Brasileiros sulistas como atores da transformação rural
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Brasileiros sulistas como atores da transformação rural
BRASILEIROS SULISTAS COMO ATORES DA TRANSFORMAÇÃO RURAL NOCENTRO-OESTE BRASILEIRO: O CASO DE MA TO GROSSO* Gerd Kohlhepp** Markus Blumenschein*** Southern Brazilinns as actors of rural structural change in the Central- West region: The example of Mato Grosso Migrants from Southern Brazil are lhe main actors of structural change in the regional development of the Central- Wests campos cerrados. Starting in 1975, and more intensely in lhe 1980s and 1990s, traditional extensive caule ranching has been replaced by largescale modernized land-use systems, especially soybean production, Following these changes, new economic elites emerged in the region and extended their influence over regional politics, thus giving rise lo conflicts between migrants and the Mato Grosso population. Agroindustrial investments supported by sp e cifi c regional development programmes (PROTERRA, POLOCENTRO) created a new model of agrarian land-use based on financiai subsidies and aimed at the world market. Deregulation of agrarian policy and agro-ecological degradation led to a severe crisis in soybean production in lhe 1990s. Consolidation of this new social space in central Brazil requires a diversification of land-use in order to contain social and ecological vulnerability caused by agrarian modernization. Situação inicial no Sul do BrasU o Sul do Brasil foi considerado até a década de 70 como uma macrorregião onde a situação social no espaço rural apresentava - de uma maneira geral - uma base relativamente propícia para um desenvolvimento regional viável. Este cenário continua sendo relevante em partes do Sul em comparação a outras regiões do Brasil. Porém, por causa de critérios sócioespaciais, econômicos e ecológicos como também por razão de sua diferenciação regional, toma-se necessária uma análise meticulosa para compreender a contribuição dos sulistas no Centro-Oeste brasileiro . •, Professor do Instituto Geográfico da Universidade de Tübingen, Alemanha. Doutor em Geografia pela Universidade de Tübingen, Alemanha. 0.0 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n° 8, pp. 47-66, janJjun., 2000 48 o Rio Grande do Sul e Santa Catarina foram áreas de colonização agrária de iniciativa privada e oficial no século XIX, com imigrantes oriundos principalmente da Alemanha, da Itália e do Leste europeu, onde foram criadas colônias de pequenos produtores, etnicamente homogêneas, fechadas e isoladas espacialmente. Ao contrário, a abertura de terras no Estado do Paraná iniciou-se em escala maior somente no século XX. Esta realizou-se em virtude da migração interna das frentes pioneiras dos estados vizinhos do sul para o oeste do estado, enquanto que a fronteira cafeeira de São Paulo moveu-se em direção sudoeste para o norte do Paraná e alcançou, nos anos 50 e 60, o auge de sua expansão. As disparidades naturais e sócio-espaciais entre os campos limpos da Campanha, com uma pecuária extensiva em latifúndios luso brasileiros, e as áreas de floresta, com pequenos produtores predominantemente centro e suleuropeus que exercem uma agricultura de subsistência em estabelecimentos de 25 hectares com base na rotação de terras (PFEIFER, 1967), indicam no Rio Grande do Sul um paradigma válido por séculos no Brasil: a floresta como espaço de ação das atividades agrárias e como espaço prioritário da colonização, e os campos como região de pecuária da periferia - espaço remoto do mercado no sentido de J. H. von Thünen. A elevada pressão demográfica nas áreas da antiga colonização riograndense levou a uma divisão igualitária dos lotes entre os filhos e, com isso, as gerações seguintes sofreram, conseqüentemente, um êxodo para as novas frentes pioneiras no noroeste do estado". Nesta etapa não mudou nem a estrutura nem a finalidade econômica dos estabelecimentos. O desmatamento era parte integrante deste sistema de agricultura de rotação de terras, e a elevada freqüência da alternância entre lavoura e floresta intensificou nos minifúndios os danos no ecossistema florestal. Os campos do Planalto Riograndense foram utilizados para a agricultura apenas muito tempo depois da abertura de novas frentes pioneiras em áreas de floresta do Alto Uruguai. Com a modernização da agricultura a partir da década de 60. essa região foi submetida, através da mecanização, adubação, rotação de culturas e ampliação dos estabelecimentos, a uma orientação totalmente nova. No Paraná, os Campos Gerais de Ponta Grossa tomaram-se, já no início do século XX, núcleo de inovação para uma valorização agrária do espaço rural bem-sucedida fora das áreas de floresta (WAIBEL, 1955), que atingiu 1 Apesar de um número relativamente pequeno de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul (1824-1939: 75.000), na década de 1950 já residiam naquele estado quase um milhão de descendentes (ROCHE, 1959; SCHRADER, 1994). Brasileiros Sulistas como Atores da Transformação Rural. .. 