histórias de vida - Ministério Público Militar

Transcrição

histórias de vida - Ministério Público Militar
HISTÓRIAS DE VIDA
organizador
Gunter Axt
MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
VOLUME I
Brasília, 2016
Coordenação da Comissão do Projeto Memória:
Péricles Aurélio Lima de Queiroz.
Comissão do Projeto Memória:
Péricles Aurélio Lima de Queiroz,
Antônio Pereira Duarte,
Jorge Cesar de Assis,
Eduardo de Campos Bastos Neto.
Pesquisa, edição de entrevistas e organização:
Gunter Axt.
Apoio à pesquisa:
Eliane Alves Alípio,
Kimberly Eckhardt Trancoso,
Dorian Wagner,
José Luís de Lima.
Transcrição de entrevistas:
Cristhina Boni Lavratti,
Dandara de Oliveira,
Elizabeth Castillo Fornés,
Gunter Axt,
João de Los Santos,
Manoela de Souza,
Marcos Lauermann,
Matheus Silveira,
Milena Costa.
Equipe do Centro de Memória:
Eliane Alves Alípio,
Dorian Wagner,
Marina Scardovelli de Souza,
Kimberly Eckhardt Trancoso.
Revisão:
Elizabeth Castillo Fornés.
Fotografias:
Assessoria de Comunicação Institucional
e acervo Arquivo do MPM.
Projeto gráfico e editoração:
Alessandra Duarte e Míriam de F. Moreira
Capa:
Alessandra Duarte
Tratamento de imagens:
Clickpro e Assessoria de Comunicação
Institucional.
Impressão:
Gráfica Movimento
Tiragem:
1500 exemplares
Catalogação na Publicação
B823h Brasil. Ministério Público Militar. Centro de Memória.
Histórias de vida / Coordenação: Centro de Memória do MPM; organização:
Gunter Axt. – Brasília, 2016.
600 p. : il. (Histórias de vida, v. 1)
ISBN 978-85-5595-002-5
1. Brasil. Ministério Público Militar - história. 2. Entrevista - história oral.
I. Título. II. Axt, Gunter, org.
CDU: 347.963:930
Catalogação na publicação por: Marina Scardovelli de Souza (CRB-1/2304)
MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
Procurador-Geral da República:
Rodrigo Janot Monteiro de Barros.
Procurador-Geral de Justiça Militar:
Marcelo Weitzel Rabello de Souza.
Vice-Procurador-Geral de Justiça Militar:
Roberto Coutinho.
Coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão:
Péricles Aurélio Lima de Queiroz.
Corregedora-Geral do Ministério Público Militar:
Herminia Celia Raymundo.
Diretor-Geral:
Jaime de Cassio Miranda.
SUMÁRIO
7Apresentação
9
Palavra da Comissão de Memória Institucional / CNMP
13Prefácio
17Introdução
70
Durval Ayrton Moura de Araújo
96
Paulo Duarte Fontes
122
Marly Gueiros Leite
146
Gilson Ribeiro Gonçalves
184
Rutílio Tôrres Augusto
210
João Jayme Araujo
228
Jorge Luiz Dodaro
270
Maria Marli Crescêncio Pereira
282
Vera Regina Alves de Brito
312
João Alfredo da Silva
334
Olympio Pereira da Silva Junior
364
Renato da Cunha Ribeiro
392
João Ferreira de Araújo
416
Marco Antonio Pinto Bittar
450
José Carlos Couto de Carvalho
488
Marisa Terezinha Cauduro da Silva
538
Nelson Luiz Arruda Senra
560
Francisco Leite Chaves
APRESENTAÇÃO
Inicio esta apresentação citando o escritor português, ganhador do
Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, José Saramago, que, em sua obra Cadernos de Lanzarote (1994), escreveu: “Somos a memória que temos e a res-
ponsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”.
O Ministério Público Militar também acredita nesse ideal e apoia
toda iniciativa a favor da preservação de sua memória, em função da manuten-
ção da lembrança de seus feitos no passado, do aprendizado acumulado em sua
trajetória e dos reflexos de sua atuação nas ações das gerações futuras.
O Centro de Memória do MPM, que iniciou suas atividades em
fevereiro de 2015, entre outros, tem como objetivos em relação à instituição:
conservar a sua história, valorizar a sua identidade, preservar o seu patrimônio
histórico. Para isso, desenvolveu um programa que abrange coleta de depoimentos, publicações de livros, exposições, site especializado e pesquisas.
Este livro representa uma das fases desse programa, na qual o relato de
membros aposentados do MPM conta a história de um Brasil que, talvez, muitos da atual geração não conheçam. Um país diferente do que é hoje, após transformações substanciais, econômicas e sociais, promovidas por uma Constituição
Federal democrática. Ele ultrapassa as limitações temporais de uma transmissão
oral e verte-se para o meio de comunicação permanente que é a escrita. Conforme Jacques Le Goff (1924-2014), “não se tem história sem erudição”.
7
HISTÓRIAS DE VIDA
Deixo aqui os meus agradecimentos à Comissão do Projeto Me-
mória do MPM, ao historiador Gunter Axt e a todos os colaboradores que
trabalharam para que esta obra pudesse vir a lume. Espero que todos os leitores
apreciem o seu conteúdo e aprendam um pouco mais sobre a nossa história e
sobre o que representa o Ministério Público Militar para a sociedade brasileira.
Marcelo Weitzel Rabello de Souza
Procurador-Geral de Justiça Militar
8
PALAVRA DA COMISSÃO
DE MEMÓRIA INSTITUCIONAL DO CNMP
Sinto-me particularmente recompensado pela oportunidade de re-
gistrar uma mensagem da Comissão de Memória Institucional do CNMP, a
propósito do lançamento da obra “Histórias de Vida”, dentro do Projeto Memória Oral, desencadeado no âmbito do Ministério Público Militar.
Considero que todo o esforço empreendido na preservação da me-
mória e da história de uma Instituição deve ser valorizado e enaltecido, sobre-
tudo ao se constatar que o Ministério Público Militar, na condição de ramo
especializado do Ministério Público da União, já beira um centenário de exis-
tência, criado que foi nos distantes idos de 1920, possuindo, portanto, um lastro histórico mui digno de resguardo.
É induvidoso que a trajetória institucional, marcada por aconteci-
mentos de variados matizes, não pode, definitivamente, ser relegada ao olvido,
menoscabando-se o repertório imprescindível de dados, documentos, imagens,
relatos que formam essa teia multifária de vivências irrepetíveis. Aliás, são exatamente esses recortes que propiciam o amadurecimento institucional e permitem o resgate de fatos que permearam toda a atuação de pessoas que, no
curso da história, devotaram-se ao cumprimento de suas nobres atribuições,
deixando, indelevelmente para sempre, suas marcas ou impressões no tempo e
no espaço.
Cuidar da memória e da história é mais do que um poder-dever ínsi-
to na Carta Constitucional. É, de fato, uma necessidade decorrente do próprio
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HISTÓRIAS DE VIDA
sentido de continuidade e pertencimento a que todos, na humana condição,
buscam ao longo da efêmera jornada carnal. Deste modo, ainda que breve
a passagem, todos são compelidos, diuturnamente, a se agarrar às raízes que
impulsionam ou impulsionarão mundo afora, mantendo as referências como
forças motrizes dos embates de afirmação e de aprimoramento. Os seres hu-
manos estão, como ressaltado por Guimarães Rosa, em seu Grande Sertão:
Veredas, nas sábias palavras do personagem Riobaldo, em constante e permanente construção:
O senhor... Mire veja: o mais importante
e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas — mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade
maior. É o que a vida me ensinou. Isso
que me alegra, montão.
Sendo assim, no âmbito institucional, onde, via de regra, as pessoas
passam boa parte de suas vidas, ou melhor, passam, mas não passam em vão,
certamente deixam bem mais do que suas digitais, ficando seus exemplos, suas
contribuições, suas inigualáveis histórias recheados de acontecimentos únicos,
que não podem e não se devem esvair como poeira ao vento. Todos lançam
seus traços no grande livro da vida; e, quando conexos a uma Instituição quase
secular como o Ministério Público Militar, tais Histórias de Vida devem ser
cultivadas com todo o zelo, projetando-se tais elos nas consciências dos que
hoje repercutem os fatos de outrora, na expectativa de que possam irradiar-se
pelas gerações pósteras, ecoando para a eternidade como um fator indefectível
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PALAVRA DA COMISSÃO DE MEMÓRIA INSTITUCIONAL DO CNMP
a despertar para o indeclinável sentido evolutivo de cada ser, num plano em
que todos são convidados, como lembrado por Whitman, a produzir um verso
na grande poesia da vida.
Por isso e caminhando para o fecho dessa sucinta manifestação, cum-
primento a todos que se envolveram nesta sensata, bela e impostergável tarefa
de reavivar o ontem, na certeza do porvir, conferindo aquele sentido de perenidade evocado por Drummond no fecho de seu impecável poema “Memória”:
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Antônio Pereira Duarte
Conselheiro Nacional
Presidente da Comissão de Memória Institucional / CNMP
11
HISTÓRIAS DE VIDA
12
PREFÁCIO
A partir de meados da década de 1990 e início dos anos 2000, a Procu-
radoria-Geral de Justiça Militar voltou os olhos para a Memória da Instituição,
ocupando-se de projetos, com vista a recuperar informações, arquivos e outros
dados de interesse histórico, desde sua criação em 1920. Não é uma tarefa fácil,
pois requer pessoal especializado, investimento e interesse da alta administração.
Diversos foram os programas executados: pesquisa da memória e
publicação do livro Resumo Histórico do Ministério Público Militar – Síntese
Biográfica dos Procuradores-Gerais da Justiça Militar (1995); pesquisa histórica
(2000-2006); publicação do livro Memória Histórica do Ministério Público Militar (2012); nomeação da Comissão do Projeto Memória do MPM; criação do
Centro de Memória; reedição ampliada da síntese biográfica dos PGJM, com
o título Procuradores-Gerais de Justiça Militar: 1920-2016; edição do Manual de
História Oral; e, finalmente, publicação do livro Histórias de Vida (2014-2016).
Acalentava-se há muito tempo produzir uma obra contendo
entrevistas com membros inativos do MPM. Por meio da Consultoria
Especializada em História do professor Gunter Axt, elaborou-se inicialmente
o Manual de História Oral do MPM, uma exigência do rigor científico para
esse tipo de pesquisa. Colheram-se 18 entrevistas com ilustres membros na
inatividade. Com isso, buscou-se recuperar a história pessoal e funcional das
personagens que tiveram relevante participação na atuação da instituição
em diversos períodos. O programa não se encerra com esta publicação, mas
deve prosseguir de modo a reunir depoimentos de todos os membros que se
afastaram da ativa e que prestaram inestimável serviço à instituição e ao país.
13
HISTÓRIAS DE VIDA
A realização dessa obra é o alcance de um sonho e a concretização
de uma visão. O Centro de Memória do Ministério Público Militar foi
idealizado como um lugar de memória, debatida no presente a partir de uma
produção de pesquisa densa, que bebe inspiração nas histórias de vida dos
membros que ajudaram a construir os alicerces da instituição ministerial que
hoje conhecemos. O que se deseja é um espaço de reflexão crítica sobre as
opções e os caminhos percorridos que nos trouxeram ao tempo hodierno em
que vivemos. Porque não há soberania sem tradição. E não há tradição que se
mantenha viva no presente, sem diálogo e sem transparência.
O Programa de História Oral foi instalado com lastro nas diretrizes
estabelecidas pelo plano de gestão estratégica encomendado pela Comissão de
Memória. Objetiva a formação de um acervo de depoimentos capaz de nos
ajudar a acessar as representações, valores e afetos das gerações que nos precederam na construção do Ministério Público Militar. A publicação das entrevis-
tas sob a forma de coletâneas no âmbito da série Histórias de Vida atende ao
compromisso de divulgar a produção do Centro de Memória e debatê-la com
a sociedade, de forma a podermos melhor refletir sobre a trajetória do Ministério Público Militar e seu papel na sociedade contemporânea.
No que respeita à história da instituição, o arco temporal alcançado
pelas entrevistas aqui reunidas se estende de 1947, quando ingressou na car-
reira o entrevistado mais antigo, a 2010, quando se aposentou a mais moderna.
Durante essa quadra, o Ministério Público Militar passou por inúmeras trans-
formações. Sua área de atuação e competência se alterou, sua infraestrutura se
sofisticou, mudou o perfil de seus membros, aprimoraram-se as garantias funcio-
nais e a autonomia institucional. Mudanças de tão profundas consequências so-
mente se tornaram possíveis graças ao engajamento e a labuta de seus membros,
14
PREFÁCIO
que pugnaram incansavelmente por essas conquistas, que debateram diferentes
projetos e que desempenharam o seu métier com dedicação e pertinácia.
As páginas que se seguem falam de vidas, de sofrimentos, de tensões,
de conquistas, de afetos. Elas respiram e dialogam com o leitor a cada linha.
Não é apenas a história do Ministério Público Militar que acessamos aqui, mas
a dos brasileiros em seu conjunto. Os sentimentos e representações nesta obra
transmitidos nos remetem a valores e a conquistas, mas também a desafios, a
crises, a conflitos, a muitos dramas, pessoais e coletivos.
Instituição democrática por essência, o Ministério Público se
fortalece com a multivocalidade, com a diversidade de narrativas e de opiniões
sobre os viveres e sobre os fatos. Essa polifonia celebra nossa transparência e
colmata o debate em torno da identidade da instituição.
Agradecemos a toda a equipe do Centro de Memória e da Assessoria
de Comunicação Social pelo esforço que ajudou a viabilizar a edição, bem
como aos membros que compõem a Comissão de Memória, órgão que tem
funcionado como um privilegiadíssimo espaço de debates enriquecedores e
construtivos, os quais têm-nos permitido avanços substanciais na matéria.
Agradeço muito especialmente ao digníssimo procurador-geral de Justiça
Militar Marcelo Weitzel Rabello de Souza pelo notável descortino demonstrado
com a chancela da Comissão de Memória e de todas as suas proposições.
Péricles Aurélio Lima de Queiroz
Subprocurador-geral de Justiça Militar
Coordenador da Comissão do Projeto Memória
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HISTÓRIAS DE VIDA DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR1
1
Agradeço pelos pertinentes comentários ao texto do subprocurador-geral
de Justiça Militar Péricles Aurélio Lima de Queiroz, do procurador de Justiça Militar Antônio
Pereira Duarte e do promotor de Justiça Militar Jorge César de Assis.
Gunter Axt
16
INTRODUÇÃO
O PROGRAMA DE HISTÓRIA ORAL DO CENTRO DE MEMÓRIA
DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
Ao ser desenhado o projeto que concebeu o Centro de Memória do
Ministério Público Militar, um programa de entrevistas estribado nas técnicas e
nos conceitos da História Oral foi imaginado como um dos pilares fundantes da
nova proposta de trabalho. As entrevistas permitem-nos acessar a trajetória da
instituição pela versão daqueles que a experenciaram. Muito do que elas contam
não está impresso nos documentos escritos, pois são memórias pessoais, afetos,
opiniões, representações do que se viveu, sempre com forte ênfase pessoal.
Documento construído pela interação entre o historiador e o depo-
ente, a entrevista colhida no âmbito de um programa de História Oral celebra
a memória, mas se constituiu, também, em ferramenta estratégica de referen-
ciação para todos aqueles que pretenderem se debruçar, futuramente, sobre a
narrativa da instituição ou dos fatos aos quais essa trajetória se conecta. Não
é incomum, entrevistados que integram um certo conjunto expressarem-se de
forma diferente sobre um mesmo acontecimento, ou cadeia de eventos, porque,
sabemo-lo, cada um conta a história vivida desde a sua perspectiva.
E é desse caleidoscópio de versões que a História se constrói. A po-
lifonia é desejável, pois encerra respeito pela diferença. O historiador acolhe
múltiplos testemunhos como verdades subjetivadas pela percepção do indivíduo, para, a partir daí, encontrar recorrências, divergências, silêncios, sen-
tidos. Depois de comparados entre si, cabe cotejar os depoimentos às fontes
impressas, aos documentos manuscritos, a vídeos, áudios, enfim, tudo aquilo
17
HISTÓRIAS DE VIDA
que o historiador julgar necessário para ajudar a responder uma determinada
pergunta sobre o passado. Trata-se de um esforço de fôlego, processual, e que
tende a reverberar em vários textos, pela lente de todos aqueles que utilizarem
as entrevistas publicadas e divulgadas como fonte para seus ensaios e pesquisas.
A História Oral, assim, é uma incrível janela de cognição, um lugar
de memória que amplia fenomenalmente o leque de perguntas e respostas que
podemos propor ao passado. Mas longe está de pretender esgotar qualquer
uma dessas questões.
A História Oral ajuda a sistematizar narrativas, a publicizar pers-
pectivas. Colabora para o debate em torno das identidades, das tradições e dos
projetos de uma instituição. Uma ferramenta que se torna útil no contexto da
modernidade acelerada, particularmente naqueles países que crescem aos saltos, reformulando instituições e incorporando grandes parcelas da população
ao processo democrático e ao mercado de consumo, como aconteceu no Brasil
em alguns momentos de sua história.
Autores célebres como Andreas Huyssen, Zygmund Bauman e
François Jullien, entre outros, demonstram que a uniformização, que se desdobra
do processo de mundialização engendra, por resposta, formas de resistência.
A ultramodernidade contemporânea, com sua voracidade fragmentária,
estandartizante e efêmera trouxe, também, em contrapartida, num aparente
paradoxo, uma valorização cada vez mais onipresente da memória, como
estratégia de grupos, comunidades e instituições que afirmaram sua identidade
própria e se questionaram sobre sua especificidade no mundo.
No Brasil, o impacto do processo de globalização mais ou menos
coincidiu com a abertura política e a econômica do país. Nesse cenário, não
18
INTRODUÇÃO
apenas as instituições passaram a se perguntar mais sobre sua identidade e a
pensar em mecanismos internos para a transmissão de valores de uma geração
para a outra, como, ainda, a sociedade passou a se questionar com maior frequência e intensidade sobre o sentido e a missão das próprias instituições. A
comunicação dos entes da área jurídica com a comunidade tornou-se essencial.
A História Oral e a memória constituíram-se, assim, em ferramentas de diálogo em torno de identidades para os organismos da área jurídica.
Sobre a metodologia da História Oral, historiadores logo esclarecem
que suas entrevistas estão distantes daquilo que os jornalistas normalmente
fazem. O documento oral é o único construído pelo historiador, normalmente
acostumado a escarafunchar o passado em arquivos que reúnem acervos esta-
belecidos por outras pessoas, em outras épocas, no decorrer de vários anos, ou
séculos. O método empregado nesta tarefa requer tempo e, sobretudo, disposição para ouvir. Não nos interessa arrancar das pessoas uma frase de efeito ou
uma informação reveladora, que seria eventualmente negritada nas manchetes
de algum jornal, para se borrar na sequência, se esfumar no dia seguinte.
Atraímo-nos pelos sistemas descritos a partir das experiências indi-
viduais, pelas representações de cada um sobre fatos que têm alcance coletivo.
Queremos ouvir o que as pessoas têm a dizer. Interessamo-nos pelas suas lembranças. Dedicamos-lhes o tempo e a atenção que forem necessários, processo
durante o qual tentamos estabelecer empatia com o entrevistado. Contando
histórias de vida, vamos divisando, aos poucos, no horizonte, a história da instituição ministerial, da Justiça, do país.
Obedecemos a um método claro e transparente. A confecção de um
manual consolidando todas as diretrizes e variáveis foi um dos passos iniciais
19
HISTÓRIAS DE VIDA
do projeto. O texto recebeu o tratamento editorial e, ainda que em tiragem
restrita, foi disponibilizado aos interessados e envolvidos no processo.
A rede de depoentes foi estabelecida pela Comissão de Memória,
instalada pelo procurador-geral de Justiça Militar. Foram ouvidos apenas
membros aposentados que se encontravam em condições para enfrentar algumas
horas de conversa com um historiador. O agendamento de cada entrevista foi
precedido de um importante contato para explicar o intuito do projeto, feito
pelo subprocurador-geral de Justiça Militar Péricles Aurélio Lima de Queiroz,
coordenador da Comissão de Memória, o que pavimentou os caminhos.
Certamente, não se conseguiu ouvir todos aqueles que se gostaria,
pois alguns ou convalesciam de alguma enfermidade, ou não encontraram
disponibilidade para uma conversa durante o período de oito meses em que as
entrevistas foram coletadas. Como muitos depoentes não puderam se deslocar
a Brasília, o historiador foi ao seu encontro, em diferentes cidades, localizadas
em seis Estados, como Canela, Porto Alegre, Florianópolis, Balneário
Camboriú, São Paulo, Rio de Janeiro, Vassouras, Campo Grande e Fortaleza.
Esta mobilidade da equipe de pesquisa foi fundamental para que o projeto
chegasse a um bom termo, pois, em se tratando de instituições com jurisdição
nacional, seus membros espalham-se por todo o território.
As entrevistas foram gravadas em meio digital e, posteriormente,
transcritas. A primeira versão já não é igual ao momento original, para sempre
perdido, pois não é capaz de reproduzir as expressões, as entonações da voz,
as pausas, as ênfases, as características do ambiente no qual o depoimento se
processou. Em função disso, muito, inclusive, do que se acha transcrito, seria
de difícil ou de impossível compreensão para o futuro leitor, ou, pelo menos, de
20
INTRODUÇÃO
leitura pouco fluída e dinâmica, pois, quando falamos, raramente evitamos ví-
cios usuais na oralidade, repetições de palavras, frases truncadas, sem mencionar certas passagens ditas com ênfases de contexto, fora do qual seus sentidos
intrínsecos se perdem, se diluem, ou são confundidos.
Destarte, é fundamental que possamos editar o documento. Esta é uma
das fases mais demoradas do processo. Para cada hora de entrevista, consomem-se
várias de transcrição e muitas mais de edição. Se a transcrição e, posteriormente, a
revisão gramatical final podem ser terceirizadas, a condução da entrevista e a sua
edição precisam ser feitas pelo historiador responsável pelo programa.
Não imprimimos técnicas de ficção ao depoimento, mas procuramos
adaptar a dinâmica da linguagem falada à escrita, esconsando o texto de vícios da
oralidade – tão comuns a todos nós. Ajudamos a estruturar parágrafos, a limpar a
narrativa, tornando-a mais saborosa ao leitor. Cuidamos de preservar a coloquia-
lidade original do documento, limitando tais intervenções à forma, sem adulterar
o conteúdo; pelo contrário, apurando a forma, a tendência é enfatizá-lo.
Aproveita-se, esse momento, para a checagem de dados, como a grafia
de nomes próprios que precisam ser confirmadas. Datas de eventos ou fatos
podem ser corrigidas, pois é comum nossa memória nos trair, afastando-nos da
precisão. A fase de edição envolve intensa pesquisa. Fora necessário iniciá-la an-
tes da entrevista, durante a preparação, para se obter as informações elementares,
que dizem respeito ao entrevistado, a partir das quais as perguntas podem ser
propostas. Mas a pesquisa é aprofundada e complementada durante a fase da
edição, sendo comum que o historiador ajude o depoente a completar informa-
ções mais objetivas, como números de processos, locais em que se deu uma determinada ação, nomes completo dos réus, desfecho preciso do julgamento, etc.
21
HISTÓRIAS DE VIDA
Depois de editadas, as entrevistas foram submetidas à aprovação dos
depoentes. Sendo a intenção arquivá-las no banco de História Oral e publicá-
-las, sob a forma de coletâneas como esta, não se pode prescindir da concordância dos entrevistados com relação ao resultado final. A expectativa, nesta
etapa, é sempre no sentido de que mínimos sejam os ajustes processados, o que
em geral se verificou, registrando-se, inclusive, alguns casos em que o texto
final aprovado é idêntico ao editado. Afinal, a edição presta um serviço não
apenas ao leitor, mas também ao depoente, tornando o processo de aprovação
mais célere, menos questionável.
Síntese da evolução institucional
A Justiça Militar
O surgimento da Justiça Militar se confunde com a história dos exérci-
tos, sujeitos a rígidos princípios de disciplina e hierarquia. A necessidade de vigi-
lância desses princípios ensejou a implantação da Justiça Castrense, cujas normas
já aparecem desenhadas em textos muito antigos, da Suméria, da Grécia e no Velho Testamento. Em Roma, berço do Direito Ocidental, o Direito Penal Militar
ganhou sistemática e começou a ser entendido como um ramo autônomo.
No Brasil, a Justiça Militar existiu antes mesmo da Comum, ten-
do chegado a bordo das primeiras naus portuguesas. Em 1763, o Conde de
Lippe, a pedido do Marquês do Pombal, condensou a dispersa legislação
penal militar portuguesa e produziu os Códigos de Guerra, que previam
penas severas e castigos corporais, próprios da época, como o arcabuza-
mento e os pranchaços. Em 1808, com a vinda da família real para o Brasil,
Dom João VI criou o Conselho Supremo Militar e de Justiça, embrião do
22
INTRODUÇÃO
atual Superior Tribunal Militar, que foi o primeiro órgão permanente de
Justiça Castrense a operar no país.
A Justiça Militar hoje é um ramo especializado do Poder Judiciário,
cuja especificidade justifica-se em função das peculiaridades constitucionais
das Forças Armadas, encarregadas da defesa da nação, do território pátrio, da
garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, missão assentada sobre os valores da hierarquia e da disciplina, sem os quais, o país se precipitaria
no caos infrene. Estas peculiaridades do Direito Militar são decorrentes das
particularidades das Forças Armadas. Por essa razão, o Superior Tribunal Militar é a única Corte do país que tem, por exemplo, competência para aplicar a
pena de morte em tempo de guerra.
Desde a sua criação, a Justiça Militar esteve organizada, no primeiro
grau, em Juntas ou Conselhos mistos. A partir de 1813, os Conselhos de Guerra, que até então funcionavam apenas no Rio de Janeiro, passaram a operar em
outras localidades. Eram compostos por um oficial superior, que o presidia, um
auditor e cinco oficiais militares. Os Conselhos de Guerra foram precursores
dos atuais Conselhos de Justiça. Por ocasião do advento do Regulamento Pro-
cessual Criminal Militar, editado pelo Supremo Tribunal Militar, em 18 de
julho de 1895, manteve-se, em seus artigos 12 e 13, a composição de sete juí-
zes, tanto para os Conselhos destinados a julgar oficiais-generais, como para os
conselhos em geral (o presidente, oficial de maior graduação, o auditor togado
e mais cinco oficiais).
No Império, as Juntas de Justiça Militar eram temporárias e tinham
competência eventual para julgar civis. Além disso, Comissões Militares foram
criadas para processar e julgar rapidamente líderes de insurreições regionais. O
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HISTÓRIAS DE VIDA
Código Criminal do Império, de 1830, estabeleceu que os crimes militares fos-
sem julgados de acordo com sua ordenação própria, que, basicamente, seguia
amparada nos Códigos de Guerra.
Em 1891, já sob a República, surgiu o Código Penal da Armada, es-
tendido, em 1899, para o Exército. Em 1944, foi editado o Novo Código Penal
Militar, cujo artífice foi o desembargador Silvio Martins Teixeira. O terceiro
Código Penal Militar brasileiro foi editado em 1969, sob o regime militar que
se instaurara em 1964.
Na Constituição Federal de 16 de julho de 1934, a Justiça Militar
Federal foi plasmada como ente do Poder Judiciário, sendo estendidas, aos seus
juízes, as mesmas garantias da magistratura togada. A competência, condensa-
da no julgamento dos crimes propriamente militares e cometidos por militares,
também podia se estender a civis, quando estes atentassem contra as institui-
ções militares ou contra a segurança externa do país. A Constituição de 1937,
outorgada pela ditadura getulista do Estado Novo, ampliou os civis à jurisdição
militar nos chamados crimes contra a segurança nacional. Um tribunal exótico,
o Tribunal de Segurança Nacional, foi criado e julgava tais crimes ao arrepio da
legislação penal e processual penal, motivo pelo qual muitas de suas sentenças
acabaram reformadas pelo Supremo Tribunal Militar, que, malgrado o cenário
autoritário, logrou preservar parte de sua independência. No regime que se organizou a partir da Constituição democrática de 1946, o TSN deixou de existir
e a competência para o julgamento de civis foi novamente restrita aos crimes
contra a segurança externa e contra as instituições militares.
A nova Lei de Segurança Nacional, que entrou em vigência em 5 de
janeiro de 1953, em tempos de Guerra Fria no mundo, fixou a competência da
24
INTRODUÇÃO
Justiça Militar nos casos em que a vítima do crime fosse autoridade marcial,
bem como para delitos de espionagem, utilização de meios de comunicação de
forma a pôr em perigo a segurança do país, e formação de milícias e associa-
ções, armadas ou não, que apresentassem finalidade combativa e insubordinação hierárquica. Até o Ato Institucional nº 2, contudo, não foram numerosos
os processos que envolveram civis no âmbito da jurisdição militar federal.
Como desdobramento da ruptura desencadeada em 1964, que depôs o
presidente João Goulart, uma série de atos institucionais alteraram a dinâmica da
Justiça Militar. Com base na Lei de 1953, e no Ato Institucional de 9 de abril de
1964, inúmeros inquéritos policiais militares (IPMs) foram abertos. Entre os dias
10 e 13 de abril foram decretadas 45 cassações de mandatos, 162 suspensões de
direitos políticos por dez anos e 146 militares foram transferidos para a reserva.
Entretanto, os chamados “coronéis dos IPMs”, sintonizados com a
linha-dura do regime que começava, ansiavam por mais tempo para investigar
e punir pessoas identificadas com a oposição ou acusadas de corrupção e se in-
surgiam diante do fato de que muitas denúncias não estavam sendo acolhidas
pelo Judiciário. Além disso, habeas corpus concedidos pelo STF, e, antes ainda,
pelo STM1, eram interpretados como aberta contestação ao espírito revolucio-
nário de 1964. Assim, o Ato Institucional nº 2, de 1965, estendeu o foro militar
1
Segundo o ministro Jorge Alberto Romeiro, a primeira liminar em habeas
corpus preventivo, usada, sem lei a respeito, pela jurisprudência de todos os tribunais superiores, foi
concedida pelo almirante José Espíndola. Quando, mais tarde, o STF atuou no mesmo sentido,
em HC concedido a um governador na iminência de ser deposto, invocou-se o precedente da
Justiça Militar. (ROMEIRO, 1994:15-16). Segundo Jorge Assis, que obteve cópia dos Autos
nº 27.200, do então Estado da Guanabara, autuado em 28 de agosto de 1964, a pedido de um
paciente civil, que respondeu a inquérito policial militar que visava apurar condutas relacionadas
ao exercício funcional deste junto à Caixa Econômica Federal, a decisão do STM, que ocorreu
em 31 de agosto, foi deferida em decisão preliminar, requerida pelo advogado para sustar o
comparecimento do mesmo perante o encarregado do IPM até julgamento definitivo do HC
pelo Superior Tribunal Militar. (ASSIS, 2013: 219).
25
HISTÓRIAS DE VIDA
aos civis para a repressão dos chamados crimes contra a segurança nacional,
abrindo um dos capítulos mais conturbados e polêmicos da história da Justiça
e dos direitos civis no Brasil.
Em seguida, a Constituição outorgada em 24 de janeiro de 1967
consolidou a competência e conheceu o Supremo Tribunal Federal como ór-
gão para recursos ordinários. O Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967,
definiu com dureza os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e
social, consolidando a noção de “guerra interna”.
O Ato Institucional nº 5, baixado em 13 de dezembro de 1968,
enfeixou poderes discricionários nas mãos da presidência da República. O
Congresso Nacional foi fechado por dez meses e suspensas as garantias de
vitaliciedade e inamovibilidade dos juízes. Foram, ainda, excluídos de qual-
quer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com o referido
AI e seus Atos Complementares. Ministros do Supremo foram cassados e a
composição da Corte foi reduzida de 17 para 11 membros. O habeas corpus
foi restringido e limitado o uso de recursos extraordinários aos tribunais,
bem como abolido o recurso ordinário nos casos de mandados de segurança
denegados pelos tribunais. O AI-6, de 1º de fevereiro de 1969, suprimiu o
recurso ordinário, ao Supremo Tribunal Federal, de decisões proferidas pela
Justiça Militar contra civis. O Decreto-Lei nº 510, de 20 de março de 1969,
promoveu alterações na LSN, autorizando a prisão por 30 dias durante o
inquérito e a sua prorrogação por uma vez de igual prazo, além de admitir a
incomunicabilidade do preso por até dez dias. Além disso, a nova legislação
tornou, para o Ministério Público Militar, o recurso compulsório nos casos
de rejeição da denúncia pelo juiz-auditor ou de sentença absolutória proferida pelo Conselho.
26
INTRODUÇÃO
O Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969, admitiu a prisão
perpétua e a pena de morte, permitiu, ao Conselho de Justiça, proferir sentença
condenatória mesmo quando o Ministério Público pedisse a absolvição, além de
reconhecer circunstância agravante não arguida na narração do fato criminoso.
Em 1978, a LSN foi revista e tornada mais branda, com a revogação
do Decreto nº 898, e novamente reformulada em 14 de dezembro de 1983, es-
tando em vigência até os dias atuais. Os crimes políticos voltaram para a jurisdição federal apenas com a Constituição de 1988. Entrementes, em 1979, o AI-5
foi anulado e a anistia aos presos e aos condenados políticos foi decretada.
Atualmente, pequenos desvios de conduta, previstos nos regulamen-
tos disciplinares, e que não configuram um delito, são resolvidos dentro da
própria unidade na qual o militar serve, segundo os Regimentos Internos. Mas,
em caso de falta grave, enquadrada no Código Penal Militar, deve-se abrir um
inquérito policial militar. Quando o IPM chega à Auditoria, o auditor o enca-
minha ao Ministério Público, que pode efetuar a denúncia. Aceita a denúncia
pelo juiz-auditor e citado o réu, tem início o processo. Para o julgamento de
praças, existe o Conselho Permanente, constituído pelo juiz-auditor civil e por
quatro oficiais da mesma Força do acusado, juízes temporários, substituídos
a cada três meses. Um Conselho Especial julga oficiais até os postos de ca-
pitão de mar e guerra, e coronel. Neste caso, o Conselho precisa ser formado
por oficiais de patente superior ou mais antigos na carreira. Oficiais-generais
possuem foro privilegiado e são julgados no Plenário do STM. Defesa e Mi-
nistério Público podem apresentar recurso ao STM em caso de discordarem
do julgamento efetuado na primeira instância.
27
HISTÓRIAS DE VIDA
O Ministério Púbico Militar
O Ministério Público Militar foi institucionalmente organizado
pelo Código de Organização Judiciária e Processo Militar de 30 de outubro
de 1920. Sua primeira previsão constitucional se deu na Carta de 1934, nos
artigos 95 a 98, sendo considerado, então, como um órgão de cooperação go-
vernamental. O Código da Justiça Militar, de 2 de dezembro de 1938, previa
que cada Auditoria deveria ser composta de um juiz-auditor, um promotor, um
advogado, um escrivão, dois escreventes, um oficial de justiça e um servente,
além de um suplente para auditor e um promotor adjunto, os quais podiam ser
convocados em caso de acúmulo de trabalho ou necessidade de funcionamento
do Conselho de Justiça nas unidades militares ou dos Conselhos Extraordi-
nários nas Auditorias. Os Conselhos eram formados por militares indicados
pelos seus Comandos. Junto ao Superior Tribunal Militar, órgão de recurso dos
julgados em primeiro grau, funcionava um procurador-geral.
A carreira do Ministério Público Militar foi organizada pela Lei Or-
gânica do Ministério Público da União, de 30 de janeiro de 1951, promulgada
em atenção a um mandamento da Constituição de 1946, que fixava o ingresso
mediante concurso público. O procurador-geral de Justiça Militar tomava posse perante o ministro da Guerra e era cargo de livre nomeação do presidente
da República. Um subprocurador-geral, de provimento efetivo, substituía o
procurador-geral em seus impedimentos.
A Justiça Militar organiza-se, no primeiro grau, em regiões, cha-
madas Circunscrições Militares. Nos anos 1960 funcionavam, ao todo, dez
Circunscrições Militares no país, sendo uma em cada sede, exceto no Rio de
Janeiro, onde existiam cinco Auditorias de segunda entrância, duas em São
28
INTRODUÇÃO
Paulo e três no Rio Grande do Sul. Em 1966, foi criada, em Brasília, uma nova
Auditoria junto à 11ª Região Militar. A 12ª Circunscrição Judiciária Militar
foi criada em 1969, com jurisdição sobre os Estados do Amazonas e do Acre e
nos territórios de Roraima e de Rondônia. Todavia, a efetivação das duas novas
Auditorias não foi imediata; a 11ª foi instalada em 1970 e a 12ª, apenas em
1979. Os substitutos de juízes e de promotores eram designados por decreto
do presidente da República, sendo convocados, em casos de impedimento do
titular ou de excesso de serviço pelo procurador-geral, sem qualquer direito ou
vantagem além do vencimento do cargo pelo período que durasse a convoca-
ção. Não existia Defensoria Pública e a advocacia era dativa nos casos em que
o réu não pudesse arcar com os honorários.
Em 1920, junto com o MPM, criara-se a Advocacia de Ofício da Jus-
tiça Militar, vinculada ao Superior Tribunal Militar até 1992, quando foi concebida a Defensoria Pública da União. A Advocacia de Ofício foi, assim, precurso-
ra da DPU. Em cada Auditoria havia um advogado de ofício titular e dois subs-
titutos. Era um quadro funcional próprio do STM, custeado pela Justiça Militar.
Em fevereiro de 1967, o Ministério Público Militar foi reestrutura-
do. Alterou-se a denominação de promotor para procurador de primeira, se-
gunda e terceira categoria, funcionando, o primeiro, junto ao procurador-geral,
os de segunda categoria, junto às Auditorias de segunda entrância (Distrito
Federal e Estado da Guanabara) e os de terceira, junto às demais Auditorias.
O Decreto-Lei nº 267, além disso, interferiu no princípio do promotor natural, permitindo que o procurador-geral avocasse inquéritos e processos. A
mudança coincidia com o agigantamento do volume de trabalho que trouxe
a extensão da competência da jurisdição especializada para o julgamento de
civis, bem como se sintonizava com o endurecimento do regime.
29
HISTÓRIAS DE VIDA
Em 1969, a nova Lei de Organização Judiciária Militar abriu a pos-
sibilidade, nas suas disposições transitórias, do aproveitamento dos substitutos
de procurador que tivessem adquirido estabilidade em cargo inicial da carreira.
Em 1984, foram criados mais três cargos de subprocurador-geral, que passaram a ser cinco e considerados como final da carreira – a promoção era conce-
dida exclusivamente pelo critério de merecimento e, a escolha, a partir de lista
tríplice organizada pelo Conselho Superior.
Entre 1985 e 1987, a nova composição foi discutida no STF a par-
tir de um mandado de segurança impetrado contra a rejeição, pelo Congresso
Nacional, do Decreto-Lei nº 2.159, que instituíra a modificação. Em 31 de
dezembro de 1987, a carreira foi confirmada com cinco subprocuradores-gerais, oito procuradores militares de primeira categoria e 22 procuradores
militares de segunda categoria, considerados os iniciais da carreira. Dos 44
cargos do Quadro Complementar (dois por Procuradoria), em extinção, es-
tavam em exercício 34 substitutos de procurador de segunda categoria quando a Constituição de 1988, em suas disposições transitórias, incorporou-os
ao quadro. A carreira inicial do MPM passou a contabilizar 78 cargos, sendo
44 decorrentes da Lei nº 7.380, de 1985, e 34 criados pela Constituição Fe-
deral. Mas, uma interpretação divergente do então procurador-geral, acabou
fixando a quantidade de cargos iniciais em 61 membros. Finalmente, a Lei
Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, alterou as designações dos
cargos. O Ministério Público Militar passou a ser então formado por 13
subprocuradores-gerais, 22 procuradores de Justiça Militar e 44 promotores
de Justiça Militar, 79 cargos no total.
30
INTRODUÇÃO
As entrevistas
Entre março e setembro de 2015, foram ouvidos vinte membros.
Apenas dois não aprovaram suas entrevistas a tempo de integrarem esta cole-
tânea. Neste volume, as participações estão organizadas por ordem de antiguidade do entrevistado, isto é, pela ordem de ingresso na instituição.
Os depoentes nasceram entre 1919 e 1951 e ingressaram no Minis-
tério Público Militar entre 1947 e 1986, sendo que, dos vinte, doze o fizeram
entre 1964 e 1980; desses, apenas uma (Marly Gueiros), por concurso; três
ingressaram antes desse período e cinco, posteriormente. O Ministério Público
Militar promoveu concurso público exclusivo de acesso à carreira em 1959, e
voltou a fazê-lo apenas em 1981. Dentre os ouvidos, sete conquistaram a es-
tabilidade por meio de concurso. A partir de 1981, esta fórmula passou a ser a
regra e a nomeação de substitutos não mais se verificou.
Dentre os ouvidos, 20% são mulheres. Embora seja uma porcentagem
considerada expressiva para qualquer instituição da área jurídica, é bastante re-
presentativa do perfil de gênero do MPM, onde a participação feminina pode
ser percebida como pioneira. No primeiro concurso, duas dos 40 candidatos
que compareceram às provas eram mulheres, incomum para a época, quando
as candidaturas femininas simplesmente tendiam a ser rejeitadas, ou não sobreviviam ao duro escrutínio a que eram expostas. Ambas foram aprovadas: em
quinto lugar, Marly Valle Monteiro (que tem depoimento nesta edição) e, em
18º, Lourdes Maria Pereira da Costa Celso. Lourdes Maria foi empossada em
fevereiro de 1962, como substituta, e Marly Monteiro, em setembro de 1964,
como efetiva. Mais recentemente, por sua vez, a chefia do Ministério Público
Militar foi exercida, durante doze anos consecutivos, entre 2000 e 2012, por
31
HISTÓRIAS DE VIDA
quatro diferentes mulheres, uma das quais, Marisa Cauduro, participa desta
edição com um depoimento. Adriana Lorandi tornou-se, em 2000, a primeira
mulher a chefiar o Ministério Público Militar no Brasil.
Dos 18 entrevistados, apenas quatro (Vera Regina Mota Coelho,
Maria Marli Crescêncio Pereira, Rutílio Tôrres Augusto e Francisco Leite
Chaves) não explicitaram registro de passagem pelas Forças Armadas ou pela
Justiça Militar (na função de servidores, defensores, ou atuando como jorna-
listas junto às Auditorias) antes do ingresso no MPM; tampouco tinham parentes próximos ligados às Forças Armadas, como pais, cônjuges e irmãos. Mas
todos tinham alguma relação, direta ou familiar, com o mundo político. Marli
Crescêncio é quem menos se recorda dessa conexão, mas é razoável supor que
ela existia, pois, em julho de 1964, foi nomeada adjunta de promotor de Justiça
da comarca de Boa Viagem, no Ceará. Também na jurisdição comum, por essa
época, a nomeação de adjuntos dependia de indicações.
A posse de substitutos se dava a partir de alguma sugestão proposta
por pessoa ligada ao mundo jurídico, ao universo da caserna ou ao cenário
político. Durante o regime militar, as indicações eram cuidadosamente checadas pelo Serviço Nacional de Informações, que emitia a palavra final sobre a
nomeação. As promoções também costumavam ser monitoradas e há indícios
de que empeces sugeridos pela Marinha, pelo Exército ou pela Aeronáutica
poderiam obstar a progressão na carreira.
Houve registros de membros do Ministério Público, assim como
da Justiça Militar, inclusive de concursados, que foram cassados ou compulsoriamente aposentados durante o regime militar. No Superior Tribunal
Militar, o caso do ministro Pery Bevilacqua, atingido em 1969 pelo Ato
32
INTRODUÇÃO
Institucional nº 5, é um dos mais célebres e rumorosos. Mas outros houve
que alcançaram menos reverberação. Neste livro, Gilson Ribeiro Gonçal-
ves se remete ao episódio da cassação de um juiz-auditor em Juiz de Fora,
Minas Gerais.
A autonomia do Ministério Público Militar enfrentava escolhos para
se afirmar. São unânimes os registros dos depoentes sobre a precariedade das
instalações e a fragilidade do suporte disponível para o exercício das funções,
situação que apenas começou a se reverter depois da chamada Nova República.
A partir da Constituição de 1988 e da Lei Complementar nº 75, de 1993, o
Ministério Público deu um salto qualitativo em termos de infraestrutura. A sede
própria foi inaugurada em Brasília nos anos 1990 apenas, sendo, também nessa
década, iniciadas obras para o erguimento de sedes privativas para as Procuradorias Regionais.
Até então, era comum que os gabinetes utilizados pelos promoto-
res e procuradores fossem cubículos cedidos pelos juízes nas Auditorias. O
mobiliário era velho e insuficiente e há mais de um registro de membros que
precisaram adquiri-lo às suas próprias expensas. Os servidores eram poucos e
auxiliavam apenas o procurador-geral de Justiça Militar. Nas Procuradorias
Regionais, os membros dependiam da boa vontade dos funcionários das Audi-
torias e, sobretudo, dos magistrados, para terem algum apoio às suas atividades.
Faltava material de expediente e até mesmo a utilização do telefone dependia
da Justiça Militar. Os salários eram notadamente baixos. Até 1967, aliás, sequer eram pagos em seu conjunto pela Procuradoria-Geral, mas por órgãos
diferentes, como as unidades das Forças Armadas as quais as Auditorias jurisdicionavam, ou diretamente pelo Ministério da Justiça.
33
HISTÓRIAS DE VIDA
Os proventos minguados podiam ser em parte compensados pelo
exercício da advocacia privada, que não era vedado, desde que não praticado
na própria competência da jurisdição, antes da reforma institucional dos anos
1980. Muito embora alguns permanecessem vinculados a grandes escritórios
de advocacia – como Durval Moura de Araujo, Jorge Luiz Dodaro e Renato da
Cunha Ribeiro – a maioria recorria pouco a esse recurso, ou dele não se valia,
até porque a atividade revestia-se de mais rentabilidade nos grandes centros
urbanos, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, e nem todos atuavam
junto às Auditorias que aí estavam.
Alguns, como Gilson Gonçalves, num desdobramento de suas atri-
buições, desempenharam funções junto à célebre Comissão-Geral de Investi-
gações, que tinha braços regionais nos Estados e que se encarregava da apuração de suspeitas de corrupção. A Comissão montava processos, secretos, de
investigação sumária, que poderiam resultar em confisco de bens supostamente comprados com dinheiro de origem ilícita. Sua primeira versão funcionou
entre abril e outubro de 1964. A Comissão foi recriada em setembro de 1968,
para, finalmente, ser extinta em 1979.
Durante sua vigência, instaurou centenas de processos, mas a maior
parte deles foi arquivada. A historiadora Heloísa Starling estimou que menos
de 5% deles tenham terminado em confisco efetivo dos bens por meio de decreto presidencial, o que sugere que o órgão, apesar de funcionar num contexto autoritário, foi parcimonioso nas suas condenações e que pode ter servido
aos altos dignitários da nação mais como ferramenta de pressão política do
que como mecanismo de punição. Muitas das investigações instauradas nas
subcomissões regionais terminavam sendo reformadas pela Comissão-Geral
Nacional, como registrou, em depoimento colhido em 2007, o ex-procurador-
34
INTRODUÇÃO
-geral de Justiça Militar Milton Menezes da Costa Filho, pois os processos,
segundo ele, “vinham com injustiças”. Pelo menos, na subcomissão de Minas
Gerais, segundo Gilson Gonçalves, isso não teria se verificado, pois os proces-
sos eram tecnicamente fundamentados, o que seria reconhecido, inclusive, por
magistrados. Para o historiador Carlos Fico, que cita a diferença de tratamento
dispensada a uma investigação sobre Brizola e a outra, sobre José Sarney, a
Comissão tendia a aliviar em relação aos aliados do regime, e se esmerar para
consolidar denúncias contra os opositores.
A prática da docência foi acolhida por alguns, como Jorge Luiz Do-
daro, Vera da Mota Coelho e Marly Gueiros, professores junto aos cursos de
Direito das universidades no Rio de Janeiro. Vera e Marly começaram como
assistentes de reconhecidos catedráticos em universidades públicas. Jorge Dodaro foi professor na Cândido Mendes. Por seu turno, José Carlos Couto de
Carvalho, que também foi professor na Universidade Gama Filho, consagrou-se como mestre responsável pelo principal curso preparatório para os con-
cursos de ingresso às carreiras do Ministério Público Militar, da Magistratura
Militar e da Defensoria Pública, tendo formado gerações de novos operadores
do Direito Militar.
Ninguém ingressava no Ministério Público Militar almejando con-
forto material e projeção financeira. Para alguns, a atividade constituía-se em
uma forma de complementação de renda e um meio de se manter um vínculo
com o serviço público. Além disso, a função, tal qual se registra em certas
passagens, como no depoimento do ministro Olympio Pereira da Silva Junior,
em decorrência do contexto vivido sob o regime militar, encerrava razoável
prestígio, possivelmente facilitando o trânsito social.
35
HISTÓRIAS DE VIDA
Certamente havia aqueles, oriundos da elite jurídica e política que
habitavam a antiga Capital Federal, como Paulo Duarte Fontes, Marly Guei-
ros Leite e Vera Regina Alves de Brito. Vários, porém, percebiam o posto,
mesmo com seus proventos limitados, como uma chance de ascensão social
e, no limite, de conquista da estabilidade na área pública. Não são poucos os
depoentes que têm origem na classe média ou na classe trabalhadora, como
Rutílio Tôrres Augusto, filho de um sindicalista ferroviário, Marco Antonio
Pinto Bittar, filho de um sargento-enfermeiro do Exército; Nelson Senra, filho
de um pequeno comerciante do ramo de transportes; ou, ainda, João Jayme
Araújo, João Alfredo da Silva e João Ferreira de Araújo, sargentos do Exército
que lograram estudar Direito com muito esforço pessoal.
Não se tem, atualmente, um perfil geral dos membros em perspectiva
de longa duração, mas não seria estranho supor que a presença de sargentos bacharéis no MPM se incrementou depois de 1964. Como sugere o depoimento
de João Jayme Araújo, os sargentos bacharéis recebiam estímulo dos seus Co-
mandos para estudar, tendiam a ser por eles indicados ou avalizados para atuar
no ente ministerial e, de certa forma, ao fazê-lo, permaneciam de algum modo
conectados à hierarquia castrense.
Ainda que possa parecer paradoxal, em se tratando de ambiente tra-
dicionalmente masculino, como o das Forças Armadas, as mulheres encontra-
ram, no Ministério Público Militar, um território em grande medida favorável
para o seu exercício profissional. Aparentemente, respeitador das hierarquias e
da autoridade, bem como propenso à emulação de uma atitude cavalheiresca, o
militar, salvo exceções, tende a não intimidar a mulher quando no desempenho
de suas funções jurídicas na esfera militar. Assim, o ambiente das Auditorias,
para as bacharelas, parecia ser relativamente preservado da figura depreciante
36
INTRODUÇÃO
do assédio, mais frequente em escritórios de advocacia antes dos anos 1970,
como, aliás, sugere o próprio depoimento de Vera da Mota Coelho. Por sua
vez, com pouca experiência anterior na prática advocatícia propriamente dita,
mas muita dedicação aos estudos acadêmicos, as mulheres que atuaram pionei-
ramente na área penal tendiam a ser rigorosas, formalistas, detalhistas e com-
petentes na formulação de suas denúncias. No Ministério Público dos Estados,
a vivência com o desempenho feminino era testada desde 1935. A origem
familiar protegida e identificada com princípios cristãos, típica dos anos 1950
a 1970, reforçava esse perfil.
Mas essa condição facultada às promotoras, certamente não era ex-
tensível às magistradas, por dois motivos: o membro do Ministério Público
apresenta denúncia, mas não julga, não decide, e uma juíza- auditora ocuparia
uma posição de muito mais poder que uma promotora ou procuradora, pre-
sidindo o Conselho. Além disso, juízes mais conservadores não concebiam a
possibilidade de uma mulher se reunir com os membros do Conselho a portas
fechadas para arbitrar a sentença. Portanto, a chegada das mulheres à magistratura castrense se deu mais tarde.
A questão racial é mencionada apenas por João Alfredo da Silva,
único negro dentre os entrevistados. Ele não refere nenhuma forma de discri-
minação, mas admite, com humor, que sua origem humilde e racial podia pro-
vocar algum estranhamento entre colegas ou servidores; nada que não tenha
sido tratado com descontração.
Partilhando origens sociais diversas, vindos de diferentes regiões do
país, é natural que os entrevistados tenham concluído sua formação em Direito
em instituições distintas. Registra-se uma tendência de os mais antigos cursa-
37
HISTÓRIAS DE VIDA
rem faculdades mais tradicionais, como a do Largo de São Francisco, em São
Paulo, a exemplo de Durval Araujo, ou a Faculdade Nacional de Direito, no
Rio de Janeiro, como o fizeram Francisco Leite Chaves e Paulo Duarte Fontes,
ou a Faculdade de Direito da Guanabara, como Marly Gueiros, João Ferreira
e Renato Ribeiro. Afinal, a época em que se formaram é anterior ao boom dos
cursos de Direito no país. Essa tendência, naturalmente, também é partilhada
por aqueles que provêm de um meio social mais elitizado. Mas, a partir dos
anos 1960, o que coincide com a ampliação da presença na instituição de mem-
bros oriundos da classe média, com a diversificação dos cursos jurídicos no país
e com a federalização de algumas universidades, surgem bacharéis formados
em outras instituições de ensino, como a Gama Filho, a Federal de Manaus, a
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Federal de Juiz de Fora,
a Federal Fluminense, a Federal do Ceará, a Federal do Rio Grande do Sul, a
Cândido Mendes e a Faculdade de Direito de Bauru.
Alguns assinalam a conquista de títulos de pós-graduação acadê-
micos, como Francisco Leite Chaves, que se doutorou antes mesmo da refor-
ma dos cursos superiores. Também concluíram mestrados e doutorados Vera
Regina Mota Coelho e Marly Gueiros, que estavam mais ligadas à docência
em nível superior no Rio de Janeiro. Vários desenvolveram cursos de especialização, como José Carlos Couto de Carvalho, que se formou em Magistério
Profissionalizante. Alguns tinham formação em uma segunda área (além da
militar), como João Ferreira de Araújo, diplomado em Enfermagem. Diver-
sos entrevistados passaram pela Escola Superior de Guerra, entidade criada
em 1948, segundo o modelo das war colleges norte-americanas e que deveria
funcionar como um espaço de reflexão e sociabilização de militares e civis em
torno de questões relacionadas ao desenvolvimento e à segurança do Brasil,
38
INTRODUÇÃO
abraçando um viés ideológico liberal-conservador. A ESG desempenhou pa-
pel protagonista no processo de ebulição de ideias que levou à deposição do
presidente João Goulart, com centralidade ainda durante o governo Castelo
Branco. Depois disso, apesar de menos influente, continuou um espaço prestigiado de difusão de conceitos.
De um modo geral, os membros ouvidos não apontam envolvimento
mais expressivo com o movimento estudantil, por falta de disponibilidade, já
que muitos trabalhavam para se sustentar, ou ausência de sintonia ideológica.
Uma exceção é Olympio Pereira da Silva Junior, que concorreu ao Diretório
Acadêmico, sem se eleger.
Quanto às afinidades partidárias, são mais explícitas para aqueles que
viveram a experiência democrática do período entre o Estado Novo e o regime
de 1964, o qual extinguiu as tradicionais agremiações, decretou o bipartidaris-
mo e impôs inúmeros constrangimentos ao processo eleitoral. Paulo Fontes
sublinha proximidade ao antigo PSD. Renato Ribeiro e Marly Gueiros estão
entre os que se identificavam mais com a UDN e, assim como Durval Araujo, professavam forte antigetulismo. A concluir pelo depoimento de Durval
Araujo, o PTB estava, também, se afirmando junto à simpatia de alguns membros quando sobreveio o movimento de 1964.
Por sua vez, Francisco Leite Chaves, nomeado em 1986 procurador-
-geral, sendo estranho à carreira, militou na oposição à ditadura, tendo sido
eleito ao Senado pelo MDB em 1974. Mas ele não foi o único; antes dele,
José Carlos Couto de Carvalho, que começou como servidor da Justiça Militar
em 1966 e ingressou no MPM por concurso público em 1981, era filiado ao
MDB, tendo chegado a se candidatar a um cargo eletivo.
39
HISTÓRIAS DE VIDA
Os membros que ingressaram por concurso público a partir dos anos
1980, quando se processou a abertura política, não evidenciaram vínculos partidários, o que é típico da nova classe jurídica que se formou a partir da rede-
mocratização, tendo acesso às instituições por meio de concurso público e regi-
dos por novos estatutos que recriminam a militância partidária dos operadores
do Direito na esfera estatal.
As nuances ideológicas reveladas estão em relativa sintonia com as
identificações partidárias. Há evidente predomínio de um registro liberal-con-
servador, com algumas exceções, como o senador Leite Chaves, cuja trajetória
pessoal, profissional e partidária o situa junto a uma esquerda social-democrata,
e José Carlos Couto de Carvalho. No outro extremo, entrevistados como Dur-
val Araujo, Renato Ribeiro e Marly Gueiros exprimem o pertencimento a uma
geração do período pós-guerra, que lutou contra o fascismo e se sentia mobilizada para combater o comunismo, ameaça inflada e exacerbada pelo contexto
global da Guerra Fria e pelo quadro de acirrada polarização ideológica que ca-
racterizou o Brasil dos anos 1960 e 1970. Destarte, sentiram-se razoavelmente
afinados com os conceitos de “guerra interna” e de “guerra psicológica” que a
Lei de Segurança Nacional encampou nos anos 1960, o mesmo acontecendo
com outros depoentes ingressos na instituição antes dos anos 1980.
Muitos traduzem forte engajamento espiritual. Paulo Fontes, Durval
Araujo, Renato da Cunha Ribeiro, João Jayme Araújo, Marly Gueiros, João
Alfredo da Silva e Jorge Dodaro figuram como exemplos de católicos praticantes. Rutílio Tôrres Augusto possui vínculo com a Maçonaria do Distrito
Federal e Nelson Senra se mostra mais próximo a uma perspectiva espiritualista de matriz Espírita.
40
INTRODUÇÃO
Vários entrevistados compreendem excessos cometidos durante o re-
gime militar como reprováveis, os qualificando, porém, como efeitos colaterais
de uma “guerra civil” que não teria sido iniciada pelos militares, os quais, a
propósito, teriam atendido, em 1964, a um chamado da sociedade civil para
moralizar o Brasil e garantir a preservação de liberdades democráticas, ame-
açadas, então, pelo aparente avanço da esquerda revolucionária e do sindicalismo infrene. Alguns acreditam que o movimento de 1964 teria resgatado a
nação do perigo de uma ditadura comunista, ainda que, nesse desiderato, a
tenha precipitado numa outra ditadura, à de direita.
O argumento é conhecido. Embora não seja esta breve introdução
o espaço pertinente para aprofundar a reflexão, cabe dizer que o conceito de
guerra civil se aplica, grosso modo, ao confronto de duas forças, se não em
igualdade de condições, pelo menos próximas, e que conseguem dominar
fatias diferentes do território nacional. Na República, isso aconteceu entre
1893 e 1895 (ainda que tenha sido a Revolução Federalista uma guerra de
guerrilhas e de movimento), e em 1932. Até mesmo para Canudos e para o
Contestado, questiona-se a aplicação do conceito de guerra, muito embora
a memória o tenha consagrado. Durante o regime militar, forças irregulares
e dispersas tentavam fomentar a guerrilha urbana e rural contra Forças Armadas bem-estruturadas e que controlavam o aparelho do Estado. Também
é fato que, quando o sistema repressivo atingiu o seu ápice, em 1970, com a
implantação do SNI e do DOI-Codi, a esquerda já tinha suas fileiras consideravelmente desbaratadas, como lembram os historiadores Jacob Gorender
e Carlos Fico.
Além disso, para Elio Gaspari, dentre outros, a grande motivação
para a decretação do AI-5 – que muitos consideraram um golpe dentro do gol-
41
HISTÓRIAS DE VIDA
pe, ou a verdadeira face da ditadura, que até então se apresentava mais tímida e
algo “envergonhada” –, foi o temor do governo em relação a uma grande onda
de protestos populares em decorrência das medidas de estabilização financeira e de reforma econômica que estavam sendo aplicadas, lembrando que, em
março de 1964, a inflação alcançava a casa de 120% ao ano. O AI-5, enfei-
xando poderes discricionários nas mãos da presidência da República, deveria
funcionar como uma barreira de contenção para os protestos que viriam. É
claro que seus efeitos foram muito além e tiveram consequências devastadoras
para as liberdades civis.
Por sua vez, é fato que as ações de certos movimentos da esquerda e
do próprio governo, especialmente entre 1963 e 1964, levaram água ao moi-
nho da oposição, aproximando, pelo menos num primeiro momento, liberais,
conservadores e até social-democratas. Em 12 de setembro de 1963, cerca de
600 cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha revoltaram-se
em Brasília, motivados pela decisão do STF de reafirmar a inelegibilidade dos
sargentos para o Poder Legislativo, conforme previa a Constituição de 1946. O
movimento dos sargentos fortalecera-se em decorrência de sua participação na
Campanha da Legalidade em 1961, ao lado de Brizola e de Jango. Ocuparam
importantes prédios públicos e prenderam algumas autoridades, entre as quais,
o ministro do STF Vitor Nunes Leal, mais tarde atingido pelo AI-5. Receberam apoio de deputados e sindicalistas. Mas, em poucas horas, a rebelião foi
debelada pelo Exército.
O episódio, narrado por um dos entrevistados neste livro – Durval
Moura de Araujo – foi um divisor de águas na política, pois convenceu muitos
que uma conspiração estava em curso no país, com o apoio das altas autoridades da República. Processos foram instaurados nas Auditorias Militares. Nos
42
INTRODUÇÃO
dias 19 e 20 de março de 1964, quando multidões protestavam nas ruas contra
o governo e as esquerdas, aconteceu em São Paulo um rumoroso julgamento,
no qual foram sentenciados dois civis, dirigentes do Sindicato dos Metalúr-
gicos de SP, ambos foragidos; todos, os doze militares e os dois civis, acusados de participação na Revolta dos Sargentos de 1963. O promotor – Milton
Menezes da Costa Filho (aprovado em 2º lugar no concurso de 1959 e futuro
procurador-geral de Justiça Militar) – não pediu a condenação de 13 dos 14
acusados (apenas seis foram, ao final, inocentados por falta de provas). O Conselho de Justiça considerou que havia, no processo, indícios de cooperação de
altas autoridades da República na prática dos crimes julgados. O juiz-auditor
Tinoco Barreto queixou-se, na época, aos jornais, de pressões sofridas de parte
do ministro da Justiça, Abelardo de Araújo Jurema, quem, segundo ele, teria
tentado influir no resultado.
Enquanto isso, greves de trabalhadores, um atrapalhado pedido ao
Congresso para decretação de estado de sítio e uma descabelada tentativa, de
parte do governo, para a deposição do irrequieto governador da Guanabara, Carlos Lacerda, confirmaram, aos olhos de muitos, a quebra de hierarquia militar, a
fragilidade política do presidente da República, a ameaça crescente de uma so-
lução golpista e sinalizaram para o aumento do clima de desobediência, levando
civis e militares moderados a se aproximarem de conspiradores de direita. Os
próprios partidários centristas do PTB começavam a ter motivos para desconfiar
das intenções democráticas do presidente, especialmente depois de fevereiro de
1964, quando Jango, aparentemente, endossou uma paralisação das classes con-
servadoras de Pernambuco, que pretendia desestabilizar o governador Miguel
Arraes, candidato mais cotado do partido à sucessão presidencial. Em meio ao
caos econômico e à crescente intransigência política, Jango abraçou a estratégia
43
HISTÓRIAS DE VIDA
da extrema esquerda brizolista – cuja face mais assustadora para os liberais era
mostrada pelos rumores em torno da organização dos chamados Grupos dos
Onze, processos citados aqui por alguns entrevistados, como Marly Gueiros e
José Carlos Couto – de pressionar o Congresso a aprovar medidas polêmicas,
com base em mobilizações populares de grande escala.
No entanto, não se verificou consenso entre os depoentes no que res-
peita às políticas durante o regime militar. João Alfredo da Silva achou que a
versão dos militares para o caso Vladimir Herzog não convencia ninguém. Paulo
Fontes considerou um equívoco o desfecho em torno do inquérito do Riocentro,
bem como criticou o encaminhamento dado, também em 1981, ao caso dos
padres franceses Aristides Camio e François Gouriou, detidos na região do Araguaia, juntamente com onze camponeses, acusados de incitação à subversão.
O caso Herzog é comentado especialmente nos depoimentos de
Durval Araujo, que assessorou o IPM realizado para apurar as responsabilidades pela morte do jornalista em 1975, nas dependências do Exército, e no
de Francisco Leite Chaves, que, então, na condição de senador pelo MDB,
proferiu no Congresso um aparte que gerou grande irritação nos meios milita-
res, fazendo correr ameaças de cassações de mandatos e abrindo conflito com
o general Sylvio Frota. Durval, por sua vez, essencialmente reafirma a tese de
suicídio de Herzog, sustentada pelo inquérito.
Já o caso Riocentro aparece tematizado nas entrevistas de Gilson
Gonçalves, que assessorou o IPM, e de Jorge Luiz Dodaro, procurador que
recebeu o inquérito na Auditoria e pediu o seu arquivamento. Ambos tecem
considerações sobre o caso a partir de suas perspectivas e reafirmam as razões
para o pedido. Gilson Gonçalves defende a independência do IPM, nega que
44
INTRODUÇÃO
o caso tivesse relação com outros atentados a bomba que vinham acontecendo
no Brasil no final dos anos 1970, que foram atribuídos à ação de grupos de
extrema-direita que resistiam ao processo de abertura política. Ele reconhece
que o processo era acompanhado de perto pelo então procurador-geral de Justiça Militar Milton Menezes da Costa Filho.
O caso foi reaberto em 1999, pelo procurador-geral Kleber de Car-
valho Coêlho, instaurando-se novo IPM, que culminou com uma denúncia no
Superior Tribunal Militar contra o general Newton Cruz e outros. O STM,
contudo, não recebeu a denúncia e aplicou a anistia. O jornalista Ascânio Se-
leme, de O Globo, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com as matérias sobre a
reabertura do IPM do Riocentro.
Ainda no que se refere à falta de consenso em torno de certos episó-
dios, Olympio Pereira da Silva Junior, Paulo Fontes e Rutílio Tôrres Augusto
revelam desconforto com relação ao excesso de rigor e eventual precipitação na
denúncia de crimes contra a segurança nacional por parte de alguns colegas de
Procuradoria, sobretudo em Juiz de Fora. A Auditoria na cidade mineira foi palco para a atuação do procurador Joaquim Simeão de Faria Filho, cuja performance
teria gerado críticas nos tribunais superiores e nos próprios Comandos Militares.
Uma avaliação menos ácida de Simeão é oferecida por Gilson Gonçalves, quem
também tece um retrato vivo da dinâmica de funcionamento da Justiça Militar
em Juiz de Fora. Dentre os muitos personagens que frequentam a crônica dessas
memórias, aparece Itamar Franco, futuro presidente da República, alcançado por
uma prosaica denúncia arquivada pela Subcomissão-Geral de Investigações.
A interferência política externa e os problemas decorrentes da con-
centração de poder, pelo procurador-geral, antes da Constituição de 1988, são
45
HISTÓRIAS DE VIDA
apontados por alguns entrevistados. Durval Araujo conta, por exemplo, ter
sido afastado do inquérito sobre a rebelião dos sargentos em princípios de
1964, pelo procurador-geral Ivo d’Aquino e pelo próprio ministro da Justiça
Abelardo Jurema. Já Paulo Fontes – sem deixar de reconhecer o grande mérito
de Milton Menezes na restruturação do Ministério Público nos anos 1980 e
1990, preparando-o para a existência no regime democrático –, acredita que
havia excesso de alinhamento com os militares, entre fins dos anos 1970 e
princípio dos anos 1980.
Com maior ou menor grau de sintonia, a comunicação com os Coman-
dos locais das Forças Armadas, durante o regime militar, é narrada nos depoimentos de Durval Araujo (que, afastado pelo governo Jango de suas funções, abrigou-
-se junto ao general Kruel, tornando-se, posteriormente, consultor jurídico do II
Exército), Olympio Pereira da Silva Junior, Gilson Gonçalves e Paulo Fontes.
Além do depoimento de Durval Araujo, outros, como os de Olympio
Pereira da Silva Junior e João Alfredo da Silva, sugerem como as substituições
de procuradores, antes da Constituição de 1988, podiam ser manejadas pelo
procurador-geral de Justiça Militar para que certos objetivos fossem alcançados.
Coincidentemente, Olympio e João Alfredo atuaram no processo mo-
vido contra Chico Mendes (sindicalista seringueiro, assassinado posteriormente,
em 1988), José Francisco da Silva (presidente da Contag), João Maia (delegado
da Contag em Brasileia), Luiz Inácio “Lula” da Silva (então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e futuro presidente da República) e Jacó Bittar
(secretário-geral do PT e futuro prefeito de Campinas), acusados, em fevereiro
de 1981, de “incitar a luta armada” e fazer “apologia da vingança” entre seringuei-
ros do Acre, e enquadrados por subversão na Lei de Segurança Nacional: depois
46
INTRODUÇÃO
de um ato público, em 27 de julho de 1980, em Brasileia – em desdobramento
à viagem de Lula e Bittar para o lançamento do PT no Acre e, sobretudo, em
protesto contra o assassinato, em 21 de julho, com três tiros à queima-roupa, de
Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia,
fundado em 1975 –, seringueiros revoltados atacaram e mataram o fazendei-
ro Nilo Sérgio de Oliveira, para muitos, então, considerado o responsável pelo
crime. O julgamento aconteceu em Manaus em 9 de abril de 1981 e em 1º de
março de 1984. Os acusados foram defendidos por Luiz Eduardo Greenhalgh,
Heleno Fragoso, Pedro Marques da Cunha e Sepúlveda Pertence.
Na sessão em 1981, quando se ouviram os acusados, Olympio sur-
preendeu ao pedir, na última hora, a prisão preventiva do Lula, atendendo,
segundo ele, a uma encomenda do procurador-geral, a qual, de forma ainda
mais inusitada, foi negada pelo Conselho. Ao reportar a suposta “traição” dos
juízes para o então comandante militar da Amazônia, general Leônidas Pires
Gonçalves, foi acalmado pelo “chefe”, que lhe disse que o presidente Figueiredo não desejava prender o Lula no momento em que patrocinava o avanço do
processo de “abertura política”.
A passagem é reveladora, pois sugere que não apenas o procurador-
-geral distribuía missões aos substitutos, como, nesses casos, pelos menos, es-
perava-se que o Conselho os acompanhasse, isto é, seus votos já viriam mais
ou menos prontos para o julgamento. No caso em tela, tudo, provavelmente,
não passou de um jogo de cena para enfatizar, à opinião pública, o compromis-
so da presidência da República com a abertura, ao mesmo tempo em que se
dava uma satisfação para a linha-dura, que não queria afrouxar a repressão. Por
outro lado, os acusados, envolvidos diretamente na fundação do PT, ficaram
amarrados ao processo judicial até 1984.
47
HISTÓRIAS DE VIDA
Anos mais tarde, Leônidas Pires Gonçalves – que seria escolhido
por Tancredo Neves, antes de sua morte, logo após a sua eleição indireta pelo
Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, primeiro ministro do Exército
após o fim do regime militar, e quem garantiu a transição pacífica e a posse do
vice José Sarney – concedeu entrevista em que deixou claro que não percebia
Lula como subversivo e disruptivo, mas como liderança sindical integrada ao
sistema político2. Lula, de fato, propunha transcender o antigo sindicalismo
stalinista de confronto para um novo sindicalismo de mesa de negociações,
mais ao estilo do polonês Lech Walesa. Como ele próprio declarou em uma
de suas primeiras entrevistas de fôlego à grande imprensa: “Pouco importa que
a direita me condene e a esquerda me massacre – estou no caminho certo.”3.
Na sessão de 1984, por sua vez, o procurador João Alfredo da Silva,
também em substituição, surpreendeu os advogados de defesa ao apresentar o
pedido de condenação do Lula, preparado e assinado pelo procurador Otávio
Magalhães, fazendo questão de, contudo, externar sua perspectiva divergente,
por não identificar, nos discursos proferidos em Brasileia, contribuições para a
luta violenta entre as classes sociais. Posição idêntica tivera o procurador João
Ferreira de Araújo, que passara pela Procuradoria de Manaus entre 1981 e
1982, depois da primeira audiência, na qual a prisão preventiva fora pedida. De
fato, boa parte da acusação baseava-se numa frase do Lula: “Está na hora da
2
Suas palavras exatas foram: “Concepção comunista é uma coisa; regime de
governo comunista é outra. [...] O que é um subversivo para nós? É um homem antissistêmico.
O Presidente Lula sempre foi intrassistêmico. Ele fazia parte do segmento democrático que se
chama sindicato. Ele nunca foi subversivo, no meu ponto de vista. [...] Na época vivíamos ações
antissistêmicas todos os dias: assassinava-se, assaltavam-se Bancos, se raptava embaixador. [...]
O regime militar salvou o Brasil de se tornar uma república sindicalista-comunista, criminosa
e assassina, para desaguar, depois de muita luta, na democracia que temos agora.”. DOSSIÊ
GLOBO NEWS. General Leônidas Pires Gonçalves fala sobre o Regime Militar. https://www.
youtube.com/watch?v=796FbudzwI8. Publicado em 14 de maio de 2013.
3
O ESTADO DE SÃO PAULO, 22 de novembro de 1981.
48
INTRODUÇÃO
onça beber água!”. Na plateia, entre outras personalidades, assistiam à sessão a
cantora Fafá de Belém e a atriz Dina Sfat. O Conselho absolveu os acusados
por unanimidade. Foi um dos últimos lances do capítulo dos julgamentos de
civis enquadrados na Lei de Segurança Nacional pela Justiça Militar. O julga-
mento também é comentado por Marisa Cauduro, que, na época, era servidora
da Justiça Militar em Manaus.
A audiência de abril de 1981, na qual a prisão preventiva do Lula foi
pedida pelo então procurador Olympio Pereira, acontecia sob o impacto do
julgamento de 25 de fevereiro daquele ano, na 2ª Auditoria Militar, em São
Paulo, no qual Lula e outros dez metalúrgicos foram condenados à revelia por
incitação à desobediência coletiva às leis, por terem promovido as greves de
abril de 1980 no chamado ABC paulista, mesmo depois de o TRT declarar,
preliminarmente, a ilegalidade do protesto, no que foi, a posteriori, considerado
um dos episódios mais emblemáticos da campanha pela afirmação dos direitos
civis durante o processo de abertura política. Os sindicalistas tinham o apoio
ostensivo da CNBB, da OAB e do PMDB. Em 3 de julho de 1980, o próprio
Papa João Paulo II, que visitava o Brasil pela primeira vez, promovendo um
clima de intensa comoção popular, recebeu membros do Sindicato dos Meta-
lúrgicos de São Bernardo do Campo para uma conversa, no Estádio do Morumbi, num momento em que a ameaça de cassação pesava sobre a direção da
entidade. Lula e outros doze sindicalistas haviam sido presos em 20 de abril e
liberados 31 dias depois.
Para o senador do PMDB, Teutônio Villela, a ausência dos advoga-
dos de defesa e dos acusados durante a sessão de fevereiro, na 2ª Auditoria, fora
uma forma de protesto diante da suspeita de que a sentença já estaria escrita
antes do julgamento. Para o advogado Heráclito Sobral Pinto, a condenação
49
HISTÓRIAS DE VIDA
era “uma demonstração clara de que a ditadura continua viva e atuante”. Para
o colega Seabra Fagundes, a condenação teria “péssima repercussão no exterior,
alterando a impressão que o presidente João Figueiredo causou na sua recente
visita à Europa.” 4. A prisão e o julgamento, de fato, contribuíram para projetar
a imagem do Lula nacional e internacionalmente, como um mártir da luta pela
democracia e liderança popular em ascensão, ao mesmo tempo em que deixaram o governo em situação desconfortável.
Os condenados puderam recorrer em liberdade ao Superior Tribunal
Militar, que anulou a sentença, determinando a convocação de novo julgamen-
to, desferido efetivamente em 19 de novembro de 1981. Dessa vez, defesa e
réus se fizeram presentes, recebendo da plateia apoio de personalidades como
o senador Teutônio Villela e o suplente de senador Fernando Henrique Car-
doso, além de muitos religiosos, com destaque para o bispo de Santo André,
Dom Cláudio Humes, e para o bispo auxiliar da Abadia de Westminster, Dom
Victor Guazelli. Afinal, as penas praticamente confirmaram as condenações
do julgamento anterior5. Mas terminaram novamente suspensas pelo Superior
Tribunal Militar, a partir de recurso da defesa. Por nove votos a três, o STM
decidiu, em abril de 1982, remeter o caso à Justiça Federal para ser julgado sob
a Lei de Greve, à luz da qual a matéria já estava em prescrição. O processo é
lembrando neste livro nas memórias de Marco Antonio Pinto Bittar.
Assim como existem registros de alinhamento de membros do Minis-
tério Público com o governo, há diversos relatos de inconformismo e de afirmação de independência. Durval Araujo representou para o procurador-geral de
Justiça Militar contra o presidente da República, João Goulart. Muito embora
4
5
50
O ESTADO DE SÃO PAULO, 26 de fevereiro de 1981.
O ESTADO DE SÃO PAULO, 20 de novembro de 1981.
INTRODUÇÃO
estivesse amparado pelo comandante do II Exército, no contexto de uma cons-
piração civil-militar para a derrubada do governo que estava em curso, enfrentou,
num primeiro momento, as consequências de seu ato. Paulo Fontes, mais tarde,
negou-se a denunciar João Pinheiro Neto, ex-diretor da Supra, contrariando o
general-presidente Costa e Silva e sendo por isso cumprimentado pelo ex-presidente Juscelino Kubitscheck.
José Carlos Couto de Carvalho faz questão de registrar o desem-
penho de juízes que se insurgiram contra arbitrariedades, tentando barrar
exageros e, em razão disso, amargaram prejuízos na carreira e acabaram por
vivenciar um endurecimento ainda maior da legislação, com o AI-5 e a sus-
pensão do habeas corpus. A percepção é confirmada em muitos depoimentos
de advogados de presos políticos, como no de Antônio Modesto da Silveira
ao CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, para quem, antes do AI-5, quando o juiz togado não estava sob forte coação e não era medroso, conseguiam-
-se habeas corpus: “Na maioria dos casos nós ganhávamos os habeas corpus, às
vezes, até para trancar a continuação de um processo.”. Couto lembra, ainda,
que o advogado Heleno Fragoso relaciona julgados do STM que questionavam certas decisões condenatórias, estabelecendo revisões, como no caso de
alguns sequestros de aviões civis, mantendo o exame da prova e pondo em
dúvida o peso do testemunho.
Rutílio Tôrres, que era também membro da direção da Ordem dos
Advogados do Distrito Federal, está entre os que garantem jamais terem rece-
bido nenhum tipo de orientação ou pedido vindo de parte dos militares ou do
procurador-geral. Para ele, talvez tenha sido uma questão de sorte. Outros entrevistados tampouco identificaram interferências diretas nas suas atividades.
51
HISTÓRIAS DE VIDA
Jorge Luiz Dodaro menciona o Processo dos Coronéis, um julga-
mento em pleno regime militar que durou dez dias, no qual altos oficiais foram
denunciados por corrupção. Além disso, sublinha ter feito diversos pedidos de
arquivamento de denúncias de réus incursos na Lei de Segurança Nacional.
João Jayme, por seu lado, alega, igualmente, ter pedido absolvições,
mas bem menos nos processos relativos à chamada subversão. Para Jayme, em
cerca de 70% dos casos que passavam pela Procuradoria estabeleciam-se condenações. Durval Araujo confirma que havia muitas condenações, pois as provas eram consistentes e inúmeras prisões eram em flagrante.
Olympio Pereira da Silva Junior contrariou o senador e ministro de
Minas e Energia César Cals ao se negar a denunciar os jornalistas Hélio Fer-
nandes e Hélio Fernandes Filho, da Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro,
por uma matéria que denunciava vantagem indevida na gestão do ministro.
Vera Regina Alves de Brito recusou-se, apesar das pressões de parte
do procurador-geral e do general Newton Cruz, a denunciar estudantes da
UNB como incursos na Lei de Segurança Nacional, por terem desrespeitado
as medidas de emergência, baixadas pelo presidente João Figueiredo, e pro-
movido uma passeata em 27 de abril de 1984, em protesto contra o resultado
da votação no Congresso, que não aprovou a emenda Dante Oliveira, a qual
propunha eleições diretas para o próximo pleito, em 1985.
Marly Gueiros defendeu, no STM, a condenação do capitão Luiz
Fernando Walther de Almeida, do 30º Batalhão de Infantaria Motorizado de
Apucarana, Paraná, que, em 22 de outubro de 1987, cercou e invadiu o prédio
da Prefeitura com seus comandados, em protesto contra os baixos salários percebidos e contra a deficiência do atendimento de saúde aos militares. Apesar
52
INTRODUÇÃO
da indisciplina, Walther, com o protesto, foi aclamado por muitos militares
descontentes. Sinal de novos tempos, no Congresso, o senador Jarbas Pas-
sarinho criticou o MPM e o procurador Péricles Aurélio Lima de Queiroz,
que pedira a condenação do militar em primeira instância. Foi replicado pelo
senador Leite Chaves, que já havia deixado a chefia da instituição e reassumido
suas funções no Congresso. O STM reduziu a pena e desclassificou o delito,
mas manteve a condenação.
Marisa Cauduro, já em um contexto completamente diferente, mas
ainda assim afirmando a autonomia institucional de forma indubitável, inves-
tigou e denunciou generais, durante sua gestão na chefia do Ministério Público
Militar, entre 2002 e 2004.
Para muitos, a Justiça Militar como um todo comportou-se, em ge-
ral, de modo técnico e célere. Vários acreditam que ela cumpriu o seu papel
no período do regime militar, como um ponto de equilíbrio entre os excessos
dos órgãos repressores e as ações consideradas também condenáveis, praticadas
pelos opositores mais aguerridos. Outros, ainda, como Durval Araujo, acredi-
tam que a jurisdição foi fundamental para evitar a instalação, no Brasil, de uma
ditadura de esquerda. Já para Jayme Araújo, a política de contenção foi pouco
eficaz, pois a “Revolução perdeu o seu caminho” ao se prolongar para além do
“mandato-tampão” de Castelo Branco e, muitos dos que foram atingidos pela
jurisdição, hoje estão no comando da nação.
Para Couto de Carvalho, a Justiça Militar teve a sua cota de resis-
tência ao excesso de arbítrio no regime militar, o que teria sido fundamental
para conter “barbaridades” como as que se verificaram em outros pontos do
Continente Americano, a exemplo do Chile e da Argentina. Segundo ele, pelo
53
HISTÓRIAS DE VIDA
menos antes do AI-5, houve mais independência para julgar. Couto avalia,
ainda, ter sido a luta armada um equívoco, pois não somente era impossível
enfrentar um Exército inteiro com um punhado de guerrilheiros, como suas
ações serviram de justificativa para o fechamento maior do sistema e para o
aprofundamento da repressão. Por outro lado, ele reconhece que ela difundiu a
figura do preso político, ajudando a sensibilizar a opinião pública para a necessidade da redemocratização.
Indagados sobre as denúncias de maus-tratos a presos políticos, en-
trevistados tendem a concordar que, nos inquéritos assessorados pelos procuradores, não se registravam violências contra os réus. Já para autores como
Percival de Souza, certos juízes-auditores, e também procuradores, podiam ser
vistos em quartéis ou dependências policiais, integrando aquilo que o advogado Heleno Fragoso teria, segundo registra, chamado de “repressão militar to-
gada”. A concluir da narrativa de dois episódios feita por Durval Araujo – um,
envolvendo um coronel oposicionista no Paraná, e, outro, um rapaz baleado em
um confronto com homens do Exército –, reconhecia-se que a judicialização
da prisão era uma garantia de integridade física ao acusado. O advogado Mo-
desto da Silveira, em seu depoimento ao CPDOC, citado anteriormente, está
entre os que corroboram esta tese.
As revelações de violências praticadas nos DOI-Codi ou outras de-
pendências da Polícia ou das Forças Armadas costumavam ser interpretadas
como estratégias típicas dos réus e da defesa para deslegitimar o testemunho.
Dessa forma, eram, em geral, desprezadas. Para Vera Americano e Renato da
Cunha Ribeiro, por exemplo, não se faziam exames de corpo de delito, o que
dificultava a reunião de elementos concretos que comprovassem tais relatos.
Alguns réus eram ainda considerados, eventualmente, tão violentos, que não
54
INTRODUÇÃO
parecia estranho, a membros do Ministério Público, que tivessem sido capturados em condições extremas. Vários, a propósito, sentiam-se imersos em
um clima de conflagração, alimentado pelas notícias de sequestros e assaltos a
Bancos. Os entrevistados registram que não havia o hábito de vistoriar penitenciárias, como hoje.
João Jayme destaca que a margem de manobra do promotor era res-
trita, tendo em vista a falta de estabilidade funcional. Além disso, não lhe era
facultado o direito de inquirir as testemunhas ou os réus diretamente, que
eram, nas audiências, questionados pelo juiz. De resto, a legislação os obrigava
a recorrer, em casos de absolvição.
Rutílio Tôrres, que recebeu na Auditoria em Brasília muitos proces-
sos construídos por colegas em Juiz de Fora, disse que dedicava o maior tempo
possível para sustentar alguns pedidos de absolvição, revertendo denúncias que
considerava descabidas, pois, muito embora a tendência do Conselho fosse che-
gar com certa orientação, havendo pouca margem para a modificação dos votos,
lastreava-se, assim, já a fundamentação para o recurso junto ao Tribunal, ainda
que o pedido de absolvição, formulado pelo Ministério Público, fosse considerado, para a Corte, prejudicado em favor do recurso da defesa. Para Rutílio, embora
existissem casos graves, como atentados, roubo de armamento das Forças Ar-
madas, havia muitas acusações com pouco cabimento, baseadas em fragilidades,
como um livro de capa vermelha que estaria na posse de um acusado.
O advogado Modesto da Silveira, de fato, no depoimento citado ao
CPDOC, registra que, mesmo depois da suspensão do habeas corpus, os defensores de presos políticos colaboravam muito entre si, por vezes conquistando
ressonância junto ao juiz togado, junto ao Conselho ou ao Ministério Público.
55
HISTÓRIAS DE VIDA
Os advogados, recorda, peticionavam, por exemplo, com um outro título, e com
isso, às vezes, levavam o juiz-auditor a requisitar informações, de forma que o
promotor orientava o encarregado do IPM e algo podia ser feito, como se fosse
uma espécie de habeas corpus.
Marli Crescêncio, com efeito, que atuou no auge da repressão no Rio
de Janeiro, se recorda de um episódio em que o Conselho absolveu por unanimidade réus acusados de um assalto a Banco que ela tentara condenar.
Rutílio observa que, diante dos relatos de réus de exposição a tortu-
ras durante o período de prisão, ao término do interrogatório fazia consignar,
em ata, pedido para instauração de inquérito com o fim de apuração dos fa-
tos e dos responsáveis, que estariam a serviço do Estado. Afinal, o Ministério
Público agia como fiscal da lei. Na mesma linha, Paulo Fontes diz que a força
do Ministério Público residia na sua capacidade de representar para outras
autoridades em instituições como a própria Auditoria, a Procuradoria-Geral, o
Comando Militar ou o Superior Tribunal Militar. Rutílio Tôrres garante que
essas representações saíam da Auditoria, mas não sabe dizer se na Administração Militar eram distribuídas.
Alguns entrevistados, como Rutílio Tôrres, Vera Americano e Jayme
Araújo, avaliam a dificuldade de acompanhar certos processos, em virtude de
os réus serem pessoas conhecidas no seu círculo de relações, ou, justamente,
porque alguns relatos, nas audiências, podiam ser perturbadores.
Nem todos tinham consciência do contexto social e político em cur-
so no país quando chegaram às Procuradorias. É o caso de Marli Crescêncio,
que se impressionou com a quantidade de crimes, o nível de violência e o inesperado volume de trabalho.
56
INTRODUÇÃO
O volume de trabalho foi variável. Segundo Gilson Gonçalves, por
exemplo, antes do AI-2, não chegavam à Procuradoria, em Juiz de Fora, mais
de cinco processos por mês, relacionados a questões de rotina, como pequenos
furtos, acidentes com viaturas, disparos acidentais, indisciplinas. Depois, saltou
para 50 ou mais! Vera Americano e Marly Gueiros, entre outros, sublinham,
também, que houve um aumento significativo de processos nas Auditorias
quando a jurisdição passou a julgar os assaltos a Bancos. Assim, dentre os réus,
a partir desse momento, havia militares, presos políticos e bandidos comuns.
Para Jayme Araújo, assim como para outros, os prazos eram espre-
midos e havia pouco tempo para avaliar os casos individualmente. Não poucos
processos tinham vários réus. Rutílio Tôrres comenta a enorme dificuldade vi-
venciada durante a instalação da Auditoria da 11ª CJM, em Brasília, pois uma
avalanche de processos, com inúmeros réus, herdada da Procuradoria de Juiz
de Fora, contrastava com a falta de infraestrutura de trabalho e com a exigência
de prazos exíguos. Ele conta que alguns processos prescreveram, mas que se
tentava fazer o possível para que tal condição fosse evitada, pois ela representava demérito para a instituição.
A pena máxima – de morte –, foi pedida para réus por dois entrevis-
tados: Marly Gueiros e Durval Araujo. Marly aplicou-a a um réu em Recife,
acusado de atirar à queima-roupa em um jovem porque ele vestia uma farda
militar. A primeira condenação à morte, em São Paulo, foi a partir de uma
denúncia formulada por Durval Araujo, estabelecida em 29 de novembro de
1971, em sessão que julgou três réus acusados de matar o tenente PM Alberto
Mendes Júnior, feito refém pelo grupo de Lamarca no Vale da Ribeira em
maio de 1970. O STM costumava rever as penas à morte, transmutando-as
para prisão perpétua ou reclusão de 30 anos.
57
HISTÓRIAS DE VIDA
A relação com os juízes parece ter sido cordial, a julgar pela maior
parte dos depoimentos. Para Dodaro, por exemplo, o ambiente na Justiça Militar era como o de uma família, pois todos se conheciam e havia colaboração
e solidariedade. Ainda assim, a condição de hóspedes nas Auditorias provocava razoável desconforto para alguns. Gilson Gonçalves descreve uma situação
mais conflituosa com um auditor em Juiz de Fora, que acabou sendo cassado,
porque deixava de se comunicar com o Comando Militar e teria tornado pública sua oposição ao regime militar.
De um modo geral, os entrevistados parecem compreender que ha-
via liberdade para a atuação dos advogados de defesa nas Auditorias – muito
embora vários defensores, como Sobral Pinto, George Tavares e Modesto da
Silveira, dentre outros, tenham, posteriormente, relatado coações impingidas
por elementos ligados aos órgãos de repressão. Alguns, como Marli Crescên-
cio, impressionavam-se com o desfile de grandes luminares do Direito, que assomavam às Auditorias para defender os presos incursos na Lei de Segurança
Nacional. Já Gilson Gonçalves decepcionou-se com o desempenho de figuras
consagradas, como Heleno Fragoso, mas se empolgou com o de José Luiz Clerot e Laércio Pelegrino, dentre outros.
Contrariamente ao que se poderia imaginar à primeira vista, as
relações entre advogados e membros do Ministério Público podiam não ape-
nas ser pautadas pela cordialidade e pelo respeito, como alguns enfatizam,
mas também pelo convívio amical. Vera Americano, por exemplo, que foi
assistente de Hélio Tornaghi na Faculdade, frequentava a casa do Evaristo
de Moraes, o criminalista; jogava cartas com a sua esposa e era cliente de sua
mãe, que era esteticista. Para Vera, o fato de ambos se situarem em campos
opostos nas Auditorias não contaminava, de forma alguma, a relação pes-
58
INTRODUÇÃO
soal, tampouco a amizade prejudicava o desempenho profissional. Rutílio
Tôrres, que integrava a direção local da OAB no Distrito Federal, também
percebia serem as instâncias administráveis, mas se recorda de episódios
delicados, como o do IPM instaurado contra Maurício Corrêa, então pre-
sidente da OAB/DF, que chegou à Auditoria. O caso aconteceu em 1984,
porque a Ordem manteve um seminário mesmo sob a vigência das medidas
de emergência baixadas pelo presidente Figueiredo.
Entre abril de 1985 e março de 1987, dois opositores do regime mili-
tar recém-extinto chefiaram a instituição: George Tavares, advogado de grande
prestígio com forte atuação na defesa dos presos políticos; e Francisco Leite
Chaves, senador pelo MDB desde 1974. Ambos sofreram resistências internas,
algumas das quais transparecem em depoimentos reunidos neste livro. Porém,
ao mesmo tempo, suas gestões foram fundamentais para o processo de tran-
sição institucional para a democracia. Leite Chaves, em especial, promoveu,
em 1986, em Brasília, o Primeiro Encontro Nacional dos Procuradores de Justiça
Militar, proporcionando uma chance para os membros se conhecerem pessoalmente. Até então, apesar da existência de uma associação de classe, que ainda
era jovem, havia pouco convívio e interação entre os membros, que atuavam
isoladamente em suas Procuradorias. O Encontro foi importante, ao mesmo
tempo, para a classe aprimorar estratégias de mobilização, a fim de acompanhar o processo Constituinte que se avizinhava.
Leite Chaves, além disso, tomou iniciativas então consideradas, por
alguns, como polêmicas, internamente, mas que alcançaram popularidade e
reconhecimento junto à opinião pública, como a reabertura do caso Rubens
Paiva. Ao deixar a Procuradoria, em março de 1987, Leite Chaves responsa-
bilizou cinco militares do Exército e da PM, ex-integrantes do DOI-Codi do
59
HISTÓRIAS DE VIDA
Rio de Janeiro, pela tortura, morte e sepultamento ilegal do deputado Rubens
Paiva em janeiro de 1971. A reabertura do caso teve ampla repercussão, mas
não foi adiante na gestão subsequente.
A relação com a imprensa é abordada em alguns depoimentos. Jorge
Luiz Dodaro foi jornalista junto à Auditoria Militar antes de ser nomeado defen-
sor substituto e, posteriormente, promotor substituto. O perfil não era incomum,
havendo registros de outros membros que seguiram igual trajetória. De um modo
geral, os entrevistados sentiam-se pouco pressionados pela imprensa nos anos
1970, quando, de fato, vivia-se um período de censura. João Jayme Araújo men-
ciona que somente se comunicava com repórteres que considerava confiáveis e,
geralmente, quando havia interesse na divulgação de alguma informação. Alguns,
como Gilson Gonçalves, que assessorou no inquérito do Riocentro, sugerem que
o assédio aumentou nos anos 1980, quando diminuiu a censura. Marisa Cauduro,
por sua vez, conta que uma de suas iniciativas à testa da chefia institucional, entre
2002 e 2004, foi criar uma assessoria de comunicação social, pois compreendera ser
imprescindível que as instituições se comunicassem de forma moderna.
A vida associativa é narrada com riqueza em algumas entrevistas,
como as de Paulo Fontes, Jorge Luiz Dodaro, Marco Antonio Pinto Bittar e
José Carlos Couto de Carvalho. A Associação do Ministério Público Militar
foi fundada em 30 de novembro de 1978. A entidade cresceu nos anos se-
guintes e se tornou um instrumento estratégico nas lutas da classe que foram
travadas, sobretudo, nos anos 1980 e 1990, quando o Ministério Público no
Brasil atravessou significativa reengenharia institucional.
Parlamentares como Bernardo Cabral e Maurício Corrêa, além do
próprio Leite Chaves, que depois de deixar a Procuradoria-Geral reassumiu
60
INTRODUÇÃO
suas funções no Senado, foram lembrados como personagens que apoiaram as
demandas da instituição durante o período constituinte e subsequente. Fundamentalmente, o Ministério Público Militar pugnava pela manutenção da jurisdição – cuja extinção chegou a ser aventada no início do processo constituinte
–, aderia ao projeto de reforma proposto pela CONAMP e pleiteava integrar a
carreira do Ministério Público da União, com isonomia completa em relação aos
membros do Ministério Público Federal. Os lances dessa campanha em prol da
reengenharia institucional são discutidos, especialmente, por Paulo Fontes, Jorge
Luiz Dodaro, Marco Antonio Pinto Bittar e José Carlos Couto de Carvalho.
A redemocratização trouxe estabilidade funcional e autonomia insti-
tucional para o Ministério Público Militar, mas coincidiu com a inauguração de
um período de agitação interna. A política institucional é tema das memórias de
Marco Antonio Pinto Bittar, José Carlos Couto de Carvalho e Marisa Cauduro.
O processo eleitoral interno democratizou o acesso ao posto de comando da ins-
tituição, porém, criou grupos de apoio que passaram a disputar projetos distintos.
São muito ricas as entrevistas de Nelson Senra, Marisa Cauduro,
Marco Antonio Bittar e José Carlos Couto no que se refere às reflexões em
torno das reformas administrativas pelas quais a instituição passou no período
posterior à Lei Complementar nº 75, de 1993. Novas rotinas, fluxos e proce-
dimentos precisaram ser sedimentados, com o fortalecimento de órgãos, por
exemplo, a Câmara de Coordenação e Revisão, a Divisão de Documentação
Jurídica e a própria Corregedoria-Geral.
Há dezenas de processos mencionados nas entrevistas, aqui reunidas,
tanto os relativos aos crimes propriamente militares, quanto os atinentes aos
delitos incursos na Lei de Segurança Nacional. Desde casos prosaicos, como
61
HISTÓRIAS DE VIDA
o suposto roubo de uma vaca por um soldado, relatado por Durval Araujo, ou
o julgamento de um concurso de artes, em Minas Gerais, com obras vence-
doras consideradas subversivas, narrado por Olympio Pereira da Silva Junior.
Dentre os processos envolvendo militares, o espectro alcança casos obscuros e
desconhecidos, como o de um sargento de Marinha, acometido de uma espécie
de surto, que assassinou os oficiais superiores enquanto dormiam a bordo da
embarcação, em 1963, contado por Paulo Fontes, até casos de enorme reper-
cussão, nacional e internacional, como um envolvendo a construção do subma-
rino nuclear brasileiro, abordado por Marco Bittar, ou os acidentes havidos no
espaçoporto de Alcântara, tratados por Marisa Cauduro.
Gilson Gonçalves, por sua vez, chama a atenção para um tipo de
processo muito peculiar que transitou pela Justiça Militar, no início do regime
instalado em 1964: os chamados crimes contra a economia popular, que leva-
ram a julgamento empresários e pequenos comerciantes, como açougueiros,
acusados de desrespeitar o tabelamento de preços.
Há muitas personalidades do mundo jurídico, político, cultural e re-
ligioso referidas nessas memórias, relacionadas a diferentes episódios e processos. Apenas dentre presidentes da República citados estão: João Goulart, Itamar Franco, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, José Sarney, João Batista
Figueiredo, Luiz Inácio “Lula” da Silva e Dilma Rousseff. Diversos processos
emblemáticos, além de alguns já comentados, foram lembrados nas entrevistas,
como o dos “Oficiais Contrarrevolucionários”, o da “Guerrilha de Caparaó”,
o das “Cadernetas de Luís Carlos Prestes”, o do “Padre Alípio”, o do “Cofre
do Adhemar”, o dos “Padres Dominicanos”, o de “Lamarca”, o da morte do
“Capitão Chandler”, o da “greve da Polícia Militar na Bahia”, o “acidente entre
um pequeno avião civil e um caça”, no qual faleceu um membro do Ministério
62
INTRODUÇÃO
Público do Rio Grande do Sul e muitos outros, menos ou mais conhecidos.
Sobre alguns, acrescentam-se novidades, outros olhares e perspectivas. De outros, nada se disse de realmente novo em face do que já é conhecido.
Alguns entrevistados abordam, ainda, aspectos da sua trajetória pro-
fissional fora do Ministério Público Militar. Olympio Pereira da Silva Junior,
por exemplo, descreve a experiência vivida na AGU, no Rio de Janeiro; Renato
da Cunha Ribeiro discorre sobre as atividades do escritório de advocacia de
sua família, no Rio de Janeiro; João Ferreira de Araújo conta sua passagem
pela Marinha, com destaque para uma viagem de circunavegação do globo
realizada nos anos 1950; Francisco Leite Chaves comenta a sua passagem pelo
Congresso Nacional e as célebres eleições de 1974.
No espaço desta introdução é impossível comentar todos os casos,
processos e vivências individualmente. Longe vai nossa pretensão, portanto,
de aqui esgotar a matéria e de referir a vasta bibliografia existente sobre esses
casos. Mas se espera ter oferecido ao leitor uma perspectiva geral da multiplicidade dos temas e das ideias desenvolvidos.
Gunter Axt
Doutor em História Social USP,
Pós-doutorando em Direito UFSC
63
HISTÓRIAS DE VIDA
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68
ENTREVISTAS
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Entrevista realizada na residência do entrevistado, em São Paulo,
no dia 26 de junho de 2015, por Gunter Axt.
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Durval Ayrton Moura de Araujo nasceu em 17 de dezembro de 1919, em
Cuiabá, no Mato Grosso do Sul. É filho de Dacio Browe de Araujo e Ostilia
Moura de Araujo. Casou-se com Veralice Toledo Ladeira de Araujo. Graduouse em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), em 1943. Começou
suas atividades na Justiça Militar como defensor dativo substituto, em 1947.
No mesmo ano, em agosto, ingressou no Ministério Público Militar, nomeado
para o cargo de segundo substituto de promotor de primeira entrância, para
atuar na 2ª Auditoria da 2ª Região Militar, em São Paulo. Em agosto de
1948, foi nomeado primeiro substituto de promotor de primeira entrância.
Em 1959, prestou concurso público para ingresso na carreira como efetivo,
posicionando-se na 17ª colocação entre os aprovados. Em 9 de novembro de
1960, teve reconhecida, pelo presidente da República, a estabilidade no cargo,
por ocupá-lo durante mais de cinco anos, do qual, entretanto, foi afastado,
temporariamente, pelo ministro da Justiça em princípios de 1964. Foi
reintegrado em abril de 1964. Em 10 de maio de 1971, foi aproveitado no cargo
de procurador de terceira categoria. Em 6 de janeiro de 1972, foi promovido a
procurador de segunda categoria da 1ª CJM da Guanabara. Ainda nesse ano,
em junho, foi designado membro da Subcomissão-Geral de Investigações no
Estado de São Paulo. Em abril de 1979, foi designado para ocupar função de
assessoramento junto à chefia da Casa Civil do Governo do Estado de São
Paulo. Em julho de 1980, ascendeu ao cargo de procurador militar de primeira
categoria, funcionando na 2ª Auditoria da 2ª CJM, em São Paulo. Em janeiro
de 1990, aposentou-se.
71
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural daqui, de São Paulo?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sou natural do Mato Grosso do
Sul, onde meu pai ajudou a construir os quartéis de Bela Vista e de Ponta Porã,
pela Construtora de Santos, em 1915. São quartéis desmontáveis. Foi nessa
ocasião que meu pai conheceu minha mãe, natural daquele Estado, da família
Moura. Ela tinha 16 anos. Tiveram dois filhos, que lá nasceram, mas logo depois
mudamos para São Paulo.
A minha trajetória no Ministério Público é longa, pois tenho 95 anos
de idade e acho que hoje sou o mais antigo membro da instituição: completo
96 anos agora em dezembro. Cursei o CPOR em 1943, quando estávamos em
guerra. Estava no quarto ou quinto ano da Faculdade e entrei para o CPOR,
que funcionava na rua Abílio Soares, em São Paulo. Quando fiz o estágio, fui
promovido a capitão R/2 (que significa da reserva). Estagiei no 4º Esquadrão
de Cavalaria. Lá conheci, entre outros, um cabo que se chamava Anselmo,
que se envolveu no roubo de uma vaca, sobre o qual abriram inquérito. Ele foi
processado na 2ª Auditoria de Guerra. Como eu já estava praticamente formado,
fui defender o cabo e consegui sua absolvição: ele não tinha nada a ver com a
vaca, que, simplesmente, tinha sumido. Assim, conheci a Justiça Militar.
Nessa ocasião, o auditor era o Dr. [Otávio] Steiner do Couto, antigo
na Justiça Militar e na 2ª Auditoria. Quando terminou a sessão, ele me chamou
e perguntou se eu gostaria de assumir uma vaga de advogado de ofício substituto
que estava disponível. Eu comecei a advogar muito cedo, porque trabalhava
com um tio que era advogado em São Paulo e tinha uma banca grande. Então,
já conhecia alguma coisa. Concordei e ele me nomeou primeiro substituto de
advogado da Justiça Militar em 1947... Faz muito tempo!
72
DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
A minha função era substituir os advogados titulares durante as férias
e impedimentos. Então, eu trabalhava, em geral, de três a quatro meses por ano.
Foi assim que comecei, como advogado de ofício. A composição, naquela época,
era curiosa. Havia o Conselho, formado por quatro militares, um auditor, um
promotor e os advogados que funcionavam nas audiências. No mesmo ano de
1947, abriu uma vaga de segundo promotor substituto e assumi esse cargo. No
ano seguinte, passei a primeiro promotor substituto, até que abriu o concurso
para promotor militar titular: fui aprovado e continuei na Auditoria.
Memória MPM – Esse concurso de dezembro de 1959, foi aquele em
que passaram o Dr. Milton Menezes da Costa, o Dr. Ruy [de Lima] Pessôa e a Dra.
Marly [Gueiros Leite]?...
Durval Ayrton Moura de Araujo – Exatamente! O senhor está
bem-informado! A Marly ficou no Rio de Janeiro, depois de passar por São
Paulo; o Ruy foi para a Bahia e o Milton veio para São Paulo porque vagou o
cargo de titular. O Ruy e o Milton tornaram-se, anos mais tarde, procuradores-gerais. Não sei dizer qual foi o destino dos outros aprovados.
Bem, aí chegou a Revolução de 1964. Para a 2ª Auditoria seguiam
todos os processos relacionados à Segurança Nacional. Assim, acompanhei
o rolo todo. Funcionei, por exemplo, no processo dos chineses, em 1964.
Na denúncia dos oficiais que tiveram atitude contrarrevolucionária – havia,
inclusive, generais envolvidos. Funcionei na denúncia dos sindicatos e líderes
sindicais engajados na agitação marxista-leninista patrocinada pelo extinto
governo João Goulart.
Atuei no processo dos frades dominicanos, que levaram ao [Carlos]
Marighella, em 1969. Os dominicanos acolhiam os subversivos em uma igreja
73
HISTÓRIAS DE VIDA
em Perdizes. Foram julgados em setembro de 1971, sendo quatro ou cinco
condenados. Foi um julgamento tumultuado, com assistência lotada, muitos
religiosos na plateia e bastante interesse da imprensa.
Funcionei em muitos processos sérios, inclusive num em que logrei
condenar um réu à morte. A sua vítima era um tenente da Polícia Militar, chamado
Alberto [Mendes Júnior], refém do grupo de Carlos Lamarca, que foi morto a
coronhadas e enterrado ainda vivo, na região de Sete Barras, interior de São Paulo.
O Superior Tribunal Militar converteu a pena de morte em uma pena de prisão.
Bem, eu trabalhei durante todo esse tempo. Em janeiro de 1972, fui
promovido a procurador na Guanabara e, logo depois, me aposentei, pois já
tinha mais de 30 anos de serviço. Durante todos esses anos, advoguei, porque,
naquele tempo, curiosamente, os promotores podiam advogar, menos contra
a Fazenda Nacional e as Forças Armadas. Assim, eu mantinha um escritório
grande em São Paulo. Me especializei em advocacia de família. Fiz muita
separação, divórcio, desquite. Trabalhei até dois, três anos atrás, quando fui
acometido de artrose em ambos os joelhos, o que dificulta meus movimentos.
Tinha que me submeter a uma operação, tomar remédios e passei a andar na
cadeira de rodas. Nessa ocasião, já trabalhava em casa, mas chegou um ponto
em que parei, não dava mais.
Memória MPM – Estou vendo, nesta sala, muitas fotografias de cavalos,
de cavaleiros, adereços que representam figuras de cavalos...
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sempre fui apaixonado por
cavalos! Naquela foto sou eu, saltando. Sou sócio há anos da Sociedade Hípica
Paulista, onde mantive cavalos por muito tempo. Aquela outra foto é da minha
turma do CPOR, em um trabalho de campo. Já estão quase todos falecidos.
74
DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Memória MPM – O senhor estudou Direito no Largo de São Francisco?
Como era naquela época?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim. A Faculdade de Direito
funcionava no antigo convento, que existe até hoje. Então, quando entrei, ainda
funcionava lá; depois foi erguido o prédio atual.
Memória MPM – O senhor se recorda dos professores?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Eram todos civis, não havia
nenhum padre. Lembro-me muito do Miguel Reale, que foi meu professor
de História da Filosofia do Direito. Era uma Faculdade muito reconhecida e a
única em São Paulo. Depois começaram a aparecer outras Faculdades.
Memória MPM – O senhor funcionou no processo relativo à chamada
Rebelião dos Sargentos, acontecida em setembro de 1963?
Durval Ayrton Moura de Araujo – No processo dos sargentos
propriamente dito, não, porque esse correu, salvo engano, no Rio de Janeiro.
Mas houve um, também instaurado na 2ª Auditoria, em São Paulo, que,
inclusive, envolvia civis.
Os sargentos reivindicavam o direito a serem elegíveis para o Poder
Legislativo, porém, o STF negava-o, o que serviu de pretexto ou justificativa
para a insubordinação. Em Brasília, a coisa foi feia, porque cerca de seiscentos
rebeldes se apoderaram do prédio do Departamento Federal de Segurança
Pública, além do Ministério da Marinha, da Rádio Nacional, entre outros. As
comunicações da Capital Federal com o resto do país foram cortadas. Ministros
do STF foram tomados como reféns. O presidente da República estava em
viagem, não estava lá. O Exército foi eficiente e sufocou a rebelião em cerca de
75
HISTÓRIAS DE VIDA
doze horas e mais de quinhentos rebeldes foram detidos e enviados para um
navio-prisão no Rio de Janeiro.
O IPM instaurado na 2ª Auditoria pretendia apurar os responsáveis
pelo planejamento da rebelião em São Paulo, onde ela também repercutiu.
Em 19 de março de 1964, no mesmo dia em que meio milhão de paulistanos
tomavam as ruas na “Marcha pela Liberdade”, protestando contra a ameaça de
ditadura, 14 indiciados, doze dos quais sargentos, e dois civis foram julgados. Seis
sargentos foram inocentados e os demais, condenados a quatro anos de reclusão,
que então era a pena máxima para os crimes de incitamento contra a autoridade
e insubordinação militar. Mas não fui eu quem funcionou no julgamento.
Os dois civis envolvidos eram os sindicalistas [ José Araújo] Placido,
e [Affonso] Delellis, que era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores
nas Indústrias Metalúrgicas, empossado nessa função em setembro de 1963.
O Sindicato participava do Comando Geral dos Trabalhadores e apoiava
abertamente a política de radicalização do presidente Jango. Delellis e Placido,
assumidamente comunistas, participaram do movimento dos sargentos, já
que os insurgentes também apoiavam Jango. Eles estavam com panfletos do
PTB, apoiando a elegibilidade dos sargentos e o movimento todo. Conduziram
sargentos em seu automóvel. Ambos foram presos em dezembro e soltos em
janeiro; acabaram indo a julgamento como revéis, pois estavam foragidos.
Memória MPM – Mas a Lei de Segurança Nacional já permitia que civis
fossem julgados pela Justiça Militar?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim. A Lei nº 1.802 conferia, à
Justiça Militar, a competência para julgar os crimes contra a segurança externa.
Mas, como eles foram presos na área do quartel de Quitaúna, do II Exército,
76
DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
e estavam envolvidos numa rebelião que tomou a Capital Federal e respingou
em São Paulo e no Rio de Janeiro, considerou-se crime militar. O ponto é que,
nas declarações que prestaram nos autos, eles afirmaram que tanto a Rebelião
dos Sargentos, quanto as greves, deflagradas em grande número em São Paulo
naqueles tempos, haviam eclodido por ordem do próprio presidente da República.
Recebendo aquelas declarações, fiz um ofício ao procurador-geral da
Justiça Militar, o senador catarinense Ivo d’Aquino [Fonseca], juntei com uma
cópia dos depoimentos (que afirmavam que o responsável pelas greves e pela
insurreição era o João [Belchior Marques] Goulart), e solicitei providências
no sentido de denunciar o presidente da República. Ainda em dezembro de
1963, como resposta, recebi uma ordem da Procuradoria para deixar o cargo, e o
ministro da Justiça [Abelardo de Araújo Jurema] veio pessoalmente a São Paulo
para efetuar a minha prisão. Procurei o general Amaury Kruel, comandante da
Região Militar, que me recomendou desaparecer. Então, me escondi no Guarujá.
Como vagou o cargo, o Dr. Milton Menezes da Costa, que havia passado no
concurso de 1959, foi indicado para o meu lugar. Assim, quem fez o julgamento
foi o Dr. Milton, que mais tarde tornou-se nosso procurador-geral e por quem
tenho imenso respeito. Ele tinha um viés meio esquerdista e creio que aliviou
a mão na hora do julgamento. Eu teria sido mais duro na denúncia e na sua
sustentação, pois, para mim, a responsabilidade de altas autoridades da República,
naquele episódio, era evidente. Além disso, eu teria insistido em denunciar o
envolvimento do presidente da República
Memória MPM – O senhor chegou a ser demitido ou foi transferido?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Fui afastado pelo ministro da
Justiça e reintegrado ao posto com a Revolução.
77
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Mas o senhor já era concursado, como conseguiram
afastar um concursado?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Precisariam fazer um processo,
pois em 1960 eu requerera estabilidade, em função de decorridos mais de
cinco anos no exercício da função pública. Mas eu fui para o Guarujá, onde
me escondi e, em março, veio a Revolução.
Eu estava no gabinete do Kruel, quando ouvi uma conversa dele com
o Jango, pelo telefone. O Kruel dizia para o presidente voltar atrás e fazer uma
declaração de que era democrata, que não apoiava a quebra da hierarquia militar,
tampouco o clima de insubordinação civil. Na prática, ele estava instalando
uma República sindicalista. As pessoas estavam convencidas de que ele e o
Brizola queriam fechar o Congresso e instalar uma ditadura comunista. Foi
nesse contexto que ocorreu aquela greve dos marinheiros no Rio de Janeiro. O
clima, que já era muito tenso em função da Rebelião dos Sargentos e das muitas
greves, ficou insustentável. A quebra da hierarquia e da disciplina militares e a
insubordinação civil estavam patentes.
Enfim, quando veio a Revolução, o Kruel mandou um recado
para eu reassumir o cargo, assim, espontaneamente. Perguntei sobre o
procurador-geral que havia me afastado e ele disse que era para eu reassumir
por ordem dele e pronto! Aí, voltei para a 2ª Auditoria e não saí mais de lá.
Em 1972, fui promovido para a Guanabara, mas continuei vinculado a São
Paulo. Quando fui transferido para Brasília, solicitei minha aposentadoria.
Aconteceu muita coisa nesse tempo em que atuei como promotor e como
procurador... até ameaça de morte eu recebi, assim como muitas cartas
anônimas.
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Memória MPM – Então, o senhor já estava em São Paulo quando
estourou a Revolução. Colaborou nesse processo?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, eu estava em São Paulo.
As coisas eram diferentes do que hoje em dia. Eu pertencia a uma geração de
guerra, que fora treinada para estar em prontidão. Primeiro, lutamos contra
o fascismo. Em seguida, veio o inimigo comunista. O mundo atravessava a
Guerra Fria. A revolução cubana, acontecida havia pouco, em pleno continente
americano, despertava medos e paixões. Quando eclodiu o movimento dos
sargentos, encaramos nossos piores temores, fantasmas da Intentona do
Prestes, de 1935, quando militares foram covardemente assassinados dentro
dos quartéis, enquanto dormiam, por colegas de farda. Parte dos sargentos
apoiara o Jango e o Brizola em 1961 e se falava muito nos Grupos dos Onze,
que estariam se organizando por todo o país. Havia greves. Ou fazíamos
alguma coisa, ou corríamos o sério risco de sermos tragados por aquela maré.
Se não houvesse ocorrido a Revolução, onde nós estaríamos?
Memória MPM – Em princípios de setembro de 1964, o senhor
confirmou ao jornal Estado de São Paulo que teria sido indicado pelos
comandantes do II Exército e da Quarta Zona Aérea ao cargo de procurador-geral de Justiça Militar, mas a nomeação recaiu, por aqueles dias, sobre Eraldo
Gueiros Leite...
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, eu estava ligado à Revolução
e uma convocação assim seria natural. Ficaria muito honrado com a nomeação,
mas já fiquei honrado com a indicação e os apoios recebidos. O presidente
Castelo Branco preferiu o Dr. Eraldo Gueiros, pois os dois eram amigos desde
os tempos de Recife. Eu tinha muita proximidade com o Kruel. Trabalhei como
79
HISTÓRIAS DE VIDA
assistente jurídico do comandante do II Exército durante muito tempo, sem
prejuízo de minha função. Continuei nessa atividade mesmo depois de minha
promoção para a Guanabara. Também trabalhei no gabinete do secretário de
Segurança de São Paulo.
Memória MPM – O senhor mencionou vários casos nos quais atuou...
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, fiz uma quantidade enorme
de denúncias. Fui campeão de prisões! Estão todas documentadas, pois guardo
cópias das denúncias. A Lei de Segurança Nacional previa prisão preventiva
em face da denúncia.
Memória MPM – E, em geral, havia condenação?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Havia muitas condenações, até
porque as provas eram consistentes e muitas prisões, em flagrante. Recordome de um caso curioso. Eu estava em meu escritório e fui procurado por um
colega que disse precisar muito de meu auxílio. Ele tinha um preso que estava
no Hospital São Camilo, que havia sido baleado em um confronto com o
pessoal do Exército e aguardava para ser operado. Nesse confronto morrera
um oficial e o meu colega não queria entregá-lo para o Exército, temendo que
o matassem. Preferiu entregá-lo para mim, de forma que eu poderia prendê-lo
e fazer o processo, mas ele estaria sob a proteção da Justiça. Logo recebi um
telefonema do Exército, questionando onde estava o preso e eu disse que não
tinha conhecimento. Peguei meu carro, fui até o hospital e falei com o diretor:
“Vou entregar essa pessoa para o senhor; o senhor será o responsável por ele.”.
Mandei bater um termo de entrega de preso e fui embora. Parece que o rapaz
sobreviveu depois da operação.
80
DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Outra vez, fui designado para ir a Curitiba visitar um coronel que
estava preso e negava a acusação de ser comunista que incitava os subalternos.
Fui ao local em que ele estava preso e conversamos, mas continuou negando.
Então eu disse: “Se o senhor confessar, vou abrir um inquérito e o senhor
será processado. Se não confessar, não sei o que vai acontecer com o senhor,
e não me responsabilizo, porque vai ser entregue aos militares.”. Voltei ao
hotel, onde recebi um telefonema do coronel. Ele disse que havia pensado
melhor e que me contaria tudo o que tinha ocorrido e as pessoas envolvidas.
