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JOÃO E MARIA Conto dos Irmãos Grimm Adaptação de Antonio Carlos Brunet PERSONAGENS Pai Madrasta João Maria À mesa, João, Maria e o Pai aguardam o jantar, em silêncio. CENA UM MADRASTA (Entrando com uma panela de sopa) – Vamos jantar. (Serve a sopa.). PAI – Vamos rezar e agradecer. TODOS – Senhor: agradecemos por mais este dia, e também por esta refeição. Que nos dê forças e sabedoria, para nunca deixamos faltar o nosso pão. (Comem, em silêncio.). JOÃO – Quero mais, Pai. MARIA – Eu também. MADRASTA – Chega. Depois vão ter pesadelos à noite. PAI – Filhos: vão dormir! Amanhã será outro dia e Deus há de ser generoso (as crianças se retiram, porém permanecem a um canto, escondidos, ouvindo o diálogo entre o pai e a madrasta.). MADRASTA – De que adianta toda essa sua fé? Deus já nos esqueceu. PAI – Não diga isso! Temos que ter fé, mas já não sei o que será de nós. Nossos mantimentos acabaram: batatas, repolhos, frutas, estamos praticamente sem ter o que comer. Só nos resta um pouco de centeio para fazer alguns pães. MADRASTA – É verdade. Se pelo menos você não tivéssemos essas duas pestes para alimentar, seriam, duas bocas a menos. PAI – Mulher, o que é que você está dizendo? Eles são meus filhos e quando casei com você, após a morte da mãe deles, você prometeu que me ajudaria a criá-los e amá-los, como se fossem seus filhos verdadeiros. MADRASTA (Fazendo um muxoxo. Falando como que para si mesma) – Ora, filhos verdadeiros... (Faz o sinal-da-cruz.) Deus que me livre. (Volta-se, fingidamente carinhosa, para o Pai.) Sabe, meu bem: eu estive pensando, que, talvez, a gente pudesse, quem sabe, um dia, levar João e Maria para um passeio na floresta, e deixá-los por lá. Eles são muito inteligentes e corajosos, poderão, facilmente, encontrar uma maneira de sobreviver, e quem sabe até levar uma vida bem menos penosa e infeliz do que aqui, junto com a gente, passando as maiores necessidades... PAI – Nunca tinha ouvido tamanha loucura da boca de uma mulher. Onde você ouviu dizer que uma criança pode ser feliz, sendo abandonada pelos pais, entregue à sorte como dois chinelos velhos que não nos servem mais? MADRASTA – Mas, querido, seriam duas bocas a menos. Pense bem. Nós estamos na miséria. Eu não vejo outra possibilidade. PAI – Eu jamais teria coragem de fazer isso com os meus filhos. MADRASTA – Bem, se você não quiser ouvir a verdade, morreremos todos de fome. Escuta homem: não há outra solução. Ou é isso ou morreremos de fome. E você amargaria por toda a eternidade o fato de ter, por pura teimosia, matado seus filhos e, depois, existe outra possibilidade: quem sabe se alguém - com bem mais condições do que nós -, não os encontra e resolve criá-los com tudo aquilo que não poderemos lhes dar, hein? PAI (Começando a ceder à maldade da Madrasta) – Não queira saber o quando dói o meu coração ao ouvir uma coisa destas... MADRASTA (Cortando) – Você vai matá-los de fome. PAI (Encurralado) – É: talvez você tenha razão. Vamos colocar em prática seu plano, embora fique com minha alma despedaçada. E que Deus e o céu os proteja. E como vamos fazer isso? MADRASTA – Amanhã, quando... (música sobe, enquanto os dois saem conversando, sobre o plano.). CENA DOIS João e Maria saem do esconderijo, apavorados. MARIA (Chorando baixinho) – João, eu estou com medo, eles vão nos abandonar. JOÃO – Não tenha medo, Maria, eu