Rerum novarum - Michel
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Rerum novarum - Michel
PONT1FICIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ J ..!.. .... f .. w .. f .. w Texto completo das duas encîclicas com dois estudos de ROGER AUBERT E MICHEL SCHOOYANS Fundacao de Cièncias Aplicadas Ediçoes Loyola Pontificio Conselho Justiça e Paz DA RERUM NOVARUM À CENTESIMUS ANNUS Texto completo das duas enciclicas com dois estudos de ROGER AUBERT e MICHEL SCHOOYANS Traduçao FLÂVIO VIEIRA DE SOUZA Ediçocs Loyola Titulo original De Rerum novarum à Centesimus annus © Conseil Pontifical Justice et Paix Revisâo Michel Schooyans Ediçoes Loyola Rua 1822 n. 347 04216-000 — Sâo Paulo — SP Caixa Postal 42.335 04299-970 — Sâo Paulo — SP Tel.: (011) 914-1922 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecànico, incluindo fotocôpia e gravaçâo) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissâo escrita da Editora. ISBN 85-15-000760-6 © EDIÇÔES LOYOLA, Sâo Paulo, Brasil, 1993 Centesimus annus e a "Seiva Generosa" da Rerum novarum MICHEL SCHOOYANS Professor da Universidade catôlica de Lovaina Consultor do Conselho Pontificio "Justiça e Paz" e do Conselho Pontificio para a Familia Introduçâo Com o recuo de que dispomos, confirma-se que a Rerum novarum merece a celebridade e a autoridade de que faz jus hâ uni século. A acuidade na anâlise da condiçâo operâria, a precisâo no estudo de suas causas, a coragem nas soluçôes propostas, o vigor na expressâo fazem com que este documento seja percebido até hoje como o protôtipo das declaraçôes magisteriais no campo social. O que além disso é surpreendente, é a fecundidade desta enciclica. Logo no começo da Centesimus annus, Joâo Paulo II anuncia que ele quereria "mostrar que a seiva generosa que sobe desta raiz... tornou-se mais fecunda" (CA, ib.). Sabe-se com efeito que a qualidade de um texto se mede muitas vezes pelo fato de ser este texto mais ou menos sugestivo: um bom texto suscita pistas que ihcitam até mesmo a ultrapassâ-lo. Encerra marcos a partir dos quais novos desenvolvi29 A. ^;'|?i;;;is;fs^^ï^^'V""-*^'••- :^i mentos poderâo ser indicados. Deixa "residuos" —segundo a expres- sâo de Ricoeur — que nutrirâo passos ulteriores. Presta-se a reativacôes": a intencâo profunda de Leâo XIII na Rerum novarum^ sera retomada, num clima de fidelidade criadora, pelos Papas postenores. Vamos "testar" a fecundidade duradoura da Rerum novarum mostrando que esta enciclica isolou e identificou alguns dos principais temas que alimentam o pensamento social da Igreja ate nossos dias. Adivinha-se logo o carâter forçosamente limitado deste estudo. Estao longe de ser mencionados todos os temas; com poucas exceçoes, somente os textos pontificios importantes serâo explorados. Quer di- zer que nosso estudo tem um carâter marcadamente programatoo. Queremos dizer com isso que nossa ambiçâo éantes estimular estudos ulteriores mais detalhados e sugerir interesse para isso. Coin estas réservas para cada um dos temas escolhidos, nos esforçamos por mostrar como evoluiram ou antes como eles se prolongaram e ennqueceram no ensino ulterior dos Papas. A justificaçâo da intervençâo da Igreja No limiar de todas as outras consideraçôes, a Igreja faz questao de justificar suas intervençôes em matéria social. Asoluçâo_ da questao operâria reclama uma intervençâo da Igreja. Esta questao, assegura Leâo XIII, comporta diversos aspectos, entre eles um aspecto moral que interpela especialmente a Igreja. É prôpno delà convocar os homens à reforma dos costumes (RN, 13). Em sua encichca II ferma vroposito (1905), Pio X farâ sua a justificaçâo, estabelecida por Leâo XIII, da intervençâo da Igreja nâo somente nas questoes Teli- giosas mas também nas questôes temporais que tem uma incidencia espiritual. ï Sempre que possïvel, empregamos a mesma numeraçâo que foi adotad^rcompilaçâo Le discours social ^«^SÏÏS Paris Éd du Centurion, 1990. Utilizamos as segumtes prmcipais âpre SesTnS: Rerum novarum OWD.deWjo XIII; QA: Q^ragegno anno (1931), DR: Divini Redemptons (1937), de Pio.XI, BM.««nete as radiomensagens de Pio XII; MM: Mater et magistra (1961), FT. îacem TterHs (1963), de Joâo XXIII; GS: Gaufra etspes (1% ), do Concflio Vaticano II; PP: Populorumprogressio <}^°*-(™Z cf: èente'Zus annus (1991), de Joâo Paulo II; «^tenesteul^ e ûnico caso, o numéro de parâgrafos^e acompanhado_de uma^le ra minûscula que remete as alinéas. O titulo dos demais documents é citado por extenso. 30 Com o pontificado de Pio XI, a questâo operâria se torna uma questâo social. O capitalismo evoluiu, a vida econômica tornou-se muito mais complexa (QA, 107-112). Pio XI reafirma, em seguida a Leâo XIII, que o Papa tem o direito de intervir nestas matérias em nome de seu direito "e da missâo especialfssima que recebeu de velar pela religiâo e pelos interesses a ela ligados" (QA, 12; 44). Pio XI traz ûteis precisôes a respeito deste direito de intervençâo da Igreja. A atividade econômica do homem esta ordenada ao fim do homem e é a este titulo que ela esta submetida à lei moral, e por conseguinte, ao direito de vigilância da Igreja. Esta deve respeitar o que a Gaudium et spes chamarâ "a justa autonomia das realidades temporais" (GS, 36). Este ponto jâ esta exposto a proposito da ati vidade econômica (QA, 46) e permite ao Papa delimitar melhor a natureza e o alcance de sua intervençâo. Este direito de intervençâo da Igreja volta a ser exposto em quase todos os documentos posteriores. A Igreja "perita em humanidade", deve propor aos homens "o que ela possui de proprio: uma visâo global do homem e da humanidade" (PP, 13). Ultrapassando a perspectiva de Leâo XIII, limitada à questâo operâria, e a perspectiva de Pio XI, centrada na questâo social, o Concilio Vaticano II convida a Igreja a "perscrutar os sinais dos tem pos" (GS, 4; 11). Nisto faz eco ao pedido de Joâo XXIII, recomendando à Igreja levar em conta as mudanças sociais (MM, 46-50). Para Paulo VI, a Igreja, "perita em humanidade" (PP, 13) deve promover "um humanisme pleno", "aberto ao absoluto", quer dizer, "o desenvolvimento intégral do homem e de todos os homens" (PP, 42). Octogesima adveniens introduz uma notâvel precisâo a proposito da justificaçâo das intervençôes do Magistério. Paulo VI aplica de certo modo ao Magistério romano o principio da subsidiariedade: "Diante de situaçôes tâo variadas, nos é dificil pronunciar uma palavra ûnica, como propor uma soluçâo que tenha valor universal... Cabe as comunidades cristâs analisar com objetividade a situaçâo prôpria de seu pais... de haurir principios de reflexâo, normas de juizo e diretivas de açâo no ensinamento social da Igreja. (...) A es tas comunidades cristâs cabe discernir, com a ajuda do Espirito Santo, em comunhâo com os bispos responsâveis... as opçoes e os engaja- mentos que convém assumir..." (OA, 4; 50). Nâo ha pois oposiçâo, mas, ao contrario, complementaridade entre a açâo do Papa e a das comunidades locais em comunhâo com seus pastores. 31 wmÊm$^&^W?: Màtëiï Com Joâo Paulo H, o ensino social se justifica por "novos desen- volvimentos nas condiçôes tecnolôgicas, econômicas e polîticas" (LE, inicio). Estas condiçôes novas, como Joâo Paulo II logo o ponderarâ, se manifestam no subdesenvolvimento e no superdesenvolvimento (SRS, 31), no duplo confronto Leste-Oeste e Norte-Sul (SRS, 21; 22). Este ensino contudo nâo compete sô ao Soberano Pontifice. O sujeito deste ensino é a Igreja. "A concepçâo da fé esclarece muitas razôes que impelem a Igreja a preocupar-se com o desenvolvimento e a considerâ-lo como um dever de seu ministério pastoral... Por seus esfor- ços, ela quer, por uma parte colocar-se ao serviço do piano divino visando a que todas as coisas sejam ordenadas à plénitude que habita no Cristo (cf. Cl 1,19) e que Ele comunicou ao seu corpo, e por outra parte responder à vocaçâo fundamental de 'sacramento', ou seja, 'sinal e meio de uniâo intima com Deus e da unidade de todo o gênero humano' (LG, 1)" (SRS, 31). Doravante, o desenvolvimento intégral, cujo carâter humanista Paulo VI sublinhava, é apresentado na sua dimensâo essencialmente religiosa. Desde o inîcio da Centesimus armas, estas justificaçôes sâo evo- cadas, mas elas sâo desenvolvidas sobretudo no fim do texto (CA, 53-55). Ponhamos em relevo duas consideraçôes particulares justificando a récente intervençâo do Papa. A primeira sublinha o papel que deve ser reconhecido à experiência no ensino social da Igreja; a segunda sublinha o carâter "histôrico" deste mesmo ensino. "Entre estas coisâs que, incorporando-se à Tradiçâo, se tornam antigas e que oferecem os materiais e a ocasiâo de seu enriquecimento como enri- quecimento da vida e da fé, faz parte... a atividade fecunda de I milhôes e milhôes de homens que, estimulados pelo ensinamento social I da Igreja, procuram inspirar-se nele para o prôprio compromisso no mundo... Eles constituîram uma espécie de grande movimento para I [ I I I a defesa da pessoa humana" (CA, 3d). Por outra parte, prossegue Joâo Paulo II, "a solicitude pastoral levou-me... a propor a anâlise de certos acontecimentos récentes da histôria" (CA, 3e). Se se observa o caminho percorrido desde Leâo XIII, verifica-se i :• I que se passou da consideraçâo da questâo operâria, encarada como problema moral, para a questâo do desenvolvimento, encarado à luz da cristologia e da eclesiologia. Este aprofundamento teolôgico torna possiVel uma melhor apreensâo sintética dos sinais dos tempos. Estes sâo reagrupados em torno do tema moral e religioso do desenvolvi mento. Este desenvolvimento tem um fim, e o tem em dois sentidos complementares. Ele é ordenado ao fim ûltimo de cada homem; mas ele é igualmente as primicias da realizaçâo escatolôgica. Por este fato mesmo se encontra corroborada a especificidade do direito e do dever 32 de intervençâo da Igreja e ao mesmo tempo sua autonomia, como também a autonomia ds/açâo temporal dos diversos atores (CA, 15e; 47c). Nâo é necessârio dizer que ao lado destas justificaçôes teolôgicas, o Magistério da Igreja poderia fazer valer, como qualquer um, o seu direito à liberdade de opiniâo e de expressâo. Nâo se vê em nome de que se proibiria ao Papa de pronunciar-se sobre questôes que julgar importantes, ao passo que os meios de comunicaçâo nâo têm nenhum problema de fazê-lo como bem entendem... Verdadeiros maies e falsos remédios A anâlise da sociedade É évidente que todas as grandes enciclicas apresentam uma anâlise da situaçâo; é à luz.desta anâlise que elas se interrogam sobre os maies que ferem a sociedade, sua natureza e suas causas. Da sociedade de seu tempo, Leâo XIII apresenta uma anâlise que as vezes desorienta os leitores de hoje. Leâo XIII sublinha com efeito a existência de duas classes, que sâo inimigas, mas comple mentares. Hâ de uma parte os pobres, de outra parte os ricos; o trabalho e o capital. Entre estas duas classes devem reinar a harmonia e a concôrdia (RN, 15; cf. 29). Leâo XIII procède aqui a uma constataçâo; ele dâ prova de realismo. Entre os indivîduos como entre os Estados, hâ, incontestavelmente, desigualdade de condiçôes (RN, 14). O que causa problema é o acûmulo de riqueza "nas mâos de um pequeno numéro*' (RN, 1). Esta concentraçâo é denunciada com veemência desde o primeiro parâgrafo de nosso texto e é logo reafirmada. Leâo XIII vê nesta concentraçâo uma das grandes causas da "situaçâo de infortunio e de miséria imerecida" da quai sofrem os "homens das classes inferiores" (RN, 2). A concentraçâo é portanto fonte de injustiça. Esta situaçâo tem causas morais: cobiça, vontade de poder, concorrência desenfreada, destruiçâo do sentimento religioso na sociedade, as quais é preciso juntar a supressâo das cor- poraçôes (RN, 2). Contudo, muito antes de ser uma questâo de "conscientizaçâo", o Papa acrescenta que esta concentraçâo vai junto com o fato de que os operârios conceberam uma opiniâo mais elevada de si mesmos" (RN, 1). Partindo da anâlise de Leâo XIII (QA, 27), Pio XI desehvolve uma anâlise mais detalhada das classes, vêem-se aparecer as classes médias; uma melhor distinçâo é feita entre os agricultures e operârios 33 wm< (QA, 40); fala-se de salârios rurais (QA, 66). O trabalho e o capital têm funçôes complementares (QA, 58). O que nos hoje chamamos "paises em desenvolvimento" é mencionado, sem dûvida numa das primeiras vezes (QA, 66). O Papa todavia nâo explicita a analogia entre, de uma parte, "os paîses em desenvolvimento" e as métropoles e, de outra parte, a classe dos trabalhadores e a dos ricos. Deve-se certamente procurar a origem dos maies numa ma distribuiçâo (como em Leâo XIII) e ma aplicaçâo das riquezas (QA, 68), cujas causas morais sâo expostas em continuaçâo da Rerum novarum (QA, 5-11). No final de sua enciclica, Pio XI évita apresentar a dualidade de classes — ou de campos, ou de exércitos — como "natural"; esta dualidade é antes uma situaçâo contingente, nascida de apetites contraditôrios (QA, 90). Mesmo utilizando a palavra "classe" para descrever a realidade concreta, nâo se poderia esquecer que a reali dade das classes deve ser ultrapassada pelas idéias cristâs de igualdade e fraternidade (QA, 148). A.partir de Joâo XXIII, percebe-se um deslocamento de acento. Antes de falar de classes e de tensôes entre elas, os textos começam a dar um relevo especial as naçôes (PT, 131; GS, 82; cf. PP, 62), suas diferenças, desigualdades entre elas, a necessidade, para elas, de renunciar ao isolamento e de se abrir as outras