49 seu auge com a colônia Entre Rios, fundada em 1952 perto de Guarapuava pelos suábios do Danúbio (KOHLHEPP, 1991a). A destruição florestal em grande escala iniciou-se no oeste paranaense somente a partir do avanço espaço-temporal da migração interna do Rio Grande do Sul passando por Santa Catarina para o então oeste paranaense, onde desenvolveram-se rapidamente médios e grandes estabelecimentos a base de plantações de soja e trigo na segunda metade dos anos 60. Atores sociais de outras origens étnicas já tinham avançado com a plantação de café até o norte do Paraná, levando ao desmatamento em grande escala através de queimadas (KOHLHEPP, 1975). A migração interna, vinda do Sul do Brasil para o Norte, passou primeiramente pelos cerrados do Planalto Central e concentrou-se, a partir da década de 70 - após iniciativas pontuais no norte de Mato Grosso nos anos 60 (PFEIFER, 1966) - naS florestas tropicais amazônicas no eixo da Transamazônica, em Mato Grosso e em Rondônia. Somente após um certo tempo, com o fracasso da colonização agrária na Amazônia (KOHLHEPP, 1987b), os campos cerrados no Centro do Brasil tomaram-se o novo "Eldorado" da migração interna a partir do Sul do Brasil (COYe LÜCKER, 1993). Entretanto, a modernização da agricultura nos estados sulistas e o fim da economia cafeeira no norte do Paraná, por razão de prejuízos causados pelas geadas, levaram a um processo crescente de expulsão e pressão emigratória. O geógrafo alemão Leo Waibel, ex-consultor no Conselho Nacional de Geografia. estava convencido, já na segunda metade dos anos 40, de que os campos cerrados poderiam ser explorados pela agricultura: "A agricultura em terras de cerrado; caso seja bem sucedida, mudará por completo a situação social e econômica do Planalto Central. Tomar-se-ia, entretanto, necessária uma mudança total dos métodos agrícolas, uma mudança da agricultura nômade para a permanente..." (WAIBEL, 1948). Transformação rural no Centro-Oeste brasileiro Os executores da agricultura em grande escala, desenvolvida nos campos cerrados do Planalto Central brasileiro, são sulistas que emigraram dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, principalmente a partir de 1975. Os dados estatísticos mais recentes indicam para o período de 1975 a 1996 um saldo de migração de aproximadamente um milhão de famílias. Através da migração desses sulistas, a economia tradicional de pecuária e de Brasileiros Sulistas como Atores da Transformação Rural ••• 51 agrária voltada à exportação e com um elevado emprego de capital. Isso foi indispensável justamente no momento em que, em função da crise mundial da dívida externa (deflagrada em 1982), a agricultura de soja voltada à exportação revelou-se um importante gerador de divisas e o Centro-Oeste brasileiro foi visto como principal espaço econômico de um desenvolvimento agrário tomado, por isso, mais necessário que nunca. Os promotores desta primeira agroindustrialização foram agroindústrias nacionais do Sul do Brasil, especificamente empresas particulares e cooperativas. Estas últimas receberam também incentivos oficiais para a promoção da colonização agrária na área do cerrado, principalmente a partir da década de 80 através do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER) (BERTRAND et ai., 1991; CUNHA et ai., 1994; PIRES, 1996). A formação de enclaves: os migrantes sulistas em Mato Grosso Uma colonização dirigida através de cooperativas do Sul do Brasil, realizada predominantemente no cerrado e nas áreas de floresta tropical no norte de Mato Grosso (ao longo da Rodovia Cuiabá-Santarém assim como no Vale do Araguaia) (COY e LÜCKER, 1993), deu origem, inicialmente, a espaços homogêneos, na maior parte dos casos com brasileiros sulistas de descendência alemã e italiana, de mesma origem regional e situação econômica relativamente semelhante. No entanto, nas regiões de cerrado, como no Médio Norte e no Sudeste de Mato Grosso, caracterizadas por colonização espontânea, surgiram áreas de brasileiros sulistas de origem mista e de uma situação econômica heterogênea com uma variância acentuada nas extensões das propriedades (BLUMENSCHEIN, 1999). Porém, formaram-se geralmente, em ambos os casos, redes de parentesco e de conhecidos, através