tomarei conta de você! Enquanto eles conversavam, eu bolei um plano para nós. Onde está o meu casaco? MARIA – Lá no quarto, em cima da minha cama. É a única coberta que tenho para me aquecer, durante a noite. (Ruídos e risadas da Madrasta e do Pai, ao lado.). JOÃO – Espere aí. (Vai ao quarto e volta com o casaco.) Shiu!... Vamos esperar que eles durmam. (Vai até o local de onde vinham os barulhos e ouve. Silêncio.) Eu vou sair. Você vá para o nosso quarto e me espere. Eu já volto. Você vai ver que tudo dará certo. (João dá um beijo na irmã e sai. Maria dá um tempo, ajoelha-se e faz uma oração. Vai para o quarto. João retorna, na ponta dos pés, para não fazer barulho e entra em seu quarto.). CENA TRÊS Amanhece. A Madrasta grita à porta do quarto das crianças. MADRASTA (Gritando) – Levantem seus preguiçosos! Andem, vamos à floresta apanhar lenha. (Os dois saem do quarto, temerosos.) Aqui está um pedaço de pão para cada um. É tudo o que temos. Comam mais tarde, porque talvez a gente demore a voltar. (Entrega os pedaços de pão para os dois. João tenta colocar o seu pedaço no bolso, e não consegue, pois o mesmo está cheio. Entrega para Maria, que o coloca, juntamente com o seu, no bolso de seu avental. O Pai entra com um machado ao ombro, e com um cantil de água, que entrega à Madrasta.). CENA QUATRO Saem. A Madrasta à frente, com a água, seguida pelo Pai e as crianças, mais atrás. João caminha vagarosamente, e, de tempo em tempo, pára e olha para trás. PAI – Vamos, João. Por que você olha tanto para trás? JOÃO – Estou olhando o meu gatinho, papai. Ele está sentado em cima do telhado, e deseja me dizer adeus. MADRASTA (Seca) – Ora, menino, não seja bobo! (Todos olham para a casa.) Aquilo não é gato coisa nenhuma: é apenas a sombra da chaminé. (Continuam a caminhada. No entanto, João continua sempre, de quando em quando parando e olhando para trás, sem que ninguém o veja. As crianças começam a ficar cansadas.). MADRASTA – Sentem-se, crianças, e descansem, enquanto seu pai e eu vamos apanhar lenha. Se tiverem sono, deitem e durmam. Quando voltarmos eu os acordarei. (O Pai abraça João e Maria fortemente - bastante emocionado -, fazendo forças para conter as lágrimas.) Vamos, homem de Deus. Deixe de lengalenga porque temos muito serviço pela frente. (O Pai, relutante, afastase dos filhos e sai praticamente empurrado pela Madrasta.). CENA CINCO As crianças ficam sozinhas. Sentam ao chão e comem os pedaços de pão que haviam trazido. Aos poucos vão sendo vencidos pelo cansaço e acabam dormindo, profundamente. Cai a noite. Quando as crianças, finalmente acordam, já é noite cerrada. MARIA – João: está tão escuro! Não conseguiremos achar o caminho de volta para casa. JOÃO – Não tenha medo, maninha. Espere a lua sair, e acharemos o caminho. (Esperam. Silêncio.). MARIA (Após uma longa pausa) – João, você acha que o Papai não nos ama? JOÃO – O Papai nos ama muito, e a Mamãe, que tá lá no céu vai cuidar de nós e nos guiar até a nossa casa. MARIA – Se ele nos ama, por que nos deixou no mato? JOÃO – Medo de não poder cuidar de nós e também porque a nossa Madrasta não nos quer em casa. MARIA – Quando eu crescer vou expulsar ela de nossa casa. JOÃO – Não fale bobagens: ela agora é a mulher de nosso Pai. (A lua nasce esplendorosa, cheia, brilhante.) Vamos? MARIA – Mas, vamos como? Eu não tenho a menor idéia de onde nós estamos. (Começa a chorar.). JOÃO – Vamos, maninha, não chore. Lembra ontem à noite, quando eu saí, dizendo que tinha um plano e quando voltei você já havia dormido? (Maria faz que sim, com a cabeça.) Pois então, sua boba: eu enchi o meu bolso de gravetinhos, que fui soltando durante todo o caminho, quando viemos para cá. Por isso é que ficava sempre para trás. Agora é só retornarmos seguindo a trilha deixada. E, graças a Deus, e provavelmente com uma mãozinha de nossa Mãe, lá no céu, a lua está brilhando o suficiente para encontrarmos uma agulha em meio à floresta. (Maria levanta-se, entusiasmadíssima, e abraça João, pulando de alegria.). MARIA – João! João! Você é muito esperto. Você é o meu verdadeiro anjo da guarda. Vamos maninho, vamos! Eu não agüento mais de vontade de dar um abraço bem apertado em Papai. (Os dois dão-se as mãos e saem, retornando por aonde vieram, catando, de quando em quando um dos gravetos jogados por João.). JOÃO (Subitamente, com alegria) – Olha Maria: a nossa casa!!! (Abraçam-se, emocionados, e pulam de alegria. O Pai e a Madrasta chegam, alarmados com a gritaria.). CENA SEIS MADRASTA (Surpresa, fingindo alegria) – Pensei que não fossem mais voltar para casa. Onde vocês andaram todo este tempo? PAI (Feliz, abraçando as crianças) – Meus filhos! Graças a Deus vocês estão bem! Eu não pude dormir esta noite pensando em vocês. Mas, entrem, entrem, vocês devem estar famintos. (As crianças saem correndo em direção a casa.). MADRASTA (Possuída) – E nós também. Suponho que você saiba que só nos resta um pão. Depois que eles o comerem nada mais teremos. Devemos, uma vez mais, tentar livrar-nos destas crianças. Desta vez, vamos deixá-los bem no interior da floresta, senão eles acabarão achando o caminho de volta. PAI – Não! Desta vez eu não vou permitir! Vou dar um jeito. Que tipo de pai sou eu, se não consigo nem cuidar e alimentar a minha família? MADRASTA – Ora, vamos entrar, e amanhã discutiremos este assunto e resolveremos isto de uma vez por todas. (Saem. Tempo.). CENA SETE Idem à cena três MADRASTA – Crianças! Crianças acordem, vamos! (João e Maria entram meio sonolentos, sem entender o que está acontecendo.) Venham comigo: seu pai está doente e precisamos buscar algumas ervas, lá no meio da floresta, para fazer um chá. (Novamente dá um pedaço de pão para cada um. As crianças olham-se, desconfiadas. Colocam o pão nos bolsos, e saem com a Madrasta à frente, pelo caminho da floresta.). CENA OITO João e Maria seguem atrás da Madrasta. João faz um sinal para Maria, e os dois vão, de quando em quando, espalhando migalhas do pão pelo caminho, tal e qual o haviam feito com os gravetos. MADRASTA – Com os diabos! O que é que vocês olham tanto para trás? Estão com medo de fantasmas? JOÃO – Não, senhora, nós não temos medo de nada. É somente o meu pombinho que está em cima do telhado e parece querer me dizer adeus! MADRASTA – Ora, menino ridículo: aquilo não é pombo nenhum. Vocês não estão vendo que é somente a sombra da chaminé? (Continuam a caminhada. Ouvem-se, durante todo o trajeto, cantos de pássaros vindos de todos os lados da floresta.). MARIA – Senhora, onde vamos buscar remédio para o Papai? MADRASTA – Cala a boca e anda logo, que eu sei aonde vamos! MARIA – Desculpe senhora, mas é que... MADRASTA – Não é nada! (Pára, de repente e olha, atentamente para todos os lados.) Vamos separar-nos: vocês vão por aqui, por esta trilha, e procurem uma erva