Perguntei se era de livre e espontânea vontade. Ele respondeu que preferia
ser preso e condenado, mas ficar vivo. No outro dia, peguei a declaração dele
e voltei para São Paulo; esse foi um dos processos em que atuei também fora
de São Paulo.
Outro fato significativo foi o julgamento de um companheiro
do Lamarca que foi preso. Durante o julgamento da prisão preventiva, os
jornalistas estavam acampados na frente da Auditoria. Procurei o auditor, Dr.
[Tinoco] Barreto, e lhe falei: “Há uma turma de jornalistas acampados lá na
frente para fazer pressão, o que o senhor vai fazer referente a isso?”. Ele disse
apenas que não ia se meter e falou para eu procurar o outro auditor, que era
sobrinho do Dr. Paulo Carneiro Maia (professor emérito do Largo de São
Francisco e célebre advogado). Subi para falar com ele, que também falou que
não se envolveria. Disse-me para resolver. Eu não tinha como resolver, era
apenas promotor, ele era o responsável pela Auditoria! Mas, desci e procurei
o sargento Roberto, um negro de dois metros de altura, e lhe informei que
tínhamos uma missão; descemos com dois praças armados, cheguei lá e disse:
“Vocês têm meia hora para sair daqui, se não a Polícia vai prender vocês ou
coisa pior!”. Eu estava desarmado, mas o sargento Roberto carregava uma
81
HISTÓRIAS DE VIDA
metralhadora. Depois de um tempo, veio o que poderia ser o jornalista-chefe
e disse que sairiam em paz. Porque eu tinha alertado que, se eles não saíssem,
não me responsabilizaria pelo que viesse a acontecer, porque, naquele tempo,
valia tudo!
Memória MPM – Como foi acompanhar o inquérito do [Vladimir]
Herzog, um caso emblemático que impactou a história do país?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Atuei na assessoria de diversos
IPMs. Quando houve o caso do Herzog fui designado, pela Procuradoria-
-Geral de Justiça Militar, para acompanhar o inquérito, todo o desenrolar,
a produção de provas. A família do Herzog estava representada pelo José
Carlos Dias, que depois veio a ser ministro da Justiça, e que moveu uma
ação contra o governo. Foi por causa desse processo e da morte do [Manoel]
Fiel [Filho], que, pouco tempo depois, o general Ednardo [D’Ávila Mello]
acabou sendo afastado. Esse foi, talvez, o processo mais sério que assessorei.
O encarregado era o [general] Cerqueira [Lima]. Foram ouvidas as
testemunhas de defesa e de acusação. Fui ao Instituto Médico Legal para ver
o cadáver. Também vi as fotografias do corpo, tiradas dentro da prisão, que
o retratavam enforcado com o próprio cinto. Me convenci de que se tratava
de suicídio.
Memória MPM – O rabino [Henry Isaac] Sobel, ao preparar o
corpo, que, como suicida, teria de ser enterrado fora do cemitério, mudou de ideia
e resolveu sepultá-lo dentro, pois concluiu que o mesmo apresentava indicações de
sevícias, incompatíveis com a tese de suicídio. Quando o senhor esteve no IML, não
viu nenhuma marca?
82
DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Durval Ayrton Moura de Araujo – O corpo estava nu, disposto
em uma pedra, pois os judeus costumam banhar os seus cadáveres antes de
sepultá-los. Não havia sinais aparentes de que tivesse sofrido tortura. Dizem
que ele se suicidou porque entregara os companheiros e isso lhe provocara
um drama de consciência. Parece que ele tinha uma tendência depressiva.
Chegou a escrever uma carta, confessando ser subversivo. Depois a rasgou e
se suicidou.
Memória MPM – A família não reconheceu, nessa carta, o estilo de
redação do Herzog...
Durval Ayrton Moura de Araujo – A esposa dele reconheceu a
grafia e a assinatura do Herzog. Isso está no inquérito.
Memória MPM – Um dos motivos para que a tese do suicídio tenha
sido muito contestada foi porque os joelhos estavam fletidos nas fotos da prisão que
foram divulgadas. Além disso, o Herzog havia se apresentado espontaneamente pela
manhã e, à tarde, já estava morto.
Durval Ayrton Moura de Araujo – Levantaram diversas hipóteses
no sentido de tentar provar que ele fora torturado antes de morrer. Porém, na
fotografia grande, que analisei durante o inquérito, ele estava pendurado com
o cinto do macacão que eles davam para os presos.
Memória MPM – Costumavam deixar os presos com cinto nas celas?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Até então sim. Só começaram a
tirar depois da morte do Herzog. Mas, até então, fazia parte do uniforme, um
macacão com cinto, com o qual ele se enforcou.
83
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Isso acendeu um barril de pólvora em São Paulo, ocorreu
uma missa ecumênica com 40 mil pessoas na Catedral da Sé.
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, estava presente o cardeal-
-arcebispo [dom Paulo Evaristo] Arns, que dava cobertura para os subversivos,
assim como aquele lá de Recife [dom Hélder Pessoa Câmara]. A Igreja dava
cobertura, recebia e protegia esse pessoal. Como o Marighela foi morto? Porque
os dominicanos foram apertados e deram toda a ficha: que ele estaria tal dia na
Av. Casa Branca, etc. Ele foi morto no carro pela equipe do delegado [Sérgio
Fernando Paranhos] Fleury.
Memória MPM – O senhor chegou a conhecer o Fleury?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Conheci-o pessoalmente, e em
circunstâncias especiais. Eu estava em Ilha Bela, num barco, quando ele chegou,
também de barco, com companheiros e amigos. Quando foi pular de um barco
para o outro, caiu no meio. Morreu prensado, afogado, entre os dois barcos. Nem
se fez autópsia. Estava junto um delegado de Polícia, muito amigo dele, que não
deixou fazer. Tecnicamente, teria de ser feita, mas aceitaram os testemunhos.
Parece que teve um infarto e caiu dentro da água, ficando preso entre os dois
barcos. Meu barco estava do lado. Era um delegado especial; um homem corajoso,
de iniciativa, mas meio bandido também, porque prendia e torturava. Era um
delegado temido...
Memória MPM – Falando nessas denúncias de maus-tratos aos presos,
elas chegavam às Auditorias?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Não, nunca! Eu recebia os
inquéritos já prontos, com o relatório do delegado. Não havia nenhum sinal
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
concreto. Comentava-se que o sujeito poderia ter sido torturado, que teriam lhe
feito isso ou aquilo. Mas, veja, todo preso diz que sofreu maus-tratos. É uma
estratégia de defesa. Agora, provas concretas, não havia. O responsável pelo DOICodi [Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de
Defesa Interna] era o general [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que, até hoje,
está sendo processado e foi citado pela Comissão da Verdade. Dizem que fazia
essas coisas, apesar de ele negar. Até admito, hoje, que acontecesse algo, pois,
como dizia o Jarbas [Gonçalves] Passarinho, nós estávamos em guerra. E do
outro lado também se promoviam excessos. Por exemplo, morreu aquele soldado
sentinela [Mário] Kozel Filho, que estava na guarita quando jogaram um carro
cheio de explosivos em cima dele, um menino de 18, 19 anos. De ambas os lados
se cometiam exageros. Nós enfrentávamos bandidos, assaltantes de Banco. Eles
me conheciam e me procuravam, o pessoal do DOI-Codi e do DOPS. Pediam
conselhos, orientação jurídica. Mas nunca tive conhecimento de nenhuma tortura.
Memória MPM – No inquérito do Herzog, testemunhas que teriam sido
detidas na mesma oportunidade, como o jornalista Paulo Markun, não relataram terem
sofrido tortura?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, de fato, como mencionei,
houve empenho de alguns para consolidar a tese de que o Herzog teria sofrido
tortura na prisão, mas não havia provas suficientes, eram declarações subjetivas;
outras, não diziam respeito ao caso em si.
Memória MPM – O juiz federal João Gomes Martins, titular da 7ª Vara,
foi impedido, por um mandato de segurança do governo, de ler a sentença no caso da
ação civil que a família moveu contra a União. Ele estava às vésperas da aposentadoria
compulsória, aos 70 anos...
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HISTÓRIAS DE VIDA
Durval Ayrton Moura de Araujo – Correto. Aí a ação foi para as
mãos de um juiz bem mais moço [Márcio José de Moraes], que contestou a
nossa conclusão de que se tratara de suicídio e responsabilizou a União. No
final, a família recebeu uma indenização.
Memória MPM – Foi uma decisão que repercutiu no mundo inteiro. O
senhor mudou a sua opinião em relação à interpretação dos fatos?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Respeito a perspectiva do juiz
e, realmente, depois de tanto debate, a gente reflete. Mas eu ainda acho que
faltam elementos para, objetivamente, sepultar a versão de suicídio.
Memória MPM – O general Leônidas Pires Gonçalves seguiu convicto,
em suas últimas entrevistas, de que se tratava de suicídio, assim como o coronel
Erasmo Dias.
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim...
Memória MPM – Logo depois da morte do Herzog ocorreu a morte,
em condição suspeita também, do sindicalista Manoel Fiel Filho. O senhor chegou a
funcionar nesse inquérito?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Não. Foi uma fase muito difícil...
Havia muita tensão e desconfiança. Ao mesmo tempo em que se começava a
falar em revogação do AI-5, havia quem generalizasse, vendo comunistas e
terroristas por tudo. Isto é, um sujeito tinha uma inimizade qualquer e já o
acusava de ser comunista.
Memória MPM – O senhor falou sobre a pressão que os jornalistas
faziam sobre o Conselho. Havia pressão dos militares?
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Durval Ayrton Moura de Araujo – Nenhuma. Sabe como é militar:
cumpre ordem. A ordem era cumprir a lei. O auditor tinha a função de dar
orientação jurídica ao Conselho, mas o julgamento era do colegiado. Eles não
sofriam pressão nenhuma, ao contrário.
Memória MPM – O senhor chegou a pedir absolvição alguma vez?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Muito raro, pois quando o
inquérito feito nos quartéis ia para a Auditoria, já estava bem-preparado:
faziam a coisa de acordo com a lei. Era tudo exemplar. As denúncias do
Ministério Público eram publicadas na íntegra em alguns jornais. Mas caso
não houvesse caracterização de delito, eu não pedia condenação. Porém,
geralmente tinha, vinha tudo bem-preparado: declaração pronta, confissão,
testemunhas, corpo de delito.
Memória MPM – O senhor mencionou, antes, ter sofrido ameaças...
Durval Ayrton Moura de Araujo – Foi uma vida tumultuada. Sofri
ameaças. Um dia estava em casa, e, como era solteiro, morava com a minha mãe,
que já era viúva; tinha acordado cedo e minha mãe disse que havia três pessoas
lá embaixo que estavam esperando por mim. Eram pessoas que o general Kruel
havia enviado para me proteger, como se fossem guardas. Aí, telefonei e lhe
disse que não precisava, mas ele disse que eu estava correndo riscos.
Memória MPM – Isso foi em 1964?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Exato, em plena Revolução. Em
outra ocasião, na Auditoria, recebi uma caixa com uma bala de revólver dentro
e um bilhete: “Esta é para vossa senhoria.”. Era difícil, porque durante esses
anos todos, meu nome saía diariamente no jornal.
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HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Quando o senhor pedia as denúncias, a tendência
do Conselho e do juiz-auditor era acompanhar?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Geralmente sim, acompanhavam.
Memória MPM – E costumava haver votos divergentes?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Raramente. Militar pensa
da mesma maneira. Chegava um processo lá, era comunista, era subversivo,
era assaltante de Banco, não tinha dúvida que seria condenado. Mas depois,
entravam com recurso para o Superior Tribunal Militar.
Memória MPM – O Tribunal costumava confirmar as condenações
e sentenças?
Durval Ayrton Moura de Araujo – De um modo geral,
confirmava. Mas era muito imparcial. Hoje em dia, o Superior Tribunal
Militar é presidido por uma mulher; naquela época eram todos homens,
generais, almirantes, junto com os civis que representavam o Ministério
Público. Também havia um corpo grande de excelentes advogados que
defendiam seus clientes. Os criminalistas célebres que hoje aparecem,
muitos advogaram lá.
Memória MPM – Nos processos em que o senhor funcionou, algum
advogado hoje célebre foi réu?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, lembro o Modesto
Carvalhosa, por exemplo, que foi réu em um processo, creio que da ALN.
Já se passou muito tempo, não lembro o nome de todos os que figuraram
nesses processos. Mas havia muitos intelectuais envolvidos com a subversão.
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Eu trabalhei num processo sobre os médicos da Faculdade de Medicina. O
advogado de um deles foi o Paulo José da Costa.
Memória MPM – O senhor se recorda dos intelectuais e artistas
envolvidos? O Florestan Fernandes é dessa época.
Durval Ayrton Moura de Araujo – Havia muitos comunistas no
meio intelectual e artístico. Um intelectual que defende ideias socialistas é
contra a propriedade privada. O Florestan Fernandes é do meu tempo, mas
não lembro de tê-lo denunciado, apesar de estar envolvido em um processo.
Também tinha o Caio Prado Júnior e o Sérgio Buarque de Holanda, ambos
envolvidos no processo sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais e
Letras da USP. Em 1966, o processo das “Cadernetas do Prestes” atraiu outro
processo de professores e alunos da Faculdade, dentre os quais Florestan
Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, porque havia um professor citado
em ambos.
Mas o processo com mais repercussão talvez tenha sido o dos frades
dominicanos. O julgamento aconteceu em setembro de 1971. Quatro foram
condenados a quatro anos de prisão, dentre os quais, o frei Beto. Catorze foram
absolvidos por falta de provas. Os padres compareceram em massa à sessão,
cujo veredicto foi anunciado perto da meia-noite. Eu tinha ido a Roma uns
anos antes e trouxera um pergaminho com uma bênção papal. Então, abri
a acusação exibindo o pergaminho aos padres: era eu quem representava o
verdadeiro cristianismo! Não eles!
Memória MPM – O advogado Mario Simas chegou a sustentar a tese
de que o Marighella teria sido transportado já morto para o carro que havia trocado
tiros com a viatura da Polícia...
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HISTÓRIAS DE VIDA
Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, uma tese absurda. Quem
teria, então, matado a investigadora [Estela] Morato, que estava no local? Esta
falta de sentido dá conta do quanto foi um julgamento tumultuado.
Hoje, eu não teria resistência para enfrentar tudo isso. Estava
permanentemente correndo riscos. Trabalhei muito, pegava inquéritos grandes
com 10, 15 volumes.
Memória MPM – Como fazia para processar esse montante? Porque,
às vezes, havia processos de muitos volumes, com dezenas de réus. O senhor tinha 15
dias, prorrogáveis por mais 15, para oferecer a denúncia.
Durval Ayrton Moura de Araujo – Passamos por isso no processo
das Cadernetas do Prestes. Ainda em abril de 1964, fizeram uma diligência e
encontraram 18 cadernetas escritas à mão pelo próprio Prestes no apartamento
dele. Parece que havia mais uma, porém, desapareceu. Nessas cadernetas, ele
descrevia cada um dos participantes do movimento. Uma coisa curiosa é que,
em 1966, durante o processo das cadernetas, fui para Europa, nas férias, com
um grupo de amigos. Eu guardava vários processos no meu escritório e tive
a cautela de devolvê-los para a Auditoria antes de partir, o que foi a sorte,
porque houve um incêndio. Foi um incidente casual, mas se tivesse deixado
os processos lá, teriam queimado, inclusive este do Prestes, no qual funcionei,
mas não ofereci a denúncia, porque precisava de diligências. Não lembro
exatamente o que aconteceu.
Memória MPM – Agora, com relação a essa caderneta que teria
desaparecido, tem gente que especula que ali estariam os nomes dos militares que
seriam associados ao Partido Comunista.
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Durval Ayrton Moura de Araujo – E tinha mesmo.
Memória MPM – Porque nas outras cadernetas não apareciam nomes
de militares, somente civis.
Durval Ayrton Moura de Araujo – Exatamente, só apareciam civis.
Curiosamente, a subversão também estava dentro das Forças Armadas. Cabos,
sargentos e até oficiais, como o Lamarca, que surpreendeu. Ele, inclusive, era
instrutor de tiro e, quando fugiu, levou o armamento. Acabou morrendo lá
na Bahia. Eu tenho um grande arquivo com cópia dessas denúncias, inclusive
a que propus contra o Jango. Engraçado, quando encaminhei essa denúncia
ao procurador-geral, um amigo da Sociedade Hípica, promotor da Justiça
Civil, o Dario de Abreu Pereira, me cercou e disse: “Você é um maluco, você é
membro do Poder Executivo, como vai denunciar o presidente da República?”.
Eu perguntei o que poderia fazer: estava lá no processo! Realmente, deu essa
encrenca toda.
Memória MPM – E o senhor acha que o Jango era realmente o
responsável por aquelas greves?
Durval Ayrton Moura de Araujo – O Jango queria criar uma
República sindicalista. Não acredito que ele fosse comunista, mas queria
mudar a estrutura do Estado para implantar uma República sindicalista. Ele
não aguentou e foi embora; acabou morrendo no exílio. No entanto, no meio
militar havia um grande número de comunistas que se identificavam com o
projeto janguista, ou eram até mais radicais, tanto é que os ministros militares,
que o Jango nomeou, eram todos comunistas.
Memória MPM – Alguns foram processados, como o almirante Aragão.
91
HISTÓRIAS DE VIDA
Durval Ayrton Moura de Araujo – Examinando os autos de um
inquérito instaurado na 2ª Divisão de Infantaria, para apurar responsabilidades
por um plano de ação contrarrevolucionária, em 1964, no qual figuravam,
como indiciados, dois majores e alguns sargentos, concluí que estariam
implicados três generais [Bandeira de Morais, Aluísio de Miranda Mendes e
Euryale de Jesus Zerbini]. Eles já tinham passado para a reserva quando pedi
o encaminhamento dos autos para o Superior Tribunal Militar. Creio terem
sido cassados, mas não sei dizer como o processo se concluiu.
Memória MPM – E antes de 1964, o senhor se lembra de algum
processo que tenha lhe chamado a atenção, além do caso dos sindicalistas ligados ao
movimento dos sargentos?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Que tenha causado alguma
comoção, não, pois, até 1964, a Justiça Militar só processava militares. Eu me
lembro de ter processado um capitão homossexual, que foi expulso das Forças
Armadas. Mas é só isso. O trabalho árduo veio mesmo com a Revolução: eu
praticamente larguei meu escritório.
Naquela época, as Auditorias eram muito pobres e o salário,
péssimo. Quando assumi o cargo, na 2ª Auditoria, tive que comprar uma
escrivaninha, pois não havia nem móveis. Mas, por outro lado, não havia
corrupção. Em uma ditadura onde o caminho seria amplo para a corrupção,
não se ouvia falar de um único caso. Hoje sabemos que houve tortura, maus-
-tratos, violência, morte, mas não há registros de corrupção, como esta que
ocorre hoje em dia e está estampada em todos os jornais. Os militares e seu
regime tinham muitos defeitos, mas nesse aspecto em particular, não pesava
nenhuma acusação.
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
Quanto à violência, no princípio, a gente não acreditava que ela
acontecesse. Ainda no início da Revolução, o presidente Castelo Branco
convocou todos os promotores e auditores para uma reunião em Brasília, na
qual ele foi categórico: disse que não permitiria, durante seu governo, qualquer
ato de violência contra os prisioneiros. Hoje sabemos que, com o tempo, a coisa
se degradou, saindo eventualmente do controle, nas unidades. Ainda assim,
acho que foi uma reação ao clima de violência disseminado pelo terrorismo. E,
além disso, não creio que tenha sido uma coisa sistêmica. O regime cometeu,
sim, os seus excessos, mas não era assassino. Prova disso é que muitas das
pessoas que figuraram em minhas denúncias transitam hoje por aí, fazendo
política e tocando as suas vidas. Muitos são remanescentes da subversão, como
o [ José] Serra, que era presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE),
e vários que integraram o governo Lula.
Memória MPM – O senhor chegou a funcionar em algum processo em
que o Lula aparecesse?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Não, ele apareceu apenas mais
tarde. Era presidente de sindicato, participava de manifestações sindicais.
Memória MPM – Surpreendentemente, depois que os militares
saíram do governo, e entraram os civis, os promotores militares começaram a ser
melhor remunerados.
Durval Ayrton Moura de Araujo – Exatamente! Seus proventos
foram equiparados aos dos ministros do Supremo, na mesma proporção. Eu
trabalhava muito, todo dia tinha sessão, que começava às 13 h e varava a noite.
Às vezes, começávamos pela manhã.
93
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – E como fazia nesses processos que tinham dezenas de réus?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Eram raros. Em média,
não passava de vinte réus. Nesses casos, em duas ou três sessões ouvíamos
as testemunhas de acusação e de defesa, os advogados falavam e a sentença
era prolatada. A Justiça Militar teve uma influência muito grande durante a
Revolução. Todo mundo a acusa disso e daquilo, mas ela agiu muito bem, com
imparcialidade, inclusive.
Memória MPM – O senhor acha que teve momentos com mais volume
de presos e de inquéritos? Ou era um fluxo contínuo?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Era bastante contínuo. Porém,
com um aumento, pois começou a caça às bruxas, especialmente a partir do AI-
5. É o tipo de coisa que ocorreu nos Estados Unidos, durante o macarthismo,
onde diversos artistas foram presos. Esse mesmo movimento também ocorreu
na Argentina.
Memória MPM – O senhor mencionou que logrou uma condenação à
pena de morte, no caso do oficial refém morto pelo pessoal do Lamarca. O senhor
pediu, em outra oportunidade, pena equivalente?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Pedi a pena de morte em
três processos, para nove diferentes indiciados. Em 1970, pedia-a para três
assaltantes de Banco que haviam assassinado um agente federal que estava, por
acaso, numa agência atacada da Caixa Federal. Presos os réus, antes que fossem
julgados, evadiram-se da cadeia. Pedi-a para um jovem terrorista da ALN,
que fora estudante de Medicina, indiciado em vários inquéritos por assaltos
e mortes, inclusive de dois PMs com os quais trocara tiros. Em 1971, foram
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DURVAL AYRTON MOURA DE ARAUJO
condenados os réus do grupo do Lamarca responsáveis pela morte brutal do
tenente da Polícia Militar de São Paulo. Também pedi a pena de morte para o
próprio Lamarca.
Memória MPM – Mais alguma coisa que o senhor queira acrescentar,
deixar registrada?
Durval Ayrton Moura de Araujo – Acho que o ponto mais
importante é eu ter denunciado o presidente da República ao procurador-geral.
Poucos tiveram essa coragem, porque eu praticamente pertencia ao governo.
Muita coisa aconteceu, cada dia era uma novidade. Houve muitos processos
diferentes e presos de toda ordem, desde o simples cidadão até o intelectual,
o professor, o militar de alta patente. Para você ver como o comunismo tinha
entrado no país...
Memória MPM – Dr. Durval, muito obrigado por seu depoimento.
95
PAULO DUARTE FONTES
Entrevista realizada no Rio de Janeiro, na residência do depoente,
em 8 de setembro de 2015, por Gunter Axt.
96
Paulo Duarte Fontes nasceu em 4 de maio de 1927, na cidade do Rio de
Janeiro. É filho de Fiel de Carvalho Fontes e Maria Duarte Fontes. Casou-se
com Marly Barbosa Fontes. Formou-se em Direito pela Faculdade Nacional
de Direito, em 1952. Indicado, iniciou sua carreira no Ministério Público
Militar como segundo substituto de promotor, em 1964. Atuou em Juiz de
Fora e no Rio de Janeiro. Em 1974, ingressou na Escola Superior de Guerra
(ESG), formando-se em 1975. Em março desse mesmo ano, foi promovido
a procurador de segunda categoria, passando a desempenhar as suas funções
em Brasília. Foi vice-presidente da Associação do Ministério Público do
Brasil entre 1973 e 1976. Em novembro de 1978, para a primeira diretoria da
Associação Nacional do Ministério Público Militar (ANMPM), tomou posse
como presidente. Em agosto de 1980, foi promovido ao cargo de procurador
militar de primeira categoria. Em maio de 1984, foi eleito corregedor-geral
do Ministério Público Militar. Em abril de 1987, alcançou o mais alto grau
da carreira do Ministério Público Militar, o de subprocurador-geral da Justiça
Militar. Em 18 de outubro de 1991, aposentou-se.
97
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de onde?
Paulo Duarte Fontes – Nasci no dia 4 de maio de 1927. Morávamos
na Avenida Atlântica, em Copacabana. Naquele tempo, a praia ainda era muito
rudimentar. Fiz o ginasial, me formei no colégio São Bento, beneditino; sou
muito católico. Depois, fiz exame para a Faculdade Nacional de Direito e me
formei em 1952.
Memória MPM – E desse período da Faculdade, o senhor se lembra dos
professores, dos estudantes? Como era a vida acadêmica?
Paulo Duarte Fontes – Eu lembro! A vida acadêmica foi excelente.
Era uma turma muito boa, professores notáveis. Alguns colegas tornaramse magistrados, outros advogaram com destaque. Dois chegaram a ser
embaixadores. Formei-me e resolvi montar um escritório, no último andar
do Edifício Sloper, no Rio de Janeiro. Advogava no Crime e no Cível, e nas
Auditorias também, onde fiz amizade com um sujeito sensacional, falecido
em 1994, chamado Carlos [Maria] de Paiva Ronco, servidor da Procuradoria-
-Geral de Justiça Militar. Ele me indicou para ser promotor substituto da
Justiça Militar. O substituto era, então, convocado para atuar em um processo,
ou dois, por ano.
Mas estourou a Revolução. Certo dia, o Ronco me telefonou,
dizendo que minha indicação estava travada no SNI. Como o professor Luiz
Viana Filho era meu contraparente, amigo de família, telefonei-lhe, pedindo
sua intervenção. Ele disparou apenas um telefonema e garantiu-me que eu
estava nomeado. Imagine: na Revolução, alguns promotores efetivos – não vou
declinar os nomes – tiravam o corpo fora e se colocavam em exercício, por
medo da cassação.
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PAULO DUARTE FONTES
Os processos eram sérios. O primeiro que jogaram sobre mim,
foi o do [Roberto] Hipólito [da Costa], que matou o Alfeu [de Alcântara
Monteiro]: ambos brigadeiros. Alfeu era o comandante da 5ª Zona Aérea,
no Rio Grande do Sul. O [Nélson Freire Lavanére] Wanderley, ministro da
Aeronáutica, tinha ido lá para prendê-lo, pois ele era considerado janguista, e
o levar para São Paulo. Ele era um sujeito de posições firmes e disse: “Aqui eu
não vejo homem para a minha bala.”. Começou a discutir com o Wanderley,
disparou um tiro, que o pegou de raspão. Aí dois oficiais entraram na sala e
ele disparou novamente. Então, o Hipólito entrou e atirou. O Alfeu morreu,
alvejado por dois tiros que atingiram a lateral esquerda do tronco. Eu funcionei
nesse processo e defendi a tese da legítima defesa, própria e de terceiro.
Memória MPM – A legítima defesa do Hipólito?
Paulo Duarte Fontes – Do Hipólito, sim, que foi absolvido. Naquele
tempo, na Aeronáutica tinha o [ João Paulo] Burnier. Todo mundo tinha medo
dele, e eu tenho a impressão de que por causa desse processo ele me respeitava.
Um dia ele disse a um advogado do Ministério da Aeronáutica que queria
falar comigo. Atendi ao convite. Na sala dele, me deu uma porção de nomes
– não vou citá-los –, gente que eu deveria denunciar. Disse-lhe que lastimava,
mas um promotor não decreta a prisão preventiva de ninguém, de sorte que
ele precisaria justificar o motivo, nome por nome, encaminhar o pedido para
o juiz, que abriria vistas para mim. Só então poderia dar um parecer, que seria
favorável ou contrário, dependendo da minha convicção e consciência.
O Burnier esperneou. Não gostou. Mas, apesar de ser uma dessas
pessoas expansivas, que ao se precipitarem podem fazer besteiras, era também
um sujeito com raciocínio, de forma que acabaria se acalmando e refletindo.
99
HISTÓRIAS DE VIDA
Porém, saí de lá convicto de que seria cassado e cheguei a comentar isso
com meu sogro, em sua fazenda, para onde fui em seguida. Estávamos em
novembro, mês de Finados. Voltando da fazenda, para visitar meus pais,
casualmente me encontrei com o Burnier. Surpreendentemente, me convidou
para almoçar. Eu disse: “Brigadeiro, só de ver o senhor já tremi.”. Rimos.
Afinal, ficamos até amigos.
Daí, fui promovido. Um dia, cheguei em casa – foi incrível –, liguei a
TV e assisti ao presidente [Artur da] Costa e Silva dizendo: “Amanhã, aquele
moleque do João Pinheiro Neto vai para a cadeia, porque vai ser denunciado!”.
Ele estava falando, eu ouvindo. Ele disse até uma besteira, que o Pinheiro teria
cometido latrocínio. Deu para ver quando um auxiliar o cutucou, como quem
fala: “Não diz besteira!”. Desliguei a TV e fui estudar um processo que havia
recebido naquele dia. Era, justamente, o processo do João!
Memória MPM – O senhor já sabia que estava com o processo do ex-
diretor da Supra?
Paulo Duarte Fontes – Não! Sabia apenas vagamente que tinha
alguma relação com as invasões de terras em Pernambuco.
Memória MPM – Mas por que um processo sobre invasão de terras em
Pernambuco foi parar nas mãos do senhor?
Paulo Duarte Fontes – Ele era do Rio, tinha feito aquele discurso na
Central do Brasil, junto com o João Goulart. Comecei a estudar o processo e,
por sorte minha, havia um documento que dizia que, pelo mesmo fato, ele tinha
sido julgado e absolvido na Justiça Comum. Ora, em Direito existe um princípio
que diz: “Non bis in idem”, isto é, ninguém pode ser denunciado duas vezes pelo
100
PAULO DUARTE FONTES
mesmo crime. Então, acabou-se o processo. É evidente que o Costa e Silva não
deve ter gostado. Mas Juscelino [Kubitschek] gostou. Ele falou com o João
Pinheiro que queria me homenagear. Assim, ofereceu um jantar no apartamento
do João. Foi muita gente, inclusive minha prima Regina, filha do [Olavo] Bilac
Pinto. A minha mulher, Marly Fontes, que era da UDN, saiu de lá encantada
com o Juscelino. Nós sentamos na mesa de honra. O jantar foi admirável. Depois
disso o João ofereceu um almoço mais restrito para mim, no qual o Juscelino
também estava presente. Foi muito agradável e fiquei amigo do Juscelino.
Passou-se um tempo e fui promovido para Juiz de Fora. Um colega
disse-me que iria me incomodar, pois lá havia dois substitutos: um era meio
louco, vivia dando denúncias ineptas; e o outro trabalhava com o SNI. Mas
isso não me assustou. Quando cheguei a Juiz de Fora, havia uma sessão em
andamento, e o substituto exclamava-se com dramaticidade: “Hoje, sexta-feira,
minha beca está manchada de sangue, porque meu substituto vai assumir a
Auditoria de Juiz de Fora!”. Esse era o tal maluco. Estava referindo-se a mim
(e nesses termos), quando o substituto era na verdade ele! Fui ao Cartório
e avoquei todos os processos. O juiz era um sujeito espetacular, o [Antonio
Carlos] Seixas Telles, de quem me tornei muito amigo. Senti que era um
homem equilibrado, sério e faria cumprir a lei. Quando acabou a sessão, vem
outro cara, com um [revólver] calibre 45 na cintura, dizendo: “Eu já distribuí
os processos.”. Dei um berro: “Se o senhor entrar aqui com esse revólver, vou
prendê-lo, porque sou o responsável, então, o senhor tome juízo! E tem mais:
o senhor não distribui processo nenhum, quem distribui é o seu chefe, que sou
eu; de hoje em diante, o senhor só faz o que eu mandar!”.
Já tinham me avisado que o substituto mantinha um escritório no
próprio quartel. Naturalmente, ele foi queixar-se para o general [Ariel] Pacca
101
HISTÓRIAS DE VIDA
[da Fonseca], comandante da 4ª Região Militar, das minhas providências.
Também fui falar com ele. Achei-o uma simpatia. Expliquei-lhe que a força
de um procurador residia no poder de representar. Assim, se percebesse algo
errado, eu representaria para o Superior Tribunal Militar, para o comandante
do I Exército, para onde necessário fosse. Ele compreendeu e me prometeu
que aquela situação, de fato, teria fim. Começamos a julgar os processos. As
coisas pareciam ter entrado nos eixos, até que um dia o sujeito denunciou o
escultor Guido Rocha. O senhor sabe o motivo? Porque considerou os seus
Cristos subversivos! Pode? Veja aquele Cristo ali na parede [apontando para
uma escultura afixada na parede do hall de entrada do apartamento]: é um
Guido Rocha.
Memória MPM – É um Cristo lindo! Representando com eloquência o
drama do padecimento na Cruz…
Paulo Duarte Fontes – É claro! É arte, de qualidade. Denunciar
o artista por causa de suas representações do Cristo era uma estultice, uma
arbitrariedade! Mas isto estava longe de ser um caso isolado. Havia outras
denúncias delirantes, baseadas em superdimensionamento de aspectos triviais,
sem lastro probatório algum.
Noutro processo, ele denunciou uns trinta padres! Tinha havido, em
1968, no Rio de Janeiro, aquela tragédia com um estudante secundarista, morto
em um confronto com a Polícia Militar. O corpo foi velado na Assembleia
Legislativa e se celebraram missas na Igreja da Candelária. Saíra, então,
um ônibus de Juiz de Fora com os padres, que lá foram em solidariedade e
assinaram um livro de condolências, que funcionou como um manifesto de
repúdio à morte lamentável de um menino de 16 anos num acidente. Não
102
PAULO DUARTE FONTES
havia nem mesmo uma responsabilização da Polícia Militar nesse documento.
Ora, qualquer um assinaria! Eu assinaria! Houve um coronel que assinou, era
irmão de dois generais, um de cabelos vermelhos e o outro de cabelos pretos.
Mas o promotor denunciou os padres: escreveu duzentas e tantas
folhas. Isso foi a julgamento. Ele estava crente que faria a acusação. Avoquei
o processo. Estavam crentes de que me meteriam medo, mas “meti os ferros”:
a denúncia era inepta. Numa dessas tiradas, o general [Euclides] Figueiredo
(irmão mais velho do presidente) tinha dito que a Igreja Católica Apostólica
Romana era marxista, leninista, comunista. Eu aproveitei o momento do
julgamento para protestar. O general era um sujeito formidável, o respeitava,
mas não podia admitir falarem nesse tom da minha Igreja.
O Longo, que presidia Conselho, achou ruim meu protesto, mas não
disse nada na hora. Quando foi passar a palavra aos advogados, advertiu-os:
“Os senhores vão poder falar, mas não vão fazer como o promotor que atacou o
general Figueiredo.”. Pedi novamente a palavra: “Eu lastimo que o senhor não
tenha entendido, eu não ofendi o general Figueiredo; pelo contrário, o admiro,
agora, ele não entende nada do que é o comunismo na Igreja Católica!”. Afinal,
absolveram os padres por unanimidade. O Longo terminou a sessão com uma
ironia, imitando o gesto do padre quando encerra a missa, fazendo o sinal da
cruz: “Vão em paz para casa.”. Desnecessário.
Um dia cheguei à Auditoria de Juiz de Fora e havia um recado de
que o general Pacca queria conversar comigo. Eu gostava dele. Ele estava
preocupado, porque o substituto, [ Joaquim] Simeão [de Faria Filho], junto
com o La Vangeli, tinham prendido o dentista que o atendia e o arrolado como
testemunha. Um absurdo! “E o senhor não o soltou?”, perguntei. “Não, não
103
HISTÓRIAS DE VIDA
soltei... Sabe como é...”. De fato, era uma posição constrangedora. Garantilhe que resolveria. Cheguei à Auditoria e topei com o La Vangeli, que era
militar: “Tem um minutinho? É o seguinte: vou fazer uma representação
contra o senhor porque prenderam uma testemunha, fizeram tais absurdos, e
vou representar.”. “Chutei o balde!”, como se diz. Empalideceu. Eles “pintavam
e bordavam” em Juiz de Fora; fizeram os maiores absurdos, tudo em nome
da Revolução! Coisa nenhuma! Misturavam seus interesses nisso e até
prejudicavam a Revolução. Ele disse: “Não fui eu, Dr. Fontes, foi o Simeão”. Aí
o chamou e eu disse que representaria contra os dois. O Simeão estava fazendo
hemodiálise naquela época, passou mal e tivemos que o levar ao hospital. Logo
em seguida soltaram todo mundo e esqueci o caso.
Tinha um advogado lá que não gostava do Simeão: o Obregon
[Gonçalves]. Ele vinha queixar-se para mim e eu dizia que estava cumprindo
o meu dever. O fato é que o Simeão acomodava-se quando sentia que se
defrontava com alguma autoridade. Bastou eu afirmar um pouco a minha e tudo
aquietou-se. No tempo em que estive lá, não teve subversão, não apareceram
novos processos de segurança nacional, sobretudo porque o Simeão parou de
denunciar as pessoas. Afinal, a passagem por Juiz de Fora foi agradável e saí de
lá tendo feito muitas amizades, que guardei ao longo da vida.
Fui indicado para a Escola Superior de Guerra: maravilha aquele
curso! Fiz grandes amizades lá. Foi um período extraordinário. Antes de o
curso começar, em janeiro de 1974, o Ruy [de Lima Pessôa] – uma das maiores
inteligências na Justiça Militar, muito meu amigo – me convocou para o Rio,
porque sabia que eu era de lá. Foi ele quem me indicou para a Escola. O Simeão,
contudo, espalhou em Juiz de Fora que eu tinha sido afastado. Ridículo!
104
PAULO DUARTE FONTES
Quando fui para Juiz de Fora, alugara, todo mobiliado, o apartamento
que tinha na Hilário de Gouveia, em Copacabana. O locatário não só não pagou
aluguel, como ainda vendeu os meus móveis, quadros, tudo! Quando cheguei de
volta ao Rio de Janeiro, não tinha nada. A imobiliária era uma porcaria e não
conseguiu recuperar nada. Fiquei tão chateado que vendi o apartamento para o
primeiro comprador que apareceu! Mas não faz mal, pois Deus nos tira com uma
mão e nos dá com a outra.
Quando terminei a Escola Superior de Guerra fui promovido para a
Procuradoria de Brasília, pelo Ruy de Lima Pessôa. Foi em 1975. Quando entrei
na Auditoria fiquei escandalizado: o diretor-geral mandava mais do que todo
mundo; os diretores tinham carro oficial, enquanto nós ganhávamos menos do
que um sargento. Eu não aceitava isso.
Fui conversar com o Gilvan [Correia de] Queiroz, do Ministério
Público do Distrito Federal, e com o Miguel Frauzino [Pereira], procurador da
República. A Procuradoria-Geral da República apertava-se toda em meio andar
do DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público], uma vergonha!
Disse-lhes que precisávamos fazer algo, pois aquela situação era insustentável. O
Frauzino estava à frente da Associação Nacional dos Procuradores da República,
fundada em 1973. O Gilvan já tinha uma associação, do MPDFT, que vinha do
início dos anos 1960. O Ministério Público, junto à Justiça do Trabalho, estava
preparando a fundação de sua associação, o que de fato aconteceu em 1979. Era
tudo ainda incipiente, mas nós não tínhamos nem isso. Então, resolvi fundar a
associação, o que aconteceu em novembro de 1978.
Desde fins de março de 1978, eu funcionei numa comissão constituída
pelo procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, com atribuição
105
HISTÓRIAS DE VIDA
para elaborar o anteprojeto de lei complementar que estabeleceria as normas
gerais para a organização do Ministério Público no Brasil, que acabou sendo a
Lei Complementar nº 40, de 1981. A instituição, ali, deu um salto em termos
organizacionais. Então, eu sentia o quão importante era que tivéssemos, também,
a nossa associação de classe, para participar com legitimidade do debate que
estava acontecendo e que acabaria ganhando corpo no Brasil dos anos seguintes.
Eu tinha, na verdade, alguma experiência com a vida associativa, porque fui vice-presidente da Associação do Ministério Público do Brasil de 1973 a 1976.
Mas, enfim, o início não foi fácil. A adesão dos membros era voluntária
e gratuita, de forma que organizei uma entidade meio simbólica. Estávamos
com pressa em ter essa representação. A partir daí, o Gilvan o Frauzino e eu,
estávamos os três legitimados para lutar pelos interesses da classe. Íamos ao
Palácio, ao Congresso, lutamos muito. Como eu tinha sido militar, a carteirinha
abria algumas portas. O [Paulo César] Cataldo e o Inocêncio [Mártires Coelho]
estavam na Casa Civil e nos recebiam. A primeira coisa que conseguimos foi
um aumento. Era a “gratificação de produtividade”, um nome meio fantasioso.
E a coisa melhorou um pouco, mas estávamos longe de ficarmos satisfeitos.
Queriam nos dar um V.A.S., mas comprometia as finanças do governo. Um dia,
o ministro Cataldo comentou comigo na barbearia: “Saiu a outra gratificação
para vocês.”. Ficamos com o salário e duas gratificações. Um dia, localizei uma
jurisprudência do Supremo que determinava que o salário era o somatório do
vencimento-base com essas duas vantagens. A partir daí é que se calculavam
os anuênios e as vantagens pessoais. Requeri ao Milton [Menezes da Costa
Filho] para ele deferir. Inteligente e brilhante como é, mandou o assunto para o
Tribunal de Contas, onde foi aprovado por unanimidade. Então, o problema dos
vencimentos ficou mais ou menos resolvido.
106
PAULO DUARTE FONTES
Estávamos, naqueles tempos, subordinados ao Ministério da Justiça,
o que era algo que nos diminuía institucionalmente. O chefe do Ministério
Público da União era o ministro da Justiça. Depois de muita luta, conseguimos
mudanças. Inicialmente, ficamos subordinados ao procurador-geral da
República, mas não fomos aceitos na carreira do Ministério Público Federal,
não sendo considerados equivalentes aos procuradores da República.
Era norma constitucional o presidente da República receber uma
tabela de aumentos elaborada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal,
para os magistrados, e pelo procurador-geral da República, para os membros
do Ministério Público. O [ José Paulo Sepúlveda] Pertence resolveu constituir
uma comissão, da qual tive a honra de fazer parte, que recomendou um
aumento maior de 5% aos procuradores da República. O Pertence tinha
muita força. Logo depois, foi nomeado ministro do STF. Bem, a proposta
seguiu para o Congresso Nacional. Na Câmara, o projeto fora aprovado – era
presidente o deputado Ulysses Guimarães. Aí seguiu para o Senado. Meu
primeiro movimento foi pedir apoio ao [Francisco] Leite Chaves, que tinha
sido procurador-geral da Justiça Militar, mas ele achou que o aumento era um
absurdo e não queria mais nem ouvir falar no Ministério Público. Procurei,
então, o Maurício [ José] Corrêa, de quem era amigo, que de fato nos ajudou.
Um dia, o Maurício Corrêa alertou-me: “Deu zebra, porque o Leite Chaves
está criando um caso.”. Corri para o telefone, liguei para o [Marco Antonio
Pinto] Bittar, que não estava; liguei para o Milton, que disse: “Eu vou para aí
voando!”. Fomos conversar com o Leite Chaves, que gostava muito do Milton,
mas não gostava de mim (porque eu não gostava dele; hoje, contudo, o admiro).
Foi graças ao Milton que o Leite Chaves concordou com o projeto, garantindo
a sua aprovação.
107
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – E por que o Leite Chaves não queria apoiar o projeto?
Paulo Duarte Fontes – Ele não queria mais se envolver, porque já
tinha dado encrenca esse assunto do aumento.
Mais tarde, o Milton, com a inteligência, o preparo e o valor dele, fez
cinco emendas e as justificou maravilhosamente. O [ José Carlos] Couto [de
Carvalho], o Flávio Corrêa [de Andrade] e eu fomos ao Congresso, procurar
o Leite Chaves para defender e apresentar estas emendas. Novamente ele disse
que não queria nem saber. Levei as emendas à Comissão de Justiça, presidida
pelo Amir Lando, cujo vice era exatamente o Maurício Corrêa, que as acolheu
como se fossem dele. Uma dessas emendas inseria-nos na carreira do Ministério
Público da União, o que nos garantia equiparação aos procuradores da República.
Memória MPM – Isso foi depois da Constituição, na Lei nº 75, de 1993?
Paulo Duarte Fontes – Exatamente. Isto foi fundamental. Nasceu ali
um novo Ministério Público.
Memória MPM – E a associação, como foi organizada?
Paulo Duarte Fontes – No início, as coisas funcionavam muito na
base do improviso. Era tudo incipiente, não tínhamos verba de representação,
orçamento nem sede. Mas a entidade nos legitimava. Com as medalhas que
criamos, por exemplo, adocicávamos autoridades. O pessoal gosta de receber
medalhas e condecorações.
Eu, a propósito, também recebi as minhas. Condecorações do Superior
Tribunal Militar, da Procuradoria-Geral de Justiça Militar, duas do Exército, da
Marinha e até da Rádio Patrulha. Mas a que me comove e me orgulha é esta aqui
108
PAULO DUARTE FONTES
[indica uma placa de metal guardada em uma caixa]: foi oferecida em um jantar
no qual fui homenageado, pelo Milton, os colegas procuradores e os servidores.
Os funcionários eram gratos a mim porque eu ajudava a conseguir apartamentos
funcionais em Brasília. Me deram essa placa...
da PJM”.
Memória MPM – “Paulo Fontes, admiração e respeito dos amigos
Paulo Duarte Fontes – Nesse almoço – ou jantar, já não me recordo
bem –, estavam presentes o Milton, o Andrade, a Marly Gueiros, uma mulher
extraordinária, dona de grande cultura geral e de saber jurídico; delicada e
educada. Tenho muito apreço e admiração por ela.
O pessoal mais moderno fez muito pela associação, continuando a
nossa obra. Conseguiram institucionalizá-la de uma forma mais consistente,
dotaram-na com uma boa sede, o que é muito bom. É pena, apenas, que a
memória daqueles tempos iniciais não tenha sido preservada. Eu doei para
a entidade livros de fotos – das cerimônias de posse dos subprocuradores-
-gerais, por exemplo. A minha posse como procurador de primeira categoria,
em particular, foi muito prestigiada, porque o Luiz Viana Filho se fez presente,
e, em 1980, presidia o Congresso Nacional. A presença dele atraiu, também,
todos os ministros do Superior Tribunal Militar. Foi um evento importante
para a instituição. Já minha posse como subprocurador-geral foi em 1987. O
Luiz Viana Filho ainda estava vivo e no exercício do mandato de senador, mas
já não presidia mais o Congresso. Eu também tinha deixado lá os livros com os
registros das medalhas e condecorações que conferíamos às pessoas – muitos
eram ministros. Mas creio que tudo isso se perdeu. Não houve preocupação em
guardar esses registros.
109
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Quem o senhor caracterizaria como o núcleo do
Ministério Público nesse momento? O Milton, o senhor, a Marly…
Paulo Duarte Fontes – Era o Milton! Ele chefiou o Ministério
Público com descortino, entre 1977 e 1985, e, depois, novamente, já como
procurador-geral eleito pela classe e nomeado a partir de lista tríplice, entre 1990
e 1994. É graças à cultura jurídica do Milton que obtivemos o fortalecimento
da instituição em alguns pontos estratégicos, como mencionei. Em 1981, ele
anteviu a necessidade de renovação do Ministério Público Militar e convocou e
organizou um concurso público, algo que não se fazia desde os anos 1950.
Agora, claro, ele fazia o jogo dos militares. Não se metia em nada
que os contrariasse, pelo menos na primeira fase de sua gestão. E teve o azar de
pegar dois processos rumorosos: o dos padres franceses e o Riocentro. Aquele
inquérito do Riocentro é uma vergonha! Não sou eu que digo. As críticas que
o almirante [ Júlio de Sá] Bierrenbach fez em seu livro são irrefutáveis. Ele foi,
talvez, o maior dos ministros militares do Superior Tribunal Militar. Já no caso
dos padres franceses, ele poderia ter distribuído o processo para um procurador,
mas preferiu não o fazer. O Milton entrou no Ministério Público por concurso,
antes da Revolução. Ficou doze anos ao todo à frente da chefia da instituição.
Isto sem mencionar o período de 1985 a 1990, durante o qual ele teve um papel
fundamental, assessorando os procuradores-gerais. O Leite Chaves gostava
muito dele e o Eduardo Pires Gonçalves recorria ao Milton constantemente.
Os militares não tiveram a delicadeza de nomeá-lo ministro, porque
ele os agradava, quer dizer, para os militares era ideal ter um procurador-geral
com o qual pudessem dialogar e pelo qual seriam atendidos. Então, é claro,
tem gente que o critica hoje por esse alinhamento aos militares, mas o fato
110
PAULO DUARTE FONTES
é que ele foi importantíssimo para a instituição. Os Ministérios Públicos do
Trabalho e do Distrito Federal também devem ao Milton o reconhecimento
como membros da carreira do Ministério Público da União, em igualdade de
condições com os procuradores da República.
Memória MPM – Voltando ao caso do Riocentro, o senhor chegou a
criticar o inquérito na época?
Paulo Duarte Fontes – Sim, embora não publicamente, em respeito
aos colegas. O Célio Lobão, corregedor-geral da Justiça Militar, que discordou
do arquivamento estabelecido pelo juiz Edmundo [Franca de Oliveira],
acabou representando contra mim, para o presidente do Superior Tribunal
Militar, brigadeiro Faber Cintra, e para o Milton Menezes. Mas foi por causa
de um mal-entendido. Eu exclamei, num carro: “Que palhaçada é essa que
estão fazendo no Riocentro?”. Logicamente, estava referindo-me ao inquérito
e ao arquivamento. Mas o chofer contou para o Célio Lobão, e disse que eu
estava referindo-me à decisão dele, como corregedor-geral da Justiça Militar,
de representar ao procurador-geral contra o arquivamento. Engraçada a vida...
Sempre gostei muito do Célio, que era mesmo dado a uns rompantes, tinha
uma personalidade forte, mas era boa gente. E, de repente, ele representava
contra mim, que estava de acordo com a crítica que ele fazia ao arquivamento.
O Faber Cintra, que era bem linha-dura, percebeu que aquilo era
uma bobagem, rasgou a representação; nem respondeu. O Faber Cintra me
conhecia, nós havíamos sido colegas na ESG. Aliás, era um homem agradável,
muito rico, dono de um quarteirão inteiro em Ipanema: completou há pouco
100 anos de vida. A sua esposa faleceu não faz muito tempo, uma senhora
adorável, educada, descendente de alemães, muito religiosa.
111
HISTÓRIAS DE VIDA
O Milton também desprezou aquela representação. O chofer, depois
de gerar um estresse desses, foi posto de escanteio, claro. Mas veja que ousadia:
telefonou com ameaças, disse que era um subversivo, que sabia onde meus
filhos estudavam, que os iria pegar. Sujeito desprezível! Falei com o Marabuto,
que o enquadrou e acabou o assunto.
Memória MPM – E o Eduardo Pires Gonçalves?
Paulo Duarte Fontes – Foi procurador-geral da Justiça Militar mas
nunca fez uma sessão do Superior Tribunal Militar. A revista Veja publicou,
certa vez, que eu teria dito que ele era incompetente, que se tivesse que dar um
parecer num processo, chamaria alguém para fazê-lo. Bem, ele era irmão de um
general muito importante, ministro do Exército. Eu sabia que ele iria ganhar a
disputa para a vaga. Essa matéria que saiu na Veja era violenta.
Memória MPM – Entrevista sua?
Paulo Duarte Fontes – Era um grupo de promotores, que incluía o
Lima Pessôa, porque eles diziam que o general Leônidas Pires Gonçalves teria
oferecido ao Ruy a direção em um banco para ele se aposentar. Houve essa
reunião, foram os promotores, e eu disse que a coisa toda era uma vergonha.
Uma vez o Eduardo tinha entrado na sala dos procuradores dizendo que tinha
um sujeito ao telefone perguntando o que era Justiça Castrense e ele não sabia
responder. A Veja publicou essas coisas: ficou chato. Ele era até boa gente.
Telefonou-me: “Paulinho, como é que você faz uma coisa dessas?”, eu disse:
“Mas você entende de alguma coisa?”, “Não, mas eu vou contratar um cara que
faça por mim”. E ficou por isso mesmo.
Memória MPM – Dizem que ele era uma “parada”.
112
PAULO DUARTE FONTES
Paulo Duarte Fontes – Sim, era uma “parada”. Como todo sujeito
que mistificava, era muito agradável, envolvente e, sobretudo, engraçado.
Imagine, ia à praia em Camboriú, de trajes de banho, com um revólver 45
na cintura [risos]. Ele andava sempre armado. Mas no trato pessoal, era um
sujeito muito doce.
Memória MPM – O senhor chegou a participar das comissões do concurso?
Paulo Duarte Fontes – Acompanhei a do Amazonas e a de São Paulo.
Memória MPM – E as comissões para promoção?
Paulo Duarte Fontes – Sim. Isso nem sempre era uma questão
tranquila. Um colega, pelo qual tenho muito carinho, o Flávio Corrêa, do
Mato Grosso do Sul, ficou chateado comigo, certa vez, quando uma comissão
formada por mim, pela Marly Gueiros e pelo Milton Menezes promoveu
o Kleber [de Carvalho Coêlho]. Nos anos 1980, era o ministro da Justiça
quem assinava as promoções: a indicação ia para o Departamento de Justiça
do Ministério e lá eles escolhiam e informavam o ministro, que nomeava. O
fato é que não adiantava eu dar um voto discordante, porque a Marly sempre
votava com o Milton, que queria o Flávio... então foi o Flávio que figurou em
primeiro lugar na lista, seguido do Kleber e do Amauri. O Kleber tinha acabado
de fazer concurso e já estava efetivo. O Amauri não tinha feito o concurso de
1981: estava com mais idade e seria até um absurdo fazer o concurso para
começar a carreira outra vez. Bem, mas eu tinha alguma força no Ministério da
Justiça. O Kleber me telefonou. Eu tinha operado os dentes, estava com dores
e mal podia falar. Ele queria que o acompanhasse ao Ministério da Justiça, que
o apresentasse ao diretor, que era um juiz do Rio Grande do Sul. O Kleber
era encantador quando queria, persuasivo; falou tanto que eu os aproximei e
113
HISTÓRIAS DE VIDA
ele, muito envolvente, conseguiu que o cara alterasse a lista, colocando-o em
primeiro. Aí o ministro nomeou o Kleber. Num almoço de aniversário de 80
anos, que o [Antônio Brandão de] Andrade ofereceu na casa dele, na Bahia, ele
gracejou, contando essa história: “O Paulo derrubou o Milton”, referindo-se à
lista que saíra da Procuradoria-Geral. Eu não tinha derrubado lista de Milton
nenhuma! Quem ia ser nomeado era o Flávio. Foi um mal-entendido, que
custou a nomeação do Flávio e adiantou a carreira do Kleber, que se credenciou
uns dez anos mais tarde para o cargo de procurador-geral. Fiquei sentido,
porque eu gostava muito do Flávio.
Memória MPM – E quanto aos casos de Segurança Nacional em que o
senhor atuou, apareceu, por exemplo, algum com pena de morte?
Paulo Duarte Fontes – Não. Mas houve um episódio anterior
ao meu ingresso no Ministério Público Militar como substituto. Como eu
defendia militares acusados na Justiça Militar, coube-me a representação do
caso de um marinheiro, que se envolveu numa história triste e escabrosa.
Naqueles tempos, podia acontecer de o pessoal da Marinha, oficiais, inclusive,
levarem moças a bordo de um navio atracado. Essas coisas aconteciam em
cidades portuárias e são retratadas pela literatura e pelo cinema, como se sabe.
Essas moças, às vezes, dormiam nos navios. Havia esse marinheiro, que era
homossexual, e ficava arrumando as camas, servindo aos oficiais. Certa vez,
um dirigiu-lhe gracejos. Estando em companhia das meninas, passando pelo
marinheiro, exclamou: “Ah, esse aí é a ‘bichinha’.”. Isto é, humilhou o cara
na frente dos outros. Ele não disse nada. Quando o navio zarpou para Rio
Grande, as meninas já desembarcadas, numa madrugada, enquanto todos
dormiam, foi de cabine em cabine, alvejando um por um dos oficiais. Matou
oito! Quando apontou o revólver para o último, este se acordou e, numa reação
114
PAULO DUARTE FONTES
automática, gritou para o marinheiro: “O senhor está preso! Me dê a arma!”.
Surpreendentemente, ele parou, se desculpou e deu a arma para o oficial. Isto
é, ficou louco, teve um surto, e saiu matando os oficiais. Evidentemente que,
como advogado dele, pedi exames de sanidade mental.
Memória MPM – Como advogado de ofício?
Paulo Duarte Fontes – Não, como advogado particular. Era uma
situação muito chata, um dilema, porque um dos oficiais mortos tinha oito
filhos, o outro deixou mais tantos órfãos, e assim por diante... Uma tragédia!
Naquele momento, a pena de morte não estava prevista na legislação, mas um
cara desses a mereceria. No entanto, eu o estava defendendo e conseguiria
provar sua incapacidade, sua insanidade. Então, foi uma sorte quando o
Carlinhos Paiva Ronco disse que havia me indicado como substituto para
procurador.
Memória MPM – Ah, foi nesse momento! Em plena efervescência da
Rebelião dos Sargentos...
Paulo Duarte Fontes – Sim. Em decorrência dessa indicação,
precisei me afastar da defesa.
Memória MPM – E como terminou o processo?
Paulo Duarte Fontes – Eu não me recordo...
Memória MPM – Dr. Paulo, voltando ao princípio, por que a escolha
pelo Direito? Havia tradição de família?
Paulo Duarte Fontes – Sim, com certeza! Meu pai foi deputado
federal, Fiel de Carvalho Fontes. Meu avô, Paulo Márcio Fontes, baiano,
115
HISTÓRIAS DE VIDA
foi o primeiro juiz federal do Brasil. Na Campanha Civilista, foi candidato
ao governo da Bahia, apoiado pelo Rui Barbosa, que se candidatara para a
presidência. Perderam para o [ José Joaquim] Seabra. Naquele tempo, as
eleições não eram exatamente confiáveis. Havia, de fato, fraude no sistema, de
modo que eles nunca reconheceram plenamente a derrota.
Memória MPM – A jurisdição federal foi criada pelo Campos Salles em
1890. Ele foi o primeiro nomeado?
Paulo Duarte Fontes – Sim. Tanto que um juiz federal em Brasília
pediu, esses tempos, a minha filha, para lhe repassar cópias das sentenças do
vovô, porque elas têm essa importância. Mas eu nunca liguei para isto. Não
conheci meu avô. Dizem que era “de lascar”. Ele e meu pai não se entendiam.
Meu pai nem ia à Bahia e, inclusive, abriu mão da herança quando ele faleceu
– vovô era um homem muito rico. Era um daqueles homens baianos à moda
antiga, autoritários, violentos, convictos de encarnarem o poder do mundo.
Mas é preciso entender isso no contexto da época.
Aos domingos, em Salvador, havia uma missa importante na Igreja da
Vitória, na saída da qual as pessoas tomavam o bonde que seguia pela Avenida
Sete [de Setembro]. Ele morava no Campo Grande. Ele e minha avó sempre
se sentavam no primeiro banco. Aquilo era uma espécie de tradição e todas as
pessoas sabiam que, na saída da missa, aquele era o assento de meus avós. Um
dia, um sujeito de fora, parece que de São Paulo, que logicamente desconhecia
essa regra não falada, apareceu sentado no banco. Meu avô não disse nada. Sabe
o que ele fez? Abriu o guarda-sol, tomou minha avó pelo braço e seguiram os
dois caminhando pelo trilho, na frente do bonde, que assim teve de seguir até
o Campo Grande ao passo do casal. O bonde seguiu-o! Ninguém disse nada.
116
PAULO DUARTE FONTES
Não teve um cara que honrasse as calças para se insurgir contra o absurdo
daquela situação. Porque todos sabiam que, se algo fosse dito, ele mandava
prender. Essa história eles contavam como vantagem, para exemplificar o
poder que tinham. Eu acho uma idiotice, nada admirável. Dizem que o pessoal
o elogiava por causa de um berro estrondoso que ele dava de vez em quando.
Punha a cabeça para fora da casa e berrava: “Ahhhhh!!!...”. O Campo Grande
inteiro ouvia. Pode? Eu ouvia essas histórias quando era garoto...
Meu pai foi deputado federal por quatro mandatos, caindo na
Revolução de 1930, do Getúlio Vargas. Papai gostava de pescar, de viver, era
apaixonado por minha mãe: todo sábado trazia um buquê de rosas para ela. A
vida passa rápido...
Meu avô também foi removido do posto pelo Getúlio. Aí queria que
papai fosse para a Bahia para administrar as fazendas, uma área grande em
Cocorobó, Canudos, onde Antônio Conselheiro promoveu seu levante. Havia
muito latifúndio lá. Papai negou-se. A minha avó, conheci com noventa e nove
anos, magrinha... Dizem que foi um amor de moça.
Memória MPM – Seu pai era formado em Direito, também?
Paulo Duarte Fontes – Sim, mas não advogava. Ele foi presidente
da Companhia de Anilinas, Produtos Químicos e Material Técnico. John
Jürgens passou a presidência para papai quando, em função da Segunda Guerra
Mundial, os alemães precisaram desligar-se do quadro social de empresas,
para que não entrassem na chamada lista negra e fossem, assim, proibidas de
vender e comprar. Seu Jürgens era uma joia de pessoa, não tinha nada a ver
com a situação política na Alemanha, mas era alemão, e isso, para os governos
brasileiro e norte-americano, já bastava.
117
HISTÓRIAS DE VIDA
Durante a sua gestão, papai aproveitou funcionários da Bayer, que
foram afastados da empresa em função da intervenção, como o seu presidente
no Brasil, o Dr. Schultz. Após a Guerra, quando a Bayer reorganizou-se no
Brasil, o Dr. Schultz tornou-se seu presidente. Era um cara fantástico!
Nesse novo contexto, a Companhia Anilinas não conseguiria
competir com uma empresa do porte da Bayer. Eram precisos investimentos
vultosos para modernizar o parque industrial, adquirir maquinário novo, etc.
Então, o Dr. Schultz ofereceu ao papai comprar as fábricas e as patentes
da Anilinas, que assim abandonaria a sua produção, mas passaria a fazer a
distribuição em todo o território nacional dos produtos Bayer. Era um acordo
maravilhoso, porque a Anilinas passaria a ser a distribuidora exclusiva dos
produtos da Bayer.
Os engenheiros da Alemanha vieram, avaliaram tudo, redigiram um
estudo completo. Papai reuniu a diretoria para concluir o negócio. Na reunião,
um dos conselheiros disse que era contra a avaliação feita pela Bayer, pois o preço
estaria baixo. Não estava. Era um negócio excelente, para todos. Mas papai,
que também era um desses homens à moda antiga, sentiu-se desautorizado.
Diante daquela contestação reagiu como meu avô faria: “Olha, a coisa que eu
tenho mais perto de mim é o meu chapéu.”. Botou o chapéu na cabeça e saiu
da companhia, para não mais voltar. Não quis receber nem a indenização por
rescisão do contrato. Aí o Dr. Schultz chamou o papai para a Bayer.
Quando a diretoria se deu conta da oportunidade que estava
perdendo, procuraram o Dr. Schultz, que então afirmou: “O negócio com a
Anilinas eu só faria se o Dr. Fontes fosse o presidente; como ele não quer mais
a função, acabou!”. Encerrou-se o assunto. Em poucos anos, a Anilinas pediu
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PAULO DUARTE FONTES
falência. Insistiram no modelo de negócio, adotaram uma política suicida,
foram vendendo prédios para pagar indenizações de empregados demitidos,
cobrir despesas com fornecedores, etc. Com isso, iam perdendo cada vez
mais mercado e desvalorizando o patrimônio. Ao final, não podiam mais
nem pagar os impostos. Foi o fim de uma das mais importantes indústrias
químicas do país.
Memória MPM – E a sua aposentadoria?
Paulo Duarte Fontes – Pedi-a em 1991. Foi um processo meio
demorado com o Tribunal de Contas, mas acabou tudo bem. Acabei me
aposentando depois que saiu a Lei nº 75, de 1993. Como aposentado, me
afastei do Ministério Público. Eu tenho apenas de, todo ano, provar que
estou vivo. Vou até a Representação e lá me apresento para renovação de
cadastro.
Me desliguei de Brasília. Tinha uma casa linda na QI 19, conjunto
10, casa 8; era grande. Eu mantinha dois dobermanns no pátio. É um cão
manso para o dono, mas assusta os outros. Late muito no portão. Alguém
se incomodou e um dia jogou carne envenenada para eles. Morreram os
dobermanns.
Passo a maior parte do tempo na fazenda, em Ouro Fino, Minas
Gerais, onde produzimos café. Torrado e moído, faz um pó especial, chamado
Medalha Milagrosa. A produção é toda exportada. Mantemos, ainda, este
apartamento no Rio de Janeiro.
Acho que Deus é muito generoso comigo. Sou muito feliz. Olho
para a vida e penso em tudo o que vivi com leveza e bom-humor. Não tenho
119
HISTÓRIAS DE VIDA
problemas hoje em dia. Amo minha família, gozamos, graças a Deus, de saúde
e levamos uma vida confortável. Eu sou muito feliz, casado há cinquenta e
sete anos. Estou com 88 anos e meu maior sonho agora é celebrar bodas de
diamante, quando desejo promover uma grande festa.
120
PAULO DUARTE FONTES
121
MARLY GUEIROS LEITE
Entrevista realizada na residência da depoente, no Rio de Janeiro,
em 13 de abril de 2015, por Gunter Axt.
122
Marly Gueiros Leite nasceu em 1º de março de 1934, no Rio de Janeiro,
batizada Marly do Vale Monteiro. É filha de Sady Magalhães Monteiro,
general de brigada do Exército, e Yeda da Silva Vale Monteiro. Casou-se,
em 1976, com Eraldo Gueiros Leite, que foi procurador-geral da Justiça
Militar entre os anos de 1964 e 1968. Formou-se em 1957, na Faculdade de
Direito do Rio de Janeiro. Cursou dois anos de doutorado em Direito Penal
Militar e defendeu, posteriormente, tese em livre-docência. Foi aprovada na
quinta colocação no concurso público para ingresso na carreira do Ministério
Público Militar realizado em 1959. Foi nomeada em julho de 1963, atuando,
inicialmente, como avulsa. Foi efetivamente nomeada, em setembro de 1964,
promotora de terceira categoria da 10ª Região Militar, sediada em Fortaleza.
No ano seguinte, foi removida para atuar junto à 2ª Auditoria da 2ª Região
Militar, em São Paulo. Em janeiro de 1966, foi promovida a promotora de
segunda categoria da Justiça Militar, transferindo-se para o Rio de Janeiro.
Em novembro de 1970, alcançou o cargo de promotora de primeira categoria
da Justiça Militar. Em 1984, foi promovida a subprocuradora-geral de Justiça
Militar, transferindo-se para Brasília. Em 1993, formou-se na Escola Superior
de Guerra (ESG). Em fevereiro de 1994, aposentou-se.
123
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – A senhora é natural de onde?
Marly Gueiros Leite – Sou carioca, natural do Rio de Janeiro.
Minha mãe era também carioca. Meu pai era gaúcho, do bairro da Azenha,
em Porto Alegre... Militar, chegou a general de brigada. Quase todos os
homens da família eram militares, tanto por parte de mãe, quanto por pai. E
eu, como mulher, acho que o destino me levou para a Justiça Militar... [risos].
Eu praticamente nasci dentro de um quartel, não é verdade? Meu pai era
bem “gauchão”, tocava acordeão e todos nós cantávamos. Lutou na Segunda
Guerra Mundial. Da Itália, trouxe um álbum de músicas napolitanas que nos
serviam de inspiração; ele tocava e eu cantava...
Memória MPM – Ah, ele participou da FEB?
Marly Gueiros Leite – Sim, foi do 9º Batalhão de Engenharia.
Tenho dois irmãos também militares, um já falecido.
Memória MPM – Onde a senhora estudou?
Marly Gueiros Leite – Estudei no Rio de Janeiro. O primário e o
ginasial foram no Colégio Tijuca-Uruguai, que não existe mais. O Clássico,
fiz no melhor colégio da época, de estilo americano, o Instituto Lafayette.
Hoje em dia, é a Fundação Bradesco. Mas foi ali que formei toda minha
estrutura literária; era um colégio maravilhoso! Aprendi até a falar latim,
graças a um excelente professor, Carlos Alberto Portocarrero de Miranda,
que, por ser advogado, despertou meu interesse para o Direito. Mas, desde
garotinha, eu gostava de estórias de crime, como as da revista X-9, que
seguia o gênero policial. Depois de formada, me especializei justamente
em Direito Penal.
124
MARLY GUEIROS LEITE
Entrei na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, na Rua do Catete,
em 1952. Hoje está em escombros. Quando passo lá, sinto vontade de chorar.
Aquilo foi um berço de cultura maravilhoso. Eu tive os maiores professores
que você possa imaginar: Ary de Azevedo Franco, que foi ministro do STF;
Benjamim Moraes, Afonso Arinos [de Melo e Franco], e por aí vai...
Memória MPM – O Nelson Hungria era professor lá, não é?
Marly Gueiros Leite – Sim; também me deu aulas no curso de
doutorado, assim como o Roberto [Tavares de] Lyra... Eu era uma aluna
aplicada. Conquistara a segunda colocação no vestibular. A prova não era
de múltipla escolha, como hoje. Precisava redigir. Lembro que havia uma
questão sobre a imprensa, outra sobre os versos de Camões, que precisavam ser
analisados na perspectiva morfológica, na sintaxe, tudo!
Como tirava ótimas notas, no segundo ano do Direito, o professor de
Direito Penal, Benjamim Moraes, convidou-me para ser sua assistente. Levei
um susto: “Professor, como vou dar aula para meus próprios colegas?!”. Ele
respondeu: “Se vira!”. Nunca me esqueci dessa frase. A partir daí, sempre “me
virei”! Por dez anos fui assistente dele, da cadeira de Direito Penal. Adorava
lecionar. Formei-me em 1957, fazendo, depois, dois anos de doutorado em
Direito Penal Militar. Tratava-se de uma matéria nova, ainda pouco conhecida.
Foi o destino que me conduziu para isso. Defendi a tese Espionagem militar.
Memória MPM – E depois da tese?
Marly Gueiros Leite – Emendei um concurso para a livre-docência,
porque o meu foco, até então, era lecionar na Faculdade. Aí o tema da tese foi
sobre a Responsabilidade penal da mulher. Em seguida, foi aberto o concurso para
125
HISTÓRIAS DE VIDA
a Justiça Militar. Eu estava com tudo fresquinho na cabeça, pois tinha acabado de
sair do doutorado sobre o tema. Na época, a Justiça Militar no Brasil era pouco
conhecida, porque se restringia apenas a julgar o acontecido nas casernas, nos
quartéis, como casos de deserção, insubmissão e outros crimes especificamente
militares. Ela só veio a ter mais relevância com o advento da contrarrevolução
de 1964 – não chamo de revolução, não! Chamo de contrarrevolução, mesmo!
Enfim, com a Lei de Segurança Nacional, aí sim a Justiça Militar veio à tona. Eu
prestara o concurso um pouco antes. Vi, um dia, no Diário Oficial: “Concurso
para promotor de Justiça Militar”. Pensei: “Ah, é aqui mesmo que eu vou!” [risos].
Não comentei com ninguém.
Memória MPM – Isso foi em 1960?
Marly Gueiros Leite – Tomei posse em setembro de 1964, mas fui
nomeada antes, quando a validade de quatro anos estava quase expirando...
Memória MPM – Foi seu primeiro concurso público?
Marly Gueiros Leite – O primeiro e único depois de formada!
E passei em quinto lugar; a única mulher que se atreveu a se inscrever para a
Promotoria Militar. Fui a primeira mulher na Justiça Militar brasileira! Como o
edital do concurso não falava se era extensivo à mulher, inscrevi-me para o MPM,
mas antes cheguei a consultar a banca para ver se mulher poderia fazer a prova,
porque foram omissos no edital; então, fui e entrei “com a cara e a coragem”.
Memória MPM – Pois é, me conte um pouco mais sobre isso. Quantas
mulheres havia na Faculdade quando a senhora estudou?
Marly Gueiros Leite – Ihhh, poucas! A maioria, com certeza, era
de homens. Naquela época, as mulheres não vestiam calças compridas. Tinha
126
MARLY GUEIROS LEITE
uma colega, a Iara, baiana, que usava calça comprida e era um escândalo. Depois
viemos saber que ela tinha levado uma injeção na nádega, que infeccionou e a
deixara com sequelas graves, o que a impossibilitava de usar saias. Enfim, nesse
ambiente de preconceito, eu abri os caminhos! Os jornais da época interessaramse pela novidade [lendo o jornal]: “A primeira mulher a ingressar no STM”. O
jornal errou, porque eu nunca cheguei ao Superior Tribunal Militar, ingressei na
Promotoria da Justiça Militar. Mas tudo bem, isso não tem problema. [Lendo
outro jornal] “A primeira promotora militar do Brasil”. Aqui o meu nome
apareceu com “i” ao invés de “y”.
Memória MPM – [Lendo] “Como advogada com apenas dois anos de
formada, assistente da cadeira de Direito Penal da Faculdade do Rio de Janeiro”...
Nesta reportagem, a data marca dezembro de 1959... Então o concurso foi ainda
nesse ano?
Marly Gueiros Leite – Pode ser, não me recordo ao certo...
Memória MPM – Creio que sim, pois aqui já fala sobre o seu quinto
lugar. [Lendo] “Tirou o quinto lugar para concurso de promotor daquela Casa, a
senhorita Marly do Vale Monteiro, descendente de uma longa estirpe de militares,
realizando um sonho acalentado desde os primeiros passos da Faculdade. Ela tem
dois irmãos na Academia Militar das Agulhas Negras, sendo filha do coronel Sady
Magalhães Monteiro e de dona Yeda da Silva Vale Monteiro. O regulamento do
concurso pedia quatro anos de exercício da profissão, e a nova promotora tem apenas
dois anos, mas compensou a exigência por meio do estágio forense, quando ainda
estudante. Este ano também alcançou outra vitória ao concluir o curso de doutorado.”.
Marly Gueiros Leite – Isso mesmo! Citam aí meu nome de solteira,
e meu doutorado foi feito em dois anos, de 1957 a 1959. Mas, de qualquer
127
HISTÓRIAS DE VIDA
forma, esse é o orgulho da minha vida, ter sido a primeira mulher a entrar no
MPM. Hoje há muitas... Até procuradora-geral já teve! Até ministra, no STM!
Se eu tivesse ficado lá, em Brasília, quem sabe? Mas sofri muito com a ida a
Brasília, para onde segui apenas em 1984, promovida a subprocuradora-geral,
que é o fim da carreira, já que o procurador-geral é por indicação e não só por
merecimento. Todas as minhas promoções foram por merecimento. Comecei
como promotora de terceira categoria, depois segunda, depois primeira...
Memória MPM – Sempre no Rio?
Marly Gueiros Leite – Não! [ênfase]. Eu inaugurei uma Auditoria
em Fortaleza, a 10ª CJM. Ah, foi um período sofrido, logo após a minha estreia
na Justiça Militar. Mandaram-me para Fortaleza, em outubro de 1964, depois
da Revolução. O Brasil estava pegando fogo. Lá fui eu, sozinha; não conhecia
ninguém. Hospedei-me no hotel Iracema, na Praia de Iracema. Jogadores
de futebol hospedavam-se ali também. Chegavam bêbados, de madrugada.
Esqueciam a chave dos apartamentos e os arrombavam, ou batiam na minha
porta para eu ajudar... Ah, eu ficava desesperada. Bom, deixa para lá, isso já
passou... Depois, vim para São Paulo, porque na Justiça Militar é preciso ir para
onde te mandam. Em São Paulo, fiquei de 1965 a 1966. Funcionei naqueles
processos, dos estivadores de Santos... Era muita responsabilidade.
Memória MPM – Em relação ao Sindicato dos Estivadores de Santos?
Marly Gueiros Leite – Isso. E o juiz-auditor era tirano. Fazia as
audiências até meia-noite. A Auditoria ficava na Av. Brigadeiro Luís Antônio
e eu precisava voltar para a casa da minha prima, onde me hospedava, saindo
à meia-noite, sozinha... No piso inferior da Auditoria ficava um depósito de
material apreendido dos subversivos: dinamite, granadas, tinha de tudo. Se
128
MARLY GUEIROS LEITE
jogassem um fósforo aceso, tudo explodiria. Era um prédio velho. Um curto-circuito, uma faísca, poderiam ser fatais.
Memória MPM – Antes de avançarmos mais na narrativa dessa fase,
me conte um pouco mais sobre o concurso. Muito difícil?
Marly Gueiros Leite – Para mim foi fácil, porque estava com tudo
fresco na cabeça. Foi prova escrita e prova oral, com banca examinadora, com
aqueles ministros já idosos do Superior Tribunal Militar, gente que eu não
conhecia. Alguns colegas passaram na minha frente, mas de qualquer forma,
foi um honroso quinto lugar.
Memória MPM – Mas a senhora acha que eles se classificaram melhor
porque eram homens ou porque tiveram um desempenho melhor nas provas?
Marly Gueiros Leite – Olha, um deles eu conheci, foi um grande
colega, o Dr. Milton [Menezes da Costa Filho]. Esse, posso dizer, entrou por
mérito. Agora, os outros, não sei. O Milton foi um companheiro até o fim:
aposentamo-nos juntos, em 1994.
Por essa época, inscrevi-me na Escola Superior de Guerra, a ESG.
Era um sonho antigo. Foi outro “Clube do Bolinha” que furei. Mas a Rachel
de Queiroz já tinha desbravado o caminho para as mulheres. Defendi a tese
A revisão constitucional no aperfeiçoamento do Poder Judiciário brasileiro: a Justiça
Militar, sua relevância e aspectos específicos. Era o momento em que se processava
a revisão constitucional e se avolumava o discurso que defendia a extinção
da Justiça Militar. Puro revanchismo! A Justiça Militar é a mais antiga do
Brasil, tendo chegado nestas terras com as naus portuguesas. Poucos assumiam
a defesa pública da Justiça Militar naquela conjuntura. Então, achei que
129
HISTÓRIAS DE VIDA
seria importante fazer esse debate. A minha turma foi batizada de Juscelino
Kubitschek...
Memória MPM – [Risos] A senhora não gostava muito dele?
Marly Gueiros Leite – Não! Tenho minhas restrições... Pelo amor
de Deus! Construir uma cidade no meio do deserto, com tudo levado até lá de
avião? Só podia dar no que deu!
Memória MPM – Em relação à dívida impagável que ele deixou, mais
o rompimento com o FMI?
Marly Gueiros Leite – Sim! Nós ficamos reféns do FMI... Mas tudo
bem, já passou.
Memória MPM – Por que demorou tanto tempo entre o concurso e a posse?
Marly Gueiros Leite – Porque as nomeações eram efetuadas na
medida em que iam surgindo as vagas... Fiquei no aguardo; era a quinta. São
essas coisas do destino. Minha designação saiu em janeiro de 1963, quando
apresentei todas as credenciais de aptidão para o exercício de função pública.
Minha nomeação chegou em julho de 1963. Fiquei funcionando avulsa,
atuando em IPMs, até assumir uma substituição, no Rio de Janeiro. Meu
diploma de nomeação foi assinado pelo João Goulart. Por ironia, no final de
seu governo, nomeou-me promotora. Sem comentários!
Memória MPM – E como foi esse início de carreira?
Marly Gueiros Leite – Foi um período difícil para mim. Recém-
-formada, recém-designada... Não tinha muita prática; apenas a doutrina,
a teoria. Não havia lidado com nenhum processo de Direito Penal Militar.
130
MARLY GUEIROS LEITE
Aprendi na marra, no tal do “se vira!”. Não tive ninguém para me orientar,
não. O Eraldo, que seria meu marido, no futuro, conheci quando tomei posse,
pois ele era, então, o procurador-geral da Justiça Militar, nomeado pelo
general Humberto Castelo Branco. Os dois eram muito amigos. O Eraldo era
promotor em Recife e o Castelo Branco apreciava consultá-lo sobre assuntos
relacionados aos processos jurídicos. Aí, a relevância da Justiça Militar já era
um fato concreto. Mas eu não tinha nada a ver com Eraldo nessa época. Aliás,
foi ele quem me mandou para Fortaleza! [risos]. Era meu chefe.
de vocês?
Memória MPM – [Risos] Então, foi depois que aconteceu a união
Marly Gueiros Leite – Só nos casamos em 1976, depois que ele
enviuvou. Isso faz muito tempo...
Memória MPM – Ele enviuvou em que ano?
Marly Gueiros Leite – Acho que foi em 1974. Não cheguei a
conhecer a esposa. Tinham cinco filhos. Um faleceu num desastre. Comigo,
teve uma menina. Depois, foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar.
Precisou aposentar-se para ser governador de Pernambuco. Casei-me com ele
quando já estava viúvo e aposentado.
Memória MPM – Como foi a ida dele para o governo de Pernambuco?
Marly Gueiros Leite – Tomou posse no governo em março de 1971.
Ele não suportava política! Foi praticamente forçado a ser governador... Foi
eleito indiretamente, depois de indicado pela presidência da República e pela
Arena. Era quase um tipo de nomeação... Ele não tinha perfil de político,
era jurista... A família dele toda é ligada ao Direito. Meu cunhado, Evandro
131
HISTÓRIAS DE VIDA
Gueiros Leite, foi ministro do STJ. O primo deles, Nehemias Gueiros, um
grande jurista, muito reconhecido na OAB e no Tribunal Internacional de
Haia. Hélio Gueiros, outro primo, mais distante, governou o Pará.
Memória MPM – E seu trabalho na Promotoria?
Marly Gueiros Leite – Acho que me dei bem na Justiça Militar.
Os ministros elogiavam-me muito, porque eu tinha algumas opiniões
ousadas! Cheguei a provocar a modificação de um acórdão do Supremo
Tribunal Federal num caso de crime de dano culposo, previsto no Código
Penal Militar. Coitado do réu naqueles tempos, pois todo civil que batesse de
carro com uma viatura militar, no trânsito, na via pública, era julgado e, em
geral condenado, pela Justiça Militar. Causava um mal-estar terrível! Nos
meus pareceres, sempre pedia a absolvição do civil. Mas eles mantinham a
sentença condenatória. Porém, “água mole em pedra dura, tanto bate até
que fura”. Furei. Foi uma grande vitória quando o Supremo reconheceu
que casos como esse não deveriam ser julgados pela Justiça Militar. Então,
mudei o acórdão do Supremo.
Memória MPM – Isso resultou num dos muitos elogios do MPM ao seu
desempenho...
Marly Gueiros Leite – Sim, há vários. Tenho, inclusive, medalhas
das três Forças: Marinha, Aeronáutica e Exército. Depois que me aposentei, fui
várias vezes a Brasília, para receber medalhas. Modéstia à parte!
Memória MPM – Sim, segundo os nossos registros: Medalha da Ordem
do Mérito Jurídico-Militar, em 1962; Medalha da Ordem do Mérito Judiciário,
em 1980; Medalha da Ordem do Mérito Judiciário-Militar, Alta Distinção, em
132
MARLY GUEIROS LEITE
1986; Santos Dumont, por destacados serviços prestados à Aeronáutica brasileira,
também em 1986; Medalha da Ordem do Mérito Militar, no grau oficial, em 1986;
o Mérito Tamandaré, em 1992; Medalha do Mérito Público Militar, em 2001...
Marly Gueiros Leite – Sim, creio que é isso. E teve minha
formatura na ESG em 1993. Também fui procuradora-geral, por alguns meses,
substituindo o Dr. Milton. Mas aquele caso do jipe do Exército abalroado por
um civil foi uma das maiores conquistas da minha vida.
Memória MPM – Quais os outros casos em que a senhora funcionou?
Tem lembrança de alguns?
Marly Gueiros Leite – Sim, lembro-me de vários, mas... alguns
foram escabrosos. Teve o caso do almirante Cândido [da Costa] Aragão,
comandante dos Fuzileiros Navais. A marujada toda o carregava no colo,
numa época em que a hierarquia estava desvirtuada, não havia ordem nem
disciplina. Os sargentos estavam por cima...
Memória MPM – Em relação à rebelião dos marinheiros em 1964?
Mas a senhora estava em Fortaleza, em 1964, não?
Marly Gueiros Leite – O processo rolou por muito tempo. Ele foi
julgado diretamente no Superior Tribunal Militar, pela sua patente, por ser
almirante. Foi acusado de chamar os fuzileiros para trabalharem na reforma de
uma residência sua na Ilha do Governador. Teria desviado material da Marinha,
como madeira, cimento, entre outras coisas, mandando os subordinados
levarem a carga para a tal obra, na qual ainda tinham de trabalhar, como
operários de construção. Ele tinha muita simpatia junto aos subordinados, que
não se queixavam. Mas isso deu um processo e, é claro, foi absolvido!!!
133
HISTÓRIAS DE VIDA
Atuei, também, nas cadernetas de Luís Carlos Prestes, secretário-
-geral do PCB (partido que era formalmente clandestino), encontradas na
devassa que se fez na casa dele, em abril de 1964. Os nomes de todos estavam
lá! Acho até que foi uma infantilidade dele: era só abrir e ver, nome por nome,
todos seus apaniguados. Reuniões, empresas de fachada, atribuições de cada
membro. Foram indiciadas mais de 70 pessoas e condenadas meia centena,
em junho de 1966, na Auditoria de São Paulo. O Prestes foi condenado a 14
anos de prisão à revelia. Não me lembro direito de todos os detalhes, foi um
processo tão grande... Milhares de páginas e muitos volumes. Aliás, por ser
conhecida como anticomunista, todos os processos desse gênero o procurador-
-geral mandava serem distribuídos para mim. Eu pegava processo de vinte,
trinta, até cinquenta volumes, e ficava trabalhando até de madrugada, para dar
conta de tudo.
Memória MPM – Tinha quinze dias para oferecer a denúncia, não?
Marly Gueiros Leite – Sim, mas me refiro aos pareceres, não às
denúncias. A denúncia era nas Auditorias. E nesse período, como procuradora
de primeira categoria, só dava parecer.
Memória MPM – A principal diferença entre as categorias era esta?
Marly Gueiros Leite – Você funciona como promotor, acompanha
todo o processo, e depois oferece a denúncia, faz sua exposição oral no
julgamento, para condenação ou absolvição. Eu, muitas vezes, inverti o meu
papel de promotora, e assumi quase a função de advogado de defesa, porque
era cada caso terrível que recebíamos lá! E promotor, quando pede absolvição,
na verdade não fala nesses termos; havia, isso sim, a prática de “pedir justiça”,
que é a maneira de o promotor pedir absolvição.
134
MARLY GUEIROS LEITE
Memória MPM – Algum exemplo?
Marly Gueiros Leite – O caso dos Grupos dos Onze, do [Leonel de
Moura] Brizola, terrível! Eu ficava ouvindo a Rádio da Legalidade, do Brizola,
ele incitando as massas a formarem os tais grupos, como se fossem times de
futebol. Gente analfabeta, que não sabia nem escrever, uns pobres coitados. A
prova contra eles eram listas de papel almaço, com os nomes “assinados” com
o dedão. Eu podia condenar essa gente? De jeito nenhum! Nunca condenei
um homem que botava o dedão nessas listas do Grupo dos Onze. Por outro
lado, houve, também, os casos das subversões lá em São Paulo, como o com os
homens da orla marítima. Era cada um... truculentos estes estivadores! Eu me
munia de toda a coragem necessária, apontava para eles e relatava os malfeitos.
Ainda era muito moça!
Memória MPM – A senhora sofreu alguma represália?
Marly Gueiros Leite – Graças a Deus, não! Eu tinha segurança, em
especial, um sargento da Polícia Militar, muito leal, já falecido. Esperava-me
no Tribunal, pegava meus processos e me levava até meu gabinete. Nunca senti
ameaças diretas. Apenas uma vez, numa época em que chefiava a Representação
da Procuradoria-Geral no Rio de Janeiro, me senti um pouco assustada, por
um maluco que entrou no meu gabinete.
A propósito, essa Representação era uma espécie de filial, mantida
depois que a Procuradoria-Geral se mudou para Brasília. Fiquei muitos anos
ali. O meu marido, depois que se aposentou, não me deixou aceitar promoção
para Brasília. O que que podia fazer? Ficava sempre dizendo, então, que não
queria ser promovida e, assim, chefiava a Representação. Ele morreu em 1983.
Em 1984, o Dr. Milton ligou-me dizendo: “Marly, você tem que vir para
135
HISTÓRIAS DE VIDA
Brasília, não pode mais ficar no Rio, vão dizer que você não tem competência
para ser promovida, já que tantas vezes recusou.”. Então, aceitei. Eu já estava
liberada mesmo... Aí fui para Brasília, e justamente no dia em que Tancredo
Neves morreu. O senhor [ José] Sarney assumiu a presidência, com aquela
Nova República. Foi um período desagradável.
Memória MPM – Por quê?
Marly Gueiros Leite – Porque o presidente Sarney quis acabar com
todas as supostas “mordomias” da Justiça Militar. E, então, estabeleceu uma
perseguição implacável. Ele nos tirou o carro da Representação, um Opala
velho que eu tinha. Fui ao leilão e arrematei o carro de volta! [risos].
Memória MPM – Vi na sua declaração este fato e fiquei de perguntar,
para a senhora, do porquê de ter arrematado esse carro tão velho num leilão! [risos].
Marly Gueiros Leite – [Risos] Eu sou carne de pescoço! Fiquei com
o carro! Tirei a placa de bronze e botei a placa comum.
O convívio com a Nova República era difícil. Já naquele momento
vieram com o propósito da reabertura do inquérito do Riocentro, bem como
o do Herzog. O Dr. Milton precisou dar dois ou três pareceres contrários. O
presidente Sarney nomeou um senador do Paraná, amicíssimo dele, chamado
[Francisco] Leite Chaves, para ser nosso procurador-geral. Ele não tinha
relação nenhuma com a Justiça Militar, talvez nem mesmo conhecesse o
Código Penal Militar. Seu papel era reabrir esses casos. Fui eu quem acabou
dando o parecer final contra a reabertura do Riocentro e o Tribunal mais
uma vez arquivou o processo. Antes do Leite Chaves, o presidente Sarney já
tinha nomeado o Dr. George Tavares para a Procuradoria-Geral da Justiça
136
MARLY GUEIROS LEITE
Militar, logo ele, que tinha sido um dos mais atuantes advogados de defesa dos
comunistas e dos subversivos! Uma incongruência, um paradoxo: um advogado
de defesa de comunistas ser nomeado dessa forma! O Dr. George Tavares era
muito simpático. Mas nem mesmo às sessões no STM ele ia. Quem fazia as
sessões no terceiro andar, era eu, pegando a beca emprestada do meu colega,
Dr. Milton, já que nem tinha ainda a minha. O Dr. George Tavares só aparecia
em Brasília nas quintas-feiras. Como poderia ser diferente? Tinha um grande
escritório no Rio de Janeiro. As tentativas de reabrir o Riocentro eram puro
revanchismo. O terceiro procurador-geral do governo Sarney foi Eduardo
[Victor] Pires Gonçalves, irmão do general Leônidas Pires Gonçalves. Era
um gaúcho fazendeiro, rico, célebre colecionador de armas e gostava de andar
armado. Não era concursado, tendo entrado na Procuradoria por indicação e
passara toda a sua carreira cedido como assessor em outros órgãos ou gabinetes.
A época Sarney foi terrível! Um dos casos mais famosos em que funcionei foi
o do capitão Luiz Fernando Walther de Almeida, o processo de Apucarana.
Memória MPM – Ah, o caso de rebelião. Como foi?
Marly Gueiros Leite – Bem, ele era capitão do 30º Batalhão de
Infantaria Motorizado em Apucarana e, em [22 de outubro de] 1987, cercou
e invadiu o prédio da Prefeitura com seus comandados, em protesto contra os
baixos salários percebidos e a deficiência do atendimento de saúde aos militares.
Entregou ao assessor do prefeito uma carta de protesto. Foi algo inaceitável.
Memória MPM – Mas ele foi ovacionado pela tropa, não? Era uma
espécie de liderança...
Marly Gueiros Leite – Sim, é claro! Todos estavam querendo
aumento mesmo. Mas ainda assim, essa era e é uma forma de protesto
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HISTÓRIAS DE VIDA
inadmissível para um militar. Graças a Deus que não houve nenhum ferido,
tampouco maiores consequências políticas.
Memória MPM – Ele foi condenado por essa infração?
Marly Gueiros Leite – Foi a julgamento em Curitiba, na 5ª
Circunscrição Judiciária Militar, tendo sido condenado a três anos de prisão.
Houve apelação e o Superior Tribunal Militar diminuiu a pena [para oito
meses]. Depois, passou para a reserva como tenente-coronel.
Memória MPM – A senhora chegou a pedir condenação?
Marly Gueiros Leite – Pedi, claro!
Memória MPM – Nessas manifestações de ontem, no Rio de Janeiro, há
quem tenha pedido a volta dos militares...
Marly Gueiros Leite – Eu não participei dessas manifestações de
rua. Acho que não vão dar em nada. Não parece uma repetição da “Marcha
com Deus pela Pátria e pela Família”, de 1964. Não foram os militares
que fizeram a Revolução, não! Foi a pedido da sociedade! Isso é algo que
a Comissão da Verdade precisa contemplar nos seus relatórios, para não
relatar uma versão facciosa.
Memória MPM – A senhora foi à Marcha de 1964?
Marly Gueiros Leite – Eu não! Mas quando jovem fui à passeata do
Jânio [da Silva] Quadros. A vassoura daquele louco!... Como esses políticos
enganam a gente, não é? O [Fernando Affonso] Collor [de Mello], meu Deus
do céu! Ainda me dá calafrios a memória da ministra Zélia [Cardoso de Mello]
anunciando, pela televisão, o sequestro dos ativos financeiros em 15 de março
138
MARLY GUEIROS LEITE
de 1990. Meu pai já estava muito doente, na reserva. Eu tive que juntar notas
fiscais de farmácia, dos remédios dele, laudos de médicos e um calhamaço
de papéis, tudo isso para provar que ele precisava realmente movimentar seu
próprio dinheiro da poupança. Foi terrível, uma época que não gosto nem de
me lembrar!
Memória MPM – E como a senhora conheceu o seu marido?
Marly Gueiros Leite – Como procurador-geral. Fui subordinada
dele por muitos anos. Mas quando o conheci, era casado. Não tinha nada a ver
com ele no período, pelo contrário, eu tinha muito respeito por ele. Depois,
não sei dizer ao certo, talvez por afinidade de pensamento, começamos a nos
aproximar. Aí, ele começou a me distribuir processos, como o do Vladimir
Palmeira, que liderou em 1968 a Passeata dos Cem Mil, o do José Dirceu...
Eram tantos processos!...
Memória MPM – O José Dirceu passou por suas mãos?
Marly Gueiros Leite – Sim, nos processos da UNE. Aquele
congresso em Ibiúna, em São Paulo, tudo isso passou pelas minhas mãos.
Tenho que ver nos meus registros, porque de memória não me lembro dos
detalhes. Havia situações difíceis, escabrosas, que precisava descrever, o que
não era assim tão fácil. Eu era a única mulher funcionando junto ao Tribunal.
Recordo-me daquela mesa ovalada: os ministros todos sentados e eu, firme
na minha tribuna de procuradora, relatando estupros, casos de pederastia (na
Marinha havia maior incidência de pederastia). Como falar aquelas palavras?
Mas eu tinha que falar, descrever os atos criminosos. Na hora, me dava uma
coragem e me enchia de tranquilidade. Todos me respeitavam.
139
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Os casos de estupro aos que a senhora se refere são de
militares contra civis?
Marly Gueiros Leite – Não. Dentro da caserna mesmo, militar
contra militar.
Memória MPM – Mas aí já eram casos de pederastia?
Marly Gueiros Leite – Sim. Outra coisa que acontecia com
frequência era acidentes com armas. Brincadeiras em alojamentos acabavam
com feridos ou mortos.
Memória MPM – A senhora acha que a Justiça Militar, nesse período
dos anos de 1960 e 1970, cumpriu o seu papel? Como repercutiam as denúncias de
excessos e maus-tratos aos presos?
Marly Gueiros Leite – Cumpriu, com certeza! Estávamos em
uma guerra civil, que, aliás, não fora provocada pelos militares. Dois lados
antagônicos enfrentavam-se. Houve excessos de ambos os lados. Mortes
aconteceram, combatentes tombaram. Hoje se esqueceram dos mortos de um
dos lados. Mas basta olhar os jornais da época. Havia toneladas de assaltos a
banco. Caracterizavam-nos como expropriações, para financiar a luta armada.
Não existiam caixas automáticos, como hoje. As agências eram invadidas e
se houvesse um vigia, mulher ou criança, no caminho, na linha de tiro, pouco
importava, executavam-nos. Ninguém mais se lembra disso hoje em dia.
Dizem que fulana e fulano foram presos arbitrariamente, torturados. Mas,
e as vítimas que eles executaram, às vezes friamente, e que estão esquecidas?
Não estavam lutando pela democracia, mas para a instalação de um regime
ditatorial comunista. Como o Serviço de Inteligência iria antecipar suas
140
MARLY GUEIROS LEITE
ações? Era para ficar sentado esperando que o pior acontecesse? O [Carlos]
Marighella dava instruções de guerrilha num livro, uma coisa revoltante.
Anistia em grego quer dizer apagar. Então, a Anistia Penal apaga o crime, de
ambos os lados. Agora se pretende uma anistia unilateral, um cancelamento
retroativo da anistia para um dos lados, isso depois desse mesmo lado receber
indenizações polpudas pagas pelo Estado, para supostamente compensar os
males causados. E os soldados que morreram? Os vigias? As pessoas que
foram sequestradas? Peguei um processo em Pernambuco de um tenente da
Aeronáutica que estava com a companheira dentro de um Fusca, na praia de
Boa Viagem, namorando, como faziam os jovens então, quando um grupo
armado com metralhadoras passou, viu e, gratuitamente, estuprou a moça e
disparou no rapaz. Esse tenente ficou tetraplégico. Era bonito, saudável e foi
reduzido a um fio de ossos até morrer. Foi um crime covarde. Naquele tempo,
tinha pena de morte. Eu pedi, para esse caso. Acho que fui a única pessoa
na Justiça Militar que teve coragem de pedir pena de morte. Os ministros
transformaram a pena de morte em pena de 30 anos. Já viu alguém aqui no
Brasil cumprir pena de 30 anos? Não. Então, acabava-se nisso.
Se a Justiça Militar cumpriu seu papel? Posso dizer que cumpriu. Se
melhorou ou se piorou, isso é outra história. O dever foi cumprido e a pedido
da sociedade. Do jeito que o país estava, ninguém aguentava mais.
Memória MPM – O Dr. Eraldo se notabilizou, na época em que
foi procurador-geral, por pedir o arquivamento de um processo muito rumoroso,
do Negrão de Lima, acusado de atividades comunistas, junto com várias outras
pessoas...
Marly Gueiros Leite – Não me lembro disso, não.
141
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Isso foi em 1965, logo depois do AI-2.
Marly Gueiros Leite – Eu estava em Fortaleza, não sabia de nada,
não, e nem queria saber. Afinal, estava lá sozinha, sem conhecer ninguém,
naquele hotel horroroso, com aqueles problemas desagradáveis de que falei.
E todo dia, às sete horas da noite, acabava a luz na cidade. Eu fazia tocha de
jornal para ir para meu quarto, apavorada, com aqueles bêbados em volta. Foi
horrível. A única coisa importante lá foi a inauguração da Auditoria, onde
deixei meu nome perpetuado.
Memória MPM – A senhora a inaugurou, não é verdade?
Marly Gueiros Leite – Sim, fui a primeira promotora; inaugurei.
Memória MPM – A senhora sentiu alguma resistência dos juízes-
-auditores, dos membros do Conselho, do Tribunal ou dos colegas da Promotoria,
pelo fato de ser mulher?
Marly Gueiros Leite – Nunca. Pelo contrário, fui sempre muito
prestigiada. Diversos acórdãos me elogiaram.
Memória MPM – Como era esse cargo que a senhora ocupou durante
vários anos, de representação da Procuradoria-Geral de Justiça Militar?
Marly Gueiros Leite – Ainda existe. Tem muito colega
aposentado no Rio de Janeiro. Então, por exemplo, o recadastramento,
é feito aqui. Mas funciona mais para aposentados mesmo. E também
para as Auditorias que funcionam no Rio, tanto do corpo administrativo
quanto dos próprios procuradores. Fui chefe da Representação até porque
era a única possibilidade de um cargo para mim no Rio, de onde eu não
142
MARLY GUEIROS LEITE
podia sair, em função do casamento. Eraldo não aceitava minha ida para
Brasília. Depois, precisei ir. Colocaram-me na Asa Sul, perto do aeroporto.
Horrível! Agora, até está bem melhor, mas naquela época, eu me sentia
muito mal; me sentia verdadeiramente num deserto. O meu temperamento
requer esse tumulto todo de Copacabana, onde moro. Aos finais de semana,
Brasília era um túmulo. Por sorte, as passagens áreas não eram tão caras,
então, na sexta-feira eu embarcava num avião para o Rio. Na segundafeira de manhã, cedinho, voltava para Brasília. Não dava para ficar no final
de semana lá. Não aguentava mais ir a clubes. Sinceramente, não achava
aquelas piscinas convidativas.
Memória MPM – E a senhora tem acompanhado a Justiça Militar, o
Tribunal e o MPM, hoje, depois de aposentada?
Marly Gueiros Leite – Estou parcialmente afastada. Está tudo
mudado. Para mim, não é mais aquele Tribunal que vivi, que senti.
Memória MPM – Mas por que isso?
Marly Gueiros Leite – Não sei explicar exatamente. Não há mais
aquele laço que nos unia. Não conheço sequer o presidente do Tribunal. No
meu tempo, era como se fôssemos uma família. Não sei se eu via isso assim
porque todos os ministros militares e o pessoal do MPM se conheciam; era
uma afinidade muito grande. Agora, não sei mais. Eu tinha grande apreço
pelo almirante [Raphael de Azevedo] Branco, pelo general Sérgio [de Ary]
Pires. Eram meus amigos. Prestigiavam-me muito durante as sessões. E
agora, não conheço mais ninguém. Muitos já morreram... É outro Tribunal.
E tem que ser assim mesmo, as coisas mudam, evoluem...
143
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Havia uma maneira de se vestir, de se apresentar
como promotora? Porque a senhora era uma moça jovem... Já se podia usar calças,
por exemplo?
Marly Gueiros Leite – Havia uma maneira de se apresentar. O uso
de calças compridas acabou sendo incorporado pelas mulheres, com o tempo.
Nos anos 1980, isso já estava estabelecido. Eu particularmente estava sempre
de saia e blazer. E tinha que botar a beca para fazer as sessões. Usava somente
salto alto.
Memória MPM – Qual o balanço que a senhora faz da sua profissão?
Marly Gueiros Leite – Eu adorei e adoro a minha profissão!
Não me arrependo de nada! Durmo com a cabeça tranquila no travesseiro.
Nunca promovi uma injustiça contra ninguém. Mesmo durante o período da
“ditadura”, como dizem, houve casos em que pedi absolvição, porque a Justiça
vinha em primeiro lugar. Agora, evidentemente, se existissem provas que
incriminavam, pedia condenação, sim.
Memória MPM – E a bateria? A senhora toca bateria, não é?
Marly Gueiros Leite – Onde o senhor ouviu isso? [risos]. Não,
eu batuco, batuco em qualquer lugar. Mas bateria nunca toquei, não... Estão
querendo me difamar...[risos].
Memória MPM – Mas a senhora sabe que a sua bateria é famosa, não
é? Em Brasília, a senhora não tocava bateria em casa?
Marly Gueiros Leite – Somente para um público interno, mas
externo nunca... Na Escola Superior de Guerra, nos nossos passeios, nas
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MARLY GUEIROS LEITE
nossas viagens, gostava muito era de jogar sinuca, na fazenda do “rei da soja”,
Olacyr [de Moraes]. Que fazenda maravilhosa ele tinha, e com uma mesa de
sinuca memorável! Inclusive em Teresópolis, em minha outra casa, eu tinha
uma mesa de sinuca, mas a inundação acabou com tudo.
Memória MPM – A senhora foi atingida por aquela inundação?
Marly Gueiros Leite – Sim, perdi carro, sofá, sala de jantar, tudo.
Entrou mais de um metro e meio de água na casa. Mas já está tudo reconstruído.
Quantas inundações houver, eu reconstruo. Aquilo foi atípico, nunca mais
aconteceu, nem acontecerá, se Deus quiser!!!
Memória MPM – Então está bem. A senhora gostaria de acrescentar
mais alguma coisa, de deixar algo mais registrado?
Marly Gueiros Leite – Não, creio que não. A minha vida foi esta,
está toda contada aqui e não me arrependo de nada. Tenho muito orgulho de
ter pertencido à Justiça Militar do Brasil, porque foram anos e anos em que
me doei de corpo e alma. Foi gratificante para mim. Acho que, de alguma
maneira, eu contribuí fazendo justiça, aplicando justiça. Espero que ela nunca
seja extinta, porque faz parte da história do Brasil, foi a primeira Justiça do
Brasil, e tem uma característica que nenhuma outra tem: na Justiça Militar,
não há pagamento de nada, tudo é de graça. Na Justiça Comum, é tudo pago.
Enfim, na Justiça Militar só se pratica justiça. E agradeço a você, pela presença,
pelo carinho e pela atenção.
Memória MPM – Muito obrigado!
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GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça de Santa Catarina, em
Florianópolis, no dia 27 de março de 2015, e no dia 18 de junho, em Balneário
Camboriú, por Gunter Axt, com a presença da Sra. Maria Angélica Gonçalves.
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Gilson Ribeiro Gonçalves nasceu em 4 de setembro de 1935, em Juiz de
Fora, Minas Gerais. É filho de José Ribeiro Gonçalves e Maria Athayde
Gonçalves. Casou-se com Maria Angélica Lamas Cruz Gonçalves. Graduouse em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1961. Sua carreira
no Ministério Público Militar teve início em 17 de janeiro de 1967, quando
foi designado segundo substituto de procurador militar de terceira categoria,
atuando, inicialmente, na Auditoria junto à 4ª Circunscrição Judiciária
Militar, em Juiz de Fora. Em 1969, prestou serviços à Subcomissão-Geral de
Investigações no Estado de Minas Gerais. Em agosto de 1973, foi transferido
para a Auditoria da 11ª CJM, em Brasília. Desta, passou a exercer funções
na Procuradoria-Geral da Justiça Militar, em Brasília. Em abril de 1980, foi
nomeado procurador militar de terceira categoria, funcionando junto à 12ª
Circunscrição Judiciária Militar, em Manaus. Em junho do mesmo ano, foi
designado procurador militar de segunda categoria, tendo atuado, nesse cargo,
na 11ª e 12ª CJMs e na Procuradoria-Geral de Justiça Militar. Em 1982, foi
promovido a procurador militar de primeira categoria. Alcançou, ainda, o mais
alto cargo da carreira, o de subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 5 de
abril de 1990, aposentou-se.
147
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor e a senhora são naturais de onde?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Sou natural de Juiz de Fora, Minas
Gerais. Minha esposa, Maria Angélica, é de São João Nepomuceno, que fica a
70 km de distância, mas também morava em Juiz de Fora.
Memória MPM – E os seus estudos foram em Juiz de Fora?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Primeiro fui para o Exército, fiz o
curso preparatório em Porto Alegre, mais tarde ingressando na Academia
Militar. Só que nesse meio tempo sofri um estresse e, quando fui perceber, já
era tarde demais; carrego sequelas até hoje. Tinha 16 ou 17 anos e acabei sendo
desligado da Academia porque não aguentei o curso: fui reprovado.
Depois que saí da Academia, voltei para Juiz de Fora e prestei o
vestibular para Direito. Consegui passar e iniciei o curso. Mas as dificuldades
de atenção e concentração permaneceram. De forma que comecei a me
questionar sobre a causa disso, pois o curso em que eu estava antes era muitas
vezes mais difícil e complexo, isto é, as coisas deveriam estar mais fáceis. Mas
não estavam. Um colega me indicou um médico-psiquiatra, porque ele já
havia feito um tratamento similar. Era um médico de origem eslava, muito
competente. Aplicou-me uma série de testes e constatou que eu estava com
problemas de memória: se falasse uma coisa, dali a dois minutos não conseguia
repetir. Ele concluiu que isto era causado pelo estresse. Mencionou, na época,
um esgotamento nervoso, pois não existia a palavra estresse.
Aplicou-me um teste de atenção, que consistia numa lauda, toda
datilografada e impressa, como se um texto fosse, mas não era um texto em
língua nenhuma. Mandou que eu riscasse quatro letras – me lembro até
148
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
hoje: “P,Q,R,S”. Ele sentava atrás de mim, sem movimento nenhum, com
tranquilidade. Cronometrou meu tempo. Numa folha cometi 17 erros. Nas
primeiras linhas sublinhei certo, depois de umas três ou quatro errei um, e
fui diminuindo os acertos e aumentando os erros; quando cheguei ao final,
eu errava tudo o que estava em quatro linhas inteiras. Ele me prescreveu um
tratamento que durou quase um ano. Quando achou que eu estava bem, pediu
para repetir o teste: apenas um erro! Segundo ele, poderia até ser um defeito
de impressão, ou qualquer coisa. Mas nunca mais tive boa memória. Fiz o
curso de Direito sem ser um aluno brilhante, porque não tinha mais condição.
Depois fui exercer a profissão, e acho que o meu esforço foi maior do que de
um colega que não tivesse passado por isso.
Memória MPM – A Faculdade foi em Minas Gerais?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Eu sou formando da primeira turma da
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. O meu diploma
foi o registro número um, da folha um, do livro um. Fiquei na história. E depois
disso, para minha infelicidade, o meu diploma foi roubado em Brasília: era
pequeno, bonitinho. Em Brasília, naqueles tempos, a mão de obra doméstica
era péssima e uma gatuna, que estava empregada em nossa casa, nos afanou até
documentos, dentre os quais, o meu diploma. Ela agiu durante um período de
convalescença minha – fiquei um tempo internado no hospital em decorrência
de uma cirurgia e, depois, em recuperação em casa.
Maria Angélica Gonçalves – Foi a única vez que enfrentamos uma
situação dessas. Levou o liquidificador novinho, que estava guardado porque
era de voltagem 110 V e em Brasília é 220. Deve ter queimado quando
tentou usá-lo.
149
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Qual foi o ano da formatura?
Gilson Ribeiro Gonçalves – 1961.
Memória MPM – Mas aí já estava advogando, como solicitador?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Me tornei solicitador no quarto ano
do curso. Meu pai era dentista. Dentre seus clientes havia um advogado que
me ofereceu um estágio no seu escritório. Ele estava começando, porque
originalmente era contador. Tinha uma casa de comércio que vendeu para
abrir o escritório de advocacia. Era uma salinha pequena, muito simples.
Memória MPM – Assumiam todas as causas? Criminais, cíveis,
trabalhistas ou tinha uma especialização?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Tudo o que caísse na rede. Peguei
prática e conheci o Fórum de Juiz de Fora. Eu era bastante conhecido, porque
sou nascido lá. Quando voltei para estudar Direito, conhecia todo mundo na
Faculdade, ninguém era estranho. Em Juiz de Fora, se não me conheciam,
conheciam meu pai, ou minha irmã mais velha, ou meu irmão, que já tinha
saído de lá.
Memória MPM – Alguém da sua família já tinha seguido o Direito?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, ninguém. O meu irmão é militar,
e a minha irmã, dentista. Nem sei dizer por que escolhi Direito; não tinha
vocação. Comecei a conhecer as pessoas, a admirar a qualidade de orador de
um advogado, o desempenho de um promotor, a apreciar a inteligência dos
professores. Modelos foram se estabelecendo. Um professor foi depois nomeado
desembargador. Mantive ótimo relacionamento com meus ex-professores,
150
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
inclusive porque, mais tarde, eu já procurador, fui deslocado da Procuradoria
para aquela Subcomissão-Geral de Investigações em Minas Gerais, em função
da qual saí de Juiz de Fora e fui para Belo Horizonte. Permaneci quatro anos
nessa função. Numa oportunidade, levei o general da reserva, que presidia a
Subcomissão, para conversar com o presidente do Tribunal de Justiça, graças
à intermediação daquele professor que se tornou desembargador. Ele foi à
Comissão para ver o que a gente fazia. Peguei um processo, botei em cima da
mesa: “O senhor pode olhar.”, e ele folhou tudo.
Memória MPM – Como é que funcionava a dinâmica da Comissão?
Gilson Ribeiro Gonçalves – A Comissão foi baseada no Ato
Institucional nº 5, considerado o mais violento. O Ato criou a Comissão-
-Geral de Investigações, órgão anexo ou dependente do Ministério da Justiça,
cujo presidente era o ministro da Justiça, mas quem administrava, organizava e
funcionava na Comissão era um vice-presidente, general Oscar Luiz da Silva.
Havia diversos membros. Quem fez parte, depois, dessa Comissão, foi o Dr.
Milton Menezes da Costa Filho, que foi o procurador-geral da Justiça Militar.
A Comissão-Geral criou Subcomissões nos Estados. Quando eu
estava já em Brasília, conheci um brigadeiro da reserva que tinha sido membro
da Subcomissão no Nordeste, creio que em Pernambuco. Então era uma
operação das Forças Armadas: a Marinha, o Exército e a Aeronáutica, cada
uma de acordo com sua disponibilidade, sendo que o Exército não permitiu a
participação de nenhum oficial da ativa, além do general, vice-presidente da
Comissão-Geral; todos os outros oficiais eram da reserva.
Em Belo Horizonte, a Subcomissão era presidida por um general
de brigada, e composta por mim e um coronel. O primeiro indicado para ser
151
HISTÓRIAS DE VIDA
presidente dessa Subcomissão foi um coronel da ativa, que, quando indicado,
pediu que eu fosse o jurista participante, porque me conhecia – eu o havia
assessorado num inquérito envolvendo estudantes em Belo Horizonte. Eu
estava recém-casado (casei-me em outubro de 1968). O Ato Institucional
foi assinado em dezembro, e em janeiro ou fevereiro, ele me ligou, querendo
saber se poderia me indicar para um serviço. Perguntou porque a minha
esposa poderia não concordar, mas eu lhe disse que se era para serviço, ela
não estabeleceria obstáculos. Ele previu três ou quatro meses de trabalho, mas
permaneci quatro anos, depois dos quais pedi para sair.
Minha esposa trabalhava no IAPI (Instituto de Aposentadorias
e Pensões dos Industriários), motivo pelo qual ela não quis se mudar para
Belo Horizonte. Ademais, ficaria longe da família. De forma que fiquei,
nesses quatro anos, me deslocando entre Belo Horizonte e Juiz de Fora. Ia na
segunda-feira de manhã e voltava na sexta-feira à noite. Conhecia cada curva
da estrada. Nos trechos bons, meu fusquinha voava baixo. Numa ocasião, dei
uma carona para o então auditor em Juiz de Fora, o Dr. Mauro Seixas Telles.
Era noite escura, não se enxergava nada. Quando percebi seu nervosismo, para
acalmá-lo comecei a descrever o caminho que viria em seguida: “Adiante, uma
curva, quando chego aqui, passo a uma terceira para entrar firme, e agora já
vamos acelerar porque tem que subir.”. Ele se tranquilizou.
Memória MPM – Por que o Ministério Público Militar?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Juiz de Fora era uma cidade pequena
e sempre fui razoavelmente comunicativo. Uma noite saí para encontrar uns
amigos na badalada rua Halfeld, para um bate-papo. No caminho cumprimentei
uma roda de oficiais do Exército, que estavam nas faixas de capitão e major;
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GILSON RIBEIRO GONÇALVES
conhecia quase todos e acabei participando da conversa como se fosse parte
do grupo. Mas um deles se retraiu, porque eu era um paisano. Quando saí,
quis saber dos outros quem eu era. Explicaram que eu fora cadete e irmão
do Gil, oficial. No dia seguinte, fez questão de me procurar para se desculpar
pela indelicadeza. Ficamos amigos. Ele havia terminado o curso da Escola
de Comando e Estado-Maior e estava servindo em Juiz de Fora, porque era
impedido de ficar mais de dez anos na mesma guarnição, no seu caso, a do Rio
de Janeiro, onde a esposa trabalhava e as filhas estudavam. Como Juiz de Fora
era perto do Rio, a família ficara lá.
Juiz de Fora era mais ligada ao Rio do que à capital mineira. Quem
construiu a estrada de rodagem entre Juiz de Fora e Belo Horizonte foi
o Juscelino Kubitschek, no seu primeiro governo em Minas. Até então, o
tempo de viagem para o Rio de Janeiro era muito menor do que para Belo
Horizonte. O pessoal de Belo Horizonte ficava ressentido – dizia que a turma
de Juiz de Fora era “carioca do brejo”. Como esse oficial passava a semana na
cidade sem a família, acabamos convivendo. Ele seria o responsável por me
indicar para o cargo.
Entrementes, os processos se acumulavam na Auditoria, sobretudo,
depois que o Ato Institucional nº 2 passou a atribuição dos crimes contra
a Segurança Nacional para a Justiça Militar. A Justiça Militar funcionava,
à época, com um auditor, um promotor, e um advogado de ofício. A cada
um desses cargos ligavam-se dois substitutos, o primeiro e o segundo. Para
dinamizar o serviço, convocaram-se os substitutos, formando-se Conselhos
Extraordinários. Então, havia o Conselho Permanente, integrado pelos
titulares, e o Conselho Extraordinário, composto pelos substitutos. O auditor
convocado para o Conselho Extraordinário era um sujeito que para maluco
153
HISTÓRIAS DE VIDA
faltava pouco! Fora professor de ginásio e os alunos o ridicularizavam; não
era respeitado em lugar nenhum. No Fórum, onde advogava, criava caso
em todos os cartórios. Os escrivães o menosprezavam. O próprio Tribunal
Militar passou a ter má vontade com esse Conselho, até que chegou ao ponto
de desconvocá-lo. Já o segundo substituto tinha sido meu professor, muito
bom, muito competente, com sentenças dignas. Às vezes, por impedimento do
primeiro, acontecia de este assumir o Conselho.
Numa ocasião, fui chamado para defender um açougueiro. Uma lei
tabelava o preço da carne e obrigava o açougue a vender pelo preço de segunda
a carne de primeira, caso a de segunda acabasse. Então, um empregado num
açougue fez a burrice de dizer para um policial, disfarçado de freguês, que a
carne de segunda tinha acabado, esquecendo-se de mencionar que tinha a de
primeira. O policial nem conversou: mão nele, para a cadeia! Prendeu o dono
do açougue também, que estava nos fundos e nem sabia do que se passava. O
sujeito era de uma cidade próxima de Juiz de Fora, para onde se mudara há
pouco tempo. Uns amigos seus eram meus clientes e me chamaram para ajudálo. Embora não tivesse ainda assumido, eu já havia sido indicado para ser o
segundo substituto de promotor, o que, apesar de ser uma coisa sigilosa, tinha
vazado e era comentado por alguns.
