forro de cama ricalhaço
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forro de cama ricalhaço
Compilação de contos da Era Dourada Pedro Cipriano Copyright 2013 Pedro Cipriano Thank you for downloading this free ebook. Although this is a free book, it remains the copyrighted property of the author, and may not be reproduced, copied and distributed for commercial or non-commercial purposes. If you enjoyed this book, please encourage your friends to download their own copy at Smashwords.com, where they can also discover other works by this author. Thank you for your support. Obrigado por baixar este ebook grátis. Apesar de ser grátis, os direitos de autor pertencem ao autor e não pode ser reproduzido, copiado ou distribuído para usos comerciais ou não. Se gostou deste livro, por favor encoraje os seus amigos a baixar a sua própria cópia em Smashwords.com, onde eles poderão descobrir também outros trabalhos deste autor. Obrigado pelo seu apoio. A Alvorada A artilharia dos defensores rugiu mais uma vez, despejando a sua letal carga ao acaso. David sabia que os defensores já tinham perdido toda a esperança, São Petersburgo cairia dentro de algumas horas. A guerra mundial que já durava há oito anos e fora combatida nos seis continentes estava perto do fim. O conflito pelo maldito petróleo já reclamara quase meio bilião de vidas e felizmente nenhuma nação usara o seu arsenal nuclear. O interior do tanque tipo Roosevelt, por não estar equipado contra aquele nível de humidade, cheirava a mofo. Percorrer milhares de quilómetros naquela lata de sardinhas com um comandante com feitio difícil estava a dar cabo dos nervos a todos. – Alvo às quatro horas, a duas milhas – anunciou o comandante. A escuridão da noite nórdica obrigou David a procurar o alvo com os sensores térmicos. Era uma bateria anti-tanque, mas não havia nada a recear. O frágil equilíbrio entre as facções foi desfeito na maior batalha aérea da história da humanidade. Milhares de caças lutaram durante horas sobre a Europa de leste. Quando se silenciaram os céus, o domínio aéreo pertencia às forças Ocidentais. Era hora de preparar a invasão terrestre. Os radares foram destruídos pelos bombardeiros há um par de horas. Sem eles, os sistemas de defesa estavam cegos, mas nem por isso deixavam de disparar. A cidade resistira ao mais longo cerco da história durante na última guerra mundial, atestando a teimosia russa. Pediu uma munição explosiva e o sistema de ataque do blindado trancou o alvo. Ajustou as protecções dos ouvidos, inspirou e premiu o botão. Quando recuperou do estrondo do disparo, viu que a bateria estava irreparável. Nesse momento, os bombardeiros passaram por cima dos tanques destruindo a barricada mais à frente. – Avancem, estamos a pouco mais de três de milhas da Praça do Palácio. David estremeceu de excitação, pressentido que o fim da guerra estava próximo. Com a captura da praça central a resistência dos habitantes sofreria um duro golpe na moral. Dois soldados saíram de outro tanque para confirmar se a ponte estava armadilhada. Assim que se confirmou que estava limpa, o veículo de David avançou lentamente. Agarrou-se aos comandos com receio, detestava atravessar pontes. Pareceu passar uma eternidade até chegarem ao outro lado, numa avenida cujo nome começava por “Bo” e era seguindo por mais dez caracteres que não conseguia pronunciar. Os tanques seguiram pelas quatro faixas em direcção à Catedral. As ruas estavam desertas. Não se ouviam nem disparos nem explosões. Parecia que os russos tinham desistido de lutar. – Onde raio se meteram os russos? – ouviu pelo rádio com um sotaque fortemente alemão. Sorriu, pensando o quanto os alemães e os franceses estariam a apreciar a ironia do momento. – Daqui tenente Jarnot, acabámos de capturar a estátua do cavaleiro. Não há qualquer armadilha nem resistência neste sector. O anúncio foi seguido por outros semelhantes, os lugares simbólicos estavam a ser tomados sem resistência. Talvez a guerra estivesse perto do fim, pensou. Os blindados americanos pararam à entrada da praça. – Toda a gente lá para fora, temos de ver se não há minas – ordenou o comandante. À semelhança dos outros soldados, David cumpriu as ordens contrariado. Detestava sair da protecção dos doze centímetros de aço do blindado. Os atiradores furtivos eram o pesadelo de qualquer artilheiro. Encostado às lagartas, olhou em frente. A iluminação escassa da lua permitia distinguir os contornos do lugar. À excepção do monólito gigante protegido por sacos de areia, a praça parecia deserta. Não se viam capacetes a espreitar por cima dos sacos nem artilheiros nos canhões anti-blindado. – Olhem! – exclamou o condutor, apontando para ocidente. Uma luz brilhante tornou a noite em dia. Não se ouviu nenhuma explosão. David deixou-se cair no chão, percebendo logo o que acontecera. As lágrimas escorreram-lhe pela face. Nunca pensou chorar assim no fim deste maldito conflito. A imagem do seu filho e esposa vieram-lhe à memória, dava qualquer coisa para estar com eles. Na face dos seus compatriotas via-se a mesma consternação. Ao seu lado o comandante ria-se, quebrando o silêncio. Um pelotão de russos saiu de um edifício adjacente. Apontaram-se algumas armas, mas ninguém disparou. Os adversários fitaram-se mutuamente. Via-se igual resignação e cansaço em ambos os lados. – Não vale a pena – alguém gritou. Alguns soldados atiraram as armas para o chão e o exemplo foi seguido pelos restantes. Pedidos de desculpa foram lançados em várias línguas. O céu voltou a ficar iluminado. – E é assim que acaba! Os clarões sucediam-se com maior frequência e pareciam vir um pouco de todos os lados. A expressões de desolação transpareciam o destino que os esperava. Restavam-lhe minutos, ou talvez segundos. Caminhou para o russo mais próximo e num impulso abraçouo. – Desculpa o que fiz ao teu país – disse-lhe e os olhos de quem fora o seu oponente mostraram-lhe que percebera a intenção. – Já não faz diferença – respondeu-lhe o russo, com um forte sotaque. Todos sabiam que assim era. David foi ofuscado por um clarão e sentiu-se arrastado por uma força imensa. Para ele, o mundo acabara. A Escuridão A notícia apanhou-os desprevenidos. Um momento antes, Rui olhara pela janela, um pouco mal disposto com os solavancos do autocarro. O ar condicionado estava ligado no máximo. A maioria dos passageiros dormia, embalada em sonhos alcoólicos, ignorando os campos envoltos na escuridão que ladeavam a estrada. O rádio em meia voz mantinha o condutor acordado. No regaço de Rui, dormia Débora, uma geneticista de cabelo castanho ligeiramente ondulado, cortado pelos ombros. Os grandes óculos, a saia por baixo do joelho e a blusa de mangas longas e sem decote faziam com que passasse despercebida. No banco do lado oposto, dormia Rita, a especialista em engenharia nuclear. Tinha olhos azuis, vestia calções de ganga e um top branco, ostentando o cabelo liso num rabode-cavalo loiro. Ali viajavam os maiores especialistas do país, forçados a viver num local remoto por causa da guerra. Estavam autorizados a visitar a cidade uma vez em cada dois meses, com intuito ver familiares que já lá não viviam, uma desculpa para se poderem divertir e apanhar uma bebedeira. De súbito, a música foi interrompida. – Notícia de última hora! Há poucos minutos as forças ocidentais tomaram a praça central de São Petersburgo – o jornalista gaguejou. – Há evidências que várias ogivas nucleares foram lançadas pela aliança sino-russa. Voltaremos a este assunto assim que possível... Espero que isto não seja verdade, senão estamos todos f... Quando a emissão foi cortada, já o seu batimento cardíaco acelerara e meia dúzia de cientistas saltara do banco. O condutor travou bruscamente, fazendo dois engenheiros cair no corredor e acordando os restantes. A tremer, o motorista quarentão retirou o livro amarelo do invólucro plástico. Ao abrilo, várias cabeças debruçaram-se sobre as páginas. Débora olhava-o confusa. O silêncio reinava. O autocarro arrancou, não demorando a atingir uma velocidade vertiginosa. – Desculpa, adormeci em cima de ti – constatou constrangida, endireitando-se num ápice e observando a agitação – O que se passa? – Parece que lançaram umas bombas nucleares na Rússia – comentou Rui, procurando esconder o pânico. – Isso é horrível! – fixou-o nos olhos e engoliu em seco. – Pode ser a última oportunidade de te dizer... Com uma guinada súbita à esquerda, o autocarro saiu da estrada. Houve gritos. O veículo não se despistara, havia apenas enveredara por um estreito carreiro. Seguiram em grande velocidade e aos solavancos durante uns metros. Sentiu-se sacudido com violência para a direita, seguido de um impacto. Percebeu que haviam destruído uma cancela. Seguiu-se uma derrapagem, imobilizando-se num espaço aberto. O motorista saltou para fora do veículo, correndo em direcção ao portão blindado do abrigo. Os dois soldados à entrada apontaram-lhe as metralhadores de assalto, obrigando-o a parar. – Pare ou disparamos! – Protocolo Camões! Protocolo Camões! – anunciou, acenando-lhes com o livro amarelo. – Não fomos informados de nada – declarou um terceiro, saindo do posto de controlo. – Acabou de passar no rádio, para além disso, tenho comigo especialistas indispensáveis. Código J2. Não vão querer ser responsabilizados se algo correr mal, pois não? – Acalme-se, mesmo que quiséssemos deixá-lo entrar, não podemos, não temos os códigos de acesso... – Eu tenho-os aqui – insistiu, acenando com o livro amarelo. – Não há tempo a perder! Os soldados afastaram-se e o motorista aproximou-se do painel. Os cientistas abandonaram o veículo, ajuntando-se em frente à porta blindada. O tenente inseriu a chave na ranhura e rodou. O motorista introduziu o código que um dos soldados lhe ditou em voz alta a partir do livro. Esperaram em silêncio mas a porta nem se mexeu. – O protocolo Camões foi activado! – anunciou um dos soldados, abandonando a sala de comunicações. Vinha esbaforido e era seguido por outros dois. O portão blindado da construção imponente de betão massivo começou a mexer-se. Rui notou que Rita se posicionara do seu lado direito, observando o procedimento com um ar sério. Apesar da gravidade da situação, não conseguiu deixar de admirar os seus belos olhos azuis. Sentiu-se empurrado com força. Vários cientistas lançaram-se à brecha, rastejando e agredindo-te como animais em desespero. Um disparo fê-los imobilizar. – Um de cada vez! – ordenou o tenente, um homem alto e atlético, apontando ainda a metralhadora para o ar. – E vocês vão buscar o conteúdo do paiol e da dispensa. Quando as munições e comida estavam no interior, o tenente voltou a rodar a chave, retirando-a de seguida. O portão fechou-se com a mesma lentidão com que se tinha aberto. Quando as luzes se acenderam, o interior era um armazém espaçoso. – Vamos ter de ficar aqui? – duvidou Rita, observando o interior vazio e cinzento. – Segundo o livro amarelo, há uma parte habitável, quatro metros abaixo da superfície – informou o condutor. Avançaram até encontrarem outra porta blindada, numa das paredes laterais. Introduzidos chave e código, esta abriu-se quase de imediato, dando acesso a uma escadaria. Desceram os dois lanços de escadas, atravessando outra porta, a qual não precisou de nenhuma autenticação. Deparam-se com um espaço circular vazio, continuaram em frente até chegarem a uma sala cheia de painéis. O especialista informático lançou-se sobre o teclado, começando a digitar comandos num ritmo frenético. – Porreiro, parece que temos ligação de satélite com o exterior! O resultado não tardou a aparecer nos ecrãs. Milhares de linhas que definiam as trajectórias dos mísseis intercontinentais. Sobre cerca de um quarto das cidades do planeta havia o ícone nuclear. A cada segundo o número crescia, marcando as cidades atingidas. Uma gargalhada irrompeu o silêncio. Débora começou a chorar baixinho, abraçando-se a Rui. Houve outros que deixaram as lágrimas correr, mas a maioria ficou silenciosa, de olhar fixo nos monitores, sem saber que não voltariam a ver a luz do sol. As mentes mais pragmáticas desviaram os olhos dos ecrãs, fingindo-se ocupadas. Alguns quiseram vaguear. Rui descobriu com eles os vários níveis e corredores, onde se podia comer, dormir, fazer desporto e até ler ou ver um filme. Escolheu um quarto simples quase na extremidade do dormitório. Depois de anos a dormir ao lado do engenheiro naval, o Guilherme, estar sozinho era o melhor que lhe poderia acontecer. Odiava aquele gordo ressonava que nem um motor. Largou a carteira, o porta-chaves, um bloco de notas e telemóvel sobre a cama. Observou os documentos com desdém. Sabia que se haviam tornado inúteis, tal como a posição de certas linhas imaginárias. Por fim, atirou tudo para uma gaveta, conservando só o bloco, onde mantinha registos ligados ao seu trabalho. Tinha consciência que até isso se tornara obsoleto, contudo, sem ele sentia-se nu. O cansaço levou a melhor e adormeceu sem dar conta. Foi acordado por um bater insistente na porta. Abriu os olhos, atordoado por uma súbita dor de cabeça. Pela fresta de luz surgiu a cabeça de Nuno, o analista de dados. – Ei, tens de vir até à sala de controlo! – O que é que se passa? – devolveu, esfregando os olhos. – Temos um problema grave e precisamos de tomar uma decisão em conjunto – explicou, desaparecendo de seguida. Suspirou, puxando os lençóis com violência. Chegou à sala pouco depois, encontrando já meia dúzia de pessoas. O olhar prendeu-se em Rita, que se encontrava de frente para um ecrã com uma imagem de satélite. – O que é que se passa? – Rui, estás a ver isto? – disse-lhe, apontando com o dedo para várias manchas cinzentas espalhadas pelo mundo, sem desviar os olhos da imagem. – Isto é fumo libertado pelas cidades em chamas. Milhões de toneladas de dióxido de carbono estão a ser lançadas para a atmosfera. – Tens uma