rasteira, com flores amarelas. Eu vou por ali. JOÃO – Vem Maria! Eu sei o caminho. (Saem mata adentro.). MADRASTA (Desabando, feliz) – Finalmente consegui me livrar de uma vez por todas daqueles pestinhas. (Sai.). CENA NOVE João e Maria retornam. Maria, chorosa, agarrada ao braço de João. JOÃO – Calma Maria! Não se deixe abater pela maldade desta mulher. Você sabe muito bem que nós marcamos o caminho com as migalhas do pão. Agora é só esperarmos, como da outra vez, a lua nascer e voltarmos. (Adormecem. Escurece. A lua nasce. Acordam.) Vamos Maria: está na hora. (Levantam-se, e começam a procurar pelas migalhas. Aos poucos vão ficando desnorteados, como baratas, cada um para um lado, sem saber o que fazer.) Essa não, Maria! Os pássaros devem ter comido as migalhas. Estamos perdidos! (Procuram mais alguns instantes e desistem vencidos pelo cansaço e pelo medo. Abraçam-se e choram.). MARIA – Estou faminta! CENA DEZ De repente, ouvem, misteriosamente, uma voz suave, que parece vir de dentro da floresta. VELHA (Fora) – Crianças, crianças... Venham aqui comigo. Sigam a minha voz... Venham... (A misteriosa voz age como um hipnotizador sobre as crianças, que, sob o seu efeito, dirigemse, automaticamente, em sua direção, sendo por ela guiados.) Venham, meus queridos, eu sei que vocês estão famintos e cansados... Venham... Sigam minha voz... Eu os aguardo... (Após uma breve caminhada, chegam a uma clareira, de onde enxergam, vinda da coxia, uma luz brilhante e colorida, que os envolve magicamente.). JOÃO – Maria olhe: uma casinha escondida no meio da floresta. MARIA – Estou com medo, João. De quem será esta casinha? E por que nunca ouvimos falar de sua existência? É muito estranha. JOÃO – Estranha nada, Maria. É só uma casinha, como outra qualquer. MARIA – Não sei, não. Não consigo entender como viemos parar aqui, neste lugar tão longe de tudo. JOÃO – Fique aqui, por alguns instantes, que eu vou até lá ver se tem alguém que nos ajude a voltar para nossa casa. MARIA – Está bem, mas não demore. (João sai. Tempo.). JOÃO (De fora) - Maria, esta casinha foi feita para comer! MARIA (Gritando) – Como é que é? JOÃO (Entrando, com o seu chapéu na mão, cheio de guloseimas, excitadíssimo) – Maria... Maria... Você não vai acreditar: as paredes da casinha são feitas de doce, o telhado de bolo enfeitado com biscoitos e bombons. Eu espiei pelas janelas, que tinham cortinas de açúcar de confeiteiro, e ninguém apareceu. Então, peguei algumas coisinhas para nós matarmos nossa fome. (Mostra o chapéu com as guloseimas. Maria fica encantada e desconfiada. Como a fome era maior que tudo, sentam-se e deliciam-se com as guloseimas trazidas por João. Volta a ouvir-se a voz que os conduziu até o local.). CENA ONZE VELHA (Cantando, fora) – Quem será que está comendo Todo o doce da casinha? Irei depressa, correndo, Para lhe dar um tapinha! (Aparece uma velha, apoiada numa bengala. João e Maria param, imediatamente, de comer, e levantam-se, surpresos, tentando fugir.) Acalmem-se crianças! Não se assustem meus queridos! (João e Maria param.) Vocês devem ter vindo de muito longe, não é? Eu cuidarei bem de vocês. Vocês devem estar cansados. Venham, aproximem-se. Eu não vou mordê-los. (As crianças, sestrosas, aproximam-se da Velha.) Fiquem aqui, minhas graçinhas. Fiquem aqui, que a vovó vai trazer mais delícias para vocês. Eu sou muito sozinha, vivo aqui, abandonada, e como não tenho