nacôes. O Concïlio Vaticano II consagrou paginas célèbres à anâlise dos maies contemporâneos. "No mesmo momento em que o mundo toma tâo forte consciência. . . da dependência reciproca de todos numa necessâria solidariedade, ei-lo violentamente esquartejado pela oposiçâo das forças que o combatem: âsperas dissensoes politicas, sociais, econômicas, raciais e ideolôgicas ainda persistem, e permanece o perigo de uma guerra capaz de aniquilar tudo" (GS, 4,4). Esta anâlise é completada por um panorama do ateismo contemporâneo e de seus efeitos na sociedade (GS, 19s.). Com Paulo VI, o caminho se solidârio" (PP, 64) onde os paises organizar entre si, e onde poderao raçao dos paises "mais avançados" abre "em direçâo a um mundo "menos avançados" poderao se também beneficiar-se da colabo(PP, 64). Joâo Paulo II nâo pode evitar de falar de classes, em particular quando analisa o marxismo (LE, 11,4; 20,3). Mas à consideraçâo da dualidade de classes, ricos e pobres, que observa no interior das naçôes, vai sobrepor outras clivagens: a clivagem dos blocos (SRS, 10; 20; 22; 32; 36; 37), a clivagem Norte-Sul (SRS, 21; 22; Î4; 19; 43), 34 as clivagens nos paises pobres (SRS, 14), as clivagens nos paises ricos (SRS, 17). É nesta perspectiva resolutamente mundial que o mal e o remédio serâo identificados. Para designar uma das principais causas do mal, falar-se-â menos de concentraçâo e mais de superdesenvolvimento (SRS, 28; 31; 35). O remédio, sera preciso buscâ-lo na solidariedade. Mas enquanto o Vaticano II e Paulo VI se limitavam a um enunciado por assim dizer programâtico deste tema, este adquire um lugar tâo central na Sollicitudo rei socialis que se pode afirmar que com Joâo Paulo II a doutrina social da Igreja se torna de certo modo uma teologia da solidariedade (SRS, 19; 26; 33; 36; 38; 40; 45s.). A Centesimus armas consagra um capitulo inteiro ao ano de 1989 (GA, 22-29). A clivagem entre os dois blocos, que parecia congelada desde Yalta (1945) esta sendo radicalmente posta em causa e modifica o panorama mundial. Esta transformaçâo repentina permite a Joâo Paulo II reabrir o dossiê do desenvolvimento a partir de uma generalizaçâo da teologia da solidariedade, trama da nova enciclica. A criiica do socialismo Desde a Rerum novarum, a Igreja, em seu ensinamento social, réserva sempre um lugar à anâlise do socialismo e de suas variantes. O que Leâo XIII tem em vista, é o socialismo de inspiraçâo marxista. O Papa reprova nele itnpelir ao odio, querer destruir a propriedade privada (RN, 3), promover uma concepçâo inaceitâvel de igualdade (RN, 14), céder a um certo determinismo considerando que a luta de classes é inevitâvel (RN, 15). Como remédio, o socialis mo tornaria "a situaçâo dos operârios mais precâria, retirando-lhes a disposiçâo de seu salârio" (RN, 4). Esta anâlise é retomada por Pio XI, para quem o socialismo é pior que o mal (QA, 11). Entretanto, em razâo mesmo da evoluçâo desta corrente, o Papa introduz uma distinçâo indispensâvel entre o comunismo ou partido da violência (QA, 120; DR, 23) e o socialismo, partido mais moderado (QA, 121-137). Este ûltimo abranda um tanto a luta de classes e é menos contrario à propriedade privada (QA, 123-125). Ainda que contenha uma parte de verdade, o socialismo encerra uma teoria da sociedade "inconciliâvel com o cristianismo" (QA, 126s.; 130); sua concepçâo de sociedade, da vida em sociedade e do fim do homem é contraria ao cristianismo (QA, 128s.). Mais inadmissivel ainda é o comunismo, em razâo de seu ateisino (DR, 3; 12; 26; etc.), de seu materialismo (DR, 9), de sua perversâo intrin35 à-, jgsgswfsft •':ù;ù-'ùkU^!êBi^Û^^ëîM&ii\ seca (DR, 58), de seu desprezo dos direitos da pessoa humana (DR, 10; 30; 33). Joâo XXIII provocou uma certa sensaçâo acolhendo a palavra socializaçâo em seu ensinamento (MM, 59). 0 Papa registra o "desen volvimento dos laços sociais" e faz um balanço sereno deste desenvol vimento tendo em conta experiências socialistas. Contudo, quando Joâo XXIII fala de socializaçâo, tem menos em vista a "parte de verdade" que pode comportar a corrente socialista, do que a I ' i inclinaçâo do homem a viver em sociedade. O que ele diz sobre a socializaçâo prépara com efeito o que ele dira mais tarde sobre a solidariedade (MM, 158-160), à quai Joâo Paulo II réserva os desenvolvimentos que se conhecem. Na sua enciclica sobre o desenvolvimento dos povos, Paulo VI nâo retoma em detalhe as crîticas formuladas ao socialismo desde Leâo XIII. Ele se limita a alertar contra "a insurreiçâo revolucionâ- ria", pois, diz ele, "nâo se poderia combater um mal real ao preço de uma infelicidade maior" (PP, 31). Paulo VI parafraseia aqui formulas de Pio XI e do prôprio Leâo XIII. Em compensaçâo, na sua Carta apostôlica de 1971, o Papa constata a atraçâo exercida nos cristâos pelas correntes socialistas. "Impôe-se um atento discernimento... Entre os diversos niveis de expressâo do socialismo... devem-se estabelecer distinçoes que ofientarâo as escolhas concretas". Os cristâos deverâo dar prova de perspicâcia no reconhecimento lûcido dos laços entre os diferentes niveis de expressâo. "Esta perspicâcia permitirâ aos cristâos encarar o grau de engajamento possivel nesta via" (OA, 31). Paulo VI é sensivelmente mais reservado ao analisar a evoluçâo histôrica do marxismo e a percepçâo que os cristâos têm desta cor rente. Aqui, as advertências sâo de grande firmeza e anunciam aquelas que serâo enunciadas no Libertatis nuntius a proposito da teologia da libertaçâo (OA, 32-34). Na enciclica Sollicitudo rei socialis, Joâo Paulo II apenas retoma a exposiçâo das crîticas doutrinais ou das advertências que se encontram em outros lugares. Supôe que estas crîticas e estas réservas sâo conhecidas. Em compensaçâo, o Papa invoca o. exame realista das situaçôes criadas pelos herdeiros de Marx. O marxismo divulga uma ideologia que conduz, como se pode observar, à ruîna da liberdade, ao coletivismo, à guerra por procuraçâo, à guerra total, ao néocolo nialisme (SRS, 20s.; 41). 36 Com a Centesimus annus, soou a horà dos balanços. Este balanço diz respeito aqui essencialmente ao "socialismo real" (SRS, 15; 28; CA, 13b; 56b), ou seja, ao marxismo tal como se concretizou nos 1 paîses do Leste europeu sob o régime soyiético. Joâo Paulo II reafirma as crîticas dirigidas pelos seus predecessores ao socialismo (CA, 14a); > constata o fracasso historico do marxismo (41 ab). Mas o golpe de misericordia é dado aqui por um argumento novo, ao mesmo tempo filosôfico e teolôgico: o fracasso do marxismo é devido a um erro i antropolôgico fundamental, ao termo do quai o "indivîduo" é consi- 5 i derado como "uma molécula do organismo social" (13a), e por conseguinte alienado (41a). A critica do liberalismo ï - Quando se isola a Rerum novarum no conjunto do ensinamento social de Leâo XIII, tem-se as vezes a sensaçâo de que esta enciclica 3 sublinha um pouco unilateralmente os maleficios do socialismo e que i ela poupa o liberalismo. Em realidade, quando se pôe a enciclica de 1891 em situaçâo doutrinal, verifica-se nâo soménte que esta a 5. e reclamaçâo é infundada, mas que Leâo XIII criticou o liberalismo pelo menos tantas vezes quantas o socialismo. Estas crîticas aparecem jâ antes da Rerum novarum na Diuturnum illud (1881), onde, examinando a origem do poder civil, Leâo XIII examina a teoria do e contrato social; na Immortale Dei (1885), onde, levando em conta a js ir 0 rn a enciclica précédente, o Papa examina as relaçôes entre a Igreja e o Estado; na Libertas praestantissimum (1888), onde Leâo XIII examina os diferentes tipos de liberalismo e suas concepçôes, redutoras da liberdade. Leâo XIII reafirma aqui o laço entre a liberdade e a razâo, entre a vontade e a inteligência. O drama das sociedades libérais, destaca o Papa, é o agnosticismo, a indiferença religiosa, a récusa de reconhecer o lugar de Deus na sociedade. Aqui a referência teôrica, à quai se reporta Leâo XIII, é Rousseau, sua concepçâo do contrato, la da vontade gérai, da religiâo civil. Na Rerum novarum, Leâo XIII pode pois limitar-se a estigma- ia n- tizar os malefîcios deste liberalismo na sociedade. Na primeira linha destes maleficios: a concentraçâo da riqueza, a acentuaçâo das con- as da intervençâo do Estado (RN, 25ss.). io îa e, ô- sequências das desigualdades naturais (RN, 14), as reticências diante Pio XI esboçarâ um paralelismo entre o socialismo e o libera lismo. Do mesmo modo que, para Leâo XIII, o socialismo é um falso remédio (RN, 3), igualmente para Pio XI, o liberalismo é 37 "impotente para resolver a questâo social" (QA, 11). Pio XI vai mesmo mais longe, pois explica que o liberalismo, ao favorecer de modo especial "o abandono religioso e moral" dos trabalhadores, favoreceu a aceitaçao do comunismo pela classe operâria (DR, 16). Pio XI constata também que, uma vez poderoso, o capitalismo extravasa o dominio econômico e exerce seu império no dominio polîtico (QA, 116); que o liberalismo engendra "o imperialismo econômico" e "o imperialismo internacional do dinheiro" (QA, 117). A mesma verificaçâo sera feita por Paulo VI a proposito do "liberalismo sem freio" (PP, 26). Paulo VI percebe além disso os sinais de uma renovaçâo do liberalismo, e recorda aos cristâos que a ideologia libéral requer da parte deles "um atento discernimento" (OA, 35). "Portanto, o cristâo que quer viver a sua fé na açâo politica concebida como um serviço nâo pode, sem contradizer-se, aderir a sistemas ideolôgicos que se opôem vivamente ou em pontos substanciais à sua fé e à sua concepçâo do homem: nem à ideologia marxista. . . nem à ideologia libéral. . ." (OA, 26). Na esteira da enciclica Rerum novarum, Joâo Paulo II denuncia o "sistema sociopolîtico libéral que favorece o sistema de injustiça e de preconceitos que clamam vingança aos céus" (LE, 8,4). O ensinamento, contudo, do Papa a proposito do" liberalismo inova em vârios pontos. Primeiro que tudo, Joâo Paulo II instrui o processo do otimismo iluminista, o quai inspira uma concepçâo de Deus considerando que o "progresso indefinido" é uma espécie de necessidade (SRS, 31; 27; 7). Nâo se trata mais aqui somente de uma discussâo sobre a origem do poder (como era o caso em Leâo XIÏI), mas de um alerta contra a autonomia total do homem, assim como a encaravam as Luzes. Esta autonomia total conduz diretamente ao livre exame, à exaltaçâo unilatéral da liberdade subjetiva, e logo à vontade de poder, ao culto da força, à ditadura, ao despotismo esclarecido, à sacralizaçao do Estado, expressâo soberana da razâo, enfim a todas as variantes e a todas as perversoes da ideologia libéral. Em seguida, Joâo Paulo II mostra a imbricaçâo do liberalismo e do socialismo marxista e sua malicia comum. A critica destes dois sistemas repousa primeiramente numa anâlise das situaçoes que eles engendraram e que num caso levaram ao superdesenvolvimento e no outro, ao coletivismo opressivo (SRS, 21). Ela repousa, além disso, no fato de que estas duas concepçôes — antagônicas — do desen volvimento dos homens e dos povos exacerbaram a preocupaçao com a segurança (SRS, 23; 29) e produziram a obsessâo da guerra. Ora, as 38 grandes vîtimas deste confronto sâo os paîses do Sul, envolvidos sem querer numa guerra total que nâo lhes diz respeito (SRS, 14; 21s.). Os paises do Sul sâo pois vîtimas de um "neocolonialismo" que assume os traços de um imperialismo renovado em seus métodos (SRS, 22; 36; 37; 39). O terceiro ponto que merece ser posto em relevo é a ideologia. Cada um dos dois grandes sistemas produz com efeito sua ideologia "legitimadora". Estas ideologias foram avaliadas, no seu conjunto ou em pontos particulares, pelos Papas anteriores. Joâo Paulo II con sidéra o fenômeno ideologico como tal. Ele vê ai a origem do biblo- quismo e das divisôes na sociedade humana (SRS, 36s.; 10; 20s.; 24). O mesmo ensinamento se encontra na Centesimus annus, mas com precisôes. As sociedades ocidentais nâo estâo ao abrigo da alienacâo (CA, 41b). Nestas sociedades pode mesmo "expandir-se uma ideologia radical de tipo capitalista [... ] que [... ] espéra [que se resolvam os problemas do subdesenvolvimento] do livre desenvolvimento das forças do mercado" (CA, 42c). Enfim, como é o caso para o marxismo, o erro'maior do liberalismo é de ordem antropolôgica. A ideologia libéral negligencia que "a liberdade eco nômica é apenas um elemento'da liberdade humana" (CA, 39c). Ela tende a considerar que a liberdade individual é tudo no homem, ao passo que "a liberdade nâo é plenamente valorizada senâo pelo acolhimento da verdade" (46d). Os alicerces do ensinamento social ulterior a s Vimos até o présente como, desde Leâo XIII, os Papas justificavam a intervençâo da Igreja em matéria social. Vimos igualmente, sempre a partir da Rerum novarum, como eram percebidos o so cialismo e o liberalismo. Veremos agora como se ampliam pouco a pouco os temas que sâo colocados desde 1891 e que aparecem a partir deste momento como os alicerces de todo o ensinamento ulterior. O bem comum 10 is Na Rerum novarum, Leâo XIII utiliza a expressâo "bem comum" ;s (RN, 37), mas da preferência à expressâo équivalente "interesse o comum" e lhe define o conteûdo. "O que faz uma naçâo prospéra, :>, sâo os costumes puros, famîlias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prâtica da religiâo e o respeito da justiça, uma imposiçâo moderada e uma distribuiçâo eqiiitativa dos encargos pûblicos, i- 31 IS 39 wWf- *r:,*A. o progresso da indûstria e do comércio, uma agricultura florescente e outros elementos do mesmo gênero, se os hâ, que se forem desenvolvidos aumentarâo na mesma medida a felicidade e o bem-estar dos cidadâos" (RN, 26). E Leâo XIII précisa logo o papel do Estado a este respeito: "É por todos estes meios que o Estado pode se tornar util as outras classes e ao mesmo tempo melhorar grandemente a sorte da classe operâria. Ele o fara em todo o rigor de seu direito e sem ter de temer a acusaçâo de ingerência, pois, em virtude mesmo de sua obrigaçâo, o Estado deve servir o interesse comum" (RN, 26). Desde a Rerum novarum, o essencial sobre estes pontos jâ esta dito. Pio XI emprega as expressôes bem comum ou "utilidade comum". Ele observa que para o bem comum pode contribuir a acumulaçâo dos recursos devidos aos "progressos da economia social". A distribuiçâo destes recursos deve fazer-se segundo as "exigências do bem comum" ou as "normas da justiça social" (QA, 63s.). Pio XI encara contudo esta questâo ainda na perspectiva herdada de Leâo XIII no que concerne as classes. "No seio dos agrupamentos corporativos a primazia pertence incontestavelmente aos interesses comuns da profissâo; entre todos, o mais importante é velar para que a atividade coletiva se oriente sempre para o bem da sociedade" (QA, 92; o grifo é nosso). Numa formula concisa, Pio XII se aproxima de Leâo XIII quando ressalta a natureza moral do bem comum. "Salvaguardar o dominio intangivel dos direitos da pessoa humana e lhe facilitar o cumprimento de seus deveres, deve ser o papel essencial de todo o poder pûblico. Nâo é isto q'ue comporta o sentido autêntico deste bem comum que o Estado é chamado a promover?" (Radiomensagem de Pentecostes, 1.