ideia da quantidade? Ela olhou-o nos olhos com uma expressão triste. – Podes confirmar as contas se quiseres mas, na minha estimativa, quando isto terminar a temperatura média vai aquecer cerca de doze graus. – Isso é... – ensaiou, numa tentativa fútil de quantificar a dimensão da tragédia. Ficaram os dois em silêncio. Meteorologia era a sua especialidade. Tinha consciência que não era só a temperatura que iria mudar. O degelo será brutal e o nível do mar iria subir uns bons metros. Ventos fortes, tornados, furacões, inundações. As correntes marítimas e os ventos dominantes iriam inverter-se. As áreas secas iriam tornar-se um deserto. Até as próprias estações iriam mudar. – Bolas! Finalmente funciona! Todos se viraram para Tiago, o engenheiro de telecomunicações, que estava à frente de um pequeno terminal, onde corriam várias colunas de números. – Estive a tentar captar as ondas rádio – explicou, ao ver as atenções sobre si. – As principais emissoras não dão sinal. Quando digo que não há sinal, quero dizer nem sequer sinal fraco derivado da falta da rede de retransmissão. É que nem sequer encontro o contínuo da emissão interrompida. Varri toda a largura de banda e nada! Contudo, se falarmos de sinais rádio, as coisas são muito diferentes, há inúmeras mensagens a circular em tempo real. Há mais sobreviventes como nós! – É muito difícil comunicar com eles? – Amigo, isso é canja – revelou com um sorriso. – Mesmo que não estivéssemos equipados com transmissores, até um adolescente podia montar um. Rui ignorou os restantes comentários, desejando um terminal onde pudesse correr algumas simulações com a nova concentração de dióxido de carbono. Alguns minutos depois, encontravam-se todos reunidos, incluindo os soldados, armados com as metralhadores de assalto. – Não precisam de vir para aqui com essas coisas – queixouse um cientista franzino, notoriamente intimidado. – Peço desculpa por ter trazido os homens armados, mas a situação exige-o. Temos de tomar uma decisão e é necessário que seja vinculativa – afirmou o tenente. – Já agora, qual é o problema tão grave que exige a nossa presença? O tenente fez sinal ao engenheiro informático, que ligou um dos ecrãs. Uma câmara exterior captara uma pequena multidão que esperava em frente ao portão do abrigo. – O que é que fazemos? O protocolo diz que uma vez selados, os portões não devem ser abertos até que se prove que o perigo passou. Eu posso decidir isto sozinho, mas gostava de ter a vossa opinião. – Eu acho que devemos abrir – opinou o especialista em electrónica. – Este abrigo é sustentado por um gerador nuclear, desculpem a ironia, e há mantimentos e espaço para 200 pessoas durante cinco anos. Somos de momento 51, não vejo por que não haveremos de acolher os trinta que estão lá fora. – Eu concordo – aventurou-se Rui. – As condições climatéricas lá fora vão ser extremas nos próximos meses e são uma ameaça à população. Levantaram-se diversas vozes de apoio. – Alguém está contra? – interrompeu o comandante do destacamento. Rita levantou-se e olhou-os. De imediato fez-se silêncio na sala. – Para que isto fique claro, eu escrevi parte desse protocolo. Há uma razão para as portas não poderem ser abertas. A radiação exterior é de 4 sievert por dia e irá demorar pelo menos dois anos a descer para metade. O abrigo filtra o ar para essa poeira não entrar, mas se abrirmos as portas e deixarmos entrar aquela gente ficaremos contaminados. Eles estão condenados, temos de entender isso! Em seis horas já todos receberam doses que os vão impedir de ter filhos saudáveis. Para além disso, a maioria morrerá nos próximos meses. – Podíamos só abrir o portão exterior e deixá-los entrar no compartimento exterior... – Quem é que se voluntaria para o fazer? Quem o fizer terá de ficar lá com eles. E já agora, sem comida, de que lhes serve o compartimento exterior. Não os podemos ajudar e tentar é suicídio. – O argumento parece-me bom – decidiu o militar. – As portas irão permanecer fechadas e guardas armados ficaram nesta sala e à entrada. Rui deitou um último olhar às famílias de olhar suplicante. O sol ia alto. Eles iriam esperar dias, até se aperceberem que as portas não se iriam abrir. Aquele era o preço da sobrevivência. A maioria decidiu dedicar-se ao que sabia fazer melhor para evitar pensar demais. *** Abriram a porta de rompante, interrompendo o seu sono. Era Débora e vinha coberta em lágrimas. Rui tomou nota mental para começar a trancar a porta. – Aconteceu uma coisa horrível – anunciou, abraçando-o sem lhe dar tempo de se levantar. – O que foi? – perguntou, devolvendo o abraço e passandolhe a mão pelo cabelo, mesmo sabendo que isso lhe poderia dar falsas esperanças. Ela preferiu chorar e soluçar durante uns momentos. Finalmente levantou a cabeça, fixando-o com um olhar sério por entre os cabelos desgrenhados. – Mataram a dona Margarida! *** Os habitantes do abrigo reuniram-se à volta da vítima. Um único buraco na têmpora da sexagenária denunciava a causa da morte. Sussurravam entre eles como tal poderia ter acontecido. Sabiam que o eco se iria multiplicar num espaço fechado, não dando qualquer hipótese que um disparo ocorresse incógnito. – Eu sugeria que se revistasse os quartos, para encontrar a arma do crime – sugeriu uma mulher. – E se foram os soldados? – Porque haveriam de fazer isso? O tenente ergueu-se, enfrentando-os. – Eu não tenho interesse nenhum em matar-vos e estou-me pouco lixando com quem toma as decisões. Se vocês são tão inteligentes como parecem, iriam perceber que as armas que temos têm um calibre superior à do homicídio. Quem matou esta senhora vai ser apanhado e castigado... – fez uma pausa, olhando-os nos olhos. – … com a pena capital. *** Deixou-se cair na cama, estafado mas satisfeito. Passara o dia em frente a um ecrã, instalando o programa de simulação atmosférica. Confirmou os valores de Rita e aproveitou para passar tempo com ela. Introduziu dados nos servidores que integravam a base. Apesar do grupo de computadores servir para jogos de guerra, nada como uma limpeza ao disco e uma instalação fresca para os tornar numa ferramenta perfeita. Mesmo depois das bombas terem parado de cair, o cenário era devastador. O fumo e as poeiras espalhavam-se nas imagens de satélite, sinal que as cidades continuavam a arder. Parecia impossível que alguém no exterior pudesse sobreviver. Bateram de leve à porta. – Entre – autorizou, esfregando os olhos. A maçaneta rodou devagarinho, como se não quisesse chamar à atenção. Lembrou-se que estava no último quarto do corredor. Teve medo. Rita esgueirou-se para o interior com um sorriso, fechando a porta com a mesma delicadeza com que a abrira. – Então, já estás a dormir? – Estou bastante cansado, foi um dia muito longo. – Sim, sim, estás à espera que a Débora te venha aquecer a cama... – escarneceu, aproximando-se com passinhos pequenos. – Não acho que ela esteja assim tão desesperada... – comentou, encolhendo os ombros e levantando-se. – Como a vi sair do teu quarto hoje de manhã... – Não fizemos nada disso. – Não, desculpa estar a meter-me na tua vida... – Não faz mal... Ela lançou-se num abraço apertado, começando a soluçar no seu ombro. Agarrou-a com força, com na esperança que a ajudasse. – Tenho medo... Estamos aqui presos com um assassino... – Tem calma, aqui dentro não irá longe... Ela interrompeu-o com um beijo nos lábios. Rui deixou que as mãos descessem e obedecendo ao impulso, há muito reprimido, derrubou-a sobre a cama. Viu nos olhos dela que queriam o mesmo. *** Regou os cereais com sabor a papel com o leite em pó aguado. Agarrou na taça e procurou um lugar no refeitório. Encontrou Débora sozinha a um canto e quis juntar-se a ela. – Bom dia – cumprimentou-a com um sorriso. Ela levantou a cabeça e encarou-o com uma expressão triste. Percebeu que estivera a chorar. – Posso sentar-me aqui contigo? – Tanto me faz – respondeu-lhe, voltando os olhos para o prato. Sentou-se em silêncio. Depois de engolir duas colheradas daquela mistura horrível, decidiu animar a amiga. – O que se passa? – Ainda tens a lata de me perguntar o que se passa? – Não estou a perceber! – Julgava que eras mais inteligente! – Porque é que não me explicas? – Como se tu não soubesses! Se calhar achas que eu sou parva, só pode! Gostava é que tivesses sido sincero comigo desde o início. – Calma! – Calma o tanas! Andas a pensar mais com a cabeça de baixo do que com a de cima, por isso é que não percebes nada! – Estás a falar do quê? – E continuas, pensas que eu não sei que passaste a noite com a Rita? Agora já sei porque é que te fizeste desentendido aos meus avanços, estavas de olhar fisgado na loira. É o decote dela, não é, por ser mais pequeno que o meu? – Mas... – Já percebi, é a sobrevivência do mais forte. Espero que os teus genes passem à geração seguinte! Débora levantou-se e saiu da sala, sem lhe dar tempo de responder. *** Rui fixou os resultados no monitor. Não acreditou nos valores das colunas de números brancos sobre o fundo preto. Verificou mais uma vez os parâmetros e submeteu de novo a tarefa, pedindo uma previsão para a próxima centena de anos. Ao sair da sala de controlo, passou por ele um grupo bastante agitado. – Anda, vai haver uma reunião no refeitório, é obrigatória a presença de todos – explicou um deles. Seguiu-os, tentando captar os rumores e percebendo que não sabiam mais do que ele. A maioria dos residentes já estava sentada nas cadeiras. O tenente permanecia de pé e em silêncio. Assim que a última pessoa entrou, um soldado trancou a porta e ficou a guardá-la. – O que vem a ser isto? – reclamou um dos mais velhos. – É para vosso próprio bem – explicou fazendo sinal ao soldado que guardava a outra porta. Pouco depois uma maca coberta com um lençol branco entrava na sala. Com um gesto vagamente teatral, puxou a cobertura, revelando o corpo do motorista. O grupo ficou mudo e pálido. A garganta do condutor fora aberta num golpe oblíquo. Pegado ao corpo, ao lençol e à maca, o tom vermelho escuro do sangue coagulado agredialhe os olhos. – Alguém tem algo a dizer? – inquiriu o tenente. Ao contrário da dona Margarida, a catedrática decrépita da qual ninguém realmente gostava, o condutor era o fiel companheiro das visitas à cidade. Nunca falhara a tarefa de encontrar um bar aberto onde pudessem beber uns copos. A pedido arranjava mulheres e homens para fazer companhia àquelas almas solitárias. – Revistem os quartos todos até encontrarem as armas do crime! – sugeriu uma mulher de meia idade. – Isso está a ser feito neste preciso momento – assegurou o militar. – O que é que nos garante que não foram vocês a orquestrar isto? – acusou um dos mais velhos. – Nós sempre tivemos as armas, se quiséssemos dar cabo de vocês, já o teríamos feito. Nós estamos aqui para vos proteger! O olhar de dúvida percorreu as faces de todos, mas sem que ninguém se atrevesse a contestar. – E se não encontrarem a arma do crime? Como é que pensam apanhar o assassino? – perguntou Débora. – Se não o encontramos, teremos de tomar medidas extremas. – E que medidas são essas? – Ainda não lhe posso dizer – afirmou, voltando-se de seguida para os restantes – Se estivesse no vosso lugar, iria comer alguma coisa, a busca ainda vai demorar um pouco. Passaram três horas até os dois cabos entrarem no refeitório. Uma troca de olhares foi suficiente para o tenente perceber a mensagem. – Portanto, nenhuma das armas do crime foi encontrada. O que é que estão dispostos a fazer para apanhar o culpado? – Como assim? – exaltou-se Nuno. – Não é óbvio que estamos dispostos a tudo? Isto é uma questão de sobrevivência! – Alguém se opõe a que fiquemos aqui fechados? – Em que é que isso nos vai ajudar? – Muito simples, nesta sala ninguém tem possibilidade de cometer um crime e escapar impune. – E se o assassino não for um de nós? – Lembrem-se que acabamos de revistar o abrigo e não encontrámos ninguém. De qualquer modo, estaremos mais seguros todos juntos. – E onde é que vamos dormir? – Cada um será autorizado a ir buscar o que considerar necessário, mas apenas sairá uma pessoa de cada vez. Alguém se opõe? Os olhares deram-lhe a resposta. *** Nos dois dias que se seguiram, a cantina foi transformada num acampamento. A pedido das senhoras, uma cortina de lençóis foi erguida para separar as duas metades. Parte das mesas foram encostadas a um canto e vários colchões cobriam o chão. O tenente acabou por autorizar que saíssem duas pessoas de cada vez, de forma a poderem carregar objectos mais pesados. Houve quem reclamasse que a solução encontrada tinha sido demasiado severa. As discussões entre os membros do grupo tornaram-se mais frequentes, levando algumas pessoas a serem expulsas para mudarem de ares. Na manhã do terceiro dia, quando Débora o abordou durante o pequeno-almoço, Rui sabia ter umas olheiras enormes. Ela vinha vestida com umas calças justas, um top e trocara os óculos pelas lentes. Deduziu que ela o queria reconquistar, mas decidiu fazer-se desentendido. – Pareces cansado! – Não consigo dormir com esta gente toda à minha volta. É pior do que quando partilhava o quarto com o Guilherme. – Tens de ter calma, isto vai-se resolver... – Queres saber o que eu acho? Quem quer que seja o assassino, vai ficar quietinho e vamos passar uns bons meses aqui trancados. – Saíste-me cá um pessimista! – Estou a ser realista, já agora, porque é que vieste falar comigo? – Preciso de saber os resultados da tua simulação – pediu, com um tom que despertou a Rui instintos primários. – Qual simulação? – perguntou, distraído com os movimentos dela. – Ouvi dizer que meteste um programa a correr para prever os efeitos deste holocausto nuclear. – Quem te disse isso? – inquiriu, franzido o sobrolho. – Ouvi dizer! Quais foram os resultados? – Para que queres saber? – Pela mesma razão que tu – explicou, de súbito com um ar profissional. – Quero saber que espécies vão sobreviver a