Imaginação Ativa e Bruxismo

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Imaginação Ativa e Bruxismo
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ANO 2 | Nº. 2| 2013 | ISSN Requerido
Imaginação Ativa
e Bruxismo
Sonia Regina Lyra
O percurso para
a sétima morada
Reflexões sobre
as tradições religiosas
judaicas, proto-cristãs
e gregas arcaicas
Albertina Laufer
Viktor D. Salis
Sobre os dez mandamentos e os sete dons do Espírito Santo
Marcos Aurélio Fernandes
Ano 2 | número 2 | 2013
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
2|
Edição Atual 74 páginas
Curitiba | Ano 2 | Nº. 2 | 2013 | ISSN Requerido
Copyright © 2013 by autores
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida,
desde que citada a fonte.
E-mail: [email protected]
Editores: Sonia Lyra
Jubal Sérgio Dohms
Comissão editorial
Sonia Regina Lyra
Jairo Ferrandin
Juarez Francisco da Silva
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Conselho editorial
Dra. Sonia Regina Lyra
Dr. Jairo Ferrandin
Dr. Enio Paulo Giacchini
Dr. Luiz Felipe Pondé
Dr. Gilvan Luiz Fogel
Dr. Nilo Agostini
Diagramação: Dohms Comunicação
Revisão: Enio Paulo Giachini
Ilustrações: Rogério Borges e Jubal S. Dohms
Dados internacionais de catalogação na fonte
Bibliotecária responsável: Angela M. S. K. Cherobim CRB 9ª R/605
______________________________________________
CONIUNCTIO Revista de Psicologia e Religião v.2, n.2, Curitiba: Ichthys Instituto, 2013
Semestral
1. Psicologia - Periódicos 2. Religião – Periódicos
3. Filosofia – Periódicos 4. Arte – Periódicos
5. Teologia – Periódicos.
_______________________________________________
Ano 2 | número 2 | 2013
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SUMÁRIO | CONTENTS
Editorial | 4
Sonia Regina Lyra
Imaginação Ativa e Bruxismo | 5
Viktor D. Salis
Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas,
proto-cristãs e gregas arcaicas | 13
Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra
Aspecto religioso do processo de individuação | 16
Albertina Laufer
O percurso para a sétima morada | 30
Ana Luisa Testa e Sonia Regina Lyra
A assimilação psicológica do mal | 41
Marcos Aurélio Fernandes
O confronto de São Boaventura com a filosofia nas conferências de Paris
sobre os dez mandamentos e sobre os sete dons do Espírito Santo | 51
Resenhas | Reviews
José Luiz Nauiack
O Desespero Humano | 68
Ângelo Vieira da Silva
O que é Religião? | 70
Murilo Augusto Diorio
Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus” | 72
Chamada para publicação e normas para colaboração | 73
Ano 2 | número 2 | 2013
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
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EDITORIAL
Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um periódico científico, eletrônico, semestral, criado e mantida pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA
E RELIGIÃO, em 2012, com o objetivo de publicar pesquisas, artigos, resenhas,
críticas e entrevistas que contenham temas relacionados à Psicologia (Psicologia
geral, Psicologia analítica e especialmente Psicologia da religião) e à Religião,
em diálogo com áreas afins: filosofia, arte, mitologia, teologia, sociologia, etc. A
ideia é fomentar a área de pesquisa em Psicologia da Religião – esta “filha mais
nova” da psicologia, no Brasil na contemporaneidade.
Neste ano de 2013 o ICHTHYS INSTITUTO em parceria com a UNIPAR – Campus
Cascavel realizou a primeira pesquisa científica em IMAGINAÇÃO ATIVA aplicada à área do BRUXISMO, tendo excelentes resultados e apresentando também
pela primeira vez a possibilidade de cura para este sintoma. Intitulado The Active
Imagination Technique for Bruxism Treatment, o artigo foi apresentado à Comunidade Científica Internacional, em Berlin – Alemanha, em maio de 2013 e
publicado no WASET: World Academy of Science Engineering and Technology no
Departamento de Psicologia e Psiquiatria. Sua reprodução em língua portuguesa
está sendo feita pela primeira vez no Brasil em nossa revista Coniunctio. Outros
projetos de pesquisa encontram-se em andamento, nas áreas de Autismo, Psoríase e Síndrome do Pânico.
Aproveitamos essa oportunidade para convidar pesquisadores(as) e professores(as)
a contribuírem com a Coniunctio. A publicação ou não do material enviado será
definida pela Comissão de Redação a partir dos critérios propostos pelo Conselho
Editorial, integrado por professores/as e especialistas de várias Universidades e
Centros de Estudos.
As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em
qualquer outro veículo do país. Publicam-se artigos em quatro línguas: português, espanhol, italiano e francês. Todos os números são divulgados por meios
digitais, estando disponíveis online pela Internet.
Os editores
Ano 2 | número 2 | 2013
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A Técnica da Imaginação Ativa
no Tratamento do Bruxismo
The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment
Sonia Lyra, pesquisadora e divulgadora da técnica de Imaginação Ativa, foi à Europa
apresentar os resultados científicos (estatísticos) do trabalho pioneiro com a Imaginação
Ativa, intitulado “The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment” à comunidade científica internacional, como conferencista em Psiquiatria e Psicologia no World
Academy of Science, Engineering and Technology, em Berlim, em maio de 2013. A pesquisa desenvolveu-se graças a uma parceria entre o ICHTHYS Instituto e a Universidade
Paranaense (UNIPAR – Curso de Odontologia – Cascavel-PR) e também contou com
a participação da Profa. Daniela Ceranto F. Boleta, PhD, e da Odontóloga Tânia Maria
Bremm Zaura.
A técnica da Imaginação Ativa corresponde a uma forma particular de lidar com o
inconsciente. Foi desenvolvida por Carl Gustav Jung (1875-1961) e busca a compreensão do símbolo, tendo como modelo os escritos de santo Inácio de Loyola. Sonia Lyra
é a única profissional no país a promover regularmente cursos de Imaginação Ativa e a
desenvolver pesquisas com o uso da mesma.
Este artigo, que CONIUNCTIO aqui publica, também pode ser acessado no original
(World Academy of Science, Engineering and Technology Vol:76 2013-04-25 ), em
inglês, em http://waset.org/Publications/the-active-imagination-technique-for-bruxism-treatment/15181
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6| A técnica da Imaginação Ativa no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11
A técnica da Imaginação Ativa
no tratamento do bruxismo
The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment
Sonia Lyra*, Tânia Maria Bremm Zaura** e Daniela Ceranto F. Boleta***
Resumo
* Lyra, S. R. Ph.D. in
Ciências da Religião,
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
([email protected]).
** Zaura - Bremm
T. Cirurgiã Dentista Clínica particular - Terra
Roxa – Paraná - Brasil
([email protected]).
*** Boleta - Ceranto D.
C. F. Cirurgiã Dentista,
Mestre e Doutora em
Odontologia - Fisiologia
Oral – UNICAMP
([email protected]).
Referências
1| PONTES DG; et al. A
relação entre bruxismo
dental e implantes endósseos. Rev. bras. odontol.
v.60, n. 2, p. 99-102,
2003.
2| MOLINA OF. Placas de
mordida na terapia oclusal. São Paulo: Pancast.
1997. p. 37-59.
3| PAIVA HJ. Oclusão:
noções e conceitos
básicos. São Paulo: Santos,
1997.
O objetivo do presente trabalho foi avaliar o efeito da técnica da Imaginação Ativa para o tratamento de
bruxismo. Este projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos
(CAAE: 05619512.9.0000.0109). Concluíram a pesquisa 21 voluntários. Inicialmente eles preencheram um
questionário a respeito de sua condição referente ao bruxismo, composto por questões objetivas sobre sinais
e sintomas. Na sequência foram submetidos a uma única sessão, de cerca de 1h de duração, de Imaginação
Ativa com uma profissional habilitada (psicóloga), realizada nas dependências da Universidade Paranaense
Unipar–campus Cascavel (Brasil). Após 15 dias, os voluntários preencheram novamente o mesmo questionário inicial. Os resultados dos dois questionários foram comparados e demonstraram que a grande maioria
dos participantes teve a sintomatologia dolorosa, a dificuldade de abertura bucal, dor à mastigação, reduzidas
após a sessão de Imaginação Ativa, alguns dos participantes abandonaram o uso da placa durante o período
avaliado. Conclui-se que a técnica pode ser utilizada no tratamento do bruxismo. Os resultados parecem ser
promissores e demonstram a necessidade de a técnica ser considerada por sinalizar a possibilidade de cura
do bruxismo e isto não tem precedente.
Palavras-chave: Imaginação Ativa, Bruxismo, Dor orofacial.
Abstract
The research purpose was to evaluate the effect of Active Imagination Technique (AIT) for bruxism treatment.
This project was approved by the Ethics Committee on Human Research (CAAE: 05619512.9.0000.0109).
Twenty-one volunteers using interocclusal splint completed the study. Initially they filled in a questionnaire about their condition, composed of objective questions on signs and symptoms. Following they were
underwent a single session of AIT. After 15 days, the volunteers met again the same initial questionnaire.
The results were compared and showed that the vast majority had pain symptoms, difficulty opening the
mouth, pain when chewing, reduced, some of the participants abandoned the interocclusal splint during
the evaluate period. It is concluded that the technique can be used in bruxism treatment. Results seem to
be promising and demonstrate the need of highlighting Active Imagination Technique since it points a
possibility of bruxism cure and that is unprecedented.
Keywords: Active Imagination, bruxism, orofacial pain, treatment.
vocar desgastes dentais, lesões nas estruturas de
1. Introdução
O sistema mastigatório possui várias ati-
vidades, divididas em funcionais e parafuncionais. A funcional ou fisiológica inclui os atos de
mastigar, falar e deglutir que são controlados por
reflexos protetores e músculos. Dentre as pa-
rafuncionais, inclui-se o bruxismo, relacionado
com a hiperatividade muscular, que pode proAno 2 | número 2 | 2013
suporte [1], desordens da articulação temporomandibular (ATM) e cefaleias [2].
Adquirida de forma inconsciente, ocorre
durante períodos diurnos, mas é mais frequente
durante o sono [3].
A consequência mais frequente do bruxis-
mo é a fadiga, que é a incapacidade de resistir
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A técnica da Imaginação Ativa no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11
durante um tempo determinado a um esforço
relaxamento dos músculos hipertrofiados, pre-
desconforto se tornem aparentes [2]-[4]-[5]-
Importante salientar que as placas também po-
sustentado sem que sinais e sintomas de dor e
[6]. A musculatura postural, localizada na região
cervical da coluna vertebral, pode manifestar
dores crônicas e alterações permanentes futuras
[2].
4| OKESON JP. Tratamento das desordens
temporomandibulares e
oclusão. 4. ed. São Paulo:
ArtesMédicas, 2000.
p.126-325.
5| ORLANDO S. O Bruxismo está à solta. Rev.
bras.odontol. v. 57, n. 5,
p. 308-311, 2000.
6| MACEDO CR. Placas
Oclusais para Tratamento
do Bruxismo do Sono:
Revisão Sistemática de
Cohrane. USP São Paulo,
Escola de Medicina, Tese
de mestrado em Ciências,
2007.
7| ZUANON ACC, et al.
Bruxismoinfantil. Odontol.
Clin. v. 9, n. 1, p. 41-43,
1999.
8| PRIMO PP; MIURA CSN;
BOLETA-CERANTO DCF.
Considerações fisiopatológicas sobre bruxismo.
Arq. Ciênc. Saúde UNIPAR,
Umuarama, v. 13, n. 3, p.
263-266, set./dez. 20096|
MACEDO CR. Placas Oclusais para Tratamento do
Bruxismo do Sono: Revisão
Sistemática de Cohrane.
USP São Paulo, Escola de
Medicina, Tese de mestrado
em Ciências, 2007.
9| OLIVEIRA ME; CARMO
MRC. Placa de mordida
interoclusal para tratamento de bruxismo. Rev.
do CROMG. v. 7, n. 3, p.
183-186, 2001.
10| KAST V. Dinâmica
dos símbolos(a) - fundamentos da psicoterapiajunguiana. São Paulo:
Loyola, 1997.
venindo também sobrecargas para a ATM [9].
dem agir apenas como paliativas, quando outros
fatores, além dos oclusais estiverem envolvidos.
O tratamento deve ser direcionado à cau-
sa quando este envolver problemas psicológicos
O Estresse e as variáveis psicológicas são
como estresse, ansiedade e depressão. Atual-
alguns estudos comprovam falhas nesta relação.
cológicas, dentre as quais uma pouco utilizada é
rística serem focados em realizar atividades com
(1875-1961), a qual trata de um percurso inte-
comparados aos indivíduos controles e não um
ciente com a ajuda de sonhos, fantasias e imagi-
O importante é determinar quais fatores,
Essencialmente é um diálogo a ser tra-
comumente relacionados ao Bruxismo, porém
mente, há um grande interesse em técnicas psi-
Parece que os bruxômanos têm como caracte-
a Imaginação Ativa, desenvolvida por C.G.Jung
um forte objetivo de alcançar o sucesso quando
rior que implica em tornar consciente o incons-
distúrbio de ansiedade [6].
nação [10].
especificamente, estão envolvidos em cada pa-
vado com as diferentes partes de nós mesmos
do dentre as diversas modalidades terapêuticas
e transformar as causas psíquicas das doenças,
ciente, para a escolha de um tratamento adequa-
que vivem no inconsciente, buscando descobrir
existentes, ou mesmo a associação de dois ou
através das quatro etapas da técnica.
mais tratamentos [7].
II. Objetivo
Devido ao caráter multifatorial do Bruxis-
mo, várias linhas de tratamento têm sido pro-
postas como tratamentos além da odontológica:
a farmacológica e a psicológica.
liar a eficácia da técnica psicológica Imaginação
Ativa para o tratamento de bruxismo em pa-
cientes portadores da patologia e que neste caso,
Na área odontológica, a forma mais uti-
lizada para o tratamento do bruxismo são as
placas de mordida interoclusais estabilizadoras
(mio relaxantes). São frequentemente usadas
como um dispositivo para diagnóstico e/ou tratamento, de grande importância para o clínico.
A placa oclusal é um aparelho removível
geralmente confeccionado com resina acrílica
incolor, química ou termicamente ativada, que
recobre a superfície oclusal/incisal dos dentes
em um dos arcos, criando um contato oclu-
sal adequado com os dentes antagonistas e um
melhor relacionamento côndilo disco [8]. Pro-
porciona ao paciente um maior conforto, impor-
tante para a proteção dos elementos dentários,
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O objetivo do presente trabalho foi ava-
utilizam a placa miorelaxante para o alívio dos
sintomas.
III. Metodologia
Este projeto foi apreciado e aprovado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Huma-
nos (CAAE: 05619512.9.0000.0109). Concluíram a pesquisa 21 voluntários. Eles preenche-
ram um questionário a respeito de sua condição
referente ao bruxismo, composto por questões
objetivas sobre sinais e sintomas expressos em
forma numérica, na forma de uma escala analó-
gica visual, tal questionário comparado com os
dados preenchidos após a terapia. Na sequência
foram submetidos a uma única sessão, de cerca
de 1h de duração, de Imaginação Ativa com uma
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profissional habilitada (psicóloga), realizada nas
dependências da Universidade Paranaense Uni-
par – campus Cascavel (Brasil). Após 15 dias, os
voluntários responderam novamente as mesmas
perguntas.
O resultado de ambos os questionários fo-
ram comparados e expressados estatisticamente.
QUESTIONÁRIO APLICADO AOS PACIENTES ANTES E DEPOIS DE
15 DIAS DA TERAPIA
COM A TÈCNICA DA IMAGINAÇÃO
ATIVA.
Nome
(
)F(
)M
Idade:____ anos
(
) não
ou sai do lugar? (
) sim
(
) não
3- Você tem dificuldades, dor ou ambas
ao mastigar, falar ou usar seus maxilares?
(
) não
4- Você percebe ruídos na articulação de
seus maxilares? (
) sim
(
) não
5- Seus maxilares ficam rígidos, aperta-
dos ou cansados com regularidade?
(
) sim
(
(
10- Você fez algum tratamento recente
para problema não identificado no articular
mandibular? (
(
) não
Onde: a ( ) dor de cabeça
no pescoço
(
b ( ) dores
c ( ) dores nos dentes
8- Você sofreu algum trauma recente na
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) não
11- Usou algum aparelho?
( ) sim ( ) não
qual:
_________________________
12 – Sente que seus dentes desgastaram
) sim
(
) não
13 - Usa placa de mordida?
) sim
(
) não Há quanto tempo?
14- Após iniciar o uso da placa as dores
reduziram? (
) sim
(
) não
15- Pode indicar em um número seu ín-
dice de ansiedade de 0 a 10 (0 mínimo e 10
máximo)?
16- O que sente quando fica/ficou sem
usar a placa? __________________
Os voluntários selecionados para a pesqui-
sa eram pacientes bruxomanos cujos sinais e sin-
tomas foram abrandados pelo uso da placa mio
maior incidência.
sobre a metodologia a ser empregada e dos be-
pescoço ou nos dentes com frequência?
) sim
) sim
Todos os voluntários foram informados
) não
7- Você tem dores de cabeça, dores no
(
) não
durante o sono o bruxismo se manifesta com
orelhas, têmporas ou bochechas.
) sim
(
relaxante, usada principalmente à noite quando
) não
6- Você tem dor nas ou ao redor das
(
) sim
______________________
2- Sua mandíbula fica “presa”, “travada”
) sim
) não
cente na sua mordida? (
(
ao abrir a sua boca, por exemplo, ao bocejar?
) sim
) sim (
9- Você percebeu alguma alteração re-
Data:___/_____/_____ Sexo:
1- Você tem dificuldades, dor ou ambas
(
(
nos últimos tempos? (
Nascimento: ____/____/____
(
cabeça, pescoço ou maxilares?
nefícios que teriam na possibilidade da redução
da sintomatologia e em deixarem assim de ter de
usar a placa mio relaxante oclusal para dormir e
então assinaram o termo de consentimento.
IV. Resultados
Dos 21 voluntários, 18 (85,7%) eram do gê-
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A técnica da Imaginação Ativa no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11
nero feminino e 3 (14,28%)do gênero masculino.
Dos 21 voluntários, 18 (85,7%) eram do
gênero feminino e 3 (14,28%)do gênero masculino.
Quando questionados sobre dificuldades,
dor ou ambas ao abrir a sua boca, os resultados
estão expressos na Fig. 1 (a). Referente ao fato
de a mandíbula ficar “presa”, “travada” ou sair do
lugar, as respostas expressas na Fig. 1 (b).
35,00 % _
33,33 %
FIGURE 1 A
30,00 % _
25,00 % _
19,04 %
20,00 % _
15,00 % _
5,00 % _
Before Treatment
42,45 %
30,00 % _
After Treatment
FIGURE 1 B
23,80 %
20,00 % _
10,00 % _
0,00 % _
Before Treatment
33,33 %
Before Treatment
After Treatment
Fig. 2 (a) Dificuldade, dor ou ambas ao falar,mastigar ou
usando os maxilares (b) a presença de ruído na articulação
do maxilar antes e depois do tratamento
Referente aos maxilares ficarem rígidos,
apertados ou cansados com regularidade, as
respostas foram expressas na Fig. 3 (a). Sobre
Sobre dificuldades, dor ou ambas ao mas-
tigar, falar ou usar seus maxilares, as respostas
foram expressas na Fig. 2 (a). Quanto a presença
de ruídos na articulação dos maxilares, as respostas estão expressas na Fig.2 (b)
42,45 %
Fig. 3 (b).
90,00 % _
80,00 % _
70,00 % _
60,00 % _
50,00 % _
40,00 % _
30,00 % _
20,00 % _
10,00 % _
0,00 % _
FIGURE 2 A
28,57 %
85,71 %
80,00 % _
70,00 % _
60,00 % _
50,00 % _
40,00 % _
30,00 % _
20,00 % _
10,00 % _
0,00 % _
FIGURE 3 A
28,57 %
Before Treatment
After Treatment
Fig. 1 (a) A dificuldade, dor ou ambas para abrir a boca
antes e depois do tratamento (b) o fato de a mandíbula ficar
presa,travada ou fora do lugar antes e depois do tratamento
45,00 % _
40,00 % _
35,00 % _
30,00 % _
25,00 % _
20,00 % _
15,00 % _
10,00 % _
5,00 % _
0,00 % _
FIGURE 2 B
têmporas ou bochechas, as respostas estão na
0,00 % _
40,00 % _
76,19 %
a presença de dor nas ou ao redor das orelhas,
10,00 % _
50,00 % _
80,00 % _
70,00 % _
60,00 % _
50,00 % _
40,00 % _
30,00 % _
20,00 % _
10,00 % _
0,00 % _
71,42 %
After Treatment
FIGURE 3 B
33,33 %
Before Treatment
After Treatment
Fig. 3 (a) Sobre os maxilares ficarem rigidos, cansados ou
apertados com regularidade antes e depois do tratamento
(b) a presence de dor nas ou em torno das orelhas, temporas e bochechas antes e depois do tratamento.
Quando perguntados sobre trauma recen-
te com cabeça, pescoço, articulações, ninguém
referiu tal evento. Quando perguntados sobre
o uso da placa mio relaxante, todos responBefore Treatment
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After Treatment
deram que usavam o aparato oclusal antes do
tratamento por períodos que variaram entre os
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10| A técnica da Imaginação Ativa no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11
participantes. Um mês depois da terapia, apenas
sintomas psicossomáticos. A ansiedade, a tensão,
mio relaxante.
to da hiperatividade muscular, redução da taxa
33,33% dos participantes ainda usavam a placa
Referente a presença de dores de cabeça,
pescoço ou dentes, as respostas estão expressas
na Fig. 4.
100,00 % _
90,00 % _
80,00 % _
70,00 % _
60,00 % _
50,00 % _
40,00 % _
30,00 % _
20,00 % _
10,00 % _
0,00 % _
FIGURE 4
95,23 %
consequente aumento de episódios de ranger de
dentes durante o sono. Esta característica é mais
tensão emocional, que são hiperativos, agressivos
ou que apresentam uma personalidade compulsiva [11].
47,61 %
No caso deste trabalho, os pacientes se-
lecionados para participar da pesquisa haviam
After Treatment
Fig. 4 A presença de cefaléias, dores no pescoço ou nos
dentes antes e depois do tratamento.
Quando questionados sobre o que senti-
ram ao ficar sem usar a placa oclusal apos a terapia, as respostas estão expressas na Fig. 5
4,70 %
pain
disconfort
clenching
asymptomatic
click
9,40 %
9,40 %
sido tratados com a terapia odontológica e fa-
ziam uso da placa mio relaxante. O retorno dos
sintomas e sinais após a descontinuidade do uso
da placa oclusal foi o que motivou a participa-
ção dos voluntários na pesquisa. O vislumbre da
possibilidade destes pacientes ficarem livres do
aparato oclusal noturno, abordando os núcleos
emocionais inconscientes relacionados ao bru-
xismo, através da Imaginação Ativa, foi o que
FIGURE 5
33,33 %
42,85 %
de secreção salivar durante o sono e vigília e
prevalente em pacientes adultos que vivem sob
Before Treatment
4,70 %
emoções negativas e frustrações causam aumen-
lingual pressing
motivou a elaborar uma pesquisa científica,
avaliando a eficácia da Técnica da Imaginação
Ativa na remissão do bruxismo e consequentemente dos seus sinais e sintomas. A Técnica
da Imaginação Ativa: por Sonia Regina Lyra:
JUNG (1875-1961) tomando “a hermenêutica
como solo específico da psicologia analítica”,
desenvolve uma técnica psicológica para a busca
Fig. 5 Sentimentos após a terapia
e compreensão do símbolo que denominou ima-
ginação ativa, tendo como modelo os escritos de
santo Inácio de Loyola. Para o psicólogo suíço
V. Discussão
O diagnóstico clínico do Bruxismo é re-
alizado avaliando os sinais e sintomas presen-
tes. Na odontologia o tratamento recomendado
além de ajustes oclusais, restaurações, ortodon-
tia, é o uso de dispositivos intra-orais, usados
pelos pacientes por longo prazo [11].
Em se tratando dos aspectos psicológicos,
os portadores do bruxismo são mais vulneráveis
a ansiedade ao estresse e ao desenvolvimento de
Ano 2 | número 2 | 2013
faltava nos exercícios a resposta que poderia ser
dada pelas figuras que surgiam do inconsciente. Amplamente difundido em suas obras com-
pletas, mas não sistematizado, o conceito veio
a ser revisto nos anos 80 por Robert Johnson e
publicado no livro: A chave do reino interior –
INNER WORK (1987) [12]. Johnson ampliou
o método baseado em sua própria experiência e
que agora, com inovações devido às novas experiências também nós ampliamos a técnica.
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A técnica da Imaginação Ativa no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11
11| ALOE F; GONÇALVES LR; AZEVEDO A;
BARBOSA RC. Bruxismo
durante o Sono. Rev.
Neurocências. v.11, n.1,
p. 4-17, 2003.
12| JOHNSON, R. InnerWork. A chave do reino
interior. São Paulo: Ed.
Mercuryo, 1989.
13| ALIGHERI D. A Divina
Comédia, vols I e II, 4ª ed.
Belo Horizonte Itatiaia
1984.
14| JUNG, C.G. Answer
to Job,Princeton University
Press,Vol. XI of the Collected Works 1952
Imaginação Ativa é essencialmente, um
diálogo a ser travado com as diferentes partes
de nós mesmos que vivem no inconsciente. Você
fala com as imagens e elas respondem. Essas
imagens que surgem são de fato símbolos vivos
e a essência dessa técnica é a participação consciente do indivíduo na experiência imaginativa.
A finalidade principal da técnica é propor-
cionar a comunicação entre o ego e as partes do
inconsciente das quais geralmente nos desligamos e que aparecem na vida diária em forma de
sintomas, preocupações, fantasias passivas, etc.
Quando se pratica a Imaginação Ativa as
15| DISNEY’S THE KIDS;
Movie Comedy. Disney
Productions; Director Jon
Turteltaub, Distributor:
Buena Vista, 2002
coisas mudam na psique, os sintomas são alte-
16| FRANZ, V.M.L.
Psycotherapy. Shambhala
Publications, Incorporates,
1993.331p.
os opostos complementares podem ser reuni-
rados, os desequilíbrios entre as atitudes do ego
e os valores do inconsciente são remediados e
dos, porque a função específica do símbolo é a
transformação da energia psíquica. Por exemplo,
temos algo vago que nos incomoda, um conflito,
uma irritação ou um sintoma que aparece como
se fosse físico-biológico. Claro, nenhum sinto-
ma deixa de ser também físico-biológico, mas
VI. Conclusão
Os resultados dos dois questionários fo-
ram comparados e demonstraram que a grande
maioria dos participantes teve a sintomatologia
dolorosa, a dificuldade de abertura bucal, dor à
mastigação, reduzidas após a sessão de Imaginação Ativa, muitos dos participantes abandonaram o uso da placa durante o período avaliado.
Conclui-se que a técnica psicoterápica da
Imaginação Ativa pode ser utilizada no trata-
mento do bruxismo. Os resultados parecem ser
promissores visto que neste trabalho o sucesso
foi evidente, mesmo sendo feita apenas uma sessão de uma hora para cada participante.
Salientamos que o tratamento odontológi-
co do paciente bruxomano deve ser levado em
consideração como parte do procedimento, para
o correto restabelecimento da função mastigatória. No critério de avaliação dos pacientes o tra-
tamento farmacológico deve, em determinados
casos ser considerado.
Este trabalho demonstrou a necessidade
em sua grande maioria estes são expressões de
da técnica da Imaginação Ativa ser considerada
terário de Imaginação Ativa é A divina Comé-
a possibilidade de cura isto não tem precedente.
complexos conflitos da psique. Um exemplo li-
como tratamento para o bruxismo e por sinalizar
dia de Dante [13]; ou Answer to JOB [14] e
no cinema o filme Duas Vidas (título original:
Disney´s The kid [15].
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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
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Imagem: reprodução
12|
Algumas reflexões comparativas
sobre as tradições religiosas judaicas,
proto-cristãs e gregas arcaicas.
Viktor D. Salis
Ano I2||número
número12||2012
2013
CONIUNCTIO
CONIUNCTIORevista
RevistaEletrônica
Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
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Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas | Viktor D. Salis |13 - 14
Algumas reflexões comparativas
sobre as tradições religiosas judaicas,
proto-cristãs e gregas arcaicas
Viktor D. Salis*
* Viktor D. Salis
Psicólogo pela
PUC SP, doutor
pela Universidade
de Salzburg ( A
fenomenologia
dos Mitos) e pela
Universidade de
Genève (Epistemologia
Genética pela
Universidade de
Genève). Professor
PUC SP, Universidade
de Mogi das Cruzes,
Faculdade de Medicina
de Jundiaí, Faculdades
Metropolitanas Unidas,
Faculdade Católica de
Santos.
([email protected])
Num primeiro olhar, pode parecer-nos que
a única coisa em comum que estas duas tradições têm é a sua antiguidade, sendo que a grega
pertence às chamadas religiões desaparecidas enquanto culto e a judaica sobrevive galhardamente
há milênios e milênios. Na verdade, um exame
mais atento revela notáveis pontos em comum, de
modo que vale a pena apontá-los e descreve-los.
não quis dar aos homens “a medida de seu uso” e
Comecemos pela própria etimologia da
palavra religião: significa literalmente “re-ligar”,
ou seja, unir o homem novamente a Deus. Em
ambas encontramos um lugar mítico onde poderemos nos dirigir após a morte. São o conhecido
paraíso do judaísmo e os “campos Elíseos” da religião grega antiga. Mas a questão fundamental
em ambas as tradições é que propõe ao homem
um caminho, aqui na terra e enquanto em vida,
para alcançar esta reunião cósmica. Mais ainda,
encontramos em ambos os profetas, verdadeiros
enviados de Deus, para iluminarem nosso caminho: Moisés para o judaísmo e Orfeu para a
antiguidade grega- cujo nome significa ”aquele
que veio curar pela luz”. Estes mensageiros trazem para a humanidade as leis necessárias para se
viver, mesmo longe do paraíso, mas que façam os
homens imita-lo aqui na terra. Vale recordar de
que fomos expulsos do paraíso porque a humanidade cometeu uma falta fundamental – também
chamada de pecado original. E qual é seu verdadeiro significado; e será que somente os nossos
antepassados a cometeram, ou será que se trata de
algo que continuaremos a praticar para sempre,
afastando-nos assim cada vez mais do divino?
a vida e para a criação, pois facilmente pode des-
Comemos o “fruto da árvore do conhecimento” na tradição judaica; Prometeu roubou
“o fogo dos deuses” para dá-lo aos homens, mas
“Não é de ontem, não é de hoje que estas
Ano 2 | número 2 | 2013
desde então os homens não são mais governados
pelas leis dos deuses, mas pelo seu desvario. Em
ambas as tradições, o divino se afasta dos homens
por sua impiedade, porque privilegiaram as conquistas do conhecimento e não a medida de seu
uso. Agora está clara a metáfora bíblica e Greco-
arcaica: O conhecimento por si só é um risco para
truir tudo a sua frente. Eis o homem do sec. XXI.