das quais resultou uma continuidade estabilizadora entre a região de origem e a região de migração. Desta forma, as relações com a região de origem do sul não se cortaram, fato que oferece uma certa estabilidade aos futuros migrantes, Em muitos casos o migrante atuou, desta maneira, como pioneiro na nova terra, para onde outros membros da família seguiram. Dificuldades e inseguranças iniciais, decorrentes das novas condições locais (questões de títulos da terra, contratos de compra, uso do solo, gerenciamento das propriedades etc.), foram superadas sucessivamente. O pequeno colono do Sul do Brasíl aprendeu, assim, a adaptar-se às exigências de um novo estilo empreendedor agropecuário. Em muitas regiões de colonização espontânea, pode ser observada uma série de aglomerações familiares com a mesma origem etna-social e regionaL 52 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 47-66, janJjun., 1000 Parece claro que o povoamento homogêneo e um modo uniforme de valorização do espaço resultaram em uma cultura empresarial semelhante em nível regional. Isso diminui, num primeiro momento, a importância da diversidade em termos de capital próprio e de estruturas de gerência de empreendimentos agropecuários, bem como o papel da comunicação e do milieu social dentro de estabelecimentos agropecuários modernizados. Por outro lado, esses estabelecimentos diferenciam-se daqueles de propriedade da população tradicional mato-grossense. A formação de uma "diáspora sulista" no Centro-Oeste destacou-se também em diferenças sócio-culturais em relação à população tradicional, as quais podem ser observadas até mesmo nos chapadões além dos limites do Centro-Oeste (HAESBAERT, 1997). Essas diferenças manifestam-se em conflitos culturais com uma respectiva "exibição" da própria identidade regional (população tradicional versus "gaúcha", ou seja, "sulista") e, sob o ângulo político, na emancipação de municípios recém-criados, que possuem uma população predominantemente originária do sul do Brasil. Hoje sua influência política se estende, muitas vezes, para além da Câmara Municipal e da Prefeitura, atingindo, também, a Assembléia Legislativa, as secretarias de Estado e até mesmo o Senado Federal (um senador). Os sulistas também trouxeram, com sua migração para o Centro-Oeste, a difusão de CTGs (Centros de Tradições Gaúchas) (cf. Figura 1), de igrejas luteranas e de emissoras de rádio com música gaúcha. Soja como cultura predominante Em geral a ascensão dos sulistas a uma nova elite agropecuária em Mato Grosso está associada ao cultivo da soja, cuja rápida expansão não deve ser vista como simples analogia à migração. Pelo contrário, numa primeira fase (antes de 1975), as formas de uso da terra originárias do sul (p.ex. também o cultivo de café e de trigo) foram reproduzidas na região de migração. As primeiras tentativas exigiram grandes esforços e foram caracterizadas por uma série de fracassos. Assim, em muitas regiões remotas do mercado consumidor desenvolveu-se a pecuária bovina extensiva, tradicionalmente predominante na região como principal forma de uso do solo. Somente através dos programas oficiais para o desenvolvimento da região do cerrado e mediante um povoamento acentuado na segunda fase (a partir de 1975) é que surgiram novas redes (extensão rural, financiamento agropecuário, transações de mercado, intermediadores de insumos agropecuários), que facilitaram - sob um modelo tecno-econômico determinado - uma rápida expansão do cultivo mecanizado Brasileiros Sulistas como Atores da Transformação 53 Rural... figura 1: Os Centros de Tradições Gaúchas no Brasil • eTG (Centro de TradiçOes Gaúchas) 222 número de CTGs em estados com mais de 50 centros AC AL AM AP 6A CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RR RS se SE SP TO Acre Alagoas Amazonas Amapá Bahia Ceará Distrito Federal Espirito Santo Goiás Maranhão Minas Gerais Mato Grosso do Sul Mato Grosso Pará Paraíba Pernambuco Piaul Paraná Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rondônia Roraima o Rio Grande do Sul Santa Catarina Sen;jipe sse 500 1000 km Paulo Tocantins Projeto: M. Blumenscheln Pontes: Haesben /997: 252. Cohelr /999. de arroz e de soja em monocultura (a partir de 1980). Precisamente a partir de 1982, o cultivo da soja mostrou-se como forma viável de uso de solo para satisfazer às necessidades de divisas do governo através de uma produção voltada à exportação, e para enfrentar o aumento do custo de produção pois, desde então, os créditos subsidiados foram cortados. Além disso, a expansão rápida do cultivo foi facilitada pela derrubada mecanizada do cerrado e pelo cultivo mecanizado nos