isto. Vais partilhar os resultados comigo ou estás com medo que os publique primeiro? Rui sorriu com a piada, ao aperceber-se que algumas das suas preocupações quotidianas haviam deixado de fazer sentido. – Eu corri o programa, mas os resultados foram um autêntico lixo numérico. Meti o programa a correr de novo, mas ainda não fui ver. – Ok, quando fores, avisas? Rui acenou com a cabeça, com um sorriso de orelha a orelha. Fora preciso um apocalipse para se cobiçado por duas mulheres. A oportunidade para ver os resultados, chegou durante a tarde, quando a Rita quis sair. Rui deu um salto e juntou-se a ela. – Olha, aproveito vou contigo e vejo os resultados da simulação. – Anda, eu também meti uma simulação a correr com os níveis de radioactividade – aceitou com um piscar de olho. O soldado não apresentou qualquer entrave e quando o par anterior voltou foram autorizados a sair. Quase correram até à sala de controlo. Ao chegar, Rui atirouse para a cadeira e desbloqueou o terminal. A simulação havia terminado, percorreu as colunas de números com os olhos, sem acreditar no resultado. – Rita, anda ver isto! – pediu, sem despregar os olhos do monitor. Ouviu passos atrás de si. – O que foi? – Estás a ver? – Sim, o que é que tem de estranho? – Não estás a ver? – exaltou-se ligeiramente, apontando para a última coluna. – Se calhar enganaste-te... – Não! Já verifiquei o input umas vinte vezes... Ela pegou-lhe na mão e fê-lo levantar. – Eu acho que precisas de uma pausa, esta situação está a dar-te cabo dos nervos... – sugeriu, aproximando-se dele. Rui deixou-se levar, beijando-a. As mãos de ambos acariciaram as costas. Ele quis fazê-lo mesmo ali. Afinal estavam sozinhos. Sentiu as mãos dela na barriga, descendo lentamente. Nesse momento, ouviram um barulho ensurdecedor. Foram atingidos por uma onda de pressão tão intensa que perderam os dois o equilíbrio, estatelando-se no chão. Rui deu por si estatelado em cima dela. Num ápice, rebolou para o lado e pôs-se de pé. Os ouvidos ainda lhe doíam, percepcionando um zumbido irritante e permanente. Várias sirenes começaram a tocar num tom estridente. Nos monitores apareceu um mapa esquemático do abrigo, com a fonte do problema assinalada a vermelho. Ficou paralisado ao perceber que acontecera no refeitório. Após uma breve troca de olhares, precipitaram-se os dois para fora da sala de controlo, correndo pelos corredores. Cedo o meteorologista conseguiu vantagem, deixando a engenheira para trás. Ao virar a esquina antes da cantina, deparou-se com uma metralhadora apontada à cara. – Pára! Mãos ao ar! – interpelou o tenente. – O que é que se passa? – Não te faças desentendido! De joelhos, já! Ou acabo com isso de uma vez. Com as pernas a tremer, deixou-se cair de joelhos, mantendo os braços levantados. A arma estava apontada à sua face. Um disparo àquela distância não podia falhar. – Como é que tu fizeste isto? Fala ou eu disparo! – Não sei do que está a falar, que não tenho nada a ver com o que acabou de acontecer... – Não te armes em esp... Onde antes estivera o olho esquerdo do soldado, saiu um jacto de sangue. Um momento depois, o corpo do militar caia sem vida. Olhou na direcção da origem do tiro, descobrindo Rita empunhando uma pequena arma. De súbito, compreendeu tudo o que se passara nos últimos dias. – Os meus resultados estavam certos! Foste tu! – exclamou, levantando-se. – Sim, estavas certo desde o início – confirmou, abrindo-se num sorriso como ele nunca antes tinha visto. – Como dizia a tua amiga, é a sobrevivência do mais forte. – Era preciso matá-los a todos? – O que é que achas? – ironizou, passando por ele. Ela prendeu a arma nas calças, pegou na metralhadora do militar e retirou o carregador, guardando-o na bolsa. Chegou- lhes o fumo do incêndio que se gerara. Rita atou a camisola à volta da cara e seguiu em frente, desaparecendo no interior do refeitório. Rui deixou-se ficar parado, tentando assimilar o que acabara de descobrir. Avançou decidido a pensar mais tarde, atando também a t-shirt à volta do nariz e boca. Nada o preparara para o que encontrou. As mesas e cadeiras estavam feitas em pedaços de encontro às paredes numa miscelânea de metal e contraplacado, moído e retorcido. As portas haviam deixado de existir e os fragmentos quase pulverizados estavam espalhados pelos corredores. Os corpos eram o pior de tudo, desmembrados e com parte das vísceras espalhadas pelo chão e misturadas com tudo o resto. O sangue ensopava o chão e pintalgava as paredes. Ouviu alguns gemidos. Não conseguiu ficar parado, por isso olhou em volta. Viu Rita ao fundo. Dirigiu-se a ela, a tempo de a ver atingir a cabeça de alguém. Desviou o olhar, sem conseguir assistir ao massacre. Olhou em volta, procurou pelo corpo de Débora, sem o encontrar. Mudou de ideias e aproximou-se da assassina. – Já chega! Não precisas de matar toda a gente! – Meu querido – interpelou-o, com uma tranquilidade tão grande na expressão, que lhe provocou arrepios. – São eles ou eu. Depois do que nós fizemos, não há volta a dar, ou os matamos ou eles matam-nos a nós. Lembra-te, desde que as bombas caíram que a lei da selecção natural se aplica também aos humanos. Podes estar descansado, eu não te quero matar, afinal preciso de passar os meus genes à geração seguinte. Se não tiveres estômago para isto, podes sempre ir embora. Rui percebeu que era impossível conversar, ela tinha enlouquecido. Apesar de tudo, não quis arredar pé. Ela matou outras duas pessoas, querendo inspeccionar também as casas-de-banho. De Débora nem sinal, mas com a quantidade de corpos irreconhecíveis, era impossível ter a certeza do seu paradeiro. Ouviu-se um grito a partir da casa de banho. Rita encaminhou-se para lá. De repente, um soldado dobrou a esquina, com um joelho no chão, disparando sobre ela. A engenheira foi projectada para trás, caindo de costas. A arma fugiu-lhe das mãos, indo parar perto de Rui. O meteorologista lançou-se para apanhar a arma. – Depressa, mata-o! – ordenou Rita, contorcendo-se com dores. Olhou na direcção da casa-de-banho, o militar havia desaparecido. O sangue ensopava a camisa dela, escorrendo copiosamente do ombro esquerdo. – Afinal devo-te um favor – murmurou ele. Rui empunhou a arma e apontou-a à cabeça dela. O movimento deu-se fluído e sem hesitações. Ela olhou-o com um ar suplicante. Não sentiu pena, nem remorso quando puxou o gatilho. Rita imobilizou-se instantaneamente quando o buraco surgiu na sua têmpera, explodindo com a parte de trás do crânio. – Larga a arma, já! Mãos levantadas e dá quatro passos em frente! – ouviu atrás de si. Deixou a pistola cair, com uma tranquilidade completa. Levantou as mãos e avançou, parando em frente ao cadáver da amante. Ouviu passos atrás de si. A arma foi pontapeada. Uma bota atirou-o ao chão, fazendo-o cair com a cara sobre os restos de massa encefálica da engenheira. Sentiu-se pressionado contra o chão. Quase que conseguia imaginar a arma apontada ao seu crânio. Fechou os olhos e esperou. Surpreendeu-o não sentir medo. – Já chega! – ouviu Débora gritar. – Ele não é o culpado! A pressão sobre as costas desapareceu. Um momento depois a geneticista ajudou-o a levantar-se. Havia outros seis sobreviventes. Eles encararam-no desconfiados. O soldado mantinha ainda a mão no gatilho. – Sabes porque é que ela fez isto? – inquiriu Débora. – Sim, ela tinha medo que não houvesse comida para todos durante o tempo em que vamos estar aqui fechados. – Porque vamos ficar aqui fechados? – encorajou-o a bióloga, agarrando-lhe o braço. – Há muita radioactividade no exterior. Para além disso, corri uma simulação e percebi que as poeiras e fumo resultantes das explosões estão a bloquear a luz do sol, criando uma noite permanente. A temperatura ao invés de subir, irá descer cerca de vinte graus. Os humanos não serão capazes de sobreviver no exterior. – Estamos a falar de quanto tempo? Rui olhou-os com pena, antecipando o choque que iria causar. – Cerca de trinta anos de noite total e quase um século de noite parcial. A escuridão chegara, nenhum deles veria de novo a luz do sol. A Alergia Faltavam cinco minutos para a meia-noite quando Roberto acabou de armar a bomba. Desprendeu o recipiente de latão cheio de um líquido amarelo com tons esverdeados, que ficou num equilíbrio precário em cima de uma das barras laterais. Limpou o suor da testa e beijou o anel que trazia no dedo. Ajeitou o fato, colocou a cartola e afastou-se da ponte de ferro cruzado. Àquela hora só os bêbados e as prostitutas percorriam a cidade, por isso, não achou que houvesse o risco de ser reconhecido mais tarde. Que sociedade mais decadente, pensou, sabia que cada um daqueles homens era capaz de matar por um fato de cerimónia. Não esperava que o atentado causasse muitas vítimas, já que escolhera um comboio de mercadorias numa zona ocupada por armazéns. Enquanto caminhava pelas ruas, combatia o desejo de se enfiar por um dos becos, pois pressentia que todos os olhos estavam voltados para ele. Sabia que teria de se deslocar pelas vias principais para não chamar a atenção. Os nervos eram tantos que se assustou com uma mera buzina. Quase se riu histericamente quando viu tratar-se apenas dum veículo com rodas de coche e muitas rodas dentadas que operavam fora da carroçaria. Já mais calmo, saltou para a berma de modo a deixar passar o mostrengo a vapor conduzido por algum ricalhaço. A noite estava abafada e o calor já se fazia sentir à várias semanas. O mundo mudava a olhos vistos e quase ninguém se parecia aperceber disso. Cada ano que passava era mais quente que o anterior, o fumo cobria as grande metrópoles e o nível do mar subia cada vez mais. Ninguém queria ouvir falar desses problemas, enquanto o seu estilo de vida pudesse ser mantido, todos eram alérgicos à mudança, como qualquer civilização que se aproxima do seu fim. Tudo fora planeado para que o atentado fosse atribuído aos alérgicos, um grupo extremista que defendia o uso de técnicas amigas do ambiente. Estes perseguiam uma miragem semelhante à energia solar, que se supunha ter existido há quinhentos anos atrás e que se perdera no grande holocausto. Apesar de se identificar com algumas dessas ideias, Roberto nunca fizera parte de tais círculos e não contava começar naquele momento. As suas razões eram bem diferentes. Prédios de estilo Neovitoriano passaram a ladear os dois lados da rua. Aqueles apartamentos de madeira de recortes arredondados e telhados oblíquos eram relíquias de outra era. As varandinhas cercadas de madeira branca trabalhada davam-lhe vontade de rir. Não percebia porque é que os haviam recriado, nem porque os restauravam vezes sem fim. Parecia que tinham medo de avançar no tempo, receio das incertezas do futuro e pavor de quebrar as restrições tecnológicas estabelecidas. Tudo porque outrora a espécie quase se extinguira por via das suas próprias invenções. Uma guerra nuclear não era mais possível, contudo, um desastre ambiental teria os mesmo efeitos. A humanidade estava na sua hora dourada, no seu mais importante ponto de viragem, e poucos eram os que conseguiam aperceber disso. Parou e retirou o relógio do bolso para ver as horas. Faltavam dois minutos para o comboio se encontrar com o seu destino. Ele odiava engenhos que levassem muitas engrenagens, por isso aquele era muito simples. O tremer da ponte, aquando da passagem da locomotiva, iria lançar o recipiente cheio de nitroglicerina contra um dos postes e isso bastaria para detonar o engenho. Os maquinistas nunca se atrasavam. Um portão preto de cemitério marcava o fim da sua caminhada. Rangeu terrivelmente quando o empurrou, dandolhe entrada para um espaço completamente deserto e sombrio. Uma árvore frondosa dominava a paisagem, projectado estranhas sombras no pavimento. A tranquilidade do local contrastava com a inquietação que sentia. Caminhou pelo passeio central, passando pelo poço, dirigindo-se à campa da sua noiva. Sentou-se no túmulo e acariciou a gravura do túmulo, desejando sentir novamente o toque dela. A vida não lhes fora gentil. O forte sentimento que os unia só teve como par o nefasto fim. Ela morrera atropelada por um condutor descuidado. Culpar o condutor era demasiado fácil, pois ele era apenas um produto da sociedade decadente em que estava mergulhado. Ficara fechado em casa, sem querer comer durante dias a fio. Teria morrido ali se não tivesse recebido uma visita de um dos seus amigos. A conversa que tiveram mudou-lhe a vida, conseguira canalizar o seu desespero. Desde esse dia, Roberto ouviu falar dos alérgicos pela primeira vez e, tal como eles, passara a odiar toda a tecnologia. Passara a ser alérgico a toda a roda dentada e a todo o eixo móvel. Consumido pela mágoa, quase caiu num estado de demência, até que percebeu o que deveria fazer. Tinha de destruir estes malditos monstros com corações de corda e cérebros a vapor. O seu amigo nunca o abandonou e nem negou qualquer tipo de ajuda, nem sequer quando precisou de ajuda para levar a cabo o seu plano pernicioso. Como previra, a explosão deu-se à meia-noite em ponto. Ouviu de seguida mais três rebentamentos. O clima seco e as matérias inflamáveis, tanto do comboio como dos armazéns, mergulhavam a cidade em chamas. As labaredas subiam mais alto do que esperava, o comboio deveria transportar algum tipo de mercadoria muito inflamável. Impávido, observou o fogo que galgava metro após metro sem que ninguém o pudesse deter. A tragédia abateu-se sobre a cidade. O número de vítimas escalou de dezenas para a centenas e finalmente atingiu o milhar. Quarteirões inteiros foram devastados. Não houve quem duvidasse que os alérgicos fossem os responsáveis e ninguém se preocupou com o corpo que se afogara no poço do cemitério. O monstro e a Musa O monstro Naquele fim de tarde, Walter viu o caos instalar-se nos primeiros segundos de batalha. De ambos os lados, os canhões rugiram assincronamente, enquanto o jovem