Abrem-se agora as duas grandes questões
da condição humana perante a existência: Ética
e Verdade. Comecemos por defini-las em seu significado original:
Ética não é conduta moral- esta se refere
aos costumes- mas sim “o estado de alma que
aproxima o homem de Deus”; e este estado somente pode ser alcançado quando ele O imita (o
homem é o instrumento de Deus). Na tradição
judaica isto só pode ser alcançado cumprindo
suas leis (os dez mandamentos) que são a medida do uso do saber para a criação e não para a
destruição. Já na tradição grega, vemos na Ilíada
o ensinamento da lei sagrada de “nascer, viver e
morrer com dignidade e honra” para ser aplica-
da por todos os mortais; e prossegue exaltando o
jovem a imitar os deuses tornando-se criador se-
gundo as leis divinas da vida. É sempre oportuno
recordar a fala de Antígona de Sófocles, quando
interrogada pelo rei Creonte, porque desobedecera a suas ordens de abandonar o corpo de seu
irmão aos cães, insepulto:
leis existem, (nascer, viver e morrer com dignida-
de) e ninguém é seu autor, nem mesmo outro rei.
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
14| Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas | Viktor D. Salis |13 - 14
São dos deuses e entre desobedecer a suas leis e
as de um rei, a elas me entrego, mesmo que isto
possa me custar a morte. Ademais, sigo-as espa-
lhando a vida e o amor, pois esta é sua lei maior.
Não vim aqui para semear o ódio e a morte. E não
serei eu a julgar meu irmão pelos seus atos – isto
é tarefa dos deuses. A mim, como irmã, compete
o sagrado dever de dar-lhe uma morte digna e
honrada.”
Semelhante grandeza encontramos nos en-
sinamentos do rei Salomão e em Davi e Golias,
para citarmos somente alguns exemplos da tradição judaica. É que a força extraordinária, tanto na
helênica como na judaica, reside no fato de serem
religiões que celebraram a vida e a criação como
seu fundamento ético inabalável.
Vejamos agora o segundo conceito fun-
damental: a Verdade. Mas o que é isto? Será
simplesmente a confirmação dos fatos ou a demonstração científica? Nada disso! A verdade nas
tradições arcaicas é simplesmente a iluminação
interior, que advém da certeza de sermos exata-
mente aquilo que somos, de não enganarmos nem
ao outro e nem a nós mesmos, e muito menos
impormos a nos mesmos ideais quiméricos – pois
a tantos custaram sua saúde e integridade. A verdade reside em bastar-se no que se é, em reconhecer que isto é modesto e grandioso ao mesmo
tempo e procurar evoluir, de modo a podermos
partir desta vida mais plenos e aperfeiçoados do
que chegamos.
Lemos na “Tábua das Esmeraldas”, atribu-
Ano 2 | número 2 | 2013
ída a Hermes Trimegisto – o deus dos caminhos
na tradição helênica: “O corpo, que os deuses te
deram, foi feito para ser completamente gasto –
mas gaste-o bem para tua evolução e para servir
a criação. Serve os deuses e lembre-se de que a
riqueza é um bem destinado ao uso; seu acúmulo é uma coisa vã e tola. Não te esqueças de que
nada é eterno aqui e de que tudo aqui deixarásaté mesmo teu corpo e teu nome terás de devolver
aos deuses. Tudo aqui é emprestado e somente tua
alma te pertence e podes cultivar ou abandonar- é
tua a escolha e se assim é, busca os mestres para te
guiar de volta para a eternidade.”
Não é diverso o ensinamento encontrado
na tradição judaica, quando pede ao homem para
não passar desta vida sem “ter um filho, escrever
um livro e plantar uma árvore”. De modo simples e preciso, pede-nos para servirmos a Deus,
do modo que pudermos – mas com esforço e desapego, por favor!
Há muitos outros pontos de encontro entre estas duas belíssimas tradições, mas o espaço não nos permite aqui abordá-los. Cito apenas
o número doze, tão importante na Caballa e na
tradição helênica: Doze são as tribos de Israel;
doze são os deuses da tradição grega: doze são
os signos do Zodíaco; doze são os trabalhos de
Hércules; doze são os meses do ano e as horas;
doze são os apóstolos; doze é o número sacro das
pirâmides. Precisa mais para entender de que não
se trata de simples coincidência? Quem sabe em
outra oportunidade trataremos do assunto com a
atenção que ele merece.
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
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Ilustração: Rogério Borges
Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20
Aspecto religioso do processo
de individuação
Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra
Ano 2
I ||número
número12||2012
2013
CONIUNCTIO
CONIUNCTIORevista
RevistaEletrônica
Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
16| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
Aspecto religioso do processo
de individuação
Regina Maria Grigorio* e Sonia Regina Lyra**
Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas,
mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana
(Carl Jung).
Resumo
Através deste trabalho procura-se oferecer uma introdução às considerações de Carl G. Jung sobre o aspecto
religioso do processo de individuação, tendo como objetivo conhecer o comportamento religioso do ser humano em seus aspectos éticos e psicológicos, usando como metodologia o estudo de bibliografias que tratam
desse assunto. A observação empírica demonstra que é através da religiosidade que o homem se encontra a
si mesmo e vivencia o amor maior, o amor sem medida: que foi designado por alguns autores como o amor
de Deus pela humanidade. Inicia-se o trabalho discorrendo sobre a persona, adentrando-se a estrutura da
psique através de outros conceitos fundamentais como: inconsciente, si-mesmo, processo de individuação
e outros de igual importância para o desenvolvimento desta proposta.Palavras-chave: Bem-aventurança,
felicidade, contentamento, terceira margem.
Palavras-chave: Inconsciente, si-mesmo, Jung, processo de individuação, religiosidade.
Abstract
* Regina Maria Grigorio
Pós-graduanda em
Psicologia Analítica e
Religião Oriental e Ocidental – FAVI Faculdade
Vicentina - Curitiba - PR.
Polo: Guaíra – PR
([email protected])
** Sonia Regina Lyra
Doutora em Ciências
da Religião; Analista
Junguiana. Orientadora
de TCC
([email protected])
Through this study we aimed to provide an introduction to considerations of Carl G. Jung on the religious
aspect of the individuation process, aiming to meet the religious behavior of human beings in their ethical
and psychological aspects, using methodology as the study of bibliographies that address this matter. Empirical observation shows that it is through religion that man finds himself and experiences the greatest love,
love without measure, which was designated by some authors as the love of God for humanity. It begins
talking about the concept of persona, into the structure of the psyche through other fundamental concepts
such as unconscious, self, individuation process and others of equal importance for the development of this
proposal.
Keywords: Unconscious, Self, Jung’s individuation process, and religiousness
Introdução
Carl G. Jung, em (seus estudos) suas pesquisas, realizou experiências e fez investigações a
respeito do inconsciente, “suas estruturas individuais e coletivas e acerca da linguagem simbólica
pela qual se exprime” (1967, p. 15).
Este trabalho de pesquisa tem como finalidade propor uma reflexão sobre o aspecto religioso do processo de individuação, associando-o
Ano 2 | número 2 | 2013
à prática da psicoterapia e sua importância no
comportamento do indivíduo.
Constata-se que o símbolo, na obra de Jung,
surge como a possibilidade de evocar o arquétipo
e que por meio dele se contempla a individuação.
Uma vez compreendida a importância dos
símbolos produzidos pelo inconsciente, resta o
problema da interpretação. Jung levou em conta
todos os acontecimentos relacionados à sua vida,
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
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Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
tais como intuições, sonhos, fantasias, seus interesses pelos fenômenos psíquicos e seus questionamentos sobre a origem e a finalidade da vida.
Desenvolveu estudos sobre a persona, face externa
da psique, considerada como sendo a máscara ou
fachada aparente do indivíduo para facilitar a comunicação com o mundo externo, com a sociedade
onde ele vive, e os papéis que desempenha para ser
aceito pelo grupo social ao qual pertence. “Esses
fatores inconscientes devem sua existência à autonomia dos arquétipos” ( JUNG et al., 2008, p. 104).
das profundezas da psique. Já naquela época a re-
Sombra e anima/animus são também conceitos que vêm à consciência e contribuem para a
maturidade do psiquismo. O significado e a função dos sonhos fizeram com que Jung percebesse,
a partir da observação de um grande número de
pessoas e do estudo dos seus próprios sonhos, que
esses dizem respeito, em grau variado, à vida de
quem sonha. Quando buscava o conhecimento de
si mesmo e o significado da vida, percebeu que
o único objetivo da psique era o encontro com
seu próprio centro, então chamou esse movimento de “processo de individuação”, acrescentando,
porém, que: “o processo de individuação só é real
se o individuo estiver consciente dele” ( JUNG et
al., 2008, p. 213).
nhado por um intenso sentimento de busca por si
O símbolo atua como uma ação mediadora,
que auxilia o processo de transformação interno,
que leva à totalização, sem que, de modo algum,
isso signifique individualismo.
O processo de individuação é uma realização criativa e está ligado à busca de si mesmo.
A individuação é um processo lento e gradativo
de transformação e aponta para a possibilidade
da nossa unicidade, última e irrevogável. Trata-se
da realização do si-mesmo, no que tem de mais
pessoal e de mais rebelde a toda comparação. Poder-se-ia, pois, traduzir a palavra individuação por
realização de si-mesmo, realização do si-mesmo
[1]. “Em seus estudos sobre religião, Jung percebeu que a cultura do século XX perdera a sua
alma, no momento em que perdeu o contato com
suas profundezas.” Ele acreditava que toda experiência religiosa apareceria na consciência, a partir
Ano 2 | número 2 | 2013
ligião começava a ser substituída pelos inúmeros
afazeres, e diante disso questionava: O que fazer
para proporcionar realidade viva ao nosso si-mesmo? Para que direção nos move o fluxo da vida?
( JUNG, 1978, p. 163).
Nesse sentido, o processo de individuação
seria como uma forma de o ser humano alcançar o
máximo de sua unicidade, a qual se pode entender
como a mais íntima e profunda expressão do ser,
através de um processo de crescimento, acompamesmo, que oportuniza a transformação interior.
1. A Persona e a Sombra
Persona era o nome que se dava à máscara
usada no teatro grego. Definia os papéis característicos de personagens. Na psicologia, serve também como proteção contra características inter-
nas consideradas indesejáveis e, portanto, dignas
de serem ocultas.
Ao considerar a persona constituída por
grande parte pelos materiais coletivos, portanto,
Jung descreve:
A persona é uma imago do sujeito, constituída em
grande parte de materiais coletivos como a imago do objeto. Quanto à persona, é um produto de
compromisso com a sociedade: o eu identifica-se
mais com a persona do que com a individualidade.
Quanto mais o eu identifica-se com a persona,
tanto mais o sujeito é aquele que aparenta. O eu é
desindividualizado ( JUNG, 2003, p. 153).
No entanto, a persona é também um instru-
mento precioso para a comunicação. Ela pode desempenhar, com frequência, um papel importante
no desenvolvimento positivo. À medida que se
começa a agir de determinada maneira, a desem-
penhar um papel, o ego se altera gradualmente
nessa direção ( JUNG et al., 2008, p. 158).
Portanto, é necessário que ocorra uma di-
ferenciação entre o ego e a persona no decorrer
do desenvolvimento psicológico. Isso significa
tomar consciência de si-mesmo, desenvolvendo
um senso de responsabilidade e capacidade de
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18| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
julgamento, os quais podem ser idênticos ou não
Ao definir a sombra, Jung deixa claro em
aos padrões e expectativas externas e coletivas. É
suas afirmações que estão incluídas as variadas e
conhecimento.
da personalidade, a soma de todas as qualidades
o caminho de uma busca consciente de um autoSegundo Jung, citado por Samuels, “a som-
bra é aquilo que não se quer ser”. A questão sobre
o conhecimento da sombra é fator importante no
processo de autodescobrimento, pois possibilita a
percepção dos aspectos desconhecidos da perso-
repetidas referências à sombra, o lado negativo
desagradáveis que o indivíduo quer esconder, “o
lado inferior, sem valor, e primitivo da natureza
do homem, a outra pessoa em um indivíduo, seu
próprio lado obscuro” (1978, p. 128).
Destacando o lado positivo da sombra,
nalidade e daqueles que não são desejados, que
constata-se que a mesma nasceu conosco para
companheira, da qual se deve tomar ciência de
somos incapazes de lidar ou incapazes de aceitar.
são, portanto, negados. “A sombra é como uma
seus traços e de suas características” (1988, p. 38).
proteger todo o material interno com o qual nós
O ego negativo diz: Não seja autêntico,
A sombra se revela no ser humano toda vez
seja aceitável. “Não se exceda, seja normal. Não
da de si mesmo. O ser humano sempre temeu sua
Olhe para dentro, vá fundo. Isto é o que você tem
tudo que, na verdade, desejaria esquecer ou fingir
(sombra) que se chega à mudança, à transforma-
que ele se aventura a passar uma imagem distorci-
faça nada de novo ou diferente. – A sombra diz:
própria sombra, pois nela pressente a presença de
que encarar para ser autêntico. É através de mim
que nunca existiu.
ção para um ser pleno e livre” (SAMUELS et al.,
A máscara é usada pelo indivíduo em res-
posta à sua necessidade de desenvolver caracterís-
1988, p. 204).
Neste sentido, o indivíduo terá invariavel-
ticas básicas de adaptação social. É o arquétipo da
mente a companhia da sombra em sua viagem
comunicação com o mundo externo e a sociedade.
Para Johnson, citando Jung, “o caminho
adaptação. Ela é exibida de maneira a facilitar a
evolutiva rumo à individuação.
Para Samuels, a sombra representa o que
para a consciência começa quando se aprende a
que nos pertence, fazendo parte de nós tanto
original” (1989, p. 49). Inicia-se o processo de
tornar consciente, colocando-a a serviço da pró-
ternos que atingem o ser humano, mas, inclusi-
aversivos tomem a personalidade. “A pessoa repre-
suas sombras.
à vida social cotidiana” (1988, p. 204). São todos
gem ideal que o ser humano faz de si mesmo.
consideramos de mal e não nos damos conta de
quebrar a unidade primordial da inconsciência
quanto o bem. É parte de si mesmo que deve se
classificar em opostos não só os fenômenos ex-
pria evolução espiritual, sem que seus aspectos
ve, suas próprias personalidades e características,
senta a máscara que deve utilizar em sua adaptação
A sombra amedronta, pois ameaça a ima-
aqueles aspectos da personalidade com que os indivíduos se adaptam ao mundo exterior.
Em geral a sombra contém valores neces-
sários à consciência, mas que existem sob uma
forma que torna difícil a sua integração na vida
de cada um.
O conflito entre o que se é e o que se deseja ser
encontra-se no âmago da luta humana. A dualidade,
na verdade, está no centro da experiência humana.
Ano 2 | número 2 | 2013
O fator essencial é que uma parte do si-
mesmo foi separada. Depois de separado, o fragmento “ruim” perde contato com a essência do
si-mesmo, a parte que consideramos “boa”, por
conta de sua aparente ausência de violência, raiva
e medo. Esse é o si-mesmo adulto, o ego que se
adaptou tão bem ao mundo e às outras pessoas
(CHOPRA Et Al., 2010, p. 24).
O desenrolar do processo de individuação
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
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Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
começa em geral com uma tomada de consciência
varão e a conscientização das projeções, para se
nalidade que, ordinariamente, apresenta sintomas
A sombra não consiste de omissão. Apresenta-se
tido aquilo que não se enquadra ou não se ajusta
tido. Antes de se ter tempo para pensar, irrompe a
da “sombra”, isto é, de um componente da perso-
poder compreender verdadeiramente a sombra:
negativos. Nesta personalidade inferior está con-
muitas vezes como um ato impulsivo ou inadver-
sempre às leis e regras da vida consciente.
O desafio maior para se adquirir equilíbrio
emocional é tomar consciência da sombra, o que
leva a uma visão mais clara e eficiente da perso-
nalidade e do si-mesmo, que é na verdade a totalidade ( JOHNSON, 1989, p. 62).
1.1 A Realização da Sombra
Este item tratará do desenvolvimento da
sombra e sua influência no processo de individuação.
A sombra, segundo Jung, faz com que igno-
remos as próprias fraquezas e as projetemos nos
outros; esse processo se dá por meio de mecanismos inconscientes, afastando a pessoa de si mes-
ma. Quando o inconsciente se manifesta de forma negativa ou positiva, depois de algum tempo
surge à necessidade de readaptar da melhor forma
possível a atitude consciente aos fatores inconscientes, aceitando o que parece ser uma crítica
(2008, p. 222).
É por meio dos sonhos que se passa a co-
nhecer aspectos da personalidade que por várias
razões se optou por não olhar mais de perto. É
o que Jung chamou de “realização da sombra”
(2008, p. 222).
Dessa maneira, percebe-se o emprego do
termo sombra para a parte inconsciente da perso-
nalidade, porque ela sempre aparece nos sonhos
sob uma forma personificada:
Depende muito de nós a nossa sombra tornar-
observação maldosa, comete-se a má ação, a decisão errada é tomada, confrontando-nos com uma
situação que não tencionávamos criar conscientemente ( JUNG et al., 2008, p. 223).
A plenitude supera a sombra ao absorvê-la.
O mal e o malfeito já não estão isolados. Mas,
conforme a postura se modifica, descobrimos que
o ecossistema está to-talmente interligado. Os
comportamentos de todas as pessoas afetam a to-
dos. Não há parte alguma do planeta que possa ser
isolada, como se fosse imune aos danos ecológicos
causados por outras partes. A plenitude modifica
toda perspectiva (CHOPRA et al., 2010, p. 71).
A descoberta da sombra supõe um impor-
tante processo de autoconhecimento. Conquistar
a sombra não significa lutar contra ela e sim a
transcender, quando se transcende, vai-se além.
1.2 O crescimento psíquico
A personalidade, como expressão da totali-
dade do homem, foi circunscrita por C. G. Jung
como sendo “o ideal do adulto, cuja realização
consciente por meio da individuação representa
o marco final do desenvolvimento humano para
o período situado além da metade da existência”
(2006, p. 64). Somente pode tornar-se persona-
lidade aquele que é capaz de dizer um sim consciente ao poder da destinação interior que se lhe
apresenta.
Apesar de muitos problemas humanos serem
semelhantes, eles nunca são perfeitamente idênti-
cos. Como se pode analisar na observação de Jung:
se nosso amigo ou inimigo. Às vezes uma deci-
Todos os pinheiros são muito parecidos (ou não
esse esforço sobre-humano só é possível quando
to, nenhum é exatamente igual ao outro. Devi-
são heroica pode alcançar o mesmo efeito, mas
o Grande Homem dentro de nós (o Self ) ajuda
o individuo a realizá-lo. Se a pessoa se enche de
raiva quando alguém lhe aponta um defeito, é ai
que se encontra parte da sua sombra, da qual não
tem consciência, faz-se necessário a auto-obser-
Ano 2 | número 2 | 2013
os reconheceríamos como pinheiro), e, no entando a esses fatores de semelhança e disparidade,
torna-se difícil resumir as infinitas variações do
processo de individuação. O fato é que cada pessoa tem que realizar algo de diferente, exclusivamente seu (2008, p. 216).
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20| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
Por essa razão, constata-se que é importante
também seus conteúdos, como um todo, são de
que pressupõe ansiedade, mas, sim, estar cons-
suas raízes possam ter com o instinto. Imagens,
permanecer em estado de alerta, não no sentido
ciente, focando a atenção naquilo que ocorre interiormente a cada momento.
natureza psicológica, não importa que conexão
símbolos e fantasias podem ser designados como
a linguagem do inconsciente. “O inconsciente é o
A totalidade deve ser equiparada à saúde.
responsável pelas escolhas e ações, assim como a
cidade. Ao nascer, o ser humano possui uma to-
adaptação ao mundo. Ou seja, o inconsciente não
cresce, esta entra em colapso e se reorganiza em
são reprimidos pelo ego. Ao contrário, o incons-
realização da totalidade consciente pode ser con-
já existentes e trabalha numa relação compensa-
Como tal, é tanto um potencial como uma capa-
adaptação no mundo”, equipara esse processo de
talidade fundamental, porém, na medida em que
é estático e rígido, formado pelos conteúdos que
algo mais diferenciado. Expressa deste modo, “a
ciente é dinâmico, produz conteúdos, reagrupa os
siderada como o objetivo ou o propósito da vida”
tória e complementar com o consciente ( JUNG
( JUNG et al., 2008, p. 212).
Os conceitos de totalidade observados nos
et al., 2008, p. 25).
Verifica-se que na concepção de Jung, para
estudos junguianos direcionam-se para o melhor
se contemplar uma consciência integrada e des-
Por vezes, sentimos que o inconsciente nos está
do inconsciente e do consciente. O indivíduo
como se algo estivesse nos olhando, algo que não
ocorrendo essa integração, ou seja, “conteúdos in-
Homem que vive em nosso coração e que, atra-
ciência” (OLTEN, 2002, p. 27).
entendimento da personalidade e do si-mesmo.
perta, é necessário envolver a união, a integração
guiando, de acordo com um desígnio secreto. É
passa pelo processo de individuação, onde vai
vemos, mas que nos vê – “talvez seja o Grande
conscientes são incorporados e integrados à cons-
vés dos sonhos, nos vem dizer o que pensa a nosso respeito” ( JUNG et al., 2008, p. 214).
É inútil observar o outro furtivamente para
ver como qualquer outra pessoa vai realizando o
seu processo de desenvolvimento, pois cada um de
nós tem uma maneira particular de autorrealização.
Jung chamou de individuação ao processo
paulatino de expressão da singularidade, isto é, “a
Marca de Deus; o ato de talhar a individualidade,
aquele ser distinto e único que está latente dentro de cada ser”. Na individuação, o critério certo/
errado é substituído por algumas perguntas: con-
vém ou não? Quero ou não quero? Serve ou não
serve? Necessito ou não necessito? (OLIVEIRA,
2007, p. 26).
1.2.1 Jung e o inconsciente
Jung usa o termo inconsciente tanto para des-
crever conteúdos mentais que são inacessíveis ao
ego, como para delimitar um lugar psíquico com
seu caráter, suas leis e funções próprias. Assim
como o inconsciente é um conceito psico¬lógico,
Ano 2 | número 2 | 2013
É fato que o inconsciente pode encerrar
impulsos e desejos que nunca foram conscientes,
isto é, nunca foram percebidos pela pessoa, ou,
então, que, tendo chegado ao nível consciente em
algum momento, foram censurados e voltaram ao
inconsciente.
O mundo da consciência caracteriza-se sobre-
maneira por certa estreiteza; ele pode apreender
poucos dados simultâneos num dado momento.
Enquanto isso, tudo o mais é inconsciente – apenas alcançamos uma espécie de continuidade, de
visão geral ou de relacionamento com o mundo
consciente através da sucessão de momentos
conscientes. A área do inconsciente é imensa e
sempre contínua, enquanto a área da consciência
é um campo restrito de visão momentânea. [...]
Coloco o inconsciente como um elemento ini-
cial, do qual brotaria a condição consciente. As
funções mais importantes de qualquer natureza
instintiva são inconscientes, sendo a consciência
quase que um produto dessas grandes áreas obscuras ( JUNG, 1972, p. 24-25).
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Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
Através da compreensão do que seja o cons-
mas anatômicas do passado longínquo) também
ficante é a fração de inconsciente que impera de
É um processo que percorre um caminho evo-
ciente e o inconsciente, Jung mostra o quão signiforma ainda pouco conhecida pelo ser humano.
acontece na formação do psíquico:
lutivo, originando-se da inconsciência, passando
O inconsciente “possui uma linguagem pró-
pela semiconsciência – num momento de sim-
( JOHNSON, 1989, p. 11) muitas vezes fala atra-
estágio de uma consciência mais ampliada. “A
à compreensão da importância de suas ações no
cial inconsciente e semelhante ao do animal, até
pria, tem sentimentos fortes e quer expressá-los”
biose com a mãe (e com o pai) – até atingir o
vés de metáforas; por essa razão, é difícil se chegar
criança se desenvolve a partir de um estado ini-
processo psicológico pelo ser humano.
atingir a consciência: primeiro a primitiva e, gra-
Símbolos são observáveis em cada fase, ao
longo da existência humana. Fundamentados
nestas observações, é que os psicólogos admitem
a existência de uma psique inconsciente:
Um símbolo é vivo só quando é para o obser-
vador a expressão melhor e mais plena possível
do pressentido e ainda não consciente. Nestas
condições é operacionaliza a participação do
dativamente, a civilizada” (2006, p. 57).
Este caminho se desenvolve de forma natu-
ral e segmentada. Após a aquisição da consciên-
cia, surge o período onde é preciso se diferenciar
dos pais, se relacionar com o mundo e lidar com
os próprios desejos. Este desenvolvimento esta-
belece vínculos fortes entre o “eu” e os processos
psíquicos até então inconscientes, e também os
inconsciente. Tem efeito gerador e promotor de
separa nitidamente do inconsciente. Deste modo
cialmente inconsciente e, quanto mais difundido
como uma ilha aflora sobre a superfície do mar
vida. O símbolo vivo formula um fator essen-
emerge a consciência a partir do inconsciente,
este fator, tanto mais geral o efeito do símbolo,
( JUNG, 2006, p. 56).
pois faz vibrar em cada um a corda afim ( JUNG,
2011, p. 489).
Os símbolos podem ser vistos na infância,
na puberdade, na adolescência, na iniciação sexual, na vida profissional, na relação com o di-
nheiro, nas doenças vividas, nas companhias que
se atrai, nas atividades de lazer preferidas, dentre outras. As fortes e específicas experiências e
suas circunstâncias, em cada uma dessas fases e
momentos da vida, acrescentadas aos eventos que
as marcaram, merecem adequadas e compreen-
sivas leituras. “Durante, e principalmente após
essas fases, podem ser observados caminhos ou
percursos que denunciam certa ordem implícita
ou suprahumana, propondo algo além do que a
consciência deseja e percebe”. Saber decodificar
os sinais e símbolos da vida pode se tornar im-
portante recurso para o encontro consigo mesmo
e com o sentido da própria existência (NOVAES,
2005, pp. 81, 91).
Para Jung, o que acontece, a partir dessa lei,
na formação do corpo (passar por todas as forAno 2 | número 2 | 2013
É importante salientar que o fato de Jung
relacionar Deus à manifestação inconsciente:
[...] não implica que aquilo que se chama in-
consciente venha a ser idêntico com Deus ou
a ocupar o lugar de Deus. O inconsciente é somente o meio do qual parece brotar a experiência religiosa. Tentar responder qual seria a causa
mais remota desta experiência fugiria às possibilidades do conhecimento humano, pois o conhe-
cimento de Deus é um problema transcendental
(2011, p. 55).
Dessa forma, sabe-se que consciência, por
um lado, e consciência do eu, por outro, é campo
de registros, um campo de acesso pelo eu. Esse
campo varia para cada indivíduo, de acordo com
suas capacidades evolutivas.
2 Anima: o elemento feminino
Uma das maiores contribuições de Jung foi
a demonstração de que o ser humano é andrógino, o que significa que combina em si os elementos masculino e feminino.
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Os conceitos de anima/animus (Anima =
alma, em latim) partem da noção de complementaridade entre a consciência e o inconsciente.
Para Jung, o homem tem uma alma feminina –
a anima - e a mulher, uma alma masculina – o
animus. Para Jung, “o que caracteriza a feminilidade da anima é o sentimento, enquanto que o
animus está ligado predominantemente ao pensamento racional, essencialmente masculino”. No
processo de individuação, “integrar a anima para
os homens e o animus para as mulheres é uma
das etapas fundamentais, vindo logo depois da
integração da sombra e imediatamente antes da
realização do si-mesmo” (2008, p. 235).
Nesse sentido, o inconsciente se torna par-
ceiro nos anseios peculiares aos seres humanos
em processo de busca do si-mesmo:
ou em aspectos diferentes da pessoa; ela surge,
portanto, em inumeráveis imagens de figuras
femininas ou até mesmo em figuras de animais,
como gato, cobra, cavalo, vaca, pomba, coruja –
que a mitologia atribui a certas divindades femininas (DOWNING, 1991, p. 27).
Como padrão de comportamento,
o arquétipo da anima representa os elementos
impulsivos relacionados com a vida, como vida,
como um fenômeno natural, não premeditado,
espontâneo, com a vida da carne, com a vida da
concretude, da Terra, da emotividade, dirigida
para as pessoas e para as coisas. Como padrão
de emoção, a anima consiste nos anseios incons-
cientes do homem, em seus estados de espírito,
aspirações emocionais, ansiedades, medos, infla-
ções e depressões, assim como em seu potencial
O objetivo secreto do inconsciente ao provocar
toda essa complicação é forçar o homem a de-
senvolver e amadurecer o seu próprio ser, inte-
grando melhor a sua personalidade inconsciente
e trazendo-a à realidade da sua vida ( JUNG et
al., 2008, p. 241).
O interesse de Jung pelas imagens arquetí-
picas reflete sua ênfase na forma do pensamento
inconsciente, em lugar da ênfase no seu conteúdo.
Nossa capacidade de responder às experiências
na qualidade de criaturas geradoras de imagens é
herdada, nos é outorgada pela nossa própria condição de humanos (DOWNING, 1991, p. 8).
O animus e a anima, devidamente reconhe-
cidos e integrados ao ego, contribuirão para a maturidade do psiquismo.
Podendo ser descrita ainda como imagem
numinosa, isto é, como imagem afetiva esponta-
neamente produzida pela psique objetiva, a anima
representa o eterno feminino, em qualquer um e
em todos os seus quatro aspectos possíveis e suas
variantes e combinações como mãe, hetaira, amazona e médium.
para a emoção e o relacionar-se (DOWNING,
1991, p. 27).
A anima está associada a tendências psi-
cológicas femininas na psique masculina, como
os estados de humor instáveis, irracionalidade, a
capacidade de amar, a sensibilidade, e ao relacionamento com o inconsciente, entre outras.
Portanto, “a anima é a personificação de
todas as tendências psicológicas femininas na
psique do homem – os humores e sentimentos
instáveis, as intuições proféticas, a receptividade
ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilida-
de à natureza e, por fim”, mas nem por isso menos
importante, o relacionamento com o inconsciente
( JUNG et al., 2008, p. 234).
