Texto - Madrasta não é mãe. E tudo bem
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Texto - Madrasta não é mãe. E tudo bem
MADRASTA NÃO É MÃE. E TUDO BEM! Ana Cristina Canosa Gonçalves* Histórias de amor reprisariam cenas clássicas dos contos de fadas, não fosse o fato do tal “príncipe encantado” já ser pai! A MADRASTA pergunta ao espelho: quem sou eu? buscando a imagem da princesa doce e generosa se vê refletida como a madrasta, “vaidosa e má”. Para a madrasta, ouvir a voz que ecoa: “você não é a mãe natural, ela sim é que é mais bela e bondosa do que você”, pode ser algo muito conflitante. O indagável é: a madrasta é mãe? Se não é, deveria ser? Conheço muitas mulheres que sonham ser mães, mas não conheço nenhuma que sonhou ser madrasta. Ainda é muito forte a antiga concepção de que só as mães seriam capazes de ter por seus filhos o verdadeiro amor.Como crianças simbióticas nos atemos a essa imagem fantasiosa e por isso idealizamos que a mãe nunca nos negaria o brinquedo mais novo, o pacote de balas antes do jantar! Assim, para a madrasta ficou a projeção de nossas raivas, a parte má da mãe. João e Maria podem ser abandonados ao relento, à fome e ao medo pela madrasta, jamais pela mãe. Diante do papel materno idealizado, quando a mãe nega algo vira bruxa aos olhos das crianças, torna-se mãe/madrasta. Nesse sentido toda mãe é também madrasta, mas porque será que o inverso também não pode ser aplicado? A palavra Madrasta tem dois significados distintos: a mulher que se casa com um homem que já é pai e mulher má. São significados que assumiram características de sinônimos, como se toda mulher que se casa com um homem que já é pai seja uma mulher má, que atormenta criancinhas, puras e ingênuas. Antigamente só com a morte da esposa poderia ocorrer o segundo casamento paterno e, portanto, o ingresso da madrasta na vida familiar. Atualmente o divórcio tem possibilitado que numa segunda união, muitas mulheres tornem-se madrastas dos filhos de seus companheiros. São as chamadas madrastas de tempo parcial, que convivem com crianças que moram com a mãe, nas ocasiões em que elas visitam o pai. Este tipo de vínculo envolve situações diferentes daquelas vividas pelas madrastas que coabitam com os enteados. São impasses angustiados que surgem diante dos enteados, do pai destes, da mãe biológica e de outras pessoas do círculo familiar e social. Assim: a madrasta entra no shopping de mãos dadas com o enteado e a vendedora da loja diz “Que gracinha o seu filho!”. Diante desta cena comum, geralmente a madrasta ou explica a realidade, ou finge que não ouviu, ou dá um sorriso amarelo quando o garoto diz: ela não é minha mãe ou, ainda, passa a descrever todos os últimos feitos prodigiosos do garoto, como uma mãe orgulhosa faria. De todas essas alternativas, prefiro ficar com a primeira! São verdades que devem ser ditas com serenidade e tranqüilidade, para que a relação tome forma, seja construída sem fantasmas: “Ah, ele é filho do meu marido e você tem razão, é mesmo uma gracinha!”. Optar pela segunda é uma saída quando se percebe que não é preciso dar explicações ao mundo. A observação da vendedora reflete a contaminação pelo ideal burguês, que prevê uma família composta por pai, mãe e filhos, unidos pelos laços consangüíneos, e pelo matrimônio indissolúvel. Ora, se a mãe não é falecida e o núcleo familiar tem uma madrasta como componente, essa madrasta pode ser vista como o testemunho da falência de um casamento que deveria ser “feliz para sempre”. E se as pessoas não toleram a frustração do fim do sonho “da família da propaganda de margarina”, ela será no mínimo vista com desconfiança. Tem-se casos de ex-mulheres ciumentas, que não aceitam a separação e que delegam às segundas companheiras de seus ex-maridos todas as responsabilidades pela finitude do casamento. Vivem praguejando e criticando os comportamentos da nova esposa do pai de seus filhos: “Não cuida dos meus filhos quando eles estão lá”, “gasta todo o dinheiro do seu pai, que na verdade é o seu dinheiro...” Os ataques maternos tentam impedir que as crianças possam sentir afeição pela madrasta. As crianças, por sua vez, se amarem a madrasta temerão que a mãe com elas se enfureça ou decepcione-se. Comumente restam às crianças duas opções: ou aliam-se à mãe na tentativa de