corria para encontrar cobertura. Agachou-se em posição fetal, numa depressão do terreno. Não podia fazer muito mais, era um inventor, não um soldado. Enquanto a escaramuça decorria, amaldiçoou o momento em que se voluntariara para a expedição. Apesar destas montanhas pertencerem à confederação, desde cedo ficou claro que na realidade eram controladas por insurgentes. Uma das explosões deu-se à sua direita, enchendo o buraco com pó e detritos. Tanto os olhos como as vias respiratórias foram fortemente afectadas, fazendo-o tossir e lacrimejar durante vários minutos. A artilharia calara-se. Finalmente tudo tinha terminado, pensou, espreitando para fora do buraco. O que viu deixou-o transtornado: a maioria dos soldados que acompanhava a expedição estava morta ou ferida; corpos mutilados e equipamento despedaçado via-se espalhado um pouco por todo o lado. A consternação transformou-se em desespero quando viu que os restantes se tinham rendido. Ao olhar em volta, percebeu que estavam cercados pelos rebeldes. Não tardou que alguns guerreiros com couraças de couro e latão o encontrassem. Com as suas espadas e lanças, obrigaram-no a sair do buraco. Enquanto o conduziam em direcção aos outros sobreviventes, ergueu a cabeça e tentou caminhar com toda a dignidade que lhe restava. Ao contrário do que esperava, não o agrediram. Sobrara pouco mais do que uma dúzia de homens. Os inimigos observavam-nos, prontos a agir ao primeiro movimento suspeito. O momento era tenso, pois ninguém sabia o que os esperava. O que Walter tinha ouvido sobre os povos não governados fazia-o prever o pior. Abruptamente, fez-se silêncio. Os guardas afastaram-se, permitindo-lhes ver o que lhes pareceu ser o comandante. Era um homem, de traços ibéricos e estatura mediana. Não parecia ser muito forte contudo, a sua expressão impunha respeito. Estava armado de um modo muito semelhante aos restantes soldados, à excepção dos dois arcabuzes extra que trazia à cintura. – Quem é o doutor Walter Ramos? – perguntou, num tom de voz moderado. O doutor não pôde evitar estremecer. Sabia que o medo que sentia saía por cada poro e que nem a suposta dignidade conseguiria manter. Como ele permanecia estático, um dos sobreviventes empurrou-o. – Sou eu... – É um prazer conhecê-lo pessoalmente. Os seus serviços são-me necessários. Gostaria que você partilhasse os seus conhecimentos e o seu génio inventivo com o meu castro. – O que o leva a pensar que eu vou fazer isso? – retorquiu Walter, soltando a sua arrogância sem pensar. – Meu caro, creio que estará mais familiarizado com uma tal ciência, à qual antigamente davam o nome de física – fez uma pausa, olhando o prisioneiro. – Sabe melhor que ninguém que até a pedra mais pesada pode ser movida com o uso da alavanca correcta. É curioso que o mesmo se passe com os homens. Walther não sabia como responder, acabando por permanecer em silêncio. Algo lhe dizia que aquele homem ainda tinha trunfos na manga. O tempo arrastou-se de um modo tenso. – Então, qual vai ser a sua decisão? – insistiu o rebelde, mostrando-lhe que estava a ficar impaciente. – Gostava de ver que alavanca é essa! – Para ser sincero, não sei qual é a alavanca no seu caso. Se me permite, vou-lhe contar um segredo. Eu sou um grande fã do método científico e, por vezes, faço algumas experiências na minha cozinha. Provavelmente estou a aborrecê-lo com as minhas palavras, já que não deve estar muito interessado em ouvir falar da minha ciência caseira. Só queria que soubesse que irei procurar de modo perseverante a sua alavanca. Creio que irei optar pelo método da tentativa e erro – relatou, fazendo um gesto com mão. Dois insurgentes agarraram-no e levaram-no para mais perto do comandante. – Não pense que me vai convencer com ameaças! – exclamou Walter, tentando controlar o medo. – Meu caro, já deve ter ouvido falar de um jogo antigo, creio que se chamava xadrez. Era um jogo muito interessante. Para vencer era preciso antecipar as jogadas do oponente. Todavia, para se ser um mestre, era necessário cortar-lhe também as possibilidades, de modo que ele caminhasse para a armadilha por vontade própria. – Não estou a entender... – protestou o inventor. – Matem os prisioneiros que não se puderem colocar de pé! – Ordenou com um sorriso sádico. Vários soldados inimigos colocaram-se à sua frente, de modo que não pôde ver o que se passava. Não tardou que se ouvissem gritos de desespero e angústia. Quando terminou, o silêncio conseguia ser ainda mais sinistro. – Meu caro, espero que isto o tenha convencido a acompanhar-me. Walter foi separado dos restantes prisioneiros e forçado a caminhar até ao pôr-do-sol. Dormiu ao relento e, na manhã seguinte, prosseguiram viagem depois de lhe terem dado uma magra refeição. A marcha forçada por caminhos agrestes e inclinados estava a consumir-lhe as forças. Os bois e cavalos tinham ainda mais dificuldades, pois viam-se obrigados a carregar as pesadas peças de artilharia capturadas. Pelos seus cálculos, estavam a penetrar cada vez mais nos territórios selvagens. Aquela faixa montanhosa ibérica separava a Pan-Germânia da Confederação, outrora chamada de Trás-os-Montes. Nunca conseguira compreender o porquê da Confederação insistir em manter aquele enclave na península ibérica quando tinha uma boa porção da América do Sul e ricos territórios em África. Os historiadores falavam de um passado comum que acontecera há quase um milénio atrás. Para além disso, até aqueles rebeldes falavam uma língua derivada do antigo português. O dia teria ocorrido sem incidentes, se não fosse dois dos prisioneiros terem tentado a fuga. Foram prontamente apanhados e executados sumariamente, como exemplo para os restantes. Ainda o sangue dos dois homens não tinha coagulado, já a marcha continuava. Andaram o resto do dia e metade do seguinte, terminando a sua jornada numa cidadela, a qual se situava no topo de um planalto. Os portões abriram-se à sua chegada e os guerreiros foram recebidos com aclamações da pequena multidão. Walter ficou maravilhado enquanto o conduziam através da cidade, a qual não era em nada primitiva. As ruas eram paralelas, estavam impecavelmente pavimentadas e encontravam-se a abarrotar com máquinas a vapor. Os edifícios eram construídos em rocha trabalhada e estavam em bom estado de conservação. Inúmeros teleféricos transportavam tanto pessoas como carga. Era admirável como uma cidade tão sofisticada poderia existir àquela altitude e aparentemente isolada de tudo o resto. Foi levado para uma construção imponente, que deduziu ser o palácio do governador. Obrigaram-no a subir por uma estreita escada de serviço. Sem qualquer explicação, fecharam-no à chave num quarto dos andares superiores. A divisão era espaçosa e bastante melhor do que esperava. Continha uma cama, uma escrivaninha, uma cadeira, uma estante vazia e um guarda-fatos. Sentou-se na cama e, sem dar conta, deixou-se estender nela. Adormeceu por via do cansaço, pouco depois. Acordaram-no de um modo inesperado, várias horas depois, quando lhe trouxeram comida. O prato continha um pedaço de pão, um bife e alguns vegetais cozidos a vapor. Estava esfomeado, de modo que não levantou objecções quanto à qualidade do prato. Para sua surpresa, fora muito bem confeccionado. Enquanto comia, pôde admirar o pôr-do-sol, já que a varanda estava virada para Oeste. Quando terminou a refeição, levantou-se a custo, pois os músculos estavam extremamente doridos. Estava no terceiro andar do suposto palácio e o balcão proporcionava-lhe uma vista privilegiada da cidadela. A cidade possuía uma torre de relógio no centro, em frente do que Walter supôs ser a praça principal. As colunas de fumo vindas das extremidades dos teleféricos a vapor mostravam-lhe qual era a fonte de energia de toda a cidade. Avaliou o movimento e deduziu que viveriam ali entre duas a três dezenas de milhares de almas. As muralhas eram espessas e as torres de vigia estavam guarnecidas com diversas peças de artilharia, tanto contra balões como contra outra artilharia. Voltou para dentro, sentando-se na cama, desanimado. Era pouco provável que a Confederação luso-brasileira arriscasse atacar aquela cidade para o resgatar. O que acontecera nos últimos dias abalara profundamente as suas convicções. Não era só o cativeiro, chocava-o mais saber que os povos bárbaros eram tão civilizados como o resto da Confederação. Foi quase em completo desespero que adormeceu. Na manhã seguinte foi acordado, pois iria ter uma audição com o governador. Fizeram-no trocar as suas roupas esfarrapadas por um uniforme novo. Deram-lhe um pedaço de pão e um copo de água. Foi então conduzido pelos corredores até ao piso térreo. Pela primeira vez, reparou que o interior do edifício também fora construído em pedra e trabalhado com inúmeros ornamentos. Os tectos continham numerosos frescos. O que mais o desconcertava era que aquelas construções pertenciam à era pós-nuclear. O salão principal era extremamente espaçoso e a sua abóbada tinha várias centenas de metros quadrados, fazendo lembrar uma antiga catedral. Esperava ver um trono e um líder sentado nele, coroado como os antigos reis, contudo não foi isso que encontrou. O comandante estava no centro da sala, acompanhado por um punhado de homens que supôs serem ministros. Em ambos os lados, mais afastados, estavam alguns soldados. – Meu caro, espero que tenha gostado da estadia que lhe proporcionei – cumprimentou o comandante, sem quaisquer traços de ironia. – Quem é o senhor? – devolveu-lhe Walter, pensando que estavam a brincar com ele. – Peço imensa desculpa, não me tinha apresentado. Deve pensar que não passo de um selvagem, não é isso que chamam às gentes deste território? Eu sou Artur Olivais e sou o líder deste castro – e virando-se para os restantes – e este é o famoso doutor Walter Ramos, o inventor que veio do alémmar. Walter continuava confuso, questionava-se como é que um líder poderia comandar pessoalmente ataques à Confederação. Era preciso uma grande dose de imprudência para o tentar e sangue-frio para o conseguir. Artur levantou a mão e fez um gesto. Imediatamente várias cadeiras foram dispostas, formando uma meia-lua em frente de Walter. Sentiu um movimento por trás de si e, ao olhar, descobriu que um dos criados acabara de colocar uma cadeira perto de si. – Sentemos-nos. Acredito que temos muito que conversar – pediu Artur. – Eu exijo saber se este tal inventor pode resolver o nosso problema. Relembro que a sua captura foi custosa em material e homens e que ainda pode acalentar outras consequências mais graves – protestou um homem magricela à direita. – Silêncio Xavier, observa primeiro, fala depois – comandou Artur, dispensando o ministro com um gesto. – Caro doutor Ramos, presumo que deve estar familiarizado com o que desencadeou o fim da era nuclear. Gostava que nos falasse um pouco sobre isso. – Se é de história que quer ouvir falar, pois bem, enganou-se na especialidade. Deveria ter raptado um historiador, não um inventor – replicou Walter, lançado um sorriso trocista a Artur. – Como é que ele se atreve a falar assim contigo? Eu exijo que o castigues imediatamente! – exaltou-se um homem oponente de cabelo grisalho, também ele sentado à esquerda de Artur. – Tem calma Aristides, precisamos dele vivo e inteiro. O senhor Ramos tem uma língua muito pouco domesticada, especialmente tendo em conta a sua situação precária. Agradecia que evitasse comentários jocosos enquanto estiver reunido com o concílio que rege este castro. Não se esqueça que temos os restantes membros da sua expedição como reféns. – Não sei porque é que me está a perguntar isso. Só sei que a era nuclear terminou com o grande cataclismo. – Já irá saber os meus motivos mas, primeiro, gostaria que nos falasse das razões desse cataclismo. – O petróleo era um recurso finito e, quando começou a escassear, várias nações entraram em guerra pela posse das últimas reservas. O conflito agravou-se, transformando-se numa guerra mundial. Os conflitos mundiais duraram oito anos, em que vários milhões de pessoas pereceram. Não foram usadas armas nucleares, pois todos sabiam que isso poderia causar a extinção da espécie humana. Todavia, a aliança euro-asiática foi colocada numa posição delicada nos últimos estádios do conflito e decidiu usar o seu arsenal nuclear – relatou Walter. De seguida, levantando-se abriu os braços com as palmas da mão viradas para o chão – A morte desceu dos céus e o mundo antigo desapareceu, para sempre – citando a frase que era ensinada a todas as crianças – Óptimo, eu não teria feito melhor. Deixe-me dizer-lhe que tem excelentes dotes de orador. Agora, se não se importar, podia falar-nos um pouco do que aconteceu depois do grande cataclismo? – A maioria da população mundial morreu nesse dia. Nações inteiras foram apagadas do mapa. Os diversos líderes sobreviventes reuniram-se e decidiram destruir toda a tecnologia da era nuclear, de modo a evitar que algo semelhante pudesse voltar a acontecer. – O Homem não deve possuir nem criar meios para se autodestruir – citou Artur, afastando algo imaginário com a mão esquerda. – Vejo que está bastante informado sobre o assunto... – Poupe-nos o comentário. Já que insiste, vou directo ao assunto. Eu pretendo que recrie uma tecnologia da era nuclear. Walter levantou-se impetuosamente e aproximou-se de Artur. Por um momento, perdera todo o medo, pois sentia que estava a servir um propósito maior. – Bem, acho que me pode matar já. Não há nada que me convença a desenvolver tecnologia proibida e tenho a certeza que todos os outros sobreviventes são da mesma opinião. Mais facilmente abdicaremos das nossas vidas do que participaremos em tal loucura – gritou, apontando o dedo a Artur. – Peço que se acalme – ordenou o líder, pedido, com um gesto, aos outros membros do concílio que fizessem o mesmo. – Diga-me, quais são as sete tecnologias proibidas. Sabe-as de