Bom, fui defender o açougueiro. Na primeira audiência interrogatória
pedi o relaxamento da prisão. E esse auditor deu um voto dizendo que
o açougueiro e o patrão eram os maiores criminosos do mundo. Queria se
mostrar para os militares como auditor vigoroso, enérgico e cumpridor da
lei, doesse a quem doesse. Eu, muito inexperiente na Justiça Militar, ainda
tateando, tomei a palavra, ao final da sessão, e fiz um pedido que na jurisdição
não existe: reconsideração de ato. O promotor me deu uma gozada. Mas para
154
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
pedir a reconsideração de ato justifiquei que não havia demonstrado tudo no
pedido inicial. Com isso, os oficiais perceberam a burrice que tinham feito
ao acompanhar o voto do auditor. Dos quatro oficiais do Conselho, o mais
moderno acompanhara o auditor, por inexperiência, o que fora repetido pelo
segundo mais moderno. O terceiro, um capitão, disse ao major, presidente
do Conselho, que não adiantava votar, pois a questão já estava decidida, de
maneira que terminou seguindo o voto. Mas o major votou pela liberação do
réu, repetindo meus argumentos.
Assim, com um voto pela absolvição, perguntei quando poderia
marcar uma nova sessão. O major me disse que o mais rápido possível, que
iríamos, dessa vez, soltar o rapaz. Quando fui conversar a esse respeito com o
auditor, ele reagiu mal, entendendo que eu o estava desacatando. Em seguida,
contudo, um funcionário da Auditoria comentou que eu seria o indicado para
segundo promotor substituto. Ele se apavorou!
Havia muitos casos semelhantes. Estava todo mundo correndo para o
Rio, pedindo habeas corpus, e o Tribunal concedia. Mas fiquei me perguntando,
para que correr atrás do habeas corpus no Rio de Janeiro se a solução poderia
ser encontrada ali. Assim, o açougueiro ficou mais uns dias preso, aguardando
nova sessão. E, de fato, foi solto. Bem, enquanto tramitava a minha indicação
para segundo substituto, aquele julgamento foi uma vitória.
Funcionava como segundo substituto de promotor, por azar, um
ex-colega de turma, sobrinho de um subprocurador, que o havia indicado.
Mas ele não se ajustara na função. Achava-se muito importante, com nariz
empinado, mandava, fazia, acontecia. Ele fora chamado ao Quartel General
para uma conversa com o general [Alfredo Souto] Malan, informação que
155
HISTÓRIAS DE VIDA
recebi bem mais tarde. O general Malan lhe pedira a dilatação de prazo de
um inquérito para estudá-lo melhor (os prazos eram curtos, dez ou quinze
dias), pois receberia, nesse meio tempo, informações que satisfariam seu ponto
de vista. Só faltou dizer-lhe: “Está para sair um Ato Institucional.”. Mas o
substituto não deu bola e pediu o arquivamento do inquérito. Logo depois,
saiu o Ato Institucional nº 2. Então, o general estava descontente com o seu
desempenho e queria substituí-lo. Foi aí que entrou o major do Rio de Janeiro
que estava fazendo o estágio do pós-Estado-Maior em Juiz de Fora. Era um
oficial inteligente, instruído. Ele passara pelas várias seções do quartel, sendo
finalmente designado para levar os assuntos a serem debatidos com o general, a
quem ele disse que a legislação estabelecia que os cargos de substitutos seriam
da confiança do comandante da região, com autoridade e competência para
exonerar e nomear. O general Malan queria pedir a exoneração daquele moço,
porque não o desejava mais na Auditoria, mas não tinha outro para indicar. Foi
quando o major sugeriu meu nome. Não sei como, tinha meu currículo – nem
eu tinha meu currículo! – e o encaminhou ao general, que pediu aos oficiais do
quartel que me conhecessem para se manifestarem por escrito. Fiquei sabendo
disso porque um dia encontrei com um coronel, com quem me dava muito
bem, sujeito finíssimo, quem me disse que lamentava não ter o dom da escrita,
o qual lhe daria melhores condições para poder expressar tudo aquilo que
admirava em mim, porque o general solicitara depoimentos por escrito.
Mas a indicação tinha de passar pelo crivo final da presidência da
República e, antes, pela apreciação da Procuradoria. O procurador-geral de
Justiça Militar era o Dr. Eraldo Gueiros [Leite]. Aí o presidente [Humberto
de Alencar] Castelo Branco foi fazer uma visita a Juiz de Fora. No gabinete
da Prefeitura recebeu várias autoridades representativas. Lá pelas tantas, o
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GILSON RIBEIRO GONÇALVES
arcebispo, na frente do general Malan – que participava das audiências como
ajudante de ordens –, pediu para reconsiderar a exoneração daquele rapaz, que
seria de boa família e tal. O Castelo virou-se para o Malan e perguntou o que
teria ele a dizer. O general respondeu que o pedido de exoneração partira dele
mesmo e que se preferisse atender ao arcebispo estaria desmerecendo o seu
comando, situação na qual preferiria ser transferido. O Castelo, na hora, disse
para o bispo: “Negativo.”. Depois da Revolução, não dava mesmo para alguém,
na função em que estava esse rapaz, ficar em cima do muro.
Memória MPM – Como foi acompanhar o 31 de março, que começou em
Juiz de Fora?
Gilson Ribeiro Gonçalves – No dia 31 de março eu não estava em Juiz
de Fora. Como advogado credenciado pelo IAPC (Instituto de Aposentadorias
e Pensões dos Comerciários) para fazer cobrança de dívida ativa da agência de
Ponte Nova, que abrangia várias comarcas, tinha viajado. O IAPC era um dos
institutos antigos. Uma vez por mês eu recebia as certidões de dívida ativa e ia
aos cartórios, já entrando com as ações. Depois, ia receber e prestava contas.
Nesse dia, estava em um ônibus, retornando de Ponte Nova para Juiz de Fora.
Quando passamos por um bar numa cidade, mais ou menos na metade do
caminho, ouvi um rádio a todo volume: “Tropa do Exército… Revolução...”.
Tinha, no ônibus, um camarada com um rádio portátil que me deixou ouvir um
pouco a notícia, mas era um ignorante que só queria saber de escutar música!
Quando cheguei a Juiz de Fora, à noite, procurei me inteirar imediatamente,
mas o desfecho já tinha se dado. Ir ao QG, então, me oferecer como voluntário
depois da batalha ganha seria uma palhaçada. Nem fui, deixei para lá. Mas se
estivesse em Juiz de Fora, seguramente teria me oferecido como voluntário, até
porque essa era a atitude coerente com minha história de vida e familiar.
157
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Havia alguma expectativa de que o general Mourão
Filho fosse tomar aquela iniciativa?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não. O Mourão dissera de si mesmo:
“Sou uma vaca fardada.”. No final das contas, ele foi presidente do Tribunal
Militar e não teve maiores atuações políticas. Na ocasião da Revolução, ele
era general de divisão e os outros é que tomaram a frente. Quando chegou a
general de Exército, já estava sendo ultrapassado pelos que corriam na frente
havia muito tempo.
Memória MPM – Como foi a experiência na Auditoria nesses
primeiros anos?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Logo depois de eu ser nomeado, o
auditor titular saiu de Juiz de Fora, promovido, sendo substituído por um
auditor vindo de Mato Grosso, por uma remoção, a pedido, aparentemente
sem ônus. Tinha um sujeito imprestável na Auditoria, não servia para nada.
Um datilógrafo, que não tinha um dedo na mão. Passava o dia sem fazer
absolutamente nada. Mas era espírita e maçom. Então, se metia em todo
processo que envolvesse algum maçom ou espírita, especialmente se tivesse
comunicação com ele. Apresentava logo um requerimento “de ouvido”,
conversava com o auditor. Tenho a impressão que ele envolveu bem o novo
auditor: já estava servindo até de motorista, levando o auditor de um lado para
o outro no seu fusquinha particular – a Auditoria não tinha carro.
De todos os processos em que eu dera denúncia, ele só aceitara o
primeiro, e ainda disse, para o meu colega, que era uma deferência que me fazia
porque era a primeira denúncia que eu oferecia. Todas as outras, rejeitou. Tive
que fazer recurso para o Tribunal, que, em geral, mandava aceitar.
158
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Por outro lado, o auditor não se comunicava com o Exército. Acho
que nem fez uma visita de chegada. Tinha um relacionamento frio com o meio
militar e, talvez, até hostil. Lá pelas tantas, o que desagradou ainda mais o
Exército, ele passou a publicar artigos no jornal local contra o governo militar.
Imagina: o cara é da Justiça Militar e mistura uma coisa com a outra. Resultado:
foram acumulando elementos no prontuário dele...
Sabia-se tudo de todo mundo. Certa vez, encontrei na rua o major
que me indicou e, enquanto batíamos um papo, apareceu um sujeito que o
cumprimentou. Depois que se foi, perguntei-lhe por que dar atenção a um cara
tão desqualificado. Ele me respondeu que se quisesse ter informação do que se
passava num convento, precisaria falar com uma irmã de caridade enclausurada;
se desejasse saber sobre um prostíbulo, perguntaria a uma prostituta. Isto é, não
dava para buscar informações sobre um prostíbulo com uma irmã de caridade
e vice-versa. O tempo foi passando...
Os oficiais que integravam o Conselho já não eram os mesmos, pois
foram transferidos, substituídos. Mas quando chegou o AI-5, o novo chefe da
seção já estava extravasando de raiva com o auditor. Pegaram a pasta dele e o
cassaram. Eu não conhecia o conjunto do dossiê, mas acho que se tivessem
dado um aperto em certos pontos não seria preciso chegar a esse extremo. Não
sei dizer se houve muitos outros casos de auditores cassados, mas creio que não.
A Justiça Militar é pequena, ninguém esconde nada de ninguém.
Não há esse padrão de convivência no meio civil. Estive no Exército
por apenas quatro anos e os meus colegas são amigos até hoje. Ainda nos
comunicamos. Sou convidado para as reuniões, nas quais, em geral, não vou,
porque são em diferentes cidades. A única vez que fui, em Porto Alegre, tive o
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HISTÓRIAS DE VIDA
desprazer de encontrar um sacana que veio me agredir moralmente, porque eu
dei denúncia de um amigo dele. Meus colegas me disseram que agora posso
comparecer, porque esse sacana já morreu. Mas não vou. Recebo um jornal
dessa turma, mensalmente, muito bem-escrito, muito bem-noticiado. Acho
que já são mais de 150 números. Nesse noticiário, é raro o mês em que não vem
notícia de que faleceu um. Há meses em que perdemos dois ou três de uma só
vez. Estamos na hora da baixa, porque todo mundo está na faixa dos oitenta
anos. Eu sou um dos mais novos, completo os oitenta este ano.
Memória MPM – Como era a infraestrutura de trabalho?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Minha nomeação ocorreu em janeiro
de 1967, época em que o STM e, consequentemente, a Procuradoria-
-Geral funcionavam no Rio de Janeiro, instalados em prédio histórico, mas
notadamente acanhado, na Praça da República – Campo de Santana. O
gabinete do procurador-geral era no andar superior, mesmo nível do Plenário
do STM, numa sala de boa dimensão, mas tornada exígua por também abrigar
o subprocurador-geral, secretário e outros. Não havia privacidade. E, na
antessala, as datilógrafas. Não me lembro se, desde então, ou pouco depois,
havia uma sala no térreo, onde estava instalada toda a estrutura administrativa
(que era quase nada) da Procuradoria-Geral. Nessa época nossos vencimentos
eram pagos pela tesouraria do Quartel General da Região Militar. Nossos
deslocamentos funcionais eram noticiados no Boletim Interno do QG para
que o tesoureiro providenciasse as correspondentes diárias.
Na Auditoria, eu e o Simeão éramos considerados como inimigos,
sem direito ao mínimo. Os funcionários eram proibidos de nos fornecer uma
única folha de papel em branco, mesmo se pedíssemos. Eu era amigo de muitos
160
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
funcionários, mas o juiz-auditor, [Antônio de] Arruda [Marques] – que é esse
que foi cassado em 1969 – não permitia. A Procuradoria tinha uma salinha de
dois metros por dois (algo assim), na qual cabiam uma mesa, uma cadeira e um
armariozinho de aço, que fora adquirido pelo [Felippe Luiz] Paletta [Filho] –
ali ele guardava a beca. Se eu e o Simeão estivéssemos ao mesmo tempo na sala,
um teria de ficar em pé. Se alguém quisesse se entrevistar com o procurador,
não tinha cadeira para oferecer. No Cartório, não havia cadeira disponível. Não
podíamos pedir nada ao Cartório, nem mesmo um bloco de notas.
Foi assim que o Simeão me propôs, e eu aceitei, mandarmos
imprimir papel timbrado para uso nas denúncias e alguma correspondência
oficial necessária. Juntos, fomos à tipografia e fizemos a encomenda de um
milheiro, que dividimos em partes iguais – custos e uso. As denúncias eram
datilografadas por nós mesmos e com algumas cópias (citação, arquivo, etc.)
para as quais eu usava aquele papel mais fino, de seda, para ficarem mais legíveis.
O carbono também era por nossa conta e a máquina de escrever, de
nossa propriedade. No meu caso, acabei possuindo duas: uma no escritório que
ainda mantive por algum tempo e outra em casa, para algum serviço extra. Não
me recordo quando a Procuradoria-Geral passou a operar os pagamentos.
Memória MPM – E o Arruda em Juiz de Fora?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Faleceu pouco tempo depois. Acho que
levou um choque tão grande com a cassação que teve algum tipo de depressão.
Ninguém espera ser cassado.
Memória MPM – As condições de inf raestrutura melhoraram
em Brasília?
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HISTÓRIAS DE VIDA
Gilson Ribeiro Gonçalves – Quando fui para Brasília, acredito que
em julho de 1973, trabalhei por 2 ou 3 meses, tirei férias e voltei a Juiz de Fora
para acompanhar o nascimento de meu segundo filho – Rodrigo – ocorrido
em outubro, e providenciar nossa mudança para Brasília. Só quando passei a
funcionar por convocação, junto à Procuradoria-Geral, é que me foi oferecido
algum material: blocos para rascunho, pastas de papelão para arquivar papéis,
esferográfica, etc. A Procuradoria-Geral ocupava todo o 7º andar do prédio
do STM e não podia esbanjar espaço. Ia crescendo e ampliações já se faziam
necessárias. Aposentei-me nessa fase. Quando fui conhecer o prédio próprio
já contava algum tempo de aposentado. Hoje está uma beleza, com muitos
recursos outrora inimagináveis e com a possibilidade de cada vez mais ir se
estruturando adequadamente para cumprir o seu múnus.
Memória MPM – Qual era a natureza dos feitos, das denúncias, do
trabalho do promotor militar nesse momento em Juiz de Fora?
Gilson Ribeiro Gonçalves – O serviço era o mesmo de hoje. O
promotor recebia os IPMs: um soldado que disparou sua arma e atingiu o
outro; um que furtou algo; uma viatura que bateu e quebrou... Rotina do
serviço. Não era de grande volume. Antes da Revolução, havia três, quatro ou
cinco processos por mês. Mas, depois do AI-2, saltou para cinquenta ou mais!
Alguns em vários volumes e com prazos apertados correndo.
Em São João Del Rei, uma turma de estudantes, de gracinha, pichou
pelos muros “Abaixo a ditadura!”, e outras palavras de ordem. O quartel de São
João telefonou para Juiz de Fora perguntando como proceder: “Prende, e faz
um inquérito!”. Nessa ocasião, eu estava em Barbacena, na Escola Preparatória
da Aeronáutica, envolvido em um inquérito. De Juiz de Fora, me ligaram
162
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
pedindo que eu fosse para São João Del Rei. Cheguei lá, e o delegado civil,
que tinha recebido a orientação do Exército para prender, me perguntou o que
poderia acontecer se não o fizesse, pois, segundo ele, eram todos meninos de
boa família. Respondi que se batesse um flagrante na minha mão e os acusados
não estivessem presos, teria de me manifestar, questionando por que o delegado
não cumprira a lei. Prendeu todos! O quartel arranjou um caminhão e mandou
os rapazes para Juiz de Fora. Porém, saiu uma decisão do Tribunal dizendo
que pichar muro era crime contra o patrimônio alheio, não contra a Segurança
Nacional. Aí soltaram os meninos.
Memória MPM – O caso foi para a Justiça Comum?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, porque a denúncia depende do
dono do patrimônio. As coisas aconteciam muito assim, porque ninguém
sabia o que era, definitivamente, crime ou não. Então, tinha casos que se dizia:
“Vamos ver que bicho vai dar...”.
Memória MPM – E teve assaltos a Bancos por lá?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Em Juiz de Fora não.
Memória MPM – E a Serra do Caparaó?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Quando entrei em exercício, foi
instaurado o inquérito da Serra do Caparaó. Neste caso tinha o Avelino [Bioen]
Capitani, um marinheiro; um sargento; o Juarez [Alberto de Souza Moreira],
capitão do Exército; e outros. No fim, foi preso o professor [Bayard Demaria]
Boiteux, que era um sujeito inteligente, culto; não contestava e nem firmava o
ponto de vista, escorregava. Eu assisti, mas não atuei no julgamento deles. O
Marcello [Nunes] de Alencar e, salvo engano, o Evaristo [de Moraes Filho] os
163
HISTÓRIAS DE VIDA
defenderam. Cheguei a ir à Serra para fazer diligência na investigação: fui de
avião e voltei de jipe. Foi coisa à toa. Fui lá ouvir o pessoal da Polícia que havia
feito a prisão: eram, os prisioneiros, “gente boa”, nenhum tinha antecedentes,
todos com carteira de identidade, tudo bonitinho... Mas tudo falsificado! Nem
sei como é que descobriram que era tudo falso.
O capitão Juarez tinha sido meu contemporâneo: conhecíamo-nos.
Eram três irmãos: o Juarez era o mais velho, o Lourival [de Souza Moreira
Filho] era o segundo – que eu conheci melhor, porque o Lourival estava um
ano na minha frente –; o mais novo, mal conheci. Eram paraquedistas e parece
que até bons oficiais. Todos os três se subverteram e passaram a integrar grupos
de esquerda. Mais tarde, fui ao Rio, e encontrei com o Lourival no Tribunal,
porque, depois de cassado, estudou Direito, e estava advogando. Ia ao Tribunal
para defender o pessoal dele. Conversamos bastante.
Memória MPM – Estavam ligados ao [Leonel] Brizola?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim, porque um elemento desse
grupo do Caparaó teve que ir à granja do Brizola, no Uruguai; outro fizera
curso de guerrilha em Cuba... Enfim, nenhum era santinho. E falavam disso
abertamente. Uma coisa que me impressionou foi o seguinte: se uma pessoa
é presa e está tendo toda sua vida examinada, seu pensamento e sua atenção
se concentram nesse processo, tornando todo o resto secundário. Bem, um
dos presos, não me lembro de qual, não estava nem aí para o dia de hoje ou
de amanhã. Parecia estar num alheamento, apegado a um passado remoto,
aparentemente, pouco se importando se pegasse prisão perpétua ou se seria
solto, como se tudo fosse a mesma coisa. Acredito que essa indiferença tenha
sido um produto da formação de guerrilheiro, da doutrina.
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GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Memória MPM – Uma forma até de enfrentar a situação da prisão...
Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim. Teve um que se suicidou. E com a
menor corda que se possa imaginar: pegou o debrum do lençol que foi dado a
ele, cortou e trançou numa cordinha pequena, enrolou no pescoço e na torneira
do chuveiro da prisão, foi girando, apertando até se enforcar. Não fazia muito, eu
tinha conversado com ele. O cara não falava nada, absolutamente nada; estava
totalmente doutrinado! Não deixava transparecer nada.
Memória MPM – Eles se queixavam de maus-tratos, ou alguma
coisa assim?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, ninguém, porque ninguém estava
sendo maltratado. O Exército, com a Revolução, praticou os seus abusos. Mas isso
não foi um fenômeno generalizado. Contam-se nos dedos os casos de maus-tratos
aos presos. Eu identifiquei um ou outro militar que abusava. Em Belo Horizonte,
num desses inquéritos envolvendo jovens estudantes, soube-se de um oficial que
teria dito algo como: “Serviço sujo a gente deixa para PM.”. Mas eu acompanhei
inquérito de estudante, fervendo no caldeirão, e não vi esse abuso. É lógico, eram
tratados com energia, mas isso não significa excessos nem abusos. Lá em Juiz de
Fora, o inquérito do Caparaó foi tranquilo. Acompanhei vários inquéritos. Sentava-
me à mesa com os presos, como estamos agora, conversando, eventualmente
tomando um cafezinho. A única coisa que uma vez fiz, de molecagem, com um
rapaz que fumava desbragadamente, o que era perceptível pelos dedos escurecidos,
foi dizer-lhe que estava se envenenando e o proibi de fumar quando tomamos um
café, o que o deixou bastante nervoso. Logo liberei o fumo.
Memória MPM – Na mesma época do Caparaó, o Che Guevara estava
operando na Bolívia. Essa relação chegou a ser estabelecida nas investigações?
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HISTÓRIAS DE VIDA
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, não se tinha conhecimento disso,
pelo menos, não que eu saiba. Apesar do profissionalismo de alguns, havia certo
romantismo naquele grupo, quase como uma expedição de intelectuais. Foram
descobertos porque os moradores da região estranharam a movimentação de
pessoal, diferente, e os denunciaram para a Polícia.
Memória MPM – A Auditoria de Juiz de Fora também
jurisdicionava Brasília?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim, até ser instalada a Auditoria
em Brasília, Juiz de Fora tinha atribuição sobre a Capital Federal. Muitos
dos presos que eu interrogava, jovens, estudantes, vinham de Brasília. Um
dos processos que me coube – acho que eu fiz a denúncia – foi o do Flávio
[Aristides Freitas Hailliot] Tavares, jornalista, escritor. Ele se dizia um santo,
que nunca fizera nada. Foi um dos prisioneiros trocados em setembro de 1969
pelo embaixador norte-americano que fora sequestrado.
Memória MPM – Qual foi o ano da sua ida para Belo Horizonte?
Gilson Ribeiro Gonçalves – 1969.
Memória MPM – E a Subcomissão funcionava como? Ela recebia
denúncias, promovia inquéritos?
Gilson Ribeiro Gonçalves – A Comissão tinha por finalidade
apurar o enriquecimento ilícito e a malversação dos recursos públicos.
Então, teve gente que denunciou até a própria mãe. Houve muita invenção e
fantasia, mas nossa orientação era apurar todas as denúncias, desde que não
fossem anônimas, tampouco desprovidas de qualquer elemento probatório.
Recebemos muitas. Em Belo Horizonte eram mais relativas às Prefeituras.
166
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Dizia-se que os prefeitos desviavam verbas. Não era diferente do que acontece
hoje em dia.
Memória MPM – Mas fazia como? Porque hoje há a Polícia Federal, o
Ministério Público, a Polícia Civil, enfim, uma estrutura de investigação montada...
Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim, instituições aparelhadas, com
capacidade técnica. Naquela época não havia isso. Nós tínhamos autorização
prévia para requerer a prestação de serviço de qualquer órgão público,
inclusive dos Bancos. Mas estes nós deixávamos para o Banco Central, que
tinha essa atribuição de fiscalização. Quando a gente precisava saber se a
conta de determinado órgão estava de acordo, o fiscal do Banco Central,
a pedido nosso, reservadamente, ia numa agência bancaria e pedia para
ver a movimentação. Mas isso era muito raro. E nós tínhamos contadores
do Ministério da Fazenda, fiscais de renda, do imposto de renda, fiscal da
Fazenda Estadual, cada um na sua área.
Certa vez, recebi uma denúncia de Juiz de Fora. O prefeito Itamar
Franco, que sempre foi meio esquerdista, embora jamais comunista (havia
quem o denunciasse por ser comunista, mas isso não tinha sentido), doou, de
uma forma administrativamente incorreta, algo equivalente a uns mil cruzeiros
para uma instituição de caridade. Agora você vai cassar um prefeito por causa
de uma bobeada de mil cruzeiros? Espera aí! A Comissão fez um ofício para
o Itamar, que se explicou. Aceitou parcialmente a explicação, mas pediu para
sanar a falha. Foi um alvoroço danado! Recebi um oficial do Exército, que
me perguntou se eu achava que o Itamar era um ladrão. Falei que ele agira de
boa-fé, mas o modo não foi correto. Afinal, ficou por isso mesmo. Eu me dava
bem com o Itamar. Uma vez, o encontrei durante uma campanha eleitoral, nas
167
HISTÓRIAS DE VIDA
oficinas de uma marcenaria do Agostinho Pestana. Ele estava pedindo votos
para os trabalhadores. O Itamar me estendeu a mão falando: “Eu sei que você
não vota em mim, mas pode me cumprimentar.”.
Memória MPM – A Comissão costumava receber, por exemplo, lista de
candidatos e inscritos de concurso?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, a Comissão não tinha nada a ver
com questões pessoais ou políticas.
Memória MPM – Nem nos Estados?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não. Porque esse negócio de lista de
candidato era questão política gerida pelo SNI. Inclusive, qualquer profissional
que requisitássemos para prestar serviços à Comissão tinha de ter o nome
previamente aprovado pelo SNI. Houve uma pessoa que indiquei que foi vetada:
“Esse não!”. Eu palmilhava o Estado, de norte a sul, de leste a oeste, realizando
inspeções, e costumava me fazer acompanhar de um contador, um fiscal de
rendas do Estado, da Receita Federal ou do Tribunal de Contas da União, cada
um dentro da sua especialidade. Às vezes, os fiscais aplicavam multas.
Memória MPM – E a ida para Brasília como foi?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Em princípios de 1973, o Tribunal se
transferiu para Brasília e a Procuradoria acompanhou-o, mas ficou com alguma
deficiência de pessoal, porque nem todos que estavam no Rio de Janeiro
aceitaram ir para Brasília. O procurador-geral era o Ruy de Lima Pessôa,
nomeado quando ainda estava no Rio. O primeiro procurador que peguei foi o
Eraldo Gueiros – gostei muito dele. Depois foi o Nelson [Barbosa] Sampaio,
um baiano, muito bacana, mas não durou muito: foi nomeado ministro do
168
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Tribunal e faleceu cedo. Também me recordo do Jacy [Guimarães Pinheiro],
que não gostava de mim, nem me cumprimentava. Depois do Jacy, foi o
Milton Menezes da Costa Filho. Houve, também, um advogado, amigo do
[ José] Sarney, que almejava ser nomeado ministro, mas não conseguiu e por
isso saiu: o George Tavares. Foi seguido por um senador, o Francisco Leite
Chaves, também ligado ao Sarney. Não gostei de nenhum dos dois. Depois
teve o [Eduardo Victor] Pires Gonçalves, o [Marco Antonio Pinto] Bittar, a
Adriana Lorandi , já falecida, que era casada com o Enéas Carneiro, candidato
meio folclórico à presidência da República em diversas eleições passadas.
Memória MPM – Como foi acompanhar o inquérito do Riocentro, desde
o início, passando pelos dois encarregados, o coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro e
depois o coronel Job Lorena de Sant’Anna?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Quando surgiu o Riocentro, esse
coronel Prado foi encarregado. Ele viu que o “troço” era uma bola quente, e, na
gíria, “amarelou”, não quis ficar. O Job, então, assumiu o inquérito e fez tudo
que deveria fazer.
Quanto à minha participação, cabe explicar que a função do
promotor não modificou até hoje, pois é representar a sociedade na Justiça,
oferecendo denúncia e acompanhando o processo, mas, também, antes do
processo, assessorar na organização do inquérito. Porque na Justiça Militar
o inquérito é feito pelos militares, não por um bacharel em Direito, como
na Justiça Comum, que são estabelecidos por um delegado. Pode ser um
incompetente, mas é delegado e bacharel em Direito; o mínimo ele tem de
conhecer. Na Justiça Militar, os oficiais recebem uma noção elementar de
Direito na Academia, que não significa muito na hora do inquérito. Então,
169
HISTÓRIAS DE VIDA
quando é alguma coisa além daquela rotina do quartel (roubo de um
equipamento, um acidente de carro...), um promotor pode ser solicitado a
assessorar. Recebi inúmeras solicitações nesse sentido e acompanhei dezenas
de inquéritos. O do Caparaó acompanhei extraoficialmente, pois o oficial
que estava na 2ª Seção e que acompanhava o inquérito, bem como o próprio
encarregado, haviam solicitado o auxílio de um procurador, o [ Joaquim]
Simeão [de Faria Filho]. Mas me pediram para acompanhá-lo, também,
para ir treinando. Passei, posso dizer, uns quarenta dias dentro do quartel
naquela oportunidade. Basicamente, eu datilografava o que o Simeão ditava.
Acompanhei, depois, inquéritos em Belo Horizonte, em Brasília (como esse
do Flávio Tavares), em Barbacena... Então, com o Riocentro, saiu no jornal
que eu era especialista em inquéritos.
Memória MPM – Como foi acompanhar esse inquérito com toda aquela
pressão da imprensa? O país inteiro estava de olho no que estava acontecendo.
Como se deu a sua indicação para assessorar nesse inquérito?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Sempre tive facilidade de
relacionamento com os oficiais do Exército. Alguns, até meus colegas
haviam sido. No caso do inquérito do Flávio Tavares, por exemplo, eu estava
em Juiz de Fora, sendo o [ Joaquim] Simeão [de Faria Filho] o primeiro
substituto. O titular era o [Felippe Luiz] Paletta [Filho], deslocado para
o Rio de Janeiro, para acompanhar a Subcomissão-Geral de Investigação
(quando assumi em Juiz de Fora, o Paletta já estava no Rio de Janeiro, de
modo que pouco convivi com ele). O encarregado do inquérito do Flávio
foi um coronel, comandante da PE em Brasília e um major. Nisso, pediram
um promotor de Juiz de Fora. Fui de ônibus para Brasília. Quando cheguei
à rodoviária, tomei um táxi e fui para o quartel, me hospedar. Lá chegando,
170
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
me mostraram onde ia ficar. Enquanto arrumava minhas coisas no armário,
um soldado pediu minha identidade, pois o tenente esquecera-se de tomar
nota. Dei a identidade e fomos jantar, eu e o major. No dia seguinte, fomos
tomar o café da manhã. Quando ingressávamos no rancho, um oficial, que
tinha sido meu colega, muito camarada, veio me cumprimentar e fez aquele
estardalhaço. O major, que também funcionava no inquérito pensou: “Mas
que sacana, eu passei a noite pensando em como esse promotor veio parar
aqui!”. Ele só conhecia o Simeão e pensara que havia um único promotor
em Juiz de Fora.
Assim, quando fui para o Riocentro, já havia trabalhado em Belo
Horizonte com o tenente-coronel que era comandante da PE do Rio. Desci do
avião no aeroporto do Rio de Janeiro e um motorista me conduziu de carro ao
quartel. Mostrou-me o meu retrato que tinha saído no jornal, do qual se valera
para me identificar. O QG estava cheio de jornalistas. Era preciso caminhar
uns quatro metros, depois de desembarcar do carro, para acessar o hall, com
o elevador ao fundo. Cheio de gente! Um tenente e um capitão postaram-se
um do meu lado, outro do outro; segurando-me pelo braço, foram tirando os
jornalistas da frente, para podermos passar. Ao entrar no elevador, me tiraram
uma fotografia. O general Gentil [Marcondes Filho] estava me esperando no
gabinete e me perguntou onde iria ficar. Esse coronel, comandante da PE, disse
que já tinha preparado um quarto para mim. Então, me deram um motorista e
um cabo, como segurança, e fiquei hospedado na PE. O carro me levava onde
quisesse. Eu ia para o QG e voltava para a PE; foi o único trajeto que fiz o
tempo todo em que fiquei no Rio, com exceção de uma noite, em que fui jantar
com um amigo. O carro me levou, e o motorista e o cabo ficaram de plantão,
tomando conta da gente. Falei para tomarem uma cerveja no bar do lado.
171
HISTÓRIAS DE VIDA
Num final de semana, fui a Juiz de Fora, de ônibus, para ver meus pais.
Ao descer na rodoviária eles estavam me esperando, porque a gente não sabia qual
o risco que eu poderia estar correndo. A coisa estava muito mascarada. Quando
comecei a investigar o problema e ouvia as partes e tal, desconfiei do oficial,
insisti no depoimento dele, mas o Job desconversou: “Ele ainda está doente,
ainda está ferido.”. Resolvi tranquilizar meus pais pessoalmente. Caminhando
na rua em Juiz de Fora, um professor me viu, veio conversar comigo, rindo. Os
jornalistas me conheciam, mas me respeitaram.
Quase toda semana ia a Brasília, levando documentos para dar ciência
ao Milton. Logo que fui nomeado, numa segunda-feira pela manhã, a Marilena
Chiarelli, jornalista da Rede Globo em Brasília, me pegou de surpresa na garagem,
em casa, e gravou um rápido depoimento ali mesmo. Já durante o inquérito,
havia, na Procuradoria-Geral, um funcionário que gostava de ajeitar as coisas
com os jornalistas e ele esparramara para imprensa que, naquele dia, eu estaria
em Brasília. Quando entrei na Procuradoria, estava sendo caçado. Escondi-me
num canto, fui falar com o Milton. Nunca fui de dar trela para jornalistas.
Não conhecia o Job pessoalmente; o meu irmão já tivera algum ligeiro
contato com ele. Encontrei vários oficiais conhecidos no QG do Exército, mas
é aquele negócio, ninguém falava nada, enrolavam. Depois do caso, mais tarde, é
que a coisa foi se esclarecendo. Hoje, acho que todo mundo tem a ideia certa de
que foi um atentado promovido por personagens do Exército.
Memória MPM – Isso está absolutamente consolidado na memória
nacional. É algo que, inclusive, teria levado à renúncia do Golbery do Couto e Silva.
Gilson Ribeiro Gonçalves – É, ele e o [Otávio Aguiar de] Medeiros
brigavam, não se davam.
172
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Memória MPM – O Medeiros deu uma declaração, há alguns anos,
dizendo que teria sido informado sobre a bomba horas antes do atentado, o que
motivou a reabertura do caso em 1999.
Gilson Ribeiro Gonçalves – Havia na época a desconfiança, mas
nenhuma certeza. Quem primeiro amparou o capitão que estava com a barriga
aberta depois da explosão foi a irmã do Aécio Neves, ouvida como testemunha.
Ela estava no show e foi a primeira a socorrer o sujeito.
Quando aconteceu o atentado do Riocentro, eu estava retornando
de uma substituição em Porto Alegre. O titular, em decorrência de um câncer
no intestino, estava de licença constante. Em janeiro ou fevereiro, resolveu
reassumir para que o substituto pudesse tirar férias, pois esse vinha trabalhando
direto. Doente, assumiu o serviço. Enquanto o substituto foi para uma praia
e sumiu do mapa, o que estava doente não aguentou mais de uma semana. A
Procuradoria precisava de alguém em Porto Alegre e me designaram. Era para
ser uma substituição de vinte e dois dias, mas o Carnaval caiu no meio. Mal
retornara de Porto Alegre, me designaram para o caso do Riocentro. Mas em
julho, voltei para Brasília, pois o inquérito foi concluído. O procurador [ Jorge
Luiz] Dodaro pediu arquivamento. O juiz Edmundo [Franca] aceitou, mas
antes pediu diligências; fez uma jogada política para aparecer. O corregedor
de Justiça Militar, Dr. Célio Lobão [Ferreira], um sujeito cricri, recomendou
o desarquivamento e remeteu o processo ao procurador-geral, o Dr. Milton
Menezes, que opinou pelo arquivamento. Foi seguido pelo relator do processo
junto ao STM, general Carlos Alberto Cabral Ribeiro. Por dez votos a quatro,
dentre estes últimos todas as ressalvas do almirante [ Júlio de Sá] Bierrenbach,
os ministros sepultaram a reabertura das investigações.
173
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Em 1999, o juiz Edmundo Franca concedeu uma
entrevista à revista IstoÉ declarando ter sofrido pressões para concordar com o
arquivamento e implicando os generais Walter Pires, Gentil Marcondes e Otávio
Medeiros no Riocentro. Além disso, ele afirmou estar convicto de que o atentado do
Riocentro tinha relação com outros ocorridos nas semanas anteriores, dentre os quais,
a bomba que explodiu na sede da OAB.
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não tinha nada disso! O Walter Pires
era o ministro do Exército, o Medeiros, chefe do SNI e o Gentil comandava o
I Exército. Para dizer que esse episódio tinha relação com outros casos, seria
preciso admitir que houvesse um poder paralelo de amplitude. Poderia ter um
ou outro descontente com a situação política querendo fazer alguma coisa,
mas nunca percebi nada que nos levasse a concluir sobre a existência de uma
força paralela. Eu conhecia vários oficiais. Quem eu achei mais fechado era
o coronel [ Júlio Miguel] Molinas [Dias], o chefe do DOI-Codi, aquele que
foi assassinado recentemente em Porto Alegre, coronel de Engenharia. Foi da
minha turma. Como eu estava hospedado na PE, um dia o encontrei. Usava
uma manicaca com nome falso. Disfarçou quando eu dei a perceber que o
conhecia. Não quis conversa comigo. Era um sujeito muito fechado. Mas outros
oficiais eram falantes e bastante abertos. Não deixavam transparecer nada,
que houvesse alguma coisa. Não acredito que existisse um comando paralelo.
Acho que, sobretudo, o general Gentil foi injustamente implicado em toda
essa história. A briga sobre a qual se falava era entre o Medeiros e o Golbery.
Mas o chefe da Casa Civil, tampouco o SNI, não tinha comandamento sobre
as Forças Armadas. Enfim, acho que implicar os generais diretamente nesse
episódio seria enxergar “chifre em cabeça de burro”. Não era nada disso. O
Edmundo tem seu valor, certamente, mas quis aparecer, chamar a atenção.
174
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Memória MPM – Bem, e o retorno para Brasília em julho, depois
de encerradas as investigações?
Maria Angélica Gonçalves – Eu sei que ele voltou para casa e logo
os meninos entraram em férias e a imprensa estava em cima da gente. Estavam
nos cercando lá em casa. Faltei ao serviço um dia por causa de um jornalista
que estava atrás de mim, e ele nem tinha chegado ainda!
Gilson Ribeiro Gonçalves – Então, conversei com um oficial do
gabinete do ministro do Exército – eu tenho a suspeita de que foi ele quem
pediu ao Milton para me indicar – para me arranjar uma carona no avião da
FAB para Manaus. Peguei uma substituição, a Maria Angélica conseguiu tirar
férias e levei a família inteira. Fomos num aviãozinho pequeno, num Xingu, eu,
ela, os filhos e dois oficiais pilotando.
Maria Angélica Gonçalves – Ainda pegamos uma pessoa no
meio do caminho. Onde é que abasteceu o avião?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Na Serra do Cachimbo, onde há
uma base da Aeronáutica. O avião pousou para abastecer e um sargento,
que servia lá estava de folga e pegou carona.
Maria Angélica Gonçalves – Aí botei o Marcelo no meu colo e
ele sentou no lugar ao lado. Antes de aterrissarmos em Manaus, o piloto
voou sobre o Encontro das Águas.
Gilson Ribeiro Gonçalves – A mordomia foi completa! [risos].
A Maria Angélica não aguentou o calor de Manaus, queria ir embora.
Apareceu uma comitiva do Estado-Maior, que chegara num Buffalo, no
175
HISTÓRIAS DE VIDA
qual ela retornou com as crianças de carona para Brasília. Eu ainda fiquei um
tempo lá, até concluir o período de substituição.
Maria Angélica Gonçalves – Tinha mais caixas e bagagens do
que gente!
Gilson Ribeiro Gonçalves – Do lado dela estava um oficial
carregando um jogo de cristais no colo, para não quebrar...
Maria Angélica Gonçalves – Afinal, foi um voo tranquilo.
Memória MPM – E assim terminou o episódio Riocentro para vocês?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não. Quando o inquérito foi reaberto
eu fui ouvido. Morava em Curitiba, já aposentado. Recebi uma intimação
imperiosa, “Deveis comparecer tal e tal, no QG para ser ouvido.”. Depois, um
oficial do QG telefonou: eu disse que não iria. Dias mais tarde, o procurador,
que estava assessorando o general encarregado, me telefonou, comunicando que,
naquele dia, passariam por Curitiba com a finalidade de me ouvir. Eu disse que
tudo bem, que se quisessem iria até o aeroporto, reservaria uma sala para que
tomassem o meu depoimento e fossem embora; resolveríamos a coisa. Que nada,
o general queria se exibir! Confirmou aquela intimação para comparecer no dia
tal na Procuradoria com base no artigo tal do Código Penal (não do Código de
Processo). Queriam me ouvir como? Réu ou testemunha? Pelo Código Penal,
eu sou réu. Eu morava em São Brás e a Auditoria é do outro lado da cidade. No
meio do caminho, ligaram de um celular para confirmar se eu estava mesmo indo.
Quando entrei na Procuradoria, me receberam e nos cumprimentamos. Pedi
um Código ao procurador e mostrei o equívoco: eu ainda tinha prerrogativa de
escolher dia, hora e local. O próprio procurador, assessorando, tinha obrigação
176
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
de saber. O procurador quase deu um pulo da cadeira quando percebeu a falha.
Registrou, ao escrivão do inquérito, um tenente-coronel, que haviam confundido
CPM com CPPM e o coronel perguntou “Mas não é a mesma coisa?”. Santa
ignorância! Prestei as declarações. Queriam saber se tinha havido pressão para
a solução, se o Job tinha feito não sei o quê. Falei que não teve nada. Não tinha
o que esclarecer ali. Fui ouvido e o inquérito prosseguiu.
Memória MPM – Voltando a Juiz de Fora, o senhor mencionou o Dr.
Joaquim Simeão de Faria Filho, que figura em depoimentos de réus e advogados, com
o Dr. Obregon Gonçalves, para quem o Simeão mandava na Procuradoria.
Gilson Ribeiro Gonçalves – O Obregon é um advogado inteligente,
estudioso e que se expressa com desenvoltura. Portador de deficiência física,
tem uma atrofia nos dois braços, além de uma perna torta. Mas compensa
essas limitações com uma voz poderosa e uma incrível agilidade desenvolvida
para se virar apenas com os cotovelos. Nos julgamentos, impressionava,
porque enquanto falava com segurança, manipulava as páginas dos processos
com precisão e rapidez. E brilhava na tribuna, de certa forma até explorando
o impacto que a deficiência causava nas pessoas. Juntava aqueles cotovelos, de
um jeito que eu não consigo fazer, segurava uma caneta com incrível destreza e
escrevia nos processos com uma letra mais bonita do que eu jamais conseguiria
fazer. Eu o conheci como advogado defendendo acusados em Juiz de Fora.
Depois, foi eleito vereador em Belo Horizonte. Eu não tive processos com o
Obregon. Mas ele contrariava o Simeão e o Simeão o contrariava. É natural
que ele diga que o Simeão era autoritário. Não me lembro de todo o contexto,
mas havia funcionários na Auditoria que temiam o Simeão, porque achavam
que ele fazia fofoca no quartel. Então, preventivamente, tratavam o Simeão na
palma da mão. Mas isso não significa que ele realmente enfeixasse todo esse
177
HISTÓRIAS DE VIDA
poder. O Simeão era muito hábil em arquitetar histórias para conseguir das
pessoas o que queria.
Memória MPM – E os outros advogados que atuaram em Juiz de Fora?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Tinha o Dalton Villela Eiras,
vizinho do Simeão em Juiz de Fora. Mais tarde, foi indicado advogado de
ofício. Também me recordo do Francisco Isento. Por conta de um acidente
de motocicleta na década de 1940, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de
Janeiro, oportunidade na qual ele foi violentamente lançado de cabeça contra
o meio-fio, não tinha a parte frontal esquerda do crânio. A região ficara
coberta apenas pela pele, de forma que era possível ver o cérebro pulsando
quando ele falava. Os médicos que o atenderam acharam que era um caso
perdido e nem se deram ao trabalho de colocar uma placa de platina, mas,
enquanto ele se recuperava, disponibilizaram a penicilina, cujos frascos os
enfermeiros despejavam inteiros, segundo me contou, na cabeça dele. Então,
contra todos os prognósticos, sobreviveu. Como já tinha visto a morte de
perto, o Francisco era um homem destemido. Isso contrastava com o Simeão,
que era, na verdade, um sujeito temeroso. Por exemplo, quando saíamos de
carro, ele se segurava todo, com medo do tráfego. Uma vez o Simeão e o
Francisco viajaram num aviãozinho e enfrentaram uma tempestade. O
Francisco permaneceu tranquilo, o Simeão ficou muito ansioso. Certa feita,
estávamos quatro num fusquinha, à noite, e atropelamos um jacaré de uns dois
metros de comprimento, que se meteu na frente do carro de repente. O bicho
caiu na valeta ao lado da via e dali não conseguia sair, não podia se mexer.
Resolvemos abatê-lo. Um amigo fez um laço com uma corda e com ele puxou
a mandíbula para cima, mantendo-a aberta. Enquanto eu descarregava o meu
calibre 22 dentro da boca do animal, o Simeão, que estava com um revólver
178
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
calibre 32, queria atirar no jacaré a considerável e prudente distância, o que
não surtiria efeito algum...
Dentre outros advogados que atuavam em Juiz de Fora, recordo-
me do José Luiz Clerot, que defendia os presos em Brasília. Foi deputado
federal e se tornou ministro do STM. Era um bom advogado. Não cheguei
a ter processos com ele, mas nutríamos muita consideração um pelo outro.
Quem me impressionou muito foi o Laércio Pelegrino, um sujeito simpático,
muito ético e finamente educado. Como advogado, tinha um desempenho
notável, porque encontrava brechas na legislação que favoreciam seus
clientes. Ele encontrava soluções onde ninguém as via. Sabemos que
aquilo que a lei não proíbe, é permitido. Certa vez, em Juiz de Fora, ele
entrou com um pedido de justificação, algo incomum no Direito Militar.
Presenciei-o agindo de forma semelhante no Tribunal, anos mais tarde.
Essas posições, ele defendia com muita elegância e eloquência, acabando
por formar convencimento ao seu favor.
Por sua vez, o Heleno Fragoso, que era precedido por grande fama,
me decepcionou pelo excesso de pose, de pompa. Vi-o com um desempenho
algo grosseiro para com o juiz-auditor. Que culpa tem o juiz da lei?
O Mário Soares Mendonça era advogado de ofício, substituído pelo
Francisco Isento. Também atuava lá o Antônio Carlos Teixeira, um criminalista
famoso, que fazia grandes júris, nos quais se digladiava com um promotor do
Ministério Público do Estado. Era um sujeito de grande habilidade, delicadeza
e educação. Ainda me recordo do Lino Machado, maranhense, bom advogado,
mas um tanto impaciente e agitado. Ele esperava ser nomeado para o STM,
mas não logrou sucesso.
179
HISTÓRIAS DE VIDA
Lembro-me, ainda, de duas figuras exponenciais que conheci logo
ao chegar a Brasília, nos idos de 1973: Silvio Guimarães, advogado de ofício
(titular) na Auditoria de Brasília, estudioso, dedicado, competente, já então
um experimentado servidor da Justiça Militar. Não esqueço nosso primeiro
contato: eu, na sala destinada ao MPM (na Auditoria), de porta aberta, vejo
entrar aquela figura corpulenta e extrovertida perguntando: “Você é o novo
procurador? Vindo de Juiz de Fora? Você é mineiro?”. Respondi: “Sim, sou
mineiro.”. E ele: “Eu também sou mineiro; sou do Salto da Divisa!”. Respondi:
“Então você não é mineiro, você é ‘baianeiro’.”. Ouviu-se ali uma estrondosa
gargalhada seguida da afirmação: “Sou mesmo ‘baianeiro’, minha mãe é
baiana!”. Aí nasceu uma boa amizade. Logo a seguir, quando me foi distribuído
um apartamento, tive a boa surpresa de ser vizinho do Silvio. A seguir, ele fez
concurso para auditor. Parece-me, talvez, já se vislumbrando modificação na
estrutura da Advocacia de Ofício (muitos advogados de ofício fizeram esse
concurso). Ele foi auditor em Campo Grande. E nos encontramos pela última
vez em uma solenidade no STM.
Outra figura a quem agora me referencio é o então substituto de
advogado de ofício: J. J. Safe Carneiro. Mineiro, acho que é de Belo Horizonte.
Acreditou em Brasília e para lá foi bem no início. Dedicado, estudioso,
inteligente, boa figura na tribuna, tornou-se reconhecidamente famoso
advogado na Capital Federal. Seu escritório, hoje, congrega especializados
profissionais e ele ainda exerce o magistério jurídico. Embora distanciados pela
posição geográfica, sei que somos bons amigos. É bem assim: ele lá e eu aqui,
mas se um precisar do outro, sabe, com certeza, que pode contar com o amigo.
Memória MPM – Chegou a advogar durante o exercício da função ou
depois de se aposentar?
180
GILSON RIBEIRO GONÇALVES
Gilson Ribeiro Gonçalves – Muito pouco. No início, quando
recém-formado ou enquanto estava estudando. Ao ser nomeado para a
Justiça Militar, acabei parando porque não sobrava tempo. Eu tinha escritório,
arrumadinho, mas não fui adiante. Até pedi a minha licença na Ordem e fiquei
descredenciado. Quando me aposentei, não voltei porque o que ganho dá para
sustentar a família com o conforto necessário. Não vou ficar rico, nem vou
ficar esbanjando dinheiro, dá para viver. Ademais, mudei-me para uma região
diferente, onde ninguém me conhecia. Se me aliasse a algum escritório, seria
para abrir portas, para o qual não me presto. Finalmente, como lhe falei, minha
memória é ruim, de modo que não me sentia mais atualizado no Direito
Comum, depois de anos na jurisdição especializada.
Memória MPM – Sua memória parece estar muito boa.
Gilson Ribeiro Gonçalves – Lembro-me dos aspectos gerais, mas
não me recordo dos detalhes mais precisos.
Maria Angélica Gonçalves – Pergunta o número do telefone da
Procuradoria lá de Brasília!
Memória MPM – Qual é o número do telefone da Procuradoria
em Brasília?
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não sabia, nunca soube! [risos].
Maria Angélica Gonçalves – Ele ligava para mim, no meu serviço,
para perguntar o telefone do serviço dele!
Gilson Ribeiro Gonçalves – Porque na Procuradoria eu não tinha
expediente. Fiquei apenas uns cinco ou seis meses na Auditoria e fui logo
181
HISTÓRIAS DE VIDA
requisitado para a Procuradoria, para dar pareceres nos processos que vinham
do Tribunal. No começo era só deserção e insubmissão, o bê-á-bá; mais tarde,
peguei outras coisas. Fazia o serviço em casa e devolvia os processos para a
Procuradoria. Às vezes, ligavam da Procuradoria avisando quando tinha
processo e eu passava lá pegar. Bom, o funcionário descia de elevador, me
levava no carro e eu vinha embora para casa. Mas o telefone da Procuradoria,
de fato, não sabia de cor. Então eu ia a um orelhão, ligava para ela, pois esse
número guardava de memória, ela me confirmava e eu entrava em contato com
a Procuradoria. Naquele tempo não tinha celular.
Maria Angélica Gonçalves – Meus funcionários riam a valer dessa.
Era gozado! [risos].
Gilson Ribeiro Gonçalves – Não fico ocupando meus neurônios à toa.
Memória MPM – Muito obrigado.
Gilson Ribeiro Gonçalves – Eu que agradeço.
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GILSON RIBEIRO GONÇALVES
183
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar
em Brasília, em 8 de abril de 2015, por Gunter Axt.
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Rutílio Tôrres Augusto nasceu em 25 de outubro de 1935, no município
de Araraquara, em São Paulo. É filho de José Tôrres Augusto e Ibraina
Pires Tôrres. Casou-se com Mathilde Rosa de Freitas Tôrres. Graduou-se
em Direito, em 1962, pela Faculdade de Direito de Bauru, em São Paulo.
Passou a advogar em Brasília a partir de 1963. Por decreto de 13 de janeiro de
1967, foi nomeado, pelo presidente da República, para a função de segundo
substituto de promotor na Auditoria da 11ª Região Militar, em Brasília,
entrando em exercício em abril de 1970. Em 1976, passou a atuar junto
à Procuradoria-Geral de Justiça Militar, também em Brasília. Em 20 de
fevereiro de 1995, foi promovido ao cargo de procurador da Justiça Militar,
para atuar junto à Auditoria da 7ª Circunscrição Judiciária Militar, em
Recife. Em 8 de fevereiro de 1996, ascendeu ao mais alto cargo da carreira,
o de subprocurador-geral da Justiça Militar. Exerceu, além disso, o cargo
em comissão de assessor de ministro no Superior Tribunal Militar e, ainda,
o cargo em comissão de chefe de gabinete da Procuradoria-Geral de Justiça
Militar. Aposentou-se em julho de 1996.
185
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Doutor Rutílio, o senhor é natural de Araraquara?
Rutílio Tôrres Augusto – Araraquara, Estado de São Paulo.
Memória MPM – E a escola, foi cursada lá?
Rutílio Tôrres Augusto – Tudo em Araraquara, com exceção da
Faculdade, que cursei em Bauru.
Memória MPM – O que faziam seus pais? Como surgiu a opção pelo
Direito? Havia alguma tradição na família?
Rutílio Tôrres Augusto – Não havia tradição alguma. De minha
parte, foi uma paixão, vontade de acessar conhecimentos humanísticos. Meus
pais eram muito pobres. Meu pai era ferroviário e havia necessidade de eu
colaborar com o orçamento familiar, de modo que ele determinou que eu
fizesse o curso técnico de contabilidade, pois acreditava que haveria, assim,
mais garantia de colocação no mercado de trabalho. Atendi ao desejo dele, mas
me inscrevi também no vestibular para Direito. Não foi fácil, porque precisei
fazer um esforço concentrado para vencer as matérias que cairiam nas provas.
Memória MPM – O curso técnico também foi em Araraquara?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim.
Memória MPM – Mas o Direito era o grande sonho...
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Prestei um concurso para o
Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo e fui lotado em
Araraquara. O emprego público me deu a estabilidade necessária para cursar
o Direito. Por meio de um pedido político, consegui transferência para a
186
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
Contadoria de Bauru. O Jânio Quadros era o governador de São Paulo. Fui
para Bauru, onde fiz o curso presencial matinal.
Memória MPM – O senhor menciona um pedido político: tinha alguma
articulação no partido do Jânio, a UDN?
Rutílio Tôrres Augusto – Não, nenhuma, pelo contrário!
Memória MPM – Como chegou ao governador?
Rutílio Tôrres Augusto – Meu pai era um importante cabo eleitoral
no meio ferroviário. Ele tinha relacionamento com um deputado estadual
da cidade, o Lupo, quem apoiou o pedido de transferência. Em decorrência
da pesada burocracia da época, sem essa intervenção, haveria uma grande
dificuldade em lograr êxito.
Memória MPM – Seu pai era da Estrada de Ferro Araraquarense?
Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente.
Memória MPM – A conclusão do curso em Bauru foi em 1962?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim, me formei em 1962. Fui para Bauru
em 1958...
Memória MPM – Alguma lembrança desse período de Faculdade?
Rutílio Tôrres Augusto – Muitas... Tivemos grandes mestres, a
começar pelo Ulysses Guimarães, que era o nosso professor em Constitucional.
Havia o renomado Frederico Marques, em Processo Civil; o desembargador
Moura Bittencourt, que nos ministrava Direito de Família; e assim por diante...
Foi um bom curso.
187
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Era uma Universidade privada?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Eu ganhava pouco à época, mesmo no
funcionalismo público... Mas graças a uma colega da nossa classe, conseguimos
que nos fosse concedida uma bolsa parcial, por meio das gestões do deputado
[Nicola] Avallone Júnior: dava mais ou menos um terço da mensalidade que
eu pagava. Eram tempos difíceis. Tudo foi conquistado com muito sacrifício
e esforço. Os pais não podiam ajudar. Meu salário tinha de pagar a pensão, a
mensalidade, custear os livros, todas as demais necessidades. Mas, felizmente,
foi tudo bem.
Memória MPM – E a decisão de vir a Brasília?
Rutílio Tôrres Augusto – Eu achei que Brasília, por ser uma
cidade nova, ofereceria um melhor campo para a advocacia, inclusive a
relacionada ao Estado. Deu certo. Vim para cá sem nada. No começo de
1963, logo depois de formado, fiz uma cirurgia que estava protelando havia tempo para não prejudicar os estudos e logo depois me transferi para a
nascente Capital Federal.
Memória MPM – Pediu desligamento do Departamento de Estradas
de São Paulo?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Quando fui me desligar, o contador-
-chefe, Dr. Martins, me chamou: “Rutílio, não faça isso, não.”. Ele era advogado
também: “A advocacia é meio ingrata. Peça uma licença de dois anos, você tem
direito, sem vencimentos. Deixa a exoneração para depois.”. Agradeci, mas lhe
disse: “Doutor Martins, o senhor acha que eu voltaria se fracassasse?”. Loucura
de moleque! [risos]. E pedi exoneração na hora. Estabeleci-me na W3, numa
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RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
sobreloja, que funcionava como escritório de dia, enquanto que à noite eu
dormia no sofá... Nas noites frias, me cobria com jornal, por falta de cobertor
[pausa]. A gente lembrando, assim, emociona, e dá saudades...
Mas, caminhamos. Depois, abri um escritório em Taguatinga, com
um colega, e fomos avançando na vida. Tornei-me advogado da Associação
dos Servidores do Departamento Federal de Segurança Pública, que incluía o
pessoal da Polícia Federal e da Polícia do Distrito Federal. Em 1970, o DPF
– Departamento de Polícia Federal – separou-se da Secretaria de Segurança.
Fui advogado dessa associação de 1963 a 1970, quando ela se extinguiu pela
bipartição das duas Forças. Paralelamente, me dediquei a vários sindicatos
de trabalhadores, para os quais prestava assistência jurídica, como o dos
comerciários, dos trabalhadores do asseio e conservação, da construção civil e
assim por diante.
Memória MPM – Então o senhor foi um dos pioneiros de Brasília.
Quando o senhor chegou, a cidade estava ainda em processo de construção...
Rutílio Tôrres Augusto – Claro, estava emergindo ainda.
Memória MPM – Muita poeira vermelha...
Rutílio Tôrres Augusto – Muita poeira, muita poeira! Era uma
lástima porque eu não tinha carro, ia para o Fórum de ônibus, chegava com os
sapatos sujos... Desagradável para um advogado, de paletó e gravata e com os
pés sujos. Isso foi assim por mais uns cinco anos, até a gente conseguir comprar
um carrinho, melhorar um pouquinho.
Memória MPM – E essa efervescência toda do início da Capital? 1963
já estava sendo um ano “fervente”, com o levante dos sargentos...
189
HISTÓRIAS DE VIDA
Rutílio Tôrres Augusto – Como a gente estava iniciando na
profissão, não havia possibilidade de partir para o campo político, ou examinar a
política. Nossa prioridade era sobreviver. Estabeleci alguns contatos, sobretudo
com congressistas, porque conosco veio um colega, Célio Gonçalves, radialista
em Bauru, da Bauru Rádio Clube. Ele fazia transmissões para São Paulo
ao vivo e entrevistava figuras notórias... como o Almino Affonso, primeiro
ministro do Trabalho do presidente Jango, depois de restabelecido o sistema
presidencialista, em 1963... O deputado Plínio de Arruda Sampaio, falecido
recentemente, que chegou a se candidatar à presidência da República; o Plínio
Salgado... Conheci esse pessoal por intermédio dele, mas minha vida era
essencialmente entre o escritório e o Fórum.
Memória MPM – E como é que se deu, em 1967, a designação para
segundo substituto da Promotoria de Justiça Militar, da Auditoria da 11ª
Região JM?
Rutílio Tôrres Augusto – A Auditoria tinha outra circunscrição,
abrangendo o Distrito Federal e Territórios, Goiás, o hoje Estado de
Tocantins, que então pertencia a Goiás... Em 1969, com apenas cinco anos
em Brasília, me tornei conselheiro da Ordem dos Advogados do Distrito
Federal, conquista que muito me orgulha. Tinha um bom relacionamento com
os colegas. Bem, nesse contexto, alguém me alertou que estava sendo criada a
Auditoria e me perguntou se teria interesse em ali atuar. Não pensei muito no
assunto, mas acedi a essa sondagem, de forma que o meu nome foi submetido
por esses colegas à apreciação do ministro Esdras Gueiros, que fora presidente
da Ordem do DF e então estava no antigo Tribunal Federal de Recursos: foi
quem chancelou a designação, em 1967. A Auditoria ainda não existia, sendo
implantada em 1970.
190
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
a operar?
Memória MPM – O senhor foi designado, tomou posse, mas chegou
Rutílio Tôrres Augusto – Em 1967, fui designado e tomei posse
em seguida.
Memória MPM – Em janeiro de 1967?
Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente. Fiquei no aguardo de que
fosse instalada a Auditoria. A Justiça Federal e a Justiça do Distrito Federal
funcionavam no Bloco 6, da Esplanada dos Ministérios. Não havia ainda o
Tribunal de Justiça na Praça dos Buritis e os advogados estavam sempre por ali.
Um dia, um juiz me chamou e disse “Olha, eu tenho aqui uma carta precatória
da Justiça Militar de Juiz de Fora...”.
Memória MPM – Que jurisdicionava Brasília.
Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente. “O senhor não quer oficiar
aqui como promotor?”. Eu falei: “Se o senhor me fizer ad hoc, eu posso, caso
contrário, não, porque não estou convocado.”. E isso ocorreu umas duas ou três
vezes. Eu oficiei como promotor ad hoc em feitos que seriam da Justiça Militar
de Juiz de Fora, por precatório. Em 1970, quando instalada a Auditoria, houve
a convocação de fato.
Memória MPM – O senhor se lembra do que se tratava? Eram
casos corriqueiros?
Rutílio Tôrres Augusto – Não. Eram todos sobre a Lei de Segurança
Nacional. Cerca de 80% do movimento da Auditoria era relativo à Lei de
Segurança Nacional. A grande demanda!
191
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Há uma correspondência sua, guardada na pasta
funcional, para o procurador-geral, na qual o senhor lista cinquenta e quatro
inquéritos, todos da Lei de Segurança, citando apenas o nome do primeiro
denunciado, mencionando que alguns dos inquéritos tinham mais de cinquenta
réus, outros possuíam vários volumes. No final, o senhor concluía pela necessidade
de apoio à ação da Promotoria, solicitando melhor estrutura, talvez a designação
de algum procurador para ajudar, a fim de se evitar o risco de prescrição. Como
era a ambiência?
Rutílio Tôrres Augusto – Eu não me recordo bem dessa
correspondência, mas foram várias nesse tom. O problema estava no volume
descomunal de demanda que contraditava com a deficiência estrutural do
Ministério Público. A instituição não dispunha de dependências condignas,
máquina de escrever, ou papel. Era tudo fornecido pela Auditoria, isto é, pela
Justiça Militar. Eu pleiteava um socorro para que pudéssemos agilizar os
processos. Isso teve efeito... Quando foi instalada a Auditoria, o Dr. Benedito
Felipe Rauen era o titular e eu, substituto [longa pausa]. Recebemos um
número grande de processos porque acolhemos todo o acervo de Juiz de Fora,
que jurisdicionava o Distrito Federal. Enfim, a Procuradoria-Geral de fato
mandou um ou dois promotores para colaborar e vencermos o trabalho.
Memória MPM – O que aconteceria se os processos prescrevessem?
Rutílio Tôrres Augusto – Seria um desprestígio para o Ministério
Público. Algo inaceitável! Mas alguns já vieram praticamente prescritos e, com
efeito, prescreveram.
Memória MPM – Havia alguma tendência do Ministério Público, no
sentido das denúncias: algum tipo de orientação, um critério?
192
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
Rutílio Tôrres Augusto – Creio que eu tive muita sorte, porque nunca
recebi um pedido de parte da chefia institucional, ou dos militares. Nunca! Os
procuradores-gerais com os quais trabalhei me deram a devida autonomia: “O
senhor aja como achar que deve ser.”. Na Ordem dos Advogados chegavam a
me perguntar como conseguia conviver com aquela situação contraditória, de
membro do Ministério Público Militar, conselheiro e advogado de sindicatos
de trabalhadores...
Memória MPM – Pois eu pretendia lhe perguntar isso... [risos].
Rutílio Tôrres Augusto – Eu respondia que vivia a minha vida.
Na Procuradoria-Geral, me comprometi a obedecer à lei – o Direito Penal
Militar, a Lei de Segurança Nacional – guardando meu critério de avaliação
em cada caso. No início, isso até me gerou um problema, porque a maioria dos
processos veio de Juiz de Fora, tendo a denúncia sido oferecida por um colega.
Mas eu entendia que várias não tinham o mínimo cabimento. As pessoas
simplesmente não deveriam ter sido denunciadas. Então, o que acontecia? Na
hora do julgamento...
Memória MPM – Pedia a absolvição?
Rutílio Tôrres Augusto – Não só pedia a absolvição, como me
detinha, me demorava no pedido, fundamentando a inconsistência das provas...
E por quê? O Conselho de Justiça é composto por quatro militares e um juiz
togado. Os quatro militares, sabia-se à época, tinham uma orientação. Então,
evidentemente, sabia-se que, dependendo deles, os denunciados fatalmente
seriam condenados, daí minha grande preocupação em perder certo tempo na
sustentação da Promotoria para fundamentar o pedido de absolvição. Porque
sempre tive por princípio que levaria minha sustentação oral depois, até o
193
HISTÓRIAS DE VIDA
Tribunal, se por ventura o pedido não fosse satisfeito em primeira instância.
Houve um episódio, no qual se evidenciou a condição aparentemente
contraditória, de membro do Ministério Público Militar e de conselheiro da
Ordem, relativo a uma medida de emergência, quando a Ordem, pelo seu
presidente Maurício Corrêa, um grande e querido amigo [pausa, emoção]...
Memória MPM – Isso já nos anos 1980.
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. A Ordem programara um encontro
de advogados com uns três, quatro meses de antecedência. E aconteceu de ser
decretada medida de emergência na exata época em que seria realizado esse
encontro. Mas como ele já fora programado, a presidência da Ordem achou
que a agenda deveria ser mantida, mesmo havendo a proibição de reuniões.
Terminado o encontro, houve uma invasão da Ordem, a mando do condutor
das medidas de emergência, o general Newton Cruz... [pausa]. O Conselho
da Ordem se reuniu emergencialmente às quatro, cinco horas da manhã. Eu
estava presente. Fui incumbido, pelo Conselho, com mais dois colegas, de ir
à Superintendência da Polícia Federal em Brasília, para pedir a liberação de
um funcionário que havia sido detido. No dia seguinte, nove horas da manhã,
procurei o procurador-geral, Dr. Milton Menezes da Costa Filho, para lhe
explicar minha posição. Ele me olhou e falou: “Rutílio, faça o que você julgar
direito.”. Apoiou-me plenamente. Isso eu devo ao doutor Milton até hoje,
já que, a essa altura, meu nome estava no SNI, porque eu me identifiquei
ao ir à Superintendência da Polícia Federal. O interessante é que tudo tem
consequências, às vezes gratificantes. Contra o Maurício Corrêa, presidente
da Ordem, por esse fato, foi instaurado um IPM que evidentemente caiu na
Auditoria na qual eu oficiava. Dei-me por suspeito, lógico, porque fui arrolado
como testemunha.
194
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
Memória MPM – Testemunha de acusação ou?...
Rutílio Tôrres Augusto – Testemunha genérica. E compareci ao
Comando Militar para prestar o meu depoimento, em favor do Maurício
Corrêa, porque ele não fez nada de errado. Fui questionado por uns
quarenta, cinquenta minutos e, ao sair, qual não foi minha surpresa: um
coronel, presidente do inquérito, vai até o elevador comigo e diz “Doutor
Rutílio, se eu precisar de advogado vou procurá-lo.” [risos]. Quer dizer,
são certas coisas que parecem contraditórias, mas são gratificantes, não
é mesmo? E isso surgiu devido ao aparente conflito entre o procurador
militar, a advocacia, o conselheiro da Ordem... No íntimo, eu conseguia
administrar essas diferenças. Para mim era uma coisa normal, não havia
conflitos. Hoje em dia, a concepção de Ministério Público é diferente, mas
até 1988 éramos pessimamente gratificados. Não havia como manter uma
família apenas com os vencimentos de promotor. Então, era comum que
advogássemos para complementar a renda.
Memória MPM – Acontecia de f iliado a algum sindicato, de repente,
aparecer em algum IPM?
Rutílio Tôrres Augusto – Não! Inclusive porque eu era muito
ouvido no interior dos sindicatos. Minhas orientações eram respeitadas e
os nossos sindicatos não se envolviam em badernas, de forma nenhuma!
Me daria por impedido se algo assim tivesse acontecido.
Memória MPM – Nos casos em que o senhor pedia absolvição,
especialmente nesses em que o colega de Juiz de Fora propusera denúncia, qual
era a tendência do Conselho?
195
HISTÓRIAS DE VIDA
Rutílio Tôrres Augusto – Normalmente o Conselho já tinha
uma sentença esboçada... A tendência era pela condenação.
Memória MPM – E como furar essa barreira, se o Conselho já tinha
um convencimento?
Rutílio Tôrres Augusto – Minha preocupação era, nesses casos,
sustentar o melhor e o mais detidamente possível em favor do réu, para
lastrear o futuro recurso que poderia propor. O juiz togado, por sua vez,
normalmente acompanhava o Ministério Público nos pedidos de absolvição.
Isso reforçava minha posição no sentido recursal. O Tribunal se via numa
situação difícil: um pedido de absolvição da defesa e do Ministério Público.
Era estranho. A saída era atender ao pedido formulado pela defesa e julgar,
assim, prejudicado o pleito do ministerial. Aconteceu muitas vezes.
Memória MPM – A afirmação da instituição não ficava, de certa
forma, deslustrada?
Rutílio Tôrres Augusto – Não, porque estava sendo prestigiada
de forma indireta. Eu não podia admitir injustiça; podia até estar errado,
mas tentava evitar o que considerava injustiça. Houve muitos casos,
principalmente mulheres, que relatavam terem sido vitimadas por torturas,
sofrido queimaduras, submetidas a pau de arara, a violência sexual... [voz
embargada]. Ao término do interrogatório, eu sempre fazia consignar em ata
que fosse instaurado inquérito para apuração dos responsáveis, se realmente
existentes, pois estavam a serviço do Estado. Era o que o Ministério Público
podia fazer como fiscal da lei.
Memória MPM – O pedido era atendido ou não?
196
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
Rutílio Tôrres Augusto – Olha, da Auditoria o pedido era expedido.
Mas não sei dizer se na Administração Militar era distribuído. A época em
que alguns desses casos “ferveram”, e outros pedidos neste sentido surgiram,
coincidiu com minha requisição para a Procuradoria-Geral, de forma que
deixei a Auditoria. Então, não pude acompanhar de perto os desdobramentos.
Memória MPM – O senhor foi requisitado para a Procuradoria-Geral
em 1977, confere?
Rutílio Tôrres Augusto – Eu creio que sim... não tenho certeza.
Memória MPM – Em 1976 o senhor teve uma licença de saúde, não é?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim.
Memória MPM – Houve uma designação do Dr. Ruy de Lima Pessôa
para funcionar na sessão de julgamento do Processo nº 287/75, em que são acusados
Yoshio Ide e outros, no dia 24 de setembro de 1976.
Rutílio Tôrres Augusto – Ah, sim, houve vários casos como esse!
Memória MPM – Essas designações?
Rutílio Tôrres Augusto – Em setembro de 1976 fui requisitado
para a Procuradoria-Geral. A partir daí, podia acontecer de faltar promotor
na Auditoria, de modo que eu era designado em substituição. A Procuradoria-Geral funcionava no sexto andar do Superior Tribunal Militar e no sétimo
andar do mesmo prédio ficava a Auditoria. Numa dessas oportunidades,
inclusive, tive um atrito com uma juíza-auditora. Como eu ia à Auditoria
esporadicamente, lá chegava de espora pronta! [risos].
197
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor conviveu com pelo menos três juízes-
-auditores. O primeiro foi o Dr. Célio Lobão?...
Rutílio Tôrres Augusto – Não, o primeiro foi o Dr. José Bolívar
Régis. Depois, do Paraná, veio o Dr. Célio Lobão Ferreira, que foi seguido
pelo Dr. Fernando Przewodowski Nogueira, um homem muito gentil, que
permaneceu da Auditoria até a aposentadoria. Esporadicamente, vinha um do
Rio, quando havia impedimento do juiz local, mas era raro.
Memória MPM – Os dois emitiram declarações de elogio ao seu desempenho.
Rutílio Tôrres Augusto – Hummm, é?
Memória MPM – Sim, o Célio e o Bolívar Régis… São duas declarações
de 1973. Pelo que entendi, era um concurso, alguma coisa que o senhor ia fazer
e eles tomaram a iniciativa de mandar ao Procurador-Geral uma recomendação.
Aparentemente, tinham muito apreço e consideração pelo senhor.
Rutílio Tôrres Augusto – Aquilo era uma irmandade. Havia
colaboração e cordialidade entre os membros... Recordo-me de uma
oportunidade, presentes vários advogados, na qual o Dr. José Luiz [Barbosa
Ramalho] Clerot, advogado atuante e combativo, se opôs a algo, e o Dr. Célio
lhe deu voz de prisão em plena audiência! Eu, vivendo a dupla condição de
promotor e conselheiro da Ordem, pedi a palavra: “Meritíssimo, eu peço
permissão, mas Vossa Excelência não pode executar essa prisão sem a presença
do presidente da Ordem”. Mas o Célio não quis nem saber e manteve o rapaz
preso por umas duas horas. Depois o soltou. O interessante é que esse Dr.
Clerot veio a ser ministro do Tribunal [risos] mais tarde [nomeado em 1986].
198
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
Memória MPM – O mundo dá voltas, não é? O senhor conviveu muito
com os ministros do Tribunal, correto?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Certa feita, o presidente do Tribunal
solicitou ao procurador-geral que me cedesse para auxiliar em algumas tarefas,
como a confecção do projeto da Lei Orgânica da Justiça Militar. Além disso,
estive três vezes na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, para assessorar
o presidente do Tribunal, general Reynaldo Mello de Almeida, nas suas
conferências. Eu tinha um relacionamento muito bom com o Tribunal. Também
assessorei o ministro [Paulo César] Cataldo durante seis ou oito anos. Mesmo
depois da minha aposentadoria, continuei atuando como assessor.
Memória MPM – O senhor se aposentou em 1996?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim, e permaneci assessorando o ministro
Cataldo depois.
Memória MPM – O senhor foi grão-mestre da Loja Maçônica do
Distrito Federal entre 1975 e 1978...
Memória MPM– Ah, sim! Entre 1972 e 1975 fui grão-mestre adjunto,
o primeiro substituto do grão-mestre, quem, infelizmente, teve uns probleminhas
e precisou se afastar. Não chegou a ser uma cassação do mandato, mas ele não teve
condições de permanecer. Na prática, cumpri quase todo o mandato interinamente.
Em seguida, fui eleito grão-mestre da jurisdição, de 1975 a 1978. Foi uma época
profícua para mim. Fiquei muito honrado com esta distinção. Entre 1966 e 1969,
para que se tenha uma ideia, o grão-mestre foi o Washington Bolívar de Britto,
que presidiu posteriormente o Superior Tribunal de Justiça. Mas é uma entidade
fechada, da qual se dá notícia apenas pela investidura deste cargo.
199
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Sim, esta informação está disponível na internet.
Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente. Ajudei a construir a
Grande Loja de Brasília. Quando entrei, era um templo de madeira, muito
simpático até. Foi em minha gestão que erguemos o templo definitivo, que
está lá até hoje.
Memória MPM – A Maçonaria é uma entidade tradicional e Brasília
é uma cidade muito nova, que estava nascendo...
Rutílio Tôrres Augusto – É verdade. Às vezes havia estranhamentos.
Eu sempre tive um ótimo relacionamento com os magistrados e, certa vez,
me encontrei com um juiz conhecido que disse que gostaria de me fazer um
convite. Os dias se passaram, encontrei-o novamente e perguntei sobre o tal
convite. Ele respondeu que desistira de formulá-lo por ter descoberto ser eu
maçom – ele era um senhor muito católico [pausa]. Isso não tem sentido,
pois o próprio ingresso na Maçonaria é condicionado à crença em Deus. Não
importa se sua religião é cristã, católica, protestante, muçulmana... Mas você
precisa crer em Deus. Muitos católicos foram maçons. Há até encíclicas papais
que explicitam a não condenação dessa condição. Eu mesmo sou católico. Para
começar, não se abre uma sessão da Maçonaria sem a leitura do Livro da Lei,
um versículo da Bíblia.
Memória MPM – O senhor chegou a colaborar também com
procuradores-gerais?
Rutílio Tôrres Augusto – Fui chefe de gabinete do procurador-
-geral Francisco Leite Chaves, na transição para a Nova República. Assim
como o Dr. George Tavares, o Dr. Leite Chaves veio de fora da carreira,
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RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
era senador da República. Ele organizou o primeiro Encontro Nacional dos
Membros do Ministério Público Militar.
Memória MPM – Em agosto de 1986.
Rutílio Tôrres Augusto – Foi muito bem-sucedido. Pela
primeira vez os membros de todos os Estados do Brasil se reuniram,
num congraçamento profícuo. O Leite Chaves deixou muita saudade
entre os membros da carreira depois que se afastou da posição, porque é
uma figura adorável, um exímio orador. No início, contudo, foi bastante
contraditado, em razão de ser um elemento estranho. O Ministério Público
Militar se acostumara a ser chefiado pelos membros da carreira. Mas ele
se desempenhou muito bem, inclusive junto ao Tribunal. Ele e o George
Tavares foram fundamentais para a consolidação do processo de transição
para a democracia.
Memória MPM – A instituição chega ao processo Constituinte com
uma imagem questionada pela sociedade em função da atuação nos crimes de
Segurança Nacional.
Rutílio Tôrres Augusto – Principalmente em razão de alguns
colegas que, no meu entendimento, se excediam, que não eram promotores,
mas acusadores sistemáticos.
Memória MPM – Isso foi reconhecido, foi identif icado pela sociedade
naquele momento?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Por isso, a vinda dessas pessoas de
fora ofereceu um bálsamo, no sentido do retorno à normalidade.
201
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – No período da Constituinte chegou a haver
propostas de extinção da Justiça Militar...
Rutílio Tôrres Augusto – Houve, sim. A deputada Zulaiê Cobra, de
São Paulo, era uma das mais ferrenhas defensoras da extinção da jurisdição. Por
sorte, podíamos contar com fortes braços amigos, como o do senador Maurício
Corrêa, que nos apoiou incondicionalmente, apesar de ter sido atingido pela
jurisdição, em função do episódio da invasão da sede da OAB do Distrito Federal.
Isto é, ele soube diferenciar a importância do papel constitucional da jurisdição
da questão ideológica e do contexto vivido durante o regime militar. Achava que
a Justiça Militar deveria permanecer.
Memória MPM – E os outros membros do Ministério Público que estavam
no Congresso naquele momento? Eu penso, por exemplo, no Plínio de Arruda Sampaio,
que pontificava na Subcomissão do Poder Judiciário.
Rutílio Tôrres Augusto – Não me recordo do desempenho dele, mas
sei que era contra a Justiça Militar, sem dúvida. O Plínio era radical. Sempre
foi. Havia outros parlamentares infensos à jurisdição militar, mas tínhamos, no
Maurício Corrêa, um interlocutor privilegiado. Ele conhecia bem a Justiça Militar
e era capaz de enxergar o seu papel no futuro, sem ressentimentos em função do
passado. Outro que colaborou foi o Bernardo Cabral.
Memória MPM – Voltando à época dos processos que foram julgados no
âmbito da Lei de Segurança Nacional, há algum que tenha chamado mais a sua atenção?
Rutílio Tôrres Augusto – [Pausa] Eu não vejo diferença entre os
processos. Mas tivemos um caso mais folclórico, podemos eventualmente dizer,
o do padre Alípio.
202
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
Memória MPM – Célebre!
Rutílio Tôrres Augusto – No interrogatório, quando lhe
perguntaram a profissão, ele não titubeou: “Comunista!” [risos]. É claro, havia
casos graves, de roubo de armamento em quartel, por exemplo. Mas a maior
parte era formada de simpatizantes. É complicado julgar as pessoas pelo seu
pensamento. O próprio ministro Jarbas Passarinho teve a coragem de alertar
para os excessos, pessoas que estavam sendo presas porque tinham livros em
casa com uma simples capa vermelha! A posse de um livro vermelho não pode
ser apontada como prova de que o sujeito era um comunista e terrorista. Mas
se chegava a esse absurdo. A gente via nas audiências trinta, quarenta réus...
Aquele monte de meninos, estudantes, semblantes tristes, como quem diz: “Pô,
o que eu estou fazendo aqui, afinal?”. Aquilo doía. Às vezes, à noite, a gente não
dormia... [pausa, voz embargada]. Não tinha como salvá-los daquela situação
se não fosse encontrando um caminho dentro da lei. Quem tivesse cometido
um ato que se enquadrasse na legislação seria punido, sem dúvida. Mas havia
muitos ali que não haviam cometido crime algum. Que haviam lido um livro,
participado de uma reunião... Mas o sistema queria punir todos, indistinta e
rigorosamente. Com isso eu discordava e tentava oferecer alternativas.
Memória MPM – O padre Alípio foi condenado?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim, em vários processos. Acho que ele não
era comunista coisa nenhuma, falou aquilo de molecagem. Na prática, pediu
para ser condenado. O Conselho entendeu a declaração como uma afronta. O
comportamento contrastava com o de outros que estavam na mesma situação.
Um réu que se comportou de forma afável foi o Francisco Julião, advogado das
Ligas Camponesas. Foi muito ameno no interrogatório. E olha que ele era tido
203
HISTÓRIAS DE VIDA
como um sujeito poderoso. Eu acho que diante de uma autoridade é necessário
se comportar, a não ser que se queira ser prejudicado.
Memória MPM – O Julião foi deputado federal, eleito pelo PSB de
Pernambuco...
Rutílio Tôrres Augusto – Pois é... Foi lamentável. Na véspera da
prisão ele esteve em Brasília, acho que foi ao Tribunal, com a defensora, Dra.
Elisabete. Poucos dias depois, já não se tinha mais notícias dele.
Memória MPM – Ele conseguiu deixar o país em fins de 1965, com
destino ao México, onde residiu como exilado até retornar ao país depois da Anistia.
Rutílio Tôrres Augusto – Não era um cara belicoso, perigoso. Não
havia motivo para ser detido.
Memória MPM – O senhor mencionou que muitos dos réus eram
estudantes, jovens. Filhos de conhecidos apareciam como réus?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Algumas histórias tristes
aconteceram. Como numa oportunidade em que um maçom famoso de
Goiás tentou intervir em favor do filho, réu em um processo que estava
comigo. Ele falou “Sou pai de fulano.”. Eu olhei para ele e disse: “Vou
lhe explicar minha situação: esse rapaz está no meio de trinta a quarenta
pessoas; analiso todos de uma só vez. Se você me pedir, vou examinar
pormenorizadamente o caso do seu filho. Isso significa que, se ele tiver um
envolvimento sério, será mais punido que os outros...”. Afinal, pediu para
deixar o caso com os outros. Não era possível prevaricar. Se recebêssemos
uma solicitação, tinha-se de ir fundo na investigação. Havia processos de
cinquenta volumes. Impossível ler página por página! De modo que as
204
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
encomendas, as solicitações, acabavam sendo analisadas com lupa, o que
era pior para o réu. Mas esses pedidos realmente nos chegavam. E o drama
era sempre o mesmo.
Memória MPM – Neste caso em particular, qual foi a decisão, o réu foi
absolvido ou condenado?
Rutílio Tôrres Augusto – Se não me engano, condenado com os
demais. Mas a pena foi a mais branda possível. Quando a condenação era
inevitável, em função das provas e do enquadramento na Lei, eu procurava
solicitar a pena mais branda, dentro da razoabilidade. Nunca exagerei em
pedidos de penas.
Memória MPM – E o que era razoável?
Rutílio Tôrres Augusto – Razoável geralmente era o mínimo legal.
Digo razoável, porque na Lei de Segurança o mínimo já era “desrazoável”.
Era uma legislação muito dura. Na véspera dos julgamentos, eu varava as
madrugadas tentando encontrar formas de aliviar aquilo, porque sabia que
no dia seguinte encontraria os infelizes dos seus familiares na assistência.
Memória MPM – Os pais, as mães...
Rutílio Tôrres Augusto – Sim, exato: pais, mães, esposas,
maridos... Seriam todos atingidos. A família inteira! Então, isso dói. Mas
alguém tinha de fazer. Eu procurava fazer com o máximo de moderação.
Memória MPM – Se não, a mão ainda poderia pesar mais?
Rutílio Tôrres Augusto – Ah, sim... Havia colegas que não
hesitavam... O Supremo Tribunal Federal chegou a apelidar um colega
205
HISTÓRIAS DE VIDA
de procurador “Metralha”, pois ele botava todos os artigos da Lei de
Segurança na denúncia.
Memória MPM – Na sua pasta funcional há uma pequena sequência
de telegramas trocados entre o senhor e o procurador-geral de Justiça, que estava no
Rio de Janeiro, em 1971, sobre o processo de Mário Guimarães e outros. O Dr. Ruy
parecia preocupado com uma notícia, que teria chegado pelo rádio, de que o auditor
Célio Lobão não teria denunciado o réu, no processo nº 9.570, quando o senhor teria
informado, em telegrama anterior, ter pedido a denúncia. O senhor se lembra disso?
Rutílio Tôrres Augusto – Mário Guimarães... [pausa]. Sobre a
não denúncia? Não me recordo. Provavelmente o juiz não tivesse recebido
a denúncia. O Célio era uma pessoa muito independente. Às vezes ele agia
no sentido até de acirrar os ânimos. Lembro-me de uma ocasião em que ele,
estando como corregedor-geral, entrou com um mandado de segurança no
STF contra o presidente do STM, que apresentara uma nova Lei Orgânica da
Justiça Militar extinguindo a Corregedoria.
Memória MPM – E ganhou?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Ele havia sido posto em
disponibilidade, mas conseguiu anular o ato. O Célio sempre foi belicoso,
inclusive com seus amigos, como eu o era. Ele se exaltava no Plenário. Às
vezes discutíamos.
Memória MPM – E a relação com os jornalistas, com a imprensa?
Rutílio Tôrres Augusto – A relação com a imprensa sempre foi
cordial. Os jornalistas eram sempre bem-recebidos e havia liberdade para o seu
ofício. Eu tinha amizade com alguns, inclusive. Havia uma moça do Estadão,
206
RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO
outro da Globo... Até os encaminhava para o assessor de imprensa do Tribunal,
quando era o caso.
Memória MPM – O senhor participou da fundação da Associação de
classe, não é?
Rutílio Tôrres Augusto – Ah, sim! Fui um dos fundadores da
entidade em 1978. A Associação do Ministério Público Militar cresceu muito
desde então, graças ao trabalho abnegado de colegas como o José Carlos Couto
de Carvalho.
Memória MPM – E a aposentadoria em 1996? Já tinha sido promovido
a subprocurador, correto?
Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Em julho, me aposentei. Começou
uma pressão grande, de colegas, que pretendiam se aposentar, mas antes galgar
o final de carreira. Diante disso, pedi uma certidão de tempo de serviço: contava,
para efeitos de aposentadoria, com quarenta e um anos e vinte e sete dias de
serviço público. Achei que ficara tempo suficiente e já estava demais aquela
pressão, que, de certa forma, tinha razão de ser, pois os colegas também tinham
seu direito. Não havia por que eu permanecer obstaculizando a progressão dos
companheiros.
Memória MPM – O senhor gostaria de deixar algo mais registrado?
Rutílio Tôrres Augusto – Sou muito grato à instituição por tudo o
que ela me proporcionou. Também sou grato aos procuradores-gerais com os
quais convivi, como o Dr. Milton Menezes da Costa, a quem devo muitíssimo,
e o Ruy Pessôa, um sujeito boníssimo. O primeiro que conheci foi o Dr. Jacy
Guimarães Pinheiro, quem me convocou quando a Auditoria foi instalada. A
207
HISTÓRIAS DE VIDA
qualquer momento eu poderia ser desconvocado, porque antes da Constituição
de 1988 não tínhamos estabilidade, mas isso nunca aconteceu, o que significa
que meu trabalho era respeitado.
Memória MPM – Muito obrigado pelo seu depoimento.
208
209
JOÃO JAYME ARAÚJO
Entrevista realizada em 28 de março de 2015, em Porto Alegre, na
residência do depoente, por Gunter Axt.
210
João Jayme Araújo nasceu em 23 de maio de 1935, em Santa Rosa, no Rio
Grande do Sul. É filho de João Aguirre Araújo e Amélia Zenni de Araújo.
Casou-se com Claudete Antonieta de Araújo, em 1958. Formou-se técnico
em contabilidade. Foi sargento do Exército. Formou-se em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1965. Pósgraduou-se em Atos e Fatos Jurídicos pela Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Em 24 de março de
1971, foi nomeado ao cargo de segundo substituto de procurador militar de
terceira categoria, para atuar na 1ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária
Militar, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em 4 de maio de 1995,
foi promovido ao cargo de subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 13 de
junho de 1995, aposentou-se.
211
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de onde?
João Jayme Araújo – Sou natural de Santa Rosa.
Memória MPM – E estudou lá?
João Jayme Araújo – Estudei lá até o curso médio. Eu era sargento
do Exército. Consegui transferência para Porto Alegre para prestar o vestibular.
Eu fiz para Direito e a minha mulher, para Educação Física Infantil. Graças a
Deus tivemos êxito e estamos em Porto Alegre até hoje.
Memória MPM – Em que ano vocês vieram?
João Jayme Araújo – Foi em 1960.
Memória MPM – E qual foi a Faculdade de Direito que o senhor cursou?
João Jayme Araújo – A Faculdade de Direito da UFRGS –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Memória MPM – Como era a ambiência da Faculdade naquele
momento? O que o senhor se lembra dos professores, dos colegas?
João Jayme Araújo – Dentre meus professores recordo o Dr. Galeno
Vellinho de Lacerda, diretor da Faculdade; o professor Jorge Fernando
Schneider, de Processo Civil; o professor Luiz Lopes Palmeiro, de Penal;
o professor Armando Pereira Correia da Câmara, dominava filosofia como
ninguém, mas sabia que nós não, então fazia a mesma pergunta para todo
mundo nas provas orais: “O que que tu achas da filosofia? O que tu entendes
por filosofia? O que é a filosofia para ti?”, e passava todo mundo; o Elpídio
Ferreira Paes, professor de latim e de Direito Romano.
212
JOÃO JAYME ARAÚJO
Cursei o primeiro ano em Passo Fundo. Fiz uma prova com mais
dois colegas para poder entrar na UFRGS. Tive a felicidade de sair na frente
deles porque, por um acaso, no período da tarde eu revisara um livro de Direito
Romano, sobre fontes das obrigações, contrato, quase contrato, delito, quase
delito... E de noite caiu justamente esse ponto.
Dentre os colegas, não me esqueço do Dr. José Luiz Vieira,
recentemente falecido. Ele era R/2 e estava saindo do 18º RI. Conseguiu uma
vaga numa indústria química. Mais tarde, fui encontrá-lo como juiz-auditor na
Justiça Militar. Alguns colegas se tornaram famosos, como o Roberto Sfoggia,
professor; o Marco Aurélio Garcia, assessor da presidente Dilma Rousseff para
assuntos internacionais. O Jorge Arthur Morsch, foi procurador do Estado e
assessor do governador Antônio Britto Filho. Dizia-se que nossa Faculdade
fazia os melhores quadros até então; não sei se para nos agradar ou se para
aguçar nosso senso de responsabilidade para com a herança recebida.
Memória MPM – O senhor se formou em que ano?
João Jayme Araújo – Me formei em 1965.
Memória MPM – Então o senhor pegou os eventos de 1961 e de 1964.
Como foi essa época?
João Jayme Araújo – Eu era sargento e os movimentos estudantis
estavam a pleno vapor. Meu relacionamento com os colegas era mais ou menos
assim: eu não me dava muito a conhecer e eles me respeitavam. Eu lhe disse
que fiz o primeiro ano em Passo Fundo. E o Morsch dizia para eu tomar
cuidado. Coincidentemente, houve um congresso da UNE (União Nacional
dos Estudantes) e o Luiz Carlos Lopes Madeira, que estava um ano mais
213
HISTÓRIAS DE VIDA
adiantado do que eu (se tornou mais tarde ministro no Tribunal Superior
Eleitoral, em Brasília), disse: “Vamos junto!”. Mas não tinha como... Ouvi
o comício do presidente Jango, aquele famoso com o pessoal da Marinha, e
comentei na Faculdade, “Ninguém mais segura o Jango.”. Essa situação de
sargento e de estudante de Direito impedia que eu tivesse um relacionamento
maior com os colegas. Em março, eclodiu a Revolução.
Memória MPM – O senhor já estava advogando em 1965?
João Jayme Araújo – Eu advoguei com Processo Cível em um
escritório de um amigo, o Dr. Roberto Carrion. Mas precisei aliviar o ritmo,
porque tive um problema cardíaco. No quartel, tendo em vista a minha
formação jurídica, eu costumava ser nomeado para escrivão em inquéritos
policiais militares. Certa vez, o encarregado de um foi à Justiça Militar colher
subsídios e o acompanhei. Lá conheci o auditor Dr. Dorvalino Tonin, que me
convidou para trabalhar com ele na parte da tarde, ajudando-o na datilografia
das sentenças. Consultei o chefe do Estado-Maior, meu amigo coronel Clóvis
Borges de Azambuja, que concordou. Mas os procuradores, Dr. Luís Eduardo
Madalosso e Dr. Cezar Tadeu Mazzin Canarim, pediram para ficar com eles.
Assim, comecei auxiliando na Promotoria, na acusação. Aprendi muito de
Justiça Militar. Outros auditores com os quais convivia e aprendia eram o Dr.
Rubem Cachapuz Medeiros e o Dr. Larry José Ribeiro Alves. O advogado de
defesa era o Dr. Luís Lopes Dariano.
O trabalho era solitário. Não recebíamos quase nenhum recurso ou
material de Brasília. Eu até estava estudando para atuar como juiz-auditor,
mas então veio uma legislação intercorrente que estendeu efetividade aos
substitutos. Assim, fui efetivado como segundo substituto de procurador.
214
JOÃO JAYME ARAÚJO
Trabalhei em Porto Alegre e em Santa Maria. Fui designado para Bagé, mas
troquei com uma colega. Também atuei em Curitiba, por solicitação do Dr.
José Antônio de Lima Guimarães, que não conhecia os promotores de lá, com
o Dr. Alceu Alves dos Santos, que se tornou juiz-auditor corregedor no STM.
Fui a Curitiba para atuar em um processo de Lei de Segurança Nacional.
Depois, fui recebendo promoções e cheguei a ser designado
subprocurador-geral da Justiça Militar. Um colega nosso, procurador-geral,
Dr. Marco Antonio Pinto Bittar, queria que eu fosse para Brasília. Mas havia
aquelas picuinhas em torno das promoções. Não tinha nem mesmo espaço
físico para trabalhar.
Quando entrei no exercício funcional, o procurador-geral era o Dr.
Ruy de Lima Pessôa, seguindo-se o Dr. Milton Menezes da Costa Filho; dos
seguintes, muitos se destacaram por suas características pessoais: Dr. Kleber
de Carvalho Coêlho, o grande impulsor da construção de Procuradorias pelo
país; Dr. Eduardo Pires Gonçalves, irmão do ministro do Exército de então
e oriundo da Procuradoria local; Dra. Marisa Terezinha Cauduro da Silva,
também minha colega em atividade comigo e com a Dra. Solange Augusto
Ferreira, na Auditoria de Porto Alegre.
A Dra. Marisa deve ter sido a pessoa que mais deu força para as
reuniões dos membros do Ministério Público Militar, em todo Brasil e, o Dr.
Marco Antonio Pinto Bittar, a quem sou grato por ter visto em mim condições
para ser promovido a subprocurador-geral.
Num encontro de Direito Penal Militar em Florianópolis, a turma
lançou a minha candidatura para procurador-geral. Os que estavam lá, iriam
comigo, mas minha mulher perguntou para a senhora do procurador-geral
215
HISTÓRIAS DE VIDA
como era o negócio: “Nem te mete nisso, é uma briga com eles lá por picuinhas,
por melindres e etc.”, disse ela. Aí eu perguntei para ele: “É imprescindível
a minha presença em Brasília?”. Ele respondeu: “Imprescindível, não é; eu
gostaria muito de te ter lá, mas não chega à condição de imprescindibilidade.”
[risos]. Então eu resolvi pedir a aposentadoria, já estava com quarenta e dois
anos de serviço, contando o tempo de Exército. Fiquei por volta de 1970, até
13 de junho 1995, coincidentemente a data de Santo Antônio, e o dia do
aniversário da minha esposa, Claudete.
Memória MPM – Vocês se conheceram em Santa Rosa?
João Jayme Araújo – Sim. Ela é de São Luiz Gonzaga. Perdeu a mãe
e foi para Santa Rosa morar com um tio; foi quando nós nos conhecemos.
Memória MPM – Então vocês já estavam casados quando vieram a
Porto Alegre?
João Jayme Araújo – Nós nos casamos em 1958. Eu estava por ser
excluído do serviço militar, em 1954, e o subcomandante Agnaldo Caiado de
Castro fez muito empenho para eu ser promovido, porque eu tinha um curso
de técnico em Contabilidade, e ele propôs a minha promoção. Perguntei
para o pai e a mãe: “E agora, o que faço?”. Na sabedoria dos mais antigos,
recomendaram: “Fica no quartel, pois lá não tem carestia.”. Eu já tinha
aceitado a promoção e estava com o certificado de conclusão de serviços
militares pronto, isso no fim do ano, acho que em 26 de novembro. A gente
ganhava relativamente bem. Solteiro, deu para segurar uns “pilas” por mês.
Quatro anos depois, nos casamos, em 1958. Em 1960, viemos para Porto
Alegre fazer o vestibular.
216
JOÃO JAYME ARAÚJO
Memória MPM – Ela fez a UFRGS também?
João Jayme Araújo – Sim, ali no Jardim Botânico. Eles não tinham
todas as instalações na UFRGS, então faziam alguma coisa onde fica a piscina
do Grêmio Náutico União, na SOGIPA (Sociedade de Ginástica de Porto
Alegre), não sei se faziam na ACM (Associação Cristã de Moços), acho que
não. E tinham determinadas aulas que eram lá na própria Faculdade que estava
em construção.
Memória MPM – E ela chegou a pegar a Universíade, em Porto Alegre?
João Jayme Araújo – Sim, em 1963, por ocasião da Universidade.
Memória MPM – Mas voltando para um pouco antes do seu ingresso no
Ministério Público, em março de 1964, o senhor estava na Faculdade ou no quartel?
João Jayme Araújo – Em ambos. Na 3ª Companhia de Saúde, onde
hoje é a PE.
Memória MPM – O Leonel Brizola estava levantando os sargentos...
João Jayme Araújo – Nossos, não tantos, mais na Brigada Militar,
pelo que eu lembro. Eles me transferiram para o QG da 6ª DI, na época.
Eu acho que no lugar de dois que eles tiraram de lá, ou transferiram. Um, eu
conheci com certeza, ficou meu amigo; não tinha culpa de nada. Eu fazia o que
devia fazer, minha atribuição. Tinha preferência por determinada cor política,
não era militante. E eu fui para a Justiça Militar no início dos anos 1970.
Tenho um trauma, que vou lhe contar: numa ocasião nós estávamos
na casa de um amigo nosso, um casal, quando veio a notícia: “O Cleiton da Silva
Vanini foi preso.”. Ele era irmão da senhora da casa, eu conhecia ele, era um
217
HISTÓRIAS DE VIDA
“gurizão”. Quando chegou o inquérito para a Auditoria, era um inquérito com
mais ou menos cem pessoas, todas presas, e uma vez que elas estavam assim,
eu tinha cinco dias para apresentar a denúncia. Trouxe para casa o inquérito:
era “capa verde”, e trabalhei como um louco! Graças a Deus era Páscoa, então
não tinha expediente na Procuradoria e dava para trabalhar em casa. Como
esse guri era conhecido da gente, bastante amigo, fiquei com trauma daquele
inquérito, que depois se tornou processo, e continuou com a mesma capa.
Em determinado período eu não conseguia nem tomar cafezinho, pois vivia
trêmulo por causa disso.
Com relação a minha função na Procuradoria Militar, eu sempre achei
que se o cara fosse filiado a um partido considerado subversivo ou a uma chamada
agremiação clandestina, já incidia nas penas da lei, simplesmente por ser filiado.
Depois, eu punha mais todos os delitos cometidos. Para mim, cabia então, nas
alegações finais, confirmar ou aliviar aquilo que requerera, ou pedir absolvição,
o que também fiz muitas vezes (em processo de subversão, nem tanto, porque
naquela época nós estávamos empenhados num país diferente, quer se queira, quer
não, e aqueles que eram considerados carrascos, hoje são percebidos como heróis,
isto é, as circunstâncias da vida e da política se alteraram completamente). Então
eu fazia o seguinte: tirava o “chumbo grosso”, depois ia tirando os pequenininhos,
os fragmentos, essas coisas.
Memória MPM – Quando o senhor diz “tirando os pequenininhos, os
fragmentos”, se refere àqueles para os quais podia pedir absolvição, é isso?
João Jayme Araújo – Num julgamento, com o Dr. Oswaldo de Lia
Pires na defesa de uma das rés, namorada de um tal Félix Silveira da Rosa Neto,
creio, eu disse: “Essa moça pecou, faliu ou deve, mas isso foi por amor; ela aderiu
218
JOÃO JAYME ARAÚJO
ao conceito do namorado e tal.”. O Lia Pires pegou essa tese, sublinhando ter sido
o próprio promotor seu autor. Ela foi absolvida. O Lia Pires ganhou uma “nota
grande” usando meu argumento [risos].
Memória MPM – O Franklin ao qual o senhor se refere é o de Araújo?
João Jayme Araújo – Não, outro. Mas sobre o Carlos Franklin Paixão de
Araújo, minha tia, Lina de Araújo, irmã do meu pai, mas Zanella por casamento,
encontrou há certo tempo com ele numa procissão de Nossa Senhora dos
Navegantes, e, sendo todos Araújo, começou aquela conversa, de quem é parente,
quem conhece, e tal: “O senhor conhece meus filhos? O Nelson, o Raul, o Artur?”.
“O Artur, eu conheço!”, ele responde. Tratava-se do Artur Zanella, vereador em
Porto Alegre. Aí a conversa foi prosseguindo. Até que ela teria perguntado para
o Carlos Franklin: “Vem cá, e conhece o ‘Major’ João Jayme Araújo?”. “Ahhh...
conheço demais, sim! Foi ele quem me botou na cadeia!” [risos]. Ela dissera
“Major”... Surpresa, ela então notou: “Mas o senhor deve ter aprontado alguma
coisa, não é? Porque o Jayme é tão queridinho...”. Ele disse: “Eu só roubei um
banco!” [risos]. Ele foi meu contemporâneo de Faculdade. O conhecia de vista.
Não tivemos proximidade... Certa vez, entretanto, me dei por impedido de atuar
num processo, o do Luís Heron Paixão de Araújo, irmão do Carlos Araújo. O
Heron era namorado de uma moça que fora minha colega na Faculdade, da
mesma turma. Contudo, o juiz não aceitou. Disse que eu tinha de ficar lá. Afinal,
fiquei, porque era interrogatório mesmo, o Ministério Público não falava nada, as
partes não podiam se manifestar. Só o juiz inquiria. Mas me considerei impedido.
Memória MPM – De quem mais o senhor se recorda de ter colocado na
cadeia? O João Carlos Bona Garcia, que depois presidiu o Tribunal Militar do Estado,
passou pelo senhor?
219
HISTÓRIAS DE VIDA
João Jayme Araújo – O Bona Garcia passou por mim, sim. Eu não
me lembro do final. Mas naquela época eram quase todos condenados: era
meio que status quo. O caso do Bona Garcia realmente é interessante, porque
se passaram os anos e ele se tornou auditor na Justiça Militar do Estado do
Rio Grande do Sul, pela vaga destinada à OAB pelo Quinto Constitucional, e
acabou presidindo o Tribunal.
Memória MPM – A presidente Dilma Rousseff não chegou a ter nenhum
processo em Porto Alegre?
João Jayme Araújo – A Dilma apareceu por aqui, junto com o
processo do Carlos Franklin, mas ré aqui ela não foi. Deve ter sido ré em
Minas Gerais, que é a terra dela, ou no Rio de Janeiro, onde ela residiu, ou
em São Paulo, onde as ações do grupo do qual ela participava tiveram mais
repercussão.
Memória MPM – Em Porto Alegre houve uma tentativa de sequestro
de um diplomata...
João Jayme Araújo – Teve, no Bairro Petrópolis, na Av. Protásio
Alves. Era o cônsul norte-americano, mas não logrou sucesso.
Memória MPM – Algum caso do qual o senhor se recorde, que tenha lhe
chamado mais a atenção?
João Jayme Araújo – Olha, para mim todo processo era processo.
Passaram por mim grandes vultos da esquerda, como o Edmur Péricles de
Camargo, que respondia a uns cem processos: ex-sargento da Brigada. Não
gravei direito os nomes, porque era muita gente. Havia mais dois de Viamão.
Um dia, chegou um repórter da Zero Hora, que queria uma entrevista. Eu disse:
220
JOÃO JAYME ARAÚJO
“Agora não posso porque vou entrar em audiência.”. E ele ficou por lá... A
sessão terminou tarde, à noite. Eu estava com a escolta para me levar até o carro,
que era de carona com o Dr. Guimarães – mesmo sendo colegas, querendo ou
não, ele era meu chefe, porque eu era substituto; ele tinha mais conhecimento
e, ainda, porque ele comungava bem dos sentimentos da Revolução, com os
quais eu também comungava, embora com menor intensidade... Enfim, eu não
tinha nada a declarar ao jornalista, porque independentemente da notoriedade
do réu, ou do caso, eu acho que todos tinham igual importância.
Memória MPM – O que podia o promotor, ou o procurador, na época?
João Jayme Araújo – Como o promotor da Justiça Comum, em
matéria de Direito Penal. Nossa competência era sobre os crimes militares,
mas foi estendida aos crimes contra a Lei de Segurança Nacional pela
Revolução de 1964.
Memória MPM – O promotor podia requisitar diligências?...
João Jayme Araújo – Sim. O processo chegava à Auditoria e ia para
o juiz, que o examinava. Se estava tudo certo, dava vistas para o Ministério
Público. Nós tínhamos que apresentar denúncias em cinco dias, se o réu
estivesse preso.
Memória MPM – Era tempo suficiente para um processo?
João Jayme Araújo – Às vezes não, como nesse caso que relatei
em que eram cem réus e eu tive que fazer em cinco dias. E nessa época eu
não tinha ninguém na Auditoria comigo. As nossas procuradoras foram
a Dra. Marisa Terezinha Cauduro da Silva, que chegou posteriormente a
procuradora-geral de Justiça, e a Dra. Solange Augusto Ferreira – não lembro
221
HISTÓRIAS DE VIDA
quem entrou primeiro. Depois, o presidente Fernando Collor de Mello
acabou com alguns postos. A irmã da Marisa, Clarice Cauduro da Silva, que
trabalhava no ex-INAMPS, em Passo Fundo, fechado pelo Collor, veio para
a Auditoria, a pedido. Ela se tornou um dos baluartes da Auditoria. E depois
a Polícia Federal mandou uma moça também, a Ezilda. Elas me ajudaram
muito, sendo que a Clarice com destaque, tanto que ela está aí até hoje, na
Procuradoria e, eu acho que ela se tornou diretora da Secretaria. Gosto muito
delas, da Marisa e da Solange.
Memória MPM – Mas, então, a margem de ação do procurador militar...
João Jayme Araújo – Apresentar a denúncia, como eu estava lhe
dizendo, era nossa função. Depois de recebermos o processo do juiz-auditor
era possível requerer diligências. Uma vez atendidas, cabia pedir denúncia ou
arquivamento. Voltava o processo para o juiz, que aceitava ou rejeitava – neste
caso, era preciso recorrer. Se a denúncia fosse aceita, o processo caminhava
para o interrogatório do acusado, sobre o qual ninguém tinha ingerência a não
ser o juiz-auditor. O promotor e o advogado de defesa não faziam perguntas.
Então, não tinha como a gente mandar nem contra e nem a favor. Seguia-se
a audição do Ministério Público, depois das testemunhas de defesa, após as
quais apresentávamos as alegações finais, quando se fazia uma análise de todos
os incidentes, os decorrentes do processo e, principalmente, para ver se ficara
provada a culpa ou a inocência do réu. Então, a gente pedia a procedência
ou a improcedência da denúncia. Havia uma opção de não emitir opinião e
deixar a critério do nobre Conselho, adotada quando não tínhamos a convicção
certíssima de que a pessoa estava certa ou errada. Então, é assim que funcionava
um processo.
222
JOÃO JAYME ARAÚJO
Em caso de sentença absolutória pela Lei de Segurança Nacional,
tinha que se recorrer. Então vinha de novo o processo para a gente apresentar as razões do recurso. Depois, seguia para a defesa apresentar as contrar-
razões de recurso. E subia para o Tribunal, onde faziam a parte processual.
O Ministério Público de segundo grau exerce as mesmas funções que nós no
primeiro. Vai de acordo com a consciência de cada um pedir ou não a condenação. Termina com a sentença de segundo grau, lavrando um acórdão, que
voltava para a Auditoria.
Memória MPM – Ou seja, era rápido, um processo célere, não é?
João Jayme Araújo – Os advogados faziam de tudo para retardar.
Nesta Lei de Segurança Nacional as penas eram muito graves, severas, não
havia prescrição, por recogitação penal, etc., mas eles sempre queriam dar
tempo ao tempo, para que a opinião se modificasse, para que o julgamento
passasse por vários Conselhos. Pela Justiça Militar, atrasos não aconteciam.
Não fazíamos medidas protelatórias, requerimentos bobos, para o juiz dizer
que sim ou que não e voltar ao Ministério Púbico... Então, vou dizer que por
nossa parte, por parte da Justiça Militar, os processos poderiam ser céleres,
mesmo aqueles que envolviam vários réus. É claro que na Justiça Civil um
processo semelhante levaria uma barbaridade de tempo! Assim, em termos
comparativos, eu diria que sim, que eram mais rápidos, mais céleres do que
na Justiça Comum.
Memória MPM – E as testemunhas, como eram arroladas?
João Jayme Araújo – Algumas testemunhas eram trazidas já no
inquérito, no âmbito do qual eram ouvidas. Destas, a gente selecionava as
que estavam mais de acordo com a prestação acusatória e as arrolava. Elas
223
HISTÓRIAS DE VIDA
vinham ao interrogatório do réu. Se fossem seis, por exemplo, a gente fazia em
dois dias. Na Auditoria Militar também é muito menor o serviço do que na
Justiça Comum, então dá para ser célere, fazer uma sessão por semana. Eram
poucos processos, porque fora da Segurança Nacional, com os militares era
“vapt-vupt”.
Memória MPM – E acontecia, por exemplo, nos casos desses processos da
Lei de Segurança Nacional, de haver divergência entre a declaração do réu e aquilo
que ele dizia depois na audiência?
João Jayme Araújo – Normalmente, sim. Na audiência ele negava
o que estava no inquérito, às vezes até usando o direito de não falar. As
testemunhas eram as que ele, réu, indicava, ou aquelas que tinham prestado
declarações no inquérito, condizentes com aquilo que o acusado dizia.
Memória MPM – E quem eram os advogados, o senhor se recorda? O
senhor mencionou o Lia Pires, que é um dos grandes advogados de Porto Alegre.
João Jayme Araújo – O Dr. Lia Pires, o Dr. Dariano, o Dr. Eloar
Guazzelli, o Dr. Amadeu de Almeida Weinmann e o Dr. Salgado Martins...
Eu estreei contra estas “feras”. Nos processos, eles eram “cobras criadas”,
grandes advogados! O Dr. Dariano foi um dos tribunos mais eloquentes que
conheci. Inventava coisas, para divagar, dispersar, para distrair a atenção dos
membros do Conselho. Eu, começando, sonhava em um dia alcançar o mesmo
grau de eloquência dele. Nunca consegui, porque cada um é cada qual. Então,
eu pensava: “Vou pegar ele por outro lado, vou estudar o processo até não
poder mais!”. Ele vinha com aquelas atochadas (permita-me a expressão) e
eu retrucava: “Mas onde que tá isso, doutor?”. “Ah, acho que está nas páginas
tais”. “Não, doutor, nas páginas tais não tem nada sobre isso...”. A minha tática
224
JOÃO JAYME ARAÚJO
sempre foi essa, saber sobre o processo mais do que os advogados. E graças
a Deus, deu certo! Eram quatro causídicos de destaque do Rio Grande do
Sul. O Dr. Dariano, brilhante, passou em um concurso para auditor. Esteve
na Bahia, como auditor, depois voltou para Porto Alegre. No início eram três
auditores: o Dr. Dariano, a Dra. Maria do Carmo Benevenuto Pereira e a Dra.
Iara Alcântara Dani. Trabalhei com todos eles.
Havia um réu, Carrion, que agora é deputado pelo Partido Comunista,
PCdoB, cujo pai foi à Auditoria com outro Carrion, chefe do escritório de
advogados em que eu trabalhava, no Cível, e pediu, pelo amor de Deus, que
eu não pedisse a prisão preventiva do filho, que a mulher ia ter um troço se
isso acontecesse. Eu fiz uma série de perguntas no sentido de saber quais as
garantias que ele oferecia, caso o rapaz fosse liberado... Quando ele saiu da
Auditoria, o rapaz já estava no Chile! Ele garantia... mas não muito [risos]. O
rapaz se movimentou às escondidas, usou codinome.
Memória MPM – Tinha acompanhamento da imprensa nesses processos?
João Jayme Araújo – Tinha. Normalmente o Dr. Tonin não concedia
entrevista, a não ser que fosse do interesse dele ou da Justiça Militar. Eu
concedia entrevistas para dois órgãos que julgava confiáveis, cujos repórteres
não distorceriam minhas declarações: O Globo – que tinha um correspondente
que trabalhava na Secretaria, o Aldo Mendes –, e o Correio do Povo, que tinha
o Marco Antônio, que depois foi gerente-geral da GM. Havia outro rapaz,
do Jornal do Comércio, cujo nome não recordo agora. A Zero Hora estava
começando e os repórteres não se faziam afáveis, pode estar certo! Eu não
os atendia... Os outros dois chegavam lá, conversavam comigo, se mostravam
confiáveis. Nunca me decepcionei com o que eles publicaram.
225
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Não sei se o senhor tem uma visão de perspectiva
estatística, mas se fosse considerar, dentre os réus acusados, a maior parte foi
condenada ou foi absolvida?
João Jayme Araújo – Eu penso que a maior parte tenha sido
condenada. Pelo menos uns 70% o eram, creio.
Memória MPM – E as penas costumavam ser de quanto tempo?
João Jayme Araújo – Eram condizentes com o que estabelecia o
nosso Código Penal.
Memória MPM – E quando os assaltos a banco vieram para a Segurança
Nacional, os réus eram assaltantes comuns ou estavam efetivamente envolvidos com
entidades clandestinas?
João Jayme Araújo – Nunca eram assaltantes comuns. Sempre
estavam engajados ou militando em organizações tidas como subversivas.
Memória MPM – Qual é o balanço que o senhor faz desse período?
Adiantou conter esse pessoal daquela forma?
João Jayme Araújo – Eu acho que não adiantou conter esse pessoal
porque, segundo meu entendimento, a Revolução perdeu o próprio caminho,
quer dizer, o Castelo Branco veio para fazer um governo “tampão”, “botar
ordem na casa” e entregar o poder, mas eu não sei se os subversivos foram
mais atuantes, mas incisivos, e fizeram com que os militares não abrissem
mão. A não ser pelo Ernesto Geisel, que começou a lenta, progressiva e
restritiva abertura.
Memória MPM – E quanto aos crimes dos militares?
226
JOÃO JAYME ARAÚJO
João Jayme Araújo – Peguei crimes relacionados às Intendências.
Teve um caso, no qual a Dra. Marisa atuou, de um ex-oficial de Alegrete,
cujo advogado pediu sua exclusão da denúncia. Ele foi excluído mesmo, mas
protestou: “Não, de jeito nenhum, não vou concordar, vou ficar aqui, onde
tenho possibilidade de ficar com essa pessoa tão bonita, tão querida: eu quero
ser réu!” [risos].
Memória MPM – Qual foi o resultado daquele caso em que o filho de uns
amigos seus figurava como réu?
João Jayme Araújo – O resultado final do processo, eu não lembro.
Nesses dias, a Claudete e eu saímos do consultório do meu médico, em Porto
Alegre, e pegamos um táxi. O motorista começou a falar comigo sobre música.
Ele era bem entendido! E estava de acordo com meu gosto. Viemos todo o
trajeto conversando animadamente. Quando chegamos à Av. José de Alencar
ele disse: “Mas eu lhe conheço: o senhor não é o Dr. João Jayme Araújo?”.
“Sou, sim.”, respondi-lhe. Então, ele replica: “Eu fui seu réu.”. Era o Cleiton!
Guardei o cartãozinho dele, de taxista.
227
JORGE LUIZ DODARO
Entrevista realizada em 3 de março de 2015, em Brasília, na Procuradoria-Geral de
Justiça Militar, por Gunter Axt.
228
Jorge Luiz Dodaro nasceu em 15 de novembro de 1942, no antigo Estado
da Guanabara, situado no atual município do Rio de Janeiro. É filho de
Salvador Dodaro e Ursolina Malicia. Formou-se em Direito pela Faculdade
Brasileira de Ciências Jurídicas, no Rio de Janeiro, em 1969. Concluiu, ainda,
especialização em Direito Aeronáutico e Espacial e em Direito Fiscal. Atuou
como jornalista e funcionou na advocacia privada. Foi nomeado advogado de
ofício da Justiça Militar em 1970. Ingressou no Ministério Público Militar, em
junho de 1972, como segundo substituto de procurador de segunda categoria,
atuando, inicialmente, na 3ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição
Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Foi membro da Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público Militar. Entre 1982 e 1990, foi presidente
da Associação Nacional do Ministério Público Militar, ocupando a vice-
-presidência da referida Associação entre os anos de 1990 e 1992. Integrou
a diretoria da Associação do Ministério Público do Brasil e a diretoria da
CONAMP. Aposentou-se em novembro de 2012.
229
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Dr. Dodaro, bem-vindo! É uma honra recebê-lo
para que possamos dar início aos trabalhos do Programa de História Oral do Centro
de Memória do Ministério Público Militar.
Jorge Luiz Dodaro – Que sejam minhas primeiras considerações,
ainda que de forma pobre e descolorida, sem o realce necessário que
merece o momento, para parabenizar e enaltecer os idealizadores do Projeto
Memória do MPU, no âmbito do MPM, nas pessoas do procurador-geral
do MPM, Dr. Marcelo Weitzel Rabello de Souza, do subprocuradorgeral, Dr. Péricles Aurélio Lima de Queiroz, coordenador da Comissão
do Projeto e do historiador Gunter Axt, projeto este que tem por escopo
coletar o depoimento de membros aposentados do MPM, sendo eu um dos
entrevistados, o que haverá de se somar a outros testemunhos, para alcançar
o desiderato dos seus autores.