Dentre alguns dos aspectos positivos refe-
rentes a anima, Jung destaca:
É, por exemplo, responsável pela escolha da
esposa certa. Outra função sua igualmente relevante: quando o espírito lógico do homem se
mostra incapaz de discernir os fatos escondidos
em seu inconsciente, a anima ajuda-o a identificá-los. Mais vital ainda é o papel que represen-
Ela aparece como a deusa da natureza, Dea Na-
ta, sintonizando a mente masculina com os seus
é mãe, irmã, amada, destruidora, bela feiticeira,
nho a uma penetração interior mais profunda. É
turae, e a Grande Deusa da Lua e da Terra, que
valores interiores positivos, abrindo assim cami-
bruxa feia, vida e morte. Tudo em uma só pessoa
como se um “rádio” interno fosse sintonizado em
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Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
uma onda que excluísse as interferências inopor-
conteúdo que “representavam apenas a possibili-
belecendo esta recepção “radiofônica” interior, a
Apud HALL, 1993, p. 34).
tunas e captasse a voz do Grande Homem. Esta-
anima assume um papel de guia, ou de mediador,
entre o mundo interior e o si-mesmo. Como no
caso da iniciação dos xamãs; é como surge no papel da Beatriz, do Paraíso de Dante, e também no
da deusa Ísis, ao aparecer em sonhos a Apuleius,
o famoso autor de O asno de ouro, iniciando-o
em uma forma de vida mais elevada e espiritual
(2008, p. 241).
dade de certo tipo de percepção e ação” ( JUNG,
Diante do complexo mundo arquetípico fe-
minino, Jung ressalta que a analogia da situação
mitológica com a vida comum está na atenção
consciente que uma mulher tem de dar aos pro-
blemas de seu animus e que toma muito tempo e
envolve muito sofrimento:
Mas se ela se der conta da natureza deste animus
Cabe salientar que, através das projeções de
anima e animus, encontram-se respostas para as
simpatias e antipatias sem razão de ser. A anima e
o animus são os mediadores entre o ego e o mundo interno, para tanto:
e da influência que ele exerce sobre sua pessoa,
e se enfrentar esta realidade em lugar de se deixar possuir por ela, o animus pode se tornar um
companheiro interior precioso que vai contem-
pla-la com uma série de qualidades masculinas
como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a
Se um homem quiser alcançar a serenidade e
aquela harmonia interior que, para Jung, passou
a ser meta suprema da vida, ele deverá redesco-
brir aqueles aspectos de si mesmo que tinham
sido negligenciados; e, para consegui-lo, exige-se
o sacrifício parcial da própria função ou atitu-
de que o serviu bem e lhe acarretou sucesso nos
sabedoria espiritual ( JUNG et al., 2008, p. 258).
O animus, tal como a anima, apresenta
quatro estágios de desenvolvimento: “o primeiro
é personificação da força física. No estágio se-
guinte, o animus possui iniciativa e capacidade
de planejamento; no terceiro torna-se o verbo, na
anos anteriores. “Assim, tanto o indivíduo cioso
quarta manifestação, o animus é a encarnação do
seu desenvolvimento unilateral” (STORR, 1973,
Numa colocação mais interior, Jung cha-
de poder como o intelectual precisam corrigir o
p. 84).
pensamento” ( JUNG et al., 2008, p. 258).
mou este arquétipo de imagem da alma, por sua
Uma das chaves para a individuação está
capacidade de nos colocar em contato com nossas
entre masculino e feminino, animus/anima, atu-
para revelar a nossa criatividade (FADIMAM;
justamente no dinamismo dessas forças psíquicas
forças inconscientes; muitas vezes, ele é a chave
ando como um espelho que sirva de referencial
FRAGER, 2004, p. 103).
de auto-observação.
2.1 Animus: o elemento
masculino interior
Alguns arquétipos têm grande importân-
cia na formação da personalidade e do com-
portamento, de modo que Jung dedicou-lhes
uma especial atenção. Dentre esses arquétipos,
cita-se o animus:
Existem tantos arquétipos quantas as situações
típicas na vida. Uma repetição infinita gravou es-
tas experiências em nossa constituição psíquica,
não sob a forma de imagens saturadas de conteúdo, mas a princípio somente como formas sem
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No animus, em seu aspecto positivo, sob a
forma de pai, se expressam não somente opiniões
tradicionais, mas também aquilo que se chama
espírito, e de modo particular certas concepções
filosóficas e religiosas universais, uma vez que “o
animus na sua forma mais desenvolvida, relacio-
na a mente feminina com a evolução espiritual,
tornando-as assim mais receptivas a novas ideias
criadoras” ( JUNG et al., 2008, p. 259).
2.2 O self - símbolo da totalidade
Uma vez que o processo de individuação
não se confunde com o que se chama de perfeição, a construção da personalidade se caracteriza
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como um constante processo de reorganização do
original. Buscam correspondências no mundo ex-
psicológica.
arquetípico de um bebê ativo, com as respostas
inconsciente, ou seja, busca-se ter uma identidade
O Self representa o ser em sua totalidade e
terno. O acoplamento resultante de um potencial
reativas da mãe, é então reintegrado para se tornar
também o centro organizador, autorregulador e
um objeto internalizado. O processo de integra-
obras de Jung, onde o conceito “de si-mesmo”
FATTI, 2012, p. 1).
recer para um dos mistérios centrais da psique, a
nossa experiência consciente de tempo (na nossa
mica centralizadora e suas estruturas profundas
multaneamente onipresente. Além disso, aparece
integrador, ação que se complementa ao estudar
ção/reintegração continua por toda a vida (BON-
oferecia a melhor explicação que era possível ofe-
O self não está inteiramente contido na
criatividade aparentemente milagrosa, sua dinâde ordem e coesão ( JUNG et al., 2008, p. 212).
dimensão espaço-tempo), mas é, no entanto, si-
com frequência sob uma forma que sugere esta
Dessa forma, chama-se a este centro de self,
onipresença de uma maneira toda especial; isto é,
que, para diferenciá-lo do ego, que constitui ape-
simbólico que envolve e contém o cosmos inteiro
sendo descrito como a totalidade absoluta da psi-
manifesta-se como um ser humano gigantesco e
nas uma pequena parte da psique ( JUNG et al.,
( JUNG et al., 2008, p. 266).
2008, p. 212).
Para Jung, toda realidade psíquica interior
Com relação ao self, pode também ser de-
de cada indivíduo é orientada, em última instân-
finido como um fator de orientação íntima, di-
cia, em direção a este símbolo arquetípico do si-
investigação dos sonhos, mostra como essa perso-
Em termos práticos, isto significa que a existên-
ferente da personalidade consciente e, através da
nalidade é provocada para um “constante desen-
volvimento e amadurecimento”, “mas o quanto
vai evoluir, depende do desejo do ego de ouvir ou
mesmo.
cia do ser humano nunca será satisfatoriamente
explicada por meio de instintos isolados ou de
mecanismos intencionais como a fome, o poder,
não as suas mensagens”, pois é o ego que ilumina
o sexo, a sobrevivência, a perpetuação da espécie
ência e, portanto, que “esse self se torne realizado”
comer, beber etc., mas ser humano. Acima e além
o sistema inteiro permitindo que ganhe consci-
etc. Isto é, o objetivo principal do homem não é
( JUNG et al., 2008, p. 213).
destes impulsos, nossa realidade psíquica interior
A partir do momento em que o ser parte
em busca de sua verdadeira essência e a encontra,
depara-se com sua totalidade, ou o seu si-mesmo,
pois para ser íntegro é necessário que abranja a
totalidade do ser:
Os símbolos do self possuem uma numino-
sidade e conduzem a um sentimento de necessi-
dade que lhes dá uma prioridade transcendente
na vida psíquica. Um self primário ou original
é postulado como existente no começo da vida.
Esse self primário contém todos os potenciais
arquetípicos, inatos, que podem receber expres-
são de uma pessoa. Em um meio ambiente apropriado, esses potenciais iniciam um processo de
integração emergente do integrado inconsciente
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manifesta um mistério vivente, que só pode ser
expresso por um símbolo; e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezes escolhe a poderosa imagem do Homem Cósmico (2008, p. 270).
Todo ser humano vislumbra sonhos e/ou
imagens de forma impessoal, que o levam rumo
à busca da realização do si-mesmo.
O self é, muitas vezes, simbolizado por um animal que representa a nossa natureza instintiva e
a sua relação com o nosso ambiente. (É por isto
que existem tantos animais bondosos e prestimosos nos mitos e contos de fada.) Esta relação
do self com a natureza à sua volta e mesmo com o
cosmos vem, provavelmente, do fato de o “átomo
nuclear” da nossa psique estar, de certo modo, interligado ao mundo inteiro, tanto interior como
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Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
exteriormente. Todas as manifestações superiores da vida estão, de certa maneira, sintonizadas
com o contínuo espaço-tempo ( JUNG et al.,
2008, p. 275).
A partir das reflexões acima citadas, cons-
tata-se, segundo Jung, que: “Quando um homem
segue as instruções do seu inconsciente, pode re-
ceber e aplicar este dom que permite, de repente, fazer da sua vida, até então desinteressante e
apática, uma aventura interior sem fim, repleta de
A imagem onírica pode nos iludir, devido a pro-
jeções, ou dar-nos uma informação objetiva. Para
se descobrir qual a interpretação correta, é ne-
cessária uma atitude honesta e atenta e um cui-
dadoso raciocínio. “Mas como acontece em todo
processo interior, é o self que, em última instância, ordena e regula nosso relacionamento huma-
no, desde que o ego consciente se dê ao trabalho
de detectar estas projeções irreais, ocupando-se
delas no seu íntimo, e não exteriormente”. É as-
sim que pessoas que têm afinidades espirituais
possibilidades criadoras” (2008, p. 265), e, quanto
e uma mesma orientação descobrem-se umas às
de dons sobrenaturais.
às organizações e estruturações sociais comuns.
à mulher, este potencial pode surgir sob a forma
Todo esse processo de busca do si-mesmo
não significa chegar à perfeição, mas sim ter en-
tendimento de que o progresso interior é algo a
ser trabalhado durante toda a vida, pois novos
desafios surgirão o tempo todo durante nossa
existência.
outras, criando um novo grupo, que se sobrepõe
Tal grupo não entra em conflito com outros; é
apenas diferente e independente. O processo de
individuação conscientemente realizado muda,
assim, as relações humanas do indivíduo ( JUNG
et al., 2008, p. 295).
O ego deve ser capaz de ouvir atentamente
e de entregar-se, sem qualquer outro propósito ou
3. A individuação como experiência
religiosa
Um dos conceitos centrais de Jung é a indi-
viduação, termo usado por ele para designar um
processo de desenvolvimento pessoal que envolve
o estabelecimento de uma conexão entre o ego e
o si-mesmo.
Citando Sonia Lyra, segundo Jung, “invoca-
do ou não invocado, Deus está presente” (LYRA,
2001, p. 54), e, apesar de suas constantes fugas, a
busca fundamental do ser humano é encontrar-
se. Eis o que sua invocação, consciente ou não,
implica, a saber, conhecer, compreender, mesmo
o que lhe pareça momentaneamente inacessível,
pois em sua essência sabe quão terrível é o medo
da solidão, de saber estar distante de sua essência.
O processo de individuação é, na verdade,
“mais que um simples acordo entre a semente
objetivo, ao impulso maior do crescimento.
Segundo Jung, o verdadeiro processo de
individuação significa a harmonização com o
próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou
self, que em geral começa infligindo uma lesão
à personalidade, acompanhada do consequente
sofrimento. “Este choque inicial é uma espécie
de apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido
como tal. Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas
suas vontades ou desejos e geralmente projeta esta
frustração sobre qualquer objeto exterior ( JUNG
et al., 2008, p. 219).
Todo indivíduo necessita passar pelo pro-
cesso de crescimento e maturação, para Jung, o
processo de individuação. Como pregava Santo
Inácio de Loyola, em obra organizada por Guil-
lermou; nesta obra, por exemplo, ele ensina que,
com a prática dos seus exercícios espirituais, o in-
divíduo desenvolverá suas potencialidades e res-
inata da totalidade e as circunstâncias externas
ponsabilidades humanas à luz da reflexão, sobre
subjetiva sugere a intervenção ativa e criadora de
E assim cita:
que constituem o seu destino. Sua experiência
sua prestação de contas final perante seu Criador,
alguma força suprapessoal” ( JUNG et al., 2008,
Organizar a disciplina do corpo é relativamente
p. 214).
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fácil: o asceta pode estabelecer o que será a sua
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alimentação, sua bebida, o tempo de sono; isso
tudo é então um simples problema de vontade.
Não acontece o mesmo na disciplina do espírito: como impedir a imaginação de vagar como
um voo desordenado de mosquitos (1973, pp.
62, 63).
O desafio maior da transcendência é ativar
a necessidade que cada ser humano possui de se
autoconhecer, indo além de suas sombras e seus
arquétipos. “A glória da existência humana não
está nas coisas que nos tornam únicos. está no
fato de podermos nos unir à inteligência cósmi-
ca; cada um de nós se torna uma parte consciente do todo. Quando isso acontece, ganhamos um
mundo que nem chega a ser imaginado pelos
pensamentos e sentimentos da vida co¬tidiana”.
Quando mais criativa e imaginativa se tornar a
para levar ao crescimento, seu desfecho último
consiste em atingir o estado de Self, no sentido
da centralidade da personalidade” (2002, p. 149).
Para alcançar esta centralidade, faz-se necessário
romper com o arquétipo persona e sombra, com o
intuito de viver o processo de individuação. Como
vem sendo dito, sombra e persona atrapalham no
processo de individuação. A religião entra nesse
contexto, como um fator que favorece ao processo
de individuação, quando bem trabalhado.
A definição de individuação aparece ainda
em outra citação de Jung, onde ele a define como
“um processo religioso que exige atitude religiosa
correspondente: a vontade do eu de submeter-se
ao si mesmo” (2002, p. 432).
No desenvolvimento do processo de indivi-
mente consciente do ser humano, tanto menos
duação, ocorre uma expansão do mundo interior,
qualquer um desses benefícios, temos de expe-
fragmentada.
PRA et al., 2010, p. 77).
ciedades humanas e tenta conciliar o padrão do
inclinada ao julgamento. “Mas, para que surja
rimentar o que a plenitude realmente é” (CHOA individuação é uma exigência psicoló-
gica imprescindível, a individualidade é o único
caminho que a pessoa tem para escapar do cole-
tivo. Na psique coletiva perde-se justamente de
vista o seu ser mais profundo. Para Santos, ao
definir o termo religião, Jung não se preocupou
com os credos e rituais das religiões, mas com
do qual resulta uma nova personalidade, menos
A nova consciência que emerge nas so-
medo que norteou o comportamento humano
nesses últimos duzentos anos e que separou ciência de religiosidade, trabalho de alegria, sexo de
afeto, e Deus do mundo, cede lugar ao paradigma
do amor, que é a energia de criação, manutenção
e recriação da vida.
Goldbrunner chama a atenção para o fato
as experiências religiosas originais que decorrem
de que “a individuação é um processo espiritual
ligiosa. A religião, para ele, não precisa ter seu
Segue dizendo que seus caminhos são tão va-
por meio do indivíduo em relação à prática reapoio na tradição e nem na fé, mas sua verdadei-
ra origem encontra-se nos arquétipos; por isso,
ele entende que religare expressa a essência da
religião (2006, p. 30).
Na seguinte citação de Jung, vemos como o
mesmo discute a respeito da individualidade es-
piritual: A individualidade assim chamada espiritual é também uma expressão da corporalidade
do indivíduo, ambas são, por assim dizer, idênticas. Após ter explicado como funciona o aparelho
psíquico, em Jung, “no qual o processo de individuação ocorre como algo natural e necessário
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de formação da personalidade” (1961, p. 138).
riados quanto são os indivíduos existentes, porém trata-se de uma experiência intima e muito
poucos conseguem transportar-se para a disposição de espírito de outrem e experimentar seus
sentimentos.
O ser humano se fortalece ao experienciar
a busca pelo si-mesmo. De acordo com Jung, [...]
todos os momentos da vida individual em que
as leis gerais do destino humano rompem com
as intenções, as expectativas e concepções da
consciência pessoal são, ao mesmo tempo, eta-
pas do processo de individuação, que é a re-
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alização espontânea do homem total. Quanto
mais o homem se torna consciente do seu eu
pessoal, mais se distancia do homem coletivo,
que é ele próprio, criando com isso uma opo-
sição. No entanto, como o si-mesmo tende
o símbolo unificador representa a experiência de
Deus (1961, p. 173).
Considerações finais
Espera-se então que ocorra um amadure-
sempre para a totalidade, a atitude unilateral
cimento no processo de desenvolvimento psico-
ego é chamado a se integrar a uma personali-
mesmos, desenvolvendo um senso de responsa-
da consciência é corrigida e compensada, e o
dade mais ampla ( JUNG, Apud ARMANDO,
2006, p. 77).
lógico. Isso significa tomar consciência de nós
bilidade e capacidade de julgamento, que poderão
ser idênticos ou não aos padrões e expectativas
Apesar de fazer parte da mesma sociedade
e do mesmo processo civilizatório, quanto mais o
externas e coletivas, ou seja, ter conhecimento de
si mesmo. Isso é verdadeiramente o processo de
ser se submete ao processo de individuação, mais
individuação.
normas, padrões, regras, costumes e valores cole-
tural de uma vida, na qual em que o indivíduo se
ele se diferenciará em sua conduta em relação às
tivos. O ser representa, então, uma combinação
única dos potenciais existentes no coletivo. Tudo
o que uma pessoa aprende como resultado de
experiências é influenciado pelo inconsciente co-
letivo, que exerce ação orientadora no início da
vida. Sendo assim, o ser nasce com predisposição
para pensar, sentir, perceber, de maneiras específicas. O desenvolvimento dessas predisposições vai
depender das experiências vividas pelo ser. Quan-
to maior o número de experiências, maiores são
as chances de essas imagens latentes tornarem-
se manifestas, e um ambiente rico em oportunidades é necessário ao processo de individuação
(TOLEDO, 2006, p. 63).
Com clareza intensa, Goldbrunner retrata
essa sensação única, onde somente pessoas capazes de ser verdadeiras em sua busca interior são
capazes de experimentar
a convergência de todas as suas energias e instintos da alma para um ponto central, enquanto
o ego passa a ocupar uma condição periférica. A
partir de então, se dá seu efeito sobre a personalidade, e dessa transformação experimenta-se
Este processo corresponde ao decorrer na-
torna o que sempre foi. E porque o homem tem
consciência, um desenvolvimento desta espécie
não decorre sem dificuldades; muitas vezes, ele é
um processo diversificado e perturbado, porque a
consciência se desvia sempre de novo da base arquetípica instintual, pondo-se em oposição a ela
( JUNG, 2002, p. 49).
Todo processo de organização psíquica,
desde o nascimento (organização do ego, comple-
xos etc.), tem como objetivo o desenvolvimento
do individuo ou, mais precisamente, do que é
mais próprio de cada individuo.
Conclui-se, portanto, que a tomada de
consciência por parte do homem aparece como
o resultado de processos arquetípicos predeter-
minados em linguagem metafísica, como uma
parte do processo vital divino. Em outros termos:
“Deus se manifesta no ato humano de reflexão”
( JUNG, 1979, p. 234).
A individuação direciona o ser humano
para a realização do si-mesmo, não se importando
em satisfazer o ego. Essa postura permite que as
o novo centro da psique, e assim se pode sen-
pessoas se encontrem, uma vez que, ao se permitir
pura, esse sentimento todo peculiar pode apa-
armadura, trabalha seus medos, pois, “a meta da
do sonho ou da visão. Na qualidade de símbolo
si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim
expressão da atividade criadora. Sob esse aspecto,
diais” ( JUNG, 2011, p. 270).
tir o quanto a vida é pura, a energia psíquica é
a busca do si-mesmo, o ser humano despe-se da
recer como símbolo na representação pictorial
individuação não é outra senão a de despojar o
transcende toda compreensão racional, pois é a
como do poder sugestivo das imagens primor-
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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
28| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28
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Ilustração: Rogério Borges
Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20
O percurso para a sétima morada
The Journey to the Seventh Mansion
Albertina Laufer
Ano 2 | número 2 | 2013
CONIUNCTIO
CONIUNCTIORevista
RevistaEletrônica
Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
30| O Percurso para a Sétima Morada | Albertina Laufer | 30 - 39
O Percurso para a Sétima Morada
The Journey to the Seventh Mansion
Albertina Laufer*
Resumo
Este artigo tem como objetivo investigar a forma como se dá o percurso para a sétima morada, em toda
pessoa que se dispõe a investir no caminho da interioridade, considerando o caminho apontado por Teresa
de Ávila, na Obra Castelo Interior ou Moradas. Tal investigação far-se-á acompanhar dos comentários de
Edith Stein e das analogias feitas por ela. A sétima morada é apresentada como a parte mais elevada do
castelo, ou o centro da alma, local onde Deus repousa e de onde emana toda claridade de luz. Considerado
como arquétipo, o centro da alma, é o símbolo fundamental e principio ordenador e regulador da psique e é
designado de si-mesmo ou self (Selbst), sendo o centro de toda a personalidade. Em razão disto, o caminho
psicológico e o caminho espiritual podem ser apresentados como duas realidades complementares e possíveis a fim de que a alma se descubra e tome posse de sua realidade profunda, isto é, do seu centro ou da
sétima morada.Palavras-chave: Bem-aventurança, felicidade, contentamento, terceira margem.
Palavras-chave: Teresa de Ávila, Edith Stein, Castelo Interior, Sétima Morada, Self.
Abstract
This article aims to investigate the journey to the seventh mansion of every person that is willing to invest
in the path to interiority, considering the way indicated by Teresa of Ávila’s work The Interior Castle or The
Mansions. Such research will be accompanied by Edith Stein’s commentaries and the analogies made by
her. The seventh mansion is presented as the highest part of the castle, or the center of the soul, where God
rests and from which all light brightness emanates. Considered as an archetype the center of the soul is the
fundamental symbol and the arranging and regulative principle of the psyche and it is designated as the Self
(Selbst), being the center of the whole personality. Because of this, the psychological way and the spiritual
path can be presented as two complementary and possible realities so that the soul discovers itself and takes
possession of its profound reality, that is, of its center or of the seventh mansion.
Keywords: Teresa of Ávila, Edith Stein, The Interior Castle, the Seventh Mansion, Self.
* Albertina Laufer
Licenciada em pedagogia
com habilitação em
administração escolar.
Especialista em
counseling. Especialista
em psicologia analítica
e religião oriental e
ocidental pelo ICHTYS
– Instituto de Psicologia
e Religião. Mestra em
teologia - PUC/Pr.
([email protected])
1. Aspectos introdutórios
As Sagradas Escrituras, já de início, no relato bíblico da criação (Gn, 1,1-2,4), apresentam
o ser humano como sendo o ápice da obra criada
por Deus. “Então Deus disse: Façamos o homem
à nossa imagem e semelhança [...] E Deus criou
o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele
o criou; e os criou homem e mulher” (Gn 1,2627). O texto bíblico narra por três vezes que Deus
criou o homem à sua imagem, revelando-lhe,
dessa forma a importância que lhe cabe na obra
da criação. No homem encontra-se estampada a
Ano 2 | número 2 | 2013
presença de seu Criador e a esta ele deve assemelhar-se.
Para evidenciar esta realidade, Edith Stein
recorre ao estudo de Santo Tomás de Aquino, o
que torna claro o lugar central ocupado pela antropologia em seus escritos. Em sua obra Potencia e Ato, discorre sobre a passagem da imanência
para a transcendência, demonstrando que a característica principal dos seres humanos e das coisas
viventes é a de permanecer, ao mesmo tempo, em
potência e em ato. Por ato ela compreende que o
ser humano tende a algo diferente, possui uma
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O Percurso para a Sétima Morada | Albertina Laufer | 30 - 39
exigência e um impulso para algo a mais. Porém,
o novo contido na obra de Stein “consiste em conservar os polos paradoxais da dinâmica da vida na
sua contínua tensão: interioridade-exterioridade;
finito-infinito; o fugaz e o eterno” (FERNANDES, 2009, p. 231). Neste sentido, o ser humano
é potencialmente aberto a algo e projetado dialeticamente para a passagem da potência para ato.
encontra-se na coragem e no caminho dos gran-
des santos, dentre eles São João da Cruz, Santa
Teresa de Ávila, Santa Teresa Margarita, Santa
Teresinha, mestres inspiradores da vida carmelita,
sobre cujas vidas e obras Edith Stein teceu alguns
comentários com a finalidade de dar a conhecer
ao mundo católico o significado da entrega de
si vivida pela pessoa que assume este ideal. Para
A realidade da imagem de Deus (imago
Dei) citada no texto da criação aparece também
no Salmo 139. Nele o salmista percorre um caminho introspectivo profundo, descobrindo a presença de um Deus que o conhece mais do que ele
próprio e, não bastando isso, está mais presente
nele do que ele está em si mesmo.
Edith Stein as horas dedicadas a sós no colóquio
Senhor, tu me sondas, e me conheces. Tu
conheces o meu assentar e o meu levantar; de
longe entendes o meu pensamento. Esquadrinhas
o meu andar, e o meu deitar, e conheces todos
os meus caminhos. Sem que haja uma palavra na
minha língua, eis que, ó Senhor, tudo conheces
(Sl 139, 1-4).
os místicos abrem mão da rotina quotidiana e se
O texto apresenta a imago Dei em contato
direto com o próprio mistério de Deus. Retrata o
encontro íntimo que ocorre entre a profundidade
do mistério da imagem, com o próprio Mistério
que a transcende e que, ao mesmo tempo, permanece em profunda comunhão com ela.
2. O mergulho em Deus
com o Senhor constituem o fundamento da vida
carmelita e “aquilo que Deus realiza nas almas
durante as horas de oração interior está escondido aos olhos dos homens e se constitui em graça
sobre graças” (STEIN, 1998b, p. 282).
No intuito de fazer a experiência do centro,
lançam aprofundando o desconhecido e obscuro.
Entrando em si, têm contato com a sua essência
e com a realidade do próprio Deus que é o cen-
tro de todos os Centros. Na tentativa de tornar a
experiência compreensível, recorrem às metáforas
e às imagens , como referências de sentido. Para
Storniolo algo semelhante ocorre na experiência
de análise psicológica, por meio de um método
que se desdobra para além das realidades patológicas. Neste sentido, Jung apresenta o “processo
de individuação como o processo normal pelo
qual um ser se desenvolve para tornar-se o que é”
(apud HUBERT, 1997, p. 8).
Com a descoberta do arquétipo do Centro
Para chegar até Deus, toda pessoa tem necessidade de passar pela imago que existe dentro
de si e quando se chega a ela, chega-se também
ao próprio mistério de Deus. Ao ser imagem do
divino, o humano adota suas características, de
modo particular quando faz a experiência de seu
centro. Ao fazê-la, faz ao mesmo tempo a experiência da totalidade da imagem e da experiência
de um Deus incomensurável. “Há na experiência
do centro, [...] uma experiência da totalidade de si
mesmo que, unida à experiência do centro divino,
torna-se experiência do todo universal” (STORNIOLO, apud HUBERT, 1997, p.7).
ou Si-Mesmo, Jung o apresenta como o centro
O exemplo deste mergulho para o Centro
simultaneamente, à dimensão misteriosa da qual
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regulador de todo o psiquismo, pelo qual se pode
fazer alusão ao que os místicos denominam de
imago Dei. Esta descoberta o auxiliou na construção de uma ponte entre a Psicologia como
ciência da alma e a experiência que os místicos
têm da alma. Embora apresentada com conota-
ções diferentes, a característica fundamental de
uma e outra tende para a experiência religiosa,
compreendida como a experiência de re-ligação.
“No processo místico, religar a pessoa à imago
Dei e ao próprio Deus. No processo de indivi-
duação, religar o Eu consciente ao Si-Mesmo e,
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o Si-Mesmo é reflexo ou imagem” (STORNIO-
entre o desenvolvimento psicológico e a ascese.
compreende-se que a experiência psicológica
como fim em si, mas como caminho que conduz
LO, apud HUBERT, 1997, p. 9). Neste sentido,
se constitui numa caminhada, uma vez que não
pode chegar à plenitude voltada somente ao Deus
imanente na alma, mas deve reconhecê-lo como o
Deus transcendente, ou totalmente Outro. Neste
momento, cede terreno para o campo da mística.
O grande perigo no qual incorre o ser hu-
mano, está em considerar Deus somente na sua
imanência, perigo esse que o conduz a um narci-
Nesse contexto, a ascese cristã é entendida não
a Deus. Para Winckel, a ascese “não visa fazer
super-homens” (WINCKEL, 1985, p. 43), mas
direciona ao despojamento, ao desapego. “Mergu-
lhar na ascese sem Deus, traria grandes perigos,
porque se cairia inconscientemente, mas quase
infalivelmente, no egoísmo e no orgulho” (WINCKEL, 1985, p. 43).
O objetivo de toda ascese cristã, é levar
sismo fechado. Para tanto, é necessário salientar
o fiel a uma configuração cada vez maior com
e que as “referências que ele faz a Deus, referem-
renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e optar
que Jung nasceu e morreu num contexto cristão
se às representações humanas de Deus” (BONAVENTURE, apud Winckel, 1985, p. 10), porque
o buscando somente dentro de si perdem de vista a alteridade que Nele está presente. Em suas
Memórias, no capítulo sobre o confronto com o
inconsciente, Jung deixa registrado o reconhecimento destes limites:
Todos os escritos são, de certa forma, ta-
refas que me foram impostas de dentro. Nasce-
ram sob a pressão de um destino. O que escrevi
transbordou de minha interioridade. Cedi a pa-
a vontade de Deus em sua vida, a ponto de ele
pelo seguimento. “Se alguém quiser vir comigo,
renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-
me” (Mt 16,24-28). Ressalta-se aqui, que a fina-
lidade da cruz no calvário não foi um fim em si
mesmo cujo sentido acabou com a morte, mas se
constituiu num caminho de sofrimento na Cruz
que culminou com a ressurreição de Cristo. Do
mesmo modo a finalidade da ascese não é ani-
quilar, mas servir a vida, tanto a da natureza racional, quanto a da graça.
É possível uma aproximação entre a análise
lavra ao espírito que me agitava [...]. Para mim
psicológica e ascese, pois, em ambas a experiêcia é
zer. Minha impressão é que fiz tudo o que me
ma, que os “elementos de tal ascese são frutos da
o essencial sempre foi dizer o que tinha que difoi possível. Naturalmente, poderia ter sido mais e
melhor, mas não em função da minha capacidade
( JUNG, 1975, p. 195).
Winckel interpreta as palavras de Jung
dizendo que chegar ao Si-Mesmo é o caminho
que prepara para “ultrapassar o psicológico e o
simbólico para se abrir ao ilimitado do sagrado”
(WINCKEL, 1985, p. 36). Ilustrativo a respeito
deste caminho é um fragmento de uma das cartas de Jung: “Mas o si mesmo não pode tomar
o lugar de Deus, embora possa, às vezes, ser um
receptáculo da graça divina” ( JUNG, apud WinckeL, 1985, p. 26).