° de junho de 1941). Deve-se a Joâo XXIII ter ampliado a reflexâo sobre o bem comum, estendendo-o ao dominio nacional e internacional (MM, 79s.). Aqui a perspectiva do Papa permanece centrada no aspecto econô mico do problema. Sob este ponto de vista determinado, Mater et magistra marca um ligeiro estreitamento em relaçâo à concepçâo de interesse comum exposta por Leâo XIII. É verdade que Pacem in terris ressoa com um tom diferente (PT, 132-141). "Em nossos dias o bem comum universal traz problemas de dimensôes mundiais". . . "A prôpria ordem moral. . . exige a constituiçâo de uma autoridade pûblica de competência universal" (PT 137; 132). Numerosas sâo as referências ao bem comum nos documentos conciliares. Uma das definiçôes clâssicas aparece na Gaudium et spes, 40 26. Encontra-se uma outra, na Dignitatis humanae, 6, que nos estudaremos mais adiante. Em razâo da unidade da famîlia humana, o bem comum universal exige "desde agora que a comunidade das naçôes se organize segundo uma ordem que corresponda as tarefas atuais — principalmente no que concerne a estas numerosas regiôes que ainda sofrem de necessidade intolerâvel" (GS, 84). O lugar reservado ao bem comum na Populorum progressio é bastante reduzido, quase sô alusâo (PP, 21; 31; 38). Contudo, se realçarâ que é em nome do bem comum que Paulo VI contesta a excessiva concentraçâo de recursos, mesmo no piano internacional (PP, 3) e que pode ser encarada a desapropriaçâo (PP, 24). É preciso esperar a Sollicitudo rei socialis para que a evoluçâo anunciada por Pacem in terris seja ratificada. O bem comum é aqui submetido a uma espécie de percepçâo invertida, acompanhada de mutaçâo qualitativa. Por percepçâo invertida, queremos dizer que até Paulo VI a reflexâo sobre o bem comum era feita geralmente àmpliando-se a partir da consideraçâo dos bens particulares: bens das pessoas, das famîlias, dos grupos intermediârios, das naçôes, para chegar enfim ao conjunto da sociedade humana. De agora em diante, segue-se antes o caminho.inverso: é a partir da consideraçâo do bem comum de toda a humanidade que se chega à consideraçâo dos bens particulares. Um caminho anâlogo é percorrido a proposito da propriedade: atualmente, é antes a partir da destinaçâo universaldos bens que se retoma o exame da apropriaçâo privada. Por mutaçâo qualitativa queremos significar que Joâo Paulo II nâo considéra o bem comum como uma realidade que possa ser descrita no piano empirico; é uma realidade que, na sociedade, desempenha um papel moral. Neste sentido é uma idéia normativa chamada a dar sentido ao conjunto do agir social. "Num mundo diferente [deste que acaba de ser descrito], dominado pela preocupa çao do bem comum de toda a humanidade, istoé, pela preocupaçao do 'desenvolvimento espiritual e humano de todos' e nâo pela busca do proveito individual, a paz séria possivel como fruto de uma 'justiça mais perfeita entre os homens'" (SRS, 10). Joâo Paulo II cita Populorum progressio no seu texto, mas ele liga o bem comum à "virtude" da solidariedade (PP, 76). Nâo basta mais falar da sociabilidade natural do homem. É preciso falar tam- bém "da interdependência sentida como um sistema necessârio^ de relaçôes no mundo contemporâneo, com seus componentes econômi41 mmàmm^m**- cos, culturais, politicos e religiosos, e elevado ao nîvel de categoria moral. Quando a interdependência é assim reconhecida, a resposta correspondente, como atitude moral e social e como "virtude" é a solidariedade. Esta. . . é a determinaçâo firme e persévérante de trabalhar para o bem comum; quer dizer para o bem de todos e de cada um porque todos somos verdadeiramente responsâveis por todos' (SRS, 38; cf. 39). Se o bem comum é à primeira vista menos explicitado na Cente simus annus, ele nâo é menos claramente afirmado a proposito do mercado (43a) como também a proposito do Estado (11b; 46a; 47b). Vamos contudo logo ver que a Centesimus annus articula sobretudo o bem comum com a destinacao universal dos bens. Quai a destinacao dos bens? O nûcleo da doutrina a este respeito é formulado com concisâo e exatidâo por Leâo XIII. "Todos os bens da natureza, todos os tesouros da graça pertencem em comum e indistintamente a todo o gênero humano" (RN, 21; cf. 19; 7). Contudo, reagindo contra o socialismo radical, Leâo XIII subli nha, contra este socialismo, o direito à propriedade privada. Este direito se baseia na natureza racional do homem, no trabalho humano, na famîlia. O homem nâo deve estar exposto aos caprichos de seus semelhantes, menos ainda ser dependente do Estado (RN, 5-11). Lendo a Rerum novarum tem-se, as vezes, a sensaçâo de que Leâo XIII hésita em questionar as estruturas da sociedade da época, que tanto explicam a concentraçâo das riquezas (contudo vivamente denunciada) como a pobreza. Pouco se diz, por exemplo, sobre o que deve ser feito a fim de facilitar o acesso dos operârios à propriedade. No entanto, à medida que ela desenvolve sua reflexâo sobre este ponto, constata-se que a Igreja procède a um deslocamento de acento. Enquanto ela partia do direito de propriedade privada para boa des tinacao universal dos bens, a Igreja tende cada vez mais a acentuar, como fazia Santo Tomâs (ST, II-II, qu.32, a.5 ad 2; qu.66, a.2; cf. RN, 19), a destinacao universal dos bens, retomando, a partir dai, o direito à propriedade privada. Este deslocamento de acento é ini- ciado por Pio XI (QA, 58; 62; DR, 44s.). É confirmado por Pio XII (RM de 1.° de junho de 1941; de 1.° de setembro de 1944; de 4 de abril de 1946). Contudo, com Joâo XXIII, é de novo o direito de propriedade privada que é amplamente sublinhado (MM, 109-118; PP, 21). A funçâo social da propriedade privada é, assim mesmo, 42 mencionada em razâo da destinacao universal dos bens (MM, 119; PT, 22). Com a Gaudium et spes (GS, 69-71), a destinacao universal dos bens volta definitivamente ao primeiro piano. Sem dûvida, os bens de que se trata sâo ainda concebidos numa perspectiva sensivelmente econômica, como era até entâo o bem comum. Mas o Concflio introduz um elemento novo de reflexâo. O bem comum dépende com efeito nâo somente do fato de que os recursos materiais sejam postos à disposiçâo de todos, mas ainda do fato de que todos os "bens culturais" (GS, 60), todas as "disponibilidades", todos os "meios es- pirituais" sejam empregados em benefîcio de todos (GS, 65,3). O bem comum requer pois que todos os recursos, inclusive humanos, sejam postos à disposiçâo da comunidade. Este ensinamento é resumido na Dignitatis humanae: "O bem comum da sociedade... (consiste) em primeiro lugar na salvaguarda dos direitos e deveres da pessoa hu mana" (DH, 6,1). No que concerne aos bens econômicos, sua propriedade, sem destinacao universal, Paulo VI na Populorum progressio résume as aquisiçôes anteriores: "Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, sâo subordinados a isto [à destinacao universal dos bens]" (PP, 22). A reafirmaçâo deste principio é fréquente no ensino de Joâo Paulo O, que mostra como este se harmoniza com o respeito à pro priedade privada (SRS, 22; 33; 42; CA, 6b; 30c), com a interde pendência e a solidariedade (SRS, 39; CA, 10c), com a opçâo preferencial pelos pobres e a intervençâo do Estado (CA, 11). Contudo, Centesimus annus introduz uma novidade capital, cu]as facetas nâo serâo desenvolvidas em sua totalidade senâo na conclusâo deste estudo. Limitar-nos-emos aqui a mostrar que Joâo Paulo II retoma o tema da destinacao universal dos bens a partir da reflexâo sobre o trabalho, empreendida na Laborem exercens. O trabalho humano é por natureza destinado a unir os povos (CA, 27c). Ele é ao mesmo tempo fonte e expressâo de solidariedade. No curso de seu desenvolvimento, o bem comum foi primeiramente pensado a partir da terra, dom de Deus, cujos recursos sâo destinados a todos. A seguir foi pensado a partir do capital, cuja funçâo social foi lembrada repetidas vezes. Mas Joâo Paulo II mostra aqui que o bem comum deve ser pensado a partir do sentido do trabalho humano (CA, 31-32). As exigências do bem comum sâo reformula- das a partir do trabalhador, cuja atividade tem a vocaçâo de unir 43 os homens. A integraçâo da sociedade humana nâo pode ser feita apenas pelo jogo das trocas referentes as coisas. "Parece que o problema essencial é obter um acesso equitativo ao mercado internacional, fundado nâo sobre o principio unilatéral da exploraçâo dos recursos naturais, mas sobre a valorizaçâo dos recursos humanos" (CA, 33d). Joâo Paulo II deduz dai varias conseqùências morais: "O fim da empresa nâo é unicamente a produçâo do lucro, mas a existência mesma da empresa como comunidade de pessoas..." (CA, 35c). O papel do mercado é reconhecido, mas "hâ numerosas necessidades humanas que nâo podem ser satisfeitas por ele" (CA, 34a; 43a). Por sua vez, estas necessidades devem ser definidas nâo sô pelos critérios de solvabilidade (CA, 34a), mas segundo uma "justa [con cepçâo] do homem e de seu verdadeiro bem" (CA, 36b). Donde o ensinamento sobre o consumo (CA, 36b), sobre a luta légitima dos trabalhadores e sobre suas associaçôes (CA, 35ab; 43ab). É igual mente à luz da mesma preocupaçao que é tratada "a questâo da ecologia" (CA, 37a), "a destruiçâo irracional do meio natural [. . .] a destruiçâo ainda mais grave do meio humano' (CA, 38a), enfim, as "responsabilidades [da humanidade de hoje] para com as geraçôes vindouras" (CA, 37b). Esta rica doutrina sobre a destinacao universal dos bens e sobre o bem comum, inverte, adivinha-se, a abordagem clâssica da pro priedade privada (CA, 6; 30; 43). Se nos recordarmos da energia despendida pela Rerum novarum para defender a propriedade priva da, conviremos que a Centesimus annus procède a um deslocamento de acento importante, cujas implicaçôes nâo tardarâo em aparecer em sua totalidade. O supérfluo e a desapropriaçâo Esta evoluçâo da sensibilidade a proposito da destinacao uni versal dos bens acarreta forçosamente uma sensibilidade nova diante de outros problemas. Tal é o caso do supérfluo (RN, 19; QA, 55; MM, 121; GS, 69,1; PP, 49), que reencontraremos mais adiante a proposito da solidariedade. Tal é também o caso da desapropriaçâo, que merece uma anâlise mais detida em razâo, notadamente, da importância que o assunto reveste quando se trata do problema da reforma agrâria. O ensino clâssico a este respeito baseia-se na distinçâo entre o direito de propriedade e o emprego legitimo deste direito (RN, 19). Este ensinamento é confirmado e determinado com exatidâo por 44 Pio XI: "É... erradamente que alguns pretendem encerrar em limites idênticos o direito de propriedade e o seu legîtimo uso; é mais falso ainda afirmar que o direito de propriedade caduca e desaparece pelo abuso que se faz dele ou porque se deixam sem uso as coisas pos sédas" (QA, 52). Ora, à medida que a consideraçâo da destinacao universal dos bens e do bem comum prédomina sobre a consideraçâo do bem particular e da apropriaçâo privada, o problema da desapropriaçâo é fatalmente submetido a uma nova luz. Esta nova iluminaçâo começa a aparecer com o prôprio Pio XL A proposito do problema agrârio, da reduçâo das grandes proprieda- des, Pio XI previa a légitima intervençâo dos poderes pûblicos em vista de uma distribuiçâo mais justa do solo e de uma melhor utilizàçâo dele. Nota-se que a consideraçâo do bem das pessoas e da comunidade prédomina sobre a consideraçâo dâ apropriaçâo particular de bens materiais. "Importa aplicar estes principios fecundos [da doutrina da Igreja] a fim de resolver as grandes questôes sociais. Como por exemplo, o problema agrârio, a reduçâo das grandes propriedades... Mesmo querendo sempre salvaguardar a essência dos direitos primordiais e fundamentais, como o direito de propriedade, o bem comum impôe as vezes restriçôes a estes