o que fazer, passo noite e dia preparando guloseimas para que, caso apareça alguém, eu tenha com o que lhe dar as boas vindas. E hoje, graças a Deus, vocês apareceram para me fazer companhia. Aguardem um instantinho que eu vou lá dentro e já volto para matá-los, quer dizer, matar a fome de vocês (sai, rindo, muito contente.). CENA DOZE MARIA – Vamos embora, João. Eu não estou gostando nada desta vovozinha perdida no meio da floresta. Tem alguma coisa errada nesta história. JOÃO – Larga de ser boba, Maria. Ela é somente uma pobre velhinha abandonada, que quer ser gentil. Certamente ninguém aparece nunca por aqui para visitá-la. MARIA – Mas isso não tem sentido... JOÃO – Vamos fazer o seguinte: eu estou faminto e você também, não está? (Maria assente, com a cabeça.) Então, ficamos algumas horas, conversando com a vovozinha, comemos as delícias que ela prepara, e, certamente ela saberá nos indicar o caminho de volta. O que é que você acha? MARIA – Eu estou com medo, João. Algo não me cheira bem... (Agarra-se aos braços de João e começa a puxá-lo para irem embora, quando a Velha volta.). CENA TREZE VELHA – E então, meus queridos, cansaram de esperar? (Ela entra empurrando um carrinho de bufê, cheio de tortas, pastéis, sanduíches, sucos, frutas, balas, chocolates, etc., e dois sacos de dormir. Todos comem e conversam, animadamente. Tempo.) Bom, meninos: agora estamos todos cansados e temos de dormir para amanhã enfrentarmos um longo dia. (Vai desenrolando os sacos de dormir.) Vou arrumar essas caminhas aqui fora, para vocês, porque lá dentro, a minha casinha é muito pequena e quente, por causa do forno que está sempre aceso, assando minhas delícias. Assim, vocês ficam aqui, que é mais fresquinho, e montam guarda para mim, que passo, quase que a noite toda espantando os animais da floresta que aqui vêm beliscar minhas guloseimas. JOÃO – Está bem, boa senhora. Hoje dormiremos aqui, e amanhã gostaríamos que a senhora nos indicasse o caminho de volta, pois nos perdemos e o Papai deve estar muito preocupado porque a gente ainda não voltou. (Os dois acomodam-se nos sacos de dormir, e a Velha recolhe seu carrinho e sai.) VELHA (Sai, resmungando) - Serão meus, sem dúvida. (Ri. Tempo. Muito devagar, o saco de dormir, de João, começa a ser puxado para fora de cena, pois o mesmo é preso a barbantes, que a Velha vai puxando para a coxia. João é carregado, enquanto dorme. Amanhece.). CENA QUATORZE MARIA (Acorda e vê que João sumiu. Grita) – João!... Joãozinho!... Onde está você, maninho? Não me deixe só!... João!... Senhora... Senhora... (Começa a chorar, quando entra a Velha, empurrando uma enorme gaiola sobre rodas, onde está preso João.) João... Senhora... Mas, o que é isso, o que é que está acontecendo aqui? VELHA (Furiosa) – Cale a boca, menina chata! Junta este saco de dormir e leva lá para dentro. Depois, traga sanduíches e tortas para o teu maninho, que eu vou tratá-lo muito bem. Vou engordá-lo bastante, e, como já não enxergo muito bem, por causa da catarata, quando sentir que seu dedo estiver bem gordinho, vou devorá-lo, assadinho no meu forninho, acompanhado de batatinhas douradas. (Dá uma boa gargalhada.). MARIA – Mas... VELHA (Puxando-lhe as orelhas, aos gritos) – Não tem nada de mas, nem mais, nem menos. Cala a boca, faz o que eu estou mandando e vamos parar de choramingar. MARIA (Apavorada) – Está bem, senhora, mas não nos faça mal... Por