A intuição do Si-Mesmo como receptáculo
da graça divina, leva ao estabelecimento de laços
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vivida interiormente. Compreende-se, dessa forvida interior de cada um e não se constituem em
padrão válido para todos”. (WINCKEL, 1985,
p.45). Há sim uma diferença entre o conheci-
mento psicológico da alma, que se dá através do
inconsciente e o conhecimento teológico e místico da alma pela ascese, porém essa diferença não
está na essência da alma, mas sim na diversidade
de caminhos e direções; “Órgão da percepção de
Deus, ele não é Deus, mas tende a no-lo dar a
conhecer” (WINCKEL, 1985, p. 55).
3. Psicologia e Mística:
caminhos complementares
Os místicos que conhecem a alma por
dentro não se enganam. Exemplo disso é o caminho proposto pela aventura de Tereza de Ávi-
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O Percurso para a Sétima Morada | Albertina Laufer | 30 - 39
la através da imagem do Castelo Interior e suas
periências vividas pelas incursões nos caminhos
um percurso de autoconhecimento e de conhe-
ma de se viver a espiritualidade, ao mesmo tempo
Moradas , que pode ser percebido também como
cimento do Self. A proposta de passagem em
cada uma das moradas evidencia o caminho da
alma humana que realiza um diálogo/confronto de verificação entre a experiência externa e a
experiência interna. Paulatinamente vão aconte-
cendo os processos de purificação e crescimento.
À medida que vai avançando no processo, o habitante do Castelo vai sendo conduzido a uma
aproximação àquela morada central, nuclear,
onde há uma presença. Neste processo, segundo Jung, o ego vai conquistando sempre mais a
liberdade para conviver, arriscar-se, confrontan-
do-se com a sua sombra. A pessoa passa a fazer
um caminho no qual percebe as mudanças e as
transformações em si, até chegar a aproximar-se
da totalidade do centro, o Self.
Na sua obra Ser Finito e Ser Eterno, Edith
Stein utilizou o termo Castelo da alma, no momento em que se referia à obra de Santa Teresa
de Ávila. Para ela, a qualidade do Castelo Interior
é insuperável pela experiência da autora que, no
momento em que escreve, já deveria ter chegado
da interioridade. Ela propõe então, uma nova for-
em que dá indícios de que Deus pode também
ser encontrado para além das Sagradas Escrituras.
É de suma importância, para poder com-
preender a aproximação de Edith Stein com a
obra de Santa Teresa de Ávila, trazer presente a
lembrança de suas visitas ao casal de amigos Con-
rad Martius. Foi na casa deles que Edith Stein,
pela primeira vez, entrou em contato com a obra
de Teresa de Ávila e a partir deste contato, diz ter
chegado ao encontro com aquela realidade que
ela denominava ser a Verdade. Edith Stein referese a este evento da seguinte maneira:
Sem escolher, peguei o primeiro livro que
me veio às mãos: era um enorme volume que ti-
nha como título ‘Teresa de Ávila livro da vida’.
Iniciei a leitura e prendi-me totalmente, não interrompendo antes de chegar ao fim do livro. As-
sim que o fechei, fui obrigada a confessar a mim
mesma: ‘Esta é a verdade’(EDITH, apud SPIRITU SANCTO, 1959, p. 30).
Estudiosa da vida de Edith Stein, Spirictu
ao mais alto grau da vida mística, bem como pela
Sanctu relata que, possivelmente, daquele mo-
e com palavras simples descrever as vivências in-
e ela não mais o teria abandonado” (SPIRITU
sua extraordinária capacidade de criar um léxico
mento em diante, “Deus tinha se apropriado dela,
teriores:
SANCTO, 1959, p. 30). Já para Ales Bello, este
Para a Santa, não era possível dar a enten-
der os sucessos que acontecem no interior do
homem, sem antes esclarecer a si mesma no que
consiste exatamente esse mundo interior. Para
tanto, ocorreu-lhe a feliz imagem de um castelo
com muitas moradas e salas. O corpo é descrito
como a parede próxima ao castelo. Os sentidos
e poderes espirituais (inteligência, memória e
vontade), às vezes como vassalos, por vezes, como
sentinelas, ou simplesmente como habitantes do
castelo. A alma, com seus numerosos cômodos,
assemelhando-se ao céu, no qual há muitas moradas (STEIN, 1998, p. 414-415).
Segundo Edith Stein, Teresa de Ávila des-
creve surpreendentes e misteriosas aventuras, exAno 2 | número 2 | 2013
acontecimento foi certamente tão iluminado, pois
permitiu que Stein pudesse redescobrir a experiência religiosa, por ela um tanto esquecida na
adolescência. Nesta época estava refletindo a res-
peito da temática do ser humano, conduzida por
Husserl. Por essa razão, segundo a autora, podese pensar também em termos de uma posterior
clarificação sobre a estrutura do ser humano. Cla-
rificação esta que a conduzirá a uma escavação
ainda maior para encontrar o núcleo profundo e
pessoal que caracteriza cada pessoa. “O encontro
com a obra de Teresa de Ávila causou certamente
um intenso movimento na vida espiritual de Edith Stein, abrindo a ela horizontes anteriormente
desconhecidos” (MANGANARO, et al 2006, p.
70-71 ).
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Stein compreende que não é somente pela
do castelo. Para ela a atitude de permanecer por
terioridade e compreendê-la, mas se pode chegar
como estranha e patológica, pois as almas encon-
filosofia que se pode entrar em contato com a in-
a ela por meio do caminho percorrido e proposto
pelos místicos e, portanto, para ela Santa Tere-
sa serve de exemplo. Compreendendo que Santa
Teresa percorre um itinerário que não é o da inte-
lectualidade acadêmica, Stein apreende que para
se chegar à verdade, muitos podem ser os caminhos, mesmo que ainda esta verdade seja encontrada parcialmente.
Aprofundando suas reflexões a respeito do
ser humano, Stein vai sempre mais percebendo
que Teresa de Ávila não tinha intenção de fazer
um estudo minucioso a este respeito, mas sim
apresentar a possibilidade que este possui de
fora do castelo, sem conhecer a própria casa, soa
tram-se enfermas e mergulhadas apenas nas coi-
sas exteriores, que dão a impressão de não haver
remédio nem possibilidade de fazê-las entrar em
si mesmas. Pelo fato de estarem tão habituadas
com as coisas que existem fora do castelo, acabam
por se tornar semelhantes a elas.
Neste primeiro estágio, a alma encontra-
se numa fase de vivência na presença da cobiça
sexual ou o lugar das satisfações instintivas. Mas
toda a obscuridade ali existente, só tem sentido se
percebida em relação à luz que reside e ilumina as
últimas moradas e a esta parece tanto mais fulgu-
rante, a partir do momento em que a alma estiver
entrar em contato com Deus. Percebe, ainda, a
envolvida por aquilo que a Santa denomina de
da Santa a respeito de sua própria experiência.
Embora sendo a primeira morada, esta é
eficácia e a atualidade da descrição espontânea
Tal descrição valoriza um trabalho arqueológico,
que conduz a pessoa a uma maior aproximação
de sua interioridade, caminho anteriormente já
indicado por Santo Agostinho. Alerta que, além
da oração e da meditação, existe a necessidade
do autoconhecimento que é relativo ao conheci-
mento que o “ser humano tem sobre Deus, ainda
que obscuro e imperfeito” (ALES BELLO, apud
Manganaro, 2006. p. 76). Conhecimento este
que exige cada vez mais da alma um “trabalho
lento, perseverante e corajoso, que nada tem de
espetacular, mas que, progressivamente nos en-
sina a nos vermos tais como somos na realidade”
(WINCKEL, 1985, p. 57).
Stein ao comentar a realidade das moradas,
faz notar que os muros que circundam o castelo compreendem o seu exterior, ao passo que na
sala principal habita Deus. Diz ela que “entre
estes dois extremos (que, é óbvio, não devem ser
entendidos espacialmente), se encontram as seis
moradas que circundam a mais central (a sétima)”
(STEIN, 1998, p. 415). Porém, salienta que os
moradores que circulam por fora ou até mesmo os
que permanecem próximos ao muro, não chegam
saber nada a respeito do que acontece no interior
Ano 2 | número 2 | 2013
negrume ou fosso das primeiras moradas.
também uma morada extremamente rica e de
grande valor. Quem consegue lapidar toda a deformação provocada pelos animais, cria possibili-
dades e não deixa de seguir adiante no processo.
A este fato Jung também deu grande importância
e caracterizou como a retirada das máscaras ou
das projeções. Não é um processo fácil devido à
força com que estas realidades agem sobre a alma.
Por isso, a pessoa tem necessidade – conforme assinala Santa Teresa - de recorrer a Deus.
Comentando a segunda morada, Edith
Stein comenta que ali a alma já percebe certos
apelos de Deus, embora não se trate ainda de
“vozes interiores, que se fazem sentir na própria alma, mas chamados externos e que a alma
percebe como sendo uma mensagem de Deus”
(STEIN, 1998, p. 416-417). Como exemplo destes chamados destaca: as palavras de um sermão
ou passagens de livros que para a alma soam como
se tivessem sido escritos para ela, certas doenças,
sofrimentos ou outras mensagens, bem como os
momentos de oração. Embora a alma viva ainda no e com o mundo, estes chamados tocam o
seu interior, tornando-se para ela um convite para
entrar dentro de si. À medida que se aproximam
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do centro, as almas vão sendo dotadas de maior
sensibilidade para acolher o convite.
Comentando essa terceira morada, Edith
apresentados pelo pensamento moderno. Isto se
dá porque o arquétipo do centro, juntamente com
seus múltiplos componentes (espiritual, psíquico,
Stein destaca que nela “encontram-se as almas
biológico, histórico e social, individual e coletivo,
(STEIN, 1998, p. 417). Tais almas, esforçam-se
em si a unidade (BONAVENTURE, 1975, p. 20).
conformidade com a vontade divina. Exercitam-
sofrer a inflação, considerando o fato de julgar-se
nial. Dedicam-se regularmente à oração, às práti-
algum, ainda que venial. Entretanto, Teresa faz
que acolheram de coração o chamado de Deus”
conteúdos conscientes e inconscientes), contém
constantemente a fim de ordenar a sua vida em
O homem moderno corre sempre o risco de
se no cuidado de evitar o pecado, mesmo que ve-
cas penitenciais, como também na realização das
boas obras. “Quando provadas por duras provas,
estas servem para demonstrar-lhes que, todavia
estão fortemente apegadas aos bens terrenos”
(STEIN, 1998, p. 417), de modo que, pela sua
boa vontade, são agraciadas com determinadas
consolações, embora ainda através de sentimen-
tos completamente naturais tais como: lágrimas
de arrependimento, devoções sensíveis na oração
e satisfação pela realização de boas obras.
Na Psicologia Analítica, o entendimento
da necessidade do ego que estabelece uma re-
lação vital com o Si-Mesmo é para assegurar a
própria integridade do mesmo. A manutenção do
que nem mesmo seria capaz de cometer pecado
um convite ao exercício da humildade. Nesta eta-
pa é necessário o desnudamento e a experiência
do despojamento de tudo.
Para Stein, ao ingressar na quarta morada,
a alma começa a receber graças especiais, dispon-
do-se a abandonar-se completamente nas mãos
de Deus. Aqui não se trata do movimento da
alma a Deus, mas de Deus em direção à alma, o
que se concretiza na diferença entre consolações
e delicadezas, sendo que as últimas procedem diretamente de Deus e proporcionam a oração de
quietude.
Começam aqui as graças sobrenaturais, di-
eixo de integração do ego dependente do Self é
ficílimos de explicar, a menos que sua Majesta-
rumo ao centro. Assim entendido, o reconheci-
encontram mais perto do aposento do Senhor (o
tínuo, uma vez que lhe é intrínseco o dilema da
licadas que nossa mente, por mais que se esforce,
mesmo responsável pelo pouco realizado, sendo
de como explicá-las adequadamente. É necessá-
do fogo dos deuses. Em relação a esse perigo, Te-
existe uma inefabilidade ( JESUS, 1981, p. 71).
trabalhinho, conferindo-lhe grande valor, sendo
se adquire pelo entendimento e nem tampouco
fundamental para o prosseguimento no caminho
de se encarregue disso. [...] agora as moradas se
mento do ego para com o Self é um processo con-
centro do castelo de luz), e nelas há coisas tão de-
inflação, isto é, de entender-se merecedor ou até
não tem capacidade para sugerir sequer uma ideia
tentado a apropriar-se pelo processo de inflação
rio ter a experiência para compreender, pois aqui
resa acrescenta: “Deus une à sua grandeza o nosso
o próprio Senhor a nossa recompensa” ( JESUS,
1981, p. 109). O processo de desenvolvimento
comporta também estágios nos quais o eu passa
a atribuir a si qualidades que ultrapassam as suas
medidas, gerando a famosa inflação psicológica,
da qual decorrem numerosos conflitos, tanto em
nível filosófico quanto em nível existencial.
Ao contrário, o homem que vive e pensa
em função do centro escapa aos pseudoproblemas
Ano 2 | número 2 | 2013
É um processo de interiorização que não
pela imaginação. É um estado de quietude que
depende somente de Deus, de quando Ele quer e
como quer. Por isso é necessário “que se diminua
a atividade do entendimento e da imaginação. As
potências devem ser empregadas em Deus, com
seu próprio esforço, enquanto podem atuar li-
vremente” (STEIN, 1998, p. 420). Do contrário,
afirma Stein, serviria somente para causar aridez
na alma, que acabaria prejudicando a si mesma
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36| O Percurso para a Sétima Morada | Albertina Laufer | 30 - 39
devido aos esforços. No entanto, isso somente é
truindo a casa na qual morre para transformar-se
morado nas moradas anteriores, como aconselha
na alma. (STEIN, 1998, p. 423).
possível para aquelas almas que se tenham deTeresa.
em uma linda e branca borboleta, assim acontece
Este é um movimento que acontece na
Na quinta morada, se percebe a surpreen-
alma quando “com o calor do Espírito Santo, co-
embebida com a oração. Stein comenta que, en-
a todos” ( JESUS, 1981, p. 108) e quando se valem
dente transformação que experimenta a alma
quanto a alma na oração de quietude encontrase como que em sonhos, agora entra em oração
de união. É o estágio em que a alma encontra-
se como que adormecida. “Aqui o amor é assim:
não entende como, nem o que deseja. Em suma,
está como quem morreu inteiramente ao mundo
para viver mais em Deus” ( JESUS, 1981, p. 101).
Assim sendo, não há espaço para a imaginação e
a memória e nem mesmo o entendimento pode
causar obstáculos. Nem mesmo “o demônio pode
entrar para causar dano” (STEIN, 1998, p. 422).
Diz ainda Edith que, “durante o breve espaço da
união, a alma não compreende o que lhe ocorre”
(STEIN, 1998, p. 422). No momento em que
acontece a união, a alma não consegue perceber
o que nela se realiza. Segundo Edith, “a Santa
chegou assim, pela própria experiência interior,
a uma verdade de fé até então por ela ignorada”
(STEIN, 1998, p. 422).
Por meio da utilização da metáfora do bi-
cho da seda Santa Teresa expressa a mudança e
a transformação da alma, o que para a Psicologia
seria a transformação que ocorre na personali-
dade, pela ampliação da consciência, após um
intenso processo de análise interior. Da mesma
forma com a qual o bicho da seda no casulo vai se
transformando, assim a alma ou a personalidade
alcançam os níveis (estágios) ou moradas sempre
mais elevados. O mesmo ocorre com a alma em
oração nesta morada: “quão transformada sai ela
daqui, depois de estar imersa na grandeza do Se-
nhor” (ÁVILA, 1984, p. 110). A este propósito
Stein comenta:
Como o óvulo, tão pequeno e duro, com o
calor adquire vida e começa a alimentar-se com
as folhas da amoreira, e de modo que a lagarta se
torna gorda e forte, de si vai tirando a seda e consAno 2 | número 2 | 2013
meça a beneficiar-se do auxílio que Deus concede
dos meios essenciais que lhes são confiados por
Deus por meio da Igreja, tais como: a confissão
frequente, as boas leituras e a escuta dos sermões.
São eles potentes remédios para a alma. “Assim
começa a alma a construir a casa onde vai mor-
rer” (STEIN, 1998, p. 423). Trata-se da vida escondida com Cristo em Deus, como muito bem
afirma o apóstolo: “Vós estais mortos e vossa vida
está escondida com Cristo em Deus.” (Col, 3,3).
Trata-se daquilo que a alma pode tolher de si, isto
é, do amor próprio, da vontade própria, o desapego das realidades terrestres, colocando em seu
lugar a oração, a mortificação, bem como as obras
de penitência.
Ao comentar a sexta morada, Stein diz que
ainda não é o “lugar de repouso para a alma. Seu
anelo visa à união estável e duradoura que se conseguirá somente na sétima e, portanto, a alma é
provada com sofrimentos internos e externos
mais intensos” (STEIN, 1998, p. 427). Passa por
violentos tormentos interiores. Nada lhe parece
penetrar no íntimo e até a oração mental se torna
impossível uma vez que a alma não encontra disposição para tal. Nesta etapa, há a “impossibilidade de rezar e a alma não encontra consolo nem
em Deus e nem nas criaturas” (STEIN, 1998, p.
427). Daí surge a necessidade da dedicação às
obras de caridade tão recomendadas por Teresa.
No entanto, malgrado todos os sofrimentos,
não passa despercebida à alma, o quão próxima
encontra-se do Senhor.
Mesmo estando ela,
muitas vezes, descuidada e não se lembrando de
Deus, este a desperta com seu toque repentino,
semelhante a um trovão sem ruído. É um toque
que não produz dor, mas que “sente-se a ferida
sem atinar para quem a feriu [...]. É dor aguda –
ao mesmo tempo - que saborosa e suave. Ainda
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O Percurso para a Sétima Morada | Albertina Laufer | 30 - 39
que a alma quisesse, não poderia deixar de sentila” ( JESUS, 1981, p. 144).
Acontece aqui o que a Santa denomina
de arrebatamento. Geralmente acontece quando
Deus quer revelar a ela alguns segredos e eles lhe
ficam de tal forma na memória que jamais con-
intensa a felicidade de que se sente inundada!
Parece querer, o Senhor, naquele momento, ma-
nifestar à alma a glória do céu, de um modo mais
elevado que em nenhuma outra visão ou gosto
espiritual” ( JESUS, 1981, p. 235-236).
Stein faz questão de evidenciar os profundos
segue esquecê-los. São momentos tão intensos
efeitos que esta união proporciona para a alma; O
po, não podendo a alma dizer se está nele ou não.
de tal forma transformada, que não mais se re-
que dão a impressão de que o espírito sai do cor“Parece-lhe que toda inteira, foi transportada a
outra região muito diferente desta em que vive-
mos” ( JESUS, 1981, p. 172). Nesta experiência
de êxtase, Deus comunica-se diretamente a alma
e infunde-lhe o desejo de servi-Lo e fugir de todas as coisas que não a direcionam a este fim.
primeiro é um esquecimento de si. Encontra-se
conhece. “Não se lembra de que haverá Céu para
ela, nem vida, nem honra, porque se emprega in-
teiramente em promover a glória de Deus” ( Jesus,
1981, p. 242). Não possui pretensões em ser coisa
alguma. “Prefere ser tida em nada, exceto quando
entende que de algum modo contribui para au-
Na sétima morada, a alma já foi tomada
mentar um pouquinho a honra e glória de Deus.
sumar o matrimônio espiritual, a introduz em sua
vida” ( JESUS, 1981, p. 243). Salienta a necessi-
É o local e o momento no qual a esposa recebe
zeres básicos, como comer e dormir, bem como
água e a paz acontece, lugar da presença total de
Trata-se, segundo Teresa, de disposições interio-
pleta que se estabelece na presença, em plenitu-
um grande desejo de padecer. Entretanto, sem
segundo Stein, a companhia Divina que jamais
pos. “Uma alma chegada a este ponto tem ânsias
sobrenaturalmente como esposa. “Antes de con-
Para esse fim, de muito boa vontade sacrificaria a
morada, que é a sétima” ( JESUS, 1981, p. 228).
dade de a pessoa não se descuidar dos seus afa-
o beijo do amado. É onde a corça é saciada pela
de cumprir para com as obrigações de seu estado.
Deus. É onde ela experimenta a felicidade com-
res sempre mais necessárias. O segundo efeito é
de, do Dono e habitante principal do castelo. É,
inquietações que eram próprias de outros tem-
abandonará a alma.
tão extremas de que nela se cumpra a vontade de
Segundo Bonaventure, a sétima morada re-
presenta o centro, que pode também significar a
casa de cada um. “Aqui, na última das moradas,
passa-se de outra maneira. Nosso bom Deus quer
tirar-lhe as escamas dos olhos” ( JESUS, 1981, p.
230). É o Senhor quem introduz a alma nesta
morada, o Centro mais profundo dela mesma e,
Deus, que acha bem tudo quanto sua majestade
faz. Se quiser lhe mandar padecimentos – sejam
bem vindos! Se não quiser, não fica desconsolada
como antes” ( JESUS, 1981, p. 243). Possui enorme desejo de servir, contribuindo assim para a
glória de Deus.
Para Santa Teresa, na sétima morada vive-
ali estando, cessam os movimentos ordinários das
se um grande desapego de todas as coisas. A úni-
fica pacificada. Chegada neste ponto do castelo, a
ocupada exclusivamente com Deus. Neste está-
faculdades e da imaginação, de modo que a alma
alma não mais estará sujeita aos conflitos das mo-
radas precedentes. É um estado no qual ela vive a
constante presença do Amado e tal presença lhe
basta e sacia. Estabelece-se aqui o matrimônio
espiritual, realidade da união misteriosa que so-
mente pode ser realizado neste Centro mais íntimo. As portas nesta morada estão abertas. “É
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ca vontade que permanece na alma é a de estar
gio, não existem mais as securas e os sofrimen-
tos interiores. “Há, pelo contrário, uma contínua
lembrança de Nosso Senhor e tal afeto por ele,
que desejariam ocupar todo o tempo em seus lou-
vores. Quando se distraem, o mesmo Senhor as
desperta do modo acima dito” ( JESUS, 1981, p.
245). A alma encontra-se num estado de quie-
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38| O Percurso para a Sétima Morada | Albertina Laufer | 30 - 39
tude quase contínua e tem certeza que procede
de Deus.
Segundo Santa Teresa, é na sétima morada
animais e longe da unidade paradisíaca” (BONAVENTURE, 1996, p. 99).
Vista a partir do Centro (Cristo), a exis-
que a alma se pacifica, harmoniza-se e encontra
tência transparece com uma nova luz, onde ali
tas. Ali estando, torna-se semelhante a Deus, se
mesmo tempo em que para Ele tudo converge.
repouso, encontrando-se distante de todas as lu-
diviniza e goza de um bem aventurado repouso.
Pode-se ainda aludir o estado da alma nesta morada ao que Mestre Eckhart afirma como sendo
a realidade na qual “o homem exterior pode estar
ativo, enquanto que o homem interior perma-
nece totalmente livre e inalterado” (ECKHART,
2006, p. 154).
4. Considerações Finais
Empenhada no destino do caminhar, avan-
çando para cada uma das moradas, paulatinamen-
te a alma vai sofrendo os processos de purificação
e crescimento. Neste sentido, o ego vai conquis-
tando sempre mais a liberdade para conviver,
confrontando-se com sua sombra, trilhando por
um caminho em contínua transformação, rumo à
totalidade do seu centro, o Self, até habitar definitivamente na morada principal do Castelo.
Certamente que entre a tentativa de apro-
ximação das realidades psicológica e espiritual,
não existe uma profunda identidade, mas a ana-
logia é tal, a ponto de não se poder negar. É de
grande importância ilustrativa a utilização das
imagens do castelo e das moradas, por meio das
quais, Teresa pode mostrar a realidade e também
a complexidade da alma. E não somente ela, mas
ainda toda a pluralidade de expressões no acontecer da vida.
No entender de Teresa, as pessoas que se
encontram fora do castelo poderiam ainda ser
comparadas ao estado do homem após a queda,
momento em que passa a viver num estado de
caos, na confusão ou completa ignorância, nos
estágios obscuros, e até mesmo na bestialidade
e na total inconsciência. Assim estando, a vida
se sujeita ao espaço comum das leis da natureza,
dissolve-se e massifica-se, voltando à condição
do “homem terrestre que vive à semelhança dos
Ano 2 | número 2 | 2013
se pode descobrir que tudo procede de Deus ao
Ali tudo se confunde com a sua divindade e com
o seu eterno brilho. Por meio desta experiência, a
alma é chamada a ultrapassar sua condição pura-
mente terrestre, descobrindo a condição que lhe
abre as portas para a transcendência.
Compreende-se que o Centro transcende o
eu. É a morada de Deus na alma, o palácio da
mais formosa envergadura, sendo ao mesmo tem-
po a razão na e pela qual as pessoas e todas as
criaturas existem. Assim entendidas, as diversas
salas e moradas do castelo, trazem presentes as
mais variadas situações da condição humana em
seus diversos estágios e que, aos poucos, vai so-
frendo um processo de profunda humanização e,
na medida em que se humaniza, vai consequentemente se divinizando.
Segundo Stein o objetivo de Santa Teresa
ao descrever a simbologia do Castelo Interior
foi apresentá-lo como casa de Deus e tornar
compreensível o que a própria Santa teria experimentado a respeito do chamado e da intenção
de Deus para com a alma humana, evitando que
a mesma se desviasse caindo na exterioridade e
conduzindo-a para a realização de sua própria
vocação que é a união no seu Centro interior.
Isso acontece porque a alma, enquanto imagem
do Espírito de Deus possui a missão de apre-
ender todas as coisas criadas, a ponto de conhecê-las e amá-las. Assim procedendo, poderá
compreender a própria vocação, realizando-a de
forma adequada. Entrar em contato profundo
consigo, equivale a uma aproximação gradativa
de Deus. As transformações interiores impulsio-
nam a alma ao autoconhecimento genuíno, suscitado pelo descobrimento contínuo do mundo
interior fazendo com que a alma abandone a
falsa imagem do próprio eu, que muitas vezes é
baseada na imagem feita pelos outros.
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O Percurso para a Sétima Morada | Albertina Laufer | 30 - 39
Compreende-se que a vivência mística, as-
sim como é descrita por santos como Santa Tereza D’Ávila ou São João da Cruz, oferece uma
contribuição muito precisa no que se refere à
experiência religiosa e à individuação humana.
Stein percebeu que o eu pode se voltar para sua
Referências
ÁVILA, Teresa de. Castelo Interior. Tradução das
Carmelitas descalças do Convento de Santa Teresa, RJ.
Segunda edição crítica de Frei Silvério de Santa Teresa,
OCD. São Paulo: Paulinas, 1984.
interioridade, identificando diversas vivências e
diferentes graus de profundidade e que estas po-
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo:
Paulus, 1990.
dem ocupar na alma, um lugar mais central e outros mais superficiais ou periféricos.
BONAVENTURE, Léon. Psicologia e Vida Mística.
Petrópolis: Vozes, 1975.
Considera-se ainda, que este encontro com
o A Sétima Morada ou o Centro é fundamen-
tal e determina a forma com a qual a pessoa vai
também de encontro com as situações de morte
que a vida lhe apresenta, não se deixando tomar
pelo desespero diante da crueldade das circunstâncias impostas. Profundamente convicta da sua
missão, a alma encontra o seu lugar mesmo em
ECKART. Mestre. O Livro da Divina Consolação. 6 ed.
Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2006.
FERNANDES, Marcio Luiz. As reflexões de ConradMartius e Edith Stein sobre as ciências humanas e as
ciências da natureza In: SANCHES, Mario Antonio,
Criação e Evolução: diálogo entre teologia e biologia, São
Paulo: Ave-Maria, 2009.
meio do desespero humano. A exemplo de Cristo
HUBERT Lepargneur; SILVA Dora Ferreira da. Tauler
e Jung: o caminho para o centro. São Paulo: Paulus, 1997.
devoção para com os que vivem ao seu redor e
JESUS, Santa Teresa de. Castelo Interior ou moradas.
Tradução das Carmelitas descalças do Convento de Santa
Teresa, RJ. Segunda edição c
na cruz, posiciona-se em atitude de compaixão e
sofrem condições adversas. Estando ancorada em
seu Centro, meta e fim do processo de individua-
ção, a alma encontra a possibilidade de enfrentar
os acontecimentos do mundo sem que estes lhe
MANGANARO, Patrizia. L’anima e il suo oltre. Ricerche sulla mística cristiana. Roma: OCD, 2006.
diante da possibilidade da entrega total diante
SPIRITU SANCTO, Teresia Renata de. Edith Stein.
Morcelliana: Brescia, 1959.
determinem o seu estado interior a não recuar
dos apelos da vida.
mística, constitui-se numa dialética entre pro-
STEIN, Edith. Ser Finito y Ser Eterno. Ensayo de una
ascenciòn al sentido del ser. Trad. de Alberto Pérez
Monroy. México: Fondo de Cultura Economica, 1996.
passividade, onde o eu e o Outro se empenham
STEIN, Edith. Obras Selectas. 2 ed. Burgos: Monte
Carmelo, 1998.
Portanto, compreende-se que a experiên-
cia religiosa e, de modo particular, a experiência
cura e encontro. Nela estão presentes atividade e
na atitude de encontrar e ser encontrado, o que
ativa e dinamiza positivamente toda a estrutura
da pessoa, que por sua vez, contagia os espaços
WINCKEL, Erna Van de. Do Inconsciente a Deus. São
Paulo: Paulinas, 1985.
nos quais está inserido. Ancorada em seu na Sé-
tima Morada ou em seu Centro, a alma encontra
a paz, fazendo dela a sua verdadeira morada, lu-
gar do encontro em que Amado e amante podem
habitar na recíproca doação de si. E onde a paz
habita, a vida acontece e floresce em toda a sua
abundância, num processo constante de decantação criativa.
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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
Ilustração: Rogério Borges
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A assimilação psicológica do mal
Ana Luisa Testa e Sonia Regina Lyra
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A assimilação psicológica do mal
Ana Luisa Testa* e Sonia Regina Lyra**
Resumo
A psique humana é composta pelos mais diversos conteúdos, tanto conscientes quanto inconscientes. Normalmente, por questões adaptativas, a consciência seleciona para si aqueles conteúdos que considera valiosos, ficando imersos no inconsciente aqueles que são considerados “maus”, apenas por serem contrários à
atitude adotada pelo ego. Essa forma de funcionamento, apesar de ter seu valor adaptativo, traz consequências negativas para o individuo, já que esses conteúdos desprezados podem forçar sua expressão através
de sintomas, patologias, projeções e assim por diante, deixando o ego à mercê da influência dessas forças
inconscientes. A saída é unificar novamente a psique, assimilando essas forças inconscientes através da
compreensão simbólica dos conteúdos reprimidos, sendo o primeiro passo a compreensão de que aquilo que
é considerado “mau” possui caráter relativo. Esse trabalho é o que possibilita a realização da personalidade
originária, que pode trazer um significado único à existência humana.Palavras-chave: sonhos, psicoterapia,
processo de individuação.