É a vida escrita de nossa instituição. É a preservação de nossa
identidade histórica. A propósito, é oportuno destacar que uma instituição sem
memória é o mesmo que um corpo sem alma! Somos, hoje aposentados, uma
parcela dos que foram outrora os insignes colegas a moldar, de forma vigorosa,
o quadro vivo e de avanço firme e perene da instituição, que se vislumbra
cada vez mais altiva, mercê de seus atuais valorosos membros (promotores,
procuradores e subprocuradores-gerais), os quais, com elevado descortino e
lucidez, dão relevo, na atualidade, aos novos rumos, mais promissores do MPM.
Sou uma parcela mínima do Parquet castrense, que tenho a honra de
integrar, já que ostento com orgulho e entusiasmo a vitaliciedade do título, no
início promotor, hoje, subprocurador-geral do MPM.
Memória MPM – O senhor é natural do Rio de Janeiro?
230
JORGE LUIZ DODARO
Jorge Luiz Dodaro – Sim. Sou carioca. Nasci em Santa Teresa, onde
passei minha infância. Na juventude, mudei para Ipanema. Hoje moro em
Teresópolis, também com residência na “Cidade Maravilhosa”.
Memória MPM – Onde o senhor estudou?
Jorge Luiz Dodaro – A vida escolar começou em Santa Teresa,
na escola pública, perto de casa, chamada Santa Catarina. Concluí o 2º grau
(Científico) no Colégio Estadual Souza Aguiar, também público. Vale lembrar
que, por volta dos anos 1956 ou 1957, o Diretório Acadêmico do Colégio
promoveu um concurso de monografia sobre a construção de Brasília. Fiz uma
pesquisa profunda sobre o tema. Conquistei o terceiro lugar, fazendo jus ao
Prêmio Ernesto Silva, tesoureiro da Novacap. O prêmio, além de livros, constava
de uma viagem a Brasília. A cidade estava em acelerada construção. Para se ter
uma ideia, o atual lago era tão somente um enorme buraco, sem água. Eu
e os outros quatro classificados fomos recebidos pelo presidente Juscelino
Kubitschek no Palácio da Alvorada. Foi antes da inauguração da Capital
Federal. Uma emoção! Tudo era “pioneiro”. As obras, segundo confessara
na ocasião um engenheiro, eram executadas ao ritmo de música, chorinho,
naturalmente, se fosse valsa, a cidade não estaria pronta até hoje! [risos].
Desde o primário, gostava de cerimônias. Era uma espécie de monitor.
Representava a escola em inaugurações, festividades cívicas, etc. No Souza
Aguiar, decidi fazer o Científico, porquanto pretendia cursar Medicina. Havia,
apenas, duas Faculdades no Rio de Janeiro (antigo Estado da Guanabara).
Um belo dia, fui ao Instituto Nacional do Câncer (INCA), um centro de
referência no Rio de Janeiro. Cheguei todo empolgado, mas saí em choque, ao
ver os pacientes, a maioria, em estado terminal. Na mesma época, para piorar,
231
HISTÓRIAS DE VIDA
ocorrera um descarrilamento de trem na Estação de Paciência, localizada em
um subúrbio carioca, com muitos feridos. Pediram voluntários. Hesitei. Não
fui. Percebi, então, que a Medicina não era a minha praia.
Fiquei na dúvida; pensei em fazer História ou Química, duas carreiras
que eu apreciava. Até que um colega do Souza Aguiar, José Valdeci Pinheiro,
que cursara o Clássico, me indagou por que não tentava o Direito. Respondi:
“Valdeci, no Científico o latim não faz parte da grade. O latim que eu sei é
do ginasial. Visando a suprir tal carência, ele me convidou para estudarmos na
Casa de Rui Barbosa (hoje Fundação). Acabei topando. Afinal, nem precisei
do latim porque era, apenas, classificatório.
Jurídicas?
Memória MPM – Como foi na Faculdade Brasileira de Ciências
Jorge Luiz Dodaro – Optei por ela, embora tenha passado, também,
na UERJ, que, antigamente, chamava-se “Catete”, por se situar na Rua do
Catete. Mas, como Valdeci Pinheiro só conseguira passar na Faculdade
Brasileira de Ciências Jurídicas, resolvi acompanhá-lo. Fui solidário com o
amigo. Amigo é para esses momentos.
Memória MPM – Quais são as lembranças que o senhor tem da época
de Faculdade?
Jorge Luiz Dodaro – Foi espetacular! Eu não era dos alunos mais
assíduos, sobretudo em função do jornalismo, com o qual trabalhava. Mas
sempre fui dedicado. Os professores foram excelentes. Catedráticos. Depois,
cursei Administração de Empresas, na Faculdade Moraes Júnior. Sou bacharel
nessa área.
232
JORGE LUIZ DODARO
Uma vez formado e, paralelamente, exercendo o jornalismo a pleno
vapor, fui convidado – e aceitei de imediato – a integrar o escritório do Dr. Lino
Machado Filho, um artífice do mundo jurídico. O Lino era como um irmão.
Pai do Nélio, advogado criminalista bem-sucedido. O Nélio, por algum tempo,
atuou na Defensoria Pública na Auditoria da Marinha, e, por força da advocacia
privada e do magistério, não o permitiram continuar. Fiquei no escritório do
Dr. Lino um bom período. Por lá passaram outros doutos profissionais, entre
eles: Alcides Martins, hoje subprocurador-geral da República; Sérgio Lúcio
de Oliveira e Cruz, atualmente desembargador do TJ/RJ, ambos estimados
amigos. Depois saí, porque montei meu próprio escritório. O Nélio casou com
a Letícia, juíza-auditora, sobrinha do Marcelo de Allencar, ex-governador do
Estado do Rio de Janeiro, diga-se de passagem, um excelente tribuno.
Memória MPM – E a sua atuação como jornalista?
Jorge Luiz Dodaro – Turbulência política à parte, vivi uma época de
ouro no Rio de Janeiro. Cobri os Festivais Internacionais da Canção. Conheci
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Clara Nunes, Edu Lobo,
Chico Buarque, Roberto Carlos, Wanderléia, Quarteto em Cy, Ivan Lins,
Maria Bethânia, etc., todos em início de carreira. Nesses eventos, os jornalistas
circulavam no Hotel Glória, no Copacabana Palace, onde estavam os cantores
de outros países, no Canecão, casa de show carioca e no Maracanãzinho.
Memória MPM – Como foi o início de sua carreira?
Jorge Luiz Dodaro – A gênesis da minha trajetória na Justiça Militar
ocorreu nos idos de 1970, quando fui nomeado advogado de ofício, atual
Defensoria Pública da União. O ministro Alcides Carneiro, vice-presidente
do STM, foi quem assinou o Termo de Posse, que muito me gratificou. Fui
233
HISTÓRIAS DE VIDA
designado a exercer tal múnus na Primeira Auditoria de Aeronáutica, da 1ª
CJM, no Rio de Janeiro. O juiz-auditor titular era o Dr. Teócrito Rodrigues
de Miranda, e o Dr. Mário Moreira de Souza, substituto, os quais se tornaram
diletos amigos. Foram dois anos de efetivo exercício e harmoniosa convivência.
Dois anos após, em 1972, estimulado pelo procurador de Justiça
Militar, Dr. Rubens Pinheiro de Barros, a quem convidei para ser meu padrinho
de casamento, ocorrido no dia 18 de setembro de 1976, ingressei no MPM. Era
procurador-geral do MPM o Dr. Ruy de Lima Pessôa, que se tornou ministro
do STM. A 3ª Auditoria do Exército da 1ª CJM foi o meu destino. Dois
juízes-auditores conduziam aquela instituição: o Dr. José Garcia de Freitas,
juiz-auditor titular (pai do colega e amigo do MPM, Dr. José Garcia de Freitas
Júnior) e o Dr. Oswaldo Lima Rodrigues (genitor do colega de MPM Osvaldo
Lima Rodrigues Júnior, que encerrou sua carreira como juiz-auditor).
A minha aposentadoria não se tratou do cerrar da cena, deu-se
apenas o alvorecer de uma nova fase. Os sentimentos que ora experimento
são nitidamente contrastantes: vão da excruciante dor da aposentadoria
compulsória ao júbilo da certeza do dever cumprido.
Memória MPM – E a Associação Nacional do Ministério Público Militar?
Jorge Luiz Dodaro – A Associação Nacional do Ministério Público
Militar foi criada em 1978. O primeiro presidente foi o colega Dr. Paulo Duarte
Fontes. Assumi em 1982 e permaneci na presidência até dezembro de 1988.
Com a mudança da Procuradoria-Geral para Brasília, achei que iria onerar a
entidade com as frequentes viagens, em consequência, resolvi sair da presidência.
Permaneci, ainda, como vice do dileto colega, Dr. Marco Antonio Pinto Bittar,
até fins de 1992. O quadro de associados era mínimo, reduzido mesmo, e, às
234
JORGE LUIZ DODARO
vezes, alguns nem pagavam. Hoje é descontado em folha; antigamente, não.
Viajava às minhas custas, pagando passagens de avião e hotel do próprio bolso. A
Associação não tinha lastro para suportar tais despesas. Depois, outro estimado
amigo e colega, o Dr. José Carlos Couto de Carvalho, assumiu a direção e fez
um fecundo trabalho. Devemos a ele a sede própria da Associação.
Outros ilustres colegas, além dos acima aludidos, presidiram a
Associação Nacional do Ministério Público, a saber: Marcelo Weitzel [Rabello
de Souza], Aílton José da Silva e Giovanni Rattacaso, atual presidente.
Memória MPM – Sem verbas, o que se podia fazer na Associação
do MPM?
Jorge Luiz Dodaro – Eu e a diretoria enfrentamos sérios desafios.
Para se ter uma ideia, editávamos um boletim, que era rodado em mimeógrafo.
Ficava com as mãos todas sujas! Distribuíamos para todos. Recentemente,
voltei para a diretoria, na condição de vice do estimado colega Dr. Giovanni
Rattacaso. Ele, é claro, fica em Brasília e eu, no Rio de Janeiro, num espaço
compartilhado com a doce amiga e colega Dra. Lúcia Beatriz Magalhães
de Mattos, ouvidora-geral do MPM, como sendo a “subsede”. No Rio,
vale acentuar, é onde reside o maior número de associados (ativos, inativos
e pensionistas). Há uma promessa, da atual chefia do Parquet castrense, no
sentido de uma nova dependência na futura sede do MPM no Rio de Janeiro,
em fase de construção.
Memória MPM – Além da 3ª Auditoria, o senhor atuou em outros ofícios?
Jorge Luiz Dodaro – Coincidentemente, nunca saí do Rio e da 3ª
Auditoria. Relutei em termos de promoção, porque eu era muito ligado à minha
235
HISTÓRIAS DE VIDA
mãe idosa e não desejava ficar distante dela. Mas quando aceitei concorrer à
promoção para subprocurador-geral, foi uma glória. Adorei tudo e todos, dos
pares e dos funcionários e fiquei me perguntando por que não tinha aceitado
antes. Mas aí já estava na contagem regressiva. Aposentei-me no dia em que
completei 70 anos. Sempre gostei do Ministério Público Militar. Fiz tudo o
que estava ao meu alcance para que a chamada “PEC da bengala” passasse, nas
não obtive sucesso.
Houve uma época, respondendo à sua pergunta, que assumi,
simultaneamente, a Procuradoria da 4ª Auditoria da 1ª CJM, em razão da
aposentadoria do estimado colega Dr. Renato da Cunha Ribeiro. Foram,
assim, os únicos ofícios em que atuei: 3ª e 4ª Auditorias da 1ª CJM, sediadas
no Rio de Janeiro.
Memória MPM – Como era a advocacia e o Ministério Público Militar?
Jorge Luiz Dodaro – Eu acumulava a advocacia privada com a
atuação no Ministério Público Militar. Contava com uma boa clientela,
graças a Deus! Tive como cliente um supermercado então famoso, Casas da
Banha. Não existe mais. Defendia os interesses da empresa e dos funcionários,
especialmente, os que não tinham condições de pagar honorários advocatícios,
de modo que, com frequência, advogava de graça. Relutava, no entanto, em
atuar na área de Família. Quando alguém vinha me procurar para fazer uma
separação, dizia: “Eu só uno, não separo.”. Procurava reconciliar o casal.
Reconciliei muitos casais.
Certa feita, vale a pena relembrar, se me permite, o motorista do
presidente da Casas da Banha, me deu, a título de pagamento por uma ação bem-sucedida, veja só, um peru vivo! Eu não queria aceitar, mas ele deu indicações
236
JORGE LUIZ DODARO
de que ficaria ofendido. Deixei o peru sob custódia com o responsável pelo
depósito, que se prontificou a alimentá-lo e o fez com todo carinho. O peru
até engordou [risos]. Mas precisei levá-lo, pois estava estorvando no depósito.
Coloquei-o no meu “fusquinha”, devidamente amarrado, rumo à cidade. Mas
como tinha que recolher uma guia no BANERJ, parei o carro próximo ao
estabelecimento bancário. E o peru “glu-glu-glu” o tempo todo. Quase abri a
porta, para soltá-lo. Não tive coragem. Jamais faria isso! Em frente ao BANERJ,
pedi autorização a um guarda para deixar o carro e voltar logo em seguida. E
o peru fazendo um escândalo. Quando voltei, estava o guarda olhando o peru:
“Desculpe, eu esqueci de avisá-lo. Ganhei de presente. Não quer esse peru?”.
Ele pensou que fosse brincadeira, algo assim. Não aceitou. Diante da resposta
negativa do policial, fomos embora: eu e o peru [risos]. Afinal, minha mulher
conseguiu que o padeiro, seu Zé, desse um jeito de matar o galináceo e assá-lo.
Foi um peruzão espetacular e nem era dia de Natal! [risos].
Memória MPM – Como era a relação com os juízes com os quais
o senhor conviveu?
Jorge Luiz Dodaro – Sempre muito amigável e colaborativa. Eu
tinha amizade com todos os juízes, bem como com os advogados que militavam
na 3ª Auditoria e em outros ofícios. Preocupava-me sempre em valorizar a
instituição ministerial. Certa feita, o notável advogado criminalista, Prof.
Heleno Fragoso, escreveu um livro elogiando aspectos da Justiça Militar. Como
eu tinha uma fraterna amizade com ele, indaguei: “Heleno, isso vai por conta
da amizade: você escreveu, falou dos juízes, dos ministros da Justiça Militar e
não dedicou um capítulo ao Ministério Público?”. Ele riu e retrucou: “Jorge
Luiz Dodaro, se eu fosse falar do Ministério Público, ia só falar de você!”.
237
HISTÓRIAS DE VIDA
Mas, voltando à pergunta, além dos juízes mencionados, convivi,
harmoniosamente, com os seguintes doutores: José Victor Marques dos
Santos, Edmundo Franca de Oliveira, Mário César Machado Monteiro,
Carlos Henrique Reiniger, Cláudio Amin Miguel, Roberto Menna Barreto,
Jorge Marcolino dos Santos e Marco Aurélio Petra de Mello, todos de larga
experiência na Justiça Militar.
Memória MPM – E os advogados de ofício?
Jorge Luiz Dodaro – A Defensoria Pública contava, de igual sorte,
com ilustres causídicos, dentre outros, o Dr. Mário Soares de Mendonça, pai dos
ilustres colegas e amigos, Dr. Mário Sérgio Marques Soares (subprocurador-geral do MPM); e do Dr. Carlos Alberto Marques Soares (ministro do
STM aposentado); a Dra. Telma Angélica Figueiredo (corregedora-geral da
Justiça Militar); o Dr. Celso Celidonio (atual juiz em Santa Maria, RS), Dr.
Ariosvaldo de Góis Costa Homem, Dra. Lúcia Lobo, Dra. Mariza Pereira
do Couto e a Dra. Ana Maria Marins Cortês, viúva do estimado amigo Dr.
Mário Mattos Cortês, procurador da Justiça Militar. A propósito, os dois se
conheceram mais aprofundadamente nas Bodas de Ouro de meus pais. Fui
padrinho de casamento juntamente com outra caríssima colega e amiga, Dra.
Vera Regina Coelho Americano Alves de Brito.
Havia, inclusive, outros advogados de ofício, como o Dr. Augusto
Süssekind de Moraes Rego, excelente tribuno. No meu primeiro julgamento
como promotor da Justiça Militar ele atuou como defensor. Süssekind dividia
o escritório com dois advogados de alto coturno: Dr. Alcyone Pinto Barreto
e Dr. Manuel de Jesus Soares, ambos professores e colegas na Faculdade
Cândido Mendes. O Süssekind chegou a ser convidado para uma vaga no
238
JORGE LUIZ DODARO
STM, mas não aceitou, segundo me revelou, porque ganhava mais com o
escritório de advocacia.
Memória MPM – E a sua amizade com o ministro Olympio [Pereira
da Silva Junior]?
Jorge Luiz Dodaro – Nos conhecemos há muitos anos. Passou
pelo meu escritório. O pai dele, Olympio também – médico e advogado, cujo
inventário patrocinei, era professor de Medicina Legal na Faculdade Cândido
Mendes, onde eu também lecionei, à noite, Processo Penal. O Olympio Filho,
era uma alegria no escritório. Eu o acompanhei no primeiro júri que fez. Ao
ser sabatinado no Senado, ele me contou, perguntaram-lhe se não se sentia
constrangido, sendo um dos últimos do quadro, de estar passando à frente de
todos com a nomeação a ministro do STM? “Ora”, respondeu ele, “A vaga
é do quadro, não dos mais antigos na carreira.”. Aliás, Como presidente da
Associação, eu enviara um ofício ao presidente do STM e ao próprio Olympio,
parabenizando-o pela nova função a ser trilhada. Ele leu o ofício na sessão
do Senado que o credenciava a exercer com méritos tal missão. Ademais, o
fraterno Olympio era bem-relacionado com o presidente Itamar Franco,
portador de notável saber jurídico e elevados atributos pessoais. E mais,
profundo conhecedor do Direito Castrense. O Olympio revolucionou o STM,
sem quebrar a austeridade da Corte. Ele é adorado pelos seus eminentes pares.
Presidiu o STM. É autor – música e letra – do hino do STM.
Outra do Oly, como carinhosamente o chamamos. Minha chegada
ao escritório de advocacia coincidiu com uma campanha do STM para
retomar o rigor das vestes talares nas Auditorias. Pedi emprestada a sua beca
de formatura. Minha esposa adaptou-a com um cinto vermelho e adereços nos
239
HISTÓRIAS DE VIDA
punhos. Passou a ser minha! Com o tempo ficou bem surrada, mas permaneceu
comigo até o fim. Se a lavasse, podia desmanchar toda. Dava até um tema de
livro: A beca surrada [risos]. Em suma, um querido amigo.
Memória MPM – O senhor se recorda de processos que tenham lhe
chamado a atenção?
Jorge Luiz Dodaro – Muitos. Embora eu esteja aposentado, o tempo
não me sobra, de modo que não consigo avançar com o projeto de produzir um
livro composto por coletânea de casos jocosos ocorridos no universo da Justiça
Militar e fora dela, com o seguinte título: O pitoresco na Justiça.
Eis alguns casos: na Auditoria, apareceu um civil que gostava de
uma operária que trabalhava numa fábrica localizada no subúrbio do Rio de
Janeiro. E ele ia lá, frequentemente, paquerá-la; ela enfrentava um processo
de separação conjugal. Descobriu que a moça gostava de farda, então, resolveu
comprar um uniforme de capitão do Exército, razão pela qual foi parar na
Justiça Militar: uso indevido de uniforme, artigo 171 do CPM. Ele ia todo
alinhado ao encontro da moça. Certo dia, deparou-se com o ex-marido; foi
aquela confusão. Brigaram. O segurança da fábrica, um militar reformado,
os levou para a Delegacia. Na Polícia, ele se identificou como capitão do
Exército, mas, acredite, inobstante não ter documento comprovando sua
condição de militar, aceitaram a sua palavra. Ficou registrado. Isso deixou-o
mais empolgado, de modo que não abria mão da farda para os encontros
amorosos. Num certo momento, ele ficara sem tempo para revê-la e, para
suprir tal ausência, enviava cartas, por meio das quais contava histórias, uma
delas, que teria sido preso por ter-se negado a acatar uma ordem injusta de um
superior. E arrematava: “Não se preocupe, porque eu logo vou te ver, tenho
240
JORGE LUIZ DODARO
muitos amigos no STM.”. Citava o nome de alguns ministros… E insistia:
“Tenha paciência!”.
Entrementes, ele deixara numa quitanda, lá no subúrbio, próxima à
residência de sua amada, uma “pasta 007”. Como não aparecia para apanhá-la,
o quitandeiro falou para ela: “Olha, fulana, o seu noivo deixou uma pasta aqui
há muito tempo. Leva.”. E a mulher, curiosa, abriu-a. Descobriu que ele tinha
um certificado militar revelando que não servira o Exército, fora dispensado!
Ela ficou tão revoltada, que procurou a Polícia. Foi quando a história toda veio
à tona. Sabe onde ele estava? Preso por vadiagem! [risos]. No dia da audiência,
na Auditoria, ele respondeu ao juiz: “Doutor, eu comprei a farda porque ela
disse que gostava de militar, se ela dissesse gostar de juiz eu comprava uma
toga.” [risos]. Está lá no livro, que será lançado brevemente. Aguardem!!!
Há outras passagens, igualmente pitorescas, ocorridas fora do âmbito
da Justiça Militar. Em São Paulo, por exemplo, num concurso para juiz – a
banca só de desembargadores –, um desembargador exclamou diante de uma
resposta do candidato: “Meu caro doutor, o senhor acaba de dizer uma grande
asneira.”, ao que o candidato – um advogado de Bauru, retrucou: “Asneira na
minha boca, porque se fosse na de Vossa Excelência seria um voto vencido.”
[risos].
Noutro episódio, um juiz mandou intimar um cidadão, Jorge, vulgo
“Jacaré”. O oficial de Justiça, não o encontrando, lascou: “Certifico e dou fé
que não consegui intimar o aludido réptil.” [risos].
E mais, numa Vara Orfanológica, o advogado assim peticionou: “O
de cujus deixou sete de cujinhos.” [risos].
241
HISTÓRIAS DE VIDA
Lembro, também, de uma outra história. Essa não deve entrar no livro.
O Prof. Heleno Fragoso, volto a citá-lo, autor de importantes obras de Direito
Penal, conceituadíssimo, dominava bem o alemão e fazia citações nessa língua
em suas defesas escritas. Certa vez, recorri a um estimado colega, Dr. Paulo
Jacob, advogado; ele tinha um cliente metalúrgico, Andreas Munck, nascido
na Hungria, que dominava o alemão, a quem pedi para verter um trecho de
um texto meu para o citado idioma. O Andreas fez e eu o citei em uma peça
processual, como sendo um “jurista alemão” importante [risos]. Por isso é que
nunca fui de fazer citações de juristas, quanto mais os estrangeiros, sem ter
segurança na fonte! Só depois de muito tempo, operada a prescrição, é que
revelei a história para o Heleno, que riu bastante. Ele gostava de mim. Éramos
bons amigos, amizade que se estende até hoje na pessoa de seu douto filho, o
Dr. Fernando Fragoso.
Memória MPM – E quanto aos processos nos quais atuou?
Jorge Luiz Dodaro – Foram inúmeros. O “processo dos coronéis”, é
um deles. Foi marcante. O julgamento durou dez dias. Tratava-se de um esquema
de corrupção (qualquer semelhança com a época atual é mera coincidência),
que envolvia vários coronéis, inclusive reformados, além de civis (fornecedores).
As propinas exigidas eram extorsivas, o que levou os fornecedores a revelar o
esquema, resultando na denúncia de trinta e poucos acusados.
Cabe aqui um parêntese, se me permite acrescentar: a Justiça Militar
Federal, às vezes, é incompreendida por quem não a conhece, achando-a
parcial. Ledo engano! Eu mesmo oficiei pela absolvição, talvez, mais do que
pela condenação. De igual sorte, requeri incontáveis pedidos de arquivamento,
embasado sempre nos indícios ou provas contidas nos autos.
242
JORGE LUIZ DODARO
Atuei em um processo no qual um dos envolvidos era filho do
jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues: Nelson Rodrigues Filho.
Os pais assistiam às audiências do julgamento. A cada resultado, a mãe do
Nelson desmaiava; cena horrível e triste de se ver! Se não me falha a memória,
acho que ele respondeu a dezoito processos na Justiça Militar: assalto a Banco,
incurso na Lei de Segurança Nacional.
Memória MPM – E os processos em que o senhor atuou como jornalista?
Jorge Luiz Dodaro – Mais de uma centena, sem medo de errar,
tamanho o volume de processos que eram julgados na seara castrense. Vale
lembrar: o do roubo do cofre de Adhemar de Barros, que se encontrava em
uma casa em Santa Teresa, na rua Aarão Reis, no Rio de Janeiro, contendo
valores que teriam sido do ex-governador de São Paulo. Um dos envolvidos
era o Lamarca.
Lembro-me, também, dos processos que versavam sobre os sequestros
do embaixador Charles Elbrick, dos EUA, assim como do embaixador
Giovanni Bucher, da Suíça.
A Justiça Militar também foi palco, ainda na vigência da Lei de
Segurança Nacional, de processos de assaltos a Banco com ou sem conotação
política, previstos nos artigos 27 e 28 da citada lei (Decreto-Lei nº 898, de 29
de setembro de 1969).
Inúmeros civis foram processados e julgados naquela Corte, sob
a acusação de assalto a estabelecimentos de crédito, sem conotação política.
Conheci aquela turma toda: “Lúcio Flávio” (que foi tema de um filme),
“Francisco Horroroso”, “Marta Rocha”, “Escadinha”, “Paulo Maluco”,
243
HISTÓRIAS DE VIDA
“Carlinhos Gordo”, o maior ladrão de automóveis que agia naquela época. Ele
abria e levava qualquer carro. Cada figura! Turma da pesada!
Memória MPM – Mas por que isso caía na jurisdição militar?
Jorge Luiz Dodaro – Porque a LSN punia essa conduta delituosa
em seu Art. 27, cuja pena era de 10 a 24 anos de reclusão, e, às vezes, de outra
forma, eram presos com armamento de uso privativo das Forças Armadas. A
competência passava a ser nossa.
Memória MPM – O senhor também acompanhou o processo do
“bom burguês”, não é?
Jorge Luiz Dodaro – Sim, um cidadão que, valendo-se de sua
condição de gerente de Banco, se apropriou de considerável verba, em dólar,
simulando pertencer a uma organização clandestina, com o propósito de obter
alguma vantagem, como, por exemplo, ser enquadrado na LSN e, com isso,
ser banido ou trocado por alguma personalidade, como ocorreu no caso do
embaixador americano. Não conseguiu. Este caso deu origem a um filme, “O
bom burguês”.
Memória MPM – E sobre a Lei de Segurança Nacional, o que o senhor
tem a nos dizer?
Jorge Luiz Dodaro – Por força do Ato Institucional nº 2, de
27/10/65, a Justiça Militar passou a processar e julgar casos que atentassem
contra a segurança interna do país. Diante de episódios de grupos considerados
como subversivos, que resistiam, de forma armada, ao regime então reinante.
Época árdua! Oportuno destacar que a 1ª CJM, no Estado do Rio de Janeiro,
então Capital Federal, contava com sete Auditorias: três do Exército, duas
244
JORGE LUIZ DODARO
da Marinha e duas da Aeronáutica, além do STM, que julgava, como é
de igual sabença, os recursos do MPM e da defesa, tramitados, antes, pela
Subprocuradoria-Geral do MPM.
Eu e os colegas enfrentamos uma tarefa difícil, no torvelinho
das agitações e paixões, para encontrarmos regras e preceitos da hermenêutica, trilhando, sempre, pelo caminho da justiça e da verdade desataviada de dúvidas.
O desafio foi enfrentado. Como defensor da sociedade e fiscal
da lei, agia tecnicamente, em consonância com a lei e as provas dos autos.
Tanto assim que inúmeras foram as manifestações de arquivamento e/ou de
absolvição, as quais, na maioria das vezes, eram acolhidas pelo douto juízo.
A propósito, certa ocasião – não me lembro quando –, o próprio
STM divulgou estatística, segundo a qual, a Justiça Militar da União absolveu
mais do que condenou, na maioria dos casos, civis levados àquela Corte
castrense, envolvidos em crimes previstos na LSN e/ou no CPM.
Comento, à guisa de ilustração, a Segurança Nacional foi objeto
de apreciação legal, exclusivamente, pela Justiça Militar, por força do Ato
Institucional nº 2, de 27/10/65, quando estendeu a competência da Justiça
Castrense para processar e julgar os civis, nos casos expressos na LSN (nº
1.802, de 05/01/53).
Essa Lei foi revogada, após ter vigorado por mais de 14 anos, pelo
Decreto-Lei nº 314, de 13/03/67, alterada pelo Decreto-Lei nº 510, de
20/03/69, e ambos substituídos pelo Decreto-Lei nº 898, de 20/09/69, que
vigorou até a mudança da competência da Justiça Militar.
245
HISTÓRIAS DE VIDA
A Lei de Segurança Nacional que vigia na época era bastante dura:
instituiu as penas de morte e de prisão perpétua em tempo de paz, que somente
eram previstas em tempo de guerra, mantendo, assim, a disposição do Ato
Institucional nº 14, de 05/09/69, referendada na Constituição pela Emenda nº
1, de 17/10/69. Quarenta tipos de crimes eram ali definidos.
Memória MPM – A propósito dos processos relativos à Segurança
Nacional, em sua opinião, o STM pesava a mão ou aliviava a pena?
Jorge Luiz Dodaro – Eu acho que o STM, a Justiça Militar como
um todo, dosou bem. Não foi mão-pesada. Ao contrário. Sopesou os feitos que
apreciou e julgou com sabedoria. O objetivo, acredito, era punir os cabeças e
aliviar aqueles que eram utilizados como massa de manobra.
Muita gente foi indenizada posteriormente que, na realidade, durante
o regime, à época, ficou na praia bebendo chope enquanto outros pegavam, de
fato, em armas para assaltar Bancos e enfrentar os militares. Por outro lado, a
Lei de Anistia – Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 – alcançou a todos,
incluindo alguns que tiveram comportamento especialmente violento.
Enfim, o objetivo do sistema, do qual o STM era parte, ao meu
sentir, seria alcançar a cúpula da subversão, assim definida na época. Quero crer
que conseguiu. A estrutura foi totalmente controlada, para que não avançasse
mais. Isso trouxe certo conforto para todo mundo e certa segurança. Ademais,
ninguém queria um quadro de conflagração civil generalizada, e essa ameaça,
acreditava-se, existia de fato. A sociedade desejava ordem e tranquilidade, que
vieram mais tarde de forma pacífica e democrática, sem desavenças ou lutas.
Isso nos deu paz de espírito, porque o MPM contribuiu, eficazmente, para que
tal ocorresse. Acalmamos a sociedade. Aquela turbulência de manifestações,
246
JORGE LUIZ DODARO
quebra de hierarquia nos quartéis, assaltos a Bancos, sequestros, guerrilha,
enfim, tudo passou.
Nesse contexto, sempre procurei ter uma atuação técnica. Ademais,
o papel do MPM, do qual estava plenamente imbuído, era promover justiça.
Em alguns casos, notadamente os de menor potencial ofensivo, insignificância
ou bagatela, com ou sem conotação política, buscava-se uma solução benigna.
Por outro lado, quando os agentes eram perigosos, contumazes na prática
criminosa, envolvidos com armas ou drogas, não havia condescendência.
Aplicava-se o rigor da lei.
Lá pelas tantas, visando a amenizar a árdua tarefa ministerial,
comecei a procurar um bálsamo nas instituições culturais e associativas, e esse
passou a ser meu foco antes da aposentadoria.
Pertenço a várias instituições culturais. Presido, por exemplo,
em Teresópolis, o Elos Clube, com 43 anos de fecunda existência. É uma
instituição internacional, fundada no Brasil, com o objetivo de defender e
propagar a língua portuguesa, a quinta mais falada no mundo. A propósito, o
Elos Clube foi levado para a Europa (Portugal) por Juscelino Kubitschek, então
membro da Academia Mineira de Letras e do Elos Clube de Belo Horizonte,
juntamente com o embaixador José Aparecido de Oliveira, também elista, um
dos organizadores da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP,
integrada pelos países lusófonos. Sou conselheiro da Pro Arte/UNIFESO, um
Centro Cultural integrado à Universidade em Teresópolis. Tudo é voluntário.
E a gente vai levando. A cabeça tem que estar sempre funcionando. Aliás,
sempre apreciei boa música e ambientes festivos e, principalmente, culturais.
Memória MPM – O senhor atuou no inquérito do Riocentro?
247
HISTÓRIAS DE VIDA
Jorge Luiz Dodaro – Sim. O Dr. Olympio Pereira da Silva Junior,
que dividia comigo a Procuradoria na 3ª Auditoria do Exército, suspirou
aliviado quando soube que o “pepino” não tinha parado nas mãos dele [risos].
A propósito, no dia do episódio, 1º de maio, Dia do Trabalhador, feriado
nacional, eu estava em Ouro Preto/MG, com o amigo e colega Dr. Rubens
Pinheiro de Barros. Não sabia de nada. Após retornar à Procuradoria tomei
conhecimento do fato.
Enfim, o inquérito veio para mim. Havia muita divulgação na
mídia. Alguns jornalistas que cobriam o caso eram meus conhecidos. Requeri
o arquivamento. Foram 32 laudas sob o argumento de que o crime existira,
mas que não havia provas suficientes para caracterizar a autoria. Deixei claro,
também, que caso surgissem novas provas, o MPM se manifestaria sobre a
propositura da competente ação penal. Mas eu tinha de me pronunciar sobre
o inquérito oficial, que tramitava na 3ª Auditoria do Exército, não pelo que
estava sendo noticiado, concomitantemente, pelo Jornal do Brasil. A versão do
“JB” não estava nos autos, não existia para o mundo jurídico, para o mundo do
processo. Agi – repito – tecnicamente.
Memória MPM – O senhor chegou a fazer alguma diligência, a
aprofundar algum aspecto do inquérito?
Jorge Luiz Dodaro – Sim. Em determinado momento, apareceu o
coronel reformado, Dickson Grael. Achava, entre outros argumentos, que a
segurança não foi correta. Veio falar comigo. Eu lhe garanti que não estava
ali para “passar a mão na cabeça” de ninguém. Se houvesse culpados, iríamos
puni-los. Ponderei: o meu prazo era de 15 dias. Diligenciei ao encarregado
do inquérito, o coronel Job, para que esclarecesse, com a maior brevidade o
248
JORGE LUIZ DODARO
solicitado pelo coronel Grael. Os fatos que sucederam são de elementar
sabença por conta da repercussão do episódio vivamente explorado pela mídia.
Memória MPM – O senhor estava falando do Job...
Jorge Luiz Dodaro – Sim, ele foi o segundo encarregado do IPM.
O primeiro, coronel Prado Pereira, se afastou, e o coronel Job Lorena de Sant’
Anna assumiu. Eu não o conheci pessoalmente.
Memória MPM – O senhor recebeu alguma pressão?
Jorge Luiz Dodaro – Nenhuma. O juiz-auditor, Dr. Edmundo Franca
de Oliveira acompanhou o ponto de vista ministerial. O Dr. Milton Menezes
da Costa Filho, procurador-geral do MPM teve o mesmo entendimento, que
acabou sendo confirmado, por maioria de votos, pelo STM, cujo relator foi o
ministro civil Dr. Antonio Carlos de Seixas Telles.
Memória MPM – E o processo do embaixador da Suíça que o senhor
mencionou anteriormente?
Jorge Luiz Dodaro – O processo sobre o sequestro do embaixador
da Suíça, Giovanni Enrico Bucher merece destaque. O episódio ocorreu no
dia 07/12/70, na rua Conde de Baependi, em Laranjeiras, na cidade do Rio
de Janeiro/RJ, e resultou na morte do agente de segurança Hélio Carvalho de
Araújo. Segundo os autos, a ação foi liderada por Carlos Lamarca. Participaram
da empreitada delituosa: José Roberto Gonçalves de Rezende, Alex Polari de
Alverga, Inês Etienne Romeu, Adair Gonçalves Reis, Alfredo Hélio Syrkis,
Tereza Ângelo e Herbert Eustáquio de Carvalho. Foram processados, julgados
e condenados pelo CEJ da 3ª Auditoria do Exército. O juiz-auditor do feito
foi o Dr. Oswaldo Lima Rodrigues. Foram enquadrados, obviamente, como
249
HISTÓRIAS DE VIDA
incursos na LSN, que previa a pena de morte, uma vez que, da ação delitiva,
resultou a morte do agente de segurança Hélio Carvalho de Araújo. Segundo
a decisão condenatória, Adair, Alfredo, Tereza e Herbert foram condenados
à pena mínima, 15 anos de reclusão, prevista no artigo 28 da LSN (DL nº
898/69); José Roberto, Alex e Inês foram apenados com prisão perpétua
(parágrafo único do citado artigo). Quanto à morte do agente Hélio, a autoria
do disparo fatal foi atribuída a Carlos Lamarca, falecido no curso do processo,
caso contrário, certamente, seria condenado à pena de morte.
Lembro-me, de igual sorte, dos presos políticos trocados pelo
embaixador dos EUA, Charles Elbrick, que eram integrantes dos grupos
denominados AP (Ação Popular), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária)
e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), fato este ocorrido pelos
idos de setembro de 1969.
Por outro lado, o Decreto nº 82.960, de 29/12/78, revogou os Atos
de Banimento de diversos apenados na LSN, dentre outros, que eu me lembre:
Flávio Tavares, José Ortigas, Wladimir Palmeira, Apolônio de Carvalho,
Carlos Fayal de Lira, Daniel Aarão Reis Filho, Fernando Gabeira, Liszt
Vieira, Eliomar Mendes Brito e Nancy Mangabeira Unger. Este decreto foi
chancelado pelo presidente Ernesto Geisel. Armando Falcão era o ministro
da Justiça.
Memória MPM – O senhor chegou a ter algum pedido de pena de morte?
Jorge Luiz Dodaro – Funcionei, por exemplo, em um processo
que versava sobre assalto a Banco, que resultou em morte. Não fui o autor da
denúncia. Acho que foi o estimado amigo e colega Dr. Humberto Augusto
da Silva Ramos (falecido). Produzi, no entanto, as alegações finais, nas que
250
JORGE LUIZ DODARO
desclassificava o parágrafo único (pena de morte) para o caput do artigo 27 da
LSN. Pedi, inclusive, a absolvição de dois envolvidos no episódio criminoso.
O Conselho Especial de Justiça, por unanimidade, acolheu o ponto de vista
ministerial, confirmado, após, em grau de recurso, no STM. A pena imposta,
contudo, foi reduzida.
Eu sempre fui de paz, contra qualquer tipo de violência. Mas era uma
convivência da qual não havia como escapar, porquanto era o ônus do nosso
trabalho. Sustentava, com frequência: “O MPM não persegue o criminoso,
combate o crime; ao criminoso, há de se dar uma oportunidade para se
ressocializar.”. Posso antecipar: embora atuasse como órgão de acusação, não
era um acusador sistemático.
Em um certo julgamento, quando de seu término, um dos acusados
veio me abraçar, mesmo tendo sido condenado a 30 anos de reclusão, porquanto
a pena pedida, originalmente, era de morte. Depois, o Tribunal, em grau de
recurso, reformou a sentença e reduziu a pena. Eu me preocupava com as
provas contidas nos autos para formar a minha convicção. Quando não eram
contundentes, pedia a absolvição.
Memória MPM – Havia casos em que o juiz era pela absolvição e o
senhor pela condenação?
Jorge Luiz Dodaro – Sim, inúmeros. Cito, a título de exemplo, o
caso dos trinta e tantos coronéis anteriormente aludido. O juiz Oswaldo Lima
Rodrigues foi pela absolvição. O Conselho Especial, formado por generais,
votou pela condenação. O resultado final foi de 4 a 1. Acompanharam o MPM.
Memória MPM – Como foi a sua experiência com o jornalismo?
251
HISTÓRIAS DE VIDA
Jorge Luiz Dodaro – Uma época fértil. Uma escola de vida. Tra-
balhei em inúmeras empresas jornalísticas. Tanto do Rio, Diário de No-
tícias, O Paiz (com “z” mesmo), O Dia e O Globo, quanto de São Paulo,
Folha e O Diário Popular – sucursais. Iniciei no Diário de Notícias, um
jornal conceituado na época. Aliás, vale mencionar, tive o privilégio de
ter como colega, também iniciante, o jornalista Ricardo Boechat, só para
citar um, à guisa de ilustração. O foco, à época, era, sem dúvida, a Justiça
Militar, em razão dos processos políticos. Fiz parte da fundação da “Sala
de Imprensa” no STM, credenciado pelo presidente daquela Corte, o mi-
nistro Olympio Mourão Filho. Meu caro Gunter, este segmento na minha
vida profissional é vastíssimo. Recordo-me, com saudade, das viagens que
desfrutei, como jornalista, no Brasil e no exterior. Em nosso país, acompanhava, entre outros, como representante do Diário de Notícias, o ministro
dos Transportes Mário Andreazza.
Memória MPM – O que o senhor tem a nos dizer a respeito dos
advogados com os quais conviveu?
Jorge Luiz Dodaro – Um verdadeiro exército, cultores do Direito.
Uma plêiade de profissionais até hoje respeitados, admirados e reverenciados. É
claro que não me lembro de todos. Além dos advogados de ofício mencionados,
destacarei alguns, notadamente, os radicados no Rio. Vale lembrar, sete
Auditorias, duas da Marinha, duas da Aeronáutica e três do Exército, e o STM
estavam sediados no Rio de Janeiro. Eis, pois, alguns: Lino Machado Filho,
Marcelo de Allencar, Heleno Cláudio Fragoso, Augusto Süssekind Moraes
Rego, Antônio Evaristo de Moraes Filho, Nilo Batista, Alcyone Vieira Pinto
Barreto, Manoel de Jesus Soares, Técio Lins e Silva, Edgard Pinto de Lima,
Antônio Carlos Barandier, Wilson Mirza, Oswaldo Mendonça, Títo Lívio,
252
JORGE LUIZ DODARO
Marcelo Cerqueira, [Heráclito Fontoura] Sobral Pinto, Ilídio de Moura,
Antônio Modesto da Silveira, Eny Raimundo Moreira, João Alfredo Portela,
George Tavares, Paulo Goldrajch, Arthur Lavigne, Humberto Teles e Paulo
Arguelles, pelos quais nutro, até hoje, fraternal amizade. Muitos estão, hoje,
advogando no Tribunal Celestial. Subiram antes do combinado.
Por falar em advogados, na Academia Teresopolitana de Letras eu
ocupo a cadeira nº 15, cujo patrono é o insigne advogado Antônio Evaristo de
Moraes, sobre cuja trajetória fecunda escrevi na Antologia da Academia. Aliás,
um de seus filhos, o Evaristinho, como era conhecido, criminalista, foi sondado
para ser procurador-geral da Justiça Militar no governo do Tancredo/Sarney,
mas ele declinou. O advogado, Dr. George Tavares, que era muito ligado ao
Evaristo, aceitou. O George me chamou para ser o chefe de seu gabinete, mas
recusei, porque não queria sair do Rio de Janeiro naquela época, em razão da
minha mãe idosa.
Memória MPM – E os ministros?
Jorge Luiz Dodaro – Recordo-me, quando ingressei na Justiça
Militar (advogado de ofício) dos seguintes ministros militares, do Exército:
Olympio Mourão Filho, Octacílio Terra Ururahy, Pery Constant Bevilacqua,
Ernesto Geisel. Da Marinha: Valdemar de Figueiredo Costa, Sylvio
Monteiro Moutinho, Mário Cavalcanti de Albuquerque. Da Aeronáutica:
Armando Perdigão, Gabriel Grün Moss e Francisco de Assis Correia de
Mello. Ministros civis: Alcides Vieira Carneiro, João Romeiro Neto, Nélson
Barbosa Sampaio, Eraldo Gueiros Leite, Waldemar Torres da Costa, Ernani
Ayres Sátyro e Souza, Amarílio Lopes Salgado, Jacy Guimarães Pinheiro e
Ruy de Lima Pessôa.
253
HISTÓRIAS DE VIDA
O ministro Alcides Carneiro, notável orador, certa ocasião, ao falar
sobre o erro, assim se manifestou: “Basta que nasça gente, para se ficar sujeito a
erros. Só Deus, que é Pai de todos, não erra. Infelizmente, sua imensa filharada,
que se espalha pelo mundo, não puxou ao Pai.”.
Memória MPM – O senhor fez parte de uma Comissão que elaborou o
anteprojeto da Lei Orgânica do MPU?
Jorge Luiz Dodaro – Sim. Fui indicado pelo então procurador-
-geral da República, Dr. Sepúlveda Pertence, que muito me honrou. Eu era, na
Comissão, o único participante que não residia em Brasília.
Memória MPM – Quem presidia a Comissão?
Jorge Luiz Dodaro – Foi presidida pelo procurador da República, Dr.
Aristides Junqueira. O grupo era formado por ilustres e doutos colegas, a saber:
o Dr. Álvaro Augusto Ribeiro Costa, que representava a Associação Nacional
dos Procuradores da República; o procurador João Pedro Ferraz dos Passos
do MPT, que chegou a procurador-geral; e o hoje ministro do STF, Celso de
Mello, que, à época, era promotor em São Paulo, indicado pelo ministro Saulo
Ramos. Havia um representante do Ministério da Justiça, cujo nome não me
recordo no momento, e mais dois procuradores da República. Trabalhamos por
quatro meses. Foi o embrião da Lei Orgânica. Depois, o Dr. Pertence nomeou
uma Comissão de subprocuradores-gerais da República para enxugar o texto
que hoje rege a instituição (Lei Complementar nº 75, de 20/5/93 – Estatuto
do Ministério Público da União).
Gostei muito de ter participado dessa Comissão. Foi um
aprendizado. Acho que tinha sintonia com meu temperamento, porque sempre
254
JORGE LUIZ DODARO
fui um agregador. Não tenho inimigos, pelo menos que eu saiba. Nunca fiz
mal a ninguém, em lugar nenhum! Se, porventura, prejudiquei alguém, foi
inconscientemente. Eu trato todo mundo igual.
Memória MPM – No que a Lei Orgânica avançou?
Jorge Luiz Dodaro – Os avanços foram expressivos, consistentes.
A Lei Orgânica nº 75/20.5.93, definiu, dentre outras conquistas, inúmeras
normas e regulamentos, tais como: os princípios e funções institucionais, os
instrumentos de atuação, o controle externo da atividade policial, a defesa
dos direitos constitucionais, garantias e prerrogativas, autonomia, estrutura e
a carreira. E mais, somente se poderá nomear, como chefe do MP federal,
funcionários da carreira. Antigamente, permitia-se ao presidente da República
nomear alguém de fora dos quadros ministeriais, como ocorreu na Procuradoria
da República e na Procuradoria do MPM; eram nomeados no vernáculo pátrio
e exonerados em latim: ad nutum [risos]. Com o advento da Constituição
Federal de 88, repetido na Lei Orgânica do MPU de 93, tal regra não será
mais possível aplicar.
A Lei Orgânica aperfeiçoou, de igual sorte, o Colégio de Procuradores,
o Conselho Superior, as Câmaras de Coordenação e Revisão, a Corregedoria-Geral, vencimentos e vantagens, a disciplina, deveres, vedações e sanções. Em
síntese, operou-se um avanço digno da instituição ministerial em um todo.
O Ministério Público brasileiro, como bem lecionou o professor Alfredo
Valadão, que conheci, é, sem dúvida, o “Quarto Poder”. Ouso acrescentar: tem
prerrogativas de Poder sem ser Poder.
Memória MPM – E os congressos que a Associação do Ministério Público
do Brasil organizou na Europa?
255
HISTÓRIAS DE VIDA
Jorge Luiz Dodaro – Promovemos dois congressos: em Roma e
na Dinamarca. O primeiro foi presidido pelo procurador da República, Dr.
Samuel Auday Buzaglo, dileto amigo e irmão, que tive a honra de suceder na
presidência da Associação do Ministério Público do Brasil – AMPB, fundada
em 24/06/57. O segundo congresso, eu presidi.
Memória MPM – E o ciclo de palestras no Comando Militar Leste?
Jorge Luiz Dodaro – Ajudei a fundar. O ciclo destinava-se a
estudantes universitários. A fim de que o Ministério Público Militar fosse
melhor conhecido, convidei o Dr. Couto como nosso representante, o qual
prontamente aceitou e pontificou com maestria. Com a transferência do
iluminado colega para Brasília, eu o substituí.
Além das palestras inerentes à Justiça Militar, ministradas por
cultores do Direito Militar (promotores, magistrados, delegados e militares),
os participantes assistiam a um julgamento na 3ª Auditoria. Fazia parte do
programa, ainda, visitas a um Forte sediado no Rio de Janeiro e à AMAN – a
Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende/RJ. O ciclo em comento,
Estudos sobre Direito Penal Militar, encontra-se na sua XXXVII edição.
Memória MPM – Como eram as condições de trabalho, os proventos,
especificamente?
Jorge Luiz Dodaro – A propósito, lembro de uma passagem
peculiar, em torno dessa difícil questão dos proventos, que aconteceu no
Ministério Público do Rio de Janeiro. O governador do Estado do Rio de
Janeiro, [Antônio de Pádua] Chagas Freitas, era associado da AMPB e da
Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – AMPERJ.
256
JORGE LUIZ DODARO
Certa ocasião, o procurador Leôncio de Aguiar Vasconcellos, presidente
da Associação carioca, e que também era da diretoria da entidade que eu
presidia (AMPB), veio pedir os meus préstimos para que interviesse junto
ao governador, no sentido de tentar reverter um mal-estar que se criara
por causa de sua expulsão da entidade carioca. Eles haviam entrado numa
espécie de “vigília institucional”, para pressionar o governo pelo aumento
dos proventos. Como se criou um impasse, a Associação resolveu expulsar
o Chagas Freitas do quadro de associados. Assim, a pedido do Leôncio, fui
falar com o Chagas. Ele amarrou a cara e não anuiu às nossas ponderações.
Acabou não dando o aumento e não voltou para a AMPERJ; continuou,
contudo, na AMPB. Relato esse episódio só para salientar a penúria que
vivíamos em relação aos nossos vencimentos.
No que pertine a nós, corremos atrás, também, no sentido
de melhorar os nossos proventos tão defasados à época. Partimos, eu e
alguns diretores para o Planalto em busca de uma solução benigna para o
desconforto salarial que passávamos então. Fomos recebidos pelo presidente
da República, general João Baptista Figueiredo, o qual, depois de um
saudável, produtivo e descontraído colóquio, sempre solícito, recomendou
que o nosso pleito fosse encaminhado ao chefe da Casa Civil, ministro
[ João] Leitão de Abreu. Assim agimos. O chefe de Gabinete do ministro
era o eminente e douto colega do MPF, Dr. José Francisco Rezek.
Entrementes, recorremos, com igual objetivo, a um estimado
amigo, Dr. Arthur de Castilho, subprocurador-geral da República, vice-
-presidente da AMPB (um dos palestrantes brasileiros no simpósio
promovido pela Entidade em Roma/Itália) e secretário-geral do ministro
da Justiça [Ibrahim] Abi Ackel, que muito nos ajudou. O aumento, em
257
HISTÓRIAS DE VIDA
forma de “gatilho”, afinal veio [risos]. Foi um dos últimos atos presidenciais.
O alívio foi geral, alegria total!
Memória MPM – No que consistia o mecanismo do gatilho?
Jorge Luiz Dodaro – A magistratura saiu na frente. Conseguiu
reverter o quadro de magreza salarial que vivia, por meio de um artifício
denominado “efeito cascata”, que consistia no somatório de quinquênios
laborados no efetivo exercício da função. Nos primeiros cinco anos, 5% de
aumento; dez anos, 5% mais 10%, e assim, sucessivamente, até os trinta anos.
Se a memória não me falha, era isso.
O “gatilho”, por seu turno, não era aumento e sim uma correção ou
ajuste compensando a perda salarial por conta da inflação. Cada mês, vinha no
contracheque um valor diferenciado, a maior, naturalmente. Bendito “gatilho”!
Veio em boa hora [risos].
Memória MPM – O senhor chegou a participar da mobilização pela
Constituinte?
Jorge Luiz Dodaro – Sim, intensamente. Havia muitas reuniões
e debates. Eu e todo o MP do Brasil (federal e estadual) fomos incansáveis
na Constituinte. Cada MP trabalhava na bancada de seu Estado de origem,
visitando os constituintes (senadores e deputados), reivindicando os nossos
anseios. Valeu o esforço! Pode-se dizer, o MP do Brasil, hoje, é conhecido
pela sua sólida estrutura como: antes e depois de 88. Outrora, um MP,
embora eficiente, sem o merecido reconhecimento. Proventos incompatíveis
com o honroso múnus exercido pelos valorosos membros do Parquet. Os
concurseiros aprovados, tanto para o MP quanto para a magistratura, é claro,
258
JORGE LUIZ DODARO
optavam pela segunda, uma vez que pagava mais. Hoje os ventos mudaram
o curso da história.
No passado não muito distante, o MP era um barco sem rumo, perdido
num mar revolto, quase à deriva. Hodiernamente, navega em mares serenos e
ancorado em porto seguro. Agora, só nos resta, cada vez mais, aperfeiçoar as
incontáveis conquistas alcançadas e zelar com denodo para que continue cada
vez mais forte, razão de ser da perenidade do Ministério Público.
Ainda no curso da Constituinte, tentei, mas não consegui, por falta
de apoio político, unir o Ministério Público da União por meio de um concurso
único de ingresso. O procurador-geral da República, Inocêncio Mártires
Coelho até abraçou a ideia, mas ela não prosperou.
Memória MPM – O senhor concorreu para o cargo de procurador-geral?
Jorge Luiz Dodaro – Sim. Fui o segundo mais votado, entretanto, o
procurador-geral da República, Dr. Aristides Junqueira, acabou conduzindo o
primeiro da lista tríplice, o procurador Kleber de Carvalho Coêlho.
Memória MPM – E qual era sua plataforma de campanha?
Jorge Luiz Dodaro – Estávamos vivendo ativamente o momento
de valorização institucional (com a Constituição Federal e a Lei Orgânica).
Com a edição desses dois institutos, surgiu outro Ministério Público. A
época anterior foi terrível, com os proventos baixíssimos – eu ainda tinha
desconto pela não exclusividade. Não tínhamos gabinete. Dividíamos com a
defesa uma saleta cedida pela Auditoria. Quem datilografava as denúncias,
ou qualquer outra peça, era eu [risos]. Não tínhamos auxiliar. O papel
era sem timbre. Não tínhamos absolutamente nada. Não dispúnhamos
259
HISTÓRIAS DE VIDA
de carros oficiais, ou motoristas. Vivíamos assoberbados de processos, em
função dos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional e no CPM
(deserção, insubmissão, etc.). Hoje, a situação se inverteu, pois há excelente
infraestrutura e diminuiu o volume de trabalho. Como corregedor-geral,
visitei algumas Procuradorias e constatei que, de certa forma, já se pode
trabalhar com bastante conforto. Os antigos, como eu, sofreram, mas jamais
perderam o entusiasmo.
Participei, ativamente, do debate e da mobilização para a conquista
desse novo patamar. De forma que, quando surgiram as eleições, entrei
embalado na campanha, respeitando, é óbvio, os concorrentes.
Oportuno lembrar um outro episódio ocorrido na Constituinte:
para garantir a não exclusividade ao MP, ficou estabelecido, na Constituição,
que todos aqueles que haviam ingressado antes de 1988 poderiam optar se
seriam ou não alcançados pela vedação ao exercício de outras atividades,
como a advocacia. O debate interno em torno dessa questão era vivo, pois
parte considerável da CONAMP entendia que não deveria haver exceção às
vedações. Externamente, o Judiciário não aceitava a equiparação pertinente
às prerrogativas. Os delegados, paralelamente, pressionavam para terem as
mesmas condições que os membros do Ministério Público. E havia disputas
por atribuições, algo que repercute ainda hoje, como nessa malfadada
PEC-37, felizmente sepultada. Contudo, não se pode descuidar. Prevenir
acidentes é dever de todos [risos]. Precisamos estar vigilantes. Então, foi
necessário, naquele momento, aparar as arestas internas para estarmos ainda
mais unidos. Conseguimos. Sobre a vedação, a matéria consolidou-se no
“Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” da nossa Lei Maior
(Art. 29, § 3º).
260
JORGE LUIZ DODARO
Enquanto a CONAMP tinha como local, para a concentração
dos colegas, o gabinete do deputado Ibsen Pinheiro, eu e outro promotor do
MP carioca, Dr. Antero Gaspar, nos reuníamos no gabinete do presidente da
Câmara, deputado Ulysses Guimarães, porque a secretária do deputado tinha
um sobrinho que era do MP, que também advogava.
Memória MPM – Fale-nos sobre as medalhas conseguidas na sua
passagem no MPM.
Jorge Luiz Dodaro – Foram inúmeras. Não por mérito do outorgado,
mas em razão da generosidade dos outorgantes. Caso a memória não me traia,
eis algumas: Medalha do Mérito Tamandaré, Colar do Mérito Judiciário/TJ/
RJ, Amigo da Marinha, Medalha Marechal Zenóbio da Costa, Medalha Mérito
Santos-Dumont, Ordem do Mérito Naval, Ordem do Mérito Judiciário Militar
(Alta Distinção), Medalhão Comemorativo do Bicentenário da JMU, Ordem do
Mérito Aeronáutico, Comenda Visconde de Mauá (Grau de Cavaleiro), Ordem do
Mérito MPM (Alta Distinção), Medalha do Pacificador (Exército), Ordem do
Mérito Militar (Grau de Cavaleiro), Ordem do Mérito Militar (Grau de Oficial),
Ordem do Mérito Judiciário Militar (Distinção), Colaborador Emérito do Exército
(CML), Colar do Mérito do Rio de Janeiro, Colar do Mérito Tamandaré.
Memória MPM – Além do Elos e da Pro Arte, o senhor integra outras
instituições?
Jorge Luiz Dodaro – Sim, além do Elos Clube e da Pro Arte, ambos
de Teresópolis, faço parte de algumas. Dentre outras, o Instituto Cultural
Sanmartiniano del Brasil (Consulado-Geral da República Argentina), Lions
Clube Rio Comprido, Academia de Letras, Ciências e Artes – ALAC,
Academia Luso-Brasileira de Letras – ALBL, Academia Teresopolitana
261
HISTÓRIAS DE VIDA
de Letras – ATL, Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, Asociación
Latino-Americana de Derecho Aeronáutico y Espacial – ALADA, Casa do
Estudante do Brasil, Sociedade Brasileira de Direito Comparado e União
de Juristas Católicos.
Memória MPM – E a Subprocuradoria-Geral?
Jorge Luiz Dodaro – A Subprocuradoria-Geral foi a consagração.
Além de exercer o múnus na fase recursal, participar de sessões no STM, oficiei
junto à Câmara de Coordenação e Revisão, tendo como pares os nobres e doutos
colegas: Dr. Péricles (coordenador) e a Dra. Hermínia Célia Raymundo, vogal
como eu. Uma experiência memorável. Participei, de igual sorte, das sessões
do Conselho Superior do MPM. Falo de tudo isso com muita saudade. Foi
uma rica passagem. A “PEC da bengala” não me beneficiou. Paciência! Com a
minha aposentadoria, contabilizo, como consolo, que a “fila” andou… [risos].
Creio que contribuí, ainda que modestamente, para o engrandecimento do
MPM. A propósito, ouso acentuar: eu não entrei para o MPM, o MPM é que
entrou em mim, e continua até hoje, mesmo aposentado, uma vez que as ideias
e os sonhos continuam latentes. Caso venha a “PEC da muleta”, quem sabe, eu
seja alcançado... [risos].
Não poderia desfrutar de desfecho mais sublime para minha
carreira: ser coroado com o privilégio de oficiar no STM e na Procuradoria-
Geral, ambos integrados por seletas mentes luminosas, que compõem um
verdadeiro manancial de cultura e de conhecimento de nosso Ordenamento
Jurídico Pátrio.
Memória MPM – E a advocacia depois da aposentadoria?
262
JORGE LUIZ DODARO
Jorge Luiz Dodaro – Vai relativamente bem. Não tão agressiva
como outrora. Gosto de advogar, excetuando-se a área Trabalhista, que
advogo só para amigos. Desativei, praticamente, meu escritório. A meta,
hoje, é só inventários. Não há audiência; ocorre só quando há interditos. E
mais, quando não há testamento, menores ou incapazes, pode ser resolvido
na esfera extrajudicial. Advogo desde que entrei na Justiça Militar. Minha
esposa reclama que, mesmo aposentado, eu não desacelerei [risos].
Memória MPM – Como foi sua vivência na CONAMP?
Jorge Luiz Dodaro – A CONAMP, antes CAEMP, foi fundada
nos idos de junho de 1971, e seu primeiro presidente foi o procurador-geral
do MP/SP, Oscar Xavier de Freitas, que esteve à frente da instituição por duas
gestões (71/73 e 73/75). Sua indicação foi fortemente sugerida, com êxito,
pelo procurador José Cupertino Gonçalves, então presidente da Associação
Mineira do Ministério Público, que recusara o cargo, sob o argumento de
que a Associação Mineira não tinha como bancar a presidência de uma
entidade de âmbito nacional, lançando, assim, por reconhecer no indicado,
Oscar, entre outros atributos, sua experiência e liderança.
Vale assinalar, no entanto, que a ideia de se criar a CAEMP
surgiu no Rio de Janeiro, em Teresópolis, onde resido atualmente. Naquele
momento, veio a lume o nome de Cupertino, a quem reverencio pela sua
franqueza, lealdade e, sobretudo, amor ao MP, em prol de novos rumos
da instituição. Daí para a frente, a CAEMP começou a se estruturar,
participando ativamente de memoráveis lutas para consolidar o Ministério
Público, cujos reflexos são perceptíveis até os dias atuais, mercê de seus
valorosos membros. O segundo presidente da CAEMP foi o procurador
263
HISTÓRIAS DE VIDA
Ferdinando de Vasconcellos Peixoto, do MP/RJ, nos biênios: junho/75 a
junho/77, e junho/77 a junho/79.
Em 1979, pela primeira vez, ocorreu uma disputa eleitoral. Dois
candidatos: o procurador Joaquim Cabral Netto, representante da Associação
mineira, e o procurador José Pereira da Costa, da Associação goiana. Foi
eleito o enciclopédico e carismático Cabral: sabe tudo sobre o Ministério
Público!
Com o ingresso de entidades de classes do ramo da União
(República, Militar, Trabalho e a Associação do Ministério Público do Brasil,
que honrosamente presidi), o Estatuto da CAEMP foi aperfeiçoado, visando
a acolher os novos associados.
Memória MPM – E os biênios seguintes à presidência do Cabral?
Jorge Luiz Dodaro – No biênio seguinte, ainda sob a égide da
CAEMP, a presidência foi exercida pelo Pereira, o qual foi sucedido pelo
promotor Luiz Antônio Fleury Filho, do MP/SP (biênios 83/85 e 85/87), que
se tornou governador do Estado de São Paulo. E por aí vai.
Memória MPM – Como se deu a mudança da sigla CAEMP para
CONAMP?
Jorge Luiz Dodaro – Em agosto de 1978, na cidade de Goiânia/
GO, na segunda administração de Ferdinando Vasconcellos, o Estatuto
da CAEMP sofreu nova reforma, com o propósito de modificar o nome
da entidade para Confederação do Ministério Público do Brasil, embora
já, naquela oportunidade, houvesse surgido a sugestão de mudar sua
denominação para Confederação Nacional do Ministério Público, com a
264
JORGE LUIZ DODARO
sigla CONAMP, conquanto mantida, estatutariamente, a sigla CAEMP. A
questão só foi definitivamente dirimida na presidência do Fleury, em 1984.
Equivale dizer, desaparecia a indicação de que ela – CAEMP – se constituiria
tão somente em órgão de representação estadual.
Mais tarde, por proposta do procurador Cláudio Barros Silva, do
MP/RS, em uma Assembleia da CONAMP realizada no Hotel Nacional, em
Brasília, o Estatuto foi novamente alterado para consolidar a denominação
da entidade para Associação Nacional dos Membros do Ministério Público,
conservando-se inalterada a sigla CONAMP.
Memória MPM – O senhor se lembra de outros que tenham presidido
a CONAMP?
Jorge Luiz Dodaro – Muitos outros ilustres e doutos colegas do
Parquet assumiram, com lucidez e eficiência, os quais conduziram com firmeza
os destinos da entidade. Depois do Fleury surgiram: Antonio Araldo Ferraz
Dal Pozzo, do MP/SP; Paulo Moura, do MP/SE; Voltaire de Lima Marques,
do MP/RS; Milton Riquelme de Macedo, do MP/PR; Aquiles de Jesus
Siquara Filho, do MP/BA; Marfan Martins Vieira, do MP/RJ; João de Deus
Duarte Rocha, do MP/CE; José Carlos Cosenzo, do MP/SP; César Bechara
Nader Mattar, do MP/PA; e Norma Angélica Cavancanti, do MP/BA (atual
presidente). Mentes luminosas, incansáveis no trato dos assuntos inerentes ao
Ministério Público do Brasil. Que Deus proteja a todos!
Memória MPM – O senhor fez parte da diretoria da CONAMP?
Jorge Luiz Dodaro – Sim, de algumas, a saber: na gestão do Dal
Pozzo, 87/89, representando a Associação do Ministério Público do Brasil; sob
265
HISTÓRIAS DE VIDA
a égide do Voltaire, 91/93, pela AMPM; e, depois, na presidência do Riquelme,
93/95. Outros colegas, como o Couto e o Marcelo também fizeram parte da
diretoria da CONAMP.
Ainda sobre o tema, relembro, jubiloso, que foi durante a minha
gestão na presidência da AMPM (hoje ANMPM), e da AMPB, que
a nossa entidade de classe se filiou à CONAMP, e continua até hoje.
E mais, de certa forma, como já destaquei, com o nosso ingresso e de
outras Associações Federais do Ministério Público, a CAEMP virou
CONAMP.
O Fleury, como presidente da CONAMP, realizou um excelente
mandato. Foi incansável na Constituinte. Mais tarde, como governador do
Estado de São Paulo, convidou todos os ex-presidentes das Associações
ligadas à CONAMP para um almoço no Palácio dos Bandeirantes. Ele foi
muito elegante conosco.
Mudando de um polo a outro, participei, recentemente, da banca
avaliadora do concurso promovido pelo CNMP: Prêmio CNMP, objetivando
premiar os programas e os projetos do MP brasileiro que mais se destacaram
na concretização e alinhamento do Planejamento Estratégico Nacional.
Fiquei impressionado com a qualidade dos trabalhos produzidos pelos
membros do Ministério Público de todo o país. Descortinei uma visão
macro da instituição ao encarar os desafios contemporâneos que devem ser
enfrentados e superados pelo MP brasileiro para cumprir seu importante
papel constitucional, o de agente de transformação social, dentre tantas
outras iniciativas.
Memória MPM – E os seus colegas no curso de sua jornada pelo MPM?
266
JORGE LUIZ DODARO
Jorge Luiz Dodaro – Cometeria imperdoável injustiça ao
mencionar nomes, pois não alcançaria todos os que atuaram ao meu
lado nesse exuberante cenário. Seus exemplos estimulam e fortalecem
a alma.
Credito-me, despido de qualquer vaidade, participação efetiva
em prol do MPM, desde a fundação da Associação do Ministério Público
Militar, de que fui presidente, no segundo mandato, e, reconduzido, mercê
da generosidade dos companheiros. Não desconhecem, sobretudo os mais
antigos, minha participação efetiva na defesa dos interesses da classe, quer
quando da elaboração da Lei Orgânica, que hoje nos rege, quer quando,
juntamente a outros, defendemos, para a dignidade do cargo e do exercício,
vencimentos condignos.
No entanto, não só aí participamos das lutas em prol da dignidade
do cargo, pois que, como tantos outros, cerramos fileiras para a conquista,
entre outras, das prerrogativas que hoje ornam a instituição.
Tive, de igual sorte, a indescritível honra de ser alçado ao rol
dos subprocuradores-gerais da Justiça Militar, em quem enxergo valiosas
virtudes: integridade, determinação, honradez, dentre inumeráveis outras.
Mas, sobretudo, a mais nobre das qualidades: a amizade, cujo término não
se dará neste momento, mas num futuro, oxalá muito distante, quando não
mais encontrar-se-á em minhas mãos o poder de decidir acerca de meu
trilhar.
Como ápice da honraria, fui designado – lamentavelmente, por
um curto período – a exercer o cargo de corregedor-geral do Ministério
Público Militar, função altamente gratificante, pois imprescindível à
267
HISTÓRIAS DE VIDA
convergência de valores e esforços, capazes de redundar na otimização
e engrandecimento da instituição; e, ressalto, a atuação correicional
encontra-se diametralmente oposta ao mero ato de destaque ao erro.
Prevaleço-me do momento para expor meus sentimentos de
gratidão por tudo o alcançado em minha travessia pelas águas plácidas
e cristalinas do Ministério Público Militar. Em primeiro plano, ao
Grandioso Criador, nas mãos afáveis de quem repousam nossos desígnios;
à minha amada esposa, por toda a dedicação, carinho e paciência investidos,
dando-me conforto e suportes emocional e espiritual, ao passo que me
empenhava em meu mister; à miríade de colegas, que, em muitos casos,
tornaram-se verdadeiros irmãos, ao manifestarem seu espírito cooperador
e desbravador no exercício do múnus público, e, por fim, mas não menos
importante, aos servidores que, abnegadamente, despenderam seu tempo,
energia e habilidades em prestar auxílio valioso, sem o qual não seria
possível a concretização dos objetivos institucionais.
Não se trata do cerrar da cena, ocorre apenas o alvorecer de uma
nova fase. Os sentimentos que ora experimento são nitidamente polares: vão
da excruciante dor da despedida ao êxtase da certeza do dever cumprido.
Enfim, lanço mão da vasta sabedoria do Apóstolo São Paulo: “Combati o
bom combate. Terminei a carreira. Guardei a fé.”. Meu caro Gunter, parece até
um discurso, e é! Mas, acredite, são palavras ditas pelo coração.
Memória MPM – O senhor gostaria de deixar algo mais registrado?
Jorge Luiz Dodaro – Apenas acrescentar, com toda a humildade, que
fui uma semente nessas mais de quatro décadas de Ministério Público Militar e,
se me permite um toque poético, para concluir, cabem aqui os versos de Henfil:
268
JORGE LUIZ DODARO
“Se não houver frutos,
valeu a beleza das flores.
Se não houver flores,
valeu a sombra das folhas.
Se não houver folhas,
valeu a intenção das sementes.”
269
MARIA MARLI CRESCÊNCIO PEREIRA
Entrevista realizada por Gunter Axt, em 5 de julho de 2015, em
Fortaleza/CE, na residência da depoente.
270
Maria Marli Crescêncio Pereira nasceu em 4 de abril de 1936, em Acaraú, no
Ceará. É filha de Antônio Raimundo Pereira e Joaquina Rodrigues dos Santos.
Casou-se, em 1980, com o advogado Luiz Crescêncio Pereira, falecido em
1985. Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Ceará, em 1963.
Em julho de 1964, foi nomeada adjunta de promotor de Justiça da comarca de
Boa Viagem, cargo do qual foi exonerada, a pedido, em abril do ano seguinte.
Advogou no Rio de Janeiro. Ingressou no Ministério Público Militar como
substituta de procurador de segunda categoria da Justiça Militar, designada
em 30 de maio de 1972. Atuou, primeiramente, junto à Procuradoria da 1ª
Auditoria, e, posteriormente, da 2ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição
Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Em 20 de junho de 1980, foi removida,
a pedido, para a 10ª CJM, em Fortaleza. Em 1995, foi promovida ao cargo de
procuradora da Justiça Militar. Em 30 de março de 1999, aposentou-se.
271
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – De onde a senhora é natural?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Nasci em Acaraú, no Ceará, em
4 de abril de 1936. É uma praia. Uma cidade pequena, cuja economia era
basicamente voltada para a pesca.
Memória MPM – O que faziam os seus pais?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Eram aposentados. Tinham um
pequeno comércio, uma mercearia.
Memória MPM – A senhora fez os estudos em Acaraú?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Me formei [em 1951 na Escola
Rural Normal Virgem Poderosa]. Depois, continuei meus estudos na [Escola
Estadual do Ceará], em Fortaleza. Meus pais se mudaram para a Capital e
os acompanhei. Prestei vestibular para Direito e me formei na Universidade
Federal do Ceará em 1963.
Memória MPM – Por que a senhora escolheu o Direito?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Era o que vários colegas estavam
escolhendo. Não havia muitas opções de estudo superior na época. Medicina
eu não queria, porque não gosto de injeções [risos]. Então, “fui na onda”. Foi
depois que passei a gostar.
Memória MPM – E havia outras moças na Faculdade de Direito?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Já havia outras, sim. Tornaram-se
advogadas atuantes, desembargadoras até. Eu só cheguei a ser promotora: não
quis ir além, nem ficar mais.
272
MARIA MARLI CRESCÊNCIO PEREIRA
Memória MPM – A senhora se recorda dos professores?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Não muito dos seus nomes,
infelizmente. Estou meio esquecida já. Mas havia bons professores. Gostei
muito de minha época de estudante.
Memória MPM – E depois de formada, a senhora advogou?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Fui nomeada promotora
de Justiça da comarca de Boa Viagem [em 7 de julho de 1964]. Mas pedi
exoneração no ano seguinte.
Memória MPM – Por quê?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Passei a ter outros interesses.
Quis ir para o Rio de Janeiro.
Memória MPM – Como a senhora chegou ao Ministério Público Militar?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Foi por meio de uma indicação,
do Dr. José Manes Leitão. Foi assim: abrira um concurso para promotor de
Justiça em Niterói. Resolvi me inscrever, pois um emprego público me daria
mais garantias. Eu estava trabalhando num escritório de advocacia. Descobri
o edital apenas numa quarta-feira e as inscrições se encerravam na sexta-feira.
Me apressei para conseguir a documentação.
Na Auditoria da Aeronáutica, precisava retirar um atestado. O rapaz
que atendia lá me disse para voltar noutro dia, porque naquele momento estava
com muito trabalho e seria impossível eu retirar o atestado. Me conformei
e fui saindo do prédio aos prantos. Estava chorando, sozinha, porque era
evidente que perderia aquela oportunidade. No elevador, chegou um senhor e
273
HISTÓRIAS DE VIDA
perguntou: “Por que a moça está chorando?”. Não sabia quem era, mas contei a
história, admitindo, inclusive, que tinha sido um desleixo meu, porque deixara
tudo para a última hora – é que eu realmente só ficara sabendo do edital na
última hora. Então ele me perguntou: “Mas o rapaz não lhe deu a certidão?”.
“Não, infelizmente, e hoje é o último dia.”. “Vamos voltar lá, me mostre quem
foi!”. “Não, pelo amor de Deus, não quero ninguém com raiva de mim!...”. Esse
senhor era o procurador José Manes Leitão.
Afinal, voltamos lá, ele tirou satisfação do rapaz e pediu a certidão
para já. Sentei em uma cadeira e fiquei esperando. Num instante estava com
a certidão. Agradeci e saí correndo, me desculpando pela pressa, porque
o prazo estava se esgotando. O procurador pediu-me para dar notícias,
depois, do resultado.
Com isso tudo, acabei perdendo a barca. Peguei a próxima, atravessei
a baía, mas quando cheguei ao local, as inscrições tinham acabado de encerrar.
Telefonei, depois, para o Dr. Manes Leitão para contar: “Olhe, não deu certo.
Quando cheguei, a última pessoa já havia sido atendida.”. Ele disse para eu
ligar novamente para ele na quarta-feira. Quando liguei, me pediu para ir à
Auditoria. Fui lá e ele me contou que cada procurador poderia apresentar um
candidato para substituto e que se eu quisesse, me indicaria. Achei que seria
uma boa. Veja só, ele nem me conhecia... Foi uma pessoa mandada por Deus!
Fiquei tão contente! Uma colega chegou a comentar que ele poderia estar com
segundas intenções. Não era nada disso: sempre foi muito respeitador, muito
distinto. Enfim, protocolei a papelada e esperei.
Naquele tempo, não estavam fazendo concurso porque tinham
medo de infiltração comunista. Fizeram um rastreamento tremendo na minha
274
MARIA MARLI CRESCÊNCIO PEREIRA
vida. Levantaram a minha trajetória desde o primário. Queriam saber se eu
participara do movimento estudantil, mas nunca tive nenhuma relação.
Passou quase um ano. Um dia, eu estava no carro – porque pegava
carona de vez em quando com um colega advogado que morava na mesma
rua que eu – e ele ouviu meu nome no rádio, na Voz do Brasil! Estávamos
conversando e ele apenas ouviu meu nome: Maria Marli Pereira – esse era
meu nome, pois ainda não era casada. Eu disse: “Como?”. Ficamos atônitos,
porque não sabíamos qual era o motivo. Mas como uma informação saíra com
um erro, no mesmo bloco, repetiram todo o bloco de notícias. Veja só! Aí
conseguimos entender o que haviam dito sobre mim. Era minha nomeação!
No dia seguinte fui à Auditoria falar com o Dr. Manes, que me disse
para esperar o Diário Oficial. A nomeação foi publicada em seguida. Eu tinha
um mês para assumir. Ele disse para assumir logo, para não perder o salário.
Foi o que fiz. E lá fiquei.
Memória MPM – A senhora, então, atuou no Rio de Janeiro?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim. De vez em quando, contudo,
ia para algum outro Estado, em substituição, apenas. Mas era raro.
Memória MPM – Mas a senhora não atuou em Fortaleza?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim, mais tarde. Minha mãe já
estava com uma certa idade. Assim, propus a um colega fazer uma permuta.
Ele aceitou.
Memória MPM – E o período em que a senhora trabalhou no Rio de
Janeiro, como foi?
275
HISTÓRIAS DE VIDA
Maria Marli Crescêncio Pereira – Quando aceitei o convite e a
indicação do Dr. Manes não imaginava tudo o que estava acontecendo. A
gente sabia algo pelas notícias, mas na Auditoria havia um volume grande
de processos relacionados à Lei de Segurança Nacional. Fiquei impressionada
com os assaltos a banco, como os sequestros...
Houve alguns casos violentos. Lembro que um soldado da PM
morreu num assalto a banco [em 1975]. No ano seguinte, um agente de
segurança de uma agência no Meier também morreu num assalto. Acho que
julgamos tantos casos de assalto a banco que esse tipo de crime foi erradicado,
pelo menos por um tempo. Foi uma época muito complicada.
Também havia, eventualmente, estudantes que, em função daquela
euforia da juventude, deixavam-se envolver com certas coisas... Havia, ainda,
alguns crimes envolvendo militares. Poucos.
Eu procurava desempenhar o meu papel da melhor forma possível.
Normalmente denunciava, mas pedi vários arquivamentos. Quando achava
que as provas eram inconsistentes, pedia arquivamento...
Memória MPM – Quando a senhora pedia arquivamento, alguém
reclamava?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Não, sempre respeitaram minha
posição, tanto os colegas, quanto os juízes e os militares.
Memória MPM – E as suas denúncias?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Eu tinha muito cuidado com a
formulação das denúncias. Procurava reunir todas as provas necessárias para as
276
MARIA MARLI CRESCÊNCIO PEREIRA
sustentar. Houve um processo [em 1975] em que denunciei [quinze] pessoas
envolvidas em atividades subversivas relacionadas ao Partido Comunista no
qual o juiz entendeu que não havia provas suficientes para sustentar a denúncia
contra dois dos réus. Mas era muito raro de isso acontecer. Depois de julgado,
em caso de condenação, normalmente, os advogados apelavam. Às vezes o
Tribunal modificava as sentenças, mas geralmente confirmava o que se havia
decidido nas Auditorias.
Memória MPM – A senhora se lembra dos casos em que atuou?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Já faz tanto tempo... Praticamente
já não recordo mais, não.
Memória MPM – O deputado Marco Antônio Tavares Coelho passou
pela senhora?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim! Um deputado federal, pela
Guanabara, ligado ao Partido Comunista, que havia sido cassado... Tinha sido
dado como foragido, mas foi preso em São Paulo. Requisitei que fosse ouvido
em nossa Auditoria. Mas creio que foi julgado em São Paulo.
Memória MPM – Havia casos que repercutiam na imprensa?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim, alguns eram bem rumorosos.
Em especial, esses assaltos a banco, ou os processos envolvendo os militantes do
Partido Comunista, como no caso desse parlamentar. A Auditoria estava sempre
cheia de jornalistas. Acompanhavam tudo. Mas eram muito respeitadores,
nunca atrapalharam nosso trabalho, tampouco nos pressionavam para obter
informações. De vez em quando me perguntavam o que eu achava, sobre minha
estimativa de resultado da sessão... Eram educados, não perturbavam.
277
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – A senhora se lembra dos advogados, dos promotores e
dos juízes que atuavam na Auditoria?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Lembro-me de alguns. Já
estou meio esquecida... Eram advogados famosos, a gente ficava impressionada! Recordo-me do Heleno Fragoso... do Evaristo de Moraes... O
Heleno me parecia muito tímido. Era engraçado, porque era um homem
tão famoso... Havia também bons advogados de ofício. Aprendi muito com
aqueles advogados.
Dos colegas, lembro-me da Dra. Marly Gueiros, respeitada e famosa.
O Jorge Luiz Dodaro, muito querido, quero bem ele. O procurador-geral era
o Dr. Ruy de Lima Pessôa... Acho que depois dele veio o Dr. Milton Menezes
[da Costa Filho].
Memória MPM – Alguma vez a senhora recorreu?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Aconteceu, mas poucas vezes.
Com aqueles advogados famosos e tão importantes a gente precisava ter
cuidado e respeito. Então, eu pensava bem antes de recorrer.
Memória MPM – Aconteceu de denunciados serem absolvidos?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim, acho que algumas vezes,
embora eu, logicamente, procurasse sustentar a acusação com firmeza. Mas
isso faz parte do trabalho, nem sempre o promotor vence. Lembro-me de um
grupo de assaltantes a banco que foi absolvido: esses, que se envolveram no
assalto a uma agência no Meier. O advogado encontrou atenuantes que não
estavam no inquérito e logrou o convencimento do Conselho.
278
MARIA MARLI CRESCÊNCIO PEREIRA
Memória MPM – Como era a rotina de trabalho? Tinha muito trabalho?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Variava. Tinha épocas em que
ficávamos sobrecarregados, sobretudo quando eram processos volumosos, com
muitos réus. Em outras épocas, era tranquilo, com menos serviço. Creio que no
final dos anos 1970 diminuiu o volume de serviço.
Memória MPM – Chegavam até a senhora denúncias de maus-
-tratos aos presos?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Não. Eu me detinha aos autos, ao
inquérito, onde nada constava a esse respeito. Os advogados, eventualmente,
mencionavam essas questões, mas a gente achava que era parte da estratégia
de defesa.
Memória MPM – Alguma vez a senhora se sentiu ameaçada, ou
constrangida?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Não, jamais. Nunca sofri ameaças.
Também não sofri pressões.
Memória MPM – E como era ser uma mulher, promotora, na
Justiça Militar?
Maria Marli Crescêncio Pereira – Embora o Direito e as Forças
Armadas fossem, naquele tempo, carreiras eminentemente masculinas, sempre
fui tratada com muita distinção e respeito. Não me lembro de ter sofrido
alguma forma de preconceito.
Memória MPM – E como foi em Fortaleza?
279
HISTÓRIAS DE VIDA
Maria Marli Crescêncio Pereira – Ainda havia alguns crimes de
Segurança Nacional, mas poucos. Aí os tempos já eram outros e os crimes, mais
propriamente militares. Não havia mais interesse da imprensa. Em Fortaleza,
casei-me [em 22 de setembro de 1980]. Voltei por causa da minha mãezinha
e também para me casar. Meu esposo era um advogado militante, conhecido:
Luiz Crescêncio Pereira. Ele faleceu [em 1985]. Eu continuei trabalhando. Fui
promovida a procuradora [em 1995]. Aposentei-me [em 1999] quando achei
que já tinha tempo de serviço suficiente e porque queria fazer outras coisas.
Memória MPM – A senhora gostaria de deixar mais alguma coisa
registrada?
Maria Marli Crescêncio Pereira – No momento, não me ocorre
mais nenhum fato. Penso que minha contribuição para a instituição foi singela.
Acho que foi um período muito rico em minha vida e faria tudo de novo se
fosse preciso! E gostei muito da sua visita e da sua presença aqui nesta tarde.
Memória MPM – Muito obrigado.
280
281
VERA REGINA ALVES DE BRITO
Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar,
em Brasília, em 5 de março de 2015, por Gunter Axt.
282
Vera Regina da Mota Coelho Americano Alves de Brito nasceu em 29 de
julho de 1943, em Itabuna, na Bahia. É filha de Jaime Teodoro Coelho e Maria
Ester Guimarães Mota Coelho. Casou-se com Rubens Americano Alves de
Brito. Em 1968, formou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concluiu, ainda, mestrado
e doutorado, nos anos de 1976 e 1977, na mesma instituição. Foi professora
de Direito Penal na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas entre os anos
de 1973 a 1980. Atuou, inicialmente, na Procuradoria da Justiça do Trabalho,
no Rio de Janeiro. Ingressou no Ministério Público Militar como segunda
substituta de procurador de segunda categoria, por indicação, em 25 de agosto
de 1972, funcionando, inicialmente, na 1ª e na 2ª Auditorias da Marinha da
1ª Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Em 1980, requisitada,
passou a atuar em Brasília. Em outubro de 1988, passou a ocupar o cargo
de procuradora militar de segunda categoria, função que teve nomenclatura
alterada, em maio de 1993, para promotor(a) da Justiça Militar. Em 20 de
fevereiro de 1995, foi promovida a procuradora da Justiça Militar. Em 31 de
maio de 1995, ainda, foi promovida a subprocuradora-geral da Justiça Militar.
Em 20 de novembro do mesmo ano, aposentou-se.
283
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Doutora Vera, a senhora é natural de Itabuna,
na Bahia?
Vera Regina Alves de Brito – Sou de Itabuna, mas fui criada no Rio
de Janeiro, para onde fui com dois meses de idade.
Memória MPM – E sua família fazia o quê? Era natural da Bahia?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, meu avô era desembargador do
Tribunal de Justiça da Bahia e meu pai, médico.
Memória MPM – E a família mudou-se para o Rio?
Vera Regina Alves de Brito – Com a Segunda Guerra Mundial,
meu pai resolveu se mudar. Ele tinha uma fazenda de cacau em Itabuna –
todo mundo em Itabuna cultivava cacau. O preço do produto no mercado caiu
drasticamente. Então, ele resolveu transferir-se para o Rio. Tanto que eu fui a
Itabuna, até hoje, uma única vez.
Memória MPM – E como surgiu a decisão de fazer a Faculdade
de Direito?
Vera Regina Alves de Brito – Olha, eu estava fazendo vestibular
para Medicina, em parte influenciada pelo meu pai. Mas numa brincadeira
de colegial, fomos à Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro, onde os
estudantes estavam em um departamento dissecando uma minhoca.
Prenderam a minhoca aqui, ali e cortaram. Quando a vi, quase desmaiei:
“Meu Deus do céu, como é que eu vou estudar Medicina, se não consigo ver
cortar uma minhoca?!”. Em casa, transmiti, então, ao meu pai o desejo de
prestar vestibular para Direito. Ele reagiu como todos os pais faziam: “Que
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
coisa horrível, não sabe o que quer da vida!”. Estávamos em novembro, ou
dezembro, e o vestibular seria em janeiro.
Memória MPM – Em que ano foi o seu ingresso?
Vera Regina Alves de Brito – Eu entrei em 1964. Foi problemático,
porque, embora eu estudasse latim na escola, no vestibular caía Sociologia
também, e tive pouquíssimo tempo para me preparar.
Memória MPM – A família apoiou, concordou com a ideia do Direito?
Porque na época existia certo estranhamento com mulheres nessa área.
Vera Regina Alves de Brito – Inicialmente, meu pai não gostou. E
minha mãe quis saber o que eu iria fazer com o Direito: “Vou ser promotora!”.
E assim foi.
Memória MPM – E por que a opção por promotora?
Vera Regina Alves de Brito – Coisa de jovem... Não tinha muita
dimensão das coisas. Eu admirava uma prima, um pouco mais velha. Achava-a
inteligentíssima, preparadíssima, educada, bonita, elegante. Ela era advogada.
Acho que isso teve alguma influência...
Memória MPM – Ela era advogada no Rio de Janeiro?
Vera Regina Alves de Brito – Era natural da Bahia, mas estava no Rio.
Memória MPM – Então era uma família com toda uma tradição no Direito.
Vera Regina Alves de Brito – Sim. O Adalício Coelho Nogueira,
que foi ministro do Supremo Tribunal Federal, era meu primo, mas a gente
considerava como tio, porque foi criado pelo meu avô.
285
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Sim, e seu avô, que foi desembargador, como se chamava?
Vera Regina Alves de Brito – Teodoro Ferreira Coelho,
desembargador pelo Tribunal de Justiça da Bahia. Depois ficou em
disponibilidade, por causa do sobrinho Adalício, que não poderia continuar na
carreira com o tio na ativa.
Memória MPM – E como foram seus anos de Faculdade? Era um
período agitado...
Vera Regina Alves de Brito – Foi muito agitado! O primeiro ano
foi uma coisa terrível! Como a gente era muito nova, não tinha noção, mas me
lembro do clima difícil. Cheguei a ter um problema sério de saúde, porque era
tanta bomba que explodia dentro da Faculdade, que não íamos ao banheiro,
com medo de sermos atingidas.
Memória MPM – E depois vieram os acontecimentos de 1968...
Vera Regina Alves de Brito – Em 1968, me formei.
Memória MPM – E como foi o curso? Havia muitas mulheres?
Vera Regina Alves de Brito – Poucas. Os tempos eram diferentes.
Existia mais formalismo. Os rapazes faziam os exames orais de paletó e gravata.
Nenhum deles usava jeans. Eu, nem calças compridas vestia, hábito que
mantive durante o tempo em que atuei na Procuradoria! Minha indumentária
constituía-se de saias, tailleurs...
Memória MPM – A senhora sentiu algum tipo de discriminação por
ser mulher?
286
VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
Vera Regina Alves de Brito – Algumas vezes... A cada dia era
preciso “matar um leão”, para comprovar competência, porque havia um pouco
de discriminação. Em 1969, quando fui convidada para dar aulas de Penal na
Faculdade de Direito, isso ficou mais perceptível.
Memória MPM – Pois é, já em 1970 a senhora atuava regularmente
como professora.
Vera Regina Alves de Brito – Como eu era bem nova, tive alguns
problemas. Um professor de Direito Comercial, depois de terminada sua aula,
quando meu turno começava, sentou-se em uma carteira e ali ficou. Estranhei
o que um professor faria ali, se sua aula já tinha acabado. Fiquei assim meio
sem graça e ele me disse que queria saber se era mesmo competente.
Memória MPM – A senhora era assistente nessa época?
Vera Regina Alves de Brito – Eu era assistente do catedrático de
Direito Penal, Hélio Tornaghi. Embora ele fosse processualista, célebre, na
Faculdade ministrava Direito Penal.
Memória MPM – Foi ele quem a convidou?
Vera Regina Alves de Brito – Sim. Fiquei assustada: “Como vou
dar aula de Direito?”. Ele disse: “Vera, a diferença entre um aluno e o professor
é que o primeiro paga para estudar e o segundo é pago para estudar.”. Nunca
me esqueci disso! De fato, a gente tinha que estudar para preparar as aulas. Foi
uma época gratificante, que deixou saudades, como também deixou o período
de estudante, apesar dos embates na Faculdade.
Memória MPM – Logo em seguida a senhora já começou a atuar...
287
HISTÓRIAS DE VIDA
Vera Regina Alves de Brito – Sim, fui para a Procuradoria da Justiça
do Trabalho. Mas pouco depois, a Procuradoria transferiu-se para Brasília;
o procurador-geral me convidou, com mil e uma vantagens, mas preferi
permanecer no Rio de Janeiro, pois não queria deixar meus pais. Assim, fui
para a Justiça Militar.
Memória MPM – E como foi o ingresso na Justiça Militar em 1972?
Vera Regina Alves de Brito – Na Faculdade um colega professor me
disse que a Justiça Militar estava admitindo, sugerindo que eu tentasse. Éramos
nomeados por indicação, não havendo concurso nessa época. Todos eram
contratados como substitutos. Estranhei: fiquei me perguntando o que tinha a
ver com a Justiça Militar. Nada! Só que, por coincidência, o procurador-geral
era o doutor Ruy de Lima Pessôa, que tinha sido, na Bahia, aluno do Adalício
Coelho Nogueira; conhecia minha família toda. Resolvi aceitar. Assim, entrei
na Justiça Militar por indicação desse colega e porque o doutor Ruy aceitou.
Memória MPM – A senhora foi para qual Auditoria?
Vera Regina Alves de Brito – Inicialmente, iria para a segunda da
Marinha, mas fui requisitada para a da Aeronáutica. Depois de cinco anos,
fui para a Auditoria da Marinha. Era o auge da repressão, entre 1972 e 1973.
Aquilo foi muito traumatizante para mim, porque, de repente, comecei a
pegar processos pesadíssimos, nos quais reconhecia colegas, contemporâneos
de Faculdade, denunciados por crimes contra a Segurança Nacional. Tomei
conhecimento (hoje em dia ninguém quer mais falar nesses termos) de todas
aquelas terríveis ações terroristas. Ficava me indagando como aquelas pessoas
com as quais eu convivera, que haviam sido colegas meus e do meu irmão,
teriam sido capazes de atos como aqueles. Um dos primeiros processos que
288
VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
me chegou, do qual jamais me esqueci, tamanho foi o choque, referia-se a um
assalto a banco praticado pelo pessoal da subversão (não era assaltante comum)
em um subúrbio do Rio, chamado Bonsucesso. O guarda bancário, que estava
desarmado, foi metralhado. Esse guarda deixou cinco ou seis crianças órfãs.
Uma coisa chocante! O pessoal que participava da luta armada não era gente
pobre. Eram jovens instruídos, da classe média, e até da classe alta...
Memória MPM – E existiam, também, assaltantes comuns?
Vera Regina Alves de Brito – O Decreto-Lei 898 [de 29 de setembro
de 1969] considerou os assaltos aos bancos crimes contra a Lei de Segurança
Nacional. De repente, a gente começou a julgar e processar assaltantes comuns.
Memória MPM – E conseguia fazer a distinção de quando se tratava de
preso político ou assaltante comum?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, porque as quadrilhas de
assaltantes comuns eram “da pesada”. Os réus políticos eram jovens, estudantes,
que pertenciam a organizações como a VAR-Palmares. Dizem que, como
todos ficaram presos juntos na Ilha Grande, os conhecimentos sobre técnicas
de assalto a bancos foram transmitidos de uns para os outros.
Memória MPM – Houve aumento da incidência de assaltos a bancos?
Vera Regina Alves de Brito – Sim.
Memória MPM – Havia denúncias de tortura e de abuso de autoridade
de parte dessas pessoas que eram julgadas?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, mas eu nunca presenciei algo
assim. Nos depoimentos eles relatavam aquelas violências sofridas no DOI-
289
HISTÓRIAS DE VIDA
Codi. Mas todo preso sempre se queixa de sofrer coação, sevícias, arbitrariedades,
maus-tratos... Não tínhamos elementos concretos que comprovassem que
aquilo de fato tinha acontecido. Hoje em dia se faz o exame de corpo de delito,
mas naquela época, não. Me recordo de uma situação na Auditoria em que
uma denunciada, Inês Etienne Romeu, desafiou os militares, dizendo algo
assim: “Eu estou aqui sentada, mas amanhã serão vocês.”. Com muito sangue
frio, na sala de espera da Auditoria, ela arrancou uma unha do pé. Estava com
a unha machucada. Dizem que foi sangue para todo lado. Não assisti à cena,
mas estava na Auditoria naquele dia.
Outro caso do qual me recordo, logo no início, em 1972, foi de
um rapaz, um réu chamado Hélio da Silva: não era estudante, não sei o que
fazia, operário talvez, mas estava infiltrado num desses agrupamentos, que
matou um marinheiro inglês, David Cuthberg, que veio em uma esquadra da
Inglaterra e passou o carnaval no Rio, ancorada. O jovem marinheiro saiu para
passear e foi morto. O juiz-auditor perguntou-lhe por que fizera isso, o que
teria o marinheiro a ver com a situação do Brasil. Ele respondeu: “Nós fizemos
isso para chamar a atenção do mundo sobre o Brasil.”. Eu era recém-chegada,
ainda muito nova, e fiquei chocada com essa lógica.
Memória MPM – A senhora era solteira?
Vera Regina Alves de Brito – Nesse tempo era solteira.
Memória MPM – Paralelamente, quando a senhora estava no Rio, pôde
fazer pós-graduação, mestrado e doutorado. Quais foram os temas?
Vera Regina Alves de Brito – Em Direito Penal, na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, antiga Universidade do Brasil ou Faculdade Nacional
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
de Direito, onde estudei. Com o problema político, os cursos de pós-graduação
foram suspensos. Quando os reabriram, eu já estava na Justiça Militar. Tinha
largado o Direito do Trabalho de vez e dava aulas de Direito Penal. Prestei um
exame de ingresso para o primeiro curso de mestrado que ocorreu na Faculdade
Nacional de Direito, depois de 1964. Concluído o mestrado, logo em seguida
fiz o doutorado.
Memória MPM – Não eram muitas mulheres com doutorado em Direito
no Brasil, não é?
Vera Regina Alves de Brito – Não. Fico espantada com o número de
mulheres nas Faculdades de Direito hoje, assim como no Ministério Público e
na magistratura. É impressionante. Mas o fato é que eu acho se tratar de uma
profissão muito boa para mulher.
Memória MPM – Por quê?
Vera Regina Alves de Brito – Bem, eu me realizei profissionalmente.
Há independência na atuação. Cada um é responsável pelo seu trabalho. Claro,
não sei como é hoje em dia. Além disso, as mulheres são muito conscienciosas
e detalhistas, mais do que os homens, o que funciona bem no Direito.
Memória MPM – A senhora acha que existe um jeito feminino, diferente,
no Direito?
Vera Regina Alves de Brito – Sim. As mulheres são mais detalhistas.
Meus colegas homens, talvez, tivessem mais capacidade na tribuna ou mais
conhecimento do que eu, mas eu examinava folha por folha do processo, os
detalhes nas entrelinhas.
291
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Alguma vez a senhora sentiu algum tipo de
desconforto pelo fato de ser jovem, mulher, e de estar atuando na área Penal Militar?
Vera Regina Alves de Brito – Havia algo, até porque eram
pouquíssimas mulheres atuando na Justiça Militar, no Brasil inteiro.
Quando trabalhei na Procuradoria-Geral da Justiça do Trabalho no
Rio de Janeiro, havia até um assédio irritante por parte dos procuradores: eu era
jovem, solteira, recém-formada. Acaba sendo uma espécie de coação, porque
a gente está precisando começar a vida profissional e, de repente, começam os
indivíduos a assediar. Se a pessoa não responde positivamente, fica a impressão
de que pode acabar sofrendo algum tipo de perseguição no futuro. Por sorte,
eu era muito protegida pelo procurador-geral, o Dr. Marco Aurélio Prates de
Macedo, o que me blindava.
Na passagem dos anos 1970 para 1980, houve um concurso para juiz-
-auditor promovido pelo Superior Tribunal Militar e pensei em me inscrever.
Estava me preparando. Mas me senti dissuadida depois de uma advertência
recebida de parte do ministro [Georgenor Acylino de] Lima Torres, quando
este fazia uma visita à Auditoria da Marinha, no Rio de Janeiro: “Prepare-se
bem, doutora, porque vou arrochá-la, pois não admito mulheres como juízas-auditoras militares.”. E ainda complementou: “Como uma mulher vai se reunir
sozinha com o Conselho de Justiça a portas fechadas?”. Foi traumatizante para
mim. Acho que hoje em dia essas coisas não acontecem mais no meio jurídico
e se acontecem, é raramente.
Memória MPM – Algum outro processo que tenha lhe chamado a
atenção nesse período no Rio de Janeiro?
292
VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
Vera Regina Alves de Brito – Há vários. Como o primeiro processo
que me coube, para arrazoar o recurso do Ministério Público no caso de um
assalto a uma mansão em Santa Teresa, de onde levaram um cofre que pertencia
ao Adhemar de Barros. Também havia menção a um cofre em um apartamento
na rua Marechal Mascarenhas de Morais. Uma ação na que, creio, a atual
presidente Dilma Rousseff também estaria envolvida – não lembro mais qual
era o codinome dela. Foi o primeiro processo em que atuei.
Memória MPM – Quais foram os argumentos? Alguma coisa em especial?
Vera Regina Alves de Brito – Não. Eu guardei apenas essa
informação, porque foi o primeiro caso que recebi. Lembro-me de que se
tratava do caso do cofre do Adhemar de Barros e de um apartamento na rua
Marechal Mascarenhas de Morais.
Memória MPM – E como era o ambiente de trabalho na Auditoria?
Vera Regina Alves de Brito – Como a Justiça Militar era pequena,
havia muita integração entre juízes e procuradores, pelo menos assim era no
Rio de Janeiro, onde eu vivia. Essa integração alcançava também os advogados
de ofício e os advogados de fora. Eu era amiga dos juízes com os quais trabalhei.
Não encontrei esse mesmo clima em Brasília; havia mais isolamento entre as
pessoas.
Memória MPM – O que a senhora poderia nos dizer da convivência
com os advogados? Refiro-me especialmente ao período em que atuou na Auditoria
no Rio de Janeiro.
Vera Regina Alves de Brito – Sim, foi a fase dos crimes contra a Lei
de Segurança Nacional. Tive contato com excelentes advogados, a “papa-fina”
293
HISTÓRIAS DE VIDA
da advocacia no Rio de Janeiro. Entre eles, não me esqueço do Heleno Fragoso,
do Evaristo de Moraes Filho, do Antônio Modesto da Silveira, do Augusto
Süssekind de Moraes Rego, do Virgílio Donicci.
Memória MPM – E a senhora trabalhou com qual dos irmãos Evaristo
de Moraes?
Vera Regina Alves de Brito – Trabalhei primeiro na Justiça do
Trabalho com Evaristo, o trabalhista, uma inteligência de assombrar. E na
Justiça Militar tive vários processos com o criminalista. Então, atuei com os
dois. O trabalhista era bem mais velho, mas o criminalista morreu cedo.
Memória MPM – Na Justiça Militar, ele defendendo e a senhora acusando?
Vera Regina Alves de Brito – Isso: eu acusando e ele defendendo.
Memória MPM – Quem ganhava?
Vera Regina Alves de Brito – Dependia muito das provas no
processo. O Conselho de Justiça ficava adstrito às provas. A defesa podia ser
brilhante, mas se houvesse provas, o acusado seria condenado. Havia outros
advogados, bastante badalados, mas com os quais não tinha muita afinidade.
Memória MPM – Com o Modesto, o Heleno Fragoso, os irmãos Evaristo
e o Süssekind a senhora convivia no ambiente mais pessoal, ou só no profissional?
Vera Regina Alves de Brito – Frequentava a casa do Evaristo de
Moraes, o criminalista, porque jogava biriba com a mulher dele. A mãe dele,
dona Dora, era minha esteticista: cuidava da minha pele. Éramos todos muito
amigos. No trabalho éramos adversários...
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
Memória MPM – Mas isso não contaminava a relação?
Vera Regina Alves de Brito – Não. Um único advogado, bada-
lado, cujo nome não vou citar, conduzia para o lado pessoal essas coisas,
e me incomodava muito. Já é falecido. Trabalhei também com excelentes
advogados de ofício. O Rio de Janeiro tinha esse ambiente intelectualmente preparado.
Memória MPM – A senhora conheceu os irmãos Evaristo em função da
atividade profissional?
Vera Regina Alves de Brito – Trabalhei com os dois e os conheci
bem, pois o Hélio Tornaghi, de quem eu era assistente da Universidade, era
amigo do trabalhista. Eles eram mais velhos. Eu frequentava muito a casa
do Hélio Tornaghi. O Evaristo e o João Romeiro Neto, que era criminalista
no Rio e depois ministro do STM, frequentavam assiduamente, com as
respectivas esposas, as reuniões dos domingos à noite. Eu ficava fascinada com
a inteligência daqueles homens.
Memória MPM – A senhora se lembra de alguns presos que o
Evaristo defendia?
Vera Regina Alves de Brito – Assim é difícil recordar... Me lembro
de alguns presos como a Inês Etienne, o Hélio da Silva... ambos já mencionados. Lembro-me demais do Nelson Rodrigues Filho, filho do Nelson
Rodrigues. Eram várias as acusações contra ele. Impressionante, porque ele
foi colega do meu irmão na Faculdade Nacional de Engenharia, no Largo
São Francisco de Paula, onde atualmente fica a sede do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais. A mãe dele, que se chamava Elza, guardo na memória até
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HISTÓRIAS DE VIDA
hoje, aquela mulher sofredora, marcada, que nunca deixou de estar com o
filho todas as vezes em que ele ia prestar depoimento nas Auditorias.
Memória MPM – Eram mais de dez acusações contra ele...
Vera Regina Alves de Brito – Era um rol.
Memória MPM – E ele foi condenado em tudo?
Vera Regina Alves de Brito – Pode até ter tido alguma absolvição,
mas não me recordo. Lembro-me do Alex Polari de Alverga, hoje escritor,
que se envolveu no sequestro do embaixador da Alemanha; do jornalista Cid
de Queiroz Benjamin: esse menino era novinho, tinha seus 18, 19 anos, mas
o garotinho não era mole!
Memória MPM – E a maior parte deles foi condenada ou tinha
também absolvições?
Vera Regina Alves de Brito – Muitas absolvições também...
Memória MPM – O promotor tinha atribuição para tomar a iniciativa,
por exemplo, de fazer vistoria nos presídios, nas detenções, nas carceragens?
Vera Regina Alves de Brito – Tenho conhecimento de que colegas
faziam vistoria nos presídios, mas eu nunca fui convidada. Provavelmente, por
duas coisas: pelo fato de ser jovem e pelo fato de ser mulher. Fui a presídios
quando era solicitadora, estagiária da Defensoria Pública, mas depois não
retornei mais.
Memória MPM – O estágio na Defensoria Pública foi na Justiça Comum?
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
Vera Regina Alves de Brito – Junto às Varas Cíveis, que eram 21
ou 22. Enfim, nas Auditorias, não sei se por ser mulher, ou se por ser tão
jovem, com falta de experiência de vida, ou as duas coisas, os colegas mais
velhos procuravam me preservar, e me alijar até, de maneira que as coisas não
chegavam até mim. Só ouvia falar das arbitrariedades contra os presos nos
seus depoimentos. E, sinceramente, achava que era um negócio meio difícil
de ocorrer. Parecia tão improvável... E a gente via nos autos tanta violência
praticada por eles... O preso sempre reclama de ter sofrido violência...
Pouco depois de eu chegar à Auditoria, o auge da repressão passou.
Peguei a Lei de Anistia ainda no Rio de Janeiro.
Memória MPM – Qual foi o ambiente na Auditoria em torno da Lei
da Anistia? Os processos sem condenação continuaram andando?
Vera Regina Alves de Brito – Eu não me recordo bem, mas acho
que foi isso, porque me lembro de conversar muito sobre a Lei da Anistia
com o juiz-auditor, o Dr. Mauro Seixas Telles, um rapaz inteligente, meio
vanguardista, irmão do ministro Antonio Carlos de Seixas Telles, do Superior
Tribunal Militar.
Memória MPM – Em termos de infraestrutura, como eram as Auditorias?
Vera Regina Alves de Brito – Não havia nada. A gente
fazia o serviço de datilografia, de pesquisa de jurisprudência, a parte
administrativa, tudo. Não havia assistentes, infelizmente. Para coletar a
jurisprudência, por exemplo, era preciso ler o Diário Oficial, recortar os
acórdãos do Tribunal, que eu então encadernava em volumes. Retirava
do DOU apenas a parte relativa ao STM. Durante anos mantive esses
297
HISTÓRIAS DE VIDA
volumes encadernados. E fazia fichas para os delitos e seus julgados. Hoje
está tudo na internet...
Memória MPM – E material?
Vera Regina Alves de Brito – Material até que tinha, nunca senti
falta de papel. Mas alguns reclamavam que até papel faltava.
Memória MPM – E segurança?
Vera Regina Alves de Brito – Não havia nenhuma.
Memória MPM – Como era lidar com casos, às vezes tão rumorosos, que
chamavam a atenção?
Vera Regina Alves de Brito – Numa oportunidade, passei um susto
terrível! Eu pedi a condenação de um assaltante de banco e soube que um
tempo depois ele se evadiu. Um dia eu estou passando pelo Largo do Machado
indo em direção à Rua das Laranjeiras, quando o identifico ali, solto: ele me
reconheceu e eu o reconheci. Parecia que meu coração tinha saído pela boca! A
gente não tinha segurança nenhuma.
Lembro-me bem de um crime militar, sem relação direta com
a Segurança Nacional. Pedi a condenação de um cabo, ou sargento, agora
não me recordo, por um ato de violência contra superior e ele chegou a ser
condenado. Mas, integrante do Centro de Informações da Aeronáutica, o
CISA, nunca cumpriu pena, porque mandava e desmandava. Se agredia
um superior, imagine o que mais fazia. E algumas vezes me cruzei com ele
nas ruas. Numa oportunidade, eu estava em uma lanchonete, tomando um
cafezinho, quando escutei aquela voz atrás de mim, dizendo: “Mas é muito
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
boa, pena que seja tão brabinha.”. Tomei aquele susto! Mas não o encarei,
nem me voltei.
Memória MPM – Chegou a haver algum incidente na Auditoria?
Vera Regina Alves de Brito – Pois é, numa oportunidade eu
telefonei para a Auditoria avisando que me atrasaria dez minutos, porque as
audiências começavam pontualmente. Mas quando chego para estacionar
o carro, não consigo ter acesso, pois havia um cordão de isolamento e
policiais. Um deles me informou: “Olha moça, foi um tiroteio no prédio
do Ministério da Aeronáutica.”. Então, fui embora. Depois liguei e me
relataram que um desses presos, das quadrilhas de delinquentes comuns
– eles entravam pela parte de trás do prédio, chegando de camburão, e
passavam por um corredor para entrar no hall social onde ficavam os
elevadores –, agarrou a metralhadora de um guarda e disparou. Houve
tiroteio e ele morreu. Foi um desespero. Não tinha segurança nenhuma, os
tempos eram outros. Na Auditoria da Aeronáutica havia um salão enorme
onde os presos aguardavam e para chegar a minha sala tinha que passar no
meio deles.
Memória MPM – Alguma vez a senhora sentiu algum tipo de pressão,
da área militar em relação a sua atuação nos processos?
Vera Regina Alves de Brito – Não, de parte da área militar jamais
sofri pressão com relação aos crimes contra a segurança nacional. Fui sofrer
pressão tempos depois, em Brasília, na época da emenda Dante de Oliveira.
Memória MPM – Eu pergunto em geral, mas podemos falar
primeiramente dos crimes contra a segurança nacional.
299
HISTÓRIAS DE VIDA
Vera Regina Alves de Brito – Não senti pressão da área militar. O
procurador-geral também não interferia na minha atuação. Talvez tenha tido
sorte, pois alguns colegas relataram terem sofrido pressões.
Memória MPM – E nos crimes militares?
Vera Regina Alves de Brito – Apenas, numa oportunidade, um
capitão de mar e guerra adentrou na minha sala e ficou solicitando que eu
pedisse a absolvição de um capitão. Expliquei que não podia, por ser um
crime culposo. Questionei se fosse um praça que tivesse cometido crime
culposo contra o superior, ele iria até ali pedir sua absolvição. Então me disse:
“A senhora, como toda mulher, não entende nada de hierarquia e disciplina
militares.”. E terminou dizendo que lugar de mulher é na cozinha. Disse isso
dentro da minha sala! Tinha um colega meu chamado Coelho, que faleceu
cedo. A sala era um cubículo, o Coelho saiu de fininho, só vi a porta abrir e o
Coelho sair. Me levantei e respondi: “Comandante, o lugar da sua mãe, da sua
filha e da sua mulher talvez seja na cozinha, mas o meu não é! O senhor, por
favor, saia da minha sala!”. Foi o único incidente assim.
Memória MPM – E como foi em Brasília?
Vera Regina Alves de Brito – Anos depois, aqui em Brasília, tive
muito medo, na época do deputado Dante de Oliveira e da campanha pelas
“Diretas Já!”. Foram baixadas aquelas medidas de emergência, proibindo
passeatas. Mas o pessoal da Universidade de Brasília enfrentou a proibição.
O general Newton Cruz saiu dando chicotada nos carros. Um inquérito
policial foi instaurado e veio parar na minha mão, numa época em que estava
assoberbada de serviço. Olhei aquilo e pensei em pedir arquivamento. Eu
devia ter falado logo, mas em função do acúmulo de serviço deixei para me
300
VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
pronunciar só no final do prazo. Começou, então, uma guerra contra mim.
Fui chamada pelo procurador-geral, Dr. Milton Menezes da Costa Filho, que
disse que não era caso de arquivamento e que eu deveria enquadrar o pessoal
na Lei de Segurança Nacional. Respondi que não tinha artigo nenhum na
Lei de Segurança Nacional em que pudesse enquadrar o que eles fizeram, sair
em passeata: “É arquivamento!”, disse. Veio então um recado do Comando
Militar do Planalto, por meio do juiz-auditor: “O general Newton Cruz quer
conversar com a senhora.”. Eu já imaginava o que era... Disse que deveria ir ao
Comando Militar no Planalto para conversar com ele. Aí, questionei: “Mas eu
ir ao Comando Militar no Planalto se é ele quem quer conversar comigo? Ele
que venha aqui!”. E não fui. O doutor Milton, contudo, me chamava todo dia.
Colegas na Procuradoria diziam: “Vera, você tem que ver se não há um crime...”.
Eu dizia que não havia. Foi um cerco. Então, me sentei uma noite em casa e fiz o
arquivamento. Passei a noite inteira trabalhando nele. No dia seguinte, fui levar
o pedido de arquivamento para o doutor Milton ver. Daí a secretária dele disse:
“Doutora Vera, faça uma coisa: já traga o pedido datilografado, porque se estiver
datilografado o doutor Milton não vai mudar.”. Voltei para casa, datilografei
e levei novamente. Dito e feito! Ele não mudou. Pedi o arquivamento, mas
comecei a ter muito medo, porque havia também um processo grande, que veio
lá de Luziânia, um crime militar. Um tenente que matou um traficante de carro,
tenente Avelino – era um processo bem complicado, envolvendo a Polícia do
Exército. Ora, o Newton Cruz era o comandante da Região Militar. Sentime intimidada ao me deparar com esse caso de uma turma “barra-pesada” de
militares que se envolveu com delinquentes de Goiás. Quando eu saía à noite
da Auditoria, naquele estacionamento deserto, meu carro ficava parado longe e
eu sentia um frio na espinha. Diziam, por aqueles tempos, que o Newton Cruz,
quando diretor do SNI, teria até sido mandante do assassinato do jornalista
301
HISTÓRIAS DE VIDA
Alexandre von Baumgarten, em outubro de 1982. As audiências iam até
tarde... Aí o juiz-auditor começou a me levar de carro pelo estacionamento, até
o meu automóvel. Tudo escuro, um deserto! Eu entrava no meu carro e dirigia
sozinha até minha casa.
Memória MPM – Em que ano a senhora veio para Brasília?
Vera Regina Alves de Brito – Em 1980.
Memória MPM – Foi promoção?
Vera Regina Alves de Brito – Vim requisitada.
Memória MPM – E a Auditoria era mista?
Vera Regina Alves de Brito – Era mista, com todas as Armas: Exército,
Marinha e Aeronáutica. Incluía, ainda, a Polícia Militar e os Bombeiros.
Memória MPM – E como foi essa experiência?
Vera Regina Alves de Brito – Era horrível! Tremenda sobrecarga de
serviço e a responsabilidade por julgar policiais e bombeiros.
Memória MPM – E o que tinha mais de volume processual?
Vera Regina Alves de Brito – A Polícia Militar, seguida do Exército.
Memória MPM – E o que era?
Vera Regina Alves de Brito – Abuso de autoridade, indisciplina,
mortes violentas. Isso tudo ia parar em nossas mãos.
Memória MPM – E tinha um bom volume de apuração e condenação?
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
Vera Regina Alves de Brito – Quem julgava a Polícia Militar e os
Bombeiros eram os Conselhos do Exército. A tendência era condenar.
Memória MPM – A senhora participou, prestando assistência, de algum
inquérito policial militar?
Vera Regina Alves de Brito – Não, nunca participei de IPM. Alguns
colegas participavam. Eu prestei apenas uma assessoria, num inquérito em
Anápolis.
Memória MPM – Na sua ficha constam algumas assistências em
IPMs: um em 1982, na Guarda Presidencial, em Brasília; outro em 1987, no
Comando-Geral da Polícia do Exército, em Brasília; e em 1988, na base aérea de
Anápolis, em Goiás.
Vera Regina Alves de Brito – Esse de Anápolis eu lembro, mas os
outros dois, não. Esse de 1987, talvez, tenha sido um rapaz preso pela Polícia
do Exército que sofreu algumas lesões. A revista Veja fez uma reportagem, onde
publicava o laudo pericial do Instituto de Criminalística, que ainda não tinha
sido concluído. Nesse caso, assessorei o inquérito. O rapaz não sofreu as lesões
na Polícia do Exército, lá chegando já com lesões. Eu não sei por que, não me
lembro mais. Por essa época, creio que em função desse caso até, tive um embate
com um deputado de Brasília, hoje deputado federal, Chico Vigilante. Sobre a
Guarda Presidencial, me recordo apenas que de fato fui lá numa oportunidade,
mas não sei a razão, tampouco tenho lembrança de um inquérito.
Memória MPM – A senhora conheceu vários procuradores-gerais...
Vera Regina Alves de Brito – Conheci mais o doutor Ruy [de
Lima Pessôa] e o doutor Milton [Menezes da Costa Filho], que foi 12 ou 13
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HISTÓRIAS DE VIDA
anos procurador-geral. Com os outros, embora já estivesse em Brasília, tive
menos contato. O Dr. George Tavares conhecia como advogado badalado no
Rio de Janeiro, mas não tive muito contato com ele em Brasília. O mesmo se
deu com os doutores [Francisco] Leite Chaves e Eduardo [Pires Gonçalves],
que havia sido meu colega.
Memória MPM – A senhora foi professora de francês também?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, comecei minha vida como
professora de francês e de música. Mas, onde conseguiram todas essas
informações? Eu até havia me esquecido disso [risos]...
Memória MPM – Brasília, embora fosse a capital, era uma cidade muito
recente, ainda interiorana. Como foi a mudança do Rio de Janeiro para Brasília?