direitos e um recurso mais fréquente que no passado à aplicaçâo da justiça social" (Carta apostôlica Nos es muy, 28 de março de 1937). Este clima novo se confirma no ensino de Pio XII, em particular no seu Discurso aos agricultores de 16 de novembro de 1946. A este texto, convém ajuntar a Carta de Mous. Montini ao Présidente da Açâo catôlica italiana, datada de 15 de novembro de 1947. Esta sensivel evoluçâo foi confirmada pelo Concflio, que recomenda "favorècer o acesso dos indivîduos e dos grupos" à "proprie dade privada ou [a] um certo poder sobre os bens exteriores" (GS, 71,1-2). Um principio incisivo é aqui enunciado: "O Estado tem... competência para impedir que se abuse da propriedade pri vada contrariamente ao bem comum" (GS, 71,4). Este principio é imediatamente aplicado ao problema da reforma agrâria. Contempla-se mesmo "repartir as propriedades insuficientemente cultivadas em benefîcio de pessoas capazes de. cultivâ-las... Todas as vezes que o bem comum exigir a desapropriaçâo, a indenizaçâo. deverâ ser avaliada conforme a eqùidade, levando-se em conta todas as circunstâncias" (GS, 71,6). Realcemos aqui que a repartiçâo das propriedades é encarada em razâo do uso irisuficiente que delas se faz, mas ela 45 vem acompanhada de uma condiçâo: a indenizaçâo. Constatamos que a Populorum progressio, que cita este parâgrafo de Gaudium et spes, nâo julgou oportuno relembrar explicitamente esta condiçâo. A Laborem exercens retoma nosso problema. Aqui, a defesa da propriedade privada nâo esta mais no primeiro piano; a primazia cabe diretamente ao trabalho ou mais precisamente ao trabalhador. Os meios de produçâo "nâo poderiam ser possuidos contra o tra balho . . . porque o ûnico titulo legîtimo para a sua posse. . . é que eles servem ao trabalho e que em conseqùência, servindo ao traba lho, eles tornam possivel a realizaçâo do primeiro principio desta ordem que é a destinacao universal dos bens* e o direito a seu uso comum" (LE, 14,3). No seu ensino sobre a propriedade, a Igreja "procura sempre assegurar o primado do trabalho e por meio dele, a subjetividade do homem na vida social. . ." (LE, 14,4). Esta referência ao trabalho e ao trabalhador comanda a atitude da Igreja diante da apropriaçâo privada por um grupo como também diante da apropriaçâo coletiva (LE, 14,6). Nem esta nem aquela asseguram automaticamente a destinacao universal dos bens. É por sua doutrina sobre o trabalhador que Joâo Paulo II reativa assim o ensino tradicional sobre a destinacao universal dos bens, como também a crîtica cristâ do "capitalismo rigido" e do "coletivismo". Mais ampla ainda é a perspectiva da Sollicitudo rei socialis. Joâo Paulo II nela expôe que o que bloqueia o acesso de povos pacificos aos bens destinados a todos os homens, é a existência dos dois blocos, sua tendência ao imperialismo, a inquiétude pela sua prôpria segurança (SRS, 22,3). Joâo Paulo II faz valer um novo direito para se beneficiar destes bens: é a igualdade fundamentai dos povos assim como dos indivîduos, que funda o "direito de todos a participar do processo de desenvolvimento intégral" (SRS, 33). Ele vê além disso nesta destinacao universal dos bens um fundamento para a solidariedade: "A interdependência deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre o principio de que os bens da criaçâo sâo destinados a todos" (SRS, 39; cf. 42). Fica claro que para Joâo Paulo II, a antitese da destinacao universal dos bens é o superdesenvolvimento (SRS, 28). Trata-se ai de uma nova forma de concentraçâo (cf. RN, 2), de uma "disponibilidade excessiva de todas as espécies de bens materiais para certas camadas da sociedade",.de uma "civilizaçâo de consumo, que com porta tantos 'desejos' e 'refug'os' " (SRS, 28,2), que escraviza aqueles que delà se aproveitam e fere aqueles que delà nâo fazem parte. 48 E por aï Joâo Paulo II reencontra o tema clâssico do supérfluo (SRS, 31,7). Em razâo do fundamento antropologico que Joâo Paulo II traz à destinacao universal dos bens na Centesimus annus, o Papa enri- quece a doutrina concernente à propriedade dos meios de produçâo com um desenvolvimento digno de atençâo. Esta passagem constitui uma explicaçâo daquilo que é dito em outra parte a respeito do capitalismo (CA, 42b): "A propriedade dos meios de produçâo... é justa e légitima, se ela permite um trabalho util; pelo contrario, ela se torna ilegîtima quando nâo é valorizada ou quando serve para impedir o trabalho dos outros para obter um ganho [que antes provém] da exploraçâo ilîcita, da especulaçâo e da ruptura da solida riedade no mundo do trabalho. Este tipo de propriedade nâo tem nenhuma justificativa e constitui um abuso diante de Deus e diante dos homens" (CA, 43c). Deste ensinamento decorrem conseqûências considerâveis ao nîvel da desapropriaçâo. Nesta questâo, a histôria dos régimes comunistas mostrou que o Estado, pretendendo fazer desaparecer a propriedade privada, acabou por transformar os cidadâos numa coorte de assistidos. O ensino da Centesimus annus sobre a concepçâo inadmissîvel do capitalismo implica que o Estado nâo sai de seu papel subsidiârio se ele intervém para remediar os abusos aos quais pode dar lugar o capitalismo a proposito da propriedade privada dos meios de produçâo. Se se leva em conta simultaneamente a experiência comunista e a experiência do capitalismo na versâo inadmissîvel deste ûltimo, conclui-se com fundamento que a Centesimus annus coloca em açâo o principio de subsidiariedade para esclarecer o problema da desapro priaçâo. A reflexâo sobre este ponto é o reflexo exato do deslocamento de acento que, partindo da propriedade privada — sobre a quai insistia Leâo XIII — conduz à destinacao universal dos bens — que Joâo Paulo II acentua. Segundo a Centesimus annus, pode acontecer que o Estado, preocupado com o bem comum, possa e até mesmo deva considerar as desapropriaçôes. Todavia, o exercicio deste direito, até mesmo deste dever, deverâ ser moderado pelo principio de subsidiariedade. Esta intervençâo do Estado deverâ ser limitada no seu alcance e na sua duraçâo. Ela deverâ sempre ter em vista o bem das pessoas e dos grupos intermediârios, assim como a preocupaçao de nâo naufragar no coletivismo. A evoluçâo que nos realçamos aqui é ainda perceptivel no deslocamento de acento concernente à propriedade privada mesma. 47 W&$&$r"-"'- ^SS^^^J^M^WBtiti^^ A Rerum novarum, sublinhando o direito de propriedade privada, contava naturalmente com o Estado para fazer respeitar este direito. Desde Joâo XXIII (MM, 113), a doutrina social da Igreja sublinha sobretudo o direito à propriedade privada, e, no respeito do principio de subsidiariedade, reconhece o papel positivo do Estado na promoçâo deste direito. A dignidade da pessoa humana Por que os direitos do homem? A linguagem da Rerum novarum sobre a pessoa é as vezes desconcertante para os leitores familiarizados com a antropologia contemporânea. Para estes leitores, é talvez surpreendente descobrir que o autor da mais velha das enciclicas sociais afirma a necessidade das desigualdades entre os homens, a ponto de chegar, como se viu, a considerar que a sociedade humana era dividida em duas classes. O contexte onde esta explicada esta desigualdade entre os ho: mens permite porém compreender o pensamento. de Leâo XIII (RN, 14). La onde Leâo XIII fala de desigualdades, nossos contem porâneos falariam antes de diferenças. O possivel mal-entendido vem do fato de que nâo se poderia extrair argumente das desigual dades de fato, isto é, das diferenças reais, entre os homens, para justificar desigualdades de direito, como se faz em todos os sistemas sociais organicistas. Leâo XIII, de reste, toma cuidado de explicar que, quando fala de desigualdades, significa as diferenças. É claro que o Papa tem em mira a igualdade de dignidade de todos os seres humanos, mesmo se, em razâo de suas diferenças naturais, eles exercem funçôes entre as quais se pode estabelecer uma hierarquia (RN, 32; 21). Que Leâo XIII tenha querido insistir sobre a igualdade de dignidade de todos os homens é o que transparece de toda a. sua argumentaçâo. É em nome desta dignidade que ele condena a "situa çâo de infortunio e de miséria imerecida" (RN, 21) na quai se encontram os operârios. Ë em nome desta dignidade que ele pede que sejam respeitadas as condiçôes de trabalho em funçâo do sexo, da idade, da saûde, da natureza do trabalho; que seja assegurado o repouso semanal; que o Estado faça respeitar esta dignidade e a promova (RN, 32s.). 48 É ainda em razâo da dignidade do trabalhador que o trabalho nâo pode ser considerado como uma mercadoria (RN, 16). É por isso, esclarece Pio XI, que nâo se pode "trocâ-lo como uma merca doria qualquer" (QA, 90; 109). Pio XI chega a transpor um limiar. Ele assinala o nascimento de "um novo direito... que o século passado ignorava completamente": o direito ao trabalho, que deve ser protegido pelo Estado (QA, 30). Todo este ensinamento permanece evidentemente central na catequese de Pio XII, em particular em sua Radiomensagem de 24 de dezembro de 1942. Joâo XXm coloca esta dignidade na primeira ordem dos verdadeiros valores (MM, 192). Por isso, "se as estruturas... sâo de natureza a comprometer a dignidade humana... julgamos este siste ma injuste" (MM, 83). A qualidade do tecido social, o "respeito dos direitos, o cumprimento das obrigaçôes, a cooçeraçâo numa multidâo de atividades" dépende de decisôes pessoais, nâs quais.se exprimem as determinaçôes conscientes e livres, exigências da dignidade da pessoa humana (PT, 34). É porém na Gaudium et spes que se afirma uma nova insistência no lugar da pessoa no ensino da Igreja a respeito da sociedade. A influência da fenomenologia existencial e do personalismo sobre o Vaticano II é patente aqui. Nâo somente o homem, criado à imagem de Deus, é o centro e o âpice de toda a criatura (GS, 12,1), mas toma cada vez mais consciência de sua dignidade (GS, 26,2), de sua capacidade de agir segundo a sua consciência (GS, 16) e livremente (GS, 17). O enraizamento teologico desta dignidade é mais explici- tada aqui do que nos textes anteriores. O que manifesta esta digni dade é a capacidade do homem de reconhecer Deus (GS, 21,3), de dialogar com ele (GS, 19,1). Esta dignidade é assegurada pelo Evangelho, confiado à Igreja (GS, 41,2). No entanto, ainda que os direitos dos homens, proclamados pela Igreja em virtude do Evangelho, se beneficiem atualmente de um novo impeto, "este movimento... deve ser garantido contra toda idéia de falsa autonomia. Estamos com efeito expostos à tentaçâo de estimar que nossos direitos pessoais nâo sâo plenamente mantidos a nâo ser quando estamos desobrigados de qualquer norma da Lei divina. Mas, seguindo esta via, a dignidade humana, longe de ser salva, se desvanece" (GS, 41,3). O Concîlio reincorpora desde logo as réservas emitidas por Leâo XIII a proposito do Iluminismo e de sua concepçâo da sociedade polîtica. Esta afirmajçâo da dignidade do homem é retomada e exaltada na declaraçâo sobre a liberdade religiosa (DH, 2,1), 49 Algumas das exigências desta dignidade serâo retomadas nas doutrinas posteriores. Paulo VI mencionarâ a alfabetizaçâo (PP, 35); ele farâ alusâo àquilo que se chamarâ por vezes "conscientizaçâo" (PP, 9; 34); ele falarâ das migraçôes (PP, 66-69) e do racismo (PP, 63). Joâo Paulo II retoma a reflexâo a partir destes diferentes temas e os compléta. Sublinha a dignidade dos déficientes (LE, 22), a necessidade da alfabetizaçâo (SRS, 15; 44); denuncia, como indignas do homem, as campanhas antinatalistas das quais os pobres sobretudo têm de pagar os custos (SRS, 18; 25s.; CA, 3b; 39c; 47a). Joâo Paulo II vai, porém, mais longe na medida em que expli cita sistematicamente todas as conseqûências da dignidade da pessoa humana. Esta explicitaçâo, pode-se ver, encontra suas expressôes nas declaraçôes reiteradas do Papa referentes aos direitos do homem. É verdade que anteriormente a Igreja, através de Pio XII, tinha pro- cedido a declaraçôes destes direitos (Radiomensagem de Pentecostes de 1941, 21; MM, 157; PT, 11-27; GS, 26,2; etc.). Mas com Joâo Paulo II, estes direitos se tornam a ossatura do ensino social da Igreja (CA, 21s.; 26c; 47s.; 54b). A primeira grande declaraçâo por ordem cronolôgica nâo é outra senâo a enciclica programa Redemptor hominis (1979), que vê no respeito dos direitos do homem o fundamento da paz e da harmonia na sociedade humana (RH, 17). A enciclica Sollicitudo rei socialis pôe este ensinamento em açâo, nô dominio da doutrina social. Num sentido, o que a Igreja recomenda é que sejam respeitados e promovidos os direitos do homem no nivel dos povos e das naçôes, como no dos indivîduos (SRS, 26; 33). "Quando os indivîduos e as comunidades nâo vêem rigorosamente respeitadas as exigências morais, culturais e espirituais fundadas na dignidade da pessoa e na identidade prôpria de cada comunidade, a cpmeçar pela famiha e pelas sociedades religiosas, todo o reste... se provarâ insatisfatôrio e, a longo prazo, desprezivel" (SRS, 33). Se é verdade que "os bens deste mundo sâo originalmente destinados a todos" e que os direitos do homem, isto é, o respeito ativo de sua dignidade figura na primeira categoria dos bens e dos valores (MM, 192), entâo a açâo pelo desenvolvimento deve obedecer a uma prioridade: "Nâo se deverâ negligenciar, no engajamento pelos pobres, a forma especial de pobreza que.