favor... (João chora dentro da gaiola. Maria obedece à Velha e sai. Volta, trazendo as guloseimas.). VELHA – Muito bem. Agora fique aqui, alimentando o seu irmãozinho, enquanto eu vou lá dentro fazer um bolo. (Sai.). JOÃO – Maria, venha cá... Chegue aqui perto, rápido... MARIA (Alcança o lanche para João) – Tome. E tenha bastante cuidado, porque a Velha quer devorar você. JOÃO – Não se preocupe: eu já sei o que fazer. Dê uma caminhada aí pelas redondezas, e vê se encontra um gravetinho que seja mais ou menos igual ao meu dedo. Quando ela pedir para ver se eu estou gordinho, mostro este graveto, dizendo que é o meu dedo, e ela vai demorar em me devorar. Assim, nós ganhamos tempo para pensarmos numa maneira de livrar-nos desta situação. (Maria sai. João come. Maria volta com um graveto.). MARIA (Entregando-lhe o graveto) – Tenha cuidado, João. Ela é muito malvada! VELHA (Gritando, de fora) – Maria, já para dentro! Não quero que você converse com ele! (Entra. Maria sai amedrontada.). CENA QUINZE VELHA (Para João) – Ô peste: mostra o teu dedo. Quero ver se você já engordou! (João coloca o graveto que Maria tinha lhe trazido para fora da gaiola. A Velha apalpa-o e sacode a cabeça, inconformada e aborrecida. Neste momento, repetemse várias vezes, as mesmas ações, com música ao fundo. A Velha sai. Maria entra e traz comida, João come, a Velha entra e examina seu dedo, retorna. Vem Maria de novo, e assim, sucessivamente, por, pelo menos umas três vezes, para marcar a passagem do tempo. Velha examinando o dedo de João, e Maria entra com guloseimas. A Velha está visivelmente irritada e impaciente.) Droga! Já estamos nesta lengalenga há quatro semanas e nada desta praga engordar. Já estou cheia! (Para Maria.) Ponha lenha no fogão até a boca, e ponha um caldeirão com água para esquentar. Quero que fique tudo bem quente. Estou cansada de esperar. E agora, gordo ou magro, vou devorar o seu irmão hoje. Vamos lá para dentro, que enquanto a água aquece, eu vou fazer um pão novinho, para comer com o tutano e sua carne tenrinha. MARIA – Por favor, senhora, eu imploro que poupe meu irmãozinho. VELHA (Pegando Maria pelo braço) – Cale a boca, pamonha! Vamos fazer o que eu disse. (Saem. João fica desesperado, chorando e gritando.). JOÃO – Maria... Senhora... Por favor... Maria... Papai... Papai... CENA DEZESSEIS O Pai e a Madrasta entram num canto de cena iluminado, enquanto João fica, dentro da gaiola, a espernear e a chorar, na penumbra. PAI (Abatido, cabisbaixo, sentado num cubo) – Eu não agüento mais a falta dos meus filhos. Hoje, especialmente, estou muito angustiado. (Ouve-se, aumentando aos poucos, o canto dos pássaros.) Não posso mais ficar aqui, esperando. Já estive lá na vila e ninguém se animou a me acompanhar na busca dos dois. Dizem que a floresta é enfeitiçada e mais um monte de bobagens. Mas hoje eu vou. Vou sozinho, mas não fico mais aqui, com esta angústia e esta culpa no peito. MADRASTA – Não se atreva a pôr os pés para fora de casa. Nesta altura do jogo, ou eles já encontraram alguém que lhes deu abrigo, ou foram devorados pelos animais. Não há mais o que fazer. PAI – Meu Deus do céu, como você é má. Não sei onde estava com a minha cabeça que não tinha percebido isto antes. Hoje eu vou, nem que morra enfeitiçado no meio do caminho, mas pelo menos morrerei tranqüilo, sabendo que tentei salvá-los. MADRASTA – Pois se você colocar os pés