Vera Regina Alves de Brito – Foi um baque! Acho que até para
a minha vida profissional a vinda para Brasília foi uma regressão. Porque
se tivesse continuado no Rio de Janeiro, na Faculdade, com as amizades
que tinha, cursos e mais cursos, acho que profissionalmente teria ido além.
Ainda moro em Brasília, mas não gostei da cidade. Eu lembro que saía da
Auditoria e chegava a meu apartamento, na Asa Norte, no sexto andar do
prédio, ao final da tarde. Havia poucas construções ao redor. Os pores do sol
eram maravilhosos sobre aquele horizonte amplo. Batia muitas fotos. Mas a
nostalgia era imensa. Demorei muito a me adaptar.
Memória MPM – Seu esposo também veio para Brasília?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, viemos em 1980. Ele recebeu
um convite para assessorar o ministro das Comunicações, Aroldo Correa de
Matos. Até hoje moro aqui, mas não me acostumo muito. Ontem estava no Rio.
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
Memória MPM – A sua família veio para cá?
Vera Regina Alves de Brito – Meu irmão já morava aqui, minha
família é pequena. Embora meu irmão tenha quatro filhos, cada um mora em
um canto do mundo.
Memória MPM – O convívio que a senhora tinha com advogados
célebres no Rio de Janeiro se reproduziu em Brasília?
Vera Regina Alves de Brito – Não. No Rio de Janeiro, havia
advogados com grande cabedal jurídico. Com honrosas exceções, o mesmo não
se passava em Brasília, no meu entendimento. Por exemplo: recordo-me de um
processo que veio às minhas mãos quando o meu colega Marco Antonio Bittar
entrou no gozo de férias. O juiz resolveu fazer o julgamento. Assim, levei o
processo para casa, estudei-o por horas a fio. Para minha surpresa, no dia da
sustentação oral, o advogado – muito conhecido – nada sabia do processo e
da situação do seu próprio cliente. Eu tive até vontade de, num ímpeto, pedir
que o réu fosse considerado indefeso, mas tinha lá o juiz, os militares, que
não aceitariam. Foi terrível! Depois o advogado veio falar comigo: “Doutora, a
senhora me surpreendeu, porque conhecia o processo.”. “O senhor queria que
eu entrasse em julgamento sem conhecer o processo?”. No dia seguinte, chego
à Auditoria, e o diretor de Secretaria me diz: “A senhora não imagina quem
foi nomeado ministro do Tribunal Federal de Recursos!”. Era o advogado da
véspera! Era amicíssimo do senador José Sarney. Quando nos encontrávamos,
em algum evento ou cerimônia, ele fingia que não me conhecia. Até que o
encontrei numa festa em São Luís do Maranhão e resolvi interpelá-lo: “O
senhor não está lembrado de mim?”.
Memória MPM – E ele?
305
HISTÓRIAS DE VIDA
Vera Regina Alves de Brito – “Ah, sim: doutora Vera, da Auditoria.”.
Claro que se lembrava de mim. Haviam se passado vários anos e ambos
estávamos aposentados.
Memória MPM – Alguma vez a senhora chegou a pedir a
absolvição do réu?
Vera Regina Alves de Brito – Cansei de pedir! Sempre que tinha
dúvidas. Como disse, acho que as mulheres são mais cuidadosas com os
detalhes. Então, se havia dúvidas, pedia a absolvição.
Memória MPM – Isso acontecia mais em que tipo de crime?
Vera Regina Alves de Brito – Não me recordo, mas acho que
em todos.
Memória MPM – Em 1988, a senhora passou a procuradora militar de
2ª categoria. É isso? Em fevereiro de 1995, foi promovida a procuradora da Justiça
Militar – é que o nome do cargo foi mudando...
Vera Regina Alves de Brito – É, foi mudando. Depois fui
subprocuradora, em maio de 1995. Logo depois, me aposentei.
Memória MPM – Em novembro de 1995.
Vera Regina Alves de Brito – Eu tenho arrependimento de ter
pedido a aposentadoria tão cedo.
Memória MPM – Por que pediu a aposentadoria?
Vera Regina Alves de Brito – Minha promoção tinha sido por
merecimento, não por antiguidade. Havia colegas mais velhos do que eu que
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
queriam se aposentar no final da carreira e fizeram pressão para que eu cedesse
a vaga. Acabei cedendo. Calhou que meu marido tinha se aposentado e nós
pretendíamos viajar. Mas logo depois ele faleceu.
Memória MPM – Em 1995 houve uma leva grande de aposentadorias.
Vera Regina Alves de Brito – Sim, porque aumentaram as vagas e
havia muita gente querendo se aposentar.
Memória MPM – Havia também ameaça de mudanças no regime
da Previdência.
Vera Regina Alves de Brito – Verdade! Bem-lembrado! Consegui
contar tempo de licença-prêmio não gozada, três anos e meio ou quatro de
estágio, e me aposentei com 28 anos de serviço.
Memória MPM – A senhora também contou o tempo de serviço no
Ministério Público do Trabalho?
Vera Regina Alves de Brito – Isso e o estágio como solicitadora. Porque
meu diploma veio com o nome errado, o que levou um ano para ser corrigido.
Memória MPM – Por esse motivo é que as datas da sua formatura e do
seu diploma não batem.
Vera Regina Alves de Brito – Exatamente! Eu me formei em 1968
e o diploma é de 1969. Demorou demais, porque veio o nome errado. Era Vera
Regina da Mota Coelho e não constava o “da”. Já era uma época tumultuada
no Brasil. Como não podia registrar meu diploma, acabei permanecendo como
solicitadora. Mas isso foi bom, por um lado, porque me fez contar mais tempo
para a aposentadoria.
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HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – A senhora atuava como solicitadora junto a algum
escritório de advocacia ou de forma independente?
Vera Regina Alves de Brito – Primeiro foi na Defensoria Pública,
junto às Varas Cíveis. Também fiz estágio na Justiça do Trabalho.
Memória MPM – A senhora possui publicações no Direito do Trabalho,
uns dois ou três artigos.
Vera Regina Alves de Brito – Tenho! Lembro-me de um sobre
os aeronautas. Na Justiça Militar, nunca tive tempo para publicar, porque
trabalhava demais.
Memória MPM – Especialmente em Brasília?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, em Brasília não foi brincadeira!
Permaneci quinze anos na Auditoria, sendo que, por várias vezes, fiquei sozinha,
sem ajuda de outro colega, sem uma secretária. Depois de certo tempo, me
queixei ao doutor Milton, informando que não estava aguentando o serviço. Ele
disse que trabalho não matava ninguém, mas me fez o favor de disponibilizar
uma das datilógrafas que serviam aos subprocuradores-gerais para me ajudar,
porque eu não estava dando conta. Durante muito tempo não tive final de
semana. Hoje em dia, o mesmo trabalho que eu fazia sozinha, acrescido da
Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, é feito por vários procuradores.
Memória MPM – Em 1994, antes da aposentadoria, a senhora recebeu
a Medalha do Pacificador.
Vera Regina Alves de Brito – Sim, recebi. Foi uma homenagem
que me tocou muito. Porque esse negócio de medalha, como sabemos, é por
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
indicação. Até hoje não consegui descobrir quem me indicou. Foi alguém que
trabalhou comigo, provavelmente algum militar.
Memória MPM – A senhora acompanhou diferentes momentos do
Ministério Público Militar. Nos anos 1970/80, o volume de atribuições era maior
do que é hoje, porque havia a Lei de Segurança Nacional, a Polícia Militar e o Corpo
de Bombeiros, mas a estrutura era muito mais precária. Como é que a senhora percebe
essa mudança?
Vera Regina Alves de Brito – O Ministério Público hoje parece
bem menos unido do que era na nossa época. Hoje em dia, cada um tem seu
gabinete, entra e não sabe nem quem está na Casa. Antigamente, trabalhávamos
três promotores num cubículo na Auditoria da Marinha. A mesa de um era
grudada na do outro. Todos conviviam. Almoçávamos juntos, promotores,
juízes e advogados de ofício. Havia muita interação, eu conheço o Dr. [ José
Carlos] Couto de Carvalho dessa época, por exemplo. Ele era funcionário da
Auditoria da Marinha. Então, havia uma convivência estreita e amistosa.
Memória MPM – A senhora sentia que era uma espécie de família?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, uma espécie de família. Quando
cheguei aqui, em Brasília, a Procuradoria funcionava em um andar no prédio do
Superior Tribunal Militar. A Auditoria ficava em outro. A parte administrativa,
os procuradores, tudo estava junto.
Memória MPM – Como é que a senhora via a relação, naqueles tempos,
do Ministério Público Militar com o Tribunal Militar?
Vera Regina Alves de Brito – Nunca me relacionei muito com o
Tribunal, até porque eu era a única mulher em Brasília, e sempre fui um pouco
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HISTÓRIAS DE VIDA
tímida. Não tinha relacionamento com o Tribunal. Nessa época, somente o
procurador-geral, que era o doutor Milton, fazia as audiências no Tribunal. Ele
nunca delegou essa atribuição.
Memória MPM – Quando a senhora diz ser a única mulher, era na
Auditoria? Porque na Procuradoria já havia outras.
Vera Regina Alves de Brito – Isso, na Auditoria. Na Procuradoria
tinha a doutora Marly [Gueiros Leite], além da Dra. Nadir [Bispo], mas ela
vivia muito afastada e depois foi para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Foi
candidata a um cargo parlamentar. Trabalhou um tempo comigo. Mas, em
geral, eu ficava sozinha.
Memória MPM – Com os ministros, a senhora não convivia?
Vera Regina Alves de Brito – Nunca fui de ir ao Tribunal, mas era
prestigiada pelos ministros que me conheciam. Especialmente o [Antonio
Carlos] Seixas Telles, com cujo irmão, Mauro, trabalhei. Havia também
o ministro Leal Ferreira, quem me indicou para a medalha que recebi
do Tribunal. Não me recordo mais de outros. Havia colegas que estavam
sempre no Tribunal. Muitos juízes, como o Roberto Menna Barreto, com
quem também trabalhei. Mas, sempre me resguardei um pouco, nem sei o
porquê, talvez pelo fato de estar sozinha me sentia um pouco acanhada. Para
se ter uma ideia, certa vez um sobrinho do general Rodrigo Octávio [ Jordão
Ramos], ministro do STM, muito respeitado, encontrou o meu marido, que
era militar da reserva, e mencionou: “Escuta, existe uma procuradora aqui na
Justiça Militar que tem seu sobrenome, por acaso tem alguma ligação com
você?”. Eu nem cheguei a conhecer o general Rodrigo Octávio, pois ele havia
entrado na compulsória.
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VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO
Memória MPM – A senhora chegou a encontrar auditoras?
Vera Regina Alves de Brito – Sim, cheguei a trabalhar com duas
em Brasília.
Memória MPM – E as mulheres apareciam como rés?
Vera Regina Alves de Brito – Muito pouco. Houve uma mulher
como ré em um processo da Marinha, mas era uma civil, envolvida num
crime de agiotagem, perpetrado pelo genro dela dentro da Marinha. Ele
era cabo ou sargento. Mas o capital era dela, então foi denunciada como
coautora. Eu me lembro só desse caso, tirando, é claro, a parte de segurança
nacional, que tinha muita mulher.
Memória MPM – Se a senhora fizesse um balanço de sua trajetória no
Ministério Público Militar, como a sintetizaria?
Vera Regina Alves de Brito – Foi gratificante. Profissionalmente foi
muito bom. Foi uma boa época da minha vida. A única coisa que lamento foi ter
me aposentado tão cedo. Acho, sim, que se tivesse continuado no Rio de Janeiro,
teria ido mais longe. Deixei a Faculdade, adorava dar aulas. Até fui indicada
para ministrar aulas na Universidade de Brasília, mas era à noite, uma coisa
complicada, pois o trabalho na Auditoria era pesado. Cheguei aqui sem conhecer
ninguém e senti um baque. Fui me reestruturar melhor quando veio o Dr. Bittar
e começamos a trabalhar juntos. Foi um amigo, um colega, nos adaptamos bem.
Memória MPM – Bem, agradeço muito pelo seu depoimento.
Vera Regina Alves de Brito – Obrigada, foi muito bom para mim,
eu relembrei certas coisas que até já tinha esquecido.
311
JOÃO ALFREDO DA SILVA
Entrevista realizada por Gunter Axt, em 5 de julho de 2015,
em Fortaleza, na residência do depoente.
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João Alfredo da Silva nasceu em 21 de agosto de 1934, em Baturité, no Ceará.
É filho de Pedro Alfredo da Silva e Francisca Chagas da Silva. Casou-se com
Maria Monteiro da Silva. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito
da Universidade Federal do Ceará (UFC), em fevereiro de 1971. Atuou na
advocacia trabalhista e serviu no Exército. Em 27 de novembro de 1972, foi
designado primeiro substituto de procurador militar de terceira categoria,
para atuar junto à Procuradoria da Auditoria da 10ª Circunscrição Judiciária
Militar, em Fortaleza. Aposentou-se em 25 de abril de 1991.
313
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de Baturité, no Ceará?
João Alfredo da Silva – Sim, que fica a uns 90 km de Fortaleza. É
uma cidade serrana. Nasci na base da elevação, do Maciço.
Memória MPM – E os estudos foram feitos em Fortaleza?
João Alfredo da Silva – Lá tive apenas o contato com os estudos
por meio da estrutura familiar. Tinha uma irmã bem aplicada que me ensinou
alguma coisa. Lembro-me de um detalhe interessante: embora eu tivesse
avançado mais do que os colegas, seguia falando com forte acento local e
errando, de propósito, algumas palavras, porque sentia vergonha de não falar
como eles, aliás, como eu próprio [risos]. Era um menino... seis anos, por aí,
mas tinha essa preocupação!
Memória MPM – As aulas eram em casas de família?
João Alfredo da Silva – Sim, eram completamente informais, na
base da curiosidade.
Memória MPM – E aí completou os estudos e veio para Fortaleza?
João Alfredo da Silva – Vim para Fortaleza e estudei no Grupo
Escolar Presidente Roosevelt, numa das principais avenidas de Fortaleza, a
Bezerra de Menezes; depois, fiz admissão e fui para o Ginásio 7 de Setembro,
hoje Colégio 7 de Setembro. Terminei o Ginásio e fiz dois anos no Liceu
do Ceará. Do Liceu fui para o Colégio Porto Carreiro, em Recife, onde fiz
o terceiro ano do colegial, concluindo em 1954. Simultaneamente, servi no
Exército. Então, fiz vestibular.
Memória MPM – O senhor fez o Clássico?
314
JOÃO ALFREDO DA SILVA
João Alfredo da Silva – O Científico; depois fiz o vestibular para
a Faculdade. Matriculei-me em 1966, me formei em 26 de fevereiro de 1971
e fiz três anos de Advocacia Trabalhista. Em 27 de novembro de 1972, saiu a
publicação, no Diário Oficial da União, de minha nomeação a primeiro substituto
de procurador de terceira categoria junto à Procuradoria da Auditoria da 10ª
Circunscrição da Justiça Militar. Foi uma indicação do colega Carlos Alberto
Borges, há pouco tempo falecido. Fiquei no Ministério Público. Aposentei-me
em 25 de abril de 1991. Meu tempo de serviço total é de 38 anos.
Memória MPM – E como se deu a opção pelo Direito?
João Alfredo da Silva – Ah, eu gostava de Direito desde o colégio.
Memória MPM –Tinha alguém na família com tradição no Direito?
João Alfredo da Silva – Ninguém! Tinha um irmão que era professor.
Mas, enfim, acho que eu era vocacionado. No exercício funcional, o tempo mais
acre, mais dificultoso foi na vigência da Lei de Segurança Nacional, porque os
tipos penais eram muito imperfeitos... Tínhamos uma carga muito grande de
serviço e precisávamos enfrentar vários advogados. Havia processos vultosos. O
mais volumoso teve 37 acusados. Aqui pontificaram advogados célebres, como
Heleno Cláudio Fragoso, [Antônio] Jurandy Porto [Rosa], um rapaz muito
competente, [Antonio de] Pádua Barroso, Antônio Carlos [de Araújo] e muitos
outros...
Memória MPM – A Dra. Mércia [Albuquerque Ferreira] também atuou
aqui? Ela era de Recife e teve algum caso em Brasília também...
João Alfredo da Silva – Não, a Dra. Mércia, esteve no Recife...
Eu atuei, por exemplo, em Belém. Penso que o ambiente em Fortaleza, na
315
HISTÓRIAS DE VIDA
Auditoria, apesar do contexto da época, era de certa forma tranquilo, porque
tínhamos uma visão superior do exercício funcional do Direito: fazíamos o nosso
trabalho e se a defesa vencesse, estava bom, isto é, não nos sentíamos obrigados
a fazer a denúncia vingar sempre. Por sua vez, a defesa também aceitava nosso
desempenho. Em Belém, o pessoal pautava-se por outro comportamento.
Aqui, era a técnica exigida pelo Código de Processo Penal, nada além disso. A
gente trabalhava nesse sentido, não tinha nada de pessoal. Uma vez passei dois
meses em Belém, na época do procurador-geral Dr. Milton Menezes da Costa
Filho, e senti esse clima diferente, que nós, felizmente, não tínhamos.
Depois, passando a serem julgados somente os crimes propriamente
militares, a coisa ficou fácil. O Ministério Público melhorou muito porque a
estrutura e o apoio logístico avançaram. As pessoas hoje vivem muito bem. Há
uma sede própria, um quadro de servidores excelente... que nós não tínhamos.
Éramos hóspedes da Auditoria Militar. A hospedagem hoje não
existe mais, mas se preserva um bom relacionamento... Não fui mais lá porque
estou com 81 anos e já não conheço os juízes e o pessoal de apoio.
Memória MPM – Bom, voltando ao tempo da Faculdade, quais são as
lembranças dessa época, dos professores, da formatura?
João Alfredo da Silva – Ah, eu guardo algumas coisas ainda na
memória, inclusive algumas hilárias, porque havia professores de todos
os matizes. Havia um, muito bom, de Direito Comercial, que não perdia
oportunidade para fazer uma piada. Um colega, certa feita, chegou para ele
reclamando de uma nota. Ele tinha a mania de olhar o aluno por cima dos
óculos. O colega disse: “Professor, estudei tanto e olhe a nota que o senhor me
deu!”, e ele disse: “Estude menos e raciocine mais!” [risos]. Chico Olavo!
316
JOÃO ALFREDO DA SILVA
Há um livro, intitulado Um caso de álibi, publicado pelo professor
Clodoaldo Pinto, no qual se resume um julgamento de um crime em
Maranguape. Era uma súmula muito bem-feita, um resumo da tese que ele
defendeu na época. Recebi esse livro de presente, de um procurador, hoje
subprocurador aposentado da Justiça Federal, Raimundo Francisco Ribeiro
de Bonis (foi meu colega de colégio). Depois encontrei esse livro num sebo,
dedicado pelo próprio autor ao Chico Olavo [risos]. Isto é, ele descartou o
livro e eu o comprei e o guardo com todo carinho ainda! Fiquei com os dois
exemplares [risos].
Memória MPM – Como era a ambiência? Porque esse foi um período de
efervescência política e estudantil: pegou “Maio de 68” e algumas Universidades do
Brasil, como a UnB e UFRJ, no Rio de Janeiro, foram ocupadas, pela Polícia ou pelo
movimento estudantil...
João Alfredo da Silva – Aqui nós tivemos alguma efervescência;
um dos cidadãos que tinha militância expressiva era o Zé [ José] Genoino
[Guimarães Neto], que foi deputado federal. Ele era da área de Letras, mas vivia
na Faculdade de Direito, exatamente porque o ambiente era potencializado.
Não guardo dele nenhuma inimizade. Ele certamente nem se lembra de mim!
Passei essa época sem me envolver ideologicamente. Não tomei partido por
ninguém. Ele tinha uma atuação fabulosa lá dentro, mas não me deixei envolver.
Memória MPM – Aconteceu de os alunos ocuparem a Faculdade?
João Alfredo da Silva – Não. Houve um fato, interessante, em 1967,
que não mereceu apoio da estudantada, apesar de, na época, sermos todos
nós calouros. O general Dilermando Gomes Monteiro foi proferir uma aula
inaugural e houve quem fosse deselegante com ele, dizendo da desnecessidade
317
HISTÓRIAS DE VIDA
daquela palestra. Foi constrangedor, porque o general era muito educado. Um
colega, o Welington, que faleceu também há um ano e pouco, tomou a palavra
e pediu desculpas ao general [e pediu] para ele não julgar o perfil dos demais
pelo comportamento de alguns. O general agradeceu a delicadeza dele.
Interessante, agora que falei do general, lembrei que nunca hou-
ve, durante minha atuação no Ministério Público, qualquer interferência
do Comando da Região. Nenhum comandante da Região pediu-me qualquer concessão!
Apenas houve, durante esse tempo todo, uma interferência boba de
um general da reserva, Vica de Paula Pessoa, que me pediu a condenação de
um acusado. Aí eu disse: “General, esse pedido o senhor não me faça; do meu
exercício funcional dou conta”. Ele não mais insistiu.
Houve também um coronel, ajudante-geral, encarregado de um
inquérito que indiciou o jornalista Teobaldo Landim. Eu me manifestei pela
inadequação do foro: não era lá que deveria responder por aqueles fatos. Aí
[o coronel] disse: “Puxa, eu faço tudo para botar eles na cadeia e você dá pela
incompetência do foro!”. Mas o caso era de desclassificação e eu não iria forçar
ninguém a responder processo na Justiça Militar para atender às expectativas de
alguém. Ele se conformou...
Essas, felizmente, foram coisas passageiras; além disso, não me recordo
de qualquer outra pressão... nunca!
Memória MPM – Como o senhor foi indicado para a vaga de substituto?
João Alfredo da Silva – Eu fui auxiliar do Carlos Alberto [Borges].
Ele foi designado para a função e me consultou se aceitaria a indicação. Então
318
JOÃO ALFREDO DA SILVA
eu disse: “Carlos Alberto, se você acha que tenho qualificação para isso, tenho
habilidade e mereço sua confiança, aceito.”.
Memória MPM – Na época, ele era advogado?
João Alfredo da Silva – Não, era substituto de procurador; foi efetivado
e me indicou. Meu nome percorreu toda a área de informações, os “SNIs da
vida”, e outros locais mais. Felizmente não tinha nada, porque, na verdade, eu não
tinha envolvência política, ideológica. Então, passou, não tive problema.
Memória MPM – Precisou realizar alguma entrevista?
João Alfredo da Silva – Nenhuma, por incrível que pareça! Ninguém
me chamou para nada [risos]. Porque eu fui muito exigente comigo mesmo,
nunca tive vocação para a transigência... Sempre procurei dar conta do meu
recado sem me envolver com ninguém. Um colega, Fernando César Porto
Mendonça, tinha muita intimidade e dizia: “Por que mandaram esse “nego” para
cá? Foi para espionar a gente!” [risos]. Mas, na verdade, eu não fui para espionar
ninguém; fui lá e dei conta do meu papel, sem precisar da proteção de ninguém,
graças a Deus!
Memória MPM – O senhor comentou que os militares nunca pediram
nada, e a Procuradoria-Geral da Justiça?...
João Alfredo da Silva – Também não.
Memória MPM – Do Rio de Janeiro e depois de Brasília, alguma vez
teve alguma orientação, solicitação?
João Alfredo da Silva – Não, não... Eu peguei vários procuradores-
-gerais: o Ruy [de Lima Pessôa], foi meu amigo, ministro, veio aqui, muito
319
HISTÓRIAS DE VIDA
distinto! Eu me dava bem com o governador César Cals [de Oliveira Filho]
e certa vez lhe telefonei pedindo apoio para fazermos uma pequena recepção
para o Dr. Ruy, que viria nos visitar. A Procuradoria não gastou um centavo e
o recebemos com um bom jantar!
Memória MPM – O César Cals foi ministro de Minas e Energia...
João Alfredo da Silva – Foi. Atuou muito na área do polígono das
secas, junto à hidrelétrica de Boa Esperança e teve uma atuação positiva em
favor do Nordeste. Depois do Ruy...
Memória MPM – Veio o Milton [Menezes da Costa Filho], não é?
João Alfredo da Silva – É, foi o Milton e depois dele passou um
bocado de gente...
Memória MPM – Depois do Milton veio um que ficou meses, George
Tavares, seguido pelo senador Leite Chaves.
João Alfredo da Silva – Leite Chaves! Com ele também tinha um
excelente relacionamento, com uma deferência muito grande pela gente; ele
aceitou um almoço na minha residência. Era muito distinto e eu gostava
muito dele.
Memória MPM – O Leite Chaves organizou, em 1986, o Primeiro
Encontro Nacional dos Procuradores de Justiça...
João Alfredo da Silva – É, ele tinha até algumas áreas de atrito, por
exemplo, com o procurador da Bahia, o Dr. Kleber [de Carvalho Coêlho]; o
Kleber não focava bem o Leite Chaves, mas tudo passou...
320
JOÃO ALFREDO DA SILVA
Memória MPM – O Kleber foi assessor do ministro Ruy [de Lima
Pessôa], não é?
João Alfredo da Silva – Foi, exatamente!
Memória MPM – Foi ascendendo na carreira e chegou a procurador-geral...
João Alfredo da Silva – É, fez concurso... Eu não cheguei a fazer
concurso porque fui indicado e, depois, pela Constituição de 88, fui efetivado
por força das Disposições Transitórias, um dispositivo que está lá, ainda.
Memória MPM – O senhor se lembra de algum caso que tenha lhe
chamado mais a atenção pelos aspectos jurídicos, pelos personagens envolvidos, pelo
desempenho dos advogados ou pelo impacto que teve na opinião pública?
João Alfredo da Silva – Não, aqui não. Em Manaus, houve o
julgamento do Lula, muito concorrido; veio gente de todo o Brasil.
Miriam Monteiro da Silva (esposa) – Ele passou um mês lá.
Memória MPM – Um mês! Mas como foi, o senhor fez a preparação?...
João Alfredo da Silva – Eu peguei um “abacaxi”... O processo
empilhado dava mais de um metro de papel. Tinha muita precatória indo e
voltando; o calhamaço era grande. Fui lá sem saber de nada e, quando cheguei,
o diretor de Secretaria me disse: “Você sabe o que está lhe esperando aqui?”; eu
disse, “Não!”. “É o julgamento do Lula!”. Aí disse: “Pô, isso é uma sacanagem!”.
Memória MPM – Mas o Lula já era um personagem conhecido?
João Alfredo da Silva – É, já era um agitador! Foi algo que ele disse
em Brasileia...
321
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Ele fez um discurso num comício no Acre...
João Alfredo da Silva – Exatamente, e isso teve repercussões e ele
respondeu a processo lá. Veio muita gente de fora. Nosso juiz-auditor caiu
na besteira de deixar o fax ligado e, simplesmente, passou rodando as 24
horas antecedentes ao julgamento: amanhecemos com um monte de papel;
tinha muita matéria para ler. Mas o colega que deveria ter me substituído
entrou em férias e sobrou para eu resolver. Ele não devia ter feito aquilo.
Passei uma semana estudando aquele processo para entender a mística
da acusação, porque o nosso colega fez uma alegação mínima, quer dizer,
deixou o “abacaxi” todo para a sustentação oral... quase me matou! O Heleno
Cláudio Fragoso o defendeu.
Memória MPM – Mas o senhor chegou a fazer o julgamento?
João Alfredo da Silva – Fiz, julgamento e atuação em Plenário.
Memória MPM – Mas houve dois julgamentos?
João Alfredo da Silva – Não sei dizer, eu atuei em apenas um.
Memória MPM – Houve vários que atuaram no processo, mas sempre
em substituição e sei que o ministro Olympio [Pereira da Silva Junior] chegou, numa
sessão do julgamento, a pedir a prisão preventiva do Lula...
João Alfredo da Silva – Foi.
Memória MPM – Então, teve vários momentos esse processo de Manaus?
João Alfredo da Silva – Foi.
Memória MPM – E aqui, em Fortaleza, como era a rotina na Procuradoria?
322
JOÃO ALFREDO DA SILVA
João Alfredo da Silva – Na época dos crimes contra a Segurança
Nacional havia audiências todos os dias; cansativa batalha! E eu guardo a
vaidade de nunca ter faltado e nunca perder um prazo. Houve sobrecarga
durante certo período em que um colega se ausentou, com licença. Fiquei só
no batente. Era cansativo, mas dei conta do recado, porque eu – esse autoelogio
não posso deixar de fazer –, sempre fui muito rígido em matéria de trabalho. Se
tinha trabalho para fazer, fazia, e fui recompensado. Cheguei até a passar mal,
certa feita, e um colega me socorreu na audiência: anunciou para o juiz-auditor
que eu não estava passando bem; o juiz suspendeu um pouco, melhorei e voltei
para a audiência... E assim segue a vida!
Memória MPM – E o perfil das pessoas julgadas, os réus? Nessa época,
da Lei de Segurança, eram mais jovens, estudantes, professores, jornalistas... Quem
eram essas pessoas?
João Alfredo da Silva – Além do Teobaldo Landim, que foi apenas
indiciado, teve o jornalista Lindolfo Cordeiro. Houve outros. Se deixaram
levar pela propaganda e se envolveram “bestamente”. Teve até um rapaz que
contrastava com a idade de todos eles, não me lembro também do nome, mas
ele respondeu a processo desnecessariamente porque era um homem que não
tinha “letras”, acho que era um menino de recado. E o Pádua Barroso, um
excelente advogado, também muito tranquilo, fazendo a defesa dele, na hora
da atuação, concitou o Conselho a ver com tranquilidade, imparcialidade, a
situação daquele rapaz – todos muitos jovens, etc. e tal. Aí, põe os óculos e
diz: “Esse rapaz não está tão jovem assim! [risos]. Foi uma risada geral! [risos].
Mas era esse tipo de piada respeitosa, faziam o chiste, mas depois não ficava
inimizade nenhuma. Terminava o julgamento, acabou! Um advogado que
atuou aqui, também, muito distinto, foi o Raimundo Evaldo Ponte, advogado
323
HISTÓRIAS DE VIDA
antigo, mas que sabia conduzir-se com elegância; nunca destratou ninguém,
era um cidadão espetacular!
Memória MPM – A Auditoria, aqui, foi instalada em 1964?
João Alfredo da Silva – Foi, funcionava no Fórum, numa salinha
simples, muito sem expressão.
Miriam Monteiro da Silva (esposa) – Outro foi o Blanchard Girão!
João Alfredo da Silva – [ José] Blanchard Girão [Ribeiro]! Advogado
e jornalista; tem livro publicado. Uma pérola de criatura! Muito cortês, incapaz
de, fora do ambiente do processo, produzir qualquer ofensa ou de utilizar a
imprensa para qualquer fim. Ele nunca fez isso!
Memória MPM – No início da Auditoria, aqui em Fortaleza, acho
que apareceram alguns casos mais pesados, de jovens que fuzilaram um militar que
estava namorando na praia... teve casos de assalto a bancos. Em seu período, o senhor
chegou a pegar algo assim?
João Alfredo da Silva – Não, muitos deles foram julgados no Recife,
pois a competência era de lá. Eu assumia quando o processo era todo realizado
aqui mesmo.
Memória MPM – Houve algum caso de pedido de prisão perpétua ou
pena de morte aqui?
João Alfredo da Silva – Prisão perpétua acho que houve um, mas
feito na época do Julio Carlos Crispino Leite. Creio que o único caso foi dele...
Mas ele tinha motivos para o fazer, porque a lei não abria outra alternativa: era
pena de morte ou perpétua, e ele pediu a segunda.
324
JOÃO ALFREDO DA SILVA
Memória MPM – E no seu caso, houve situações em que o senhor chegou
a pedir absolvição?
João Alfredo da Silva – Houve, houve... A Lei de Segurança
Nacional, tanto a nº 1.802 [de 05.01.1953], como a que a sucedeu, tinha uns
tipos penais terrivelmente difíceis de serem ajustados aos fatos ou os fatos
ajustados a eles. Eram terríveis! Tínhamos que fazer “uma ginástica” tremenda
e isso facilitou demais a vida da defesa. Não tem quem trabalhe bem com
tipos malfeitos. Aquela diretriz no início do Código Penal: “Não há crime
sem lei anterior que o defina, nem...”, bom, não estou lembrando a descrição
legal... [pena sem prévia cominação legal.”]. Mas tem que haver a descrição do
tipo e aquela Lei de Segurança Nacional era de uma imprecisão terrível! Uma
colcha de retalhos, às vezes, inconciliável. Então, se disser que trabalhar com a
1.802 era fácil, não é verdade, e isso facilitou para a defesa. Havia dificuldade
de homologar as provas!!! Nós tivemos um juiz-auditor muito bom, o Ângelo
Rattacaso, um cidadão que não se rendia a ajustes fora da lei; lei é lei: com ele
era assim. E isto dava um trabalho grande, mas em muitos casos obtivemos
condenação.
Memória MPM – O senhor tem alguma ideia da porcentagem de
condenação dos réus: 50%, 60%...
João Alfredo da Silva – Não tenho mais... Mas, em razão da
quantidade de réus, quase sempre era meio a meio. Nos processos de menor
quantidade de réus, na maioria, eram absolvidos. Havia uns advogados cricris,
caras persistentes, insistentes, que andavam atrás de tudo e não dispensavam
nada e isso também deixava o Conselho, às vezes, num beco sem saída... Sem
dúvidas! Isso que aqui nós tivemos bons juízes de fato e de Direito, também.
325
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Costumava haver divergências entre o juiz-auditor
e o Conselho?
João Alfredo da Silva – Ah, havia! Acontecia três a dois com
frequência! Sempre dividia... Não existia quase nunca unanimidade na
decisão. Tinha uns mais “mãos-pesadas” e outros mais benevolentes e a coisa
saía da unanimidade.
Memória MPM – O senhor acha que isto era uma característica de
Fortaleza ou era geral?
João Alfredo da Silva – Não sei... O interesse do juiz era pelo
entendimento. O Rataccaso, por exemplo, era muito detalhista: fazia questão
de explicar a fundamentação jurídica daquilo da melhor maneira possível, para
que os membros do Conselho não ficassem em dificuldades. E ele conseguia
isso, porque era realmente um rapaz preparado. Não era condução, era
fundamentação jurídica que fazia da melhor maneira possível.
Memória MPM – Ângelo Rattacaso era juiz-substituto?
João Alfredo da Silva – Ele foi substituto e depois titular. Sempre
se conduziu da melhor maneira, como substituto e como titular: era muito
abrangente na fundamentação jurídica. Primo do nosso colega Giovanni
Rattacaso...
Memória MPM – Que hoje é o presidente da Associação...
João Alfredo da Silva – Exatamente!
Memória MPM – E dos resultados, das decisões da Auditoria e do
Conselho... era comum a defesa recorrer?
326
JOÃO ALFREDO DA SILVA
João Alfredo da Silva – Ahhh, demais!!! Não passava um processo
que não recorressem! Muitas das decisões eram mantidas, mas algumas
também eram reformadas, porque não alcançavam unanimidade no Tribunal.
Memória MPM – E o senhor costumava recorrer, também?
João Alfredo da Silva – Também, tendo brecha, não deixava de
recorrer, porque podia parecer pusilanimidade, da minha parte, defender aqui
uma tese acusatória e depois me acomodar. Dava trabalho, mas nunca deixei
de fazer.
Memória MPM – E essas decisões costumavam repercutir na imprensa
local? Porque em algumas cidades, alguns Estados, chegava a existir uma coluna,
quase diária nos jornais, que reproduzia os feitos julgados. Isso acontecia aqui,
também?
João Alfredo da Silva – Não, não tínhamos essa regularidade.
Dependendo das pessoas envolvidas, o fato merecia destaque na imprensa,
mas não tinha esse problema de citar o nome do promotor, do procurador.
Era uma notícia informal; não era direcionada nem para a defesa nem para
o Ministério Público
Memória MPM – Mas o senhor era conhecido, na cidade, como
promotor militar...
João Alfredo da Silva – Eu sempre vivi aqui e, felizmente, sempre fui
muito bem acatado e recebi muito respeito por parte dos colegas que atuavam
na defesa. Nunca tive problema de foro, de processo, bate-boca.
Memória MPM – E com a imprensa?
327
HISTÓRIAS DE VIDA
João Alfredo da Silva – Também não.
Memória MPM – Alguma vez o senhor chegou a ser ameaçado?
João Alfredo da Silva – Nunca! Nunca recebi ameaça de
qualquer natureza.
Memória MPM – Então sua atuação foi relativamente tranquila?
João Alfredo da Silva – Eu considero minha atuação muito feliz.
Certamente, atribuo isso ao zelo com que me conduzi. Nunca fiz favor, como
no caso do coronel encarregado do inquérito, nem ao general da reserva... Não
faço favor! Havia, também, uma moça, que respondia por um crime da Lei
de Segurança Nacional e que a mãe era muito “penetra”... Ela chegava aqui
e dizia: “Eu quero falar com o senhor.”, e eu dizia: “Aqui mesmo, senhora.”.
Ela queria me levar para um lugar reservado e eu dizia que não, “A senhora
fala aqui comigo, na frente de todo mundo!”, porque eu não queria que ela
nem ninguém levantasse suspeita. A filha dela era uma militante empedernida,
Rosa [Maria Ferreira] da Fonseca [Nascimento].
Memória MPM – Essa moça ficou muito tempo presa?
João Alfredo da Silva – Ela ficou enclausurada algumas vezes, não
lembro quanto tempo, porque respondeu a vários processos, mas não lembro a
quantidade nem tampouco a estatística das condenações.
Memória MPM – Após o regime militar terminar, e até antes, já se
discutia muito, no Brasil, o problema dos maus-tratos aos presos. Há o rumoroso caso
do [Vladimir] Herzog, em 1975, um divisor de águas... Chegavam à Auditoria ou
à Procuradoria denúncias de maus-tratos?
328
JOÃO ALFREDO DA SILVA
João Alfredo da Silva – Do Herzog ficamos sabendo pela imprensa,
como todo mundo. Esse caso, de fato, deixou os militares numa situação difícil,
porque a posição em que estava o corpo do Herzog, para um suicídio, era
muito precária. Convenhamos, não convencia ninguém... o cidadão se suicidar
com as pernas encostadas!!!
Memória MPM – Os joelhos fletidos... e com o cinto...
João Alfredo da Silva – Não convencia ninguém!
Memória MPM – As pessoas podiam ficar com os cintos nas celas?
João Alfredo da Silva – Havia muita negligência naquela época.
Então, podia acontecer, sim. As pessoas não tinham vivência com aquele tipo
de procedimento. Agora, aquilo foi imperdoável, não deveria ter existido.
Memória MPM – E na Auditoria de Fortaleza, os presos costumavam
queixar-se de situações semelhantes ou não?
João Alfredo da Silva – Sim. Nas audiências havia reclamações,
muitas delas, infundadas, coisas que tiravam do bolso do colete para poder
perturbar o andamento do processo. Tinha uma advogada, falecida, que merece
meu respeito, mas que era muito envolvente, a Dra. Wanda [Rita] Othon Sidou.
Atuante, trabalhadora, mas acho que conduzia muito o pessoal para a área da
alegação de maus-tratos. Devo respeitar a ausência dela, porque não é apenas
física, é eterna, completa. Eu parto daí, porque não tenho elementos para dizer
que era, de fato, dessa maneira. Numa oportunidade, uma testemunha chegou
a dizer: “A doutora Wanda me disse que falasse dessa maneira.”. Caiu muito
mal, porque era induzimento da testemunha. Ela ficou braba na audiência. Sem
maldade ou com uma certa indiferença para o fato, não peguei uma certidão
329
HISTÓRIAS DE VIDA
dessa declaração da testemunha. Foi até bom, deixei o tempo passar e se desfez
a imagem.
Memória MPM – Aconteceu de o senhor precisar denunciar algum ex-
colega de Faculdade?
João Alfredo da Silva – Aconteceu... Este cidadão não tem mágoa
nenhuma de mim: Zé [ José] de Arimatéia Ribeiro. Tinha o maior apreço por
mim, porque conduzi a denúncia contra ele sem ser massacrante. Isso eu digo
em consideração ao colega, que era da mesma turma: não carreguei; fui leve na
acusação. E certamente por isso, soube que comentou que o colega tinha sido
muito elegante, porque não tinha se aproveitado da situação para fazer média
em cima dele.
Memória MPM – E os políticos, que hoje pontificam na política regional
ou nacional, algum deles passou pelo senhor?
João Alfredo da Silva – O Genoino passou, mas eu não tive atuação
direta contra ele, porque aqui, quando éramos dois, a carga era dividida.
Então, acredito que o Genoino tenha ficado, nessa época, com o Crispino
ou com outro.
Memória MPM – Quem mais, os Gomes?
João Alfredo da Silva – Não, nenhum dos dois respondeu processo.
Memória MPM – E os crimes propriamente militares, quais eram:
indisciplina, deserção, peculato? O que acontecia?
João Alfredo da Silva – Peculatos houve alguns, envolveram até os
superiores, mas não me lembro, agora, dos personagens.
330
JOÃO ALFREDO DA SILVA
Memória MPM – Coronéis?
João Alfredo da Silva – Exatamente. Mas não me lembro dos
personagens para nominá-los. De Fortaleza, nenhum; lembro-me de outros
Estados: Piauí e Maranhão.
Memória MPM – Na época, a Auditoria jurisdicionava Ceará,
Piauí e Maranhão?
João Alfredo da Silva – Exatamente, a competência estendia-se a
esses Estados.
Memória MPM – E nesses outros Estados, houve algum caso que tenha
lhe chamado a atenção?
João Alfredo da Silva – Esse de Maranhão, foi o caso de peculato
dos coronéis. Deu condenação.
Memória MPM – E de Segurança Nacional, chegavam casos do
Maranhão também?
João Alfredo da Silva – Também, mas não recordo quais eram.
Memória MPM – O senhor chegou a ser promovido para Brasília antes
da aposentadoria?
João Alfredo da Silva – Não, fiquei no cargo de procurador.
Memória MPM – E quando vocês dois se conheceram?
João Alfredo da Silva – Eu e Miriam nos conhecemos há 53 anos.
Graças a Deus, foi uma sociedade que deu certo [risos]. Devo mais a ela do que
331
HISTÓRIAS DE VIDA
ela deve a mim [risos], em matéria de sacrifícios, de contribuição... não tenho
dúvida. Temos quatro filhos e seis netos.
Memória MPM – Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de
deixar registrada?
João Alfredo da Silva – Não, penso que está muito bem.
Memória MPM – Muito obrigado!
332
333
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
Entrevista realizada na residência do depoente, em Brasília, em 6
de maio de 2015, por Gunter Axt e José Luiz Lima de Oliveira.
334
Olympio Pereira da Silva Junior nasceu em 4 de janeiro de 1951, na cidade
do Rio de Janeiro. É filho de Olympio Pereira da Silva e Emília Cardoso
Pereira da Silva. Casou-se com Angela de Lyra Costa. Em 1975, formou-se
em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes, no Rio de Janeiro,
onde mais tarde ministraria a cadeira de Prática Forense. Ingressou na
carreira do Ministério Público Militar em 1976, designado pelo presidente
da República, Ernesto Geisel, para assumir a Procuradoria junto à Auditoria
da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, em Juiz de Fora, onde permaneceu até
1979, quando, então, foi transferido para o Rio de Janeiro, exercendo suas
atividades junto à 3ª Auditoria do Exército. Atuou, ainda, como procurador
junto às Auditorias de Manaus e Santa Maria. Em 1982, foi transferido
para a Auditoria da 4ª CJM, onde permaneceu até 1993. Nesse mesmo ano,
foi nomeado para exercer o cargo em comissão de procurador regional da
Advocacia-Geral da União da 2ª Região, no Rio de Janeiro. Um ano mais
tarde, nomeado pelo presidente da República Itamar Franco, tomou posse
como ministro do Superior Tribunal Militar. Em 2001, foi eleito presidente
daquele órgão. Em 2003, após completar o mandato, reassumiu funções como
ministro do STM. Em 2011, foi eleito vice-presidente do referido órgão para
um mandato de dois anos. Aposentou-se em 2015.
335
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de onde?
Olympio Pereira da Silva Junior – Sou carioca da gema! Nasci em
Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Posteriormente, minha família
se mudou para Ipanema onde passei grande parte de minha infância.
Memória MPM – E como foi a opção pelo Direito? Existia essa tradição
na sua família?
Olympio Pereira da Silva Junior – Meu pai e meu irmão eram
médicos e alguém da família precisava fazer Direito, para ajudá-los, caso
fizessem alguma bobagem [risos]. Mas, na verdade, decidi estudar Direito
porque tinha simpatia pela área. Antigamente, a educação escolar possuía uma
terminologia diferente para os graus básico e médio, chamados respectivamente
de Ginásio e Científico. Estudei em um colégio tradicional, o Colégio Rio
de Janeiro e, quando concluí o Ginásio, fiquei em dúvida sobre qual curso
escolher. Acabei fazendo um teste vocacional que me direcionou para vários
cursos possíveis, dentre os quais, preferi a Medicina.
O Científico durava três anos e oferecia os conhecimentos
relacionados com a área escolhida para quem fosse prestar o vestibular.
Desisti logo na primeira aula quando o professor começou a lecionar química
e desenhou fórmulas no quadro. Depois, escolhi Engenharia por causa do
meu padrinho que era engenheiro. Desisti mais uma vez quando o professor
começou a escrever os cálculos de matemática e as fórmulas no quadro. Eu
estava muito triste com esta indefinição, sentado na lanchonete do colégio,
quando tocou o sinal para o início do segundo período das aulas. Os alunos
se dirigiam para as salas e observei que havia uma escada por onde só subiam
meninas. Fiquei curioso e fui verificar. Quando cheguei à sala percebi que
336
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
se tratava do curso Clássico, no qual se estudavam matérias relacionadas às
Ciências Sociais. Como eram poucos homens e muitas mulheres nas salas,
decidi frequentar aquelas aulas [risos]. Fui ficando...
Optei pelo curso de Direito e, posteriormente, consegui aprovação
no vestibular para a Faculdade Nacional de Direito e para a Universidade
Cândido Mendes, onde meu pai lecionava. Optei pela Universidade Cândido
Mendes, onde me formei advogado. Antigamente, quem concluísse o curso de
Direito já era considerada advogado, mas hoje é apenas bacharel e precisa fazer
o exame da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] para poder advogar. Acho
esse exame um truque, uma espécie de caça-níqueis, porque você qualifica o
profissional pela atuação dele e não por meio de um teste. Minha filha tentou
fazer o exame, mas não foi aprovada na primeira vez. Quando tentei fazer o
exame dela, pude verificar que eu também não seria aprovado. Consegui uma
nota média em Penal, mas no resto me saí muito mal. Esse exame é difícil
porque tem que alimentar os cursinhos. Na minha época bastava se formar
e entregar o diploma na OAB. O meu registro é de 1973: 25446! Estava
pensando em me aposentar e voltar a advogar. Recentemente liguei para a
OAB informando os dados da minha carteira de advogado e eles disseram que
a minha inscrição já tinha perdido a validade e que, atualmente, as inscrições
estavam com números de sete dígitos! Com um número desse tamanho, vão
achar que eu me formei ontem [risos]!
Memória MPM – Quais foram as áreas de atuação depois de formado?
Olympio Pereira da Silva Junior – Na Universidade consegui um
estágio no escritório do Heleno [Cláudio] Fragoso, que foi meu professor e
também era amigo de meu pai. O filho dele era meu colega. Fiquei apenas três
337
HISTÓRIAS DE VIDA
meses como seu estagiário. Como não estavam me pagando, fui conversar com
o professor. Perguntei se ele gostava do meu trabalho e ele disse que sim, que
não havia nenhum problema. Falei para ele que até aquele momento eu não
tinha recebido nenhum pagamento e ele me respondeu com uma pergunta:
“Você veio aqui para ganhar dinheiro ou para aprender?”. Fiquei mais um
mês no escritório e depois me transferi para uma empresa imobiliária do Rio
de Janeiro, de propriedade de Sérgio Dourado Lopes, sempre atuando na
área do Direito.
A minha tendência, contudo, era para o Direito Criminal. Depois
de formado, me convidaram para coordenar a área Criminal do Escritório
Modelo da Faculdade, onde lecionei Direito Penal e Direito Processual Penal.
Nesse período, mergulhei completamente na área Criminal, participando de
júris semanais. Posteriormente, surgiu na minha vida a Justiça Militar da
União, que eu desconhecia, assim como muita gente até hoje não a conhece.
Entrando no Fórum no Rio de Janeiro, subindo as escadas, havia uma porta
onde estava escrito “Auditoria Militar”. Mas como era da Polícia Militar,
nunca me interessei por aquilo. O meu sogro foi coronel da Aeronáutica
e era “cordinha” do ministro Carlos Alberto Huet [de Oliveira] Sampaio,
apelidado de “Bebeto Nescau”, por causa de um tique que ele tinha – passava
a ponta da língua sobre os lábios, como se dissesse “hummm!...”, o que
lembrava uma propaganda do achocolatado Nescau, veiculada na época. Certo
dia, meu sogro me convidou para assistir a uma sessão da Justiça Militar
da União. Foi em 1973, ano em que o Tribunal saiu do Rio de Janeiro. O
ambiente, com os conselheiros fardados em gala, era impressionante, mas
também familiar. Meu pai servira o Exército, na Artilharia Montada. Era
oficial R/2 quando foi convocado para lutar na Segunda Guerra, onde
338
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
acabou ferido. Minha vida toda achei que se ferira em combate, que ele era
herói. Mas depois descobri que tinha sido em um acidente de jipe, que ele
dirigia [risos]. Ferido em guerra, voltou para o Brasil, podendo entrar na
lista de oficial. Mas aí fez vestibular para Medicina. Era pobre. Conseguiu
se formar e acabou deixando o Exército. Sempre gostei do clima que havia
em casa e dos hinos da Artilharia Montada que meu pai cantava. Assim,
achei interessante o Ministério Público Militar e comecei a me informar
a respeito, a “beliscar” daqui, dali. Em 1976 fui nomeado promotor, pelo
presidente Ernesto [Beckmann] Geisel.
Memória MPM – Como funcionava essa nomeação? Tinha indicação?
Olympio Pereira da Silva Junior – Tinha. A época era danada!
Não havia concurso. Quando me interessei pela Justiça Militar, o Bebeto
deu o arranque. Só que o tempo passou e nada aconteceu. Fui falar com
um ex-colega de Faculdade, o Fernando Falcão, filho do ministro da Justiça
Armando [Ribeiro Severo] Falcão, e descobri que meu nome estava no SNI
– Serviço Nacional de Informações, com restrições, porque me candidatara
ao Diretório Acadêmico na Faculdade. Pô, eu nem tinha vencido a eleição!
Como eu tinha bons padrinhos, consegui ser chamado para uma entrevista
em Brasília, conduzida por uma “rapaziada boa” da época. Viram logo que a
minha tendência era essa mesmo e acabaram me aceitando.
Em 1976, eu era jovem e quando se falava em Justiça Militar,
tremiam as bases, parava tudo. Não tinha Supremo, nem nada! “O que você
é, guri?”. “Sou promotor da Justiça Militar...”. Como se diz lá em Minas,
“mandava para mais de metro”. Tinha bastante cartaz. O procurador-geral
de Justiça Militar era o Dr. Ruy de Lima Pessôa.
339
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Houve algum processo que lhe chamou mais
sua atenção?
Olympio Pereira da Silva Junior – Foram muitos. Não apenas
processos, mas lances incríveis! Comecei no Rio de Janeiro. Ainda estava lá
quando aconteceu o caso da bomba do Riocentro. Nesse dia eu estava na 3°
Auditoria Militar junto com o Jorge Dodaro. Nós dois fomos falar com o
general, comandante da Região. Depois apareceu alguém carregando o caixão
com o corpo do sargento. A coisa ficou feia! O general era um homem de baixa
estatura e que depois faleceu vítima de infarto. Tivemos pouca participação
nesse caso do Riocentro. O primeiro auditor com quem trabalhei no Rio de
Janeiro foi o Dr. Edmundo Franca de Oliveira.
Outro caso aconteceu no dia em que o general me ligou dizendo:
“Vamos ao cais do porto porque apreenderam um contêiner que veio de
Washington.”. Chegando lá, tinha um contêiner enorme, de 70 m3, com um
buraco que disseram ser resultado de uma queda. Não acreditei nisso. Tinha
um manifesto grudado que dizia “Segurança Nacional – Exército Brasileiro –
Não Mexer”. Quando abriram o contêiner, havia no interior várias sandálias do
tipo Melissa “trançadinha” e chips de computador, tudo oriundo de contrabando.
Essas sandálias, não tinha no Brasil. Era uma coisa de doido! O general, pelo
telefone, disse que era para apreender toda a carga. Essa foi a primeira prisão
internacional que vi acontecer pelo telefone. Quando voltamos para a Auditoria,
o general ligou para o coronel Agissé [da Silva] Bahia, agente responsável de
Washington, dizendo “Se apresenta aqui depois de amanhã porque você está
preso por contrabando!”. Ele foi preso. Porém, o Agissé Bahia era um sujeito
diferenciado, que poderia ser considerado o primeiro da turma desde o jardim
de infância. Tinha muitas medalhas e fez inclusive um curso em Washington,
340
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
onde ficou na frente de todos os candidatos. Meti a caneta nele! Ele pegava
as muambas e guardava na residência de um amigo na Ilha do Governador.
Quem era o amigo dele? O Hélio Gracie, lutador de jiu-jitsu.
Fomos até o sítio do Hélio Gracie e apreendemos as muambas. Eu
ia mandar prender o Hélio Gracie, mas resolvi arrolá-lo como testemunha.
Ele se apresentou para dar o depoimento e levou todos os filhos. Os Gracie
todos! O Dodaro brincava comigo dizendo que quando a audiência acabasse
eu iria apanhar muito [risos]. Esses Gracie eram mal-encarados. O juiz
era o [Osvaldo de] Lima Rodrigues [ Junior], apelidado de “Ó-ponto”, por
causa de sua assinatura. Ele iniciou perguntando se a testemunha prestava o
compromisso de dizer a verdade sob as penas da lei. Eu tinha mania de ficar
em pé na bancada, de uma forma um pouco intimidadora, olhando para a
testemunha. O Hélio respondeu para o juiz “Eu só falo a verdade!”. Quando
o juiz ia dar prosseguimento ao caso, pedi a palavra e disse para a testemunha
que ele deveria dizer “Eu me comprometo a dizer a verdade.”, que só aquilo
que ele havia falado não bastava. O velho me deu uma encarada. O Osvaldo
perguntou de novo e a testemunha repetiu que só dizia a verdade e insisti,
novamente, que ele deveria falar direito. O Osvaldo me olhou e disse, “Mas
ele está dizendo que só fala a verdade!”. Os filhos dele me encaravam e o
Dodaro falando “Vai apanhar, vai apanhar!” [risos]. Por fim ele disse a frase
como mandava o figurino e prosseguimos o caso.
O Agissé, que estava sendo processado, fazia uma série de perguntas
para o advogado dele. O advogado dele era pai de um colega meu de Faculdade.
Ele era muito inteligente, mas era malandro. Em determinado momento, o
processo estava muito ruim para o lado dele, inclusive íamos chamar o Conselho
e pedir para caçar a patente de militar do Agissé Bahia, quando o advogado
341
HISTÓRIAS DE VIDA
me disse que ia pedir juntada de um livro de Contabilidade com vários
registros. Você vê que o cara é um canalha por causa disso. Dentre os itens, o
primeiro da lista, um conjunto de radioamador para um importante general;
um conjunto de polo vindo do Canadá para outro; e assim por diante. Isso
era comum; pô, quando os colegas viajavam, nós pedíamos que comprassem
algumas coisas do exterior! Mas o advogado tinha a relação de tudo! Peguei o
livro e mostrei para o general Samuel Teixeira Primo, presidente do Conselho
e comandante da 1ª Brigada de Artilharia Antiaérea, que me disse que não
iria permitir a juntada. Mas falei que isso ia ser pior porque o Agissé entraria
com HC [Habeas Corpus]. No momento da audiência havia cerca de vinte
jornalistas e o general Samuel me disse que a negação da juntada não ia dar
certo. Falei para ele que, como se tratava de um oficial graduado, era melhor
fazer a audiência em sigilo. Na época podíamos fazer isso, mas atualmente não
é possível. O general disse “Ótima ideia, esvazia a sala, todo mundo!”. Então,
eles fizeram a juntada do livro, que o general já sabia. Depois disso, o processo
foi arquivado, me transferiram para Juiz de Fora e o Agissé Bahia pediu para
entrar para a Reserva. Assim as coisas se acomodaram. Eles tinham que me
transferir daquele lugar porque eu não deixava as coisas acontecerem daquele
jeito. Troquei de lugar com o Paulo “Maluco” [César de Siqueira Castro], de
Curitiba, apelidado assim porque piscava de um jeito peculiar.
Memória MPM – Ele foi designado para as buscas ao corpo do ex-
deputado Rubens Paiva? Isso foi bem noticiado nos jornais de 1987 porque ele ficou
cavando na Barra da Tijuca.
Olympio Pereira da Silva Junior – Exatamente. Depois de trocar
com o Paulo, troquei com o [Ronaldo] Petis [Fernandes]. Era possível abrir
mão de 20% dos vencimentos para poder advogar. Mas decidi me dedicar
342
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
apenas ao Ministério Público Militar. Fui para Juiz de Fora e o Petis continuou
advogando. Como diz o Roberto Carlos, “Foram grandes emoções!”. Devido
às proximidades com o quartel e com a Lei de Segurança Nacional, trabalhar
no Ministério Público Militar representava muito poder.
As estradas eram ruins e havia muitos acidentes no trajeto do Rio
de Janeiro para Juiz de Fora. Viajei várias vezes de ônibus, saindo terça-feira de manhã do Rio de Janeiro e voltando depois do final da sessão, na
quinta-feira à tarde. Em uma dessas voltas de Juiz de Fora para o Rio de
Janeiro, durante a noite – uma escuridão tremenda na estrada – e fazia um
frio disgramado, eu estava sentado no ônibus lotado, armado, como sempre.
Ando armado até hoje, mas antigamente tinha mais vontade. Passando pela
cidade de Comendador Levy Gasparian, na fronteira de Minas Gerais com
o Rio de Janeiro, o motorista parou para ajudar outro veículo que estava na
pista. “Que socorro que naadaa!...”, não deu tempo de avisar o motorista!
Um grupo encapuzado e armado invadiu o ônibus e começou a assaltar as
pessoas. Pensei em reagir, mas acabei desistindo com medo de ferir alguma
pessoa inocente. Alguém poderia morrer e ia ser uma desgraça! Quando
eles estavam dois bancos na minha frente, um dos assaltantes olhou para
mim e gritou para o grupo: “Vamos embora, é o promotor!”. Se fosse hoje,
teriam me matado. Paramos na Delegacia, em Três Rios, para prestar queixa
e me perguntaram se conhecia os assaltantes. Disse que não, mas que eles
me conheciam e que poderiam ser soldados de Juiz de Fora. Escaparam
com o roubo, mas depois foram pegos. Naquela época existia respeito pelas
autoridades. Hoje, se avistam um policial, os bandidos trucidam-no, levam-
no para a favela e o colocam no “micro-ondas”. Eles teriam me matado sem
pensar duas vezes.
343
HISTÓRIAS DE VIDA
Eu tinha um Passat, da Volkswagen. Certa vez, atrasado e ansioso
para chegar ao Rio de Janeiro, em uma curva, onde hoje tem um pedágio,
havia uma blitz da Polícia Rodoviária Federal. Estava com arma na cintura,
era jovem, carregando processos para casa e decidi atravessar a fila pelo
acostamento. Passei pelos carros e pelas caminhonetes da PRF. Comecei a
escutar buzinas, apitos, atrás de mim: “pipipi-pipipi!”. Parei o carro e vieram
dois policias, um deles gordo e arfando. Desci com a arma na cintura e falei,
dono da razão: “O que está acontecendo? Sou promotor militar, estou cheio
de processos e com pressa!”. O policial gordo colocou a mão no capô do carro,
tomando fôlego, e disse: “Sebastião, dá uma multa rápida ao promotor que ele
está com pressa!” [risos]. Peguei a multa e fui me embora. Saí dali pensando
em como esses policiais foram bacanas comigo e que, mesmo eu usando a
prerrogativa da autoridade, eles não deixaram de cumprir a lei. Que caras bons!
Mandaria chamar eles se um dia precisasse de pessoas assim.
A estrutura de trabalho era meio precária. Em todo o Brasil,
as Procuradorias ficavam dentro das Auditorias, em uma sala. A própria
Procuradoria-Geral ficava num andar do prédio do STM. Isso estava errado
porque se o promotor brigasse com um juiz por alguma coisa, não havia nada
documentado. Dependíamos da boa vontade do juiz-auditor. Quando estava
em Juiz de Fora, pensei em arranjar algum outro lugar. Consegui uma casa
junto à linha do trem, que pertencia à Rede Ferroviária. Quem trabalhava
comigo nessa época em Juiz de Fora era a Marisa Cauduro. Mandamos pintar
a casinha e a fizemos de sede. O problema é que era muito perto da linha do
trem e quando ele passava parecia que a casa ia cair! Tremia tudo. A Marisa,
bonitona, acomodava-se próxima à janela e o trem apitava para ela toda vez
[risos].
344
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
Memória MPM – E a Lei de Segurança Nacional?
Olympio Pereira da Silva Junior – Durou até 1988 e atuei desde
1977 sob sua vigência. Recordo-me de vários casos. Houve um que envolveu
o senador e então ministro de Minas e Energia César Cals [de Oliveira
Filho] – que tinha o rosto marcado por cicatrizes, como se fossem pequenos
“furinhos”. Ele enviou um ofício para o procurador-geral da Justiça Militar
Milton [Menezes da Costa Filho], que o encaminhou aos meus cuidados,
porque se tratava da minha jurisdição, informando ter se sentido muito
ofendido com uma reportagem publicada na Tribuna da Imprensa, no Rio
de Janeiro, do jornalista Hélio Fernandes, assinada por ele e por seu filho,
Hélio Fernandes Filho. Basicamente, dizia que o César Cals teria concedido
o direito de exploração de uma mina de esmeralda em Itabira, Minas
Gerais, depois de ter recebido (ele, ou sua mulher) um colar de diamantes.
O Milton disse: “Isso é uma indignidade! Falar assim do ‘meu’ ministro!”.
Passei a caneta nos dois jornalistas e intimei-os! Os advogados do caso eram
Arutana Cobério Terena, José de Castro Ferreira e Evaristo de Moraes Filho.
Durante o interrogatório, acabei por conhecer melhor um dos advogados, o
José de Castro Ferreira, ex-deputado cassado, que seria meu amigo para o
resto da vida e também o meu futuro padrinho para o STM. Os jornalistas
trouxeram as provas de que realmente houve a troca de presentes. Mandei
um ofício para o Milton, relatando o ocorrido e lhe pedi para questionar o
ministro – se ficara com o colar, se o jogara fora... [risos]. Depois apareceram
alguns homens na minha residência, em Juiz de Fora, solicitando que eu fosse
conversar com o ministro em Brasília. Não fui, claro! Nas alegações finais
absolvi o acusado por falta de provas. O ministro ficou indignado! O Milton
me chamou para uma conversa. Disse-lhe que poderia dar prosseguimento
345
HISTÓRIAS DE VIDA
ao caso se desejasse, já que ele era o procurador-geral. Mas ele retrucou: “Se
você resolveu, está resolvido!” [risos].
Noutro processo interessante, envolvendo a Lei de Segurança
Nacional, no final da década de 1970, discutiu-se um concurso de arte no
Museu de Arte Moderna de Belo Horizonte. A vencedora foi uma composição
fotográfica do Lincoln Volpini Spolaor – me lembro do nome até hoje. O
quadro mostrava crianças pobres em um lixão, próximas de um muro, sobre o
qual se tinha escrito a seguinte frase: “Viva a guerrilha do Pará!”. Sobrepondo-
se à foto havia uma corda com quatro nós pintada nas cores verde, azul,
amarelo e branco. Pô! O DOPS [Departamento de Ordem Política e Social],
sob o comando de David Hazan, considerou a obra subversiva. Ele era
brabo! Quando comecei a escrever a denúncia, me indaguei do porquê de
essa obra ter conquistado o primeiro lugar. Se ganhou era porque os jurados
concordaram com o que o autor estava querendo dizer. Meti a caneta em
todos os jurados! Entre os envolvidos estavam Rubens Gerchman, da Rede
Globo; o Carybé [Hector Julio Páride Bernabó], Mário Cravo Junior, Frederico
Gomes de Moraes. Só tinha gente de primeira linha e “sentei a mamona”
neles! A denúncia era por instigar e fazer apologia... O advogado do Lincoln
Volpini Spolaor era o Waltamir [de Almeida Lima], que depois se tornou
juiz-auditor. O advogado dos dois intimados da Rede Globo era o meu amigo
Técio Lins e Silva. Ele é gago, mas é igual ao Nelson Gonçalves, quando
canta perde a gagueira. A prova do fato era que, como havia muitos quadros,
os jurados foram acomodados em uma mesa grande por cuja frente alguém ia
passando, com as obras na mão, de modo a que todos pudessem vê-las. Eles
usaram isso como desculpa para tentar provar que não dava tempo de dar a
nota adequada. Mas mesmo assim, por que escolheram aquele quadro e não os
346
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
outros? Tem um quadro de florzinha aqui, por que não o escolheram? [risos].
No momento em que o Técio Lins e Silva foi fazer a defesa dos acusados,
apresentou uma máquina de calcular e disse “Minha defesa hoje não vai ser
jurídica, vai ser matemática.”. Não tinha como não pensar: “Pô, são só dez
horas da manhã e o Técio já tá mamado!” [risos]. Ele começou falando que
o cliente dele estava sentado no terceiro lugar da mesa e que a mesa tinha
quatorze metros: “Vamos registrar o número!”. E a máquina fazia “tchá-tchá-
tchá-tchá...”. Assim, ele foi registrando as medidas das cadeiras, dos espaços
entre elas, a distância percorrida no andar de uma pessoa, etc. Eu sabia que
isso não ia dar certo... O rolo de papel da máquina já estava encostando no
chão. O Técio acabou se confundindo com os números. Irritado, ele pegou o
papel, rasgou e disse: “É, eu estudei Direito porque tenho ódio de matemática,
vamos voltar ao jurídico!” [risos]. Afinal, os jurados não foram condenados,
apenas o autor do quadro ganhador.
Também me lembro do deputado federal Paulinho Delgado,
que cansei de mandar prender porque ele promovia movimentos sociais e
enfrentava o Exército. Deve ter tomado muita porrada do Exército! Depois se
tornou meu amigo.
Em 1981, o Milton me chamou e disse que eu tinha uma missão em
Manaus e que só saberia quando chegasse lá. Igual o filme Missão Impossível!!!
[risos]. Foi minha primeira vez em Manaus e fiquei perturbado por causa do
calor e do trânsito. Quando cheguei lá era: “A mensagem se autodestruirá
em cinco segundos!” [risos]. Quem estava lá era a hoje subprocuradora-geral
Maria de Nazaré Guimarães de Moraes, minha amiga até hoje. Ela estava
em férias. Fiquei hospedado do lado da Auditoria Militar, em Ponta Negra.
Ficava parede com parede com o BIS – 11° Batalhão de Infantaria de Selva, e
347
HISTÓRIAS DE VIDA
o CIGS – Centro de Instrução de Guerra na Selva. Tinha um juiz, chamado
Rosa, que acordava às 7 horas da manhã, colocava paletó e gravata e ia regar
as plantas. Louco! A missão era a seguinte: em Brasileia, no Acre, houve um
comício na praça central no qual o convidado especial proferira um discurso
considerado inadequado. A cidade é precária ainda hoje, imagina em 1980!
A discussão era entre os seringueiros e os donos dos seringais, envolvendo
a CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. O
convidado estava discursando e dizia (imitando a voz inconfundível do expresidente Luiz Inácio “Lula” da Silva): “Companheiros, está na hora da onça
beber água!”. Por azar, no momento em que ele discursava estavam passando
de carro, junto à praça, o dono do seringal, sua esposa e o capataz. A multidão
os atacou! O carro em que estavam foi tombado e queimado. A esposa e o
dono do seringal conseguiram escapar, mas o capataz não. O Lula já vinha de
uma condenação em São Paulo, por causa da greve do ABC paulista. Portanto,
a manobra consistia em denunciá-lo para que fosse até Manaus, onde seria
interrogado, e durante o interrogatório eu pediria a prisão preventiva dele e da
turma que andava com ele: Chico Mendes [Francisco Alves Mendes Filho],
o Jacó Bittar, que foi prefeito de Campinas, o presidente da CONTAG [ José
Francisco da Silva], entre outros. Tenho todos os dados dos envolvidos aqui
comigo. Eu era novinho e estava com sangue na boca! Eles foram intimados
e eu sabia que se mandasse prender, a votação seria de 4 a 1, porque o Rosa
iria negar a prisão. Inclusive, em Manaus, é bacana, porque eles colocavam na
entrada onças para acompanhar a guarda. Claro, onças bem-treinadas, que só
comiam comunistas! [risos].
Começou a sessão. O lugar estava lotado. Havia padre por tudo! O
Luiz Inácio da Silva (só anos depois ele virou o Lula de hoje) tinha uma cara
348
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
de bandido... Passei a caneta nele! Eu já tinha feito a acusação antes, então
só fiz um resumo do pedido de prisão. O juiz iniciou o interrogatório e o
primeiro a falar foi o Lula, cujo advogado era o [Luiz Eduardo] Greenhalgh.
Os advogados que atuavam com eles em São Paulo eram o Greenhalgh e
o [ José Paulo] Sepúlveda Pertence, que mais tarde foi procurador-geral da
República. O Greenhalgh iniciou a defesa dizendo que não havia como
controlar a multidão e que o que aconteceu não foi culpa do acusado. Falou
muita bobagem. Mas a minha denúncia não foi a de que o Lula tinha cometido
o crime, mas que ele incitara a população para o ato ao dizer que “era hora da
onça beber água”. O interrogatório durou cerca de uma hora e, quando acabou,
quem se apresentou como advogado do presidente da CONTAG foi o Heleno
Fragoso – meu professor e amigo de meu pai. Chamava-me de Olympinho!
Ele veio na minha direção e falou “Olympinho, tem alguma novidade?”. Eu
não podia revelar nada para ele. O Greenhalgh fez um requerimento para o
Conselho, pedindo autorização para o Lula poder retornar para São Paulo. Ele
já tinha cumprido um mandado de intimação. Antes de o Conselho decidir,
o juiz perguntou o que o Ministério Público Militar pensava a respeito da
proposta e recusei, dizendo que pelo que o Lula fez, ele poderia, pelo menos,
honrar a Justiça Militar com a sua presença. Ainda completei falando que
tinha um requerimento para fazer ao final do interrogatório. Depois que falei
isso houve certo tumulto; o Heleno arregalou os olhos. Posteriormente, o
interrogatório foi interrompido para retornar às 14 horas. Acabou às 19 horas e
o juiz deu mais uma pausa de dez minutos. Quando voltamos – eu suava muito
(como diria um amigo meu, “Suava mais que nêgo recebendo santo!”). Subi no
púlpito e falei tudo o que tinha para falar. Sentei a “bucha”! Finalizei com o
pedido da prisão preventiva do Lula. Falei de forma agressiva, porque acho que
um promotor tem que ter essa agressividade na acusação. Eu adorava! Quando
349
HISTÓRIAS DE VIDA
pedi a prisão preventiva os advogados se irritaram. O resultado foi decidido em
sessão secreta do Conselho. Quando o juiz se retirou para a decisão, eu pensei
que fosse demorar muito tempo para ter um parecer e decidi tirar a beca e ir
até o quartel tomar um banho para voltar depois. A vestimenta esquentava
muito porque a beca ia por cima do paletó e a gola era muito apertada. A gola
tinha um botão e me deixava igual a um bispo. Quando estou desabotoando
a beca, o meirinho se dirigiu até onde eu estava e disse que o Conselho estava
voltando. A votação não levou nem cinco minutos! Eles compuseram a mesa
e o juiz falou que o Conselho, por unanimidade de votos, negava o pedido do
promotor. O público presente começou a falar alto e me levantei, apontei o
dedo para o Lula e gritei: “Como nega?!”. Nessa hora tiraram uma fotografia
que estampou o jornal do dia seguinte sob o título: “Promotor insano tenta
prender o Lula!” [risos].
Quando terminou o interrogatório me dirigi para o Comando
Militar da Amazônia e fui falar com o comandante Leônidas Pires Gonçalves,
sujeito de “sangue azul”: “Chefe, fomos traídos!”. Ele me disse para ficar calmo
e sentar. Senti uma friagem. Ele disse que o presidente Figueiredo estava
se dirigindo para Manaus patrocinando a abertura política e não seria bom
prender o Lula naquela oportunidade. Achei que tudo aquilo tinha sido parte
de uma figuração, na qual eu desempenhara um papel que me fora designado.
Não serviria para nada, de qualquer forma. O Lula foi absolvido desse processo
e do ABC de São Paulo. Ele seguiu a vida dele e eu, a minha. Encontramonos de novo quando ele se tornou presidente da República e eu presidente
do Tribunal. Cada um com suas medalhas... Ele disse que não ia receber a
medalha enquanto eu fosse o presidente do Tribunal. Aquele jornalista que
trabalhou com o [Fernando Affonso] Collor [de Mello] escreveu uma matéria,
350
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
em sua coluna, dizendo que o Lula não quis receber a medalha da mesma
pessoa que o mandou prender.
Aí teve o Baile do Aviador. Eu estava numa mesa que ficava um
pouco à frente da mesa do presidente, por questões de segurança. O Lula
estava com a sua esposa, Marisa [Letícia “Lula” da Silva], que inclusive perdeu
um brinco na festa e tivemos que procurar depois. O Lula e o comandante
da Aeronáutica [Luiz Carlos da Silva] Bueno estavam conversando e decidi
me aproximar. O comandante Bueno perguntou se o Lula já me conhecia e
o Lula falou com aquela voz característica: “Prazer”. Ficamos conversando
[risos]. De repente, surgem por trás dois braços que seguram o Lula e a mim
pela nuca. Era o brigadeiro Joseli Camelo – meu amigo, que toma posse como
ministro amanhã no STM (ele estava na Argentina quando o Lula fazia a
campanha presidencial, se conheceram e o Lula o convidou para o Palácio do
Planalto, de onde ele só sai agora para o STM, depois de ter pilotado para o
Lula e para a presidente Dilma Rousseff ). Era um baile, ele já alegre, depois
de umas e outras, diz para o Lula: “Presidente, esse aí é o ministro Olympio,
aquele que te mandou prender lá em Manaus!” [risos]. Pensei: “Pô, Joseli,
queimou meu filme!”.
Memória MPM – E o Itamar Franco?
Olympio Pereira da Silva Junior – Quando eu ainda era promotor
em Juiz de Fora, em 1991, o Itamar Franco era o vice do Collor. Então o
José de Castro Ferreira – quem eu conhecera como advogado naquele caso
do César Cals contra os jornalistas – apareceu na Auditoria perguntando se
eu poderia tomar uísque na casa dele naquela noite. Aceitei, porque naquela
época, tomar uísque no fim do dia com os amigos era comigo mesmo. Ao
351
HISTÓRIAS DE VIDA
chegar à casa dele, fui recepcionado pela sua esposa, advogada e minha amiga,
que me levou para a mesa de jantar, onde estavam o Itamar e várias outras
pessoas que formavam o que se chamava então de “República do Paraibuna”.
Pensei “Caraca, fui chamado para tomar uísque com o vice-presidente da
República!”. O Zé de Castro, comendo pão de queijo, veio falar comigo sobre
a briga que havia entre o Collor e o Itamar. Eu querendo ir embora para casa
logo... Ele disse que chegou ao absurdo de o Collor, quando se ausentava, não
passar a presidência para o Itamar. Queriam resolver esses problemas e me
pediram ajuda. A ideia era entrar com uma ação civil pública, que tinha de
ser assinada por um procurador da União, para ter valor. Pensei: “Dancei!”. Eu
estava do lado do vice-presidente, como iria escapar de uma proposta dessas?
Pensei em ganhar tempo para poder resolver isso. Perguntei para o Zé de
Castro quem iria fazer ação e ele me disse “Sou eu, e já está pronta!”. Ele abriu
uma maleta e sacou dois maços de documentos, um original e o outro, uma
cópia, e os colocou na minha frente, sugerindo que levasse para casa, desse
uma lida e decidisse se assinava ou não. Olhei para o Zé de Castro e perguntei
se tinha sido ele mesmo quem redigira o documento. Ele disse que sim. “É
agora!”. Meti a caneta nos documentos! Assinei os documentos e falei que
não precisava ler e que confiava nele. Nisso ele falou para o Itamar: “Esse é o
Olympinho, o cara de quem precisamos!”. Fui para casa e fiquei duas semanas
sem dormir pensando onde isso iria terminar [risos]. “Estou ralado!”. Fiquei
com medo de ser exonerado do meu cargo por ter assinado um documento
daquela magnitude sem a permissão do procurador-geral. Fiquei esperando
receber algum ofício, algum petardo...
O tempo passou, uma semana, dez dias e não recebi resposta. Até
que o Zé de Castro me ligou dizendo que eu precisava ir a Brasília porque
352
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
o vice-presidente queria falar comigo. O gabinete ficava onde era a AGU
[Advocacia-Geral da União] e atualmente é o GSI [Gabinete de Segurança
Institucional]. O Itamar estava me esperando. “Doutor Olympio, gostaríamos
de enaltecer a sua ação, mas já descobrimos a solução.”. Pensei comigo:
“Ai meu Deus do céu, lá vem!” [risos]. Ele continuou falando que o Collor
não precisava passar a presidência para ele, que isso seria apenas um ato de
gentileza, mas que o presidente não era um homem gentil. Explicou que o
presidente estava na Venezuela e que, quando o avião cruzasse a fronteira,
ligariam para o Itamar e, todos, incluindo eu, estaríamos na sala do presidente
esperando por ele. Falei que iria com o maior prazer e perguntei: “Onde está
a ação que eu assinei? Gostaria de guardar de recordação.”. O vice-presidente
me entregou os documentos e, logo quando cheguei em casa, queimei aquela
coisa! Ele me disse que iríamos para a sala do presidente às 6 horas da manhã
do dia seguinte. No dia combinado, naquela hora eu peguei o avião e fui para
Juiz de Fora. Algum tempo depois sobreveio o impeachment do Collor e o vice-presidente assumiu o cargo.
Em 1992, ainda em Juiz de Fora como promotor, o Zé de Castro me
ligou em um domingo de manhã dizendo que o presidente Itamar desejava
falar comigo, porque eles queriam instaurar a AGU. Até então ela apenas
existia no papel e a defesa da União era feita pelo Ministério Público Federal,
o que era realmente uma incoerência. A AGU estava na Constituição e eles
queriam tirá-la do papel e fazê-la funcionar. O presidente me daria o cargo
de procurador-geral. O Zé de Castro estava no Palácio do Planalto com o
presidente e esperava uma resposta. Eu não sabia o que dizer, pois estava
feliz em Juiz de Fora. Pedi para ele me dar cinco minutos para pensar e ele
reclamou: “Vai fazer uma palestra, pô?” [risos]. Na verdade, eu precisava
353
HISTÓRIAS DE VIDA
falar com a “polícia” – que estava dormindo ao meu lado –: minha esposa. A
nossa vida era maravilhosa em Juiz de Fora. Ela falou que se me dissesse para
aceitar o cargo e me desse mal, eu iria culpá-la para o resto da vida e que se
dissesse para recusar, eu faria o mesmo. Coisa de mulher, inteligente. Acabei
aceitando a proposta. Liguei de volta: “Zé, estou dentro!” e ele disse “Já sabia,
tua passagem já foi enviada!”. Cheguei a Brasília na segunda-feira e no dia
seguinte fui nomeado procurador-geral da União. O José de Castro, que foi o
último consultor-geral da República se tornou o primeiro advogado-geral da
União. Depois da nomeação fui trabalhar no Rio de Janeiro sem ter a mínima
ideia do que iria fazer.
Esse período foi uma vivência extraordinária. Fui emprestado do
MPM para a AGU, onde fiquei dois anos ajudando a organizá-la, porque não
havia praticamente nada. Dei um jeito de o pessoal da Petrobras contribuir.
Havia, no Fórum Estadual, discussão com relação aos royalties do petróleo, com
o governador Leonel [de Moura] Brizola, e a Petrobras não conseguia alcançar
suas pretensões. O advogado da Petrobras me chamou e disse que se a União
entrasse na discussão, deslocaria a competência para o Federal. Retruquei a
ele: “Estou louco para fazer isso, mas não posso.”. Expliquei que minha sala
não tinha ar-condicionado, cadeira, mesa, etc. Ele disse que era só fazer a lista
do que eu precisasse que em breve estaria lá. Nós montamos a AGU assim.
Conseguimos uma sala na Candelária. Fomos “capinando”, catando assessor
jurídico e defendendo a União.
A sala ficava no prédio do BNDES [Banco Nacional do
Desenvolvimento], no último andar, quando o porteiro me interfonou dizendo
que tinha um problema na garagem. Desci rápido. Chegando lá, havia dois
caminhões da Transportadora Gato Preto, enormes, e dois rapazes de terno.
354
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
Logo imaginei... Arregacei as mangas e perguntei do que se tratava. Eles se
apresentaram dizendo que eram procuradores do Ministério Público Federal.
Um deles, então, falou: “Doutor Olympio, com o advento da AGU, o MPF
perdeu a atribuição e viemos entregar os processos para vocês.” [risos].
Perguntei onde estavam os processos e eles apontaram para os caminhões.
Sentei no banquinho do vigia e pedi para que me trouxessem a relação dos
processos. Veio uma folha matricial com metro e meio de altura. Peguei a
caneta e pedi para trazerem o primeiro dos processos que eu iria conferir na
lista. Eles reclamaram falando que eram muitos e que seria impossível conferir
um por um. “Mas como vou receber sem conferir o que estou recebendo?
Nem se fosse da minha santa mãezinha eu receberia sem conferência!”. Na
verdade, eu sabia que eles não iam fazer isso. Então, pediram para levar os
processos para o arquivo. Liguei para Brasília e pedi para irem buscar. A
Justiça não tinha suspendido os prazos judiciais. Propusemos uma medida
provisória suspendendo os prazos por 30 dias, prorrogáveis por mais 30. Era
uma inconstitucionalidade tremenda, mas não tinha outro jeito. Fizemos-na
pequena para caber em um carimbo. Com esse prazo poderíamos estruturar e
trabalhar melhor em cima dos processos. Passamos duas semanas carimbando
os processos com a medida provisória. Foi assim que nasceu a AGU.
Memória MPM – Nesse período, nos jornais do Rio de Janeiro, há três
coisas que chamam a atenção: pessoas que importavam carros usados, privatizações
das empresas e o Centro de Recuperação do Exército em Itaipava.
Olympio Pereira da Silva Junior – Pois é, estava se disseminando
essa moda de importar pneus usados e, depois, carros usados. Só que, de repente,
não eram mais usados coisa nenhuma. Pedia-se no Banco do Brasil, junto ao
antigo DECEX [Departamento de Operações de Comércio Exterior], emissão
355
HISTÓRIAS DE VIDA
de guia para importação, mas enquanto isso, o navio já estava a caminho com
os produtos. O Banco do Brasil negava e eles recorriam para a Justiça. O juiz
dava a liminar. O navio vindo e eu correndo atrás para cassar as liminares.
Cassa daqui, cassa de lá, anulamos todas! Numa oportunidade, quando o navio
aportou, estavam o delegado federal, um fiscal da Receita Federal e eu, já com
a cassação em mãos. Os donos da embarcação ficaram fulos, todos lascados.
Havia vários carros no convés. Alguns estavam plastificados, porque ficava
mais barato. Mas o “filé” estava no porão. Só tinha carro bacana! Entre eles
um Jaguar conversível com forro de antílope. Fiquei maluco ao ver aquilo!
E o delegado da Receita dizendo que o carro iria estragar se ficasse parado
num pátio [risos] e que o ideal seria que alguém o utilizasse. Todo mundo
queria o carro [risos]. Peguei o telefone e liguei para o José de Castro. Falei que
havia um carro apreendido que era de meu interesse para utilizar no trabalho,
um carro oficial. Ele me perguntou o tipo de carro e eu falei “Um Ja...” e ele
perguntou de novo e respondi: “Um Jaa...” [risos]. O José de Castro perguntou
se era fechado e com quatro portas. Eu respondi que era conversível e ele:
“Você é maluco? Vai acabar destruindo o presidente!” [risos].
Vivíamos duros, sem dinheiro. O Planalto, certo dia, depositou um
milhão de reais na conta e logo pensei em comprar utensílios que melhorassem
as condições de trabalho. Primeiro, foi um ar-condicionado, porque na
Candelária faz muito calor. Consultamos os preços no jornal e pensei em
comprar um no valor de R$ 500,00, mas me disseram que era melhor adquirir
dez ares-condicionados, pois o preço cairia para R$ 400,00. Decidimos ir para
Xerém, Rio de Janeiro, direto na fábrica. Lá compramos 27 aparelhos, vendidos
pela quantia aproximada de R$ 200,00 cada um. O rapaz perguntou como
iríamos pagar: “Na bucha, na grana!”, respondi. Ele até se assustou ao saber
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OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
que o governo pagaria à vista e em dinheiro [risos]. Comprei troço para burro!
Mesas, cadeiras... Enviamos as notas da prestação de contas para Brasília.
Pensei que iriam me dar uma medalha [risos]. Depois recebi um ofício da
Fazenda reclamando que comprei sem licitação. Falei que consegui desconto
e que respeitei a rubrica de um milhão. O funcionário se mostrou surpreso:
“Desconto? Desde quando a União compra com desconto?”. Respondi para ele
“Como assim, a União não compra com desconto? A nossa conversa acabou
agora. Vou atravessar a rua e falar com presidente da República!”. O rapaz
achou que era brincadeira, que eu não ia falar coisa nenhuma com o presidente.
Só que realmente atravessei a rua e me dirigi ao Palácio para falar com o
presidente [risos]. Falei com a secretária Sofia e esperei duas horas para me
entrevistar com o presidente. O Itamar me recebeu, me conhecia bem. Se eu
dissesse “Estão querendo me ferrar!”, ele não ia dar a mínima atenção. Agora
se eu dissesse “Estão querendo pegar a gente!”, daí a coisa funcionava [risos].
Expliquei toda a situação, destacando que comprei os produtos com desconto e
o que o rapaz da Fazenda tinha me dito. Falei ainda que era assim que a União
deveria agir, comprando com desconto e não essa corrupção da Lei 8.666. Falei
que achava que o pessoal da Fazenda queria pegar a gente [risos]. O Itamar
pediu para ligarem para o Fernando [Henrique Cardoso], ministro da Fazenda.
O Itamar explicou a história e disse que era para eu voltar lá na Fazenda que
o problema tinha sido resolvido. O burocrata que tinha falado comigo estava
fulo da vida, com a cara amarrada: tinha recebido uma ordem superior para
arquivar toda aquela meleca. Sentei na frente dele e disse “Você realmente
achou que eu não ia falar com o presidente?” [risos]. Depois ele se tornou meu
amigo. Esse processo todo é uma coisa extremamente burocrática e uma das
fontes de corrupção do país. Se você recebe dentro do seu orçamento, certa
quantia em dinheiro, dá para comprar muitas coisas com desconto e de forma
357
HISTÓRIAS DE VIDA
mais rápida que nas licitações. Nas licitações existem roubos onde cobram caro
por produtos ruins e de má qualidade.
[Comenta fotografias] Nessa foto você pode ver a inauguração da
sede da AGU no Rio de Janeiro. Esse era o ministro da Defesa, Alexandre
[de Paula] Dupeyrat Martins. Estavam no evento o presidente do Tribunal
do Trabalho, o advogado-geral da União, o Alexis Stepanenko, ministro-chefe
da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação e o presidente da
Petrobras. Era muita força na época.
Memória MPM – Como foi o caso do Centro de Recuperação do
Exército, em Itaipava?
Olympio Pereira da Silva Junior – No âmbito desse processo
de privatizações, havia liquidações e empresas em crise que precisavam ser
vendidas por determinadas questões legais. Os empregados também entravam
no processo. Esse Centro de Instrução General [Ernani] Ayrosa, em Itaipava,
Rio de Janeiro, era preparado por uma empresa elétrica do Rio de Janeiro,
com salas de aula espetaculares. Ocorreram muitas reuniões e encontros nossos
nesse local. Liguei para o STM e perguntei o que seria desse Centro. Eles
disseram que não tinham utilidade para um centro que ficava em Itaipava.
Liguei para o MP e disseram a mesma coisa. Sobrou apenas o glorioso!
Ressalvando qualquer engano, foi feito um contrato de 25 anos com o Centro,
que ainda está funcionando. Meu nome está lá.
Memória MPM – Seria interessante a digitalização dessas fotos.
Olympio Pereira da Silva Junior – Eu tinha mania de ficar na
bancada encarando o acusado, conforme essa foto.
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OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
Memória MPM – [Lendo trechos de manchetes] “Os militares começam
a articular um nome mais ligado à categoria, o do ministro Olympio Pereira da Silva
Junior, do STM, para o lugar de Waldir Pires à frente do Ministério da Defesa”. “Em
1980, como promotor, em Manaus, Olympio pediu a prisão preventiva do então
sindicalista ‘Lula’ e de outros militantes, com base na Lei de Segurança Nacional,
por estarem incitando a população, em Brasileia, no Acre, área sob sua jurisdição”.
Matéria do Jornal do Brasil de 6 de abril de 2007.
Olympio Pereira da Silva Junior – Nessa foto aparece o José de
Castro. As fotos eu tirei do site do Hélio Fernandes e de seu filho. Nesta,
estamos eu e o Marco Aurélio [Mendes de Farias Mello], meu amigo,
presidente do Supremo, na China. Quando cheguei no SMT, inventei uma
estória de que eu era o ministro mais jovem, mas não era. Era o Marco Aurélio.
Tinha esquecido que ele foi do TST [Tribunal Superior do Trabalho].
Já, esta aqui, foi tirada na saída do Primeiro Encontro Nacional dos
Procuradores da Justiça Militar, realizado em Brasília, em 1986. O procurador-geral da Justiça Militar era o Francisco Leite Chaves, quem, aliás, enalteceu
a carteira de procurador. A nova carteira que recebemos na sua gestão era
bonita e vermelha. Como tinha o desenho animado do He-Man, apelidamosna de “Eu tenho a força!”. A carteira tinha força! Eu estava elegante, com
colete e tudo!
Memória MPM – Como foi sua nomeação para ministro?
Olympio Pereira da Silva Junior – Eu estava na AGU, em outubro de
1994, quando recebi um telefonema do Zé de Castro dizendo que o presidente
queria falar comigo. Fui a Brasília... Enfim, pouco antes do telefonema, eu tinha
recebido o Boletim com a digesta de assuntos militares e uma das notas dava
359
HISTÓRIAS DE VIDA
conta de que abriria vaga para o STM, porque é necessário comunicar com
60 dias de antecedência o desejo de se aposentar, salvo se for de compulsória,
evidentemente. Bom, o Itamar desejava saber se me interessava. O mandato
dele se encerraria em 31 de dezembro de 1994, quando seria substituído
pelo Fernando Henrique. E aparecia essa vaga, dentre as quinze cadeiras do
STM, que era para o MPM. A vaga era ocupada pelo gaúcho Eduardo Pires
Gonçalves, conhecido como “Dudu Carabina”. É claro, respondi ao presidente
Itamar, que me interessava. Ele disse que tudo bem. Achei que isso fosse fácil,
mas havia outros candidatos. Na época, eu era promotor e acabei concorrendo
com procuradores e procuradores-gerais. No dia de minha sabatina o senador
Nilo [de Sousa] Coelho disse “O senhor não fica com vergonha de ser o 47°
da lista e passar a perna e dar uma carona em todos?”. Respondi que não
tinha “dado carona” em ninguém porque eu estava saindo da instituição para
concorrer à vaga. Disse, ainda, que essa pergunta ele deveria fazer ao presidente
da República porque foi ele quem me escolheu. E completei falando que, às
vezes, o 47° é melhor que o primeiro, que o segundo ou que o terceiro colocado.
A sabatina era para o Maurício [ José] Corrêa, que concorria a uma vaga para
o Supremo Tribunal Federal, e eu, indicado para STM. Foi a segunda vez que
tremi na vida. A primeira foi no meu casamento [risos].
No mês anterior eu tinha ido aos Estados Unidos. Gosto de
colecionar armas. Em Miami, no dia de ir embora, minha mulher foi fazer
compras e me perguntou se não queria ir com ela. Disse que não aguentava
mais e fiquei na rua, passeando, olhando, até que vi uma luva de boxe
pendurada em uma loja. Depois da loja havia um corredor e fui entrando até
chegar a uma porta de ferro com uma campainha. Toquei, um rapaz veio e
perguntei “Do you have some guns?”. Era um paiol, tinha até fuzil! Pensei “Tô
360
OLYMPIO PEREIRA DA SILVA JUNIOR
lascado!”. Comprei um revólver 8,5 polegadas da Smith & Wesson, 44 Magnum,
e bastante munição. Meu medo era ser pego com a arma nos Estados Unidos;
no Brasil não tinha problema. Falei para a minha esposa colocar a arma na
bolsa que lá no Rio de Janeiro eu me garantia. Decolamos e no Rio de Janeiro
prenderam todas as coisas. Um delegado me disse: “Me admira o senhor, que
é um promotor, fazendo contrabando.”. Perguntei: “O senhor por acaso já viu
contrabando com recibo, pô? Eu sou colecionador de armas!”. Quem salvou
a gente foi o Zenildo [Gonzaga Zoroastro de Lucena], ministro do Exército.
Quando o fiscal empacotou tudo, eu disse para o delegado não esconder lá
no fundo porque iria voltar logo para pegar. Demorou três meses... O Kleber
[de Carvalho Coêlho], procurador-geral da Justiça Militar na oportunidade,
achou que podia capitalizar aquela situação. Eu disse para esperar que iria sair
a autorização. O Zenildo deu a autorização e eu a entreguei ao delegado para
encerrar a sindicância. Foi dito que tudo estava legalizado e se determinou que
fossem devolvidas arma e munições. Mandei a solução da sindicância por fax
para o gabinete do procurador. Se o Itamar descobrisse que eu fora acusado de
contrabando, ele me matava [risos].
Fiquei 18 anos na instituição com muito amor e orgulho. Uma
vivência que calou muito fundo em mim.
Memória MPM – E o caso Aramar? Na época, o procurador-geral
era o [Marco Antonio Pinto] Bittar, que pediu o arquivamento do caso e tem uma
entrevista sua na qual o senhor se mostrou contra o arquivamento do processo.
Olympio Pereira da Silva Junior – O problema não era o submarino,
mas sim o projeto inteiro. A Aramar [CEA – Centro Experimental Aramar]
estava nas mãos de um almirante que facilitou as coisas. Ele fazia as coisas
361
HISTÓRIAS DE VIDA
acontecerem, mas houve problemas com as viaturas, pois ele dava baixa e as
usava. Caí em cima. Investiguei e achei que cabia denúncia. Hoje tem o projeto
lá e está funcionando.
Fui conhecer a base que a Marinha está erguendo em Itacuruçá, um
espetáculo! Vão construir os submarinos atômicos nessa região. É uma base
para oito mil fuzileiros. Mas não sei de quem precisaremos nos defender com
um submarino atômico – do Paraguai? [risos].
Memória MPM – E a Comissão da Verdade? Saiu um relatório agora
e o seu nome está lá...
Olympio Pereira da Silva Junior – Não. Mas eles me ligaram
bastante. Aquele nome é o do meu pai, médico-legista, Olympio Pereira da
Silva. Sempre achou que “comunista comia crianças”. Com certeza ele estava
inserido nesse contexto de repressão. Minha mãe duvidava dessas coisas, mas
eu não. Ele tinha um posicionamento bem de milico. Ela reclamava do que
as pessoas poderiam falar, mas a minha opinião é que deixem que falem. O
[general Sérgio] Etchegoyen disse que ia entrar com uma ação caso falassem
do pai dele. Para mim, essa Comissão da Verdade não vai dar em nada, é um
desperdício de dinheiro.
Memória MPM – Ministro Olympio, muito obrigado pelo seu depoimento.
362
363
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
Entrevista realizada na residência do entrevistado, em Vassouras, Rio de Janeiro, no dia
12 de abril de 2015, por Gunter Axt.
364
Renato da Cunha Ribeiro nasceu em 22 de agosto de 1929, no Rio de Janeiro.
É filho de Targino Ribeiro e Odetta da Cunha Ribeiro. Casou-se com Graça
Maria Ferreira Guimarães Ribeiro. Formou-se, em 1952, pela Faculdade de
Direito do Rio de Janeiro, hoje Faculdade de Direito da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ). Advogou no Rio de Janeiro pelo tradicional
escritório de seu pai. Em março de 1970, foi designado segundo substituto
de advogado de ofício da 2ª Auditoria da Aeronáutica da 1ª Circunscrição
Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Em 22 de abril de 1980, foi nomeado
segundo substituto de procurador de terceira categoria, para atuar junto à
Auditoria da 6ª CJM, em Salvador. Em outubro de 1980, foi designado a
servir na 1ª CJM, no Rio de Janeiro. Em 1981, prestou concurso público para
ingresso na carreira. Em 3 de maio de 1995, foi promovido a procurador da
Justiça Militar, a ser lotado na Procuradoria da 9ª CJM, em Campo Grande.
Em março de 1996, foi removido para a 4ª Procuradoria do Rio Janeiro. Em
16 de outubro de 1996, aposentou-se.
365
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Quem é o senhor?
Renato da Cunha Ribeiro – Meu nome é Renato da Cunha
Ribeiro, sou filho de Targino Ribeiro e Odetta da Cunha Ribeiro. Nasci em
22 de agosto de 1929, portanto, sou do século passado, e trago comigo seus
ensinamentos, embora, atualmente, um pouco arcaicos. Tive irmãos, mas sou
o único ainda vivo. Sou casado com Graça Maria Ferreira Guimarães Ribeiro,
nascida em Belo Horizonte e tenho duas filhas, Camilla e Renata. Sou carioca,
Flamengo e Mangueira.
Memória MPM – O senhor estudou no Rio de Janeiro?
Renato da Cunha Ribeiro – Cursei o ensino primário no Colégio
Batista Shepard, de 1938 a 1940, em três anos, fazendo dois anos em apenas
um. O curso ginasial, fiz no mesmo colégio e, modéstia à parte, no segundo,
quarto e quinto ano, tirei medalha de ouro como melhor aluno da turma.
Depois, fui para o Colégio Andrews, considerado, na época, o melhor do Rio
de Janeiro. Era muito puxado; eu estranhei, pois era um colégio que exigia, ao
mesmo tempo em que dava liberdade ao aluno. O genro da fundadora, Carlos
Octavio Flexa Ribeiro, com quem me dava muito bem, e era, inclusive, amigo
da minha família, entrava nas turmas do Clássico e do Científico e dizia: “Olha,
neste colégio vocês não precisam ter medo; como adolescentes precisam ter
liberdade para se exprimir. Não é necessário se esconderem dos inspetores de
disciplina, pois eles não estão aqui para punir vocês, mas sim para servi-los. Se
não querem ter aula, fiquem no pátio, não se escondam. Às 10 horas o portão
é aberto, se quiserem ir à praia, ninguém vai impedir. Porém, quem não souber
e/ou não tiver frequência, não passa de ano.”. Tanto era assim que, no segundo
ano do Clássico, foi reprovado, sem direito à segunda época, meu querido
366
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
amigo Paulo de Tarso Fernandes Nonato [da Silva], filho do então presidente
do Supremo Tribunal Federal, Orozimbo Nonato [da Silva]. Dessa forma, um
colégio que reprova o filho do presidente do Supremo Tribunal Federal, por
faltas, é um colégio que se faz respeitar. E nós o respeitávamos muito. Tive lá
grandes amigos que se tornaram nomes na indústria e no comércio, como meu
amigo Giacomo [René Maria] Luporini, filho de Marcello Luporini, dono da
indústria Luporini. O Giacomo foi um grande amigo de turma, que agora está
morando com o filho em Miguel Pereira, depois de ter perdido uma fortuna
enorme, e, infelizmente, sofrendo de Alzheimer. Há muitos outros, mas é
impossível enumerar todos. Em 1948, prestei o vestibular para Direito.
Memória MPM– Por que a opção pelo Direito?
Renato da Cunha Ribeiro – Quando era menino, meu pai
perguntava o que gostaria de ser quando crescesse. Respondia que queria
ser cantor de rádio ou jogador de futebol, pois achava que era essa a turma
que ganhava dinheiro; depois percebi que advocacia dava dinheiro também.
Meu pai e meus dois irmãos eram advogados e minha irmã, professora, por
isso resolvi seguir a tradição da família no Direito. Eu tinha, também, um
temperamento compatível com a área. Duas profissões que, acho, me daria
bem, pois, como se percebe, sou muito falador e aprecio a comunicação, são o
Direito e o teatro cômico.
Naquele tempo só se podia fazer vestibular para uma Faculdade,
então escolhi a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, aconselhado por
vários professores, amigos do meu pai, como Nelson Hungria [Hoffbauer],
Ary de Azevedo Franco, entre outros. Era a Faculdade mais puxada.
Existiam duas principais: a da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde
367
HISTÓRIAS DE VIDA
se formaram meus dois irmãos; e a da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, para onde foi meu amigo Giacomo Luporini. Muitos outros
estudaram na Federal, como o José Bonifácio de Andrada e Silva – não o
velho, o novo, sobrinho-neto de terceira geração –; o Plínio Bento de Faria,
neto do ministro do Supremo Tribunal Federal, Antônio Bento de Faria;
Paulo Nogueira Baptista, embaixador na Alemanha, e depois ministro de
Estado; tantos colegas...
Naqueles tempos antigos, dos anos 1940, o Supremo Tribunal Federal
era um baluarte, inclusive de democracia; não era essa “esculhambocracia” de
hoje. Era democracia verdadeira, de centro, sem pender nem para a esquerda
nem para a direita. Existia liberdade de expressão, de palavra, de opções. Hoje,
é esculhambação; não sei onde vamos parar, só Deus sabe! Naquela época, o
Supremo era supremo! Entrei para a Faculdade em 1948 e também para o
escritório de meu pai, com 18 anos, assim como os meus amigos de toda a
vida, o desembargador César Augusto Leite, e o procurador de Justiça Gerson
Nicácio Garcia.
Memória MPM – Quais eram as causas com as quais o escritório lidava?
Renato da Cunha Ribeiro – Trabalhamos como os médicos clínicos
gerais, com causas diversas, desde 1909 até hoje, estando o escritório com 106
anos de existência. Na época de meu pai – peço que me desculpe se parecer
vaidade –, era considerado o maior escritório do Brasil. Tivemos causas
importantíssimas, como quando meu pai defendeu os revoltosos do “Levante
dos 18 do Forte de Copacabana”, que ocorreu em 1922. O Eduardo Gomes
chamava meu pai de Dr. Targino e meu pai o chamava por você. Eu me dava
bem com o Eduardo Gomes. A “Revolta do Encouraçado São Paulo”, quando
368
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
o Augusto do Amaral Peixoto, não o governador, o presidente da Assembleia,
era tenente. Quando da desapropriação da São Paulo Railway, apesar de todo
o corpo jurídico que tinha o Estado de São Paulo, papai foi contratado para
defender esta causa, pelo então interventor federal José Carlos de Macedo
Soares, que vem a ser tio-avô da minha primeira mulher; foi ministro das
Relações Exteriores, governador de São Paulo, fundador do IBGE – Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística. Me dava muito bem com ele, o chamava
de Dr. Zé Carlos.
Quando o papai chegava ao Supremo Tribunal, para defender uma
causa, era levado diretamente à sala dos ministros, onde eles colocavam a beca,
tomavam café, trocavam ideias e, papai ficava ali, em grau de igualdade. Uma
vez, quando José Linhares era presidente da República, papai foi ao Palácio do
Catete falar com ele e encontrou o ministro da Justiça, Antônio de Sampaio
Dória. De repente, José Linhares, excelente pessoa, de uma simplicidade
enorme, falou: “Aqui não tem mais presidente da República, nem ministro da
Justiça, nem advogado famoso. Aqui estão três mocinhos, da turma de 1908,
da Faculdade de Direito de São Paulo.”. Mais alguns nomes importantes desta
turma são: Waldemar Martins Ferreira, Gastão Vidigal, Jorge Doria, advogado
famoso de São Paulo, Filadelfo de Azevedo, se não me engano, entre outros.
Papai era um homem encantador, de uma simplicidade enorme e um
tino espetacular, além de portador de grande sabedoria jurídica.
Outra causa importante foi a questão de limites de terras entre o
os Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais. Papai foi convidado a ser
o advogado de Espírito Santo. O governador, Carlos Lindenberg, esteve em
nossa casa à noite, convidando meu pai a advogar pelo Estado, pois havia
369
HISTÓRIAS DE VIDA
escutado, de Levi Carneiro e também do presidente Eurico Gaspar Dutra, que
o Dr. Targino Ribeiro era o melhor advogado do Brasil. Nesse processo, uma
coisa muito interessante, que me lembra de uma espécie de retrato do Brasil
atual é que o papai cobrou, na época, Cr$1 milhão e o governador disse que
teria de vender o Estado para lhe pagar [risos]. Finda a questão, papai já havia
falecido e meu irmão Raul da Cunha Ribeiro, que estava chefiando o escritório,
foi cobrar a segunda parte dos honorários. Em função da inflação, contudo,
recebeu apenas uma nota de Cr$ 500,00, pois na época do fim do processo não
existia correção monetária. Aproveitamos muito bem os primeiros honorários;
eu recebia 5% da renda do escritório e, na segunda parte, foi apenas uma
notinha de Cr$500,00.
Existem tantas histórias do escritório... Papai tinha uma secretária
alemã, dona Ana Fischer, que se chamava Julia, mas preferia Ana mesmo
[risos]. Ela adivinhava os pensamentos do meu pai; corria a fazer tudo, por
antecipação. Em um daqueles dias agitados, papai estava trancado na sala
dele com o Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello e, na sala
de espera, estavam o gerente-geral da Leopoldina Railway, da qual meu pai
também era diretor; o gerente do Banco Holandês Unido; o representante da
multinacional Frigorífico Anglo, todos aguardando para conversar com meu
pai. Nisso, meu sobrinho Ruyzinho, que hoje dirige o escritório – na época
estava com cinco anos, louro, com os cabelos espichados para a frente, de olhos
verdes –, abriu a porta do escritório de papai com toda a força e dona Ana
gritou: “Não abre essa porta, menino. Seu avô...”, mas não houve tempo, ele já
havia entrado e começado a falar: “Oi, vovô. Vamos para a casa de brinquedos?”.
Meu pai o apresentou ao Chateaubriand, que o cumprimentou e teve como
resposta: “Vou levar o meu avô, viu?”. Então papai disse ao Chateaubriand
370
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
que o Raul o atenderia; chamou meu irmão pelo interfone e disse: “Venha até
a minha sala atender ao Chateaubriand, porque vou com o Ruyzinho até a
casa de brinquedos. Meu neto é mais importante que qualquer um de vocês!”
[risos]. E ainda completou com um: “Ouviu, seu Mello?”, que rapidamente
respondeu, rindo, que se entenderia com o Raul. Dois homens de simplicidade
enternecedora, meu pai e o Chateaubriand. Papai saiu, foi até a sala de espera,
avisou para todos aqueles que o estavam aguardando que iria para a casa de
brinquedos com o Ruyzinho e que, se o assunto fosse muito importante, que só
pudesse ser resolvido com ele, esperassem, que voltaria. Mas ele fazia isso com
tamanha simpatia e charme que ninguém se zangava.
Quando o escritório estava bem, todo o fim de mês havia uma
romaria de velhinhas, algumas tias do papai. Inclusive uma jornaleira que o
tinha ajudado, fiando os jornais para ele antigamente, pois, quando papai veio
para o Rio de Janeiro e começou a advogar, sem conhecer ninguém, enchia a
pasta de jornais para dizer que tinha causas e poder ficar no foro. Nessa época,
muitas vezes, tinha de ir andando da Rua do Rosário até a Central. Quando
essa senhora jornaleira não pôde mais trabalhar, passou a ir buscar uma mesada
todo fim de mês no escritório, pois papai lembrava-se dos tempos de início da
carreira e retribuía aos que o haviam apoiado.
Quando o chofer do papai bateu com o carro, ele esperou o carro ficar
pronto e pediu demissão, alegando estar com pouca visão e que, por isso, tinha
batido o carro. Meu pai disse saber que ele não era culpado e se preocupou em
como ele iria se sustentar se se demitisse. Ele respondeu ao papai que tinha
a aposentadoria do IAPETEC – Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Empregados em Transportes e Cargas, para receber. Papai disse que isso era
coisa do Getúlio [Vargas] e que poderia receber aquele dinheiro, mas, como
371
HISTÓRIAS DE VIDA
havia conduzido nossa família em segurança por 25 anos, deveria, todo o dia 30
de cada mês, passar no escritório para continuar recebendo seu salário integral,
mesmo tendo se demitido. Quando o Roque, nosso empregado do escritório
por 53 anos, fez 25 anos de serviços, papai lhe deu uma casa. Quando fez 50,
papai já sendo falecido, meu irmão Ruy lhe deu Cr$ 500 mil. Ele reconhecia os
empregados, coisa que nem todos os patrões o fazem.
Memória MPM – Seu pai nasceu em Cabo Frio?
Renato da Cunha Ribeiro – Não. Em São Pedro de Aldeia e, com
cinco anos, mudou-se para Campos. Então, foi estudar na Faculdade de Direito
de São Paulo. Meu avô era exportador de café, de uma projeção muito grande. De
repente, houve uma crise no café e perdeu tudo, exceto o que não estava no nome
dele. Vovô passou a viver de um colégio que ele havia dado à minha tia Antonieta
Ribeiro, de presente de formatura como professora. Papai, então, escreveu de São
Paulo a meu avô, pedindo que suspendesse sua mesada de estudante, e passou a
trabalhar na Secretaria da Faculdade e dar aulas particulares aos vestibulandos, até
se formar. Meu avô transferiu o colégio para São Paulo de Muriaé, onde nasceu
minha irmã Lúcia da Cunha Ribeiro e, de lá, foram para o Rio de Janeiro. Meu
pai chegou ao Rio de Janeiro sem conhecer ninguém e começou a advogar aqui,
ali, acolá e, com muito esforço, conseguiu ser considerado o melhor advogado do
Brasil em sessão do Senado. Houve, inclusive, uma ocasião em que o presidente
do Supremo, não lembro se era o José Linhares ou o Orozimbo Nonato [da
Silva], mandou colocar uma cadeira na tribuna e pediu para que meu pai falasse
a seus pares. Só ele e Rui Barbosa receberam essa honra.
Tivemos, como grandes clientes, a Dupont, o Banco Holandês, o
Banco Português, a Leopoldina Railway, a Cantareira, o Severino Pereira da
372
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
Silva com todas as indústrias têxteis; de cimento, da Paraíso e Barroso, a E. G.
Fontes com todas as companhias de exportação e importação, o Frigorífico
Anglo, a Auxiliadora Predial, a Assicurazioni Generali di Trieste e Venezia, a Shell,
a Antartica, a Tabacaria Londres, entre outros.
Memória MPM – Na política, seu pai tinha tradição mais getulista ou
mais udenista?
Renato da Cunha Ribeiro – Papai era essencialmente democrata.
Numa oportunidade, em 1945, saiu no noticiário que o brigadeiro Eduardo
Gomes havia sido ovacionado na avenida Rio Branco. Acontece que ele estava
saindo do nosso escritório, onde havia ido receber um auxílio para a campanha,
dado pelo Severino Pereira da Silva. O Eduardo Gomes era udenista; meu pai
já não estava muito de bem com o Getúlio Vargas, porém, somente depois de
1937 passou a lhe fazer oposição. Getúlio era um homem sui generis. Combatia
e, quando sentia que o adversário era mais duro, o chamava até ele. Dessa
forma, chegaram cartas da presidência da República para meu pai, oferecendo-
lhe, por duas vezes, a Procuradoria-Geral do Ministério Público Federal, duas
vezes o cargo de ministro do Supremo, uma, o cargo de ministro da Justiça e
outra, o de ministro da Fazenda. Não temos essas cartas, pois papai devolveu
todas com seu cartão de visitas pregado, com os seguintes dizeres: “Meus ideais
são incompatíveis com seu regime. Obrigado, não aceito.”. Os homens daquele
tempo eram diferentes dos de hoje.
Meu pai fez um habeas corpus no Supremo Tribunal de uma causa
famosa, que permitiu que voltassem ao Brasil, do exílio, em pleno regime ainda
ditatorial, em 1945, Armando Sales de Oliveira, Otávio Mangabeira e Paulo
Nogueira. Posteriormente, recebemos um telegrama do Otávio Mangabeira,
373
HISTÓRIAS DE VIDA
já como governador da Bahia, agradecendo e lembrando este fato. Papai era
dessas coisas... houve muitas outras causas políticas.
Um dia, ao sair do escritório, convidou-me para jantar fora, porque
iria fazer um discurso em um comício pela liberdade do Luís Carlos Prestes, na
Associação Brasileira de Imprensa. Eu sabia que ele não era comunista, então
questionei o porquê de participar em um comício deste tipo. Ele me respondeu
que como havia feito o habeas corpus para que o Otávio Mangabeira voltasse ao
Brasil, se não discursasse em prol da liberdade do Prestes, estaria sendo parcial
e não deveria sê-lo.
Papai presidiu a OAB por duas vezes, entidade também presidida
pelo meu irmão Raul, que, a semelhança do papai, recusou o convite para
integrar o Supremo, pois não quis largar o conforto da casa e da família para
se enfiar em um apartamento frio de Brasília, somente pelo nome que vinha
com o cargo. O Ruy era o chefe do Departamento Jurídico da Light; um
dia, o convidaram para se tornar presidente, porém ele não quis, pois teria
de abandonar o escritório, de onde vinha a maior parte do seu rendimento.
Ele também era tenista; defendeu o Brasil nas Olimpíadas Universitárias
de Mônaco e deram seu nome, como homenagem, a um campeonato de
de tênis [Taça Ruy da Cunha Ribeiro, Tijucas Tênis Club]. Foi um grande
tenista, um dos três melhores do Brasil à época, sendo o primeiro do Rio de
Janeiro, campeão carioca. Tinha um coração enorme. Foi vice-presidente da
Aerovias Brasil e vice-presidente das Lojas Murray, juntamente com Álvaro
Sá. Construiu a vida dele como advogado.
O governo inglês enviou para as pessoas gradas – meu pai entre elas,
pois grande parte das companhias em que ele advogava eram inglesas –, uma
374
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
caixa com artefatos de pedra, uma faca de madeira, um cinzeiro, um peso de
papéis e alguns pegadores de livro. Tenho um certificado assinado por Sir
Vincent Bradley, que era presidente da Casa dos Comuns. Este pedaço de
madeira pertencia ao Parlamento, no Palácio de Westminster; são fragmentos
do bombardeio. Papai tinha muito apreço por esses objetos e, quando faleceu,
os dividimos entre os irmãos; agora estão com os netos.
A secretária do papai, dona Ana, era germanófila. Eu, com dez anos
na época, fui influenciado por ela e acabei torcendo pela Alemanha no início
da Guerra Mundial. Quando iam ao escritório os clientes ingleses de meu pai,
embora havia, também, alemães e italianos, a dona Ana começava a discutir
sobre a guerra com os presidentes das empresas inglesas, dizendo que o Hitler
estava certo. Papai ficou em uma situação complicada, porque, ao mesmo
tempo em que não podia prescindir dos serviços dela, não a podia impedir
de expressar suas ideias; então, trocou os horários da dona Ana, passando a
trabalhar pela manhã em nossa casa: assim não prejudicava o andamento do
trabalho e ela não brigava mais com os clientes.
Quando papai morreu, o Raul ficou na chefia do escritório. Ele sabia
de Direito como pouca gente sabe. Quando foi nomeado juiz de alçada, cargo
equivalente ao de desembargador, não podia mais advogar, portanto passou
a chefia do escritório a meu outro irmão, Ruy da Cunha Ribeiro. O Ruy
morreu em 1979. Em 1980, fui nomeado procurador da Justiça Militar e tive
que assumir o cargo na Bahia. Então, o meu sobrinho Ruyzinho assumiu a
chefia do escritório, o que foi uma escolha muito interessante, pois não sou
bom administrador. Se eu tivesse substituído meus irmãos, talvez o escritório
não tivesse feito cem anos, porque não tenho o tino administrativo que meu
sobrinho tem para dar essa continuidade. Não que eu seja trêfego demais, só
375
HISTÓRIAS DE VIDA
não tenho essa qualidade de administrar, como o Chateaubriand, que sempre
pensou no bem do Brasil, mas não entendia de administrar o seu império
jornalístico e cometeu muitos erros. Mas era um encanto de pessoa! Um dia,
ele me pegou pelo braço, me levou ao jornal e me contou histórias dele, rindo
às gargalhadas. Convivi com muitas pessoas boas e com grandes personagens
da nossa cultura jurídica e política.
Quando fui receber a Medalha Sobral Pinto, na Ordem dos Advogados
do Brasil, também tinha sido agraciado meu colega de turma, Ricardo Pereira
Lira, filho do José Pereira Lira, que levou meu irmão Raul a advogar na Light
e, depois, o Ruy e o Ruyzinho. Quando foi minha vez de ir para a Light, eu
estava advogando internamente para o Severino Pereira da Silva. O senhor
Pereira era um grande homem. Tinha uma fazenda-zoológico aqui pertinho,
com leão, zebra, camelos, lhamas. Fiquei hospedado lá muitas vezes. Um dia,
nosso amigo Paulo da Costa Reis, advogado da Light, e também substituto
de advogado de ofício, perguntou ao meu sobrinho, Ruyzinho, se gostaria de
ocupar uma vaga de substituto de advogado de ofício, na Justiça Militar. Já que
o Ruyzinho não se interessava por essa área, disse ao Paulo que me procurasse,
e eu agradeci o convite. Aceitei-o.
Assim, no ano de 1970, entrei para a Justiça Militar como segundo
substituto de advogado de ofício da Segunda Auditoria da Aeronáutica. Lá
passei dez anos. Em 1980, fui nomeado procurador militar pelo ministro
da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, no governo do João [Baptista de Oliveira]
Figueiredo. Naquela época, o Ministério Público fazia parte do Ministério da
Justiça. Eu senti que a tendência era acabar com os substitutos de advogado
de ofício, e ao mesmo tempo, prestigiar o Ministério Público. Por esse motivo,
comecei a me esforçar para ingressar na instituição. Não havia, então, concurso.
376
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
Eu devo à bondade e à misericórdia de Deus ter entrado no Ministério Público,
porque sonhar em passar da Defensoria de Ofício ao Ministério Público
Militar era um pulo de carreira que não tinha nada a ver uma coisa com a outra.
Tenho uma gratidão e admiração enorme pelo Edgard de Brito Chaves Júnior,
que sabia da minha pretensão, e me disse que quem poderia indicar novos
membros, ao procurador-geral Milton Menezes da Costa Filho, era o pai dele,
Milton Menezes da Costa, um amor de pessoa, a quem também agradeço
e muito admirava. Porém, o Milton Menezes da Costa era nosso adversário
na Ordem dos Advogados: era presidente do Sindicato e nós, componentes
da Chapa Azul, desde a época do meu pai, embora sempre tenhamos lutado
com honra e dignidade, sem falsidade. Comecei, então, a procurar pessoas que
pudessem me garantir essa passagem.