Palavras-chave: integração psíquica, assimilação, símbolo, mal, energia psíquica.
Abstract
* Ana Luisa Testa
Psicóloga clínica,
graduada pela
Universidade Estadual
de Londrina. Especialista
em Psicoterapia
Corporal e em
Psicologia Analítica
(ICHTHYS – Instituto
de Psicologia e Religião)
([email protected])
** Sonia Regina Lyra
Doutora em Ciências
da Religião; Analista
Junguiana. Orientadora
de TCC
([email protected])
The human psyche is composed of the most diverse components, either conscious or unconscious. Normally,
for adaptive reasons, the consciousness apprehends contents it judges valuable, leaving immersed in the
unconscious whatever it considers “evil”, just because it is contrary to the attitude of the ego. This model,
despite its adaptive value, brings negative consequences to the individual, once the components ignored by
the consciousness may be exteriorized through symptoms, pathologies, projections and so forth, leaving the
ego at the will of such unconscious forces. The solution would be to mend the psyche back to one again,
assimilating those unconscious forces through the symbolic comprehension of the repressed psychic energy,
being the comprehension that what is considered good or evil possesses relative character the first step. This
work is what makes possible to realize the originating personality, the one that can bring a unique meaning
to the human existence.
Keywords: psychic integration, assimilation, symbol, evil, psychic energy.
Introdução
A psique possui uma linguagem que fala
a partir do inconsciente através do uso de símbolos. Essa linguagem é rica em significados e
expressa os modos de ser da energia psíquica.
Para que a consciência possa comunicar-se e
transformar-se com seu mundo interior, esses
símbolos devem ser compreendidos e assimilados por ela.
Jung (2008a) diz que o símbolo converte
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a energia psíquica em imagem e a representa de
forma equivalente. A transformação da energia
por meio da assimilação consciente do símbolo é
um processo que existe desde o início da humanidade, e ainda continua no homem moderno.
Mas de que serve, ou quais seriam as consequências da transformação da energia psíquica
inconsciente? É essa pergunta justamente que o
presente texto pretende discutir, e mais especificamente sobre a transformação e a assimilação
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do mal. O que pode ser adiantado é que esse
processo serve para libertar o homem da compulsividade e do apetite dos instintos, dissolver
as projeções desse conteúdo, assim como deixar
à disposição da consciência essa força psíquica,
libertando a alma da esfera da inconsciência
( JUNG, 2011).
ego ( JUNG, 2008b).
Vale a pena ressaltar que, sem transformação, não haveria modo de a vida perpetuar-se.
Então, em última instância, a transformação da
psique equivaleria à renovação da própria vida,
com novas formas, imagens e sabores ( JUNG,
2008).
tude de unilateralidade, que deverá ser compen-
1 Estrutura, conteúdo e dinâmica
da psique
Para que seja possível compreender a
questão da assimilação do mal para a psicologia analítica é importante que o leitor retome
primeiramente alguns conceitos básicos, tais
como dinâmica, estrutura e conteúdos da psique
humana, e mais adiante, no texto, o conceito de
símbolo como o veículo transformador da energia psíquica.
Começando com esses conceitos, Jung
(2008b) afirma que a psicologia, enquanto ciência, trata primeiramente dos conteúdos, da
estrutura e da dinâmica da psique, sendo a consciência a esfera à qual o cientista ou o psicólogo
pode ter acesso direto, e obter dados para sua
observação. Através dela podem ser expressos conteúdos provenientes do inconsciente. A
consciência é como uma superfície que cobre
a vasta área do inconsciente – área essa pouco
conhecida, com determinada estrutura e conteúdos, observáveis apenas indiretamente, através
de seus produtos, tais como sonhos, imaginação
ativa, fantasias, sintomas, e assim por diante.
1.1 A consciência
É consciente aquilo que se relaciona com
o complexo do ego. O que é conhecido é aquilo que diz respeito ao eu. Logo, a consciência
pode ser entendida como os fatos psíquicos
que se encontram associados ao complexo do
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O ego – centro da consciência – emer-
ge do inconsciente durante o desenvolvimento
psicológico normal, e é forçado a se estabelecer
como algo definido, distinto e direcionado. Ele
diz “sou isso, e não aquilo”. Essa característica,
apesar de crucial para a adaptação, cria uma ati-
sada pelo inconsciente até que o ego amadureça
e possa assimilar os pares de opostos (EDINGER, 2008).
Por possuir uma atitude unilateral e se ter
em alto valor, o ego não poderá se expandir en-
quanto não assimilar aquilo que considera mal,
ruim e pouco valioso. Assimilar essas tendências
sombrias à personalidade traz consequências
notáveis para o ego ( JUNG, 2011).
1.2 O inconsciente pessoal
e o inconsciente coletivo
Apesar de os conteúdos inconscientes não
serem diretamente observáveis, é possível clas-
sificar seus conteúdos em duas ordens: uma de
natureza pessoal e outra de natureza coletiva. Os
de natureza pessoal são aqueles que podem ser
relacionados com a vivência do indivíduo. Material reprimido, percepções subliminares, memó-
rias e os complexos constelados ( JUNG, 2008b).
Esses complexos constelados no incons-
ciente pessoal possuem uma espécie de identidade própria. São personalidades com relativa
independência dentro da psique. Essas personificações independentes são capazes de atuar e de
influenciar a vida consciente do individuo, mesmo contra sua vontade.
Mas, se o inconsciente fosse composto
apenas por conteúdos adquiridos durante a vida
do indivíduo, estes facilmente poderiam ser es-
gotados durante uma análise. Porém o inconsciente nunca é desativado, continua a produzir
seus sonhos e fantasias, muitos dos quais ultra-
passam a esfera das vivências pessoais ( JUNG
1987).
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A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49
Esses conteúdos que ultrapassam a vivên-
Mas, apesar de ser a princípio ilusória, a
cia pessoal são próprios do inconsciente coletivo.
unidade da psique pode ser considerada uma
duais; são como que “padrões” arcaicos próprios
sejam assimilados pela consciência. Esse tra-
Não podem ser atribuídos a experiências individa humanidade em geral, e possuem um caráter
mítico ( JUNG, 2008b).
Esses padrões – denominados arquétipos
– funcionariam como uma predisposição para
produzir conteúdos iguais ou semelhantes en-
tre os indivíduos da espécie humana ( JUNG,
2008c).
Até agora, foi possível perceber que a es-
meta, desde que os conteúdos do inconsciente
balho é o que possibilita a realização da personalidade originária, e que pode trazer um sig-
nificado único à existência humana. Essa meta
pode ser chamada de processo de individuação
( JUNG, 2001).
2 O símbolo como veículo
transformador da energia psíquica
Para que o homem resgate sua unida-
trutura da psique humana é composta por três
de – ou personalidade originária - ele precisa
consciente coletivo. Cada uma dessas camadas
consciente. Essa personalidade originária foi
camadas distintas: consciente, inconsciente e inconta com seus conteúdos próprios, sendo que
na consciência encontram-se aqueles que se re-
lacionam ao complexo do ego e, portanto, estão à
disposição do eu; no inconsciente pessoal outros
complexos – com personalidades autônomas,
nem sempre em concordância com a personali-
dade do ego; e no inconsciente coletivo encontram-se os arquétipos – formas padronizadas de
ser – comuns a toda espécie humana.
Apesar dessa complexa e segmentada es-
trutura psíquica, a consciência com frequência
assimilar na consciência a energia psíquica in-
denominada self e, para Jung (2008), empirica-
mente, o self é uma imagem da meta a se cumprir. Mas a finalidade do homem de se realizar
enquanto uma unidade não depende apenas de
sua vontade. É antes uma força que move os
conteúdos inconscientes em direção à consci-
ência. A natureza inconsciente anseia pela luz,
a qual, no entanto, se contrapõe. A energia psí-
quica quer se transformar para atualizar-se na
vida consciente.
E o processo de transformação da natu-
ilude-se, ao acreditar que possui completa inde-
reza inconsciente é realizado através da função
Gostamos de pensar que somos unificados; mas
de unificar os pares de opostos existentes entre o
mente não somos senhores dentro de nossa pró-
Esses pares de opostos surgem da seguin-
pendência em relação ao inconsciente.
isso não acontece nem nunca aconteceu. Real-
pria casa. É agradável pensar no poder de nossa
vontade, em nossa energia e no que podemos
fazer. Mas na hora H descobrimos que podemos
fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalha-
dos por esses pequenos demônios, os complexos.
Eles são grupos autônomos de associações, com
transcendente, produtora de símbolos capazes
consciente e o inconsciente ( JUNG, 1980).
te maneira: o inconsciente com frequência toma
uma atitude de complementação e compensação
em relação à consciência, já que ela tende a ado-
tar formas unilaterais de funcionamento – por
questões de adaptação. Esta natureza unilateral
tendência de movimento próprio, de viverem
é compreensível, pois as exigências da vida por
Continuo afirmando que o nosso inconscien-
servir à adaptação, essa forma de funcionamento
um indefinido, porque desconhecido, número de
tos psíquicos que parecem ser incompatíveis com
( JUNG, 2008b, p. 87).
mentos estimulam uma contraposição na esfera
sua vida independentemente de nossa intenção.
direção e estabilidade são acentuadas. Apesar de
te pessoal e o inconsciente coletivo constituem
traz inconvenientes, pois inibe todos os elemen-
complexos ou de personalidades fragmentárias
a atitude adotada pela consciência. Esses ele-
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do inconsciente, energeticamente proporcional
Se, porém, a estrutura do complexo do ego é
trabalha, na tentativa de unir no símbolo as duas
teúdos inconscientes, sem que se afrouxe desas-
ao seu oposto. É aí que a função transcendente
bastante forte para resistir ao assalto dos con-
atitudes antes opostas ( JUNG, 2011).
trosamente sua contextura, a assimilação pode
ocorrer. Mas, neste caso, há uma alteração não
Mas, uma vez que o texto discute a impor-
só dos conteúdos inconscientes, mas também do
tância da assimilação do mal, é possível pensar
ego. Embora ele se mostre capaz de preservar
que este permanece na penumbra do incons-
sua estrutura, o ego é como que arrancado de sua
posição central e dominante, passando, assim, ao
ciente, porque a consciência identifica-se ape-
nas com os aspectos relativos ao bem. Quanto
papel de um observador passivo a quem faltam
mente do bem, mais fortalecido fica o mal para
qualquer circunstância, o que acontece não tan-
os meios necessários para impor sua vontade em
mais alguém acreditar ser o portador exclusiva-
to porque a vontade se acha enfraquecida em si
contrapor-se e compensar a atitude unilateral da
mesma, quanto, sobretudo, porque certas consi-
consciência.
derações a paralisam. Quer dizer, o ego não pode
Os símbolos aparecem em todas as pro-
deixar de descobrir que o afluxo dos conteúdos
duções do inconsciente, como por exemplo, os
inconscientes vitaliza e enriquece a personali-
dos princípios da interpretação dessas produções
modo o ego em extensão e em intensidade. Esta
dade e cria uma figura que ultrapassa de algum
sonhos, as fantasias e a imaginação ativa. Um
experiência paralisa uma vontade por demais
dentro da psicologia analítica é justamente não
egocêntrica e convence o ego de que, apesar de
interpretá-los de maneira literal, e sim procurar
todas as dificuldades, é sempre melhor recuar
o sentido oculto que o símbolo traz ( JUNG,
para um segundo lugar, do que se empenhar em
2008b).
combate sem esperança, o qual termina inva-
O símbolo não é uma alegoria nem um semeion
riavelmente em derrota. Deste modo a vontade
maior parte transcendental ao consciente. É ne-
namente ao fator mais forte, isto é, à nova figura
são agentes, com os quais um entendimento
2011, p. 174).
(sinal), mas a imagem de um conteúdo em sua
enquanto energia disponível se submete paulati-
cessário descobrir que tais conteúdos são reais,
da totalidade que eu chamei de self [...] ( JUNG,
não só é possível, mas necessário [...] ( JUNG,
Dito isso, pode-se perceber que é condi-
2008c, p. 67).
Parte desses produtos pode acessar a cons-
ciência, enquanto outra parte pode permanecer
ção necessária para o resgate da personalidade
originária que o ego seja receptivo à vida simbólica, assim como deve ser forte o suficiente
na penumbra ou completamente inconsciente, e
para não se dissolver no processo. Essa atitude
Através da compreensão do sentido do símbolo
consciente, através da compreensão do símbolo
inconsciente com o centro da psique consciente
1989).
por isso só pode ser desvendada indiretamente.
torna possível o diálogo entre o inconsciente e o
é possível ligar as camadas mais profundas do
que transforma a energia psíquica (EDINGER,
( JUNG, 2008b).
Sem a compreensão não há assimilação.
A função transcendente produz o símbolo, mas
sem a colaboração do ego as camadas da psique
3 A importância da assimilação
da libido inconsciente
através dos símbolos
No tópico anterior foi descrito o conceito
não se ligariam, e a personalidade originária –
de símbolo e algumas condições para que a ener-
bem o papel do ego nesse processo de unificação
através da compreensão do sentido que o símbo-
self – não emergiria. O parágrafo abaixo explica
da psique:
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gia psíquica – ou libido – possa ser assimilada
lo traz nas diversas produções do inconsciente.
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No tópico presente o que se discute é a importância de se assimilar a libido inconsciente. Para
isso, é preciso entender primeiramente o que é e
para que serve a própria libido.
Jung identifica o termo libido como sendo
o mesmo que energia psíquica. Para ele, a libido
indica um desejo, apetite ou impulso desprovi-
do de valores morais. Pode ser vista como um
instinto vital contínuo – uma vontade de existir.
É percebida como o impulso do sono, da fome,
da sede, do sexo, dos estados emocionais e dos
afetos. O appetitus e a compulsio fazem parte de
todos esses instintos. A quantidade de energia
envolvida em cada um deles é variável. Do ponto de vista energético, a psique é extremamente
dinâmica, e um instinto pode ser despotencializado a favor de outro ( JUNG, 2008c).
No entanto, a libido nem sempre está à
disposição na consciência, pois mantém sua autonomia em relação à vontade do eu. Tampouco
sempre atua a favor do ego, por seu caráter com-
pulsivo e apetitivo. Pode eventualmente dominá-lo, mas também é a única capaz de insuflá-lo
com vida. Cícero, citado por Jung, diz: “Vontade
é aquilo que se deseja com a razão. Aquilo, porém, que é contrário à razão e veementemente
excitado chama-se libido ou desejo desenfrea-
do, que se encontra em todos os tolos” ( JUNG,
2008c, p. 116).
Mas, como dito anteriormente, é a libido
que pode insuflar o ego com vida. Se a energia
psíquica ficar represada no inconsciente, a vida
do homem não flui mais. As coisas perdem o
sentido, a vida perde o brilho, a paixão se esvai.
Essa repressão é experimentada pelo ego como
diminuição da alegria e da vontade de viver. O eu
fica sem energia para utilizar em suas atividades
diárias, e em casos extremos é tomado por um
estado de completa depressão. Sendo assim, a
assimilação dessas energias é de extrema impor-
tância, pois não a projetará, não ficará a mercê
dessas forças inconscientes e tampouco perderá
sua vitalidade ao represá-las ( JUNG, 2008c).
Essa vitalidade pode ser sentida imediata-
mente quando alguns conteúdos acessam a cons-
ciência, ou seja, quando o ego entra em contato
e é receptivo à vida simbólica. Esses conteúdos
podem causar fortes emoções, curas, conversões
religiosas, ou simplesmente resgatar um pedaço
da vida que ficou represado por muito tempo.
Esse contato provoca um alargamento na consciência, desde que o indivíduo consiga assimi-
lar seu conteúdo. Nesse trabalho de assimilação
a interpretação psicológica dos símbolos é de
grande valor, já que são estes últimos que fazem
a ponte entre o profundo abismo que pode exis-
tir entre os opostos, como por exemplo, o que
Quando então a libido é inconsciente e
domina o ego, têm-se os estados de possessão
ou até mesmo de verdadeiras epidemias psíqui-
cas. Em graus menores, pode-se ter essa libido influenciando o complexo do eu, através de
obsessões e comportamentos compulsivos. Enquanto essa energia não for assimilada, o eu fica
a mercê das forças do inconsciente. Além disso,
os conteúdos não reconhecidos acabam por ser
projetados sempre no outro. É dessa forma que
muitas guerras, inclusive as “santas” começaram. Se o eu se identifica exclusivamente com
o bem, seu oposto – o mal – estará inconsciente
e provavelmente projetado no outro, seja esse
outro uma pessoa, uma entidade um lugar ou
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até mesmo uma nação inteira.
esse artigo traz: o bem e o mal ( JUNG, 2008b).
4 A importância
da assimilação do mal
Primeiramente, é relevante deixar claro
que o mal do qual o presente artigo trata não se
refere às entidades metafísicas, já que isso faria
parte do campo de estudo da teologia e não da
psicologia. O mal no texto deve ser, antes, com-
preendido como a experiência psíquica que pode
certamente ser vivenciada por muitas pessoas,
como um conteúdo autônomo e que é frequentemente projetado no outro ( Jung, 2007).
O tópico anterior trouxe alguns pontos
sobre a importância de se assimilar a libido in-
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46| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49
consciente: superação dos instintos; extinção das
mados de fobias, obsessões e todo tipo de sinto-
Para que isso ocorra, vale frisar a condição in-
inconsciente coletivo se tornaram doenças em
projeções psíquicas e a retomada da vitalidade.
dispensável de se compreender os símbolos, já
que são eles o elo entre os opostos. Dessa forma
a unidade psíquica é retomada, pois consciente
e inconsciente já não precisariam se contrapor.
Sendo assim, para que essa unidade seja reconstituída, é fundamental que o bem e o mal possam ser reconhecidos e integrados ao ego, já que
constituem um dos principais par de opostos.
Também vale a pena ressaltar que negar a
existência ou a influência do mal não fará com
que sua ação cesse, além do que sua projeção
pode criar situações perigosas. Se a consciência
ma neurótico. Além de deuses, os conteúdos do
psiques dissociadas ( JUNG, 2007).
Negar e desconhecer a existência do mal e
de toda a vida simbólica só acentua a dissociação
psíquica, que é exatamente o oposto da meta da
unificação.
As tendências à dissociação caracterizam a psi-
que humana e são inerentes a ela; sem isso, os
sistemas psíquicos parciais não teriam cindido,
não teriam gerado espíritos ou deuses. A dessa-
cralização de nossa época tão profana é devida
ao nosso desconhecimento da psique inconsciente, e ao culto exclusivo da consciência. [...]
reconhece apenas o bem, o mal certamente será
Isso representa um grande perigo psíquico, pois
que deve ser temido ou combatido no outro. O
quer outros conteúdos reprimidos: induzem
experimentado como algo autônomo e externo
os sistemas parciais se comportam como quais-
homem dito civilizado considera-se bem acima
forçosamente a atitudes falsas, uma vez que os
dessas coisas metafísicas e misteriosas. No entanto, passa grande parte da vida influenciado
magicamente por outros seres humanos ou for-
elementos reprimidos reaparecem na consciência
sob uma forma inadequada ( JUNG, 2007, p. 49).
Os elementos reprimidos são incapazes
ças perturbadoras, justamente por não diferen-
de se desenvolverem enquanto não forem tra-
de seus conteúdos inconscientes ( JUNG, 2007).
reprimido é capaz de impor às criaturas as mais
ciar-se dos objetos, em consequência da projeção
As imagens atribuídas a essas forças in-
conscientes são equivalentes àquelas atribuí-
das às mais diversas divindades. Quando o ego
experiencia tais conteúdos sente-os como se
fossem forças poderosíssimas, de caráter numi-
noso e subjugante. Tais experiências têm uma
influência maligna ou benigna no homem – são
como se fossem seus anjos e demônios – e ele
não pode evitá-las, pois sua vontade de nada
vale ( JUNG, 2006).
A única coisa que o homem pode fazer é
aprender a reconhecer em si essas forças psíqui-
cas antes que elas se transformem em patologias
ou sintomas desagradáveis, que lhe mostrem que
ele não é o único senhor em sua própria casa.
Jung diz que o homem ocidental está tão alheio
aos conteúdos do inconsciente coletivo que os
trata como se estes fossem deuses ou demônios.
E afirma que hoje esses deuses são também chaAno 2 | número 2 | 2013
balhados e assimilados pela consciência. O mal
diversas barbáries. E resgatá-lo das profunde-
zas do inconsciente para que ele se desenvolva
equivale a resgatar as projeções psíquicas que o
homem faz no mundo concreto e devolvê-las ao
seu domínio de direito. Quando o homem se re-
laciona com seu mundo interior – que já não está
mais projetado no meio externo – sua persona-
lidade está caminhando em direção à unificação.
Ignorar o mal ou vê-lo apenas projetado
não diminui sua ação. O homem não pode mais
fechar os olhos para o perigo do mal que está à
espreita dentro dele mesmo. Esse perigo é concreto, e a psicologia deve insistir em afirmar sua
realidade. Como poderia haver o “elevado” se
não existisse o “abissal”? Um é tão real quanto o
outro! ( JUNG, 2000).
Mas o reconhecimento em si daquilo que
é considerado mal não se constitui num trabalho prazeroso. Sem a adequada compreensão
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A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49
da relatividade moral do mal, o ego pode temer
é, perigosas, sob um determinado ponto de vista.
que deturparia a verdade divina para roubar o
za humana, que são muito perigosas e, por isso
tais blasfemas – sua única intenção é unificar e
eixo do tiro. Não tem sentido dissimular este mal
ser enganado por uma certa “astúcia diabólica”,
Existem também coisas desta espécie na nature-
Seu lugar. Mas o inconsciente não se ocupa de
mesmo, parecem más àquele que está situado no
restituir o universo sagrado tão esquecido pelo
homem moderno ( JUNG, 2009).
Aceitar o demônio não significa passar para o
lado dele, caso contrário a gente se torna demônio. Significa entender-se. Com isso assumes teu
outro ponto de vista. Com isso o demônio perde
algum terreno e tu também. E isto poderia ser
sob cores atraentes, pois isto só serviria para nos
embalar numa segurança ilusória. A natureza
humana é capaz de uma maldade sem limites e
as ações más são tão reais quanto as boas, tão
vasto é o campo da experiência humana; o que
significa que a alma emite o julgamento decisivo.
Só a inconsciência desconhece o bem e o mal.
No âmbito da psicologia ignora-se sinceramente
o que prepondera no mundo: se o bem ou o mal.
muito bom ( JUNG, 2010, p. 261).
Apesar de o parágrafo anterior tratar o mal
como algo moralmente relativo, é importante
ressaltar que isso também implica uma relati-
vidade do bem. O indivíduo, quando consegue
desvencilhar-se da moral coletiva de sua época,
enxerga que tanto um quanto outro não possui
em si mesmo um caráter absoluto e podem por-
tanto serem relativizados. No entanto, isso não
quer dizer que ambas as categorias – o bem e
o mal – não possuam validade ou simplesmente não existam. A diferença é que a categoriza-
ção será feita antes pela ética do que pela moral.
Aquele que desejar encontrar respostas para a
questão do mal através da ética necessita em primeiro lugar de um conhecimento profundo acer-
ca de sua totalidade. Deve saber, sem se poupar,
da soma de todos os atos de que é capaz – dos
mais elevados até os mais baixos – sem mentir e
sem se vangloriar a respeito deles ( JUNG, 2006).
A psicologia ignora o que é bom e o que é mau
em si mesmo. Ela só conhece estas coisas como
juízos de relação: bom é o que parece conveniente, aceitável ou valioso sob um certo ponto de
vista; mau é o inverso disto. Se o que chamamos
bom é “realmente” bom, então, consequentemen-
Espera-se apenas que seja o bem, isto é, aquilo
que nos parece conveniente. Pessoa alguma ja-
mais teria condições de definir o que é o bem
de modo geral. Nenhum conhecimento claro da
relatividade e da caducidade do juízo moral é ca-
paz de nos livrar desta limitação, e aqueles que se
consideram situados para além do bem e do mal,
via de regra, são os importunos mais incômodos
da humanidade, que se contorcem no tormento
e no medo da própria febre ( JUNG, 2000, p. 49).
Apenas um conhecimento profundo a res-
peito de si traz à tona a conscientização acerca
dos opostos. Isso cria uma cisão e uma tensão
entre eles, que é justamente a condição para que
surja o símbolo capaz de equilibrá-los numa
unidade. Essa solução que os equilibra – o sím-
bolo – é resultado da cooperação entre o consciente e o inconsciente ( JUNG, 2006).
Para Jung, o par de opostos – bem e mal
– se encontram tão próximos na personalidade
originária quanto dois gêmeos monovitelinos. E
sem a vivência de ambos, não há experiência da
totalidade do self. A assimilação do mal é, por-
tanto condição para o processo de unificação da
personalidade ( JUNG, 2009).
te, existe algo de mau, um mal que é “real” para
Se tiveres a rara oportunidade de falar com o de-
um julgamento mais ou menos subjetivo, isto é,
com ele. Ele é, em última análise, o teu demônio.
nós. Vemos, portanto, que a psicologia lida com
com um contraste psíquico imprescindível para
a definição de determinadas relações de valor:
bom é o que não é ruim, e ruim o que não é bom.
Existem coisas que são extremamente más, isto
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mônio, não te esqueças de dialogar seriamente
O demônio é, como adversário de teu outro pon-
to de vista, aquele que te tenta e coloca pedras
em teu caminho, lá onde você menos delas precisa ( JUNG, 2010, p. 261).
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Abaixo segue como exemplo uma sequên-
cia resumida com dois sonhos e uma imaginação
ativa que ilustra a questão da assimilação do mal,
em ordem cronológica. Nessa série, reproduzida
pela própria sonhadora, é importante que o leitor atente às mudanças de atitude que acontecem tanto no “mal” quanto no ego à medida que
a assimilação acontece. Isso demonstra como ela
promove uma transformação mútua, não só no
consciente, mas também no inconsciente.
Imaginação ativa –
Comendo o demônio
“— Coma-me. Disse o demônio de olhos
bem escuros, coberto em tinta preta. E, mesmo
sabendo que aquilo era ‘apenas uma imaginação’
não foi fácil. Era repugnante a ideia de comê-lo.
Então cortei e fatiei suas pernas e seus braços,
e coloquei tudo em uma panela grande. Seria a
carne da refeição. Com a faca, abri seu abdômen
e despejei tudo em outra panela. Como era re-
pugnante demais, além de cozinhar precisaria
processar as vísceras, e fazer daquilo um homogêneo purê. Já a cabeça, tive que cozinhar bastante, até que dissolvesse e virasse um molho. Ali
tinha quantidade suficiente para muitas pessoas
se servirem. Quis convidar outros para reparti-
rem aquele prato comigo, pois seria comida demais para eu comer sozinha.”
“Estou na água com a mesma serpente do
olho vermelho do sonho anterior. Ela está ali
para ser comida. Desta vez não sinto que será
uma tarefa difícil. Alguém me diz que aquela
serpente é pão natural, então começo a fatiá-la
para comer e também distribuí-la. Suas fatias
me lembram hóstias e são no sonho pão doce.”
As imagens do inconsciente que repre-
sentam o mal normalmente aparecem como
imagens religiosas – demônio, diabo, serpente,
e assim por diante. Nos símbolos do sonho “A
serpente eucarística”, atributos do mal e do bem,
do demônio e do Cristo, parecem se juntar nesse alimento que é pão natural, hóstia e carne da
serpente maligna ao mesmo tempo, e que o ego
come sem resistências aquilo que se oferece para
ser comido – o próprio self.
A dinâmica psíquica entre o bem e o mal
aparece projetada nos mais diversos sistemas
religiosos existentes. Como exemplo, é possível
traçar um paralelo com duas figuras bem conhe-
cidas na época atual: o Cristo e o Anticristo. Jung
afirma que não há dúvida de que no universo re-
ligioso Cristo representa a personalidade unifi-
cada – o self – por possuir atributos semelhantes.
Porém, como o self psicológico é um conceito
que exprime a soma dos conteúdos conscientes
e inconscientes, ele só pode ser descrito sob a
Suportando o mal
“Estou em minha casa e duas mulheres
batem em minha porta. Uma delas carrega uma
grande serpente, e diz que devo suportá-la em
meus ombros sem rejeitá-la. No sonho eu sei
que aquilo está relacionado ao meu processo de
evolução psíquica, então deixo que a mulher ati-
re a serpente em mim. Por duas vezes me defen-
do dela, mas, terceira me contenho e deixo que
a serpente caminhe em meus ombros. E então a
tarefa foi cumprida. As duas mulheres e a serpente estavam indo embora e quando a serpente
me olhou diretamente nos olhos pude perceber
que em sua cabeça havia apenas um único e
grandioso olho vermelho, e ela era o demônio.”
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Sonho – A serpente eucarística
forma de uma antinomia, ou seja, seus atributos
devem ser complementados por seus respectivos contrários. Se Cristo for considerado como
absolutamente bom, então pressupõe-se que do
lado contrário exista um Anticristo absolutamente mau que corresponde à metade obscura
e tenebrosa do self. Luz e sombra parecem estar
dividas por igual na natureza humana, formando
uma unidade paradoxal. Árvore nenhuma cresce
em direção ao céu se suas raízes também não se
estenderem até o inferno ( JUNG, 2000).
Considerações finais
Por tudo o que foi exposto, é possível con-
cluir que a cisão da unidade originária da psique
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faz-se necessária para que o ego possa desenvolver-se e adaptar-se as demandas do mundo externo. Apesar de seu caráter adaptativo, essa diferenciação acaba por cindir o homem, e aqueles
conteúdos incompatíveis à atitude adotada pelo
ego não deixam de existir só porque são inconscientes. Pelo contrário, eles podem influenciálo ou até mesmo impor-se de forma tenebrosa
ou no mínimo inadequada à vontade do eu,
seja através das projeções, das compulsões, das
possessões, das patologias, das influências “mágicas”, da imperatividade dos instintos e assim
por diante. Reprimir ou desconhecer tamanha
força inconsciente é também sufocar grande
parte da vitalidade da psique. Mas, à medida que
consciente e inconsciente se integram, ocorrem
transformações em ambas as instâncias, embora
seja impossível determinar qual delas é a causa
da outra. O símbolo é um agente transformador da energia psíquica – e, portanto da própria
psique. Ser receptivo à vida simbólica é por em
prática a responsabilidade que o ego tem para
com o self de ser seu sujeito conhecedor, assim
como seu objeto conhecido. Conhecer apenas o
bem é mutilar a totalidade. O homem somente
poderá conhecer e ser conhecido pela personalidade originária na mesma proporção que for
capaz de assimilar também sua metade sombria.