chapadões (cf. Figura 2). Diferente da monocultura de arroz, cuja produtividade decaiu já a partir da terceira colheita, a monocultura de soja mostrou-se produtiva a médio prazo, apesar de exigir um uso elevado de insumos externos (BLUMENSCHEIN, 1995a, I995b). Em conseqüência, a produção modernizada de soja em Mato Grosso aumentou consideravelmente e alcançou em 1997/98 7,16 milhões de toneladas (cf. Figura 3). Com isso, Mato Grosso passou a ser, em poucos anos, um dos estados com maior importância na produção de soja no Brasil e encontra-se, desde 1996/97, em segundo lugar, logo depois do Paraná (1997/98: 7,29 milhões de toneladas). Brasileiros Sulistas como Atores da Transformação 55 Rural ... figura 3: Produção de soja em Mato Grosso e sua quota na produção nacional - 7,0 6,5 - 70 quota na produção nacional de soja - 6,0 UI - - - - 5.5 -e- Maio Grosso .-*- Centro-Oesle 60 ~ 1'11 1:1 1'11 Qj c: o 1'11 50 5,0 - 4,5 - :5 I o tlU 3,5 3,0 e- 2,5 :J 1:1 ...o CL - 2.0 -~, ~ ~- / -/< 40 I"~ 30 & Blumenschein Fonte: lBGE (i959-91), :J •.. CL / 2.0 lU c: :i O :J C" 83/84 85/86 87/88 89/90 91/92 93194 95/96 97/98 ano agrícola Projeto: Kohlhepp ~ o - o 81/82 11'11 1:1 10 79/80 'ü 1'11 • 197m8 Ri c: o c: o / 0,5 VI ~ / 1,5 1,0 - -, , / '0 1:1 - CI) 1:1 4,0 UI CI) 10 .-. ::!! 2000 iBGE-Produção Agricola Municipal (1990-9J). IBGE.Censo Agropecuário (/996), IBGE-LSPA (1997·98) Obs.: Foram excluídos os dados de antes do desmembramento do Estado do Mala Grosso. ocorrido em 1978, visto que alé esta época a soja era cultivada nas regiões hoje pertencentes ao Mato Grosso do Sul. O 56 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 47-66, jan.ljun., 2000 No entanto, a diminuição sem igual do financiamento de crédito oficial para o cultivo da soja e outras intervenções públicas, em virtude da desregulação da política agrária, como também as degradações agroecológicas surgidas mais freqüentemente por razão da monocultura de soja, contribuíram para uma crise grave da sojicultura em Mato Grosso a partir da década de 90 (BLUMENSCHEIN, 1999). O crescimento exponencial da produção de soja mato-grossense, que importa mais de um milhão de toneladas anualmente nesta década e que foi obtido principalmente pela abertura de novas terras no Médio Norte de Mato Grosso (Chapada dos Parecis), poderia disfarçar a situação real - o endividamento muito freqüente dos empresários do setor agrícola. Justamente estes são altamente dependentes de capital externo e logram amortizar, atualmente, somente uma parcela insignificante de seus investimentos, levando em conta que cada hectare plantado teve um investimento de US$ 400-500, e que, na melhor das hipóteses, só resta uma margem de lucro de US$ 10-50 por hectare. A monoestrutura das fazendas e a orientação padronizada das regiões agrárias, adaptadas ao uso específico dos recursos naturais, tornaram-se um obstáculo crucial para o futuro desenvolvimento regional na região do cerrado. Enquanto que as empresas de pequeno capital e endividadas são obrigadas a arrendar suas terras, vendê-las, deixá-Ias sem cultivo ou mesmo transformar lavoura em pasto, outras tentam ainda combater a crise com uma diversificação do uso do solo, com um cultivo da terra adaptado às exigências agroecológicas (plantio direto, adubação verde), com emprego de recursos financeiros alternativos e de novos meios de comercialização (BLUMENSCHEIN, 1999). A introdução de um sistema de uso da terra adaptado às condições locais e intensivo em know how exige, além disso, uma administração flexível e mão-de-obra qualificada. Justamente estas características quase não estão presentes nos latifúndios dos absenteístas, e que tem levado, em casos bastante freqüentes, empreendimentos à falência. Isso acontece indiferentemente do tamanho da propriedade e pode incluir mesmo megaempreendimentos como ocorreu com a fazenda Itamarati Norte (município de Campo Novo do Parecis), com 100.000 hectares em 1996, pertencente ao antigo "Rei da soja", Olacyr de Moraes. Por conseqüência, a ascensão dos fazendeiros sulistas à qualidade de nova elite rural em Mato Grosso é caracterizada pelo uso específico dos recursos naturais do cerrado, ou seja, pelo cultivo de soja em grande escala. A partir de 1975, e principalmente entre 1982 e o final da década de 80, este cultivo estava sob boas condições iniciais, o que facilitou sua expansão ampla e rápida. A adaptação regional específica e uniforme ao mercado voltado à exportação deixou evidente sua susceptibilidade a crises. Em conseqüência, o Brasileiros Sulistas como Atores da Transformação Rural ••• 57 "modelo eficaz" dos sulistas no cerrado precisa ser relativizado. Sua