O Ruy, meu irmão, morou muito tempo com a sogra e, quando ela
faleceu, ele decidiu levar a esposa para desanuviar a cabeça na Europa. Em
função disto, foi até a Policlínica de Botafogo, cujo laboratório pertencia ao meu
cunhado, fazer o exame e tomar as vacinas exigidas e lá descobriu que estava
com leucemia. Aquilo foi um baque! Na sexta-feira pediu-me que preparasse
meu currículo e o entregasse a ele; na segunda-feira, teve um pequeno derrame
e foi internado no Hospital Adventista Silvestre, onde teve outro derrame, no
tronco cerebral, e morreu.
Enquanto ele estava internado, conversei com o Caetano da Fonseca
Costa, que substituiu meu irmão Raul na presidência do Tribunal de Alçada.
Perguntei se ele se dava bem com o Milton Menezes da Costa; respondeu que
apenas se cumprimentavam, nada além, mas que o advogado Pedro Farah tinha
uma relação boa com ele. Na missa do meu irmão, o Caetano disse que havia
conversado com o Farah, que aguardava uma ligação minha e me passou o
377
HISTÓRIAS DE VIDA
número de telefone. Liguei e ele me informou que havia marcado uma reunião
com o Milton na sexta-feira, no Sindicato.
Fui até lá, o Farah ainda não havia chegado; o Dr. Milton me viu,
perguntou se gostaria de falar com ele, respondi que sim e fomos até sua sala.
O Raul já era falecido; o Dr. Milton, então, perguntou como estava o Ruy,
e respondi que acabara de falecer. Depois, chegamos ao assunto da reunião:
comentei que estava havia dez anos na Justiça Militar e que tinha sabido da
abertura de duas vagas no Ministério Público, para uma das quais tinha muito
interesse em ser nomeado, e queria saber se ele poderia fazer isto por mim. Isso
foi em novembro; ele falou que passaria o Natal em Brasília e que, no início de
janeiro, entraríamos em contato novamente.
No dia 2 de janeiro, a Graça, minha esposa, atendeu ao telefone e
me avisou que o Dr. Milton queria falar comigo. Ele me perguntou se aceitaria
a vaga de Salvador. Respondi que se me mandasse para Timbuctu iria feliz.
Agradeci muito, e, inclusive, mandei uma placa de prata a ele como sinal da
minha gratidão. Teve, em seguida, todo o processo de aprovação no SNI –
Serviço Nacional de Informações. Depois da indicação fui nomeado e, no dia
da minha posse, fui a Brasília, onde o Dr. Milton Filho me recebeu e me disse:
“Renato, você é um homem de sorte, porque você pediu à única pessoa para
quem eu não poderia negar, que é o meu pai.”. Abriu as gavetas e me mostrou
todos os outros pedidos: havia do Eduardo Gomes, de diversos generais, e
até do Figueiredo, presidente da República. Entrei nomeado, pois não existia
ainda o concurso, mas me senti à vontade, porque não havia feito nada de
desonesto, simplesmente pedi. E, quando abriu o primeiro concurso, em 1981,
me inscrevi.
378
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
Assim que fui nomeado pelo Dr. Milton, a primeira coisa que fiz
foi ir ao quinto andar, pedir exoneração do cargo de advogado de ofício. Em
seguida, fui à Câmara dos Deputados encontrar o Célio de Oliveira Borja; o
procurei para perguntar como andava o processo de efetivação no Ministério
Público e ele me informou que estava para votação. Então, lhe disse que
precisava ir ao Rio de Janeiro, depois seguir para a Bahia, alojar minha esposa
em um apartamento menor, e pedi que me avisasse com antecedência o dia da
votação. O Célio pediu ao chefe de gabinete que pegasse meu telefone e me
ligasse diariamente, para me manter atualizado do andamento. Ele segurou o
processo para que desse tempo de eu ir para Salvador. Deixei minha mulher,
minhas duas filhas e os cachorros em um apartamento menor em Copacabana
e fui dirigindo para Salvador. Chegando lá, tomei posse na casa do Kleber, na
festa de aniversário do filho dele. Passei cinco meses e voltei.
Na Bahia, meu primeiro caso foi a greve da Polícia Militar. Um fator
interessantíssimo foi que, ao chegar a Salvador, o Kleber de Carvalho Coêlho,
um excelente sujeito e, posteriormente, grande procurador-geral, pediu férias
para estudar para o concurso e tive que assumir o cargo no lugar dele. No
início, era para eu ficar na Bahia permanentemente, porém, tomei posse em
9 de maio e, em 9 de outubro, já estava de volta ao Rio de Janeiro. Mas eu
tinha ido mesmo para não ficar, tanto que, antes de embarcar, o Ruyzinho
me perguntou como ficaria o escritório e eu respondi: “Você toma conta e
eu continuo recebendo, porque eu preciso, você é meu sobrinho e nós nos
amamos.”. Ele, então, disse que eu havia dado um bom motivo, mas que isso se
estenderia por seis meses e depois veríamos como iria ficar. Em cinco, já estava
de volta ao Rio de Janeiro, porque entrei firme trabalhando em Salvador. Eu e
o Kleber zeramos os processos na Auditoria, enquanto as outras ainda estavam
379
HISTÓRIAS DE VIDA
cheias. Quando soube que a Vera Regina Coelho Americano – um encanto de
pessoa –, havia se casado e mudado para Brasília, liguei para o Dr. Milton e
escrevi uma carta de dez páginas, mostrando como a Auditoria estava zerada.
Nela escrevi que estava longe dos meus livros, do meu escritório, da minha
família, sozinho em Salvador. Assim, pedi retorno ao Rio de Janeiro para a
vaga da Vera. Isso foi numa sexta-feira; na terça-feira, o Dr. Milton me ligou,
dizendo que a Vera não havia aberto a vaga dela para mim, porque nós éramos
substitutos, mas que a minha carta o tinha comovido e queria saber se aceitaria
assumir a 2ª Auditoria da Marinha, em caráter precário, e condicionado a
viajar para Salvador sem direito a diárias, sempre que preciso.
Memória MPM – Em quais casos o senhor atuava na advocacia?
Renato da Cunha Ribeiro – Foram vários. O E. G. Fontes, por
exemplo, deixou para a filha, aproximadamente, dois mil imóveis, entre
casas, terrenos, apartamentos e edifícios. Ele tinha uma imobiliária chamada
Metropolitana, somente para cuidar de seus próprios imóveis. A Imobiliária
Metropolitana era nossa cliente, tanto quanto o Banco Português e os negócios
de importação e exportação, também do Fontes, um grande milionário. A
Maria Thereza Fontes Williams, sua filha, hospedava reis e rainhas, como os
da Suécia, quando vinham ao Brasil. A casa deles, na Pedra Bonita, no alto da
Boa Vista, parecia um castelo, com campo de tênis, todo o conforto. Eu fui
lá muitas vezes quando era pequeno. O Brasil tem coisas que nunca foram
difundidas; essas coisas até podem parecer bobagens e, às vezes o são, porque
muito mais que a riqueza, é importante a honradez, o bom nome, o significado
da vida, o amor. Creio em tudo isso. Dinheiro é secundário, mas é interessante
para que se possa viver melhor.
380
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
Memória MPM – E no Ministério Público?
Renato da Cunha Ribeiro – No Ministério Público também tive
casos importantes. O primeiro que peguei foi a greve da Polícia Militar, em
Salvador e toda a Bahia. Fui para lá substituir o Kleber. Quem assessorou os
IPMs foi meu querido amigo Montenegro, já falecido.
Peguei dois processos de IPM, um da Marinha e, o outro, do Exército,
com mais de mil páginas cada um. Em Salvador, fui ao Comando Naval; a
Polícia Militar não estava jurisdicionada ao Exército nem à Marinha, ela não
tinha nada a ver com nada! Mas o Exército abriu um inquérito policial militar,
porque considerou aquela greve uma infração à Lei de Segurança Nacional e,
a Marinha, porque houve um entrechoque com as tropas da Polícia Militar, o
que ocasionou a morte de um oficial da Polícia Militar e ferimentos em outro,
que ficou paralítico. Dessa forma, a Marinha abriu um IPM e o Exército, outro.
Neste ponto, o general e o almirante pararam de se falar e, quando houve a
passagem de comando do general, o almirante foi para o mar para não ter de ir
à posse. Havia essa crise quando cheguei lá.
Logo que cheguei fui ao 2º Distrito Naval e falei com o oficial
de segurança, que me disse que a situação estava feia; cada um querendo
puxar as coisas para si. Era um clima de guerra, a Polícia Militar em greve,
Exército e Marinha se entrechocando. Falou que eu deveria resolver. Encarei!
Me apresentou dois sargentos, que iriam ser meus seguranças pelo tempo
que ficasse na Bahia, porque o clima não estava mesmo dos bons, mas não
aceitei; não gosto de homem, principalmente atrás de mim [risos]. De lá saí
para visitar algumas amigas e fui jantar. Pedi o jantar e, de repente, entrou um
cavalheiro vestido de calça cinza e camisa branca, que parou em frente ao caixa,
381
HISTÓRIAS DE VIDA
sacou um revólver e deu dois tiros para o alto olhando para mim. Levantei, fui
ao caixa e perguntei ao moço que lá trabalhava se não iria chamar a Polícia.
Ele respondeu que o homem que havia atirado era oficial da Polícia e, não
adiantaria nada. Eu pensei que o negócio era comigo mesmo.
Essa greve teve repercussão nacional, todos os noticiários de rádio
e televisão estavam acompanhando e avisaram que chegaria um procurador
do Rio de Janeiro para oferecer, ou não, a denúncia. Eles queriam saber como
iria resolver aquela briga e eu disse que não atenderia a ninguém da imprensa.
No dia que foi anunciada a minha chegada, todos correram para o aeroporto,
enquanto eu desembarcava na rodoviária. Da rodoviária peguei um táxi e fui
para o Grupamento de Fuzileiros Navais de Salvador, onde iria ficar hospedado.
Eles me procuraram em todos os hotéis, mas fiquei 25 dias no Grupamento,
sem que ninguém me descobrisse ali.
Um dia, houve uma passagem de comando da Marinha em um
almoço, e lá estava uma apresentadora de televisão. Ela me perguntou se eu
havia vindo do Rio de Janeiro e se conhecia o Renato da Cunha Ribeiro,
que apresentaria, ou não, a denúncia. Falei que não o conhecia, e quando me
perguntou o que eu fazia, desconversei, dizendo que era também da imprensa.
Aos poucos, fui estudando o processo. A primeira coisa que fiz foi decidir a
questão do Exército e da Marinha, na qual mandei trocar peças dos dois IPMs,
de um para o outro. E decidi que o IPM do Exército julgaria exclusivamente
a questão da greve e o da Marinha os acontecimentos da “Calçada”, ou seja,
o tiroteio que aconteceu na Praça da Estação. Assim, distribuí as atribuições
salomonicamente, metade para cada um, e eles se acertaram. Havia duas
preocupações principais: a primeira era saber a verdade. Como fiz isso? Bem,
eu estava hospedado nos fuzileiros: mandei chamar os oficiais da Marinha
382
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
que conhecia e os que ainda não. Falei a cada um que queria a verdade; alguns
insistiram que já tinham prestado depoimento, mas pedi que mesmo assim
falassem a verdade. Queria saber quem da Marinha havia atirado, quem estava
lá, quem não estava, toda a verdade.
O negócio aconteceu da seguinte forma: era comandante do
Grupamento de Fuzileiros o Fragata Ribeiro, e o governador baiano Antônio
Carlos [Peixoto de] Magalhães, dividiu a cidade em três zonas. Encarregou
a Aeronáutica de ocupar, com as viaturas da PM, pois a cidade estava sem
policiamento, o trecho da cidade que ia do aeroporto à Barra. Da Barra ao
Campo Grande encarregou o Exército e, a área da Cidade Baixa, ficou ao
encargo da Marinha. Foi ali que houve o confronto. Quando os grevistas
souberam que suas viaturas estavam sendo ocupadas por soldados da Marinha
fuzileiros, eles começaram a retomá-las à força, com violência. Ao tomar
conhecimento, o Ribeiro mandou recolher todos os carros da Marinha ocupados
por fuzileiros, para evitar o confronto. Mas não conseguiu evitar o da Praça da
Estação, porque enviou uma Kombi que chegou no exato momento em que a
guarnição da Marinha armada era rendida pelos oficiais grevistas. Temendo
um tiroteio, o Ten. Ribeiro, não o comandante, chegou de mãos levantadas,
mas foi recebido a tiros pela PM. Com sorte, conseguiu não ser alvejado, pois
se jogou ao chão. Porém, quem estava no carro, vendo essa situação, reagiu.
Foi assim que morreu o oficial da PM e o outro ficou paralítico. Apurado este
entrevero, pude então resolver outras questões. Um dos chefes da greve era
o major Etiene Falcão, que era considerado o terror da PM. Duas chacinas
tinham sido comandadas por ele, além de ter chefiado o ataque a um carro.
Em uma ocasião, saí à noite com um amigo, o Schmitt, oficial da Aeronáutica.
Estávamos em um grupo e paramos em Piripiri, que era zona de influência e
383
HISTÓRIAS DE VIDA
moradia deste major. Sentei em um barzinho, pedi um uísque e quem estava
sentado ao meu lado? O major Etiene! Não pude fingir não tê-lo visto. Então, o
cumprimentei, ele cumprimentou de volta, suspendi o jantar que havia pedido,
porque não ia afrontá-lo, mas não dei uma de covarde também... Terminei meu
uísque, tranquilamente, pedi a conta, dei boa-noite a ele e fui embora.
Outra vez, tive um caso assim na Auditoria da Marinha, em que
fiquei a três metros de um sujeito do Comando Vermelho, em uma sala de
audiências. Era um sujeito incrivelmente forte, já havia matado três ou
quatro e tentado matar mais dois. Na sessão em questão, tinha intencionado
fugir. Algumas coisas são inexplicáveis... Uma vizinha minha, esposa de um
advogado, tinha visões. Ela descreveu o sujeito certinho, antes de ele ser preso
pelo capitão Sérgio, sem tê-lo visto, e me disse que ele estava ameaçando
matar a mim, ao Sérgio e ao juiz e que planejava fugir no dia seguinte. Disse,
ainda, que a fuga tinha sido planejada por outra pessoa que era sarará. Não tive
dúvidas. Depois que ela me disse isso tudo, fui falar com o Arnaldo, que era
comandante do Distrito Naval do Rio de Janeiro e mais tarde ministro-chefe
das Forças Armadas, meu amigo desde que ele estava na Escola Naval. Falei
que havia uma fuga premeditada para tal dia, de um sujeito que iria prestar
depoimento na Auditoria e, então, pedi que reforçasse todo o policiamento da
área. Quando encostei o carro na vaga privativa junto ao prédio da Auditoria,
o capitão Sérgio chegou dizendo ter prendido o Sarará e que era ele quem
estava armando a fuga do Cláudio. Começou a sessão, eu acusei, com muito
respeito, o qual tenho sempre por todos os réus. Acho que o réu também
merece respeito, assim como o juiz, o advogado e o promotor. Olhei para ele:
estava uma fera! Quando acabou a sessão, o oficial de Justiça perguntou-lhe o
que faria; ele disse que mataria esse promotor e esse juiz e fugiria. Quando ouvi
384
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
isso o encarei de lado, ele me encarou de volta e abaixou os olhos. Quando fez
isso, pensei ter ganhado. Ao fim da sessão, o datilógrafo colocou-se entre nós
para me defender, mas eu não tinha pedido, não!
Memória MPM – E os réus da Lei de Segurança Nacional?
Renato da Cunha Ribeiro – Há muita gente por aí requisitando
indenização, sob o argumento de que estava defendendo a democracia durante
o regime militar, mas as coisas não eram bem assim. Eles queriam implantar
o comunismo no Brasil, todos eles! Eu vivi isso. Uns eram leninistas, outros
maoístas, mas todos comunistas de carteirinha assinada; queriam simplesmente
derrotar o governo e implantar o comunismo. Ninguém queria uma democracia,
fosse liberal ou socialista.
A prova disso é o crime do marinheiro inglês, que pedi para que
não mandassem para mim o caso. Um marinheiro inglês veio em uma força-
tarefa para aqui, no Rio de Janeiro, saltou porque queria conhecer Copacabana,
pegou um táxi e, quando chegou à esquina da Rua Larga, foi fechado por
um Volkswagen: os ocupantes saíram de metralhadora em punho, mataram o
rapaz, de 20 anos – chamava-se David–, gritando que era preciso implantar o
comunismo e soltaram panfletos. Isso é combater a ditadura? Assassinar um
homem da companhia de gás, em São Paulo, na frente dos filhos e depois vir
dizer que sofreu tortura?... Ora, dê-se ao respeito! Prove que sofreu tortura!
Prove, que dou crédito. Do contrário, não. Direito não é brincadeirinha. Quem
afirma precisa ter provas. Quantos outros crimes horrorosos eles cometeram?...
Memória MPM – O crime do marinheiro inglês foi na sua época de
defensor de ofício. O senhor defendeu os réus?
385
HISTÓRIAS DE VIDA
Renato da Cunha Ribeiro – Não. Achei aquilo uma barbárie tão
grande que pedi que os autos fossem distribuídos para outro advogado de
ofício. Uma vez, em outro caso, tive que parar a defesa e virar para os meus
dois réus, um deles filho do Nelson [Falcão] Rodrigues que, enquanto o pai
chorava de desgosto na sala de espera, ele estava sentado mascando chiclete,
junto ao amiguinho, afrontosamente de pernas cruzadas diante do Conselho,
conversando. Parei e disse: “Um instante. Ou os réus se comportam como réus,
ou vou parar a defesa, porque eles não estão com uma postura digna de um
Tribunal. Estão afrontando o Tribunal, o Ministério Público e a defesa.”. O
promotor do caso era o Ruiz, meu grande amigo, que posteriormente teve um
derrame e está há três anos de cama – é enteado do ministro Nelson Sampaio
Barbosa, do Superior Tribunal Militar –, uma pessoa maravilhosa, muito amiga.
Nós, os antigos – não sei como está hoje –, éramos uma turma unida,
compacta. Já entrevistou o Jorge Luiz Dodaro? Ele é um encanto de pessoa;
sempre foi comedido. Pegávamos os piores casos; ele pegou o do Riocentro.
Desejei-lhe boa sorte no caso, do qual escapei por pouco, porque soltaram uma
bomba no Espírito Santo e esse processo veio para mim. Mas é aquele negócio,
sou um homem que não cultivo ódios, graças a Deus. Às vezes faço conceitos
não muito lisonjeiros de certas pessoas, mas sempre digo os porquês. Nunca
é a ponto de odiar ou querer mal, pelo contrário. O Ministério Público, para
mim, sempre foi um lugar de devoção. Nunca sofri qualquer pressão por parte
de nenhum procurador-geral para julgar assim ou assado, para acusar ou deixar
de acusar, para denunciar ou não.
Memória MPM – O senhor recorda outros casos impactantes em que
tenha atuado?
386
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
Renato da Cunha Ribeiro – O assalto a duas agências do Banco
do Brasil, realizadas por pessoas que ajudaram a organizar o Partido dos
Trabalhadores, como o sargento Antônio Prestes de Paula. Ele e outros se
reuniram na Bahia, oriundos de vários lugares como Serra Pelada, Salvador,
São Paulo, Paraná, Santa Catarina, para se organizarem e assaltarem agências
bancárias naquele Estado. Na agência de Vitória da Conquista, renderam o
gerente e sua família: encostaram a arma na cabeça das crianças para que o
gerente abrisse a agência mais cedo na manhã seguinte, o que ele fez. Na fuga,
espalharam “miguelitos” pelo chão, aquelas bolas de ferro com três pontas.
Como tiveram sucesso, decidiram assaltar outra agência do Banco do Brasil,
agora em Salvador, mas nessa foram presos em flagrante delito. Todos eram
filiados ao PT. O partido disse que não tinha relação nenhuma com o caso.
Mas, na casa deles, foram encontrados exemplares do jornal interno do PT e,
esses jornais diziam algo assim: “Temos que tomar o poder. Seja legalmente ou
através da guerrilha urbana.”. Esse processo dos assaltos foi no ano de 1986,
depois da Anistia e antes da Constituinte. Após o Carnaval de 1986, denunciei
os acusados.
Memória MPM – O senhor voltara do Rio de Janeiro para a Bahia?
Renato da Cunha Ribeiro – Por uns quatro ou cinco anos, sempre
que se precisasse da minha presença, retornava à Bahia, mesmo estando no Rio
de Janeiro. Viajar à Bahia era muito bom, porque eu ia, voltava, sabia o tempo
que ficaria lá; não era como no início, que tinha ido para ficar permanentemente.
Lá não havia tantos processos como no Rio de Janeiro. Na Bahia, os processos
na Auditoria eram de deserção, etc. Em um mês, estavam resolvidos.
Memória MPM – E em Brasília?
387
HISTÓRIAS DE VIDA
Renato da Cunha Ribeiro – Havia acúmulo de processos. Quando
fui para Brasília era procurador-geral Eduardo Victor Pires Gonçalves e
encontrara, ao chegar, uma pilha de processos enorme na Auditoria. Todos se
referiam a coronéis, tenentes-coronéis, comandantes de guarnições, e eu pensei:
“Qual é a diferença entre um soldadinho e um coronel? Vamos julgar. É ou não
é?”. Fui resolvendo tudo, arquivava ou denunciava o que achava necessário e a
pilha acabou. Em função disso, o Eduardo se encantou comigo. Eu entrava na
sala dele para pedir alguma coisa, ele dizia que já estava concedido. Era uma
excelente pessoa. Não tinha muitas luzes jurídicas, mas tinha consciência disso
e não se metia no Tribunal a fazer defesa oral; dedicou-se a administrar e fez
isso muito bem. Viu que o gaúcho estava no Amazonas, o paraense estava no
Rio Grande do Sul, então colocou cada um em seu lugar de origem. Eu gostava
muito dele, porque era uma pessoa que sabia reconhecer suas limitações e agia
dentro desse conceito.
Memória MPM – E a Associação?
Renato da Cunha Ribeiro – Foi o Paulo Duarte Fontes, um colega
encantador, quem me levou para a Associação. Cheguei a integrar a diretoria,
mas não fiz nada. A Associação, naquele período, não tinha tanto poder ou
importância; era diretor, mas ficava por isso mesmo. Fui diretor de futebol
do Flamengo também. Participei do Conselho da FEBEM, antiga Fundação
Estadual do Bem-Estar do Menor. Recebi da OAB – Ordem dos Advogados
do Brasil, a Medalha Sobral Pinto. O Ministério Público muito me honrou com
a minha condecoração. Aposentei-me não por desejo, mas por duas coisas que
me contrariaram: a primeira é que teria que atuar em Brasília, o que não era de
minha vontade; a segunda, não me aposentando, estava impedindo que colegas,
que vinham atrás de mim, tivessem promoções, o que achava injusto com eles,
388
RENATO DA CUNHA RIBEIRO
pois eu já havia me realizado no Ministério Público. Tive uma carreira boa,
sem queixas, tanto lá quanto na advocacia. Sempre procurei pautar meus atos
segundo me parecia ser a vontade de Deus. Sempre pedia, antes de entrar em
uma sessão, a proteção divina, que Deus me iluminasse para que eu pudesse
fazer justiça acima de tudo. Minha carreira foi essa, com muitos processos.
Houve um caso especial, que desejo relatar. Quando eu era advogado
de ofício, um réu comum, após o interrogatório, procurou-me e me pediu para
não ser recambiado para o Presídio da Ilha Grande. Ao ser inquirido, revelou
que os detentos estavam armados e planejavam uma fuga em massa para o
domingo seguinte, Dia das Mães, e como ele só respondia a um processo de
assalto comum a Banco, não desejava participar da fuga planejada, mas, se não
aderisse, seria morto.
Pretextei uma nova oitiva do réu e comuniquei o fato ao Theódulo
Rodrigues de Miranda e ao Agapito, respectivamente, juiz e promotor do
processo, e o levamos ao conhecimento das autoridades militares. Passado
o fim de semana, na terça-feira seguinte, fomos procurados pelo coronel ao
qual tínhamos feito a comunicação, e ele nos confirmou que, efetivamente,
os detentos estavam armados, o plano de fuga era real, e mais, que cada preso
tinha o nome e endereço de um juiz militar, um procurador, ou um advogado
de ofício, e que, caso conseguissem fugir, ao chegarem em terra firme, a missão
era dirigir-se ao endereço e matar a autoridade ali residente.
Memória MPM – Gostaria de deixar mais alguma coisa registrada?
Renato da Cunha Ribeiro – Deus me abençoou com o ingresso no
Ministério Público Militar. A Justiça Militar é a melhor justiça humana, é a
justiça do homem que mais se assemelha à de Deus. É um colegiado no qual
389
HISTÓRIAS DE VIDA
oficiais deixam as suas atribuições daquele dia para serem juízes; procuram
acertar e agir como juízes: se informar, consultar o auditor, o procurador, o
advogado de ofício. Esses militares, que vão ser juízes, vestem a toga sem despir
a farda. Continuam homens e oficiais íntegros que procuram sempre acertar
e fazer a justiça. Fui abençoado, ainda, em fazer parte da Justiça Militar com
os homens que a constituíram na época, como o Afonso Carlos Agapito da
Veiga, um grande exemplo para o Ministério Público; o Paulo da Costa Reis;
o Dr. Theódulo Rodrigues de Miranda, que, para mim, foi o melhor juiz da
Justiça Militar; o irmão dele, Teócrito Rodrigues de Miranda, também foi um
grande juiz, entre muitos outros grandes juízes. Theódulo e eu éramos muito
amigos; quando ele morreu fiz um discurso no enterro e saiu uma crônica do
Ziraldo [Alves Pinto], na que ele cita meu nome por esse discurso. Éramos
muito amigos mesmo, ele morava de fronte a minha casa e íamos juntos para o
Carnaval, para a fazenda em Barbacena, para os eventos. Nossos julgamentos
ficaram na história, porque sempre agimos com isenção de ânimos, dentro da
lei e da justiça. Éramos como irmãos. Minha família gostava muito dele, tanto
os meus irmãos, como meu sobrinho Ruyzinho, que dirige o escritório hoje,
onde já está, também, meu sobrinho-neto e logo estará o sobrinho-bisneto. O
escritório, com 106 anos, é, além disso, meu ingresso no Ministério Público,
outro motivo de gáudio para mim. Deus é muito bom e misericordioso, só
tenho a agradecer a Ele essas bênçãos e outras mais. Que Deus abençoe a
todos nós e, principalmente, ao Brasil, que tanto precisa. O Ministério Público
para mim sempre foi fonte de alegria. Meus colegas também.
Memória MPM – Muito obrigado pelo seu depoimento.
390
391
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar,
em Brasília, no dia 4 de março de 2015, por Gunter Axt.
392
João Ferreira de Araújo nasceu em 29 de julho de 1929, em Lagarto, Sergipe.
É filho de Valério Ferreira de Araújo e Vitalina Maria de Jesus. Casou-se com
Cherubina Bastos Melo de Araújo. Serviu na Marinha. Formou-se técnico
em enfermagem. Graduou-se em Direito pela antiga Universidade do Estado
da Guanabara, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em
1962. Atou na advocacia trabalhista. Ingressou na carreira do Ministério
Público Militar em 1981, aprovado em concurso público, nomeado em 10 de
agosto procurador militar de segunda categoria, cargo atualmente denominado
promotor de Justiça Militar. Inicialmente, exerceu suas funções na 1ª Auditoria
da 12ª Circunscrição Judiciária Militar, em Manaus. Em 1982, foi removido
para o órgão do MPM junto à 1ª Auditoria da Marinha da 1ª CJM, no
Rio de Janeiro. Em 12 de dezembro de 1991, foi promovido a procurador
militar de primeira categoria. Em 20 de fevereiro de 1995, ascendeu ao cargo
de subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 16 de março do mesmo ano,
aposentou-se.
393
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de uma cidade pequenina que fica
em Sergipe, não é? Lagarto?
João Ferreira de Araújo – É, isso, município de Lagarto. Nasci em
um sítio que ficava num distrito rural.
Memória MPM – Mas o sítio produzia?
João Ferreira de Araújo – Produzia tudo, mas não para comércio,
apenas para sustento familiar.
Memória MPM – E o senhor teve muitos irmãos?
João Ferreira de Araújo – Minha mãe teve vinte e um filhos!
Memória MPM – O senhor é qual desses vinte e um?
João Ferreira de Araújo – Eu sou o quarto.
Memória MPM – O senhor é de 1929?
João Ferreira de Araújo – Exato.
Memória MPM – O senhor estudou onde?
João Ferreira de Araújo – Lá. Aquilo era um atraso tremendo. O
Brasil inteiro era muito atrasado. Onde tinha um desenvolvimento regular
era em São Paulo, que havia algumas indústrias. Quando se queria qualquer
coisa, era preciso importar da Alemanha. O Brasil veio a se desenvolver mais
com o governo Juscelino [Kubitschek]. Não votei no Juscelino, porque eu era
lacerdista; achava o Carlos Lacerda muito inteligente, grande orador. Ele era
da UDN. Mas reconheço que Juscelino descobriu o Brasil. Então, fiz o curso
394
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
primário numa escola particular, que funcionava em uma casa de família. Era
ali que os meninos aprendiam o bê-á-bá.
Memória MPM – E recebiam uma subvenção do governo do Estado?
João Ferreira de Araújo – Não, nem recebiam; não tinha subvenção
nenhuma. A minha professora não recebia nada, coitada!
Memória MPM – Como era o nome dela, o senhor lembra?
João Ferreira de Araújo – Nunca me esqueci: Júlia e era casada com
um cara que se chamava José. Não era formada em Escola Normal. Eu não
tinha dificuldade de aprendizagem e com seis meses sabia as quatro operações,
lia e escrevia rudimentarmente. Com esses conhecimentos elementares, fui
crescendo, melhorando. De Sergipe, fui para Salvador, onde consegui entrar
na Escola de Aprendizes de Marinheiros. Terminei o curso e fui para o Rio de
Janeiro, para jurar a bandeira.
Memória MPM – Em que ano o senhor foi para o Rio?
João Ferreira de Araújo – Final de 1945...
Memória MPM – Já tinha terminado o Estado Novo do Getúlio...
João Ferreira de Araújo – Já tinha terminado. Já tinham votado a
Constituição de 1946. Então, foi final de 1946. Fiquei embarcado onze meses.
Consegui desembarcar em Natal, na base naval. E lá entrei para um curso
particular. Embarcado não daria para estudar. Consegui, assim, concluir o
curso do Art. 91, um tipo de supletivo. O Art. 91 foi criado para contemplar as
pessoas que haviam estudado nos seminários católicos. Os padres não queriam
que fossem oficialmente reconhecidos, para que as pessoas não apresentassem
395
HISTÓRIAS DE VIDA
falsas vocações ao sacerdócio, tentando garantir acesso à educação. Depois, com
as matérias que havia cursado, consegui me matricular no Colégio Estadual do
Rio Grande do Norte e conquistei meu certificado de ginásio. Fiz o colegial, o
Clássico, pois minha intenção já era cursar Direito.
Memória MPM – E por que o senhor pensava já em fazer Direito?
João Ferreira de Araújo – Eu tinha evoluído um pouquinho,
já sabia de alguma coisa, como, por exemplo, que o Direito era muito bom
para o indivíduo conhecer os seus direitos e os dos outros. E também tinha
o seguinte, lá no interior, com aquele atraso danado, havia muitas questões
de terra, que eram mediadas por um cidadão chamado José Deda – mas a
turma o chamava de Zeca Deda. Qualquer problema, recorriam ao Zeca Deda,
que vinha montado em um burro, armado com um “papo amarelo” – uma
carabina Winchester calibre 44, de 1873, muito popular na região do cangaço;
apelidaram-na assim por causa do cabeçote, o elevador de munição, em metal
amarelo. Ele traçava os rumos daquelas propriedades. Ninguém discutia mais.
Diziam ser advogado, mas ele não era coisa nenhuma! Nem provisionado, nem
rábula; era o homem que resolvia. Eu achava aquilo importante. Molecote,
dizia assim: “Quero ser o Zeca Deda, é o homem que resolve os problemas, é
o homem que tem força, é o homem que manda.”. Então, quando consegui ir
para o Rio de Janeiro, prestei o vestibular. Passei na Faculdade de Direito do
Distrito Federal.
Memória MPM – E como foi o tempo de Faculdade?
João Ferreira de Araújo – Foi ótimo. Bons professores, alunos
excelentes. Tenho boas recordações.
396
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
Memória MPM – O senhor chegou a participar do movimento estudantil?
João Ferreira de Araújo – Não! Eu precisava trabalhar e estudar.
Não tinha tempo para a política. Só queria viver a minha vida. Mas a turma
toda não se ligava em movimento estudantil.
Memória MPM – O senhor se lembra de quem eram os seus professores?
João Ferreira de Araújo – Lembro-me bem do [ José] Pereira Lira,
do Direito Civil, chefe da Casa Civil do presidente [Eurico Gaspar] Dutra.
Excelente professor! Um paraibano. Direito Constitucional era ministrado pelo
Afonso Arinos de Melo Filho, o velho. Em Ciência das Finanças tínhamos um
deputado federal baiano, muito expressivo, o Aliomar [de Andrade] Baleeiro.
Eram muitos professores...
Memória MPM – A frequência era obrigatória ou não?
João Ferreira de Araújo – Era obrigatória.
Memória MPM – Tinha que assistir à aula e responder à chamada?
João Ferreira de Araújo – Tinha, exatamente. Eles não faziam a
chamada, mas conheciam todo mundo. Se o cara faltasse, apontavam. Eu me
inscrevi na turma da noite, mas, quando podia, também frequentava a turma da
manhã. Havia somente duas Faculdades de Direito no Rio, a Nacional e a do
Distrito Federal. Falavam que o curso de Contabilidade se transformaria em
Direito, o que aconteceu logo em seguida. Imagine: hoje, em qualquer esquina,
tem uma Faculdade de Direito.
Memória MPM – E tinha colegas mulheres também?
397
HISTÓRIAS DE VIDA
João Ferreira de Araújo – Era misto. Mas havia poucas. No
vestibular da Faculdade do Distrito Federal tínhamos de optar pelo teste de
francês ou inglês. Optei pelo segundo. Na minha frente foi chamada uma
moça de Fortaleza, Raimunda. Ela falava inglês muito bem. Eu apenas lia e
traduzia, mas tinha dificuldade para falar. Ao que parece, por ter se empolgado
com o desempenho desta moça, o professor ultrapassou o tempo dela. Ficou
conversando com ela. Eu, de longe, ouvindo ele a arguindo, pensei: “Estou
lascado! Quando chegar a minha vez, o desnível vai ser evidente, vai ser um
fracasso!”. Mas ele só me deu um textinho comercial para traduzir, bem fácil.
Não me perguntou nada demais. Comecei a traduzir e ele já me interrompeu
dizendo que estava satisfeito. Saí dali aliviado. Afinal, parece que a fluência
dela me salvou, porque ocupou o tempo dela e o meu. Salvou-me, a Raimunda!
Foi uma boa aluna. Os alunos, de modo geral, eram muito bons. Eu também
me esforçava. Fiquei em segunda chamada apenas em Ciência Política. O
professor era um baiano, bem agitado, mas muito bom mestre. Ele, contudo,
não indicava bibliografia. Dizia que a matéria estava toda nos jornais. Bastava
lê-los. Mas na segunda chamada me saí bem.
Memória MPM – E o senhor chegou a fazer algum estágio durante
a Faculdade?
João Ferreira de Araújo – Ah, fiz! O estágio em escritório de
advocacia me parece que não era oficial. Você podia fazer se tivesse um amigo,
um contato. O estágio válido era na Defensoria Pública.
Memória MPM – Certo. Como advogado de ofício?
João Ferreira de Araújo – Como advogado de ofício.
398
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
Memória MPM – Quartanista?
João Ferreira de Araújo – Exatamente. Era muito bom o estágio.
Não havia muitas vagas, e os alunos tinham que se interessar, porque se não
se interessassem, eles não ficavam dizendo, “Faça isso, aquilo...”. Se o cara
não fizesse, azar!
Memória MPM – O senhor se formou em 1962, então?
João Ferreira de Araújo – Sim. O Altamir [Souza Neto], um
colega de turma, hoje aposentado, acabei encontrando em Brasília, pois ele
atuou como consultor do Exército. Era um cara conhecidíssimo de todo
mundo na escola, porque, naquela época, aconteceu um crime no Rio de
Janeiro, chamado “O crime do Sacopã”. Um segundo-tenente, Bandeira, da
Aeronáutica, matou um funcionário do Banco do Brasil, numa rixa passional.
Esse funcionário do Banco do Brasil era meio chantagista. Naquele tempo,
um dos melhores empregos era ser funcionário desse Banco. Então, ele
era elegante, namorava moças bonitas no Rio e fazia chantagem. Depois
que a moça se apaixonava, ele tirava fotografias de todo jeito e (diziam)
ficava chantageando, tomando dinheiro. Aconteceu que esse tenente tinha
uma namorada, chamada Marina, que foi chantageada pelo tal bancário. O
Bandeira marcou um encontro com ele, armou uma emboscada, na Ladeira
do Sacopã. O Bandeira foi a julgamento e condenado. O advogado dele foi
o João Romeiro Neto, um dos melhores criminalistas do Rio de Janeiro, que
chegou a ministro do Superior Tribunal Militar. Evandro Lins era muito
amigo dele e, na época, já estava como ministro do Supremo, indicando-o
para o Tribunal Militar. Durante o regime militar, infartou e morreu, dizem
que de preocupação com as cassações e os processos políticos. Morreu como
399
HISTÓRIAS DE VIDA
ministro na ativa. Pois bem, ele foi o advogado do tenente Bandeira, que
foi condenado a 18 anos, uma coisa assim... Depois de algum tempo, ainda
prisioneiro, ele namorou a filha do Tenório Cavalcanti.
Memória MPM – Ah, o homem da Lurdinha!
João Ferreira de Araújo – O homem da Lurdinha. O homem da
capa preta, deputado federal, sempre reeleito. Vivia em Duque de Caxias. A
casa dele era uma fortaleza. Pois bem, o Tenório se interessou pela defesa
do tenente. Fez uma confusão danada, mas não conseguiu nada também.
O tempo passou, e depois de ter cumprido a pena fizeram uma revisão;
descobriram um erro no processo e ele foi absolvido. Recuperou os direitos
dele na Aeronáutica e terminou aposentado como coronel. Ele foi julgado
no Rio pelo 2º Tribunal do Júri. O juiz era um cara muito preparado.
Memória MPM – Mas foi julgado na Justiça Comum, então?
João Ferreira de Araújo – Na Justiça Comum. O auxiliar do juiz era
o Souza Neto, piauiense, superestudioso, novo, substituto. O juiz substituto,
no Tribunal do Júri, não presidia o julgamento, embora auxiliasse o titular
no resto. Mas o Souza Neto era tão preparado que o titular entregou o caso
para ele. Com a transferência do Distrito Federal, ele veio para Brasília;
continuou a carreira e chegou a desembargador. Um julgamento anulado,
depois de tanto tempo da pena cumprida... Foi um caso interessante.
Memória MPM – E o senhor chegou a fazer a assistência desse
processo na época?
João Ferreira de Araújo – Não, não. Eu só acompanhava, pelos
jornais, pelos noticiários.
400
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
Memória MPM – E durante esse período da Faculdade, o senhor
trabalhava na Marinha?
João Ferreira de Araújo – Trabalhava na Marinha. Quando
terminamos o curso, nós alugamos uma sala, uma turma: o Luís Chaves
Nunes, já morreu, um cearense; o Armando, de quem eu não tenho notícias;
o Vital, excelente aluno; o Jacó Sitrinbal; acho que eram esses. Montamos
o escritório em conjunto, na Lapa, na Rua das Marrecas, que hoje se chama
Pablo Duarte. Um edifício novo, de doze andares, creio.
Memória MPM – Antes dos Arcos da Lapa?
João Ferreira de Araújo – Sim, antes de atravessar os Arcos.
Começamos logo a advogar. Eu era da Marinha, mas em toda folga, estava
no escritório. Eu chamava clínica geral: tudo que viesse estava bom. Era para
praticar. Depois saiu o Vital, foi convidado por um dos nossos professores.
O Armando saiu em seguida. No final, ficamos eu, o Jacó e o Nunes. Eu
e o Jacó passamos a fazer acidentes de trabalho, que na época aconteciam
muitos. Existiam duas Varas de Acidentes de Trabalho no Rio e havia uma
conversa de que seria uma atividade difícil. Como havia poucos advogados
que atuavam na área, tinham muitos clientes. O Jacó tinha tino para bons
negócios e percebeu a oportunidade quando mencionei o assunto a ele. Era
uma advocacia que rendia muito e, na verdade, facílima, porque a gente
fazia uma petição e xerocopiava já uma porção, só trocando aquilo que
era específico do caso. Dava indenização, então, era fácil ganhar dinheiro.
O trabalhador quebrava uma unha, dava indenização. Chegou ao ponto
que tínhamos tantos clientes, eu e o Jacó, que já não aceitávamos qualquer
um, só acidente de coluna, de crânio... As indenizações não eram grandes,
401
HISTÓRIAS DE VIDA
mas o volume as tornava interessantes. E havia garantia de pagamento,
porque o juiz lançava a indenização na Carteira de Trabalho, em audiência,
e o trabalhador a recebia na Vara. Dali, a gente ia para o Banco para
receber o dinheiro das seguradoras; levávamos uma mala daquelas “007” e
a enchíamos! Tinha de apertar, às vezes, os maços de dinheiro para caber
tudo. Era uma boa!
Memória MPM – O dinheiro da indenização...
João Ferreira de Araújo – Era; a gente cobrava 20% das
indenizações. E naquele tempo não tinha o INPS, o governo não entrava
nesse negócio de acidentes do trabalho. Era tudo seguradora particular, feito
na base do acordo. Chegava lá, na hora da audiência, com a seguradora e o
cliente e fazia um acordo.
Memória MPM – E a Justiça do Trabalho reconhecia o acidente
de trabalho?
João Ferreira de Araújo – Ah, reconhecia. Pagavam! Porque era
com a seguradora.
Memória MPM – Agora, nesse meio tempo, o senhor continuava
na Marinha?
João Ferreira de Araújo – Continuava na Marinha.
Memória MPM – Mas com trabalho em terra?
João Ferreira de Araújo – Só em terra. Eu embarquei apenas por
onze meses, desembarcando no Rio Grande do Norte para ver se conseguia
estudar. E depois foram mais 13 meses e 13 dias fazendo uma viagem de
402
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
volta ao mundo. Eles chamavam de circunavegação. A Marinha tinha feito
uma viagem assim havia uns 25 anos. Em 1953, fez outra no navio-escola
Almirante Saldanha, e eu fui convidado para acompanhar. Parece-me que não
fez mais nenhuma dessas depois.
Memória MPM – Quem era o comandante da embarcação?
João Ferreira de Araújo – Ah, eu acho que era comandante Barata;
já morreu.
Memória MPM – Como foi esse convite?
João Ferreira de Araújo – Eu tinha feito um curso técnico de
enfermagem, porque para continuar na Marinha, só tendo uma profissão. Passei
em primeiro lugar, no Rio. Ganhei a viagem de volta ao mundo, como prêmio.
O ministro da Marinha era o almirante [Renato de Almeida] Guillobel, quem
dava uma oportunidade ao indivíduo que estudasse e se classificasse bem.
Recebi soldo em dólar, o que era a grande vantagem.
Memória MPM – O senhor já era casado nessa época?
João Ferreira de Araújo – Era casado.
Memória MPM – Bom, então deu para fazer um bom pé de meia.
João Ferreira de Araújo – Ah, eu tenho uma boa propriedade em
Nova Friburgo, fiz bastante economia; um sítio que comprei justamente com
esse dinheiro.
Memória MPM – E como foi essa viagem? Onde é que vocês pararam?
O senhor lembra?
403
HISTÓRIAS DE VIDA
João Ferreira de Araújo –Tenho em casa um livro de toda a viagem.
Saímos do Rio de Janeiro para Dacar, África do Norte.
Memória MPM – Certo, Senegal.
João Ferreira de Araújo – É. De Dacar, fomos ao Marrocos,
Casablanca, donde partimos para a Europa. Passamos por vários países.
Memória MPM – E qual é a história da louça do Café Filho?
João Ferreira de Araújo – O Café Filho... O [ José Carlos] Couto
[de Carvalho] esteve aqui? Ele que contou isso?
Memória MPM – O Dr. Couto esteve aqui. Ele contou outra história
divertida também.
João Ferreira de Araújo – Hummm... Bem, foi o seguinte: o
imediato era um capitão de fragata, comandante Moutinho, muito elegante,
trabalhador, mas bastante enérgico. Nós levamos muita coisa do Brasil: laranja,
frutas... para distribuir, como propaganda do que a gente produzia. Mas todo
mundo queria comprar umas coisinhas para trazer, principalmente nos Estados
Unidos, coisas que não existiam no Brasil, ou eram proibitivas. Tínhamos uma
cota, dada pelo posto do indivíduo. Quer dizer, os oficiais tinham uma cota
maior. O navio foi com uma turma de guardas-marinhas, cuja cota era menor.
Os subalternos tinham cotas baixas. Quando chegava no cabo, no marinheiro,
a cota era uma bobagem. Em Jacarta, na Indonésia, vi uma louça japonesa,
a Noritake, por um preço de banana: um aparelho de cem peças, completo!
Mas excedia a minha cota, sem mencionar que não tinha lugar no navio para
acomodar aquilo. Mas, fazendo parte do serviço de saúde, atinei que tinha,
acima da casa de máquinas, um compartimento que ninguém usava, por causa
404
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
do calor: “Rapaz, eu vou aproveitar esse espaço aqui!”, pensei, disposto, então,
a correr o risco. Comprei! Era a oportunidade de ter um aparelho daqueles.
Contratei uns marinheiros, controlei a movimentação do guarda-marinha
que estava de serviço e quando ele foi para um lado, entrei com o meu caixote
de louça. Guardei lá e deixei escondido. Um dia, o Moutinho mandou fazer
uma inspeção para ver quem tinha coisas a mais do que podia. Aí descobriu
esse caixote de louças naquele lugar. E fosse de quem fosse, ele mandou jogar
na água. Quando eu vejo, vem um guarda-marinha e uns marinheiros tirando
o caixote: “Para onde vão com esse caixote?”, perguntei, e ele disse: “É para
os imediatos jogarem na água. Você sabe de quem é?”. Eu disse: “É meu!”. Aí
me veio na mente, “Fiz um troço que não devia ter feito, mas fiz!”; então falei:
“Mas não tem problema, pois estou levando de presente”. Eles: “Para quem?”,
e eu: “Para o Café Filho”. Era o vice-presidente da República, e me veio na
mente porque era amigo de meu sogro, lá do Rio Grande do Norte. O meu
sogro era um cabo eleitoral fiel dele. O Café Filho era uma pessoa simples. E
a bordo, durante a viagem, mandou uma mensagem de Natal para mim. Aí,
acharam que eu tinha relações com Café Filho, mas não tinha, praticamente
não o conhecia, era questão lá do meu sogro. Então, o guarda-marinha parou,
botou o caixote no chão e foi lá falar com o Moutinho, que mandou guardar.
Ninguém jogou o caixote fora, que desse modo foi salvo! Acontece que não
era para o Café Filho e nem eu dei depois que voltamos, porque não era dele
mesmo, era para mim! Depois fiquei com remorso: “Não devia ter dito isso de
jeito nenhum!”. Mas me veio aquilo na mente, num lampejo, foi como uma
legítima defesa. Esse jogo até hoje está na família; dei para o meu filho. Ele
usa pouco.
Memória MPM – E depois que o senhor retornou dessa viagem?
405
HISTÓRIAS DE VIDA
João Ferreira de Araújo – Ah, voltei para o Hospital Central da
Marinha, trabalhando na Clínica Oftalmológica. Gostava de lá, era gente boa!
E gostavam de mim porque era responsável: não precisava ninguém mandar,
eu sabia o que tinha que fazer; se tivesse alguma dúvida, perguntava para quem
sabia. O médico era um excelente profissional. Então, o Tribunal precisou de um
enfermeiro e de um médico, para a assistência dos ministros e eu fui indicado;
já era bacharel em Direito. O ambiente era excelente. Fui recebido muito bem.
O presidente me acolheu com um destaque que nunca tinha recebido. Eu não
tinha preguiça de fazer o serviço, mesmo se passava da hora de ir embora: acho
que agradei. O cargo era muito bom, o vencimento melhor, então, achava que
essa era a maneira certa de proceder.
Memória MPM – Como é que o senhor vivenciou os episódios de 1963
e de 1964? A rebelião dos sargentos, a paralisação dos marinheiros?...
João Ferreira de Araújo – Dentre os subalternos, na Marinha, um
dos mais influentes era meu conterrâneo, um cara muito inteligente e bem-
-intencionado. Ele me convidou para entrar no Sindicato dos Marinheiros.
Mas eu, educadamente, recusei porque percebi que não era o caminho certo, que aquilo daria errado. Um Sindicato de Marinheiros seria percebido
como inversão da hierarquia. A Revolução, de fato, terminou com aquilo.
Ele foi processado. Acompanhei, portanto, todo esse processo à distância,
sem me envolver.
Memória MPM – Nesse período no Tribunal Militar, o senhor
conviveu com os ministros. O senhor se lembra dos ministros?
João Ferreira de Araújo – Me dava muito bem com todos eles.
Eram indivíduos de idade avançada para os padrões da época, isto é,
406
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
perto dos setenta anos. Dei-me muito bem com o general [Oliympio]
Mourão Filho.
Memória MPM – Pois é, agora vem aquela história que o Couto contou,
da injeção [risos]. Como foi?
João Ferreira de Araújo – Bem, quando houve aquela Marcha dos
Cem Mil, com os estudantes nas ruas, o presidente Mourão Filho mandou, por
prevenção, fechar o Tribunal, que seria cercado. As mulheres, ele determinou
que saíssem pelos fundos e fossem embora. Nós ficamos lá. Fui aplicar-lhe
um calmante, por injeção. Ele disse: “Não! Não quero tomar essa p., não!”.
Retruquei: “Mas é bom para acalmar, com toda essa situação...”. Ele: “Se eu
dormir nessa m., eles vão invadir o Tribunal!”. “Mas não é para dormir, não.
É só para não ficar nervoso.”. “Não quero uma espetada no traseiro com o
Tribunal sob ameaça de invasão!”. O Mourão falava assim mesmo. Ele não
quis, não tomou a injeção. Era um cara um tanto quanto agitado, falava muito,
mas era boa gente.
Memória MPM – Ele chegou a declarar para a imprensa que era uma
“vaca fardada”, um trocadilho irônico com a “vaca sagrada”. E de quais outros
ministros o senhor lembra?
João Ferreira de Araújo – O mais antigo do Tribunal era o [ José
Norberto] Vaz de Mello, um mineiro civil que sabia tudo do Tribunal. O
[Octávio] Murgel de Rezende tinha sido do Ministério Público. E tinha um
dos generais antigos do Exército, o [Pery Constant] Bevilacqua, daqueles
que a palavra valia por qualquer assinatura. Acabou sendo aposentado
compulsoriamente, por decreto.
407
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Qual foi o problema?
João Ferreira de Araújo – Bem, o Bevilacqua era um homem
convicto, mas eu creio que a gota d’água foi um problema qualquer envolvendo
o aterro em Copacabana. Ele e o Mourão Filho se opuseram a algo que tinha
relação com o aterro e isso criou atrito. O Bevilacqua entrou em desacordo
com o Costa e Silva. Ele ficou magoado, porque foi aposentado junto com
Evandro [Cavalcanti] Lins e Silva, do Supremo. Acho que a mágoa maior foi
ter sido aposentado compulsoriamente junto com outros. O Bevilacqua era de
grande envergadura.
Memória MPM – E o senhor, de alguma forma, acompanhava os casos
que eram julgados?
João Ferreira de Araújo – Eu assistia às sessões do Tribunal. Ficava lá
ouvindo... Havia uns camaradas chamados de linha-dura, outros que não eram.
O general Amaury Kruel era tido por linha-dura, votando contra os subversivos,
como eram chamados os que se opunham ao regime militar. O Kruel tinha
tendência de acompanhar o voto do relator que estivesse endurecendo contra os
chamados subversivos. Já o Bevilacqua tinha sua opinião própria. O [Ernesto]
Geisel, eu achava muito inteligente. Era um cara caladão, não era de andar
conversando com ninguém, nem mesmo com os colegas generais. Mas quando
dava o bote, era certo. Às vezes, em uma discussão com os ministros, quando
chegava a vez de ele falar, conseguia fazer com que os outros o seguissem.
O procurador-geral do Ministério Público, Eraldo Gueiros [Leite], era dos
poucos com quem o Geisel conversava. O Eraldo Gueiros era muito simpático,
versátil, preparado.
Memória MPM – Algum caso mais rumoroso do qual o senhor se lembre?
408
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
João Ferreira de Araújo – Pois é... Eram muitos processos políticos,
mas não me lembro deles isoladamente, a não ser um ou outro. Eu me
lembro bem do processo do [ João de] Seixas Dória, governador de Sergipe,
defendido por um famoso ministro, aposentado, do Supremo Tribunal Federal.
Conseguiu a absolvição do Seixas, que foi solto. Também recordo o julgamento
do governador de Goiás, Mauro Borges Teixeira.
Memória MPM – Como era o Ministério Público nesse tempo?
João Ferreira de Araújo – O Ministério Público era muito diferente
de hoje, em tamanho, em tudo. Além do procurador-geral, só havia um
subprocurador-geral substituto. Os outros eram procuradores de terceira, de
segunda e de primeira categoria. O Ministério Público funcionava dentro do
prédio do Tribunal. A dependência não era apenas física, pois os membros
eram nomeados pelo governo, que também escolhia o procurador-geral. O
Ministério Público era ligado diretamente ao Poder Executivo, subordinado
ao ministro da Justiça.
Memória MPM – Mas o senhor fez o concurso em 1981... Como
foi o concurso?
João Ferreira de Araújo – O último concurso acontecera no
finalzinho dos anos 1950 e os aprovados foram tomando posse no início da
década de 1960. O Dr. Milton Menezes da Costa [Filho] tinha sido aprovado
nesse concurso e era, em 1981, o procurador-geral de Justiça. Foi uma iniciativa
muito importante que o Dr. Milton tomou, que permitiu a transformação da
instituição, pois havia anos nomeavam-se apenas substitutos. Inscrevi-me. Eu
vinha me preparando, estudando, vivenciando aquele ambiente, de forma que
não foi difícil conquistar a aprovação.
409
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – No que consistia o concurso?
João Ferreira de Araújo – Havia a prova escrita e a oral. A
matéria era reduzida: Direito Penal Militar, Processo Penal Militar, Direito
Constitucional, Direito Administrativo, Regulamentos Militares... Não era
muita coisa. A prova escrita, no meu caso, foi uma denúncia. Era um caso
meio complexo. E depois vinham as perguntas, porque na denúncia o cara
tem que entender Direito Penal. Nas provas orais, os pontos eram sorteados.
Mas houve um problema comigo, porque sortearam o ponto 10, para mim,
mas, quando me chamaram, o avaliador se enganou e me inquiriu sobre outro
ponto; de nada me valendo, portanto, os minutinhos anteriores à prova que
temos para preparar o ponto. Tive de improvisar. Por sorte, havia me preparado
bem e soube responder. Era o Dr. Milton, o procurador-geral. Ele se apercebeu
do equívoco quando chamou o próximo candidato. Ao final da avaliação,
reconheceu a falha e me perguntou, em nome da banca, se eu gostaria de ser
reavaliado no ponto que me fora originalmente sorteado. Perguntei se aquela
situação prejudicava alguém, ele me respondeu que não. Assim, decidi ficar
com o ponto com o qual tinha sido examinado. Afinal, estava seguro do meu
desempenho. De fato, depois, verificando as notas, constatei que haviam me
dado uma avaliação boa.
Memória MPM – Quer dizer, acabou saindo tudo bem.
João Ferreira de Araújo – Saiu tudo bem. Mas houve uma matéria
em que fui mal no exame oral, porque fui arrogante, me julguei professor do
assunto. Entrei em discussão com um membro da banca, a Doutora Marly
[Gueiros Leite]. Ela entrara no Ministério Público junto com o Dr. Milton,
em 1963: ambos haviam passado no mesmo concurso. Eu fui deselegante
410
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
porque ela discordou de uma posição minha: “Essa teoria, onde o senhor leu?”,
me perguntou. Eu respondi que tinha sido na livre-docência da Esther de
Figueiredo Ferraz. Ela insistiu: “Discordo.”. Aí retruquei: “Entre a Esther de
Figueiredo Ferraz e a senhora, fico com Esther de Figueiredo Ferraz.”. Foi
um comportamento ignorante, do qual me arrependi. Talvez, se tivesse sido
mais educado, minha nota teria sido um pouco melhor nessa matéria. Quando
todo mundo terminava a prova, eles se retiravam; reuniam-se reservadamente
e, então, colocavam o resultado num quadro-negro. Foi, claro, uma decepção
quando vi minha nota baixa em Direito Penal. Mas a culpa foi minha. Eu era
meio vaidosinho, achava que sabia muita matéria. Num curso de Pedagogia
que tentei fazer na Cândido Mendes, esculhambei um cara que me fizera uma
pergunta. Era, na verdade, um avaliador, que estava justamente observando
como eu reagiria diante de um questionamento de um aluno. Quando me
dei conta, antes de ser reprovado no curso, desisti de terminá-lo. Devia ter
aprendido a lição ali, mas repeti o erro no concurso.
Memória MPM – O senhor fez também um curso de Medicina
Legal, não é?
João Ferreira de Araújo – Talvez alguma especialização, ou
aperfeiçoamento, porque esse assunto estudávamos já no curso de Direito.
Nosso professor era um baiano, psiquiatra, Jurandir Manfredini.
Memória MPM – Qual foi a Promotoria que o senhor assumiu?
João Ferreira de Araújo – A de Manaus. A Auditoria era
boa. Jurisdicionava o Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre. Havia dois
procuradores e dois juízes, o [Antonio da Silveira Pereira] Rosas, o titular; e o
Roberto Lima e Silva, que era o substituto dele.
411
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Algum caso que tenha lhe chamado mais a atenção?
João Ferreira de Araújo – Atuei em um processo envolvendo
o depois presidente Lula. Um discurso que ele pronunciara em 1980, num
comício em uma cidade do Acre, que ainda era território, foi enquadrado na
Lei de Segurança Nacional. Quando lá cheguei, ele já havia sido denunciado.
Faltava fazer o julgamento. Li o processo. Não era nada demais. O Lula dissera
lá uma coisinha à toa, que terminou sendo interpretada como um incitamento
à sublevação: “Está na hora da onça beber água!”. Interpretaram isso como se
estivesse querendo dizer: “Está na hora de tomar o poder!”. O Lula, naquela
época, era um cara de pouco estudo e que não analisava muito o que dizia. Eu
falei para o Rosas, um cara mão-pesada, que ele teria uma surpresa, porque eu
não via nada demais no processo para sustentar a denúncia. Disse-lhe que não
pediria a condenação do Lula e que terminaria fazendo a sua defesa. O Rosas
retrucou: “Você não é doido! Ele quer tomar o poder!”. Respondi: “Não! Essa
Lei de Segurança é muito rígida e o Lula não tem esses conhecimentos todos.
Na hora que ele está falando, assim, diz bobagem. Não acho que seja tão grave
o que ele está dizendo. Não vai tomar o poder, porque não tem condições
para isso.”. Antes do julgamento, o advogado do Lula, o [Luiz Eduardo]
Greenhalgh, entrou com um recurso qualquer e o processo trancou; acho que
foi para Brasília e não tive mais notícias. Não sei o que aconteceu, se acabou
sendo julgado ou arquivado. Fiquei exatamente seis meses lá. No início de
1982, consegui a minha remoção para o Rio de Janeiro.
Memória MPM – Assumiu em qual Auditoria?
João Ferreira de Araújo – No Rio fiquei na 2ª Auditoria da Marinha,
até fins de 1991, princípios de 1992, quando aceitei promoção para Brasília.
412
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
Nessa época, passamos de cinco para treze subprocuradores-gerais. Pedi a
minha aposentadoria três anos depois da promoção, mas acabei ficando em
Brasília, onde moro. Minha esposa gostou de Brasília e não quis mais voltar
para o Rio.
como foi?
Memória MPM – E na Auditoria da Marinha no Rio de Janeiro,
João Ferreira de Araújo – Uma turma muito boa. Os colegas eram
o [Roberto] Moutinho e o Sérgio Luiz Chamme, ambos não concursados,
mas muito bacanas e competentes. O juiz substituto era o Dr. Carlos Alberto
Marques [Soares], que foi a ministro do Tribunal. Está aposentado. Dava-me
muito bem com o Marques. Ele tem um irmão subprocurador-geral, o Dr.
[Mário] Sérgio Marques [Soares].
Memória MPM – E o senhor recorda algum caso que tenha lhe chamado
a atenção nesse período? Teve um IPM para o qual o senhor foi designado a atuar no
Hospital Naval, não foi?
João Ferreira de Araújo – Sim, sim. Lembro-me. Um processo com
um cabo, parece que a denúncia foi minha. O cabo era encarregado de fazer o
pagamento, mas embolsava o dinheiro e enganava a turma. Teve outro processo
envolvendo um furto e o oficial não comunicou ao diretor do Hospital. Eram
coisas corriqueiras.
Memória MPM – Qual era a natureza mais frequente dos feitos?
Furto, indisciplina?
João Ferreira de Araújo – Indisciplina, furto, deserção. O mais
comum era deserção. Não houve nenhum processo que chamasse a atenção.
413
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – E em Brasília?
João Ferreira de Araújo – A Procuradoria ainda funcionava no
prédio do Superior Tribunal Militar. Os gabinetes não eram privativos; três
procuradores partilhavam uma sala.
Memória MPM – O senhor chegou a acompanhar, em 1993, a edição
da nova Lei Orgânica?
João Ferreira de Araújo – Não. Eu estava por dentro do que estava
acontecendo, mas não me lembro de ter dado algum palpite; não participei.
Memória MPM – Como tem sido a vida de aposentado depois de 1995?
João Ferreira de Araújo – Normal, boa. Eu pensava advogar, mas
desisti. Nossa aposentadoria não é ruim, dá para viver. O Ministério Público
tornou-se uma boa carreira. Hoje, acho até mais vantagem fazer concurso para
o Ministério Público do que para juiz. Porque nós chegamos a subprocurador-geral, e, quando nos aposentamos, temos o mesmo vencimento dos ministros
dos Tribunais Superiores. O juiz, dificilmente chega ao Superior Tribunal
Militar. Então, sem mencionar a questão da vocação, em termos de salário,
acho que é melhor o Ministério Público do que a Justiça Militar.
Memória MPM – Há mais alguma coisa que o senhor gostaria de deixar
registrada?
João Ferreira de Araújo – Servi na Marinha por 18 anos, período no
qual fiz muitos amigos. Nunca fiz inimizades. Fui muito feliz lá, assim como
na Justiça Militar e no Ministério Público. Não me arrependo de nada do que
fiz e me considero um vitorioso, pois o espaço que conquistei foi graças ao
414
JOÃO FERREIRA DE ARAÚJO
meu próprio esforço. Saí do interior de um Estado pequeno e pobre e cheguei
a subprocurador-geral na Capital Federal. Na mocidade, temos mais tempo
e oportunidades surgem, mas, em muitos casos, depende da gente, mesmo,
aproveitar essas possibilidades que a vida nos reserva. Eu vejo que as pessoas
desperdiçam chances, não aplicam bem o seu próprio tempo e complicam
demais. Acho que a vida é essencialmente boa. Procuro viver com otimismo e
sem complicação.
415
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar,
em Brasília, em 5 de março de 2015, por Gunter Axt.
416
Marco Antonio Pinto Bittar nasceu em 12 de julho de 1946, no antigo
Distrito Federal, hoje município do Rio de Janeiro. É filho de Antonio José
Bittar e Maria Pinto Bittar. Casou-se com Lúcia Maria Alvim Souza Bittar.
Bacharelou-se em Direito, pela Universidade Federal Fluminense, em 1972,
além de ter concluído o curso de Administração de Empresas. Foi delegado
da Polícia Federal entre 1977 e 1981, ano em que ingressou, por concurso
público, na carreira do Ministério Público Militar como procurador militar de
segunda categoria, cargo inicial, hoje denominado promotor de Justiça Militar.
Exerceu, inicialmente, suas atividades na Procuradoria da Justiça Militar da
2ª Circunscrição Judiciária Militar, em São Paulo. No ano seguinte, passou
a funcionar junto à 11ª Circunscrição Judiciária Militar, em Brasília. No
período de 1984 a 1985, exerceu o cargo comissionado de chefe de gabinete
do procurador-geral da Justiça Militar. Em 1984, foi nomeado ao cargo de
procurador militar de primeira categoria, regressando, no entanto, à situação
anterior no ano seguinte. Em 1987, foi novamente promovido a procurador
militar de primeira categoria. Em 1992, foi nomeado subprocurador-geral da
Justiça Militar. Em 1993, foi nomeado corregedor-geral do Ministério Público
Militar e eleito vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público
Militar. Foi eleito, além disso, em 1991 e, novamente, em 1993, presidente da
Associação Nacional do Ministério Público Militar. Em 1994, foi nomeado
procurador-geral da Justiça Militar. Em 1995, aposentou-se.
417
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural do Estado do Rio de Janeiro?
Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, da época em que era Distrito
Federal. Minha certidão de nascimento descreve: “natural do Distrito Federal”
[risos]. Depois, passou a ser o Estado da Guanabara e, finalmente, Estado do
Rio de Janeiro.
Memória MPM – Pois é [risos]. Me parece que a integração deixou
algumas sequelas...
Marco Antonio Pinto Bittar – Sem dúvida. Foi uma situação que
eu vivi. A fusão pretendeu apagar os traços do Estado da Guanabara. Não
há como negar que era mais próspero, intelectualmente mais exuberante,
enquanto que o Estado do Rio sempre foi mais atrasado. Na minha impressão,
o atrasado engoliu o próspero. Na época, eu era funcionário do Estado da
Guanabara e trabalhava na assessoria parlamentar do governador no Palácio.
O meu chefe era um intelectual, um jurista. Cada setor tinha sua própria
biblioteca, mas a melhor do Palácio Guanabara era a da assessoria parlamentar,
com livros novíssimos, adquiridos na semana ou no mês. Apesar de não
existir bibliotecário, as consultas eram constantes, em ordem de fornecer
elementos para os pareceres da assessoria. Infelizmente, eu vi aquilo tudo ser
despejado, as prateleiras serem forçadas abaixo e os livros serem recolhidos
com carrinhos de mão, como se fosse entulho. Isso me marcou. As pessoas
chegaram com a imagem de quem ou o que era da Guanabara, não prestava.
O Estado da Guanabara era muito bem-integrado às novas teorias e práticas
administrativas, na pragmática científica, e o que veio do Rio era atrasado.
Se usávamos uma determinada ficha, de repente ela não mais importava, não
interessava, tínhamos que usar as do outro lado da Baía.
418
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
Memória MPM – Eu sinto que algumas instituições do Rio de Ja-
neiro ficaram fraturadas, cindidas, até quase recentemente. O caso do Ministério Público do Rio de Janeiro talvez seja um, de uma instituição que demorou muito até conseguir essa união, justamente pelas culturas administrativas
serem tão diferentes.
Marco Antonio Pinto Bittar – A verdade é que não houve integração
na prática. Bem, meu chefe conseguiu um cargo na Alta Administração da
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e me convidou para acompanhá-lo.
Claro que aceitei! [risos]. Ainda mais depois que vi como estava ficando o
Palácio Guanabara. Permaneci talvez um mês no limbo antes disso. Nós,
que éramos da administração anterior, sofríamos uma espécie de assédio
emocional. Todo dia, no fim da tarde, havia uma reunião para decidir quem
ficaria e quem iria embora. Enquanto não se soubesse quem ficaria, onde
seria realocado, a situação era horrível, de pressão diária. Com este quadro em
andamento, fui então para a Prefeitura do Rio, e lá exerci o primeiro cargo
de maior importância, algo como: diretor da Divisão de Documentação do
Departamento de Registro da Superintendência... O nome era tão grande que
não cabia no carimbo! [risos]. Eu atuava sozinho na Divisão, somente eu mesmo!
[risos]. Então, passei um mês ou dois naquele sofrimento de indefinição, mas,
em compensação, os seguintes seis ou oito meses na Prefeitura do Rio, num
momento muito bom. Isso porque a Prefeitura assimilou tudo que provinha
do Estado da Guanabara. Em seguida, porém, depois desses poucos meses,
fui chamado por um concurso de delegado de Polícia, ao qual eu havia me
inscrito pouco antes, e fui para Brasília fazer a Academia Nacional de Polícia.
Se não me engano, esse curso da Academia foi em 1976. Em 1977, fiquei em
Brasília já como delegado da Polícia Federal.
419
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – E a opção pelo Direito, como surgiu em sua vida?
Havia tradição na família?
Marco Antonio Pinto Bittar – Não havia. Meu pai ficou viúvo com
quarenta anos, estando eu com doze. Um amigo dele levou as apostilas do
vestibular e disse-lhe: “Olha, você vai parar de ficar nessa tristeza permanente,
lembrar que tem um filho e que tem apenas quarenta anos – trouxe aqui as
apostilas para você estudar e tentar fazer vestibular no que quiser, mas eu, em
particular, fiz para Direito.”. Meu pai aceitou a proposta e leu as apostilas nos
meses seguintes à morte de minha mãe; prestou vestibular e fez Direito, aos
quarenta anos. Quando era jovem, ele havia tentado o curso de Odontologia,
mas acabou não concluindo, pela incompatibilidade de sustentar o emprego
e a faculdade.
Memória MPM – Seu pai trabalhava em que nesse período?
Marco Antonio Pinto Bittar – Ele era sargento-enfermeiro do
Exército. Durante a Segunda Guerra Mundial participou da evacuação de
feridos dos Estados Unidos para o Brasil numa operação conjunta com os
norte-americanos. Durante um ano foi de avião para Nova York e/ou Miami,
retornando em navio-hospital americano com os brasileiros feridos, no último
ano da Guerra.
Trabalhava no Hospital Central do Exército, mas era vendedor
pracista também, nas horas vagas. O acúmulo de tarefas o fatigava. Com
o falecimento da minha mãe, ele acabou mudando de rumo, se formando
em Direito aos quarenta e cinco anos, e se formando aos sessenta em
Administração. Estou contando a história dele, porque é importante para
minha própria vida, visto que sou filho único e que fui criado praticamente
420
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
apenas pelo meu pai. Quando terminei o Colégio Pedro II, eu fiz vestibular
para Medicina. Naquela época, havia uma nota mínima acima da qual você
estava aprovado, mas nem sempre havia vagas. Então, eu fui excedente de
Medicina em 1966 ou 1967. Esta turma de excedentes da qual eu fazia
parte conseguiu, com dona Iolanda da Costa e Silva, ser a primeira turma de
Medicina de Manaus. Mas, naquele período, eu considerava que sair do Rio
de Janeiro para ir a Manaus seria uma excursão à selva [risos]. Era a visão
que se tinha no período: não muito aprazível em relação ao Norte. Acabei
não aceitando. Fiz, no lugar disso, vestibular para Medicina mais uma vez;
porém, fui pior no exame. Resolvi então – talvez seguindo os passos de meu
pai – tentar o Direito. Após dois meses estudando, consegui passar em cinco
Faculdades, escolhendo a Federal Fluminense para cursar.
Memória MPM – E como foi esse tempo na Faculdade? Muito agitado?
Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, porque foi em 1968... A
minha turma era interessante. Nós éramos 100 alunos, salvo engano, sendo
a metade no turno da manhã e a outra parte, à noite. Nós tínhamos vários
colegas agitadores, e havia também muitos policiais infiltrados: não sei se eles
eram policiais e por isso estavam como alunos, ou se eram alunos porque eram
policiais [risos]. Mas havia muitos entre a turma. Os agitadores, especialmente
aqueles vinculados ao Centro Acadêmico, faziam todo o tipo de movimentos.
No primeiro ano, em particular, houve bastante movimentação, depois foram
ficando mais calmos, ou foram acalmados. Muitos dos policiais não escondiam
sua origem. Talvez, alguns, cuja identidade nós nunca tenhamos sabido. Eu
sempre fui quieto, nunca fui de me envolver nas manifestações. Fui criado
numa família lacerdista, contra a ditadura, mas uma que eu não vivi, da qual
ouvi muito falar: a ditadura do Getúlio. O que eu ouvi em casa sempre foi
421
HISTÓRIAS DE VIDA
contra o Jango e o Brizola, que encarnavam a herança getulista. Mas a maior
parte dos estudantes era como eu e não se imiscuía com política.
Memória MPM – Recorda-se de algum colega que foi cassado,
ou professor?...
Marco Antonio Pinto Bittar – Houve um caso famosíssimo. Numa
época em que os professores ministravam suas aulas de terno e gravata, o
professor [ João Luiz Duboc] Pinaud ia de pulôver vermelho. Era juiz do
Estado do Rio, tendo sido cassado na esteira do AI-5 justamente como tal,
mas não como professor. Ainda há pouco ele frequentava os noticiários. É um
advogado atuante. Para nós, naqueles tempos, parecia realmente revolucionário
e contrário ao regime militar. Fugia ao padrão do professor circunspecto. As
aulas dele eram muito boas. Era preparado e eloquente. Tinha o orgulho de
haver passado em primeiro lugar nos concursos para juiz e para professor. A
meninada ficava encantada.
Já sobre colegas atingidos pelo regime, creio que houve um. A gente
não sabe realmente, porque essas coisas eram feitas às escondidas, mas me parece
que foi um colega que veio do Mato Grosso para estudar no Rio, de família
abastada. A história que ele contou quando reapareceu foi que, durante uma
visita ao Maracanã, em companhia de um colega do Mato Grosso que estava
hospedado com ele, foram presos na saída. Ele passou uma semana sem aparecer
na Faculdade e ninguém sabia o porquê. Quando voltou, afirmou que esse tal
camarada do Mato Grosso veio ao Rio para manter encontros clandestinos,
coisa que ele não sabia. O outro rapaz já estava sendo vigiado e ele acabou sendo
capturado junto. Esse meu colega levou, pela minha memória, pelo menos uma
semana para conseguir provar que não tinha nada a ver com o caso.
422
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
Afora isso, mal me recordo de outros casos. Não consigo lembrar os
nomes dos colegas mais agitadores. Mas lembro-me de dois irmãos, um rapaz
da minha classe e sua irmã, do período da manhã, que se revezavam entre as
turmas para levar mensagens de encontros, de protestos. Mas, de maneira geral,
a Universidade Federal Fluminense, pelo menos na minha turma da noite, não
se envolvia muito. À noite, todo mundo trabalhava. As pessoas estavam na
Faculdade para melhorar de vida e tudo era feito com sacrifício...
Memória MPM – Debatia-se o regime nas salas de aula? O que o
professor dizia, por exemplo, quando ensinava Direito Constitucional?
Marco Antonio Pinto Bittar – Não, não era debatido, de fato. A aula
do Pinoud era a única que permitia elucubrações... Acho que era a disciplina
de Teoria Geral do Estado.
Memória MPM – E a formatura?
Marco Antonio Pinto Bittar – Formei-me em 1972. Não havia a
necessidade de um período de prática antes de prestar algum concurso. Bastava
o diploma, o título.
Memória MPM – Mas não havia um tempo de trabalho como
solicitador, quintanista?
Marco Antonio Pinto Bittar – Havia, de fato. Eu utilizei aquela
famosa “carteirinha azul”. Creio que desde o quarto ano... No ano da minha
formatura surgiu o exame da Ordem. O alcance ainda era local; hoje, vale em
todo o território nacional. Como a Faculdade era em Niterói, fiz o exame nesta
cidade. Quando fui me inscrever na OAB do Rio de Janeiro, precisei prestar
outro. Felizmente fui aprovado nos dois [risos]. Em seguida, me inscrevi para
423
HISTÓRIAS DE VIDA
um concurso para promotor no Estado do Espírito Santo. Fui reprovado em
primeiro lugar! [risos].
Memória MPM – Como assim?! [risos].
Marco Antonio Pinto Bittar – [risos] Íamos para o Espírito Santo
num final de semana: no domingo, se fazia a primeira prova, que era corrigida e
tinha os resultados divulgados na terça-feira. Depois, havia a segunda, a terceira
e a quarta, todas eliminatórias. A última prova, a quinta, seria a classificatória.
Talvez eu esteja me enganando apenas em relação ao número de provas, mas
era assim a organização. Na primeira, que tinha peso três, eu tirei dez; na
segunda, que tinha peso dois, eu tirei nove; enfim, todas ótimas notas que me
permitiram abrir boa distância dos demais candidatos. Quando eu já estava
com quase vinte pontos de diferença pela soma de notas, fui apresentado, na
Praça Jerônimo Monteiro, a praça do Fórum em Vitória, pelo procurador-geral
em pessoa, como “o seu mais novo colega”... Eu estufei o peito de um jeito que
nem cabia mais em mim [risos]. Com vinte e tantos anos e já promotor do
Espírito Santo! Já imaginava até a carreira feita: eu seria nomeado promotor
de uma entrância bem no interior, mas sequer precisaria ir até lá, pois no dia
seguinte seria promovido na entrância mais próxima e no terceiro dia, já estaria
transferido para Vitória! [risos].
Memória MPM – Como isso seria possível?!
Marco Antonio Pinto Bittar – Havia muitas vagas ainda em
Vitória... Mas, enfim, enquanto eu sonhava, tudo mudou. A quinta prova era
no domingo seguinte, uma semana depois da primeira. A nota mínima era
quatro, sendo o tema optativo, em Processo Civil ou Processo do Trabalho. O
presidente da banca era o titular de Processo Civil da Universidade Federal
424
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
do Espírito Santo. Da questão de Direito Civil eu não me recordo ao certo,
mas a de Direito do Trabalho era simplesmente um “Disserte sobre o Processo
do Trabalho”. Fiz o seguinte raciocínio: “não estou muito preparado para a
Área Cível, tenho meus medos e temores, visto haver focado meus estudos na
Área Penal. Esse presidente da banca, pensei, deve ser muito bom em Processo
Civil, e em qualquer coisa que eu resvale ele certamente me pega; já Processo
do Trabalho, a CLT dá toda a sequência, e é só eu seguir o guia que não tem
erro”. Escolhi então fazer Processo do Trabalho, eu e mais dois candidatos.
Todos os que fizeram essa opção foram reprovados, e todos os que escolheram
Processo Civil, aprovados. Não sei se é lenda ou se é verdade, mas dizem que
o professor se sentiu desprestigiado na matéria dele pelos que selecionaram
Processo Trabalhista. Minha nota foi três com esse presidente da banca, sendo
que um dos demais membros seguiu a nota dele e o terceiro me deu uma nota
quatro, média final de 3,33: foi numa divisão com dízima eterna na minha vida,
pois me rendeu a reprovação, sem a nota mínima [risos]. A minha carreira no
Ministério Público do Espírito Santo acabou ali, antes de começar [risos]. E
não é falsa modéstia: eu preparara um material de estudos e tirara dúvidas de
vários colegas, pois estávamos todos no mesmo hotel no aguardo do concurso;
solucionara dúvidas de pessoas que viriam a passar no concurso, mas as minhas
dúvidas, de certa forma, eu não tirei [risos]. Essa experiência, de alguma
maneira, me traumatizou. Eu só fui conseguir me reerguer em 1975, ocasião
em que me inscrevi em vários concursos e passei em alguns, reprovando em
outros. Para a área de Direito, passei para inspetor do Trabalho, inspetor da
SUNAB, e inspetor da Polícia Federal, entre outros.
Havia apenas uns cinco ou seis delegados de Polícia Federal: o
pessoal os chamava de “cardeais”. Todo mundo era, assim, inspetor de Polícia
425
HISTÓRIAS DE VIDA
Federal. Quem fazia as funções do delegado eram justamente os inspetores de
Polícia Federal. O primeiro concurso em que fui chamado foi esse de inspetor
de Polícia Federal. Ao mesmo tempo, foram convocados dois mil aprovados
para fazerem curso de preparação em Brasília. Foi um período, sem dúvida,
de renovação, de “sangue novo”. Durante o curso de inspetor, uma legislação
alterou o cargo, de inspetor para delegado de Polícia Federal. Por isso, a minha
turma foi a primeira de delegados de Polícia Federal. Não cheguei a verificar
minha situação em relação aos demais concursos, uma vez integrado ao curso
de delegado. A Polícia Federal, nessa época, estava com um quadro muito bom.
Hoje parece que estão ainda bem-preparados, pelas apresentações e atuações
que percebemos pela televisão. Mas essa época de renovação também era boa.
Houve quem não tenha conseguido concluir o curso, por ter sido chamado para
trabalhar em áreas como a Receita ou como a Advocacia do Banco Central, ou
os Ministérios Públicos dos Estados. Eu fiquei na Polícia Federal de 1977 a
1981. O curso durava seis meses, mas só fomos nomeados em início de 1977.
Memória MPM – Teve algum episódio que lhe chamou a atenção nesse
período? Algum caso interessante na Polícia Federal?...
Marco Antonio Pinto Bittar – Eu praticamente não tive atuação
policial. Fui assessor, ora da Direção-Geral, ora da Coordenação Central
Policial, que era o substituto eventual da Direção-Geral. Fui praticamente
assessor de gabinete o tempo todo. Apenas uma vez, por cerca de um mês,
estive numa operação de combate ao contrabando de café, desenvolvida pela
Polícia Federal e custeada pelo IBC (Instituto Brasileiro do Café). Essa
operação foi realizada em Mato Grosso do Sul, desde a fronteira do São
Paulo até o Paraguai, numa tentativa de cortar esse fornecimento. Era curioso
que o Paraguai não plantava uma saca de café, mas exportava o produto em
426
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
grande quantidade. Assim, a operação buscava fiscalizar as carretas ilegais de
contrabando de café. Durou anos...
Memória MPM – Aí apareceu o concurso para o Ministério
Público Militar...
Marco Antonio Pinto Bittar – O concurso foi em 1980. Note que
era o primeiro em vinte anos. No anterior, em 1960, haviam sido aprovados o
Dr. Milton Menezes, a Dra. Marly Gueiros, o Dr. Ruy de Lima Pessôa, entre
outros. Embora não apareça nas menções, creio que há um colega, o Flávio
[Benjamim Correia de Andrade], também aprovado nessa oportunidade.
Alguns dos aprovados no concurso já trabalhavam no Ministério Público
Militar, nomeados. Creio que houve quem tenha continuado ligado à
instituição mesmo sem ter prestado esse concurso. Houve, também, emendas
constitucionais que efetivavam vários promotores. Mas, enfim, eu me inscrevi
no concurso em segredo, sem mencionar a ninguém.
Memória MPM – Nessa época já estava casado?
Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, tinha já um filho, o mais velho,
Bruno Marco Alvim Souza Bittar. Minha esposa se chama Lúcia Maria Alvim
Souza Bittar. A nomeação foi em 1981. Fiz o concurso escondido porque
tinha receio de ser eventualmente reprovado e sofrer com as piadas em torno
disso, num período em que a rivalidade era muito grande, dentro do próprio
Ministério Público da União e também na Polícia. O sonho da Polícia era a
paridade salarial com o procurador do Trabalho, cuja pretensão, por sua vez,
era ganhar igual ao procurador da Justiça Militar e do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios, que, por seu turno, sonhava em ter os mesmos
benefícios do procurador da República. Vim para o Ministério Público Militar
427
HISTÓRIAS DE VIDA
ganhando, num primeiro momento, menos do que como delegado de Polícia
Federal. Foi durante um período em que devido a aumentos diversos que
beneficiaram a Polícia, eu ganharia o dobro se lá tivesse permanecido. Foi
assim até princípios de 1985, quando o presidente Figueiredo reagiu a uma
paralisação ou greve do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios,
que estava gerando o caos no Judiciário local. O aumento autorizado foi tão
substancial que a carreira ficou interessante.
Memória MPM – Mas isso foi no Ministério Público do Distrito Federal?
Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, mas o Ministério Público do
Trabalho e o Militar acabaram sendo um parágrafo na lei. Eu brincava: “Não
me importa se nós somos um parágrafo do artigo de vocês, o que me importa
é que vocês conseguiram, e levaram todos junto” [risos]. Foi quando a gente
passou a receber melhor. Então, de 1981 a 1985 eu ganhei menos no Ministério
Público do que perceberia na Polícia Federal...
Memória MPM – E por que a opção pelo Ministério Público?
Marco Antonio Pinto Bittar – Bem, nós tínhamos um lema na
Polícia Federal que era: “O Brasil como fronteira”. Ou seja, você poderia ir a
qualquer lugar a qualquer momento, dentro do Brasil. E se acontecesse isso,
inclusive, era porque você tinha prestígio para tanto, isto é, para ocupar um
cargo de chefia no departamento. Mas eu não gostava muito desse prestígio,
não [risos]. Quando eu passei no concurso do Ministério Público Militar, meu
antigo chefe ficou sabendo pelo Diário Oficial, me chamou e perguntou se eu
iria assumir mesmo. Respondi que estava pensando ainda sobre o que fazer. Ele
rebateu falando que estava na época de remoções e que precisava de gente boa
no Acre. Foi quando dei a resposta mais rápida de minha vida, dizendo: “Não,
428
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
não, eu estou pensando é em tomar posse!” [risos]. Assim, ele me retirou desse
planejamento das remoções. Optei pelo Ministério Público porque apesar de
ter me adaptado bem às funções que me eram submetidas na Polícia, outras
que eu poderia vir a exercer a partir dali não pareciam se coadunar com o meu
perfil. Precisava-se de toda uma estrutura emocional, posturas e necessidades
de atuação que eu considerava que não possuía, e nem possuo hoje em dia!
Identificava-me, também, mais com a área de atuação no Ministério Público,
visto que até mesmo os cursos preparatórios que fiz no início da década de
1970 foram para juiz e para o Ministério Público...
Memória MPM – Mas quais cursos eram estes?
Marco Antonio Pinto Bittar – Eram cursos muito bons, no Rio de
Janeiro, tidos como os melhores preparatórios. Não sei se eles tinham algum
nome específico, mas eram os “cursos da Lagoa”. Noturnos, eles começavam
depois das sete horas e se estendiam, às vezes, até a meia-noite. Foi próximo de
1973 ou 1975, quando havia vários cursos preparatórios para concursos para
juízes e promotores. Havia um juiz de Brasília que passou em primeiro lugar
no concurso: quando ia visitar o Rio, todos o admiravam, querendo seguir o
exemplo dele. Estes cursos eram ali na Rua Fonte da Saudade, na beira da
Lagoa. Havia feito, anteriormente, outro curso no Colégio São Bento, mas
esse da Fonte da Saudade era um exemplo de preparatório. Eu praticamente
só assistia às aulas, porque trabalhava o dia inteiro.
Memória MPM – Como foi sua atuação no MPM?
Marco Antonio Pinto Bittar – Bem, no MPM, eu, o [ José Carlos]
Couto de Carvalho e o Hélio [Silva da Costa] fomos designados para trabalhar
em São Paulo. Muita gente queria ir para o Rio, pois de lá eram originários.
429
HISTÓRIAS DE VIDA
Mas não havia vaga. O mais perto do Rio era São Paulo. Eu nunca quis ir
para o Rio, que estava muito tumultuado com a tal fusão dos Estados: queria
voltar para Brasília. Assim que tomamos posse, ainda no mesmo dia, fomos
para São Paulo. A posse era em Brasília, mas o exercício era assumido nos
devidos lugares, transmitido por telex, o aparelho de comunicação da época.
Fomos todos no mesmo voo. O único que viajou com a esposa fui eu, com
vistas a arrumar a moradia. Ao chegar a São Paulo, tínhamos que fazer duas
coisas de pronto: ir ao Banco do Brasil abrir uma conta para o pagamento,
e mandar um telex, comunicando que nos encontrávamos em exercício,
anexando também aí o número da tal conta-corrente. Seguimos para a 1ª, 2ª
e 3ª Auditoria; salvo engano, assumi a segunda.
Memória MPM – A posse então era em dois tempos, em Brasília e na
Auditoria de designação? Podia ser por procuração?
Marco Antonio Pinto Bittar – A posse acontecia na Procuradoria,
que ficava no sétimo andar do STM. Poderia se dar pessoalmente ou por
procuração, forma pela qual as pessoas que assumiriam o exercício em lugares
muito distantes geralmente optavam. A Procuradoria inteira funcionava
naquele andar. Era a última sala no extremo do corredor, sendo toda a parte
esquerda o setor administrativo e a parte direita, destinada à atividade-fim.
Os três subprocuradores-gerais, cargos em comissão, tinham o gabinete junto
à parte administrativa. Este último gabinete era do procurador-geral. Tinha,
também, a galeria dos procuradores-gerais. Em 1980, o procurador-geral era
o Dr. Milton Menezes da Costa Filho, que organizou o concurso, presidiu
a banca, deu posse, tendo proferido o discurso de boas-vindas e últimas
instruções aos novatos. Assistindo àquela liturgia, com a galeria de retratos
dos procuradores-gerais ao fundo, tive o sonho de um dia ser procurador-
430
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
-geral, mesmo considerando que muitas das imagens eram de pessoas que eu
jamais havia ouvido falar. De qualquer forma, eles estavam ali perpetuados.
Da posse em si, me lembro pouco além desse sonho...
Fomos para São Paulo e lá havia muito movimento! Alguém
descreveu que em Brasília era conturbado, mas posso afirmar que as
Procuradorias de lá eram piores. Imagine um cubículo minúsculo de quatro
metros quadrados, com três mesas, todas grudadas umas nas outras, e nós
chegando para trabalhar e, por vezes, tendo que passar por cima de mesas
para circular. Era num local assim que funcionavam as Procuradorias, e por
gentil concessão do juiz-auditor. Realmente, não cabiam os três ao mesmo
tempo na saleta. Era um titular e dois substitutos. Tínhamos de nos revezar.
Além disso, nós não recebíamos material, não havia comunicação: não
tínhamos nada! O órgão era paupérrimo. Era o filhinho rejeitado, o patinho
feio do Ministério da Justiça. Era terrível! Funcionava na avenida Brigadeiro
Luís Antônio, num prédio da Justiça Militar, em que estavam instaladas as
três Auditorias.
Memória MPM – E eram todas mistas? Ou uma da Aeronáutica,
uma da Marinha e outra do Exército?
Marco Antonio Pinto Bittar – Todas mistas. Eu morei um ano em
São Paulo e a minha maior lembrança é de uma grande demanda de trabalho,
em condições terríveis.
Memória MPM – O senhor chegou a se arrepender em algum
momento? Porque além da perspectiva de redução de salário, houve também essa
mudança para condições de trabalho muito ruins...
431
HISTÓRIAS DE VIDA
Marco Antonio Pinto Bittar – Não. Apesar de a Polícia Federal
estar inaugurando seu edifício-sede, ainda hoje no Setor de Autarquias do
Distrito Federal, com todo o conforto. O prestígio da Polícia Federal era
grande. Mas mesmo assim não me arrependi. E olha que nem consegui
conhecer São Paulo. Minha mulher tinha um pouco mais de disponibilidade de
tempo e pôde conhecer melhor São Paulo, junto com meu filho mais velho, que
naquela época tinha três anos. Minha rotina era: de casa para a Procuradoria,
da Procuradoria para casa. Um percurso até curto, que eu fazia a pé: morava no
Bairro Paraíso, pertinho da avenida Brigadeiro Luís Antônio. Quando estava
chovendo, minha esposa ia me buscar no trabalho de carro.
Nessa época, não havia casos envolvendo a Lei de Segurança, mas
havia a execução de sentença.
Memória MPM – Apesar da Anistia de 1979?
Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, porque havia ainda execuções
de sentenças declaradas antes da Lei da Anistia. Nós tínhamos que oficiar em
execuções, simplesmente. Oficiei no caso do Airton Soares, advogado e ex-
deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, entre outros. O advogado de
quase todos era o [Luiz Eduardo] Greenhalgh. Em São Paulo, ele assumia a
maioria dos casos.
Quando cheguei a São Paulo, meus colegas disseram: “Veja, tem
um processo aí pra você”. Era o processo dos sindicalistas do ABC, nos quais
pontificavam o Lula, o Alemão, dentre outros. O primeiro julgamento havia
sido anulado pelo STM, que também reconhecera a denúncia como inepta.
Voltou então para ser submetido a novo julgamento, que aconteceria poucos
dias depois de eu ter assumido! Não havia tempo hábil para me preparar
432
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
adequadamente. Solicitei ao colega José Garcia de Freitas Júnior, que havia
feito o primeiro julgamento, em fevereiro de 1981, que assumisse o segundo,
marcado para o dia 19 de novembro. Fui atendido. Começou cedo, e com o
clero todo presente, devidamente trajado, acomodado nas primeiras filas do
auditório lotado. Eram 13 réus acusados de incitar greves. Foram defendidos
por sete advogados, dentre os quais o [ José Paulo] Sepúlveda Pertence. Ele
havia sido promotor do Ministério Público do Distrito Federal e fora cassado
na esteira do AI-5... Chegou a procurador-geral da República em 1985 e, em
1989, a ministro do Supremo Tribunal Federal. Nessa época era advogado – e
brilhante! Os riscos que nós corríamos nessa profissão, com uma lei tão difícil
de aplicar como era a Lei de Segurança... Veja esse caso, por exemplo, onde
uma denúncia de um promotor competentíssimo como o Dacio [Antonio
Gomes de Araújo] foi considerada inepta. O Dacio era muito cuidadoso e agia
com esmero. Acho que para o promotor não existe coisa que doa mais do que
uma denúncia considerada inepta.
O julgamento começou por volta das nove ou dez da manhã e
foi até uma ou duas da madrugada, correndo direto. Aquela avenida
Brigadeiro Luís Antônio, mais o pátio da Auditoria, estavam concorridos,
com batuques e bumbos. O barulho chegava lá dentro. O Exército por vezes
intervinha, não pedindo exatamente para o pessoal sair, mas para reduzir o
volume, visto que o barulho interferia nos debates. Chamou-me a atenção
que precisamos sair do prédio nos carros da Polícia. Foi o julgamento mais
emblemático da época. O resultado foi proclamado com a absolvição de três
réus e a condenação dos outros dez, com penas que variavam de dois anos a
três anos e seis meses de reclusão.
Memória MPM – E Brasília?
433
HISTÓRIAS DE VIDA
Marco Antonio Pinto Bittar – Finalmente, surgiu uma vaga
em Brasília e eu fui consultado pelo diretor de pessoal, por delegação do
procurador-geral, se eu aceitaria. Aceitei.
Memória MPM – Na Auditoria?
Marco Antonio Pinto Bittar – Na Auditoria da 11ª Circunscrição
Judiciária Militar que, na época, por força de decreto-lei, atuava com Exército,
Aeronáutica, Marinha, Polícia Militar e Corpo dos Bombeiros do Distrito
Federal. Aliás, esse decreto-lei era interessante, porque a redação era algo assim:
“enquanto não for criada a Auditoria para a Polícia Militar e do Corpo dos
Bombeiros...”. E nunca era criada... Nós tínhamos um movimento enorme!
Essa chamada para a vaga foi em 1982. No duro, eu fiquei em São Paulo um
ano. Aliás, chegou um momento em que meu salário só pagava o aluguel do
apartamento. Minha esposa era funcionária do Estado de Goiás e me ajudava
financeiramente com as despesas. Um fato engraçado é que a minha mudança
de Brasília para São Paulo custou 100 “dinheiros” e a mesma mudança de São
Paulo para Brasília, um ano depois, custou 1.000 “dinheiros”. Eram os tempos
de inflação...
Memória MPM – E o reajuste do salário?
Marco Antonio Pinto Bittar – E o salário!? [risos]. Nada de
reajuste! Mas viemos para Brasília, onde assumi a 11ª CJM. Era uma Auditoria
movimentada, com bastante gente. Mas, a rigor, funcionavam somente eu e a
colega Vera [Regina da Mota Coelho Americano Alves de Brito]. Tínhamos
outros colegas, dois ou três, mas que estavam convocados como pareceristas,
em substituição aos procuradores de primeira categoria na Procuradoria-Geral.
O volume de trabalho na Auditoria, assim, era grande, principalmente com a
434
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
Polícia Militar. Em segundo lugar, vinha o Exército; em terceiro, a Marinha,
e por último, bem distantes, os Bombeiros e a Aeronáutica, que quase não
tinham nenhum processo tramitando. Trabalhávamos no oitavo andar do
prédio do STM, com uma sala até razoavelmente grande.
Em matéria de família, nessa época, nasceu a minha segunda filha, a
Maria Raquel. Em 1985, veio nossa terceira filha, minha caçula, que este ano
faz 30 anos. Hoje tenho um netinho dela e dois do meu filho mais velho.
Memória MPM – Algum processo da Auditoria que tenha lhe marcado?
Marco Antonio Pinto Bittar – Houve, sim, um, em especial, cujos
nomes, dos envolvidos, prefiro não citar. Alcançou de certa forma um coronel
do Exército que foi comandante da PM. Em Brasília havia uma personagem
que muitas vezes frequentou as manchetes de jornais, um sargento da PM
alcunhado de “Sargento Papa-Anjo”... Ele era acusado de seduzir umas trinta
ou quarenta mulheres. Dessas seduzidas, algumas se diziam estupradas. Acho
que o cara era sedutor mesmo. Não o conheci, não sei quem é. O Sargento Papa-
-Anjo esteve sob o comando desse coronel. Quando surgiram as manchetes,
ele foi preso administrativamente, num quartel de uma cidade satélite. Uma
advogada impetrou um habeas corpus em favor dele, junto ao Judiciário do
Distrito Federal, que não foi adiante. O comandante da PM informou que a
prisão era administrativa e a peça teve a seguinte manifestação, perdoando aí
qualquer erro de memória: “Incompetente essa Justiça para examinar o pleito,
todavia, a petição noticia eventual cárcere privado em prisão não comunicada;
arquive-se após o pagamento das custas.”. E esse processo ficou num escaninho
em algum lugar. Dois ou três anos depois, não sei exatamente a data exata...
Memória MPM – Mas com o sargento ainda preso?
435
HISTÓRIAS DE VIDA
Marco Antonio Pinto Bittar – Não, o rapaz foi solto... Também
não sei exatamente quanto tempo após a prisão, mas logo em seguida. A
questão é que cerca de três anos depois, esse coronel seria o primeiro na
lista de promoções para o generalato, já estando fora do comando da PM.
Mas foi subitamente denunciado na 11ª CJM. A denúncia continha algo do
texto do habeas corpus que acabei de mencionar. Os ministros do Tribunal
estavam viajando, envolvidos em uma inspeção no Sul, sendo que antes de ser
protocolada, ou no ato do protocolo dessa denúncia, já havia artigos no Estado
de São Paulo e na Folha de São Paulo com a publicação do caso na íntegra.
Esse coronel, primeiro da lista, ficou então para trás. Isso foi nos primeiros
dias em que assumi na Auditoria. A PM mandou o Boletim que publicou a
prisão. Mandaram também cópia do Livro de Registro da Unidade em que o
sargento foi preso. O habeas corpus andou porque alguém – que ninguém sabe
quem – pagou as custas. Porém, o sargento já nem estava preso. O juiz abriu
vista para eu complementar a denúncia e informei que não havia elementos
para completá-la, uma vez que havia aquelas informações de que não houve
cárcere privado, pois na instituição militar isso só ocorreria se o fato não tivesse
constado no Livro de Registro de Presos, nem publicado em Boletim da época.
Memória MPM – Então não houve cárcere privado?
Marco Antonio Pinto Bittar – Não houve. Mas esse é um caso que a
memória não esquece. Bom, em 1985 o Dr. Milton Menezes me convidou para
ser chefe de gabinete dele. Aceitei. Ele era – na verdade sempre foi – muito
centralizador. Não costumava delegar, a exceção (e isso porque não tinha jeito)
dos pareceres de procurador de primeira categoria, porque eram os pareceres
do expediente no STM. Nessa época, eu fazia toda a parte administrativa
do gabinete, filtrando o que chegava para ele. Ficamos juntos por cerca de
436
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
um ano. Foi quando veio a Nova República. O primeiro procurador-geral da
Nova República foi o Dr. George Tavares, um advogado do Rio de Janeiro
bem-conhecido, quem convidou para chefe de gabinete o Dr. Rutílio [Tôrres
Augusto], um dos colegas mais competentes e preparados que temos. O
George Tavares tinha uma política de delegação mais forte. Mas veio para cá
– e não escondeu isso, que foi dito inclusive em plenário do STM – dizendo
que a intenção dele era ser ministro, que estaria, enfim, de passagem. E pelas
conjunturas políticas, no momento em que ele percebeu que não conseguiria,
preferiu voltar aos afazeres dele no Rio.
Memória MPM – Como foi durante a gestão do Dr. Milton? O senhor
chegou a acompanhar os inquéritos da época?
Marco Antonio Pinto Bittar – Assessorei vários inquéritos naquela
possibilidade que existe no Código de Processo Penal Militar, de o encarregado
do inquérito pedir assessoramento ao Ministério Público. O Dr. Milton é quem
me dizia onde funcionar, vez que era ele quem recebia as solicitações. Foram
inquéritos importantes em Brasília. Dois ocorreram no HFA (Hospital das
Forças Armadas). Outros dois que reputo relevantes ocorreram no Comando
Militar do Planalto: o primeiro envolvendo as Intendências e outro a respeito
de um crime ocorrido em Goiás, mas cuja repercussão foi em Brasília. Sobre
esse último caso, um jornalista foi morto na porta de uma estação de rádio,
na qual mantinha um programa policial. A imprensa associou a morte a uma
notícia que ele publicara acerca de um homicídio que ocorrera dias antes em
Luziânia, e que supostamente teria sido perpetrado por forças paramilitares.
A imprensa alegava que havia sido morto por estar chegando próximo
de descobrir os autores deste crime. Isso foi uma confusão tão grande, que
muita gente perdeu cargos e postos. Houve também o caso da Base Aérea de
437
HISTÓRIAS DE VIDA
Anápolis, com um recruta que morreu afogado atravessando uma das lagoas de
lá, sendo encontrado um ou dois dias depois.
Memória MPM – Morreu afogado durante o treinamento?
Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, e ninguém viu, apesar de
muitos estarem treinando junto. O fato de ele não ter sido notado foi terrível.
Aparentemente o fardamento e os equipamentos pesaram muito ao se
molharem e ele não conseguiu mais subir.
Memória MPM – E as investigações acerca dessas forças
paramilitares em Goiás?
Marco Antonio Pinto Bittar – Não eram paramilitares, mas sim
militares mesmo! Esse inquérito foi interessante. Na gestão do George
Tavares, eu tive de assessorar, juridicamente falando. A todo o momento
o encarregado de inquérito, que era elétrico, ativo, estabelecia demandas e
perguntava o que podia ou não fazer. Por exemplo: nós prendemos, num
determinado dia, onze militares da ativa e da reserva, em cinco ou seis
Estados diferentes, na mesma hora. Foi tudo articulado. Ele era empolgado
em dar cabo ao inquérito, porque exatamente a investigação transcorria em
torno dessa incursão de forças paramilitares que resultou num homicídio.
Esse inquérito deve estar hoje perdido em algum arquivo. O caso ficou
conhecido como o “Crime de Três Vendas”. Era o nome de um local em
Luziânia onde o camarada foi morto, por estar no lugar errado, na hora
errada, de forma totalmente gratuita. Faz trinta anos... Olha que fazer
tantas prisões no mesmo dia e na mesma hora, demandou um enorme
esforço logístico para que não houvesse comunicação entre eles, e alguns
dos envolvidos deixasse de ser preso. Todas as prisões foram devidamente
438
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
justificadas pelo encarregado do IPM nos termos do Código de Processo
Penal Militar.
Memória MPM – Foram condenados?
Marco Antonio Pinto Bittar – Não acompanhei a tramitação do
inquérito, mas fiquei muito aborrecido com a liberação, pela Auditoria, dos
detidos durante o inquérito, sem um exame profundo daquelas justificativas
que fundamentaram as prisões.
Memória MPM – Em 1985 houve uma promoção que não se concretizou,
não é verdade? O senhor se recorda de algo sobre isso? Em 29 de novembro de 1984,
saiu promoção para procurador militar de primeira categoria, mas em 6 de dezembro
de 1985 retrocedeu tudo à situação anterior em razão de uma lei que não havia sido
votada no Congresso...
Marco Antonio Pinto Bittar – Não havia vagas. Mas não me lembro
ao certo da situação...
Memória MPM – Em 13 de dezembro de 1987 a promoção foi reafirmada.
Marco Antonio Pinto Bittar – Pois é... Entre 1985 ou 1986 eu
reivindiquei algo, que dependia de ato puramente discricionário do procurador-geral, pois ele convocava membros para dar pareceres nos processos do
Tribunal. Havia colegas, inclusive da 11ª CJM, que eram pareceristas. E eu
disse para mim mesmo que fazia meu trabalho exemplarmente, sem nunca
ter reclamado, tranquilo. Decidi que também gostaria de ser parecerista
e passei a sê-lo nos processos junto ao Tribunal. Mas só fui promovido a
procurador de primeira categoria mais tarde. Foi interessante... Disputávamos
essa promoção eu e um colega. A Comissão se reuniu perto das duas ou três
439
HISTÓRIAS DE VIDA
horas da tarde, para um tipo de encontro que costumava ser rápido, visto
que os papéis e as discussões já estavam preparados. Mas esta promoção
levou muito tempo para ser definida: a tarde inteira! Um colega da banca
queria que o outro candidato fosse promovido, e os outros dois queriam que
eu fosse promovido. E esse colega da banca teimou em convencer os outros
dois. Estendeu-se até as seis horas da tarde a discussão [risos]. Depois, com
o advento da Lei Complementar 75, ocorreram mais alguns movimentos e
fui promovido a subprocurador-geral. Acho que aí passou a ser atribuição
do Conselho Superior do Ministério Público. Em determinado momento,
eu ocupei todos os cargos da Procuradoria, mas claro, cada um por sua vez
[risos]. Fui substituto do procurador-geral em impedimento, não recordo
em que ano, quando o procurador-geral – que já estava em substituição
– enfartou. E não tinha ninguém para suprir, somente eu e ele; então, fui
designado em substituição. Eu era dos mais modernos e fui procurador-geral
nesse momento, por cerca de cinco dias. Aquele sonho do gabinete, da época
da posse, foi, então, de certa forma realizado, nesse curto período [risos]. Após
a Lei 75, porém, assumi, num dado momento, tanto a Vice-Procuradoria-
-Geral – que era um substituto eventual –, quanto a presidência do Conselho,
que é o cargo substituto numa hipótese de afastamento permanente, caso, por
exemplo, da aposentadoria do Dr. Milton, quando assumi a Procuradoria-Geral até se desencadear o processo de eleição e eu me afastar para ser
candidato. Fui corregedor, fui presidente da Comissão de Arquivamentos, de
Coordenação e Revisão; estive, enfim, praticamente em todos os cargos, mas
nem sempre por opção: foi porque não existia um quadro de funcionários.
Então, eu ia cobrindo as necessidades até que as promoções fossem feitas e
existissem colegas em número suficiente para ocupar todas as funções. Foi
uma época desgastante, porque passávamos o tempo todo por essa dinâmica
440
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
de recebimento de propostas e aceitação – porque para toda movimentação ou
promoção era indispensável a aceitação. E friso: muitos colegas não aceitavam
promoções, para não serem obrigados a ir para Brasília.
Paralelamente, me envolvi na atividade associativa. Em 30 de
dezembro de 1990, assumi a presidência da Associação de classe, sendo
reconduzido para a função em dezembro de 1992. Foi quando iniciamos
uma campanha para a mudança da sede da Associação do Rio de Janeiro
para Brasília, onde de fato aconteciam já todos os contatos pertinentes.
Também nesse período, me dei conta de que as pensionistas estavam com as
pensões muito defasadas, de modo que pedi a cada uma delas que requeresse
a atualização dos valores junto à Procuradoria-Geral da Justiça Militar, o
que efetivamente foi feito, havendo uma sensível melhora nos rendimentos
daquelas senhoras. Tenho a alegria de haver ajudado as viúvas a saírem de
uma condição dramática de penúria, pois a atualização não era feita de ofício.
Tenho, também, certa ponta de orgulho por haver inaugurado o
prédio-sede da Procuradoria-Geral. Se durante 75 anos a Procuradoria teve
que conviver com empréstimos de espaço, no ano de aniversário de 75 anos
houve a inauguração desse prédio, no Setor de Autarquias, como nova sede da
Procuradoria-Geral. Ele foi planejado, arquitetado e contratado na gestão do
Dr. Milton, mas logo nos primeiros meses de construção ele se aposentou e
quem assumiu a construção do prédio fui eu. Salvo engano, inaugurei o prédio
no dia 18 ou 19 de dezembro de 1995, me aposentando no dia seguinte, ainda
tendo um curto período de mandato pela frente. Mas por opção minha, me
aposentei no dia seguinte.
Memória MPM – Mas por que antecipar a aposentadoria?
441
HISTÓRIAS DE VIDA
Marco Antonio Pinto Bittar – Havia uma perspectiva de perder
várias oportunidades de aposentaria: era aquele momento em que estava se
falando de reforma da Previdência, em aumento de limite de idade, entre outros
fatores; e de repente eu, que já tinha implantado todas as condições para me
aposentar teria de ficar mais cinco ou dez anos. E isso me assustou um pouco.
Em segundo lugar, o exercício da Procuradoria-Geral, aquele sonho de 1981,
foi, na verdade, pesado, complicado. A cada período de calmaria se seguem
tempestades intensas e desgastantes. É difícil a gente agradar a todos. Por mais
que se tente, acabamos deixando descontentes pretensões de colegas, e isso
não é bom. O convívio cordial é melhor do que tudo, e nós, quando estamos
na chefia, temos que tomar decisões, dizer alguns “não”. Algumas decisões não
são compreendidas pelos colegas, que alegam arbitrariedade. Pessoalmente,
não acredito que eu seja arbitrário, mas cheguei a ouvir mais de uma vez que
era. Tinha dúvidas, se era ou não, na época... Mas foram situações que, com
o passar do tempo, mostraram que estava tentando o caminho mais próprio,
apesar de errar – não há quem não erre. Procurei sempre fazer o melhor e
cultivar as amizades, muito embora não seja a pessoa mais calma do mundo.
Penso que hoje sou mais agregador do que fui à época.
Memória MPM – E o fato de ter sido, no processo eleitoral interno, o
segundo lugar na lista tríplice, complicou a sua gestão depois?
Marco Antonio Pinto Bittar – Complicou sim. Eu vi um depoimento
do Dr. Milton Menezes dizendo que na eleição ele alcançou 80% ou 90% de
aprovação. Isso mostrava, embora ele tivesse sido procurador-geral por 25 anos
na base da nomeação, que foi aprovado pelos colegas. Achei lindo, achei ótimo!
Mas quando chegou a minha vez, não me senti desaprovado pelos colegas por
não ter alcançado igual sufrágio – recebi cerca de vinte por cento dos votos.
442
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
Não me senti desaprovado por 80%. Entendi isso como a aprovação e o apreço
pelo colega José Carlos Couto de Carvalho, primeiro eleito da lista tríplice.
Não sei se me fiz entender: numa disputa entre os dois, ele foi aprovado. E
quero lhe dizer, é histórico isso, que na hora que a contagem de votos terminou
eu disse publicamente: “Parabéns Couto, me diga quando vai ser sua posse!”.
Desse momento em diante, porém, o procurador-geral da República houve por
bem me nomear. Muitos colegas não aceitaram. Poucos demonstraram isso,
mas não aceitaram. E até colegas que eu nunca imaginei que me hostilizariam,
acabaram por fazê-lo. Quero dizer que tive no Couto um excelente colega
sempre, e mesmo considerando que ninguém tinha mais razão do que ele para
ficar magoado e triste, ele superou. Mas tive colegas que não superaram, que
decididamente não facilitaram em nada minha gestão. Muito incisivos em sua
recusa. Atrapalhou? Não exatamente, mas não colaborou. É duro pensarmos
que aquele convívio amistoso de até ontem, hoje deixa de existir por uma razão
de política. Eu não movi uma palha – depois da eleição ocorrida – para ser
nomeado. Mas o procurador-geral era meu amigo, o Aristides Junqueira. Ele
disse: “Eu trabalhei com você esse tempo todo, e te conheço, mas não conheço
o colega. Então, entre os dois, vou nomear você!”. Eu ia responder que não?
Mas não movi uma palha para tanto. Fui comunicado da minha nomeação
na cerimônia de posse no gabinete dele. Foi um mal-estar? Sem dúvida.
Atrapalhou um pouco. Se eu não tivesse aceitado, inclusive, estaria ganhando
bem mais hoje; aposentei-me não pagando Previdência, não ganhando os 20%
do topo de carreira e só aí, numa conta rápida, são 11% mais 20%, a menos.
Memória MPM – Sem contar o auxílio-moradia, entre outros...
Marco Antonio Pinto Bittar – Houve uma inversão tão grande que
o aposentado parava de pagar a Previdência; hoje, quem não se aposenta é que
443
HISTÓRIAS DE VIDA
não contribui. De qualquer forma, se está favorecendo os colegas, ótimo. A
aposentadoria sempre se dava como uma promoção ao cargo seguinte; no topo
de carreira, tem os 20%, que também não recebi. Mas naquele momento não
havia isso para o procurador-geral.
Memória MPM – E quem lhe sucedeu?
Marco Antonio Pinto Bittar – Quem me sucedeu foi o Dr. Kleber
de Carvalho Coêlho.
Memória MPM – E no período de interinidade?
Marco Antonio Pinto Bittar – Eu creio que foi o Dr. Péricles
Aurélio Lima de Queiroz. O Dr. Kleber em seguida se elegeu e, depois, se
reelegeu. Mas, repito, de coração: não tenho mágoa de nenhum colega, nem
daqueles que mais belicosamente me hostilizaram. O Dr. Couto prestou a
colaboração dele durante um período, mas se aposentou logo em seguida. E eu
e o Couto sempre fomos muito amigos, contemporâneos de colégio, embora
sem sabermos disso. E pela vida afora estivemos muito próximos, também sem
conhecimento. Fomos companheiros de concurso e da ida para São Paulo...
Eu tenho a maior consideração e a maior admiração pelo Couto. Acredito que
ele me tem em muito boa conta. Embora eu possa entender caso ele tenha
guardado alguma mágoa em relação a essa questão eleitoral, porque veja: se
alguém foi votado esmagadoramente, fica difícil compreender por que outro
foi nomeado...
Memória MPM – Mas até aí, faz parte das regras do jogo...
Marco Antonio Pinto Bittar – Certamente.
444
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
Memória MPM – Houve algum acordo entre os candidatos durante
a campanha, no sentido de que os outros abririam mão da indicação em favor do
melhor votado?
Marco Antonio Pinto Bittar – Não, de maneira nenhuma. Eu
acreditava, intimamente, que seria ele o nomeado. E achava também, que eu e
ele chegaríamos mais próximos do empate na votação da tríplice. Eu tinha essa
doce ilusão. Mas os colegas provaram o contrário. Essa lista é interessantíssima
porque se poderia votar em dois. Então, em minhas sondagens, eu percebia
aqueles claramente fiéis ao Couto, mas muita gente ia votar nos dois ou em
mim. Na apuração foi diferente... [risos]. Não recordo qual político que dizia
que na hora de votar... dá uma vontade de trair!... [risos]. Um momento de
tortura meu, contudo, foi a apuração dos votos.
Memória MPM – Pela quebra de expectativas? Gerou decepção?...
Marco Antonio Pinto Bittar – Certamente. Quando eu falava com
as pessoas, acreditei convencer várias a votar em mim, ou em mim e no Couto,
ao menos. Quando afirmavam que iriam votar no Couto, eu ainda assim dizia
que era um bom voto. Mas eu não tinha experiência eleitoral e acalentei uma
confiança que não existia, afinal, não sabia como eram essas coisas.
Memória MPM – E desse período como procurador-geral, quais foram
as maiores realizações e lembranças, as atividades, além dessa inauguração do prédio
já mencionada? Algum processo muito espinhoso?
Marco Antonio Pinto Bittar – Pensas naquele do submarino?
Memória MPM – De tempos em tempos, a imprensa volta a essa história
do submarino, mas é um processo confidencial...
445
HISTÓRIAS DE VIDA
Marco Antonio Pinto Bittar – O que eu recebi marcado como
secreto, fica secreto. Mas sobre o que reverberou, posso dizer que o presidente
do Tribunal endossou a ideia de que tinha que haver denúncia do almirante
por parte do Ministério Público.
Memória MPM – Do almirante responsável pela gestão do projeto?
Marco Antonio Pinto Bittar – Exatamente. E eu disse que não.
O presidente do Tribunal, porém, alegou que não iria aceitar o meu pedido
de arquivamento. E voltou para cá o processo. Como dominus litis, deitei um
pouquinho de doutrina sobre o tema, e requeri não apenas o arquivamento,
como a impossibilidade de qualquer outra manifestação nos autos uma vez que
o Ministério Público se colocava pelo arquivamento.
Memória MPM – Se utilizou de uma prerrogativa do procurador-geral,
então? Essa é realmente uma parcela de soberania que o procurador-geral encerra. É
uma decisão que ele pode tomar e para a qual não cabe recurso; cada chefe de Poder
tem suas prerrogativas...
Marco Antonio Pinto Bittar – Mas estive com esta bomba na
minha mão, embora tenha sido rápido em lidar com o fato. Eu nunca soube
nem quem era o almirante, nunca recebi qualquer contato de quem quer que
fosse em favor desse processo. Chegaram a me dizer que ele era uma pessoa
com um trato mais difícil, mas não sei se é verdade. Eu, porém, me convenci de
que não havia motivação para denúncia.
Memória MPM – Até onde eu sei, tinha relação com carros de segurança...
Marco Antonio Pinto Bittar – Eu lhe pergunto: alguém lidando
com milhões e milhões vai checar coisas ínfimas como, por exemplo, se esse
446
MARCO ANTONIO PINTO BITTAR
copo está ou não com o emblema de uma instituição, e se não tiver, significaria
que você está querendo este copo para si? É a mesma história dos carros.
Administrativamente, poderia ser até bobagem, mas os carros eram comprados
em nome deles para driblar a espionagem internacional da qual eram alvo.
Já viu filme de espionagem americano? Os carros não são sempre aquela
Chevrolet GM preta com vidros fumês? Todos os carros da CIA são aqueles.
Eles aqui tinham o Opala de serviço, mais o Monza era comprado em nome
particular, com as devidas assinaturas e entregas de volta. Era isso. Um projeto
que lidava com milhões! E os caras ficavam em cima de um Monza que não
estava regulamentado?
Memória MPM – E as medalhas e condecorações?
Marco Antonio Pinto Bittar – Parece que eu tenho muitas medalhas.
Mas a verdade era que as medalhas se tornavam quase que inerentes ao cargo
ocupado. Achei interessante gente que me pedia medalhas, mas que nunca
havia feito realmente nada para merecê-las.
Memória MPM – O senhor gostaria de deixar algo mais registrado?