Como afirma sabiamente Jung: “Não nos tornamos iluminados por imaginarmos figuras de luz,
mas por nos tornarmos conscientes da escuridão” ( JUNG, 1967, par. 335).
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Referências
DINGER, E. F. Anatomia da psique. 6ª ed. São
Paulo: Cultrix, 2010.
EDINGER, E. F. Ego e arquétipo. 1ª ed. São
Paulo: Editora Cultrix, 1989.
EDINGER, E. F. O mistério da coniunctio. São
Paulo: Paulus, 2008.
JUNG, C.G. Alchemical Studies. London: Routledge & Kegan Paul, 1967. (Collectet Works, 13).
JUNG, C. G. AION: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2000.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. 13ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
JUNG, C. G.; WILHELM, R. O segredo da flor
de ouro. Petrópolis: Vozes, 2007.
JUNG, C. G. A energia psíquica. 10ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008a.
JUNG, C. G. A vida simbólica. 4ª ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 2008b.
JUNG, C. G. Símbolos da transformação. 6ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2008c.
JUNG, C. G. O livro vermelho. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 8ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
Ilustração: Jubal S. Dohms
50|
Confronto de São Boaventura com
A Filosofia nas Conferências de Paris
sobre Os Dez Mandamentos e sobre
Os Sete Dons do Espírito Santo.
Marcos Aurélio Fernandes
Ano 2 | número 2 | 2013
CONIUNCTIORevista
RevistaEletrônica
Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
CONIUNCTIO
O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
O Confronto de São Boaventura
com A Filosofia nas Conferências de Paris
sobre Os Dez Mandamentos
e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo
Marcos Aurélio Fernandes *
* Marcos Aurélio
Fernandes
Doutor em Filosofia;
Professor de
Filosofia Medieval na
Universidade de Brasília
(UnB).
([email protected])
1| A luta entre mestres
seculares e frades mendicantes na Universidade de
Paris teve seus principais
atores em Guilherme
de Sant’Amour, Geraldo
d’Abeville e Nicolau de
Lisieu, por parte dos
seculares, e Tomás de
Aquino, Boaventura e
João Peckham por parte
dos mendicantes. Em
1252 os mestres seculares
da Universidade de Paris
reagiram duramente à
“invasão” dos frades
mendicantes, franciscanos e dominicanos. A
ofensiva secular veio antes
de tudo de Guilherme
de Saint’Amour. Em
relação aos franciscanos,
sua estratégia consistia
em negar a legitimidade
eclesial da sua atividade
magisterial (docente).
Em 1257, porém, o Papa
Alexandre IV interveio
na luta em favor dos
mendicantes e, tanto Boaventura quanto Tomás de
Aquino recebeu o título
de “Magister”, embora
nesta altura Boaventura
já tivesse sido eleito
ministro geral dos franciscanos. Mas a militância de
Guilherme de Sant’Amour
não parou. Entre 1260
Resumo
Este artigo visa expor, analisar e interpretar os textos das Conferências sobre os dez mandamentos, de 1267,
e das Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo, de 1268, enfocando o modo como se dá o confronto de São Boaventura com a filosofia naqueles anos críticos, em que o embate dos teólogos parisienses
com os filósofos aristotélico-averroistas da faculdade de artes se tornou mais agudo. O enfrentamento de
Boaventura diz respeito a algumas teses que, na visão de Boaventura, negam a temporalidade e historicidade
do mundo, bem como o livre-arbítrio e a responsabilidade do indivíduo na história. Por outro lado, o confronto também se dá sobre a questão do sentido, dos limites e das possibilidades mesmas da filosofia e de
sua relação com a fé e a sabedoria cristã. .
Palavras-chave: Boaventura de Bagnoregio, criação, temporalidade, historicidade, filosofia, fé, sabedoria cristã.
Abstract
This article aims to present, analyze and interpret the texts of the 1267 Conferences dealing with the Ten
Commandments and the 1268 Conferences dealing with the seven gifts of the Holy Spirit, focusing on
the way how to understand Saint Bonaventure’s confrontation with the philosophy of those critical
years, in which the conflict between the Parisian theologians and the philosophers of the faculty of arts
(“averroists” or “radical aristotelians”) became more acute. Dealing with some of their theses, especially
with the thesis that the world is eternal, that the individual soul is not eternal and that all humans at the
basic level share one and the same intellect, Bonaventure concludes that they deny the temporality and the
historicity of the world, as well as free will and responsibility of the individual in history. Another reason
for this confrontation was the question of the meaning, the limits and the possibilities of philosophy and its
relationship with faith and Christian wisdom.
Keywords: Bonaventure of Bagnoregio, creation, temporality, historicity, philosophy, faith, Christian wisdom
Introdução
No fim dos anos 60 e início dos anos 70 do
século XIII, dois grandes pensadores, Boaventura de Bagnoregio e Tomás de Aquino, enfrentaram os mesmos desafios na Universidade de
Paris: perseguição aos mendicantes, franciscanos
e dominicanos, com resistência aos seus direitos de ensinar ali [1]; e, de modo mais grave, os
perigos do aristotelismo de matiz averroísta dos
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mestres da faculdade de artes. Pretende-se, com
este texto, expor o modo como Boaventura se
confrontou com a filosofia neste contexto, mais
pontualmente, nas suas Conferências sobre os dez
mandamentos (1267) e nas suas Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo (1268) [2].
De 1264 a 1274, Boaventura pregou em
grandes universidades daquele tempo, como em
Paris, Montpellier e Bolonha. Em Paris, convi-
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e 1265 ele escreve um
texto intitulado “Contra
pericula imminentia Ecclesiae generali per hypocritas,
pseudo-predicatores et penetrantes domos et otiosos
et curiosos et gyrovagos”.
Em tom escatológico,
os frades mendicantes
são apontados como
novidades ameaçadoras
na “Ecclesia” (Igreja),
como “perigos iminentes”, que irrompem nos
tempos últimos, pondo
em questão a consistência e a verdade do
cristianismo. Guilherme
denuncia que o exercício
do magistério por parte
dos frades franciscanos vai
contra a sua minoridade,
a pobreza, a vontade de
Francisco de Assis e a regra da Ordem. Em 1270,
Guilherme de Sant’Amour
se retira da batalha, para
ir morrer em sua terra.
Mas deixa suas crias:
Geraldo de Abbeville
e Nicolau de Lisieux.
Geraldo de Abeville ataca
o conceito de pobreza
absoluta dos franciscanos
e defende que a pobreza
dos sacerdotes seculares
é mais perfeita do que
a dos franciscanos. Em
resposta aos ataques de
Gerardo contra os mendicantes, Tomás de Aquino
escreve o “De perfectione
spiritualis vitae” (Da perfeição da vida espiritual)
e Boaventura escreve a
“Apologia pauperum contra
calumniatorem” (Apologia
dos pobres contra o
caluniador).
2| Ficará para uma
próxima ocasião abordar
as Conferências sobre a
obra dos seis dias (1273).
Os textos das outras duas
Conferências, que serão
citados aqui, estão em:
Opere di San Bonaventura:
Sermoni Teologici/2 (Roma:
Città Nuova, 1995). O
texto latino desta edição
é o mesmo da “Editio
Maior” publicada pelos
franciscanos de Quaracchi
(Volume V, 1891). A
tradução será do autor
deste artigo. Será feita a
partir do texto latino, mas
veu com João Peckham, seu aluno e seu sucessor
Este combate incide diretamente sobre os
na cátedra dos franciscanos, e com Rogério Ba-
averroistas de Paris, mas incide, também, indi-
uma reforma da cristandade a partir de uma re-
objetivo do presente texto não seja expor o con-
con, o franciscano inglês que se dedicou a pensar
forma do saber. A partir de 1267 Boaventura se
engaja na luta contra o aristotelismo averroísta
dos mestres da faculdade de artes (liberais) [3]
de Paris. Com efeito, sob a liderança de Sigério
de Brabante (1240c. - 1284) e de Boécio de Dácia
(+ 1270), a partir da faculdade de artes instalou-
se toda uma crise na faculdade de teologia da
Universidade de Paris. Os estudos de dialética
e física entravam nos problemas da metafísica
e, por fim, penetravam no terreno da teologia.
O trabalho dos filósofos “artistas” se fundava
sobre a interpretação de Aristóteles feita por
Averróis. Para responder aos desafios propostos
à metafísica e à teologia por parte do aristotelismo de matiz averroísta, Boaventura se enga-
ja com uma série de conferências (Collationes).
Começa, em 1267, com as Collationes de decem
praeceptis (Conferências sobre os dez manda-
mentos); prossegue em 1268 com as Collationes
de septem donis (Conferências sobre os sete dons
do Espírito Santo) e conclui a sua intervenção
com as Collationes in Hexaëmeron (Conferências
sobre os seis dias da criação), também chamadas
de Iluminationes ecclesiae (iluminações da Igreja).
Os escritos que nos foram transmitidos a partir
retamente sobre Tomás de Aquino. Embora o
fronto específico de Boaventura com cada um
dos filósofos averroistas ou com Tomás de Aquino, uma palavra seja dita, a modo de observação
preliminar, sobre o modo como Tomás e Boa-
ventura viram a questão da autonomia da filosofia. Tomás de Aquino, é verdade, se entendeu
fundamentalmente como teólogo. Entretanto,
Tomás é o postula uma autonomia da filosofia
em relação à teologia. Paradoxalmente, porém,
esta postulação de autonomia da filosofia não é
motivada pela reivindicação de uma libertação
da razão em relação à fé, como acontecerá com
muitos filósofos modernos, mas sim, por tomar a
sério, como teólogo, o dogma criação do mundo.
Deus cria dando o ser ao mundo e o mantendo
neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus deixa
sua obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa
que sua obra tenha em si mesma o princípio de
sua atividade. A “causa primeira” não anula, an-
tes promove a autonomia das “causas segundas”
que atuam no mundo. A autonomia da razão é o
horizonte da filosofia. Aliás, a filosofia é o máximo empenho de autonomia da razão.
No entanto, os teólogos que, em geral,
destas conferências não são do próprio punho
seguiam a Santo Agostinho, não partilhavam
são escritos que nos foram legados por mais de
ências do pecado original para a razão humana.
ventura irá tratar da vida cristã em suas bases:
originária, mas decaiu, tornando-se cega para o
to e seus dons; e, por fim, das iluminações da
espírito e para Deus. Na cruz, porém, o homem
de combater os perigos advindos dos filósofos
lado, mas também é reconciliado com Deus, por
ral, ou melhor, de uma filosofia autônoma, não
dimido, só tem sentido sendo subsumida a um
de Boaventura, mas são “reportationes”, ou seja,
desta perspectiva. Estes salientavam as consequ-
um “reportator” [4] . Nestas conferências, Boa-
Depois do pecado, esta não está na sua condição
a lei (mandamentos) e a graça do Espírito San-
ser, ou melhor, para o essencial, para o mundo do
sabedoria cristã. Por estas ocasiões, não deixará
velho com a sua razão cega é condenado, por um
averroistas em especial e de uma filosofia em ge-
outro lado. Por isso, a filosofia, na ordem do re-
subordinada à “teologia”, ou seja, à “Palavra de
Deus” ou “Sagrada Escritura”, ou melhor, à inteligência espiritual desta, por meio da qual se
percorre os caminhos ascendentes da iluminação
e da sabedoria cristã.
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projeto maior, que é o projeto da sabedoria cris-
tã. Esta será a perspectiva de Boaventura, que
aqui se tentará expor. O conhecimento filosófi-
co, portanto, na concepção de Boaventura, não
pode ser cultivado em função dele mesmo. Seria
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como parar no itinerário da mente para Deus.
a fantasia cria o erro, obscurecendo a razão e fa-
ao uso da sua razão somente, ele fatalmente erra.
e supersticiosas invenções de erros provêm ou da
te que a natureza humana foi corrompida pelo
perversa compreensão da Sagrada Escritura, ou
ção da natureza humana é a ignorância. A na-
Aqui, portanto, Boaventura toma como
Ademais, se o homem permanece abandonado
zendo parecer ser o que não é. E todas as falsas
Pois, falando como teólogo, Boaventura adver-
audácia ímproba da investigação filosófica, ou da
pecado e uma das consequências desta corrup-
do desordenado afeto da carne humana [6].
tureza humana não se encontra em seu estado
“ídolo” (pequena imagem ou ideia) todo erro
A natureza degenerada é como uma flecha que
ficção da mente; uma ficção que vem da fanta-
perfeito originário, mas em estado degenerado.
não consegue alcançar o seu alvo por si mesma.
A verdade plena, que a razão com sua iluminacotejada com a versão
italiana. Para não citar
cada vez todos os dados
da referência bibliográfica,
recorre-se aqui ao expediente de citar apenas
o número da “Collatio”
(Conferência), usandose a abreviação “Coll.”,
o número do parágrafo
segundo aquela edição,
e o número da página,
também segundo a edição
italiana da “Città Nuova”.
3| As sete artes liberais,
cujas raízes remontavam
à antiguidade, foram organizadas na Idade Média
na forma do Trivium, que
são as três ciências ou
artes da linguagem, a
saber, gramática, dialética
e retórica; e na forma do
Quadrivium, que são as
quatro ciências ou artes
matemáticas que versam
sobre o real, ou seja, a
geometria, a astronomia,
a música e a aritmética.
4| “Reportator” era
aquele que “reportava”,
ou seja, transcrevia ou
anotava a conferência
pronunciada pelo mestre
em seu “quaternus”
(caderno) e a transmitia a
outros.
5| Cfr. De Mystica
theologia c. 1, § 1. Pseudo
Dionisio Areopagita (Org.:
Teodoro H. Martin). Obras
Completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid:
Biblioteca de Autores
Cristianos, 1990, p. 371
6| Coll. II, n. 24, p. 61.
ção natural busca, só é encontrada quando esta
mesma razão for iluminada pela verdade sobre-
natural da revelação. A revelação assume, porém,
a razão dentro dela mesma. Por isso, a fé não
se limita a crer, mas quer também compreender
aquilo que crê. Ela se empenha com todas as forças da razão em compreender o sentido daquilo que crê e disso surge a teologia e a sabedoria
cristã. Entretanto, todo o empenho racional da
razão no interior da teologia consiste na busca
de se abrir à iluminação do alto. Todo o conhecimento vem de Deus e retorna para Deus. E toda
a sabedoria cristã culmina na mística. Por fim,
o homem deve fazer calar em si mesmo toda a
voz da especulação e, no silêncio, reconhecer que
o mistério de Deus está além de toda especulação. No ápice da experiência mística, a questão
é experimentar afetivamente este mistério, no
silêncio, transportando-se para dentro dele, para
dentro da sua caligem (treva) luminosa, suprar-
racional e superessencial, como dizia Dionísio
Areopagita [5].
I. Os erros da filosofia
Uma crítica à filosofia já aparecem nas
Conferências sobre os dez mandamentos. Ao co-
mentar o preceito de “não fazer ídolo” Boaven-
tura ataca o perigo de “idolatria” na filosofia.
Ele diz:
Na segunda frase: não te farás ídolo, são proibidas todas as falsas e supersticiosas invenções de
erros. E aqui se deve notar que todo erro outra
coisa não é que uma criação da mente. De fato,
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da mente humana. E assinala que o erro é uma
sia. A fantasia obscurece a razão. O que induz o
homem ao erro, portanto, não é a sua razão, mas
a sua fantasia. A fantasia faz que o homem se
apoie em um parecer falso, um parecer que faz
aparecer como sendo aquilo que não é, portanto,
um parecer que é uma mera aparência. Se a ver-
dade, conhecida pela razão, toma o que é como o
que é e o que não é como o que não é, assumin-
do a identidade (coincidência) de ser e aparecer
num parecer; a mera aparência, que é um apare-
cer sem ser ou discrepante com o ser, criada pela
fantasia da mente, toma o que não é como sendo
e o que é como não sendo. A falsidade e a su-
perstição ficam do lado, portanto, dessa fantasia,
dessa atividade ficcional da mente. Essa fabrica-
ção de erros provém, sobretudo, da audácia indevida da investigação filosófica, quando esta não
reconhece e não guarda os limites da sua fini-
tude, desconhecendo sua potência e impotência;
da perversa compreensão da Sagrada Escritura,
quando o leitor se atém somente a uma interpretação literal e não alcança uma interpretação
espiritual do texto sagrado; e do desordenamento dos afetos produzidos pela sensualidade
humana. Ao falar dos erros que nascem de uma
audácia ímproba da investigação filosófica, Boa-
ventura enumera aquilo que ele considera ser os
erros do averroismo dos “artistas” de Paris:
Da audácia ímproba da investigação filosófica
se originam os erros dos filósofos, como: pôr o
mundo eterno e afirmar que o intelecto seja um
em todos. De fato, pôr o mundo eterno é perverter toda a Sagrada Escritura e dizer que o Filho
de Deus não se encarnou. Afirmar, depois, que o
intelecto seja um em todos é dizer que não haja
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uma verdade de fé, nem salvação das almas, nem
observância dos mandamentos; e isso quer dizer
que o homem péssimo se salva e o boníssimo se
condena (...) [7].
Neste texto e contexto, Boaventura enu-
mera apenas dois do que ele considera serem erros dos aristotélicos averroistas: a tese do mun-
do eterno e a tese do intelecto único em todos
os homens. A tese do mundo eterno contradiz
dois dos dogmas fundamentais do cristianismo:
a criação “ex nihilo” (do nada) e a encarnação do
Verbo. A tese do intelecto único ameaça a compreensão da individualidade da pessoa humana
e, por conseguinte, de sua liberdade; e, enfim, de
sua responsabilidade, pela qual o homem pode
ganhar ou perder a sua alma em face de Deus.
Ameaça também a afirmação da imortalidade do
indivíduo: pois, se a individualidade é dada pela
matéria e se limita à matéria, não pertencendo
ao espírito, então com a morte corporal se desfaz a própria individualidade. O que é imortal é
o que é impessoal: o intelecto agente único que
atua no inteligir de todos os homens. Na criação
Deus, do mundo e do ser humano.
Na quarta das Conferências sobre os dez
mandamentos, ao tratar do preceito de santificar
o sábado, Boaventura volta a tratar questão da
eternidade e temporalidade do mundo. Ali ele
diz que é preciso entender espiritualmente a história bíblica da criação do mundo em seis dias:
Deus, com efeito, fez todas as coisas em seis
dias, não porque não tivesse podido fazê-las em
um dia; mas aqui há que se compreender que
o mundo possui algo na arte eterna, ou seja, o
ser eterno, que é a eternidade da vida e a posse
perfeita na qual não há nem antes nem depois;
e Deus imprimiu isto nas mentes angélicas.
Ademais, o mundo possui algo na inteligência
criada, ou seja, por natureza há o antes e o de-
pois, se bem que há simultaneidade segundo a
duração. Mas possui o antes e o depois segundo
a duração – não segundo a natureza -, segundo
aquilo que é na matéria, não por causa de um
defeito de quem opera, mas pela sua condescendência, a fim de que proporcionasse todas
na encarnação se salvaguarda a liberdade e o
obras. E como produziu nas primeiras coisas
a humanidade em sua carne; na individualidade,
produziu plenamente seja os princípios germi-
Deus transcendente, Senhor do ser e do nada;
as coisas e as significasse todas nas primeiras
amor pelo qual a pessoa divina do Verbo assume
as raízes de todas as operações, assim também
pessoa humana, ou seja, a tese de que o homem
individual é livre e responsável por seus atos e
que, ao exercer esta liberdade na responsabi-
lidade, no tempo da sua história biográfica ele
decide sobre seu destino eterno. As verdades de
fé do cristianismo, portanto, a saber, a criação a
nativos de todas as obras seja o repouso. Mas
no sétimo dia repousou e chamou a si a criatura intelectual e no sétimo dia trouxe de volta
à quietude do paraíso as almas que estavam no
limbo. Então o significado do sétimo dia está na
quietude simbólica das almas [8].
Neste contexto, Boaventura retoma a con-
partir do nada, a encarnação e salvação eterna
cepção platônica das ideias, reelaborada no seu
pressupõem a temporalidade e a historicidade.
gunda a qual Deus não somente é causa eficiente
ou não da alma humana em sua individualidade,
A temporalidade e historicidade do universo
(decursus mundi); a temporalidade e historici-
dade da ação imanente do Deus transcendente
(encarnação); a temporalidade e historicidade da
8| Coll. IV, n. 7, p. 81-83.
rista e impessoal da realidade como um todo, de
se salvaguarda a liberdade e onipotência de um
se salvaguarda a liberdade e a imortalidade da
7| Coll. II, n. 25, p. 61.
sua concepção a-histórica, fatalista ou necessita-
existência humana, do exercício de sua liberdade e responsabilidade. O perigo do aristotelismo
averroísta, na perspectiva de Boaventura, está em
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assim chamado “exemplarismo”, doutrina se-
e causa final do universo criado, mas é também
sua causa exemplar. O mundo, marcado pela
temporalidade e historicidade, sai de Deus pela
criação (egressus, productio), mas deve retornar a
Deus pela consumação de todas as coisas (reduc-
tio), especialmente pelo retorno da criatura intelectual ou espiritual à paz paradisíaca. Quando
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esta criatura retorna para a sua origem (Deus)
Assim como a fonte não tem duração, a não ser
sua paz.
origem, assim como a luz, assim também a graça
e nela repousa, então todo o universo alcança a
2. A necessidade de uma
“reductio” da filosofia
Da reductio Boaventura trata na primeira das
Collationes de septem donis Spiritus Sancti, que
apresenta um tratado introdutório da graça,
antes de falar dos dons do Espírito septiforme.
Falando do uso da graça, Boaventura diz que
ele tem de ser fiel em relação a Deus. Fiel é o
uso da graça quando o homem a põe em serviço
da glória de Deus. Boaventura usa, então, uma
imagem que lhe vêm da óptica ou da ciência da
perspectiva daquele tempo:
Os sábios em perspectiva dizem, que se o raio
cai perpendicularmente sobre um corpo terso e
polido, necessariamente repercute pela mesma
via. O influxo [9] da graça é como um raio perpendicular; digo a respeito da graça que faz grato
(gratia gratum faciente), porque a graça dada de
11| Coll. I, n. 9, p. 134.
12| Coll. I, n. 9, p. 134.
13| Coll. I, n. 10, p. 136.
14| Coll. II, n. 1, p. 144.
ser pela sua reversão (reversio) ao seu princípio
original (originale principium) [12].
Esta reversão e conjunção são custodiadas
pela humildade e destruídas pela soberba. Hu-
milde é aquele que atribui ao seu princípio original todo o bem que tem, ou seja, atribui a Deus
e não a si mesmo. O humilde, assim, está sempre
unido à sua origem, enquanto o soberbo rompe
com ela. Lúcifer, o portador da luz, se tornou
escuro por causa de sua soberba; “sed Christus
reduxit se in suum originale principium per humi-
litatem, et ideo clarus fuit” – “mas Cristo se recon-
duziu ao seu princípio original pela humildade,
e daí se torno claro” [13]. Humildade e soberba,
aqui, portanto, são compreendidas por Boaventura em sentido ontológico e não simplesmente
ético. Elas são possibilidades de ser fundantes da
existência humana e são relacionamentos com o
graça de Deus verdadeiramente, restitua (reddat)
o saber.
glória a Deus [10].
10| Coll. I, n. 9, p. 134.
do Espírito Santo não pode viger na alma a não
graça (gratia gratis data) é como é como o raio
que incide. É necessário, pois, que quem recebe a
9| Influxo (influxus) é
uma palavra fundamental na concepção de
“hierarchia”, a regência do
sagrado, no pensamento
de Dionísio Areopagita, a
qual é retomada também
por Boaventura: diz a
comunicação gratuita e
graciosa do Sumo Bem às
criaturas, quer no ser de
natureza (esse naturae),
quer no ser sobrenatural
da graça (esse gratiae).
que tenha contínua união (coniunctio) com a sua
princípio original de todo o poder-ser e de todo
Por sua vez, na segunda conferência, ao
A mente do homem deve ser como um es-
retomar o conteúdo da primeira, Boaventura re-
lhe advém de Deus, ao incidir nela, possa refletir,
passagem da carta de Tiago, que ele pôs como
na em gratidão, à medida que o homem se torna
ductio artium ad theologiam” (Redução das artes
é agraciado por Deus rende glória a Deus. Neste
ótima e todo dom perfeito vem do alto, descen-
passagem do livro do Eclesiastes que recorda o
“per Verbum incarnatum, per verbum crucifixum et
passagem do comentário de Bernardo de Clara-
pelo Verbo Crucificado e pelo Verbo inspira-
pelho limpo e polido, de modo que o dom que
corda a origem da graça, recordando a mesma
ou seja, retornar para Deus. Assim, a graça retor-
mote do seu famoso opúsculo intitulado “Re-
grato e agradável a Deus. Assim, o homem que
ou saberes à teologia), ou seja, que toda dádiva
momento de seu discurso, Boaventura cita uma
do do Pai das luzes (cfr. Tg 1, 17); e acrescenta:
retorno de todas as coisas a Deus, bem como uma
per Verbum inspiratum” – “pelo Verbo encarnado,
val ao livro do Cântico dos cânticos. A passagem
do Eclesiastes diz: “ad locum, unde exeunt flumina
revertuntur” – “ao lugar de onde saem, os rios
retornam” (Eclesiastes 1,7). E o comentário de
Bernardo é: “origo fontium mare est, virtutum et
scientiarum origo est Christus” – “origem das fon-
tes é o mar, origem das virtudes e das ciências é
Cristo” [11]. E Boaventura completa:
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do” [14]. Graças a esta mediação, o Verbo tem
também a função de operar a nossa “reductio”,
a nossa redução, no sentido de recondução, ao
sumo princípio: “E eu disse que aquele Verbo
nos reconduz (reduxit nos) ao sumo princípio (in
summum principium)”. Então Boaventura recor-
da um comentário de Dionísio Areopagita ao
mesmo passo da Carta de Tiago. Neste comen-
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tário, Dionísio nota: “E assim, o processo das
ignorância”. As claridades da ciência advêm ao
vém de modo tão vasto e oportuno que a virtude
men): um lume inato (lumen inatum) e um lume
e nos converte (convertit nos) ao Pai das luzes”
lume natural da faculdade do juízo ou razão; o
ra trata da piedade, de novo é apresentada a di-
zão e fé, ambos são lumes, cuja fonte é a única e
manifestações procedendo do Pai em nós sobreunitiva (unifica virtus) nos plenifica (nos replet)
[15]. Na terceira conferência, em que Boaventunâmica ontológica da “reductio”, quando é dito:
e os rios correm ao mar, enquanto a árvore é con-
sensíveis por meio da sensação e da imaginação.
ação com a raiz. Deiforme é a criatura racional,
vel e apreender o inteligível. Ele é capaz de ope-
seja sobrenatural. O homem conhece as coisas
tinuada com a raiz, e outras coisas têm continu-
Mas ele é capaz também de transcender o sensí-
mesma (refundat se) sobre a sua origem [16].
Piedade (pietas) é o que os gregos chama-
vam de theosébeia, ou seja, a veneração para com
o divino, a religiosidade. Boaventura a identifica
com a reverência para com Deus e a denomina
18| Coll. III, n. 5, p. 166.
29| Coll. III, n. 17, p. 180.
20| Coll. IV, n. 1, p. 182.
21| “Lumen” significa o
mesmo que claridade,
condição de possibilidade
da visibilidade de alguma
coisa. Já “Lux” significa
mais a fonte do lume
ou claridade, como, por
exemplo, os raios do sol.
22| Da Trindade XIV 15,
21. Agostinho. A Trindade. São Paulo: Paulus,
1994, p. 470.
mesma luz: Deus. Toda ciência tem sua origem
sua origem: a pedra para baixo, o fogo para cima,
tade; e não é piedosa, a não ser que reflua a si
17| Em latim “sentire”
quer dizer sentir, no
sentido de experimentar
uma sensação ou um
sentimento; entretanto, também significa
perceber, pelos sentidos
ou pela inteligência; e,
ainda, ser de determinado
parecer, pensar, julgar. Por
isso que, neste contexto,
traduziu-se “sentire” por
“pensar”.
lume que se infunde do alto é o lume da fé. Ra-
numa iluminação divina, quer seja natural, quer
originem suam) pela memória, inteligência e von-
16| Coll. III, n. 5.
infuso (lumen superinfusum). O lume inato é o
Naturalmente qualquer coisa que seja tende à
que pode voltar sobre a sua origem (redire super
15| Coll. II, n. 1, p. 144
homem por meio de um duplo lume [21] (lu-
de “cultus dei” (culto de Deus). A piedade im-
plica em “cum reverentia et timore sentire de Deo”
– “com reverência e temor pensar [17] a cerca
de Deus”. Como exemplo, Boaventura recorda o
tema da criação a partir do nada: “Se pensas de
modo diminuto a respeita da potência de Deus,
a saber, que ele não possa criar todas as coisas
do nada, não pensas de modo altíssimo” [18]. A
piedade é também útil para conhecer o verdadeiro. O homem ímpio é soberbo, um néscio, um
doente que se enferma lidando com questões e
com lutas verbais, diz Boaventura. E, por isso,
adverte: “si vultis esse veri scholares, oportet, vos
habere pietatem” – “se quereis ser verdadeiros escolares (escolásticos), é necessário que tenhais
piedade” [19].
Na quarta conferência, que trata do dom
da ciência, Boaventura apresenta Salomão como
rar a abstração do inteligível junto ao sensível.
Esta abstração é obra quer do intelecto possível
quer do intelecto agente, que são, para Boaven-
tura, duas “differentiae” (diferenças) da mesma
faculdade intelectiva do homem. Entretanto, no
exercício desta faculdade intelectiva, a criatura
racional que é o homem necessita ser iluminada
pela Verdade divina. Aquilo sobre o que julgamos provém da experiência, mas aquilo a partir
do que e segundo o que julgamos, já não provém
da experiência e nem mesmo da própria razão,
mas de uma iluminação divina que nos faz conhecer o ideal.