forma de uso dos recursos naturais está ligada principalmente à mudanças visíveis e se distingue assim da economia de subsistência da população tradicional. Contudo, esse modelo facilitou, pela primeira vez, a conversão e a "valorização" formal e capitalista dos chapadões, antigamente usados extensivamente e, em parte, apenas esporadicamente. Mobilidade social e motivos da migração Com a migração sucedia, em regra, uma ascensão social, na qual antigos arrendatários promoviam-se também a proprietários de terra. Os créditos subsidiados dos programas especiais do governo e a política dos preços mínimos nos anos 80, favoreceram especialmente a sojicultura no Centro-Oeste. Terras com preços seis vezes mais baratos em comparação ao Sul do Brasil, permitiram a aquisição de fazendas bem mais extensas (entre 500 a várias dezenas de mil hectares), em parte devido a anexações ilegais de terra (grilagem). Assim, em meio a estabelecimentos rurais familiares e fazendas de médio porte instalaram-se também latifúndios visando especulação. Enquanto no primeiro caso o proprietário reside na fazenda e a mão-de-obra fixa é limitada a seus familiares, as famílias dos empreendimentos de médio porte raramente trabalham no local e residem principalmente nos centros do comércio agrícola regional, nas cidades municipais mais próximas. Neste caso, o fazendeiro visita o estabelecimento, conforme a época do ano, uma até várias vezes por semana. Os proprietários dos latifúndios, muitas vezes voltados à especulação, são em regra absenteístas, que administram grandes consórcios no Rio Grande do Sul e principalmente no Paraná, onde às vezes atuam também na política do estado. A modernização da agricultura no Sul do Brasil levou quase a uma marginalização dos minifúndios e dos estabelecimentos de médio porte regionais, por razão da elevação significativa da área econômica mínima para subsistência familiar e da necessidade de investimentos. Em conseqüência, houve uma série de fluxos migratórios para as áreas de floresta subtropical no sul do Mato Grosso do Sul (Iguatemí) e do Leste do Paraguai (KOHLHEPP, 1984) como também para as florestas tropicais da Amazônia (KOHLHEPP, 1987b). A partir de 1972, esses fluxos expressaram-se, igualmente, em uma colonização no cerrado mato-grossense (conduzida com o apoio do INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e de cooperativas), amiúde sob a forma de uma verdadeira reorganização dos lotes, com o aumento da área destes para aqueles que resistiram à emigração. A colonização induzida pelo 58 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 47-66, janJjun., 2000 programa PRODECER, na década de 80, não surtiu, contudo, o mesmo efeito na maioria das vezes, pois neste caso somente famílias sem-terra foram consideradas aptas para colonização, não contando com possíveis manipulações envolvendo a transferência do título de propriedade. Os lotes dos projetos de colonização na região do cerrado mato-grossense (Vale do Araguaia, eixo Cuiabá-Santarém) são pequenos, ao contrário daqueles das áreas de colonização espontânea, somando inicialmente 200 a 500 hectares (COYILÜCKER, 1993:183-185; PIRES, 1996:86; SANTOS, 1993:66). Neste caso, o baixo grau de êxito, atestado no início destes projetos, não é atribuído ao tamanho menor dos estabelecimentos, mas sim à data da implantação. Portanto, os projetos anteriores a 1982 sofreram principalmente com a crise da rizicultura e da restrição de acesso aos créditos em virtude da crise mundial da dívida externa, enquanto que projetos posteriores já visaram conseqüentemente a sojicultura, atingindo assim melhores resultados. Essa dicotomia, que diferencia a colonização antes e depois de 1982, é observada também nas regiões de colonização espontânea. Neste sentido o exemplo dos paranaenses da região de Foz do Iguaçú (Oeste do Paraná) tem significado particular. Em virtude da construção da hidrelétrica de ltaipú (KOHLHEPP, 1987a), os proprietários desalojados migraram, a partir de 1982, para o cerrado mato-grossense. Isso se deu devido à especulação fundiária que ocorreu no âmbito da referida construção, que elevou o preço da terra no oeste do Paraná, fazendo com que o dinheiro recebido das indenizações não fosse suficiente para adqüirir outras propriedades na região (KOHLHEPP e KARP, 1987:96). Porém, os proprietários desapropriados também se recusaram a um deslocamento forçado para áreas de floresta tropical na Amazônia, como aconteceu no caso dos arrendatários e posseiros (SANTOS, 1993:189-190). Foi exatamente esse grupo dos proprietários de terra que introduziu, a partir dessa data, a sojicultura, logo após