Marco Antonio Pinto Bittar – Dois registros interessantes. O
primeiro é que eu e o colega Couto estivemos juntos na nossa Associação em
um momento muito feliz. Conseguimos muitas realizações excelentes: 100%
de associados, vários pleitos administrativos e judiciais atendidos em favor dos
colegas, as pensões das viúvas (como já mencionei), enfim, a presidência da
Associação foi um tempo de muitas alegrias e realizações.
O segundo, não logrei êxito, mas gosto muito de trazer o tema ao
debate, em função de estar prescrito em lei e não ser cumprido. Há um artigo
447
HISTÓRIAS DE VIDA
da Lei Complementar nº 75 que estabelece que os membros do MP recebam
o tratamento que é dispensado aos membros do Judiciário junto aos quais ele
oficia. É o procedimento desde 1993. Porém, nunca foi incluído no decreto
de cerimonial. Já vi solenidades em que o prefeito daquelas cidadelas de 500
habitantes sempre diz “vossa excelência” para os juízes, mas para o promotor
sempre guarda um “vossa senhoria” ou outra coisa que o valha. Eu digo
sempre que não sou, que não preciso e que nem quero ser chamado de “vossa
excelência”. Mas acho que se é devido, tem que ser usado. E não é assimilado.
Eu vejo que há lugares, inclusive, que fazem questão de puxar o termo “você”
para evitar o “vossa excelência”. Não acho que é por mal, mas creio que é uma
forma de demonstrar que não nos reconhecem como tal. Disse isso aqui e em
outros lugares, e já foi interpretado como um desejo de polir o ego, mas não se
trata disso.
Por fim, eu gostaria de agradecer a oportunidade de registrar este
depoimento junto ao Centro de Memória.
448
449
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar,
em Brasília, em 6 de março de 2015, por Gunter Axt.
450
José Carlos Couto de Carvalho nasceu em 28 de outubro de 1946. É filho
de Francisco Alves de Carvalho e Myrian do Couto Carvalho. Casou-se com
Marilena Ferreira C. Carvalho. Graduou-se em Direito pela Universidade
Gama Filho, Faculdade de Ciências Jurídicas. Fez o curso de Altos Estudos
de Política e Estratégia (CAEPE) da Escola Superior de Guerra (ESG).
Aprovado em concurso público em 1966, ingressou na Justiça Militar como
auxiliar de escrevente juramentado. Prestou concurso público para ingresso na
carreira do Ministério Público Militar em 1981, sendo nomeado, em 20 de
agosto, procurador militar de segunda categoria da 2ª CJM. Em 15 de fevereiro
de 1982, passou a atuar junto à 1ª Auditoria da 1ª CJM. Em 15 de dezembro
de 1983, passou a atuar junto à 2ª Auditoria da mesma Circunscrição. Foi
promovido a procurador militar de primeira categoria em 30 de novembro de
1984. Em 27 de novembro de 1987, foi convocado para atuar na Procuradoria-Geral de Justiça Militar, em Brasília. Em 2 de dezembro de 1992, foi
promovido a subprocurador-geral da Justiça Militar. Aposentou-se em 1995.
Dois meses depois de aposentado, em 28 de setembro, assumiu a presidência
da Associação do Ministério Público Militar, cargo no qual permaneceu até
julho de 2001. Mantém, em Brasília, há muitos anos, um reconhecido curso
preparatório para o concurso de ingresso na carreira.
451
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de onde?
José Carlos Couto de Carvalho – Sou natural do Rio de Janeiro.
Memória MPM – E como foi sua opção pelo Direito? Existia essa
tradição na sua família?
José Carlos Couto de Carvalho – Existia, sim. Meu pai veio da
Bahia para o Rio de Janeiro e formou-se farmacêutico. Aliás, um grande feito,
pois saiu sozinho da Bahia, chegou ao Rio de Janeiro entre os anos 1920 e
1930 e conseguiu se formar em Farmácia na Universidade do Brasil. Mas era
a minha família, por parte de mãe, que tinha tradição jurídica. Meu tio-avô
era juiz-auditor da Justiça Militar, daí veio a herança do Direito e da própria
Justiça Militar.
Memória MPM – Em qual Faculdade o senhor se formou?
José Carlos Couto de Carvalho – Foi na Faculdade de Ciências
Jurídicas do Rio de Janeiro.
Memória MPM – O senhor se lembra desse período de Faculdade?
José Carlos Couto de Carvalho – Praticamente um ano depois de
entrar na Faculdade, eu ingressei na Justiça Militar, no cargo de auxiliar de
escrevente juramentado. O concurso foi no ano de 1966 e foi muito difícil,
porque eram três vagas para mais de mil candidatos, mas eu tinha como
vantagem ter estudado no Colégio Pedro II, então considerado de alto padrão.
As provas para auxiliar de escrevente eram eliminatórias e começavam com
português, que já cortava uma boa parte dos pretendentes, e depois com
matemática, que eliminava outro grande grupo. Quando o concurso entrou na
452
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
fase de matérias básicas, já eram poucos candidatos e fui aprovado em terceiro
lugar. O interessante é que desses três colocados, posteriormente, dois foram
para a magistratura. Eu fui para o Ministério Público. Assim, ingressei na
Justiça Militar no ano de 1967.
Memória MPM – Como foi sua experiência nesse período de auxiliar?
Como a Justiça Militar funcionava nessa época?
José Carlos Couto de Carvalho – Inicialmente fui para a Segunda
Auditoria da Aeronáutica e, posteriormente, fui promovido a escrevente
juramentado para a Auditoria de Marinha. Foi depois do meu período na
Auditoria de Marinha que fiz o concurso, em 1980, para o Ministério Público,
no qual ingressei no ano seguinte. Então fui para a 3ª Auditoria, em São Paulo,
já extinta, e passei pela Auditoria do Exército, até retornar para a Auditoria da
Aeronáutica, na qual eu havia iniciado a carreira.
Memória MPM – Quantas Auditorias existiam então no Rio de Janeiro?
José Carlos Couto de Carvalho – Eram sete. Duas da Aeronáutica,
duas da Marinha e três do Exército. Atualmente são apenas quatro e todas
elas são mistas.
Memória MPM – O senhor se lembra dos juízes e promotores que
estavam nessas Auditorias naquela época?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim.Conheci figuras extraordinárias!
Foi um aprendizado maravilhoso. Recordo-me de uma audiência na Auditoria
da Marinha, presidida pelo Dr. Fernando Przewodowski Nogueira. Eu tinha 20
e poucos anos, recém-nomeado, e a atriz Tônia Carrero foi prestar depoimento.
Eu preparava a qualificação das testemunhas, anotando o nome, a idade, a filiação,
453
HISTÓRIAS DE VIDA
etc. Mas como era a Tônia Carrero, o Fernando Nogueira quis conduzir a
qualificação. Ele começou a fazer as perguntas e, dentre elas, faltou a data de
nascimento. Como o Código pedia essa informação, eu, muito jovem, disse:
“Excelência, está faltando a data de nascimento da testemunha.”. Naquela
época as senhoras quarentonas não informavam a idade de jeito nenhum.
Hoje elas fazem questão de indicá-la, até em reportagens. O auditório estava
cheio, porque era uma audiência relativa à famosa “Passeata dos Cem Mil”,
umas das manifestações que, inclusive, ensejaram o AI-5. O juiz-auditor,
muito inteligente, disse-lhe: “O meu escrivão é muito curioso... (enquanto
ele ganhava tempo para decidir o que faria), ele está querendo saber a sua
idade...”. Então voltou-se para mim, delicadamente e disse: “Coloque aí:
maior de idade!”. Que saída genial, não é?1 [risos].
Outra pessoa notável, quem muito me ensinou, faleceu há
pouco, com 90 e tantos anos, foi o Paulo Jorge Simões Corrêa, de grande
independência funcional. Em razão disso, posteriormente, o SNI – Serviço
Nacional de Informações, pediu sua aposentadoria, alegando que não havia
prestado o concurso, que era genro de um general e graças a essa relação teria
ingressado na Justiça... Uma série de inverdades. E, no final, acusando-o de
esquerdista, por ter absolvido o deputado Márcio Moreira Alves (aquele que
fez um discurso que também ensejou o AI-5), pois o governo queria a sua
cassação e o Congresso não a autorizara. Em função dessa recusa, houve o
fechamento do Congresso, em 1968, como se sabe. O Márcio Moreira Alves
1. A atriz Tônia Carrero e o vice-reitor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, professor Clementino Fraga, prestaram depoimento na Auditoria da Marinha em 22 de
maio de 1969 como testemunhas de defesa do estudante Vladimir Palmeira, que se encontrava
preso desde dezembro, acusado de liderar a “Passeata dos Cem Mil”. (CORREIO DA MANHÃ, 23 de maio de 1969).
454
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
acabou cassado e enquadrando na Lei de Segurança Nacional2, porque nesse
discurso conclamava as moças a não dançarem com militares nas festividades
de comemoração da Independência do Brasil. O caso caiu na Auditoria da
Marinha e ele foi absolvido, sendo o Dr. Paulo por isso responsabilizado.
Mas ele não decidiu sozinho, pois havia um Conselho Permanente de quatro
militares da Marinha sorteados, além do juiz-auditor. O Dr. Paulo me
mostrou um documento no qual o general Ernesto Geisel, então presidente
da República, de próprio punho, fez objeções ao encaminhamento do SNI,
pedindo a aposentadoria compulsória do Dr. Paulo, que na prática era
uma forma de cassação, já que o sujeito era aposentado proporcionalmente
ao tempo de serviço. O Geisel perguntava se haveria mesmo provas para
condenar o Márcio Moreira Alves, como sustentava o SNI, registrando que,
inclusive, alguns dos oficiais da Marinha, membros do Conselho, haviam
votado pela absolvição. Enfim, o caso do Márcio não foi reaberto e o Dr.
Paulo não foi aposentado compulsoriamente.
A propósito, a recente Comissão da Verdade não registra o
desempenho de juízes, tanto na Justiça Militar quanto no Superior
Tribunal Militar, que, de certa forma, contribuiu para o processo de
redemocratização, na medida em que estes se insurgiram contra certas
arbitrariedades, eventualmente até colocando o cargo à disposição.
Eles tentaram barrar exageros e, em razão disso, o governo endureceu a
legislação, suspendendo o habeas corpus, por exemplo. A Justiça Militar teve
a sua cota de resistência e eu acredito que isto foi importante para conter
2. Márcio Moreira Alves encabeçava a primeira lista de cassados, publicada
em 30 de dezembro de 1968. Nessa oportunidade, entretanto, já havia se refugiado no Chile, de
modo que o processo na jurisdição militar correu a sua revelia.
455
HISTÓRIAS DE VIDA
barbaridades que se verificaram em outros regimes da época no Continente
Americano, como aqueles que existiam no Chile e na Argentina, algo que
é, inclusive, internacionalmente reconhecido.
Havia juízes que atuavam de acordo com o Direito, sem mencionar
o próprio Tribunal. O advogado Heleno Fragoso relaciona, em um livro de sua
lavra, vários julgados do Tribunal que questionam judicialmente certas decisões
condenatórias, estabelecendo revisões. Lista, por exemplo, onze atentados de
sequestro de aviões civis, que eram levados em geral para Cuba. Embora se
tratando de crimes evidentes, o Tribunal mantinha o exame da prova, pondo
em dúvida o peso do testemunho, e muita gente foi absolvida, o que, pelo que
se sabe, não aconteceu no Tribunal de Segurança Nacional do período Getúlio
Vargas, que era realmente um tribunal de exceção.
Memória MPM – De fato, um tribunal cuja composição em grande
parte era de leigos, que julgavam ao arrepio do Processo Penal. Como os advogados
entendiam os crimes contra a Segurança Nacional na jurisdição militar especializada?
José Carlos Couto de Carvalho – Se questionava, com efeito, que estes
processos estivessem no âmbito da jurisdição militar especializada. Entretanto,
considerando o contexto adverso, muitos advogados, com os quais convivi, até
preferiam a Justiça Militar à Comum, porque alguns militares que integravam
os Conselhos resistiam. Eu acredito que existia independência para julgar, tanto
que um general, ministro do Tribunal, foi aposentado com o Ato Institucional
nº 53. Antes do AI-5, o Tribunal concedia habeas corpus. Um dos primeiros
beneficiados por esse remédio foi o deputado federal baiano Fernando [dos
3. 456
Refere-se ao general Pery Constant Bevilacqua, cassado em janeiro de 1969.
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
Reis] Sant’Anna, comunista histórico. Eu conhecia a família. Depois do AI-5,
o regime endureceu, mas mesmo assim o Tribunal concedia liberdade provisória
quando havia excesso de prazo da prisão do indivíduo. Portanto, acredito que
a Justiça Militar foi importante para conter excessos, dessa forma, colaborando
também para pavimentar o caminho para a redemocratização.
Memória MPM – Ainda com respeito ao caso Moreira Alves, por que o
processo caiu na Auditoria da Marinha?
José Carlos Couto de Carvalho – Havia uma Corregedoria que
sorteava entre as sete Auditorias os crimes de Lei de Segurança Nacional. Era
aleatório.
Memória MPM – Havia diferenças de orientação de uma Auditoria
para outra, ou não?
José Carlos Couto de Carvalho – Não havia. Era o mesmo padrão.
Os juízes da época eram de grande valor e não há, em geral, nada pesando contra
eles. Mencionei esses dois porque foram aqueles com os quais mais convivi.
Memória MPM – O senhor recorda outros processos dessa época agitada?
José Carlos Couto de Carvalho – Além do caso do Márcio Moreira
Alves, lembro-me do chamado “Processo dos Intelectuais”, orientado pelo
Paulo Jorge Simões Corrêa, no qual vários jornalistas foram processados, mas
também absolvidos. Havia um da UNE – União Nacional dos Estudantes, que
acabou não sendo julgado. Em protesto, manifestantes haviam estendido uma
faixa com os espirituosos dizeres “Abaixo a dentadura!”: eram estudantes de
odontologia [risos]. Foi uma época de criatividade. Isto é, naquele contexto de
compressão, era preciso encontrar meios criativos para protestar. Fui saber há
457
HISTÓRIAS DE VIDA
pouco tempo, por exemplo, que a música Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, do
Roberto Carlos, foi uma homenagem ao Caetano Veloso, que estava em exílio
voluntário em Londres. A música parecia se remeter a uma mulher, mas era ao
Caetano: “tanta história para contar...”.
Noutro processo interessante, nos anos 1970, o ex-senador Mourão
Filho (não o general, mas o senador) foi envolvido numa tentativa de
reorganização do Partido Comunista por ter emprestado um sítio para uma
reunião. Apesar da Lei de Segurança Nacional, existia um entendimento, entre
alguns juízes, de que ser comunista não era crime. Muitos não concordavam em
prender pessoas apenas por serem comunistas, sem terem cometido nenhum
ato ilícito, como por exemplo, o proselitismo, que seria uma tentativa de mudar
o regime, algo que até hoje continua vigente na Lei 7.170, de 1983, apenas não
mais de competência da Justiça Militar.
Alguns dos acusados, por sua vez, não estavam lutando pela
democracia, mas pela instalação de um regime comunista, autoritário também,
o que nem sempre é registrado hoje em dia. Eu não cheguei a atuar como
promotor em processos de Lei de Segurança Nacional (embora tenha atuado,
sim, em processos de ofensa às Forças Armadas). Mas, enfim, esse era o quadro
geral que era possível observar.
Memória MPM – Acompanhando a dinâmica da Justiça Militar,
o senhor acha que a luta armada contribuiu mais para a distensão progressiva do
regime ou para o seu fechamento?
José Carlos Couto de Carvalho – Eu acho que a luta armada foi
um erro, pois era impossível enfrentar um Exército inteiro com meia dúzia
de guerrilheiros. Sem dúvida, contribuiu mais para o fechamento do regime,
458
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
porque passou a justificar o fechamento do regime. Eu era filiado ao MDB e
cheguei a me candidatar para um cargo eletivo. Éramos contrários ao regime,
vivíamos o dilema de uma oposição consentida, mas não acreditávamos na
adesão à luta armada como forma de enfrentamento eficaz. Lideranças como
Ulysses Guimarães, Teotônio Vilella e Tancredo Neves foram fundamentais na
construção de uma saída rumo ao processo de democratização. Por sua vez, foi
graças à luta armada que se configurou, com tanta extensão, a figura do preso
político, o que foi importante para sensibilizar a opinião pública. Na verdade, foi
uma guerra na qual muitos pereceram, em ambos os lados.
Memória MPM – E o concurso para procurador?
José Carlos Couto de Carvalho – O último havia sido realizado no
início dos anos 1960 e, com a Revolução de 1964, os substitutos, indicados
iam sendo aproveitados: não se fazia concurso. Então, depois de vinte anos foi
promovido um, pelo procurador-geral Milton Menezes. Os aprovados tomaram
posse em 1981.
Memória MPM – E o senhor continuou nas Auditorias do Rio de Janeiro?
José Carlos Couto de Carvalho – Não. Assumi o cargo em São Paulo
para não perder a antiguidade e passei seis meses lá. Depois, voltei para o Rio de
Janeiro, à 1ª Auditoria do Exército.
Memória MPM – E na década de 1980, como foi perceber essa transição
do regime civil-militar, mais fechado e ditatorial, para o regime democrático, já com
a vigência da Lei da Anistia?
José Carlos Couto de Carvalho – A Lei da Anistia acabou
alcançando a todos. No início, achava-se que ela não seria ampla e irrestrita,
459
HISTÓRIAS DE VIDA
porque excetuava, como beneficiados, aqueles que haviam sido condenados
por crimes de sequestro, de terrorismo (como o atentado à bomba em Recife)...
Mas em linguagem jurídica, condenação significa trânsito em julgado, e como
muitos casos não tinham essa condição, pois haviam sido apenas condenados
em primeira instância, o pessoal acabou contemplado mesmo aqueles sobre os
quais, por exemplo, pesavam provas concretas de protagonismo em sequestro
de aviões de carreira.
De modo geral, meu grupo de concurso entrou com cautela, com
um certo “pé atrás”. Mas nossos posicionamentos acabaram sendo acolhidos.
O Código de Processo, por exemplo, determinava que o encarregado do
processo podia deter o indiciado sem autorização judicial, sem nada, nem ao
menos a motivação da prisão. No primeiro caso que chegou às minhas mãos,
solicitei ao juiz que perguntasse ao encarregado o motivo da prisão. O seu
retorno foi dizer que já havia soltado a pessoa. Isso mostra como as coisas
estavam mudando.
Em São Paulo, um sujeito ingressou clandestinamente em um
quartel. Ele até tinha prestado o serviço militar e se passava por militar.
Quando a sentinela o mandou parar, ele não obedeceu, então levou um tiro
na perna. Os movimentos sociais de São Paulo, pelos jornais, denunciaram
que um militar havia alvejado um civil. Mas a sentinela tinha a vantagem do
estrito cumprimento de dever legal e da legítima defesa. Aliás, fala-se muito
no estrito cumprimento do dever legal, mas tecnicamente o militar só pode
atirar mesmo em legítima defesa – dele, do patrimônio, da unidade... Não é
estrito cumprimento do dever legal, porque o único que tem essa prerrogativa
é o carrasco em tempo de guerra, atuando num Pelotão de Fuzilamento, por
exemplo. Enfim, fui convidado a assessorar o encarregado do inquérito, um
460
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
engenheiro, neófito em Direito. O comandante da unidade queria que eu
indiciasse o réu desde logo, mas eu achei que não seria bom, porque estava todo
mundo falando... O Código não exige a obrigatoriedade do indiciamento de
fulano ou beltrano, só diz que há indício de crime. Recomendei ao engenheiro
enviar o inquérito para a Procuradoria, que denunciaria quem achasse por
bem, o que o livraria de toda aquela pressão que lhe pesava sobre os ombros.
Temeroso, contudo, pediu-me para falar com o seu comandante, que muito
embora tenha insistido num primeiro momento na posição, acabou acatando a
orientação do Ministério Público. Dessa forma, fomos fortalecendo o respeito
pela instituição. Na prática, nunca enfrentei problema no sentido de sofrer
interferência externa sobre o exercício da atividade ministerial.
Memória MPM – Como procurador, o senhor visitava as prisões?
José Carlos Couto de Carvalho – Normalmente, não. Só quando
havia alguma denúncia. Atualmente existe a inspeção carcerária, mas naquela
época, não. Quando ingressei como procurador, também já não existiam mais
presos políticos.
Memória MPM – Dos casos dos anos 1980, teve algum que lhe chamou
mais a atenção?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim. Existem indícios que
demonstram o respeito da criminalidade pela Justiça Militar. Havia uma
disposição de que qualquer assalto a banco era enquadrado na Lei de Segurança
Nacional, o que zerou esse tipo de crime no Brasil. Porque estes assaltos foram
acolhidos como estratégia para mobilizar fundos para a luta armada, mas os
bandidos comuns também passaram a ser julgados pela Justiça Militar. Na
distensão, no período de abertura política, no governo João Batista Figueiredo,
461
HISTÓRIAS DE VIDA
quando se mudou o entendimento da lei, o assalto a banco recrudesceu. Já no
dia seguinte houve um assalto.
Houve também um caso de furto de armamento num depósito
central, na Vila Militar do Rio de Janeiro, cujo inquérito assessorei. Um oficial
R/2, que iria embora em função do tempo de serviço, resolveu fazer um “pé
de meia”. Ele subtraiu armas e, para conseguir vendê-las, as levava no seu VW
Brasília para um quartel ao lado, para descaracterizá-las, tirando os emblemas
da República, porque ninguém compraria armamento oficial, nem bandidos, o
que demonstrava o grande respeito que se tinha então pelas Forças Armadas.
Normalmente, quando some uma arma de determinado quartel, as Forças
Armadas sabem, porque o furto é logo indicado. Quando uma arma subtraída
aparece, a origem é identificada. Já vi casos, no Tribunal, de armas aparecerem
vinte anos depois. Mas como ele conseguia remover as características das
armas, as vendia aos bandidos indicando se tratar de contrabando.
Veja: o pai de um cidadão, dono de uma joalheria em Curitiba,
comprou sem saber uma arma furtada das Forças Armadas. Numa oportunidade
em que o estabelecimento foi assaltado, os ladrões, além das joias, levaram essa
arma. Ao serem presos, a arma foi aprendida. O dono da joalheria teve que
responder um processo na Justiça Militar, por estar de posse de armamento
desviado das Forças Armadas. Mas foi absolvido.
Enfim, aquele caso do R/2 estava sendo difícil, porque não aparecia a
indicação de furto na Unidade. O investigador me disse acreditar que as armas
que estavam aparecendo só poderiam ser originárias de um lugar: o depósito
central de armamentos, subordinado à Brasília e não ao Comando do Rio.
Quando as investigações avançaram, não deu outra! Descobriu-se o esquema.
462
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
Memória MPM – Nos anos 1980, qual era a natureza mais frequente
dos delitos julgados? Era problema de disciplina? Furto? Consumo de bebidas
alcoólicas em serviço?
José Carlos Couto de Carvalho – O furto, que parece ser algo
inerente ao ser humano. Houve episódios pitorescos. Funcionei em um processo
onde o sujeito fez uma engenharia danada para roubar um cofre do quartel,
mas se deu mal, pois dentro só havia documentos administrativos [risos]. Um
ou outro homicídio também acontecia. Mas isso é raro entre militares.
No pouco tempo em que trabalhei em São Paulo peguei alguns
processos envolvendo indivíduos da Prefeitura querendo levar vantagem
junto ao serviço militar. Um processo de grande porte envolveu o DETRAN
– Departamento Estadual de Trânsito, do Rio de Janeiro. Para facilitar,
alguém do DETRAN ia ao quartel fazer exames de motorista e, nesse
esquema, algumas carteiras começaram a ser vendidas. De repente, foi preso
um assaltante com uma carteira fraudada. Essa situação é um exemplo do
porquê sou contra as Forças Armadas assumirem funções policiais, porque
acompanham os vícios. Como a Justiça Militar não tem uma especificidade,
trabalhamos com crimes de todo o tipo e muitos deles até bobos, sem
organização criminosa nenhuma. Nessa época, a única coisa mais organizada
que vi foi a daquele oficial R/2 que furtava as armas do depósito central e
as revendia.
Memória MPM – E existiram casos de quebra de disciplina?
José Carlos Couto de Carvalho – Pouca coisa. Algumas besteiras,
ou fatos pitorescos, como por exemplo, uma vez um fulano passou com uma
vassoura e outro perguntou aonde ele ia, recebendo por resposta que iria enfiar
463
HISTÓRIAS DE VIDA
na sua mãe, diante do que o indivíduo que fez a pergunta pegou um facão e
jogou-o no fulano com a vassoura. Outro caso aconteceu no Maracanã, onde
um sujeito pediu fogo para acender o cigarro a outro, que mostrou o órgão
genital dizendo que só tinha um palito para oferecer. O que pediu o fogo
voltou com uma metralhadora: “Ó, toma fogo aí nesse teu palito!”.
Esses casos às vezes servem de ilustração para minhas aulas, porque
sou professor. Quando estava prestando o concurso, participei, com o juiz-
-auditor Mauro Seixas Telles e outro auditor aposentado, de um curso de
aperfeiçoamento, do qual acabei como monitor, pois havia feito Magistério
Profissionalizante na Universidade do Rio de Janeiro, de modo que estava
habilitado em didática, com o título de licenciado. Desde então, tenho atuado
como professor em cursos preparatórios para os concursos de ingresso na
carreira. Cerca de 80% dos hoje juízes e promotores da Justiça Militar, além de
advogados e assessores de ministros, foram meus alunos.
Aposentei-me em 1995 e dois meses depois assumi a presidência
da Associação do Ministério Público Militar. Em 1994, fui eleito para ser
procurador-geral, com quase 80% dos votos da categoria, uma das maiores
votações já recebidas, mas acabei não sendo nomeado. O ungido foi um querido
amigo, Marco Antonio Bittar, nomeado politicamente pelo procurador-geral
da República, Aristides Junqueira. No Brasil, o procurador-geral da República
tem a prerrogativa de escolher qualquer um dos nomes da lista tríplice e o
Junqueira optou pelo segundo mais votado.
Memória MPM – Essa situação precipitou sua aposentadoria?
José Carlos Couto de Carvalho – Eu havia exercido todos os cargos,
inclusive o de vice-procurador-geral. Fui também corregedor e coordenador
464
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
da Câmara de Revisão. Fui candidato a procurador-geral, mais por uma
questão de apoio, porque as pessoas me pediram para sê-lo. Sempre, contudo,
gostei do Magistério. Nunca deixei de lecionar, algo que seria inviabilizado
pelo exercício do cargo de procurador-geral. Parei para pensar: se continuasse,
possivelmente me tornaria procurador-geral noutra oportunidade, tanto que,
meses depois da minha aposentadoria, fui eleito presidente da Associação. Ou
seja, não exerci o cargo, mas fiquei atuando ainda por seis anos, isto é, três
mandatos, sempre eleito por chapa única. Os colegas até se impressionavam
por eu estar aposentado e continuar atuando. Gosto da instituição. Então, não
era uma paixão pelo cargo de procurador-geral, mas desejo de contribuir para
o engrandecimento da instituição.
Ajudei a constituir a Associação, que recebia pouco dinheiro
em função do salário baixo dos membros, o que permitia uma contribuição
pouco expressiva por parte dos associados. Nos três primeiros anos, consegui
economizar recursos da Associação, usando verba do meu próprio bolso para
a representação. Investi esta poupança na compra de um imóvel. Hoje nossa
Associação está instalada numa bela sala, que até foi batizada com meu nome,
numa homenagem em reconhecimento pelo esforço em prol da constituição de
uma sede própria. Consegui deixar recursos para obras ao meu sucessor, o Dr.
Giovanni Rattacaso, que terminou de equipar a sala. Para mim, acabou sendo
bom não ter sido escolhido como procurador-geral, em função dessa grande
quantidade de alunos que eu tinha e da contribuição que pude fazer em prol
da Associação. Alguns colegas reclamaram por eu ter aceitado o resultado. Mas
não havia como ser diferente. E, pessoalmente, penso que para mim foi positivo.
Já são vinte anos de aposentadoria e, até hoje, mantenho um vínculo
com a Associação. Faço parte de todos os conselhos. Inclusive, algo inédito,
465
HISTÓRIAS DE VIDA
mesmo aposentado, na gestão da Dra. Cláudia Márcia Ramalho, fui convidado
a presidir o Colégio de Procuradores, que reúne os procuradores da ativa.
Junto a essa administração eu nem tinha grandes amizades, como tenho com
a gestão do Dr. Marcelo Weitzel de Souza, atual procurador-geral da Justiça
Militar, que foi meu auxiliar direto na Associação, tanto que no seu discurso
de posse ele disse que eu fora seu mentor político. Ele se tornou presidente da
Associação em 2003, permanecendo na função até 2012, quando foi empossado
procurador-geral.
Memória MPM – Qual a dinâmica do curso preparatório?
José Carlos Couto de Carvalho – O curso é permanente. Funciona
em Brasília e é presencial, mas utilizamos correspondências convencionais,
porque meu sistema de aulas é baseado no envio de questões, respostas, doutrina
e jurisprudência pertinente. Quase como uma apostila. Mando para o pessoal
de fora as aulas que ministro em Brasília. Na verdade, prefiro chamar de grupo
de estudos, pois várias pessoas frequentam e recebem minhas correspondências,
como juízes e promotores, no exercício da função, que gostam de se manterem
atualizados. E isso me mantém atualizado também, porque uma das melhores
formas de aprender é lecionar. Principalmente aqui no Brasil, onde a legislação
está sempre mudando, especialmente a parte processual.
Memória MPM – O senhor participou da comissão para o projeto de
atualização do Código Penal Militar? Quais foram as alterações propostas? Quais
reflexões foram feitas pela Comissão?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, uma comissão mista de juízes,
advogados, promotores, constituída pelo Superior Tribunal Militar. Chegamos
à conclusão de que não iríamos mudar a filosofia da nossa legislação, que é
466
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
causalista, e não finalista, como ocorreu com a legislação comum. Procuramos
consertar ou aprimorar o Código de 1969, porque a nossa legislação é uma
cópia do Código Penal Comum desse mesmo ano, que foi feita por Nelson
Hungria e por Heleno Fragoso. Esse Código trouxe uma série de inovações,
estando, inclusive, à frente da legislação comum, como, por exemplo, o
problema da inimputabilidade. O sujeito inimputável é igual na legislação
comum, mas na inimputabilidade da legislação militar o legislador exige, para
aplicação de medida de segurança, que ele apresente periculosidade. Temos
a chamada “periculosidade real”, ou seja, o juiz verifica para aplicar a medida
de segurança. Na legislação comum, a medida de segurança é presumida, se
o indivíduo é inimputável já se aplica a medida de segurança. A vantagem
no CPM, que de maneira geral as pessoas acreditam ser mais duro, é que
a medida de segurança pode ser aplicada desde que o indivíduo apresente
real periculosidade. No Código Comum, o inimputável recebe a medida de
segurança mesmo que não seja perigoso.
Nós adequamos também a questão do crime continuado, que no
Código Penal Militar sancionava o indivíduo com a soma dos crimes. O
instituto do crime continuado objetiva aplicar uma pena menor para o indivíduo
que pratica pequenos delitos, como furtos menores, por exemplo. A intenção é
evitar que com a aplicação de uma pena para dez, vinte furtos, um sujeito possa
receber pena equivalente à de um homicida... Tanto que se diz que foi adotada
a Teoria da Ficção Jurídica. Essa mudança foi proposta no nosso projeto, até
mesmo porque a jurisprudência do Tribunal já assinalava nesse sentido.
Enfim, as mudanças propostas foram pontuais, até para poder facilitar
a aprovação, porque se não for assim, não se consegue avançar. A reforma
do Código Penal Comum, por exemplo, está há anos em discussão. A Parte
467
HISTÓRIAS DE VIDA
Geral ainda é datada da década de 1940. A parte de 1969 não teve vigência
e, em 1984, houve uma reforma e foram adicionados alguns dispositivos em
relação ao finalismo na Parte Geral. A Parte Especial continuou a mesma. Teve
algumas mudanças pontuais, como na receptação de furto por empresas. Mas
o Código ainda é essencialmente o mesmo da época do Getúlio Vargas. Assim
como o Código de Processo Penal.
Memória MPM – A reforma do Código de Processo Penal Militar está
em andamento ainda?
José Carlos Couto de Carvalho – Ainda está em andamento, sim.
Agora, depende do Congresso Nacional.
Memória MPM – O senhor tem acompanhado a discussão no Congresso
Nacional a partir da proposta do anteprojeto de vocês?
José Carlos Couto de Carvalho – O anteprojeto até agora não foi
apresentado por não ter ainda a aprovação do Tribunal. Fizemos uma reunião
com o Plenário do Tribunal e se discutiram apenas os primeiros artigos, mas
era uma questão complicada, é difícil mudar a lei. O Tribunal encaminhou
um projeto em relação à Lei de Organização Judiciária, alterando alguns
pontos, como, por exemplo, permitindo que o juiz-auditor presida a sessão,
dando a ele mais atribuições. E, inclusive, na Justiça Militar Estadual já houve
uma alteração pela qual juízes de lá passaram a se chamar juízes de Direito e
julgam algumas questões singularmente. A própria Constituição, no artigo nº
109, estabeleceu que compete aos juízes federais julgar os crimes contra bens,
serviços e interesses da União, ressalvada a competência da Justiça Militar,
porque o crime militar é contra a União. Então, nada impediria que um juiz da
Justiça Militar julgasse esses crimes considerados militares.
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JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
Recentemente eu dei pequena contribuição na redação de um artigo,
em parceria com o conselheiro Antônio Pereira Duarte, intitulado A reinvenção
da Justiça Militar, no qual propomos a necessidade de uma série de alterações.
Afinal, lidamos com Forças Armadas e se não tivermos regras rígidas, vira
milícia. O mesmo vale para a jurisdição estadual. Por essa razão é que o Código
pune o duelo, que na legislação comum foi abolido, isso em função da própria
atividade, que pressupõe o porte de armas. Uma briga de funcionários de uma
repartição é uma coisa, uma discussão entre dois militares é algo bem diferente.
O próprio legislador constitucional entendeu essa especificidade, algo que vem
sendo olvidado pela legislação ordinária, como no caso da criação do Conselho
Nacional de Justiça, que não contempla a inserção da Justiça Militar.
Memória MPM – Por que a Justiça Militar não está representada no
Conselho? Ela não quis ou não quiseram?
José Carlos Couto de Carvalho – Não quiseram, com certeza... Nos
anos 1990, quando presidi a Associação, era possível perceber certa má vontade
em relação à Justiça Militar. Creio que era ainda um tipo de rescaldo decorrente
do regime militar. Outros se agarravam ao argumento da onerosidade da
Justiça Militar para criticar a jurisdição. Nada disso se sustenta, sabemo-lo. A
jurisdição militar especializada, antes de favorecer o corporativismo, combate-o.
A ministra Maria Elizabeth Rocha, que presidiu o STM, demonstrou em
uma conferência no Conselho Nacional de Justiça, que o orçamento da
Justiça Militar em todo o país é semelhante ou até menor ao do Conselho
Nacional de Justiça. Também mostrou que alguns Tribunais Eleitorais, embora
menores que o STM, têm orçamentos maiores, e nem por isso se fala na sua
extinção, justamente porque cumprem um papel constitucional essencial para
a estabilidade democrática.
469
HISTÓRIAS DE VIDA
Essa má vontade se dirigia também ao Ministério Público. Foi
necessário um trabalho árduo para essa reversão. Consegui nossa filiação à
CONAMP – Confederação Nacional do Ministério Público, e a partir
daí foi melhorando a nossa relação com os outros ramos e com os demais
colegas. Graças a isso, quando cheguei a uma reunião, com um colega, o Jorge
Augusto Lima Melgaço, verificou-se que não estávamos no projeto de criação
do Conselho Nacional do Ministério Público também. Nesse momento,
protestamos. Fui conversar com o Fernando Grella [Vieira], um cavalheiro,
era relator pela CONAMP das sugestões ao projeto inicial do governo. Ele
concordou imediatamente. Dessa forma, o MPM tem assento no CNMP.
Atualmente, essa cadeira está sendo abrilhantada pelo colega Antônio Duarte.
No artigo que mencionei, A reinvenção da Justiça Militar, há um
protesto em relação a isso, porque o legislador constitucional quis realmente
prestigiar a Justiça Militar, tanto que pessoas de boa vontade sabem que se a
jurisdição foi importante no regime militar, segue sendo atualmente, porque
senão vira milícia.
Memória MPM – Nos Estados Unidos, país com o maior exército do
mundo, a Justiça Militar é Corte Marcial, não existe uma jurisdição especializada.
Vocês têm algum tipo de diálogo com os Estados Unidos? Uma reflexão para
entender as diferenças desses sistemas? Quais as vantagens e desvantagens do
sistema americano?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, temos diálogo com os Estados
Unidos, e também acho que o sistema americano tem suas desvantagens. De
vez em quando alguns interlocutores vêm para cá e se interessam pelo nosso
sistema. Pessoas ligadas a essa Justiça, a essa Corte Marcial. Nossa Justiça é
470
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
um exemplo às do exterior, porque é judiciária, tem juiz togado, concursado,
independente. Tem um Ministério Público. Portanto, é exemplo. Além disso,
nossa realidade é diferente da de outros países, por exemplo, não temos Guarda
Costeira e quem faz a patrulha das costas brasileiras é a Marinha, o Exército ou
a Aeronáutica. Hoje no Brasil, as Forças Armadas são chamadas para resolver
tudo o que fracassa, como a questão no Rio de Janeiro.
Memória MPM – O senhor tem acompanhado, do ponto de vista
jurídico, as intervenções das Forças Armadas nessas áreas civis conflagradas do Rio
de Janeiro? Que tipo de consequências isso tem produzido do ponto de vista jurídico?
José Carlos Couto de Carvalho – Têm aparecido alguns problemas
porque se instalou já conflito de competências entre a Justiça Militar e a Justiça
Comum em torno dos crimes propriamente militares. Há interpretações,
inclusive do Supremo Tribunal Federal, descaracterizando o crime como
militar em certas situações, porque não se trataria de uma atividade própria
das Forças Armadas. Portanto, há insegurança jurídica para as Forças. Essa
disputa de jurisdição é uma das piores coisas que existe, porque acaba se
discutindo competência. No Brasil, processo de arguição de competência,
não só na Justiça Militar, acaba não sendo julgado, porque os conflitos são
permanentes. Inclusive, na atual conjuntura, há possibilidade de um único
caso trazer conflitos entre a Justiça Comum, a Federal, a Militar Federal e a
Militar Estadual.
Memória MPM – O Rio de Janeiro não tem Tribunal Militar
Estadual, correto?
José Carlos Couto de Carvalho – Não, tem apenas a Auditoria da
Polícia Militar.
471
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Funciona bem?
José Carlos Couto de Carvalho – Não conheço muito a do Rio de
Janeiro, mas sei que a de São Paulo funciona bem.
Memória MPM – O grande problema de São Paulo foi o Carandiru,
não é mesmo? Porque o Tribunal Militar se declarou incompetente para julgar,
dizendo que não havia sido crime militar e que o comando cabia ao governador.
José Carlos Couto de Carvalho – Quanto à história do Carandiru,
não posso opinar, porque não a conheço. Mas aconteceu um caso pior
na jurisdição militar de São Paulo: a Favela Naval. Lembra-se de um tal
“Rambo”, o Otávio Lourenço Gambra? Mas a questão foi resolvida, porque
a revisão da Constituição estabeleceu, e eles estão felizes com isso, que crime
praticado contra civil é um crime comum, então é competência do Tribunal
do Júri.
Memória MPM – O senhor acha isso bom?
José Carlos Couto de Carvalho – Em âmbito da Justiça Militar
Estadual se acredita que esta fórmula está dando certo, mas na Federal eu acho
que não.
Memória MPM – E se nós tivermos a figura do policial militar
justiceiro, que acredita que bandido bom é bandido morto? Porque se ele for para o
Tribunal do Júri Comum, tende a ser inocentado e festejado, não é?
José Carlos Couto de Carvalho – Exatamente. Isso não é bom. A
Polícia Militar Estadual está satisfeita porque está sendo absolvida, mas para a
sociedade isso não é bom.
472
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
Memória MPM – No caso da Favela Naval, o senhor teve alguma
participação no processo?
José Carlos Couto de Carvalho – Feito um projeto de lei pelo
governo para mudar a competência dos crimes de militares contra civis para o
Tribunal do Júri, fui convidado por um tenente, que agora é tenente-coronel,
para uma reunião – na época ainda era o chamado Estado-Maior das Forças
Armadas –, para discutir o ponto. Ele me pediu para que eu fosse, pois,
sendo tenente, se demonstrasse opinião, poderia levar uma “chave de galão”.
Lá chegando, argumentei contra a proposta, por vários motivos, sendo um
deles justamente o de que grande parte do povo acredita que “bandido bom
é bandido morto”. Tratei inclusive da questão dos crimes dolosos contra a
vida, que está em discussão até hoje na Justiça de São Paulo. Nisso existe um
problema seríssimo, que é a figura do dolo eventual e da culpa consciente. Um
caso emblemático foi o do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, em que a
promotora Maria José Miranda denunciou os envolvidos por dolo eventual e
a juíza Sandra de Santis Mendes de Faria Mello, esposa do ministro Marco
Aurélio Mello, entendeu que era culpa consciente, o que é uma fronteira tênue.
Então foi para o Tribunal de Justiça, no qual foi considerado culpa consciente,
mas a promotora Maria José recorreu para o STJ e assim conseguiu que o réu
fosse condenado por crime doloso contra a vida. Enfim, como vamos saber se
é dolo eventual antes do julgamento? Porque nosso Código adotou a chamada
Teoria do Consentimento, pela qual o dolo eventual só é considerado se o
indivíduo consentir no resultado. Porém, isso é muito íntimo, é difícil de ser
provado. O que alguns juízes estão aplicando hoje, em acidente de trânsito,
por exemplo, não é a Teoria do Consentimento que está no Código, mas a
Teoria Sintomática, a da Probabilidade. Coloquei todas essas objeções e o
473
HISTÓRIAS DE VIDA
Estado-Maior das Forças Armadas encaminhou ao presidente. Por fim, eles
sancionaram o projeto e, imediatamente, o encaminharam com disposições e
motivos do ministro Nelson Jobim, adicionadas as nossas objeções, e assim foi
assinado em função do problema de São Paulo. Mas para as Forças Armadas e
a Justiça Militar da União foi feito outro projeto sem essa previsão.
Memória MPM – No caso de um militar da União que comete crime
doloso contra a vida de um civil, ainda hoje isso é competência da Justiça Militar?
José Carlos Couto de Carvalho – Nesse caso existe o Acórdão do
Tribunal estabelecendo a inconstitucionalidade, já que em nível federal não
teve a Emenda Constitucional feita para as Polícias Estaduais. Já o Supremo
entende que não. Recentemente foi morto um civil por um cabo da Marinha,
em uma das ocupações no Rio de Janeiro, e o assunto está dando discussão.
Nosso promotor mesmo entendeu que não era crime militar.
Memória MPM – E os crimes da Guarda Nacional são de competência
da Justiça Militar?
José Carlos Couto de Carvalho – A princípio, não, porque esta
Guarda é formada por policiais militares. Não temos amparo legal para que
haja essa competência por parte da Justiça Militar da União.
Memória MPM – Eles têm quartéis também, não é?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, mas não é da Força e nem da
Polícia Militar, a Guarda Nacional é um tipo de limbo.
Memória MPM – Caso haja desvio de verba ou armamento, ou algum
tipo de crime administrativo no quartel, como fica?
474
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
José Carlos Couto de Carvalho – Aí, não existe amparo. Só vejo
possibilidades de julgamento nessas questões que se enquadram no artigo 9º,
se eles praticarem um crime contra o patrimônio da sua administração, aí teria
que ser da administração da Polícia Militar.
Memória MPM – Eventualmente, não poderia existir uma Auditoria
da Força Nacional?
José Carlos Couto de Carvalho – Me parece que não, porque na
Constituição fala das duas Justiças: a Federal e a Estadual.
Memória MPM – Daí cria uma Força Pública Nacional, que se
comporta como Polícia Militar, com funções específicas de Polícia Militar, mas é
Federal, da União. É uma figura estranha...
José Carlos Couto de Carvalho – No Brasil há uma série de
problemas a serem resolvidos. Uma das primeiras coisas que seriam necessárias
é acabar com esse problema de competência, porque isso leva à impunidade.
Essa questão nossa não está bem-resolvida, porque o Supremo não entende
como o STM. Esse é um problema muito sério para as Forças, porque eles
estão no Brasil inteiro, com o policiamento naval, o policiamento de fronteiras,
por exemplo.
Memória MPM – Qual é o entendimento que se tem em relação às
missões militares do Brasil no exterior, como no Haiti e na base da Marinha na
Antártida?
José Carlos Couto de Carvalho – Temos um fato interessante, que
o processo comum desconhece: a extraterritorialidade da Lei Processual Penal
Militar, a qual pode alcançar fatos praticados no exterior se a Força estiver fora
475
HISTÓRIAS DE VIDA
do território nacional. Então, por exemplo, não se faz julgamento lá, a não ser
em tempo de guerra. Inclusive trabalhei em uma máquina que acompanhou a
Justiça Militar na Segunda Guerra Mundial. A guerra acabou em 1945 e eu
entrei em 1967 e, na Auditoria da Aeronáutica tinha uma dessas máquinas
que havia pertencido às Forças Expedicionárias. Há uma previsão no Código
para que uma Auditoria acompanhe cada Força quando houver uma expedição
no exterior, e uma acompanhou a da Segunda Guerra Mundial. Porém,
atualmente não existe uma Auditoria no Haiti, o processo que se aplica hoje
nas expedições do Brasil no exterior, não sendo em tempo de guerra, é apenas
a parte de inquérito, ou do flagrante. A competência pelo julgamento é de uma
Auditoria da Capital da União, no Distrito Federal. Ou seja, o flagrante e o
inquérito do crime praticado no exterior são lavrados e feitos no local e depois
vêm para o julgamento no Brasil.
Memória MPM – E como se dá a relação com a ONU?
José Carlos Couto de Carvalho – Há protocolos. Uma das cláusulas
estabelece que cada um seja julgado conforme sua nacionalidade. Por exemplo,
se houver um problema no Haiti, o haitiano é julgado pela Justiça do país
dele e o brasileiro pela Justiça do Brasil. Mas a extraterritorialidade é apenas
para questões anteriores ao juízo, como a abertura de inquérito e o flagrante.
Na Justiça Comum não se pode fazer isso, não se pode prender alguém em
flagrante fora do território nacional.
Memória MPM – Se houvesse algum caso sendo investigado em relação
às Forças Armadas no Haiti, seria enviado um investigador para lá?
José Carlos Couto de Carvalho – Inicialmente seria instaurado
o inquérito pelo comandante da Força, mas como o Código prevê várias
476
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
hierarquias, se fosse um caso em que abrangesse até o comandante, aí sim
poderia ser encaminhada outra autoridade, superior a ele. Porque na nossa
Justiça não existe a Polícia Judiciária constituída. Quem é da Polícia Judiciária
Militar? Os comandantes, até os da Unidade, que são dotados de poder de
Polícia Judiciária. Não existe uma Polícia. Mas pode ser nomeado um general,
por exemplo, para instaurar o inquérito. Nosso Código ainda tem disposições
severas para o tempo de guerra, inclusive o rapto, que já foi revogado na
legislação comum. E essas disposições não foram revogadas na Justiça Militar,
porque o tempo de guerra é muito sério. Redigi um artigo com a minha filha,
para o Ministério da Justiça, em que fizemos um levantamento do tempo
de guerra e constatei um fato interessante: um soldado brasileiro estuprou
uma nonagenária; ela resistiu e ele a agrediu. Noutro caso rumoroso, dois
soldados embriagados estupraram uma menina de 14 anos e mataram o tio,
que chegou no momento e tentou defendê-la. A Justiça Militar cumpriu seu
dever condenando à morte os acusados. Houve posteriormente anistia para os
que cometeram crimes em tempo de guerra, excluída essa condenação. Os dois
acabaram indultados no Brasil pelo Getúlio Vargas, com base em um parecer
do Roberto Lira, que de jurídico não tinha nada, pois sustentava que os dois
teriam matado por serem “mulatos rejeitados”. De modo geral, os brasileiros
eram muito queridos na Itália, mas havia esses casos, sexuais, pontuais, que
deviam ser fortemente reprimidos.
Memória MPM – O senhor participou do processo de confecção da Lei
Orgânica do Ministério Público da União?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim. Foi uma experiência
muito interessante, porque tínhamos certa desvinculação com o Ministério
Público Federal. Foi uma luta! Tivemos de lutar pelo direito de atuar junto
477
HISTÓRIAS DE VIDA
ao Supremo, como o MPF, pois a Constituição prevê caber recurso ao
Supremo das decisões de única instância do STM, como, por exemplo, um
habeas corpus – na Justiça Militar é o STF que os julga. O projeto em si, do
Ministério Público da União, na verdade, foi aprovado sem muita noção do
que se estava aprovando. Quando descobri que a nossa Lei Orgânica estava
para sair, fui conversar com o deputado Roberto Freire, líder do governo, que
me disse que ela não entraria para discussão tão cedo. Porém, no dia seguinte,
foi votada. Então eu e o Marco Antonio Pinto Bittar lutamos juntos para
conseguir o melhor posicionamento do Ministério Público Militar, em
termos de identificação com a estrutura do Ministério Público da União,
como o cargo de sub-procurador-geral. Nossa luta foi realmente para que
ficássemos prestigiados. Eu era representante de entidade de classe nesse
momento. Ainda temos o problema do inquérito civil público. O Ministério
Público Militar muitas vezes constata questões, como as ambientais, mas não
tem atribuição competente para instaurar ações. Essa fronteira é suscetível
de discussões. Há casos de inquéritos civis propostos pelo Ministério Público
Militar, porém, ação civil não pode. Por esse motivo até pensamos na questão
da transação e na possibilidade de um Termo de Ajustamento de Conduta,
que caberia não somente nas questões ambientais em áreas militares, mas
na saúde, no patrimônio histórico. Há um ofício de um procurador-geral
da República, determinando que as Forças não atendam aos pedidos do
Ministério Público. Mas foi um caso isolado, pois, em geral, os pedidos têm
sido admitidos. Para evitar o conflito de atribuições acredito que tais questões
deveriam ser melhor delineadas.
Memória MPM – E o trabalho com a Defensoria Militar? O senhor
atuou junto a ela?
478
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, atuei. Quando comecei, existia
o cargo de advogado de ofício, cujos titulares sempre se desempenharam muito
bem. Diversos alunos meus ingressaram depois na Defensoria. O advogado de
ofício é o embrião da Defensoria no Brasil. Os defensores são importantes, em
vários sentidos, até porque eles têm levado questões relevantes ao Supremo.
Memória MPM – Em relação à sociedade em geral e à imprensa, como
o senhor pensa a percepção sobre a jurisdição militar e sobre o Ministério Público
Militar, especificamente?
José Carlos Couto de Carvalho – Por mais que os esforços tenham
sido desenvolvidos, persiste um desconhecimento problemático. Eu fiz a Escola
Superior de Guerra e, na própria ESG, os militares não têm uma noção correta
do que seja a Justiça Militar ou o Ministério Público Militar, até mesmo do que
é o Ministério Público em modo geral. É comum as pessoas acreditarem que o
promotor está às ordens do juiz, ou do governo. Até entre jornalistas há opiniões
que revelam falta de conhecimento sobre a competência e o funcionamento da
Justiça Militar, nos chamando de “generais de pijamas”. Personagens assim
até existiram naquele Tribunal Marítimo, um órgão administrativo que julga
acidentes de navio, que existe ainda hoje. Mas na Justiça Militar não é assim.
As pessoas não sabem que existem civis no Ministério Público Militar. Há,
sim, um desconhecimento enorme. Um fato interessante é que embora as
Forças Armadas tenham prestígio junto à população, a Justiça Militar segue
desconhecida, e muitas vezes desconsiderada, inclusive nas próprias Faculdades
de Direito. Já participei de programas que procuravam reverter esse quadro. No
Rio de Janeiro, o Comando do Exército promovia palestras para os alunos
dos cursos de Direito, no mês de julho. Muitos daqueles ouvintes vieram
estudar comigo e se encantaram com o Direito Penal Militar. Fui professor na
479
HISTÓRIAS DE VIDA
Universidade Gama Filho também, instituição que, aliás, não é mais o que foi.
Houve lá má gestão. Professores e funcionários foram lesados.
Memória MPM – De vez em quando ainda ouvimos discursos por aí
pelo fim da jurisdição militar...
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, inclusive dizendo que nosso
Código é um decreto-lei. Mas não sabem que o Código Comum também é.
Ambos são do período de Getúlio Vargas. No caso da Justiça Militar da União,
é preciso lutar contra o esvaziamento da jurisdição. Há uma tendência, por
exemplo, para retirar os civis da competência da Justiça Militar da União. Na
estadual, essa competência já não existe. Mas na jurisdição federal, o reflexo
é muito grande em termos de civis. Por exemplo: existe furto em unidades
militares porque há receptadores, que são civis. Então, o crime é conexo. Nós não
podemos separar quem vendeu de quem comprou. Outro exemplo é a questão
das pensões militares: quando um sujeito morre, um familiar, na maioria das
vezes civil, pode conseguir enganar a administração e se apropriar da pensão.
Existiam os crimes culposos cometidos por civis contra o patrimônio militar,
como viaturas, os quais hoje o Supremo já tirou da competência da Justiça
Militar, porque na legislação comum também não existem mais.
Memória MPM – Como as coisas funcionam na base da Marinha na
Antártida? O que ali acontece é ou não atribuição da Justiça e do Ministério Público
Militar? E como é o tratamento aos civis que estão lá?
José Carlos Couto de Carvalho – Pelo sistema atual, qualquer
crime praticado lá, que atente contra as instituições ou contra os militares,
é considerado crime militar, como, por exemplo, aquele incêndio que
destruiu a base. O artigo 9º tem duas vertentes: a dos crimes praticados
480
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
por militares e a dos crimes praticados por civis, contra militar em serviço,
contra o patrimônio sob administração militar, sendo coautor, como em
peculato, por exemplo. Esse artigo é bem delineado. No inciso I, são crimes
previstos apenas na Legislação Militar, como a deserção e a insubmissão e,
os crimes definidos de modo diverso, porque temos alguns crimes definidos
como “diversos” tanto na Lei Penal Comum, quanto na Militar, como “falso
testemunho”. Na Lei Penal Comum é falso testemunho, no nosso Código é
“falsear a verdade em processo militar”, etc. Por isso tem a definição diversa,
o legislador coloca um plus. Outro exemplo é dar ensejo à instauração de
processo, um tipo de denunciação caluniosa. A autoacusação falsa de um
crime militar também se encaixa em crimes diversos. A autoacusação falsa
tem na legislação comum? Sim. Mas na nossa é diferente, a definição é
diversa, porque ele se acusa da prática de um crime militar, o que às vezes
acontece. O ator Tarcísio Meira Filho foi vítima de um atentado cometido
por um contraventor chamado Waldemir Paes Garcia, mais conhecido como
“Maninho”, assassinado posteriormente. Na ocasião, a namorada desse
sujeito começou a olhar para o Tarcísio, por isso o Maninho disparou contra
ele com arma de fogo, mas acabou acertando um amigo do rapaz, que estava
com ele e ficou paraplégico. Um tempo depois um sujeito apareceu, dizendo
ser o responsável pelos disparos, mas quando foram fazer a reconstituição
ele não sabia nem como segurar a arma. Ou seja, era uma autoacusação falsa
para proteger o tal de Maninho. Esse caso foi um crime comum, mas se fosse
cometido por um militar e, o sujeito se autoacusasse indevidamente, seria
crime militar. O delineamento pelo Código é fácil, o problema é que existem
algumas interpretações do Supremo que afirmam não haver crime militar se
não houve atentado contra as instituições militares.
481
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – No caso da base da Antártida, digamos que um
pesquisador civil de uma Universidade cometa um crime qualquer contra outro civil,
mas dentro da base. Como fica?
José Carlos Couto de Carvalho – Nesse caso é crime comum. Mas
mesmo aqui no Brasil, em tempo de paz, pelo artigo 9º, é considerado comum,
pois diz que crimes praticados em lugares sujeitos à administração militar só
são de competência da Justiça Militar se o civil o cometer contra militar em
serviço, entre outras situações. Civil contra civil, mesmo dentro da base militar,
é crime comum.
Memória MPM – Mas, nesse caso, com o crime tendo sido cometido
em área de administração militar, o inquérito seria feito pelo comandante da
unidade?
José Carlos Couto de Carvalho – O comandante da base pode
até abrir inquérito para investigação, porque isso não gera nulidade. Se um
inquérito militar for feito até o final, serve para o promotor comum oferecer a
denúncia. Porém, se a pessoa que está sendo submetida ao inquérito entender
que não foi crime militar e alegar estar sofrendo constrangimento, pode entrar
com um habeas corpus e trancá-lo. O artigo 9º tem muitas nuances; digo para
os meus alunos que ele é um jogo de xadrez, pois uma única circunstância pode
mudar tudo. Por exemplo, um sujeito em um guichê de unidade militar, sendo
funcionário civil, se ele ficar intencionalmente com parte do dinheiro de uma
pensionista que foi até lá receber o seu pecúlio pessoalmente, seria estelionato,
praticado por um civil contra um civil, um crime de jurisdição comum. Porém,
se a senhora se engana e entrega o dinheiro a mais para ele, que permanece em
silêncio, sendo funcionário civil da administração, ele está praticando crime
482
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
de peculato contra a administração, mediante erro de outrem e, dessa forma,
se caracteriza como crime militar. Ou seja, essa nuance, até na tipificação do
crime, pode se transformar em comum ou em militar.
Memória MPM – O senhor ajudou a instalar a Câmara de Revisão,
não é? Como foi essa experiência?
José Carlos Couto de Carvalho – Foi muito boa. Na verdade,
fizemos o primeiro regimento e, inclusive, os outros ramos pediram cópia. Nós
fomos pioneiros.
Memória MPM – Existe alguma especificidade em relação à Câmara
daqui com a dos outros ramos do Ministério Público?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim: o nosso MP é só criminal e
os outros ramos têm questões não criminais.
Memória MPM – Possíveis inquéritos cíveis podem chegar à apreciação
da Câmara?
José Carlos Couto de Carvalho – A princípio, não. Nosso processo
se limita à parte criminal. O que é previsto para nosso alcance é o arquivamento
de inquérito, mas por essa questão de conflito de atribuições, até poderia,
dependendo do caso, pois é de competência da Câmara decidir conflitos de
atribuições entre membros. No Direito nunca podemos dizer não, sempre há
um contorno. Meus alunos às vezes me perguntam se algum caso é possível e
eu digo que por enquanto não sei, mas podemos descobrir um dia. Por isso que
os advogados têm sucesso, porque quanto mais conhecimento adquirem, mais
brechas encontram.
483
HISTÓRIAS DE VIDA
de 1993?
Memória MPM – A Câmara foi uma concepção da nova Lei Orgânica
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, foi baseada nela. Um aspecto
interessante foi que havia a possibilidade de eleição para procurador-geral, que
poderia ser até o membro mais antigo. Há uma restrição para esses cargos de
subprocuradores-gerais, como, por exemplo, o vice-procurador-geral de Justiça
tem que ser subprocurador de Justiça, assim como o diretor da Câmara de
Revisão. Todavia, um promotor pode ser procurador-geral de Justiça. De tal
maneira que a Câmara de Revisão previu inicialmente um instrumento de
controle com possibilidade de rever inclusive atos do procurador-geral, mas
esse dispositivo acabou não sendo aprovado dessa forma. Hoje, se o procurador-
-geral arquiva, independentemente do pensamento da Câmara, o caso continua
arquivado. Ela tem poder apenas opinativo, não de decisão nessa questão. Mas,
no projeto inicial, a Câmara faria revisão até nos atos do procurador-geral.
Memória MPM – E o Conselho Superior?
José Carlos Couto de Carvalho – Nos outros ramos do Ministério
Púbico da União o Conselho Superior é eleito, no nosso não. Porque quando
saiu a Lei Orgânica nós éramos apenas cinco subprocuradores, não tinha como
eleger. Posteriormente é que aumentou para treze.
Memória MPM – O senhor chegou a conhecer alguns dos antigos
ministros do STM?
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, conheci alguns e eram
pessoas extraordinárias. O Alcides Vieira Carneiro foi considerado um
dos maiores oradores do Brasil. Conheci também o Georgenor Acylino de
484
JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO
Lima Torres, o João Romeiro Neto, que foi um dos nossos maiores juristas.
O Heleno Fragoso traz, nesse livro que citei anteriormente, vários acórdãos
desses ministros, de forma bem judiciosa, em termos até de problemas de
Segurança Nacional, pois, por incrível que pareça, o índice de absolvição do
Tribunal era grande.
Memória MPM – Os réus de crime de Segurança Nacional quando
ouvidos em audiência diziam que não reconheciam a jurisdição militar...
José Carlos Couto de Carvalho – Sim, essa era uma questão até de
defesa mesmo. Os advogados diziam: “Onde já se viu o Estado ser complacente
com seu próprio ofensor?”. Eles reconheciam o próprio crime, pois estavam
atentando contra o Estado. Mas teve muitas decisões e absolvições; quem tiver
boa vontade vai encontrar.
Antes do período revolucionário, um que foi um grande conciliador
foi o Juscelino Kubitscheck. Porque o processo de deserção fica arquivado até
a captura do desertor, mas havia poucos quando cheguei à Auditoria, pois ele
dera anistia, inclusive aos que haviam conspirado contra ele naquele episódio
de Jacareacanga, de Aragarças. Ao contrário do Leonel Brizola, que colocava
fogo na coisa. Conheci uma senhora que participava do “Grupo dos Onze”.
Era uma conversa fiada! Eles pegaram uns pobres coitados para assinar e
integrar os tais grupos. O Brizola levava essa conversa muito a sério, mas as
pessoas do Rio de Janeiro que conheci desse Grupo eram sem importância,
sem conhecimento de guerrilha. Eu gostava de ouvir o Brizola falar, porque
ele empolgava.
Memória MPM – Há algo mais que o senhor gostaria de registrar?
485
HISTÓRIAS DE VIDA
José Carlos Couto de Carvalho – É muita coisa para ser lembrada...
Bom seria se pudéssemos registrar aos poucos, como o Getúlio Vargas fez com
o diário e assim as coisas não se perdem. Quando a gente começa a rememorar
na entrevista, mais coisas vão aparecendo na memória.
Mas há uma história pitoresca para a qual cabe algum registro. Eu
costumava ir até o STM para pegar carona de volta do trabalho com o meu tio.
Lá conheci o João Ferreira de Araújo, que fora sargento da Marinha. Meu tio
me contava uma história sobre o general Olympio Mourão Filho, que tinha de
receber uma injeção nas nádegas regularmente. No dia em que teve a Passeata
dos Cem Mil, com protestos e gritaria, o Tribunal foi cercado. Diante disso,
o general Mourão Filho teria dito que não queria receber a injeção, porque
se acabasse morrendo naquele dia, não iria querer morrer com as nádegas
furadas [risos]. Muitos anos depois, descobri que o enfermeiro que iria aplicar
a injeção era justamente o nosso colega Ferreira [risos]. O Ferreira formou-se
em Direito e foi nosso colega durante o concurso; foi colega do Oscar Lorenzo
Jacinto, que era da Maçonaria. Ele tem histórias sensacionais.
Memória MPM – Muito obrigado pelo seu depoimento.
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MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Entrevista realizada na residência da entrevistada, em Canela,
no dia 29 de março de 2015, por Gunter Axt.
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Marisa Terezinha Cauduro da Silva nasceu em Porto Alegre no dia 20 de
julho de 1943. Filha de Guaracy Cauduro da Silva e de Nely Silveira da Silva.
De seu primeiro casamento, com Gilson Silva da Fonseca, teve três filhos.
Casou-se, em 2004, com o subprocurador-geral de Justiça Militar Péricles
Aurélio Lima de Queiroz. Começou o curso de Direito em Cruz Alta, no Rio
Grande do Sul, e o concluiu na Universidade Federal do Amazonas, em 1978.
Advogou em Manaus e foi, em seguida, aprovada em concurso para técnica
judiciária da Justiça Militar, ajudando a instalar, em 1979, a secretaria da
Auditoria da 12ª CJM, em Manaus. Em 1984, prestou concurso público para
ingresso no Ministério Público Militar, assumindo como procuradora militar
de segunda categoria, na 1ª Auditoria da Procuradoria de Justiça Militar da 3ª
CJM, em Porto Alegre, em 12 de fevereiro de 1985, onde permaneceu por oito
anos. Exerceu, ainda, o cargo de promotora de Justiça Militar em Juiz de Fora.
Foi promovida, em 21 de fevereiro de 1995, por antiguidade, a procuradora
de Justiça Militar, sendo transferida para o Rio de Janeiro. Em 8 de fevereiro
de 1996, também por antiguidade, foi promovida a subprocuradora-geral de
Justiça Militar. Em 30 de abril de 1997, foi nomeada para o exercício das
atribuições de corregedor-geral do Ministério Público Militar, para mandato
de dois anos. Em 26 de junho de 2000, foi eleita, pelo Conselho Superior
do Ministério Público Militar, para exercer o cargo de vice-presidente, com
mandato de dois anos. Em 9 de maio de 2000, foi designada membro da
Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar, também
para o mandato de dois anos. Em 26 de março de 2002, depois de figurar em
lista tríplice constituída a partir de eleição interna, foi nomeada procuradora-geral de Justiça Militar, tomando posse no dia 8 de abril de 2002. Em 18 de
junho de 2010, aposentou-se voluntariamente.
489
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – A senhora é natural de onde?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – De Porto Alegre.
Memória MPM – Onde a senhora estudou?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Em Porto Alegre. Fiz o
primário no Colégio Venezuela e no Colégio Inácio Montanha. No 2º grau,
fui interna em Canoas, por cinco anos, no Maria Auxiliadora, um colégio só
para meninas. A minha mãe ficara viúva muito cedo, de modo que ela precisou
batalhar para manter a família. Foi trabalhar e obteve bolsa de estudos para
as cinco filhas, contando com minha irmã de criação. Todas estudaram como
bolsistas. Naquela época, esse benefício escolar ajudava a preencher, em parte,
a lacuna causada por insuficiência de vagas na rede de ensino público, essencial
para quem não dispunha de recursos para custear escolas privadas para os filhos.
Quando meu pai faleceu, eu tinha treze anos. Ele faleceu ao meu
lado. Era um domingo de Grenal – o Grêmio Porto Alegrense tinha se sagrado
campeão estadual e ele era gremista “doente”. Minha irmã mais nova, a
Clarice, tinha três anos. E nós íamos a um aniversário. Ele mandou a gente ir
se arrumando e disse para avisá-lo quando estivéssemos prontas. Mencionou
estar com um pouco de dor de cabeça e achava que podia estar com febre.
Deu um problema e em segundos ele estava morto. Foi algo bem chocante.
Segundo os médicos, foi um edema pulmonar. Esse fato marcou minha vida.
Meu pai sempre fora um homem saudável. Era inspetor de Polícia,
instrutor de voo. Ele adorava voar. A gente voava muito com ele, naqueles
monomotores de instrução, teco-tecos. Foi algo tão marcante que, daquele dia
em diante, eu acredito que as pessoas têm uma missão para cumprir aqui, nesse
490
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
plano terreno. Quando Deus chama, vai na hora. Ninguém é mais importante
que ninguém. A vida é frágil e pode ser efêmera. Cada um tem a sua hora.
Memória MPM – Ele que era Cauduro?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, meu pai era Cauduro.
Meus bisavôs, avôs dele, vieram do norte da Itália, num navio, com os oito
filhos, em torno de 1880. Era uma família numerosa. Acho que os Cauduro
são todos parentes, porque vieram da mesma região. Mas a família se espalhou.
Memória MPM – E a sua mãe, tinha profissão?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A minha mãe costurava em
casa. Quando meu pai faleceu, minha avó tinha ficado viúva e morava conosco.
Era a casa das sete mulheres: cinco filhas, a minha avó e minha mãe. O padre
Emílio, do Colégio Anchieta e do Círculo Operário, arranjou serviço para a
minha mãe, um trabalho em um escritório. Depois, ela fez concurso para agente
penitenciária e foi trabalhar no Manicômio Judiciário de mulheres em Porto
Alegre. Ela falava para as senhoras: “As minhas filhas vêm aqui no domingo.”,
quando ficava de plantão. Daí, elas preparavam um bolo. Aquelas senhoras
de cabelo branco pediam bênção para nós. A gente achava meio estranho. As
perigosas, mesmo, ficavam dentro das celas. Todas ali tinham matado alguém.
Bem, mas voltando aos estudos, achei fantástico o internato! Aprendi
a comer banana com garfo e faca...[risos]. Tirando esses exageros, me dei muito
bem com as freiras. Na verdade, aprendi logo que tinha que ser bem amiguinha
delas, porque se não...
Depois de finalizado o 2º grau, me casei, com um militar, recém-
-saído da Academia. Fomos morar em Santa Maria, onde nasceram meus
491
HISTÓRIAS DE VIDA
dois primeiros filhos. Depois, fomos para Foz do Iguaçu, Francisco Beltrão
e voltamos a Porto Alegre, em uma rápida passagem, donde nos transferimos
para o Rio de Janeiro. De lá, para Manaus e de volta para o Rio, onde nos
divorciamos, depois de dezessete anos de casamento. Ele sempre foi um pai
zeloso para meus filhos. No Rio de Janeiro tivemos nossa terceira filha, dez
anos depois de casados. Ela mora em Brasília.
No Rio de Janeiro, comecei a me questionar se a vida seria só isso: uma
casa, cuidar dos filhos... Aquilo me incomodava. Eu dependia integralmente
do meu marido. Tínhamos ido para o Rio de Janeiro porque ele foi cursar
a Escola de Educação Física. Eu desejava voltar a estudar. Quando fôramos
morar em Cruz Alta, retomara os estudos. Passei um ano inteiro estudando
para o vestibular. Conquistei o oitavo lugar depois de ter parado bastante
tempo.
Memória MPM – Fez vestibular onde? Em qual Universidade?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fiz em Cruz Alta.
Memória MPM – Vocês ainda estavam casados, então?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Eu estava com trinta e
dois anos. No segundo ano do curso, fiquei grávida. Mas ela nasceu no Rio de
Janeiro, para onde retornamos para ele cursar a Escola de Aperfeiçoamento
de Oficiais. Eu fui até a Universidade Gama Filho para me matricular, mas
já estava com cinco meses de gravidez, com uma barriguinha. Para ir de
carro, era impossível, tinha que chegar às 4h30 para conseguir uma vaga no
estacionamento. Fui duas vezes de ônibus, mas era difícil. Decidi que não dava
e tranquei a Faculdade.
492
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Quando meu marido concluiu a EsAO no Rio, fomos para Manaus.
Matriculei-me na Universidade Federal do Amazonas e terminei o curso, mas
corri atrás do tempo perdido. Cursei minha Faculdade em quatro anos e meio.
Quando me formei, já trabalhava com um advogado, meu professor, Dr. Ralf
Proença; ele tinha um bom escritório. Para os clientes pobres que chegavam lá,
ele dizia: “Sou um advogado que cobro bem, agora, a minha colega ali, não.”.
Daí, me encaminhava os mais pobres. Era um jeito que ele tinha de atender,
também, aos mais pobres. Para mim foi bem gratificante. Trabalhei muito na
Justiça do Trabalho, para pessoas que precisavam mesmo.
Memória MPM – Essa advocacia foi em Manaus?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Isso, em Manaus. Quando
me formei, o Dr. Ralf começou a me incumbir de audiências judiciais. Ele
tinha horror de avião, então fui a uma audiência em Rio Branco, no Acre,
no lugar dele. Foi minha primeira audiência. Estranhei a diferença de fuso
horário em relação a Manaus. A cidade era muito simples, organizada em
torno de uma praça central. Tinha mais buraco do que asfalto. No restaurante
do hotel, considerado o melhor da cidade, havia apenas uma opção, e tudo o
mais, que constava no cardápio, não tinha na prática. Havia muitas moscas, por
tudo! Depois do almoço, fui descansar. Acordei perto das 16 horas, olhei pela
janela e não enxergava mais a praça, tanto era o pó! Os carros iam passando
e levantando poeira. Era domingo e o pessoal ia passear de carro no entorno
da praça. Eu me formei em Manaus e minha primeira audiência foi no Acre.
Quando cheguei à audiência, estranharam, pois estavam esperando
um advogado e, de repente, chegava “uma fada” – eu aparentava ser mais jovem
do que era. Eu comentei: “Olha, sou tão advogada quanto o senhor, não sou
493
HISTÓRIAS DE VIDA
fada, sou uma advogada.”. O juiz era tão neófito, na condução do processo,
que praticamente conduzi a audiência. Sem exagero. A sentença saiu um ano
depois, favorável à “fadinha”.
Logo em seguida abri um escritório, em Manaus, com uma colega,
muito próxima. Íamos aos maiores escritórios da cidade, a maioria pertencentes
a ex-professores, e dizíamos que estávamos aceitando clientes que eles não
podiam atender, que mandassem para nós, pois estávamos iniciando nosso
escritório, que estava muito bem-instalado. Para diferenciarmos, passamos a
utilizar papel rosa. Em uma audiência, na Justiça do Trabalho, um advogado
reclamou do nosso papel cor-de-rosa. Então, o juiz perguntou: “O senhor está
conseguindo ler? Porque isso é o que interessa e não a cor do papel.”. O juiz
tinha sido nosso professor e nos defendeu, já que o papel rosa não era proibido.
Isso marcava nossa atuação!
Nessa época, abriu concurso para técnico judiciário da Justiça Militar.
Como eu era casada com um militar que estava sempre na iminência de uma
transferência, achei que seria uma boa opção. A Auditoria Militar da 12ª
Circunscrição estava sendo instalada em Manaus e eles queriam servidores da
região. Tirei o primeiro lugar no concurso. Assim, ajudei a instalar a Auditoria.
Um ano depois, assumi a direção da secretaria. Foi bem interessante. Permaneci
cinco anos atuando como servidora da Justiça Militar.
Memória MPM – Como era a rotina da Auditoria? Algum caso que
tenha lhe chamado mais a atenção?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, um julgamento em
que Luiz Inácio “Lula” da Silva, então sindicalista, mais tarde presidente
da República, era réu. Lula fora enquadrado na Lei de Segurança Nacional
494
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
por uma frase proferida em um comício em Brasiléia, no Acre, em 1980. O
comício era em protesto pelo assassinato do presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais do município. Pouco depois, um capataz, acusado
dessa morte, foi linchado por sindicalistas. Lula foi acusado de incitamento
à violência. O julgamento aconteceu em março de 1984. Muitos famosos
compareceram, como a cantora Fafá de Belém, então no auge do sucesso, e a
atriz Dina Sfat. Também estava lá o deputado federal Miguel Arraes. Os réus
foram defendidos por Eduardo Greenhalgh, Sepúlveda Pertence e Heleno
Fragoso, grandes advogados. Foi um acontecimento! Havia muito interesse da
imprensa. Os réus foram absolvidos.
Memória MPM – E o ingresso no Ministério Público?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Durante esse período na
Justiça Militar eu já focava o Ministério Público. Os concursos haviam sido
retomados, depois de longo período, mas se exigia quatro anos de prática
forense. Por coincidência, quando consegui fechar o tempo necessário,
abriram os concursos para a Advocacia de Ofício – atual Defensoria Pública
da União, e o MPM. Fiz os dois concursos. Depois de cinco anos atuando
na função de diretora da secretaria da Auditoria, eu estava muito experiente
e julguei que esse seria o caminho. Obtive o 2º lugar no concurso nacional
para advogado de ofício, e 4º lugar no Ministério Público Militar. Na época,
os cargos da carreira do MPM eram denominados procurador militar de
segunda e primeira categoria, sendo que o cargo dos subprocuradores-gerais
era comissionado. Essa nomenclatura, diziam, atendia à paridade de cargos
com os procuradores da República e procuradores do Trabalho. Fui chamada
para assumir a vaga de advogado de ofício titular na Auditoria da 5ª CJM,
em Curitiba, antes do previsto, pois o candidato, um juiz de Pernambuco, que
495
HISTÓRIAS DE VIDA
passara em primeiro lugar, desistira. Um parêntese: naquela época, os cargos
de advogado de ofício eram providos pelo Superior Tribunal Militar, porque
ainda não havia sido criada a Defensoria Pública da União. Era um quadro
pequeno, com um advogado titular e dois substitutos em cada Auditoria,
cumprindo-lhes a defesa dos praças e dos necessitados. Embora inseridos no
organograma do STM, possuíam completa independência na função, e não
tinham chefia institucional, apenas relação administrativa com o Tribunal. Fui
lá para conhecer a Auditoria, o juiz, o representante do Ministério Público,
todos muito solícitos. Mas como pretendia tomar posse em seguida no MPM,
abri mão da posição no certame. Assim, fui deslocada para o último lugar
da lista de aprovados. Logo em seguida, saiu a nomeação dos aprovados do
concurso do Ministério Público e escolhi a lotação em Porto Alegre, minha
cidade natal! Assim, ingressei efetivamente no Ministério Público Militar.
Quando assumi na capital gaúcha, fui morar com minha mãe, na casa
dela na Glória, um bairro de classe média, tipicamente familiar. No primeiro
dia chamei um táxi, para ir à Procuradoria; saí de casa, com minha beca de
promotora dobrada sobre o braço, e uma pasta. Minha mãe me levou até o
portão. Como as vizinhas ficaram todas olhando, ela, que lutara tanto para
estudarmos, falou, orgulhosa: “Minha filha é procuradora!”. A satisfação e o
orgulho da minha mãe retribuíram todo o esforço que eu fizera para chegar ali.
Afinal, ela se sacrificara tanto por nós. Estava radiante!
Memória MPM – Qual foi o ano da sua posse?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Foi em 1985, em 12 de fevereiro.
Memória MPM – E como era a dinâmica do trabalho na Procuradoria?
496
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A infraestrutura era precária,
quase inexistente. Nós trabalhávamos em uma sala muito pequena, nem
posso chamar de gabinete. O procurador João Jayme de Araújo, já antigo na
Procuradoria, me recebeu muito bem, só que eu não tinha mesa para trabalhar!
Os móveis que existiam, mesa e cadeiras, foram instalados lá pelo próprio
Jayme, às expensas dele mesmo. Quando cheguei, gentilmente, como é do seu
feitio, me ofereceu o lugar, mas recusei. Assim, sentei no sofá. Como fazia
dois anos que ele não parava, resolveu tirar merecidas férias. Na ausência dele,
ocupei a sua mesa e cadeira. Como eu era concursada e ele não, passei a ser a
mais antiga, devido à lei. Conhecimento e experiência, tenho certeza, ele tinha
muito mais do que eu. Não tínhamos telefone, nem secretária, nem papel.
Somente uma máquina de escrever manual. Acabava o papel, tínhamos que
pedir o favor à Auditoria de nos emprestar.
Memória MPM – Onde funcionava a Auditoria?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A Auditoria funcionava na
rua General Portinho com a rua Duque de Caxias, onde ainda está. O Jayme
ficou dois meses de férias e me deixou os seus contatos em caso de urgência. Eu
não tinha experiência nenhuma de Ministério Público. Não precisei recorrer a
ele, afinal, porque, quando encontrava dificuldades, consultava os livros. Acho
que, para mim, foi até bom o Jayme ter entrado em férias, pois isso me obrigou
a tomar decisões. Se ele estivesse lá, eu ficaria perguntando. Estudando, a gente
aprende melhor.
O primeiro caso que me marcou no início da carreira foi um acidente
aéreo, acontecido próximo a Porto Alegre, em dezembro de 1984, uns dois
meses, portanto, antes de eu assumir. Uma colisão em pleno ar entre uma
497
HISTÓRIAS DE VIDA
aeronave de caça F-5, da Força Aérea Brasileira e um bimotor civil pilotado por
um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul. O F-5 atingiu o avião privado,
causando-lhe danos que levaram a sua queda, com a consequente morte do
piloto civil. Com muita habilidade e perícia, o aviador militar conseguiu pousar
na Base Aérea de Canoas. O fato repercutiu muito, alcançando destaque na
primeira página do jornal Zero Hora. Uns quinze dias depois de ter assumido a
Procuradoria, recebi uma comitiva da Associação do Ministério Público do Rio
Grande do Sul, que foi lá questionar o andamento do inquérito policial militar
sobre o acidente. Constatei que não havia inquérito nenhum. Prometi tomar
providências. Em função desse episódio, aliás, acabei sendo posteriormente
convidada para me associar à Associação do Ministério Público do Rio Grande
do Sul e até hoje tenho uma ótima relação com os promotores e procuradores
de Justiça deste Estado.
Oficiei ao comandante do Comando Aéreo Regional da FAB em
Canoas, requisitando a abertura do inquérito e o comandante-brigadeiro
me respondeu que não havia necessidade de abrir um inquérito. Oficiei
novamente, e reiterei o pedido da necessidade do andamento legal. Ele me
mandou, como resposta, um ofício de conteúdo arrogante. Liguei para o
procurador-geral, Dr. Milton Menezes e relatei o que estava acontecendo.
Ele recomendou que tentasse mais uma vez, e, caso não obtivesse o resultado
desejado, deveria representar contra o oficial-general. Oficiei mais uma vez;
ele não respondeu, mas enviou um coronel ao meu gabinete para esclarecer
sua negativa. O coronel era formado em Direito e tinha a incumbência de
me convencer a não abrir o inquérito policial. Argumentou que o piloto da
aeronave militar não era culpado. Nessa circunstância, eu disse: “Coronel, vou
lhe falar francamente, se esse inquérito não for aberto imediatamente, vou
498
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
representar contra o comandante”. Ele solicitou usar o telefone da Auditoria,
eu autorizei. Ele foi enfático com o brigadeiro, no sentido da abertura e de
que eu estava correta. Disse-me, depois, que o brigadeiro me convidava para
um jantar na residência oficial do comandante do COMAR, naturalmente
para insistir na sua posição. Aceitei esse desafio. Marcaram dia e horário.
O pessoal falava que eu não deveria ir, que seria constrangedor. Perguntei:
“Gente, o que ele vai fazer? Ele não vai tirar minha convicção!”. Chegou o dia
combinado, o coronel e a esposa passaram na minha residência e fomos juntos.
Fui bem-recebida. Estava lá a esposa do brigadeiro, uma filha e a neta, e esse
coronel com a esposa. Conversamos sobre vários assuntos, menos o inquérito
do acidente. Foi servido um jantar ótimo, ele sentado em uma cabeceira e
eu na outra. Jantamos, cafezinho; no final, ele falou: “Doutora, segunda-feira
abrirei o inquérito.”. Isso era uma sexta-feira. Quer dizer, primeiro ele relutou,
depois, acho que se convenceu de que minha requisição estava perfeitamente
correta. E realmente, o inquérito foi muito bem-conduzido, pelo coronel que
ele enviou para me convencer.
Com aquele inquérito aprendi muitas coisas, como que “vento
tem perna”: são dados técnicos que desconhecia, pois, minha área é jurídica.
A transcrição da gravação da conversa da torre de controle demonstrou que
o promotor que pilotava o bimotor não revelara sua correta posição de voo,
porque a torre reportou-lhe que deveria voar a 2.500 pés, em função de
manobras dos caças, posição que ele confirmou minutos depois. O acidente
ocorreu justamente na rota dos jatos, no chamado “corredor de Butiá”, num
espaço aéreo privativo para o voo dos caças da Base Aérea de Canoas, que
naquele dia realizavam manobras. Depois foi explicado que ele voava abaixo
da altitude solicitada porque isso reduzia o consumo de combustível, e estava
499
HISTÓRIAS DE VIDA
indo para uma cidade próxima a Porto Alegre. O inquérito foi feito, arquivado,
depois a família entrou na Justiça para ser indenizada pela Força Aérea, mas não
obteve sucesso, sendo o IPM considerado uma peça jurídica importante para o
deslinde da causa, em face das perícias e exames técnicos. Anos mais tarde, eu
já não estava mais em Porto Alegre, pediram para ser reaberto o inquérito, pois
haviam localizado novas testemunhas que teriam visto o choque dos aviões.
Mas, realmente, foi só abrir e encerrar novamente, pois a ilusão de ótica nesse
caso é fantástica. Não seria possível acolher um depoimento de alguém que
estava em solo e pudesse contribuir com informações de um fato ocorrido a
mais de 3.000 pés de altitude. Esse processo foi marcante.
Em dezembro, eu estava de férias em Porto Alegre, e nunca pensei
que a notícia que lera na capa da Zero Hora seria meu primeiro caso. Mas,
a despeito de toda a tragédia, o Ministério Público Militar começou a se
relacionar com o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, e
isso foi um desdobramento positivo. O Ministério Público Militar em Porto
Alegre era pequeno, três membros apenas. Não tínhamos solenidades ou
eventos. A partir do inquérito, passamos a ser convidados para as solenidades
do Ministério Público do Estado.
Memória MPM – Em 1985, entrando no Ministério Público,
promotora, jovem, na área militar, chegou a sentir algum tipo de estranhamento pelo
fato de ser mulher?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Existiam, já, algumas
procuradoras militares, mas poucas. No Rio Grande do Sul, tinha passado
uma colega cujo marido era de Bagé, para onde então ela foi. Em Porto
Alegre, contudo, quando cheguei, houve certo estranhamento. Não do Jayme,
500
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
com certeza. Mas eu senti que havia quem achasse que mulher poderia ser
mais maleável, menos firme. Eu nunca fui assim, pelo contrário! O ministro
Eduardo Pires Gonçalves, nosso procurador-geral no final dos anos 1980,
dizia que eu era uma procuradora “carne de pescoço”. Acho que denunciar
alguém no âmbito de um processo criminal é uma carga muito pesada, que, às
vezes, pode ser carregada ao longo de toda uma vida, de modo que eu sempre
examinava os processos procurando elementos que me permitissem ter a
convicção sobre meu posicionamento, em especial para oferecer a denúncia.
Convencida da necessidade de denunciar, ia até o fim. Se o juiz optasse pela
absolvição, recorria até a última instância. Não desistia.
Memória MPM – Talvez haja uma imagem de que a juíza ou a
promotora sejam mais sensíveis, mais tolerantes. A senhora acredita que há um olhar
feminino sobre o exercício da profissão, diferente do masculino?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Acho que pode haver, sim,
mais sensibilidade para examinar uma questão, mas não tolerância. Porque,
sensibilidade, acho que faz parte também do gênero feminino. Mas, creio
que aplicar a lei e ir a fundo naquilo em que se acredita, não compromete
a sensibilidade. As mulheres podem demorar mais para formar o seu
convencimento, porque avaliam uma questão sob múltiplos ângulos. Mas, ao
fazê-lo, podem se revelar bastante firmes na defesa de suas convicções.
Memória MPM – A senhora seria um exemplo nesse sentido?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Recordo-me de um episódio
em que dois rapazes de uns dezoito anos (não estavam servindo no Exército
ainda) foram presos fumando maconha em área militar, no Morro Teresópolis,
em Porto Alegre, onde havia um quartel. Eram moradores das imediações
501
HISTÓRIAS DE VIDA
do morro. Foram presos em flagrante: dois jovens da periferia, sem trabalho,
de família pobre. O crime seria configurável, numa perspectiva formalista.
Há juízes que não hesitariam em condená-los. A juíza negou o pedido de
relaxamento da prisão. Entrevistei os rapazes no meu gabinete, em companhia
das mães. Era gente simples. Disse-lhes: “Arranjem um trabalho, agora, hoje!
Jardineiro, cortador de grama, enfim, porque o advogado vai entrar com um
habeas corpus para vocês serem libertados.”. Eles prometeram e assim o fizeram.
O Tribunal concedeu o habeas corpus. O Ministério Público tem de defender a
lei, a justiça e não se comportar como um carrasco. A lei precisa ser cumprida,
mas não é possível que seja aplicada sem que se leve em consideração o contexto
humano. É assim que caracterizo a sensibilidade à qual me refiro. Condenar
dois coitados, que mal tiveram acesso à educação, que estavam começando as
suas vidas?...
Mas a juíza ficou inabalável e designou uma inspeção, no local do
fato, para se certificar que estavam efetivamente em uma área militar. Subimos
o morro, a juíza, os membros do Conselho, eu, a defensora, para ver se realmente
era área sob administração do Exército. Um dia frio de agosto, em meio a um
inverno rigoroso. Precisamos subir a pé. Nem demarcação explícita do terreno
havia: eram mato, grama, árvores... Concluímos a diligência e apreciamos uma
vista linda de Porto Alegre. Hoje recordo como um episódio pitoresco...
Nacional?
Memória MPM – Havia algum processo relativo à Lei de Segurança
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, nenhum. Acho que a
competência já estava saindo da Justiça Militar nesse momento. Estávamos
nos encaminhando para a reconstitucionalização do país.
502
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Memória MPM – Qual era a rotina do trabalho na Procuradoria?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Havia muita incidência
de deserção, principalmente no quartel de Cavalaria. Os jovens iam servir
na Cavalaria sonhando em cavalgar, mas a rotina no dia a dia com a qual
se defrontavam era bem mais dura. O serviço de limpeza de baias, escovar
cavalos, limpar os cascos, em seu conjunto, é pesado.
Também encontrei alguns casos de peculato, coisas bem graves até,
de desvio de verba e mercadoria, envolvendo oficiais. Nesses casos, fui bastante
dura, porque se tratava de desvio de verbas públicas cometido por oficiais
encarregados de administrar bens das Forças Armadas. Inaceitável!
Outro caso que me marcou bastante foi um erro médico, cometido
por um tenente, ou capitão, anestesista, em uma cirurgia. Na hora de entubar
uma paciente, ao invés de colocar na traqueia, colocou o oxigênio no esôfago. O
cirurgião começou a fazer a incisão e percebeu que o sangue dela estava muito
escuro, identificando a falha. Ela teve sequelas: seis meses em coma, tomou
cortisona e engordou, ficou toda trêmula. Nos autos, estavam os desenhos que
ela fazia à nanquim e aquarelas lindas! Ela cantava em um coro e tinha uma
voz belíssima. Havia as fotos dela, antes e depois. Deixou de pintar, de cantar.
Uma coisa absurda!
Memória MPM – Ela era militar? Esposa de um militar?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Era esposa de um
subtenente, se não estou enganada. O advogado do réu, muito experiente, um
juiz aposentado, o Dr. Dariano, já falecido, era uma figura fantástica! Eu o
admirava muito. Eloquente, conseguiu absolvê-lo. Claro, eu recorri! Depois, o
503
HISTÓRIAS DE VIDA
Tribunal transformou a decisão e o réu foi condenado, perdendo a função.
Foi um erro muito crasso. Quando acabou o julgamento (o Dr. Dariano em
uma semana faria uma cirurgia), disse-lhe: “Ah, já que esse anestesista lhe
pareceu tão bom, contrate-o.”. Ele falou “Você está louca! Você é minha
amiga ou o quê?”.
Memória MPM – Qual era a área jurisdicionada pela Procuradoria
em Porto Alegre?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A Grande Porto Alegre,
incluindo a Base Aérea de Canoas e a Capitania dos Portos, em Porto Alegre,
onde havia muito problema com a falsificação de Carteira de arrais amador.
Memória MPM – E de Porto Alegre, para onde a senhora foi?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fiquei oito anos em Porto
Alegre e foi gratificante, porque tinha minha mãe, minhas irmãs, meus
filhos. Estava sempre com os filhos e isso me deixava muito satisfeita. Mas
sentia que a carreira precisava andar. Queria ir para o Rio de Janeiro. Aí o
procurador-geral falou: “Vá para Juiz de Fora, que depois você consegue ir
para o Rio.”. Fui para Juiz de Fora, onde fiquei dois anos e meio.
Lá também não tinha uma Procuradoria instalada. Havia uma sala
no Juízo com uma escrivaninha, e só. Em Porto Alegre, eu tinha conseguido
uma mesa de trabalho com o juiz, que a retirara do depósito. Era uma mesa
de madeira compensada; saíam lascas inteiras dela. Então, em Juiz de Fora,
dividia a mesa com o hoje ministro Olympio [Pereira da Silva Junior]. Eu já
o conhecia, pois quando fui diretora de secretaria em Manaus, ele substituiu
um membro, justamente naquele julgamento do Lula e a gente lhe deu apoio.
504
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Então, ele sentava de um lado e eu, do outro da mesa. Hoje, a gente conta
isso e ninguém acredita.
Depois, o Olympio conseguiu um imóvel para instalar a Procuradoria.
Foi a primeira sede da Procuradoria em Juiz de Fora. Ficava imediatamente
ao lado da estrada de ferro. Quando o trem passava, aquilo tudo tremia. Não
conseguíamos nem falar com aquele barulho. Eram aqueles trens de carga,
com muitos vagões. Ao final do dia, nosso cabelo ficava cheio de pó de cupim,
que caía da cobertura interna. Pela manhã, encontrávamos as mesas cobertas
desse resíduo dos cupins. Mas para nós era gratificante ter um espaço nosso.
Tínhamos telefone, nosso papel, e até um secretário administrativo. Brasília
enviara-nos um servidor para o apoio de secretaria.
Memória MPM – E mudou a natureza dos feitos em relação a
Porto Alegre?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Olha, lá era bem mais
tranquilo. Verificava-se, também, a incidência de deserção. Mas, em geral,
era tudo muito pacato, devagar quase parando. Se bem que houve um caso
rumoroso de um subtenente que assassinou um tenente. O subtenente se
separou da mulher – em Brasília – e ela foi morar em Sete Lagoas, onde
começou a namorar esse tenente. O subtenente saiu de Brasília, foi direto para
Sete Lagoas, à casa da mãe dessa mulher, onde, perguntando por ela, descobriu
que fora a um baile com o tenente, que estava hospedado no hotel militar. O
subtenente foi ao hotel, lá pelas duas horas da madrugada, e mentiu para o
guarda, dizendo que estava hospedado; se escondeu nos arbustos e matou o
tenente quando ele chegou... É difícil de acontecer um homicídio passional
dentro das Forças Armadas.
505
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – E no Rio de Janeiro?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fui para o Rio em 1995, mas,
um ano depois, em fevereiro de 1996, aceitei a promoção a subprocuradora-
-geral, indo para Brasília. No Rio, foi gratificante o convívio com vários colegas
que lá estavam... Eu promovia jantares em minha casa. Os juízes também
participavam desse convívio agradável, afinal, a Procuradoria ainda se abrigava
dentro da Auditoria. Mas foi uma passagem breve.
Após várias consultas, sobre o desejo de ser promovida, aceitei.
Mas, no início de 1996, achei que tinha finalmente chegado o momento.
Fui para Brasília num contexto peculiar, já como candidata a procuradora-geral no pleito de março de 1996. Vê que ousadia! Mas foi porque os colegas
do Rio queriam um candidato que fosse de lá. Eu me relacionava bem com
todos e aceitei concorrer. Em Brasília, foi uma decepção grande, porque no
primeiro grau há sempre muita comunhão entre os colegas. Há amizade,
entrosamento. E achei que em Brasília também seria assim. Na realidade, não
era. Parecia que sempre alguém queria sobrepujar os demais. Eu fui, vamos
dizer, de “sangue doce”. Achando que se fosse eleita o pessoal iria ajudar.
Mas era ingenuidade e entrei de gaiata nessa eleição. Naturalmente, elegeuse colega que já estava em Brasília havia muito tempo, bastante político, o
Kleber [de Carvalho Coêlho]. Quem me recebeu em Brasília foi o Péricles
[Aurélio Lima de Queiroz], pois ele estava na condição de procurador-geral
interino. O anterior, Marco Antonio Pinto Bittar, renunciou ao cargo em
dezembro de 1995, aposentando-se antes do final do mandato, de sorte que
ele assumira interinamente; promoveu a eleição e ficou até a posse de Kleber,
no início de abril de 1996, quando foi escolhido vice-procurador-geral. Em
abril de 1997, fui nomeada corregedora-geral.
506
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Memória MPM – Como foi essa nomeação?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – O titular renunciou. Primeiro
assumi na condição de primeiro suplente de corregedor-geral, mas, em seguida,
fui eleita pelo Conselho Superior por unanimidade, que me confirmou no
cargo por dois anos. Os que pretendem ocupar a vaga candidatam-se e a
votação acontece no Conselho Superior, que elabora uma lista tríplice, a partir
da qual o procurador-geral faz sua escolha. Ele me chamou ao gabinete para
me comunicar a sua decisão. Eu disse que aceitaria, se pudesse implantar as
correições nas Procuradorias, que, até então, não eram feitas. Nesse sentido,
estávamos atrasados em relação aos outros Ministérios Públicos, nos quais o
corregedor fazia inspeções, cobrava relatórios, orientava sobre como proceder.
Não existia nada disso no MPM. Quando assumi, uma turma de promotores
que já estava no quarto mês do estágio probatório não tinha passado por
nenhuma inspeção. Não havia nem pastas individuais para eles! Comecei
a fazer as visitas e instalei as correições, que hoje são um procedimento
plenamente incorporado. Passei, também, a integrar o Conselho Nacional
de Corregedores, órgão no qual atuei como secretária. Foi uma experiência
estimulante perceber a dinâmica ministerial numa perspectiva nacional e em
todas as suas variantes.
Memória MPM – Não foi reconduzida ao cargo de corregedora-geral?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, por questões políticas,
suponho. O procurador-geral da época tinha as suas preferências. A maioria
das sessões de Tribunal quem fazia era o vice-procurador-geral, que era
o Péricles. Então, ele tinha tempo para se dedicar à política institucional.
Tenho a impressão que ele achava que, nas minhas correições, eu fazia alguma
507
HISTÓRIAS DE VIDA
articulação com vistas a uma futura eleição. Mas o meu trabalho sempre foi em
prol da correição, eminentemente técnico. Embora já tivesse me candidatado
uma vez, não tinha como projeto de vida ser procuradora-geral. Eu apenas
aceitara uma indicação dos colegas, naquela oportunidade. Enfim, se eu fosse
reconduzida, continuaria visitando as Procuradorias e teria um contato mais
estreito com todos os colegas.
Memória MPM – Mas por quê? O mandato de um procurador-geral é
de dois anos, renovável por mais dois: quatro anos é o tempo máximo de permanência.
Se ele fora eleito em 1996 e reeleito em 1998, seu mandato se encerraria em 2000. É
isso? Por acaso, ele queria mudar a lei para conseguir uma segunda recondução? Ou
estava comprometido com um candidato?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Pois é, talvez você tenha
“matado a charada”... Se na Lei Orgânica fosse inserido o “podendo ser
reconduzido”, não importaria mais por quantos anos: alguém poderia
permanecer ad aeternum na posição. Sempre fica um colega durante as férias,
de plantão. Em 2000, casualmente, em janeiro, eu estava em Brasília. E
soube, também casualmente, que o presidente da República havia enviado ao
Congresso um projeto para mudar nossa Lei Orgânica, de modo a permitir
eleição sucessiva sem limite para o procurador-geral. O procurador-geral Kleber
havia feito gestões políticas junto ao Executivo e havia logrado êxito. Não
recordo quem me alertou para isso: “Marisa, te vira aí.”. Consegui me reunir,
no início da manhã, com um grão-mestre da Maçonaria, e relatei o assunto.
Ele me pegou pelo braço e me levou, naquele momento, diretamente para o
Congresso, porque o projeto seria votado à tarde. Falamos com o deputado
Antônio Carlos Biscaia, do Partido dos Trabalhadores, que fora procurador-geral do Rio de Janeiro. Ele mobilizou os colegas. Também conversamos
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MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
com o Agnelo Queiroz, do PCdoB, que foi governador do Distrito Federal.
Em outubro, tinha havido um congresso da CONAMP, Associação Nacional
dos Membros do Ministério Público, em Curitiba, e uma das conclusões era
que não se proporiam mudanças na Lei Orgânica do MP sem prévia e ampla
discussão sobre o assunto. E, neste caso, estava havendo articulação dissimulada.
Memória MPM – Uma alteração na Lei Orgânica afetaria todos os
ramos do Ministério Público da União.
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Eu tinha essa
resolução em mãos. Ao vê-la, o então deputado Agnelo Queiroz se inscreveu
imediatamente para debater o assunto na tribuna. Estavam em andamento
sessões extraordinárias. Iria “passar batido”, em pleno recesso. Corríamos
o risco de “fujimorização” do Ministério Público. Disse-lhe isso. Por volta
das seis horas da tarde, o deputado Antônio Carlos Biscaia me telefonou
dizendo: “Doutora, a senhora venceu!”. Respondi: “Não, não fui eu, mas o
Ministério Público quem venceu”. Diz-se que o deputado Agnelo foi para
plenário com uma folha enorme que brandia: “Querem a ‘fujimorização’ do
Ministério Público!”, usando exatamente minha expressão. Bom, quando eu
saí da Procuradoria naquele dia, pela garagem, os motoristas me felicitaram:
“Parabéns, doutora!”, porque não havia concordância com essa mudança.
Memória MPM – Bem, ele era conhecido por ser dado a arroubos.
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Contam-se muitas estórias!
Principalmente dos acessos de impulsividade!
Memória MPM – Mas vocês chegaram a fazer uma viagem oficial
juntos, não é?
509
HISTÓRIAS DE VIDA
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, em 1998, quando eu
ainda estava na Corregedoria-Geral fomos convidados para visitar oficialmente
a República de Angola; o país ainda estava em guerra civil.
Memória MPM – Por que Angola?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Em Brasília, os adidos
militares das Embaixadas visitam a Procuradoria-Geral de Justiça Militar e a
partir daí se fomenta uma interlocução. Em Angola, queriam entender como
funcionava o nosso processo penal militar e a nossa Justiça Militar, porque
estavam empenhados em encontrar caminhos institucionais para o pósguerra, e, dar tratamento correto aos crimes militares, era algo que adquiria
centralidade nessa dinâmica. Estabeleceu-se um intercâmbio.
O país estava semidestruído. Não podíamos colocar o pé fora
do hotel sem um forte aparato de segurança nos acompanhando. Fomos a
Namíbia visitar uma base de mísseis, e à Lubango, duas províncias distantes
da capital, Luanda. Viajamos pelo interior. A experiência foi interessante,
instrutiva. Compensava, o ambiente de tensão decorrente do quadro de guerra,
a gentileza dos militares e do pessoal do Governo, que se esforçavam para
que nos sentíssemos confortáveis. E foi uma oportunidade única, porque
pudemos conhecer, também, o interior do país e a aplicação da Justiça Militar
em operações de guerra.
Mas esse esforço era em parte neutralizado porque, de certa forma,
estávamos sempre em sobressalto em função das reações do chefe da comitiva.
Ele se apegava a detalhes, de imagem, status e protocolos, e se comportava
com arrogância, especialmente com funcionários e prestadores de serviços,
como se todos lhe devessem obediência e submissão. Esse clima já começou
510
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
no aeroporto, no Rio de Janeiro. Eram pequenas coisas, que acabavam
incomodando, gerando uma tensão desnecessária.
Mais tarde, em outubro de 2002, quando então eu já era procuradora-
-geral, fomos novamente a Angola. O país já estava pacificado. Luanda estava
reconstruída, com viadutos, avenidas, inúmeros prédios públicos e privados.
Foi uma experiência bem interessante e foi gratificante ver o país se refazendo.
Houve um episódio pitoresco. Como costumava acontecer nessas
ocasiões, ofereceram um jantar para nós. Creio que era no Hotel Sheraton, na
orla, um lugar lindo! Havia diversos convidados ilustres. O procurador-geral
da República e o ministro da Justiça de Angola se posicionaram na entrada,
recepcionando os convivas. O procurador-geral me apresentou, só que, nessas
apresentações rápidas, geralmente não se grava o nome. Ficou meio nebuloso
quem eu era. Logo em seguida, o ministro da Justiça vira para o procurador-geral e pergunta: “Escuta, o procurador-geral não vai vir?”. “Mas chegou há
muito tempo, é a Dra. Marisa!”. “Como? Uma mulher?”. “Sim, senhor!”. Ele
levou um susto! Como uma mulher?... Depois, nos outros dias em que a gente
se encontrava, ele passava por mim e falava, mexendo a cabeça: “Sim, senhor.
Sim, senhor.”. Ficou muito impressionado que o procurador-geral de Justiça
Militar do Brasil fosse uma mulher [risos].
Voltamos a Angola no ano retrasado. Dessa vez, fui acompanhando
o Péricles, porque ele foi convidado para ministrar uma palestra. Portanto, fui
três vezes a Angola.
Memória MPM – Chegou a haver a eleição para a recondução da
Corregedoria?
511
HISTÓRIAS DE VIDA
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Houve. Eu me candidatei.
O procurador-geral queria que formasse uma lista tríplice. Mas os colegas já
sabiam que ele não queria me nomear. Então, ninguém entrava na lista, só
eu. Tomou uma decisão em desacordo com a lei: nomeou-me, interinamente,
para não ter de me nomear definitivamente. Não existe essa figura. Então,
fiquei respondendo interinamente. Depois de um ano nessa interinidade, outro
colega foi nomeado. Ser corregedor é uma enorme responsabilidade! Tive casos
em que colegas me ligavam às 5 h 30 min da manhã, 6 h da manhã. E você tem
que ouvir o colega, tem que orientar.
Recordo-me de um episódio envolvendo uma colega no Rio, que
tinha dificuldades de relacionamento funcional com os servidores. Abrimos
uma sindicância. Ouvi dezesseis pessoas, todas desfavoráveis à colega. Ela
estava desajustada dentro daquele sistema. Ser corregedor não é brincadeira.
Você tem que orientar e se for o caso, promover a correição e punir.
Memória MPM – Chegou a aplicar alguma punição como corregedora?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não exatamente, porque os
casos são levados ao Conselho Superior, que abre um inquérito administrativo,
uma sindicância. Mas é o corregedor quem leva o fato ao Conselho.
Numa oportunidade, fui a Manaus, fazer uma correição. Em
Manaus, o trabalho é fatigante, porque lá jurisdiciona Amazonas, Acre,
Rondônia e Roraima. É um mundo! Há muitos locais em que só se chega de
barco. Tínhamos audiência de manhã e de tarde, todos os dias. Eu conhecia
a Procuradoria não apenas da época em que fui secretária da Auditoria, mas,
também, em 1991, quando ainda estava em Porto Alegre, tinha ido lá fazer
uma substituição. Bem, quando fiz a correição, toda aquela montanha de
512
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
trabalho era enfrentada por uma única procuradora, a Dra. Maria de Nazaré
[Guimarães de Moraes]. Fiz um elogio ao trabalho dela, porque mantinha
tudo em dia e em perfeita ordem. Então, o corregedor não é só aquele que
fiscaliza e pune, mas também quem realça os bons exemplos. É preciso muita
responsabilidade no desempenho da função.
O clima realmente estava se deteriorando na relação com o
procurador-geral. Antes de ser afastada da interinidade, eu já nem queria ir a
cerimônias oficiais, porque ele partia do princípio de que o procurador-geral
tinha de ir num carro oficial somente para ele, bem mais à frente, que tomasse
distância dos demais. À corregedora-geral cabia um segundo veículo, que era
então um Opala velho, em más condições mecânicas, que ia pelo caminho
engasgando, cuspindo fumaça, fazendo um barulho desagradável. Chegou a
um ponto em que me recusei a me submeter àquela cena.
Memória MPM – E como foi a campanha para procuradora-geral?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fui dispensada do exercício
das funções de corregedora interina em setembro de 1999. Em março de
2000, me inscrevi para a eleição de procurador-geral. Era uma forma de
protesto, mas, também, uma proposta de renovação. Contudo, não logrei
sucesso. Logo depois das eleições, em maio de 2000, fui designada membro
da Câmara de Coordenação e Revisão, para um mandato de dois anos, uma
experiência bastante enriquecedora.
No verão de 2002, durante o período de férias, eu chegara à
conclusão de que não iria me candidatar novamente. O processo eleitoral
todo é muito desgastante. Depois da Lei Orgânica, a eleição no Ministério
Público ficou muito politizada. Estabeleceram-se grupos políticos informais
513
HISTÓRIAS DE VIDA
dentro do órgão: uns são a favor, outros, contra... naturalmente. E é tudo
mais pessoalizado do que programático ou conceitual. Se você contribuiu
num determinado momento com a gestão de um colega, ou apoiou outro
em alguma pretensão, ficou vinculado para sempre, como se pertencesse
àquele grupo.
Eu acho isso complicado. Não consigo funcionar nessa lógica. É
claro que a eleição traz suas vantagens, pois ativa o processo democrático.
Mas nos joga nesse torvelinho de disputas. Além disso, as pessoas em final
de carreira teriam, em tese, mais experiência do que os promotores, que são a
maioria dos membros e, hoje, podem se candidatar ao cargo de procurador-
-geral. Portanto, o processo eleitoral hoje promove a possibilidade de uma
inversão hierárquica ao permitir a eleição de promotor. Então, tenho as
minhas dúvidas sobre a conveniência do modelo que aí está.
Memória MPM – Antes de comentarmos a campanha de 2002, posso
lhe perguntar sobre as eleições de 2000?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Após os quatro anos de
gestão [de Kleber de Carvalho Coêlho] surgiram algumas candidaturas. Eu
me candidatei. O Péricles também o fez. Visitei todas as Procuradorias pelo
país, arcando integralmente com as despesas da viagem e da hospedagem. Fui
visitar todas as Procuradorias, conversar pessoalmente com cada colega, para
apresentar minhas propostas. Nessas oportunidades, levava o meu programa e
dizia que se o achassem deficiente, por algum motivo, havia outra ótima opção,
que recairia sobre o Dr. Péricles. Eu dizia isso por respeitá-lo, por entender que
ele realmente era um intelectual atuante no coração do Ministério Público, que
tinha propostas inovadoras.
514
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Nós, efetivamente, já desenvolvíamos conceitos em conjunto. Em
maio de 1999, por exemplo, eu, como corregedora-geral, o Péricles, como
vice-procurador-geral, o Nelson [Luiz Arruda] Senra, como coordenador
da Câmara de Coordenação e de Revisão, e o Carlos Frederico [de Oliveira
Pereira], subprocurador-geral, encaminhamos ao procurador-geral Kleber
de Carvalho um projeto de resolução disciplinando o inquérito civil público
e o procedimento de investigação preliminar no âmbito do Ministério
Público Militar. A ideia era essencialmente do Péricles. A atribuição fora
detalhada na Lei Complementar nº 75, de 1993, mas, sem a regulamentação,
os procedimentos dos membros não eram uniformes. O Conselho Nacional
do Ministério Público não existia ainda e disciplinou a matéria seis anos
mais tarde. Nesse sentido, a iniciativa do MPM foi pioneira no âmbito do
Ministério Público da União. O Dr. [Alexandre Carlos Umberto] Concesi
relatou pertinentemente a nossa proposta junto ao Conselho Superior, que a
aprovou por unanimidade.
Bem, voltando à campanha de 2000, como nunca consegui pensar
nessa lógica de partido político, eu separava o Péricles do procurador-geral.
Isto é, porque ele fora vice, naquela gestão, não significava que comungava
com o modo de agir e pensar do procurador-geral. Eram pessoas diferentes.
Ademais, nossa eleição se faz por meio de uma votação em três nomes. Os três
mais votados formam a lista tríplice, que é submetida ao procurador-geral da
República, chefe do Ministério Público da União, quem pode ou não escolher
o mais votado.
Enfim, peregrinei por todo o Brasil. O Péricles não fez isso, optou
por uma campanha diferente, editando um belo folder e um site, com as suas
propostas. Foi uma campanha mais em gabinete, mas com propostas sólidas
515
HISTÓRIAS DE VIDA
e também inovadora na forma, porque ninguém nunca tinha feito um folder e
um site. De todo jeito, era um momento de renovação no Ministério Público
e nós dois tínhamos em comum o fato de estarmos assumindo a campanha
baseada em propostas claras e modernas para a instituição.
A verdade é que, no dia seguinte, ao visitar uma Procuradoria,
aparecia lá o procurador-geral e procurava desfazer minha campanha. Eu
tinha a presunção e a ingenuidade de estar fazendo uma campanha baseada
em ideias e propostas, mas, na prática, as coisas não estavam acontecendo
assim. O detalhe é que ele fazia todas essas visitas financiado pelo erário,
porque ocupava o cargo de procurador-geral e dava um jeito de imprimir um
caráter oficial a esses deslocamentos.
Certa feita, para que se tenha uma ideia de como as coisas eram
conduzidas, com dois pesos e duas medidas, fui visitar os colegas em São Paulo.
O trânsito de São Paulo me deixava um pouco atordoada, amedrontada até,
então perguntei ao colega se podia, excepcionalmente, mandar um carro me
apanhar no aeroporto. Naquela época, carro oficial não existia. Havia apenas
um veículo de serviço geral, tanto para transportar o procurador quanto para
as tarefas administrativas. O colega prontamente se disponibilizou. Contudo,
na véspera da minha chegada a São Paulo, ele me ligou se desculpando,
porque haviam lhe telefonado de Brasília e o ameaçado com uma punição
por improbidade administrativa se o carro fosse utilizado para me buscar no
aeroporto. Foi uma mesquinharia!
Fiquei tão chateada que liguei para um amigo, procurador de Justiça
de São Paulo, Epaminondas Barra, que na época presidia a Associação do
Ministério Público Paulista e também integrava a direção da CONAMP.
516
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
O Barra, sempre gentil e brincalhão, ao invés de pedir para me buscarem,
resolveu ir pessoalmente me esperar no aeroporto. Foi uma grata surpresa. Ele
me levou para almoçar no Sheraton Mofarrej, que na época tinha um ótimo
restaurante. Até hoje sou agradecida a esse querido amigo e colega.
Memória MPM – E como foi a eleição?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Foi estranha. Belém foi a
última Procuradoria que visitei. De volta a Brasília, no último dia aprazado
para as inscrições, uma colega, que havia previamente declarado me apoiar,
dizendo, inclusive, que não se candidataria por problemas pessoais que
estaria enfrentando, me encontrou e falou: “Sabe da novidade? Inscrevi-me,
vou me candidatar!”. Bem, é um direito que ela tinha. Mas a mudança de
posição acontecia a uma semana das eleições, que campanha ela faria em
uma semana? Ela não visitou nenhuma Procuradoria, não conversou com
os colegas, não fez um folder, como o Péricles. Não tinha propostas. Nada!
Dois dias depois, uma servidora da direção-geral, que era minha amiga, me
disse: “Ah, Marisa, eu acho que você não vai nem entrar na lista.”. “Como!?”.
“Porque eu estava falando com o doutor fulano, comentando que você voltara
tão contente, eufórica até, de Belém e ele exclamou: ‘Ah, coitada, tenho pena
da Dra. Marisa, porque ela não vai entrar nem na lista’.”. E, baseado em seu
“feeling político”, ele teria feito uma previsão: em primeiro lugar, a colega
que se inscrevera no último dia, em segundo, um colega promotor, do Rio de
Janeiro; em terceiro, ou o Dr. Péricles ou a Dra. fulana, pois havia outra colega
que também se candidatara. Foi exatamente esse o resultado, com o Péricles
chegando em terceiro.
Memória MPM – Eram quantos votos?
517
HISTÓRIAS DE VIDA
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Eram 75 membros. Foi
estranho. Os votos em que eu aparecia, estava também o Péricles e o colega do
Rio. Eu até pedia votos para o Péricles, mas o colega do Rio não tinha nada
a ver conosco. Após a votação, as cédulas eram remetidas por malote para a
Procuradoria-Geral, guardadas num cofre, à espera da contagem.
Memória MPM – E depois?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Evidentemente, eu tinha
feito movimentações prévias para o caso de entrar em lista. Um ministro do
Superior Tribunal Militar tinha marcado, para mim, uma audiência com o
vice-presidente da República, Marco Maciel, de quem era muito amigo. Como
não entrei em lista, falei para esse ministro que cancelaria a audiência; o que
eu faria lá? E ele: “Marisa, você marcou uma audiência com o vice-presidente
da República! Você vai, porque não se desmarca uma audiência com o vice-
-presidente!”. Ele até me buscou na Procuradoria-Geral e me deu carona no
seu carro oficial. No caminho, me perguntou: “Marisa, o que você acha de a
gente pedir pelo Péricles?”. Ele também gostava do trabalho do Péricles. “Ah,
eu acho uma ótima ideia!”. Sim, era coerente com o que eu havia pregado
durante a campanha. O vice-presidente Marco Maciel nos recebeu muito
bem, simpático, me deu o maior apoio moral, explicando que ele mesmo se
candidatara algumas vezes sem êxito. Falamos o nome do Péricles. O Marco
Maciel sempre fora muito solícito com o Ministério Público e era parente do
procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, quem nomearia o nosso
procurador-geral.
No dia seguinte, a candidata que saiu em primeiro lugar estava
de “cara amarrada” porque eu tinha ido pedir em favor do Péricles. E daí?
518
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Eu não tinha nenhum compromisso com ela. E tinha dito, durante toda a
minha campanha, que se não quisessem o meu programa havia o dele, que era
excelente. Mas gerou muita fofoca interna e foi um divisor de águas; a turma
dela começou a me olhar atravessado, porque eu teria ido pedir pelo Péricles
para o vice-presidente da República e não por ela. Porque ela seria a primeira
mulher e as mulheres deveriam se apoiar mutuamente, coisa que eu não estaria
fazendo... Um monte de coisas bobas! É por isso que não gosto da forma como
se dá o nosso processo eleitoral interno.
Memória MPM – E ela acabou sendo nomeada?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. O procurador-geral
empenhou todo o seu prestígio na sua nomeação.
Memória MPM – Ou seja, era a candidata dele.
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não sei se ele tinha
efetivamente um candidato. Ele queria permanecer ligado à administração.
Se alguém lhe tivesse oferecido o cargo de vice-procurador-geral, talvez o
apoiaria. Acho que, nesse contexto, a colega lhe pareceu a opção menos ruim,
mais manejável. Se ele não podia permanecer como procurador-geral, ou vice,
tentaria se firmar como eminência parda. No dia em que saiu a lista tríplice,
ele andava pelos corredores, falando alto para quem quisesse ouvir, em tom
irônico e desafiador: “Nadaram, nadaram e morreram na praia!”. Enfim, um
comportamento que não estava à altura do cargo, muito menos de alguém que
presidira o processo eleitoral, porque é uma coisa deselegante de se fazer, não é?
Memória MPM – Como as coisas se desenrolaram nos dois anos seguintes?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Pois é, também foi estranho.
519
HISTÓRIAS DE VIDA
Nós éramos assíduos, íamos todo dia à Procuradoria. A colega
começou a se distanciar dos subprocuradores-gerais, pois creditava sua eleição
apenas aos membros do primeiro grau.
Bem, ela não gostou de algumas intervenções que fiz no
Conselho Superior e começou a dizer que eu estaria magoada, porque eu
queria ter a honra de ser a primeira mulher na chefia da instituição e não
lograra êxito. Sinceramente, nunca me passou isso pela cabeça! Jamais faria
oposição gratuitamente, por despeito, pois acho que isso é irresponsabilidade
institucional. Na política, temos de nos pautar por propostas, conceitos, valores.
É isso o que determina o enunciado da crítica ou a construção de uma aliança.