para fora desta cabana, para procurar os seus filhos, quando voltar – se voltar -, não mais me encontrará aqui. Não vou morrer de fome para dar o que comer para aquelas duas crianças inúteis. PAI – Pois então, pode arrumar suas trouxas. Não vou mais me sujeitar a viver com a culpa de ter abandonado meus filhos, por sua causa. Fui fraco e covarde, só agora percebo. Mas, aconteça o que acontecer com eles, eu não quero vê-la nunca mais. (Apaga-se a luz e eles saem de cena. Novamente os pássaros cantam ensurdecedoramente. Ouve-se uma forte explosão e gritos da Velha e de Maria, que entra correndo.) CENA DEZESSETE MARIA (Gritando, com um molho de chaves nas mãos) – João, João... Estamos salvos! Consegui! Consegui livrar-me dela! (Abre a gaiola e liberta João.). JOÃO – Mas o que foi que aconteceu, como é que você conseguiu? MARIA – Simples: ela mandou-me temperar a água que estava fervendo no caldeirão, e eu disse que não conseguia, pois o fogão estava muito quente e o caldeirão muito alto, para mim. Então, ela me disse que ia fazer para eu ver como era, e subiu em cima de um banquinho e foi mexer o caldeirão, quando eu ouvi o cantar dos pássaros, e, empurrei-a. Ela caiu dentro do caldeirão. Com o choque, o fogão quebrou-se e houve, misteriosamente, uma explosão, que sumiu com tudo. Não há mais nada, nem casa, nem fogão, nem Velha, nada. Depois, milagrosamente, um pássaro passou voando e largou - de seu bico -, estas chaves, e desapareceu. JOÃO – Maria, certamente estes pássaros estão nos agradecendo pelo que fizemos para eles. Lembra das migalhas que sumiram? Eles devem estar nos recompensando por termos lhes dado o que comer. MARIA – É: realmente esta floresta deve ser encantada, ou enfeitiçada, como dizem lá na vila. JOÃO – Sim, e graças a você, nós conseguimos nos livrar do feitiço, ou de seja lá o que for. MARIA - O que me deu forças, certamente, foram o amor que tenho por você, e a esperança de encontrarmos Papai. Claro, que com uma mãozinha de nossos amiguinhos encantados. JOÃO – Agora temos de pensar novamente em como conseguiremos encontrar nosso caminho de volta. Mais do que nunca vamos precisar de sorte e fé para nos livrar desta armadilha. (Neste instante, os pássaros recomeçam sua cantoria. O Pai surge do lado oposto. Vê os dois.). CENA DEZOITO PAI – João!... Maria!... Meus filhos!... (Todos correm e se abraçam efusivamente, por um longo tempo.) Que saudades, meus filhos. Pensei que nunca mais os veria. O que foi que lhes aconteceu? MARIA – Ih, Papai, tanta coisa!... Em casa, quando voltarmos, contaremos tudo. JOÃO – E por falar em casa: será que a nossa Madrasta vai aceitar-nos novamente? PAI – Não se preocupem com isso, meus filhos. Ela foi embora. Certamente não foi feita para viver com gente pobre como nós. JOÃO – E continuamos tão pobres quanto antes, Papai... PAI – E felizes, meus filhos. Nada no mundo se compara com a felicidade que sinto ao tê-los junto a mim. Vocês são o meu verdadeiro tesouro… MARIA – Então vamos para casa Papai. Estou louca de saudade do meu cantinho. Agradecemos a Deus por termos conseguido nos livrar desta, e também aos nossos amiguinhos, os pássaros encantados. PAI – Pássaros encantados??? (Os pássaros começam a cantar, alegremente, enquanto eles vão saindo, conversando, abraçados.) Mas a coisa toda foi assim, Papai: eu e o Joãozinho ficamos... (Música sobe e eles saem abraçados e contentes.). FIM