cor? – Claro que sei, é a primeira coisa que nos ensinam quando entramos na Academia Imperial das Ciências – constatou Walter, admirado com a aparente calma de Artur. – Diga-as, em voz alta. – É proibido manipular núcleos atómicos, assim como realizar fissuração e fusão nuclear. É proibido desenvolver propulsão a jacto ou qualquer outro projéctil ou veículo, tripulado ou não, que exceda a velocidade do som. É proibido construir máquinas que efectuem cálculos complexos mais rápido que a mente humana. É proibido acelerar e colidir qualquer partícula atómica e sub-atómica. É proibida a criação de compostos químicos que sejam altamente inflamáveis, corrosivos, explosivos ou tóxicos, sendo a única excepção a pólvora preta. É proibido manipular cadeias de DNA e a criação e manutenção de organismos altamente infecciosos ou letais para a espécie humana e ecossistemas em geral. São proibidas experiências psicológicas com o objectivo de ler ou manipular a mente humana. Qualquer pessoa, independentemente do estatuto, que viole ou tente alguma destas regras receberá a pena capital e todos os registos do seu trabalho devem ser imediatamente destruídos. Estas são as regras para evitar que a espécie humana se auto-destrua. – Excelente dicção e não lhe encontrei nenhuma falha – congratulou Artur, batendo palmas. – Contudo, julgou-me mal, eu sei perfeitamente os limites. Somente sou bárbaro na vossa designação e não tenho ilusões megalómanas de poder. O que eu pretendo não irá violar nenhuma dessas regras. – O que é que você pretende, então? – inquiriu Walter, confuso com mais uma reviravolta. A face de Artur abriu-se num sorriso, enquanto se levantava e fazia sinal ao concílio para o imitar. – Eu vou deixar que você próprio descubra. Isto é, vou-lhe mostrar o problema e você irá sugerir uma solução – anunciou o líder, apontando para a saída. – O que o leva a crer que eu irei trabalhar para si? – hesitou Walter, mantendo a sua posição. – Já tivemos a conversa das alavancas uma vez, não julgo que seja necessário repeti-la. Acho que o próprio problema poderá ser um estímulo importante. Agora siga-me, tenho a certeza que a curiosidade o está a afectar mais do que queria. Saíram do palácio e enveredaram pela rua principal. Apesar de ser hora de ponta, a multidão abria alas para os deixar passar. O inventor viu que a cidade possuía várias fontes com água corrente, apesar se encontrar num ponto alto. Ao observar o pavimento, descobriu pequenas fissuras nas extremidades da via, o que provavelmente corresponderia a esgotos. A conversa enigmática despertara-lhe um grande interesse. Questionava-se sobre o que é que uma cidade-estado tão avançada poderia ainda precisar. Por mais que se esforçasse, só lhe ocorria matérias de índole bélica. Apenas meia dúzia de soldados acompanhava a comitiva. Walter perscrutava cada face e cada beco, na esperança de poder escapar. – Caro Walter, se me permite que o trate assim, não acho que uma tentativa de fuga seja uma coisa sensata de se fazer. Para além de ser pouco provável que tenha sucesso, os outros prisioneiros sofrerão as represálias. Pense neste passeio como um presente – sugeriu-lhe Artur, entrecruzando os dedos numa atitude de auto-confiança. O inventor parou e olhou-o, surpreendido. Parecia-lhe impossível aquele homem estar sempre um passo à sua frente. Apercebeu-se, tarde demais, que se o líder tinha uma suspeita, o seu comportamento confirmara-a. Só lhe restava continuar a andar e ver o que ele tinha para lhe mostrar. Pararam de frente para uma fornalha, cujo vapor fazia movimentar uma das linhas de teleférico. A construção tinha o tamanho de uma pequena moradia. Um homem colocava regularmente carvão no forno. – Está a ver esta fornalha? Tenho a certeza que este tipo de equipamento lhe é familiar. Pode explicar-nos como é que funciona? Walter olhou-o zangado. Não lhe tinha mostrado nada de extraordinário e ainda queria que ele embarcasse noutro dos seus esquemas mentais. – Porque raio é que você não vai directo ao assunto? – protestou, agitando violentamente os braços. – Tenha calma, esse temperamento faz mal à saúde. Acho que não vai contra a sua consciência explicar o funcionamento da máquina a vapor, assim os meus assessores ficam todos com o mesmo nível de conhecimento – apaziguou-o Artur, soltando uma gargalhada ligeira. O inventor não pode evitar rir-se também, face ao insulto que ele dera aos seus adjuntos. De algum modo, aquele homem extraía de si as emoções, como um músico fazia com um instrumento. – A fornalha aquece a água, que é transformada em vapor. Usando a pressão daí resultante, faz-se movimentar o pistão e assim se gera um movimento circular que pode ser usado para inúmeros fins... – Exacto, eu não explicaria melhor. Agora, peço-lhe que deixe parte da aplicação prática e que nos diga quais são os requerimentos da máquina. – É necessária uma metalurgia suficientemente avançada para fundir as partes necessárias, água em estado líquido e carvão. – Meu caro, julgo que observou um pouco do nosso modesto castro. Diga, qual acha ser a maior limitação que enfrentamos no uso de tal maquinaria? – Vocês parecem possuir a técnica necessária para fundir o aço e água corrente em abundância – Walter parou e olhou Artur nos olhos. Finalmente percebera comunidade. o problema que afligia aquela – Falta-vos o carvão. – Precisamente! O carvão também é um recurso finito. Ainda há poucos minutos nos relembrou as consequências de uma guerra motivada por escassez energética. Quando o carvão não for suficiente para todos, haverão outras guerras – concluiu o líder, com um gesto de triunfo. – Isso é alarmismo! Se bem me lembro, um dos génios e visionários da era nuclear disse que não sabia como seria a terceira guerra mundial, mas que a quarta seria com paus e pedras. Se compararmos o potencial bélico dessas nações beligerantes durante o grande cataclismo e o que possuímos agora, provavelmente eles nos chamar-nos-iam de primitivos – interveio Aristides, colocando um braço em frente de Artur como que impedindo-o simbolicamente de avançar. – Meu caro Aristides, eu nunca esperei que levasses esta ameaça a sério – revelou, fazendo-lhe um sinal para que baixasse o braço. De seguida, virou-se para os restantes. – Não nos iludamos ao pensar que, por via das restrições tecnológicas, uma guerra à escala mundial não será tão terrível como a anterior. Pelo contrário, será mais longa e matará mais pessoas. Temo que qualquer nação que enfrente a obliteração possa cair na tentação de desenvolver e usar tecnologia proibida. Se isso acontecer, a ameaça de extinção pairará mais uma vez sobre a nossa espécie. Walter não precisava de mais explicações, compreendera finalmente a razão para o seu sequestro. Artur sabia muito bem o que fazia, pois só um inventor com a sua especialidade e bastante capacidade poderia resolver o problema. – Exijo saber se este homem pode ou não resolver o problema! Já estamos a prolongar esta conversa há demasiado tempo – protestou Xavier, visivelmente impaciente. – Xavier, espera um momento, já iremos abordar esse assunto. Caro doutor Ramos, peço desculpa pela interrupção. Consegue estimar quantos habitantes tem o castro? – Estimei que haverá cerca de vinte a trinta mil. – É uma boa estimativa. Se juntarmos os que vivem no vale e as vilas satélite, são cento e dez mil habitantes, segundo o último censo. Consegue estimar quanto carvão é necessário por ano para manter este nível tecnológico? Walter fez o cálculo de cabeça, ficando mais consciente do problema. – Um quarto de milhão de toneladas por ano. Quantas minas activas possuem? – É uma estimativa admirável, pois está muito perto dos valores oficiais. Em todo o território, há apenas uma mina – confessou Artur com um sorriso amargo. – A capacidade foi avaliada e o carvão nesse jazigo situa-se entre um milhão e um milhão e meio de toneladas. Ou seja, há energia para mais quatro a seis anos. A questão que está na sua cabeça é muito facilmente respondida, foram feitos grandes esforços para encontrar outras minas e todas praticamente infrutíferas. O carvão encontrado nos últimos dez anos não dá sequer para suprir as necessidades energéticas desta cidade durante meio ano. Aristides, conta-lhe o que ficou decidido no último concílio estratégico-militar do castro. – Não considero apropriado contar a um estranho as nossas resoluções internas, quando nem sequer o fazemos ao comum dos cidadãos – objectou outro dos assessores, um homem baixo e redondo. – Fábio, ele precisa de saber para melhor desempenhar o seu trabalho. Aristides, por favor, explica ao senhor Ramos quais as consequências da escassez energética. – Entraremos em guerra, tentando expandir o território para Norte, de modo a obter as minas de carvão aí existentes. – Porquê? – questionou Artur de um modo retórico. – Porque caso não o façamos, estimamos que metade da população diminua pelo menos um terço, nos dez anos seguintes ao fim do carvão. – E quais são as reservas existentes a Norte? – insistiu o líder do castro. – Estimamos algo entre sete a oito toneladas. – Como vê, caro doutor Ramos, a guerra seria apenas uma solução temporária. É necessário aceder e controlar outras formas de energia. Agora percebe porque está aqui? Pode explicar a estes senhores qual é a sua especialidade? O inventor olhou os adjuntos com confiança no olhar. Passou a mão pelo cabelo para afastar o nervosismo, como costumava fazer antes de qualquer apresentação importante na Academia Imperial de Ciências. – Eu estudo a electricidade e o seu potencial para substituir o carvão como fonte de energia. Nesse momento, Walter ficou estupefacto com a sua própria reacção; a escolha de palavras e gestos de Artur tinham sido impressionantes. O líder do castro encontrara a alavanca certa. A musa Walter acordou quando os primeiros raios de sol entraram pela janela. Um sorriso aflorou-lhe nos lábios quando sentiu a mão de Eva sobre o seu peito. O sorriso cresceu ao relembrar a noite fantástica que havia tido com a criada. Com cuidado, afastou o braço dela e levantou-se. Ao afastar os lençóis, não pôde evitar apreciar a forma esbelta da jovem. Sentindo crescer dentro de si um desejo intenso, resistiu à tentação de a acordar, pois não queria chegar atrasado. Pé ante pé, aproximou-se do guarda-fatos e retirou um dos uniformes de inventor que lhe fora dado. Assim que vestiu as calças, apercebeu-se que ela despertara. – Bom dia – cumprimentou, olhando-a com um sorriso. Havia algo nela que o empolgava. Pensara no assunto várias vezes e chegara à conclusão que só podia ser alguma coisa relacionada com a personalidade. Desde o primeiro dia, em que a rapariga fora encarregada de lhe trazer as refeições, que sentira uma atracção irresistível. Ela tinha apenas dezassete anos contudo, a nível psicológico, parecia muito mais madura. Os sentimentos pareciam ser mútuos, de modo que a relação evoluiu rapidamente para um nível mais sério. Uma ou duas vezes por semana, passavam a noite juntos. Eva ergueu-se, expondo sensualmente os seios, numa atitude de clara provocação. Respondeu-lhe à saudação, enquanto passava a mão pela pele morena do seu tronco. Walter não sabia qual a razão para ela assumir um comportamento tão atrevido, todavia, ele adorava. – Tenho que sair rapidamente. Preciso de inspeccionar os trabalhos antes de falar ao concílio – explicou o inventor, apertando os botões da camisa. – É pena – comentou a criada, arqueando as costas e projectando o peito. A mão passou pelos seios, desceu pela barriga e desaparecendo por baixo dos lençóis. Com um movimento insinuante, entreabriu a boca e encarou-o com um olhar felino. – Caso contrário, poderíamos brincar mais um pouco – acrescentou – Desculpa, eu gostava muito, mas tenho mesmo de ir. O que é que fazes logo à noite? – convidou, vestindo o casaco. – Não sei... – murmurou Eva, fingindo hesitar – Depende do que tu quiseres. Walter sentiu o corpo reagir involuntariamente quando ela passou o dedo pelos lábios. – Sabes bem o que eu quero. Agora tenho mesmo de ir. Até logo – despediu-se, abrindo a porta. – Espera! – ordenou-lhe, saindo da cama inesperadamente. O beijo foi breve, todavia suficiente para lhe deixar um sabor adocicado na boca, uma sensação que normalmente o acompanhava durante uma grande parte do dia. Quando se separaram, ele fechou cuidadosamente a porta e entrou na porta seguinte, a poucos passos. Ainda estava instalado no mesmo quarto onde o haviam colocado no primeiro dia. Como não havia uma academia de ciências no castro, um salão adjacente havia sido convertido num laboratório, onde Walter poderia testar os protótipos antes de os aplicar na realidade. À excepção de uma fina camada de pó, as mesas estavam quase vazias, já que os experimentos falhados empilhavamse nas prateleiras e os que haviam sido bem-sucedidos estavam instalados no terreno. Walter enfiou o molho de folhas amarelas na sua pasta de couro e, com ela debaixo do braço, saiu e voltou a trancar a porta. Abandonou o palácio pela escada de serviço, vendo-se em poucos segundos rodeado pelo movimento intenso daquela hora matinal. Durante os últimos seis meses, pudera seguir uma rotina, como sempre fizera e tanto gostava. Esta só havia sido perturbada duas vezes: a primeira acontecera quando os seus companheiros de expedição tentaram fugir, a segunda fora quando teve de apresentar os resultados obtidos ao fim dos três primeiros meses. A execução dos que o acompanhavam ainda lhe causava arrepios pela violência e crueldade com que fora posta em prática. Não tivera outra escolha que não fosse assistir ao cumprimento da pena. Tivera de apelar a todo o seu autocontrolo para não reagir, enquanto os seus conterrâneos eram espancados até à morte. Isso quebrara a ligação à sua vida anterior e ele tinha quase a certeza que fora orquestrado por Artur. Porém, sem provas, o melhor era manter-se em