é a privaçâo dos direitos fundamentais da pessoa, em particular da liberdade religiosa, e, além disso, do direito à ini- ciativa econômica" (SRS, 42). Joâo Paulo II leva também em conta o fato de que os direitos da pessoa humana sâo vividos em contextes sociais tendo cada quai 50 a sua originalidade. Prolongando o ensinamento de Joâo XXIII (MM, 169s.; 176s.; PT, 123; 125), o> Papa nâo hésita em falar da "personalidade da sociedade" (CA, 13bc) e a reconhecer esta na naçâo (CA, 50), até mesmo na cultura (CA, 51). Aludindo discretamente aos teôlogos que foram no século XVI pioneiros do internacionalismo moderno, Joâo Paulo II lembra que para além do seu engajamento pelos direitos dos indivîduos, a Santa Se trouxe uma constante contribuiçâo ao "direito dos povos" e aos direitos das naçôes (CA, 21a). Uma inversâo significativa Desde a Rerum novarum a doutrina social da Igreja confère um lugar central ao fundamento da dignidade da pessoa humana (RN, 16), que o Estado deverâ fazer respeitar (RN, 32). Esta digni dade, que o homem possui jâ no piano natural, é ainda "elevada" pela sua dignidade de cristâo. Leâo.XIII faz explicitamente eco ao ensinamento da Escritura: "É a aima que traz gravada em si a ima gem e a semelhança de Deus. É nela que réside esta soberania da quai o homem foi investido quando recebeu a ordem de submeter a natureza inferior e de por a seu serviço as terras e os mares" (RN, 32). O homem, com efeito, esta ordenado ao seu fim ûltimo: a bem-aventurança eterna (RN, 18; 32). É por. isso que Leâo XIII relativiza o sofrimento, relacionando-o com a peregrinaçâo do homem sobre a terra; mas sobretudo dando-lhe um sentido em razâo do fim para o quai tende a existência humana no mundo (RN, 14; 18). Este fim ûltimo nâo justifica todavià de maneira nenhuma a falta de engajamento dos cristâos na sociedade: eles devem cooperar ativamente para implantar a ordem, para a harmonia — dirîamos hoje: a paz interna das naçôes e sua paz externa (RN, 15). Rejeitando a antropologia maniqueîsta subjacente ao socialismo que ele denunciou, Leâo XIII mostra que, jâ no piano natural, o homem é capaz de trabalhar em vista desta sociedade ordenada onde os homens se complementam. Ele fala de "concôrdia"; faz alusâo a Aristôteles quando fala da "amizade" entre os homens (RN, 18); quase imediatamente realça que "é ainda muito pouco a simples amizade: se se obedece aos preceitos do cristianismo, é no amor fraterno que se operarâ a uniâo" (RN, 21). É isto que justificarâ mais adiante um desenvolvimento sobre a caridade (RN, 45). A afirmaçâo da dignidade da pessoa continua a ser, desde Leâo XIII, a luz que ilumina todos os problemas exàminados no 51 quadro da doutrina social da Igreja. Segundo esta doutrina, assegura Pio XI, "o fim para o quai o homem dotado de uma natureza social se acha colocado sobre a terra, é que, vivendo em sociedade e sob uma autoridade emanada de Deus, ele cultiva e desenvolve plenamen- te todas as suas faculdades para o louvor e a glôria de seu Criador, e que, preenchendo fundamentalmente os deveres de sua profissâo ou de sua vocaçâo, qualquer que ela seja, ele assegura simultaneamente a sua felicidade temporal e eterna" (QA, 128). Pio XI prolonga igualmente a reflexâo encetada por Leâo XIII a partir da amizade; ele a prossegue aprofundando o tema da fraternidade (QA, 14; 148), da caridade social (QA, 95). Realcemos especialmente o aparecimento da idéia da solidariedade nâo somente entre as profissôes (QA, 75) mas também, no piano econômico, entre as naçôes (QA, 96). Os documentos posteriores nâo vâo simplesmente reafirmar a eminente dignidade da pessoa; eles vâo também deduzir dai algumas conseqiiências ricas de implicaçôes sociais. Mater et magistra recomendarâ que, na organizaçâo da vida econômica, seja levada em conta em primeiro lugar esta dignidade (MM, 82ss.). No dominio politico, esta dignidade pode mesmo justificar a resistência à autoridade, até mesmo a objeçâo de consciência (PT, 50s.). Mais positivamente, para Joâo XXIII a dignidade da pessoa nâo é honrada la onde a sociedade nâo respeita a verdade, a justiça, o amor, a liberdade (PT, 45). Em razâo mesmo de sua inspiraçâo personalista, Gaudium et spes nâo podia deixar de dar consistência a.este ensinamento. Os homens têm uma consciência cada vez mais viva de sua dignidade (GS, 26,2), dignidade tal que crentes e descrentes "estâo geralmente de acordo neste ponto: todas as coisas na terra devem estar ordenadas ao homem como a seu centro e ao seu âpice" (GS, 12,1). Esta dignidade constitui o objeto de uma exposiçâo doravante clâssica que o Vaticano II detalha na Gaudium et spes (GS, 12-22). Este ensinamento ecoa na Populorum progressio (PP,21). Paulo VI faz valer ai principalmenté que é em nome desta dignidade que devem ser empreendidas "transformaçôes audaciosas, profundamente inovadoras" (PP, 32), em vista de uma "civilizaçâo de amor" (Homilia de encerramento do Ano Santo, 25 de dèzembro de 1975; CA, 10c). É ainda à luz desta dignidade que devem ser encarados os problemas demogrâficos (PP, 37), assim como a cooperaçâo, num espirito solidârio (PP, 43-48), entre paîses ricos e paises pobres 52 (PP, 54). Em nenhum caso, o homem poderâ ser sacrificado as exigências de uma estratégia qualquer (Evangelii nuntiandi, 33). A originalidade e a riqueza do ensinamento social de Joâo Pau lo II baseia-se essencialmente no fato de que seu ensinamento sobre a dignidade do homem se reporta a uma aritropologia filosôfica e teolôgica estruturada, estabelecida, pelo essencial, desde a época em que Karol Wojtyla se consagrava ao ensino ùniversitario em Lublin. Diga-se de passagem, esta antropologia subjaz a todos os outros aspectos da catequese do Papa. Esta doutrina sobre o homem aparece desde a Redemptor hormnis (cf. em particular os n.os 10; 13) e esta explicitada na Laborem exercens. Os Papas précédentes estudavam qùestôes particulares (trabalho, salârio, propriedade, empresa, classes, régimes, associaçoes etc.) em si mesmas. Claro que estudavam estas qùestôes à luz da dignidade dp homem. Com Joâo Paulo II, esta perspectiva clâssica se altéra: tudo parte da questâo central; a do homem, e todas as qùestôes particulares se articulam em torno deste polo. Sem abiisar da expressâo, pode-se dizer que foi ainda de Cracôvia que veio esta nova "revoluçâo copernicana"! Ê sempre p homem que é primeiramente olhado, mesmo se o é sob diferentes formalidades: como operâ- rio, como agricultor, como responsâvel polîtico, como proprietârio, como chefe de empresa, como sindicalizado, como pai de famflia etc. Esta inversâo significativa — preparada a bem dizer desde Leâo XIII — é perceptîvel desde 1979 e se consuma a partir da Laborem exercens (1981), onde o ensino se réfère ao trabalhador mais que ao trabalho. "O homem deve submetér a terra, ele deve dominâ-la, porque, como 'imagem de Deus', ele é uma pessoa, isto é, um sujeito, um sujeito capaz de agir de uma maneira programada e racional, capaz de decidir sobre si mesmo e com tendência a se realizar ele prôprio" (LE, 6,2). Levando-se em conta o panorama mundial atual, a Sollicitudo rei socùdis exporâ que, poste que no trabalho o que conta é o trabalhador, o desenvolvimento nâo poderia ser reduzido a um problema econômico; é um problema moral (cf. SRS, 8-10; 15; 28-30; 33-37; 41; 46 etc.), que sô pode ser resolvido se se levar em conta a igualdade dos homens e dos povos (SRS, 9; 33; 39) e se inspirando numa teologia da solidariedade cujo fun damento teolôgico é exposto na Sollicitudo rei socialis (SRS, 3840) e cuja riqueza a Centesimus annus difrata (CA, 10c), aplicando-a àos mais fracos (CA, 15e), aos conflitos (CA, 22b), as comunidades de trabalho (CA, 32c) e, em gérai, as "relaçôes de comunhâo" (CA 41bc; 43c). É determinado com precisâo que a exigência de solida53 riedade é atualmente erigida em "principio de solidariedade" (CA, 10c; 15e) — uma exigência tornada particularmente urgente em razâo da interdependência dos povos (SRS, 36-39; CA, 28c; 51b). Reagindo contra as antropologias inaceitâveis do socialismo e do liberalismo, Joâo Paulo II acrescenta, na Centesimus annus, que a grandeza do homem dériva da sua capacidade de concordar livremente o seu comportamento com a verdade: "O homem é antes de tudo um ser que busca a verdade e que se esforça por viver segundo esta verdade" (CA, 49c). Quanto ao erro, "consiste numa concepçâo da liberdade humana que a subtrai à obediência, à verdade e portanto também ao dever de respeitar os direitos dos outros homens" (CA, 17a). A justiça nas trocas A remuneraçâo do trabalho ! i À medida que colocava o homem no primeiro piano de seu ensinamento social, a Igreja era levada a retomar em profundidade a questâo do trabalho e de sua remuneraçâo. Desde a Rerum novarum, o que é dito sobre o "juste salârio" se sobressai em.relaçâo ao que dizem correntemente os homens de negocio da época. Leâo XHÏ faz uma afirmaçâo "revolucionâria" ao dizer que o trabalho nâo pode ser considerado como uma simples mercadoria que obedece a leis puramente econômicas (RN, 16). Uma tal concepçâo do salârio dévia necessariamente chocar os defensores de um estrito liberalismo. Na fixaçâo do salârio, "hâ numerosos pon tos de vista a considerar" (RN, 17). Um destes pontos de^vista é particularmente importante porque diz respeito à familia. Leâo XIII parece hesitar em tirar as conclusôes das premissas que, contudo, ele estabelece e que, logicamente, poderiam tê-lo levado a preconizar nâo somente o salârio vital mas também o salârio familiar. Com efeito, o que conta aos seus olhos, nâo é o trabalho-mercadoria, é o trabalho-serviço, e primeiramente serviço da familia. "A natureza impôe ao pai de familia o dever sagrado de nutrir e manter os seus filhos de se preocupar com o seu futuro e de criar um patrimônio que os ajude a defender-se" (RN, 10; cf. 35). Mais ainda, uma das origens da propriedade privada se encontra no trabalho. Ora, nota o Papa, "este direito de propriedade que nos temos, em nome mesmo ^da natureza, reivindicado pelo indivîduo, deve ser sobretudo transferido ao homem, chefe da familia" (RN, 9). 54 Prolongando este ensinamento, Pio XI acolherâ explicitamente o direito ao salârio familiar (QA, 76-81). De Leâo XIII a Pio XI, a simples conjunçâo e marca a continuidade e a diferença: "Deve-se pagar ao operârio um salârio que lhe permita prover à sua subsistência e à dos seus" (QA, 77). Quadragesimo anno acrescenta que na determinaçâo do juste salârio é preciso levar em consideraçâo, além disso, a situaçâo da empresa, do bem comum (QA, 76), assim como o papel da mulher e da mâe (QA, 77). Sobre a remuneraçâo do trabalho, os pontos essenciais da dou trina sâo assim fixados, com tal grau de caracterizaçâo que, vinte e seis anos mais tarde, a Populorum progressio nâo menciona praticamente mais este problema (PP, 36). Estes pontos, contudo, sâo retomados, por exemplo, na Divini Redemptoris (49s.), na Mater et magistra (71s.), na Laborem exercens (19,1-2). Esta ûltima enciclica retoma o problema levando em conta a familia e sublinhando a atençâo dévida à mulher (LE, 19,3-6). Pouco a pouco esta concepçâo de juste salârio sera ampliada^a outras formas de remuneraçâo ou de trocas. Ela sera estendida as relaçoes entre os paises ricos e os paises em via de desenvolvimento por Pio XI (QA, 66), por Joâo XXIII (MM, 103; PT, 91), pelo Vaticano II (GS, 85), por Paulo VI (PP, 56-61), por Joâo Paulo II (SRS, 14; 19; 43), que faz um apelo à maior equidade a proposito do mercado em gérai (CA, 34a) e nas trocas com os "paises mais pobres" (CA, 33d); Da justiça à misericôrdia O que acabamos de ressaltar mostra à evidência que, no ensino sobre o trabalhador e sua remuneraçâo, a Igreja nâo esta somente preocupada com a justiça comutativa, mas sobretudo com a justiça distributiva. Levando em conta as exigências desta ûltima forma de justiça, Leâo Xffl recomendarâ, antes que se falasse disto, a opçâo preferencial mas nâo exclusiva pelos pobres (RN, 27; 24). No entante, do mesmo modo que se observa um deslizamento J de acento da propriedade privada para a destinacao universal dos bens (como assinalamos mais acima), assim também se observa um * de "justiça social", que acompanha a distribuiçâo de recursos deste > . > deslizamento de acento da consideraçâo do bem particular para a consideraçâo do bem comum. A este corresponde o que Pio XI chama mundo (QA, 64). A justiça social tem por funçâo "impor aos membros da comunidade tudo que for necessârio ao bem comum 55 (DR, 51). A ampliaçâo do conceito do bem comum à escala do mundo e de toda a comunidade humana (PP, 76) acarretarâ, com Paulo VI, uma correspondente ampliaçâo da justiça social: "A liber dade das trocas [internacionais] so é eqûitativa se for submetida as exigências da justiça social" (PP, 59). É porém ainda de Joâo Paulo II que este ensinamento receberâ um novo impulso. Este é dado na Dives in mericordia (1980), onde o Papa reformula uma teologia da justiça em termos de teologia da misericôrdia. Ulteriormente, como se viu, na Sollicitudo rei socialis, o Papa reformula uma teologia da caridade em termos de teologia da solidariedade. No coraçâo da argumentaçâo do Papa acha-se a afirmaçâo segundo a quai nos participamos — incompletamente, imperfeitamente, sem dûvida — na fonte magnifica do amor misericordioso, que nos foi nele [Jésus Cristo] revelado" (DM, 14,3). "A misericôrdia autêntica é, por assim dizer, a mais profunda fonte de justiçcT (DM, 14,5). Nos que fomos justificados por pura graça, devemos encontrar na graça a motivaçâo ûltima de nosso engajamento pela justiça no mundo. Esta teologia do "amor pelo homem... se traduz concretamente pela promoçâo da justiça" (CA, 58a), cujas exigências sô sâo plenamente reveladas pela fé (CA, 54a). O principio de subsidiariedade Todo o ensino da Igreja sobre a participaçâo econômica e politica decorre do ensino que ela desenvolve a proposito da subsidiariedade. O principio de subsidiariedade é a prôpria essência da doutrina da Igreja sobre a democracia, encarada em todas as suas dimensôes. Sabe-se que a palavra latina subsidium significa ajuda. Em virtude do principio da subsidiariedade, os poderes pûblicos devem ajudar os indivîduos e os corpos intermediârios a tomar as iniciativas de que sâo capazes sem se substituir a eles. Mais precisamente, este principio estipula que o Estado — ou de modo mais gérai, os poderes pû blicos — devem desempenhar um papel subsidiârio, quer dizer, ajudar os corpos intermediârios e os indivîduos a tomar as iniciativas que eles sâo capazes de tomar para o maior bem da sociedade. O Estado pois nâo deve substituir-se a eles, despojâ-los da sua justa capacidade de iniciativa. Este principio funda-se sobre o fato de que cada homem, cada grupo intermediârio é fonte de originalidade: a este titulo, ele deve poder exprimir-se; a este titulo também, a sociedade tem o direito de esperar dele uma contribuiçâo insubstituivel. 