afastar a madrasta do pai ou então estabelecem um jogo competitivo e cruel entre as duas, para ganhar o afeto de ambas. Mas, e a madrasta pode comprar a mochila azul que a enteada quer? Claro que sim, desde que isso não seja para agredir a mãe que negou à filha o mesmo pedido. As madrastas que cedem às chantagens dos enteados se arriscam a também reagir aos ataques da mãe destes, medindo forças e, enciumadas, acabam criticando a atuação materna na frente das crianças, o que não é nada adequado. Há também aqueles casos de pais narcisistas, que acabam fomentando a competição entre a madrasta e a ex-esposa e mesmo entre seus filhos e a madrasta, porque se sentem lisonjeados com a disputa. Não é incomum a madrasta visualizar nos enteados o prolongamento do casamento anterior. Enquanto ela não aceitar o passado afetivo de seu companheiro, que tem nos enteados os frutos vivos, estará fadada a viver perseguida pelo fantasma da mãe e, por vezes, movida pelo ciúme, acaba assumindo o papel da madrasta perversa, rejeitando os enteados ou com eles competindo pelo amor paterno, como as figuras clássicas dos contos de Branca de Neve, Cinderela e de João e Maria. Mas a madrasta não deve somente se preocupar em quebrar o estigma da bruxa que paira em cima de sua condição. Deve também cuidar para não ocupar o lugar da fada boa que aparece magicamente para acudir as crianças aflitas. No anseio por alguém que venha preencher a lacuna da dor da separação, a madrasta poderá ser eleita como a “salvadora” do lar. Isso é freqüentemente observado em pais que, por não conseguirem assumir a frustração do casamento desfeito, nem a responsabilidade pelos cuidados com seus filhos, delegam todas as tarefas à nova mulher. E aqui, sinal vermelho! Há mulheres que assumem enteados que nem bem conhecem, porque foram, como nós, educadas a serem mães ou porque crêem que assim serão admiradas pelos seus companheiros. Mas as crianças podem não desejar o mesmo e sentir que a madrasta está invadindo o “impenetrável território sagrado do amor materno”. As agressões à madrasta podem ser resultado desse conflito de expectativas. Embora seja reconfortante assumir a posição de fada madrinha, muitas madrastas confessam-se fatigadas com o acúmulo de tarefas, angustiadas porque se cobram em corresponder às expectativas, temem falhar, sentem-se mães quando cuidam e madrastas quando educam porque os companheiros desautorizam-nas à frente dos enteados e costumam frustrar-se mais do que as mães, quando não reconhecem na atitude deles a gratidão eterna que julgaria ter de filhos legítimos. A relação consangüínea parece ter um efeito invencível. A madrasta de Cinderela amava suas filhas com devoção e não conseguia fazer o mesmo com a pobre heroína, relegada à condição de doméstica do lar. Há diferenças concretas e simbólicas nas relações entre mães e filhos naturais ou “postiços”. Será que em razão disso não estaríamos sempre nos obrigando a construir um vínculo familiar de amor incondicional entre os consangüíneos, rejeitando outro tipo de relação com aqueles que escolhemos amar? Comparo muitas madrastas à história de Cachinhos Dourados, que adentra a casa dos ursos e tenta, em vão, ocupar um lugar que ora é grande demais ora é por demais apertado. Como Cachinhos Dourados a madrasta não estava no script da família perfeita, que teve como base sólida aquela composta por “PapaiMamãe-e-Bebê-Ursos” na qual não há espaço para o “diferente” no lar. É imprescindível, neste novo milênio, aceitar o desigual, o novo. A palavra é flexibilizar! A madrasta tem de aceitar seu caráter diferente. Ao invés de buscar um modelo à partir do materno, ela pode ser uma amiga adulta, a companheira do pai que auxilia nos cuidados com os seus filhos. Por estar mais afastada emocionalmente, ela pode avaliar situações difíceis com maior coerência, construir um vínculo afetivo e caloroso baseado no respeito, na admiração e no prazer da convivência. É hora de permitirmos que madrastas possam também ser capazes de ataques de amor. Por não estarem na condição de obrigatoriedade de amar são livres para sentir uma emoção que não nomeia, que é fraterna, que fala de ser humano para outro. * Psicóloga e educadora sexual Autora do livro: Madrastas, do Conto de Fadas para a vida real. Editora Iglu, São Paulo, 1998