silêncio. Apesar do nervosismo, os seus resultados haviam sido bem recebidos há três meses atrás. Pouco mais tinha do que alguns projectos e um par de protótipos funcionais. O forte dos assessores não era a ciência e, com alguma complacência de Artur, conseguira ser bem recebido. Todavia, eles haviam exigido uma aplicação prática ao fim de meio ano. Para tal, disponibilizaram-lhe uma equipa de trabalhadores e técnicos, dando-lhe igualmente liberdade total em termos de materiais a usar e de onde iria aplicar as suas criações. Prometeram-lhe também que lhe dariam a liberdade assim que fosse bem-sucedido. Dentro de duas horas teria de apresentar os seus resultados e, depois de tão grande investimento, não esperava que lhe facilitassem a vida. Perdido nos seus pensamentos, chegou rapidamente à estação de bombeamento de água que servia toda a cidade. O anterior sistema elevava a água através de uma corrente de baldes. Fora o primeiro local onde quisera intervir, pois uma pequena escassez de carvão poderia comprometer o fornecimento de água à cidade. Através de moinhos de vento e um reservatório maior, conseguira bombear quase um quarto das necessidades da cidadela. Tudo isso fora obtido sem necessidade de energia eléctrica, nem um grande aparato, o que significava que ainda teria um grande trabalho pela frente. Pensara em ligar vários motores eléctricos e armazenar a energia num condensador gigante. Assim, mais tarde, poderia ligar aos outros sistemas da cidade e fornecê-la mesmo quando não houvesse vento. – Bom dia, Jorge – cumprimentou, aproximando-se do operador da maquinaria – como é que o sistema se está a portar hoje? – Muito bem, ainda não foi preciso acender a fornalha. Estamos a bombear quase três mil litros por minuto. Estamos a poupar duzentos quilos de carvão por hora – reportou o homem que, apesar de ter a cara suja, apresentava um sorriso. – Excelente. Algum problema técnico que eu deva saber? – O mesmo de sempre... Quando há vento, conseguimos bombear mais água do que gastamos, só que é impossível guardar água para mais do que duas horas. Quando não há vento, temos de usar carvão. – Obrigado. Estou perfeitamente consciente desse problema e estou a pensar numa solução – explicou Walter, despedindose do monitor. Sem perder tempo, dirigiu-se à parte industrial da cidade. Ali estava um dos seus maiores desafios, o enorme elevador, cuja função era abastecer matéria-prima e comida. Provavelmente, era o projecto mais importante, pois o mecanismo gastava várias toneladas por dia. A sua primeira ideia fora represar um curso de água que passava ali perto e usar a força mecânica para elevar a mercadoria. A ideia não fora coroada com sucesso, pois a corrente não providenciava força suficiente para mover a maquinaria. Como segunda tentativa, fizera rodar um dínamo no interior de um enrolamento de cobre, criando uma corrente eléctrica por indução e, com isso, fizera funcionar um pequeno motor eléctrico, que não era mais do que inversão do processo anterior. A eficiência não era elevada, mas o facto de conseguir criar uma fonte de energia eléctrica contínua era um marco importante. Desceu pelo teleférico até ao vale, tomando algumas notas sobre o progresso dos trabalhos. O plano era usar vários moinhos de água em pontos diferentes e ligá-los a vários motores, de modo a conseguir elevar a mercadoria sem usar carvão. Ao chegar ao fundo, foi recebido pelos seus dois assistentes, ambos com um semblante carregado. Toda a área se encontrava vedada, pois vários acidentes tinham já ocorrido, felizmente nenhum deles ainda fatal. – Bom dia, Paulo. Como é que estão a correr as coisas? – Nada bem, houve outro acidente. Um dos nossos rapazes sofreu um choque. Felizmente, os médicos já o observaram e ele está vivo. Têm várias queimaduras e está inconsciente, tão cedo não volta ao trabalho. – Raios... – praguejou Walter, controlando-se de seguida – Ainda bem sobreviveu, não iria conseguir enfrentar a família. Quantas vezes é preciso eu repetir que ninguém pode tocar nos cabos enquanto a máquina está em funcionamento. Avisei-vos desde o primeiro dia. Calou-se, pois apercebeu-se que levantara novamente a voz. – E que mais? – perguntou o inventor, depois de respirar fundo. – Instalámos o segundo moinho. Parece ter apenas uma fracção da potência do primeiro, como previsto, mas o efeito é mais severo do que esperávamos – reportou o mais baixo do grupo. – Provavelmente teremos de construir um dique e fazer fluir o ribeiro por um único moinho – comentou Walter, desanimado. – E tu, David, tens alguma novidade? – Ainda nada, o cobre continua a aquecer mais do que esperávamos. Até agora não há problemas, mas quando a corrente aumentar, o sistema poderá não aguentar – respondeu o homem que, apesar de ser bastante encorpado, parecia recear o inventor. – Temos de insistir com o pessoal da metalurgia para nos fornecerem fios com menos impurezas, o que significa que teremos de mudá-los todos e, provavelmente, também o enrolamento do indutor. Espero que pelo menos a eficiência aumente – explicou Walter, despedindo-se dos trabalhadores. Tinha esperança que, ao diminuir a quantidade de carvão usada pela cidade, conseguisse operar o elevador a uma velocidade mais baixa e exclusivamente com energia eléctrica. Tomou o teleférico de volta e amaldiçoou a velocidade a que este se movia. Ainda precisava de visitar o experimento mais importante, ao qual dedicava a maior parte do seu tempo. Quando a cabine parou no cais, ele saiu, com o intuito de chegar rapidamente aos jardins. Ainda não tinha dado dois passos quando sentiu uma mão no ombro. – Preciso de falar contigo – ouviu dizer uma voz familiar atrás de si. Apesar de ter reconhecido quem o chamava, quando se voltou ficou surpreendido por ver Eva. Esta estava com a cabeça tapada por um capuz e a sua expressão denotava um grande nervosismo. – Ah, és tu! O que fazes aqui? – Preciso de falar contigo, é urgente – pediu em voz baixa. – Podemos falar logo a seguir à reunião. Agora estou atrasado e ainda tenho que ver a estação que construí no jardim – concedeu o inventor, mostrando intenção de continuar o seu caminho. – Eu sei, mas isto é mais importante – silabou a rapariga, falando ainda mais baixo e notando-se um tom de aborrecimento com tanta hesitação. – O que é que pode ser mais importante que a reunião? – inquiriu Walter, ficando irritado com tanta insistência. – A tua vida está em risco. Vem comigo, eu explico-te – ordenou Eva, agarrando-o pelo pulso. Deixou-se guiar através das ruas estreitas. A sua mente tentava perceber porque razão a sua vida estaria em perigo. Qualquer que fosse o caminho que as suas conjecturas seguissem, iam sempre parar a Artur. Percepcionava o líder do castro como um homem que não ligava a meios para atingir os fins. Por baixo daquela fachada de homem civilizado e educado, parecia haver um dirigente implacável e pouco tolerante. Questionava-se se ele seria capaz de o assassinar assim que terminasse a sua tarefa. Ao assumir o ponto de vista do governador, soube logo que seria isso que ele faria. Eva parou num beco sem movimento. Walter notou que ela trazia os olhos vermelhos, deduzindo que estivera certamente a chorar. – Eu acho que o meu pai descobriu a nossa relação... – revelou a jovem. – Já percebi, eu falo com ele. Eu gosto de ti e caso contigo para não haver mais problemas. Já era tempo de assumirmos... – prometeu, pensado que ela estava a exagerar. – Pára! Ele mata-te quando souber! – vaticinou ela, elevando a voz. O inventor sabia ser uma pessoa respeitada no castro, em parte por ser honesto e também por estar a conseguir progressos, dos quais toda a comunidade dependia. – Espera lá, quem é o teu pai? – Artur Olivais, o líder do castro – revelou com um ar sério. – Calma ai! Estás a brincar comigo, certo? – inquiriu Walter, forçando um sorriso. – Não, eu nunca te mentiria... – protestou Eva, começando a chorar – eu nunca te disse, porque sabia que tu nunca te aproximarias de mim se soubesses. Sabes, eu apaixonei-me por ti desde o primeiro momento... – Chega! Se ele vier a saber, vai-me matar de certeza! Como é que pudeste ser capaz de me fazer uma coisa destas? – ripostou o inventor, visivelmente furioso. – Calma. Eu tenho um plano! Podemos fugir os dois... – Fugir... – riu-se Walter histericamente, desesperado – Ninguém consegue fugir daqui. sentindo-se Relembrou os gritos dos soldados ao serem brutalmente executados, quase que sentindo as dores que tal pena acarretava. – Vais ter de confiar em mim. – É mais fácil de dizer do que fazer – protestou, sentindo-se encurralado. – Não confias em mim? – inquiriu Eva, com um olhar inquisidor. – Claro que confio! – esclareceu, aborrecido por as conversas enveredarem sempre no mesmo sentido. – Então age como tal. Agora vai à reunião e tenta agir normalmente. Daqui a algumas horas, eu explico-te o meu plano, ainda preciso de fazer mais uns ajustes. Ela beijando-o e desapareceu de seguida por uma rua lateral. Walter voltou à rua principal. Ao olhar a torre do relógio, percebeu que já não teria tempo para visitar o outro experimento. Tentou esconder as suas emoções enquanto se dirigia ao palácio, mas tal não era fácil devido ao tumulto que se tinha apoderado dele. Já dentro do palácio, compôs as suas roupas, retirou os papéis da pasta e esperou que o chamassem. A audiência iniciou-se à hora prevista. Ao atravessar o salão, não pôde deixar de se sentir mais oprimido do que se sentira quando ali fora trazido pela primeira vez. Era um homem morto, caso Artur desconfiasse. O concílio estava reunido, mas o inventor sabia que a conversa aconteceria essencialmente entre ele e Artur. Inicialmente, o diálogo decorreu no mesmo tom educado a que estava habituado, com uma troca mútua de cumprimentos, seguindo a etiqueta. Durante o processo, observou o líder cuidadosamente, relaxando um pouco ao ver que não havia qualquer sinal que revelasse conhecimento da relação amorosa. – Já chega de formalidades. Caro doutor Ramos, pode agora apresentar os resultados do seu trabalho ao concílio? – pediu Artur. – O projecto para a bomba de água foi aplicado e funciona como previsto – Contudo, esse sistema ainda consome carvão... – Exacto, depende do vento para erguer a água. Conseguimos bombear um pouco mais de água do que a cidade consome. Todavia, o reservatório não é suficiente para abastecer a cidade mais do que um par de horas. No entanto, devo sublinhar que conseguimos poupar várias centenas de quilos de carvão por dia. – Ninguém está a colocar isso em causa. Tendo em conta a crise que nos ameaça, este concílio não considera que isso seja suficientemente bom. Tem alguma sugestão de melhoramento? – inquiriu Artur, cujo tom de voz denotava impaciência. – Espero converter os moinhos em geradores eólicos, guardar a energia obtida em condensadores e usá-la quando não houver vento... – O que é um condensador e como é que funciona? – interrompeu Aristides. – Muito simples. Pegamos num recipiente com líquido e mergulha-se dois fios de cobre nele. Ao passar corrente eléctrica, iremos carregar o líquido com energia. Basta ligar esses dois cabos e recebemos essa energia de volta. – E isso funciona? – duvidou Aristides. – Sim, o aparato que construí nos jardins prova isso mesmo. – Parece-me um bom tópico. Por favor, fale-nos da máquina que instalou no jardim – solicitou Artur. – Alguns metais geram corrente eléctrica quando expostos à luz solar. Tendo isso em conta, eu montei um aparato que recolhe essa energia e a guarda nesses tais condensadores. O objectivo é providenciar iluminação durante a noite. Para tal fazemos passar corrente por um filamento de tungsténio dentro de uma ampola, cujo ar foi previamente retirado. Isso poderia poupar bastante óleo ao castro... – Óleo não é um recurso crítico! – protestou Igor, o mais velho dos assessores. – É verdade, mas o facto de reduzirmos a quantidade de materiais que temos de elevar diariamente cria-nos a possibilidade de reduzir a velocidade do elevador e assim operá-lo somente com a força da água. – Você parece ter um plano sólido e abrangente, que considero adequado – decidiu Artur, fazendo sinal aos assessores para não interferirem mais na conversa. – Agora diga-me, o que pretende fazer nos próximos três meses? – Vou represar o curso de água e usá-lo para mover o elevador. Como já referi, quero mudar os moinhos de vento para poderem abastecer a cidade com água. Por fim, quero alargar o experimento com os condensadores, para tentar iluminar uma parte da cidade. – E que dificuldades técnicas espera encontrar? – Os fios condutores não são puros o suficiente, causando aquecimento e perdas consideráveis. Espero que a metalurgia consiga providenciar melhores materiais. Os condensadores não possuem uma grande capacidade, contudo espero conseguir melhorá-la substancialmente nas próximas semanas... Hesitou, pois havia outro problema, um pouco mais grave. A energia eléctrica gerada pelos metais irradiados e pelos geradores era diferente. Só a primeira podia ser guardada e não podia ser usada para mover motores. Não sabia qual a diferença entre as duas e, como tal, não fazia ideia de como ultrapassar este obstáculo. Algo lhe dizia que Artur não iria aceitar bem tal limitação e sabia que na era nuclear aquele problema havia sido resolvido, de modo que optou pela via do silêncio. – Creio que esses problemas podem ser resolvidos com tempo. Estamos muito satisfeitos com o teu desempenho, o consumo de carvão tem diminuído gradualmente. Esperamos que, ao estenderes as invenções para outros sistemas, nos poderemos libertar desta dependência. Se ninguém tem mais nada a dizer, eu darei esta reunião por terminada – concluiu o líder do castro. Ninguém ousou contrariá-lo. Assim que os assessores começaram a dispersar, Artur veio ao seu encontro. A expressão amistosa tinha desaparecido de todo. – Preciso de falar