56 Veremos que o campo de aplicaçâo deste principio nâo cessou de se.estender, o que requer e justifica uma exposiçâo particularmente alentada que se prolongarâ no artigo seguinte consagrado à ajuda ao desenvolvimento. A familia, ^comunidade social de base" O primeiro dominio onde se aplica o principio de subsidiariedade é a familia. O que assinalamos a proposito do salârio jâ nos fez perceber porque a familia era objeto de uma especial atençâo da Igreja. Jâ a Rerum novarum afirma que ela deve ser protegida pelo Estado (RN, 11) e este ensinamento nâo somente consta nos documen tes sociais mas também num grande numéro de outros documentes onde é abordada a doutrina da Igreja sobre a familia. No seu ensino social, a Igreja — recorda-se — interessou-se primeiramente pela familia no contexto da propriedade privada e da remuneraçâo do trabalho. Mas circunstâncias novas levàrao o Magis tério a desenvolver este ensinamento. O nazismo, por exemplo, levan do as ûltimas consequências certes excessos do socialismo jâ denunciados por Leâo Xffl, contestarâ a liberdade de educaçâo que compete à familia; chegarâ mesmo ao ponto de pretender colocar a educaçâo a serviço do Estado. Inspirando-se no principio de subsidiariedade, Pio XI denuncia pois esta ingerência indevida na Mit brennender Sorge (n. 51). Os Papas subséquentes ampliam esta advertência: o Estado nâo deve abusar do seu poder monitorando o comportamento dos pais no dominio da transmissâo da vida (MM, 193-196; CS, 87,3; PP, 37; SRS, 25; CA, 39; 47): aqui também o principio de subsidiariedade é poste em açâo. A familia é contudo uma realidade natutàl sui generis. Ela é o protôtipo e a base da comunidade humana. Na sua base, acha-se um casai de pessoas sensivelmente da mesma geraçâo. No entante, na familia se reûnem também pessoas de geraçoes dîferentes (GS, 52,2; PP, 36). Joâo XXm pusera em relevo a especificidade social da célula familiar: "A familia, fundada no matrimônio livremente con- traido, uno e indissolûvel, é e deve ser considerada a célula primeira e natural da sociedade. Dai a obrigaçâo de medidas de ordem econô mica, social, cultural e moral, dé sorte a consolidar-lhe a estabilidade e a facilitar-lhe o cumprimento do papel que lhe incumbe" (PT, 16). Joâo Paulo II recorda isto em duas formulas concisas que apresentam a familia como a "comunidade social de base" (SRS, 33) ou "como uma comunidade de trabalho e de caridade" (CA, 49b). 57 _ Os corpos intermediârios No fim do século XIX, a insistência na iniciativa dos corpos intermediârios, isto é, das associaçôes que se formam por assim dizer a meio caminho entre os indivîduos, de uma parte, e o Estado, de outra, era de natureza a chocar os adeptos do individualismo libéral. Contudo, Leâo XIII nâo se cansa de recomendar diversas formas de associaçôes, nascidas da livre iniciativa dos homens e em particular dos trabalhadores (RN, 36; 39; 41-44). O ensino sobre os corpos intermediârios, e em particular, sobre as associaçôes profissionais, sera constantemente reexposto. Bento XV, por exemplo, recordando a Rerum. novarum (RN, 36), recomenda que patrôes e operârios se provejam de organizaçôes de conciliaçâo (Carta de 17 de junho de 1920, Intelleximus ex eis ao Patriarca de Veneza). Este direito de associaçâo é particularmente sublinhado por Pio XI na Quadragesimo anno (QA, 86-88; 99). Afirmado para os trabalhadores em gérai, o direito de associaçâo vale em particular para os trabalhadores da terra (MM, 146s.); ele é reafirmado dois anos mais tarde (PT, 23s.) e retomado pelo Vaticano II (GS, 65; 68; 73; 75). Ao passo que os Papas anteriores se tinham mostrado inclinados a restringir a intervençâo dos poderes pûblicos diante das associaçôes, Paulo VI, encarando o problema do desenvolvimento, escreve: "Programas sâo pois necessârios para 'encorajar, estimular, coordenar, suprir e integrar' [MM, 53] a açâo dos individuos e dos corpos intermediârios. Pertence aos poderes pûblicos escolher, até mesmo impor os objetivos a perseguir. .. e cabe-lhes estimular todas as forças reagrupadas nesta açâo comum" (PP, 33). O principio de subsidiariedade é pois pouco a pouco interpretado de maneira menos restritiva. Antes, o Estado dévia respeitar o direito natural de associaçâo; agora, sublinha-se mais nitidamente que a arte do governo requer que os poderes pûblicos intervenham positivamente para suscitar uma autêntica comunidade humana. Seguindo um processo de ampliaçâo que nâo cessamos de notar, numerosas formas de livre associaçâo sâo preconizadas por Joâo Paulo II. Em razâo mesmo do relevo que ele da à teologia da solidariedade e no respeito à "personalidade" das diferentes socieda des (CA, 13bc), Joâo Paulo II considéra nâo sô melhores relaçôes entre paîses ricos e paises pobres. Recomenda além disso que me58 lhorem as relaçôes entre paises em desenvolvimento: "O que se disse nâo poderâ ser realizado sem a colaboraçâo de todos, especialmente da comunidade international, no quadro de uma solidariedade que inclui todo o mundo, a começar pelos mais marginalizados. Mas os paises em desenvolvimento têm o dever de praticar eles prôprios a solidariedade entre si e com os paises mais marginais do mundo" (SRS, 45). De novo, Centesimus annus dilata o ensinamento anterior. O direito de associaçâo é confirmado nâo somente ao nivel sindical, mas mais amplamente como meio de "luta contra um sistema eco nômico" que cbnsagre a primazia absoluta do capital sobre "a liber dade e a dignidade do trabalho do homem" (CA, 35b; 52b; 50a). Os poderes pûblicos e o desenvolvimento A fecundidade do principio dé subsidiariedade revela-se de maneira particularmente brilhante nà evoluçâo do ensino da Igreja sobre as realidades politicas. Valores da vida politica Em diversas enciclicas que precederam a Rerum novarum, Leâo Xm abordou a questâo do Estado. Tal é o caso, por exemplo, da Diuturnum ïllud (1881), onde ele expôe a origem do poder civil, e da Immortale Dei (1885), onde analisa a constituiçâo cristâ dos Estados. Este ensino, anterior à célèbre enciclica, é particularmente rico. Leâo XIII nâo tinha razôes de repeti-lo na Rerum novarum, tanto mais que voltaria ao assunto depois de 1891 em outras ocasiôes, por exemplo, em Graves de communi (1901). Na Rerum novarum, o Papa concentra a sua reflexâo sobre o papel do Estado diante da questâo social. O Estado que Leâo XIII tem em vista é o Estado nacional, sociedade natural que se outorga as instituiçôes e os ôrgâos de poder indispensâveis à afirmaçâo de sua "personalidade", à sua coesâo, ao seu crescimento, à sua existência. Como em outros documentos pontifîcios, Leâo XIII sublinha a articulaçâo entre o poder espiritual e- temporal. Que o Estado seja autorizado e mesmo obrigado a intervir na questâo operâria decorre do fato de que todo o governo deve responder "aos preceitos da razâo natural e dos ensinamentos divinos" (RN, 25). Empois a este duplo titulo que ele deve "servir o interesse comum" (RN, 26), "tomar as medidas requeridas para salvaguardar a vida e os inte-. 59 resses da classe operâria", velar especialmente pelos nobres (RN, 27; 29). Para estar seguro de ter sido bem compreendido, Leâo XIII explicita este ensinamento pelo quai ele contesta os excessos do liberalismo politico e econômico, excessos que critica e condena mais sistematicamente em outros textos. Os governantes, diz, devem "cuidar igualmente de todas as classes de cidadâos, observando rigorosamente as leis da justiça dita distributiva" (RN, 27); "cabe-lhes cuidar de toda a comunidade e de suas partes" (RN, 28). O Estado pois nâo pode ser moralmente neutro, agnôstico, indiferente. O bem comum, de que tem encargo, é "principalmenté, um bem moral" (RN, 27). "Importa ao bem-estar pûblico e privado. .. que toda a economia da vida familiar seja regulada de acordo com os mandamentos da lei de Deus e os principios da lei natural; que a religiâo seja honrada e observada" (RN, 29; 42). Autorizado, pela lei natural, a intervir na questâo social, o Estado deve fazê-lo primeiramente por motivos religiosos: "Na situa çâo do operârio. . . hâ numerosos interesses que reclamam â proteçâo do Estado. Em primeira linha vem o que diz respeito ao bem de sua aima". Toda a açâo do Estado deve ser definida em funçâo da dignidade pessoal do trabalhador. "A vida do corpo.. . é uma via e um meio para chegar, pelo conhecimento da verdade e do amor do bem, à perfeiçâo da vida da aima. É a aima que traz gravada em si e imagem e semelhança de Deus" (RN; 32). Destas sôlidas premissas, Leâo XIII retira algumas conseqùências célèbres: o Estado deve preocupar-se com o salârio (RN, 34), com as associaçôes profissionais (RN, 36-44), com a prevençâo das grèves (RN, 31), com a proteçâo dos "interesses fisicos e corporais", das condiçôes de vida prôprias da familia e da criança (RN, 33). Coisa curiosa, o famoso principio de subsidiariedade apenas é desenvolvido sistematicamente na Rerum novarum (RN, 27). Contudo, desde o inicio Leâo XIII pôe este principio em açâo, sem todavia nomeâ-lo. Fâ-lo a proposito da propriedade privada, quando réfuta o socialismo que quer suprimi-la (RN, 3-5); fâ-lo a proposito da dignidade pessoal do trabalhador e do homem em gérai (RN, 5-8); fâ-lo a proposito da familia (RN, 9-11). É neste principio que repousa todo o seu ensino sobre as associaçôes (RN, 37-41). Por este ensino, Leâo XIII, reagindo contra os excessos do liberalismo, indica por quais razôes morais o Estado deve agir; reagindo contra os excessos do socialismo, indica por quais razôes morais o Estado deve 60 il !i. limitar as suas intervençôes. Pio X, cujo ensino social mereceria sem dûvida ser mais, explorado, reafirma o carâter moral das intervençôes do Estado. A enciclica Vehementer (1906), concernente à situaçâo da França e a separaçâo entre a Igreja e o Estado, oferece a Pio X a ocasiâo dé abrir caminho à Gaudium et spes (GS, 36). O Papa afirma ai com efeito, de um lado, a autonomia do poder espiritual e do poder temporal, e, de outro, a sua conexâo segundo "a ordem muito sabiamente querida por Deus". Apesar das aparências, trata-se, uma vez mais, de uma aplicaçâo do principio de subsidiariedade: o Estado, dir-se-â mais tarde, nâo tem de se imiscuir nas consciências. Continuando seu santo predecessor, Bento XV confirma a idéia segundo a quai o desenvolvimento da doutrina social da Igreja deve muito as circunstâncias histôricas concretas. Bento XV nâo se limita a multiplicar os apelos aos beligerantes da guerra de 1914-1918. Aproveita destes apelos para introduzir no ensino social da Igreja uma nova dimensâo: a dimensâo internacional. Nas pegadas de Leâo XIII, que encarava sobretudo os problemas na escola das comu nidades nacionais, Bento XV faz apelo à moralizaçâo das relaçoes internacionais. "O ponto fondamental deve ser que a força moral do direito substitua a força material das armas". Nada de "Realpo- litik" (CA, 25a): todos os problemas devem ser resolvidos num "espîrito de eqûidade e justiça" (Exortaçâo Dès le début, 1.° de agosto de 1917). Apôs o fim das hostilidades, considerando —como dévia fazê-lo Pio XII — a reconstruçâo da sociedade, ele mostrarâ na sua enciclica Pacem Dei munus (1920), que é sempre o naesmo Evangelho que deve animar tanto a vida pûblica como a vida privada. É mais de Leâo XIII que Pio XI se aproxima quando se réfère ao papel subsidiârio do Estado diante do bem comum, dos pobres, da familia (QA, 27), da atividade econômica (QA, 85) etc. Nâo é neces- sârio retomar estes pontos em detalhes. Reteremos simplesmente que é na Quadragesimo anno que, levando em conta a evoluçâo das empresas, Pio XI dâ uma formulaçâo que se tornaria clâssica do principio de subsidiariedade: "Do mesmo modo como nao se pode tirar dos particulares, para transferi-las à comunidade, as atnbuiçoes das quais sâo capazes de desempenhar-se por sua prôpria iniciativa epor seus prôprios meios, assim também séria cometer uma injustiça e ao mesmo tempo perturbar de maneira muito prejudicial a ordem social, retirar dos grupos de ordem inferior, para confiâ-las a uma coletividade mais vasta e de ordem mais elevada, as funçôes que eles têm condiçôes de preencher por si prôprios... Que a autoridade pûblica abandone pois aos grupos de ordem inferior o cuidado de negôcios de menor importância onde o seu.esforço se desperdiçana; 61 ffi/W^t^y?