seus antecessores terem sido obrigados a liquidar suas fazendas por causa da rizicultura pouco rentável. Mobilidade espacial dos brasileiros sulistas Mesmo não levando em conta acontecimentos singulares, como a migração causada pela construção de Itaipú e a colonização agrária dirigida no cerrado, a mobilidade espacial entre o Sul do Brasil e a região do cerrado mato-grossense, como também dentro da própria região de migração, mostrase extremamente multiforme. Para caracterizar este processo, a Chapada dos Parecis no Médio Norte de Mato Grosso oferece-se como região de estudo de caso. Desde a década de 70 que essa região começou a ser povoada espon- 60 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 47-66, jan./jun., 2000 chos ' do Planalto Meridional do Rio Grande do Sul distinguem-se claramente dos catarinenses. Apesar de exercerem igualmente uma policultura antes da emigração, já exerciam, em sua grande maioria, uma agricultura mecanizadaprincipalmente na área dos campos limpos do Planalto, ainda que esta fosse um tanto rudimentar quando comparada com a de hoje em dia": Foi justamente este grupo que contribuiu para a execução eficaz do plantio de arroz mecanizado. Da mesma forma, muitas famílias da região do Alto Uruguai e do Planalto vinham realizando, desde o final da década de 50, o plantio de soja em pequena escala (PFEIFER e KOHLHEPP, 1966; LÜCKER, 1982) e, também, em sistema de cooperativismo (FRANTZ, 1980). A migração de algumas famílias gaúchas diretamente para a Chapada dos Parecis realizou-se a partir dos anos 70 e continua até hoje. Eles dispõem de muitas propriedades de terra, seja graças aos baixos custos e às condições favoráveis na compra de terras nos primeiros anos da colonização, seja por serem os migrantes da fase mais recente suficientemente capitalizados. Paranaenses de Londrina, Maringá, Campo Mourão (Norte Novo e Norte Novíssimo do Paraná) vieram de uma região agrária com pequenas e médias propriedades, onde predominava a plantação de café. Em função da implantação dos programas oficiais de erradicação dos cafezais (1962-67), e motivada, também, pelas geadas da segunda metade dos anos 60 e início dos anos 70 (KOHLHEPP, 1975) e pela - em parte considerável - ampliação dos estabelecimentos (KOHLHEPP, 1991b), a região passou a basear-se nas culturas do trigo e da soja. Muitos agricultores estavam associados a cooperativas agrícolas como a COOAMO (Campo Mourão) ou a COOPERCOTIA (em vários lugares do Norte do Paraná) (KARP, 1986). Em razão da freqüente presença de fazendeiros mato-grossenses originários do Norte Novo do Paraná, o estilo de condução dos estabelecimentos na região apresenta-se nitidamente diferenciado de acordo com a época da migração. Migrantes dos anos 70 vindos desta região tentaram, primeiramente, 3 No Rio Grande do Sul, a população residente na Campanha e na Depressão Central na parte sul do estado é considerada tradicionalmente como "gaúchos". Porém, a expressão "gaúchos", fora do Rio Grande do Sul, é um termo geral para todos migrarues vindos do Rio Grande do Sul. Isso leva a uma complicação conceitual no nosso estudo de caso, uma vez que os migrantes analisados são originários principalmente da parte norte do Rio Grande do Sul. Mas, como na região pcsquisada assim como em todo o Mato Grosso usa-se genericamente a expressão "gaúchos" para estes migrantes, continua-se mantendo o termo citado. 4 Esta policultura, contudo, tem sido, ao longo do tempo, substituída, cada vez mais, pelo cultivo mecanizado de soja e trigo. Assim, os rnigrantes dispunham de diferentes condições iniciais nos anos 60, 70, 80 e 90. Vide, sobre a transformação estrutural cio espaço agrário na região cio Alto Uruguai do Rio Grande do Sul (entre eles as atuais rnicroregiões ljuí, Santa Rosa, Santo Angelo), PFEIFER e KOHLHEPP (1966), PFElFER (1967) e LÜCKER (1986: 135 e segs.). Brasileiros Sulistas como Atores da Transformação Rural •.. 61 a plantação de café, enquanto os dos anos 80 iniciaram, além do cultivo da soja, com a plantação do trigo, embora também sem sucesso. A reprodução dos conhecimentos práticos na região de migração veio a se limitar também na década de 90, especificamente no caso do plantio direto, uma vez que, no Mato Grosso, a estação seca dos meses de inverno não permite a rotação com culturas de entresafra. Conforme o tamanho das propriedades nas regiões de origem no Paraná, os migrantes dispunham de um certo capital próprio para a implantação de um estabelecimento. Isso vale tanto para os fazendeiros do Norte Novo como do oeste do Paraná. O já citado grupo de paranaenses da região de Foz do Iguaçú (Oeste do Paraná), que