Na trilha de Agostinho, Boaventura se re-
fere à iluminação natural da razão ou da facul-
dade de julgar, dizendo que esta iluminação é
como que uma impressão. Deus, que contém em
si as ideias, ou melhor, as “rationes aeternae” ou
“rationes exemplares” de todas as coisas criadas,
permite que estas possam resplandecer sobre a
mente da criatura racional. Da parte de Deus a
iluminação é uma comunicação ou doação. Da
parte da criatura racional, é uma recepção. Ao
se comunicar, a luz da Verdade resplandece na
mente do homem. Ela advém à mente sem, po-
rém, deixar a sua fonte. “Não como se ela emi-
o grande escolar (clericus magnus) [20]. A ciên-
grasse de um lado para o outro, mas a modo
Boaventura: “claritas animae est scientia, econtra
um anel fica impressa na cera, sem se apagar do
cia é designada como claridade. Assim sentencia
tenebra animae est ignorantia” – “claridade da
alma é a ciência; ao contrário, treva da alma é a
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de impressão na alma. Tal como a imagem de
anel”, dizia Agostinho [22]. Boaventura expli-
ca a partir de um exemplo: o homem conhece a
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ideia de todo e a ideia de parte, e, daí, consegue
comparação à claridade da ciência cristã. Con-
te”. A verdade é, antes de tudo, manifestativa e
ce pequena segundo a opinião dos homens do
formular o juízo: “o todo é maior do que a par-
tudo, a claridade da ciência teológica que pare-
só por isso é que ela pode ser judicativa. Sem
mundo, segundo a verdade é grande. A claridade
o homem não pode conhecer os princípios e
ciência gloriosa é máxima [24].
a impressão das ideias ou das “rationes aeternae”
julgar com certeza a respeito do real. Os juízos
da verdade enquanto pode ser perscrutada. A ci-
seja, se ela intui as ideias, os princípios, as regras
da verdade enquanto pode ser crida. A ciência
do ser, do conhecer, do agir, que se encontram
originariamente na mente divina. As “rationes
aeternae” ou “exemplares” que estão na mente de
Deus e que se imprimem na mente do homem
quanto pode ser amada. A ciência gloriosa é o
conhecimento sempiterno da verdade enquanto desejável. Nota-se que a ciência filosófica se
que (id quod) o homem conhece e julga. Com
verdade enquanto essa é perscrutável. Esta ciên-
pelo qual o homem conhece e julga. Isto não
natural), lógica (filosofia racional) e ética (filo-
e de sua essência, mas apenas uma “cointuição”
perscrutável que, por sua vez, se apresenta como
dá ao modo de um conhecimento da causa por
monum (verdade dos discursos) e veritas morum
a fonte intuindo (vendo diretamente) o manan-
a “indivisio entis ab esse”, ou seja, a “indivisão”
homem conhece e julga, não são, porém, aquilo
que advém de uma investigação que indaga a
outras palavras, elas são o “medium quo”, o meio
cia é tríplice, pois se divide em física (filosofia
permite, pois, um conhecimento direto de Deus
sofia moral). As três se ocupam com a verdade
(contuitio, contuitus) de Deus. Esta cointuição se
veritas rerum (verdade das coisas), veritas ser-
meio do efeito, como, por exemplo, eu co-intuo
(verdade dos costumes). A verdade das coisas é
cial. Assim, deste modo, conhecendo os princí-
do ente a partir do ser. Dito de outro modo: a
A luz natural da razão, contudo, não é o
bastante para que o homem alcance toda a ciên-
cia, que lhe é possível. Ele precisa, antes de tudo,
do lume infuso da fé, para alcançar uma clara
noção de Deus como criador e como salvador.
Além da ciência filosófica, há a ciência teológi-
ca. Entretanto, as ciências não se exaurem nestas
duas. A elas Boaventura acrescenta, ainda, uma
26| Coll. IV, n. 11, p. 188.
gratuita é o conhecimento santo da verdade en-
define a partir da certeza de um conhecimento
fonte: a Verdade eterna, a mente divina [23].
25| Coll. IV, n. 7, p. 186.
ência teológica é o conhecimento pio (religioso)
quando este julga são aquilo pelo que (id quo) o
pios intelectuais somos capazes de cointuir a sua
24| Coll. IV, n. 3, p. 184.
A ciência filosófica é o conhecimento certo
são atos do intelecto, mas a mente só pode jul-
gar corretamente acerca do real se vê o ideal, ou
23| Tonna, I. Lineamenti
di Filosofia Francescana:
sintese dottrinale del
pensiero francescano nei
sec. XIII-XIV. Roma/Marsa
(Malta): Ed. Tau, 1992, p.
73-81.
da ciência gratuita é maior, mas a claridade da
“ciência gratuita” e uma “ciência gloriosa”, cada
qual com sua claridade. Conhecer é, para o homem, transcender de claridade em claridade.
verdade das coisas é a adequação do intelecto
(divino, arquétipo) e as coisas reais. Talvez pudéssemos dizer: a verdade das coisas é quando o
ente realiza a sua ideia, isto é, a sua essência originária, o exemplar presente na mente divina. A
verdade dos discursos é a “indivisio entis ad esse”,
ou seja, a “indivisão” do ente em relação ao ser,
melhor dizendo, é a adequação do que é expresso
com o intelecto. A verdade dos costumes é a “in-
divisio entis a fine”, ou seja, a “indivisão” do ente
a partir do fim, que é o sumo Bem; quer dizer,
é a retidão, pela qual o homem vive bem, dentro
e fora, segundo o ditame do direito e da justiça.
Estas três sendas da ciência filosófica conduzem
Aqui há de se notar que há a claridade da ci-
a Deus, enquanto este é a “causa essendi” (causa
gratuita e da ciência gloriosa. A claridade da ci-
e o “ordo vivendi” (ordem do viver) [25]. A filo-
homens do mundo, entretanto, é pequena em
vestígios da Trindade [26].
ência filosófica, da ciência teológica, da ciência
ência filosófica é grande segundo a opinião dos
Ano 2 | número 2 | 2013
do ser), a “ratio intelligendi” (razão do inteligir)
sofia é, assim, um grande espelho que reflete os
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58| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
3. A insuficiência da filosofia
Entretanto, a ciência filosófica é insufi-
ciente. Sua claridade se eclipsa facilmente: “si
aliquid interponatur inter ipsum [homo] et solem
iustitiae, patitur eclipsim stultitiae” – “se algo se
interpõe entre ele [o homem] e o sol da justiça, ele sofre o eclipse da estultícia” [27]. Quem
Deus, Boaventura diz:
o qual nada pode conhecer. Mas, assim como o
vela, quisesse ver o céu ou a luz do sol. O conhe-
olho, voltada para as várias diferenças das cores,
sumas, e que aí o homem chegue e aí repouse: é
impossível que isto se dê, sem que o homem caia
em erro, a não ser que seja ajudado pela luz da
fé, ou seja, que o homem creia em Deus uno e
trino, potentíssimo e ótimo segundo a influência
não vê a luz, pela qual vê tudo o mais, e se acaso
vê, não se dá conta que vê; assim também o olho
de nossa mente, voltado para os particulares e os
universais, não adverte, porém, o ser mesmo, que
está fora de todo o gênero, a saber, aquele que
primordialmente ocorre á mente e pelo qual to-
das as outras coisas lhe vêm ao encontro. Donde,
mostra-se de maneira muito verdadeira, que “as-
sim como o olho do morcego se comporta com
a luz, assim também o olho da nossa mente com
a natureza mais manifesta”. Isto se dá porque,
acostumado às trevas dos entes e aos fantasmas
da bondade [28].
32| Cfr. Coll. IV, n. 13,
p. 190.
festo na realidade. No Itinerário da Mente para
comporta como o homem que, com a luz de uma
tural e metafísica, que se estenda às substâncias
31| De Trinitate I, c. 2, n.
4 (PL 42, 822).
morcego em relação ao que há de mais mani-
não considera aquilo que por primeiro vê e sem
Admitindo-se que o homem tenha a ciência na-
30| Tradução minha a
partir do texto latino
apresentado em manuscrito com ensaio de
tradução de Raimundo
Vier (Curitiba, s/d.). Cfr.
também: Boaventura
de Bagnoregio. Escritos
filosófico-teológicos. Introdução, notas e tradução
de Luis A. De Boni e Jerônimo Jerkovic. Coleção
Pensamento Franciscano,
v. I. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS
e USF, 1999, p. 334. A
referência de Aristóteles
é: Metaphysica II, c. 1,
993 b 3-14. Aristotele.
Metafisica. Testo greco a
fronte. A cura di Giovanni
Reale. Milano: Rusconi,
1993, p. 70-71.
Aristóteles, nós temos olhos semelhantes aos de
considerando-se melhor, se torna estulto. Ele se
próprias possibilidades:
29| Coll. IV, n. 12, p. 190.
diz Boaventura recorrendo a uma expressão de
Admirável, pois, é a cegueira do intelecto, que
ao erro, se o homem se apoia somente em suas
28| Coll. IV, n. 12, p. 190.
que é Deus, é uma luz inacessível para nós, pois,
confia na ciência filosófica e se aprecia por isso,
cimento metafísico fatalmente se desvia e induz
27| Coll. IV, n. 12, p. 188.
é somente credível. Com efeito, a luz eterna,
Assim, os filósofos foram obscurecidos
pela ciência filosófica, que, em si mesma é uma
claridade e um dom de Deus, devido ao fato de
considerarem-na autossuficiente e de não terem
recorrido à luz da fé. A filosofia deve ser encara-
da pelo homem sempre como via e nunca como
destino de sua existência: “philosophica scientia
das coisas sensíveis, quando o olho da mente in-
tui a luz mesma do sumo ser, parece-lhe nada
ver; não compreendendo que a própria caligem
é a suprema iluminação de nossa mente, assim
como quando o olho vê a pura luz, parece-lhe
que nada vê [30].
Portanto, sem a luz da fé, ou melhor, como
via est ad alias scientia; sed qui ibi vult stare ca-
diz Agostinho [31], sem a purificação do olhar
outras ciências; mas quem quer ficar plantado
a contemplação das coisas mais elevadas acaba
ao homem é fazer a travessia (transire) da vida,
dão. A fé funda a ciência teológica. A ciência
ência em ciência. Além da ciência filosófica se
ciência filosófica está fundada sobre os primeiros
ológica, que é o saber da revelação contida na
Escritura interpretada espiritualmente, ou mais
iluminação da fé. Trata-se de um conhecimento
pela Igreja a partir da revelação bíblica [32]. A
dit in tenebras” – “a ciência filosófica é via para
da mente (acies mentis) por meio da justiça da fé,
aí acaba caindo em trevas” [29]. O que importa
terminando numa queda no abismo da escuri-
transcendendo de claridade em claridade, de ci-
teológica está fundada sobre a fé, assim como a
encontra, imediatamente depois, a ciência te-
princípios. “Sobre a fé” significa: sobre a Sagrada
Escritura Sagrada, saber alcançado a partir da
exatamente, sobre os artigos da fé professada
pio (notitia pia), ou seja, de um conhecimento
que é cultivado na relação religiosa do homem
com Deus; e um conhecimento pio de uma verdade que, desta vez não é perscrutável, mas que
Ano 2 | número 2 | 2013
leitura literal não basta. É preciso a leitura espiritual. É que a Escritura Sagrada é sempre
multiforme em seus sentidos. “In uma littera est
multiplex sententia” – “em uma letra há multípli-
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O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
ce sentença” [33]. Entretanto, a ciência teológica
1). Estão num relacionamento justo com o sa-
tem esta ciência não a completa com as obras do
edificados e para edificar os outros [36].
mesma não é útil, mas danosa, se o homem que
amor. Se a primeira claridade, a da ciência filo-
sófica, pode obscurecer quem com ela se ocupa,
4. O intelecto e o empenho
da busca da sabedoria
condenar o homem, se este não faz aquilo que
Na sétima conferência sobre os dons do Espírito
aquilo que a fé lhe ensina [34]. Por isso, acima
conselho, Boaventura pergunta: onde encontrar
ência, que é a “scientia gratuita”.
responde que a sabedoria não é encontrada pelo
a segunda claridade, a da ciência teológica, pode
sabe dever fazer, ou seja, se ele não vive segundo
Santo, em que Boaventura fala do dom do
da ciência teológica está a claridade de outra ci-
a sabedoria? Qual é o lugar da inteligência? E
A ciência gratuita é aquela que, de modo
próprio, é um dom do Espírito Santo. É o conhecimento santo da verdade, que, aqui, mais
do que crida, é amada. O amor é mais excelente
do que a fé. Sem o amor, a fé é vã. Poderíamos
dizer que não se trata mais de um “intellectus fidei” (intelecção da fé), mas sim de um “intellectus amoris” (intelecção do amor, da caridade). É
a ciência dos santos. É a ciência dos mártires.
Desta ciência está longe a filosofia dos esco-
lásticos: “hoc non docet philosophia, quod pro conclusione exponham me mori” – “isto não ensina a
filosofia: que, pela conclusão (de um silogismo)
eu deva me expor à morte” [35]. Evidencia-se
assim que, recorrendo a Bernardo de Claraval,
o que importa não é o homem saber muitas coi-
sas (multa scientem), mas saber o modo de saber
(modum sciendi). O modo de saber se define pela
ordem, pelo empenho e pelo fim. Pela ordem:
que o homem primeiramente aprenda aquilo
que é mais maduro para a salvação (maturius
est ad salutem). Pelo empenho (studium): que o
homem estude de modo a se deixar atrair ardentemente por Deus. Pelo fim: que o homem es33| Coll. IV, n. 15, p. 192.
34| Cfr. Coll. IV, n. 18, p.
194-196.
35| Coll. IV, n. 22, p. 198.
36| Cfr. Coll. IV, n. 23-24,
p. 198-200.
37| Cfr. Coll. VII, n. 1,
p. 236.
38| Coll. VII, n. 8, p. 240.
ber, porém, aqueles que querem saber para serem
tude não por causa de uma inane glória própria
homem “carnal”, ou seja, pelo homem que vive
segundo o modo humano de viver (ab homine
humano modo vivente). Se o homem quiser
encontrar a sabedoria, tem de transcender o
próprio homem e o que é naturalmente humano.
Ele tem que se tornar mais que homem (plus
quam homo). Ele deve poder viver a partir
do Espírito de Deus e a partir daí receber a
sabedoria, que provém da profundidade do
mistério. O homem pode saber essa sabedoria se
transcende o modo carnal, cômodo e meramente
humano, de viver. A sabedoria (sapientia) que
ele aprende assim, porém, não é mero conhecer,
mas é também e acima de tudo um saborear, um
perceber o sabor das realidades divinas [37]. Na
perspectiva boaventuriana, com efeito, sapiência
é mais do que ciência. A ciência consiste num
saber (scire), que se dá no modo de um conhecer.
A sapiência, por sua vez, é mais do que saber:
é saborear o mistério. Trata-se, portanto, de um
saber afetivo experimentado a partir do cultivo
da relação religiosa do homem com Deus. Tratase não só de um saber afetivo, mas também de
um saber operativo, de um saber que se traduz
em ação, obra, práxis:
ou por curiosidade, mas para a edificação sua e
Não basta ter boa vontade, a não ser que o ho-
aqueles que querem saber apenas por saber; de
força ou capacidade (virtus) intelectiva à afetiva
do próximo. São tomados de torpe curiosidade,
mem queira agilizá-la em obras, passando da
torpe vaidade, aqueles que querem saber apenas
e da afetiva à práxis (operationem). O Filósofo diz
saber para vender a sua ciência por dinheiro ou
ber, “saber, querer e operar resolutamente” [38].
para se tornarem reconhecidos ou que querem
pelas honras dos homens. Como diz o Apóstolo:
a ciência infla, mas a caridade edifica (1 Cor 8,
Ano 2 | número 2 | 2013
que três são as coisas necessárias à virtude, a sa-
Esta concepção afetiva e prática da sabe-
doria cristã é reafirmada na oitava conferência,
CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR
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60| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
quando Boaventura trata do dom do intelecto.
O intelecto se encontra no tesouro da sabedoria.
esconde os seus mistérios aos sábios e revela-os
souro. Este estudo o homem o realiza em parte
Sabedoria e simplicidade andam juntas. Deus
aos pequeninos, como diz o evangelho (Mt 11,
25). Neste contexto, “sábios” são os que sabem
muitas coisas; “pequeninos” são os que sabem
pouca coisa. Mas “pequeninos” também são
aqueles que sabem muitas coisas, e que, portan-
to, poderiam ser considerados sábios aos olhos
do mundo, mas que se atém humildemente em
relação à sabedoria. A humildade franqueia ao
homem o caminho da sabedoria, enquanto a
presunção lhe fecha este caminho:
Quem mais crê saber, frequentemente é
quem sabe menos. Sem disciplinar o seu inte-
lecto e seguir pela fé o que a Sagrada Escritura
diz, o homem não compreende as coisas divinas,
e acaba cogitando muitos erros. Por isso, Boa-
ventura reafirma o dito da versão dos setenta
da Bíblia, abraçado como lema para Agostinho:
44| Coll. VIII, n. 13, p.
260.
rior; por fim, em parte a partir da iluminação da
luz eterna, como por uma luz superior [42]. A
experiência torna o homem experto, perito em
muitas coisas. Neste ponto, ao falar da intelecção
que parte da experiência, Boaventura recorre a
ências se faz o universal, que é o princípio da
quentemente se ensoberbece” [39].
43| Coll. VIII, n. 14, p.
262. As referências de
Aristóteles são: Analíticos
Posteriores II, c. 19 (100
a 3-8); Metafísica I, c.
1 (980 b 29 – 981 a 4).
Cfr. Aristóteles. Órganon.
Tradução de Edson Bini.
Bauru-SP: EDIPRO,
2005, p. 344. Aristotele.
Metafisica. Testo greco a
fronte. A cura di Giovanni
Reale. Milano: Rusconi,
1993, p. 2-3.
da luz natural da razão, como por uma luz inte-
presunção. Todos louvamos a humildade e vi-
que “disputando contra a soberba o homem fre-
42| Coll. VIII, n. 12, p.
260
te a partir do que o homem aprende pelo ditame
uma memória; a partir de muitas memórias se
imunes da presunção. Diz Ricardo de São Vítor,
41| Coll. VIII, n. 8, p.
256-258.
experiência, como por uma luz exterior; em par-
Nada obscurece tanto o intelecto em relação
tuperamos a presunção, poucos, no entanto, são
40| Coll. VIII, n. 5, p.
254-256.
a partir do que ele aprende pela frequência da
Aristóteles: “a partir de muitas sensações se faz
àquelas coisas que concernem a Deus do que a
39| Coll. VIII, n. 1, p. 252.
O estudo da verdade consiste em cavar este te-
“nisi credideritis, non intelligetis” – “a não ser que
creiais, não compreendereis”. Com efeito, as coisas de que versam as Escrituras Sagradas trans-
cendem a nossa inteligência, ou seja, a razão que
atua segundo a luz natural. Por isso, a indiscipli-
na na potência racional da alma torna-se o maior
impedimento para que o homem compreenda as
coisas divinas [40].
faz uma experiência; a partir de muitas experiarte e da ciência” [43]. De fato, há arte ou ciência
quando o homem conhece, a partir da experiên-
cia, certas leis que regem o acontecer das coisas,
as quais podem ser expressas em proposições
universais. Ao falar do intelecto a partir do que
o homem conhece segundo o ditame natural da
razão, que é como uma luz interior, Boaventu-
ra nota que a alma humana tem três operações
ou três potências. Ela pode se voltar (convertere)
sobre o seu corpo; sobre si mesma; e às coisas divinas. Daí advêm três definições da alma: como
forma do corpo; como “hoc aliquid” (este algo),
ou seja, como uma substância singular de na-
tureza intelectual (pessoa); e como “imago Dei”
(imagem de Deus). A propósito da iluminação
natural Boaventura diz:
A nossa alma, porém, tem sobre si certo lume
natural impresso (quoddam lumen naturae signatum), pelo qual é hábil a conhecer os primeiros
O intelecto tem três funções: é a regra das
princípios, ainda que isto somente não baste,
ções científicas e a chave da contemplação das
princípios, enquanto conhecemos os termos”.
circunspecções morais; é a porta das considera-
porque, segundo o Filósofo, “conhecemos os
coisas divinas. No primeiro caso, trata-se do in-
Quando, pois, sei o que é “todo” e o que é “par-
o ditame da divina lei, conhece o mal que deve
que sua parte” [44].
telecto prudencial, em que o homem, seguindo
evitar e o bem que deve realizar [41]. Em segun-
do lugar, o intelecto é a porta das considerações
das ciências (ianua considerationum scientialium).
Ano 2 | número 2 | 2013
te”, imediatamente sei que “todo todo é maior do
Entretanto, somente a intelecção a partir
da experiência e da a partir do ditame natural
da razão não são o suficiente. O homem precisa
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O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
de uma iluminação “sobrenatural”, que se dê “per
do ser (causa essendi) produzindo imediatamente
se pode saber de Deus com certeza a não ser
zindo todas as coisas temporais; e imediatamen-
divinam influentiam” (pelo influxo divino). Nada
que se saiba por graça dele mesmo. Neste ponto,
Boaventura recorda Agostinho, que pergunta a
partir donde acontece que o injusto, de vez em
quando, julga bem acerca da justiça. Onde estão escritas as leis da justiça segundo as quais
e a partir das quais mesmo um homem injusto
pode julgar de modo justo? A sua resposta vem
na seguinte versão boaventuriana: “estão escri-
tas no livro da luz eterna, e não emigrando dela,
mas imprimindo-se, descem à alma, assim como
a imagem passa do anel à cera, sem abandonar
o anel” [45]. Assim, na intelecção acontece um
processo em que, por um lado, o intelecto age
com sua capacidade natural de discernir e de
julgar, por outro lado, ele recebe a iluminação
divina. Por sua vez, a iluminação acusa um con-
tato imediato entre Deus e a alma. Se há alguma mediação angélica, esta mediação é apenas
a modo de uma assistência ou de um serviço
(ministerialiter et adminiculative). Se se diz que
o anjo ilumina a alma, falando-se por analogia,
ele o faz não como o sol ilumina uma sala, mas
como alguém que abre a janela para que a luz
penetre na sala. Somente Deus tem poder sobre
a alma racional, porque esta é formada por ele
de modo imediato. A conclusão positiva é que
somente Deus é mestre do homem. A negativa atinge o ensinamento dos filósofos sobre as
Inteligências: “portanto, não é verdadeiro o que
dizem os filósofos, que uma Inteligência cria ou-
tra, porque criar é próprio do Deus onipotente,
45| Coll. VIII, n. 15, p.
262.
46| Coll. VIII, n. 15, p.
262.
47| Coll. VIII, n. 15, p.
264. A referência de
Agostinho é: Da Trindade
XIV, c. 12, n. 16. Cfr.
Agostinho. A Trindade.
São Paulo: Paulus, 1994,
p. 462.
48| Coll. VIII, n. 15, p.
264.
não de algum poder criado; por isso, fazer isso é
próprio daquela luz que é Ato Puro” [46].
Deus está imediatamente próximo do ho-
mem. “Nele vivemos, nos movemos e somos”,
como disse Paulo no seu discurso aos filósofos
no Areópago em Atenas (At 17, 28). E Agosti-
nho esclarece que Paulo não está falando, aqui,
de nossa vida corpórea, mas de nossa vida in-
telectiva [47]. Deus é, como já vimos, causa do
ser, razão do inteligir e ordem do viver. É causa
Ano 2 | número 2 | 2013
todas as coisas perpétuas; mediatamente, produ-
te também ao produzir as virtudes elementares
do cosmo. Deus é razão do inteligir (ratio intelligendi) porque é a partir dele que advém à in-
teligência criatural a certeza, acima de toda sua
mutabilidade. É ordem do viver (ordo vivendi),
pois, por sua inabitação na alma, o homem é regido pelas regras da vida reta. Assim sendo Deus
entra na alma como princípio do seu ser, como
sol da inteligência e como dom infuso [48].
5. Outra abordagem
sobre os erros dos filósofos:
o embate de círculo e cruz.
Neste contexto, Boaventura volta a com-
bater os erros dos filósofos. Segundo ele, três são
os erros a serem evitados nas ciências, os quais
exterminam a Sagrada Escritura e a fé cristã. O
primeiro erro é contra a causa do ser, a saber, o
erro da eternidade do mundo. O segundo erro é
contra a razão do inteligir, ou seja, a necessidade
fatal. O terceiro erro é contra a ordem do viver,
isto é, a tese da unidade do intelecto humano.
Uma tríplice tese do aristotelismo averroísta
dos filósofos da faculdade de artes é combati-
da, ou seja: que põe o mundo eterno; que põe
que tudo acontece por necessidade; e que põe
que há um único intelecto (agente) em todos os
homens. A aparição deste tríplice erro, contudo,
é visto por Boaventura em chave escatológicoapocalíptica representado no número da besta
do Apocalipse: seiscentos e sessenta e seis (Ap.
13,18), que é, segundo Boaventura, um núme-
ro cíclico. O número seis é três vezes repetido.
O número seis é o número das criaturas e do
homem. As criaturas são criadas em seis dias.
O homem é criado no sexto dia. Trata-se, aqui,
de um aprisionamento do homem na imanência criatural, uma recusa da transcendência. Um
aprisionamento que, repetido por três vezes, se
potencializa cada vez mais (há o seis; depois o
sessenta, que é o seis dez vezes; e seiscentos, que
é o seis cem vezes). Sobre o caráter cíclico da re-
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62| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
presentação aristotélica-averroísta dos filósofos
Sendo que tomamos o círculo como símbolo da
põem ser o mundo eterno se fundamentam so-
cruz como o símbolo ao mesmo tempo do misté-
da faculdade de artes Boaventura elucida: os que
razão e da loucura, podemos muito bem tomar a
bre o círculo do movimento e do tempo; os que
rio e da saúde (...)... o círculo é perfeito e infinito
põem ser a necessidade fatal que rege todos os
acontecimentos se fundam sobre o movimento
dos astros; os que põem ser um só o intelecto
em todos os homens, consideram que esta Inteligência entra e sai no corpo. Este tríplice erro
choca com a Sagrada Escritura e com a fé cristã: contra a criação a partir do nada; contra o
livre-arbítrio, anulando, assim, a cruz de Cris-
to; e contra a diferença entre mérito e prêmio,
anulando, assim, a individualidade, a liberdade
e a responsabilidade dos diferentes indivíduos
[49]. Por conseguinte, a luta entre a fé cristã e
a filosofia dos artistas aristotélico-averroistas é
a luta entre o círculo e a cruz: entre identidade
e diferença, entre unidade e oposição, entre plenitude e vazio, entre eternidade e tempo, entre
atemporalidade e temporalidade, entre imanên-
cia e transcendência. A defesa da cruz é a defesa
da diferença, da individualidade, da liberdade,
do amor. Chesterton intuiu isso quando escreve:
O amor deseja a personalidade; por isso deseja a divisão. O cristianismo instintivamente se
alegra por Deus ter fragmentado o universo em
pequenas partes, porque essas partes são vivas.
Instintivamente ele diz “Criancinhas, amai-vos
umas às outras”, em vez de mandar uma pessoa
enorme amar a si mesma (...). Todas as filosofias
49| Coll. VIII, n. 16, p.
264.
modernas são correntes que se interconectam e
50| Chesterton, G. K.
Ortodoxia. Traduzido por
Almiro Pisetta. São Paulo:
Mundo Cristão, 2008,
p. 218.
ra e liberta. Nenhuma outra filosofia faz Deus de
51| Chesterton, G. K.
Ortodoxia. Traduzido por
Almiro Pisetta. São Paulo:
Mundo Cristão, 2008,
p. 49.
52| Rombach, H. Leben
des Geistes - Ein Buch zur
Fundamentalgeschichte der
Menscheit.Freiburg / Basel
/ Wien: Herder, 1977,
p. 140.
prendem; o cristianismo é uma espada que sepafato exultar com a divisão do universo em almas
vivas. Mas segundo o cristianismo ortodoxo essa
separação entre Deus e o homem é sagrada, porque é eterna [50].
em sua natureza; mas é fixo para sempre em seu
tamanho; ele nunca pode ser maior ou menor.
Mas a cruz, embora tendo no seu centro uma co-
lisão ou contradição, pode estender seus quatro
braços eternamente sem alterar sua forma. Por
ter um paradoxo no seu centro ela pode crescer
sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo
e está encarcerado. A cruz abre seus braços aos
quatro ventos; é o poste de sinalização dos viajantes livres [51].
Não que a cruz deva se contentar em sim-
plesmente excluir o círculo. Um relacionamento
que exclui o seu oposto não consegue ser um
relacionamento pleno. Por isso, no cristianismo, a cruz subsume o círculo, como aparece, por
exemplo, na imagem da cruz irlandesa. Heinrich
Rombach, analisando esta imagem escreve:
“Cruz e Círculo são sinais, os mais antigos e
elementares. Ambos em contraposição: a Cruz,
dura, reta e contraditória; o Círculo, redondo,
tenro e oscilante. A antiga Cruz irlandesa de
pedra liga ambos os sinais em compenetração
mútua: o Círculo se cruza com círculos. A Cruz
abraça um movimento circular. O que dizem es-
ses sinais? Círculo significa plenitude, riqueza,
dom, como também, alegria, estima, valor. O que
nos é importante, nós o marcamos com círculos;
o que nos é caro, o rodeamos em círculo. Anel e
aro são símbolos da Vida e da Unidade. Tam-
bém do sol. Cruz diz diferença, significa opo-
sição, contradição, também risco. Serve para a
marcação, para sinalizar, para estigmatizar. Ela
diz evento, ação, quebra, dor e morte. Círculo e
Cruz, se unidos, podem só ser lidos como: ir-
rupção para plenitude, evento da unidade através
de uma única ação singular; em suma: superação
E Chesterton, assim como Boaventura,
também entende que uma concepção cíclica ou
[52].
Numa concepção cíclica e circular não
circular da realidade, presente no paganismo e
acontece propriamente história. Historicidade
cruciforme ou “crucial” da realidade, presente no
se experimenta liberdade, responsabilidade,
em todo o imanentismo, é oposto da concepção
cristianismo. Ele diz:
Ano 2 | número 2 | 2013
se experimenta a partir do momento em que
singularidade, diferença, oposição, contradição,
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O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
risco, enfim, quando a cruz marca a realidade.
diz Tiago (1, 17). O modo de ser espelho, porém,
da morte e a irrupção da vida plena. Entretanto,
na mente humana. Em Deus, espelho e luz é
Mas o evento pascal da cruz é também a morte
trata-se de uma plenitude que advém e sobre-
vém pelo esvaziamento e de uma nova criação
que se dá, de novo, de nihilo (do nada), do abismo da morte.
Ao fim da oitava conferência, pois, Boa-
ventura argumenta contra os três supraditos erros. O primeiro erro, que põe a tese segundo a
qual o mundo é eterno, destrói a causa dos ser.
Ao se negar a criação de nihilo (a partir do nada),
se afirma que as coisas têm, simultaneamente, o
ser e o não-ser, ou que têm o ser antes do nãoser, o que é inconveniente [53]. Ao se afirmar a
necessidade fatal (ou o determinismo fatalista),
a partir das configurações astrológicas, torna-
se vão o livre-arbítrio: “porque se o homem faz
o que faz a partir da necessidade, o que vale o
livre-arbítrio?” [54]. A consequência é que se
destrói todo o mérito e toda a imputabilidade.