Eu jamais comunguei dessa visão estreita, que fixa a questão de gênero acima
do debate programático e de seus resultados. Ninguém se torna uma candidata
ou uma administradora espetacular só porque é mulher! Da mesma forma,
ser a primeira mulher a chefiar uma instituição não é garantia alguma de que
o desempenho administrativo seja louvável. Não acredito nessa solidariedade
feminina que nivela por baixo.
Ademais, acho que o cargo de chefia institucional tem uma liturgia.
O Kleber, inobstante as restrições que fazemos a aspectos do seu desempenho
como procurador-geral, tinha, de positivo, uma grande preocupação com a
liturgia do cargo. Nisso, ele estava certo. E creio, inclusive, que ele contribuiu
muito nesse sentido para a valorização da instituição junto aos outros entes.
Porque o Ministério Público Militar mal era lembrado pelos cerimoniais. A
instituição mal aparecia. O Kleber deu-lhe mais visibilidade.
A propósito, acho que ninguém é 100% ruim ou totalmente bom.
Não existem unanimidades. E se existirem, dificilmente seriam sinceras. Faço
520
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
minhas observações à ação de alguns colegas, no que se refere ao exercício
das funções públicas que eles ocuparam, mas também reconheço o que eles
agregaram de positivo. Pode parecer, para alguns, algo estranho criticar alguém
que não pode contar a sua versão dos fatos. Mas quando se ocupa uma função
pública, as pessoas fazem suas avaliações, porque as ações repercutem na
memória e já passaram a fazer parte do público. Ademais, uma característica
intrínseca do Ministério Público é, precisamente, a do debate livre de ideias.
Imagino que outros entrevistados possam celebrar as pessoas cujas ações eu aqui
questiono, bem como imagino que muitos critiquem a minha administração.
Então, como dizia, o cargo tem uma liturgia. O Ministério Público do
Trabalho promovia, na época, umas cerimônias muito alinhadas, com arranjos
de flores, ótimos jantares, mesa decorada. Todos elegantes, bem-trajados.
Chegava a nossa representante, de sandálias, sem meias, cabelinho lavado e
molhado. Acho que é falta de respeito com aquele que está oferecendo a festa.
E tinha entrevista com a imprensa, o beija-mão do presidente da República
no final do ano, uma série de situações nas quais era preciso estar apresentável.
Mas era eu a criticada, por ser, como se dizia “muito glamorosa”.
Quando assumi como corregedora, reuni os membros que estavam
tomando posse e já fui logo dizendo para as moças: “De hoje em diante,
esqueçam minissaia, “tomara que caia”, decotes acentuados...”. Deixei-lhes
bem claro que a Corregedoria nada tinha a ver com a vida e as opções pessoais
de cada um. Se quisessem sair para dançar à noite, se vestir assim ou assado,
seria da escolha de cada uma. Mas, no ambiente de trabalho, há uma postura a
ser seguida. Isso tem a ver com aquilo que a própria sociedade espera da gente.
Não vale apenas para as mulheres, mas para os homens também. Enfim, nesse
aspecto eu e o Kleber concordávamos.
521
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O Kleber foi vice da Adriana?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, ela não o nomeou para
nada. Pelo contrário, depois que assumiu, deu uma sossegada nele. Acho
que aquilo tudo que ele tinha feito, voltou. A aproximação dos dois tinha
sido circunstancial. E, uma vez firmada no cargo, a colega não se sentiu mais
compromissada com ele. Paradoxalmente, ele tinha muita articulação, muito
trânsito político, dentro e fora da instituição, mas não era uma figura amada
ou admirada, a não ser, talvez, por alguns poucos. De forma que, de repente,
se viu isolado.
Depois de dois anos, ela tentou a reeleição. O Kleber também se
inscreveu. Como disse, eu hesitei, decidi que estava farta daquilo, pois fora
uma tremenda decepção aquele resultado depois de ter visitado todas as
Procuradorias. Mas ninguém se apresentava. Ninguém queria. O próprio
Péricles não quis se candidatar. Acabei cedendo à pressão dos colegas para
que reapresentasse minha candidatura. O Kleber tinha, naturalmente, seus
apoiadores, mas também enfrentava muita resistência na classe. Quanto à
procuradora-geral, a tendência de quem está no posto é pleitear a reeleição.
São raros os casos em que isso não acontece.
O resultado sagrou-a em primeiro lugar na lista. Fiquei em segundo
e o Kleber em terceiro. Bem, aí veio o segundo tempo da nossa eleição.
Havia uma indisposição grande da procuradora-geral com os comandos
militares, porque não basta administrar a própria instituição, é preciso cultivar
uma política institucional séria – que nada tem a ver com subserviência;
isso nunca! Mas as relações com as Forças Armadas, com outros ramos do
Ministério Público, com a magistratura, com os Tribunais, com a sociedade,
522
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
precisam ser amistosas, cordiais, com diálogo permanente. Não é preciso ter
atitude submissa ao Tribunal, mas é necessário respeitar a instituição e seus
membros, os ministros. O Kleber, por sua vez, estava enrolado com alguma
pendência administrativa, pois respondeu a uma sindicância determinada pela
procuradora-geral. O corregedor era o Dr. Péricles, que se pautou pela grande
imparcialidade e correção. A sindicância restou arquivada, mas o Kleber sentiu
o pulso da administração. De forma que o Dr. Geraldo Brindeiro me chamou
e disse que iria me nomear. Dessa vez, eu não tinha pedido a ninguém. Alguns
ministros do STM haviam revelado, para autoridades da República, que me
preferiam. O Brindeiro achou por bem me nomear. Ele mesmo me disse que
tinha se arrependido por, dois anos antes, não ter escolhido o Péricles. Ora, o
procurador-geral da República não interfere na administração dos ramos do
Ministério Público da União, mas se o chefe de um dos ramos produz atritos
ou não consegue liderar seu ramo, resulta em dificuldades. O procurador-geral
da República não quer problemas, não quer se incomodar com a rotina dos
outros. Cada instituição tem de andar por si.
Bem, uma vez nomeada, declarei a todos que assumiria por um
mandato de dois anos e não tentaria a reeleição: não ficaria nem um dia a mais.
Estava convicta da procedência de algumas reformas que eu prometera em
campanha e acreditava que, para implantá-las, seria preciso enfrentar desgastes.
E sei bem que a recondução acarretaria em tergiversar diante de desafios, ou
fazer vistas grossas para certos problemas. Até acho que um mandato de dois
anos é pouco para se avançar em tudo o que se deseja; deveriam ser três. Mas
recondução, de jeito nenhum!
Portanto, eu não estava perseguindo popularidade. Desejava, apenas,
dar minha contribuição para o engrandecimento institucional, com base
523
HISTÓRIAS DE VIDA
naquilo em que eu acreditava, assim como aquelas pessoas que haviam votado
em mim. Ora, o primeiro princípio é que no Ministério Público tudo tem de
estar perfeitamente de acordo com a lei. A lei tem que ser cumprida à risca.
Isto é, se vamos cobrar algo dos outros, lá fora, é preciso começar a respeitar
a lei aqui dentro. Nós somos os fiscais da lei para nós, mesmo antes do que
para os outros.
Pouco a pouco, fui colocando a casa em ordem. Mas isso me custou
caro! Fui quase “excomungada” por alguns membros descontentes com medidas
que adotei para sanar problemas administrativos do Ministério Público Militar.
Memória MPM – Esses conflitos foram internos ou externos? Podemos
falar um pouco deles?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Bem, ambos. Mas,
internamente, acho que o desgaste foi maior. No início do meu mandato, teve
o problema com o auxílio-moradia. Hoje é algo universalizado, todos recebem
auxílio-moradia, legal e indistintamente. Mas, naquela época, exigiam-se certos
pré-requisitos para a concessão do benefício, tais como não ter imóvel no local.
Todo ano o procurador-geral deveria oficiar aqueles que recebiam o auxílio-moradia, no sentido de confirmar se realmente teriam ainda direito a recebê-
lo. Minha surpresa foi que recebi alguns retornos insistindo na preservação
do benefício mediante argumentos insólitos, tais como a casa adquirida pelo
membro não estaria escriturada em seu nome, mas no da esposa. Ora, mas eles
eram casados, moravam juntos! Outra argumentava que morava em um imóvel
na Vila Militar, porque o esposo era militar. E daí? Era um imóvel da União,
ela estava tendo o direito de utilizá-lo. Outro insistia em que morava no imóvel
que pertencia aos filhos; um pequeno detalhe omitido é que os filhos eram
524
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
menores. Evidentemente que era uma forma de burlar o que a lei determinava
para continuar recebendo o benefício. Outros colegas recebiam o auxílio,
depois eram transferidos para outra localidade na qual tinham um imóvel, mas
continuavam recebendo. Determinei a suspensão e a devolução dos benefícios
auferidos indevidamente. É claro que foi um inferno e alguns passaram a me
odiar. Eu achava que deveríamos zelar pela correta aplicação da lei, de forma
que fui inflexível. Afinal, alguns anos depois, o auxílio-moradia foi estendido
a todos os juízes e membros do Ministério Público, independentemente de
posse ou não de imóvel no município de atuação.
Outro ponto de atrito teve relação com o período de férias. Eu
fixei um período de férias padrão para todos, que convergia com o recesso do
Tribunal. Me parecia uma coisa lógica que todos gozassem suas férias nessa
época, em que o volume de trabalho é naturalmente menor. Mas isso gerou
desconforto, porque alguns estavam acostumados a gozar suas férias em meses
como abril, maio, enfim, quando havia muito mais serviço.
No final de minha gestão, houve, ainda, um conflito envolvendo
a nomeação de uma colega. Ela havia sido aprovada no concurso em 1999,
cuja validade estava para expirar. Como havia outro colega prometendo se
aposentar, pediram-me para nomeá-la, deixando para lhe dar posse quando a
vaga efetivamente surgisse, em função da referida aposentadoria. Entretanto,
independentemente de seu mérito pessoal, que para mim não estava em questão,
achei que não poderia agir dessa forma, porque a vaga não existia de fato.
Memória MPM – Essa história repercutiu na imprensa da época.
Houve um mandado de segurança que chegou ao STF e uma ação popular contra o
procurador-geral da República, não é?
525
HISTÓRIAS DE VIDA
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Os pedidos em favor
da nomeação da colega tinham vindo até do procurador-geral da República,
Cláudio Fonteles, e o advogado de defesa dela era o ex-procurador-geral
Aristides Junqueira. A colega entrara com um mandado de segurança para
conseguir a nomeação, sustentando que o veto ao Art. 2º da Lei nº 8.975/1995
não alcançara o Art. 3º da mesma lei, o que faria o número de vagas para
promotores passar para 42; mas a liminar havia sido indeferida pela ministra
Ellen Gracie em setembro de 2003. Segui o entendimento da ministra. Não a
nomeei, o que descontentou muita gente.
Logo depois de me afastar da chefia institucional, em abril de 2004,
a nomeação saiu, só que o prazo de validade do concurso já tinha expirado
havia sete meses. Achei que, por coerência, deveria questionar o ato e acabei
interpondo uma ação popular contra o procurador-geral da República na
Justiça Federal de Brasília. Foi concedida uma liminar suspendendo os efeitos
da portaria de nomeação. Mas, depois de doze dias, a liminar caiu.
No STF, o julgamento do mandado de segurança foi suspenso com
a nomeação, pois se entendeu que o mérito estaria prejudicado. Mas a defesa
interpôs agravo regimental e o julgamento prosseguiu. Soube que, em 2011, o
STF, contrariando a relatora ministra Gracie, entendeu que havia evidência da
existência de um cargo vago, concedendo, portanto, a segurança, e, até onde sei,
encerrando a questão.
Memória MPM – E como f icaram as relações externas, com as
outras instituições?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – De um modo geral, penso
que melhoraram. Eu me preocupava bastante com a qualidade da nossa
526
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
comunicação institucional, de modo que criei a Assessoria de Comunicação,
ASCOM. Contratei uma jornalista, passamos a editar folders e um boletim
mensal informativo. As Procuradorias mandavam subsídios e todos ficavam
sabendo, com fotos e artigos, o que os colegas estavam fazendo de norte a sul.
A ASCOM foi uma iniciativa da minha gestão que muito me orgulha. Em
2002, ainda, lançamos um selo dos Correios em comemoração aos 82 anos
de criação do Ministério Público Militar, uma ação que ajudava a projetar
a instituição e sublinhava a sua tradição. Também articulamos um convênio
com a TV Justiça e passamos a estar muito mais presentes na mídia, de forma
propositiva, o que é importante, porque o nosso Ministério Público é pequeno,
com uma atribuição específica e altamente especializada, o que o torna pouco
conhecido.
E havia, na época, questões candentes e polêmicas, como o início
da atuação do Exército nas favelas do Rio de Janeiro. Em princípios de 2003,
determinei a instalação de uma investigação sobre a infiltração do crime
organizado nos quartéis no Rio de Janeiro. Havia denúncias de desvios de armas
dos quartéis. A procuradora Maria Ester Henriques Tavares e os promotores
Ailton José da Silva e Ione de Souza Cruz, da Procuradoria do Rio de Janeiro,
trabalharam seis meses nessa investigação.
Outro debate muito rumoroso, na época, era sobre o destino que
se deveria dar ao célebre traficante apenado Fernandinho Beira-Mar: por
uma questão de segurança, havia quem defendesse que ele fosse encarcerado
em uma prisão militar, algo com o que não concordávamos. Havia, também,
uma discussão sobre a lei de abate de aeronaves ilegais pelas Forças Armadas.
Discutia-se, ainda, o assim chamado Estatuto do Desarmamento, que
tinha impacto direto sobre a indústria bélica no Brasil. Temas, enfim, que
527
HISTÓRIAS DE VIDA
frequentavam a ordem do dia e eram muito debatidos nos meios jurídicos, pela
imprensa e no Congresso Nacional.
Memória MPM – Nesse caso específico do Estatuto do Desarmamento,
salvo engano, havia um artigo que beneficiaria a indústria nacional. Falavase em lobby organizado. A figura de um general, que chefiara durante seis anos a
Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados, do Ministério da Defesa, gerava
comentários na mídia, por ter sido empregado como consultor de uma empresa da
área de armamentos depois de passar para a reserva...
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Nesse caso específico, dois
generais chegaram a ser investigados, mas a notícia-crime foi arquivada por
falta de lastros probatórios.
Logo depois de assumir, recebi uma visita inusitada, do comandante
do Exército, general Gleuber Vieira, um homem preparado, que assina, por
exemplo, traduções de livros do inglês para o português. Tomamos um chá e
conversamos no gabinete. Ele não me pediu nada, mas lhe deixei bem claro
que não pararia de atuar onde fosse necessário, pois se não cumprisse bem
com minhas atribuições, nem mesmo o respeito das Forças Armadas eu
teria. Durante minha gestão, ofereci denúncia contra dois oficiais-generais,
instaurando os respectivos processos de ação penal originária. Havia muitos
anos que não existiam processos dessa natureza.
Memória MPM – Houve processo? Eles foram condenados?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, o primeiro foi
condenado, depois o Supremo Tribunal Federal acolheu recurso da defesa e
o absolveu. Mas, a minha missão, eu cumpri. É aquilo que sempre falo: eu
528
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
não quero nem saber como vai terminar, eu quero saber é se cumpri a minha
obrigação, o meu dever. Depois, cada um sabe o que tem que fazer, não sou
eu que vou criticar. Já estava aposentada quando saiu a decisão de absolver,
mal tomei conhecimento. Sobre o outro que denunciei, acompanhei algumas
sessões no Tribunal, mas depois perdi o rastro do processo.
Memória MPM – Eram o quê? Casos de peculato?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Um, era estelionato e o
outro, peculato. O generalato e o alto comando das Forças Armadas é um
funil. Quem chega lá é porque realmente tem lastro moral e conteúdo, isto é,
tem honradez e conhecimento, além de usufruir de reconhecimento entre os
superiores. Então, é muito difícil um alto oficial se envolver em algum delito.
Na minha gestão, por coincidência, aconteceu isto duas vezes. Talvez leve
anos para que um novo caso apareça. É raro. Nossos oficiais são, em geral,
muito honrados.
Memória MPM – E a rotina de trabalho, como era?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Às vezes, realmente era
exaustiva. Chegava sexta-feira e eu falava: “Vou embora cedo para casa hoje,
vou descansar”. Mas davam 18 horas, 19 horas e o telefone não parava. Surgia
alguma urgência. Lá ficava eu até mais tarde. Dia sim, outro também. Foi
trabalhoso, mas gratificante.
Uma face agradável eram os eventos e recepções nas Embaixadas,
para as quais volta e meia éramos convidados. Certa vez, fui convidada para
um jantar na residência do embaixador da China. Até comentei com o Péricles,
que então era o corregedor-geral, que iria desistir de ir, porque, afinal, eu estava
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HISTÓRIAS DE VIDA
tão cansada... Enfim, apesar de tentada, achei que seria deselegante declinar do
convite na última hora. Ao lá chegar, estava escrito no cartão que informava o
cardápio: “Jantar em homenagem a Dra. Marisa Cauduro, procuradora-geral
de Justiça Militar”. Ninguém me dissera que seria em minha homenagem. Foi
uma surpresa. Imagina se eu não vou!? As festas na Embaixada da França eram
ótimas, assim como as recepções na Embaixada da Rússia. Com o pessoal da
Hungria, nós tínhamos um excelente relacionamento. Inclusive, participei de
um Congresso em Budapeste, de Justiças Militares, que reuniu representantes
de 29 países. Foi uma viagem magnífica.
Memória MPM – Existe algum outro país que tenha um Ministério
Público parecido com o que atua no Brasil na área militar?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Penso que não, porque a
maioria dos integrantes é composta por membros das Forças Armadas. A
propósito, em minha gestão nós instituímos, também, um sistema de sorteio
para definir quem teria a prerrogativa de integrar comitivas em viagens
internacionais.
Memória MPM – Como foi a eleição para a sua sucessão?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não me candidatei,
como prometera. Também não fiz campanha para nenhum pretendente.
Simplesmente, saí do cenário político.
Memória MPM – Quem compôs a lista tríplice?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A Maria Ester Henriques
Tavares, que foi nomeada; um colega de Recife... Mas não lembro mais, faz
algum tempo...
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MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Memória MPM – Todos do primeiro grau?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, eles fecharam a
lista tríplice.
Memória MPM – Houve campanha para fechar a lista tríplice?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Houve. A Maria Ester
ficou quatro anos, sucedida pela Cláudia [Márcia Ramalho Moreira Luz],
promotora de Justiça, que também permaneceu quatro anos. Finalmente, o
Marcelo [Weitzel Rabello de Souza], que havia sido presidente da Associação,
já nomeado subprocurador, conseguiu romper esse cerco do primeiro grau.
Memória MPM – A senhora teve alguma vivência ou passagem
pela Associação?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não. Cheguei, uma vez, a
me candidatar a vice-presidente, mas a chapa foi derrotada, isso antes de ser
procuradora-geral.
Memória MPM – E como foi a relação da sua gestão, de procuradora-
-geral, com a Associação? Foi construtiva?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Podia ter sido melhor. Logo
no início do meu mandato, já se instalou um episódio peculiar. Em 2001, o
Péricles apresentara, à então procuradora-geral Adriana Lorandi, um projeto
de resolução que melhorava o texto que regulamentava o procedimento de
diligência investigatória criminal, que havia sido aprovado em 1999, como
comentei. Mas o assunto não avançou. Quando assumi a Procuradoria-Geral,
em 2002, encontrei aquilo lá parado e resolvi dar andamento. Novamente, a
531
HISTÓRIAS DE VIDA
matéria foi aprovada por unanimidade no Conselho Superior. Dessa vez,
entretanto, houve resistência de setores da classe. Alguns membros entenderam
ser inconstitucional a revisão, pela Câmara de Coordenação e Revisão, do
arquivamento eventualmente praticado no primeiro grau. Em razão disso, a
Associação Nacional do Ministério Público Militar patrocinou um mandado
de segurança no foro federal, perdendo, como não poderia deixar de ser, a
causa. O juiz disse que a regra era indispensável para o interesse social, além de
fundamental para garantir a transparência da instituição. Hoje, isso é considerado
óbvio e plenamente assentado, mas, na época, foi um grande debate.
Não foi o único episódio em que se verificou oposição da Associação.
Em 22 de agosto de 2003, um enorme incêndio, seguido de explosões, destruiu
o foguete brasileiro que seria lançado três dias depois na base de Alcântara,
no Maranhão. O objetivo da missão era colocar em órbita um microssatélite
meteorológico do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Morreram,
no sinistro, 21 técnicos e cientistas brasileiros altamente capacitados. É evidente
que isso atrasou o programa espacial do país em uma década, pelo menos.
Uma semana depois do acontecido já surgiam, nos jornais, algumas notinhas
sugerindo que poderia haver algo mais por trás daquele acidente, como uma
sabotagem. A base de Alcântara é considerada o melhor espaçoporto do mundo,
pela proximidade geográfica à linha do Equador, o que garante economia de
30% no combustível necessário para o lançamento de foguetes. Os Estados
Unidos haviam tentado um tipo de arrendamento da base três anos antes, sem
sucesso, pois as cláusulas de salvaguardas tecnológicas foram consideradas
ofensivas à soberania nacional pelo Senado Federal, depois de aprovadas pelo
Executivo. Além disso, é restrito o clube de países capazes de lançar satélites no
espaço: a questão é econômica e estratégica.
532
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Enfim, pertinentes ou não os rumores, justamente em função da
gravidade dos fatos e da proporção do acidente, a Aeronáutica havia designado
um general para promover o IPM e solicitou que indicássemos um membro
para assessorá-lo. Por se tratar de um general, concluí que deveria indicar
um subprocurador-geral. Indiquei dois: o Péricles e o Carlos Frederico. A
Associação, que, no meu entendimento, deveria nos apoiar num momento tão
delicado, promoveu manifestação de repúdio à designação, alegando se tratar
de uma usurpação da competência do primeiro grau. Não era, porque, afinal, o
encarregado do inquérito não era um coronel, mas um general.
De qualquer sorte, criou-se uma situação constrangedora, de forma
que tanto o Péricles, quanto o Carlos Frederico pediram para serem afastados
da atribuição. Não lembro quem assumiu o assessoramento – acho que alguém
de uma das Procuradorias do Rio de Janeiro. Afinal, o inquérito concluiu que
tudo não teria passado mesmo de um infeliz acidente causado por uma falha
elétrica. Mas isso nunca convenceu todo mundo. Por exemplo, aquele jornalista
norte-americano, correspondente do New York Times no Brasil, Larry Rohter,
que ficou célebre por provocar uma nota de repúdio da Secretaria de Imprensa
da Presidência da República em 2004, escreveu não entender como os brasileiros
aceitaram uma conclusão, que resultou de investigação interna da Aeronáutica,
sem ter constituído uma comissão independente. Sem nenhum demérito ao
trabalho então realizado pelo colega do primeiro grau, mas foi mais ou menos
isso que eu estava pensando quando indiquei dois subprocuradores-gerais:
uma comissão composta por membros do segundo grau.
Durante minha gestão, a propósito, houve outro episódio envolvendo
o Centro Tecnológico Aeroespacial. Recebi uma denúncia anônima que
sugeria que se admitia ter, de fato, havido um arrombamento da porta de
533
HISTÓRIAS DE VIDA
acesso à dependência específica, na qual se simulava o lançamento de foguetes,
oportunidade na qual supercomputadores foram destruídos, gerando prejuízo e
atrasando o programa espacial brasileiro. O brigadeiro-comandante não tomou
as providências policiais cabíveis diante de danos de monta. Por requisição
nossa, um inquérito acabou sendo aberto. Designei o Péricles para assessorá-
lo. Afinal, não se identificou autoria. Mas a tese de sabotagem era plausível,
porque havia indícios efetivos de arrombamento.
Enfim, posso dizer que precisei enfrentar a oposição da nossa
Associação de classe em mais de uma oportunidade. O que, aliás, foi incomum,
pois, em geral, a Associação se alinha à Procuradoria-Geral.
Memória MPM – Quem eram os membros de sua equipe de trabalho?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – O Dr. Edmar Jorge de
Almeida foi vice-procurador-geral, um colega culto, espiritualizado e idealista. O
Péricles Queiroz foi corregedor-geral no período, dando sequência a iniciativas
importantes, como as correições e os estágios probatórios, e instituindo outras,
como as vistorias às prisões. A minha gestão preocupou-se muito em apoiar as
iniciativas da Corregedoria-Geral e em fortalecer o órgão. O coronel-aviador
Pedro Alvarenga, que havia sido secretário nacional de Segurança Pública, foi
um diretor-geral competente, honesto e ágil, garantindo nossa tranquilidade
administrativa. A chefe de gabinete se chamava Berta, mas ela não chegou ao
final da gestão.
Memória MPM – Chegou a presidir a Câmara de Coordenação
e Revisão?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, fui apenas membro.
534
MARISA TEREZINHA CAUDURO DA SILVA
Memória MPM – O que lhe parece fundamental para conseguir
constituir uma candidatura viável a procurador-geral dentro do sistema que existe
hoje? Passar pela Associação, por exemplo?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, hoje em dia é bem
importante, porque o presidente da Associação tem muita comunicação
com todos os membros. Nos outros Ministérios Públicos, a maioria dos
procuradores-gerais foi presidente de Associação.
Memória MPM – No Ministério Público Militar, as mulheres
ficaram doze anos consecutivos no comando da instituição. Isso confirmaria que,
diferentemente de outras instituições, no MPM não há nenhum tipo de barreira
para as mulheres se alçarem à Alta Administração?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, não há barreira alguma.
O que lamento é que, algumas mulheres, poderiam se empenhar mais em prol
do trabalho e da instituição. Mas isso também vale para os homens: há aqueles
que são mais engajados, outros que são menos.
Memória MPM – Como foi a aposentadoria?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Depois que saí da chefia
institucional, continuei com minha rotina de trabalho, normalmente. Aí eu e
o Péricles resolvemos assumir nosso relacionamento. Fomos ao cartório e assinamos um contrato de união estável. Em 2006, precisei me afastar, porque
me diagnosticaram com câncer. Foi um período bastante difícil. O Péricles foi
muito parceiro, um grande companheiro, me ajudou muito. Não saiu do meu
lado e, ainda assim, não descurou de suas atividades profissionais. O Péricles
é muito dinâmico: hoje se envolve em várias atividades, como a Câmara
535
HISTÓRIAS DE VIDA
de Coordenação e Revisão, a curadoria acadêmica dos cursos da Escola
Superior do Ministério Público e, agora, o Projeto Memória. Muitas das
ideias que ele imprimiu naquele folder seguem atuais e sendo revisitadas
pelos candidatos na atualidade.
Eu retornei ao trabalho em 2007, mas em 2009 veio outro câncer.
Não foi metástase, foi um novo. Foi um baque. Afastei-me novamente.
Como nós, em Brasília, somos poucos membros, quando um se afasta por
longo período, os outros ficam sobrecarregados. Por isso, decidi me aposentar
em 2010.
Memória MPM – E quanto às medalhas, a senhora recebeu alguma?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, certamente. Fui
admitida ao Grau de Alta Distinção pela Ordem do Mérito Judiciário Militar,
em 11 de fevereiro de 1998 e admitida na Ordem no Grau de Grã-Cruz em
1999, também pela Ordem do Mérito Judiciário Militar. Fui, ainda, admitida no
Corpo de Graduados Especiais, da Ordem do Mérito Aeronáutico. Sou muito
grata a essas honrarias.
Memória MPM – Mais alguma coisa que a senhora gostaria de dei-
xar registrada?
Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Apenas agradecer pela
oportunidade e pela tarde agradável, além de parabenizá-los pela iniciativa do
Projeto Memória.
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537
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
Entrevista realizada na Procuradoria de Justiça Militar em São Paulo, em 25 de junho
de 2015, por Gunter Axt.
538
Nelson Luiz Arruda Senra nasceu em 27 de agosto de 1949, no Rio de
Janeiro. É filho de Nelson de Carvalho Senra e Lúcia Arruda Senra. Casou-se
com Magali Leite Dias. Graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em 1974. Atuou como advogado
no quadro complementar da Marinha, entre 1976 e 1978. Foi aprovado em
concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público Militar em
1984, sendo nomeado em fevereiro de 1985, no cargo inicial de procurador
militar de segunda categoria, hoje denominado promotor de Justiça Militar,
junto à Auditoria da 10ª Circunscrição Judiciária Militar, em Fortaleza, no
Ceará. Em 20 de fevereiro de 1995, foi promovido ao cargo de procurador
da Justiça Militar e, em razão disso, removido para a Procuradoria da Justiça
Militar de Campo Grande (MS), da 9ª Circunscrição Judiciária Militar. Em
22 de março do mesmo ano, foi nomeado subprocurador-geral da Justiça
Militar. Em 1996, foi nomeado coordenador da Câmara de Coordenação e
Revisão do Ministério Público Militar. Em maio de 1997, foi renomeado para
a mesma função, depois, novamente, em maio de 1999, exercendo-a até 2001.
Em 25 de abril de 2006, foi designado corregedor-geral do Ministério Público
Militar, afastando-se da função em outubro de 2007. Em 25 de fevereiro do
ano seguinte, aposentou-se.
539
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de onde?
Nelson Luiz Arruda Senra – Sou natural da cidade do Rio de
Janeiro, sou carioca.
Memória MPM – Como o senhor chegou ao Direito? Havia alguma
tradição de família?
Nelson Luiz Arruda Senra – A irmã de minha mãe casou-se com
um jurista que chegou a desembargador no Rio de Janeiro, o doutrinador
Alyrio Cavallieri, reconhecido por sua atuação junto a crianças e adolescentes
infratores e desabrigados. Foi um expoente do chamado Direito do Menor,
hoje baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente. O Dr. Alyrio sempre
foi um referencial para nós todos.
Eu, particularmente, queria fazer o Instituto Rio Branco. O meu
sonho era ser diplomata. Tinha duas vertentes na época: Economia ou Direito.
Economia tinha muita matemática, com a qual não me dava muito bem, então
escolhi o Direito.
Memória MPM – A faculdade cursada foi no Rio de Janeiro?
Nelson Luiz Arruda Senra – Foi a Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Ainda estávamos no regime militar, nos idos de 1970.
Memória MPM – Como foi o período de faculdade? O senhor tem
lembranças dessa época, dos professores, da ambiência do curso?
Nelson Luiz Arruda Senra – Havia muitos professores notáveis,
como o Celso [Renato] Duvivier de [Albuquerque] Mello, autor de livros
sobre Direito Internacional. Havia o professor João Mestieri, também jurista
540
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
de nomeada, com publicações em Direito Penal. O professor Alfredo [de
Vilhena] Valladão, de Direito Internacional Privado, era uma figura adorável.
Ficaram gravadas na minha mente as aulas sensacionais desses professores.
Depois, a lembrança de Chico Buarque, que morava na Gávea e
cantava na PUC. Ele ia para lá e juntava aquela quantidade de moças e rapazes
para assisti-lo. Eu não sabia quem eram os cantores que de vez em quando
faziam show lá, mas depois me dei conta de que se tratava do Chico. Como
era uma Faculdade rica, os diretórios de estudantes tinham recursos, para, por
exemplo, imprimir material de protesto contra o regime. Acompanhei isso
muito ao largo, sem maiores contatos, porque eu trabalhava, e quando chegava
à Faculdade, estava cansado. Não tinha tempo para me envolver com a política
estudantil. Minha esposa também trabalhava e estudava.
Memória MPM – Vocês já eram casados?
Nelson Luiz Arruda Senra – Nos casamos cedo, eu tinha entre
21 e 22 anos. Quando entrei na PUC, passava-se do regime seriado para o
de crédito e isso foi bastante confuso para nós. Eram seis anos de Direito.
Quando cheguei tinha um tal de Ciclo Básico, que ninguém sabia o que era.
Tinha Ciência Política, Sociologia, matérias do departamento ministradas fora
do departamento...
Memória MPM – O senhor chegou a pegar latim no vestibular?
Nelson Luiz Arruda Senra – Eu estudei em um colégio formidável
chamado Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Escolhi o Clássico – fugindo de
física, matemática e química. Estudei latim, grego, filosofia, matérias mais
agradáveis. O professor Alfredo Valladão dava aulas muito boas e muita coisa
541
HISTÓRIAS DE VIDA
em latim, porque ministrava Direito Internacional Privado, matéria na qual o
latim e o Direito Romano tinham importância.
Memória MPM – O senhor já trabalhava com o Direito?
Nelson Luiz Arruda Senra – Não. Eu era o filho mais velho de
quatro. O pai era comerciante e achava que o filho mais velho deveria ajudálo a ganhar dinheiro. Então, me levou para trabalhar com ele. Ele migrara do
setor de estamparia, industrial, para o de transporte. Comecei a trabalhar na
transportadora antes de tirar minha carteira de motorista, pois não tinha 18
anos. Então, chegava muitas vezes na Faculdade, de manhã cedo, depois de ter
ficado a noite inteira vendo os caminhões, acompanhando o movimento de
motorista e tal.
Memória MPM – E o senhor se formou em que ano?
Nelson Luiz Arruda Senra – O meu período de Universidade foi
de 1969 a 1974.
Memória MPM – Como teve início o exercício profissional no Direito?
Nelson Luiz Arruda Senra – Uma pessoa amiga da família me falou
de um concurso para o quadro complementar da Marinha do Brasil, a primeira
Arma a importar dos Estados Unidos a ideia do quadro complementar.
Ela mandara construir fragatas na Inglaterra e estava carente de pessoal
treinado, porque os oficiais que saíam da Escola Naval nem sempre reuniam
a qualificação necessária para atividades específicas. Eram fragatas já com
uma série de inovações para a época e exigiam verdadeiros engenheiros no seu
comando. Abriram-se novas oportunidades para os jovens, nas mais diversas
áreas. A terceira ou quarta chamada, salvo engano, foi para bacharéis em
542
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
Direito. Vários colegas advogados entraram para os fuzileiros, a Intendência e
o corpo da Armada.
Memória MPM – Qual era a função do advogado?
Nelson Luiz Arruda Senra – Na Intendência, onde eu fiquei, era
mais administrativa. Nós ficávamos com a folha de pagamento do pessoal,
com o estoque. Na Armada, depois eu descobri, era mais interessante, pois
havia jogos de guerra e assessoramento aos comandantes de navio. Eu
tinha um pensamento que a Marinha iria nos recolocar nas Auditorias,
mas ela nos capacitou como oficiais. Os que foram para os fuzileiros
navais tiveram um treinamento bastante militar-operacional, mas também
sempre assessorando os seus comandos. Fui, no caso, assessorar a antiga
diretoria de Intendência da Marinha. Seis meses depois de ter feito as
provas, passei de guarda-marinha a segundo-tenente. Isso irritou muito os
alunos de Escola Naval, que levavam praticamente toda a juventude para
chegarem a ser tenentes. Só que o nosso quadro era diferente do deles.
Era um quadro limitado. Em princípio, nós ficaríamos três anos só. Se
a Marinha quisesse, escolheria aqueles que poderiam ir um pouco além.
Talvez chegássemos a capitão de Mar e Guerra, algo equivalente a um
coronel, mas só depois seríamos licenciados, porque nós já entrávamos na
Reserva. Era um trabalho remunerado, mas na Reserva. Tempos depois,
descobri que o Exército tinha isso também. Mas era mais para um corpo de
saúde, pois já recebia médicos. Havia oficiais temporários também.
Entrei na Marinha em 1976, onde fiquei dois anos. Antes de
completar três anos, saí para voltar a estudar, porque eu ainda pensava no “Rio
Branco”, mas acabei passando em um concurso para o Ministério Público da
543
HISTÓRIAS DE VIDA
União, na vertente do Ministério Público Militar, que naquela época ainda
estava constitucionalmente um pouco solto. Foi com a Lei Orgânica que
realmente se estruturou o Ministério Público da União.
Memória MPM – Foi o concurso de 1981?
Nelson Luiz Arruda Senra – Não, o de 1981 foi anterior ao meu,
que foi o de 1984. O Ministério Público e juízes federais ficaram sem concurso
durante o regime militar. Os substitutos eram indicados e não tinham
estabilidade. Os militares ficaram com medo de abrir inscrições para concurso
público, porque pessoas muito preparadas poderiam ser subversivas e eles não
queriam correr esse risco. Então, eles preferiam fazer toda uma investigação
na vida da pessoa, aplicavam uns testes, umas provas e uma seleção para os
juízes federais.
Quando passei para o Ministério Público da União, não sabia que
os ramos seriam estanques, isto é, antes da Lei Orgânica, havia, em tese, a
possibilidade de assumirmos funções nos diferentes ramos. De qualquer
forma, foi interessante me reencontrar com a experiência de vida que eu havia
tido na Marinha. O que vivi lá, por estar no quadro complementar, acabou me
sendo útil na jurisdição militar. Sou muito grato à Marinha, por tudo o que
aprendi e pelo extraordinário ambiente de trabalho e de convivência com as
pessoas que lá encontrei.
Memória MPM – O senhor chegou a servir em algum navio?
Nelson Luiz Arruda Senra – Sim, como no porta-aviões Minas
Gerais, o nosso primeiro. Estava docado, na época, porque precisava de muitos
reparos. Fiz lá uma besteira que ficou famosa; meus colegas não me permitiram
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NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
esquecer. Eu estava já como tenente, dando ordem unida ao pelotão, e o convés
do porta-aviões é grande, mas acaba, e eu, naquela empolgação, esqueci de dar
meia-volta: eles iam ter que se jogar lá de cima. Aí todo mundo começou a
marcar passo, quando eu me lembrei do “meia-volta, volver”. Não me esqueço
mais, porque virou uma piada: o tenente que não deu “meia-volta, volver”. Me
falavam que, em uma guerra, ia rasgar tudo, seria fantástico, avançar sempre
sobre o inimigo, não ia regredir nunca [risos]. Essas coisas foram interessantes
na Marinha e úteis depois no Ministério Público da União.
Eu era advogado, e ao passar no concurso, em questão de dias tinha
que pensar como promotor, investigar. Tivemos vários colegas oficiais das
Polícias Militares que ingressaram no Ministério Público Militar. Alguns
colegas meus já foram também oficiais desses quadros complementares e
ganharam uma experiência muito rica.
Memória MPM – Como foi o concurso de 1984, tinha muitos inscritos?
Nelson Luiz Arruda Senra – Havia uma disposição que impedia
maiores de 35 anos de se inscreverem em concursos. A legislação presumia que
você tinha que ficar 35 anos atuando, pois outro artigo dizia que a aposentadoria
seria compulsória aos 70 anos. E eu já estava com uns 33 anos e não sabia
quando apareceria outra oportunidade de concurso.
Eu trabalhava num escritório de um advogado, José Francisco da
Costa Neto, na Cinelândia, e entre os clientes tinha um que era sargento
do Exército, que estava com um processo na Justiça Militar. Novato, era eu
quem fazia o Fórum, via o andamento dos processos, um serviço no qual se
perdia muito tempo. Ele ficava fazendo as petições. Foi a minha sorte, porque
tive o primeiro contato com uma Auditoria. Fui muito bem atendido pelo
545
HISTÓRIAS DE VIDA
escrivão, que era o diretor da Secretaria, um futuro professor meu, o Dr.
Nelson Coldibelli. Vi na parede um cartaz simples: concurso para defensor
público e para promotor público da Justiça Militar. Aquilo chamou minha
atenção, porque eu já tinha sido militar e outra coincidência muito feliz: estava
trabalhando neste escritório do Dr. Costa Neto, na Cinelândia, onde ficava o
curso do professor [ José Carlos] Couto [de Carvalho]. Era pertinho, então eu
saía do meu trabalho e ia ter aula com ele à noite. O professor Couto fora diretor
da Secretaria e tinha recém entrado para o Ministério Público. Pessoa notável!
Até hoje agradeço muito ao Dr. Coldibelli e ao Dr. Couto, porque foram os
dois mágicos que conseguiram me ensinar rapidamente toda uma estrutura
que eu desconhecia do Direito, porque não era ensinada nas faculdades.
Memória MPM – Ainda não é...
Nelson Luiz Arruda Senra – Veio a ser o grande divisor de águas
da minha vida.
Memória MPM – O concurso era para ambos os postos?
Nelson Luiz Arruda Senra – Não, foram dois concursos. É que eles
saíram em épocas muito próximas, mas por sorte minha, um não atrapalhou
as provas do outro, não houve coincidência. Tive o prazer de ter passado para
defensor e para promotor. O de promotor foi mais sofrido, porque logo depois
daquele provão nós ficamos sabendo que tinha uma segunda fase em Brasília:
quem não passava já não tinha comunicação com os outros. Mas na prova oral
era sofrido ver colegas chorando e outros gritando de alegria. Porque realmente
muitos ficaram...
Memória MPM – Ficaram pelo caminho... E em Brasília era a prova oral?
546
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
Nelson Luiz Arruda Senra – As provas orais foram todas em Brasília.
Memória MPM – Uma banca presidida pelo Dr. Milton [Menezes da
Costa Filho]?
Nelson Luiz Arruda Senra – Creio que sim, pois era ele o
procurador-geral. Mas o nervosismo daqueles dias não me deixa recordar
hoje esse aspecto. Nos hospedamos numa pensão e quando nos descobrimos
todos lá, começamos a estudar juntos, um falava para o outro. Isso foi um
incentivo nos dias que ficamos em Brasília, porque era estudar dia e noite.
Ainda causamos um problema para a pensão: a dona falou que era proibido
homem ir para o lado feminino e mulher ir para o lado masculino, mas nós
falamos que estávamos em um concurso, ficávamos acordados a noite inteira
estudando, e ela dizia que não dava, que não podia. Nós tínhamos que estudar
e acabávamos atrapalhando as pessoas, porque estávamos nervosos. Era minha
cartada final, pela minha idade.
Memória MPM – O senhor acabou não tentando o Rio Branco?
Nelson Luiz Arruda Senra – Não tentei. Eu teria que me preparar
muito para a carreira diplomática, cursos complexos e demorados. É um
concurso dificílimo, sendo necessário domínio perfeito de línguas e de muitas
matérias. Tem gente que estuda durante anos.
Memória MPM – O senhor recorda quantas vagas tinha e quantos
foram os aprovados no concurso de 84?
Nelson Luiz Arruda Senra – Eu fui o sétimo. Acredito que não
chegou a quinze, acho que foi por aí, um número pequeno. Passei também no
concurso para advogado de ofício. Um presidente do STM havia dispensado
547
HISTÓRIAS DE VIDA
todos os substitutos não concursados, o que entorpecera o andamento da
Justiça Militar. Então, era um concurso com bom número de vagas e havia
grande expectativa do Tribunal para a nossa posse. Fomos recebidos no STM
pelo presidente Júlio de Sá Bierrenbach, um homem formidável, cultíssimo. Foi
muito cordial e solícito. Os ministros ficaram impressionados com o número
de aprovados. Como os futuros defensores da Justiça Militar, fomos recebidos
com carinho e distinção. Nos causou uma impressão muito boa.
Vários ali, como no concurso para o Ministério Público, haviam
passado pelo professor Couto, alguém que teve a característica singular de ser
formador de uma inteligência jurídica na Justiça Militar: ele formou juízes-
-auditores, promotores da Justiça Militar, defensores. Nós o chamávamos de
“o grande mago”, pois fazia uma magia nos introduzindo numa seara quase
hermética. Até hoje, tenho por ele grande admiração.
A nossa Justiça Militar é civil, os magistrados e promotores têm
estabilidade e a instituição tem independência. Eu percebi o enorme acerto
de o Brasil ter organizado sua Justiça Militar no Poder Judiciário e não no
Executivo, como uma jurisdição administrativa, quando fui, a convite da então
procuradora-geral de Justiça, Dra. Adriana Lorandi, a um congresso na Europa
que reunia Justiças Militares do mundo inteiro. Todos ficaram espantados,
inclusive que a chefe do Ministério Público Militar brasileiro fosse, além de
civil, uma mulher. Os representantes de várias nações, muitas da Europa, não
conseguiam entender isso.
Memória MPM – Como foi assumir? O senhor assumiu em 1985, não é?
Nelson Luiz Arruda Senra – Em fevereiro de 1985.
548
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
Memória MPM – E sob a chefia de um novo procurador-geral da
Justiça? Era o Dr. Milton ainda ou já era o Dr. George [Francisco] Tavares?
Nelson Luiz Arruda Senra – Eu peguei essa época de transição.
Memória MPM – Foi um momento específico, especial do Ministério
Público Militar do Brasil, porque o Dr. George Tavares não era da carreira, tinha
tido toda a sua trajetória como advogado, se destacando na defesa inclusive de presos
políticos, que foram julgados sob a égide da Lei de Segurança Nacional.
Nelson Luiz Arruda Senra – Mas todo o Ministério Público das
áreas federais estava numa situação incômoda, porque a antiga normatividade
constitucional e federal ordinária não contemplava o que só surgiu depois com
a Lei Orgânica. Apenas então tivemos uma corporificação clara. Antes nós
navegávamos com o “Brasil da Abertura”.
Nossos colegas tiveram que trabalhar muito no Poder Legislativo para
conseguirem um capítulo inteiro para o Ministério Público na Constituição.
Tivemos tratamento constitucional, mas por outro lado também ficamos sempre
numa dúvida, porque se a Constituição nos deu guarida, ela não nos inseriu
em Poder nenhum. Nós não éramos do Executivo, nem do Judiciário, nem do
Legislativo. Então veja, nós estávamos como a OAB, orbitávamos no Judiciário,
mas com tratamento de Poder. Foi quando houve o engrandecimento. Imagina
a dificuldade dos antigos promotores, procuradores e procuradores-gerais antes
da Constituição, tanto os dos Estados, quanto os da União. Cheguei numa
época feliz, quando o Ministério Público começou a melhorar.
A vida mudou com o concurso, porque aí dei estabilidade para a
minha família. Por questão de vaga, tivemos que sair do Rio de Janeiro; fomos
549
HISTÓRIAS DE VIDA
para Fortaleza. Podendo escolher, preferi o Nordeste, porque tem praia e sou
carioca. Ficamos lá uns seis anos e fomos muito felizes. Gostamos demais dos
cearenses e de Fortaleza!
Depois, seguindo a minha carreira e da minha esposa, nós fomos
para Brasília. Ela era funcionária da Infraero. Então ela foi para a sede da
Infraero e eu, para a sede do Ministério Público Militar, que ainda funcionava
no prédio do Superior Tribunal Militar. Peguei essa transição do prédio: do 7º
andar, mudamos para o prédio que construímos bem perto. Mas era um prédio
apertado, pequeno. Não temos boa lembrança dele. Depois construímos a
nossa sede atual, que é uma maravilha! Ainda guardo lembrança dos servidores.
Sempre tive muito contato com eles, pela Câmara de Coordenação e depois
pela Corregedoria.
Os anos 1990 e 2000 foram de afirmação de garantias e de organização
interna. Era preciso operacionalizar tudo o que fora garantido na Constituição
e na Lei Orgânica. Novos fluxos administrativos e gerenciais precisavam ser
desenvolvidos. Havia um novo conceito de gestão emergindo.
Eu me envolvi bastante com a Divisão (antes Departamento)
de Documentação Jurídica, que recebe e distribui os processos. Foi preciso
desenvolver um sistema de acompanhamento processual para os promotores,
procuradores e subprocuradores saberem a situação dos recursos. Depois, como
corregedor, organizei o curso de treinamento para os novos promotores. Foi
uma experiência espetacular, rapazes muito preparados. O tema escolhido foi
improbidade administrativa. Conseguimos uma sala e professores na Escola
Superior do Ministério Público da União em Brasília. Como corregedor, tive
a oportunidade de conhecer mais o Ministério Público Militar, fazendo as
550
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
correições nas diversas Procuradorias. Entre Manaus e Bagé há peculiaridades
e especificidades.
Memória MPM – Muda muito de uma Procuradoria para outra a
natureza dos feitos ou há um padrão? A ambiência das Procuradorias é mais ou
menos a mesma?
Nelson Luiz Arruda Senra – Quanto à incidência de fatos-crimes
e de imputações, eu acredito que eram bem parecidas. Dizer que há muita
insubordinação, deserção, aqui ou ali, não posso, por falta de uma pesquisa.
O que mais diferenciava era o contato com a sociedade local e a forma de
ser recebido. Ou as implicações políticas, porque naquela época nós ainda
estávamos à mercê de lutar para conseguirmos sedes próprias, saindo do
aluguel. Disso dependiam questões simples, como o direito de, eventualmente,
trabalhar até mais tarde, além das 19 horas. Mesmo no STM, às 19 horas
vinha o aviso de que o prédio seria fechado e tínhamos de interromper o
trabalho ou levá-lo para casa, ainda que estivéssemos embalados no estudo dos
autos. Antes, nas Procuradorias, era um constrangimento até receber alguém
para conversar, em um gabinete apertado, mal-instalado, enjambrado. Nossa
infraestrutura melhorou muito.
Hoje nos acusam de termos poucos processos para uma estrutura
tão confortável. Mas o que as pessoas querem? Mais crimes militares para
trabalharmos mais? Mais crimes militares não gerariam uma intranquilidade
enorme na sociedade? Querem que as organizações militares saiam por aí
atirando em todo mundo, matando gente, malversando fundos e recursos,
promovendo insubordinações e revoluções? Ora, uma das funções da Justiça
Militar e do Ministério Público Militar é precisamente contribuir para a
551
HISTÓRIAS DE VIDA
garantia da ordem e da disciplina. País feliz é aquele em que a Justiça tem
pouco para fazer, porque isso significa que o índice de criminalidade é baixo,
que os conflitos são dirimidos sem judicialização, que as pessoas se entendem.
O sonho de sociedade perfeita é aquele em que os tribunais e os hospitais
estejam vazios! Nós temos de ver o que é possível fazer para diminuir essa
quantidade de feitos na Justiça Comum, porque isso é um sintoma claro de
que alguma coisa não está bem no Brasil, nas áreas de competência da Justiça
Comum: está todo mundo brigando contra todo mundo, é um pandemônio!
Na área de competência da Justiça Militar, as coisas estão tranquilas. Mas isso
se deve, também, ao fato de termos uma jurisdição especializada independente,
bem-instalada, que funciona como uma espécie de horizonte dissuasório. Isto
é, os militares sabem que se algo sair errado, será avaliado pela Justiça Militar.
Como o Brasil não tem hostilidade concreta, não temos inimigos
tentando invadir nossas fronteiras, que são muito grandes, nem a nossa costa,
que também é imensa, não damos importância às Forças Armadas, nem à
Justiça Militar. Diferentemente, por exemplo, de Israel, que vive sob ataque de
vários inimigos. Nesse país, a militarização, a mobilização militar é obrigatória
para todos. Não desejamos um Brasil em guerra, tampouco Forças Armadas
insurretas, indisciplinadas, corruptas, pois isso seria o caos. Assim, vamos
aguentando as piadas que fazem ao nosso respeito. Mas, creia, o nosso papel
é de fundamental importância para garantir a tranquilidade da nação, mesmo
em tempo de paz.
Memória MPM – Nos anos 80, no momento em que o senhor ingressou
na instituição, debatia-se intensamente a extinção da jurisdição, inclusive, na
Constituinte de 1987, se propôs a extinção do Superior Tribunal Militar.
552
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
Nelson Luiz Arruda Senra – Havia colegas que faziam o
acompanhamento desse debate na Constituinte, mas eu não cheguei a
colaborar nesse processo, porque era ingressante. Mas a ideia de extinção
do STM era precária, sob todos os aspectos. Se fosse extinto, os ministros
precisariam ser incorporados pelo STJ, que teria de constituir mais um braço
especializado para dar conta da matéria. Penso que o cidadão tinha, e ainda
tem, desconhecimento sobre a especificidade da jurisdição. O cidadão comum,
às vezes, confunde militar com policiamento ostensivo nas ruas. Até porque
talvez haja aí um erro de nomenclatura. As Polícias não deveriam mais se
chamar “militares”. Volta e meia ressurgem essas ideias de extinção do Tribunal,
alegando que o Tribunal trabalha pouco, não é necessário ao país. Mas essas
pessoas não vão lá ver as grandes discussões, a densidade de julgamento, porque
é um Tribunal diferente. Não é um Tribunal de Direito, é um Tribunal de fato.
Diferentemente do Supremo, por exemplo, que não julga mais o fato, o STM
julga o fato, e revê tudo, é uma outra instância, revisora, e aí está a grandeza da
Justiça Militar: você tem que convencer até os ministros da seriedade dos seus
argumentos, dos fatos, da prova, pois eles podem rever tudo. Muitos acham
isso imperdoável, porque, como Tribunal Superior, imaginam que ele deveria
ser somente de Direito, já que está na linha dos demais tribunais federais do
país, uma vez esgotados os últimos recursos que possam servir de verificação
fática. Então, nós temos tomado muito cuidado com essas investidas, no
sentido de defendermos tecnicamente a Justiça Militar. A nação teve um
ganho quando fomos para o Poder Judiciário: a segurança de uma Justiça
franqueada, transparente, pública. Qualquer advogado pede, é ouvido, examina
autos. Talvez houvesse mais dificuldades se ela funcionasse dentro do Exército,
da Marinha, isto é, cada Força com o seu Tribunal ou coisa parecida.
553
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor se lembra de algum processo ou caso que
tenha lhe chamado a atenção, seja no primeiro ou no segundo grau?
Nelson Luiz Arruda Senra – Sempre há alguns que marcam mais.
Mas o que me doía era quando eu não tinha o mesmo ponto de vista dos
colegas do primeiro grau, dos promotores e procuradores, porque recebia
aquele feito por distribuição, aquele recurso, e tinha que opinar. Ao ver o
processo e examiná-lo, até mais de uma vez, ficava incomodado porque o
meu pensamento era divergente dos colegas, então isso criava um problema
sério porque eu lançava dúvidas ao Tribunal e acredito que os colegas não
gostavam nem um pouquinho dos meus pareceres.
Memória MPM – Tinha algum aspecto de interpretação do Direito
Penal Militar que o senhor seguia?
Nelson Luiz Arruda Senra – Quando a dúvida era razoável,
lançava isso no meu parecer, dizendo que os autos não estavam me dando
elementos fáticos suficientes para manter o pedido de condenação em um
artigo ou em outro, de uma pessoa ou de outra, simplesmente porque havia
uma dúvida razoável. Isso eu aprendi com o Tribunal Penal Internacional,
em que o promotor antes de lançar qualquer denúncia, faz uma investigação
prévia, dentro do Tribunal, na qual procura ver todos os elementos: se são
sustentáveis e se são cabíveis a uma ação penal. E muitas vezes, no Brasil,
partimos de sindicâncias e inquéritos policias militares que veiculavam
suspeitas, quase evidências, indicações de que a atuação de determinadas
pessoas seria conduta criminosa e isso já era considerado o bastante para o
promotor oferecer a sua denúncia. Cabia ao juiz-auditor recebê-la ou não e
depois, se o promotor insistisse na denúncia, poderia recorrer ao Tribunal,
554
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
que iria rever todo o ato, o fato. Daí a beleza da Justiça Militar da União.
Muitas vezes eu, como subprocurador, concordava com o juiz.
Memória MPM – O senhor passava a ideia de vira-casaca ou de estar
jogando no time oposto?
Nelson Luiz Arruda Senra – Eu não acessava nada por escrito.
Não havia doutrinas sobre o segundo grau e isso me incomodou durante
a minha atuação. Não sabia se tinha que defender mais a instituição, a
denunciação dos colegas, para que deixasse a defesa fazer esse papel, ou se eu,
vendo que o fato não se amoldava para todas aquelas pessoas e sim somente
para algumas ou que aquelas imputações não eram cabíveis a todos, deveria
suscitar a questão. Isto é, se a minha consciência jurídica poderia prevalecer
e ir de encontro à instituição, se tinha liberdade de divergir do pensamento
processual colocado nos autos pelos colegas de primeiro grau, que tiveram,
inclusive contato com o fato, com as pessoas, com as testemunhas, coisa que
eu não conhecia no segundo grau. Me baseava exclusivamente no que estava
escrito nos autos. Mas eu declino de comentar qualquer fato em concreto,
porque alguns criaram problemas e eu prefiro então só dizer que posso
ter sido mal-avaliado pelos colegas, que não devem ter boas recordações
dos meus pareceres. Se pensa num Ministério Público unido, coeso e não
dividido ou com posições doutrinárias ou processuais divergentes. Acredito
que é um anseio bastante razoável, mas ao mesmo tempo, os membros do
Ministério Público são muito independentes e têm posições doutrinárias que
nem sempre convergem. Essa diversidade pode parecer incômoda, mas ela é
parte da essência da instituição. Então, talvez o desafio seja encontrar aí o
ponto de equilíbrio.
555
HISTÓRIAS DE VIDA
A Escola Superior do Ministério Público da União já tinha sido
estabelecida e eu ia lá procurar colegas da República para saber como eles
entendiam o Ministério Público de segundo grau. Mas não encontrava nada
em especial. Não sei como está hoje, mas não havia uma doutrina estabelecida
a esse respeito. Acho que a ideia de independência institucional e funcional
ainda era muito jovem. Precisava amadurecer.
Memória MPM – É interessante, porque o Ministério Público muda
de Estado para Estado e é diferente também no âmbito federal. Nos Estados hoje se
discute uma refundação do papel do Ministério Público no segundo grau.
Nelson Luiz Arruda Senra – Em Brasília possuem sede estabelecida
o Ministério Público do Distrito Federal, o Ministério Público Federal, o
Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Militar. Saindo do
Distrito Federal, nas cidades-satélites, funciona outro Ministério Público,
das Justiças Estaduais e que tem um promotor de Justiça daquela comarca. É
confuso para quem se enreda nesse cipoal. Nós promovemos vários encontros
na Câmara de Coordenação e Revisão no sentido de procurar, por meio
das Câmaras, dar um pouco mais de coesão e uniformidade aos ramos do
Ministério Público da União, porque eles eram estanques, separados.
Memória MPM – Eu acho que a única coisa que os une, efetivamente,
são as regras de carreira e a figura do chefe da instituição, que é o procurador-geral
da República.
Nelson Luiz Arruda Senra – Há uma discussão dizendo que a lei
não determinava que o procurador-geral da República fosse do Ministério
Público Federal, o que permitiria, por exemplo, que um procurador-geral do
Ministério Público do Trabalho pudesse se candidatar para compor a lista
556
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
tríplice a procurador-geral da República. Mas acabou vingando a interpretação
de que apenas os membros do MPF pudessem concorrer à vaga, submetendose ao processo eleitoral interno. Houve quem defendesse a revisão da Lei
Orgânica nesses pontos, considerados um pouco cinzentos, que podem gerar
um entendimento algo opaco. Mas se decidiu, em um congresso da categoria,
que evitaríamos propor alterações na Lei Orgânica, pois um movimento nesse
sentido poderia ensejar um ataque de senadores e deputados a garantias e
atribuições amplamente sedimentadas. Isto é, um projeto de lei nosso para
mudar um pequeno aspecto na Lei Orgânica poderia abrir a porta para a
passagem de outras pretensões. Assim, buscar no Parlamento uma melhoria
sistêmica da nossa lei, poderia significar nos entregar aos lobos.
Um avanço importante que tivemos foi o surgimento desses órgãos
de controle, como o Conselho Nacional do Ministério Público, que vem
contribuindo no sentido de uma padronização de procedimentos basilares. A
tal ponto que alguns colegas chegaram a pensar que os ramos do Ministério
Público deveriam abdicar de seus corregedores para irem todos para a
Corregedoria que funciona dentro do Conselho, e se tornaria, assim, numa
espécie de agência reguladora. Mas se concluiu que isso seria um exagero,
porque as Corregedorias são fundamentais para a fiscalização interna, para
a orientação dos membros. Então, o Conselho se encarregaria daqueles casos
que não estão sendo resolvidos pelas Corregedorias.
Mas eu também nunca entendi bem qual seria o peso político, legal
ou normativo do Conselho Nacional do Ministério Público para com os
ramos, porque quem presidia esse Conselho era o procurador-geral da Repú-
blica, por ser o nosso grande chefe administrativo, e ficava complicado para
ele, muitas vezes, quando a questão envolvia procuradores da Repúblicas ou
557
HISTÓRIAS DE VIDA
fatos atribuídos ao Ministério Público Federal, ser ao mesmo tempo o presidente do Conselho, que poderia julgar contra os interesses dos procuradores
da República, o procurador-geral do Ministério Público Federal e o procurador-geral da República. Muitos até deixavam toda a liberdade aos membros
do Conselho, aos conselheiros, exatamente para não influenciar.
As discussões são em alto nível. Das vezes que fui ao Conselho
Nacional, tanto da Justiça, quanto do Ministério Público, fiquei bem-
-impressionado: discussões acaloradas, mas qualificadas e pertinentes. Hoje
nós temos o colega Dr. [Antônio Pereira] Duarte lá, professor e doutrinador,
um rapaz formidável, pessoa por quem tenho grande admiração. Os
conselheiros têm funções quase que judicantes, podem dar ou acolher uma
liminar para um determinado ramo do Ministério Público e até aquilo ser
revisto por todo o Conselho. Um relator de um processo tem muita força na
sua liminar.
Memória MPM – Há mais alguma coisa que o senhor gostaria de
deixar registrada sobre a sua passagem pelo Ministério Público Militar?
Nelson Luiz Arruda Senra – Desejo expressar a minha profunda
gratidão, por ter sido servidor público federal do Ministério Público Militar,
que me engrandeceu muito e me trouxe segurança financeira. Depois, com
os aumentos que recebemos, me proporcionou a melhor fase da minha vida,
pois, uma vez aposentados, eu e minha esposa, temos feito viagens adoráveis
pelo mundo. Isso tudo devo ao Ministério Público da União. Nunca esqueço
a minha profunda gratidão a todos os colegas que me ajudaram e me
ensinaram. Tenho muita gratidão pela instituição que servi com dedicação.
Se não fiz melhor é porque não tive competência, nem capacidade, mas
558
NELSON LUIZ ARRUDA SENRA
dentro das minhas limitações, procurei dar o melhor de mim, e hoje me
aposento em paz e satisfeito por ter esse serviço.
Como percebo recursos que vêm da União, acredito ainda que é
preciso oferecer algum tipo de retorno, de modo que faço atividades de trabalho
voluntário. Tenho alegria em poder trabalhar voluntariamente para segmentos
da população que estão mais prejudicados, como portadores de câncer, idosos
ou doentes mentais, enfim, gente desassistida, que enfrenta a pobreza, necessita
de ajuda. Ainda tenho saúde e energia, então, procuro ser útil à comunidade na
qual resido, a cidade de Valinhos, nos arredores de Campinas, em São Paulo.
Em Campinas, também ajudo o Hospital Infantil. É uma forma de retribuir
tudo aquilo que eu recebi do Poder Público.
A minha atuação foi singela, não tem nada de excepcional, nunca fui
uma pessoa destacada, de modo que não tenho o brilho de outros colegas, que
provavelmente terão coisas notáveis a serem registradas. Mas disse o que eu
tinha a dizer nesse diálogo tão agradável. Assim, concluo com esse meu preito
de gratidão pelos colegas, pela instituição e pelo serviço federal.
Memória MPM – Muito obrigado, então, eu é que agradeço muito a
oportunidade de conhecê-lo e por esta conversa.
559
FRANCISCO LEITE CHAVES
Entrevista realizada em 6 de maio de 2015, no escritório do entrevistado
em Brasília, por Gunter Axt.
560
Francisco Leite Chaves nasceu em 7 de maio de 1929, em Itaporanga, na
Paraíba. É filho de José Fiúza Chaves e de Maria Ernestina Chaves. Casou-se
com Zélia Marinho Leite Chaves. Seu irmão, José Leite Chaves, foi deputado
estadual; seu primo, José Gomes da Silva, governador da Paraíba. Bacharelou-
se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, à época Universidade do Brasil, em 1956. Em 1958
concluiu, ainda, doutorado na mesma Universidade. Em novembro de 1974,
pela legenda do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), concorreu ao
Senado, elegendo-se e assumindo o mandato em fevereiro do ano seguinte.
Em 1982, filiando-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), foi eleito suplente do senador Álvaro Dias, pelo Estado do Paraná.
Foi, novamente, entre 1987 e 1995, eleito senador pelo Paraná. Em 10 de abril
de 1986, foi nomeado pelo presidente da República, José Sarney, procurador-
-geral da Justiça Militar, permanecendo no cargo até 18 de março de 1987.
Advogado de carreira do Banco do Brasil, aposentou-se da Diretoria Jurídica.
Integrou a delegação brasileira, na qualidade de observador parlamentar, à
XXXII Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1977.
561
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – O senhor é natural de onde?
Francisco Leite Chaves – Itaporanga, Paraíba.
Memória MPM – O senhor estudou na Paraíba?
Francisco Leite Chaves – Sim. Comecei lá o curso de Direito,
concluído no Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Direito. Bacharelei-me
em 1956 e finalizei o doutorado em 1958. Então, só existia doutorado no Rio
de Janeiro. Para se matricular era preciso ter uma média alta no Bacharelado,
ou um exame de suficiência aplicado a critério da Congregação. Havia
professores excepcionais, como Francisco Campos, Nuno Lisboa, Haroldo
Valadão, Hélio Tornaghi... Um ambiente, intelectual e jurídico, fantástico!
Memória MPM – Hélio Tornaghi fez o projeto do Código de Processo
Civil a pedido do presidente Jango...
Francisco Leite Chaves – Um civilista de alto nível, mas como não
apareceu concurso para a sua área, ele fez para Direito Penal, Processo Penal.
Além deles, tive aulas também com o Santiago Dantas. O Pedro Calmon era
catedrático de Direito Público Constitucional, mas não cheguei a ser aluno
dele. Nossa cerimônia de formatura foi emocionante. O Teatro Nacional se
engalanava de guirlandas vermelhas para receber as famílias dos formandos.
Pedro Calmon foi o patrono, orador fluente e envolvente. Historiador que
era, lastreou sua fala na história das becas, como forma de transmitir aos
bacharelandos os valores do Direito e da vida cívica. Com analogias expressivas,
relacionou o vermelho da pedra do anel do grau ao sangue dos mártires,
remontando à morte de Santo Ivo, padroeiro dos advogados. Assassinado
em Viena, conta a história, ele sangrava, e aquele sangue se avolumava na
562
FRANCISCO LEITE CHAVES
medida em que descia ladeiras e foi por essa razão que se introduziu no anel
o vermelho do rubi, em homenagem ao sangue dos mártires, tendo como
patrono Santo Ivo. Concluía emotivo, de modo eloquente: “Entre as galas
da missa festiva, e as solenidades de colação de grau, está você, bacharel da
pátria!”. Nesse momento, era ele reitor da Universidade do Brasil.
Memória MPM – O senhor recorda a temática do seu doutorado?
Francisco Leite Chaves – Foi em Direito Penal, sobre o crime
estático, um tema raro e difícil. No meio do doutorado, a nova Lei de Diretrizes
e Bases da Educação mudou as regras da pós-graduação, considerando
doutores aqueles que haviam concluído os créditos e entregado a tese,
tornando dispensável a defesa que, por isso, não cheguei a fazer. Aliás, eu
sempre desejei apanhar meu diploma de conclusão, mas os anos passaram...
Havia tantos afazeres!
Nessa oportunidade, eu já era funcionário do Banco do Brasil,
trabalhando como parecerista da SUBOP. Pegava o bonde 29 todo dia e ia para
a Faculdade, na rua Moncorvo Filho. Às vezes não dava nem tempo de lanchar.
Eu tinha o propósito, nessa época, de ir para Brasília, pois a Capital
Federal estava emergindo. Mas o Haroldo Valadão, professor de Direito
Internacional Privado, falava de Londrina, no Paraná, e comecei a achar
interessante a perspectiva de ficar uns dois anos lá, antes de ir para Brasília, o
que aconteceu 16 anos depois, como senador pelo Paraná.
Memória MPM – Pelo Banco?
Francisco Leite Chaves – Como advogado do Banco. O chefe do
Contencioso era o João Neves da Fontoura.
563
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Isso mesmo, o João Neves da Fontoura atuou algum
tempo no Banco. Como era a convivência com ele?
Francisco Leite Chaves – Grande orador, da geração de
revolucionários de 1930. Um senhor muito cortês. Já estava com problemas
auditivos nessa época. Era educado e inteligente, refinado e sério. Era um
homem muito respeitado.
Memória MPM – E Londrina?
Francisco Leite Chaves – Um dia chegou um sujeito bem míope,
perguntando pelo Chaves. Era Amaury Costa. Explicou que era advogado
do Banco em Londrina, que a cidade era interessante, mas o excesso de pó
vermelho provocava forte alergia na esposa, de forma que o casal estava
querendo se mudar, mas somente o conseguiria se ele fizesse uma permuta.
Bem, aquilo veio ao encontro do que eu estava imaginando. Ele me ofereceu
a própria casa, que já estava mobiliada, de forma que eu nem precisaria
procurar um imóvel para me instalar. Também falou que me repassaria os
clientes que tinha no escritório de advocacia, tal como uma cervejaria grande
que havia lá. Recusei, dizendo que poderia trazer a esposa para o Rio, indo
eu, com a minha, para Londrina, dispensando as oferecidas vantagens, o que
foi uma pena, pois, pelo vertiginoso crescimento foi difícil alugar casa na
cidade, mesmo com a interferência do Banco. Convenci a direção da Casa
que era importante que eu exercesse a advocacia, porque no instante em que
eu tivesse apenas a defesa dos assuntos da instituição, seguramente viraria
um funcionário público, o que me deixaria mais enclausurado, com menos
capacidade de mobilização para vencer as causas em favor do Banco. Eu me
empenhava nas rápidas soluções das causas do Banco para ter tempo para as
564
FRANCISCO LEITE CHAVES
minhas próprias. Quando fui eleito senador, em 1975, havia tido cerca de seis
mil causas, contando com as do Banco.
Foram vários casos interessantes, com destaque, talvez, para os
internacionais, como o do Gero von Gevernitz, na Alemanha, de Direito
Internacional Privado, muito sugestivo por se tratar de um alemão, morando nos
Estados Unidos, que deixou um testamento público em Berlim e um codicilo
nas Ilhas Canárias, possessão espanhola. Deixou uma filha chamada Tanja Von
Pascalle, com uma nobre alemã, condessa Valerie, com quem mantinha uma
relação estável. Como testamenteiro nomeou o presidente da Suprema Corte
Alemã e diversos outros magistrados e juristas em diversos países europeus para
os bens aí localizados. De refinado gosto artístico, um desses testamenteiros
ficou encarregado de distribuir, entre seus amigos, ao gosto de cada um, as
inúmeras obras de arte que possuía, entre elas, ícones russos do século XIII, em
ouro. Para que a filha e a companheira melhor se aquinhoassem, invoquei, como
advogado, a lex rei sitae para os bens no Brasil (diversos deles, inclusive uma
grande fazenda de café, em Apucarana/Paraná, dos quais era administrador o
conde Janos Deseufy, de origem húngara. Gero Gevernitz havia tempo tinha
se transferido para os EUA, em razão do nazismo. Milionário e muito culto,
foi convidado por Fuster Dulles, então secretário de Estado, para com o irmão
deste, Allen Dulles (primeiro diretor da CIA) participar de uma missão secreta,
a fim de que obtivessem a rendição dos generais alemães não nazistas, no norte
da Itália, o que aconteceu antecipadamente pelas reuniões mantidas na Suíça,
em Castelo do Gero. Em razão do sucesso da operação, escreveram, em 1960, o
livro Secret Surrender, publicado no Brasil com o título Rendição Secreta
Noutro caso, em 1988, falei na Suprema Corte de Israel, em defesa
de uma criança, Bruna Vasconcellos, que fora raptada em 1986 em Curitiba,
565
HISTÓRIAS DE VIDA
aos quatro meses de idade, pela babá, ligada a uma quadrilha internacional, e
vendida para um casal, os Tourdjmane, ou Turgeman, de Israel. Em Jerusalém
atuei como advogado da família, gente simples, a pedido da Assembleia
Legislativa do Paraná. Levei para aquela Corte uma mensagem do presidente
da República, Sarney, na época, para me habilitar junto à mesma. Com
procuração da família, apresentei-a ao secretário e o problema que se criou foi
em torno da língua, pois um tradutor para o hebraico precisaria ser agendado
com dois dias de antecedência: a língua oficial na Corte é o hebraico, vedado
qualquer outro idioma, inclusive o inglês. Pedi para falar com o presidente
da Corte, que encontrou uma solução, indicando para a função de intérprete
um advogado da televisão inglesa que estava lá – porque o caso repercutiu no
mundo inteiro e os ingleses haviam feito um elaborado documentário –, tendo,
até mesmo, custeado a viagem da mãe biológica da Bruna a Israel. Houve
um momento em que a causa nos pareceu perdida diante de um empolgante
discurso de um dos advogados da família que adotara a Bruna em Israel,
sustentando que se ela retornasse ao Brasil correria o risco de se tornar uma
criança malnutrida, vivendo em uma favela, sendo que em Israel ela estava
crescendo com toda a assistência, frequentaria as melhores escolas, etc. Havia
sido inclusive pré-alfabetizada em hebraico e a mãe biológica não entenderia
nem mesmo quando ela pedisse um copo de água no voo de regresso ao Brasil.
O advogado da televisão inglesa era mais técnico, prático, e ficou
desnorteado com essa linha de argumentação. Foi quando pedi a palavra,
entendendo que minha cliente estava em risco. Reconheci que a criança estava
sendo muito bem-tratada em Israel e que provavelmente teria um futuro
assegurado naquele país, o que, no Brasil, talvez fosse incerto. E contei, então,
a história de um menino judeu que, logo depois da criação do Estado de Israel,
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FRANCISCO LEITE CHAVES
foi levado aos Estados Unidos pelo bem-aquinhoado avô, lá residente, que não
concordava com a educação que o pai estaria dando ao seu neto. O pai, que ficara
em Israel, recorrera àquela mesma Corte solicitando o direito de criar o filho em
seu país, apesar de, nos Estados Unidos, o menino ser herdeiro de uma fortuna:
“Vossas Excelências, retruquei, determinaram então a volta do menino, e numa
situação muito difícil, pois Israel estava isolado, cercado de inimigos, tendo como
único aliado internacional expressivo justamente os Estados Unidos”. Disse
mais: “um país que em tais circunstância determina a volta da criança para Israel
não poderia negar a de Bruna para o Brasil”. Registrei ainda que anos mais
tarde, em 1967, na Guerra dos Seis Dias, quando a Força Aérea egípcia, apoiada
pelos demais países árabes, ameaçava destruir Israel, alvitrou-se, como ousada
estratégia de defesa, um ataque preventivo e arrasador contra as bases inimigas.
Para isso, os aviadores de Israel precisaram voar baixo, a seis metros de altitude
sobre o Mediterrâneo, para evitar os radares, numa empreitada arriscadíssima.
Lograram êxito, destruindo a poderosa aviação egípcia ainda em terra. No
comando da tropa estava Shumacker, a criança resgatada do solo americano.
Corte qualificada, como jamais vira, recruta seus ministros dentro deste critério,
na ocorrência de vagas: quem é o melhor do mundo nessa matéria jurídica? Às
vezes é um ministro aposentado da Corte alemã, francesa, russa ou americana
ou mesmo um grande jurista de fama internacional, conquanto judeu. Em
minha defesa, ao sair da Corte, levei a impressão de que falara perante juízes
sábios, dentre todos os que até então conhecera.
Ao repatriarem Bruna, os juízes da Suprema Corte de Israel repetiram
o gesto de Salomão, na Antiguidade. Das centenas de crianças raptadas até
então, foi ela a primeira a ser devolvida ao Brasil, sob a égide de um sentimento
milenar de Justiça
567
HISTÓRIAS DE VIDA
Outro caso, também em Israel, foi a libertação de Lâmia Maruf,
ali condenada à pena de prisão perpétua. Essa jovem brasileira apaixonouse por Tawfic Abdallah, um primo palestino em visita ao Brasil. Casaramse, passando a morar em Jerusalém. Sem habilitação, ele lhe pediu para
alugar um carro de que se serviu, em companhia de outrem, para dar
carona a dois soldados israelenses, matando-os. Em 1986, dois anos depois
do assassinato (um dos soldados chamava-se David Manos) o marido e o
amigo foram presos e condenados à morte e Lâmia, à prisão perpétua por
participação criminosa.
Visitei-a na prisão de Hamla, no deserto. Apareceu lívida, com os
cabelos extremamente longos, quase arrastando-se no chão. A uma pergunta,
respondeu que as presas judias se recusavam a cortá-lo. “Nem sequer me
tocam”, acrescentou. A sua condenação era já definitiva, não me restando
vez processual para defendê-la, como me pedia o Senado, por meio de seu
presidente, o então senador Mauro Benevides.
De volta ao Brasil, dei início a uma gestão consular, convencendo
o embaixador de Israel que o presidente da República, na época Fernando
Henrique, jamais visitaria aquele país, enquanto ali estivesse presa, em prisão
perpétua, uma brasileira, a primeira em toda nossa história.
Interessado na visita presidencial já marcada e, por isso,
sistematicamente adiada, o governo de Israel, por meio das gestões de
seu embaixador aqui, terminou por soltá-la. Recebi-a em Brasília em seu
retorno ao país. Depois de onze anos de prisão e em razão de um acordo
entre Binyamin Natanyahu e o líder palestino, Yasser Arafat, ela foi posta em
liberdade, vivendo com a filha em São Paulo, onde moravam os pais.
568
FRANCISCO LEITE CHAVES
Pela singularidade de Londrina, cosmopolita, e por pertencer aos
quadros da Inter-American Bar Association (Associação Interamericana de
Advogados), diversos outros casos no Exterior tive de patrocinar, como no
México e Estados Unidos, o que me ampliou a visão de senador-constituinte e
procurador-geral da Justiça Militar.
Memória MPM – E o Sindicato dos Bancários? O senhor chegou a ser
detido em 1964, não é?
Francisco Leite Chaves – Quando, vindo do Rio, cheguei a
Londrina, como advogado do BB [Banco do Brasil], fui convidado para
assumir a presidência do Sindicato dos Bancários, sob o argumento de que
funcionários de outros estabelecimentos eram sempre demitidos quando
aceitavam o encargo. Os do BB eram a exceção, o que me levou a aceitá-la.
Em razão disso veio a minha prisão em 1964, juntamente com
prefeitos, deputados, professores e diversos profissionais. Fiquei no quartel por
15 dias, sendo solto pouco depois, sem inquérito e sem que me dissessem o
motivo da prisão.
Memória MPM – Como foi a prisão?
Francisco Leite Chaves – Pois é, depois de algum tempo preso eu
pedi para saber, afinal, o que havia contra mim. Qual era a denúncia? “Não
existe nada contra o senhor, a não ser aquele discurso no aniversário do irmão
do ministro Amaury Silva, no quartel, desapontando os oficiais.”.
Dias depois reivindiquei direito a parlatório. “O que é isso?”, indagou
o major. “Sendo preso e casado tenho o direito de ficar com minha esposa, uma
vez por semana.”. Depois que falou com o coronel, perguntou onde estava
569
HISTÓRIAS DE VIDA
minha esposa. Disse que no Hotel Braz, em Curitiba. Soltaram-me para
voltar em três dias. Findo o prazo, telefonei, para acerto da hora do retorno.
Disseram-me para ir embora, pois o quartel já não tinha condições de manter
a prisão porque o governador não estava pagando a “boia”.
Fui embora, mas na minha ausência vasculharam o Sindicato. Não
sofri constrangimento maior pelo fato de os cheques emitidos trazerem no
verso sua finalidade: “Cr$ 2,50, destinado à compra de uma vassoura para o
banheiro do Sindicato” e, assim, em todos, sucessivamente.
Memória MPM – O senhor se tornou empreendedor mais tarde, não é?
Francisco Leite Chaves – Sim. O primeiro shopping center do país
foi inaugurado em São Paulo, em 1966 – o Iguatemi. O segundo, por mim,
em Londrina, em 1973, denominando-se Com-Tour Londrina Shopping Center.
Foi um sucesso, por ser modalidade comercial até então desconhecida, no
Paraná e no Brasil. Foi, também, o primeiro, na America Latina, a ter registro
no Conselho Internacional de Shopping Centers (ICSC), nos Estados Unidos,
onde apareceram e foram regulamentados.
Memória MPM – Como é que o senhor entrou na política e como surgiu
a candidatura ao Senado?
Francisco Leite Chaves – O primeiro motivo foi aquela prisão, que
me fez conhecido, marcando-me como opositor ao regime. O MDB, por sua
vez, não tinha candidato ao Senado, carecendo de alguém que desse sentido e
organicidade à campanha. Os líderes mais visíveis do partido, que não passavam
de dois, tinham possibilidade de se elegerem deputados federais, não havendo
necessidade de irem para o sacrifício, que sobrou para mim.
570
FRANCISCO LEITE CHAVES
Organizei a campanha de sorte a visitar todos os municípios,
começando pelas estradas de terra. Quando as chuvas chegassem, entraria
no asfalto e foi o que ocorreu, dando-me a possibilidade de visitar o Estado,
na totalidade.
Ao tempo, a Arena, partido do governo, detinha a maioria esmagadora
dos cargos eletivos no Paraná: 95% dos prefeitos e 90% dos vereadores, além do
governador, por ele nomeado, e de todos os cargos do Executivo. O MDB era
uma ilusão, uma oposição consentida. Sendo profissional liberal, poderia correr
o risco, argumentavam. Todos me aceitaram, homologando-me na Convenção.
No início, resisti à ideia, aceitando-a, depois, para mostrar na campanha o
desastre da continuidade sem-fim de um regime ditatorial; a situação miserável
dos boias-frias, mortos nos caminhões paus de arara, às vezes transfixados pelos
seus próprios instrumentos de trabalho. A exploração sem-fim do consumidor,
que às vezes se submetia ao logro de comprar o mesmo produto, com menor
volume e mesmo rótulo, sem fiscalização do governo e, menos ainda, da Defesa
ao Consumidor. Na TV cheguei a mostrar duas latas de azeite, iguais em tudo,
menos no tamanho, pelo mesmo preço. A repercussão foi enorme.
Dessas discussões e sugestões populares foi que surgiu o meu
primeiro projeto no Senado, protegendo de impenhorabilidade a casa própria
(Projeto-Lei nº 41/75, publicado no DCN em 04.10.75, que deu ensejo à Lei
8.009/1990).
Falava, às vezes, ao longo das estradas e até mesmo dentro dos
cafezais; bastava que houvesse gente.
Apesar das entrevistas, elas nunca eram publicadas, até que chegou
um convite de uma TV em Curitiba para uma entrevista no programa Grandes
571
HISTÓRIAS DE VIDA
Encontros. Foi um logro. Queriam que eu entrasse no programa com um
papagaio no ombro pois não admitiam um candidato sem símbolos, dizendo:
“O Janio tinha a vassoura; nos Estados Unidos, o Partido Democrata tinha
o burro, o Republicano, o elefante...”. O estado-maior do partido opositor
tinha preparado o ambiente para mostrar-me como um candidato ridículo. “O
‘homem do Papagaio’: dá cá o pé, meu louro.”.
Recusei-me a entrar no programa. Como já estava no ar, concordaram
em retirar o papagaio, vindo a primeira pergunta: “O senhor já foi vereador,
prefeito, deputado? Nem governador?” À minha negativa à provocação: “É
muito ousado, não tendo sido nada, quer ser senador pelo Paraná?”, ao que
respondi: “O que diz a Constituição? Para ser senador basta que o candidato
seja brasileiro, maior de 35 anos, eleitor... aqui estão os meus documentos.”.
Mostrei-os. Outras se seguiram nesse diapasão.
Aquele instante, que poderia ter sido a morte de minha
candidatura, tornou-se o seu berço, eis que o sul do Estado, onde eu não
era ainda conhecido, consolidou-se como base de entusiasmante apoio. Ao
sair do programa, esperava-me uma multidão, e foi onde terminei por fazer
o meu primeiro comício em Curitiba. A maquinação adversa terminou por
consolidar a minha eleição.
Memória MPM – Sim, entrar com o papagaio ainda...
Francisco Leite Chaves – Papagaio! Onde anda o “papagaio”?
[risos]. Bem, removeram o papagaio! Foi condição para a entrevista de cuja
maldade ali me apercebera.
Memória MPM – O senhor assumiu em 1975?
572
FRANCISCO LEITE CHAVES
Francisco Leite Chaves – Sim, 1975. O meu primeiro projeto foi o
de nº 41/75, que torna impenhorável a casa própria, convertido, anos depois,
na Lei 8.009 por força de medida provisória. Explica-se. O Sarney, quando
senador, era entusiasta do projeto, apoiando-o nas discussões. Em uma das
visitas que lhe fiz, como presidente da República, perguntou-me: “Chaves,
como vai o nosso projeto do ‘Home-stead’, ou seja, o ‘Bem de Família’?”. “Não
passa, Sarney, os banqueiros não deixam, pois a garantia mais efetiva para eles
é uma residência familiar sob ameaça de penhora. Por que você não edita uma
medida provisória inspirada no projeto?”, retruquei, ao que ele indagou se
era matéria urgente e relevante para ensejar a sua aprovação. Disse que, além
de ser, teríamos o apoio do MDB e da parcela já convencida pelas sucessivas
discussões do meu projeto.
Encaminhou a medida ao Congresso, que somente veio a ser aprovada
depois que saiu da presidência, no governo do Collor, pela seguinte razão: em
discórdia com ele, os banqueiros de São Paulo deixaram de fazer lobby, o que
ensejou a aprovação da MP, sancionando-a o senador Nelson Carneiro, então
presidente do Congresso, em 1990, com o nº 8009. Enviei para o Sarney, já no
Maranhão, o Diário Oficial, com a publicação.
Memória MPM – Pode contar para a gente o episódio Herzog?
Francisco Leite Chaves – Nós estávamos em Plenário quando
chegou a notícia da morte do Herzog, enforcado, num suposto ato de suicídio.
Mas havia a denúncia de que ele fora torturado e, como gritara muito, teriam
posto uma bola de pingue-pongue na sua boca, com a qual teria se engasgado
e perecido, seguindo-se a simulação do suicídio. Pedi um aparte em meio
aos debates. O aparte foi dado nesses termos: “A nosso ver, e dos homens
573
HISTÓRIAS DE VIDA
de responsabilidade deste país, há uma coisa extremamente grave, além do
desrespeito à vida e à liberdade: é a colocação do Exército Nacional nisto. É
ele uma organização muito séria; tem que merecer o respeito do país, porque
não pertence – como já dissemos aqui – nem à ARENA, nem ao governo,
nem ao MDB, mas à pátria; ele tem que ser intocável. Não se pode colocar
uma corporação de desígnios tão elevados, num movimento de repressão.
Quando Hitler praticava seus ignominiosos crimes não usava o Exército;
para tanto criou a “SS”, vestindo-a de negro, para não comprometer as suas
corporações...”.
Alguém do Serviço Secreto, presente à sessão, levou-o ao general
Sylvio Frota, então ministro do Exército, potencial candidato à sucessão do
Geisel e com ele dissidente, deste exigindo a minha cassação. Por interferência
de Petrônio Portela, líder do governo, e de Franco Montoro, do MDB, com
a aquiescência de Geisel, conduzida por Armando Falcão, resolveu-se o caso
mediante uma declaração minha em Plenário, que foi tomada como retratação.
O surpreendente é que, em razão da censura, nenhum jornal do país
publicou o aparte, enquanto o fizeram com destaque os jornais americanos e
alguns da Europa. A mídia do país desconhecia o affaire da cassação, enquanto
que aqueles estavam sobre ele tão informados que foram os primeiros a me
visitar, no gabinete. Buscavam informação quando, eu mesmo, de nada tinha
conhecimento, ou seja, da articulação cassatória de meu mandato.
A linha dura – SNI e Sylvio Frota – queria o fechamento do
Congresso. O meu caso não passava de um pretexto. Não fora a intervenção
parlamentar das lideranças e, até certo ponto, a minha experiência nos embates
forenses, o resultado poderia ser bem outro, como tantas vezes acontecido.
574
FRANCISCO LEITE CHAVES
O exercício do mandato, naqueles tempos, não era tarefa simples.
Qualquer coisa dita e mal-interpretada poderia resultar em cassação. Mesmo
com a votação excepcional que eu tivera, fazer política junto às bases eleitorais
poderia sugerir liderança, tendo como consequência a cassação do mandado
e interdição de direitos. Ficávamos meio isolados em Brasília. Os dezesseis
senadores da bancada do MDB, por isso, se uniram, atuando harmonicamente.
A mídia, censurada, só nos noticiava de fatos eleitoralmente negativos ou
ultrajantes. Até mesmo sobre projetos de lei caía o silêncio, como naquele meu,
da casa própria. E isto apesar de seu alcance e relevância sociais.
Foi com essa cautela inicial, com tantas cassações, que chegamos aos
nossos objetivos de luta, que eram a revogação do Decreto 477 que tolhia
estudantes; do AI-5, que amordaçava o país, chegando depois às “Diretas
Já”, à eleição de Tancredo, à Constituinte, e à Constituição, na qual demos
independência e poderes ao Ministério Público, sem o que não teríamos a
limpeza do “Mensalão”, da “Lava a Jato”, do surgimento da opinião pública,
hoje nas ruas do Brasil.
Memória MPM – Antes do senhor, o Dr. George Tavares assumiu a
Procuradoria, entre abril e dezembro de 1985...
Francisco Leite Chaves – Sim, ilustre advogado do Rio de Janeiro...
Memória MPM – Como foi esse convite? O senador Paulo Brossard era
o consultor-geral da República em 1985, não é?
Francisco Leite Chaves – Sim. Em fevereiro de 1986 ele foi
nomeado ministro da Justiça. O Brossard é que me convidou. Disse que
gostaria que eu aceitasse, porque era preciso alguém com independência
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HISTÓRIAS DE VIDA
naquela fase de transição. Eles achavam que, na época, o procurador-geral
ficava muito sujeito à égide militar e que era preciso criar uma nova realidade,
uma nova dinâmica institucional.
Memória MPM – Quais foram as suas realizações como procurador-
-geral da Justiça Militar?
Francisco Leite Chaves – Havia uma rotina de condenações,
acusações a que dei cumprimento, na medida de minha percepção de Justiça e
com absoluto cumprimento dos prazos.
Memória MPM – Em 1986, o senhor organizou o Primeiro Encontro
Nacional de Procuradores de Justiça Militar. Como foi? É interessante isso, porque
o senhor não era de carreira, mas promoveu um evento que foi marcante para a
organização da instituição.
Francisco Leite Chaves – O pessoal era de excelente qualidade,
preparado, mas havia grande distanciamento entre o procurador-geral e os
membros da instituição, inclusive entre eles mesmos (corpus constat). A Corte
Militar é, por sua vez, organização de regras rígidas, e não poderia ser diferente,
eis que além do Direito, cuida da hierarquia e disciplina da tropa. O seu
exemplo, seja, a sua compostura, impõe-se tanto quanto as decisões que profere.
Nestas colocam não apenas a lei militar, mas a experiência de toda uma vida
de caserna. E não é por outra razão que ali chegam na ativa e no último grau
da carreira. Ao chegarem à Corte, já tinham sido professores, comandantes
da oficialidade e da tropa, adidos e observadores militares em outros países. É
tanto o respeito que os ministros militares, quando existiam, miravam-se no
seu exemplo e, às vezes, não fugiam ao padrão de comportamento e aprumo
em suas decisões. Para atuar a esse nível, a Procuradoria da Justiça Militar não
576
FRANCISCO LEITE CHAVES
poderia fugir a esses padrões. Foi por isso que procuramos elevar a grau de
excelência dos seus membros, sobretudo dos seus procuradores. Sendo o único
Tribunal no país a aplicar, em tempos de guerra, a pena de morte, a Corte não
poderia dar-se ao luxo de diferente conduta.
Ao voltar ao Senado, para cumprimento de meu segundo mandato,
dei testemunho dessa realidade. Na Constituinte, defendi a Justiça Militar
como instante alto de manutenção da ordem e da democracia. Alguns setores
constituintes pretendiam eliminá-la na nova Constituição, sob a desculpa de
constituir-se, ela, em fonte de privilégio no julgamento da oficialidade. Provei
o contrário. Ali, quanto mais alto o posto, mais dura a pena. Os tribunais civis
jamais teriam condições de, a contento, exercer tal múnus.
Para avaliar hierarquia e disciplina militares, é preciso vivenciá-las e,
por anos, tanto como comandante quanto, sobretudo, como comandado. No
front, não se sabe o que é mais difícil: cumprir o soldado a ordem de avançar
para a morte ou, o ministro, a ela condená-lo. E tudo in loco, no fragor da luta.
Ali, não observam apenas preceitos de julgamento, também modos sociais.
Um caso. Ao voltarem da presidência, de uma solenidade de entrega
de espadas aos novos generais, os ministros indagaram-me sobre o Collor,
então presidente. Estranharam que não os cumprimentasse, como de costume,
limitando-se a um leve e distante aceno de cabeça. Postura imperial, arrogante,
foi o que acharam.
Tenho certeza de que nisso ficou a observação, mas não tenho dúvida
de que outros setores da ativa tomaram conhecimento do episódio, bem antes do
impeachment. Dele não participaram, ao que sei, mas nada fariam para evitá-lo.
577
HISTÓRIAS DE VIDA
Voltando à Procuradoria. Na solenidade de entrega das Carteiras,
vestido com a Beca das Solenidades de Julgamento que me fora presenteada
pelo Banco do Brasil, de cujo quadro sou advogado, hoje aposentado, fiz uma
pequena saudação sobre as nossas responsabilidades, inclusive sobre o uso da
Carteira de Procurador, a única que permite livre acesso a qualquer quartel
militar, a qualquer hora, mediante simples apresentação.
Memória MPM – Sua gestão repercutiu muito na imprensa em função
da iniciativa no sentido de reabrir o caso Rubens Paiva, não é?
Francisco Leite Chaves – Reabri o caso. Em setembro de 1986,
após a afirmação do médico, Amílcar Lobo, de que o deputado morrera
em função de torturas sofridas nas dependências do DOI-Codi, tomamos
conhecimento de outra revelação esclarecedora.
Enquanto os militares negavam e repeliam a versão do médico,
divulgavam a seguinte: “que no momento em que o Rubens Paiva estava
sendo transferido de uma instalação para outra, a viatura havia sido abordada
por um Volkswagen com três ocupantes armados que teriam rendido a escolta
e com ele fugido, sem localização até o momento”.
Uma testemunha compareceu à Procuradoria do Rio, dizendo
que o corpo de Rubens Paiva fora sepultado em uma praia, no Recreio
dos Bandeirantes, depois de transportado em um camburão a partir
de Jacarepaguá. O enterro ter-se-ia dado em 1970, em área desabitada
daquela praia.
Bem, com esses elementos, eu poderia reabrir o inquérito.
Afinal, para os militares, o Rubens teria desaparecido enquanto estava sob
578
FRANCISCO LEITE CHAVES
custódia de agentes do Poder Público e como os supostos sequestradores
eram desconhecidos, o crime não se enquadraria na Lei de Anistia. O
procurador do Rio temia reabrir o inquérito, com receio de represálias, tendo
a Procuradoria-Geral de o fazer, como de fato aconteceu.
O Brizola, então governador do Rio, cedeu as máquinas para a
escavação. Após tentativas, parte dos ossos foi encontrada e depositada no
Instituto de Medicina Legal. Por longo e desnecessário tempo ali ficaram
sem que a perícia fosse realizada.
Já estava de volta ao Senado, quando circulou a notícia de que os
ossos eram de gaivota, causando choque aos que os viram depois de exumados,
constatando a sua origem humana.
Antes da abertura do inquérito estive com Sarney, para lhe dar
conhecimento do fato, embora, por dever de ofício, não necessitasse de
autorização. Mas, por envolver explosiva questão política e por integrar o
governo, em cargo de confiança, era recomendável essa providência. Também
por lealdade, pertencendo ambos ao mesmo partido.
Na mesma ocasião dei-lhe conhecimento do processo que estava
requisitando contra o Lula que, em flamejantes entrevistas lhe dirigira
injúrias, as mais graves, incluindo os familiares. Disse-lhe que, pelo alcance
e gravidade, o fato ultrapassara os limites da pessoa para alcançar a figura do
presidente, deslocando-se a apuração criminal para nossa esfera, qual seja,
da Procuradoria. Sarney pediu que deixasse de lado o caso Lula, mas que
poderia prosseguir com o do Rubens Paiva. Fiquei surpreso. Jamais vira gesto
de tamanha tolerância e leniência.
579
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – No dia 18 de março de 1987, quando o senhor voltou
ao Senado, os jornais repercutiram que o senhor responsabilizou cinco militares
pela tortura, morte e sepultamento ilegal de Paiva. Na oportunidade, o senhor
também criticou o comandante do Leste por não responder ao inquérito reaberto.
Francisco Leite Chaves – Não chegou a haver denúncia, pelo que
me recordo. Eu não acompanhei o desdobramento do inquérito.
Memória MPM – Pouco depois, o general Sylvio Frota representou
contra o senhor.
Francisco Leite Chaves – Foi uma queixa no Supremo Tribunal
Federal em maio de 1987. Ele negou responsabilidade no acobertamento
da morte do Paiva durante seu comando no Leste, no Rio de Janeiro. O
Supremo arquivou a queixa por falta de provas e fundamentos, sendo relator
do caso o ministro Aldir Passarinho.
A birra do Frota foi outra e anterior, tendo relação com aquele
aparte de 1975 que dei no Plenário do Senado, denunciando a morte do
Herzog, em quartéis de São Paulo, por tortura.
Memória MPM – O senhor conseguiu contar com colaboração da classe
durante o período em que atuou como procurador-geral ou encontrou resistências?
Francisco Leite Chaves – Nenhuma resistência. Tampouco de
parte dos ministros, com os quais, a convite, sempre lanchava no intervalo
das sessões. Não tive convivência mais próxima com eles, mas a relação
era cordial. Inclusive, morávamos todos no mesmo prédio funcional de
apartamentos. Trabalhávamos no mesmo prédio, pois a Procuradoria-Geral
ocupava um andar na sede do Tribunal Militar. A independência, na prática,
580
FRANCISCO LEITE CHAVES
era grande. O clima ficou um pouco mais tenso depois que reabri o caso
Rubens Paiva. Aí começamos a sentir certos sinais para que deixássemos o
prédio e tivéssemos nossa própria sede, o que, aliás, foi mesmo uma medida
adequada. O caso Rubens Paiva tomou outra conotação, o que não teria
acontecido se antes de o requisitar lhes tivesse dado conhecimento como me
propunha, mas, por falha, deixou de acontecer.
Memória MPM – O senhor foi substituído pelo Eduardo Pires
Gonçalves, irmão do ministro Leônidas Pires Gonçalves, e que era da carreira. O
Pires Gonçalves teria assumido com a missão de arquivar o caso?
Francisco Leite Chaves – Bem, o ministro Leônidas tinha muito
prestígio com o Sarney, até porque ele fora agente-chave para a concretização
da transição e para a garantia da posse do presidente, depois da doença e morte
do Tancredo. Eu nada tinha contra o ministro Leônidas, mas não privávamos
de nenhuma relação. De fato, me sondou sobre essa possível indicação do
irmão para o meu lugar, não havendo entusiasmo de minha parte, sobretudo
pelos boatos de que viria para arquivar o caso do Rubens Paiva
Memória MPM – O senhor acha que a sua passagem pela Procuradoria-
-Geral de Justiça Militar foi importante para ajudar a operar a transição do
regime militar para a Nova República?
Francisco Leite Chaves – Sem dúvida. O Sarney tinha uma boa
perspectiva do que precisava ser feito para que o país tivesse uma transição
tranquila para a vida democrática, evitando exacerbar conflitos. E olha que
ele foi bastante atacado e questionado, como no caso Lula, de que já falei.
581
HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Há um discurso seu no Senado, de 1981, que repercute
na imprensa, no qual o senhor diz mais ou menos que seria necessário que a esquerda
mais radical se acalmasse, não fosse tão afoita, porque a precipitação poderia gerar
retrocesso e reação da extrema direita militar. Isso coincidia com o episódio do
Riocentro. O senhor se recorda desse discurso?
Francisco Leite Chaves – Do discurso em si, não, mas da ideia, sim.
A ameaça de retrocesso era permanente. Os militares saíram com a certeza de
voltar. Então, determinados excessos e precipitações poderiam ser usados contra
o processo de abertura e de afirmação da democracia. Era difícil, para todos,
sabermos a justa medida do que podia ou não ser feito e tolerado. Contribuía
para a construção desse caminho uma boa convivência entre os senadores. Não
havia hostilidade. Sarney, Jarbas Passarinho, Petrônio Portela, conversávamos,
havendo entendimento. Os senadores se preocupavam em não exacerbar as
hostilidades que se verificavam na Câmara. O Senado desempenhou um papel
fundamental na transição com a moderação que foi construída a partir dessa
interlocução e dessa cordialidade.
Em 1978, realizou-se em Curitiba aquela importante Conferência
Nacional dos Advogados, organizada pela OAB. Lá estiveram grandes nomes do
mundo jurídico brasileiro como Pontes de Miranda – com quem eu conversei
longamente –, o Seabra Fagundes. O Raymundo Faoro presidia o Congresso.
O Petrônio foi incumbido pelo Geisel de conversar com os juristas. A iniciativa
pessoal do Geisel, de fazer a abertura, foi muito importante. E acho que o caso
do Herzog foi um divisor de águas, porque ali o Geisel se convenceu de que não
era mais possível manter o arbítrio. As coisas teriam degringolado se tivéssemos,
no comando, militares sem capacidade de contenção, como o Sylvio Frota. O
próprio Castelo Branco, estou convencido, não desejava a montagem daquela
582
FRANCISCO LEITE CHAVES
engrenagem toda na qual se transformou o regime. O Geisel comissionou o
Figueiredo para fazer a transição. Incumbiu-o de não deixar o processo de
abertura e de transferência do poder aos civis naufragar. Escolheu a dedo. O
Figueiredo cumpriu essa missão. Foi fiel ao Geisel. Mas isso tudo a gente pode
dizer também olhando para o passado. No calor dos acontecimentos, não se tinha
certeza. Temia-se que o Geisel não tivesse força, que uma nova onda de repressão
viesse, como ocorreu na Argentina. Foi uma conquista chegar à Constituinte.
Memória MPM – Como foi a experiência da Constituinte?
Francisco Leite Chaves – Foi preocupante. Sem anteprojeto,
partimos de uma discussão, como se fizéssemos um prédio sem andaimes. A
participação popular foi enorme, todos querendo colocar na Constituição a
solução de seus problemas. A um tempo, chegamos a desprezar os rigores dos
princípios constitucionais para que a Carta fosse promulgada. A pressão das
bancadas sindicais era por tal modo densa que, se uma matéria, mesmo de
Direito Comum, não fosse acolhida, os trabalhos não andavam. Certa vez, às
quatro horas da manhã, aprovada uma emenda, um constituinte levantou uma
questão de ordem, indagando seu significando e alcance. Ulisses Guimarães,
diuturnamente na presidência, a ela respondeu: “O senhor vá ao Supremo, eles
que digam o que significa.”.
Ulisses, naquele afinco, parecia antever a morte, sendo a Constituição
o seu único e essencial objetivo. De Fernando Pessoa, citava sempre o verso:
“Navegar é preciso, viver não é preciso.”. Morreu no mar.
Tantos e tão vários foram os direitos criados, que pretendíamos
transformar o Supremo em Corte Constitucional, ao que se opuseram, apesar de
renovadas reuniões. Já próximo à finalização dos trabalhos percebemos, nós da
583
HISTÓRIAS DE VIDA
Subcomissão do Judiciário, que muitos dos novos direitos criados, sobretudo os
difusos, ficaram sem cobertura.
Foi aí que atribuímos ao Ministério Público a responsabilidade de sua
defesa, dando-lhe independência e poderes como jamais teve no país. Sem isso,
não teríamos nunca o “Mensalão” e, menos ainda, o “Lava a Jato”, renovando e
fortalecendo a moralidade e consciência públicas, levando as multidões às ruas,
o que está acontecendo, neste instante, em todo o país
Percebendo a heterogeneidade e, às vezes, inconstitucionalidade
das normas aprovadas, introduzimos o poder de emendas, que têm salvado e
aprimorado a Constituição. Sem isso, ela seguramente já não vigeria.
O importante foi pacificar a nação. Todos tinham de ser ouvidos e
foram ouvidos Num congresso da OAB, aqui em Brasília, o ministro Gilmar
Mendes, do Supremo, fez largados elogios à Constituinte, dizendo que ela
merecia uma homenagem, o que “fazia na pessoa do senador Leite Chaves, aqui
presente”; me surpreendeu por dois motivos: um, porque tendo participado da
sabatina da maioria dos ministros no Senado, era ele um dos poucos que eu
não conhecia, embora admirador de suas luzes; e dois, porque ainda estávamos
no período de grandes críticas e ataques à Constituição. Só anos depois vim
a agradecer sua deferência numa homenagem prestada ao senador Paulo
Brossard, ainda vivo, mas, por doença, ausente.
A solenidade foi na IDP, da qual é professor o ministro. Saí com
a impressão de que, entre todas, foi a mais organizada e brilhante a que já
assistira; sobretudo por ter sido Brossard o conspícuo orador do século, tribuno
que, ouvido, convencia e visto, deslumbrava. No período ditatorial três dos seus
discursos, proferidos no Senado, em três sessões consecutivas, bastaram para
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FRANCISCO LEITE CHAVES
convencer a nação da inviabilidade do regime e, a este, de que já lhe faltavam
forças para a indefinida continuidade.
Memória MPM – Como o senhor recebeu, como senador, o capítulo sobre
o Ministério Público? Essa foi uma das grandes novidades do texto constitucional,
não foi?
Francisco Leite Chaves – Não tive surpresa, pois fui um dos
redatores do Capítulo IV que o institui. Com Plínio de Arruda Sampaio, que
foi o presidente da Subcomissão do Judiciário, desenvolvi grande esforço para
que a instituição gozasse dos poderes e independência de que hoje desfruta.
Nisso contamos com a colaboração de dois promotores aposentados
de São Paulo, que foram colegas do Plínio, e acabaram por dar equilíbrio e
consistência jurídica àquele capítulo, hoje consubstanciado nos Art. 127 a 130A, da Constituição, ao que me lembro.
Memória MPM – O capítulo do Ministério Público encontrou
resistências na Assembleia Nacional Constituinte. Existiam setores organizados
contra aspectos do capítulo? O senhor se recorda disso? Quais foram os principais
obstáculos que o capítulo precisou vencer para ser aprovado?
Francisco Leite Chaves – Pois é, as comissões funcionavam
independentemente, cada uma cuidando do seu mister. Como a do Judiciário
era muito técnica, os seus trabalhos tinham pouca ressonância pública.
Alguma resistência dos flancos mais conservadores, numa antevisão
do que está acontecendo hoje com o “Lava a Jato”. Jamais se poderia pensar
na prisão de grandes empresários neste país. Não fosse essa independência
concedida ao MP, isso jamais ocorreria. Somos um país flagelado pela
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HISTÓRIAS DE VIDA
corrupção desde a época das caravelas, havendo hoje a esperança de conserto,
não só por isso, como sobretudo pelo levantar-se das multidões. Seja, a
formação de opinião pública consciente que, a esse nível, governa a sociedade
e o mundo.
Memória MPM – O Brossard foi ministro da Justiça entre fevereiro
de 1986 e janeiro de 1989, quando então foi nomeado para o Supremo. Como foi a
relação com ele durante a Constituinte?
Francisco Leite Chaves – A nomeação do Brossard para o
Ministério foi uma sugestão minha ao Sarney, que se queixava da dificuldade
de fazer as coisas andarem naquele momento no Senado. O Brossard tinha
alta respeitabilidade nacional e dentro do partido. Tinha prestígio no Senado,
tanto entre emedebistas e antigos oponentes do regime militar, quanto
entre liberais. A origem política do Sarney estava na antiga UDN, que fazia
oposição ao governo João Goulart, e em 1970 fora eleito senador do Maranhão
pela Arena. Mas ele sempre cultivara o diálogo. O Sarney gostou da ideia e
telefonou naquele momento mesmo para o Brossard, na minha frente. Passei-
lhe o telefone. O Brossard não tinha conseguido se reeleger em 1982 e nesse
momento ocupava a Consultoria-Geral da República. Ele disse que estaria em
Brasília na seguinte quinta-feira para uma sustentação no Supremo e que iria
conversar então pessoalmente com o Sarney. E foi, aceitando o convite.
Memória MPM – E tinha partido do Brossard a sua indicação para a
Procuradoria-Geral de Justiça Militar, não é?
Francisco Leite Chaves – Sim, o Brossard, embora um liberal, não
era de modo algum um reacionário. Ele estava preocupado em consolidar a
transição para a democracia. E uma peça nesse processo era a contenção dos
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FRANCISCO LEITE CHAVES
militares, para o que a Justiça Militar era estratégica. Do mesmo modo, como
mencionei, ele entendia que a jurisdição militar deveria continuar existindo.
Um pensamento também partilhado pelo Sarney. Então, eles acharam que
um advogado na Procuradoria-Geral seria importante, porque imprimiria
independência e havia, na época, a imagem de que a Justiça Militar jamais
condenaria um reacionário identificado com o regime, haja vista o que
acontecera com o caso do Herzog em 1975 e com o do Riocentro, em 1981,
apenas para ficar nesses dois exemplos. Não que o Tribunal também não
tivesse seus votos em discordância, ou não tivesse contribuído para aliviar
a mão em alguns momentos, mas a imagem geral era essa. Eles tampouco
se incomodaram com aquela história da minha prisão em 1964, isto é,
não acharam que isto empanaria a minha biografia e o meu desempenho
justamente na Procuradoria-Geral Militar, pois, afinal, a prisão não tinha sido
por questões ideológicas, mas uma represália pela defesa que eu então fizera
dos interesses trabalhistas dos bancários, em Londrina, no Paraná. Acabei
aceitando a missão, muito embora do ponto de vista pessoal não houvesse
vantagem. Pelo contrário, ganharia mais se tivesse me dedicado exclusivamente
ao escritório.
Memória MPM – O senhor chegou a pegar algum caso de Lei de
Segurança Nacional?
Francisco Leite Chaves – Poucos, se bem me lembro.
Memória MPM – O senhor chegou a abrir algum inquérito ou
denunciar alguém pela Lei de Segurança Nacional?
Francisco Leite Chaves – Isso não. Já passara o tempo desses casos.
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HISTÓRIAS DE VIDA
Memória MPM – Voltando à Constituinte e ao presidente Sarney, ele
podia ter interferido de forma mais decisiva no processo, mas não o fez, correto?
Francisco Leite Chaves – Sim, ele respeitou o Legislativo, num
momento em que isso foi muito importante. Ele vinha do Legislativo.
Mesmo sendo oriundo da Arena, soube entender a relevância do contexto.
Muita gente o critica, mas o fato é que ele foi fundamental para a transição da
ditadura para a democracia. O Sarney era incrivelmente tolerante, inclusive
quanto aos ataques que recebia, como mencionei. O Lula foi muito violento
contra ele na oportunidade e mesmo assim pediu-me para não o processar.
Memória MPM – Havia uma sucessão de escândalos explodindo na
República, sem mencionar o fracasso sucessivo dos planos de contenção da inflação e
de estabilização econômica...
Francisco Leite Chaves – Sim,havia de tudo! Tabelamento de preços...
Prendia-se boi gordo em São Paulo! Foi uma época de experimentalismo.
O país melhorou muito de lá para cá, na economia, na infraestrutura, na
democracia. Mas algumas dessas conquistas parecem estar sendo postas à
prova no contexto da atual crise. Eu acho que é preciso ter cautela. Não vejo, no
momento, clima para impeachment da presidente Dilma Rousseff, como vem
sendo exigido pelas manifestações de rua. Ela me parece bem-intencionada,
sincera. Um impeachment atrasaria o país, geraria instabilidade institucional.
Agora, além da complexa crise política e do desarranjo da economia, há uma
grave crise no modelo de gestão, a começar pelo fato de o presidente Lula
ter, em época de fartura, espalhado cabos eleitorais sem qualquer tradição,
preparo ou qualificação em postos estratégicos da Administração. Há muitos
casos que foram provocados por incompetência. Há extensões de projetos que
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FRANCISCO LEITE CHAVES
não podem ser feitas porque falta quem as execute. Às vezes, nas instituições,
não há nem mesmo quem possa receber qualificadamente um visitante. Houve
um retrocesso grande em termos de modelos e qualidade de gestão. O nível
de quem está administrando, especialmente nos escalões intermediários ou de
base, me parece muito precário. Não vai ser fácil recuperar isso. Paralelamente,
há questões éticas que são escancaradas aos olhos de todos, mas a tendência
é fazer tudo para não se enxergar. A Petrobras pode ter sofrido achaques de
esquemas de corrupção, que foram temporários, pontuais. Parece que a coisa
veio se agravando nos últimos anos. Mas numa instituição financeira, essa
indistinção entre público e privado é sistêmica, como se sabe, porque sempre
foi assim. O Banco do Brasil, executor da política financeira de governo, está
com cinco diretores presos por corrupção, um deles em prisões da Itália e nas
manchetes do mundo, dificultando os investimentos externos, de que tanto
carece. E não há uma comissão parlamentar de inquérito para investigar o
que se passa. Um problema adicional no quadro atual é a falta de produção
de novas lideranças na política. A gente não vê quase nada de novo, que seja
consistente, aparecendo. Quem vai gerir o país nos próximos anos? A regra para
o sucesso na Administração é que, de parte do candidato haja conhecimento,
independência econômica e poder, nesta ordem, o que não acontece.
Mas esse vácuo cívico já era esperado. À queda de qualquer ditadura,
seja civil ou militar, segue-se o vazio. Desaparecem os partidos, e as lideranças.
As novas, sem cultura, sobretudo política, surgem corrompendo, como acontece,
de que são prova os inquéritos e prisões ocorrentes.
Mas a alternativa é a democracia, uma máquina de lavar, que
vai batendo e a sujeira, saindo. A constância democrática é que enseja o
restabelecimento da normalidade constitucional. A sua imaturidade não
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HISTÓRIAS DE VIDA
suportaria agora um impeachment, sem partidos estruturados, sem lideranças, os
corruptos presos, ainda não julgados, e as massas nas ruas, ainda sem objetivos
para o day after, seja, o depois.
Memória MPM – Senador, muito obrigado pelo seu depoimento.
Francisco Leite Chaves – Eu é que agradeço a lembrança do
Ministério Público Militar da União para este registro. Por último, quero
registrar a agradável surpresa que me ocorreu no dia da posse. Na Galeria
dos Procuradores-Gerais, deparei-me com a foto de João Pessoa, mártir da
Revolução de 1930 e meu conterrâneo da Paraíba. Ignorava que ele tivesse
ocupado o cargo, anteriormente. Fui o segundo do Estado a exercê-lo.
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COMPOSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
Subprocuradores-Gerais de Justiça Militar
Mário Sérgio Marques Soares
Carlos Frederico de Oliveira Pereira
Roberto Coutinho
Edmar Jorge de Almeida
Péricles Aurélio Lima de Queiroz
Alexandre Carlos Umberto Concesi
Arilma Cunha da Silva
Marcelo Weitzel Rabello de Souza
José Garcia de Freitas Junior
Herminia Celia Raymundo
Anete Vasconcelos de Borborema
Maria de Nazaré Guimarães de Moraes
Giovanni Rattacaso
Procuradores de Justiça Militar
Cezar Luís Rangel Coutinho
Osmar Machado Fernandes
Samuel Pereira
Maria Ester Henriques Tavares
Maria de Lourdes Souza Gouveia Sanson
Antonio Cerqueira
591
HISTÓRIAS DE VIDA
Clauro Roberto de Bortolli
Antonio Pereira Duarte
Antonio Antero dos Santos
Dimorvan Gonçalves Leite
Ricardo de Brito Albuquerque Pontes Freitas
Rejane Batista de Souza Barbosa
Hevelize Jourdan Covas Pereira
Ronaldo Petis Fernandes
Clementino Augusto Ruffeil Rodrigues
Luciano Moreira Gorrilhas
Claúdia Márcia Ramalho Moreira Luz
Alexandre José de Barros Leal Saraiva
Andrea Cristina Marangoni Muniz
José Luiz Pereira Gomes
Ulysses da Silva Costa Filho
Promotores de Justiça Militar
Maria da Graça Oliveira de Almeida
Selma Pereira de Santana
Ailton José da Silva
Otávio Augusto de Castro Bravo
Adriana Santos
Ataliba Chaves de Souza Neto
André Luiz de Sá Santos
Jorge Augusto Lima Melgaço
Eliane Costa de Azevedo
592
COMPOSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
Ana Cristina da Silva
Marcos José Pinto
Najla Nassif Palma
Jaime de Cassio Miranda
Jorge Cesar de Assis
Adriano Alves Marreiros
Antonio Carlos Gomes Facuri
Sergio de Saldanha da Gama Júnior
Helena Mercês Claret da Mota
Luís Antonio Grigoletto
Irabeni Nunes de Oliveira
Sandra Mara Regis
Ana Carolina Scultori Teles Leiro
Renato Brasileiro de Lima
Soel Arpini
Guilherme da Rocha Ramos
Alexandre Reis de Carvalho
Ednilson Pires
Max Brito Repsold
Claudio Martins
Angela Montenegro Taveira
Adilson José Gutierrez
Jorge Augusto Caetano de Farias
Andréa Helena Blumm Ferreira
Caroline de Paula Oliveira Piloni
Giselle Carvalho Pereira Coelho
Cícero Robson Coimbra Neves
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HISTÓRIAS DE VIDA
Mario André da Silva Porto
Rodrigo Ladeira de Oliveira
Anna Beatriz Luz Podcameni
Nelson Lacava Filho
Luiz Felipe Carvalho Silva
Márcio Pereira da Silva
Fernando Hugo Miranda Teles
Karollyne Dias Gondim Neo
MEMBROS INATIVOS
Subprocuradores-Gerais de Justiça Militar
Dácio Antonio Gomes de Araujo
Flávio Benjamin Correa de Andrade
Gilson Ribeiro Gonçalves
Helio Silva da Costa
Jaime Pugliesi Branco
Janette Oliveira Guimarães
João Ferreira de Araujo
Jorge Luiz Dodaro
José Carlos Couto de Carvalho
Lúcia Beatriz Magalhaes de Mattos
Luiz Antonio Bueno Xavier
Luiz Sergio Chame
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COMPOSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
Marco Antonio Pinto Bittar
Maria José de Carvalho Salvador
Maria Lúcia Wagner
Maria Luiza Monteiro de Melo
Marisa Terezinha Cauduro da Silva
Marly Gueiros Leite
Milton Menezes da Costa Filho
Nelson Luiz Arruda Senra
Paulo Duarte Fontes
Renato da Cunha Ribeiro
Rubem Gomes Ferraz
Ruiz de Almeida Possinhas
Rutílio Torres Augusto
Solange Augusto Ferreira
Vera Regina Coêlho Americano Alves de Brito
Procuradores de Justiça Militar
Claudia Rocha Lamas
Durval Ayrton Moura de Araújo
Ione de Souza Cruz
Ivone Cerqueira de Carvalho
Joao Alfredo da Silva
Joao Jayme Araújo
Marcelo Melo Barreto de Araújo
Maria Marli Crescêncio Pereira
Mario Elias Miguel
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HISTÓRIAS DE VIDA
Nadir Bispo Marques
Paulo Cesar de Siqueira Castro
Renee Solange da Fonseca França
Teresa Cristina Leal Baraúna
Promotores de Justiça Militar
Julieta Dutra Weber
Marly Amorim Monteiro
Zuleika Centeno Stone Jardim
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