vieram para a região do cerrado fugindo da inundação de suas propriedades pela barragem do Itaipú, assumiu fazendas insolventes da época do POLOCENTRO, mas igualmente colonizou áreas mais para o oeste, localizadas, por exemplo, no atual município de Campo Novo dos Parecia". Este grupo implantou desde o começo dos anos 80 a plantação de soja no Médio Norte de Mato Grosso, já que os fazendeiros antecedentes entraram em falência com a plantação de arroz. Um último grupo, que merece ser mencionado, é o dos absenteístas sulistas que, comparativamente aos citados acima, apresenta uma característica totalmente diferente. O seu Lebenswelt ("mundo da vida") está quase sempre ligado aos grandes centros urbanos (Curitiba) ou também às cidades médias (Campo Mourão, Cascavel, Guarapuava, Foz do Iguaçu, Londrina e Pato Branco no Paraná; Cruz Alta e Palmeiras das Missões, no Rio Grande do Sul). Geralmente estas fazendas são muito bem equipadas e dispõem de secadores de grãos e de armazéns próprios. Porém, nota-se que estes empreendimentos encontram-se muitas vezes um tanto isolados, pois são administrados à longa distância, e os gerentes das fazendas dispõem de pouca autonomia para decisões. Informações necessárias importantes não chegam ao conhecimento do proprietário, sendo que decisões urgentes, com respeito ao destino da fazenda, não podem ser tomadas. , Um outro fluxo de emigração, motivado bem diferentemente, se sucedeu desde 1990 no oeste do Paraná (municípios de Cascavel, Sta. Isabel d'Oeste, Realeza, São Miguel do Iguaçu, Toledo e Corbélia) para o lado oeste do municfpio de Campo Novo do Parecís, no atual municfpio de Sapezal (cf. figura 2). Estes migrantes são descendentes de famílias, que migraram outrora do Rio Grande do Sul e Santa Catarina para o oeste do Paraná, mas que conseguiram fixarse no oeste do Paraná até os anos 90. Somente a partir das instalações agroindustriais do empresário André Maggi em Sapezal, cujo empreendimento familiar "Sementes Maggi" provinha de São Miguel do Iguaçü, e com apoio da propaganda publicitária foi que se condicionou a emigração maçica para Sapezal. 62 Revista Território. Rio de Janeiro. ano V, nO8. pp. 47-66.janJjun.. 2000 A migração destes sulistas para Mato Grosso está associada a uma mudança da colonização através do desmatamento nas florestas subtropicais e tropicais limítrofes para um desmatamento na área de savana úmida". O povoamento intensivo e o melhoramento das vias de escoamento contribuíram para uma sucessiva valorização da terra, de modo que, a partir de 1980, às famílias descapitalizadas só se abriu a possibilidade de serem arrendatários. Geralmente a terra arrendada necessita ser desmatada, sendo que, diante de um período de arrendamento de cinco anos, nos primeiros três anos há isenção de juros de arrendamento. Nesse caso, os estabelecimentos continuam numa forma moderna de agricultura itinerante, pois o seu baixo grau de capitalização dificilmente permite condições para melhorar a estrutura dos estabelecimentos em terras próprias, principalmente desde a década de 90. Por outro lado, os fazendeiros capitalizados, ao receber estes estabelecimentos de alguma forma já estruturado, têm condições de continuarem cultivando o terreno sem a necessidade de novos desmatamentos. Desta forma estabelecem uma durável exploração da terra e conseqüentemente um sedentarismo, pois os altos investimentos previamente efetuados significam um obstáculo à migração. Em alguns casos existem exceções de migrações intrarregionais no Mato Grosso, principalmente nas imediações da Chapada dos Parecis. A mobilidade desses proprietários de fazendas de médio porte visa o melhoramento de sua situação através da aquisição de uma outra propriedade com melhores condições naturais e infra-estruturais, muitas vezes na vizinhança de familiares e conhecidos da região sulista de origem. Relações de trabalho e estruturas agro-sociais As relações de trabalho modificaram-se devido a mecanização agrária acentuada na região de migração, reduzindo assim fortemente o potencial de emprego, com uma forte sazonalidade do emprego e condições informais de trabalho sem carteira assinada, assim como ausência de seguro social e de saúde (BLUMENSCHEIN, I 995a). A estrutura de emprego baseada na diferenciação de sexos, levou a um excedente de homens nas regiões de sojicultura. Freqüentemente, a liberdade dos trabalhadores rurais é bastante restrita nas horas livres, como também não está sendo permitido o alojamento com família, de modo que os contatos familiares podem ser interrompidos por períodos de Os mígrantes para as áreas de floresta tropical no Mato Grosso como também a migração oriunda dos Campos Gerais do Paraná e dos campos limpos do Planalto riograndense apresentam exceções nesse caso. 6 Brasileiros Sulistas como Atores da Transformação Rural ••. 