^'-' poderia por conseqùência assegurar com maior liberdade, com maior poder e maior eficâcia as funçôes que pertencem somente a ela, porque somente ela pode exercê-las (QA, 86-88). Pio XI contudo nâo se limita a registrar a evoluçâo das empresas e a realçar o alcance do principio de subsidiariedade na vida eco nômica. As novas circunstâncias politicas o levam a precisar o ensino da Igreja referente ao Estado e seus abusos de poder. O socialismo i tendia a suprimir a propriedade privada. O fascismo tende a submeter os jovens : "O que se quis e o que se tentou fazer, foi arrancar à Açâo catôlica e por meio delà à Igreja a juventude, toda a juventude" (Non abbiamo bisogno, 3). O nacional-socialismo nâo é melhor: "Quem quer que tome a raça, ou o povo, ou o Estado, ou a forma de Estado, ou os depositârios do poder, ou qualquer outro valor fundamental da comunidade humana — todas coisas que detêm na ordem terrestre um lugar necessârio e honroso — quem quer que tome estas noçôes para retirâ-las desta escala de valores, mesmo religiosos, e os diviniza com um culto idolâtrico, perverte e falseia a ordem das coisas, criadas e ordenada por Deus: quem faz isto esta longe da verdadeira fé em Deus e de uma concepçâo de vida correspondente a esta fé" (Mit brennender Sorge, 12). Quanto ao comunismo, Pio XI, invocando o ensino de Leâo XIII, o condena sem rodeios: "A espoliaçao dos direitos e a escravizaçâb do homem, a negaçao da origem primeira e transcendente do Estado e de seu poder, o horrivel abuso da autoridade pûblica ao serviço do terrorismo coletivista, tudo isto é exatamente o contrario daquilo que exigem a moral natural e a vontade do Criador" (DR, 33). Assim, ao contestar estas perversôes do socialismo que foram o fascismo, o nazismo e o comunismo, Pio XI contestava uma con cepçâo aberrante da soberania. O Estado nâo tem de monitorar toda a vida dos indivîduos e da Naçao. Ele nâo tem de se opor como obstâculo à paz e à concôrdia entre as naçôes. O Papa Pio XII extrai as liçôes da Segunda Guerra Mundial que chega ao fim e tira partido do ensino de seus predecessores para lançar as bases da sociedade nova. O papel moral do Estado é invocado (RM, 1944, 20-27); os limites de seu poder sâo lembrados (RM, 1944, 28ss.). Mas a partir de Pio XII, fica claro sobretudo que o principio de subsidiariedade pode ser olhado como o coraçâo do ensino da Igreja sobre a democracia. Contra toda forma de totali tarisme, esta Radiomensagem apôia a "democracia" na medida em que esta se caracteriza pela participaçâo de todos e de cada um na coisa pûblica. Participaçâo em dois sentidos: trazer a sua parte, a 62 sua contribuiçâo à edificaçâo do bem comum; poder beneficiar-se da contribuiçâo dos outros ao bem comum. Sobretudo atenta aos problemas econômicos e sociais, Mater et magistra examina em detalhe o papel do Estado iieste dominio. Joâo XXDI cita textualmente o principio de subsidiariedade como Pio XI o havia formulado (MM, 53; cf. QA, 86). Nota-se contudo uma diferença de acento: é neste principio de subsidiariedade que o Papa se apôia para preconizar "a intervençâo do Estado para encorajar, estimular, coordenar, suprir e integrar" (MM, 53; 54-58; 64-67; 117; 152). É no entanto sobretudo na Pacem in terris que Joâo XXIII faz valer um aspecto até entâo pouco assinalado do principio de subsi diariedade. Do mesmo modo que o Estado deve respeitar e encorajar a iniciativa dos indivîduos e dos grupos intermediârios, "nâo com- pete à autoridade da comunidade mundial ilimitar a açâo que os Estados exercem em sua esfera prôpria, nem de se substituir a eles" (PT, 141). Na continuaçâo, Joâo XXIII realça igualmente um outro aspecto do principio de subsidiariedade. A proposito dos paises em desenvolvimento, ele indica o dever de respeitar a sua "personalidade particular" (MM, 169; PT, 123-125). Assim, paralelamente à doutrina sobre os direitos do homem, vê-se tomar corpo aqui uma doutrina referente ao direito dos povos ou das naçôes, o "direito das gentes" (CA, 21). A Gaudium et spes incorpora este ensinamento e fala do papel subsidiârio do Estado diante dos grupos intermediârios (GS, 75,2). O mesmo Concîlîo acolhe uma reflexâo generosa sobre a paz e a guerra (GS, 77-82) previamente a recomendaçoes sobre a construçâo da comunidade internacional (GS, 83-90). O ensino da Gaudium et spes concernente ao Estado e aos poderes pûblicos deve contudo ser imperativamente completado por outros textos conciliares. Recordamo-nos do que Leâo XIII e depois Bento XV jâ diziam a proposito da dimensâo moral da açâo do Estado. A declaraçâo Dignitatis humanae, consagrada à liberdade religiosa, é fiel à tradiçâo que remonta à Rerum novarum quando afirma que "para todo o poder civil é um dever essencial protéger e promover os direitos inviolâveis do homem" (LR, 6) e este ensino é detalhado na declaraçâo Gravissimum educationis momentum sobre a educaçâo cristâ (ES, 1; 3; 6s.). Na Populorum progressio, a reflexâo sistemâtica sobre o Estado e mesmo sobre a naçâo é discreta (PP, 62; 65). Em compensaçâo, a 63 enciclica é justamente célèbre porque Paulo VI nela consuma uma evoluçâo cujo ponto de partida remonta a Bento XV na Pacem Dei munus, retomada por Pio XII na sua Radiomensagem de 1.° de setembro de 1943, depois acelerada por Joâo XXIII (MM, 200; PT, 70) e que logo sera consolidada por Joâo Paulo II. Doravante, os pro blemas regionais, nacionais, locais, sâo assumidos na perspectiva mundial em que jâ é recomendado o diâlogo Norte-Sul. A conside raçâo da comunidade humana global triunfa sobre a consideraçâo das comunidades nacionais. Como notamos acima, Joâo XXIII subinhava o dever de nâo-ingerência e o papel estritamente subsidiârio da "autoridade da comuni dade mundial" (PT, 141). Ele terne, como farâo seus sucessores, que esta autoridade se constitua em superestado coletivista mundial. Temor sempre fundado! Nâo deixa de ser menos verdade que esta autoridade é reconhecida como uma necessidade, desde que obedeça a uma inspiraçâo moral. É este o motivo por que sâo estabelecidas balizas para uma ética da solidariedade internacional, jâ evocada por Joâo XXIII (PT, 80), e que, para ser crivel e eficaz — Paulo VI o dira com precisâo — requer uma autoridade mundial apropriada (PP, 78), assim como um gesto que deverià ser concretizado por um llfundo mundial, alimentado por uma parte das despesas militares, para vir em ajuda aos mais deserdados" (PP, 51). Paulo VI no entanto completou este ensinamento na Octogesima adveniens: a comunidade mundial constrôi-se a partir de pessoas: "Ser social, o homem constrôi o seu destino numa série de grupos par ticulares, que reclamam, como seu acabamento e como condiçâo necessâria de seu desenvolvimento, uma sociedade mais vasta, de carâter universal, a sociedade politica" (OA, 24). Esta construçâo procède do desejo de "promover um tipo de sociedade democrâtica" (OA, 24), pois "a passagem à dimensâo politica exprime também uma exigência atual do homem: uma partilha maior das responsabilidades e das decisôes" (OA, 47). Desde os primeiros anos de seu pontificado, Joâo Paulo II manifesta a atençâo que ele dirige as realidades politicas entendidas no sentido mais amplo da expressâo e ao papel subsidiârio dos po deres pûblicos. Muitas coisas chamam a atençâo de uma sô vez. O Papa demonstra um interesse todo especial à naçâo, aos povos, as culturas (SRS, 9; 15; 33; 39; CA, 50s.). A naçâo, por exemplo, é uma realidade natural, plenamente humana, anterior ao Estado e que o Estado deve servir. Ora a historia e a situaçâo contemporânea nos ensinam que o Evangelho pode intervir de maneira decisiva na defi64 niçao da identidade das naçôes: Joâo Paulo II o lembrou em 3 de junho de 1979 em Gniezno. A fé cristâ, em particular, nâo produz frutos apenas no coraçâo dos homens; ela imprégna igualmente as sociedades. Os valores essenciais do cristianismo, e em particular o da caridadë, sâo chamados a produzir efeitos visiveis e até "revolucionârios" — isto é, de conversâo — na ordem temporal. Joâo Paulo II retoma pois o tema da "amizade", como dizia Leâo XIII (RN, .18), mas este tema, de origem filosôfica, é aqui mais enriquecido pela iluminaçâo que lhe oferece o Evangelho. Toda a reflexâo sobre a sociabilidade humana sera de agora em diante revestida por uma teologia da solidariedade. Ê precisamente nesta perspectiva que Joâo Paulo II reformula o principio de subsidiariedade: "Uma sociedade superior nâo deve intervir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, reti- rando-lhe as suas, competênbias, mas ela deve antes sustentâ-la em caso de necessidade e ajudâ-la a coordenar sua açâo com a dos outros elementos que compôem a sociedade, em vista do bem comum" (CA, 48d). Por conseqûência deve ser assim encarado "uma cancertaçâo mundial para o'desenvolvimento" (CA, 52b). Dois campos de aplicaçâo sâo logo encarados conjuntamente. A vida politica: "A Igreja aprecia o sistema democrâtico, como siste ma que assegura a participaçâo dos cidadâos nas opçoes politicas... ' (CA, 46a). A vida econômica em seguida, e em particular a "mundializaçâo da economia" (CA, 58a). Fazendo aqui uma aplicaçâo inteiramente nova do principio de subsidiariedade, Joâo Paulo II p e denuncia antecipadamente todos os prôjetos larvados de "capitalismo selvagem" (CA, 8c), de "religiâo secular" (CA, 25c), ou de néo-impe- o " rialismo: "Sente-se sempre mais a necessidade de que a esta internacionalizaçâo crescente da economia corresponda a existência de bons n ôrganismos internacionais de contrôle e orientaçâo, a fim de guiar a a- n as economia, ela prôpria, ao bem comum, o que nenhum Estado, fosse ele o mais poderoso da terra, tem. condiçâo de fazer" (CA, 58a). Ensino social e nova evangelizaçâo o- Somos aqui testemunhas de duas novidades que, cedo ou tarde, :Z. nâo deixarâo de trazer um novo impulso e um enriquecimento substancial à doutrina social da Igreja e em particular ao seu ensino sobre *sj ue a sociedade politica. . os Antes de mais nada, à força de sublinhar a interdependência ;fi- dos homens e das sociedades (SRS, 9; 22; 26; etc.; CA, 27s.; 51s.; 65 58), assim como a sua solidariedade (SRS, 19; 33; 36-40; 45s.; CA, 10c; 15e; 22b; 32cd; 41bc; 51a), Joâo Paulo II faz do ensino social da Igreja uma teologia dà salvaçâo, enquanto essa ûltima é oferecida, desde agora, à comunidade humana como tal. Dai o lugar da exposiçâo sobre a destinacao universal dos bens na Centesimus annus (CA, 30-43). O sujeito — poder-se-ia dizer — da salvaçâo oferecida por Jésus Cristo nâo é "simplesmente" o homem enquanto pessoa ou se se préfère a soma dos indivîduos humanos; sâo as mûltiplas comunidades culturais nas quais o homem acolhe, vive e comunica a fé; é a comunidade humana no seu conjunto. Enquanto comunidade de fé, a Igreja é a antecipaçâo desta comunidade jâ salva em esperança. Com Joâo Paulo II, o ensino social da Igreja é, mais do que jamais foi, enxertado na eclesiologia e aberto à escatologia (SRS, 31; 40s.). Além disso — e é a segunda novidade — Joâo Paulo II planta a liberdade religiosa no coraçâo de: seu ensinamento em gérai, social em particular (SRS, 15; 32s.'; 42; CA, 9b; 47a). Hâ para isto uma razâo précisa, muitas vezes mal percebida, mas que se explica pela atençâo focal que o Papa concède à antropologia e aos direitos do homem. Com efeito, no ato de fé autêntico, a pessoa humana entra em relaçâo interpessoal com um Deus tripessoal. O ato de fé é soberanamente persônalizante e libertador da pessoa. Conseqûentemente, o acréscimo de personalizaçâo que o ato de fé libéra sô pode ter reperçussôes prodigiosas nas relaçôes interpessoais, mediatas ou imediatas, do crente com os outros homens. É por ai que o ato de fé alimenta a solidariedade. Vê-se aparecer aqui a ligaçâo direta entre o ensino social da Igreja e a nova evangelizaçâo (CA, 5ef; 54 ab). Leâo XIII ia das pessoas e das classes sociais à sociedade; ele pedia ao Estado que agisse moralmente e respeitasse a vida religiosa. Se se considéra o resultado atual desta evoluçâo, constata-se que Joâo Paulo II esta provocando uma real reviravolta no ensino social da Igreja. Nâo se limita a denunciar vigorosamente o pecado, mas denuncia as estruturas do pecado, que potencializam os efeitos nefastos dos pecados pessoais (SR, 36; CA, 38b). Nâo se limita a anunciar a salvaçâo as pessoas; assinala uma missâo précisa à Igreja: anunciar a Boa Nova nos territôrios novos, isto é, os espaços institucionais cuja qualidade moral comanda a felicidade présente dos homens e condiciona a sua salvaçâo eterna. Estes espaços novos, Joâo Paulo II os désigna: é o Estado (ou os poderes pûblicos) que, se se torna fotalitârio, destroi os direitos do 66 homem (RH, 25; CA, 44-47; 61a); é o "empregador indireto" (LE, 17,2.5); é o mundo, de eontornos menos palpâveis, da cultura (SRS, 25s.; 32; 44; CA, 24; 50s.); é o mundo das organizaçôes internacionais (SRS, 26; 33; 42s.; CA, 52b; 58; 60); sâo os blocos Leste-Oeste (SRS, 10; 20-22; CA, 18b; 23c) ou Norte-Sul (SRS, 21s.; 43; CA, 28c; 33). Reaparecem pois todos os temas que respigamog desde Leâo XIII. Nenhum falta. Mas seu campo de aplicaçâo tem sido incessantemente ampliado. No começo, eles eram lembrados