contigo, em privado. Espera por mim no corredor – pediu, enquanto cumprimentava o inventor. O sangue gelou-se-lhe nas veias ao apertar a mão do governante. – Sim, claro... – balbuciou em pânico, sabendo que Artur leria facilmente as suas expressões. Abandonou a sala, completamente alheado da realidade e tomado pelo medo. Houve um momento de hesitação em que pensou em fugir. Todavia, em plena luz do dia, isso seria suicídio. Deu voltas e mais voltas, percorrendo o corredor de ponta a ponta. A sua cabeça dava ainda mais voltas, pois não sabia o que fazer. Quando o pai de Eva apareceu, já Walter estava no mais profundo dos abismos psicológicos. – Desculpa ter-te feito esperar. Vou ser directo e sincero contigo, eu sei que me estás a esconder algo. Tens duas hipóteses: dizes-me o que é, ou eu descubro e tu sofrerás as consequências. O que preferes? Quis falar, mas as palavras não lhe obedeciam. Gostava de pelo menos saber a que é que ele se referia. Se lhe falasse sobre Eva, talvez pudesse escapar vivo, pois ainda precisavam dele. Ao revelar sobre os problemas técnicos, poderia ter algum tipo de complacência, já que o obstáculo poderia ainda ser ultrapassado. Recordou-se que Eva prometera-lhe uma fuga, de modo que o mais sensato seria falar do problema técnico e esperar que a fuga se consumasse com sucesso. Ao explicar as limitações entre os dois tipos de corrente eléctrica, viu que a expressão de Artur se ia suavizando. – Ainda bem que me contaste. Não precisas de te preocupar, os teus esforços estão a dar-nos tempo. E tempo poderá darnos mais soluções. Tenta resolver o problema e, mesmo que não consigas, havemos sempre de conseguir diminuir o consumo de carvão – Artur fez uma pausa, olhando-o nos olhos. – Há uma coisa que te quero contar. A mina tem mais carvão do que te dissemos. O grande problema é a presença de metais pesados, que tememos serem radioactivos. A cada ano que passa, a concentração tem aumentado, o que está a provocar doenças nos trabalhadores e até mesmo nas pessoas da cidade. É certo que a queima de carvão provoca doenças respiratórias, contudo o ritmo a que têm aumentado nos últimos cinco anos deixou-nos alarmados. Não são dezenas nem centenas, isto pode afectar uma em cada cinco pessoas em menos de vinte anos. Percebes agora a urgência do projecto? Walter acenou com a cabeça, sabendo que a sua fuga seria ainda mais difícil do que antecipara. – E claro, a capacidade da mina é finita. Não haverá carvão, mesmo contando com o que está contaminado, para mais de quinze anos. Peço desculpa por não te ter dito antes, mas o conselho não havia autorizado – explicou o líder do castro. – Vou dar o meu melhor – prometeu Walter, esperando que o tom soasse convincente. – Eu acredito que sim. Já agora, estás a esconder-me mais alguma coisa? – inquiriu de surpresa. – Não! – respondeu bruscamente. – Ainda bem – aceitou Artur, retirando-se de seguida. O inventor não sabia se as palavras dele haviam sido sinceras. A negação fora demasiado brusca para passar despercebida. Era irrelevante, concluiu, pois ganhara tempo, que era o que mais precisava naquele momento. Achou melhor voltar aos seus aposentos. Ao entrar, viu que Eva o esperava. Pareceu-lhe estar muito mais alegre que naquela manhã. Ela veio ao seu encontro e deu-lhe um abraço reconfortante, acompanhado de um beijo carinhoso. – É perigoso vires aqui – protestou o inventor assim que se separaram. – Já não faz diferença. Está tudo arranjado, deves descansar. Iremos partir ao fim da tarde. – Qual é o plano? – Confias em mim ou não? – devolveu ela, com um sorriso. Dadas as circunstâncias, não sabia o que responder. Queria confiar contudo, a sua intuição dizia-lhe para ter cuidado. Detestava tomar decisões sem ter todas as informações. – Se não confias em mim, o melhor é a nossa relação acabar aqui. Não precisamos de fugir. É mais fácil, nem sequer preciso de arriscar a minha vida por ti. Tu continuas com a tua vida e eu com a minha. Como fui parva ao achar que te preocupavas com os meus sentimentos... – escarneceu Eva, ao aperceber-se da hesitação. – Chega! – interrompeu-a, falando num tom de voz mais elevado. – Não sabes do que falas! Se formos apanhados, os nossos destinos serão muito diferentes, vê se percebes isso! Se eu tivesse sabido quem eras desde o início, isto nunca teria acontecido. – É isso que querias? Que a nossa relação nunca tivesse acontecido? – perguntou, com as lágrimas a galgarem-lhe as faces. Detestava quando as conversas enveredavam por estes caminhos tão rapidamente. Por mais que lhe custasse a engolir o orgulho, não conseguia ficar zangado com ela. – Não! – confessou, combatendo também a vontade de chorar. Num impulso abraçou-a, apertando-a com força. – Desculpa, eu não queria ter dito aquilo. – Eu também não. Esta pequena zanga fê-lo perceber que temia mais perdê-la do que a ira de Artur. Quebraram o abraço e beijaram-se apaixonadamente. Como precisava de limar algumas arestas do plano, Eva deixou-o pouco depois. Walter enfiou os seus parcos pertences na pasta e esperou pelo almoço. Este foi-lhe servido ao meio-dia exacto e consistia somente num peixe salgado acompanhado por um pão de trigo. Ao comer, não pôde deixar de pensar que aquela poderia ser a sua última refeição. Quando terminou, colocou o prato de lado, descalçou-se e fechou a portada. A escuridão invadiu a divisão. Deitou-se, mas não conseguiu adormecer imediatamente. A sua mente tentava discernir qual o melhor caminho a seguir. À medida que acrescentava dados à equação, esta ia ficando mais complexa e os resultados mais confusos. Acordou sobressaltado com duas pancadas suaves na porta. Era o sinal que ela lhe costumava dar. Levantou-se estremunhado e dirigiu-se à porta. Não falou, já que receava uma armadilha. Num movimento, abriu a porta e deu de caras com Eva, que trazia o mesmo capuz daquela manhã. Num impulso, espreitou para o corredor e, não vendo mais ninguém, deixoua entrar. – Está na hora – explicou-lhe ela, estendendo-lhe outro capuz, antes de continuar. – Toma, veste isto. O inventor obedeceu-lhe e ambos abandonaram o palácio pela escada de serviço pouco depois. Haviam sido abençoados com corredores vazios, de modo que não se cruzaram com ninguém até chegarem à rua. Deram a volta ao edifício e dirigiram-se aos estábulos. – Vamos sair pelo portão principal antes que o fechem para a noite. Ainda pensei que podíamos sair pela antiga porta de carga, só que podia soar demasiado suspeito – revelou-lhe enquanto selava um garanhão castanho-escuro. Ele assentiu e, uns minutos depois, atravessavam a entrada da cidade, cada um no seu cavalo, sem que ninguém os tentasse parar. Ainda nervosos, desceram a encosta do planalto, usando a mesma rota que os restantes viajantes. Sempre receosos, tomaram a direcção Sul no caminho principal. Durante um par de horas seguiram pela estrada a trote, até ao pôr-do-sol. Quando ficaram sozinhos, ao escurecer, abandonaram o caminho, seguindo a corta-mato. Era lua nova, por isso inicialmente avançaram com cautela. Contudo, por insistência dela, desataram a galope pouco depois. Ambos queriam afastar-se tanto quanto possível da cidade antes do amanhecer. Por aquela altura, já deveriam ter dado pela sua falta. Todavia, pela primeira vez não se preocupou com isso. A sensação de liberdade apoderara-se inteiramente dele. Inesperadamente, Eva foi projectada para a frente e Walter só teve tempo de fazer o seu cavalo parar. – Eva! Estás bem? – perguntou ao desmontar. – Sim, só me dói um pouco o ombro – queixou-se com um gemido. O cavalo havia tropeçado numa depressão do terreno. Ao palpar-lhe o ombro, percebeu que se tratava apenas de uma ligeira contusão. O maior problema era o cavalo que não se conseguiria levantar, pois tinha partido uma pata ao embater numa rocha. Eva aproximou-se dele e afagou-lhe a cabeça com carinho. – Deixa o cavalo! – protestou o inventor. – Cala-te! – ordenou a rapariga. – Não podemos deixá-lo aqui assim! – O que é que queres fazer, ficar aqui até que nos apanhem? – Não, dá-me só um momento. Walter não respondeu, tentando tolerar as manias dela. Pouco depois, viu uma gorda lágrima a descer pela bochecha de Eva, enquanto esta afagava a cabeça do cavalo. – Desculpa Elea – murmurou, beijando a testa da égua. Subitamente, empunhou a faca que trazia ao cinto e, apontando ao pescoço, deu-lhe o golpe de misericórdia. Seguiram caminho a galopar no outro cavalo. Porém, devido ao peso excessivo do par, este cansou-se rapidamente, tendo de prosseguir a trote. Quando o céu começou a clarear, estavam perto de uma vila abandonada da época do pré- Rerenascimento. Os telhados estavam caídos, carcaças de veículos antigos jaziam pelos cantos e a fauna e flora tinham invadido o espaço. Não parecia que nenhum humano ali tivesse posto os pés durante anos. O cavalo estava exausto e, por isso, consideraram que seria melhor passar o dia na cave do que fora outrora um prédio. O espaço era amplo, de modo que puderam prender o cavalo num dos pilares e instalar-se a alguma distância, para evitar o forte cheiro. Comeram restos que ela havia trazido da cozinha e adormeceram nos braços um do outro. Walter despertou com uma voz de comando. A primeira impressão fora que a voz havia sido fabricada na sua mente. Contudo, ao ver que Eva também acordara, percebeu que estava enganado. O medo tomara conta dele, ao ponto de querer ser apenas um rato e esconder-se num canto. Ao ver a angústia no olhar dela, percebeu que não tinham saída. Paralisados pelo receio, não ousaram mexer-se, na esperança que não os encontrassem. Tudo se revelou inútil já que, poucos minutos depois, os soldados do castro entravam no antigo estacionamento. Sem oferecer resistência, foram ambos escoltados para o exterior. Nenhum dos dois conseguiu apreciar a brisa daquela tarde de Outono. As pernas de Walter estavam como borracha, em antecipação ao momento em que iria enfrentar Artur. Apesar de saber que era apenas uma questão de tempo, suspirou de alívio ao descobrir que ele não estava naquele grupo de busca. Durante o resto do dia, caminhou de volta para a cidade, pois não havia nenhum cavalo para ele. À noite não lhe deram nada para comer e ele sabia qual a razão. Era um homem morto. Durante a noite, não conseguiu dormir, na esperança em que houvesse uma oportunidade de fuga. Não teve sorte, já que um dos homens ficou de sentinela o tempo todo. Eva seguia no outro extremo da fila. As vezes em que conseguira ver a sua expressão, encontrara-a sempre com os olhos vermelhos. Walter sabia que ela sofreria, mas o pai não iria castigá-la severamente. Ao fim de contras, Walter não tinha ilusões em quem Artur iria colocar as culpas. A meio da manhã do terceiro dia, voltaram à cidade. O espírito de Walter estava completamente quebrado, pois era a segunda vez que percorria aquela rua como prisioneiro. Desta vez levaram-no para as catacumbas, por baixo do quartel militar. Trancaram-no numa cela minúscula, a qual continha somente um recipiente com água e um penico. As paredes eram de pedra nua e a luz entrava por uma fresta diminuta, que ficava acima do nível do olhar. Ao fim da tarde, a maciça porta de carvalho foi destrancada e Artur entrou. – Tranquem-me e só abram quando vos der o sinal Assim que cumpriram a ordem, ele virou-se finalmente para Walter. – Não tentes nada de idiota – aconselhou, colocando a mão no punhal que trazia à cintura. O inventor permaneceu sentado e limitou-se a acenar com a cabeça. O líder do castro retirou um pão da algibeira e atiroulho. Assim que o apanhou, sem pensar duas vezes, começou a comê-lo. Não conseguia mais suportar a fome. – Eu sei o que pensas de mim, que sou um monstro. Não é verdade? Não precisas de o confirmar. Lembras-te da analogia que eu te dei do jogo de xadrez, no nosso primeiro encontro? Porque raio é que tentaste passar-me a perna? Walter comera demasiado depressa, de modo que interrompeu o discurso com um ataque de soluços. Artur esperou pacientemente que o inventor se acalmasse. – Um monstro... até o meu próprio irmão ostracizei. Sabes qual foi a razão? Ele prejudicava o castro. Desde que lidero que nunca quis o poder como um fim, era apenas como um meio. A sobrevivência da minha comunidade é tudo o que me interessa. Eu sou responsável pela morte dos teus conterrâneos, já que eles nunca teriam fugido se não tivesse criado certas condições. E digo-te, durante o tempo em que liderei, nunca deixei de aplicar uma pena, independentemente da pessoa, desde que a culpa fosse estabelecida. Acho que estás a ver o que te espera. Agora diz-me, porque é que tentaste fugir? – Eu tinha medo que descobrisse a relação amorosa que tinha com a sua filha. Artur soltou uma gargalhada enorme. – És um idiota, eu sempre estive um passo à tua frente. Sabia dessa relação antes de acontecer. Bastava observar a reacção dela quando eu lhe falava de ti ou cronometrar o tempo que ela passava no teu quarto. Devo dizer-te que ela foi a única pessoa que não tentei manipular. Infelizmente, nem o desafio de resolver um problema fulcral à existência humana, nem o medo, te conseguiriam prender aqui para sempre. Eu sabia disso, essa foi a razão de ter morto os outros cativos. Tudo para te impingir mais medo. A realidade é que, mais tarde ou mais cedo, eu sabia que irias fugir. No início, fiquei extremamente aliviado, pois parecia que a alavanca surgira onde eu menos esperava. Não ousei interferir, pois receava estragar tudo. Pelos vistos falhei, porque ela acabou por te incitar à fuga. Preciso de ti e não posso evitar matar-te, porque isso destruiria a ideia de justiça que tanto me custou a construir. Agora que já conheces o problema, propõe uma solução. Walter olhou-o admirado e, em silêncio, a sua mente estava em branco. Aquele homem conseguira estar sempre vários passos à sua frente. Naquele momento, um sorriso aflorou-lhe aos lábios. – Não preciso de