O terceiro erro, que nasce da ignorância sobre
a natureza do intelecto, porém, é o pior de to-
tempo. É que o intelecto angélico compreende
todas as formas ou arquétipos das coisas num só
instante. Mas, no homem, espelho e luz são coi-
sas diversas não só segundo a razão e a natureza,
mas também segundo o tempo: o homem não
compreende subitamente tudo o que ele pode
compreender. Assim, a temporalidade é caráter
radical do espírito ou do intelecto humano. Por
ser radicalmente temporal e finita é que o inte-
lecto humano precisa aprender, precisa julgar e
raciocinar, precisa se dar como intelecto possível
(receptivo) e como intelecto agente (ativo), pre-
cisa, enfim, ser iluminado por uma luz superior
à sua própria luz, pois, como diz o Filósofo: “Assim como se comporta o olho do morcego em
relação à luz do sol, assim também se comporta
o nosso intelecto em relação às coisas claríssimas
da natureza” [56].
distinção e da individuação, porque em diversos
Na nona e última conferência sobre os
indivíduos o intelecto tem um ser distinto: por-
sete dons do Espírito Santo, Boaventura trata
individuantes da sua essência” [55]. Os filósofos
ria provém de Deus como sua dádiva, mas, para
ensinaram que uma única Inteligência criada
irradia sua luz sobre todos os homens. Na verdade, porém, esta é uma prerrogativa somente
de Deus. Toda inteligência criada é apenas um
espelho da luz divina e eterna. Toda inteligência
é capaz de reflexão, isto é, é capaz de um retorno
55| Coll. VIII, n. 19, p.
266
sobre si mesma (reditio). Por isso, toda substân-
56| Coll. VIII, n. 20, p.
266-268. A referência a
Aristóteles é: Metafísica
II, c. 1, 993 b 9-14. Aristotele. Metafisica. Testo
greco a fronte. A cura di
Giovanni Reale. Milano:
Rusconi, 1993, p. 70-71.
julga. Por isso, se assemelha a um espelho, que
57| Cfr. Coll. IX, n. 1,
p. 270.
renciam por razão e por natureza, mas não pelo
6. VI. A sabedoria do mundo
contra a sabedoria de deus
tanto, possui os princípios próprios, distintos e
54| Coll. VIII, n. 18, p.
266.
a mesma coisa. No anjo, luz e espelho se dife-
dos, pois reúne os outros dois. “Que este intelecto seja um em todos, isto é contra a raiz da
53| Coll. VIII, n. 17, p.
266
é diverso, na mente divina, na mente angélica e
cia intelectual conhece a si mesma, se ama e se
irradia de volta a luz que sobre ele incide. Neste
sentido, Boaventura parece equacionar “reditio”
e “reductio”, ou seja, a capacidade de reflexão, de
retorno sobre si mesmo, e a capacidade de fazer
retornar à sua fonte a luz do conhecimento que
sobreveio ao homem do “Pai das luzes”, como
Ano 2 | número 2 | 2013
da sabedoria ou sapiência (sapientia). A sabedoreceber este dom, o homem tem que desejá-la
e também tem que preparar a sua alma, dedicando-se à justiça. E a suma justiça é o homem
render glória a Deus e desejar e pedir de Deus
a sabedoria [57]. Na verdade, o cristão é cha-
mado a pedir e a receber a sabedoria verdadeira
que vem de Deus e a fugir da vã sabedoria que
vem do mundo, ou seja, dos homens que amam
o mundo, dos homens mundanos. Com efeito,
há a sabedoria celeste e há a sabedoria terrena.
A alma está entre ambas: ela tem “duplex aspec-
tus”, ou seja, duas perspectivas ou dois olhares;
tem também “duplex affectus”, dois afetos. Um
olhar e um afeto se voltam para o alto, ou seja,
para as coisas incorruptíveis do espírito, para a
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64| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
eternidade. Outro olhar e outro afeto se voltam
cado, parecia-me demasiadamente amargo ver
do mundo terreno, para a temporalidade. Por
eles e fiz misericórdia com eles. E afastando-se
uma sabedoria que é de baixo, que, no dizer do
se em doçura da alma e do corpo; e, em seguida,
para baixo, ou seja, para as coisas corruptíveis
leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre
isso, há também uma sabedoria que é do alto e
deles, aquilo que me parecia amargo, converteu-
apóstolo Tiago é “terrena, carnal, diabólica” (Tg
detive-me por um pouco e saí do mundo [60].
3, 14-15). Esta sabedoria, diz Boaventura, “com
suas conferências em Paris, também recorda aos
experiência dos deleites sensuais e na excelên-
ência terrena e apreciar a sapiência da cruz. Pois
avidade, na afluência das riquezas seculares e na
cia ou na ambição das pompas mundanas” [58].
A solicitude por se deleitar na riqueza a torna
terrena; a solicitude por se deleitar nos prazeres
a torna carnal ou animal; e a solicitude por se
deleitar na excelência e na pompa mundana a
torna diabólica. Com efeito, o caráter distintivo
do diabólico é a soberba, que é a raiz de todos
os males.
É esta sabedoria que Paulo chama de “sa-
bedoria do mundo” oposta à “loucura da cruz”,
que é a sabedoria do cristão (Cfr. 1Cor 1, 1830). É esta sabedoria que está destinada a ser
Em lugar da riqueza, a pobreza; em lugar dos
prazeres sensuais, o sofrimento; em lugar da so-
62| Coll. IX, n. 6, p. 274.
63| Coll. IX, n. 7, p. 276.
subiu ao céu para que o homem desejasse a sabedoria do alto e amasse a fonte da vida, que
é Deus. Portanto, a máxima estultícia é o cristão tornar vã ou vazia a morte de Cristo, aban-
donando a sapiência da cruz pela sapiência do
mundo. Fazê-lo, seria ir contra a admoestação
do Apóstolo de não se esvaziar e tornar vã a cruz
de Cristo: ne evacuetur crux Christi (1 Cor. 1, 17)
[61].
Entretanto, como é a sabedoria do alto,
descende do Pai das luzes (Tg 1, 17). É luz que
colheu o que é contrário à sabedoria do mundo.
61| Coll. IX, n. 4, p. 274.
esvaziar a sapiência do mundo; e ressuscitou e
a morte de cruz. Foi para ensinar os homens
aflito e humilde. Na loucura da cruz, Cristo es-
60| Fassini, D.
(org.).Fontes franciscanas.
Santo André: Mensageiro
de Santo Antônio, 2004,
p. 83.
Cristo sofreu a loucura da morte de Cruz para
a sapiência cristã? Enquanto a sapiência do
a precaver-se com ela que Cristo se fez pobre,
59| Coll. IX, n. 3, p. 272.
seus ouvintes a necessidade de desprezar a sapi-
destruída e reprovada por Deus. Com efeito, foi
para dispersar esta sabedoria que Cristo morreu
58| Coll. IX, n. 2, p. 272.
Boaventura também, neste contexto de
toda a solicitude busca deleitar-se em toda a su-
mundo é trevas, a sapiência do alto é luz, que
sobrevém ao homem para iluminar as três po-
tências da alma humana: a cognitiva, a afetiva e
a operativa; ou seja, o intelecto, o afeto e a ação
do homem. Ela ilumina a potência intelecti-
va da alma como um esplendor da luz eterna,
berba, a humilhação [59]. Aos olhos da sabedo-
tornando o homem amigo de Deus. Ela é luz
um louco. A sapiência da cruz é amarga para o
alma: “ubi veritas illabitur animae et eam replet
do mundo é doce para os homens mundanos;
plenifica e a alegra” [62]. Em terceiro lugar, a luz
evocar as palavras de Francisco de Assis em seu
sua potência operativa. Ela dá ao homem a for-
em termos de mudança de sapiência, ou seja, em
Boaventura passa a falar de modo perso-
ria do mundo, Cristo aparece como um estulto,
que sobrevém para alegrar a potência afetiva da
mundo; mas é doce para o cristão. A sapiência
et laetificat” – “onde a verdade penetra a alma, a
mas é amarga para os cristãos. Aqui pode-se
da sapiência sobrevém à alma para corroborar a
Testamento, quando ele fala de sua conversão
taleza para operar o bem [63].
termos de mudança de sabor, uma mudança que
acontece quando ele passa a viver com os leprosos:
nificado da sabedoria, regatando, assim, um uso
dos escritos sapienciais do Antigo Testamento.
Esta sabedoria é edificante. Ela edifica a Igreja e
O Senhor deu a mim, Frei Francisco, começar
a fazer penitência assim: como estivesse em pe-
Ano 2 | número 2 | 2013
a alma, tornando-as morada de Deus. Na verda-
de, ela ama habitar junto dos filhos dos homens
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O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
(Cfr. Pr 8, 31). Ela constrói uma casa ou uma
plicidade vence a sabedoria do mundo. Para
colunas, e convida os homens a virem morar jun-
pocrisia, ou melhor, da duplicidade de coração
morada para os homens, uma casa que tem sete
to dela e alegrar-se com o seu banquete (Cfr. Pr.
9, 1-6). Mas, quais são as sete colunas da casa
da sabedoria? Boaventura responde a esta pergunta recorrendo às sete condições da sabedoria
do alto, apresentadas pelo apóstolo Tiago (Tg
3,17) [64]. Boaventura comenta, então, as sete
propriedades ou condições da sabedoria, vendo-
as não só como colunas, mas também como degraus. A primeira condição da sabedoria é a pu-
reza em relação à sensualidade carnal; a segunda
é a inocência na mente; a terceira é a moderação
no falar; a quarta é a suavidade no afeto (in affec-
tu); quinta, a liberalidade no agir (in effectu); sex-
ta, a maturidade no julgar (in iudicio); e, sétimo,
a simplicidade na intenção (in intentione) [65].
Esta sétima é a mais alta e a mais importante
condição da sabedoria: a simplicidade. Pode-se
evocar, aqui, a figura de Francisco de Assis, ícone
da simplicidade. Ele mesmo, na sua “saudação
das virtudes”, ao saudar as virtudes como damas,
que estão ordenadas em pares, saúda a simplicidade como irmã da sabedoria. Ele chama a sa-
bedoria de rainha e põe a simplicidade do seu
lado: “Ave, rainha sabedoria, o Senhor te salve
com tua irmã, a santa e pura simplicidade” [66].
Neste escrito poético, Francisco retoma o tema
medieval da conexão das virtudes (apoiado em
Tg 2,10), ao dizer:
64| Coll. IX, n. 8, p. 276.
65| Coll. IX, n. 9, p. 276.
66| Fassini, D. (org.).
Fontes franciscanas. Santo
André: Mensageiro de
Santo Antônio, 2004, p.
131.
67| Fassini, D. (org.).
Fontes franciscanas. Santo
André: Mensageiro de
Santo Antônio, 2004, p.
131-132.
68| Coll. IX, n. 17, p.
284.
69| Coll. IX, n. 17, p.
284.
Boaventura, a simplicidade é o contrário da hiou de alma. Simplicidade é unidade: unidade de
coração, de alma, de intenção. Ora, a intenção
do coração está ali onde está o tesouro que o homem ama. A intenção do coração do cristão está
no alto, onde está Cristo, a vida [68]. Por isso,
Boaventura retoma a imagem segundo a qual o
homem é como uma árvore invertida: suas raízes
estão no céu:
O modo de ser do homem se põe em modo con-
trário ao da árvore em relação à raiz: a árvore,
com efeito, tem a raiz em baixo, o homem, no
alto; também o edifício espiritual tem o funda-
mento no alto, enquanto aquele corporal o tem
em baixo [69].
Boaventura, pois, em nome da sabedoria
do alto, combateu a sabedoria terrena. Pode-se,
sem mais, identificar a filosofia com a sabedoria
terrena? Sim e não. Sim, caso o cristão tome a
filosofia como autossuficiente, fechada em sua
imanência, tornando, assim, vã a cruz de Cristo,
ou seja, a loucura da cruz, que oculta em si a sa-
bedoria de Deus, a sabedoria do alto. Não, caso
o cristão assuma a filosofia como via para ciên-
cias mais elevadas, quais sejam, a ciência da fé, a
ciência da caridade, a ciência da visão beatífica.
Ou, dito de modo melhor, caso o cristão subsuma a filosofia como iluminação ou claridade que
vem do “Pai das luzes” e se torna capaz de fazer a
Santíssimas virtudes, / o Senhor do qual vindes
“reductio”, ou seja, de reconduzi-la à sua origem,
soluto, / homem algum no mundo inteiro que
a causa do ser, a razão do inteligir e a ordem
e procedeis, / vos salve a todas. / Não há, em ab-
ao seu princípio fontal, reconhecendo em Deus
possa ter / uma de vós sem que morra primeiro.
do viver. Sim, caso o cristão não reconheça os
/ Quem tem uma e às outras não ofende, a todas
possui. / E quem a uma ofende, nenhuma possui
e a todas ofende. / E cada uma delas confunde
os vícios e pecados./ A santa sabedoria confunde
Satanás e todas as suas malícias./A pura e santa simplicidade confunde toda a sabedoria deste
mundo [67].
No combate, pois, entre vícios e virtudes,
a sabedoria vence a malícia diabólica, e a simAno 2 | número 2 | 2013
limites, as fraquezas, as impotências e impossi-
bilidades do intelecto humano abandonado a si
mesmo, bem como a impregnação nela do modo
de ser de uma sabedoria terrena, carnal, animal,
inflada de soberba. Não, caso o cristão reconheça
na filosofia uma possibilidade impossível, uma
potência impotente, e, na loucura da cruz, a impossibilidade possível, a impotência que é mais
forte do que toda a potência humana. Filosofia e
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|65
66| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68
70| Coll. IX, n. 17, p.
284.
71| Pascal, B. Pensamentos. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 237 (fr.
513/4).
sabedoria cristã, por si mesmas, são heterogêneas. Mas, em concreto, se na existência do cristão
elas, têm o poder de abrir-lhe riqueza imensa de
possibilidades de saber e de viver. Todo o empenho filosófico e teológico de Boaventura foi
de cavar para conquistar o tesouro da ciência e
da sapiência, o qual está escondido, em última
análise, em Cristo [70]. Combatendo a filosofia
em seu tempo, Boaventura filosofou, pois, como
disse Pascal, “zombar da filosofia é verdadeiramente filosofar” [71].
Obras citadas
Agostinho. (1994). A Trindade. São Paulo: Paulus.
Areopagita, Pseudo Dionisio. (1990). Obras
completas del Pseudo Dionisio Areopagita.
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos.
Aristóteles. (1993). Metafisica. Milano: Rusconi.
_________ (2005). Órganon. Bauru-SP: EDIPRO.
Boaventura. (1995). Opere di San Bonaventura: Semoni Teologici/2. Roma : Città Nuova.
___________(1999). Escritos filosófico-teológicos volume I. Porto Alegre: EDIPUCRS /
USF.
Chesterton. (2008). Ortodoxia. São Paulo:
Mundo Cristão.
Fassini, D. (. (2004). Fontes Franciscanas. Santo André-SP: Mensageiro de Santo Antônio.
Rombach, H. (1977). Leben des Geistes - Ein
Buch zur Fundamentalgeschichte der Menscheit. Freiburg / Basel / Wien: Herder.
Tonna, I. (1992). Lineamenti di Filosofia Francescana: Sintesi del Pensiero Francescano nei
sec. XIII-XIV. Roma: Tau.
Ano 2 | número 2 | 2013
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Resenhas | Reviews
RESENHAS
Ano 2 | número 2 | 2013
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68| O Desespero Humano
| José Luiz Nauiack | 68- 69
O Desespero Humano*
José Luiz Nauiack*
Com Kierkegaard inicia-se o existencialis-
sespero como uma vantagem e uma imperfeição
ponsável por dar significado à vida é o próprio
mal, pois na comparação com a capacidade de
mo, pois ele ousou evidenciar que o único res-
indivíduo ao vivê-la de forma intensa e sincera.
Ele foi o primeiro a descrever a angústia como
experiência fundamental do ser livre e colocar-
se em situação de escolha. Junto com Nietzsche
antecipou a crise da razão do século XX e in-
fluenciou Sartre ao incluir a si mesmo no pensar.
Kierkegaard apresenta o desespero como
uma doença mortal e define o homem, como um
espírito que não se estabelece com uma relação
externa, mas apenas consigo mesmo. Tal ligação
consiste em orientar-se com a sua própria in-
terioridade, numa dependência entre o infinito
e o finito, entre o temporal e o eterno, entre a
necessidade e a liberdade.
Desta corelação nascem as formas do ver-
dadeiro desespero, sendo que, na tentativa de
tornar-se independente, a consciência do “eu”
surge da necessidade do desprender-se daquele
que estabeleceu a relação. Se, no entanto, o ho-
mem que se desespera tem consciência do seu
desespero e percebe que este nada tem de ex-
terno, então a busca por libertar-se, torna-se um
desespero maior e ainda mais verdadeiro, cuja
* José Luiz Nauiack
Matemático, Psicólogo
e Pós-Graduado em
Psicologia e Religião
([email protected])
que distancia o homem de qualquer outro aniandar em pé, atribui a este poder um sinal de
progresso e de sublime espiritualidade.
Kierkegaard considera poder desesperar-se
como uma profunda vantagem em dialética com
a miséria, visto que a relação do possível com
o imaginável apresenta-se também na forma
de poder tornar se aquilo que se deseja, como a
passagem do possível para o real ou num cresci-
mento do “eu” em direção ao si-mesmo. Se não
for considerado nesta relação, desesperar nada
mais é do que um sofrimento como uma doença
ou como a morte. Assim sendo, ele apresenta o
desespero como uma dádiva recebida de Deus
no momento da formação do ser.
O desespero é uma enfermidade mortal
mais do que qualquer outra doença ao atacar a
porção nobre do “eu”. Sem acabar com a vida
física, o homem vive em agonia interminável.
Neste caso, nem a morte pode salvá-lo, pois aqui
a doença com seu sofrimento é simplesmente o
desespero de não poder morrer.
Tal desespero vem da relação que a síntese
conclusão é que quanto mais se aprofunda para
estabelece consigo mesma, ou seja, da relação do
ção entre o externo e o interno resulta num de-
da do si-mesmo. Sendo expressa também como
o infinito, na mesma relação como o poder que o
nela jaz a responsabilidade que depende todo o
libertar-se, mais afunda. A discordância na rela-
eu consciente sobre a profundidade desconheci-
sespero orientada sobre si próprio e reflete-se até
o espírito que une o “eu” com o si-mesmo. E
gerou. Neste estado se extingue completamente
desespero de ousar ser o si próprio, ou seja, em
o desespero, quando guiado por si mesmo, o “eu”
da consciência descobre Aquele que o criou.
Buscando a identidade do desespero como
doença mortal, o autor distingue o desespero
virtual do desespero real. Considerando o deAno 2 | número 2 | 2013
tornar o sujeito coletivo num individuo autentico e exclusivo.
No entanto, antes da transformação com-
pleta do ser, o desespero não se reduz e muito
pelo contrário, apenas amplia na mesma pro-
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O Desespero Humano | José Luiz Nauiack | 68- 69
porção que desenvolve-se a consciência e os
seus progressos medem a intensidade sempre
crescente do desespero, quanto mais aumenta a
consciência, mais intenso se torna o desespero.
Para que o “eu” se transforme são igual-
mente essenciais o que é possível e o que é necessário. Se desespera tanto pela falta de um
quanto pela do outro. A infelicidade de um “eu”
O desespero no qual o homem deseja ser
ele mesmo, ou desespero desafio se serve da eternidade e por isso mesmo se aproxima da verdade, e é por estar próximo a ela que vai mais
longe. Este desespero conduz à fé. E graças à
eternidade consegue a coragem de se perder para
poder novamente encontrar-se na imensidão do
si-mesmo.
deste tipo não está em nada ter feito neste mundo, mas em não ter encontrado a consciência de
si mesmo, em não ter percebido que este eu é
o seu. Diante do si-mesmo nenhum homem se
reconhecerá, pois ninguém pode reconhecer-se
em um espelho se antecipadamente não se tiver
“O Desespero Humano”,
de Sören Kierkegaard,
publicado em 2006 em São Paulo/Br
pela Martin Claret.
encontrado.
Apesar de poder evoluir, o homem não o
faz facilmente, prefere manter-se em sua co-
modidade, como no exemplo de uma casa com
diversos andares. Adega no sobsolo, térreo, pri-
meiro andar, cada um com espécies diferentes de
moradores, comparando-se a vida em cada um
deles, apesar de tudo, a maioria preferiria a ade-
ga no subsolo, onde pode encontrar tudo à mão
e onde o infinito do horizonte não os provoque.
Todos os homens são uma síntese com fi-
delidade espiritual, preferindo viver na categoria
dos sentidos, sendo contrariado quando convidado a viver no primeiro andar, por considerar
que pode viver onde quiser, pois, afinal, a casa
lhe pertence.
Para Kierkegaard o desespero não é carac-
terístico dos jovens e que se perde com a matu-
ridade. Mostra que tanto o velho, que revive nas
lembranças do passado se desespera sem poder
se arrepender dele, assim o jovem se desespera
pelo desconhecido que há de vir. Os dois deses-
peros se assemelham e possibilitam o crescimento, mas enfatiza que “...é loucura pensar que a fé
e o bom senso nos podem nascer tão natural-
mente como os dentes, a barba e os demais...”, de
forma que o viver sem buscar o “eu” verdadeiro é
um desespero inocente e viver buscando-o é um
infindável desespero na direção do crescimento.
Ano 2 | número 2 | 2013
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70| O que é Religião?
| Ângelo Vieira da Silva | 70- 71
O que é Religião?
Ângelo Vieira da Silva *
* Ângelo Vieira da Silva
Mestrando em
Ciências da Religião
pela Faculdade Unida
de Vitória/ES com
ênfase na Análise do
Discurso Religioso,
Bacharel em Teologia
pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie/
SP e pelo Seminário
Teológico Presbiteriano
Rev. Denoel Nicodemos
Eller/MG (intracorpus).
É Ministro do Evangelho
na Primeira Igreja
Presbiteriana do
Brasil na cidade de
Resplendor/MG
([email protected])
Como explicar a distância entre o conhecimento e a experiência? Como responder as
perguntas sobre o sentido da vida e da morte? O
que diz a linguagem religiosa? Poderão os símbolos, nascidos da imaginação, competir com a
eficácia daquilo que é material e concreto? Possuirá o mundo relações com a solidez das coisas
naturais ou com as espirituais? E o discurso religioso? Qual é? Como é sua linguagem? Como
podemos duvidar da eficácia da religião? Como
poderá a ciência negar a religião se ela é real?
Que são as religiões? Por que não entendê-las da
mesma forma como compreendemos os sonhos?
Por que Sigmund Freud não tinha simpatia com
as religiões assim como tinha simpatia para com
os sonhos? Como afirmar o sentido da vida perante o absurdo da existência, representado de
maneira exemplar pela morte que reduz a nada
tudo o que o Homem construiu e esperou? Enfim, todas estas perguntas encontrarão respostas
psicológicas, psicanalíticas, empíricas, filosóficas
e sociológicas no livro do versado autor Rubem
Alves.
Escritor mineiro, entre os mais de cento e
vinte livros produzidos, possui obras traduzidas
em várias línguas. Como a si mesmo descreve, é
pedagogo, poeta e filósofo de todas as horas, cronista do cotidiano, contador de estórias, ensaísta,
teólogo, acadêmico, autor de livros para crianças,
psicanalista. Independente das críticas, Alves,
de fato, é um dos intelectuais mais famosos do
Brasil. Decerto, o livro “O que é Religião?” é um
exemplar digno de atenção na tentativa de responder as questões introduzidas nesta resenha.
Dentro das perspectivas medievais e históricas, o universo físico se estruturava em torno do drama da alma humana em meio a luz e
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trevas da eternidade. Mas algo aconteceu. Quebrou-se o encanto. A poesia do autor perfaz o
ateísmo metodológico e questiona: Desapareceu
a religião? É certo que não, porém, foi expulsa
dos centros do saber cientifico e do campo das
decisões que determinam a vida num todo. Vendo desta perspectiva, confessar ser um religioso
seria o mesmo que confessar ser habitante de um
mundo encantado. Assim Alves certifica que a
religião não se liquidaria com a abstinência dos
atos sacramentais e a ausência dos lugares sagrados, da mesma forma como o desejo sexual não
pode ser eliminado pelos votos de castidadea. A
definição de religião, portanto, poderia girar-se
em torno do comportamento exótico como presença próxima da expressão pessoal, sendo este
comportamento um espelho do que se vê.
Se o autor relembra que “o homem é a única criatura que se recusa ser o que ela é”, igualmente intenta revelar um mistério antropológico que deseja criar o chamado “objeto desejado
ideal”, numa visão psicanalítica de símbolos da
ausência. A psicanálise, conforme Alves, sugere
que o homem faz cultura a fim de criar os objetos de seu desejo. Ele procura um mundo onde
possa ser amado. Daí, a religião surge cheia de
símbolos, desejos e gestos que se tornam religiosos quando os homens os batizam como tais.
Religião, então, seria certo tipo de fala, discurso,
uma rede de símbolos.
Esta religião opera no exílio do sagrado.
Os símbolos vitoriosos tornam-se verdade simplesmente porque foram em meio a uma história
cheia de eventos dramáticos que se forjaram os
argumentos que defendem a pergunta: “O que
é religião?”. Estas verdades giravam em torno
da salvação, enfermos, caridade, lei... tudo tinha
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O que é Religião? | Ângelo Vieira da Silva | 70- 71
um propósito definido. Deus controlava tudo e a
todos. É justamente aqui que se encontra o ca-
ráter essencialmente religioso nos símbolos, bem
como onde são exilados: se
o
universo
religioso é encantado e a ciência faz este univer-
so perder sua aura sagrada, todo o discurso religioso é classificado como engodo consciente ou
perturbação mental. Os homens são os produto-
res de suas concepções. É ele quem faz a religião
e não a religião quem o faz. Não havendo lugar
para a religião, a mesma é exilada e considerada
inútil para mudar mudar as condições de vida.
Alves amplia a resposta de sua obra. Se
a religião é um sonho da mente humana, tam-
bém é sua voz do desejo. Ele indaga: por que
não entender a religião da mesma forma como
mesmo, por fim, ele não sabe o que quer ser nem
o que desejar. A religião, portanto, é a mensagem
do desejo... “conta-me os teus sonhos e decifrarei o teu coração, teu Deus e quem és”.
Finalmente, é importante reconhecer que a
religião vive o que qualquer outra ciência experimenta: subscrição e críticas, resistência e aceitação, proteção ou agressão. Sim, os que acusam
dizem ser ela uma louca que balbucia coisas sem
nexo; os que a defendem afirmam que sem ela o
mundo não pode existir e que, quando desvendamos os seus símbolos, o homem se contempla como num espelho. Neste embate, todavia,
é fundamental admitir que todas as ciências são
obrigadas a enfrentar um ateísmo metodológico
e nada mais.
se entende os sonhos? Considerando a definição
de Sigmund Freud, “os sonhos são as religiões
dos que dormem e religiões são os sonhos dos
que estão acordados”, postula que nesta relação
o homem vive em guerra permanente consigo
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ALVES, Rubem. O que é Religião?
13ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1984, 133 pp.
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Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus” | Murilo Augusto Diorio | 72
Zaratustra em análise:
Uma leitura viva sobre a “morte de Deus”
Murilo Augusto Diorio*
Jung leitor de Nietzsche: acerca da “morte
de Deus” (Biblioteca Ichthys, 2012, 193 p.) da
psicóloga dra. Sonia Lyra estabelece uma crítica
da leitura que o psicólogo Carl Gustav Jung faz
da filosofia de Friedrich Nietzsche, particularmente da obra Assim falou Zaratustra, a partir
dos escritos do próprio Jung, em especial os Seminários Nietzsche’s Zarathustra.
Nos três capítulos que compõem a obra,
o foco é a interpretação que Jung faz do anúncio da “morte de Deus” expresso por Nietzsche:
como essa ideia é compreendida e articulada
pelo próprio filósofo, denunciando a condição
de toda cultura e moral cristã, o niilismo passivo; a leitura feita por Jung sobre o Zaratustra de
Nietzsche e o lugar que esta ocupa na obra do
psicólogo suíço; o caráter da interpretação junguiana da “morte de Deus”; e as contribuições
da filosofia nietzscheana para a compreensão das
condições psicológicas do homem.
* Murilo Augusto Diorio
Psicólogo e especialista
em História e Filosofia
da Ciência pela
UEL; especialista em
Psicologia Analítica e
Religião Oriental e
Ocidental pelo Ichthys
Instituto (em curso).
([email protected])
A autora nos leva, de forma simples e
agradável, a passear pelos problemas expostos na
questão da “morte de Deus” e sua consequência,
o niilismo, compreendido como uma rejeição radical dos valores, daquilo que dá sentido à vida
humana. Por isso, para Nietzsche, a necessidade
de uma reavaliação de todos os valores, já que a
moral cristã, niilista, petrifica valores em moldes fixos, canônicos. Essa reavalição de valores
aponta para além do homem, para a superação
da dualidade que se funde em uma unidade, um
alcançar-se de novo a si mesmo. E o que seria
alcançar-se a si mesmo, senão devir?
para-se a reavaliação de todos os valores com o
processo de individuação, assim como as metas
de ambas: o surgimento de uma nova personalidade, o devir, o Si-mesmo, ou mesmo a ressurreição de Deus.
Frente a frente as ideias de ambos os pensadores sobre esses problemas, a autora apontanos que tipo de leitura Jung faz sobre Nietzsche:
a leitura da obra do filósofo, ou do próprio filósofo, uma análise psicológica de seu trabalho,
onde este seria apenas uma confissão pessoal?
Zaratustra foi o resultado de uma patologia megalomaníaca ou a iluminação, a lucidez de uma
consciência brilhante e, até mesmo, divina? Tudo
isso, exposto com uma beleza suave, cativante e
ao mesmo tempo instigadora, que leva o leitor a
querer mais.
Em Jung leitor de Nietzsche, Sonia
Lyra nos traz uma crítica inédita no Brasil, embora já realizada fora daqui. A obra tem o mérito
de trazer à luz, além da leitura de Nietzsche por
Jung, a influência e contribuição das ideias do
filósofo na construção da Psicologia Analítica.
Um trabalho essencial não só para filósofos e
psicólogos, mas para todos aqueles interessados
na contribuição cultural destes dois pensadores.
“Jung leitor de Nietzsche:
acerca da ‘morte de Deus’”
Sonia Lyra
Editora Biblioteca Ichthys
Curitiba, 2012.
Mergulhando-nos nos termos próprios da
Psicologia Analítica, tais como libido, psique,
inconsciente coletivo e, em especial, os conceitos
de individuação e de Si-mesmo (Selbst), com-
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Leia também a 1ª edição
Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um
periódico científico, eletrônico, semestral, criado e mantida
pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO,
em 2012, com o objetivo de publicar pesquisas, artigos,
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relacionados à Psicologia (Psicologia Geral, Psicologia Analítica
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Religião - esta “filha mais nova” da Psicologia, no Brasil na
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