para esclarecer a questâo operâria. Pouco a pouco, revelam a sua fecundidade no conjunto da 1 vida social: nos domïnios da economia, da politica, do direito, da cultura, da ciência, das técnicas. Da consideraçâo destes problemas no quadro das naçôes particulares, passa-se à sua consideraçâo ao piano mundial e as suas imbricaçôes tâo complexes quanto mùltiplas. Da consideraçâo das relaçôes mediatas entre Os homens e os grupos, i passa-se à consideraçâo da comunidade humana inteira chamada à felicidade e à salvaçâo. a Além disso, o arranjo destes temas é igualmente novo porque b se faz a partir da pessoa de Cristp, "o futuro do homem", segundo a a expressâo cara ao Papa. Joâo Paulo II faz, de certo, apelo a dados bs, îr e- filosoficos. Como seus predecessores, ele nâo hésita em invocar a lei natural; faz também um largo uso dos recursos oferecidos pelas ciências humanas, em particular para o5lestudo das situaçôes contemporâneas. Mas o seu ensino social é de natureza puramente' religiosa; fé re ))• dai porque "a Igreja nâo tem nenhum modelo a propor""(CA, 43a). A anâlise sociopolitica e econômica é indispensâvel, mas, sozinhos, os instrumentas de que as ciências humanas dispôem nâo dâo conta da i ' natureza nem da complexidade do desenvolvimento e do siibdesenvolvimento (SRS, 40; 46; CA, 29). Esta anâlise é pois necessâria-mas Ug £al insuficiente tanto quando se trata de estabelecer o diâgnôstico como quando se trata de propor os remédios (CA, 60b). "O desenvolvi- :ias mento ultrapassa infinitamente o desenvolvimento" poder-se-ia dizer 'as- parafraseando Pascal (cf. Br 434; PP, 42). iar tr.a Na fon" A questâo operâria era percebida, no tempo da Rerum novarum, como um problema técnico do quai se média a dimensâo moral e para cuja soluçâo os interessados, o Estado e a Igreja, tinham algo a trazer. O desenvolvimento segundo Joâo Paulo II nâo é um pro- Ij os ina de antropologia e de moral, que é da alçada da teologia (SRS, I do 28-37; CA, 53-55; 59). Nâo hâ maior sûbdesenvôlvimento para o | blema técnico senâo a titulo derivado; ele é antes de tudo uni proble- ! 67 !?*?îf55 u homem, nem maior pobreza que nâo conhecer a Jésus Cristo. Aqueles que acusam Joâo Paulo II de "se meter na politica" nâo compreenderam que as consideraçôes que ele expôe a este respeito nâo sâo parte secundâria de seu discurso social; elas explicitam as aplicaçôes prâticas de um discurso de natureza essencialmente evangélica. Os marcos cristâos para uma nova ordem mundial De um sinal a outro Se julgarmos pelo caminho percorrido desde Leâo XIII até Joâo Paulo II, confirma-se que a Rerum novarum merece muito bem ser considerada a "Magna carta" (QA, 42; RM de 15 de junho de 1941, 9) "da reconstruçâo econômica e social no mundo moderno" (MM, 26). É "sem dûvida nenhuma um documento memorâvel e pode-se aplicar a ele com toda a verdade a palavra de Isaias: 'É um sinal levantado entre as naçôes' [Is 11,12]" (QA, 24). Apesar do tempo, a Rerum novarum permanece um manifesto e um programa de açâo. Todos os temas que nela aparecem atravessam o ensino social da Igreja até Joâo Paulo II, mas todos estes temas foram reinterpretados levando-se em conta novas situaçôes e submetidos a um esclarecimento cada vez mais nitidamente religioso. A originalidade e a fecundidade do ensino social de Joâo Paulo II explica-se pois pela feliz couvergência de très fatores. O Santo Padre é evidentemente antes de tudo herdeiro de uma tradiçâo doutrinal que se caracteriza por uma relacâo viva entre o ensino e a açâo. Além disso, o alento dado pelo Papa ao ensino social da Igreja beneficia-se de uma antropologia cujo centro é o Cristo. Enfim, tal é a conjuntura mundial atual, que Joâo Paulo II îaz a Igreja beneficiar-se de liçôes que se desprendem da experiência comunista. Mas este balanço referente ao fracasso do "socialismo real" nâo deve esconder que o Papa ausculta incansavelmente os sinais do tempo e que discerne, nas expressôes atuais da ideologia libéral, surpreendentes motivos de inquie.taçâo. Em resumo, da Rerum novarum à Centesimus annus, passa-se de "um sinal levantado entre as naçôes" a outro. No inicio, o ensino social da Igreja dava uma grande atençâo à critica do socialismo mas também do liberalismo. Aliava uma nitida denuncia da concentraçâo das riquezas a uma defesa fundamentada em favor da propriedade privada. O papel subsidiârio do Estado era 68 . sublinhado, mas. contra os ventos da época, eram sublinhados os deveres do Estado, por exemplo, em matéria de justiça distributiva, de associaçâo e de remuneraçâo do trabalho. De saida, as classes constituidas pelos operârios e patrôes nâo sâo verdadeiramente quesr tionadas; praticamente nâo hâ lugar para a mobilidade social. Em poucas palavras, ainda esta longe a idéia da "estrutura de pecados". Estes temas originârios estâo sempre présentes no ensino atual da Igreja em matéria social. Na maior parte do tempo, conservaram a sua conveniência original, assim a Igreja deve sempre. preocupar-se com as relaçôes entre trabalhadores e seus empregadores. Mas além disso, a maioria destes temas se revelaram portadores de um grande valor heuristico. Eles aguçaram a sensibilidade moral dos cristâos diante da emergência de novos problemas que surgiam em meios variadissimos. A presença destes temas, desde a Rerum novarum, antecipava de algum modo desenvolvimentos ulteriores do ensino social da Igreja. É assim que ao lado dos temas tradicionais, mas em conexâo constante com eles, se afirmam pouco a pouco temas novos: os da cultura, da paz e dos armamentos, da autoridade internacional, do respeito da criaçâo (CA, 37s.). A consideraçâo das relaçôes entre 1 l socialismo e liberalismo, ainda tâo constante em Pio XI, prolonga-se quando se consideram as relaçôes entre Leste e Oeste, assim como na anâlise das ideologias que florescem nestes dois blocos. Mais do que remoer aquilo que jâ se sabe sobre as relaçôes entre operârios e patrôes, a atençâo se volta para as relaçôes Norte-Sul, com atençâo cada vez mais marcante para os problemas demogrâficos (MM, 185-199; CS, 87; OA, i8; PP, 37; SRS, 25; CA, 39); por ai, um e 5, problema que tradicionalmente era da alçada da moral familiar se torna igualmente um problema de moral social e politica. Começa-se a ver surgir a afirmaçâo de uma correlaçâo entre este ûltimd,pro blema e a emergência de uma ideologia libéral, de inspiraçâo iluminista (CA, 13d), que nâo estaria imune a fermentos totalitârios (CA, 4; 39e; 41-46). : Contudo, o que é mais impressiqnante nesta evoluçâo é a afirmaçâo cada vez mais nitida da dignidade14a homem como centro do ensino social da Igreja. É a esta dignidacle que sâo de agora em diante diretamente ligados, para delà receber uma nova densidade, ° os temas do trabalho, do desenvolvimento, da solidariedade. O que a é afirmado com uma força crescente, inclusive no ensino de Joâo a a Paulo II, é que esta dignidade esta fundada em Jésus Cristo, dom do Pai proposto na fé a todos os homens de boa vontade. 69 O dom de Deus "Se tu soubesses o dom de Deus..." dizia Jésus à Samaritana (Jo 4,10). Assim Jésus anunciava à humanidade que ele era o Sal vador divino. A Igreja nâo faz senâo prosseguir a missâo dele. "Quando ela anuncia ao homem a salvaçâo de Deus, .quando lhe oferece a vida divina e a comunica pelos sacramentos, quando orienta a sua vida pelos mandamentos de amor de D^us^ë do prôximo, a Igreja contribui para o enriquecimento da cûgnidade do homem" (CA, 55c). Pois, hoje, como na aurora da Igreja, ela nâo tem nem ouro nem prata a oferecer; ela nâo tem "terceira via" a sugerir; ela respeita a justa autonomia da atividade temporal. Mas em nome de Jésus Cristo, ela pode convidar os homens a se por de pé e a caminhar (cf. At 3,6). Sâo Pedro dava assim foros de nobreza à doutrina social da Igreja e ao engajamento temporal dos cristâos. Aos batizados cabe ser "sal da terra" (Mt 5,13), quer dizer, anunciar a "ver dade do homem" (CA, 50b) "na sua realidade concreta de pecador e justo" (CA, 53b). Outrossim, "a maneira pela quai o homem se consagra à construçâo de seu futuro dépende da concepçâo que ele tem de si mesmo e de seu destino. É a este nivel que se situa a contribuiçâo especifica e decisiva da Igreja à verdadeira cultura" (CA, 51a). Desde a Rerum novarum, o ensino social da Igreja tem feito mençâo dos bens espirituais, de "todos os tesouros da graça [que] pertencem em comum e indistintamente a todo o gênero humano" (RN, 21; 32). Os mesmos bens sâo mencionados posteriormente por Pio XI (QA, 150) e por Paulo VI (PP, 21). As enciclicas de Joâo Paulo II sâo uma longa meditaçâo sobre este tema. Mas, na Centesimus annus este tema é retomado de uma maneira parti cularmente original e, como anunciamos mais acima, ele é posto em relacâo direta com o tema da destinacao universal dos bens. Esta originalidade, que vamos trazer a lume, é provavelmente a melhor chave para compreender o ensino social de Joâo Paulo II e para reler com um olhar totalmente novo os grandes documentos pontificios em matéria social. Todas as diligências do Papa têm seu ponto de ancoragem em alguns parâgrafos da Centesimus annus (CA, 31s.; 38s.). Eis como procède a argumentaçâo do Santo Padre. Se "a terra é o primeiro dom de Deus", esta mesma terra "nâo produz seus frutos sem uma resposta especifica do homem ao dom de Deus, isto é, sem o tra balho" (CA, 31b). Ora, "se houve um tempo em que a fecundidade natural da terra parecia ser. . . o fator principal de riqueza. . ., em 70 nosso tempo, o papel do trabalho humano torna-se um fator cada vez mais importante para a produçâo das riquezas imateriais e materiais"(CA, 31c). Observemos a ordem da enumeraçâo: as riquezas imateriais sâo mencionadas em primeiro lugar e elas sâo explicitadas um pouco mais adiante: trata-se "do conhecimento, da técnica e do saber" (CA, 32a). O Papa acrescenta ainda que "mais do que nunca hoje, trabalhar, é trabalhar com os outros e trabalhar para os outros". Donde segue que o "trabalho é tanto mais fecundo e produtivo quanto o homem é mais capaz de perceber quais sâo as necessidades profundas do outro para quem o trabalho é fornecido" (CA, 31c). De fato, a terra, o principal recurso do homem é o prôprio homemV e (CA, 32c). l" a l" :" ,r e Assim, segundo o Santo Padre, o bem por excelência que é destinado a todos, isto é, chamado a formar a comunidade na solidariedade, é o homem ele prôprio. "Se, outrora, o fator decisivo era o capital..., hoje o fator decisivo é cada vez mais o prôprio homem, isto é, sua. capacidade de conhecer que aparece no saber cientifico, sua capacidade de organizaçâo solidâria e sua capacidade de intuir e e satisfazer as necessidades dos outros" (CA, 32d). a v Dai decorrem très conseqûências de capital importância para o >r engajamento social do cristâo e para a pastoral. A primeira é que a tarefa primordial que comanda todo o desenvolvimento humano consiste em despertar o homem para a sua prôpria dignidade por meio da educaçâo intégral, a fim de que possa responder, diante de Deus e diante dos homens, pelo uso que faz de sua le liberdade. Neste sentido, "educar" o homem é libertâ-lo da alienacâo ta entre a liberdade e a verdade (CA, 4e; 17a; 29; 41d; 46d). )r Aqui aparece pois o sentido do trabalho humano. Ê Laborem exercens (exercendo o trabalho), isto é, simultaneamente trabalhando pelo outro, preocupando-se com as necessidades do outro, sofrendo por ele, que ohomem colabora jâ nesta terra na construçao do Reino. A segunda conseqùência é que o dom sobreeminente de Deus ao homem, é Jésus, que assumiu a carne da. Virgem Maria e se fez homem. Evangelizar, anunciar a Encarnaçâo e desdobrar dai todas 0 1 •" s, im ra ti- m 10 ro la a- îe >m que o torna estranho a Deus e aos outros, e convidâ-lo a tornar-se, junto com os outros, filho de Deus. Donde a insistência do Papa na partilha do saber e da informaçâo (CA, 33) e sobretudo na ligaçâo as ressonâncias no espaço e no tempo: tal é a especificidade da men- sagem social cristâ. Dai a insistência do Papa na experiência dos cristâos da Europa oriental. No Ocidente como no Leste, o que poe 71 os homens de pé nâo é a ideologia marxista-leninista ou a ideologia materialista que esta por debaixo de um certo capitalismo libéral; é a fé que lïberta da mentira e da violência que esta prétende legitimar (CA, 23c) A eficâcia da fé deve engendrar a solidariedade (cf. Gl 5,6) e conduzir a uma "civilizaçâo do amor". Dai, encadeando-se à précédente, uma derradeira conseqiiência, capital, de natureza dogmâtica: em ûltima instância, o ubem comum" por excelência, aquele que, sem réservas, é destinado a todos, é a pessoa de Jésus Cristo. A honra do cristâo é de levar o Cristo ao mundo e de ser a sua epifania. Tendo assim "recapitulado" o ensino social dos seus predecessores, o Santo Padre pode resumir o duplo mandamento de amor numa formula particularmente densa e digna de Santo Irineu: "O homem. . . é dado por Deus a si prôprio" (CA, 38a). Uma for mula onde a antropologia cristocêntrica de Joâo Paulo II faz da Centesimus annus um manifesto cristâo para uma nova ordem mundial. 72 INDICE Prefâcio ....;.. 5 A Enciclica Rerum novarum, ponto final de um lento amadurecimento ' Centesimus:annus e a "Seiva.Gènerosa" da Rerum novarum .. 29 Carta Enciclica Rerum novarum sobre a condiçâo dos operârios 73 Carta Enciclica Centesimus annus no centenârib da Rerum novarum .•••:•••' Eff&li^^i^^^^ 113 u
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