63 meses. As relações de trabalho também são influenciadas por critérios de origem regional. Assim, muitos empresários rurais sulistas preferem empregar trabalhadores rurais de sua mesma região de origem, que já dispõem de experiência na agricultura modernizada. Em alguns casos, são contratados ex-proprietários e ex-arrendatários oriundos do Sul do Brasil. No caso dos gaúchos, as relações de trabalho fazem parte de relações intergeracionais entre patrão e empregado no Rio Grande do Sul. Apenas secundariamente contrata-se, temporariamente, a mão-de-obra da própria região para desmatamento, como também para o plantio e a colheita, onde não exige maior qualificação. No caso dos desmatamentos e do trabalho manual pesado, particularmente, emprega-se, através de atravessadores ("gatos"), "saqueiros", ou seja, catadores de toco, pagando-se salários extremamente baixos. O emprego temporário e desqualificado num sistema de bóia-fria caracteriza-se por um deslocamento pendular diário dos dormitórios da periferia urbana para o lugar de emprego temporário, freqüentemente alternado. No caso de fazendas mais remotas, o alojamento é feito em barracas provisórias, cobertas com lona plástica presas com tarimbas no solo. Geralmente os estabelecimentos de médio porte ainda recorrem a mãode-obra familiar ou a conhecidos e parentes no Sul do Brasil. O último grupo é composto por trabalhadores com deslocamento pendular sazonal, que, durante a entressafra no Sul, exercem uma ocupação acessória nas fazendas modernizadas do Mato Grosso. O papel destes trabalhadores foi mais importante na época pioneira, quando faltava mão-de-obra qualificada. Tendo em vista que a infra-estrutura de transporte e armazenamento das agroindústrias ainda não estava completamente estabelecida, muitos trabalhadores traziam adubo químico em seus próprios caminhões e transportavam - após execução de suas atividades - a soja de volta para o Sul do Brasil. A despeito de uma estratégia de modernização da agricultura na região do cerrado, as relações sociais permanecem, em parte, arcaicas e ligadas às relações familiares. Além disso, o baixo grau de emprego de trabalhadores externos e a forte divisão de trabalho nos empregos sazonais levou a uma marginalização dos trabalhadores temporários desqualificados, que passaram a ocupar a periferia social fragmentada, permanecendo na maioria dos casos sem organização sindical. Conclusão Os atores sociais sulistas podem ser considerados como elemento básico da transformação rural no Centro-Oeste brasileiro. Não somente efetuaram 64 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 47-66, janJjun., 2000 uma mudança paradigmática do uso da terra nos campos cerrados brasileiros e sustentaram a expansão da sojicultura para as savanas úmidas do Planalto Central, mas também - em virtude disso - aumentaram consideravelmente sua influência política em Mato Grosso, em todos os níveis, além do crescente poder econômico de que desfrutam nas zonas rural e urbana. Justamente seu conflito sócio-cultural com a população mato-grossense contribuiu para a formação de uma identidade entre os sulistas, embora apresentassem origens regionais e sociais diferentes. No entanto, uma futura consolidação de um novo espaço social no Centro Oeste pressupõe que a sojicultura, voltada ao mercado mundial, junto à uma diversificação de uso da terra, amenizará a suscetibilidade sócio-econômica e os impactos ecológicos da modernização da agricultura. Por conseqüência, as condições econômicas e políticas do Centro Oeste podem mudar tanto que as formas tradicionais de ocupação do cerrado poderão parecer relíquias históricas. Bibliografia BERlRAND, Jean-Pierre; 1HÉRY, Hervé; WANIEZ, Philippe (1991): Lesjaponais et la mise en valeur agricole des cerrados au BrésiI: pour quelIe maítrise de l'espace et de l'approvisionnement alimentaire? Économie Rurale 202-203: 58-64. BLUMENSCHEIN, Markus (1995a): Der modernisierte Sojaanbau im Cerrado. Bedingungen for eine nachhaltige Entwicklung am São Lourenço-Oberlauf (Mato Grosso, Brasilien). Tübingen (trabalho de conclusão de curso). __ ----'-_(l995b): Die modemisierte Landwirtschaft des Cerrado und ihre Bedeutung für eine nachhaltige Entwicklung der Pantanal-Region. In: Gerd KOHLHEPP (ed.): Mensch-Umwelt-Beziehungen in der Pantanal-Region von Mato Grosso (Brasilien). Tübinger Beitrâge zur Geographischen Lateinamerika-Forschung, 12. 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