de Jesus? 55. A ressurreição de Jesus 394 56. A experiência “histórica” da ressurreição de Jesus 57. O significado da ressurreição de Jesus 58. As aparições de Jesus 59. O gênero literário na vida de Jesus 60. O debate histórico sobre Jesus O Jesus dos iluministas O Jesus da escola de Tubinga O Jesus da “escola liberal” O Jesus na história das religiões O Jesus “histórico” no século XX O Jesus para os judeus O Jesus para os cristãos O Jesus para os muçulmanos O Jesus para os ateus 61. Uma fase de racionalização na Cristologia 62. O acesso à história de Jesus 63. A contribuição da Redaktionsgeschichte 64. Outros critérios de autenticidade histórica dos Evangelhos 65. Métodos de estudos para se chegar a conhecer Cristo Em chave de hermenêutica histórico – crítica Em chave de hermenêutica existencial Em chave de hermenêutica histórico salvífica 66. Jesus Cristo na história 67. Jesus Cristo diante da ciência 68. O Cristo de hoje na história 69. Como chamar Cristo hoje? 70. Jesus Cristo e o Cristianismo 71. Algumas posições cristológicas da atualidade 72. A reforma e a pós-reforma diante das declarações ecumênicas sobre o Credo Cristológico. 395 LIVROS CONSULTADOS 01. Benoit Pierri - Paixão e Ressurreição do Senhor – Edições Paulinas 1995. 02. Bettencourt, Estevão Tavares – Escola Mater Eclesiae 03. Boff, Leonardo – Jesus Cristo Libertador – Editora Vozes, Petrópolis, 1972 04. Carpinter Humphrey - Jesus - Publicações Dom Quixote, 1982 05. Charlesworth James H – Jesus dentro do Judaísmo – Imago Editora Ltda - 1992 06. Cullman, Oscar – Cristologia do Novo Testamento – Editora Liber, 2001 07. Dianich, Severino – Il Messia Sconfitto – Edizione Piemme – 1997 08. Dood, Ch – O Fundador do Cristianismo – Edições Paulinas – 1976 09. Duquoc, Ch – Cristologia, Ensaio dogmático – Edições Loyola – 1990 10. Grasso, Domenico - O problema de Cristo – Edições Loyola – 1967 11. Fabris, Reginaldo – Jesus de Nazaré – História e interpetação – Edições Loyola – 1988 12. Laburu, José Antonio - Jesus Cristo é Deus? Edições Loyola - 1974 13. Latourelle, René – Jesus existiu? História e hermenêutica – Editora Santuário Aparecida - 1989 14. Meier, John P. - Um judeu marginal – Imago Editora Ltda- 1994 15. Messori, Vittorio - Patì Sotto Ponzio Pilato? – Società editrice internazionale – Torino - 1992 16. Miranda, José Porfirio – O Ser e o Messias – Edições Paulinas – 1982 17. Palacio, Carlos - Jesus Cristo História e Interpretação – Edições Loyola – 1979 396 18. Piróvano, Desidério – Porque crer em Jesus Cristo – O Recado Editora Ltda – 1985 19. Sander, Luis Marcos – Jesus, o Libertador – Editora Sinodal - 1986 20. Schlesinger, Hugo e Porto Humberto – Jesus era judeu -Edições Paulinas – 1979 21. Voillaume, René - Cristo Palavra de Vida Eterna – Edições Paulinas - 1979 397