propor uma solução porque você já tem uma. – Aprendes depressa. Desisti da liderança assim que soube que havias sido capturado. O homem que irá tomar o meu lugar não tem um pulso tão forte e irá querer mostrar que é mais clemente que eu. Tal como eu, ele acredita que as tuas invenções são o melhor investimento que se pode fazer nesta altura. Ele irá castigar-te severamente, mas não ousará matarte. A votação ainda não ocorreu, mas eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que não surjam problemas. – Porém... – desconfiou o prisioneiro. – Eu sei que esta oferta tem uma condição. – Exacto. Três condições, aliás. Eu não queria falar nelas antes de saíres daqui, para ter a certeza que te vinculavas. Estou certo de que as irás aceitar de qualquer maneira. Portanto, terás de desistir da promessa de libertação e aceitar a cidadania do castro. Terás de resolver o problema energético e, por fim, casar com a minha filha. – É tudo? – admirou-se Walter. – Quer dizer... – confessou Artur, sorrindo – mesmo que eu te diga que sim, tu não irás acreditar em mim... O fruto proibido Humberto estava nervoso. Impaciente, esperava que os engenheiros a abrissem, relembrando a sua chegada à Ibéria duas semanas antes. Naquelas terras selvagens havia caminhado durante quatro dias antes de o grupo encontrar a cidade. Muitas expedições haviam passado por ali no entanto, nenhuma havia investigado a vegetação a fundo. Os especialistas obrigaram-no a recuar. Iriam usar o último recurso para abrir a porta blindada. O entusiasmo inicial havia-se desfeito quando encontraram as ruínas dos subúrbios. A metrópole havia sido varrida por uma explosão termo-nuclear e volvidos cinco séculos, somente os restos das fundações poderiam interessar aos escavadores de relíquias inúteis. Para um cientista curioso como Humberto, não havia ali nada de interesse. Apesar da desmotivação geral, a desmatação prosseguiu. No meio da pequena selva havia algumas estruturas que haviam resistido à passagem dos séculos. Mas, nem mesmo nos edifícios menos danificados havia algo que pagasse o salário diário de um soldado. A sorte mudou quando um grupo de soldados, que procurava um sítio mais abrigado para dormir, encontrou a cave. O portão aguentara os assaltos dos técnicos durante toda a manhã. Só quando o sol já atravessara o zénite é que o conseguiram remover, com recurso a explosivos. Ainda o pó pairava quando Humberto ignorou as convenções de segurança e penetrara no interior da casamanta. Outros o seguiram e cedo descobriram que teriam de proteger as vias respiratórias com as camisolas sob o risco de sufocar com poeira. Com os olhos a lacrimejar, atravessou a entrada que dava para um longo corredor. Parou, tentando lidar com a desilusão. Parecia ser apenas uma estrutura militar do último conflito mundial. O cientista relembrou o que havia aprendido sobre a Terceira Guerra Mundial. A opinião geral colocava-a como a pior coisa que acontecera à humanidade desde o seu Génesis. Quase uma década de combates contínuos e sangrentos culminaram numa breve guerra atómica. O Verão nuclear queimou grande parte da superfície, matando mais de cinco biliões de seres humanos. O Inverno artificial matou quatro em cada cinco pessoas durante o primeiro ano. A escuridão fora a maior prova da capacidade de adaptação e sobrevivência do homo sapiens sapiens. As trevas duraram mais 70 anos e a noite parcial mais de um século. Não se sabe muito sobre esses anos e ainda menos sobre o que existia antes. A estrutura era mais extensa do que à primeira vista parecia. Prolongava-se por várias dezenas de metros de corredores labirínticos e tinha pelo menos outros dois níveis. – Venham ver isto! À sério, larguem tudo o que estão a fazer e venham ver isto! – chamaram, enquanto Humberto examinava uma divisão destinada ao alojamento. – O que foi? – gritam da outra extremidade, criando um eco surreal. – Estás bem? – ouviu-se um arqueólogo perguntar. A situação deixou-o curioso. Ainda confuso com a direcção pouco clara do som, Humberto encaminhou-se para onde a origem lhe pareceu ser mais provável. Uns metros encontrouse com um dos colegas e no fim bastou seguir a pequena multidão que se acumulara à entrada. Ar seco e rarefeito fluía do estranho compartimento. Os murmúrios subiram gradualmente de tom. Como todos pareciam estar com medo de entrar, Humberto furou pelo entre os colegas e estacou à entrada. Os seus olhos depararam-se com uma biblioteca. Uma sala quadrangular, com o comprimento duma carruagem de locomotiva. Estava repleta de prateleiras de livros. Era, provavelmente, a maior que havia sido encontrada durante as duas últimas duas décadas. Os olhos de Humberto maravilharam-se com a descoberta, ao imaginar o conhecimento fantástico que podia ser obtido. Assim que recuperaram do espanto inicial, os cientistas e arqueólogos organizaram-se de um modo sistemático. Impulsionados pela descoberta, iniciaram de imediato o registo e triagem dos volumes que, para o cientista de meiaidade, eram o maior tesouro do passado. Com eles podiam reproduzir as invenções do passado tendo em conta a restrições tecnológicas. Foi numa dessas sessões que ele encontrou algo que não estava à espera. Era um manual universitário. Folheou-o casualmente e começou a ler um parágrafo ao acaso. O coração parou por um momento. Piscou os olhos e releu novamente. Avançou algumas páginas e recuou o dobro. Tudo parecia bater certo. Estremeceu ao tomar consciência do poder que aquele feixe de papel encerrava. Estacou com o livro na mão. A tecnologia que tinha em mãos era proibida e arriscava a pena a morte. Ponderou se valeria a pena arriscar a vida para o mundo ter a possibilidade de entrar numa nova era dourada. Sabia que o livro seria destruído assim que os outros o encontrassem. Por impulso, decidiu guardar a decisão para mais tarde, enfiando o livro na sua mala. *** O navio a vapor cruzava o imenso oceano que dividia os dois continentes. No convés, embalado pelo mar, a mente do cientista divagava no imenso espaço dos pensamentos. Tentou concentrar-se, pois queria de tomar uma decisão. Não tinha dúvidas que a tecnologia descrita no livro mudaria o mundo. Com ela podia produzir quantidades imensas de energia e a dependência do carvão terminaria. Acreditava que, depois de quinhentos anos de inquisição tecnológica, o mundo merecia uma idade dourada. Contudo, ignorar as prescrições tecnológicas podia colocar a civilização num estado em que se destruiria a si mesma. Com esse pensamento, debruçou-se sobre a amurada e retirou o livro da sacola. Sem hesitar, atirou-o para o oceano. Ao voltar para os seus aposentos ficou cada vez mais agitado. Esperava por um alívio que não veio. Mesmo não tendo o livro, o conhecimento impelia-o a agir. As nuvens negras de fuligem que todas as manhãs se abatiam sobre a cidade eram prova de que este não era o caminho certo. Cada duas toneladas desse ouro negro custava em média uma vida humana. Humberto tinha o poder de mudar isso, só precisava de reproduzir o gerador descrito pelo livro. *** Ao ligar a centrifugadora, o barulho tornou o ambiente do laboratório insuportável. A meia noite passara há um par de horas e ele estava sozinho na academia. Era a única maneira de conseguir prosseguir com o seu projecto. Humberto decidiu fazer uma pausa mas, mesmo no corredor, não conseguiu desligar-se mentalmente da sua experiência. Desejava ter uma centrifugadora mais poderosa. Ouviu a porta do edifício abrir-se com um estrondo. Pareceulhe que alguém acabara de forçar a entrada no edifício. Passos ecoaram. Eram muitos pés em movimento. O coração do cientista começou a bater mais depressa. Soube de imediato qual era a razão de estarem ali. Tentou relaxar nos segundos que restavam antes de eles chegarem. Não tirava apontamentos nem comentara as suas experiências com mais ninguém. Tentou convencer-se que que tudo ficaria bem. Vários polícias de casaco azul e botões dourados cercaram. Os capacetes ovais faziam com que parecessem mais altos do que realmente eram. Humberto teve de usar toda a sua força de vontade para não mostrar o quão assustado estava. – Doutor Carvalho, você está sob detenção por infringir as restrições tecnológicas – anunciou o que tinha o maior bigode. Sem mais explicações, foi escoltado da academia até uma carrinha prisional de rodas gigantes. Assim que as portas duplas se fecharam, os pistons a vapor a colocaram a em movimento. Atravessaram metade da cidade construída em estilo Neovitoriano até chegarem a um imponente estrutura de talhe clássico. Fora levado ao Tribunal Imperial porque quisera dar à Confederação uma fonte quase inesgotável de energia. Foi conduzido pelos corredores trabalhados. O edifício demorara mais de um século a ser erguido e a aura da construção deixava-o ainda mais desconfortável. Ao entrar na sala de julgamentos, encontrou o tribunal já reunido. Humberto começou a tremer. – Doutor Carvalho, você é presente neste tribunal por violar as restrições tecnológicas. O que tem a dizer em sua defesa? – acusou o ancião vestido numa toga negra. – Eu não violei nenhuma restrição! – protestou o cientista, tentado não gritar. – Ainda não, mas os seus experimentos mostram clara intenção de o fazer. Ou nega que pretende fazer fissuração nuclear? – Não nego. Eu apenas queria dar à humanidade uma fonte de energia alternativa. Como sabe, o mundo precisa urgentemente disso... – Não duvido das suas boas intenções, mas a lei é inviolável. Ambos sabemos que não é este o caminho. Tenho muita pena, mas terei de aplicar a pena capital... – Não chega abandonar o projecto? – Quem me dera... – sorriu amargamente o Juiz. – O maior perigo não é o experimento, é o conhecimento que tem. Custa-me saber que iremos perder uma mente brilhante, contudo, a sobrevivência da humanidade o exige. Todo o material relativo à experiência deve ser destruído imediatamente e a pena aplicada dentro da próxima meia hora. A sessão está encerrada! Até ao momento em que foi fuzilado, Humberto não conseguiu sentir rancor, somente tristeza por a humanidade continuar nas trevas. ### Sobre o Autor O meu nome é Pedro Cipriano e gosto de escrever de tudo um pouco. É-me difícil definir o género literário no qual me encaixo, já que escrevo desde ficção história a policiais, passando por ficção cientifica e até ensaios. Gosto de escrever na maioria das vezes sobre a condição humana e as condicionantes sociais. Profissionalmente desempenho as funções de Físico experimental na área de física de partículas como estudante de doutoramento no Desy (Deutsches ElektronenSynchrotron) que está situado em Hamburgo, Alemanha. Nos meus tempos livres pratico Haidong Gumdo, uma arte marcial coreana de luta com espada, a qual já pratico desde Outubro de 2007. Actualmente sou 1º Kup (cinturão castanho). Pratico também Capoeira, uma arte marcial brasileira que combina luta, musica e dança no mesmo desporto. Comecei em Outubro de 2009 e tenho o cordão azul (3º graduação). Blogue: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/ Facebook: https://www.facebook.com/escritorpedrocipriano Email: [email protected] Projectos literários: http://pedrocipriano.blogspot.de/p/projectos.html Lista de publicações: http://pedro-cipriano.blogspot.de/p/publicacoes.html Teia de Memórias Durante treze anos, José cumpriu a sentença pesada pela morte do seu melhor amigo, a qual está rodeada por um enorme mistério. Quando sai finalmente em liberdade, todas as pistas parecem demasiado frias. Escorraçado da sua própria aldeia, onde todos acreditam ser ele o culpado, vai para Coimbra numa tentativa de desenterrar o passado. Paralelo à luta para se adaptar à vida em sociedade e realizar os sonhos que foram adiados, inicia a sua procura pelas pessoas que o possam ilibar. Poucos são os que acreditam na sua inocência e ainda menos os que estão dispostos a ajudar. Há outros que farão tudo para que o passado permaneça enterrado. Enquanto a verdade não for conhecida, José permanecerá preso na sua teia de memórias. Género: Policial/Drama Número de palavras: 80-85 mil Número de páginas: 310 Encontra-se em fase de revisão e espero publicá-lo durante o segundo semestre de 2014. A menina dos doces A vida académica reserva muitas surpresas a Mariana, sendo que a maior é a existência de uma falecida prima cuja memória foi ostracizada pela família. À medida que os pais se escondem em mentiras e abusos de autoridade, ela vai conhecendo Liliana através do diário que ela deixou. Valerá a pena perseguir um segredo que coloca em causa a estabilidade familiar? Género: Drama Número de palavras: cerca de 60 mil Número de páginas: cerca de 230 Encontra-se em fase de revisão e espero publicá-lo durante o segundo semestre de 2014. Caderno Vermelho Ao iniciar a viagem, o neófito nada entende, pois não consegue ver. Está cego e não o sabe. Os símbolos em que está imerso são como um livro, só o pode ler quem o souber decifrar. O conteúdo só está acessível a quem tem vontade e uma mente aberta. Não se trata somente de conhecimento, trata-se essencialmente de sabedoria. Todavia, a primeira não implica necessariamente a segunda. Há que ter cuidado pois o caminho não é uma linha recta, não por vontade do mestre, mas porque o aprendiz assim o quer. O aspirante deseja oporse à mudança, como se fosse alérgico. À medida que a viagem progride, há uma desconstrução da personalidade em que todas as bases são questionadas. Aí reside o seu maior perigo e é quando o conselho do guia é mais valioso. A abertura de horizontes não é um processo reversível. Não é possível voltar a dormir depois de se ter acordado completamente, assim como não é possível voltar ao ventre materno depois de nascer. Esta não é uma iniciação a uma ordem secreta, nem a nenhum clube de eleitos. É uma iniciação ao mundo real. Género: Poesia Número de páginas: 45 Previsão de lançamento: Segundo semestre de 2014